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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1
ASPECTOS DA MORALIDADE CRISTÃ PRESENTES NA OBRA DE MORTIBUS PERSECUTORUM, DE LACTÂNCIO
Luís Fernando Pessoa Alexandre
(Universidade Estadual de Maringá, PR)
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é compreender aspectos da moralidade cristã presentes na
obra De mortibus persecutorum, de Lactâncio (240-320 d.C.). Nosso foco, aqui, são dois dos
principais conceitos (ou princípios) que nortearam o desenvolvimento do cristianismo
especialmente no ocidente: conversão e salvação. Considerando, como o fez Peter Brown1,
que a história do mundo europeu ocidental recebeu quinhão significativo de suas estruturas
em função dos acontecimentos e fenômenos ocorridos entre finais do século III e ao longo de
todo o IV, este trabalho se volta para aquela época contando com as informações oferecidas
por Lactâncio e pela historiografia votada ao tema.
Pouco ainda sabemos sobre a vida do apologista cristão Lactâncio, que viveu entre os
anos de 240 e 320 no contexto do chamado Baixo Império Romano. O fato é que, como
considera um dos especialistas naquele período da história do Ocidente, Ramón Teja2, o
pouco do que podemos retirar da vida do apologeta africano é o conteúdo das informações
que nos foram passadas por outro escritor cristão e, por sinal, outro apologista, São Jerônimo.
Este apresenta algumas referências sobre a existência daquele em sua obra De Viris
Illustribus3 e o próprio Lactâncio nos oferece algumas – poucas – informações sobre sua
própria biografia nas páginas de uma obra que, segundo os especialistas no período e nos
trabalhos de Lactâncio, é a maior de sua lavra: as As Instituições Divinas4. A princípio,
colhendo informações fragmentadas sobre sua vida, podemos dizer que ele nasceu muito
provavelmente (TEJA, 2000, p.07) na cidade africana de Cirta no ano de 240 d.C. e veio a 1 BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no ocidente. Lisboa: Estampa, 1999. 2 LACTANCIO. Sobre la muerte de los perseguidores. Introducción, traducción y notas de Ramón Teja. Madrid: Gredos, 2000. 3 Citado por Ramón Teja na obra supracitada, na página 07. 4 Citado à página 10 por Ramón Teja na introdução que faz a obra de Lactâncio, por ele traduzida e comentada e aqui tomada como referência, como já afirmado.
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falecer em 320 d.C. não sabemos onde. No entanto, como o próprio Tejas afirma na
apresentação que faz ao texto De mortibus persecutorum, de 1982 - mas cuja edição aqui
utilizada é a de 2000 - nem poderíamos ao certo tomar a liberdade de dizê-lo pois, como já
afirmamos, as informações tanto sobre o ano e o local de nascimento de Lactâncio quanto de
sua morte ainda estão como que envoltos em certa névoa. A princípio, porém, consideremos
neste trabalho a data de 240 e de 320 como sendo a do tempo de vida do autor, tempo que
coincide com alguns dos acontecimentos mais decisivos da história de Roma.
Ainda devo observar que até sobre o nome de Lactâncio há dúvidas. O mais provável é
que tenha se chamado L. Caecilius Firmianus e nascido na cidade de Cirta, na antiga
Numídia, em território africano. Pelo o que sabemos5 o próprio nome Lactantius pode ter sido
um sobrenome surgido na época em que vivia na cidade de Cirta e que, como constasse em
alguns manuscritos menos cuidados pelo próprio autor referências ao nome Caecilius
aparecidos justamente na referida cidade, convencionou-se considerar que L. Caecilius
Firmianus tivesse sido seu nome real. Então, a partir dos manuscritos encontrados em Cirta,
sobretudo dos pior conservados, impôs-se o nome de Lactâncio tal como utilizado por Teja e
que aqui também reproduzo.
Na cidade de Cirta Lactâncio teve como grande influência intelectual o mestre
Arnóbio. Mais uma vez, é de São Jerônimo que recolhemos tal informação (TEJA, 2000,
p.p.08-10). Porém, como encontrasse alguns desacordos de ordem doutrinal com o mestre,
afastou-se dele com o tempo assim como dele também não fez menção honrosa em suas
obras. Em 303, já contando com a idade de 63 anos é convidado pelo imperador Diocleciano
para ir à cidade de Nicomédia trabalhar como gramático. Naquele momento, a dita cidade
grega acabava de ser recém-promovida à condição de capital do Império pelo próprio
imperador e era natural que a quantidade de alunos fosse considerável. No entanto, ocorre o
contrário do que poderia esperar Lactâncio e, em pouco tempo, percebendo que o número de
alunos que acorreriam às suas aulas era pequeno e que se não fizesse algo diferente sofreria o
risco de passar fome, resolve escrever. É justamente o que faz estando em Nicomédia e, com
o pouco que consegue com o trabalho, sobrevive.
De 303 a 305 Lactâncio permanece então na cidade de Nicomédia. Pelo o que
sabemos, já era cristão e não foi molestado por causa de sua fé; porém, ele observa o ambiente 5 Segundo Ramón Teja.
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de perseguições aos cristãos de boa parte do Império e passa a guardar material de experiência
para escrever em futuro próximo a sua obra De mortibus persecutorum.
