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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 3 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR JOHN RAWLS: A JUSTIÇA COMO EQUIDADE John Rawls, o mais conhecido e celebrado filósofo político norte-americano, falecido aos 81 anos, em 2002, é tido como o principal teórico da democracia liberal dos dias de hoje. O seu grande tratado jurídico político A Teoria da Justiça, de 1971, o alinhou entre os grandes pensadores sociais do século 20. Um legítimo sucessor de uma linhagem ideológica que se origina em Locke. Os temas que hoje provocam polêmica, tal como o sistema de cotas para os negros nas universidades e nos cargos públicos, deriva diretamente da concepção de sociedade justa estabelecida por Rawls. Rawls é também sem dúvida um herdeiro legítimo do pensamento contratualista. I - A LONGA LUTA PELOS DIREITOS CIVIS NOS EUA: O MOVIMENTO NEGRO A PARTIR DA DÉCADA DE 1950 E A GUERRA PACIFISTA DE LUTER KING O Sul dos Estados Unidos, no período posterior a segunda guerra mundial, sofreu um processo de definitiva mecanização da produção de algodão, resultando no abandono das zonas rurais por milhares de trabalhadores agrícolas afro- americanos e, consequente, urbanização desses indivíduos, que migraram do sul para o norte e da zona rural do sul para a urbana. Além disso, a falta de mão-de-obra, civil e militar, durante Segunda Guerra provocou um movimento similar ao da primeira, já que, nesse período, os negros foram empregados com mais facilidade. Na década de 1950 e 1960 ocorreram diversas iniciativas de luta por parte dos negros para a constituição de direitos civis 1

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEUAPOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 3 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR

JOHN RAWLS: A JUSTIÇA COMO EQUIDADE

John Rawls, o mais conhecido e celebrado filósofo político norte-americano, falecido aos 81 anos, em 2002, é tido como o principal teórico da democracia liberal dos dias de hoje. O seu grande tratado jurídico político A Teoria da Justiça, de 1971, o alinhou entre os grandes pensadores sociais do século 20. Um legítimo sucessor de uma linhagem ideológica que se origina em Locke. Os temas que hoje provocam polêmica, tal como o sistema de cotas para os negros nas universidades e nos cargos públicos, deriva diretamente da concepção de sociedade justa estabelecida por Rawls. Rawls é também sem dúvida um herdeiro legítimo do pensamento contratualista.

I - A LONGA LUTA PELOS DIREITOS CIVIS NOS EUA: O MOVIMENTO NEGRO A PARTIR DA DÉCADA DE 1950 E A GUERRA PACIFISTA DE LUTER KING

O Sul dos Estados Unidos, no período posterior a segunda guerra mundial, sofreu um processo de definitiva mecanização da produção de algodão, resultando no abandono das zonas rurais por milhares de trabalhadores agrícolas afro-americanos e, consequente, urbanização desses indivíduos, que migraram do sul para o norte e da zona rural do sul para a urbana. Além disso, a falta de mão-de-obra, civil e militar, durante Segunda Guerra provocou um movimento similar ao da primeira, já que, nesse período, os negros foram empregados com mais facilidade.

Na década de 1950 e 1960 ocorreram diversas iniciativas de luta por parte dos negros para a constituição de direitos civis igualitários. O início desse movimento tem como pauta a dessegregação das escolas públicas, que em 1954 contou com o apoio do Supremo Tribunal dos Estados. Os brancos sulistas foram contra a medida (matriculando seus filho em escolas particulares, por exemplo) e os do norte também. Esses últimos manifestaram seu posicionamento contrário e protestaram com protesto e até com violência.

A luta contra o sistema de segregação racial contava com um novo estímulo. Os jovens negros realizavam manifestações nas Universidades negras do Sul, fundadas por igrejas e comandadas por reitores negros, demonstrando as inquietações da juventude. “O semestre da primavera de 1960 viu cada uma das sessenta e tantas universidades de negros, do Sul, envolvidas pela confusão e desordem que acompanharam a participação dos estudantes nas demonstrações sobre direitos civis”. Foram esses jovens que tomaram a frente do movimento, conforme

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Proctor, diante da inutilidade das discussões, reuniões e oratória dos adultos, que estavam comprometidos com as suas obrigações diárias de trabalho e sustento. “O negro adulto, desamparadamente, estava na dependência de aprovação por parte da estrutura de força dos brancos. A maioria das famílias podia não ter recursos para perder um simples cheque de pagamento e, embora ninguém desejasse verbalizar essa condição inexorável, isto era, contudo, um eloquente murmúrio”.

Os jovens negros contaram com o apoio dos jovens brancos liberais, principalmente por grupos de mulheres. Eles eram reconhecidos pela Liga das Mulheres Votantes, Associação Cristã de Moças e aos grupos unidos das mulheres, representando as Igrejas Católicas, Protestante e Judaica. A maior parte desses apoiadores, como coloca Proctor, via a emancipação negra como algo inevitável na vida americana, alguma coisa que acontecesse sem muito esforço direto de sua parte. Esses brancos eram acusados muitas vezes de “amantes dos negros”, ao mesmo tempo em que eram vistos pelo militar intelectual negro como “subversor paternalista da integridade negra, joguete do liberalismo branco para estancar a maré de cólera negra”.

As lutas de independência da África tiveram um peso importante para a mobilização da juventude. O triunfo das lutas africanas despertou um sentimento de vergonha por sua passividade diante da segregação e motivaram sua admiração por líderes e assimilação com o continente. A solidariedade com o povo africano já havia sido demonstrada anteriormente, quando apoiaram a Etiópia contra a invasão da Etiópia pela Itália durante a Segunda Guerra Mundial.

Outro âmbito da luta que obteve sucesso foi pela dessegregação dos transportes públicos. A manifestação teve inicio em dezembro de 19555, quando a costureira negra Rosa Parks recusou-se a dar lugar no ônibus para um branco, em Montgomery, no Alabama. O resultado da ação foi a sua prisão. Após esse episódio, os negros da cidade, com o apoio da igreja decidiram realizar um boicote contra aos ônibus da cidade até que tivesse fim esse tipo de segregação. O boicote durou um ano e quase levou a empresa a falência, confluindo para a conquista desse direito junto ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos. A partir dessa ação ganha visibilidade nacional um dos lideres do movimento, Martin Luther King, pacifista atuante na luta pelos direitos civis que pregava a não violência para as conquistas dos negros. Sob sua influência ganham amplitude diversos protestos não violentos em prol dos direitos civis em todo o país (por exemplo, o caso dos negros universitários de Greensboro, na Carolina do Norte, que forçaram um restaurante a lhe servirem refeições, de forma a sentar e rezar o pai-nosso como maneira de protesto). Surgiram outros movimentos não violentos no país, mesmo que os partidários do movimento sofressem violência.

ENTRADA SEPARADA PARA NEGROS EM ONIBUS DEC. 50 ROSA PARKS, E AO FUNDO M. L. KING

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Em 2 de julho 1964 o congresso norte americano aprovou a Lei dos Direitos Civis, a qual estabelecia o fim da discriminação racial nas acomodações públicas, no emprego, na educação e no registro de eleitores. A confirmação da lei passou por longos debates no Congresso, tendo o Senado que determinar a votação imediata sobre o assunto após 75 dias de debates. Através dessa Lei, o processo de registro de eleitores passava a ser igual a todos os requerentes, tendo direito a voto americanos alfabetizados, sujeitos a uma prova escrita e que tivessem até o sexto grau de alfabetização. A discriminação racial e religiosa foi proibida em lugares de acomodação pública, como restaurantes, postos de gasolina, lojas, teatros, quadras esportivas, hotéis e outros alojamentos. As escolas com programas de dessegregação deveriam receber assistência técnica e financeira, entretanto a lei não ordenava o transporte de alunos de um distrito escolar a outro. Os empregadores – exceto alguns grupos –, agências de empregos e sindicatos foram proibidos de cometer discriminação referente à raça, cor, religião, sexo ou origem nacional. Além disso, foram criadas a comissão de Oportunidade Igual de Empregos, com o objetivo de eliminar empregos ilegais, e o Serviço de relações da Comunidade, para ajudar as comunidades com problemas relacionados a dessegregação.

O movimento negro americano apresentava divergências em relação às formas de luta, porém, quanto à guerra do Vietnã – assunto central nos EUA da época –, apresentavam a mesma opinião contrária à intervenção americana no país asiático. O fato dos negros estarem nas linhas de frente nos campos de batalha e do belicismo ser identificado com os setores brancos mais conservadores[7].

O governo federal interveio por vezes para terminar com discriminação. O presidente Lyndon B. Jonshon garantiu o direito de voto aos negros do sul, instituindo a Lei do Direito de Votar, em 1965, que resultou em uma necessária supervisão das eleições por parte do governo federal. O apoio oficial à causa dos negros norte-americanos foi fundamental, porém os principais protagonistas e atuantes nesse movimento foram os próprios negros.

Na década de 1960, Malcolm X, com um discurso mais virulento, e Martin Luther King, Jr., um pacifista, reclamaram o fim da discriminação institucional. A marcha sobre Washington e a concessão do Prêmio Nobel da Paz a King em 1964 trouxeram atenção mundial para a causa afroamericana. A Lei de Direitos Civis de 1964 e a Lei dos Direitos ao Voto de 1965, ambas promovidas pelo presidente Lyndon B. Johnson, do Partido Democrata, codificaram as conquistas dos negros. Elas asseguraram o fim da segregação racial em espaços públicos, ainda que sejam propriedade privada, e o voto universal, independentemente de nível educacional ou condição social.

O diferencial dos Panteras Negras eram os programas sociais, tais como café da manhã e sapatos gratuitos para crianças, clínicas de saúde e aulas sobre políticas. Muitos dos primeiros negros a atuarem no mundo político passaram pelo partido.

