por uma tao expressividade

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tese de doutorado

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Page 1: Por uma TAO expressividade

ALICE STEFÂNIA CURI

POR UMA TAO EXPRESSIVIDADE

PROCESSOS CRIATIVOS EM TRÂNSITO COM MATRIZES TAOÍSTAS.

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor.

Linha de Pesquisa 2 – Poéticas e Processos de Encenação

Orientadora: Profª Drª Ciane Fernandes

Salvador

2007

Page 2: Por uma TAO expressividade

Para:

Dan e Carol, filhos muito amados, que, ao lado do teatro, dão sentido a minha vida...

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Page 3: Por uma TAO expressividade

AGRADECIMENTOS

A meus pais amados, Henri e Viviane, pelo exemplo, apoio e acolhida. Sempre. Aos meus queridos irmãos, cunhados, sobrinhos, ao avô Zuza e à querida tia Graça... É bom contar com a família! À minha avó Ciquinha (in memoriam), pela inspiração para compor a personagem...

Aos meus talentosos e generosos parceiros de criação André Amaro, Lupa Marques e Malu Fragoso, que acreditaram no projeto e me ajudaram a criar o espetáculo Traços. Ao André um agradecimento especial, por dividir comigo essa história, em todos os aspectos!

À Professora Drª. Ciane Fernandes, orientadora e inspiradora, pela confiança e pelos toques certeiros. À sempre mestra, amiga, confidente e comadre Professora Drª. Maria Beatriz de Medeiros, por ser tudo isso e mais um pouco! Ao Professor Dr. Fernando Villar, pela atenção, generosidade e dicas preciosas tanto na qualificação, como em outros momentos críticos, desde a minha graduação. Ao Professor Dr. Fernando Passos cuja colaboração foi precisa, intensa e gentil em minha qualificação. Ao Professor Dr. Edvaldo Passos, que se dispôs a ler o trabalho mesmo após a qualificação, e ainda antes da defesa, pelas sugestões e encorajamento. À professora Drª Antônia Pereira por contribuir com minha pesquisa, tanto participando de minha banca, quanto me apoiando com a apresentação de Traços em Salvador, como coordenadora do Programa de Pós-graduação em Artes Cênica - PPGAC.

Ao PPGAC, da Universidade Federal da Bahia, especialmente nas pessoas dos coordenadores (ou ex) Sérgio Farias, Lia Rodrigues, Antônia Pereira e Sônia Rangel. A cada um de vocês sou muito grata pelo apoio, acolhida, trocas e por tudo! À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, ao Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. À Fundação Nacional de Arte - FUNARTE – que me concedeu o Prêmio Myriam Muniz, com o qual foi possível montar o espetáculo, ao Teatro Castro Alves e ao Teatro Caleidoscópio, a todas essas instituições pelos apoios imprescindíveis em diferentes momentos da pesquisa.

Aos professores e funcionários do PPGAC/UFBA e do CEN/UnB pelas incontáveis contribuições. Aos meus alunos da UFBA e da UnB, pela confiança, pela entrega e pelo retorno. Aos colegas do PPGAC, com quem dialoguei sobre as conjecturas que se proliferam tese adentro, em especial às colaborações de Paula Vilas, Makários Barbosa, Hector Briones, Cássia Lopes, Jacyan Castilho, Márcia Virgínia, Fábio Vidal, Érico José, Meran Vargens, entre outros. Às colegas Mônica Mello e Joyce Aglae, muito obrigada por me confiarem sua cuidadosa tradução de “Uma canoa a Deriva?”, de Patrice Pavis, antes de sua publicação.

Ao Ernani Franklin, praticante e estudioso de chi kung, e à Viviane Aronowicz, minha mãe, com quem aprendi tantas coisas sobre as matrizes taoístas que alimentam essa tese. À Suzana Curi, minha irmã e designer, por suas ótimas idéias gráficas, e pela execução das mesmas.

Aos meus grandes amigos Fabrício Santos, que fez a tradução de Traços para o espanhol, e Cléria Costa, responsável pela tradução do resumo.