Em 307 – provavelmente (TEJA, 2000) – Constantino, conhecido general de
Diocleciano, convida Lactâncio para ser o tutor de seu filho, Crispo. O apologeta parte para a
Gália e se instala na residência do futuro imperador, na cidade de Tréveris. Em 312 ocorre a
batalha entre Constantino e Maxêncio, nas proximidades de Roma, na ponte Mílvia. Depois
da derrota fragorosa sofrida pelo primeiro e a consolidação de Constantino e Licínio como
imperadores romanos, Lactâncio passa a redigir o De mortibus persecutorum por volta de 313
ou 314, no momento de maior paz no Império desde 303. É aquele, pois, o ano da aprovação e
publicação de um dos mais importantes e simbólicos documentos já lançados por um
imperador romano: o Édito de Milão, de 313, que concedia o direito de livre manifestação
religiosa tanto a cristãos como a não cristãos. Naquele momento, Constantino já estava
convertido e contava com o apoio de Licínio que, embora não o fosse como o primeiro, se
destacara até então, segundo o próprio Lactâncio, com atitudes favoráveis aos cristãos do
Império.
Ainda segundo São Jerônimo6, há uma série de obras que Lactâncio se atreveu a
escrever em sua juventude. Dentre elas poderíamos citar três de caráter profano como o
Symposium ou Banquete, o Hodoeporium ou Itinerário, que é a descrição em versos
hexâmetros de uma viagem feita da África até Nicomedia e, por fim, o livro Grammaticus.
Lactâncio também escreveu muitas cartas que formaram livros, mas grande parte desse
material foi perdido. Algumas foram dedicadas aos imperados Probo e Severo e há ainda dois
livros dedicados a Asclepíades. Em sua obra teológica assoma a monumental Instituições
Divinas, grande livro dogmático formado por sete volumes. Outros, não tão monumentais
quanto aquele, são o próprio De mortibus persecutorum, o De opifício Dei, De ira Dei e
Epitome.
REFERENCIAL TEÓRICO
6 Ramón Teja citando São Jerônimo entre as páginas 07 e 12 da obra Sobre la muerte de los perseguidores, por ele traduzida e comentada.
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Desde quando Edward Gibbon publicou o seu livro Declínio e queda do Império
Romano entre os anos de 1776 e 1788, o tema ganhou espaço notório entre os historiadores,
sobretudo depois da virada do século XIX para o XX, quando grandes intelectuais se
debruçaram sobre a questão da origem, o desenvolvimento e a fragmentação de grandes
civilizações sempre tomando como preocupação as questões mais urgentes de seus próprios
tempos. Na verdade, o próprio Gibbon se inscreve numa tradição de estudos sobre as causas e
características da fragmentação do império que remonta ao período do chamado
Renascimento. Não apenas na área de Antiga isso aconteceu; por exemplo, Jan Huizinga,
com o seu O declínio da Idade Média ou, Marc Bloch, com o seu A sociedade feudal ,
procuraram compreender o momento de crise pelo qual passava a sociedade europeia do
período entre-guerras (1914-1945) e lançar novas possibilidades de abordagem sobre os
momentos de transição e crise pelos quais as sociedades em geral passam. É claro que o
trabalho de Huizinga e Bloch vão para muito além disso e não caberia neste pequeno trabalho
sequer esboçar a contribuição que ambos ofereceram à historiografia – o que já foi por demais
apresentado em um sem número de trabalhos. Mas no caso dos estudos voltados para a
antiguidade e, em especial, para a romana, houve ao longo do século XX três principais
correntes de investigação que se traduziram como possibilidades de investigação dos temas e
problemas dessa seara.
A primeira delas começa, de certo modo, com o próprio impulso dado por Edward
Gibbon em 1776 e seguido por autores como Mikhail Rostovtzeff com os seus História de
Roma e Historia Económica y social del Império Romano. Autores como Rostovtzeff
dedicaram muito espaço em seus trabalhos para a questão das causas da decadência do
Império Romano e suas consequências não apenas para a própria sociedade romana, mas para
o ocidente em geral. Em Rostovtzeff, por exemplo, uma das explicações para a queda daquele
regime – ou modelo de civilização – teria sido uma concentração excessiva de poderes nas
mãos dos governantes – teoricamente representantes do estado – junto a uma disposição de
controle da sociedade que o autor chama de “espírito geométrico”. Pouco a pouco, com a
progressiva transformação do estado em uma espécie de estamento aristocrático cada vez
mais afastado da população, mormente rural, perdeu-se também o sentido de integração
originária e de celebração conjunta de um mesmo ideal de civilização haja vista a progressiva
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separação física e moral entre governantes e governados. O autor foi muito criticado por tal
teoria, além de outras. De acordo com Gilvan Ventura da Silva e Norma Musco Mendes:
“De acordo com tal perspectiva, teríamos, de um lado, a Civilização Clássica com todo o seu aparato de magnificência e, do outro, um aparelho estatal opressor que a aniquilou ao desvirtuar todas as suas ‘características essenciais’ como, por exemplo, o ideal de cidadania, a autoridade do Senado e as tradições pagãs.”(MENDES; SILVA, 2006, p.194).
Além de Rostovtzeff, Ferdinand Lot e A.H. M. Jones também foram como que
“partidários” dessa interpretação.
A outra possibilidade de abordagem do período do Baixo império foi a materialista, de
raízes marxistas. Esta, que tem talvez como seu principal representante o historiador inglês
Perry Anderson, cuja obra Passagens da Antiguidade ao feudalismo fez muito sucesso entre
os historiadores brasileiros das décadas de 1980 e 1990, levantou o problema das contradições
inerentes ao sistema escravista romano, que, com o fim do processo de expansão com o
encerramento das fronteiras de Trajano, teria provocado um quadro de escassez de escravos e,
o aumento do custo da escravidão e o colapso do sistema econômica por ela alimentado.