A década de 1960 foi um marco para o movimento de direitos humanos negros, tanto positiva quanto negativamente. No verão de 1964, um grupo de cem estudantes negros e brancos, voluntários pelos direitos civis do norte do país, dirigiu-se à região sul, para iniciar uma campanha pelo voto dos negros e pela formação de um partido político, para a liberdade do Estado do Mississipi. Porém, três desses estudantes foram brutalmente assassinados pela irmandade Ku Klux Klan, chocando a sociedade norte-americana. Tal atrocidade casou indignação na opinião pública que, ajudou o então presidente norte americano Lyndon Baines Johnson (que era vice-presidente de John F. Kennedy e assumiu o cargo de presidente com o

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assassinato deste) a aprovar junto ao Congresso, em 2 de julho daquele ano, as Leis dos Direitos Civis. No final desse mesmo ano, Martin Luther King recebeu o Prêmio Nobel da Paz.

No ano seguinte, em 1965, surgiu o Voting Rigth Act, que condenava a segregação nos locais públicos e protegia o direito ao voto. Essa lei surgiu em decorrência do ocorrido no ano anterior, quando uma onda de protesto pelos direitos ao voto dos negros, acabou com muitos mortos e feridos. Além disso, em um discurso no Harlem, Malcom X foi assassinado com 14 tiros, crime que, ainda hoje, mais de 40 anos depois, não houve solução.

Em 1966, surgiu o Partido dos Panteras Negras e os Black Powers. E no dia 4 de abril de 1968, em Memphis, é assassinado Martin Luther King, com um tiro na cabeça.

FONTES: WORDPRESS/WICKIPEDIA/ WESCHENFELDER, G. V. Os Negros nas Histórias em Quadrinhos de Super-herói.

Degraus do Lincoln Memorial do Monumento a Washington no momento em que King pronunciava o disurso.

I HAVE I DREAM (EU TENHO UM SONHO)

Discurso de Martin Luther King, Jr. em Washington, D.C., a capital dos Estados Unidos, em 28 de Agosto de 1963, após a Marcha para Washington.

“Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.

Há cem anos, um grande americano, sob cuja sombra simbólica nos encontramos, assinava a Proclamação da Emancipação. Esse decreto fundamental foi como um raio de luz de esperança para milhões de escravos negros que tinham sido marcados a ferro nas chamas de uma vergonhosa injustiça. Veio como uma aurora feliz para terminar a longa noite do cativeiro. Mas, cem anos mais tarde, devemos enfrentar a realidade trágica de que o Negro ainda não é livre.

Cem anos mais tarde, a vida do Negro é ainda lamentavelmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação. Cem anos mais tarde, o Negro continua a viver numa ilha isolada de pobreza, no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o Negro ainda definha nas margens da sociedade americana, estando exilado na sua própria terra.

Por isso, encontramo-nos aqui hoje para dramaticamente mostrarmos esta extraordinária condição. Num certo sentido, viemos à capital do nosso país para descontar um cheque. Quando os arquitetos da nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de independência, estavam a assinar uma promissória de que cada cidadão americano se tornaria herdeiro.

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Este documento era uma promessa de que todos os homens veriam garantidos os direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à procura da felicidade. É óbvio que a América ainda hoje não pagou tal promissória no que concerne aos seus cidadãos de cor. Em vez de honrar este compromisso sagrado, a América deu ao Negro um cheque sem cobertura; um cheque que foi devolvido com a seguinte inscrição: "saldo insuficiente". Porém nós recusamo-nos a aceitar a ideia de que o banco da justiça esteja falido. Recusamo-nos a acreditar que não exista dinheiro suficiente nos grandes cofres de oportunidades deste país.

Por isso viemos aqui cobrar este cheque - um cheque que nos dará quando o recebermos as riquezas da liberdade e a segurança da justiça. Também viemos a este lugar sagrado para lembrar à América da clara urgência do agora. Não é o momento de se dedicar à luxuria do adiamento, nem para se tomar a pílula tranquilizante do gradualismo. Agora é tempo de tornar reais as promessas da Democracia. Agora é o tempo de sairmos do vale escuro e desolado da segregação para o iluminado caminho da justiça racial. Agora é tempo de abrir as portas da oportunidade para todos os filhos de Deus. Agora é tempo para retirar o nosso país das areias movediças da injustiça racial para a rocha sólida da fraternidade.

Seria fatal para a nação não levar a sério a urgência do momento e subestimar a determinação do Negro. Este sufocante verão do legítimo descontentamento do Negro não passará até que chegue o revigorante Outono da liberdade e igualdade. 1963 não é um fim, mas um começo. Aqueles que creem que o Negro precisava só de desabafar, e que a partir de agora ficará sossegado, irão acordar sobressaltados se o País regressar à sua vida de sempre. Não haverá tranquilidade nem descanso na América até que o Negro tenha garantido todos os seus direitos de cidadania.

Os turbilhões da revolta continuarão a sacudir as fundações do nosso País até que desponte o luminoso dia da justiça. Existe algo, porém, que devo dizer ao meu povo que se encontra no caloroso limiar que conduz ao palácio da justiça. No percurso de ganharmos o nosso legítimo lugar não devemos ser culpados de actos errados. Não tentemos satisfazer a sede de liberdade bebendo da taça da amargura e do ódio.

Temos de conduzir a nossa luta sempre no nível elevado da dignidade e disciplina. Não devemos deixar que o nosso protesto realizado de uma forma criativa degenere na violência física. Teremos de nos erguer uma e outra vez às alturas majestosas para enfrentar a força física com a força da consciência.

Esta maravilhosa nova militância que engolfou a comunidade negra não nos deve levar a desconfiar de todas as pessoas brancas, pois muitos dos nossos irmãos brancos, como é claro pela sua presença aqui, hoje, estão conscientes de que os seus destinos estão ligados ao nosso destino, e que sua liberdade está intrinsecamente ligada à nossa liberdade.

Não podemos caminhar sozinhos. À medida que caminhamos, devemos assumir o compromisso de marcharmos em frente. Não podemos retroceder. Há quem pergunte aos defensores dos direitos civis: "Quando é que ficarão satisfeitos?" Não estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos incontáveis horrores da brutalidade policial. Não poderemos estar satisfeitos enquanto os nossos corpos, cansados das fadigas da viagem, não conseguirem ter acesso a um lugar de descanso nos motéis das estradas e nos hotéis das cidades. Não poderemos estar satisfeitos enquanto a mobilidade fundamental do Negro for passar de um gueto pequeno para um maior. Nunca poderemos estar satisfeitos enquanto um Negro no Mississipi não pode votar e um Negro em Nova Iorque achar que não há nada pelo qual valha a pena votar. Não, não, não estamos satisfeitos, e só ficaremos satisfeitos quando a justiça correr como a água e a retidão como uma poderosa corrente.

Sei muito bem que alguns de vocês chegaram aqui após muitas dificuldades e tribulações. Alguns de vocês saíram recentemente de pequenas celas de prisão. Alguns de vocês vieram de áreas onde a vossa procura da liberdade vos deixou marcas provocadas pelas tempestades da perseguição e sofrimentos provocados pelos ventos da brutalidade policial. Vocês são veteranos do sofrimento criativo. Continuem a trabalhar com a fé de que um sofrimento injusto é redentor.

Voltem para o Mississipi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para a Luisiana, voltem para as bairros de lata e para os guetos das nossas modernas cidades, sabendo que, de alguma forma, esta situação pode e será alterada. Não nos embrenhemos no vale do desespero.

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Digo-lhes, hoje, meus amigos, que apesar das dificuldades e frustrações do momento, ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.

Tenho um sonho que um dia esta nação levantar-se-á e viverá o verdadeiro significado da sua crença: "Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais".

Tenho um sonho que um dia nas montanhas rubras da Geórgia os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos proprietários de escravos poderão sentar-se à mesa da fraternidade.

Tenho um sonho que um dia o estado do Mississipi, um estado deserto, sufocado pelo calor da injustiça e da opressão, será transformado num oásis de liberdade e justiça.

Tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pela qualidade do seu caráter.

Tenho um sonho, hoje.

Tenho um sonho que um dia o estado de Alabama, cujos lábios do governador atualmente pronunciam palavras de ... e recusa, seja transformado numa condição onde pequenos rapazes negros, e raparigas negras, possam dar-se as mãos com outros pequenos rapazes brancos, e raparigas brancas, caminhando juntos, lado a lado, como irmãos e irmãs.

Tenho um sonho, hoje.

Tenho um sonho que um dia todos os vales serão elevados, todas as montanhas e encostas serão niveladas, os lugares ásperos serão polidos, e os lugares tortuosos serão endireitados, e a glória do Senhor será revelada, e todos os seres a verão, conjuntamente.

Esta é nossa esperança. Esta é a fé com a qual regresso ao Sul. Com esta fé seremos capazes de retirar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé poderemos transformar as dissonantes discórdias de nossa nação numa bonita e harmoniosa sinfonia de fraternidade. Com esta fé poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, ir para a prisão juntos, ficarmos juntos em posição de sentido pela liberdade, sabendo que um dia seremos livres.

Esse será o dia quando todos os filhos de Deus poderão cantar com um novo significado: "O meu país é teu, doce terra de liberdade, de ti eu canto. Terra onde morreram os meus pais, terra do orgulho dos peregrinos, que de cada localidade ressoe a liberdade".

E se a América quiser ser uma grande nação isto tem que se tornar realidade. Que a liberdade ressoe então dos prodigiosos cabeços do Novo Hampshire. Que a liberdade ressoe das poderosas montanhas de Nova Iorque. Que a liberdade ressoe dos elevados Alleghenies da Pensilvania!

Que a liberdade ressoe dos cumes cobertos de neve das montanhas Rochosas do Colorado!

Que a liberdade ressoe dos picos curvos da Califórnia!

Mas não só isso; que a liberdade ressoe da Montanha de Pedra da Geórgia!

Que a liberdade ressoe da Montanha Lookout do Tennessee!

Que a liberdade ressoe de cada Montanha e de cada pequena elevação do Mississipi.

Que de cada localidade, a liberdade ressoe.

