fidelidade ao texto e a expressividade na interpretação musical: uma visão neuropsicológica

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008 Fidelidade ao texto e a expressividade na interpretação musical: uma visão neuropsicológica Márcia Kazue Kodama Higuchi USP [email protected] Resumo: Nos últimos 150 anos, a necessidade de respeitar as indicações do compositor tem sido quase um dogma na performance musical erudita, porém muitos intérpretes questionam esse paradigma alegando que esta forma de interpretação inibe a expressividade, impedindo a manifestação da idéia artística individual do intérprete. Esta pesquisa é uma análise descritiva interdisciplinar apoiada em trabalhos desenvolvidos nos campos da musicologia, ensino musical, psicologia e na neurociência que visam a explicar ou dar sentido à polêmica relacionada à função da fidelidade ao texto na expressividade interpretativa musical. Encontramos dados na musicologia, psicologia e neurociência de que a espontaneidade é um fator importante na expressividade interpretativa musical e que tocar de acordo com as indicações pode realmente inibir a expressividade. Por outro lado, encontramos evidências no ensino musical de que tocar apenas espontaneamente traz uma grande limitação na capacidade expressiva do instrumentista e a prática de tocar de acordo com as indicações da partitura é um instrumento de extrema eficiência para desenvolver a capacidade expressiva mais elaborada. Palavras chave: expressividade; neuropsicologia; fidelidade ao texto 1. Introdução Nos últimos 150 anos, várias correntes musicais eruditas têm defendido a idéia de que a função do intérprete é fazer a intermediação, da forma mais precisa possível, entre a idéia do compositor e a execução musical que efetivamente chega até o ouvinte. Para estas correntes, as liberdades interpretativas são toleradas, porém com uma importante restrição, as interpretações têm o dever de respeitar as hipotéticas regras de interpretação estilística da época, bem como a suposta idéia do compositor. As origens deste paradigma provavelmente se situam no período romântico. Segundo Walker (1983, p. 316): O termo “interpretação clássica” foi uma descoberta dos Românticos. [...] Beethoven não tocava suas músicas ‘classicamente’. O que na profissão é conhecido atualmente como ‘fidelidade ao texto’ era raramente citado até a segunda metade do século XIX. Com base nestes princípios, interpretação e expressividade na didática pianística erudita têm se utilizado de algumas regras estilísticas para trabalhar a musicalidade. Porém esta forma de interpretação não é uma prática consensual, uma vez que enfrenta fortes críticas desde o período romântico. 1 Segundo Walker (1983), a interpretação fiel ao texto foi um motivo de grande preocupação para Liszt, que a considerava como negação à personalidade artística do intérprete 1 Walker (1983); Schuller (1997); Higuchi (2003).

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Resumo: Nos últimos 150 anos, a necessidade de respeitar as indicações do compositor tem sidoquase um dogma na performance musical erudita, porém muitos intérpretes questionam esseparadigma alegando que esta forma de interpretação inibe a expressividade, impedindo amanifestação da idéia artística individual do intérprete. Esta pesquisa é uma análise descritivainterdisciplinar apoiada em trabalhos desenvolvidos nos campos da musicologia, ensino musical,psicologia e na neurociência que visam a explicar ou dar sentido à polêmica relacionada à função dafidelidade ao texto na expressividade interpretativa musical. Encontramos dados na musicologia,psicologia e neurociência de que a espontaneidade é um fator importante na expressividadeinterpretativa musical e que tocar de acordo com as indicações pode realmente inibir aexpressividade. Por outro lado, encontramos evidências no ensino musical de que tocar apenasespontaneamente traz uma grande limitação na capacidade expressiva do instrumentista e a práticade tocar de acordo com as indicações da partitura é um instrumento de extrema eficiência paradesenvolver a capacidade expressiva mais elaborada.Palavras chave: expressividade; neuropsicologia; fidelidade ao texto