Outra corrente que nos últimos anos tem ganhado entre os historiadores brasileiros é a
da história cultural, cujos principais representantes são Henri-Irénèe Marrou e Peter Brown
(MENDES; SILVA, 2006). Os historiadores Gilvan Ventura Silva e Norma Musco Mendes
acreditam que esses dois pesquisadores de temas referentes ao Baixo império romano
renovaram os estudos voltados para a área sobretudo porque se propuseram a
“reparar a visão excessivamente pessimista sobre a desagregação do Império Romano do Ocidente que desde o Renascimento não cessara de influenciar os historiadores, elegendo como temas centrais de seu trabalho objetos que até então ou haviam sido considerados manifestações secundárias das transformações econômicas e políticas ou sequer haviam sido cogitados , como, por exemplo, o vestuário, os novos padrões de produção e de circulação de obras literárias e as transformações arquitetônicas” (idem,p.195)
Um dos resultados mais evidentes dessa proposta historiográfica lançada pelos autores
referidos é o aumento do campo de abordagens e, consequentemente, de possibilidades de
entendimento naquele longo período que se estende desde o começo do chamado Dominato
até os séculos VI ou VII (segundo Peter Brown) na fronteira com a Idade Média. Tal período
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é o da Antiguidade Tardia (que se estende até o século VIII, segundo os especialistas na área)
, dentro do qual está este trabalho.
Uma das maiores contribuições trazidas por essa perspectiva aos historiadores que
dedicam a estudar a Antiguidade Tardia foi fazê-los perceber as nuances, os contrastes, os
conflitos, acomodações, transformações e permanências que marcam esse longo período no
início do qual identificamos Lactâncio e tentamos compreender elementos da moralidade
cristã em De mortibus persecutorum.
OBJETIVOS
O maior objetivo deste trabalho foi – e continua sendo – o estudo da obra De mortibus
persecutorum, de Lactâncio, para compreender melhor alguns dos aspectos mais relevantes
que conformam aquilo que chamamos aqui de moralidade cristã. Como objetivos específicos
do trabalho estão: 1) apresentar um esboço de nota biográfica de Lactâncio para que
percebamos melhor e com mais clareza o próprio conteúdo da obra tal como se nos apresenta;
2) relacionar o trajeto pessoal de Lactâncio – lembrando das poucas informações que dele
possuímos – com o contexto no qual viveu e suas principais questões para entender o sentido
da realização da obra naquele momento e 3) tendo como referências básicas as informações
sobre a vida e o tempo do autor, analisar em passagens de sua obra dois conceitos
fundamentais que estruturam o conjunto da moralidade cristã até os dias hodiernos: conversão
e salvação.
METODOLOGIA
Para o estudo da obra De mortibus persecutorum procedemos a leitura da mesma à
luz da bibliografia mínima necessária para a compreensão não apenas na obra mas, dentro das
possibilidades oferecidas pelo material consultado, aspectos tanto gerais quanto específicos da
época em que Lactâncio viveu. Como afirmam Jacques Le Goff e Peter Burke7, todo
documento histórico apresenta algumas características que o singularizam enquanto
7 BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000 e LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
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“histórico” propriamente. Dentre elas, tanto um quanto outro comentam a imposição do
contexto sobre o documento (e sobre o seu autor) com tudo o que tal contexto carrega consigo
em termos de ambiência histórica; a questão das intencionalidades presentes de modo mais ou
menos evidentes ou, quando não, quase fugidias à atenção e à reflexão do pesquisador; as
relações com outros documentos do mesmo contexto, etc. Enfim, o documento é uma obra
humana e como tal apresenta tanto os limites quanto as possibilidades do ser humano que a
criou. Por essas razões, e considerando o que pensam Le Goff e Burke a respeito do
documento e da própria pesquisa em História, consideramos que é necessário, a partir do
desenvolvimento deste artigo, tratar do contexto no qual viveu Lactâncio (a nossa fonte) e
quais forma os elementos históricos que possibilitaram ao apologista africano fazer as
considerações que fez – além de outras - em torno do processo de conversão de parte da
aristocracia romana que culminou no Édito de 313. Ademais, sabendo das dificuldades que
pervadem o trabalho de investigação – o que já está implícito no esboço de nota biográfica
que apresentei na Introdução do presente trabalho - , gostaria de citar uma passagem de Marc
Bloch que, no meu entendimento, como que sintetiza algo da necessidade de se enfocar o
documento no contexto histórico em que nasceu e cujo tempo carregam em si:
“Em suma, nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento. Isso é verdade para todas as etapas da evolução. Tanto daquela em que vivemos como das outras. O provérbio árabe disse antes de nós: ‘os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais’. Por não ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do passado às vezes caiu em descrédito”. (BLOCH, 2001, p.p.59-60)
DESENVOLVIMENTO
Na época em que Lactâncio viveu (240-320) o Império Romano passava por um
conjunto de transformações que deitavam raízes no final do século II, quando termina o
regime do Principado com o imperador Cômodo. A partir daí, uma série de crises políticas e
econômicas ocorreram. Como afirma Gèza Alföldy8, entre o final do Principado e o início do
governo de Diocleciano (180-284) todo o sistema político romano entrou em um momento de
8 ALFÖLDY, Gèza. A história social de Roma. P. 172.
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instabilidade, apresentando modificações em suas estruturas (GOBATTO; VENTURINI,
2013, p.p.01-04) que, com o passar do tempo, se mostrariam como que irreversíveis9.
Ademais, Alföldy acredita que havia entre parte da população romana certa percepção de
decadência10 tanto em relação às instituições quanto aos costumes; percepção essa que se
fazia tanto maior entre os grupos aristocráticos, mormente senadores, que ainda procuravam
velar pelos valores e princípios maiores da antiga República11 12. Para que tenhamos melhor
clareza do que se passava temos que considerar que entre os anos de 222 e 238 – período que
coincide com os governos de Severo Alexandre e Maximino - houve ataques de povos
germânicos na região banhada pelos rios Reno e Danúbio – que serviam como fronteira
natural do Império – e a expansão do Império Persa. Em 251, na época do imperador Décio,
os romanos sofrem derrota para os godos. Em 260 Valeriano é sequestrado pelos persas e
conhece morte humilhante em cativeiro. Enquanto isso, novas ondas de germanos se
esparramam por regiões consideráveis da Gália, Hispânia, crescem ainda mais no Danúbio,
aparecem nos Bálcãs, Ásia Menor, Capadócia, Síria e a na própria Itália (ALFÖLDY, 1989).
