confissões agostinho

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    CONFISSESLivros VII, X e XI

    Santo Agostinho

    Tradutores :Arnaldo do Esprito Santo / Joo Beato

    / Maria Cristina Castro-Maia de Sousa Pimentel

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    Texto publicado na LUSOSOFIA.NETcom a benvola e graciosa autorizao dos Tradutores,do Autor da Introduo, o Prof. M. B. da Costa Freitas,do Director do CEFi Centro de Estudos de Filosofia

    da Universidade Catlica Portuguesa (Lisboa),Prof. Manuel Cndido Pimentel,e do Prof. Antnio Braz Teixeira,

    Presidente da Imprensa Nacional Casa da Moeda,onde a obra foi integralmente publicada,em edio bilingue (latim / portugus) :

    SANTO AGOSTINHO, Confisses, IN-CM, Lisboa, 2001

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    Covilh, 2008

    FICHA TCNICA

    Ttulo : / Confessiones / Confisses, Livros VII, X e XIAutor : Santo AgostinhoTradutores : Arnaldo do Esprito Santo / Joo Beato / Maria CristinaCastro-Maia de Sousa PimentelColeco : Textos Clssicos de FilosofiaDireco da Coleco : Jos M. S. Rosa & Artur MoroDesign da Capa : Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao : Jos M. S. RosaUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2008

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    NOTAS PRVIAS TRADUO

    O clssico inerte da nossa lngua paganizada e incompatvel com omovimento do estilo augustiniano, to prprio das almas fervorosas! [... ] Caso grave, e muito grave, traduzir as Confisses, um livro filos-fico e mstico, realista e potico, complexo e delicado, em que h frutoss doura ou s amargura, rosas s perfume ou s espinhos, vozes emurmrios, relmpagos e nuvens, um espao teolgico e astronmico,onde os anjos e as estrelas ardem na mesma claridade.1

    Traduzir as Confisses de Agostinho representa um esforo poratingir um objectivo quase inatingvel, como se deu conta Teixeira dePascoaes, qual e 0 de transpor para outra lngua uma experiencia quee nica, numa linguagem que passa do mais frio raciocnio cerebralao mais ardente arroubo mstico de uma alma enlevada no amor deDeus. Por seu lado, a experiencia literria do retor, futuro bispo deHipona, profundamente impregnada de ritmos ciceronianos e ecos deautores clssicos, cruza-se a cada momento com 0 vocabulrio spero,mas cheio da pujana de uma lngua antiga e renovada, como e 0 latimcristo, carregado de hebrasmos e helenismos semnticos, veculo deuma torrente de sentimentos sublimados em experiencia religiosa.

    Nem sempre fcil verter na mesma frase, em tal avalanche deexperincias e emoes, o movimento do estilo augustiniano. Porqueas palavras se desdobram em significados mltiplos, numa polifonia deevocaes tantas vezes inapreensveis e at mesmo intraduzveis.

    A mais pequena partcula no pode ser desprezada numa tradu-o que se pretenda fiel ao pensamento e s emoes de Agostinho.Sucedem-se em catadupa palavras de ligao, perodos e perodos, fra-ses e frases, e segmentos oracionais, articulados entre si por polissnde-tos encadeados que, a serem eliminados, desvirtuariam essa sensao

    1 Teixeira de Pascoaes, Santo Agostinho, Lisboa, Assrio & Alvim, 1995, pp. 109e 110 (1a ed., 1945).

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    de dvidas e angstias acumuladas, num crescendo progressivo de tre-vas, at deflagrarem numa espcie de exploso fantstica de luz.

    Para o mesmo efeito contribuem as repeties de vocbulos da mes-ma raiz, em figuras etimolgicas sucessivas amiserar-se dos miserveis{--} que a cada momento desafiam a imaginao e competncias dotradutor, e que no raras vezes o deixam frustrado perante a impossi-bilidade de tal ou tal jogo de palavras ser impossvel de reproduzir emportugus. No foi possvel, por exemplo, dizer, com todo o efeito re-trico do original, que Agostinho, por causa dos liberi (filhos) dos seusconcidados, no era liber (livre) de se dedicar inteiramente a Deus.

    Correndo, pois, muitas vezes o risco de cair em asperezas, ou de atresultar em gongorismo a tentativa de conservar estas marcas de escrita,optou-se, tambm neste aspecto, pela fidelidade ao estilo de Agostinho,sempre que a lngua portuguesa o permitiu.

    Foi propsito nosso, nunca exagerado, no ceder tentao de ama-ciar as rugosidades, ou suavizar a violncia das palavras atiradas comopedras contra o erro e a heresia. Esprito inflamado, Agostinho, numgesto de supremo sarcasmo, diz que os Maniqueus fazem da sua panauma enorme oficina onde transformam os alimentos, matria degene-rada, em substncia divina. Sirva-nos este exemplo para justificar ouso de certa linguagem, s vezes chocante, que se manteve na tradu-o. Seria fcil substituir pana por ventre, mas, de facto, a ironia comque Agostinho fala da teoria maniquesta leva-o a escolher um termopropositadamente chocante e ofensivo.

    Tambm no adoamos ou tornamos falsamente piedoso o que ono . E, no entanto, a linguagem de infncia, cheia de meiguice, parano dizer pieguice, abunda em efuses msticas, s comparveis s de-claraes apaixonadas que se encontram nos poetas cantores do amorhumano. Agostinho no desdenhou do vocabulrio de um Catulo - deli-ciae meae (minha delcia) - ou de um Horcio - dimidium animae meae(metade da minha alma) -, sem recear as conotaes que tal vocabu-lrio trazia memria do leitor. Parece, at, que com isso pretendeuoperar uma transio, ou melhor, uma transposio de afectos do plano

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    humano para o divino, dando nobreza e elevao quele quando se su-bordina a este.

    Mas seria um erro fatal, para tornar o texto mais compreensvel,ou duvidosamente mais actual, substituir por uma forma de apreensomais imediata um grito exttico de Agostinho, com toda a sua profun-didade conceptual, quando exclama: em paz, ser em si mesmo.O leitor estranhar, porventura, a expresso, mas seria banalizar o al-cance do texto substituir frmulas como esta, alis bblica, por um maisacessvel " paz verdadeira, verdadeiro ser.

    Nestes e em outros casos, no quisemos retirar ao leitor o prazerde ir um pouco mais alm da simples leitura, transformando-a numexerccio de descoberta e de reflexo pessoal. Agostinho um gnioliterrio, maneja a lngua como poucos, faz da palavra e do discurso oveculo da expresso profunda do que h de mais sublime na intimidadede Deus e na interioridade do homem, no infinitamente pequeno danatureza ou no infinitamente grandioso e magnfico do universo.

    Percorrendo os palcios da memria humana ou mergulhando notempo sem tempo antes do tempo, Agostinho analisou conceitos, criouimagens, manipulou sentidos, deu largas ao seu temperamento artstico,de que o leitor da lngua portuguesa s desfrutar plenamente confron-tando a traduo com o original latino. Para os que se ficarem pelatraduo, assegurarmos, enquanto tradutores, que fizemos um esforopor atingir o inatingvel: verter Agostinho, a lngua dele, em outra ln-gua, que a nossa, sem exegese, nem parfrase.

    O texto latino utilizado o da edio crtica de Cornelius Mayer(Augustins Werke und kritische Editionen, Augustinus-Lexikon, 1986-1994), publica da em CD-ROM por Karl Heinz Chelius (Corpus Au-gustinianum Gissense a Cornelius Mayer editum, Schwabe & Coo AG,Verlag, Basel, 1995). Para orientar a leitura, foram acrescentados, en-tre parnteses, subttulos inspirados na Patrologia Latina de Migne. Atraduo acompanhada por um aparato de fontes, para cuja consti-tuio foram de suma importncia as coleces de textos disponveisem suporte informtico, especificamente a Patrologia Latina Database,

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    Chadwyck-Healey Inc., Alexandria, USA, o Bibleworks for Windows,Hermeneutika Computer Bible Research Software, Seattle, USA, e oPackard Humanities lnstitute Greek and Latin Dics. As notas de carc-ter cultural foram reduzidas ao estritamente indispensvel a uma me-lhor compreenso do texto. O mesmo princpio foi adoptado quanto snotas de mbito filosfico, que so da autoria do Prof. Manuel Barbosada Costa Freitas e do Dr. Jos Maria Silva Rosa.

    A estes professores, bem como ao Prof. Joaquim Cerqueira Gon-alves, agradecemos o cuidado posto na leitura desta traduo.

    ARNALDO DO ESPRITO SANTOJOO BEATOMARIA CRISTINA CASTRO-MAIA DE SOUSA PIMENTEL

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    INTRODUO

    Desde o incio que a inteno dos organizadores do Congresso Inter-nacional comemorativo dos 1600 anos da redaco das Confisses deSanto Agostinho, que se realizou na Universidade Catlica Portuguesa,Lisboa, em Novembro de 2000, fora promover uma dupla edio da tra-duo da mesma obra: uma bilingue1 , lanada durante o Congresso,e outra exclusivamente em portugus. Com a presente edio portu-guesa [da qual se extraem os livros VII, X e XI para a LusoSofia.net]cumpre-se este segundo desiderato.

    Pode dizer-se que as Confisses so simultaneamente uma obra depsicologia, de filosofia, de teologia, de poesia e de mstica, emboratudo isto se conjugue para demonstrar a interveno de Deus atravsde todas as causas segundas no itinerrio espiritual de Agostinho (Pi-erre Courcelle, Recherches sur les Confessions de saint Augustin, Paris,1950, p. 27). Como relato autobiogrfico, as Confisses constituem, apar do De Anima de Tertuliano e do Dilogo de Gregrio de Nissa coma sua irm Macrina sobre a alma e a ressurreio, uma das primeirasetapas na constituio de uma psicologia racional. Contudo, os temas

    1 Confisses, trad. de Arnaldo do Esprito Santo, Joo Beato e Maria Cristinade Castro-Maia de Sousa Pimentel; Introduo de M. B. da Costa Freitas; Notasde mbito filosfico de Manuel Barbosa da Costa Freitas e Jos Maria Silva Rosa,Lisboa, IN-CM, Lisboa, 2000.

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    que vm sendo estudados com maior empenho so a sua origem e a datade composio e, mais particularmente, o seu valor histrico e unidadetemtica.

    praticamente impossvel datar com absoluta preciso a redacodas Confisses. No entanto, sabe-se que estava terminada nos fins de400. Sobre o seu valor histrico, manteve-se, durante quase um s-culo, uma acesa discusso, que hoje se pode considerar praticamenteencerrada, decidindo-se a maioria dos autores, graas distino entrefactos e juzos, pela veracidade histrica dos factos narrados por Agos-tinho (cf. P. Labriolle, Introduction a Les Confessions, Les BellesLettres, Paris, 1925).

    A unidade da obra ressalta claramente do ttulo e da inteno, tantasvezes manifestada por Agostinho, de louvar a Deus pelos bens e pelosmales recebidos (Retr., 2, 6). este precisamente o sentido essencialdas palavras latinas confiteri e confessio, como, por diversas vezes eem diversos lugares, Agostinho explicou (Conf., X, I, 1; In Jo., XII, 13;In Ps., 94, 4, 1052; Sermo 67, I, 2, e II, 4). Confessio vem a ser, noentendimento do nosso autor, a confisso dos pecados, que estabeleceo pecador na sua verdade e o dispe ao perdo de Deus. Deste modo,confessar os pecados identicamente louvar Deus, que sem pecadoe, por isso, pode perdoar, devolvendo o pecador sua primeira condi-o de inocncia (cf. J. Ratzinger, Originalitt und Ueberliferung inAugustins Begriff der Confessio, em Revue des tudes Augustinien-nes, 3, 1957, p. 375-392). Dupla a confisso, diz Agostinho, a dopecado e a do louvor (In Ps., 29, 19); h a confisso do homem quelouva e a confisso do homem que geme (id., 94, 4). Portanto, comojustamente observa Le Blond, confisso significa, ao mesmo tempo,declarao dos pecados e louvor da misericrdia e das grandezas deDeus (Les conversions de saint Augustin, Paris, 1950, p. 6-11).

