filologia romanica letras online

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5/27/2018 FilologiaRomanicaLetrasOnline-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/filologia-romanica-letras-online 1/140 2009 Filologia  Românica // Geraldo Mattos

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  • 2009

    Filologia Romnica

    // Geraldo Mattos

  • IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel Curitiba PR 0800 708 88 88 www.iesde.com.br

    Todos os direitos reservados.

    2009 IESDE Brasil S.A. proibida a reproduo, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorizao por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

    M444 Mattos, Geraldo. / Filologia Romnica. / Geraldo Mattos. Curitiba : IESDE Brasil. S.A. , 2009.

    140 p.

    ISBN: 978-85-387-0274-0

    1. Lingustica. 2. Filologia. 3. Lngua portuguesa Histria. I. Ttulo.

    CDD 410

    Capa: IESDE Brasil S.A.

    Imagem da capa: Jupiter Images/DPI Images

  • Livre-docente de Lngua Portuguesa pela Universidade Federal do Paran (UFPR), Doutor em Lngua Portuguesa pela UFPR. Licenciado em Letras Neolati-nas pela Pontifcia Universidade Catlica do Paran.

    Geraldo Mattos

  • Sumrio

    Conceito e origem da Filologia romnica ....................... 13

    Conceito de Filologia e Lingustica ..................................................................................... 13

    Operaes filolgicas ............................................................................................................... 17

    Principais autores ...................................................................................................................... 20

    Fatores de dialetao do latim vulgar ............................... 29

    Fatores da evoluo linguageira .......................................................................................... 29

    Conceito de lngua e dialeto ................................................................................................. 30

    Variao fonolgica: metaplasmos ..................................................................................... 32

    Figuras de estilo ......................................................................................................................... 34

    Circunstncias da evoluo ................................................................................................... 35

    Disperso do latim vulgar e sua dialetao ..................................................................... 40

    Lnguas romnicas contemporneas ................................ 47

    Processo e funo das lnguas .............................................................................................. 47

    Lngua e criaes romnicas ................................................................................................. 48

    Textos romnicos ....................................................................................................................... 52

    Caractersticas da lngua portuguesa ............................... 69

    Evoluo fonolgica ................................................................................................................. 69

    Evoluo morfolgica .............................................................................................................. 70

    Verbo de lngua portuguesa ................................................................................................. 71

    Evoluo sinttica ..................................................................................................................... 81

  • Histria externa da lngua portuguesa............................. 87

    Incio das conquistas portuguesas...................................................................................... 87

    Preparo da aventura expansionista .................................................................................... 89

    Expanso ultramarina .............................................................................................................. 90

    Calendrio das conquistas ..................................................................................................... 91

    Contexto social e linguageiro do Brasil Independente ........................................................103

    Consequncias da vinda da Famlia Real portuguesa para o Brasil ......................103

    Lngua brasileira e lngua portuguesa .............................................................................104

    Comparando Portugal e Brasil com ndia e Hindusto .............................................106

    Lngua do sculo XIX ..............................................................................................................107

    Lngua do sculo XX ...............................................................................................................114

    Gabarito .....................................................................................125

    Referncias ................................................................................133

    Anotaes .................................................................................139

  • Apresentao

    As lnguas parecem seres vivos, porque tm o estgio da infncia, o da adolescncia, o da maturidade, o da velhice e o da morte, deixando vivos os seus herdeiros: aconteceu com a lngua indo-europeia e mais perto de ns aconteceu tambm com a lngua latina. Esta ainda sobrevive no Estado do Vaticano, mas nele uma lngua adquirida, nunca uma lngua transmitida, que a marca da verdadeira lngua: os falantes passam, mas ela permanece...

    E podem ainda renascer com o renascimento da unidade poltica.

    Este livro estuda um dos herdeiros da lngua latina, a qual deve ter-se des-manchado em diversos falares uns quinhentos anos d.C., ainda que perdurado nos conventos como lngua adquirida o padre Jos de Anchieta um bom exemplo! e como lngua oficial de pases europeus por muitos sculos em Portugal em fins do sculo XIII com a deciso do rei Dom Dinis a favor da lngua portuguesa para os documentos oficiais do reino (1261-1325). Em Cracvia, alm de uma boa quantidade de casas comerciais com nome romano, eu tambm li primeiro o nome latino da Faculdade de Agronomia e s depois o nome na lngua polonesa, que era traduo do latino:

    ACADEMIA CRACOVIENSIS RERUM RUSTICARUM

    [Academia Cracoviense das Coisas do Campo].

    E para no ficarmos atrs deles, confesso que vindo de Curitiba, li numa das ruas da cidade de So Paulo o nome de uma loja que vendia roupas para meninas:

    Domus puellae [Casa da menina]

    As lies conduzem os leitores desde o conceito de Filologia at as lnguas Romnicas contemporneas e o portugus brasileiro recente. As aulas esto dis-postas em captulos, sendo eles: 1. Conceito e origem da Filologia Romnica. 2. Fatores de dialetao do latim vulgar. 3. Lnguas romnicas contemporneas. 4. Caractersticas da lngua portuguesa. 5. Histria externa da lngua portuguesa. 6. Contexto social e linguageiro do Brasil Independente.

    A verdade que conhecer a histria da lngua de um povo tambm co-nhecer a histria desse povo, porque ela vai aonde ele for. A nossa esteve em Sagres com Dom Henrique, o Navegador, e embarcou tambm para as conquistas ultramarinas.

  • Ao longo dessas pginas procurei usar uma lngua menos literria que de con-versa e desde j peo desculpas por alguns pormenores puramente pessoais, porque eu mesmo no consigo me desligar do que escrevo, porque me parece que eu sou o que es-crevo e o que escrevo sou eu... Acabo de cometer uma antimetbole e simultaneamente comprovar a assero que fiz neste mesmo pargrafo!

    Espero que a leitura deste livro traga a quantos o lerem o mesmo orgulho que tive vendo que falava e escrevia a lngua portuguesa que escrevo e falo.

    E menos trabalho do que me deu a mim...

    Curitiba, 13 de maio de 2008.

    Geraldo Mattos

  • Conceito e origem da Filologia romnica

    Conceito de Filologia e LingusticaMuitas universidades de lnguas neolatinas tm professores de Filolo-

    gia romnica e as de outras naes as de suas lnguas: Filologia germnica ou Filologia eslava, por exemplo. Entretanto, mais comum haver profes-sores de Lingustica.

    Em que diferem Filologia e Lingustica? Primeiro permita-me o leitor apresentar a opinio abalizada de Serafim da Silva Neto (1917-1960) em seu livro sobre a Filologia portuguesa (SILVA NETO, 1957):

    A Lingustica uma cincia de princpios gerais, aplicveis a quaisquer lnguas. Nessa conformidade, no julgamos aconselhvel falar, por exemplo, em Lingustica francesa, ou inglesa, com o fito de referirmos estudos acerca dessas lnguas. A Lingustica parece--nos sempre geral. A Filologia, sim, encerra todos os estudos possveis acerca de uma lngua ou grupo de lnguas: Filologia portuguesa, Filologia indo-europeia. [...]

    Enquanto a Lingustica estuda precisamente a lngua ao longo da sua histria, Lingustica diacrnica, ou num dos seus momentos dados, Lin-gustica sincrnica, encarando sempre a fala, a Filologia depende majorita-riamente de documentos escritos: assim existe uma Lingustica das lnguas indgenas. Coutinho (1976, p. 17) nos traz uma definio simples e comple-ta, que permite uma boa distncia entre ela e a Lingustica: Filologia a cincia que estuda a literatura de um povo ou de uma poca e a lngua que lhe serviu de instrumento. Essa definio j explica que estudar a lngua de Os Lusadas cabe bem mais Filologia que Lingustica. Nesse sentido mais restrito, a Filologia era praticada pelos antigos gregos e romanos, mas agora a lngua escrita muito mais frequente que naqueles tempos.

    claro que entre a Filologia e a Lingustica existe um elo comum, que est no final da definio de Lima Coutinho: [...] a lngua que lhe serviu de instrumento (1969, p. 17). Por tudo isso, creio tambm que os aspectos ortogrficos antes pertenam Filologia, e sejam em princpio indiferen-tes para a Lingustica.

    Alm disso, o campo da Filologia mais amplo, porque h assuntos de que a Lingustica ordinariamente no cuida, sem se falar dos aspectos literrios que tambm no so abordados por ela:

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    Conceito e origem da Filologia romnica

    edies diplomticas;

    edies crticas;

    comparao de edies diferentes para se chegar ao texto original;

    estudo das divergncias entre lnguas da mesma origem.

    As edies diplomticas e crticas apresentam as obras sob diferentes crit-rios de elaborao, ainda que os objetivos sejam os mesmos: apresentao mo-delar de um original.

    A edio diplomtica procurava dar a imagem verdadeira de um texto, mas a tcnica de hoje tem as cpias fotogrficas ou eletrnicas, que so muito mais fiis por reproduzirem todos os detalhes da pgina. Houve, entretanto, valiosas edies diplomticas das cantigas trovadorescas que se perderam no tempo.

    A edio crtica quer apresentar a melhor forma de um texto por eliminar os erros involuntrios, existindo excelentes edies crticas dos Evangelhos. O ruim dessas edies crticas que comumente aparecem em cada pgina mais linhas de notas que as do texto original, sendo assim interessantes somente para poucos especialistas e para bibliotecas especializadas.

    A comparao de edies diferentes para se chegar ao texto original tem o exemplo das duas edies antigas de Os Lusadas, que se distinguem pela capa. Em cada uma delas aparece um pelicano voltado para um lado diferente. trabalho da Filologia estudar as edies para descobrir qual forma foi a escolha inicial do autor.

    Um caso mais simples est em um dos versos do Hino Nacional brasileiro, que cantado de duas formas, cabendo Filologia provar como o verso original do texto de 1909, escrito por Joaquim Osrio Duque Estrada (1870-1927) e msica de Francisco Manuel da Silva (1795-1865), tocada pela primeira vez em 1831, sem nunca ter um texto definitivo, todos ruins de letra ou de contedo. A sua oficializao veio em 1922, pouco antes dos festejos do primeiro centenrio da nossa independncia poltica.

    Entre os nossos hinos patriticos, o mais heroico e ao mesmo tempo lrico a Cano do Expedicionrio, criada em 1944 com texto de Guilherme de Almeida (1890-1969) e melodia de Spartaco Rossi (1910-1993), que falam ao corao:

    Voc sabe de onde eu venho?

    Venho do morro, do engenho,

  • Conceito e origem da Filologia romnica

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    Das selvas, dos cafezais,

    Da boa terra do coco,

    Da choupana onde um pouco,

    Dois bom, trs demais [...]

    (ALMEIDA, 1982, p. 91)

    Deixem-me os meus leitores acrescentar que Duque Estrada pretendeu honrar a figura emrita de Antnio Gonalves Dias (1823-1865) tomando a se-gunda estrofe da Cano do exlio nos seus trs versos finais para a segunda estrofe da segunda parte do nosso Hino: pena que poucos percebam essa hon-raria. Esses versos pertencem com certeza a uma das poesias mais emotivas do nosso cancioneiro, em que o poeta externa a sua dor de estar longe do Brasil, enquanto estudava em Portugal.