9 Roger Collins afirma que entre os governos de Septímio Severo (193-211), Caracala (211-217), Heliogábalo (218-222) e Alexandre Severo (222-235) o poder imperial sofreu lenta mas visível decadência, acompanhada de um crescente reforço dos poderes militares. Cf. COLLINS, Roger. La Europa de la Alta Edad Media. Madrid: Akal, 2000. P.p. 28-31. 10 Decadência que, segundo Pierre Grimal, se mostra de modo mais evidente a partir do momento em que as lideranças que formavam a cúpula do poder romano tenderam a agir politicamente animadas por um espírito de controle com o fito de resolver ou, pelo menos, dirimir, o ambiente de crise. A tal “espírito” Grimal dá o nome de “espírito geométrico”. Sobre o assunto, conferir GRIMAL, Pierre. O Império Romano. Lisboa: Portugal: Edições 70, 1999. P. 146. Outro autor – muito questionado, por sinal, entre historiadores do Brasil e do exterior – que aponta para o fenômeno do crescimento desse ímpeto de controle social e econômico no Baixo Império é Mikhail Rostovtzeff. Para este, um dos traços mais relevantes da crise do Império Romano foi a manifestação inequívoca de um modo de governar monárquico e centralizador cujo exemplo maior viria não da própria tradição política romana, mas sim, de outra, de fonte oriental, não só de ânimo “geométrico” mas também, despótico. Cf. ROSTOVTZEFF, Mikhail. História de Roma. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1967, especialmente nas páginas 296-297 e 302. 11 Santo Mazzarino, em sua obra O fim do Mundo Antigo (Martins Fontes, 1991), comenta que “(...) no caso do fim do mundo antigo (...) não apenas os contemporâneos, como também os pósteros, consideraram tal crise algo exemplar e paradigmático: uma advertência que trazia consigo a chave para a interpretação de toda a nossa história”(p.14). 12 Em sua obra considerada clássica pela historiografia – mas não imune a reparos, o que é normal – Declínio e queda do Império Romano (Companhia das Letras: Círculo do Livro, 1989) Edward Gibbon afirma que parte do valor que o período republicano assumiu entre os romanos e, sobretudo, entre seus líderes, derivava – dentre outros fatores – do grande número de conquistas que, incorporadas como parte da história romana e de sua grandeza, deveriam ser preservadas pelos imperadores, pela “política do Senado, (...) ativa emulação dos cônsules, e (...) entusiasmo marcial do povo” (p.p.29-30).
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Junto à instabilidade de ordem política e militar da época13 acontecia também um
processo de empobrecimento quase que generalizado da população romana uma vez que o
império não tinha mais para onde se expandir e porque a escravidão estava entrando em
declínio por conta do fim das campanhas de conquista de territórios e pelo fato de que
muitos escravos ganhavam a condição de libertos. Ademais, as minas do império começavam
a se esgotar, os preços de quase todas as mercadorias subiam, o número de camponeses nas
terras diminuía e até gêneros de primeira necessidade começaram a faltar em algumas
províncias que já estavam perdendo população (Idem, ib.). As rivalidades entre facções
militares do próprio império, junto às ameaças de novas invasões, viessem pelas armas dos
godos ou dos persas, tornavam as províncias mais afastadas da capital não apenas mais
inseguras, mas também mais pobres14. Entre 161 e 305 caiu a expectativa de vida naquelas
regiões (Idem, ib.), mesmo considerando as medidas de controle e reorganização do sistema
imperial por meio da tetrarquia15 concebida por Diocleciano (284-305).
Nas cidades maiores e médias do império, os decuriões, responsáveis por sua
administração, formavam um grupo social que deveria arcar com todas as despesas de
manutenção da ordem urbana e de sua sobrevivência naqueles tempos de instabilidade e, por
isso mesmo, suas fortunas – nem todas muito vultuosas – tenderam a diminuir
consideravelmente, já que o tesouro da cidade residiam nos seus próprios bolsos. Com a
instauração da hereditariedade do cargo de decurião no governo de Diocleciano, a situação
daqueles piorou pois, não podendo fugir à convocação imperial para continuar administrando
as cidades provinciais, viam envolver-se, eles e seus familiares, em uma rede de poder que os
empobrecia e deles tirava a liberdade (idem, ib.). A crise dos decuriões, como afirma Alföldy,
se agravava em uma época em que, principalmente com Diocleciano, progrediam construções
de prédios públicos não rentáveis.