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  • Anais do SIMCAM4 IV Simpsio de Cognio e Artes Musicais maio 2008

    Fidelidade ao texto e a expressividade na interpretao musical: uma viso neuropsicolgica

    Mrcia Kazue Kodama Higuchi USP

    [email protected] Resumo: Nos ltimos 150 anos, a necessidade de respeitar as indicaes do compositor tem sido quase um dogma na performance musical erudita, porm muitos intrpretes questionam esse paradigma alegando que esta forma de interpretao inibe a expressividade, impedindo a manifestao da idia artstica individual do intrprete. Esta pesquisa uma anlise descritiva interdisciplinar apoiada em trabalhos desenvolvidos nos campos da musicologia, ensino musical, psicologia e na neurocincia que visam a explicar ou dar sentido polmica relacionada funo da fidelidade ao texto na expressividade interpretativa musical. Encontramos dados na musicologia, psicologia e neurocincia de que a espontaneidade um fator importante na expressividade interpretativa musical e que tocar de acordo com as indicaes pode realmente inibir a expressividade. Por outro lado, encontramos evidncias no ensino musical de que tocar apenas espontaneamente traz uma grande limitao na capacidade expressiva do instrumentista e a prtica de tocar de acordo com as indicaes da partitura um instrumento de extrema eficincia para desenvolver a capacidade expressiva mais elaborada. Palavras chave: expressividade; neuropsicologia; fidelidade ao texto 1. Introduo

    Nos ltimos 150 anos, vrias correntes musicais eruditas tm defendido a idia de que a funo do intrprete fazer a intermediao, da forma mais precisa possvel, entre a idia do compositor e a execuo musical que efetivamente chega at o ouvinte. Para estas correntes, as liberdades interpretativas so toleradas, porm com uma importante restrio, as interpretaes tm o dever de respeitar as hipotticas regras de interpretao estilstica da poca, bem como a suposta idia do compositor.

    As origens deste paradigma provavelmente se situam no perodo romntico. Segundo Walker (1983, p. 316):

    O termo interpretao clssica foi uma descoberta dos Romnticos. [...] Beethoven no tocava suas msicas classicamente. O que na profisso conhecido atualmente como fidelidade ao texto era raramente citado at a segunda metade do sculo XIX.

    Com base nestes princpios, interpretao e expressividade na didtica pianstica erudita tm se utilizado de algumas regras estilsticas para trabalhar a musicalidade. Porm esta forma de interpretao no uma prtica consensual, uma vez que enfrenta fortes crticas desde o perodo romntico.1 Segundo Walker (1983), a interpretao fiel ao texto foi um motivo de grande preocupao para Liszt, que a considerava como negao personalidade artstica do intrprete

    1 Walker (1983); Schuller (1997); Higuchi (2003).

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    Evidncias coletadas em reas distintas como: musicologia, neurocincia e psicologia cognitiva tm apontado que este procedimento pode proporcionar fortes inibies para a expressividade do intrprete. Por outro lado, observaes coletadas no ensino pianstico demonstram que esta prtica importante para o desenvolvimento da interpretao musical mais elaborada. Este trabalho, portanto, tem como objetivo fazer uma anlise destes dados bibliogrficos, com o intuito de compreender de que forma a fidelidade do texto influencia a expressividade interpretativa musical.

    2. Prazer, Espontaneidade e

    Expressividade

    Levantamentos musicolgicos indicam que Beethoven um dos grandes responsveis pela transio rumo ao romantismo na msica no tocava de uma maneira clssica. Segundo seus contemporneos como Ries, Cramer, Tomsek e outros, todos testemunharam a imprevisibilidade das performances de suas prprias msicas (Walker 1983, p. 316).

    Liszt destacava-se no apenas pela virtuosidade, mas principalmente pela sua capacidade de comover seus ouvintes continuamente procurava novas maneiras de tocar velhas msicas (como sonatas de Beethoven).