    A Cano do exlio, publicada por Gonalves Dias em 1847 no livro Primeiros Cantos, tem versos de sete slabas e aparece como segunda estrofe desse desa-bafo de saudade os trs versos que o autor do Hino Nacional aproveitou para a sua gentil homenagem ao nosso maior romntico. A estrofe de Gonalves Dias a seguinte, de que o primeiro verso foi desprezado numa troca infeliz do cu pela terra

    Nosso cu tem mais estrelas,

    Nossas vrzeas tm mais flores,

    Nossos bosques tm mais vida,

    Nossa vida mais amores[...]

    (GONALVES DIAS, 1997, p. 27)

    Este foi o aproveitamento que dessa estrofe fez Duque Estrada, substituindo o cu do primeiro verso pela terra:

    Do que a terra mais garrida

    Teus risonhos lindos campos tm mais flores,

    Nossos bosques tm mais vida, [...]

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    Conceito e origem da Filologia romnica

    A estrofe original aparece deste modo em todas as suas edies, faltando as aspas na segunda metade do segundo verso, certamente por um esquecimento de Duque Estrada:

    Do que a terra mais garrida

    Teus risonhos lindos campos tm mais flores;

    Nossos bosques tm mais vida,

    Nossa vida no teu seio mais amores.

    Lembro aos meus amveis leitores que as linhas acima so um exerccio de Fi-lologia. Acrescento ainda que a recusa da palavra vrzeas se deveu ao verso que teria uma slaba a mais com o feminino do possessivo tuas e o enxerto no quarto verso foi motivado exclusivamente pela melodia do nosso Hino, que 78 anos mais velha que a sua letra. Enquanto a estrofe do poema de Gonalves Dias tem quatro versos de sete slabas mtricas, a do Hino Nacional tem versos mpares de sete slabas e versos pares de onze slabas. Assim, portanto, faltavam quatro slabas, que o autor teve de inventar: no teu seio. Do ponto de vista puramente informativo, o resultado me parece medocre, se considerarmos a orao desse quarto verso com o verbo que fica subentendido:

    Nossa vida [tem] no teu seio mais amores.

    Devo, todavia, concordar que o enxerto produz uma metfora congruente com outras dentro do mesmo poema, o que o desculpa do pouco sentido acres-cido pelas trs palavras: no teu seio. Essas outras metforas aparecem no terceto que finaliza as duas estrofes do Hino Nacional:

    Dos filhos deste solo s me gentil,

    Ptria Amada,

    Brasil!

    A citao dos versos do nosso maior poeta romntico foi, entretanto, uma de-licada mostra de carinho e admirao que Duque Estrada tinha pelo bardo mara-nhense. Para finalizar, uma viso filolgica me leva a ver na falta dos adjetivos do poema de Gonalves uma ntida hesitao entre a dor portuguesa e a saudade brasileira: iria o poeta escolher adjetivos para as paisagens brasileiras, acerbando a sua saudade, ou para as portuguesas, avolumando a sua dor? A melhor soluo foi elimin-los por ser menos penosa.

  • Conceito e origem da Filologia romnica

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    Observe-se ainda que o nosso Hino Nacional apresenta no seu final tambm uma diferena no canto do primeiro dos seus versos: a primeira slaba da palavra plcidas pode se ouvir cantar com uma de duas notas, sendo correta apenas a mais baixa na escala musical.

    Operaes filolgicasO estudo das divergncias entre lnguas da mesma origem que provocou o

    aparecimento da Filologia em 1816 com a obra Sistema de Conjugao do Sns-crito em comparao com o Grego, o Latim, o Persa e o Germnico, escrita pelo cientista alemo Franz Bopp (1791-1867). Todas essas lnguas derivam de uma protolngua muito mais antiga e sem nenhum documento escrito: o indo-euro-peu, lngua de um povo que morava no centro do continente asitico no final do Perodo Neoltico (7000-2500 a.C.) e que pouco mais de mil anos depois migrou para as terras europeias e hindus: eram os rios.

    Em suas novas terras, esses povos arianos certamente encontraram outros povos e outras lnguas que foraram a evoluo do idioma primitivo. Conser-varam-se, entretanto, as palavras essenciais de uma lngua, como pronomes e nomes de parentesco, a conjugao dos verbos e a declinao, que empre-go de terminaes para indicar na frase a funo que tm as palavras: quem d (caso nominativo), a quem d (caso dativo), o que dado (caso acusativo), de quem o que dado (caso genitivo), tempo ou modo de dar (caso ablati-vo), quem chamado (caso vocativo), onde se d (caso locativo), meio que se usa para dar (caso instrumental) e alguns outros. Nenhuma das lnguas indo- -europeias apresenta todos eles. As palavras fundamentais de qualquer cultura constituem a prova mais forte, como a palavra madre, que as crianas da nossa lngua reduziram a me:

    mtter em alemo / mter em grego / mater em latim / matka em polons

    A verdade que incorporar os dados culturais possibilita e torna mais fcil de explicar as mudanas semnticas com o aparato filolgico, porque as mudanas fonticas ou sintticas deixam rastros, mas as semnticas se apagam e desapare-cem caso no sejam registradas nos dicionrios da lngua.

    Essa maior facilidade de concluir vista de textos escritos talvez tenha sido o fator que retardou o aparecimento da Lingustica moderna: enquanto a Filologia moderna comea em 1816, a verdadeira Lingustica moderna nasce exatamente cem anos depois com a obra de Ferdinand de Saussure (1857-1913) Cours de Lin-

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    Conceito e origem da Filologia romnica

    guistique Gnrale (Curso de Lingustica Geral), livro pstumo, de 1916, coligido por seus alunos das aulas ministradas. Nele se define claramente o conceito de lngua e o mtodo estruturalista de estud-la.

    Justamente por isso, Saussure chamou a ateno para o fato de que o pro-cesso comunicativo tem duas vertentes: a fala (parole, no original), que a parte concreta do ato comunicativo, e a lngua (langue, no original), que a sua parte abstrata. A importncia que ele conferiu fala passou a distinguir com toda a ni-tidez o que Lingustica e o que Filologia: o texto escrito uma fala artificial.

    Fundador do Estruturalismo, tem ainda o merecimento de suas ideias terem servido tambm a outras cincias, tendo Claude Lvi-Strauss aplicado seu mtodo Etnologia.

    Tomo para comprovar as afirmaes anteriores o exemplo do particpio do verbo latino lere, sinnimo de dere, certamente razes bem mais antigas da protolngua indo-europeia. O primeiro desses verbos desapareceu nas lnguas germnicas e bem mais tarde tambm no surgimento das neolatinas, enquanto o segundo se conservou nas germnicas (essen, do alemo / eat, do ingls / eten, do holands) e reapareceu nas lnguas ibricas por um dos seus compostos (co-mdere: comer). Por sua evoluo semntica, que o desgarrou do verbo primitivo, o particpio do verbo lere conservou-se nas lnguas germnicas e nas neolatinas, que cito nas formas masculina, feminina e neutra da antiga lngua romana:

    altus, alta, altum (alimentado, alimentada).

    Curiosamente, dado o capricho na evoluo das lnguas e a deriva particular da lngua portuguesa, que a marcha costumeira de suas mudanas, o desapa-recimento do verbo se deve ao resultado final de sua forma:

    ego alo (eu como) > eo ao > eu au > eu ou

    Por esse mesmo motivo de formas homonmicas (ou: 1. forma verbal. 2. con-juno alternativa), o povo lusitano desprezou a primeira pessoa singular do presente do indicativo do verbo ire, comum no mundo romano:

    ego eo > eo eo > eu eu

    Com isso, surgiu a necessidade de se achar um substituto para a forma inde-sejvel por sua enorme homonmia com outra mais usada e imprescindvel pela impossibilidade de a prpria lngua fornecer um equivalente: chama-se supleti-vismo a esse ato. Essa forma conflitante foi substituda por outra bem diferente do verbo vdere [caminhar]:

    ego vado > eo vao > eu vau > eu vou

  • Conceito e origem da Filologia romnica

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    O supletivismo um caso especfico de heteronmia, fato de haver mais de um vocbulo ou palavra com significados iguais ou semelhantes. O caso acima o de um vocbulo que uma forma irregular da palavra ir: o supletivismo uma heteronmia histrica. Mais comum a heteronmia formada por sinnimos, pa-lavras que tm um significado muito prximo e podem ser usadas no mesmo contexto com muita facilidade, como estas:

    belo / lindo / bonito

    Embora seja uma digresso, acrescento que belo se diz da coisa rara e bonito da coisa encontradia, ficando lindo entre elas. Todas indicam, porm, alguma coisa que agrada sob um julgamento pessoal.

    Nenhum desses defeitos os nossos ancestrais encontraram no substantivo de ao desse verbo:

    alimentum [coisa de comer] > alimento.

    De fato, esse substantivo foi um emprstimo tomado diretamente da lngua latina pelos clssicos do sculo XVI, enquanto o verbo alimentar uma forma verncula.

    Se o verbo ire tomou uma forma supletiva na sua passagem para as lnguas romnicas, escapando assim de uma homonmia, ele mesmo produziu outra homonmia curiosa, porque as suas formas de pretrito perfeito do indicativo seriam desastrosas:

    eu i / tu iste / ele iu

    Os lusadas se valeram do perfeito do verbo fgere (1. fugir. 2. andar depressa):

    ego fugi > eo fui > eu fui.

    E assim as mesmas formas servem ao verbo ir e tambm ao verbo ser, que tem ainda radicais variados transmitidos diretamente do latim:

    eu vou / eu ia / eu fui

    eu sou / eu era / eu fui

    Tanto nas lnguas germnicas, mais antigas, quanto nas neolatinas, bem mais recentes, o significado histrico de (bem) alimentado do particpio passado pas-sivo altus, a, um se perdeu junto com o verbo, mas conservou-se um significado que nascera de uma metonmia, que se produz pela troca do significado anterior

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    Conceito e origem da Filologia romnica

    por um significado posterior, que consequncia do ato anterior e tem o nome de metonmia no campo da esttica das lnguas:

    Se come bem (significado anterior),

    Ento cresce bem (significado posterior):

    Portanto, fica alto!

    Ou seja: o significado de alimentar evolui para a consequncia desse ato: ali-mentar-se faz crescer e crescer implica tornar-se cada vez mais alto, que o sig-nificado atual desse antigo particpio de lnguas muito anteriores s de agora.

    Principais autoresA Filologia romnica comea com uma obra de extrema importncia por

    abrir um novo mtodo de estudo, a Grammatik der Romanischen Sprachen (Gra-mtica das Lnguas Romnicas). Foi escrita pelo professor alemo Friedrich Diez (1794-1876) entre 1836 e 1844. Conhecia a lngua portuguesa e chegou a tradu-zir muitos trechos de Os Lusadas, certamente para o curso que deu em 1872 na cidade de Bonn sobre a nossa epopeia. Alm dessa obra capital, deixou-nos em 1863 um livro em que estuda a lngua e a poesia anteclssica da nossa lngua portuguesa: ber die erste portugiesische Kunst- und Hofpoesie (Sobre a primitiva poesia artstica e palaciana portuguesa).

    A Filologia portuguesa teve em Portugal, no seu incio, o trabalho de autores da maior importncia, todos na mesma poca. Um deles foi Augusto Epiphanio da Silva Dias (1841-1916). Ele modernizou o ensino da lngua portuguesa com a sua Gramtica prtica da lngua portuguesa (1870), mas tornou-se ainda mais conhecido com a sua Sintaxe Histrica da Lngua Portuguesa (1915).