Quando permitirmos que a liberdade ressoe, quando a deixarmos ressoar de cada vila e cada aldeia, de cada estado e de cada cidade, seremos capazes de apressar o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras da antiga canção negra: "Liberdade finalmente! Liberdade finalmente! Louvado seja Deus, Todo Poderoso, estamos livres, finalmente!"

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II - TEORIA DA JUSTIÇA

Certa vez, Hegel escreveu que a Filosofia - tal como a coruja que só alça o vôo depois do entardecer - somente elabora uma teoria após as coisas terem ocorrido. Foi bem esse o caso da contribuição de John Rawls, surgida em livro em 1971, A Theory of Justice, a Teoria da Justiça, resultante direto do sucesso da campanha pelos Direitos Civis. Herdeiro da melhor tradição liberal, que principia com Locke, passando por Rousseau, Kant e Stuart Mills, Rawls debruçou-se sobre um dos mais espinhosos dilemas da sociedade democrática: como conciliar direitos iguais numa sociedade desigual, como harmonizar as ambições materiais dos mais talentosos e destros com os anseios dos menos favorecidos em melhorar sua vida e sua posição na sociedade? Tratou-se de um alentado esforço intelectual para conciliar a Meritocracia com a idéia da Igualdade.

A resposta que Rawls encontrou para resolver essas antinomias e posições conflitantes fez história. Nem a social-democracia européia, velha de mais de século e meio, adotando sempre um política social pragmática, havia encontrado uma solução teórica-jurídica para tal desafio. Habermas, o maior filosofo alemão do pós-guerra, considerou-o, o livro de Rawls, um marco na história do pensamento, um turning point na teoria social moderna, abrindo caminho para a aceitação dos direitos das minorias e para a política da Affirmative Action , a ação positiva. Política de compensação social adotada em muitos estados dos Estados Unidos desde então, que visa ampliar e facilitar as possibilidades de ascensão aos empregos públicos e aos assentos universitários por parte daquelas minorias étnicas que deles tinham sido até então rejeitadas ou excluídas. Cumpre-se dessa forma a sua meta de maximize the welfare of society's worse-off member, de fazer com que a sociedade do Bem-estar fosse maximizada em função dos que estão na pior situação, garantindo que a extensão dos direitos de cada um fosse o mais amplamente estendido, desde que compatível com a liberdade do outro. Se foi o projeto da Grande Sociedade quem impulsionou a teoria de Rawls, suas proposições, difundindo-se universalmente, terminaram por lançar as bases dos fundamentos ético-jurídicos do moderno Estado de bem-estar Social, vinte ou trinta anos depois ele ter sido implementado.

A sociedade justa

De certo modo Rawls retoma, no quadro do liberalismo social de hoje, a discussão ocorrida nos tempos da Grécia Antiga, no século 5 a.C., registrada na "República" , de Platão. Ocasião em que, por primeiro, debateu-se quais seriam os fundamentos de uma sociedade justa. Para o filósofo americano os seus dois pressupostos são: 1) igualdade de oportunidade aberta a todos em condições de plena eqüidade e: 2) os benefícios nela auferidos devem ser repassados preferencialmente aos membros menos privilegiados da sociedade, os worst off, satisfazendo as expectativas deles, porque justiça social é, antes de tudo, amparar os desvalidos. Para conseguir-se isso é preciso, todavia, que uma dupla operação ocorra. Os better off, os talentosos, os melhor dotados (por nascimento, herança ou dom), devem aceitar com benevolência em ver diminuir sua participação material (em bens, salários, lucros e status social), minimizadas em favor do outros, dos desassistidos. Esses, por sua vez, podem assim ampliar seus horizontes e suas esperanças em dias melhores, maximizando suas expectativas.

Para que isso seja realizável numa moderna democracia de modelo representativo é pertinente concordar inclusive que os representantes dos menos favorecidos (partidos populares, lideranças sindicais, minorias étnicas, certos grupos religiosos, e demais excluídos, etc..), sejam contemplados no jogo político com a ampliação da sua deputação, mesmo que em detrimento momentâneo da representação da maioria. Rawls aqui introduz o principio ético do altruísmo a ser exigido ou cobrado dos mais talentosos e aquinhoados - a abdicação

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consciente de certos privilégios e vantagens materiais legítimas em favor dos socialmente menos favorecidos.

Há nisso uma clara evocação, de origem calvinista, à limitação dos “direitos do talento", sem a qual ele considera difícil senão impossível por em pratica a equidade. Especialmente quando ele lembra que uma sociedade materialmente rica não significa necessariamente que ela é justa. Organizações sociais modestas lembrou ele, podem apresentar um padrão de justiça bem maior do que encontra-se nas opulentas. Exemplo igual dessa “secularização do calvinismo" visando o apelo à concórdia social, é a abundância no texto de Rawls de expressões como, além do citado altruísmo, "benevolência", “imparcialidade", "desinteresse mútuo", "desejos benevolentes", "situação equitativa", " bondade", " objeção de consciência", etc...

Worst off - Os socialmente desfavorecidos - Devem ter suas esperanças de ascensão e boa colocação social maximizadas, objetivo atingido por meio de legislação especial corretiva, reparadora das injustiças passadas. Better off - Os mais favorecidos - Devem ter suas expectativas materiais minimizadas, sendo convencidos através do apelo altruístico de que o talento está a serviço do coletivo, preferencialmente voltado ao atendimento dos menos favorecidos.

Criticas marxistas

Para os marxistas, o individualismo e o contratualismo morais rawlsianos se resumem à ideologia burguesa. Rawls aludiu como defesa que os princípios morais que advoga estão presentes no Liberalismo, mas não são dele exclusivos. Justificou a escolha por serem princípios que respeitam a razoabilidade e a decência exigidas e oferecidas aos homens. Quanto ao fato de ter arrolado a propriedade privada como um dos direitos humanos, em estreita concordância com a visão liberal, lembrou que o fez no aspecto pessoal, algo garantido até nos Estados comunistas, mas excluiu da proteção de sua primeira regra de prioridade, a propriedade dos meios de produção e a liberdade contratual defendida pela doutrina do laissez-faire. Sem renunciar ao cânone liberal, contra os marxistas temperou sua fundamentação com argumentos aristotélicos e princípios morais kantianos. Alegou que defendeu a propriedade não com base em Locke, mas em Aristóteles, no que este pensador a enaltecia como resultado de um hedonismo natural benéfico à comunidade, porque leva em conta a natureza dos homens de sentirem prazer em possuir algo, suficiente o bastante para compor um direito em um sistema social justo.

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TEXTO 1 - A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS

Faustino Vaz

I - PROBLEMA

Há crianças vendidas por pais extremamente pobres a quem tem dinheiro e falta de escrúpulos para as comprar; pessoas cujo rendimento não permite fazer mais do que uma refeição por dia; jovens que não têm a menor possibilidade de adquirir pelo menos a escolaridade básica; cidadãos que estão presos por terem defendido as suas ideias. Perante casos destes sentimos que as nossas intuições morais de justiça e igualdade não são respeitadas. Surge assim a pergunta: Como é possível uma sociedade justa? Este problema pode ter formulações mais precisas. Uma delas é a seguinte: Como deve uma sociedade distribuir os seus bens? Qual é a maneira eticamente correcta de o fazer? Trata-se do problema da justiça distributiva. A pergunta que o formula é a seguinte: Quais são os princípios mais gerais que regulam a justiça distributiva? A teoria da justiça de John Rawls é a resposta mais influente a este problema. Esta lição irá sujeitar à tua avaliação crítica os argumentos em que se apoia e algumas objecções que enfrenta.

II- TEORIA

A teoria de Rawls constitui, em grande parte, uma reacção ao utilitarismo clássico. De acordo com esta teoria, se uma acção maximiza a felicidade, não importa se a felicidade é distribuída de maneira igual ou desigual. Grandes desníveis entre ricos e pobres parecem em princípio justificados. Mas na prática o utilitarismo prefere uma distribuição mais igual. Assim, se uma família ganha 5 mil euros por mês e outra 500, o bem-estar da família rica não diminuirá se 500 euros do seu rendimento forem transferidos para a família pobre, mas o bem-estar desta última aumentará substancialmente. Isto compreende-se porque, a partir de certa altura, a utilidade marginal do dinheiro diminui à medida que este aumenta. (Chama-se "utilidade marginal" ao benefício comparativo que se obtém de algo, por oposição ao benefício bruto: achar uma nota de 100 euros representa menos benefício para quem ganha 20 mil euros por mês do que para quem ganha apenas 500 euros por mês.) Deste modo, uma determinada quantidade de riqueza produzirá mais felicidade do que infelicidade se for retirada dos ricos para dar aos pobres. Tudo isto parece muito sensato, mas deixa Rawls insatisfeito. Ainda que o utilitarismo conduza a juízos correctos acerca da igualdade, Rawls pensa que o utilitarismo comete o erro de não atribuir valor intrínseco à igualdade, mas apenas valor instrumental. Isto quer dizer que a igualdade não é boa em si — é boa apenas porque produz a maior felicidade total.

Por consequência, o ponto de partida de Rawls terá de ser bastante diferente. Rawls parte então de uma concepção geral de justiça que se baseia na seguinte ideia: todos os bens sociais primários — liberdades, oportunidades, riqueza, rendimento e as bases sociais da auto-estima (um conceito impreciso) — devem ser distribuídos de maneira igual a menos que uma distribuição desigual de alguns ou de todos estes bens beneficie os menos favorecidos. A subtileza é que tratar as pessoas como iguais não implica remover todas as desigualdades, mas apenas aquelas que trazem desvantagens para alguém. Se dar mais dinheiro a uma pessoa do que a outra promove mais os interesses de ambas do que simplesmente dar-lhes a mesma quantidade de dinheiro, então uma consideração igualitária dos interesses não proíbe essa desigualdade. Por exemplo, pode ser preciso pagar mais dinheiro aos professores para os

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incentivar a estudar durante mais tempo, diminuindo assim a taxa de reprovações. As desigualdades serão proibidas se diminuírem a tua parte igual de bens sociais primários. Se aplicarmos este raciocínio aos menos favorecidos, estes ficam com a possibilidade de vetar as desigualdades que sacrificam e não promovem os seus interesses.