    Chopin respeitado e admirado por sua musicalidade exigia naturalidade e simplicidade na execuo pianstica. Segundo Hipkins, seu contemporneo, Chopin nunca tocava suas prprias composies duas vezes de forma similar, mas variava de acordo com seu humor (apud Eigeldinger 1986, p.55). Nada era mais estranho natureza de Chopin do que exagero, fingimento e sentimentalidade. Mas a execuo seca e inexpressiva tambm lhe era insuportvel.

    Quando a pea era espontaneamente expressada, com musicalidade inata, ele sentia uma grande felicidade. A descrio de uma aula para o seu aluno Peru, demonstra que Chopin no exigia de seus alunos uma interpretao definida. Mas esperava deles uma interpretao simples e natural de acordo com suas inspiraes do momento, ou seja, sempre cambiantes de acordo com seu estado de esprito.

    Quantas vezes o vi levantar-se do sof onde estava deitado e pegar meu lugar no piano para tocar como ele sentia a pea que eu tinha tocado mal, que seja dito , de uma forma completamente diferente, apesar deu ter trabalhado longa e arduamente nela! Assim terminava a aula, para que eu no esquecesse aquela experincia, que tinha escutado de uma forma religiosa. Na aula seguinte, quase satisfeito com a maneira imitativa como trabalhara a pea, toquei-a novamente. Infelizmente, quando terminei, Chopin, mais uma vez, esticado sobre o sof, levantou-se e com uma repreenso sentou-se ao piano, dizendo: escute, assim que deveria de ser. E ele se ps a tocar novamente de uma maneira totalmente diferente. Com lgrimas nos olhos, pude responder apenas que aquela demonstrao no se assemelhava em nada com a primeira. Um desencorajamento envolveu todo o meu ser. Ento ele sentiu pena de mim, dizendo que estava quase bom, apenas no do jeito que o sinto.(Eigeldinger 1986, p.55 e 56)

    Portanto, ao que parece, Beethoven, Liszt, e Chopin que foram compositores intrpretes famosos por sua expressividade, acreditavam que a expressividade estaria vinculada espontaneidade. Atualmente, alguns dados conhecidos pela neuropsicologia indicam a hiptese da real existncia desse vnculo.

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    3. Emoo, Expressividade e Espontaneidade

    A msica tem a capacidade de causar vrias reaes nos estados mental, fsico e emocional do ser humano (Sacks, 2007). Porm, no se sabe ao certo como a msica consegue provocar emoes. No meio musical muitas vezes bastante difundida a idia de que a expressividade musical est relacionada ao sistema composicional. Nos sculos XVI, XVII e XVIII estava em vigor um conceito terico conhecido como a doutrina dos afetos que relacionava determinados recursos musicais (ritmos, motivos, intervalos, etc.) a estados emocionais especficos. Muitas idias desta doutrina perduram at hoje, por exemplo, alguns estudos sugerem que as caractersticas musicais que mais influenciam nas respostas emocionais so os modos e o andamento (Dalla Bella et al., 2001).

    Embora seja inegvel a importncia da estrutura composicional na evocao das emoes atravs da msica, uma composio musical com elementos expressivos no seria suficiente para que as idias e os sentimentos imbudos na msica fossem transmitidos aos ouvintes. A idia de que a emoo do intrprete exerce um importante papel neste processo bastante defendida por vrios profissionais da rea musical. Higuchi (2003) elaborou um painel terico que fornece elementos e justificativas sobre a importncia da emoo do intrprete para que ocorra a transmisso expressiva atravs da interpretao pianstica.

    De acordo com esse painel terico, o sistema nervoso, ao receber alguma informao ou estmulo que provoque uma emoo, ativa automaticamente uma cadeia de reaes, preparando o corpo para uma resposta especfica a cada situao.