    Ora, as Confisses so isto mesmo: a proclamao da presenaconstante de Deus na vida de Agostinho, o que Deus fez por ele em to-ques discretos, tantas vezes sem ele mesmo disso se aperceber (Conf.,VII, XV). A isto chama Agostinho fazer a verdade diante de Deus,

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    seu nico e verdadeiro interlocutor nesse longo e misterioso dilogo,que, primeira vista, mais parece um monlogo interior de si consigomesmo, antes que um olhar mais atento a descubra o mestre interior,a verdade substancial que paira por toda a parte, disponvel para todos,respondendo a todos os que a consultam (id., X, II, 2; XXVI, 37). AsConfisses representam, deste modo, o esforo de Agostinho para se si-tuar na verdade de Deus (id., X, I, 1). Precisamente, a melhor maneirade fazer esta verdade a confisso, renunciar prpria justificao ereconhecer a graa de Deus. Fazer a verdade no apenas diante deDeus, mas tambm na presena dos homens (ibid.), para seu proveito eedificao, por insignificante que seja o nmero daqueles que cheguema ler este escrito (id., II, III, 5). Na presena de Deus e luz da suaverdade, Agostinho d um testemunho no s pessoal, mas sobretudoeclesial, como pastor e doutor, da presena misericordiosa de Deus emtodos os acontecimentos e vicissitudes da sua vida e da histria de cadahomem, em particular, e da humanidade, em geral.

    Demonstrada a unidade de facto das Confisses, importa demons-trar a sua unidade de direito ou intencional, o que se revela mais difcil.

    Alguns autores recorrem a uma determinada sequncia temtica, re-colhida da terminologia de Agostinho, na tentativa de surpreender a ar-ticulao lgica que presidiu sistematizao interna dos treze livros,dentro da inteno geral de confisso. L. Landsberg, seguido por LeBlond, faz corresponder o grupo I-IX ao tema da memoria evocaodo passado , o livro X, ao tema do contuitus ateno presente , e ogrupo XI-XIII, ao tema da exspectatio antecipao do futuro. AimSolignac considera, com razo, que ao terminar o livro XIII, depois deter considerado a totalidade da criao na sua realidade material e nasua significao espiritual, quer dizer, como figura da Igreja e do Uni-verso dos santos, Agostinho, muito justamente, deu por concluda todaa sua obra, fechando o ciclo dialctico do tempo, que se abriu para nsa partir da eternidade do fiat criador e se encerra na eternidade do re-pouso celeste, com a evocao do repouso do Stimo Dia, da paz doSbado, que no conhece ocaso (Introduction a Les Confessions, p.

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    23-24). Por sua vez, N. J. Knauer, num artigo notvel (Peregrinatioanimae. Zur Frage der Einheit der augustinischen Konfessionen, pu-blicado em 1957, na revista Herms, 85, p. 216-248), desenvolve, soba imagem da peregrinatio animae, ou itinerrio da alma, um esquemaunitrio das Confisses que, pelas brenhas sinuosas do pecado, conduzAgostinho regio egestatis (regio da indigncia) e regio longiqua(regio longnqua), a evocar, numa aluso clara parbola do filho pr-digo, o negro abismo da queda no termo do seu afastamento de Deus(Conf., II, X, 18), antes de ser reconduzido, pouco a pouco, sob influn-cia divina, regio ubertatis, eterna Hierusalem (id., IX, X, 24; XIII,XXXVII). S ento o inquietum cor encontra perfeita e definitiva pazno seio de Deus (id., I, I, 1).

    Certamente que Agostinho no se limitou a justapor dez livros, nosquais fala de si (de me), a outros trs, que falam das Santas Escrituras de scripturis sanctis (Retr., 12, p. 460-461). natural que existaentre os dois grupos de livros uma relao muito mais profunda, capazde explicar mais satisfatoriamente que o Agostinho mstico e lrico tambm o Agostinho filsofo e telogo. De resto, sendo o relato dasConfisses eminentemente pessoal e intensamente vivido, a ponto deconquistar, pela sua verdade e profundidade humana, estatuto de uni-versalidade, ser sempre possvel descobrir nelas os temas essenciais epermanentes do homem em busca da verdade e da paz.

    A converso de Agostinho, tal como ele a revive e descreve, cor-responde, no fundo, a toda e qualquer converso, e replica ou dobrao movimento natural pelo qual a criatura espiritual se forma correcta-mente, volvendo sobre si, em resposta ao apelo do Verbo divino, demodo a tornar-se alma viva, semelhana de Deus, que a criou (Conf.,X, IX, 14). neste contexto dramtico que as Confisses contam pu-blicamente o reencontro de Agostinho com o seu Deus, as constantesdemonstraes de ternura, desvelo e carinho, com que sempre o acom-panhou (id., IX, IV, 7; V, VI, 10; VII, XXI, 27; X, XXVII, 38), nodesdenhando chamar-lhe, em brincada e graciosa linguagem de infn-cia, minha luz, minha riqueza, minha sade, minha doura (id., IX, I,

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    9). E a cada passo o poeta inspirado adianta-se ao filsofo austero eao telogo intransigente, servindo-se como mote de certos versculoscolhidos dos Salmos, para dar desafogo ao tropel de sentimentos que osubmergem (cf. L. Poque, Les Psaumes dans les Confessions de saintAugustin et la Bible, Paris, 1986, p. 155-166). O paradoxo do ser e doagir de Deus, a incapacidade da linguagem humana em diz-lo adequa-damente, salmodiado em tom de jbilo e de aco de graas (Conf., I,IV, 4-V, 5). E, de Hipona, frequentes notcias nos chegam a cada passopor Teresa dvila, Joo da Cruz e tantos outros.

    O Deus de Agostinho, ser Pessoal, Transcendente, Infinito, Omni-potente, Criador, Providente, Salvador e Redentor de todos os homensem seu Filho Jesus Cristo, nada tem a ver com a omnipotncia doSer uno e idntico de Plotino (Enn., VI, 4 e 5). O Deus presente nasConfisses absolutamente transcendente, nada lhe faz obstculo, e,por isso, profundamente imanente, sem que nada o possa contami-nar. Amor Infinito, Pai de Bondade, porque tudo criou gratuitamente,porque chama, convoca, ordena e dirige com mo forte e suave. Mede Misericrdia, porque espera, cuida, acalenta, nutre, amamenta, per-doa e abraa em transportes de alegria e felicidade. Como so belas asmos que, cheias de bondade, seguram na sua omnipotente verdade omundo por elas criado! (Conf., VII, XV, 21).

    O Agostinho convertido teve que entrar em si e descer ao maisfundo de si mesmo ou, paradoxalmente, ao mais elevado de si, para aencontrar o seu Criador, acima de si, segundo o movimento dialcticoexpresso na frmula tradicional, tipicamente augustiniana: Tu autemeras interior intimo meo et superior summo meo Mas tu eras maisinterior do que o ntimo de mim mesmo e mais sublime do que o maissublime de mim mesmo (id., III, VI, 11).

    Esta breve definio de Deus diz ao mesmo tempo, como j vimos,a sua imanncia no seio de todas as criaturas, do homem em particular,e a sua transcendncia acima de tudo o que o esprito humano tem demais sublime. Deste modo se corrige e vence toda a tentao pantesta.As duas metforas designam ao mesmo tempo a tenso constitutiva do

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    esprito humano na sua relao a Deus e o movimento de transcen-dncia que como tal o caracteriza. S o homem interior est apto adescobrir o seu Deus, o Deus do corao (id., IV, II, 3). Este acto deinterioridade provoca ao mesmo tempo uma renovao do olhar, que,acrescido de maior acuidade, descobre a relatividade do seu ser, da suabondade e beleza, da sua verdade, sinais e vectores para o Ser, para oBem e Verdade em si mesmos (id., VII, Xl, 17). A partir deste mo-mento, Agostinho sente-se habilitado a interrogar todas as coisas, aterra, o mar, o cu, acerca do seu Deus, e sabe ouvir e recolher emseu corao alvoroado a resposta jubilosa: Foi Ele quem nos fez.O seu interrogar agora o olhar mais humilde e atento; a resposta dascoisas, o ser que est a com todo o esplendor da sua beleza inter-rogatio mea intentio mea responsio eorum species eorum (id., X, VI,9). A beleza das coisas est patente a todos, mas s a interpretam cor-rectamente, como sinal e smbolo, os que, ao v-la fora, interiormentea julgam, comparando-a com a verdade a descoberta (id., X, X, 10).A contemplao do mundo exterior constitui a primeira etapa no itine-rrio do esprito para Deus. A segunda, o espectculo maravilhosoe deslumbrante que nos depara o mundo interior, com os imensos pa-lcios da memria et uenio in campos et lata praetoria memoriae(id., X, VIII, 12). Dirigi-me, ento, a mim mesmo e a mim mesmodisse: Tu quem s? E respondi: Um homem. E eis que esto emmim, ao meu servio, um corpo e uma alma, uma coisa exterior, outrainterior (id., X, VI, 9). Mas a alma superior porque anima o corpo,comunicando-lhe a vida. E Deus ainda superior alma porque nelaa vida da sua vida. Por isso, s pela alma poder o homem ascender aDeus per ipsam animam meam ascendam ad illum (id., X, VI, 11).A terceira etapa consiste em procur-lo nEle mesmo, mas acima desi in te supra me (id., X, XXVI, 37). E isto porque a prpria almase mostra contingente, mutvel si tuam naturam mutabilem inueneristranscende et teipsum (De Vera reI., 39, 72). Um supra que, em rela-o ao mundo exterior, continua a ser fundamentalmente um intus, umdentro de mim enquanto eu andava por fora ecce intus eras et ego fo-

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    ris (Conf., X, XXVII, 38). Simultaneamente imanente e transcendenteao homem, Deus , de certo modo, como diz P. Claudel (Vers dexil),mais eu do que eu mesmo. Deus , em natureza, o absoluto Outro, queno s no aliena, mas a todos quer, ama e tudo promove. superior,no porque acima e dominador, mas porque, humilde e dadivoso, tudoprecede e funda como Amor infinito e providente, que tudo cria e sus-tenta a partir do nada de nihilo enim a te, non de te com mo tentee poderosa (Conf., XlII, XXXlII, 48; IIl, VI, 11).

    Deste modo, o Deus de Agostinho no se confunde com a longn-qua e nublosa Causa sui da metafsica clssica, inacessvel a toda ainvocao de piedade e de louvor que saia, comovida, do corao hu-mano. luz do Deus pessoal, vivo e sensvel da Bblia, dominantenas Confisses, que deve ser interpretado o pensamento augustiniano,do qual Cristo a fonte e o princpio inspirador como Palavra Encar-nada do Pai, para alumiar, de verdade e de graa, toda o homem quevem a este mundo.

    Criado imagem de Deus, o homem chamado a realizar, em li-berdade e conscincia, tudo o que de ontolgico e estrutural implica oser imagem, para, desse modo convertido, quer dizer, na posse da ver-dade de si mesmo, se transformar em semelhana, que j participaoda vida divina. Do esforo em responder vocao da imagem, quetransporta consigo em sucessivas e crescentes aproximaes, dependea sua felicidade. Daqui o instante apelo de Agostinho a no nos deixar-mos andar por fora, a regressarmos quanto antes nossa interioridade,porque ai que habita a verdade por que ansiosamente suspiramos ininteriore homine habitat ueritas (De Vera rel., 39, 72). Este binmiointus-foris um dos esquemas mais expressivos de toda a antropolo-gia e ontologia de Agostinho. Nele se condensa e resume, por assimdizer, tudo o que encontramos de mais dramtico e emotivo na experi-ncia de uma vida na qual, finalmente, descobre, com imensa mgoa,o que de desgraa e infelicidade representa o ter andado tanto tempopor fora e longe de Deus, porque por fora e longe de si. A comovids-sima descrio que dessa experincia nos deixou Agostinho constitui,

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    no dizer de um crtico literrio, um dos melhores exemplos do lirismoque nos surpreende nas Confisses. Tarde te amei, beleza to antiga eto nova, tarde te amei! E eis que estavas dentro de mim e eu fora, e ate procurava, e eu, sem beleza, precipitava-me nessas coisas belas quetu fizeste. Tu estavas comigo e eu no estava contigo. Retinham-melonge de ti aquelas coisas que no seriam, se em ti no fossem (Conf.,X, XXVII, 38).