    Aniceto dos Reis Gonalves Viana (1840-1914), por sua vez, tem uma impor-tncia capital para o aprimoramento da ortografia da lngua portuguesa, que se desembaraa dos aspectos da velha escrita dos romanos. O latim usava muitas consoantes duplas, mas cada uma delas era pronunciada e, portanto, no trazia dificuldade de escrita para os letrados: accommetter era um desses abusos. A sua Ortografia Nacional, de 1904, tem sido um roteiro desde a sua publicao e res-pondeu pelo primeiro decreto do Governo que a oficializava em 1911 em todo o territrio portugus. Dele e dessa obra nos fala Houaiss (1991, p. 12).

  • Conceito e origem da Filologia romnica

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    Os princpios de seu trabalho eram:

    eliminao dos smbolos de etimologia grega ph, ch (com o som de k), rh, y: pharmacia farmcia, estylo estilo;

    eliminao das consoantes duplas, exceo de rr e ss: chrystallino cristalino;

    eliminao das consoantes mudas: sancto santo; septe sete;

    regularizao da acentuao grfica.

    Seguem outros autores importantes que contriburam para a histria da Filo-logia no mundo:

    Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1933)

    Nascida alem, muda-se para Portugal em virtude de seu casamento. Do seu trabalho nos veio em 1904 a edio crtica do Cancioneiro da Ajuda e Lies de Filo-logia Portuguesa, em edio pstuma de 1946, entre muitos outros livros e artigos.

    Francisco Adolfo Carneiro (1847-1919)

    Deixou os portugueses muito horrorizados com as novas ideias que exps em sua obra de 1868: A Lngua Portuguesa. Com ela divulgou as descobertas filo-lgicas de Friedrich Diez, o fillogo alemo. Foi dos primeiros que estudou a fala crioula e a lngua portuguesa do Brasil. Os assuntos filolgicos mais bem desen-volvidos apareceram no seu livro de maior repercusso: Os Ciganos em Portugal, de 1892. Tipicamente filolgico, estuda a cultura e a lngua desse povo errante.

    Jos Joaquim Nunes (1859-1932)

    Deixou-nos em 1906 a sua Crestomatia Arcaica [crestomatia o mesmo que antologia] e em 1919 o seu Compncio de Gramtica Histrica Portuguesa. H quem o critique por alguns erros deixados em suas obras.

    Jos Leite de Vasconcelos (1858-1934)

    Leite de Vasconcelos o estudioso da lngua portuguesa mais talentoso e suas obras ainda hoje merecem o apreo que granjeou na sua poca. De fato, na sua primeira obra, escrita em 1882, os estudos filolgicos da lngua portuguesa eram todos estrangeiros. Publica entre 1888-1903 as suas Contribuies para a Dialectologia e doutora-se na Universidade de Paris a sua tese Esquisse dUne Dialectologie Portugaise no ano de 1901 e no mesmo ano publica os seus Estu-

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    Conceito e origem da Filologia romnica

    dos de Filologia Mirandesa. Abordou todos os campos da Filologia portuguesa, alm de descobrir e editar textos inditos at a poca. Alm de tudo, editou duas obras pstumas de companheiros: Estudos de Lngua Portuguesa, de Jlio Morei-ra, e Sintaxe Histria da Lngua Portuguesa, de Epiphanio Dias.

    Jlio Moreira (1854-1911)

    O que Jlio Moreira escreveu vem reunido em seus Estudos da Lngua Por-tuguesa, um volume de 1911 e outro, pstumo, de 1918, editado por Leite de Vasconcelos: os principais assuntos abordados so diversas questes de sintaxe histrica e popular

    A Filologia brasileira teve no seu incio o trabalho de nomes da maior relevn-cia social e intelectual todos no incio do sculo passado:

    Antenor de Veras Nascentes (1886-1972)

    Foi com certeza o vulto mais admirado na histria das letras do sculo pas-sado com obras relevantes nas reas da Dialetologia, Etimologia, Filologia e Le-xicografia. Nascido e morto carioca, compreende-se com facilidade o motivo de ele ter escrito uma obra marcante no campo dialetal: O Linguajar Carioca, de 1922. Importa ainda citar a sua obra de 1945: Tesouro da Freseologia Brasileira.

    Joo Batista Ribeiro de Andrade Fernandes (1860-1934)

    Foi o primeiro sergipano a entrar na Academia Brasileira de Letras. Poeta e prosador, tradutor e fillogo, deixou-nos trs gramticas, respectivamente para os ensinos primrio [fundamental], mdio e superior. Representou o Brasil em 1997 no Congresso organizado em Londres para organizar o Catlogo Interna-cional. Como historiador, deu um novo rumo a essa cincia porque, segundo Joaquim Ribeiro, seu filho, a histria brasileira deixou de ser a histria de gover-nadores, vice-reis e imperadores para ser a histria natural do povo brasileiro.

    Joaquim Matoso Cmara Jnior (1904-1970)

    Coloco aqui o seu nome, ainda que tenha feito menos no campo da Filolo-gia, mas muito mais no da Lingustica moderna, que introduziu no Brasil, dei-xando-nos uma srie de livros com suas ideias sobre a lngua portuguesa, alm do ensino universitrio. Cabe-lhe a honra e glria de ter publicado no Brasil o primeiro livro da Lingustica moderna em 1940: os seus Princpios de Lingustica Geral, que trazem para c o Estruturalismo. Por sua importncia, seus livros tm edies sucessivas:

  • Conceito e origem da Filologia romnica

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    Princpios de Lingustica Geral. Rio de Janeiro: Padro, 1977.

    Problemas de Lingustica Descritiva. So Paulo: Vozes, 1997.

    Dicionrio de Lingustica e Gramtica. So Paulo: Vozes, 2001.

    Estrutura da Lngua Portuguesa. So Paulo: Vozes, 2001.

    As edies de seus livros pela Editora Vozes explica-se talvez por ele ter sido o tempo todo professor universitrio na cidade de Petrpolis, tambm sede dessa Editora franciscana. A sua longa permanncia fora do centro intelectual do pas sempre me deixou preocupado com o fato de que um autor e professor de mri-tos incontestveis no tenha sido chamado a uma das Instituies de Ensino da cidade do Rio de Janeiro para onde acorriam os melhores, salvo ele.

    Jlio Csar Ribeiro Vaughan (1845-1890)

    Polmico e escandaloso para a sua poca, alm de abolicionista e lutador por suas convices como jornalista e dono de jornais, Jlio Ribeiro agora mais co-nhecido por seu romance naturalista que por sua gramtica, ainda que a segun-da obra tenha trazido para o Brasil o melhor das ideias da Filologia do seu tempo, apresentando ainda uma lio de lngua mais bem acabada que as anteriores.

    A sua Gramtica Portuguesa, de 1881, segue o mtodo da Filologia proposta pelos autores alemes e merece ser lida ainda hoje. Tem dois romances impor-tantes: O Padre Belchior de Pontes, em dois volumes de 1876 e 1877, e A Carne (1888), naturalista, mas nada imoral e desestruturado como diziam dele as crti-cas da poca.

    Manuel Ida Said Ali (1861-1953)

    Muitos o consideram o maior fillogo brasileiro e a leitura de suas obras me parece confirmar essa opinio, dada principalmente a utilidade do que escreveu que importa no apenas para os estudiosos da lngua, mas para os leitores comuns.

    Entre suas obras notamos:

    Vocabulrio Ortogrfico (1905).

    Dificuldades da Lngua Portuguesa (1908).

    Lexiologia do Portugus Histrico (1921).

    Formao de Palavras e Sintaxe do Portugus Histrico (1923).

    Gramtica Secundria da Lngua Portuguesa (1927).

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    Conceito e origem da Filologia romnica

    Meios de Expresso e Alteraes Semnticas (1930).

    Versificao Portuguesa (1949).

    Acentuao e Versificao Latinas (1957), seu ltimo livro.

    A maioria dos seus livros deixa perceber no apenas o empenho com o lado cien-tfico de suas pesquisas, mas ainda o desejo de aplic-las para a melhoria do ensino.

    Serafim da Silva Neto (1917-1960)

    Dizem que os deuses tm cime de algumas criaturas que espalham magna-nimamente o seu saber por onde andam e por isso os chamam mais cedo: foi o que aconteceu a Serafim da Silva Neto, que escreveu a sua primeira obra sobre o latim vulgar aos 17 anos. Foi diretor da Revista Brasileira de Filologia e deixou-nos as seguintes obras:

    Fontes do Latim Vulgar (escrito aos 17 anos e publicado em 1938).

    Introduo ao Estudo da Lngua Portuguesa no Brasil (1950).

    Histria da Lngua Portuguesa (1952).

    Ensaios de Filologia Portuguesa (1956).

    Introduo ao Estudo da Filologia Portuguesa (1956).

    Manual de Filologia Portuguesa (1957).

    Guia para Estudos Dialectolgicos (1957).

    Bblia Medieval Portuguesa (1958).

    Texto complementar

    Evoluo e desagregao(SILVA NETO, 1957, p. 13-16)

    As lnguas so resultados de complexa evoluo histrica e se caracteri-zam, no tempo e no espao, por um feixe de tendncias que se vo diversa-mente efetuando aqui e alm. O acmulo e a integral realizao delas depen-de de condies sociolgicas, pois, como sabido, a estrutura da sociedade que determina a rapidez ou a lentido das mudanas.

  • Conceito e origem da Filologia romnica

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    A qualquer momento em que se observe uma lngua, cumpre ter em mente as suas faces anteriores. A histria das lnguas romnicas, por exem-plo, se entrosa com a do latim e a deste, atravs do itlico, vai acabar no indo-europeu.

    O latim falado no tempo de nio no o mesmo dos contemporneos de Ccero, nem o desse tempo idntico ao de So Jernimo. O francs de Villon no o de Anatole France. O portugus de onde D. Dinis extraa as suas cantigas de amor e de amigo no o de Cames, nem o deste o mesmo de Herculano.

    Nessa sucesso de frases h que distinguir, no entanto, entre evoluo e desagregao. Naquela no h descontinuidade; nesta h uma ntida cesura, a transio de um estilo social para outro.

    Para bem se compreender essa diferena, convm ajustar-lhe as noes de poca e estilo, to bem formuladas pelo socilogo alemo Theodor Geiger. O estilo social , precisamente, um complexo de caracteres estruturais bsicos, que tornam possvel a afinidade dos diversos setores da vida social. a per-manncia dele que caracteriza uma poca, isto , uma sequncia evolutiva na qual um estilo constitui o fundamento cultural.

    Em caso contrrio, ou seja, quando a mudana social (lingustica) no se resume no desenvolvimento de um estilo, estamos em face da desagregao, da mudana de uma poca para outra. o caso, por exemplo, do latim, que se desagregou nas dez lnguas romnicas. A fase do romano representa uma cesura, uma transio em que os estratos e lingusticos foram desintegra-dos e, em seguida, reintegrados de maneira diferente.

    As lnguas esto, pois, em perptua mudana, embora s o repouso seja facilmente perceptvel. A evoluo explica-se, principalmente, pela descon-tinuidade da transmisso e pela prpria constncia do uso.