Mas esta concepção geral ainda não é uma teoria da justiça satisfatória. A razão é que a ideia em que se baseia não impede a existência de conflitos entre os vários bens sociais distribuídos. Por exemplo, se uma sociedade garantir um determinado rendimento a desempregados que tenham uma escolaridade baixa, criará uma desigualdade de oportunidades se ao mesmo tempo não permitir a essas pessoas a possibilidade de completarem a escolaridade básica. Há neste caso um conflito entre dois bens sociais, o rendimento e a igualdade de oportunidades. Outro exemplo é este: se uma sociedade garantir o acesso a uma determinada escolaridade a todos os seus cidadãos e ao mesmo tempo exigir que essa escolaridade seja assegurada por uma escola da área de residência, no caso de uma pessoa preferir uma escola fora da sua área de residência por ser mais competente e estimulante, gera-se um conflito entre a igualdade de oportunidades no acesso à educação e a liberdade de escolher a escola que cada um acha melhor.

Como podes ver, a concepção geral de justiça de Rawls deixa estes problemas por resolver. Será então indispensável um sistema de prioridades que justifique a opção por um dos bens em conflito. E nesse caso, se escolhemos um bem em detrimento de outro, é porque temos uma razão forte para considerar um dos bens mais prioritário do que outro. Nesse sentido, Rawls divide a sua concepção geral em três princípios:

PRINCÍPIO DA LIBERDADE IGUAL: A SOCIEDADE DEVE ASSEGURAR A MÁXIMA LIBERDADE PARA CADA PESSOA COMPATÍVEL COM UMA LIBERDADE IGUAL PARA TODOS OS OUTROS.

PRINCÍPIO DA DIFERENÇA: A SOCIEDADE DEVE PROMOVER A DISTRIBUIÇÃO IGUAL DA RIQUEZA, EXCEPTO SE A EXISTÊNCIA DE DESIGUALDADES ECONÓMICAS E SOCIAIS GERAR O MAIOR BENEFÍCIO PARA OS MENOS FAVORECIDOS.

PRINCÍPIO DA OPORTUNIDADE JUSTA: AS DESIGUALDADES ECONÓMICAS E SOCIAIS DEVEM ESTAR LIGADAS A POSTOS E POSIÇÕES ACESSÍVEIS A TODOS EM CONDIÇÕES DE JUSTA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES.1

Estes três princípios formam a concepção de justiça de Rawls. Mas por si só estes princípios não resolvem conflitos como os que viste. Se queres ter uma espécie de guia nas tuas escolhas, é preciso ainda estabelecer uma ordem de prioridades entre os princípios. Assim, o princípio da liberdade igual tem prioridade sobre os outros dois e o princípio da oportunidade justa tem prioridade sobre o princípio da diferença. Atingido um nível de bem-estar acima da luta pela sobrevivência, a liberdade tem prioridade absoluta sobre o bem-estar económico ou a igualdade de oportunidades, o que faz de Rawls um liberal. A liberdade de expressão e de

1 1)Each person is to have an equal right to the most extensive basic liberty compatible with a similar liberty for other.

2) Social and economic inequalities are to be arranged so that :(a) they are to be of the greatest benefit of the least-advantaged members of society, consistent with the just savings principle (the difference principle).(b) offices and positions must be open to everyone under conditions of fair equality of opportunity

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religião, assim como outras liberdades, são direitos que não podem ser violados por considerações económicas. Por exemplo, se já tens um rendimento mínimo que te permite viver, não podes abdicar da tua liberdade e aceitar a restrição de não poderes sair de uma exploração agrícola na condição de passares a ganhar mais. Outro exemplo que a teoria de Rawls rejeita seria o de abdicares de gozar de liberdade de expressão para um dia teres a vantagem económica de não te serem cobrados impostos.

Em cada um dos princípios mantém-se a ideia de distribuição justa. Assim, uma desigualdade de liberdade, oportunidade ou rendimento será permitida se beneficiar os menos favorecidos. Isto faz de Rawls um liberal com preocupações igualitárias. Considera mais uma vez alguns exemplos. Um sistema de ensino pode permitir aos estudantes mais dotados o acesso a maiores apoios se, por exemplo, as empresas em dificuldade vierem a beneficiar mais tarde do seu contributo, aumentando os lucros e evitando despedimentos. Outro caso permitido é o de os médicos ganharem mais do que a maioria das pessoas desde que isso permita aos médicos ter acesso a tecnologia e investigação de ponta que tornem mais eficazes os tratamentos de certas doenças e desde que, claro, esses tratamentos estejam disponíveis para os menos favorecidos.

As liberdades básicas a que Rawls dá atenção são os direitos civis e políticos reconhecidos nas democracias liberais, como a liberdade de expressão, o direito à justiça e à mobilidade, o direito de votar e de ser candidato a cargos públicos.

A parte mais disputável da teoria de Rawls é a que diz respeito à exigência de distribuição justa de recursos económicos — o que se compreende. Uma vez resolvido o problema dos direitos e liberdades básicas nas sociedades democráticas liberais, o grande problema com que estas sociedades se deparam é o de saber como devem ser distribuídos os recursos económicos — trata-se do problema da justiça distributiva. Ora, como essa exigência de distribuição justa é expressa pelo princípio da diferença, serão submetidos à tua avaliação crítica os argumentos de Rawls em defesa desse princípio.

III - ARGUMENTOS

Rawls apresenta dois argumentos a favor do princípio da diferença: o argumento intuitivo da igualdade de oportunidades e o argumento do contrato social hipotético.

1) O argumento intuitivo da igualdade de oportunidades

Este argumento apela à tua intuição de que o destino das pessoas deve depender das suas escolhas, e não das circunstâncias em que por acaso se encontram. Ninguém merece ver as suas escolhas e ambições negadas pela circunstância de pertencer a uma certa classe social ou raça. Intuitivamente não achamos plausível que uma mulher, pelo simples facto de ser mulher, encontre resistências à possibilidade de liderar um banco. Estas são circunstâncias que a igualdade de oportunidades deve eliminar. Ora, estando garantida a igualdade de oportunidades, prevalece nas sociedades actuais a ideia de que as desigualdades de rendimento são aceitáveis independentemente de os menos favorecidos beneficiarem ou não dessas desigualdades. Como ninguém é desfavorecido pelas suas circunstâncias sociais, o destino das pessoas está nas suas próprias mãos. Os sucessos e os falhanços dependem do mérito de cada um, ou da falta dele. É assim que a maioria pensa.

Mas será que esta visão dominante da igualdade de oportunidades respeita a tua intuição de que o destino das pessoas deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas circunstâncias em que se encontram? Rawls pensa que não. Por esta razão: reconhecendo apenas diferenças nas circunstâncias sociais e ignorando as diferenças nos talentos naturais, a visão dominante terá de aceitar que o destino de um deficiente seja determinado pela sua deficiência ou que a infelicidade de um QI baixo dite o destino de uma pessoa. Isto impõe um limite injustificado à tua intuição. Se é injusto que o destino de cada um seja determinado por desigualdades sociais,

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também o será se for determinado por desigualdades naturais. Afinal, a tua intuição vê a mesma injustiça neste último caso. Logo, como as pessoas são moralmente iguais, o destino de cada um não deve depender da arbitrariedade dos acasos sociais ou naturais. E neste caso não poderás aceitar o destino do deficiente ou da pessoa com um QI baixo.

O que propõe Rawls em alternativa? Que a noção comum de igualdade de oportunidades passe a reconhecer as desigualdades naturais. Como? Dispondo a sociedade da seguinte maneira: quem ganha na "lotaria" social e natural dá a quem perde. De acordo com Rawls, ninguém deve beneficiar de forma exclusiva dos seus talentos naturais, mas não é injusto permitir tais benefícios se eles trazem vantagens para aqueles que a "lotaria" natural não favoreceu. E deste modo justificamos o princípio da diferença. Concluindo, a noção dominante de igualdade de oportunidades parte da intuição de que o destino de cada pessoa deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas suas circunstâncias; mas esta mesma intuição consistentemente considerada obriga a que aquela noção passe a incluir as desigualdades naturais. O que daí resulta é precisamente o princípio da diferença. Como ninguém parece querer abdicar do pressuposto da igualdade moral entre todas as pessoas, Rawls defende que o princípio que melhor dá conta desse pressuposto é o princípio da diferença.

2) O argumento do contrato social hipotético

Imagina que não conheces o teu lugar na sociedade, a tua classe e estatuto social, os teus gostos pessoais e as tuas características psicológicas, a tua sorte na distribuição dos talentos naturais (como a inteligência, a força e a beleza) e que nem sequer conheces a tua concepção de bem, ignorando que coisas fazem uma vida valer a pena. Mas não és o único que se encontra nesta posição original; pelo contrário, todos estão envoltos neste véu de ignorância. Rawls afirma que esta situação hipotética descreve uma posição inicial de igualdade e nessa medida este argumento junta-se ao argumento intuitivo da igualdade de oportunidades. Ambos procuram defender a concepção de igualdade que melhor dá conta das nossas intuições de igualdade e justiça. De seguida, Rawls levanta a questão central: Que princípios de justiça seriam escolhidos por detrás deste véu de ignorância? Aqueles que as pessoas aceitariam contando que não teriam maneira de saber se seriam ou não favorecidas pelas contingências sociais ou naturais. Nessa medida, a posição original diz-nos que é razoável aceitar que ninguém deve ser favorecido ou desfavorecido.

Apesar de não sabermos qual será a nossa posição na sociedade e que objectivos teremos, há coisas que qualquer vida boa exige. Poderás ter uma vida boa como arquitecto ou poderás ter uma vida boa como mecânico e parece óbvio que estas vidas particulares serão bastante diferentes. Mas para serem ambas vidas boas há coisas que terão de estar presentes em qualquer uma delas, assim como em qualquer vida boa. A estas coisas Rawls chama bens primários. Há dois tipos de bens primários, os sociais e os naturais. Os bens primários sociais são directamente distribuídos pelas instituições sociais e incluem o rendimento e a riqueza, as oportunidades e os poderes, e os direitos e as liberdades. Os bens primários naturais são influenciados, mas não directamente distribuídos, pelas instituições sociais e incluem a saúde, a inteligência, o vigor, a imaginação e os talentos naturais. Podes achar estranho que as instituições sociais distribuam directamente rendimento e riqueza, mas segundo Rawls as empresas são instituições sociais.