    O andar por fora e alheado de si, em desacordo com a ontolgicacondio de imagem, repercute-se ao nvel da conscincia psicolgicaem termos de inquietao, companheira inseparvel da homem nestavida mortal ou morte vital (id., V, VI, 7). A paz ou quietude final noa pode o homem alcanar s por si, mas o Verbo eterno, que antesdos tempos, nascido no tempo, chama vida os seres temporais, paraos fazer imortais uocans temporales, faciens aeternos (In Ps., 101,II, 10-11). O prprio tempo, que no mais do que o derramar-se oudistender-se da alma pelo passado, que lhe foge, e pelo futuro, quelhe tarda, ser resgatado e absorvido pela eternidade perene (semper),insucessiva (semel) e simultnea (simul) da imutvel presena de Deusa si e a todas as criaturas (Conf., XII, XV, 18). Entretanto, a alma fielluta todos os dias contra a dispersividade ou dissipao (distentio) pelaconcentrao em si mesma (intentio) e de olhar fixo nos bens que notm fim (id., XI, XXIX, 39).

    Poucos homens exerceram sobre o pensamento europeu uma in-fluncia to profunda e duradoura como Agostinho de Hipona. Apesarde negativa, em alguns casos, como, por exemplo, na histria das dou-trinas do pecado original, da graa e da predestinao, o melhor dessainfluncia reside no contributo positivo para a actual configurao doesprito europeu, a ponto de ser considerado por muitos como Pai co-mum do Ocidente.

    De resto, muitas das pginas que escreveu sobre a liberdade e agraa, sobre a razo e a f, sobre a cidade de Deus e a Igreja, etc.tornaram-se clssicas e so ainda hoje uma referncia inevitvel tantoem teologia como em filosofia. Karl Jaspers, por exemplo, no hesita

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    em inclu-lo entre os que fundam a filosofia e continuam a fund-la (Lesgrands philosophes, t. II). Por sua vez, Martin Buber v nele um dosprimeiros pensadores que ousaram conjugar a existncia na primeirapessoa (Le problme de lhomme, Paris, 1962, p. 22 ss.).

    As Confisses so hoje uma das obras mais lidas e comentadas. Oseu fascnio geral, porque nelas se reflecte o homem universal quevive em cada um de ns, tantas vezes oculto e ignorado. A se relata ahistria de um homem convertido, que voltou a Deus, e que aprendeua dialogar com Ele atravs dos versculos bblicos porque Deus tomoua iniciativa de descer a trato familiar com os homens, em presena elinguagem humanas. A converso p-lo em condio de compreendero grande livro da criao do cu e da terra (Gn., 2, 4), de que abun-dantemente se serve para fazer a sua verdade diante de Deus e no meiodos homens, isto , para dizer e proclamar o que realmente , ou seja, areconhecer em si o dom de Deus, porque de Deus tudo depende e nadase lhe pode esconder (Conf., II, III, 5; X, I, 1, e II, 2).

    Como no tempo de Agostinho, tambm o homem de hoje tem fomee sede de Deus. E tambm hoje no falta quem pretenda saciar os in-saciveis apetites de uma opulenta indigncia com ideias e doutrinasque ostensivamente ignoram ou desdenham a ordem fixada desde sem-pre para apagar a sua sede espiritual e oferecer alimento substancial fome de eternidade (id., I, XII, 19).

    Que as Confisses de Agostinho, lidas e meditadas, possam ajudaros homens de hoje a fazer a sua verdade interior com liberdade e isen-o, de modo que se criem relaes cada vez mais verdicas, slidase justas no interior consigo mesmos, com Deus e com toda a humani-dade.

    MANUEL BARBOSA DA COSTA FREITAS

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    CONFISSES

    Santo Agostinho

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    Livro VII

    [Deus concebido como um ser corpreo e difuso no universo]

    VII. I. 1. Estava j morta a minha adolescncia, m e abominvel,e entrava na juventude, quanto mais velho em idade, tanto mais abjectoem futilidade, de tal modo que no me era possvel conceber uma subs-tncia a no ser aquela que se costuma ver com estes olhos do corpo.No te imaginava, meu Deus, sob a forma de um corpo humano, desdeque comecei a ouvir falar de filosofia; sempre evitei isso e alegrava-mepor ter encontrado a mesma maneira de ver na f da nossa me espiri-tual, a tua Igreja catlica; mas no me ocorria outra coisa que pudesseconceber acerca de ti. E, sendo eu homem e que homem! esforava-me por te conceber como supremo, nico e verdadeiro Deus2, e, comtodo o meu ser, acreditava que tu s incorruptvel, e inviolvel, e imut-vel, porque, no sabendo por que razo nem por que modo, no entantovia claramente e estava certo de que aquilo que corruptvel inferiorquilo que no corruptvel, e aquilo que inviolvel, sem qualquerhesitao eu punha-o antes do que violvel, e que o que no est su-jeito a nenhuma espcie de mudana superior quilo que pode sofrermudana. Clamava violentamente o meu corao3 contra todos estesmeus fantasmas e, com um nico golpe, esforava-me por afugentar daviso do meu esprito o bando da imundcie que esvoaava em tornode mim: e que, mal era rechaado, num abrir e fechar de olhos4, denovo aglomerado, logo voltava e se precipitava sobre o meu semblantee o obnubilava. Deste modo, embora no te concebesse sob a forma

    2 Joo 17:3.3 Lamentaes 2:18.4 1 Corntios 15:52.

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    18 Santo Agostinho

    de um corpo humano, era todavia levado a conceber alguma coisa decorpreo espalhado pelos espaos, quer imanente ao mundo, quer di-fuso para alm do mundo, pelo infinito, e que fosse justamente isso oincorruptvel, e o inviolvel, e o imutvel que eu antepunha ao corrup-tvel, e ao violvel, e ao mutvel; porque tudo aquilo que eu privava detais espaos parecia-me ser o nada, mas o nada absoluto, nem mesmo ovazio, como quando se tira um corpo de um lugar e fica o lugar esvazi-ado de qualquer corpo, seja ele da terra, da gua, do ar ou do cu, mastodavia h um lugar vazio, como se fosse um nada espaoso.

    2. Assim, eu, com o corao engordurado5, nem eu prprio escla-recido nem para mim mesmo, entendia que era o nada absoluto tudoaquilo que no se expandisse por uma certa quantidade de espao, ouno se difundisse, ou no se concentrasse, ou no se dilatasse, ou noinclusse ou no fosse capaz de incluir algo como isto. Na verdade, omeu corao seguia atravs daquelas imagens, atravs das quais cos-tumam seguir os meus olhos, e nem via que esta mesma reflexo comque eu formava aquelas mesmas imagens no era da mesma natureza:todavia ela no as formaria se no fosse uma coisa grandiosa. E assim,tambm, vida da minha vida, concebia que tu, um ser imenso, atra-vs dos espaos infinitos, de toda a parte, penetravas toda a massa domundo, e fora dela, em todas as direces, pela imensido sem fim, detal modo que te contivesse a terra, o cu e todas as coisas, e todas elasacabassem em ti, enquanto tu no acabavas em parte alguma. Assimcomo a massa do ar, deste ar que est por cima da terra, no impedeque a luz do sol passe por ele, penetrando-o, sem o romper ou rasgar,mas enchendo-o por completo, assim tambm eu julgava que no s ocorpo do cu, e do ar, e do mar, mas tambm o da terra, te eram aces-sveis e penetrveis por todas as partes, das maiores s mais pequenas,para receber a tua presena que, com invisvel inspirao, governa, in-terior e exteriormente, todas as coisas que criaste. Assim o supunhaeu, porque no podia conceber outra coisa; mas era falso. Na verdade,

    5 Salmo 118:70; Mateus 13:15; Actos 28:27.

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    Confisses, VII 19

    desse modo, a parte maior da terra teria uma parte maior de ti, e umamais pequena, uma parte menor, e todas as coisas estariam cheias de tide tal maneira que o corpo do elefante receberia mais de ti que o do ps-saro, porque, sendo aquele maior do que este, ocupa um lugar maior,e assim, dividido em partculas, tornarias presentes as tuas partes gran-des nas partes grandes do mundo, e as pequenas, nas partes pequenas.Mas no assim. Mas tu ainda no tinhas iluminado as minhas trevas6.

    [Evocao dos argumentos de Nebrdio contra os Maniqueus]

    VII. II. 3. Era-me bastante, Senhor, contra aqueles enganados en-ganadores e palradores mudos, porque atravs deles no soava a tuapalavra, era-me, pois, bastante aquilo que j h muito tempo, ainda emCartago, Nebrdio costumava propor, e todos os que o tnhamos ouvidoficmos impressionados: Que te poderia fazer aquela espcie de gentedas trevas que os Maniqueus costumam opor como massa adversa, setu com ela no tivesses querido lutar?. Ora, se respondessem que tepoderia causar alguma coisa de mal, tu serias violvel e corruptvel.Se, ao invs, dissessem que em nada essas coisas te poderiam preju-dicar, no haveria causa para lutar, e lutar de tal modo que uma certaparte de ti e um teu membro ou a gerao da tua prpria substncia semisturaria com os poderes adversos e com as naturezas criadas por ti, ese corromperia e mudaria para pior, na proporo em que da felicidadese transformasse em misria, e carecesse de auxlio com que pudesseser libertada e purificada; e que esta parte era a alma, em socorro daqual veio a tua palavra, livre, para ela que era servil, pura, para elamanchada, ntegra, para ela corrupta, mas tambm ela prpria corrup-tvel, porque formada de uma s e mesma substncia. E deste modo,se os Maniqueus dissessem que tu, o que quer que tu sejas, isto , quea tua substncia, pela qual tu s, incorruptvel, tudo isso seria falso eexecrvel; se, pelo contrrio, dissessem que corruptvel, isso mesmotambm seria falso e abominvel, desde a primeira palavra. Portanto,

    6 Salmo 17:29.

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    20 Santo Agostinho

    bastava-me s isto contra aqueles que, de todo o modo, era preciso ex-pulsar como um peso de dentro do peito, porque, sentindo e dizendoestas coisas acerca de ti, no tinham por onde escapar, seno com umhorrvel sacrilgio do corao e da lngua.

    [O livre arbtrio, causa do pecado]

    VII. III. 4. Mas, tambm ainda, embora dissesse e acreditasse fir-memente que s incontaminvel e inaltervel e sob nenhum aspectomutvel, tu, nosso Deus, Deus verdadeiro, que criaste no s as nossasalmas, mas tambm os nossos corpos, e no apenas as nossas almas eos nossos corpos, mas tambm todos ns e todas as coisas, no tinhapor explicada e esclarecida a causa do mal. Fosse ela qual fosse, po-rm, via que era preciso procur-la de modo a que, graas a ela, nofosse obrigado a acreditar que mutvel o Deus imutvel, ou que euprprio me convertesse naquilo que eu procurava. E assim, procurava-aem segurana e certo de que no era verdade o que diziam aqueles queeu evitava com toda a minha alma, porque os via, procurando dondeprovinha o mal, cheios de maldade7, em virtude da qual eram de opi-nio que mais a tua substncia que est sujeita a sofrer o mal, do quea deles a faz-lo.