    Ao cabo de seu aprendizado, a criana fixa uma lngua que no exata-mente a mesma das pessoas que lhe serviram de modelo. Essa diferena, imperceptvel numa gerao, vai-se acumulando aos poucos.

    Criao e difuso

    O fato mesmo de ser imprescindvel instrumento de comunicao acarre-ta mudana lngua: as palavras mais frequentemente usadas so tambm

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    Conceito e origem da Filologia romnica

    as que mais transformaes sofrem. Grupos de palavras acabam por se aglu-tinar e o desgaste vai provocando reaes.

    Por isso a todo instante surgem inovaes, cujo destino vai depender da estrutura social, ou seja, no caso, da fora com que a lngua, como instituio, se impe aos indivduos.

    A inovao, que parte do indivduo, pode restringir-se a ele e, portanto, abortar ou, pelo contrrio, generalizar-se na comunidade.

    Em todo fato lingustico, h que distinguir, pois, a criao e a coletiviza-o. Dessarte a mudana depende da sucesso e da combinao da iniciati-va individual com a aceitao coletiva.

    E no se diga que o partir do indivduo a inovao lhe confere os poderes sobrenaturais de um deus ex machina: somente subsistem os esforos indivi-duais realizados no sentido das tendncias lingusticas.

    O autor annimo da inovao apenas interpreta a direo geral da lngua, h entre ele e a massa falante profunda e integral intercomunicao. Ele no age como pessoa, mas como rgo da coletividade: isso explica a unificao e generalizao do fenmeno.

    Em todo o caso, a difuso fenmeno lento e complexo, sujeito a mlti-plos e variadssimos fatores, que a podem retardar ou apressar. Schuchardt lembrara, h bastantes anos, que a frequncia de certos grupos fonticos favorece a formao de grupos idnticos: em suma, a frequncia de um pro-cesso fontico acaba por generaliz-lo.

    Atividades1. Em que se distingue a Filologia e a Lingustica?

  • Conceito e origem da Filologia romnica

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    2. Que origem tem a Filologia?

    3. Como surgiu e de que trata a Filologia romnica?

    Dicas de estudoBUENO, Francisco da S. Estudos de Filologia Portuguesa. So Paulo: Saraiva, 1959.

  • Fatores de dialetao do latim vulgar

    A dialetao do latim vulgar um movimento dentro da prpria lngua latina, que continua lngua latina da mesma maneira que os vrios dia-letos da lngua portuguesa do Brasil continuam sendo a mesma lngua portuguesa do Brasil.

    Fatores da evoluo linguageiraComo produto e emprego social, a lngua independe do indivduo a

    que imposta pelas circunstncias do nascimento ou dos azares da vida. Se olharmos para uma comunidade lingustica com um grande nmero de falantes num territrio extenso, vamos perceber que existem modali-dades de lngua que dependem de fatores regionais ou sociais.

    Os fatores regionais produzem variantes de lngua que se chamam dialetos. O dialeto a parte concreta da lngua porque pode ser observa-do e estudado diretamente, enquanto a lngua a soma dos seus dialetos: estudar uma lngua depende da pesquisa direta nos seus dialetos. Assim, a lngua portuguesa uma abstrao que rene as variedades que existem nos oito pases em que ela a lngua oficial. Pensando no mundo, os dois principais dialetos da lngua portuguesa so o dialeto brasileiro da lngua portuguesa e o dialeto portugus da lngua portuguesa. Impor que o por-tugus de Portugal seja uma lngua e o portugus do Brasil somente um dialeto, me parece que seria o absurdo de sustentar que um pas dono de uma lngua e qualquer outro pas tem apenas um dialeto dessa lngua.

    As comunidades lingusticas jamais so perfeitamente homogneas. Quanto maior for a extenso territorial ou quanto mais acentuadas as di-vises sociais, maiores so as possibilidades de dialetao. A dialetao, quer territorial ou social, puro fruto das barreiras postas comunicao e identificao entre as pessoas: enfim, interao. Tudo o que diminua ou cerceie a interao entre vizinhos fator de dialetao: insegurana social, dificuldade de deslocamento e crises religiosas, polticas ou econmicas, fatores que definem o conflito interpessoal dentro de uma comunidade. Alm disso, a existncia de lnguas diversas dentro do mesmo territrio

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    Fatores de dialetao do latim vulgar

    pode levar com facilidade a um intercmbio de palavras e concorrer para o desa-parecimento de uma delas, deixando a vencedora com profundos desgastes.

    Ao contrrio, o simples isolamento, social ou fsico, pode ocorrer dentro de uma comunidade coesa e pacfica, provocando a manuteno de uma forma lingustica que se tornou arcaica e desaparecida em outros ambientes. Esse fato tem um exemplo brasileiro, que eu mesmo presenciei em 1955 quando visitei Iguape e Cananeia, cidades do litoral paulista, at pouco antes alcanadas ex-clusivamente por navio. Essa dificuldade de intercmbio humano manteve um sabor nitidamente arcaico na lngua portuguesa daquelas cidades: nelas ouvi o verbo ascuitar, que aparece nos trovadores do sculo XIII e pouco depois cedeu o lugar ao moderno escutar. A situao deve estar bem mudada com a BR 116, alm da estrada at l, e principalmente com a mdia que divulga as falas mais comuns da nossa terra, mais precisamente o dialeto carioca e o paulista.

    Conceito de lngua e dialetoNo h lngua para l dos dialetos. A lngua o conjunto de seus dialetos.

    Cada lngua de cultura tem um ou mais dialetos de maior prestgio, pelos quais os demais se orientam. Essa, porm, a realidade da Cincia da Linguagem, porque o dialeto mais forte comumente se considera a lngua.

    Evidentemente, necessrio definir o que um dialeto. Dialeto cada uma das variantes de uma lngua, sempre que for possvel dar regras para se passar da lngua para a forma dialetal. No caso de ser impossvel essa transio, temos ou duas lnguas ou dois dialetos da mesma lngua. Se ficarmos com a lngua portuguesa do Brasil, doravante chamada lngua, aparecem-nos vrios dialetos, mas nos contentemos com alguns dos principais e suficientemente distintos: o carioca, o gacho e o nordestino. Cada um deles tem marcadamente uma pro-nncia prpria, uma seleo diversa de palavras e uma sintaxe nem sempre con-dizente com a da lngua. A pronncia de cada um deles bem conhecida: as vogais tonas abertas do nordestino (a glriosa terra nrdestina), os chiados do carioca (doich cpuj dji litchi quntchi) e as vogais mdias finais distintas do gacho (doiss cpoz de lit qunt), me limito a citar o que eu mesmo ouvi: quem maante aborrece na lngua, mas faz tudo devagar no nordestino, quem bombeiro apaga o fogo na lngua e mexe com canos e torneiras no carioca e quem est amuado precisa acalmar-se na lngua e descansar no gacho [...]. Esse terceiro aconteceu comigo quando o zelador me perguntou noite depois de onze horas de curso para uma turma numerosa de colegas professores:

  • Fatores de dialetao do latim vulgar

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    O senhor no est amuado?

    Eu respondi, meio espantado com a pergunta:

    Como eu poderia estar amuado se todos foram to amveis comigo, prin-cipalmente voc?

    E ele:

    No, professor! Estou perguntando se no ests cansado!

    bom lembrar que o interior do Estado de So Paulo possui um dialeto pr-prio, falado tambm pelos professores de Lngua Portuguesa.

    O vocabulrio diverso identifica o dialeto, mas no o define como tal, por que a palavra dialetal pertence tambm lngua. O crescimento espantoso da mdia vai aos poucos irmanando ou corrompendo sabe Deus! as formas dia-letais. Aqui em Curitiba, onde agora escrevo este apanhado de ideias, ela matou o dol que eu chupava nos dias quentes, obrigando-me a contentar-me com um picol, mas tenho saudade!

    Os fatores sociais produzem variantes de lngua que se chamam socioletos. Agora so as camadas da sociedade que definem essas variantes, no mais os locais e as regies da lngua. A classe mdia tem um socioleto notadamente pa-recido no pas inteiro. A maioria dos moradores da periferia das grandes cidades tem outro socioleto, que os professores de lngua distinguem quando lecionam em escolas centrais e distantes.

    O ruim da escola que os professores todos, a comear com os de lngua, ouvem a fala dialetal ou a socioletal e logo repreendem o aluno:

    No fale assim que est errado!

    As formas todas de uma lngua so igualmente boas, perfeitas e legtimas, de-safortunamente nunca com o mesmo prestgio. O aluno no deve entrar na escola para largar a sua forma de lngua, mas apenas para acrescentar-lhe outra, mais ampla porque nacional, nem local nem mesmo regional. Como poderia ser errada a forma que as crianas descobrem na fala da sua famlia e da sua comunidade? por isso que desde o comeo do meu magistrio, eu aconselho os meus colegas a falarem em lngua de escola e em lngua de casa, cada uma delas certa e boa no seu lugar e errada e ruim no outro: nenhum erro de lngua, mas erro de lugar: exatamente como uma roupa errada e ruim na igreja e certa e boa na praia. Eles aceitam que a lngua de casa errada na escola, mas nunca que a da escola seja errada na casa dos seus alunos... o que se chama discriminao lingustica!

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    Fatores de dialetao do latim vulgar

    Apesar de faltar com a verdade da cincia, mas s para simplificar a com-preenso, as lnguas so como seres vivos que nascem, crescem, envelhecem e morrem. Eventualmente renascem, como o hebraico no Estado de Israel. As lnguas crescem, porque cada nova gerao concorre com pequenssimos deta-lhes que modificam a lngua do dia-a-dia. Essas mudanas podem acumular-se e todos passam a perceber que a lngua evoluiu. quase impossvel dizer por que o tempo afeta o estado de uma lngua, mas muito fcil perceber essas novida-des e dar a eles um nome, que no explica a razo de aparecerem, mas oferecem um meio de analisar a marcha desse crescimento que se afasta do passado e busca um novo futuro: so os metaplasmos e as figuras de estilo.

    Esse crescimento favorecido pelo fato de que a lngua falada se molda s cir-cunstncias da conversa: h uma lngua de elite para o grupo dos letrados, impro-priamente chamada norma culta, uma lngua de povo para a maioria dos falantes, impropriamente chamada lngua popular, portanto inculta, quando se pensa na pri-meira... Alm disso, ocorrem modalidades, como a fala familiar ou a fala escolar.

    Variao fonolgica: metaplasmosMetaplasmo o nome genrico de toda mudana fontica que a lngua sofre

    enquanto evolui com a passagem do tempo: o metaplasmo nomeia, mas no explica o fenmeno. O curioso que as variantes dialetais e socioletais se dife-renciem por esses mesmos desvios. E ainda mais curioso que tambm a lingua-gem das crianas bem pequenininhas venha cheia desses extravios lingusticos.

    Os metaplasmos distinguem as possveis mudanas que, ao longo do tempo, ocorrem com os sons da fala de uma lngua sujeita a fatores que apressam as transformaes lingusticas.

    H quatro possibilidades. O sinal de maior (>) indica a passagem de uma forma antiga para outra mais nova: muda para. As principais seguem:

    Acrscimo de som:

    no incio da palavra / prtese: schola > escola.

    no meio da palavra / epntese: brata > barata.

    no fim da palavra / paragoge: ante > antes.

    Supresso (subtrao) de som:

    no incio da palavra / afrese: apotheca > abodega > bodega.