Aos grupos de pesquisa em arte que integrei ao longo da vida, onde muito aprendi sobre arte e relações humanas: A Tribo Atrito, Corpos Informáticos, As Virgens de Capricórnio, Cia. Piramundo.

Ao Del, pai de meus filhos, por compartilhar comigo essa experiência. Ao Beto, pela parceria e cumplicidade nos últimos anos. Ao Fernando, por colorir meus dias nessa reta final.

Aos meus filhos tão amados, pela compreensão e paciência que desde cedo tiveram que ter. E por me ensinarem tanto, tanto, tanto!

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Page 4: Por uma TAO expressividade

O coração é selvagem e tem rasgos por onde entra o mundo de fora... O mundo de fora que

entra dentro do coração selvagem de Clarice é apenas alimento para seu mundo de dentro

mandar pra fora o que ela tem dentro e nesse jogo labiríntico de fora e dentro ela cria sua

fantasia e a traduz em sentimentos que transforma em palavras e escreve com os seus dedos

ardendo numa delicada máquina de escrever.

Ana Miranda, 1999.

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Page 5: Por uma TAO expressividade

RESUMO

A conjectura que moveu esta investigação foi a de que certas matrizes taoístas podem funcionar, em trânsito com a corporeidade do artista, como sugestivas fontes de alimentação criativa, sendo potencialmente fomentadoras de construções expressivas com vocação polissêmica. E ainda, que estas matrizes, assim como a arte, podem fornecer princípios eficazes no processo de regulação corporal-energética – enquanto meios de alcançar estados de equilíbrio transitório - apoiando a busca de uma conduta ético-estética, como estratégia de ação micro-política. Para chegar à confirmação dessas proposições foram percorridas duas etapas de pesquisa prática, interagindo com a investigação teórica. Estas foram cartografadas e analisadas com instrumentos emprestados da etnometodologia: relatos, questionários, depoimentos, observação. As matrizes com as quais operamos estão inscritas em práticas e no imaginário taoísta – treinos de chi kung, figuras ligadas ao I ching, aos emblemas yin yang e ao wu hsing. Além dessas matrizes, certas noções que animam esse saber – como wu wei, te, tao e chi – foram escrutadas. Para lidar com essas idéias pouco íntimas ao nosso lugar – ocidente contemporâneo – buscou-se apoio especialmente em construtos da epistemologia pós-estruturalista, e em alguns baluartes do teatro. O diálogo com essa fonte exigiu premissas responsáveis no tratamento com esse outro. Para evitar os lugares etnocêntricos de deslumbramento, de mistificação, de exotização ou de intolerância, por exemplo, a lida com essas matrizes foi descortinada a partir de minha própria condição - mulher ocidental contemporânea - nem detentora, nem transmissora dessa tradição. Na fronteira entre minha leitura desse recorte de saberes e fazeres, de meu corpo de atriz-professora-pesquisadora, de minhas referências cênicas e filosóficas, se instalou um espaço mestiço, singular, propício à invenção, com vocação para heterogênese. O Anel de Moebius - cujos princípios de reciprocidade, inter-transformação e interdependência entre faces desta configuração pareada, se articulam a propriedades dos emblemas yin yang - norteou várias reflexões neste estudo. Dentre elas, a revisão dos modelos dicotômicos ocidentais – hierárquicos e excludentes – pela compreensão de outro tipo de dinâmica possível entre duplos - da ordem da ambivalência, do fluxo e do desdobramento, tal qual a que anima os contrastes yin yang. A pesquisa sobre a expressividade produzida entre o teatro e as matrizes taoístas, se deu sob diferentes vieses, tanto em âmbito prático, quanto teórico, sempre em retro alimentação, como no Anel de Moebius. Numa etapa prática inicial, foi ministrada, por mim, a disciplina Técnica de corpo para a cena III, junto à Escola de Teatro da UFBA. Nesta fase a investigação se voltou aos aspectos pedagógicos de experimentação, por parte dos alunos, da própria expressividade, sem vínculo com um produto final. Neste momento foram experimentados princípios do chi kung, do I ching e de dinâmicas yin yang, enquanto instigadores do processo criativo. Na segunda etapa prática o enfoque se voltou à aplicabilidade, na cena propriamente, do material expressivo produzido na fronteira entre o tao, o meu corpo de atriz, as contribuições dos outros artistas envolvidos no processo, e nossa fonte textual – contos de Ana Miranda. Assim chegamos ao espetáculo Traços ou Quando os alicerces vergam. Ainda nos espaços intersticiais entre a corporeidade, o teatro, o tao e algumas noções filosóficas, foram desfiadas reflexões sobre o estatuto do corpo no zeitgeist atual, sobre certas tendências da cena contemporânea, sobre a noção de expressividade – articulada à de impressividade – e sobre a idéia de uma eficácia do vazio – ou do vazio como re-curso.