13 Segundo Alföldy, apenas em 238 foram mortos 6 imperadores. Para maiores informações, conferir A história social de Roma, p.174. 14 Apesar da insegurança nas províncias naquela época, Roger Collins comenta que os seus governadores tentavam “fazer o possível” para que fossem bem administradas enquanto fraquejasse a autoridade imperial. Para maiores informações, conferir COLLINS, Roger. La Europa de la Alta Edad Media. Madrid: Akal, 2000. P. 33. 15 Sistema de governo que, segundo Maria Luiza Corassin, foi estabelecido pelo imperador Diocleciano “ (...) com o objetivo de melhorar a defesa das fronteiras e (...) evitar interferências no processo de sucessão do poder. Em lugar de um imperador, passaram a existir quatro: dois imperadores “Augustos”, acompanhados cada um por um imperador mais jovem com o título de “César”, todos ligados por laços religiosos e familiares”(CORASSIN, Maria Luiza. Sociedade e política na Roma antiga. São Paulo: Atual, 2001. P.111)
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Essa crise do Império Romano que se já se anuncia nos tempos do imperador Marco
Aurélio (161-180), é acompanhada pela ascensão de grupos militares que, com o tempo,
assenhoram-se do poder político. Militares, ao longo dessa época, receberam permissão para
casar, soldos mais substanciosos, chegaram a formar quadros do funcionalismo, tornaram-se
como que responsáveis pela urbanização das fronteiras (e não apenas de suas defesa contra
novas invasões) e, com isso, passaram a experimentar uma clara ascensão social, política e
econômica (Idem,ib.). A ascensão da ordem equestre principalmente no século III atesta tal
fenômeno (Idem, ib.) e nos autoriza a dizer que os imperadores romanos dos séculos III e IV
carregam consigo a origem militar, guerreira, ao mesmo tempo em que se comprometem com
a preservação de valores que ainda são percebidos como republicanos ainda que na época de
Diocleciano e de Constantino, por exemplo, não haja mais República, nem o princeps criado
por Otávio Augusto, mas sim, o Dominato, novo regime político que sucede definitivamente o
Principado. Além da lealdade política e da formação jurídica exigidas para a assunção de
funções públicas em Roma, passava-se a considerar como parte das exigências para tal fim, os
méritos militares. Imperadores também eram soldados, então. O critério de nascimento
deixava de ser o mais decisivo.
O que nos chama a atenção é que senadores e imperadores houve que acreditaram que
as medidas coercitivas impostas na economia, no exército e, de certo modo, nas obrigações
públicas, poderiam como que restaurar a antiga grandeza do império justificada por valores
republicanos (ALFÖLDY, 1989, p.p.198-199) mesmo que houvesse a violência extremada
entre grupos políticos e/ou revoltas populares com a liderança ou não de militares (idem, ib.,
.p.p. 195-197). É como se aquela “requintada ciência bélica impregnada de ética”
(GIARDINA, 1992, p.07) estivesse se fazendo presente na sociedade romana como
necessidade premente de volta às origens, a um tempo em que o homem romano poderia ser
conhecido não apenas por tal ciência que lhe dá “o fundamento da audácia, certeza do êxito
(...)” (idem, ib., p.07) mas também pela sua pietas e religio, como dizia Cícero16. A República
não mais existia nem o Principado, porém, depois de tantas turbulências, permanecia a
lembrança de um tempo visto como admirável que, pela sua grandeza, ainda poderia inspirar
as novas lideranças romanas a resolver os novos problemas do Império à luz do que ele
sempre teria sido. É evidente que as condições econômicas, sociais, militares e políticas 16 Citado por Andrea Giardina nos mesmos livro e página.
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haviam mudado muito e que o próprio sistema foi aceito como necessário pelo Senado, no
entanto, ainda era o ideal da velha Roma republicana que, na visão dos homens da época,
justificava uma série de medidas, muitas vezes coercivas e até violentas, tomadas pelos
imperadores. Quando um dos tetrarcas, Galério, convence Diocleciano a iniciar a perseguição
aos cristãos em 303, é nesse contexto de crise pregressa e de tentativas de segurá-la, que
encontramos Lactâncio.
A MORALIDADE CRISTÃ EM DE MORTIBUS PERSECUTORUM
A obra De mortibus persecutorum, de Lactâncio, apresenta elementos da moralidade
cristã, sobretudo quando observamos que um dos especialistas em assuntos referentes ao
período aqui estudado, Ramón Teja, afirma que aquele foi, além de prolixo, um escritor
cristão que viveu o cristianismo ardentemente (TEJA, 2000, p.p.10-11). O próprio Teja
considera esse viver ardente da religião cristã nos termos históricos e apologéticos pelos quais
se apresenta a obra (2000, 23-24); ou seja, em De mortibus persecutorum o que Lactâncio nos
oferece é uma obra animada por um impulso de compreensão da realidade com o auxilio da
Providência Divina. Inserindo-se, pois, numa tradição de apologistas que tem raízes gregas,
Lactâncio combina, segundo Teja, a história e o cristianismo para explicar o sentido dos mais
importantes acontecimentos – segundo o próprio Lactâncio – de sua época.
A moralidade cristã pode ser entendida como a expressão da própria cosmovisão cristã
e de um conjunto de noções e práticas delas advindas17. Consiste em uma espécie de
guiamento moral desenvolvido pelos homens em função dos fatos da encarnação, vida, paixão
e morte de Jesus Cristo. Tal conjunto de noções e práticas é, de certo modo, um grande código
de conduta que, apesar das variações em torno de sua interpretação ao longo dos séculos,
permanece estruturado em torno matriz simbólica da Revelação e da vida de Cristo. No
entanto, considerando que o próprio entendimento sobre o que é a estrutura da realidade sofre
profunda mudança com o advento do cristianismo, podemos dizer que é a cosmovisão antiga
17 MEEKS, Wayne W. As origens da moralidade cristã: os dois primeiros séculos. Tradução de Adaury Fiorotti. São Paulo: Paulus, 1997. P.
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que parece afetar-se da apreensão cristã do cosmos18. É como se o código de leitura da
realidade mudasse ou sofresse poderosos acréscimos – simbolizados, inclusive, na narrativa
do Novo Testamento - em função do fato de, no caso dos cristãos, não ter aparecido um
profeta que anunciasse para determinada comunidade (como no caso judaico) novos
patamares de compreensão da realidade, do homem e do universo, mas sim, pelo fato de a
própria verdade ter se revelado como o princípio e o fim de tudo o que existe e pode existir: o
Logos divino.
Assim, a moralidade cristã pode ser melhor compreendida se for enfocada como o
resultado moral dessa nova cosmovisão e, dentro dela, nascem ou se complementam noções
religiosas antigas como, por exemplo, as de conversão e de salvação19. As duas, segundo o
meu entendimento, estão presentes na obra De mortibus persecutorum.