Ora, sob o véu de ignorância, as pessoas querem princípios de justiça que lhes permitam ter o melhor acesso possível aos bens sociais primários. E, como não sabem que posição têm na sociedade, identificam-se com qualquer outra pessoa e imaginam-se no lugar dela. Desse modo, o que promove o bem de uma pessoa é o que promove o bem de todos e garante-se a imparcialidade. O véu de ignorância é assim um teste intuitivo de justiça: se queremos assegurar uma distribuição justa de peixe por três famílias, a pessoa que faz a distribuição não pode saber que parte terá; se queremos assegurar um jogo de futebol justo, a pessoa que

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estabelece as regras não pode saber se a sua equipa está a fazer um bom campeonato ou não. Imagina os seguintes padrões de distribuição de bens sociais primários em mundos só com três pessoas:

Mundo 1: 9, 8, 3;

Mundo 2: 10, 7, 2;

Mundo 3: 6, 5, 5.

Qual destes mundos garante o melhor acesso possível aos bens em questão? Lembra-te que te encontras envolto no véu de ignorância. Arriscas ou jogas pelo seguro? Tentas maximizar o melhor resultado possível ou tentas maximizar o pior resultado possível? Rawls responde que a tua intuição de justiça te conduzirá ao mundo 3. A escolha racional será essa. A estratégia de Rawls é conhecida como "maximin", dado que procura maximizar o mínimo. (Repara que a soma total de bens sociais do mundo 1 é 20, ao passo que no mundo 3 a soma total é apenas 16. Por outras palavras, o mundo 3 é menos rico do que o mundo 1, mas mais igualitário.) Nessa medida, defende que devemos escolher, de entre todos as situações possíveis, aquela em que a pessoa menos favorecida fica melhor em termos de distribuição de bens primários. É verdade que os outros dois padrões de distribuição têm uma utilidade média mais alta. (A utilidade média obtém-se somando a riqueza total e dividindo-a pelas pessoas existentes. A utilidade média do mundo 1 é 6,6 e a do mundo 3 é de apenas 5,3.) Todavia, como só tens uma vida para viver e nada sabes sobre qual será a tua posição mais provável nos outros dois padrões, a escolha do mundo 3 é mais racional e ao mesmo tempo mais compatível com as tuas intuições de igualdade e justiça. E o que diz o princípio da diferença? Diz precisamente que a sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza, excepto as desigualdades económicas e sociais que beneficiam os menos favorecidos. Afinal, parece que nenhuma das desigualdades dos mundos 1 e 2 traz benefícios para os menos favorecidos.

IV - OBJECÇÕES

1) A teoria de Rawls não compensa as desigualdades naturais

A concepção comum de igualdade de oportunidades não limita a influência dos talentos naturais. Rawls tenta resolver essa falha através do princípio da diferença. Assim, os mais talentosos não merecem ter um rendimento maior e só o têm se com isso beneficiarem os menos favorecidos. Mas talvez Rawls não tenha resolvido o problema. Talvez a sua teoria da justiça deixe ainda demasiado espaço para a influência das desigualdades naturais. E nesse caso o destino das pessoas continua a ser influenciado por factores arbitrários.

Rawls define os menos favorecidos como aqueles que têm menos bens sociais primários. Imagina agora duas pessoas na mesma posição inicial de igualdade: têm as mesmas liberdades, recursos e oportunidades. Uma das pessoas tem o azar de contrair uma doença grave, crónica e incapacitante. Esta desvantagem natural implica custos na ordem dos 200 euros por mês para medicação e equipamentos. O que oferece a teoria de Rawls a esta pessoa? Como esta pessoa tem os mesmos bens sociais que a outra e os menos favorecidos são definidos em termos de bens sociais primários, a teoria de Rawls não prevê a possibilidade de a compensar. Sobre as desigualdades naturais, apenas é dito que os mais agraciados em talentos pela natureza podem ter um rendimento maior se com isso beneficiarem os menos favorecidos.

O princípio da diferença assegura os mesmos bens sociais primários a esta pessoa doente, mas não remove os encargos causados, não pelas suas escolhas, mas pela circunstância de ter contraído uma doença grave, crónica e incapacitante. A crítica à concepção dominante de igualdade de oportunidades devia ter levado Rawls ao princípio de que as desigualdades naturais, tal como as sociais, devem ser compensadas. Não se vê justificação para tratar as limitações naturais de maneira diferente das sociais. Logo, as desvantagens naturais devem ser compensadas (equipamento, transportes, medicina e formação profissional subsidiadas). A

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teoria de Rawls enfrenta a objecção de não reconhecer como desejável a tentativa de compensação destas desvantagens.

2) A teoria de Rawls leva a que certas escolhas subsidiem injustamente outras

A intuição que está por detrás da objecção anterior diz-te que não é justo responsabilizar as pessoas pelas circunstâncias em que por acaso se encontram: um deficiente não é responsável pela sua deficiência e um doente crónico pela sua doença crónica. O outro lado da mesma intuição diz-te agora que não é justo desresponsabilizar as pessoas pelas suas escolhas. Mais uma vez, o recurso a um exemplo pode ajudar-te a compreender melhor o que está em jogo.

Imagina duas pessoas que trabalham na mesma empresa de electrodomésticos. Têm, por isso, os mesmos recursos económicos. Mas também têm em comum os mesmos talentos naturais e antecedentes sociais. Uma delas é apaixonada por futebol e gasta uma parte razoável do seu rendimento nas deslocações permanentes que faz para apoiar o seu clube. Somadas as outras despesas inevitáveis de uma família, nada sobra. Por vezes esta família tem de recorrer a apoio social do estado. A outra resolveu estudar sistemas eléctricos depois do expediente normal de trabalho. Após um período de estudo, compra o equipamento necessário e resolve vender os seus serviços de electricista das seis da tarde às nove da noite. Com muitas horas de trabalho, esforço e competência, duplica o rendimento inicial. O princípio da diferença diz que as desigualdades de rendimento são permitidas se beneficiarem os menos favorecidos. Que consequência tem a sua aplicação a este caso? A consequência de fazer o apaixonado por futebol beneficiar do rendimento do electricista esforçado.

Isto viola a tua intuição de justiça. Parece obviamente justo compensar custos não escolhidos (doenças, deficiências, etc.), mas é obviamente injusto compensar custos escolhidos. E é isso o que acontece neste caso; o princípio da diferença leva a que o electricista esforçado pague do seu bolso a escolha que faz e ainda subsidie a escolha do apaixonado por futebol. Corrói assim a igualdade em vez de a promover: cada um tem o estilo de vida que prefere, mas um vê o seu rendimento aumentado e o outro vê o seu rendimento diminuído através dos impostos com que subsidia o outro. Rawls afirma que a sua teoria da justiça tem a preocupação de regular as injustiças que resultam das circunstâncias, e não das escolhas. Mas porque não faz a distinção entre desigualdades escolhidas e desigualdades não escolhidas, o princípio da diferença viola a tua intuição de que é justo que cada um seja responsável pelos custos das suas escolhas. A não ser assim, que sentido fazem ainda o esforço e a ambição das nossas escolhas pessoais?

As duas objecções precedentes foram apresentadas pelo filósofo Ronald Dworkin.

3) A objeção do jogador de basquetebol

Esta objecção foi apresentada pelo filósofo Robert Nozick. Ao contrário das duas objecções anteriores, não procura melhorar o princípio da diferença de maneira a que respeite cabalmente as nossas intuições morais de igualdade e justiça. O objectivo de Nozick é antes derrubar o princípio da diferença e fazer assentar em bases sólidas o seu princípio da transferência — tudo o que é legitimamente adquirido pode ser livremente transferido. Para isso, formula o contra-exemplo que é a seguir submetido à tua avaliação.

Wilt Chamberlain é um jogador de basquetebol em alta. A sociedade em que vive distribui a riqueza segundo o princípio da diferença ou segundo o princípio "a cada um segundo as suas necessidades", ou então segundo o princípio que achares mais correcto — escolhe o princípio que quiseres. A esta distribuição de riqueza vamos chamar D1. Depois de várias propostas, Wilt Chamberlain decide assinar o seguinte contrato com uma equipa: nos jogos em casa, recebe 25 cêntimos por cada bilhete de entrada. A emoção é grande. Todos o querem ver jogar. Chamberlain joga muito bem. Vale a pena pagar o bilhete. A época termina e 1 milhão de pessoas viu os jogos. Chamberlain ganhou 250 000 euros. O rendimento obtido é bem maior

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que o rendimento médio. Gera-se assim uma nova distribuição de riqueza na sociedade em questão, a que vamos chamar D2.

Por que razão é este caso um contra-exemplo ao princípio da diferença? Dado que cria uma enorme desigualdade, Nozick pergunta por que razão esta nova distribuição de riqueza é injusta. Na situação D1, as pessoas tinham um rendimento legítimo e não havia protestos de terceiros para que se redistribuísse a riqueza. Nenhuma questão se levantava acerca do direito de cada um controlar os seus recursos. Depois as pessoas escolheram dar 25 cêntimos do seu rendimento a Chamberlain e gerou-se a distribuição D2. Haverá agora lugar a reclamações de terceiros que antes nada reclamavam e que continuam a ter o mesmo rendimento? Que razão há para se redistribuir a riqueza? Que razão tem o estado para interferir no rendimento de Chamberlain cobrando-lhe impostos elevados?