PALAVRAS-CHAVE: matrizes taoístas, expressividade, corpo, entre, vazio, cena, Anel de Moebius, heterogênese, articulação ético-estética, micro-política.

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Page 6: Por uma TAO expressividade

ABSTRACT

The context from which this investigation arose was that some Taoist matrixes can work, transient with the artist’s corporality, as suggestive sources of creative feeding become potentially fostering of expressive constructions with polysemous vocation.  Thus, these matrixes, as art itself, can supply efficacious principles to the process of energetic-corporal regulation – as means to reach transient states of equilibrium – giving support to the search of an ethic-aesthetic behavior as strategy of micro-political action. To reach the confirmation of those propositions, two stages of practical research were explored along with the theoretic investigation. Those were cartographed and analyzed as instruments borrowed from ethno methodology: reports, questionnaires, declarations, observation. The matrixes with which we operated are inscribed in practices of the Taoist imaginary – practices of  chi kung, figures linked to  I ching, to the emblems yin yang and to wu hsing. Besides these matrixes, certain notions that animate this knowledge such as wu wei, te, tao and chi were scrutinized. To deal with these ideas – not intimate to our western origin –  we searched for support especially in constructs of the post-structuralism epistemology and in some bastions of the theater.  The dialogue with this source asked for premises responsible for dealing with the other. To avoid the ethnocentric astonishing places of mystification, turning exotic or of intoleranble, for example, the struggle with the matrixes was disclosed from my own condition – western contemporary woman who is neither owner nor transmitter of this tradition.  On the boundary between my reading of this interposal of knowledge and action, of my actress-professor-researcher body, of my scenic and philosophical references, a mixed, singular space was installed, proper to invention and with vocation to heterogeneity.  The image of Moebius’ring- whose principles of reciprocity, inter-transformation and inter-dependency between faces of this paired configuration – articulates the proprieties of the emblems yin yang and directed various reflections on this study. Amongst them, the revision of the dichotomist western models – hierarchical and excluding – was exchanged by the comprehension of other type of dynamics than the couples: the order of ambivalence, the flux of refolding such as those which animates the contrasts  yin yang. The research about the expression produced between theater and the Taoist matrixes happened askance in a practical way, on one hand, and in a theoretic, on the other, always in retro feeding, as in Moebius’ ring.    In the beginning stage, I taught the discipline “Technique of the body for Scene III” at the School of Drama in the Federal University of Bahia (UFBA). During this stage, the students turned the investigation to the pedagogical aspects of the experimentation of their own expressiveness, with no aims at the final product. During this stage, principles of  chi kung, I ching and dynamics of  yin yang were experimented as instigators of the creative process. At the second stage, the focus turned to its applicability to the scene itself: the expressive material produced at the boundary between  the Tao, my body as actress, the contribution of other actors involved in the process and  our text source: short stories by Ana Miranda. Finally, we came to the play “Traces or When the foundations rocked” (Traços ou Quando os alicerces vergam) . Still in the interstitial spaces between corporeity, theater, Tao and some philosophical notions, some reflections about the statute of the body in current zeitgeist were made: tendencies of contemporary scene, notion of expressiveness – articulated to impressiveness – and about the idea of an efficiency of emptiness – or emptiness as a re-source.  

KEY-WORDS: Taoist matrixes, expressiveness, body, between, emptiness, scene, Moebius’ ring, heterogeneous, ethic-aesthetic articulation, micro-politics.