Como explica Wayne Meeks em seu livro As origens da moralidade cristã: os dois
primeiros séculos, a conversão já era um conceito conhecido na antiguidade antes mesmo do
advento do cristianismo. No entanto, com este, prorrompe uma nova dimensão da experiência
de conversão ou, melhor dizendo, um aprofundamento de tal experiência dentro de uma nova
cosmovisão. Como nos informa o autor, o convertido cristão, desde os tempos de Paulo, o
apóstolo, tinha algumas noções básicas do que significava ser um convertido e do que ele
tinha de fazer a partir de então. Falar sobre sua fé e sobre as narrativas que lhe aproximavam
dos tempos em que Jesus Cristo havia passado entre homens era um desses comportamentos
que expressavam a nova moralidade. Ademais, a construção de igrejas, ainda que fossem
modestas, além de sua manutenção e defesa contra as investidas imperiais, era outra prática
do cristão romano. O fortalecimento dos laços pessoais dentro de uma perspectiva cristã
também era evidente, o que se mostra, segundo o autor, por meio de uma linguagem
específica e por uma rede de interproteção que estabelecia a força do grupo, visto como nova
família em Cristo. Tais fatores reforçavam a lembrança e o símbolo da vida, paixão e morte
de Jesus e impedia que a narrativa daquela história se perdesse (MEEKS, 1997, p.p. 10-13).
18 Segundo Moses Finley, expressão de tal fenômeno é o crescimento de cultos orientais naquele período e a perspectiva de alcançar a felicidade (e/ou plenitude da existência) não neste mundo, mas sim, no outro. Cf. FINLEY, Moses. Aspectos da Antiguidade. Lisboa: Edições 70. P. 221. 19 MEEKS, Wayne W. As origens da moralidade cristã: os dois primeiros séculos. São Paulo: Paulus, 1997. p.p.207-214.
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Se a conversão significava uma mudança profunda da experiência religiosa dos
primeiros cristãos20, seus efeitos também se manifestavam em um conjunto de práticas de
caráter individual e coletivo que os identificava como grupo específico dentro do Império
Romano, grupo este que tinha, já na época em que Lactâncio escreve, uma narrativa própria e
uma tradição, como nos lembra Wayne Meeks. Tudo isso alimentado pelo comprometimento
do convertido em falar sobre sua conversão e agir animado por ela e, sobretudo, por outra
razão fundamental: a salvação da alma.
A salvação da alma é, para o cristão, a sua integração plena na eternidade. Tal palavra,
aqui, é empregada no sentido utilizado pelo filósofo brasileiro Olavo de Carvalho: a
simultaneidade de todos os tempos21. Ou seja, entre os primeiros cristãos, inclusive os da
época de Lactâncio, havia a percepção de que a consciência individual poderia se libertar das
obrigações cerimoniais e protocolares do Império para compreender a sua própria condição e
destino. Isso significa dizer que o cristão nega a divindade do imperador justamente pelo fato
de reconhecer que ele não pode promover a integração de sua alma no plano da eternidade,
uma vez que não a criou mas nele vive como qualquer outro indivíduo, cristão ou não. Quem
o poderia fazer – tal integração - era o próprio Cristo, pois Ele se apresenta não como um
profeta ou um homem muito sábio e valoroso que aparece de tempos em tempos com a
missão suprema de indicar para membros de sua comunidade horizontes mais amplos para a
inteligência. Cristo, ao contrário, é a própria Inteligência pois é antes disso o Logos divino
que criou tudo o que veio a existir. Os primeiros cristãos (não todos, evidentemente)
compreenderam, como o fez São Paulo Apóstolo, que o homem está em Deus, Nele vive e
reconhece sua própria existência.
20 Uma delas, e talvez, das mais importantes para a compreensão de como viviam os primeiros cristãos e como se relacionavam com a tradição religiosa que ia se formando então, é o fato de, segundo Meeks, eles entenderem que vivem neste mundo mas, ao mesmo tempo, não são dele: esse foi um dos passos, segundo o autor, para que se consolidasse uma profunda identidade entre aqueles religiosos. A experiência terrestre é vista como uma espécie de “rascunho” da eternidade. 21 Olavo de Carvalho desenvolve o conceito de simultaneidade de todos os tempos para explicar o que significa a eternidade não apenas no artigo What is a miracle? (O que é um milagre?), mas também – e há tempos – em vários outros, em livros como O Jardim das Aflições (citado neste trabalho), Visões de Descartes(2013), O futuro do pensamento brasileiro (2007) e A filosofia e seu inverso (2011). Mas é no seu Curso On-line de Filosofia (COF), mantido por ele desde meados de 2009 no site do Seminário de Filosofia (sendo este mais antigo), que os conceitos de salvação, assim como o de Juízo Final e de imortalidade da alma, são tratados com mais tempo, exemplos e mais profundidade, sobretudo em suas apostilas e cursos avulsos.
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Considerando que a salvação da alma é o estado de plenitude do ser na eternidade e
que tal possiblidade pode ser alcançada a partir do momento em que o indivíduo se converte
ao cristianismo e se compromete a fazer o que o próprio Cristo disse que ele deveria
fazer22para se salvar, podemos chegar à conclusão de que não haveria autoridade no Império
Romano e em todo o mundo, que pudesse oferecer às pessoas a vida eterna e, portanto, a
felicidade eterna tal como compreendida nos termos aqui apresentados. Pois essa é a questão
que se nos assoma quando observamos o comportamento de mártires cristãos que no
derradeiro momento da existência desprezam solenemente o mundo que os persegue e
condena. Tal mundo é, ao mesmo tempo, o romano, mas não apenas ele: é também o símbolo
do peso da existência que verga sobre os ombros daqueles que se atrevem a viver de acordo
com uma exigência cognitiva que absorve e supera a sua própria cultura. Não tendo, pois,
mais espaço em um mundo que o persegue na figura dos funcionários romanos que
representam a pessoa pretensamente divina do imperador, o cristão perseguido aquiesce com a
morte sabendo que ela não é o fim, mas sim, a passagem para a máxima consciência, para um
estado no qual a inteligência é infinita e que, por isso mesmo, não há mais limitações para
vida humana. Como afirma Olavo de Carvalho, “a conquista da inteligência teorética é a
culminação de um processo de personalização, de libertação da consciência pessoal, iniciado
pela filosofia grega e completado pelo cristianismo” (CARVALHO, 2000, P.283). Libertar-se
das condições que foram impostas pelo mundo e conhecer o reino da consciência que tudo
gera, pervade e sustenta, é a glória do cristão perseguido.