    5. E esforava-me por compreender o que ouvia: que o livre arb-trio da vontade a causa de praticarmos o mal e o teu recto juzo8 ade o sofrermos, mas no conseguia compreender essa causa com cla-reza. E assim, tentando arrancar do abismo o olhar do meu esprito,afundava-me de novo, e muitas vezes tentava e me afundava uma e ou-tra vez. Na verdade, elevava-me para a tua luz o facto tanto de saberque tinha uma vontade como o de saber que vivia. Por isso, quandoqueria ou no queria alguma coisa, tinha absoluta certeza de que quemqueria ou no queria no era outro seno eu. E via, cada vez mais,

    7 Eclesiastes 9:3; Romanos 1:29.8 Salmo 118:137.

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    Confisses, VII 21

    que a estava a causa do meu pecado. E aquilo que fazia contra von-tade via que era mais padecer do que fazer, e julgava que isso no eraculpa, mas castigo, pelo qual, como eu logo confessava, considerando-te justo, era castigado no injustamente. Mas de novo dizia: Quemme fez? Porventura no foi o meu Deus, que no apenas bom, maso prprio bem? Donde me vem ento o querer o mal e o no querero bem? Ser para haver um motivo para que eu seja castigado justa-mente? Quem colocou isto em mim, e plantou em mim este viveiro deamargura9, embora todo eu tenha sido feito por um Deus to doce? Seo autor o diabo, donde veio o mesmo diabo? Mas se tambm ele, poruma vontade perversa, de anjo bom se tornou diabo, donde lhe veio,tambm a ele, a m vontade pela qual se tornaria diabo, quando o anjo,na sua totalidade, tinha sido criado por um criador sumamente bom?De novo me deixava abater e sufocar com estes pensamentos, mas nome deixava arrastar at quele inferno do erro, onde ningum te con-fessa10, quando se julga que s tu a padecer o mal, e no o homem queo pratica.

    [Deus tem de ser incorruptvel]

    VII. IV. 6. Assim, pois, esforava-me por descobrir as restantescoisas, tal como j tinha descoberto que melhor o incorruptvel doque o corruptvel, e, por isso, proclamava que tu, o que quer que fosses,s incorruptvel. que nenhuma alma alguma vez pde ou poderconceber alguma coisa que seja melhor do que tu, que s o supremoe o melhor bem. Sendo ento absolutamente verdadeiro e certo que oincorruptvel se deve antepor ao corruptvel, tal como eu j fazia, podiaj, com o pensamento, atingir alguma coisa que fosse melhor do que omeu Deus, se tu no fosses incorruptvel. Por isso, ali onde eu via queo incorruptvel deve ser preferido ao corruptvel, a te devia eu procurare da aperceber-me onde est o mal, isto , donde tem origem a prpriacorrupo, pela qual a tua substncia de modo algum pode ser violada.

    9 Hebreus 12:15.10 Salmo 6:6.

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    22 Santo Agostinho

    De nenhum modo, sem dvida, a corrupo viola o nosso Deus, nempor vontade alguma, nem por necessidade alguma, nem por um acasoimprevisto, porque ele prprio Deus e bom aquilo que deseja parasi, e ele prprio o mesmo bem; ora, ser corrompido no um bem.Nem podes ser obrigado ao que quer que seja contra vontade, porque atua vontade no maior do que o teu poder. Seria, no entanto, maior, setu prprio fosses maior que tu prprio; com efeito, a vontade e o poderde Deus so o prprio Deus. E que coisa pode ser imprevista para ti,que conheces todas as coisas? Nenhuma natureza existe seno porque aconheces. E para que que dizemos tantas coisas para explicar porque que no corruptvel a substncia, que Deus, quando, se o fosse,no seria Deus?

    [De novo a origem do mal e as suas razes]

    VII. V. 7. E procurava a origem do mal, e procurava mal, e, na mi-nha prpria indagao, no via o mal. E punha em presena do meu es-prito11 toda a criao, tudo quanto nela podemos ver claramente, comosejam a terra, e o mar, e o ar, e as estrelas, e as rvores, e os seres mor-tais, e tudo quanto nela no vemos, como o firmamento do cu por cimade ns, e todos os anjos e todos os seres espirituais dele, mas ainda osmesmos enquanto corpos ordenados cada um em seu lugar, de acordocom a minha imaginao; e fiz dessa tua criao uma massa imensa di-vidida por gneros de corpos, quer os que efectivamente eram corpos,quer os que eu prprio tinha imaginado como espritos, e concebi-aimensa, no to grande como era, porque no o podia saber, mas comome aprouve, sem dvida finita por todos os lados, e concebia-te, Se-nhor, rodeando-a e penetrando-a por todas as partes, mas infinito emtodas as direces, tal como se houvesse um mar em toda a parte, eum nico mar infinito, por todas as partes, atravs da imensido, e eletivesse dentro de si uma esponja to grande quanto se possa imaginar,mas no entanto finita, e essa esponja estivesse inteiramente cheia, portodas as partes, desse imenso mar: assim eu julgava a tua criao finita,

    11 Salmo 15:8.

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    Confisses, VII 23

    cheia de ti, que s infinito, e dizia: Eis aqui Deus e eis as coisas queDeus criou, e um Deus bom, e perfeito, e intensssima e imensissima-mente superior a elas; mas, todavia, sendo bom, criou as coisas boas: eeis como as rodeia e enche. Mas ento onde est o mal e donde e poronde aqui se insinuou? Qual a sua raiz e qual a sua semente? Ou ab-solutamente inexistente? Ento, porque tememos e evitamos o que noexiste? Ou, se o tememos sem fundamento, por certo j o prprio temor um mal, que em vo atormenta e tortura o corao, e um mal tantomais grave quanto no temos que temer, e tememos. Por isso, ou existeo mal, que tememos, ou este mal existe, porque o tememos. E, uma vezque Deus, sendo bom, fez todas estas coisas boas12, donde vem entoo mal? Na verdade, o maior e supremo bem fez boas as coisas maispequenas, mas, no entanto, tanto o Criador bom como so boas todasas coisas criadas. Donde vem ento o mal? Ser que, naquilo dondeas fez, havia alguma matria m, e formou-a, e ordenou-a, mas deixounela qualquer coisa que no teria transformado em bem? E porqu isto?Ser que, embora sendo omnipotente, tinha poder para transform-la emud-la na totalidade, de modo a que nada de mal restasse? Final-mente, porque que quis fazer dela alguma coisa e no preferiu fazer,com a mesma omnipotncia, com que ela no existisse em absoluto?Ou, na verdade, ser que ela podia existir contra a vontade dele? Ou,se era eterna, porque a deixou ser assim durante tanto tempo, duranteos infinitos espaos anteriores do tempo, e tanto tempo depois lhe pare-ceu bem fazer alguma coisa a partir dela? Ou ento, se de repente quisfazer alguma coisa, sendo omnipotente, podia preferir fazer com queela no existisse, e que s ele prprio fosse o inteiramente verdadeiro,e supremo, e infinito bem? Ou, se no era bem que no fosse fabricadaalguma coisa boa e a criasse ele, que era bom, suprimindo e reduzindoa nada a matria que era m, podia ele prprio criar uma matria boadonde criasse todas as coisas? Pois no seria omnipotente, se no pu-desse criar alguma coisa de bom, a no ser sendo ajudado por aquelamatria que ele prprio no tinha criado. Tais coisas revolvia no meu

    12 Gnesis 1:31.

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    24 Santo Agostinho

    pobre corao, sobrecarregado de preocupaes que me dilaceravam,motivadas pelo temor da morte e pela verdade no encontrada; todavia,firmemente se fixava no meu corao, no seio da Igreja catlica, a fno teu Cristo, Senhor e nosso Salvador13, em muitos aspectos, de facto,ainda informe e indecisa, fora da norma da doutrina, mas, no entanto, aminha alma no a abandonava, pelo contrrio em cada dia mais e maisdela se impregnava.

    [Rejeio das previses dos astrlogos]

    VII. VI. 8. Tambm j tinha rejeitado as adivinhaes enganadorase os mpios delrios dos astrlogos. Tambm sob esse aspecto, do maisntimo da minha alma, a ti confesse, meu Deus, pelas tuas misericr-dias14! Tu, na verdade, absolutamente tu pois quem mais nos libertada morte de todo o erro seno a vida que no conhece a morte, e a sa-bedoria, que ilumina as mentes necessitadas, no necessitando ela denenhuma luz, sabedoria pela qual o mundo governado at s folhasdas rvores levadas pelo vento? tu acudiste minha obstinao, comque me opus a Vindiciano, um ancio arguto, e a Nebrdio, um jovemde alma admirvel, aquele que afirmava com veemncia, este dizendo,com alguma dvida mas, todavia, frequentemente, que no existe aarte de prever o futuro, mas que as conjecturas dos homens tm muitasvezes a fora do acaso e que, dizendo muitas coisas, se diziam algu-mas que haviam de acontecer, sem que os que as diziam soubessem,mas acertando nelas, por no se calarem tu proporcionaste-me umamigo, um diligente consultor dos astrlogos, no muito versado nes-tes estudos, mas, como disse, consultor curioso, e todavia sabia umacoisa que dizia ter ouvido a seu pai, ignorando at que ponto isso podiadestruir a teoria daquela arte. Como este homem, de nome Firmino,educado nas artes liberais e cultivado na eloquncia, me tivesse con-sultado, como a um amigo carssimo, acerca de uns assuntos seus, emrelao aos quais a sua esperana terrena tinha crescido, sobre o que me

    13 2 Pedro 2:20.14 Salmo 106:8, 15, 21, 31.

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    Confisses, VII 25

    parecia segundo aquilo que chamam as suas constelaes, mas comoeu, que, sobre este assunto, j comeava a inclinar-me para a opiniode Nebrdio, no me recussasse de facto a conjecturar e a dizer o quese me oferecia, embora hesitante, acrescentando, apesar disso, que es-tava j quase persuadido de que aquelas coisas eram ridculas e vs,ele contou-me ento que seu pai fora interessadssimo em tais livros eque tivera um amigo que seguia igualmente e com ele tais coisas. Eles,com igual empenho e perspectiva, espertavam o fogo do seu coraopara essas ninharias, a ponto de observarem at os momentos do nas-cimento dos animais que no falam, se alguns pariam em casa, e denotarem a posio do cu relativamente a tais coisas, donde pudessemrecolher dados daquela espcie de arte. E, assim, dizia ter ouvido a seupai que, estando a me de Firmino grvida dele mesmo, tambm a umacerta criada daquele amigo de seu pai lhe ia crescendo a barriga. E talfacto no pde passar despercebido ao amo, que procurava conhecer,com a mais criteriosa diligncia, os partos at das suas cadelas; e assimaconteceu que, tendo contado, com a mais escrupulosa observao, osdias e as horas e as mais pequenas divises das horas, um, os da es-posa, o outro, os da escrava, ambas deram luz ao mesmo tempo, detal modo que foram obrigados a traar, para ambas as crianas nasci-das, as mesmas constelaes, at ao mais nfimo pormenor, um, parao filho, o outro, para o escravozinho. Tendo as mulheres entrado emtrabalho de parto, ambos comunicavam um ao outro o que aconteciaem casa de cada um, e prepararam mensageiros para enviarem um aooutro, de tal modo que, mal nascesse uma criana, logo fosse anunci-ado ao outro: como se estivessem no seu prprio reino, faziam comque facilmente as notcias fossem comunicadas de imediato. E, assim,contava que aqueles que tinham sido enviados por cada um deles setinham encontrado a distncias iguais das respectivas casas, a ponto denenhum deles poder registar uma posio diferente dos astros e dife-rentes fraces de tempo. E todavia Firmino, nascido, entre os seus,numa casa sumptuosa, seguia pelos caminhos mais resplandecentes dosculo, e era cumulado de riquezas e enaltecido de honras, enquanto

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    26 Santo Agostinho

    o servo, de nenhuma maneira aliviado do jugo da sua condio, serviaseus amos, conforme relatava ele prprio, que o conhecia.