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Page 7: Por uma TAO expressividade

SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS

INTRODUÇÃO

1. MATRIZES TAOÍSTAS

1.1. Atualizando noções taoístas

1.2. Conhecendo as matrizes

1.2.a. Yin yang

1.2.b. I ching

1.2.c. Wu hsing

1.2.d. Chi kung.

2. MATRIZES CÊNICAS

2.1. Tendências afins

2.2. Antonin Artaud

2.3. Eugênio Barba

3. CORPO: MAPA E CARTÓGRAFO

3.1. Do dilema ao diálogo

3.2. Por um novo estatuto do corpo

3.3. Corpo vibrátil. Corpo sutil

4. O CORPO EM EXERCÍCIO EXPRESSIVO

4.1. Estratégias de conduta

4.2. Exercício impresssivo-expressivo

5. O VAZIO EM RE-CURSO

5.1. Idéias do (v)entre

5.2. Re-curso vazio

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Page 8: Por uma TAO expressividade

6. PROCESSOS CRIATIVOS

6.1. Técnica de corpo para cena III

6.1.a. Fase um

6.1.b. Fase dois

6.1.c. Fase três

6.1.d. Fase quatro

6.1.e. Fase cinco

6.1.f. Sobre o chi kung

6.2. Traços ou Quando os alicerces vergam

6.2.a. O processo

6.2.b. Sinopse descritiva

6.2.c. A cena

6.3. Desdobramentos ulteriores

6.4. Fotos

ASPECTOS CONCLUSIVOS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANEXOS:

A. Sobre a disciplina

A.1. Diário de aulas

A.2. Criação textual

A.3. Questionários

B. Sobre o espetáculo

B.1. Ficha técnica

B.2. Diário de bordo

B.3. Dramaturgia

B.4. Traços por André Amaro

B.5. DVD com filmagem de Traços ou Quando os alicerces vergam

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LISTA DE IMAGENS

1. Anel de Moebius

2. Diagrama Corpo Sutil

3. Tai chi - símbolo yin yang

4. Relação de aspectos yin yang

5. Símbolo bagua

6. Trigrama Chi’en

7. Trigrama K’un

8. Trigrama Chên

9. Trigrama Kan

10. Trigrama Kên

11. Trigrama Sun

12. Trigrama Li

13. Trigrama Tui

14. Wu hsing

15. Mapa corporal de meridianos

16. Meridiano VC – vaso da concepção

17. Meridiano VG – vaso do governo

18. Centros de energia do corpo

19. Anel de Moebius – poiesismimesis

20. Anel de Moebius – práticateoria

21. Anel de Moebius – femininomasculino

22. Anel de Moebius – sabedoriafilosofia

23. Anel de Moebius – éticaestética

24. Anel de Moebius – impressividadexpressividade

25. Anel de Moebius – vaziocriação

26. Anel de Moebius – trágicocômico

27. Anel de Moebius – finsprincípios

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INTRODUÇÃO

A evolução e disseminação de meios de transporte e comunicação - entre outros

aspectos - intensificaram, ao longo do século XX, o diálogo entre oriente e ocidente, trazendo

repercussões em diferentes áreas. Além de transformações sócio-econômicas e geopolíticas,

campos de conhecimento - como as artes, a ciência e a filosofia - vêm sendo mais

rapidamente redimensionados a partir de trocas inter-culturais. Este quadro demonstra, por um

lado, intenso potencial inventivo e de novas configurações – sejam científicas, artísticas,

culturais, etc, - mas, por outro lado, gera também importantes prejuízos sociais, econômicos e

culturais, em especial por parte de alguns países orientais. Estes aspectos – que vêm sendo

problematizados através de diferentes estudos – se relacionam, em grande parte, a atitudes

pautadas por um olhar etnocêntrico do ocidente – mais propriamente um ocidente primeiro-

mundista, americano e europeu - sobre o outro. Expropriação, cooptação, invasão, exclusão,

incompreensão, intolerância, exotização, dominação, colonização, vampirização entre outros

equívocos e violações, são aspectos de ações abusivas, especialmente por parte de um

ocidente unido em prol do capital e do imperialismo.