  • Fatores de dialetao do latim vulgar

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    no meio da palavra / sncope: pulica > pulga.

    no fim da palavra / apcope: amare > amar

    Deslocamento [transposio] de som:

    permuta de sons / mettese: [genuculu] > geolho > joelho.

    deslocamento de som / hiprtese: capio > caibo.

    Troca condicionada: [transformao]:

    assimilao [duas diferenas se igualam]:

    total: ipsu > isso.

    parcial: auru > ouro.

    Progressiva [a primeira muda a segunda]: nostu > nosso.

    Regressiva [a segunda muda a primeira]: calente > caente > queente

    dissimilao [duas igualdades se distinguem]:

    total: aratru > aradro > arado.

    parcial: liliu > lrio.

    Progressiva [a primeira muda a segunda]: matrastra > madrasta.

    Regressiva [a segunda muda a primeira]: posponto > pesponto.

    Outros fenmenos:

    crase [unifica vogais iguais seguidas]

    sedere [estar sentado] > seere > seer > ser [estar sem limites]

    ditongao [duas vogais na mesma slaba]:

    [tela] > tea > teia.

    haplologia [queda de uma de duas slabas iguais ou parecidas]

    [perdita] > prdeda > perda.

    metafonia [troca de vogais na mesma slaba]:

    rcapere > recpere >[receber]

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    Fatores de dialetao do latim vulgar

    Figuras de estiloH duas figuras de estilo que permitem enriquecer a linguagem momenta-

    neamente, mas se tornam meios de evoluo quando todos se esquecem do sentido primitivo e passam a usar a palavra no antigo sentido de puro embe-lezamento do texto. Ambas dependem de uma sequncia em que a palavra esquerda depende da palavra direita. Em princpio, cada uma dessas palavras pode assumir num texto o significado da outra, sendo muito mais comum a pri-meira pegar o significado da segunda, produzindo uma metonmia, e bem mais raro a segunda tomar o significado da primeira, permitindo uma sindoque. A mesma inferncia pode produzir dois resultados distintos:

    Se h sol, h calor.

    O sol me faz mal [ o calor]: metonmia.

    O calor acaba de desaparecer no horizonte [ o sol]: sindoque.

    O significado primitivo da palavra sinistro era esquerdo: por metonmia passou a indicar o que desastroso e o prprio desastre... Os dicionrios conti-nuam apresentando o significado antigo, mas quem se serve ainda desse signi-ficado arcaico?

    Havendo duas inferncias, essa dupla acarreta um resultado, que uma me-tfora se for um embelezamento ou que uma analogia se eliminar alguma irre-gularidade da lngua:

    MetforaSe flor, linda.

    Se menina, linda.

    A menina uma florA flor uma menina.

    [comum][raro]

    AnalogiaSe lamber, faz eu lambo.

    saber, faz eu sabo.

    Se partir, fica parti.

    Vir, fica vi.

    Se rubi, fica rubim.

    vi [de vir], fica vim.

    Portanto, pode vim...

  • Fatores de dialetao do latim vulgar

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    A metfora pode produzir significados permanentes, mas fica sempre sujeita ao tipo de relacionamento das inferncias. O caso mais curioso da lngua portu-guesa encontra-se com o emprego metafrico do verbo curtir:

    At os anos 1960 curtia-se uma mgoa, uma desiluso amorosa, sempre alguma coisa negativa e assim nada desejvel. O motivo era simples: interessa-va ento o processo cansativo e doloroso de curtir o couro que se raspava e se amaciava nessa tarefa sofria o trabalhador e o couro. Agora, curte-se um jantar luz de velas ou novas amizades. De novo, um motivo simples: interessa agora a roupa linda e cara que vai ser invejada e admirada no prximo encontro.

    A lngua galego-portuguesa tinha muitos verbos anmalos com o perfeito irregular nos primeiros sculos do milnio passado, aproximadamente entre os anos 1000 e 1500.

    Eu condusse [conduzi] o rapaz casa dos avs e o condugo [conduzo] tambm agora. E o hei [tenho] conduto [conduzido] desde muito tempo.

    As crianas conseguiram eliminar a maioria deles, restando somente 17 deles: caber [coube / coube], dar [dei / deu], dizer [disse / disse], estar [estive / esteve], fazer [fiz / fez], haver [houve / houve], ir [fui / foi], poder [pude / pde], pr [pus / ps], prazer [prouve / prouve], querer [quis / quis], saber [soube / soube], ser [fui / foi], ter [tive / teve], trazer [trouxe / trouxe], ver [vi / viu], vir [vim / veio].

    Baste-nos um exemplo de um dos verbos regularizados:

    Eu aro de febre [ardo] / eu arse de febre [ardi] / el arso de febre [ele ardeu].

    Entretanto, elas no conseguiram regularizar a terceira pessoa do singular de um dos verbos anmalos: eu vim / ele veio...

    Todos esses verbos foram regularizados por analogia. Foi esse mesmo me-canismo de lngua que deu uma forma verbal nova aos verbos regulares da fala brasileira dialetal e socioletal:

    Se hoje ns damos um passeio e ontem tambm demos,

    ento hoje ns andamos e ontem ns tambm andemos por l...

    Circunstncias da evoluoPode-se dizer calmamente que o ser humano a lngua que ele fala. A lngua,

    contudo, um domnio comum, ainda que as inovaes costumem aparecer de

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    Fatores de dialetao do latim vulgar

    uma fonte individual que encontra imitadores imediatos sempre que vai ao en-contro da deriva da lngua, ou seja do desnvel e da ladeira onde quase nunca se pode parar. Um caso curioso o do fillogo brasileiro Antnio de Castro Lopes (1827-1901) que em livro de 1889 props uma srie de neologismos para subs-titurem emprstimos principalmente da lngua francesa: apenas dois deles cardpio e convescote aparecem nos dicionrios, tambm na quarta edio do Dicionrio Jnior da Lngua Portuguesa, ainda que s o primeiro tenha amplo em-prego, enquanto o segundo pouco conhecido e nada usado.

    Entretanto, existem dois tipos de evoluo: a espontnea e a motivada. Devo acrescentar que toda evoluo inconsciente, mas existem aquelas que nunca podem ser explicadas e outras que nos deixam adivinhar a razo de aparecerem.

    E aparece uma pergunta inicial: Por que as lnguas mudam?

    A resposta fcil. Sempre que uma comunidade de lngua ocupa um territ-rio muito grande ou existe uma grande diferena entre os seus grupos sociais, cada um desses grupos da comunidade vai construindo pouco a pouco um falar cada vez mais diferente do que usam os vizinhos.

    Por outro lado, se vieram pessoas que falam outra lngua e ficarem morando na nova terra, todas elas acabam aprendendo a lngua do lugar, porque preci-sam dela, e a sua lngua que veio com eles passa a ser uma lngua de casa. Se o nmero desses recm-chegados for muito grande, vai haver uma troca de pala-vras e de aspectos gramaticais. Em 1947 na cidade do Rio Negro: morando no seminrio franciscano, eu tinha muitos colegas descendentes de alemes. Resul-tado: eu no engraxava os meus sapatos: chimirava eles [ o menino que fala].

    Um dos aspectos da modalidade de lngua paranaense vem com certeza do grande nmero de poloneses. A lngua deles tem s um pronome reflexivo e por isso, quando passaram a falar portugus, usaram a sintaxe da sua lngua e a introduziram na nossa, agora deles tambm:

    eu se lavo / ns se lavamos...

    Fatores de retardamento da evoluoEra este o aspecto da lngua portuguesa arcaica em 1189, ano desta cantiga

    trovadoresca, transcrita no Cancioneiro da Ajuda e dedicada pelo trovador Paio

  • Fatores de dialetao do latim vulgar

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    Soares de Taveirs a Dona Maria Pais Ribeiro, a Ribeirinha, amante do rei Dom Sancho I. o mais antigo documento da nossa lngua [branca de rosto e verme-lha de roupa]:

    No mundo non me sei parelha,

    mentre me for como me vay

    ca j moiro por vos e ay!

    mia senhor branca e vermelha

    queredes que vos retraya

    quando vus eu vi en saya!

    Mau dia me levantei,

    que vus enton non vi fea!

    E, mia senhor, des aquel di ay!

    me foi a mi muyn mal,

    e vos, filha de don Paay

    Moniz, e ben vus semelha

    daver eu por vos guarvaya

    pois eu, mia senhor, d alfaya

    nunca de vos ouve nen ei

    valia dua correa.

    No mundo no me sei par [estou sem par]

    enquanto me for como me est indo

    pois j morro por vs e ai!

    minha senhora branca e vermelha,

    quereis que eu vos afaste [de mim]

    quando eu vos vi numa saia!

    Em mau dia me levantei

    j que ento eu no vos vi feia!

    E, minha senhora, desde aquele dia, ai!

    tudo esteve muito ruim para mim,

    e vs, filha de Dom Paio

    Monis, que bem vos parea

    eu ter de vs uma recompensa,

    pois eu, minha senhora, para roupa

    nunca tive de vs nem tenho

    o valor de uma correia.

    Contra essas modalidades de lngua em cinco sculos aparece agora uma nica modalidade por mais cinco sculos, bastando-nos ver este soneto de Cames (1524-1580), da segunda metade do sculo XVI, que transcrevo na or-tografia de agora:

    Sete anos de pastor Jac servia

    Labo, pai de Raquel, serrana bela,

    Mas no servia ao pai, servia a ela,

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    Fatores de dialetao do latim vulgar

    Que a ela s por prmio pretendia.

    Os dias, na esperana de um s dia,

    Passava, contentando-se com v-la;

    Porm o pai usando de cautela,

    Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

    Vendo o triste pastor que com enganos

    Assim lhe era negada a sua pastora,

    Como se a no tivera merecida,

    Comea de servir outros sete anos,

    Dizendo: Mais servira, se no fora

    Para to longo amor to curta a vida!

    (apud MOISS, 1987, p. 70)

    As formas do mais-que-perfeito [tivera / servira / fora] resistiram at meados do sculo passado, mas agora todos diriam: tivesse / serviria / fosse.

    Todo leitor de hoje veria muito pouca coisa estranha nesse soneto velho de 450 anos, modernizada por Moiss: assi e pera... Para tanto tempo no nada! E vem com isso a pergunta inevitvel:

    O que explicaria tanta mudana num igual perodo de tempo, enquanto nada disso aconteceu nestes sculos posteriores?

    O fator mais importante para a manuteno de um equilbrio lingustico seja a tranquilidade social quando o governo central, forte e aceito pelo povo, conse-gue tornar a vida segura para todos. Alm disso, ajuda imensamente a existncia de uma s lngua com seus dialetos ocupando o mesmo territrio.

    No momento presente, a rpida evoluo de uma lngua ou a transforma-o de um dialeto em lngua parecem impossveis por serem grandes os fatores mantenedores da forma atual:

    Um governo central atuante.

    Uma poltica coerente em que os governantes se sucedam de maneira pa- cfica sem perseguio e derramamento de sangue.

  • Fatores de dialetao do latim vulgar

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    Um sistema criterioso de distribuio da justia que possa levar o cidado a confiar na lei e a sentir-se protegido contra o crime.

    A educao garantida pelos poderes constitudos.

    Os meios de comunicao que levam a variedade formal da lngua a todos os cantos do territrio.