    9. E assim, tendo ouvido e acreditado nestas coisas atendendo aquem as narrava toda aquela minha relutncia caiu desfeita, e comeceipor tentar dissuadir o prprio Firmino daquela curiosidade, dizendo-lhe que, observadas as suas constelaes, para que dissesse a verdadedeveria eu, sem qualquer dvida, ver nelas que os seus pais eram osprimeiros entre os seus pares, que era uma nobre famlia da sua cidade,que o seu nascimento fora livre, que a sua educao fora esmerada, nasartes liberais; mas se aquele servo me tivesse consultado sobre as mes-mas constelaes pois elas tambm eram as dele para que tambma ele dissesse a verdade, eu deveria, pelo contrrio, nelas ver que a suafamlia era humlima, a sua condio, servil, e todas as restantes coi-sas to diferentes e muito diversas das anteriores. Da resultava que,observando eu as mesmas coisas, diria coisas diversas, se dissesse ver-dades, mas, se dissesse as mesmas coisas, diria mentiras. Da deduzisem qualquer dvida que as coisas que, observadas as constelaes, sedizem verdadeiras, no so ditas merc da arte, mas do acaso, e que asque se dizem falsas no o so por impercia da arte, mas por engano doacaso.

    10. E da, tomando isto como um comeo, e ruminando comigomesmo estas coisas, para que nenhum daqueles mesmos tresloucadosque procuram tal lucro, os quais eu cada vez mais desejava atacar, pr aridculo e refutar, me pudesse objectar argumentando que, ou Firminoa mim, ou o pai dele a ele, lhe tinha contado mentiras, eu prprio fixeia minha reflexo naqueles que nascem gmeos, dos quais muitos saemdo ventre de tal modo um a seguir ao outro que esse pequeno intervalode tempo, por grande que seja a fora que sustentam haver na naturezadas coisas, no pode todavia ser percebido pela observao humana e absolutamente impossvel regist-lo nos mapas astrais, que o astr-logo h-de observar para que revele coisas verdadeiras. E no seroverdadeiras porque, observando os mesmos mapas, ele deveria dizer as

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    Confisses, VII 27

    mesmas coisas acerca de Esa e Jacob; mas no sucederam as mesmascoisas a ambos. Logo, o astrlogo teria dito mentiras, ou, se dissesse averdade, no diria as mesmas coisas: mas observaria as mesmas coisas.Portanto, no diria coisas verdadeiras merc da arte, mas do acaso. Tu,Senhor, justssimo moderador do universo, ages por desgnio secreto,sem o conhecerem os que consultam e os que so consultados, de modoque, quando cada um consulta, oua aquilo que lhe convm ouvir, emfuno dos mritos secretos das almas, segundo o abismo do teu justojuzo15. A esse juzo no diga o homem: Que isto?16 Porqu isto?No o diga, no o diga; porque homem.

    [Atormentado pela dvida sobre a origem do mal]

    VII. VII. 11. Deste modo, meu auxlio17, j me tinhas libertado da-quelas cadeias, e procurava ainda a origem do mal, e no havia sada.Mas no me permitias que, por nenhum turbilho do pensamento, fossearrancado f, graas qual eu acreditava que tu existes, que a tuasubstncia imutvel, que cuidas dos homens e os julgas, e que emCristo, teu Filho, nosso Senhor, e nas Santas Escrituras, que a autori-dade da tua Igreja catlica reconhece, tu colocaste o caminho da sal-vao humana, em direco quela vida que depois desta morte h-devir. E assim, postas a salvo estas coisas, e fortalecidas firmemente nomeu esprito, procurava, inflamado, donde provm o mal. Que tormen-tos aqueles os do meu corao, em dores de parto, que gemidos, meuDeus! E a estavam os teus ouvidos, sem eu saber. E como, em silncio,intensamente te procurava, grandes eram os clamores tua misericr-dia, silenciosa a contrio da minha alma. Tu sabias o que eu padecia, ede entre os homens, ningum. Pois que importantes eram as coisas quea minha lngua transmitia aos ouvidos dos que me eram mais ntimos!Porventura percutia neles todo o tumulto da minha alma, para o qualno eram suficientes nem o tempo nem a minha boca? Contudo, ia ao

    15 Salmo 35:7.16 xodo 13:14; 16:15; Eclesistico 39:26.17 Salmo 17:3; 18:15; 58:18.

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    28 Santo Agostinho

    encontro do teu ouvido tudo o que rugia por causa do gemido do meucorao, e diante de ti estava o meu desejo, e a luz dos meus olhos noestava comigo18. Estava dentro de mim, mas eu fora, e ela no estavaem um lugar. E eu fixava-me naquelas coisas que esto contidas emlugares, e no encontrava a lugar para descansar, nem essas coisas meacolhiam de forma a que eu pudesse dizer: Basta e Est bem, nemme deixavam voltar quando para mim estivesse bastante bem. Pois euera superior a essas coisas, mas inferior a ti, e tu a verdadeira alegriapara mim, que me submetia a ti, e tu tinhas submetido a mim aquelascoisas que criaste abaixo de mim19. E isto era a justa medida e a re-gio intermdia da minha salvao: que eu permanecesse semelhante tua imagem20 e que, servindo-te, dominasse o meu corpo. Mas como,orgulhosamente, me erguesse contra ti e corresse contra o Senhor, nagorda cerviz do meu escudo21, tambm essas coisas abaixo de mim sepuseram acima de mim, e esmagavam-me, e em nenhum lugar haviarepouso e alvio. Elas prprias atacavam-me, de todos os lados, tu-multuosamente, em massa, enquanto eu via e pensava, mas as prpriasimagens dos corpos opunham-se-me, quando eu voltava, como se mefosse dito: Para onde vais, ser indigno e abjecto? Mas estas coisas ti-nham crescido da minha ferida, porque humilhaste o soberbo tal comoum ferido22, e separava-me de ti o meu tumor, e o rosto demasiadoinchado cerrava-me os olhos.

    [O socorro da misericrdia divina]

    VII. VIII. 12. Tu, porm, Senhor, permaneces para sempre23 e note deixas para sempre levar pela ira contra ns24, porque te compadeces

    18 Salmo 37:9-11.19 Gnesis 1:28.20 Gnesis 1:26-27.21 Job 15:26.22 Salmo 88:11.23 Salmo 101:13.24 Salmo 84:6.

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    Confisses, VII 29

    do p e da cinza25, e aprouve-te corrigir as minhas deformidades natua presena26. E impelias-me com os teus aguilhes interiores27, paraque estivesse inquieto, at que, atravs da viso interior, tu para mimfosses uma certeza. E o meu tumor decrescia graas mo oculta datua medicina, e a vista conturbada e obscurecida da minha mente de diapara dia28 ia sarando, merc do penetrante colrio das dores salutares.

    [O neoplatonismo e as Escrituras: concepes sobre a divindade e aencarnao do Verbo]

    VII. IX. 13. E, primeiramente, querendo mostrar-me quanto resis-tes aos soberbos e, pelo contrrio, ds a tua graa aos humildes29, e comquanta misericrdia tua foi indicado aos homens o caminho da humil-dade, porque o teu Verbo se fez carne e habitou entre os homens30,proporcionaste-me, por intermdio de um certo homem inchado deenormssimo orgulho, uns certos livros dos Platnicos31 traduzidos dalngua grega para a latina, e a li, no exactamente nestas palavras, mascom muitas e variadas razes, que, no conjunto, se argumentava istomesmo: no princpio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus eDeus era o Verbo: este estava, no princpio, junto de Deus; todas ascoisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito; o que foi feito

    25 Eclesistico 17:31.26 Salmo 18:15; Daniel 3:40.27 Verglio, Eneida XI 337.28 Salmo 60:9; 95:2; Eclesistico 5:8; Isaas 58:2; 2 Corntios 4:16.29 Provrbios 3.34; Tiago 4:6; 1 Pedro 5:5.30 Joo 1:14.31 Agostinho refere-se ao Neoplatonismo, corrente filosfica que comeou a ter

    expresso escolar, em Alexandria, nos finais do sc. III, princpios do sc. IV(Amnio Sacas), que, contra a traio dualista e cptica dos Acadmicos a Plato,pretendia restaurar o pensamento platnico supostamente originrio, na linha de umafilosofia no-materialista, hentica, soteriolgica, religiosa, conversiva, procurandoreconduzir tudo transcendncia do Uno. Plotino, discpulo de Amnio juntamentecom Orgenes, foi um dos seus mais eminentes representantes (Enades), em Roma,sendo aqui seguido por Porfrio e Jmblico. Em Atenas, Longino e Proclo foram osseus maiores representantes.

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    30 Santo Agostinho

    vida nele, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, e astrevas no a dominaram32; e que a alma humana, embora d testemu-nho da luz, todavia ela prpria no a luz, mas o Verbo, Deus, que a luz verdadeira, que ilumina todo o homem que vem a este mundo33;e que estava neste mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo noo reconheceu34. Mas que veio para o que era seu e os seus no o re-ceberam, e que a todos quantos o receberam deu-lhes o poder de setornarem filhos de Deus, a eles que crem no seu nome35, isso no o lieu a.

    14. A li, sim, que o Verbo, Deus, no nasceu da carne, nem dosangue, nem da vontade do homem, nem da vontade da carne, mas simde Deus36; mas que o Verbo se fez carne e habitou em ns37, no o li eua. Indaguei, realmente, naqueles textos, dito de vrias maneiras e demuitos modos, que o Filho, na forma do Pai, no considerou rapina serigual a Deus38, porque, por natureza, isso mesmo; mas que se aniqui-lou a si mesmo tomando a forma de escravo, feito semelhana doshomens e tido como homem pela aparncia, humilhou-se, fazendo-seobediente at morte, e morte na cruz: por isso Deus o exaltou39 dosmortos e deu-lhe um nome, que est acima de todo o nome, para que,ao nome de Jesus, se dobre todo o joelho dos seres celestes, terrestres einfernais, e toda a lngua confesse que o Senhor Jesus est na glria deDeus Pai40: isso no o dizem aqueles livros. Mas que, antes de todosos tempos e acima de todos os tempos, permanece imutavelmente teuFilho unignito, co-eterno contigo, e que da sua plenitude recebem41 as

    32 Joo 1:1-5.33 Joo 1:8-9.34 Joo 1:10.35 Joo 1:11-12.36 Joo 1:13.37 Joo 1:14.38 Filipenses 2:6.39 Filipenses 2:7-9.40 Filipenses 2:9-11.41 Joo 1:16.

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    Confisses, VII 31

    almas o serem felizes, e que, pela participao da sabedoria, que per-manece nela42, so renovadas, para que sejam sbias: isso est l; masque, no tempo previsto, morreu pelos mpios43 e que no poupaste o teunico Filho, mas por ns todos o entregaste44: isso no est l. Porquetu escondeste estas coisas dos sbios e revelaste-as aos pequeninos45,para que viessem at ele os que sofrem e os que esto sobrecarrega-dos, e ele os aliviasse, porque manso e humilde de corao46, e diri-gir os mansos na justia, e ensinar aos pacficos os seus caminhos47,vendo a nossa humildade e o nosso sofrimento e perdoando-nos todosos nossos pecados48. Mas aqueles que, ensoberbecidos, levantados nocoturno como que de uma doutrina mais sublime, no o ouvem dizer:Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de corao, e encon-trareis repouso para as vossas almas49, embora conheam Deus, noo glorificam como Deus ou lhe do graas, mas tornam-se vos nosseus pensamentos, e o seu corao, insensato, obscurece-se; dizendoque so sbios, tornaram-se estultos50.