Esta pesquisa parece tangenciar, então, uma zona complexa, já que ações fronteiriças

são por um lado potentes, com vocação inventiva, e por outro, perigosas, podendo apresentar

tendências invasivas e violadoras. Assim, afirmamos não almejar nem o lugar de

colonizadora, nem o de colonizada, mas sim o topos da reinvenção, que deseja ultrapassar

essa dicotomia. O objetivo desse estudo foi o de instalar espaços de diálogo criativo entre o

corpo, a cena e princípios capturados no universo taoísta, de origem chinesa. Nossa

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Page 11: Por uma TAO expressividade

proposição é a de que essa fonte – em nosso recorte algumas matrizes ligadas à sabedoria

taoísta – apresenta instigantes princípios, com os quais nos interessou interagir em pelo menos

três níveis.

O primeiro disse respeito ao aspecto teórico1, ou conceitual2 da tradição. Vários

construtos ligados ao saber taoísta soaram de extrema atualidade, e nos provocaram a um

diálogo conceitual com noções ligadas à epistemologia contemporânea. O segundo nível de

apropriação dessa fonte referiu-se ao uso de estratégias de regulação energética buscadas

nessa mesma fonte: aqui nos referimos mais especificamente a alguns treinos de chi kung,

prática sobre a qual trataremos oportunamente. Esse recurso foi trazido tanto como meio de

favorecer o processo criativo, quanto como fomentador de uma conduta corporal com viés

micro-político, a qual não se restringe ao âmbito artístico. O terceiro nível de interação, e

talvez o mais efetivo enquanto objeto de estudo, foi a aplicação de elementos do imaginário

taoísta sugestionando e incrementando processos corporais que visaram o exercício da

expressividade. Nesse nível houve uma fase de exploração em âmbito pedagógico, e outra na

construção de um espetáculo propriamente. Tramou-se assim uma articulação ético-estética de

trabalho, no espaço intersticial entre o teatro, alguns conceitos ligados à filosofia

contemporânea, a minha condição de mulher contemporânea ocidental, e princípios de

matrizes taoístas, estes de origem oriental.

Mas afinal o que é ocidente e oriente? Terá coerência colocar sob a mesma égide, por

um lado a América do Sul, os Estados Unidos, parte da África e da Europa, e por outro a

China, o Japão, a Índia, Israel, o Iraque e a Síria, por exemplo? Ainda que o presente estudo

trilhe por outras vias, cumpre dizer que o que é usualmente designado oriente não é,

absolutamente, um bloco coeso, assim como também não o é o ocidente. A generalidade dessa

terminologia parece ser fruto de um misto de ignorância e interesses econômicos, e gera uma

série de problemas.

Noção que ususalmente designa um conjuto histórico e cultural que seria composto

pelas sociedade não ocidentais, ou alheias a uma herança eurocêntrica – e hoje também

1 Veremos adiante que, dentro da sabedoria taoísta, prática e teoria estão articuladas dinamicamente, tornando até questionável o uso dessa terminologia. Entretanto apenas para fins de esclarecimento usei o termo teórico aqui, se referindo ao conjunto de idéias e noções da tradição. Estas, ainda que totalmente em interação com os outros âmbitos desse saber, constituem um campo com princípios específicos, assim como o campo do imaginário – mítico ou simbólico -, ou mesmo o campo das práticas propriamente – procedimentos como massagens, treinos, meditações, etc.2 Lembrando que, aqui, o conceito tem vínculo com o real concreto, não se restringe à pura abstração.

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estadunidense - o termo “orientalismo” representa, sem distinções, um vasto e diversificado

grupo de civilizações. Entretanto, o que poderia parecer inofensivo a um olhar desatento, foi

denunciado pelo palestino Edward Said, entre outros pensadores, em um dos mais

emblemáticos escritos produzidos pelos chamados estudos culturais. Em Orientalismo: o

oriente como invenção do ocidente, ele percebe essa idéia como uma construção ideológica

que contribuiu na deturpação da imagem do oriente como o perigoso, o exótico, o misterioso.