    A possibilidade de ascenso social que permite a todos a possibilidade de chegar ao ponto a que a sua capacidade o pode levar.

    Fatores de aceleramento da evoluoDiferentemente dos ltimos quinhentos anos da nossa Histria, os mil anos

    anteriores viram a derrocada do Imprio Romano em 476 d.C. em todas as terras conquistadas ao longo dos sculos anteriores, assistiram chegada dos mouros em 711 d.C., entristeceram-se com a destruio da retaguarda do exrcito de Carlos Magno pelos montanheses bascos no desfiladeiro de Roncesvales em 778 e tiveram de suportar os mouros na Espanha at 1492 e em Portugal at 1249 quando o sul de Portugal foi reconquistado por Afonso III (1210-1279). As guer-ras com a Espanha terminaram em 14 de agosto de 1385 com a vitria portu-guesa em Aljubarrota sob o comando de Nuno lvares Pereira (1360-1431), que escolheu o campo de luta e derrotou os vinte mil soldados de Castelo com os sete mil, que o rei Dom Joo I (1357-1433) conseguiu recrutar.

    Assim, aceleram as mudanas lingusticas com a presena de mais de uma lngua no mesmo territrio ou a luta entre povos de lnguas diferentes: portugue-ses e castelhanos e portugueses e mouros que facilitam o contato entre as lnguas. Na histria das lnguas romnicas, a lngua invasora venceu, podia ter perdido ou continuarem vencedores e vencidos cada um com a sua lngua, havendo eventu-ais intercmbios. Exemplos dessa convivncia linguageira temos na Sua (alemo, francs, italiano e rtico) e no Canad (francs e ingls), alm de muitos outros.

    Da mesma forma, a intranquilidade poltica, motivada por lutas internas ou externas, agrava o aparecimento de mudanas, porque dificulta o acesso edu-cao e aumenta a pobreza.

    E deve-se ainda levar em conta a corrupo dos dirigentes: beneficia uma mi-noria e dificulta a vida da maioria. At os fins da Repblica Romana, os governan-tes eram acusados de improbidade: o exemplo so os sete discursos de Marcus Tullius Cicero (106-43 a.C.) contra Caius Licinius Verres (120-43 a.C.), governador da provncia da Siclia.

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    Fatores de dialetao do latim vulgar

    Disperso do latim vulgar e sua dialetaoDuas grandes modalidades de lngua tinham o povo romano: a variante de

    elite [sermo classicus] e a variante de povo [sermo vulgaris]. A primeira resistiu por muitos sculos aps o desenvolvimento das lnguas romnicas: apenas em 1290 a lngua portuguesa se tornou oficial, desbancando a latina com a deciso de rei Dom Dinis (1261-1325).

    De certo modo pode-se afirmar que a variante clssica da lngua latina persis-te at hoje com um reduzido contingente de falantes: lngua oficial de um pas chamado Vaticano. Todo documento vindo do Vaticano tem um original latino altamente parecido com os duzentos anos que cercam a fase de maior prestgio da literatura latina entre 100 anos a.C. e 100 anos d.C.

    O Imprio Romano era enorme desde antes da nossa Era Crist: todas as terras banhadas pelo Mediterrneo, que era o Mare Nostrum [Nosso Mar], e todas as terras abaixo do Rio Reno.

    Em todas as provncias romanas, o latim era a lngua oficial, coexistindo sempre com a lngua local e provocando um bilinguismo de interesse recproco entre vencedores e vencidos.

    Desde 409 at a chegada dos rabes s terras ibricas em 711, ocorriam os atropelos causados pelas tribos germnicas: anglos, borgndios, francos, godos, lombardos, ostrogodos, saxes e vndalos foram empurrados pelos hunos, che-fiados por tila (406-453), para o interior das provncias romanas, provocando o aparecimento de um trilinguismo.

    A desorganizao poltica, causada por essas invases de brbaros, enfraque-ceu o poder romano e permitiu o uso sempre crescente de um latim popular, sujei-to a muita influncia das lnguas locais na pronncia, no vocabulrio e na sintaxe.

    Alm disso, cada povo germnico fundou um reino distinto nos lugares onde vencia e ficou bastante truncado o relacionamento entre esses diversos reinos recm-fundados: entregues a si mesmos, cada um teve uma deriva diferente, que corresponde a um declive que leva as coisas sempre na mesma direo. Foi esse declive que pouco a pouco transformaria os dialetos do latim vulgar, formas da mesma lngua, em lnguas diversas, ainda que aparentadas entre si.

    O latim vulgar, que era coeso no tempo do livre trnsito entre as vrias provin-cias romanas, viu-se de repente separado de cada uma das outras e ao mesmo tempo sujeito a lnguas diferentes das vrias naes germnicas: o resultado foi uma diferenciao lingustica cada vez maior.

  • Fatores de dialetao do latim vulgar

    41

    Esse distanciamento de lngua fica ampliado ainda pelo distanciamento das terras ocupadas: Portugal e Galiza ficam lado a lado e dividem por alguns s-culos a mesma lngua, Portugal e Castela tm um afastamento maior e lnguas tambm um pouco mais afastadas, Portugal e Frana ficam ainda mais longe e, portanto, com lnguas parecidas, mas bem menos, enquanto Portugal e Rom-nia tm lnguas bem distintas por estarem a uma distncia muito maior.

    Infelizmente, a maioria dos fillogos olha o latim vulgar como a lngua do povo menos instrudo e coloca na mesma panela tambm um latim que se pode chamar de familiar ou de conversa: no vulgar, porque mantm todos os casos, todas as formas verbais e se distingue fundamentalmente por usar a ordem direta de sujeito, verbo e objeto.

    Que a autora a seguir conhecia o latim clssico se reconhece por ela se ter trado bem no comeo:

    In eo ergo loco [nesse portanto lugar]...

    A esse latim familiar pertence o texto que segue, em que uma das palavras deixa de ser traduzida por Lima Coutinho: penso que seja a palavra ascetes [asceta], numa variante popular.

    Texto complementar

    III A Peregrinatio(COUTINHO, 1976, p. 38-40)

    [...]

    55. Para o conhecimento do latim vulgar hispnico tem esta obra parti-cular importncia. Nela conta a monja Egria ou Etria, natural da Pennsula Ibrica, a histria da sua visita Terra Santa. A princpio, foi atribuda don-zela aquitana Slvia, irm de Rufino, ministro do rei Arcdio. Est hoje, porm, demonstrado que a sua verdadeira autora a monja acima mencionada. Foi redigida, segundo opinio provvel, entre os anos 381 e 388. Vamos trans-crever apenas um trecho, para que se veja o tom popular em que foi escrita, revelador da pouca ilustrao da freira:

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    Fatores de dialetao do latim vulgar

    Texto In eo ergo loco est nunc ecclesia non grandis, quoniam et ipse lcus, id est

    summitas montis, non satis grandis est: quae tamen ecclesia habet de se gratiam grandem. Cum ergo, iubente Deo, persubissemus in ipsa simmitate, et peruenis-semus ad hostium ipsius ecclesiae, ecce et occurrit presbyter ueniens de mo-nasterio suo, qui ipsi ecclesiae deputabatur, senex integer et monachus a prima uita, et ut hic dicunt ascitis, et quid plura? qualis dignus est esse in eo loco.

    TraduoNesse lugar h, pois, agora uma igreja no grande, porque tambm o

    mesmo lugar, isto , o cimo do monte no muito grande; contudo, a qual igreja tem por si grande renome. Como, pois, ordenando Deus, subssemos a esse cimo e chegssemos porta da igreja, eis que corre ao nosso encontro um presbtero vindo do seu mosteiro, que estava testa da mesma igreja, velho virtuoso e monge desde cedo, como aqui dizem ascitis [asceta], e que mais? O qual [ele] digno de estar nesse lugar.

    IV As Glosas 56. So as glosas outro meio auxiliar excelente para o conhecimento da

    lexicografia do latim. Foram feitas com o objetivo de facilitar a leitura dos autores latinos. As palavras desconhecidas aparecem a acompanhadas das formas correspondentes semnticas mais familiares, s vezes tomadas lngua viva da poca. Da a grande importncia que tm para a elucidao de certos problemas lexicogrficos das lnguas romnicas. O maior reposit-rio dessas glosas o Corpus Glossariorum Latinorum de G. Loewe e G. Goetz, editado em Leipzig (1889-1923) e o Glossaria latina, publicado por W. M. Lin-dsay, por ordem da Academia Britnica (1926-1931).

    So particularmente interessantes para o estudo das lnguas neolatinas as glosas de Reichenau, assim chamadas por ter sido o manuscrito, hoje em Carlsruhe, muito tempo conservado na abadia de Reichenau. Consta este glossrio de duas partes: uma apensa ao texto da Bblia e outra, sem refern-cia a nenhum texto especial, onde as glosas esto dispostas em ordem alfa-btica. De importncia tambm so as glosas de Cssel, assim denominadas por terem pertencido biblioteca de Cssel. As palavras acham-se a dispos-

  • Fatores de dialetao do latim vulgar

    43

    tas segundo as coisas ou objetos a que se referem: partes do corpo humano, animais domsticos, casa e seus pertences, vestimentas, utenslios etc.

    Damos aqui uma mostra das glosas de Reichenau:

    1. pulchra: bella

    2. mares: masculi

    3. optimum: valde bonum

    4. anus: vetulae

    5. semel: una vice

    6. favillam: scintillam

    7. femur: coxa

    8. sevit: seminavit

    9. emit: comparavit

    10. flare: suflare

    11. bellantes: pugnantes

    12. crura: tbia

    13. onager: asinus selvaticus

    14. iecore: ficato

    15. canere: cantare

    16. fletus: planctus

    Atividades1. Que motivos so essenciais para explicar por que as lnguas se mudam com

    o passar do tempo?

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    Fatores de dialetao do latim vulgar

    2. Em que se distingue a lngua e o dialeto?

  • Fatores de dialetao do latim vulgar

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    3. O que so metaplasmos?

    4. Por que a lngua latina se transformou em vrias outras lnguas num espao de pouco mais que 500 anos?

    Dicas de estudoCABRAL, Leonor Scliar. Introduo Lingustica. Porto Alegre: Globo, 1979.

  • Lnguas romnicas contemporneas

    Processo e funo das lnguasQuem quer construir uma casa pega um tijolo e o junta a outros para

    fazer uma parede, pega uma parede e a junta a outras para fazer um apo-sento, pega um aposento e o junta a outros para fazer um andar e por fim pega um andar e o junta a outros para terminar a casa.

    A casa e o terreno constituem a unidade maior que se junta a outras para fazer a quadra, que se junta a outras para fazer o bairro, que se junta a outros para fazer o municpio, que se junta a outros para fazer o estado, que por fim se junta a outros para fazer o pas, que a nossa terra brasileira.

    Da mesma forma, quem quer construir uma mensagem pega um mor-fema [vale um tijolo] e o junta a outros para fazer um vocbulo, pega um vocbulo [vale uma parede] e o junta a outros para fazer uma locuo, pega uma locuo [vale um aposento] e a junta a outras para fazer uma orao e por fim pega uma orao [vale um andar] e a junta a outras para terminar a menor mensagem [vale uma casa], que o perodo. O morfema feito de sons. Ou seja, as lnguas so fceis de aprender porque tm uma regra bsica que se repete da mesma maneira medida que se vai cons-truindo a frase que se forma na nossa mente: tambm como uma rede, que comea e termina da mesma maneira.