    VII. 15. E, portanto, lia tambm a que a glria da tua incorrupofoi mudada em dolos e em vrias imagens, imitao da imagem dohomem corruptvel, das aves, dos quadrpedes e das serpentes51; ouseja, a comida egpcia, por causa da qual Esa perdeu a sua primoge-nitura52, porque o povo primognito adorou, em teu lugar, a cabea de

    42 Sabedoria 7:27.43 Romanos 5:6.44 Romanos 8:32.45 Mateus 11:25.46 Mateus 11:28-29.47 Salmo 24:9.48 Salmo 24:18.49 Mateus 11:29.50 Romanos 1:21-22.51 Romanos 1:23.52 Gnesis 25:33-34.

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    32 Santo Agostinho

    um quadrpede53, voltando-se, em seu corao, para o Egipto54, e cur-vando a tua imagem, a sua alma55, diante da imagem de um bezerroque se alimenta de feno56: isto encontrei eu a e no comi. Pois quete aprouve, Senhor, tirar de Jacob o oprbrio57 da sujeio, para que omais velho servisse ao mais novo58, e chamaste os gentios para a tuaherana59. E eu viera dos gentios para ti, e fixei a ateno no ouro quequiseste que o teu povo trouxesse do Egipto60, porque era teu, ondequer que estivesse. E disseste aos Atenienses, pelo teu Apstolo, queem ti vivemos e nos movemos e somos, tal como uns certos disseram61,segundo eles, e da vinham certamente aqueles livros. E no fixei aateno nos dolos dos Egpcios, aos quais com o teu ouro serviamaqueles que transformaram a vontade de Deus em mentira e prestaramculto e serviram a criatura em detrimento do Criador62.

    [Progresso no entendimento das coisas divinas]

    VII. X. 16. E, admoestado a voltar da para mim mesmo, entrei nomais ntimo de mim, guiado por ti, e consegui, porque te fizeste meuauxlio63. Entrei e vi com o olhar da minha alma, seja ele qual for,acima do mesmo olhar da minha alma, acima da minha mente, uma luzimutvel, no esta vulgar e visvel a toda a carne, nem era uma maiorcomo que do mesmo gnero, como se ela brilhasse muito e muito maisclaramente e ocupasse tudo com a sua grandeza. Ela no era isto masoutra coisa, outra coisa muito diferente de todas essas, nem to-pouco

    53 xodo 32:1-6.54 Actos 7:39.55 Salmo 56:7.56 Salmo 105:20.57 Salmo 118:22.58 Gnesis 25:23; Romanos 9:12.59 Salmo 78:1.60 xodo 3:22; 11:2.61 Actos 17:28.62 Romanos 1:25.63 Salmo 29:11.

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    Confisses, VII 33

    estava acima da minha mente como o azeite sobre a gua, nem como ocu sobre a terra, mas era superior a mim, porque ela prpria me fez, eeu inferior, porque feito por ela. Quem conhece a verdade, conhece-a, equem a conhece, conhece a eternidade. O amor conhece-a. Oh, eternaverdade e verdadeiro amor e amorosa eternidade! Tu s o meu Deus64,por ti suspiro dia e noite65. E quando te conheci pela primeira vez,tu pegaste em mim66, para que visse que existe aquilo que via e que euno era ainda de molde a poder ver. E deslumbrastre a fraqueza do meuolhar, brilhando intensamente sobre mim, e estremeci de amor e horror:e descobri que eu estava longe de ti, numa regio de dissemelhana67,como se ouvisse a tua voz vinda do alto68: Eu sou o alimento dosadultos: cresce e comer-me-s. Tu no me mudars em ti, como oalimento da tua carne, mas tu sers mudado em mim. E reconheci quepor causa da iniquidade corrigiste o homem e fizeste consumir-se aminha alma como uma aranha69, e disse: Porventura nada verdade,j que ela no est difundida pelos espaos dos lugares, nem finitos neminfinitos? E tu clamaste de longe70: Pelo contrrio, eu sou o que sou71.E ouvi, tal como se ouve no corao, e j no havia absolutamentenenhuma razo para duvidar, e mais facilmente duvidaria de que vivodo que da existncia da verdade, a qual se apreende e entende nas coisasque foram criadas72.

    [De como as criaturas so e no so]

    VII. XI. 17. E observei as restantes coisas abaixo de ti e vi quenem em absoluto so, nem em absoluto no so: na verdade, so, por-

    64 Salmo 42:2.65 Salmo 1:2; Jeremias 9:1.66 Salmo 26:10.67 Lucas 15:13.68 Jeremias 31:15.69 Salmo 38:12.70 Lucas 15:13, 20.71 xodo 3:14.72 Romanos 1:20.

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    34 Santo Agostinho

    que procedem de ti, mas no so, porque no so aquilo que tu s.Porque existe verdadeiramente aquilo que permanece imutavelmente.Mas para mim bom estar unido a Deus73, porque, se no permanecernele, nem em mim poderei permanecer. Mas ele, permanecendo emsi mesmo, renova todas as coisas74; e tu s o meu Deus, porque noprecisas dos meus bens75.

    [Tudo o que , bom]

    VII. XII. 18. E foi-me mostrado que so boas as coisas que secorrompem, as quais no poderiam corromper-se, nem se fossem benssupremos, nem se no fossem bens, porque, se fossem bens supremos,seriam incorruptveis, mas, se no fossem bens, no haveria o que nelespudesse ser corrompido. Na verdade, a corrupo causa dano e, se nodiminusse o bem, no causaria dano. Logo, ou a corrupo no causadano, o que no possvel, ou, o que certssimo, todas as coisas, quese corrompem, so privadas do bem. Mas, se forem privadas de todoo bem, no existiro em absoluto. E, se existirem e j no puderemser corrompidas, sero melhores, porque permanecero incorruptivel-mente. E que h de mais aberrante do que dizer que aquelas coisas setornaram melhores, por perderem todo o bem? Logo, se forem privadasde todo o bem, no existiro em absoluto: pois, enquanto so, so boas.Portanto, todas as coisas que so, so boas, e aquele mal, cuja origemeu procurava, no substncia, porque, se fosse substncia, seria umbem. Com efeito, ou seria substncia incorruptvel, de toda a maneiraum grande bem, ou seria substncia corruptvel, que, se no fosse boa,no se poderia corromper. E assim vi e me foi mostrado que tu fizestetodas as coisas boas e que no existem absolutamente nenhumas subs-tncias que tu no tenhas feito. E, porque no fizeste todas as coisasiguais, por isso todas elas so, porque cada uma delas, individualmente,

    73 Salmo 72:28.74 Sabedoria 7:27.75 Salmo 15:2.

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    Confisses, VII 35

    boa, e todas elas, em conjunto, so muito boas, porque o nosso Deusfez todas as coisas muito boas76.

    [Toda a criao um louvor a Deus]

    VII. XIII. 19. E, para ti, o mal no existe absolutamente, no apenaspara ti, mas tambm no para toda a tua criao, porque no existe nadafora de ti que irrompa e corrompa a ordem que lhe impuseste. Mas, nassuas partes, algumas coisas so consideradas ms para outras coisas,porque no esto em conformidade; mas essas mesmas coisas esto emconformidade com outras e so boas, e boas em si mesmas. E todas asque no esto em conformidade entre si esto em conformidade coma parte inferior das coisas, a que chamamos terra, que tem o seu cuenublado e ventoso, que lhe adequado. Longe de mim dizer: Oxalessas coisas no existissem, porque, ainda que as contemplasse apenasa elas, desejaria sem dvida outras melhores, mas tambm j s porestas coisas te deveria louvar, porque te mostram digno de louvor, naterra, os drages e todos os abismos, o fogo, o granizo, a neve, o gelo,o sopro da tempestade, que executam a tua palavra, as montanhas etodas as colinas, as rvores de fruto e todos os cedros, os animaisselvagens e todos os rebanhos, os rpteis e as aves que tm penas;os reis da terra e todos os povos, os prncipes e todos os juzes daterra, os jovens e as donzelas, os ancios com os jovens louvam o teunome77. Como, porm, te louvam tambm dos cus, louvem-te, nossoDeus, nas alturas, todos os teus anjos, todas as tuas virtudes, o sol ea lua, todas as estrelas e a luz, e os cus dos cus e as guas, queesto acima dos cus, louvem o teu nome78: eu j no desejava coisasmelhores e, de facto, com uma apreciao mais correcta, consideravaas coisas superiores como melhores que as inferiores, mas todas elas,em conjunto, melhores que as superiores, isoladamente.

    76 Gnesis 1:31; Eclesistico 39:21.77 Salmo 148:7-12.78 Salmo 148:1-5.

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    36 Santo Agostinho

    [No h coisas ms na criao]

    VII. XIV. 20. No esto no seu perfeito juzo79 aqueles a quem de-sagrada alguma coisa da tua criao, tal como eu no estava ao desagradarem-me muitas coisas que fizeste. E porque a minha alma no se atrevia aque lhe desagradasse o meu Deus, ela no queria que fosse teu tudoquanto lhe desagradava. E da que tenha cado na teoria das duas subs-tncias, e no tinha repouso, e dizia coisas despropositadas. E, voltandoda, ela tinha criado para si mesma um Deus pelos infinitos espaos detodos os lugares, e tinha julgado que esse eras tu, e tinha-o colocado noseu corao, e tinha-se tornado de novo templo do seu dolo80, templodigno de ser abominado por ti. Mas depois que acariciaste a cabeadeste ignorante, e fechaste os meus olhos para que no vissem a vai-dade81, descansei um pouco de mim e a minha loucura adormeceu; edespertei em ti, e vi-te infinito de outra maneira, e essa viso no eratirada da carne.

    [Verdade e falsidade nas criaturas]

    VII. XV. 21. E observei as outras coisas e vi que te devem o factode existirem, vi que todas as coisas finitas esto em ti, mas de umamaneira diferente, no como num espao, mas porque, com a verdade,tu seguras todas as coisas na tua mo, e todas as coisas so verdadeiras,na medida em que existem, e a falsidade no outra coisa seno quandose julga que existe o que no existe. E vi que cada uma delas estem conformidade no s com os seus lugares, mas tambm com ostempos, e que tu, que s o nico eterno, no comeaste a operar depoisdos inumerveis espaos dos tempos, tanto aqueles que passaram comoaqueles que ho-de passar, nem passariam nem viriam seno porque tuoperas e permaneces.

    79 Salmo 37:4, 880 2 Corntios 6:16.81 Salmo 118:37.

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    Confisses, VII 37

    [O bom e o apto]

    VII. XVI. 22. E soube, por experincia, que no para admirar que,ao paladar no saudvel, seja causa de sofrimento at o po, que agra-dvel para o paladar saudvel, e que, para os olhos doentes, seja odiosaa luz, que aprazvel para os olhos sos. E a tua justia desagrada aosinquos, e muito mais a vbora e o verme, que tu criaste como coisasboas, adequadas s partes inferiores da tua criao, s quais tambm osprprios inquos so adequados, quanto mais dissemelhantes so de ti,mas, por outro lado, so adequados s partes superiores, quanto maisse tornam semelhantes a ti. E indaguei o que seria a iniquidade, e noencontrei que fosse uma substncia, mas sim a perversidade de umavontade, que se desvia da suprema substncia, de ti, que s Deus, paraas coisas nfimas, e que lana de si o que tem no seu ntimo82 e entu-mesce por fora.