    As reaes procedentes das emoes, por serem automticas, espontneas e involuntrias, influenciam todas as atividades do ser humano como a postura do corpo, a cor da pele, a feio do rosto, os gestos, a entonao da voz e a forma de expresso. Estas reaes refletem-se tambm na forma de tocar msica, influenciando a qualidade timbrstica, ritmo, nfases e inflexes interpretativas, propondo que a expressividade interpretativa musical tem um princpio similar prosdia (Juslin, 1997, 2001 e 2005; Pertz, 2005). E de acordo com o neurologista Oliver Sacks (1987), a prosdia mais precisa em expressar emoes do que a linguagem verbal.

    Assim esta atual pesquisa entende que a capacidade da msica provocar fortes emoes requer uma composio musical com elementos expressivos e uma interpretao condizente com a obra a ser executada. Estas idias so reforadas por vrias pesquisas que tm demonstrado que msicos profissionais conseguem tocar uma mesma msica com diferentes nuanas expressivas (Gabrielsson & Juslin 1996, Juslin 1997, 2000, 2005 e Canazza et al 2003) e que tanto msicos especialistas como leigos conseguem identificar a emoo transmitida atravs da audio (Juslin 1997). E estudos neurocientficos indicam que as audies musicais podem desencadear fortes emoes (Blood e Zatorre 2001; Brown et al. 2004; e Menon e Levitin 2005). Portanto, se esta teoria estiver correta, a emoo do instrumentista no momento da performance exerce um papel essencial neste processo, pois ela que provoca as reaes que se refletem na forma de tocar, resultando na expressividade interpretativa.

    Estes dados corroboram a idia de autores (Higuchi, 2003; Grindea 2001)

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    que entendem que h relao entre a expressividade performtica musical e o estado de fluxo descrito por Csikszentmihlyi (1997), estado no qual a pessoa consegue se concentrar totalmente na atividade que est desenvolvendo e toda sua emoo dirigida e canalizada para a realizao daquela tarefa. No estado de fluxo, a pessoa perde noes de espao e tempo. A qualidade da ateno em fluxo relaxada, mas altamente concentrada. O crebro se encontra num estado frio, e as tarefas so executadas com um dispndio mnimo de energia mental, ativando apenas circuitos neurais sintonizados com a demanda do momento (Goleman 1995).

    Portanto, se em fluxo as atividades psico-motoras e a emoo da pessoa esto focadas na tarefa e so ativados apenas os circuitos neurais sintonizados com aquela demanda, isto significa que a emoo, fruto legtimo daquela expresso, estaria isenta de fingimento, seria autntica. Assim, toda a emoo sentida estaria explicitamente representada por cada gesto, toque e feio da pessoa que a estivesse manifestando.

    Desta forma, para inibir, fingir ou exagerar uma emoo, seria necessria uma concentrao forada, o que necessariamente interromperia o fluxo expressivo. Portanto seria razovel concluir que, para atingir o fluxo em uma performance pianstica, necessrio que esta execuo ocorra isenta de preocupao, ou seja, o mais espontaneamente possvel.

    Portanto, se esta constatao for reflexo de um fenmeno natural, a doutrina da fidelidade ao texto contm um elemento inibidor da expressividade em sua essncia, considerando-se que ao tocar em estado de xtase as mos parecem mover-se automaticamente, realizando fraseados, nuanas de dinmica e rubatos determinados pelo

    estado fsico, mental e emocional, ao passo que, ao tocar com a preocupao de reproduzir uma suposta idia do compositor, o intrprete precisa inibir estas mudanas automticas para poder manter suas mos sob controle e executar todas as indicaes descritas na partitura, impedindo assim a interpretao espontnea.