Se concordas com Nozick e aceitas que a situação D2 é legítima, então o seu princípio da transferência está mais de acordo com as tuas intuições do que princípios redistributivos como o princípio da diferença. Mas se assim for, o que fazer em relação às desigualdades naturais que condenam à indigência pessoas cujos talentos naturais não são rentáveis no mercado? Nozick aceita que temos intuições poderosas a favor da compensação de desigualdades não escolhidas; o problema é que os nossos direitos particulares sobre as nossas posses e rendimentos não deixam espaço para direitos gerais. A propriedade é absoluta. E se o é, que meios materiais tem o Estado para garantir outros direitos? É a ti que cabe fazer um juízo sobre este problema.

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TEXTO 2 - TRECHOS DO LIVRO “A TEORIA DA JUSTIÇA” DE JOHN RAWLS

A justiça como equidade

|...] Começarei descrevendo o papel da justiça na cooperação social e uma breve síntese do sujeito fundamental da justiça: a estrutura básica da sociedade. Em seguida, apresentarei a ideia principal da justiça como equidade, uma teoria de justiça que generalize e eleve o nível de abstração do conceito tradicional de contrato social. O pacto da sociedade é substituído por um certo constrangimento processual sobre os desenvolvimentos que devem levar a um acordo inicial sobre princípios de justiça. Iremos considerar também, com o intuito de esclarecer e tornar possíveis comparações, os conceitos utilitários clássicos de justiça e os intuitivos, considerando algumas das diferenças existentes entre estes pontos de vista e a justiça como bem. A linha mestra é a produção de uma teoria da justiça que seja uma alternativa viável a estas doutrinas, que tem dominado por muito tempo nossas tradições filosóficas [...]

O papel da justiça

Vamos considerar, para fixar as ideias, que uma sociedade é, de alguma forma, uma associação auto-suficiente de indivíduos que em suas inter-relações reconhecem a certas regras de conduta o papel.de amálgama, e que agem, na maior parte das vezes, em conformidade com elas. Iremos mais longe e suporemos que estas regras determinem um sistema de cooperação com função de desenvolver o que for desejável para os que dela fazem parte. Logo, embora uma sociedade seja uma reunião de cooperações com o intuito de se obter vantagens mútuas, esta será marcada por conflitos e por interesses individualizados. Existe uma identidade de interesses a partir do momento em que a cooperação social torna possível uma vida melhor para todos, melhor do que a que cada um levaria se tivesse que viver exclusivamente de seus próprios esforços. O conflito de interesses surge quando as pessoas deixam de ser indiferentes à maneira pela qual o aumento de produtividade resultante de sua colaboração vier a ser distribuído, pois, para se atingir seus próprios objetivos, cada um dará preferência a partes maiores da partilha. Um conjunto de princípios é necessário para que haja uma opção entre os vários ajustes sociais o que, por sua vez, determinará a divisão das vantagens e assegurará um acordo para uma partilha correta. Estes princípios são os princípios de justiça social; eles proverão a determinação de direitos e deveres das instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social. [...]

Entre indivíduos com objetivos e propósitos diferentes, o compartilhar do conceito de justiça estabelece os títulos de convivência pública; o desejo geral de justiça limita a perseguição de outros fins. Poder-se-ia pensar no conceito público de justiça, como sendo a carta fundamental de uma sociedade humana em boa ordem. As sociedades atuais, é claro, raramente estão em boa ordem neste sentido, sendo que o justo e o injusto estão em geral em discussão.

O sujeito da justiça

Uma vasta categoria de atos e coisas é qualificada de justa ou injusta: [...] Nosso tema, no entanto, é o da justiça social. Para nós, o principal tema da justiça é a estrutura básica da

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sociedade ou, mais exatamente, a maneira pela qual as principais instituições sociais distribuem os direitos e deveres fundamentais e determinam a partilha dos benefícios da cooperação social. Por instituições principais, entendo a constituição política, e os principais entendimentos económicos e sociais. [...]

A estrutura básica é o tema principal da justiça, pois seus efeitos são profundos e estão presentes desde o início. A noção intuitiva aqui é que esta estrutura contém várias posições sociais e que homens nascidos em posições diferentes terão diferentes expectativas de vida, considerando-se tanto o sistema político, como as circunstâncias económicas e sociais. De certa forma, as instituições da sociedade favorecem certos pontos de partida mais do que outros. Estas desigualdades são marcadas de forma especialmente profunda. Estas últimas são não somente difundidas, mas também afetam as oportunidades iniciais de cada homem em sua vida; ainda que não seja possível justificá-las, através de um apelo às noções de mérito ou merecimento. São estas desigualdades, presumivelmente inevitáveis dentro da estrutura de qualquer sociedade, às quais os princípios de justiça social devem, em primeira instância, se aplicar. Estes princípios, então, regulam a escolha de uma constituição política e os elementos principais do sistema económico e social. A justiça de uma estrutura social dependerá essencialmente da forma pela qual os direitos e deveres fundamentais forem designados, assim como da forma pela qual as oportunidades económicas e as condições sociais forem atribuídas através dos vários setores da sociedade. [...]

A principal ideia da teoria da justiça

Meu objetivo é apresentar um conceito de justiça que generalize e leve a um nível mais alto de abstração a difundida teoria do contrato social, tal como se encontra formulado por Locke, Rousseau e Kant. Para chegarmos a tanto, não devemos considerar o contrato original como um contrato para entrar numa sociedade particular, ou para iniciar uma forma particular de governo. Melhor seria que a ideia principal fosse que os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do acordo original. Estes princípios são os que pessoas livres e racionais, reunidas pelos mesmos interesses, adotariam inicialmente quando todos estivessem numa posição de igualdade, para definir os termos fundamentais da associação que estariam fazendo. Estes princípios irão regular todos os futuros entendimentos; iriam especificar os géneros de cooperação social que poderiam vir a ser incluídos no governo, assim como determinariam as formas de governo. A esta maneira de ver os princípios de justiça chamaremos de justiça como equidade.

Deste modo, vamos imaginar que os que se engajaram na cooperação social chegaram, através de uma ação conjunta, a escolher os princípios que determinam os direitos e deveres, e estabelecem a divisão dos benefícios sociais. Os homens deverão decidir, antecipadamente, como irão resolver seus contenciosos e como deverá ser a carta fundamental de sua sociedade. [...]

A escolha que um homem racional faria nesta situação hipotética de liberdade igual para todos, seria determinante dos princípios de justiça, partindo-se do princípio de que hoje o problema de escolha já foi resolvido.

[...] Entre os traços essenciais desta situação, encontramos o fato de que ninguém conhece sua posição na sociedade, nem a posição de sua classe, e nem mesmo seu status social ou a parte que lhe caberá dentro da distribuição do conjunto de bens e das capacidades naturais, ou de sua inteligência, força ou semelhante. Assume-se também que as partes não conhecem seus diferentes conceitos de bem, ou suas propensões psicológicas particulares. Os princípios de justiça são, desta forma, estabelecidos em total ignorância da posição específica de cada um. Isto garantirá que não se possa tirar vantagens ou sofrer desvantagens durante o processo de escolha dos princípios através de decorrências de chances naturais, ou da contingência de circunstâncias sociais. A partir do momento em que

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todos se posicionam da mesma forma, ninguém seria capaz de fazer uma escolha que favoreça sua própria posição particular, e os princípios de justiça seriam o resultado de um acordo ou barganha equitativa. Estabelecidas as circunstâncias da posição original, há uma simetria entre as relações de um para outro, esta posição inicial é boa entre indivíduos morais, isto é, agindo como seres racionais com seus próprios fins e, supõe-se, com a capacidade de atuar dentro de um sentido de justiça. Poder-se-ia dizer que a posição original é um status quo apropriado, e que então, desta forma, os acordos a que se chegam, nesta situação, são equitativos. Isto mostra como o nome, Justiça como equidade, é adequado, isto levando à ideia que os princípios de justiça são estabelecidos numa situação inicial que é equitativa. [...]

Já uma sociedade que satisfaça os princípios da "justiça como equidade" tenderá a aproximar-se ao máximo de um esquema voluntário, para que se possa chegar aos princípios equitativos, aos quais pessoas livres e iguais consentiriam em submeter-se. Neste sentido, seus membros seriam autónomos e as obrigações seriam, reconhecidamente, auto-impostas.

Uma característica da justiça como equidade é considerar as partes iniciais como encontrando-se numa situação racional e de desinteresse mútuo. Isto não significa que as partes sejam egoístas, isto é, que somente se juntem pessoas com um certo tipo de interesse, com um certo nível de riqueza, prestígio e posição. No entanto, não consideramos como capazes de interessar-se pelos interesses de outros. Presumir-se-ia que até mesmo os objetivos espirituais poderão opor-se, de forma que os objetivos das diferentes religiões possam entrar em choque. Ainda mais, o conceito de racionalidade deve ser interpretado, tanto quanto possível, num sentido estrito e que é padrão na teoria económica, para se considerar os significados mais efetivos para dados fins. Deverei modificar este conceito, estendendo-o posteriormente, porém deveremos tentar evitar entrar em qualquer controvérsia com elementos éticos. A situação inicial deverá ser caracterizada por estipulações, que são largamente aceitas. [...]

A posição original e justificativa

Tenho dito que a posição original é um status quo inicial apropriado, que garanta que o acordo, nele encontrado, seja equitativo. Esse fato leva o nome de "justiça como equidade". Fica claro, então, que acho que um conceito de justiça é mais razoável do que outros, ou pelo menos mais justificável, caso pessoas racionais na situação inicial escolhessem princípios e não outros meios para fazerem o papel de justiça. Os conceitos de justiça deverão ser hierarquizados segundo suas respectivas aceitações pelas pessoas colocadas em tais circunstâncias. Compreendida desta forma, a questão da justificativa se estabelece pelo equacionamento de um problema decisório; temos que procurar descobrir quais os princípios que seriam adotados de forma racional, dada uma situação contratual. Isto liga a teoria da justiça à teoria da escolha racional.