    Diferentemente da casa, que feita sobre um terreno, a mensagem feita dentro da nossa cabea e atirada para as orelhas do nosso ouvinte. Da mesma forma, porm, que a casa e o terreno, o perodo e a mensagem podem estender-se entre um rpido cumprimento e um longo discurso de algumas horas como os do cubano Fidel Castro ou do venezuelano Hugo Chvez. Por outro lado, assim como a casa e o terreno se acham dentro de um pas, o dilogo e a mensagem se acham dentro da lngua e da respectiva comunidade.

    A lngua o melhor meio para se conseguir uma troca de interesses duplamente vantajosa, porque esta quase sempre antecedida de uma troca de mensagens: a primeira uma troca efetiva enquanto a segunda

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    Lnguas romnicas contemporneas

    uma troca simblica, ambas trocas interpessoais. O fato real que a prpria troca intrapessoal de certa forma tambm interpessoal no sentido de que a mesma pessoa assume os papis de falante e de ouvinte.

    Por ser esse motivo da finalidade das lnguas, verifica-se com facilidade que o intercmbio dentro do mesmo territrio lingustico sempre muito maior que entre dois de lnguas diversas, decrescendo cada vez mais o intercmbio, quanto mais diferentes se tornam as lnguas envolvidas.

    Excetuando a lngua italiana, que de certa maneira foi fixada por Dante Ali-ghieri (1265-1321) com sua Divina Comdia e por Petrarca (1304-1374) com seus sonetos e com a descoberta e cpia de manuscritos antigos. As lnguas rom-nicas chegaram, com alguns avanos ou retardos, maturidade com a Renas-cena, que comea em Roma no incio do sculo XVI e ganha pouco a pouco os pases ocidentais da Europa.

    Lngua e criaes romnicasA criao romnica a maneira de as novas lnguas lidarem com as formas

    latinas que desapareciam do uso por terem uma forma que colidia com outra dos romanos ou por serem irregulares e complicadas na lngua latina, havendo assim uma evoluo motivada. Pode ser tambm uma forma completamente nova nas lnguas romnicas: sem nunca ter existido no latim, portanto.

    Criao dos futurosCada forma verbal uma parede, que o vocbulo, e se faz com os tijolos, que

    so os morfemas. Mais vivos que elas e eles, os vocbulos e os morfemas podem alterar-se ao longo do tempo sem perderem, no entanto, a sua flexibilidade.

    O latim tinha uma forma verbal do verbo mutare que mudou apenas o seu radical na sua evoluo para a lngua portuguesa, mas em nada a terminao:

    tu mutas > tu mudas

    Pode tambm mudar s a terminao:

    vos cantatis > vs cantadis > cantades > cantaes > cantais

    E tambm as duas, claro:

  • Lnguas romnicas contemporneas

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    dederunt > dederon > deerom > derom > deram

    A conjugao dos verbos latinos no veio inteira para as lnguas romnicas. Os buracos abertos na conjugao tiveram de ser preenchidos por formas novas. O exemplo mais claro a formao do futuro, perdido na evoluo das lnguas romnicas que se distanciavam cada vez mais do latim [formas na terceira pessoa do singular]:

    credere > credere habet > credere ai > credere a

    credere habebat > crdere abeba > credere ebebe > credere ebbe

    E aparecem as formas italianas:

    creder [ele crer]

    crederebbe [ele creria]

    Os futuros da lngua portuguesa continuam sendo formas duplas, porque se trata apenas da escrita junta, quando a verdade que so palavras distintas, comprovadas pela possibilidade da mesclise:

    amar-te-ei.

    amar-te-ia.

    So, portanto, formas compostas, exatamente como: tenho amado, tinha amado ou tiver amado.

    O desaparecimento do futuro foi causado por vrios fatores:

    A homonmia na mesma conjugao. Os verbos da terceira conjugao, como scrbere, teriam formas que o romance deixou iguais na fala: scribes / scribis.

    A homonmia entre conjugaes: ames [que tu ames] / scribes [tu escre-vers].

    A redundncia de formas: amabo [amarei] / scribam [escreverei].

    A concorrncia do presente do indicativo, muito mais simples.

    Parece-me, entretanto, que o futuro deva ser a mais frgil das formas verbais pelo menos por dois motivos.

    Um deles a existncia de verbos que por si s j indicam um futuro:

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    Lnguas romnicas contemporneas

    Amanh eu vou ao Rio.

    E o mais firme que grande parte do povo brasileiro j produziu uma for- ma perifrstica para esse tempo:

    Se o filme bom, amanh eu vou ir ao cinema [perdo: eu v i].

    O ensino ajuda pouco porque os nomes mais atrapalham que ajudam:

    O futuro do pretrito nada tem de passado, mas de futuro negativo: se eu tivesse tempo, eu iria significa efetivamente apenas que eu no tenho tempo e no irei...

    O futuro do subjuntivo um nome que nada informa, porque tem o sig- nificado de um futuro anterior e lhe caberia melhor o nome de futuro de pretrito: se ele vier, eu lhe pago significa que a vinda deve ser um passado para essa pessoa receber o pagamento.

    Essa a forma que a fala popular mais regulariza por pertencer a um res- trito nmero de verbos anmalos que tem o perfeito irregular: se ele vir [vier] e eu ver [vir] o que ele tem, a eu compro [comprarei].

    Aparecimento dos artigosAs lnguas romnicas desenvolveram um artigo definido e indefinido, que

    nada mais so que demonstrativos impessoais.

    Para isso tomaram o demonstrativo de terceira pessoa, que produziu formas diferentes:

    ille / illa [aquele / aquela]

    Houve, portanto, mudana de significado, porque os artigos passaram a dar a ideia de conhecimento prvio, sem nenhuma ligao com o significado locativo anterior:

    Lngua castelhana: el rey / la reina.

    Lngua francesa: le roi / la reine.

    Lngua italiana: il re / la regina.

    Lngua portuguesa: o rei / a rainha.

  • Lnguas romnicas contemporneas

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    Lngua romena: [rege] regele / a regina.

    A curiosidade vem do romeno, que fica na contra-mo. O masculino um sufixo do substantivo ou uma palavra encltica a ele, enquanto o feminino uma palavra comum.

    Evoluo dos particpiosO radical do particpio latino era homonmico, porque seria um significado ativo.

    A forma do particpio latino tinha duas funes, que se distinguiam pelo significa-do e forma de adjetivo, chamado particpio, ou de advrbio, chamado supino:

    Lavatus, ille vestitur [lavado, ele se veste].

    Intro lavatum [entro para me lavar].

    As lnguas romnicas arcaicas continuaram com o significado adjetivo e tar-diamente uma evoluo motivada apagou o significado passivo e a particpio passou a ter a funo de constituir formas verbais que se perderam pela cultura deficitria e pela presso dos superstratos.

    Como informou Julia Carp (1923), amiga querida, o romeno perdeu a forma simples de perfeito de indicativo e a supre com o particpio de verbos transitivos ou intransitivos (CARP, 1996, p. 71-73):

    El a plect [literal: ele tem partido / traduzido: ele partiu].

    Am lsat aclo priteni [lit.: tenho deixado l amigos/ trad.: deixei l amigos].

    O verbo plicare do latim significava dobrar e reaparece no substantivo portu-gus prega. O interessante o significado que esse verbo tomou nas terras ro-menas e portuguesas: no romeno significa o comeo de viagem [partir], porque os soldados dobravam as tendas para irem embora, enquanto em portugus significa o fim de viagem [chegar] porque os soldados dobravam as velas para sarem do navio. Nos dois casos, uma metonmia com resultados diversos:

    Se dobra as tendas, est partindo [plicare > dobrar > partir].

    Se dobra as velas, est chegando [plicare > dobrar > acabar de voltar].

    O francs tem exatamente o mesmo comportamento do romeno, ainda que mais verdadeiro seria dizer que o romeno tem o mesmo comportamento do francs, que bem mais antigo:

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    Lnguas romnicas contemporneas

    II est arriv [lit.: ele tem chegado / trad.: ele chegou].

    Il a port des lettres [lit.: ele tem trazido cartas / trad.: trouxe cartas].

    O portugus maneja as duas formas, mas a composta indica uma ao repe-tida at o momento da fala.

    H, contudo, uma relquia que a lngua francesa guarda com carinho. Quando o objeto direto fica antes da forma composta do verbo, o particpio volta a ser adjetivo e concorda em gnero e nmero com o objeto anterior:

    Voici les lettres quil a portes [lit.: eis as cartas que ele tem trazidas / trad.: eis as cartas que ele trouxe].

    E aponto alguma coisa de herana comum: o romeno, o francs, o portugus e o sardo tem para o ato de deixar o mesmo radical, como nos prova o texto do Pai-nosso. E tambm o italiano, verso de Dante, na sua Divina Comdia (Inferno, canto III, verso 9):

    Lasciate ogni speranza voi chentrate [Deixai toda esperana vs que entrais].

    Tambm na fala nordestina onde bem vivo o advrbio acol... Quem ser que copiou de quem? Provavelmente, nenhum deles: veio direto do latim vulgar para os portugueses e os romenos.

    Textos romnicosO texto comum que vou apresentar em seguida vai permitir verificar essa tc-

    nica de juntar um elemento a outro e formar sucessivamente conjuntos que se tornam elementos at chegar ao elemento que a unidade do dilogo e somen-te a soma deles h de constituir qualquer um dos textos de uma lngua, orais ou escritos, desde um recado singelo a um romance de centenas de pginas.

    Escolho como texto a orao do Pai-Nosso por ser conhecido independente-mente do credo que cada um de ns tenha. Alterei a pontuao de todas essas preces seguindo a do rtico, que colocou cada frase numa linha, principiando pelo vocativo, que uma frase parte e vale para cada uma das posteriores.

    E comeo pelo texto latino para que seja possvel observar o que passou dele para a futura lngua e o que ficou para trs, alm de deixar um exemplo do que teria sido essa lngua latina. Como o latim no tem palavras oxtonas, acentuadas na slaba final, acentuo aqui somente as proparoxtonas, que tm o acento na antepenltima.

  • Lnguas romnicas contemporneas

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    curioso que apenas o dlmata e o rtico tenham conservado inteiramen-te o alfabeto latino, sem nenhum acrscimo de notao lxica, enquanto s o romeno sofreu influncia eslava em seu alfabeto.

    Semelhanas e diferenas o texto da Vulgata, edio da Bblia de So Jernimo (347-419 ou 420), a

    quem o Papa Dmaso (366-384), pediu em 382 que revisse os textos antigos:

    Peter noster qui [qi] es in caelis [cai]:

    Santificetur [qutur] nomen tuum.

    Adveniat [u] regnum tuum.

    Fiat voluntas [uo] tua sicut in caelo et in terra.

    Panem nostrum quotidianum da nobis hdie.

    Et dimitte nobis dbita nostra sicut et nos dimttimus debitribus nostris.

    Et ne nos inducas in tentationem. [E no nos leves a uma tentao,]

    Sed lbera nos a malo. [mas livra-nos desse mal.]

    Castelhano

    Padre nuestro que ests en los cielos:

    Santificado sea tu nombre.

    Venga tu reino.

    Sea hecha tu voluntad, como en el cielo as tambin en la tierra.

    Danos hoy nuestro pan cotidiano.