Ao relatar o que aconteceu com os imperadores que perseguiram aos cristãos,
Lactâncio nos dá indícios de que esses dois aspectos da moralidade cristã, a conversão e a
salvação, alimentam a sua obra. Por exemplo, o cristão (o convertido, portanto) poderia
perceber o significado daqueles acontecimentos dramáticos (as perseguições e as mortes
posteriores dos seus perseguidores) porque já conhecia, pelo menos em termos, a experiência
de se relacionar com o logos divino que tudo criou, inclusive a justiça que fundamentava a
vingança sobre os considerados por Lactâncio como maus imperadores : “Dios retrasó su
castigo para mostrar em ellos grandes y admirables ejemplos con que los venideros
aprendiesen que Dios es uno y es juez que impone a los ímpios y a los perseguidores suplícios
dignos de um vengador”(LACTANCIO, 2000, p.p.64-65); vingança essa que se fez presente 22 Exemplos que aparecem principalmente nas parábolas do Novo Testamento.
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na vida trágica do imperador Nero que, segundo o autor, teria ordenado que os apóstolos
Pedro e Paulo fossem, crucificado o primeiro e decapitado o segundo: “Pero no quedó
impune, pues no le pasó a Dios inadvertida la vejación de su Pueblo” (Idem, ib., p.67).
Quanto a Domiciano (81-96) que também teria se voltado contra os cristãos, o autor nos
informa que como pena recebida da Providência “no fue venganza suficiente el que fuese
muerto em su propia casa: fue borrado, incluso, el recuerdo de su nombre” (Idem, ib., p.70). E
a sequencia de azares que envolveram o final de vida dos demais imperadores prossegue em
Lactâncio de modo a percebermos a certeza que o autor tem de que o convertido, mesmo se
perseguido, tem a oportunidade de ver até em vida a triste sina de seus algozes, por mais
poderosos e ameaçadores que tenham sido. E por isso, é a condição de humilhação pessoal e
pública a qual tais homens são lançados para que todos vejam que mesmo havendo
perseguição e demais constrangimentos - tais como confiscos de bens, sequestro de mulheres
jovens (casadas ou não, virgens ou não) a mando de imperadores como Maximino para que
sejam suas na corte – sempre prevalece a justiça divina que é o galardão do convertido.
Assim, apesar das dores, o convertido ainda poderia ver o que aconteceria com os seguintes
homens: Valeriano, “capturado por los persas, perdió no sólo el poder de que se había servido
con insolencia, sino tambien la libertad de que había privado a los demás y vivió el resto de su
vida en uma humilhante servidumbre” (Idem,ib., p.73); Diocleciano, que tempos depois de
abdicar do poder em favor de Galério, perturbado por tragédias familiares e contemplando
desolado a destruição de imagens do velho Maximiano, “iba de un lugar a outro con um
espíritu turbado por el dolor que le impedia dormir e comer”; Galério, que, segundo Ramón
Teja teria sofrido insuportáveis dores por conta de um tipo de câncer muito agressivo e que,
pela descrição de Lactâncio, é apresentado como uma doença misteriosa que consome como
fogo a região logo abaixo da genitália e se prorrompe por todo o organismo fazendo
apodrecer-lhe a carne já preparada para receber levas incuráveis de vermes e, citando Virgílio,
sentencia: “eleva a los astros horrendos alaridos, cual los mugidos que da el toro herido
cuando huye del altar”(LACTANCIO, 2000, P.163)
CONCLUSÕES
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Para finalizar este artigo que, na verdade entendo muito mais como um esboço de
compreensão de certos aspectos da moralidade cristã tal como aparecem na obra De mortibus
persecutorum, posso dizer que tanto a conversão quanto a salvação da alma alimentam a
narrativa de Lactâncio e oferecem a ele o fundamento que estrutura sua visão a respeito do
que estava se passando com o Império naqueles anos de conflito e indefinição.
É evidente, entretanto, que havia interesses outros para além da própria conversão de
Constantino e do Império ao cristianismo, como, por exemplo, o fortalecimento da cidade de
Roma e do seu Senado, entendido este, por Lactâncio, como símbolo da antiga tradição de
ordem aristocrática que teria presidido ao nascimento da própria sociedade romana tal como o
afirmam em trabalhos recentes sobre o tema Douglas Gobatto e Renata Venturini: “Lactâncio,
assim como era lugar comum entre os romanos após a queda da República, tinha uma
preferência pelo modelo republicano de governo, quando Senado representava a autoridade
máxima na administração” (2013, p.0823 ). Do mesmo modo, os autores apontam que o
quadro maior no qual está inserida a obra de Lactâncio “nos leva a dois grandes eventos da
história romana, a crise do Império, que se estendia, de forma mais visível, desde o reinado de
Marco Aurélio (161-180 d.C.) e a ascensão do cristianismo, especialmente a partir de meados
do século III d.C. (...)” (2013, p.1024); assim como afirmam que, em um momento de crise
como foi o período que se estendeu de finais do século III e início do IV d.C., muitos
romanos, tanto da aristocracia como do restante da sociedade, a associaram – a crise - a
ascensão do cristianismo e, como culpado pela situação de decadência que então se
manifestava, seus representantes, os cristãos, “no imaginário de parte da população (...)