    [Obstculos ao conhecimento das coisas divinas]

    VII. XVII. 23. E admirava-me por j te amar a ti, no a um fantasmaem vez de ti, e no persistia em fruir do meu Deus, mas era arrebatadopara ti, pela tua beleza, e logo a seguir era arrancado de ti, pelo meupeso, e caa nestas coisas, gemendo; e esse peso era o hbito carnal.Mas comigo estava a lembrana de ti, e no duvidava de forma algumade que existe um ser a que me pudesse unir, mas eu ainda no estavacapaz de me unir, porque o corpo, que corruptvel, torna a alma pe-sada, e a morada terrena oprime a mente que pensa muitas coisas83, eestava certssimo de que as tuas coisas invisveis, bem como a virtudesempiterna e a tua divindade, se contemplam e compreendem, desdea criao do mundo, por meio das coisas que foram criadas84. Procu-rando por que motivo aprovava eu a beleza dos corpos, quer celestes,quer terrestres, e porque estava eu pronto a emitir um juzo correcto

    82 Eclesistico 10:10.83 Sabedoria 9:15.84 Romanos 1:20.

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    38 Santo Agostinho

    a respeito das coisas mutveis e a dizer: Isto deve ser assim, aquilono deve ser assim, buscando, pois, o motivo por que julgava, quandoassim julgava, tinha descoberto a imutvel e verdadeira eternidade daverdade, acima da minha mente mutvel. E assim, gradualmente, desdeos corpos at alma, que sente atravs do corpo, e da alma at suafora interior, qual o sentir do corpo anuncia as coisas exteriores,tanto quanto possvel aos animais irracionais, e daqui passando denovo capacidade raciocinante, qual compete julgar o que apreen-dido pelos sentidos do corpo; a qual, descobrindo-se tambm mutvelem mim, elevou-se at sua inteligncia e desviou o pensamento dohbito85, subtraindo-se s multides antagnicas dos fantasmas, paraque descobrisse com que luz era aspergida quando clamava, sem ne-nhuma hesitao, que o imutvel deve antepor-se ao mutvel, o motivopelo qual conhecia o prprio imutvel porque, se no o conhecesse dealgum modo, de nenhum modo o anteporia, com certeza absoluta, aomutvel e chegou quilo que , num relance de vista trepidante86. En-to, porm, contemplei e compreendi as tuas coisas invisveis por meiodaquelas coisas que foram feitas87, mas no consegui fixar o olhar e, re-pelido de novo pela minha fraqueza, entregue uma vez mais aos meushbitos, no levava comigo seno uma lembrana que ama, e como quedesejosa de alimentos bem cheirosos que ainda no podia comer.

    [S Cristo o caminho da salvao]

    VII. XVIII. 24. E procurava o caminho para adquirir fora que fosseconveniente para eu fruir de ti, e no encontrava, enquanto no abra-asse o mediador de Deus e dos homens, o homem Cristo Jesus88, que, acima de todas as coisas, Deus bendito por todos os sculos89, o qualme chamava e dizia: Eu sou o caminho, a verdade e a vida90, e o ali-

    85 Ccero, Tusculanas I 38.86 1 Corntios 15:52.87 Romanos 1:20.88 1 Timteo 2:5.89 Romanos 9:5.90 Joo 14:6.

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    Confisses, VII 39

    mento, que eu era incapaz de tomar, misturado carne, porque o Verbose fez carne91, para que a tua sabedoria, por meio da qual fizeste todasas coisas92, amamentasse a nossa infncia. Eu, humilde, no tinha pormeu Deus o humilde Jesus, nem sabia de que coisa podia ser mestraa sua fraqueza. O teu Verbo, verdade eterna, dominando as partes su-periores da tua criao, levanta at si mesma os que se lhe submetem,enquanto, por outro lado, nas partes inferiores, construiu para si, como nosso barro93, uma casa94 humilde, por meio da qual derrubaria de simesmos aqueles que haviam de ser submetidos e levaria at si, curandoo tumor e alimentando o amor, para que no se afastassem para maislonge, por causa da confiana em si mesmos, mas que antes se tornas-sem fracos, vendo, diante dos seus ps, a divindade, dbil, em virtudeda participao da nossa tnica de pele95, e, cansados, se prostrassemdiante dela, e ela, erguendo-se, os levantasse.

    [Erro e verdade sobre o Verbo incarnado]

    VII. XIX. 25. Mas eu pensava outra coisa e somente sentia acercado meu Senhor Cristo o que se sente acerca de um homem de extraor-dinria sabedoria, a quem ningum se pode igualar, sobretudo porque,nascido maravilhosamente da Virgem, para exemplo do desprezo dascoisas temporais por causa da conquista da imortalidade, me pareciater merecido, por divina providncia para connosco, uma to grandeautoridade de magistrio. Mas o que tinha de mistrio a expresso Eo Verbo se fez carne96 no o podia sequer suspeitar. Apenas sabia, apartir das coisas que, acerca dele, foram escritas e transmitidas, quecomeu e bebeu, dormiu, andou, alegrou-se, entristeceu-se, conversou,que aquela carne no se uniu ao teu Verbo seno com a alma e a mente

    91 Joo 1:14.92 Colossenses 1:16.93 Gnesis 2:7.94 Provrbios 9:1.95 Gnesis 3:21.96 Joo 1:14.

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    40 Santo Agostinho

    humana. Sabe isto todo aquele que conhece a imutabilidade do teuVerbo, que eu j conhecia, na medida em que podia, e disso no duvi-dava absolutamente nada. Efectivamente, seja mover os membros docorpo, por aco da vontade, seja no os mover, seja ser atingido poralgum afecto, seja no o ser, seja proferir, por meio de signos, sbiasopinies, seja estar em silncio, so coisas prprias da mutabilidadeda alma e da mente. Se estas coisas escritas acerca dele fossem fal-sas, tambm todas as coisas estariam comprometidas pela mentira, enaqueles textos no restaria nenhuma salvao pela f para o gnerohumano. Mas, porque so verdadeiras as coisas escritas, reconhecia,em Cristo, um homem completo, no apenas corpo de homem ou umesprito com corpo sem mente, mas considerava que o prprio homem,no pela essncia da verdade, mas por uma grande excelncia da natu-reza humana e por uma participao mais perfeita da sabedoria, deviaser colocado frente de todos os outros. Alpio, porm, pensava queos catlicos crem que Deus est revestido de carne, de tal modo queno havia em Cristo seno Deus e a carne, e considerava que nele nose podia falar de alma e mente humanas. E porque tinha como absolu-tamente certo que aquelas coisas que, acerca dele, foram deixadas aosvindouros, no podiam ter acontecido sem uma criatura dotada de vidae de razo, mais devagar se movia em direco f crist. Mas depois,reconhecendo que este um erro dos herticos apolinaristas97, rejubi-lou com a f catlica e juntou-se a ela. Eu, por meu lado, confessoque aprendi um pouco mais tarde como que, no facto de o Verbo terincarnado98, a verdade catlica diverge da falsidade de Fotino99. Por-que a refutao dos hereges faz sobressair o que a tua Igreja pensa e o

    97 Segundo as palavras de Agostinho (Enarrationes in psalmos 2: 29, n. 2-3), aheresia dos Apolinaristas consistia em afirmar que o Verbo de Deus desempenhavaem Cristo as funes da alma humana e que este, do homem, tinha apenas o corpo, acarne.

    98 Joo 1:14.99 Fotino, eleito bispo de Smirmium (Pannia) em 343-344, era originrio de An-

    cira, na Galcia, onde seguira Marcelo. Negava a divindade e a eternidade de Cristoe afirmava que a sua sublimidade moral podia ser alcanada por outros homens. O

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    Confisses, VII 41

    que a s doutrina100 contm. Na verdade, foi conveniente que houvessehereges para que os comprovados na f se tornassem visveis101 entreos vacilantes.

    [A procura da verdade nos livros dos Neoplatnicos]

    VII. XX. 26. Mas ento, lidos aqueles livros dos Platnicos, e de-pois de por eles ter sido levado a procurar a verdade incorprea, vi ecompreendi as tuas coisas invisveis por meio daquelas que foram fei-tas102, e, repelido, senti o que no me era dado contemplar atravs dastrevas da minha alma, certo de que tu s e s infinito, sem todavia tedifundires pelos lugares finitos ou infinitos, e que verdadeiramente stu, que s sempre o mesmo103, e, por nenhuma parte e nenhum mo-vimento, s outro ou de outro modo, e que todas as restantes coisasprocedem de ti104, por esta nica solidssima prova: serem, estava re-almente seguro destas coisas, todavia demasiado fraco para fruir de ti.Conversava muito, como se fosse perito, e, se no procurasse o teu ca-minho105 em Cristo, nosso Salvador106, no seria perito mas pereceria.Na verdade, j comeava a querer parecer sbio, cheio do meu castigo,e no chorava, e inchava-me com a cincia, acima de toda a medida.Onde estava, pois, aquela caridade, que edifica107 a partir do alicerceda humildade, que Jesus Cristo108? Ou quando que aqueles livrosma ensinariam? Creio que tu quiseste que eu deparasse com eles, an-tes de meditar sobre as tuas Escrituras, a fim de que ficasse gravado na

    imperador Juliano, o Apstata, felicita-o numa carta por ter negado que Deus possaassumir carne no seio de uma mulher.

    100 2 Timteo 4:3; Tito 1:9; 2:1.101 1 Corntios 11:19.102 Romanos 1:20.103 Salmo 101:28; Hebreus 1:12.104 Romanos 11:36.105 Joo 14:6.106 Tito 1:4.107 1 Corntios 8:1.108 1 Corntios 3:11.

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    42 Santo Agostinho

    minha memria de que modo fui afectado por eles, e de que, quandomais tarde encontrei o apaziguamento nos teus Livros, e as minhas fe-ridas foram tocadas pelos teus dedos, que as curaram, discernisse edistinguisse que diferena havia entre presuno e confisso, entre osque vem para onde se deve ir e no vem por onde, e o caminho queconduz ptria bem aventurada, no apenas para a contemplar, mastambm para a habitar. Pois se, em primeiro lugar, tivesse sido ins-trudo nas tuas Santas Escrituras, e no contacto familiar com elas metivesses dulcificado, e depois tivesse cado naqueles livros, talvez estesou me tivessem arrancado solidez da piedade, ou, se persistisse noafecto salutar que tinha bebido, julgaria que, se algum tivesse estu-dado apenas aqueles livros, tambm neles poderia adquirir esse mesmoafecto.

    [O que h nas Escrituras e no nos livros dos Neoplatnicos]

    VII. XXI. 27. Assim, com grande sofreguido, lancei mo do ve-nervel estilo do teu esprito e, sobretudo, do apstolo Paulo, e desa-pareceram aquelas questes, nas quais durante algum tempo me pare-ceu que ele se contradizia a si mesmo e que o texto do seu discursono estava de acordo com os testemunhos da Lei e dos Profetas109, erevelou-se-me um s rosto dos castos discursos110, e aprendi a exultarcom tremor111. E comecei e descobri que tudo quanto de verdadeiropor l tinha lido, por aqui era dito com a garantia da tua graa, paraque quem v no se vanglorie, como se no tivesse recebido112 nos aquilo que v, mas tambm o poder ver pois que coisa tem queno tenha recebido113? e para que seja levado no s a ver-te a ti,que s sempre o mesmo114, mas tambm a ser curado, para que fique

    109 Mateus 5:17; 7:12; Lucas 16:16.110 Salmo 11:7.111 Salmo 2:11.112 1 Corntios 4:7.113 1 Corntios 4:7.114 Salmo 101:28; Hebreus 1:12.

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    Confisses, VII 43

    contigo, e que aquele que, de longe, no pode ver, percorra no en-tanto o caminho por onde venha, e te veja, e te retenha, porque, aindaque o homem se regozije na Lei de Deus, segundo o homem interior,que far da outra lei que, nos seus membros, luta contra a lei da suamente, e que o leva, cativo, na lei do pecado, que est nos seus mem-bros115? Porque tu s justo, Senhor116; ns, porm, pecmos, agimosiniquamente117, comportmo-nos impiamente118, e sobre ns pesou atua mo119, e, com justia, fomos entregues ao antigo pecador, prn-cipe da morte, porque persuadiu a nossa vontade da semelhana da suavontade, pela qual no se manteve na tua verdade120. Que far o in-feliz ser humano? Quem o libertar do corpo desta morte seno a tuagraa, por intermdio de Jesus Cristo nosso Senhor121, que geraste co-eterno e criaste no princpio dos teus caminhos122, em quem o prncipedeste mundo123 no encontrou nada digno de morte124, e o matou: e foianulada a acusao que nos era contrria125? Isso no o tm aqueles es-critos. No tm aquelas pginas o semblante desta piedade, as lgrimasda confisso, o teu sacrifcio, o esprito atribulado, o corao contritoe humilhado126, a salvao do povo, a Cidade esposa127, os penhoresdo Esprito Santo128, a taa do nosso resgate. Ningum a canta: Noh-de a minha alma submeter-se Deus? Dele vem, com efeito, a mi-nha salvao: pois ele prprio o meu Deus e a minha salvao, meu

    115 Romanos 7:22-23.116 Tobias 3:2; Salmo 118:137.117 Daniel 3:27, 29.118 3 Reis 8:47.119 Salmo 31:4.120 Joo 8:44.121 Romanos 7:24-25.122 Provrbios 8:22.123 Joo 14:30.124 Lucas 23:14-15.125 Colossenses 2:14.126 Salmo 50:19.127 Apocalipse 21:2.128 2 Corntios 5:5.