    Y perdnanos nuestras deudas, como tambin nosotros perdonamos a nuestros deudores.

    Y no nos metas en tentacin.

    Mas libranos del mal.

    (Disponvel em: .)

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    Lnguas romnicas contemporneas

    O castelhano tornou-se oficialmente a lngua espanhola, ainda que haja duas outras lnguas neolatinas, o catalo e o galego, alm do basco, lngua sem nenhum parentesco com as indo-europeias e ainda de origem desconhecida, falada numa regio montanhosa entre a Espanha e a Frana: o pas basco, seu territrio, pertence Espanha, mas tem autonomia poltica. O castelhano a maior lngua da Amrica Latina.

    Do ponto de vista da fontica, se distancia da lngua portuguesa por no ter ditongos nasais e por ter perdido trs sons sonoros:

    casa [cassa] / valor [balor] / gemir [remir].

    Alm disso, tem um som fricativo que se parece com o erre carioca, embora seja surdo enquanto o carioca sonoro:

    general [regeral].

    O efe latino era um som parecido com o de se apagar uma vela: ou seja, uma consoante bilabial surda ou um sopro. Parece ter sido esse o som que o espanhol herdou do latim no incio da palavra, o que provocou a escrita com outra letra, mas indicadora do novo som: facere > hacer.

    Catalo

    Pare nostre del cel,

    Santifict el teu nom

    Vingui el teu Regne, que es

    Faci la teva voluntat aqui a la terra com es fa em el cel

    donans avui el nostre pa de cada dia

    Perdona ls nostres ofenses, aixi com nosaltres perdonen els aqui ens ofenen

    No permitis que caiguem en la temptacio

    I alliberans del mal. Amem

    (Disponvel em: .)

  • Lnguas romnicas contemporneas

    55

    O catalo perdeu as nasais no fim de palavras, conservando-as somente nas formas verbais:

    pa [po] / temptaci [tentao].

    Perdonem [perdoemos].

    Diferentemente do castelhano, tem palavras terminadas em consoantes oclusivas:

    Santificat [santificado] / voluntat [vontade].

    Dlmata

    Tuota nuester, che te sante intel sil

    sait santificuot el naun to.

    Vigna el raigno to.

    Sait fuot la voluntuot toa, coisa in sil, coisa in tiara

    Duote costa dai el pun nuester cotidiun

    E remetiaj le nuestre debete, coisa nojiltri remetiaime a i nuestri debetuar

    E naun ne menur in tentatiaun

    miu deleberiajne dal mal

    (Disponvel em: .)

    Uma das palavras desta prece mais curiosa e parece ser portuguesa, mas a orao nos fornece o sentido verdadeiro dela:

    coisa in sil, coisa in tiara [tanto no cu como na terra].

    Lngua bela e sonora, que desapareceu. Divide com o italiano e o romeno o plural em vogal:

    Le nuestre debete [as nossas dvidas].

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    Lnguas romnicas contemporneas

    Francs

    Notre Pre qui es aux cieux:

    Que ton nom soit sanctifi.

    Que ton rgne vienne.

    Que ta volont soit faite sur la terre comme au ciel.

    Donne-nous aujourdhui notre pain de ce jour.

    Et remets-nous nos dettes [Pardonne-nos nos offenses], comme nous-mmes avons remis nos dbiteurs [comme nous pardonnons aussi ceux qui nous ont offenss].

    Et ne nous soumets pas [laisse pas succomber] la tentation.

    Mais dlivre-nous du mal.

    (Disponvel em : .)

    Em qualquer das verses, antiga ou moderna, falseia o texto evanglico, que usa o presente do indicativo nos dois casos, permitindo que a gente deixe de perdoar enquanto outra pessoa est nos ofendendo:

    dimitte ... sicut et ... dimittimus [perdoa ... assim como ... perdoamos].

    Comparada com o portugus, tem mais palavras monosslabas, dada a queda da vogal final. Em compensao, tem a ambiguidade do verbo predicativo, que nico:

    La femme est aime [a mulher amada].

    La porte est ferme [lit.: a porta fechada / trad.: a porta est fechada].

    Entretanto conservou dois pronomes que a lngua portuguesa e a galega perderam na sua evoluo para a modernidade:

    ibi > ii > i [nesse lugar: a / ali]: elle y va [ela a vai].

    inde > ende > en [desse lugar: disso]: elle en a trois [ela tem trs disso].

    A lngua portuguesa arcaica os usava com grande frequncia.

  • Lnguas romnicas contemporneas

    57

    Galego

    Noso Pai que ests no ceo:

    Santificado sexa ja o teu nome.

    Vea a ns o teu reino.

    E fgase a ta vontade aqu na terra coma no ceo.

    O noso pan de cada da dnolo hoxe.

    E perdanos as nosas ofensas como tamn perdoamos ns a quen nos ten ofendido.

    E non nos deixes caer na tentacin.

    Mais lbranos do mal.

    (Disponvel em: .)

    Ainda que se perceba que a semelhana com a lngua portuguesa deveras impressionante, a influncia do castelhano se faz sentir em vrios pontos.

    Influenciou a ortografia:

    noso [nosso].

    perdanos [perdoa-nos].

    quen [quem].

    Fez o galego perder alguns sons que dividia com o portugus nos sculos de lngua comum:

    sexa [seja].

    Rosa [rossa].

    Curiosamente h uma evoluo que coincide com a que ocorre em diale- tos brasileiros da zona rural:

    tam bene > tambn > tammn > tamn.

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    Lnguas romnicas contemporneas

    Italiano

    Padre nostro che sei nei cieli:

    Sia santificato il tuo nome.

    Venga il tuo regno.

    Sia fatta la tua volont anche in terra come fatta nel cielo.

    Acci oggi il nostro pane cotidiano.

    E rimettici i nostri debiti, come anche noi li abbiamo rimessi ai nostri debitori.

    E non ci esporre alla tentazione.

    ma liberaci dal maligno.

    (Disponvel em: .)

    O italiano tornou-se talvez a lngua neolatina mais melodiosa por terem abandonado quase completamente as consoantes latinas finais das palavras: as existentes se podem contar com os dedos de uma mo. Em compensao tem um nmero impressionante de consoantes dobradas e a pronuncia de ambas, a primeira como implosiva e a segunda como explosiva:

    fatta / oggi / rimettici / abbiamo.

    A primeira consoante feita com um rpido fechar de boca e a segunda com a sbita abertura dela. Creio que a nica lngua romnica que continuou fone-ticamente a latina, porque esta tinha consoantes geminadas e as pronunciava sempre, como no atual italiano: implosiva seguida da explosiva... E pode haver um par delas na mesma palavra (MINNAJA, 1996, p. 1.258):

    spacchettare [desempacotar].

    O italiano tem uma analogia que nunca apareceu em portugus:

    Se egli ama [ele ama] faz io amo [eu amo],

  • Lnguas romnicas contemporneas

    59

    Ento egli amava [ele amava] deve fazer io amavo [eu amava].

    E fez.

    Portugus

    Pai nosso que ests nos cus:

    Santificado seja o teu nome.

    Venha o teu reino.

    Seja feita a tua vontade, assim na terra como no cu.

    O po nosso de cada dia nos d hoje.

    E perdoa as nossas dvidas [perdoa-nos as nossas ofensas], assim como ns perdoamos aos nossos devedores [assim como ns perdoamos a quem nos tem ofendido].

    E no nos conduzas tentao.

    Mas livra-nos do mal.

    (Disponvel em: .)

    Repito o que disse sobre a traduo francesa, que moderniza o texto latino oficializado pela Igreja Catlica.

    Em qualquer das verses, antiga ou moderna, falseia o texto evanglico, que usa o presente do indicativo nos dois casos, permitindo que a gente deixe de perdoar enquanto outra pessoa est nos ofendendo:

    dimitte ... sicut et ... dimittimus [perdoa ... assim como ... perdoamos].

    O defeito da nossa ainda maior, porque a forma tem ofendido implica ofen-sas repetidas: assim, as de hoje eu nem preciso perdoar e as antigas, desde que unitrias, tambm no. Essa negligncia do clero e dos fiis indica desafortuna-damente que todos rezam maquinalmente sem pensarem no que esto a dizer. E ainda tm a coragem de pedir que Deus lhes perdoe hoje as ofensas de ontem. E as de hoje amanh.

  • 60

    Lnguas romnicas contemporneas

    Provenal

    Paire nstre que sis dins lo cl:

    Que ton nom se santifique.

    Que ton rnhe nos avenga.

    Que ta volontat se faga que sus la trra coma dins lo cl.

    Dona-nos nstre pan de cada jorn.

    Perdona-nos nstres deutes coma nosautres perdonam als nstres debitors.

    E fai que tombm pas dins la tentacion.

    Mas deliura-nos del mal.

    (Disponvel em: .)

    O provenal demonstra uma semelhana fontica com o francs por ter dei-xado pelo caminho as palavras que terminavam em vogal mdia posterior [o]:

    nostro > nstre / caelo > cel / regno > rnhe.

    Diferentemente acolhe consoante e grupo consonantal em fim de palavra:

    volontat / als / dins.

    Rtico

    Bab nos, ti che eis en tschiel:

    Sogns vegni fatgs tiu num.

    Tiu reginavel vegni neutier.

    Tia veglia daventi sin tiara sco en tschiel.

    ies paun de mintga gi dai a nus oz.

    E perduna a nus nos puccaus, sco era nus perdunein a nos culponts.

  • Lnguas romnicas contemporneas

    61

    E meina nus bec en empruament.

    Mo spendra nus dal mal.

    (Disponvel em: )

    O texto nos faz crer que o superstrato do rtico foi bastante diferente do que tombou sobre as lnguas vizinhas. Basta-nos citar a segunda linha que acolheu apenas duas palavras tipicamente latinas:

    Sogns vegni fatgs tiu num.

    Romeno

    Tatl nostru care eti n ceruri,

    sfiineasc-Se numele Tu.

    Vie mpria Ta.

    Fac-se voia Ta, precum n cer, aa i pe pmnt

    Pinea noastr cea de toate zilele d-ne-o nou astzi

    i ne iart nou pcatele noastre,

    precum i noi iertm greiilor notri.

    i nu ne duce pe noi n ispit

    ci ne mntuiete de cel ru

    (Disponvel em: .)

    Valor das letras:

    as vogais acentuadas tm sons estranhos aos nossos ouvidos.

    vale o primeiro som da palavra chave.

    vale o som das letras dobradas da palavra pizza.

    ce e ci tem o som da palavra tchau.

  • 62

    Lnguas romnicas contemporneas

    Bem mais que o rtico, o romeno demonstra a presena eslava em seu voca-bulrio e em sua ortografia.

    Sardo

    Babbu nostru qui ses in sos chelos:

    sanctificadu siat su nomen tou.

    Benzat a nois su regnu tou.

    Facta siat sa voluntade tua, comente in su chelu et in sa terra.

    Su pane nostru de ogni die danoslu hoe.

    Et perdonanos sos peccados nostros, comente et nois perdonamus ad sos inimigos nostros.

    Et nonnos lexas a reure in tentatione.

    Ma liberanos dai male.

    (Disponvel em: .)

    O sardo apresenta uma grande surpresa, pois eu desconhecia tudo sobre ele, embora imaginasse alguma coisa parecida com o italiano. Por outro lado, h uma in