...Um comentário final. Gostaríamos de dizer que certos princípios de justiça se justificam, porque seriam aceitos numa situação inicial de igualdade. Enfatizei o fato de que tal posição inicial é totalmente hipotética. Seria natural perguntar porque deveríamos ter algum interesse por esses princípios, moralmente ou de qualquer outra forma, já que tal acordo jamais ocorreu. A resposta é que as condições, encontradas na descrição da posição inicial, são as que aceitamos de fato. Ou, caso isto não seja verdade, sejamos então persuadidos de assim fazê-lo pela reflexão filosófica. Cada aspecto da situação contratual pode receber bases mais sólidas. Deste modo, o que faremos será juntar, num único conceito, um certo número de condições sobre princípios que reconhecemos como razoáveis, após a devida consideração. Tais restrições expressam o que consideraremos como limites dos termos equitativos da cooperação social. Consequentemente, uma forma de ver a ideia de posição inicial, é vê-la como um legado expositivo que agregue os significados destas

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condições e que nos ajude a extrair consequências. Por outro lado, esta concepção também é uma noção intuitiva que sugere sua própria colaboração, de tal forma que somos levados a esboçar definições mais claras do ponto de vista de partida, a partir do qual poderemos interpretar, da melhor maneira, as relações morais. Necessitamos de um conceito que nos permita antever nossos objetivos à distância: a noção intuitiva da posição inicial deverá fazê-lo para nós. [...]

Dois princípios de justiça

|...] Exporei agora, provisoriamente, os dois princípios de justiça que, creio eu, podem ser escolhidos na posição inicial. [...]

O primeiro dos dois princípios poderia ser formulado como segue: primeiro — cada pessoa deve ter a mais ampla liberdade, sendo que esta última deve ser igual à dos outros e a mais extensa possível, na medida em que seja compatível com uma liberdade similar de outros indivíduos. Segundo — as desigualdades económicas e sociais devem ser combinadas de forma a que ambas (a) correspondam b expectativa de que trarão vantagens para todos, e (b) que sejam ligadas a posições e a órgãos abertos a todos. [...]

Num comentário geral, estes princípios se aplicam, principalmente, a estrutura básica da sociedade, como já disse. Eles deverão governar a atribuição de direitos e deveres, assim como regular a distribuição dos benefícios sócio-econômicos. Tal como está sugerido na formulação dos princípios, estes últimos pressupõem que a estrutura social pode ser dividida em, aproximadamente, duas partes; o primeiro princípio se aplicando à primeira parte e o segundo princípio à segunda parte. Eles fazem uma distinção entre os dois aspectos do sistema social que definam e garantam a igualdade das liberdades entre os cidadãos e os que especifiquem e estabeleçam desigualdades económicas e sociais. As liberdades básicas do cidadão são, de forma geral, a liberdade política (o direito de voto e a elegibilidade para cargos públicos) associada à liberdade de expressão e de reunião; a liberdade de consciência e de pensar; a liberdade pessoal associada ao direito A propriedade; e a liberdade de não ser preso arbitrariamente e de não ser retido fora das situações definidas pela lei. Estas liberdades são todas necessárias, para que se possa atingir o princípio primeiro, pois todos os cidadãos de uma sociedade justa devem ter os mesmos direitos básicos.

O segundo princípio, numa primeira aproximação, se aplica à distribuição de renda e de bens, aplicando-se também aos propósitos de organizações que se utilizam de diferenças na autoridade e na responsabilidade ou na corrente de comando. Quanto à distribuição de bens e renda, ela não deve ser necessariamente igualitária, deverá sempre ser de forma a dar a maior vantagem possível para todos, sendo que, ao mesmo tempo, as posições das autoridades e dos órgãos de comando devem ser acessíveis a todos. Pode-se aplicar o segundo princípio, mantendo-se as posições abertas e, então, sujeitas a esse tipo de pressão, organizando-se as desigualdades sócio-econômicas para que sejam obtidas vantagens para todos.

Tais princípios devem ser organizados dentro de uma ordem serial, com o primeiro princípio antecedendo o segundo. Esta ordem significa que, partindo-se das instituições de liberdade igualitária para a exigida pelo primeiro princípio, não poderão ser justificadas ou compensadas, através de maiores vantagens económicas ou sociais. A distribuição de bens e renda, e as hierarquias e autoridade, devem ser consistentes tanto com as liberdades de cidadania igual quanto à igualdade de oportunidade.

Todos os valores sociais — liberdade, oportunidade, renda, bens e,as bases do respeito próprio — deveriam ser distribuídos igualmente, a menos que uma distribuição desigual de

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um destes valores, ou de todos, viesse a trazer vantagens para alguns. A injustiça, então, é apenas a desigualdade que não traz benefícios para todos. É óbvio que esta concepção é exatamente vaga e requer interpretações...

Numa primeira fase, suponhamos que a estrutura básica da sociedade distribua certos bens primários, isto é, coisas que todo homem racional deseje teoricamente. Estes bens, normalmente, deverão ter um uso qualquer dentro dos planos de vida do indivíduo racional. Simplificando, suponhamos que os principais bens primários à disposição da sociedade sejam direitos e liberdades, poder e oportunidades, renda e bens. [...]

Estes são os bens primários sociais. Outros bens primários tais como saúde e vitalidade, inteligência e imaginação são bens naturais; embora a posse de tais bens seja influenciada pela estrutura básica, não estará, no entanto, sob seu controle direto. Imaginemos, então, um arranjo inicial hipotético no qual todos os bens primários sociais são distribuídos igualmente; todos têm os mesmos direitos e deveres, sendo renda e bens divididos de forma imparcial. Tal situação propiciará um nível para se julgar as melhorias. Se certas desigualdades de bens e de poder organizacional oferecessem a todos melhores condições do que as oferecidas por esta situação hipotética, então estariam de acordo com a concepção geral.

É possível, então, pelo menos teoricamente, que, abrindo-se mão de certas liberdades fundamentais, os homens sejam suficientemente compensados por ganhos sócio-econômicos resultantes de tal atitude. A concepção geral de justiça não impõe restrições permitindo qualquer tipo de desigualdade; a concepção geral de justiça requer apenas que a posição de todos seja melhorada. Não precisamos supor qualquer situacão drástica, como o consentimento a uma condição escravocrata. Imaginemos que, ao invés disto, os homens antecedessem certos direitos políticos quando os retornos económicos forem significantes e sua capacidade de influenciar o curso da política, através do exercício de seus deveres, fosse marginal em qualquer caso. É este tipo de troca que os dois princípios estabelecidos excluem; sendo os princípios ordenados de forma serial, eles não permitem uma troca das liberdades básicas pelos ganhos económicos e sociais. O ordenamento serial dos princípios expressa uma preferência básica por bens sociais primários. Quando esta preferência é racional, é igualmente a escolha destes princípios nesta ordem.

A igualdade democrática e o princípio da diferença

A interpretação democrática, [...] obtém-se combinando o princípio da equitativa igualdade de oportunidades com o princípio da diferença [...]

Dando por estabelecido o quadro das instituições requeridas pela liberdade igual e a equitativa igualdade de oportunidades, são justas as expectativas mais elevadas de quem estiver melhor situado se, e só se, funcionarem como parte de um esquema que melhore as expectativas dos membros menos favorecidos da sociedade. A ideia intuitiva é que a ordem social não há de estabelecer e assegurar as perspectivas mais atraentes dos melhor situados, exceto se, a fazê-lo, seja em benefício dos menos afortunados. [...]

Para ilustrar o princípio da diferença, considere-se a distribuição da renda entre as classes sociais. Suponhamos que os diversos grupos se correlacionem com tipos representativos, cujas expectativas nos permitirão julgar a distribuição. Assim, por exemplo, alguém que, numa democracia com propriedade privada, comece como membro da classe empresarial, terá melhores perspectivas que quem principie na classe de trabalhadores não-qualificados. Parece provável que isto seria verdadeiro inclusive quando se eliminassem as injustiças sociais que existem agora. Que é, então, o que pode justificar esse tipo de desigualdade inicial nas perspectivas da vida? Conforme o princípio da diferença, só é justificável se a diferença de expectativas agir em benefício do tipo representativo pior

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colocado, neste caso o representante dos trabalhadores não-qualificados. [...] Por pressuposto, dada a condição adicional no segundo princípio em relação ao acesso aos postos e dado o princípio da liberdade em geral, as maiores expectativas, permitidas aos empresários, estimula-os a fazer coisas que aumentarão as expectativas da classe trabalhadora. Suas melhores perspectivas atuam como incentivos, que tornarão mais eficaz o processo económico, mais rápida a introdução de inovações etc. Não vou considerar em que proporção isso esteja certo. O que me interessa é que são argumentos deste tipo os que devem ser apresentados se estas desigualdades tiverem de satisfazer o princípio da diferença. [...]

A tendência à igualdade

O princípio da diferença representa, com efeito, um acordo no sentido de considerar a distribuição dos talentos naturais, em certos aspectos, enquanto um acervo comum, e de participar nos maiores benefícios económicos e sociais que fizerem possíveis os benefícios dessa distribuição. Aqueles que forem beneficiados pela natureza, quem quer que fosse, podem obter proveito da sua boa sorte apenas na medida em que melhorarem a situação dos menos favorecidos. Os beneficiados pela natureza não poderão obter lucros pelo mero fato de serem melhor dotados e sim apenas para cobrir os custos do seu treinamento e educação e para usarem seus dotes de modo que também nidades, bem como rendas e riquezas. [...] Parece evidente que, em geral, estas coisas correspondam à descrição de bens básicos. Diante da sua conexão com as estruturas básicas, as liberdades e as oportunidades são definidas pelas regras das principais instituições, e a distribuição da renda e da riqueza está regulada por elas. [...]

As circunstâncias da justiça

As circunstâncias da justiça podem ser descritas como as condições normais, sob as quais a cooperação humana é tanto possível quanto necessária, pois, como notei no início, embora uma sociedade seja um empreendimento cooperativo de vantagem mútua, está tipicamente marcada por um conflito bem como por uma identidade de interesses. [...]