    Estudos na rea da neurocincia, utilizando ressonncia magntica funcional (aparelho que permite estudar quais reas cerebrais so ativadas durante a realizao de determinadas tarefas) tm apresentado dados que corroboram a hiptese de que tocar de acordo com o original pode inibir a expressividade. De uma forma bem simplificada, a inibio ocorre da seguinte maneira: o crebro humano tem aproximadamente 100 bilhes de neurnios e o responsvel pelo comando das funes necessrias para a execuo musical, como os movimentos dos dedos, o processamento rtmico, assim como a audio, percepo, ateno, memorizao e emoo. O crebro dividido em dois lados (hemisfrios) e cada lado est dividido em reas que so responsveis por funes especficas, por exemplo, as reas que so responsveis pela audio se encontram nas laterais do crebro2.

    Todas estas funes ocorrem atravs de transmisses de sinais (conhecidos por sinapses) entre determinados neurnios. As sinapses podem ser excitatrias quando, como o prprio nome define, enviam sinais que excitam o outro neurnio, ou inibitrias quando enviam sinais que inibem o outro neurnio. Quando uma pessoa estuda

    2 Embora cada parte do crebro tenha funo especfica, o processamento das funes extremamente complexo. A audio de uma nica nota, por exemplo, envolve a ativao de diversas partes distintas do crebro.

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    msica, por exemplo, determinadas regies do crebro so ativadas, enquanto outras partes so inibidas.

    Segundo estudo de Blair et al. (2007), as ativaes de vrias reas cerebrais atravs da cognio3, podem inibir as amgdalas (ncleos cerebrais responsveis pela emoo). E a prtica de tocar fielmente o texto requer muitas atividades cognitivas, uma vez que esta prtica requer conhecimentos musicolgicos especficos e a realizao precisa das indicaes de todos esses conhecimentos musicolgicos conectadas s indicaes apresentadas nas partituras.

    Se, desde j, todos estes pressupostos forem tidos como vlidos, podemos deduzir que Chopin saberia o que exigir de seus alunos para que conseguissem atingir a expressividade. Possivelmente por esta razo ele tenha repreendido seu aluno por um esforo de imitao de sua prpria execuo. Alm disso, ainda provvel que, na sua opinio, esse caminho no levaria o aluno a atingir a expressividade desejada.

    Ao exigir simplicidade, espontaneidade e sinceridade para obter a expressividade na execuo, Chopin tambm deveria acreditar que a expressividade estivesse vinculada espontaneidade. Mas este vnculo pode ter sido percebido emprica, intuitiva e instintivamente, e sem maiores conhecimentos conscientes sobre a forma pela qual ocorre a transmisso de idias e emoes na interpretao espontnea.

    3 Estudos utilizando tarefas de stroop afetivo, indicam que ativaes de reas laterais, orbitais e dorsolaterais do crtex frontal podem inibir as amgdalas. Blair et al. (2007) acrescentaram a esta hiptese, a possibilidade dos crtices temporal, occiptal, e frontal lateral inibirem as amgdala por meio de ativao do crtex frontal medial.

    4. O Limite da Espontaneidade

    Apesar de haver evidncias de que a espontaneidade traga a expressividade como grande benefcio, tornando a interpretao rica em nuanas e aggicas atreladas s emoes e s idias do intrprete, percebe-se que a espontaneidade no suficiente para o desenvolvimento de uma execuo musical mais elaborada. A evoluo destas execues fica restrita limitao tcnica do instrumentista. Em outras palavras, a espontaneidade pode atingir o limite mais alto da capacidade interpretativa e tcnica do instrumentista, todavia uma interpretao espontnea no chega a levar um pianista ou um estudante a desenvolver uma capacidade tcnica acima daquela que possui. Se, por exemplo, um estudante tiver uma limitao motora que permite tocar piano apenas de uma forma pesada e dura, no haver espontaneidade que faa ele tocar de outra maneira, ou seja, a diversidade timbrstica e a dinmica da execuo sero restringidas a apenas uma alternativa e ainda a uma opo inadequada, comprometendo seriamente a sua capacidade expressiva.