tornaram-se obstáculos para o retorno à estabilidade da sociedade”. (2013, p.12). Assim, a
obra de Lactâncio seria como que o resultado de um esforço intelectual feito por seu autor
para não apenas saudar a ascensão do cristianismo como nova religião do império mas,
também, para responder a um problema de ordem institucional que era recuperar a ordem
política, militar e institucional representada sobremaneira pelo imperador e pelo Senado
(GOBATTO;VENTURINI, 2013). Por tal razão os autores aqui considerados afirmam que
23 Tal citação dos autores encontra-se na página 08 no site do Congresso Internacional de História da UEM, no qual a sequência de trabalhos daquele ano (2013) é arrolada. 24 A citação foi retirada do artigo De mortibus persecutorum: uma abordagem política do pensamento de Lactâncio, publicado no site da Jornada de Estudos Antigos e Medievais/IV Jornada de Estudos Antigos e Medievais: Formação, Sabedoria e Felicidade no Medievo. Universidade Estadual de Maringá, 28 a 30 de agosto de 2013. P. 10.
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“sobre um mesmo arcabouço ideológico” (2013,p.16) Lactâncio promove “a legitimação das
duas principais instituições da época, o Império Romano e a Igreja Católica” (2013, p.16).
Como os próprios autores consideraram noutro trabalho25, um dos aspectos mais
importantes daquilo que chamados de religião antiga era o fato de que esta “(...) era vinculada
à política (...)”, não havendo, portanto, “(...) divisão entre política e religião [segundo o ]
modelo do Estado laico moderno” (GOBATTO; VETURINI, 2013, p.0526). Sendo assim, os
aspectos da moralidade cristã presentes na obra De mortibus persecutorum podem ser melhor
compreendidos quando enfocados à luz do seu próprio contexto, no qual, os elementos
propriamente religiosos não se separam dos políticos (temporais) em uma mesma
argumentação apologética. Assim, a considerar a experiência pregressa de conversão do
próprio Lactâncio27 , sua preocupação com a conversão dos demais habitantes do Império e
com a salvação das almas, podemos dizer que sua obra nos mostra aspectos morais do
cristianismo que não se separam do contexto no qual se encerram, mas, muito pelo contrário,
o abrangem e ressignificam28 dentro de um nova cosmovisão29 30.
A moralidade cristã presente na obra de Lactâncio é expressão de tal cosmovisão que
envolve a política e as maiores instituições da época segundo um novo horizonte de
possibilidades. Com a conversão do Império efetivamente sob o governo de Teodósio, entre
379 e 395, o fenômeno de expansão do cristianismo e da cultura cristã, se mostra como
inevitável31 32.
25 GOBATO, Douglas Raphael Machado; VENTURINI, Renata Lopes Biazotto. De mortibus persecutorum de Lactâncio e a perseguição de Diocleciano aos cristãos no século IV d.C.. In: VI Congresso Internacional de História, de 25 a 27 de setembro de 2013. 26 Na página 05 do referido trabalho tal como está publicado no site do Congresso Internacional de História da UEM. O endereço eletrônico do trabalho é http://www.cih.uem.br/anais/2013/trabalhos/126_trabalho.pdf. 27 Da qual, é verdade, pouco sabemos como o afirmam Ramón Teja, Douglas Gobatto e Renata Venturini. 28 MEEKS, Wayne W. As origens da moralidade cristã: os dois primeiros séculos. São Paulo: Paulus, 1997. P.p. 207-214. 29 Assim como há contatos entre as instituições romanas e gregas, como explica Fustel de Coulanges. Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. 10ª ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1969. P. 05. 30 Antes de assistirmos ao movimento de expansão do cristianismo no Império Romano, podemos dizer, segundo nos informa Peter Brown, que, de acordo com a religião romana o próprio Império era considerado como expressão da realidade divina. No cristianismo porém, nenhum império poderia ser compreendido como expressão da realidade divina a não ser de modo indireto, aproximado e/ou metafórico/analógico. Cf. BROWN, Peter. A ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Editorial Presença, 1999. P.p. 37-39 e 44-45 (a respeito da visão cristã sobre o pecado e a salvação). 31 Três fenômenos, dentre outros igualmente relevantes, da época posterior a Lactâncio (após 320, portanto) são: a)a consciência de fim dos tempos (como comenta Santo Mazzarino, já citado), b) a relegação do paganismo a condição de superstitio (superstição) e c) a percepção de uma unidade cristã dentro do Império
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REFERÊNCIAS
Artigos publicados em anais de congressos
GOBATO, Douglas Raphael Machado; VENTURINI, Renata Lopes Biazotto. De mortibus
persecutorum: uma abordagem política do pensamento de Lactâncio. In: XII Jornada de
Estudos Antigos e Medievais/IV Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais:
Formação, Sabedoria e Felicidade no Medievo. Universidade Estadual de Maringá, 28 a 30
agosto de 2013. http://www.ppe.uem.br/jeam/anais/2013/pdf/21.pdf
GOBATO, Douglas Raphael Machado; VENTURINI, Renata Lopes Biazotto. De mortibus
persecutorum de Lactâncio e a perseguição de Diocleciano aos cristãos no século IV d.C.. In:
VI Congresso Internacional de História. Universidade Estadual de Maringá, 25 a 27 de
setembro de 2013. http://www.cih.uem.br/anais/2013/trabalhos/126_trabalho.pdf
Vídeo
CARVALHO, Olavo de. What is a miracle?. http://voegelinview.com/what-is-a-miracle/.
Acessado em 04 de agosto de 2015.
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