Quando se supõe que as partes são diversamente desinteressadas e não estão querendo ter os seus interesses sacrificados aos outros, a intenção é expressar as condutas e motivos humanos em casos onde emergem questões de justiça. Os ideais espirtuais de santos e heróis podem ser irreconciliavelmente opostos como quaisquer outros interesses. São os mais trágicos de todos os conflitos em busca de tais ideais, pois a justiça é a virtude das práticas onde haja interesses competitivos e onde as pessoas se sintam intituladas a pressionarem reciprocamente em favor dos seus direitos. Numa sociedade de santos concordando num ideal comum, se tal comunidade pudesse existir, não ocorreriam disputas sobre a justiça. Cada qual trabalharia sem egoísmo por um objetivo enquanto determinado por sua religião comum e a referência a este objetivo (pressupondo-o claramente definido) resolveria qualquer questão de Direito. Porém uma sociedade humana se caracteriza pelas circunstâncias da justiça. O relato de tais condições não implica teoria especial da motivação humana. Pelo contrário, seu objetivo é incluir, na descrição da posição original, as relações dos indivíduos entre si, que estabeleçam o estágio para as questões de justiça. [...]

A ideia da posição original consiste em estabelecer um procedimento equitativo, de modo que sejam justos quaisquer que venham a ser os princípios acordados. O objetivo é usar a noção de pura justiça processual como uma base da teoria. De algum modo precisamos anular os efeitos das contingências específicas, que embaraçam os seres humanos e os tentam a explorar circunstâncias sociais e naturais em vantagem própria. Então, a fim de fazê-lo, presumo que as partes se situam atrás de um véu de ignorância. Não sabem como as várias alternativas afetarão seu caso particular e são obrigados a avaliar os princípios tão-só à base de considerações gerais. [...]

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Justiça política e constituição

[...] O princípio da liberdade igual, quando aplicado ao procedimento político definido pela Constituição, será por mim referido como o princípio de (igual) participação. Requer que todos os cidadãos devam ter um igual direito de tomar parte e de determinar o resultado do processo constitucional que estabeleça as leis às quais tenham de cumprir. [...]

Para a fase presente, presumo que uma democracia constitucional possa ser ajustada de modo a satisfazer o princípio da participação.

Todos os adultos sadios, com certas exceções geralmente reconhecidas, têm o direito de tomar parte em questões políticas e o preceito, um eleitor = um voto, é honrado tanto quanto possível. As eleições são equitativas e livres e regularmente efetuadas. [...]

Há firmes proteções constitucionais para certas liberdades, especialmente a liberdade de palavra e reunião e a liberdade de formar associações políticas.

O processo de participação também sustenta que todos os cidadãos devam ter um acesso igual, pelo menos no sentido formal, ao cargo público. Cada um é elegível a entrar em partidos políticos, concorrer a posições eletivas e ocupar lugares de mando. Com efeito, pode haver qualificações de idade, residência e assim por diante, mas estas têm de estar razoavelmente relacionadas às tarefas do cargo; talvez restrições sejam do interesse comum e não discriminem injustamente entre pessoas ou grupos, no sentido que recaiam desigualmente em cada um, no transcurso normal da vida. [...]

Voltando agora ao valor da liberdade política, a Constituição precisa agir para assegurar o valor dos direitos iguais de participação, para todos os membros da sociedade. Deve subscrever uma equitativa oportunidade para tomar parte e influenciar o processo político. [...] Porém como deve ser assegurado este valor equitativo destas liberdades?

As liberdades, protegidas pelo princípio de participação, perdem muito do seu valor, onde quer que aqueles, que têm maiores meios privados, forem permitidos de usar suas vantagens, para controlar o transcurso do debate público, pois, eventualmente essas vantagens permitirão, àqueles melhor situados, exercer uma influência mais larga sobre o desenvolvimento da legislação. No tempo devido, tendem a adquirir um peso preponderante, resolvendo questões sociais, pelo menos em relação àquelas questões sobre as quais normalmente concordam, isto é, em relação àquelas coisas que apoiam suas circunstâncias favoráveis.

Passos compensadores devem, então, ser dados, para preservar o valor equitativo das liberdades políticas iguais para todos. Pode ser usada uma variedade de instrumentos. Por exemplo, numa sociedade permitindo a propriedade privada dos meios de produção, a propriedade e a riqueza devem ser mantidas, amplamente distribuídas e os meios de governo dispostos numa base regular de modo a encorajar a livre discussão pública. Além disso, os partidos políticos têm de ser independentes diante dos interesses económicos privados, concedendo-lhes rendimentos de impostos para desempenhar o seu papel no esquema constitucional. [...] O que é necessário é que os partidos políticos sejam autónomos diante de demandas privadas, isto é, demandas não expressas no fórum público e defendidas abertamente com referência a uma concepção do bem comum. [...]

A interpretação kantiana da justiça como equidade

[...] Considerarei o conteúdo do princípio da liberdade igual e do significado da prioridade de direitos que define. Parece apropriado, neste ponto, notar que há uma interpretação kantina da concepção de justiça, da qual este princípio deriva. Essa interpretação se baseia na noção de Kant sobre a autonomia. É um erro, creio, enfatizar o lugar da generalidade e universalidade na ética de Kant. [...] É impossível construir uma teoria moral em bases tão

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frágeis e, portanto, limitar a discussão da doutrina de Kant àquelas noções significa reduzi-la à trivialidade. A real força do seu ponto de vista jaz noutra parte.

Pelo menos, ele começa com a ideia de que os princípios morais são o objeto da escolha racional. Definem a lei moral que os homens podem racionalmente querer para governar sua conduta numa comunidade ética. A filosofia moral torna-se o estudo da concepção e resultado de uma decisão racional adequadamente definida. Esta ideia tem consequências imediatas, pois enquanto pensarmos os princípios morais como legislação em favor de um reino de fins, é claro que tais princípios devam não apenas ser aceitáveis a todos, quanto ser também públicos. Finalmente, Kant supõe que esta legislação moral deva ser convencionada sob condições que caracterizem os homens como entes racionais, livres e iguais. A descrição da posição original é uma tentativa de interpretar esta concepção. Não desejo discutir aqui em favor de tal interpretação à base do texto de Kant. Certamente, alguns quererão lê-lo de maneira diferente. Talvez as observações a seguir sejam melhor tomadas como sugestões para relacionar a justiça, como equidade, ao alto nível da tradição contratualista em Kant e Rousseau.

Kant sustentava, creio, que uma pessoa estivesse agindo autonomamente quando os princípios da sua ação fossem escolhidos por ela como a mais adequada expressão possível da sua natureza como um ente racional, livre e igual. Os princípios, sobre os quais age, não são adotados por causa da sua posição social ou dons naturais, ou em vista da particular espécie de sociedade na qual vive ou as coisas específicas às quais deseja. Agir à base de tais princípios significa agir heteronomamente. Então o véu de ignorância priva as pessoas, na posição original, do conhecimento que as capacitaria a escolher princípios heterônomos. As partes atingem o ponto de escolha em geral como pessoas racionais, livres e iguais, só sabendo que aquelas circunstâncias fazem com que dêem alento à necessidade de princípios de justiça.

Então, entendido adequadamente, o desejo de justamente agir deriva em parte do desejo de expressar, mais plenamente, o que somos ou podemos ser, a saber, entes racionais, livres e iguais, com a liberdade de escolha. É por esse motivo, creio, que Kant fala do fracasso de agir, enquanto lei moral, como dando margem à vergonha e não a sentimentos de culpa, e isto é cabível, desde que, para ele, agir injustamente significa agir de um modo que falhe em expressar nossa natureza como um ente racional, livre e igual. Portanto, tais ações atingem nosso auto-respeito, nosso senso de nossa dignidade e a experiência de tal perda é a vergonha. Agimos como se pertencêssemos a uma ordem inferior, como se fôssemos uma criatura cujos primeiros princípios fossem decididos por contingências naturais. Aqueles que imaginam a doutrina moral de Kant como uma de lei e culpa, caem gravemente em equívoco. O principal objetivo de Kant é aprofundar e justificar a ideia de Rousseau que a liberdade está agindo de acordo com uma lei que concedemos a nós próprios e isto não conduz a unia moralidade de mandamento austero e sim a uma ética de respeito mútuo e auto-estima.

Os fundamentos institucionais da justiça distributiva

O principal problema da justiça distributiva é a escolha de um sistema social. Os princípios da justiça aplicam-se à estrutura básica e regulam como suas maiores instituições são combinadas num esquema. Então, como vimos, a ideia da justiça como equidade tem de usar a noção de pura justiça processual, para lidar com as contingências das situações particulares. O sistema social tem de ser esboçado de maneira que a resultante distribuição seja justa, por mais que as situações se alterem. Para consegui-lo, é necessário situar o processo social e económico dentro dos limites de adequadas instituições políticas e legais. Sem um adequado esquema desses fundamentos institucionais, não será justo o resultado do processo distributivo [...]

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Primeiro que tudo, presumo que a estrutura básica seja regulada por uma constituição justa, que assegure as liberdades da igual cidadania. [...] As liberdades de consciência e de pensamentos são consideradas pressupostos e mantido o justo valor da liberdade política. O processo político é conduzido, na medida em que as circunstâncias permitam, enquanto um justo procedimento de escolha entre governos e para aplicar legislação justa. Também presumo que haja justa (enquanto oposta à formal) igualdade de oportunidade. Isto significa que, além de manter os tipos usuais de capital social avançado, o governo busca assegurar oportunidades iguais de educação e cultura, para pessoas similarmente dotadas e motivadas, seja subsidiando escolas privadas ou estabelecendo um sistema de escola pública. Também aplica e subscreve a igualdade de oportunidade nas atividades económicas e na livre escolha de ocupação. Isso é conseguido policiando a conduta das firmas e das associações privadas e evitando o estabelecimento de restrições e barreiras monopolísticas às posições mais desejáveis. Finalmente, o governo garante um mínimo social, seja por dotações familiares e pagamentos especiais por doença e emprego, seja mais sistematicamente através de recursos tais como um suplemento de renda (um chamado imposto de renda negativo).

EXTRAÍDO DO LIVRO : “CONTRATO SOCIAL ONTEM E HOJE”, KRISCHIKE, PAULO J., (ORG.), CORTEZ, 1993

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