    Por outro lado, a habilidade motora necessria para um alto nvel de interpretao pianstica extrema, uma vez que a habilidade necessria no se restringe agilidade. Estudos indicam que expressividade na performance musical resultado de pequenas e grandes variaes na aggica, na dinmica, no timbre, nas articulaes entre outros aspectos (Juslin 2000). Portanto entendemos que a capacidade expressiva do intrprete est relacionada tambm ao grau da sua capacidade tcnica, uma vez que pequenas nuanas expressivas requerem alto grau de preciso motora, o que raramente obtido sem um grande e extenso trabalho tcnico. E, de acordo com o ensino musical, tocar de forma fiel ao original a forma mais indicada e adequada para conseguir desenvolver toda essa tcnica necessria

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    para a interpretao expressiva mais elaborada.

    5. Concluso

    Portanto encontramos um grande paradoxo em toda esta questo. H indcios de que a fidelidade ao texto pode inibir a expressividade, porm a prtica de estudo tocando apenas espontaneamente no desenvolve recursos tcnicos necessrios para uma execuo musical expressiva mais elaborada e, justamente a adoo da fidelidade ao texto pode contribuir para o desenvolvimento desses recursos tcnicos.

    Na verdade, mesmo havendo indcios de que a adoo da fidelidade ao texto pode, a princpio, inibir a expressividade, a tarefa de tocar de acordo com as indicaes escritas no texto desenvolve o controle motor que possibilitar o estudante a ter recursos para conseguir expressar sua emoo de forma mais precisa. Outra contribuio importante desta tarefa reside no fato de que tanto as indicaes da partitura, como os conhecimentos resgatados por estudos musicolgicos, proporcionam um conhecimento mais rico e profundo da pea e, deste modo, o estudante ter muito mais recursos e condies de fazer uma interpretao coerente e mais expressiva.

    Embora estudos neurocientficos indiquem que a cognio pode inibir a expressividade, de acordo com estudo de Blair, a inibio da emoo atravs da cognio estaria relacionada ao grau de dificuldade da tarefa.

    Portanto, ao deduzir que quanto maior for o domnio tcnico, menor ser o efeito inibitrio, podemos entender por que tocar fielmente ao original fundamental para uma interpretao expressiva mais elaborada. Por ser um procedimento eficaz para desenvolver a tcnica, ele proporciona maiores recursos

    para uma interpretao expressiva mais elaborada. O domnio tcnico alm de diluir a inibio expressiva, permite um maior repertrio de nuanas de timbres, aggicas, e dinmicas entre outros, aumentando assim a capacidade expressiva.

    Um outro aspecto tambm muito importante a ser considerado reside no fato da emoo no ser passiva de controle. Assim, considerando que expressividade seja fruto da emoo do intrprete, a expressividade no pode ser resgatada voluntariamente. Se o msico depender exclusivamente da emoo espontnea para sua interpretao, ele ficar refm da inspirao, que nem sempre estar sua disposio. Portanto o intrprete necessita de um recurso confivel e controlvel que possa lhe garantir uma execuo de qualidade, mesmo sem a inspirao.

    A interpretao trabalhada fielmente ao texto pode possibilitar todos esses recursos, e talvez por este motivo, esta forma de interpretao seja exigida e indispensvel, tanto nos altos nveis acadmicos como artsticos, do meio musical erudito.

    Portanto, embora a interpretao fiel ao texto tenha sido um motivo de grande preocupao para Liszt, por consider-la como negao personalidade artstica do intrprete, a execuo obedecendo-se s indicaes da partitura uma ferramenta importantssima para o desenvolvimento expressivo. Porm o trabalho de interpretao no deve se restringir obedincia ao texto. necessrio tentar penetrar no fundo do corao das composies, tocando de diversas e diferentes maneiras, at chegar ao ponto de encontrar a verdadeira mensagem, como fazia Liszt (Walker 1983).

    A fidelidade ao texto deve ser um meio e no o fim.

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