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    sustentculo: no mais vacilarei129. A ningum ouve chamar: Vindea mim, vs que sofreis. No se dignam aprender dele, porque mansoe humilde de corao130. Pois tu escondeste estas coisas dos sbios edos prudentes e revelaste-as aos pequeninos131. E uma coisa ver, docimo de um monte frondoso, a ptria da paz132, e no encontrar o cami-nho at ela, e esforar-se, em vo, por lugares nvios, cercando-nos emvolta e armando emboscadas os desertores fugitivos com o seu prn-cipe, leo e drago133, outra coisa seguir o caminho que a conduz,protegido pelo cuidado do seu celeste governante, onde aqueles queabandonaram a milcia celeste no fazem assaltos, pois o evitam comoa um suplcio. Todas estas coisas se entranhavam dentro de mim demodos admirveis, ao ler o mnimo dos teus Apstolos134, e meditavasobre as tuas obras, e ficava apavorado135.

    129 Salmo 61:2-3.130 Mateus 11:28-29.131 Mateus 11:25.132 Deuteronmio 32:49.133 Salmo 90:13.134 1 Corntios 15:9.135 Habacuc 3:2.

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    Confisses, X

    Livro X

    [Esperana e alegria s em Deus]

    X. I. 1. Que eu te conhea, conhecedor de mim, que eu te co-nhea, tal como sou conhecido por ti136. virtude da minha alma,entra nela e molda-a a ti, para que a tenhas e possuas sem mancha nemruga137. Esta a minha esperana; por isso falo e nesta esperana mealegro138, quando experimento uma s alegria. Pois as restantes coisasdesta vida tanto menos se devem chorar quanto mais por causa delas sechora, e tanto mais se devem ser chorar quanto menos por causa delasse chora. Mas tu amaste a verdade139, porque aquele que a pe emprtica alcana a luz140. Tambm a quero pr em prtica no meu co-rao: diante de ti, na minha confisso, diante de muitas testemunhas,nos meus escritos.

    [Se Deus conhece as coisas ocultas, porqu confess-las?]

    X. II. 2. Mas para ti, Senhor, diante de cujos olhos est nu141 oabismo da conscincia humana, que haveria de oculto em mim, aindaque eu to no quisesse confessar142? Na verdade, poderia esconder-tede mim, mas no esconder-me de ti. Agora, porm, que os meus gemi-dos so testemunhas de que no me agrado a mim mesmo, tu refulges,e agradas-me, e s amado, e s desejado, de tal modo que eu comeo

    136 1 Corntios 13:12.137 Efsios 5:27.138 Romanos 12:12.139 Salmo 50.8.140 Joo 3:21.141 Hebreus 4:13.142 Eclesistico 42:18, 20.

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    a ter vergonha de mim, e me desprezo, e te escolho a ti, e no agrado,nem a ti nem a mim, seno por ti. Eu estou patente diante de ti143, Se-nhor, em tudo aquilo que eu possa ser. E acabei de dizer com que frutoa ti me confesso. E no fao isto com palavras e vozes da minha carne,mas com palavras da minha alma e com o clamor do meu pensamento,que os teus ouvidos conhecem. Confessar-me a ti quando sou mau, no mais do que desagradar-me de mim; mas confessar-me a ti quandosou piedoso, no mais do que no o atribuir mim, porque tu, Senhor,bendizes o justo144, mas antes justifica-lo, sendo ele mpio145. Assim,a minha confisso, meu Deus, na tua presena146, faz-se em silncioe no se faz em silncio. Faz-se em silncio quanto ao estrpito, masgrita quanto ao afecto. Com efeito, nada de verdadeiro digo aos ho-mens que antes tu no tenhas ouvido de mim, nem tambm ouves demim coisa alguma que tu antes me no tenhas dito.

    [Com que fruto confessa Agostinho quem , no quem foi?]

    X. III. 3. Mas que tenho eu a ver com os homens para que oiam asminhas confisses, como se eles houvessem de curar todas as minhasenfermidades147? Que gente curiosa de conhecer a vida alheia e queindolente em corrigir a sua! Porque querem ouvir de mim o que eu soue no querem ouvir de ti o que eles so? E, quando me ouvem falar demim prprio, como sabem se eu digo a verdade, uma vez que nenhumhomem sabe o que se passa no homem, a no ser o esprito do homemque est nele prprio?148 Se, porm, te ouvirem a ti falar deles, nopodero dizer: Deus mente. O que ouvirmos-te falar de ns mesmosseno conhecermo-nos a ns mesmos? Quem, portanto, se conhece asi mesmo e diz: falso, a no ser que esteja a mentir? Mas, porque

    143 2 Corntios 5:11.144 Salmo 5:13.145 Romanos 4:5.146 Salmo 95:6.147 Salmo 102:3; Mateus 4:23.148 1 Corntios 2:11.

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    Confisses, X

    a caridade tudo cr149 sobretudo entre aqueles que, ligados uns aosoutros, ela unifica assim tambm eu me confesso a ti, Senhor, de talmodo que o ouam os homens, aos quais no posso provar se verdadeaquilo que confesso; mas acreditam-me aqueles a quem a caridade abreos ouvidos.

    4. Mas tu, porm, mdico do meu ntimo, faz-me ver claramentecom que fruto que eu fao isto. Na verdade, as confisses dos meusmales passados, que perdoaste e apagaste150 para me tornares feliz emti, transformando a minha alma com a f e o teu sacramento, quandoso lidas e ouvidas despertam o corao, a fim de que ele no durmano desespero e diga: No posso, mas esteja vigilante no amor151 datua misericrdia e na doura da tua graa, com a qual poderoso todoo fraco152 que, por ela, se torna consciente da sua fraqueza. Aos bons,deleita-os ouvir os males passados daqueles que j deles esto liber-tos, e no os deleita por serem males, mas porque foram e no so.Com que fruto, pois, Senhor meu, a quem todos os dias se confessaa minha conscincia, mais confiada na esperana da tua misericrdiado que na sua inocncia, com que fruto, pergunto, confesso tambmaos homens, diante de ti, por meio destas pginas, quem ainda agorasou e no quem fui? que eu vi esse fruto e recordei-o. Mas quemainda agora sou, precisamente no momento das minhas confisses, de-sejam sab-lo muitos que me conhecem, e no me conhecem aquelesque ouviram alguma coisa, vinda de mim ou a meu respeito, mas cujosouvidos no esto junto do meu corao, onde eu sou tudo aquilo quesou. Querem, pois, saber, mediante a minha confisso, o que que eusou interiormente, onde, nem o seu olhar, nem os seus ouvidos, nem asua mente podem penetrar; querem-no, dispostos a acreditar em mim:mas estaro na disposio de me conhecer? No entanto, a caridade,

    149 1 Corntios 13:4, 7.150 Salmo 31:1.151 Cntico 5:2.152 2 Corntios 12:9-10.

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    que os torna bons, diz-lhes que eu, ao confessar-me, no minto, e elamesma que neles acredita em mim153.

    [Grandes so os frutos deste gnero de confisso]

    X. IV. 5. Mas com que fruto o querem saber? Acaso desejamcongratular-se comigo, ao ouvirem quanto me aproximo de ti, mercda tua graa, e orar por mim, ao ouvirem quanto me atraso, por causado meu peso? Revelar-me-ei a tais pessoas. Com efeito, no pequenofruto, Senhor, meu Deus, que muitos te dem graas por nossa causa154,e que muitos te implorem por ns. Que um esprito fraterno ame emmim o que ensinas a amar e que lamente em mim o que ensinas a la-mentar. Que faa isto um esprito fraterno, no um estranho, no o dosfilhos alheios, cuja boca falou vaidade e a sua dextra a dextra dainiquidade155, mas esse esprito fraterno que, ao aprovar-me, se alegrapor causa de mim e, ao desaprovar-me, por mim se entristece, porque,quer me aprove quer me desaprove, me tem amor. Revelar-me-ei a taispessoas: respirem nos meus bens, suspirem nos meus males. Os meusbens so os teus preceitos e os teus dons; os meus males so os meuspecados e os teus juzos. Respirem naqueles e suspirem nestes; e, doscoraes fraternos, que so os teus turbulos, subam, tua presena156,tanto o hino como o lamento. Tu, porm, Senhor, deleitado com operfume do teu santo templo157, compadece-te de mim, segundo a tuagrande misericrdia158, por causa do teu nome159, e no abandones,de modo algum, a obra que comeaste, e conclui o que em mim estinacabado160.

    153 1 Corntios 13:4, 7.154 2 Corntios 1:11.155 Salmo 143:7-8.156 Apocalipse 8:3-4.157 1 Corntios 3:17.158 Salmo 50:3.159 Salmo 24:11; 78:9; 108:21.160 Filipenses 1:6.

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    6. Este o fruto das minhas confisses, no j como fui, mas comosou: confessar-te isto, no somente diante de ti, com um ntimo jbilocom tremor161, e uma ntima tristeza com esperana, mas tambm aosouvidos daqueles que, de entre os filhos dos homens162, crem, partici-pantes da minha alegria, consortes da minha mortalidade, meus conci-dados e comigo peregrinos, os que me precederam, os que ho-de virdepois de mim, e os que so companheiros da minha existncia. Estesso os teus servos, meus irmos, que tu quiseste que fossem teus filhose senhores meus, aos quais me mandaste servir, se contigo e de ti queroviver. E esta tua palavra era pouco para mim, se ela mandasse apenascom palavras, e no fosse adiante de mim com obras163. Por isso eufao isto com obras e com palavras, e fao-o sob a proteco das tuasasas164, com um perigo enorme, no fora o facto de a minha alma, soba proteco das tuas asas165, te estar sujeita166, e de a minha fraquezate ser conhecida. Sou uma criancinha, mas o meu Pai est sempre vivoe ele para mim um tutor de confiana; ele o mesmo167 que me ge-rou168 e me protege, pois tu s todo o meu bem, tu, o Omnipotente, queests comigo e antes que eu estivesse contigo. Revelarei, pois, a taispessoas, a quem me mandas servir, no quem fui, mas quem j sou equem ainda sou; mas no me julgo a mim mesmo169. E que assim sejaouvido.

    [O homem no se conhece inteiramente]

    X. V. 7. s tu, na realidade, Senhor, que me julgas, porque, emboranenhum homem saiba o que prprio do homem, a no ser o esprito

    161 Salmo 2:11; Filipenses 2:12.162 Salmo 106:8, 15, 21, 31.163 Joo 13:15.164 Salmo 16:8.165 Salmo 16:8.166 Salmo 61:2.167 Salmo 101:28; Hebreus 1:12.168 Salmo 2:7.169 1 Corntios 4:3.

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    do homem que est nele170, todavia h alguma coisa do homem quenem o prprio esprito do homem, que nele est, conhece; mas tu, Se-nhor, que o fizeste, conheces171 todas as suas coisas. Eu, porm, aindaque na tua presena me despreze e me considere terra e cinza172, con-tudo sei de ti alguma coisa que de mim ignoro. certo que agora vemoscomo por um espelho, em enigma e ainda no face a face173; e,