Segundo Said, a noção de orientalismo teria sido forjada por uma demanda imperialista, “para

negociar com o oriente fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele,

descrevendo-o e colonizando-o” (1990).

Para desconstruir essa abstração teórica, Said articula a idéia de que ocidente e oriente

não são reais, factuais, mas convenções geográficas, culturais e históricas. E que as áreas

alocadas dentro dessas denominações não são uniformes entre si, nem, tampouco,

personificam dois blocos em oposição dicotômica. Said vê em obras de autores como

Homero, Flaubert, Kipling, entre vários outros, descrições fantasiosas que contribuíram para a

idealização de um oriente misterioso e romântico. E analisa como estas idéias, talvez em

princípio ingênuas e inofensivas, alimentaram e foram alimentadas pelo imperialismo e

etnocentrismo ocidental. Em um estudo bastante aprofundado, a visão de um oriente exótico é

desconstruída por Said e entendida como forjada por um ocidente colonizador que precisou

interpretar - ou criar - e extratificar detrminadas diferenças identitárias que garantissem seus

interesses políticos e econômicos, em última instância.

Segundo a professora Ligia Osório Silva3:

Ao desvendar a construção do Oriente como uma entidade abstrata, Said destaca o caráter totalitário e essencialista desta construção. E de modo algum pretende construir um outro conceito de Oriente (nem muito menos um outro Ocidente), em substituição. Sua intenção é se insurgir contra esta forma de pensamento totalitário, que toma conjuntos humanos distintos, complexos, heterogêneos, formados por países, povos, e nações históricas individualizadas e procura lidar com eles na forma de uma totalidade homogênea. Para Said, não existe uma essência do Oriente assim como, também, não existe uma essência do Ocidente. Estas construções serviram para mascarar uma relação desigual que marcou historicamente o relacionamento entre alguns países da Europa “adiantada” com países da periferia do capitalismo (2003).

3 Palavras proferidas pela professora do Instituto de Economia e Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, na Homenagem a Edward Said, em cerimônia realizada no auditório do Clube Homs em 11/12/2003 em São Paulo.

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Page 13: Por uma TAO expressividade

Ainda segundo Silva, o orientalismo é um modo de olhar o oriente que ajudou a

subordiná-lo e que deu ao ocidente o poder de ditar o que era significativo sobre o outro, e a

classificá-lo junto com outros de sua espécie e colocando-o “no seu lugar” (2003).

Como situações limítrofes da dicotomia ocidente-oriente - ou de dicotomias similares

como império-colônia, comunismo-capitalismo, primeiro e terceiro-mundo, etc. - há inúmeros

exemplos entre as guerras históricas e as bases econômicas das relações internacionais de

exploração. A necessidade ideológica de consolidar e justificar uma supremacia e uma

dominação em termos culturais, característica de um imperialismo que está longe de ter

acabado, continua a alimentar modelos de pensamento que colocam o oriental no lugar do

subalterno. Por outro lado, tal modelo tenta legitimar as necessidades do ocidental como

prioritárias - mesmo que se trate de uma minoria populacional, o que lhe garantiria, por

exemplo, o direito a controlar e usufruir da maioria dos recursos naturais do globo. No

entendimento de Said, o que tal processo mascara, ou nem tanto, é a imposição da distinção

entre supostas superioridade ocidental e inferioridade oriental.

Entretanto, talvez possamos dizer que algumas diferenças culturais em relação ao dito

ocidente, ligadas em geral a tradições milenares em grande parte ainda presentes, influentes, e

atualizadas ao longo dos séculos, oferecem algum parentesco de fundo entre os países ditos

orientais. Mesmo na maior parte das Américas, por exemplo, são mais parcos os indícios das

tradições ancestrais, ou a presença deles no cotidiano das pessoas. Esse viés talvez possa

ajudar a entender o fascínio e ao mesmo tempo o repúdio e a intolerância que o oriente

desperta.

Como vimos, pensar e trabalhar o encontro com o outro oriental como algo que aponte

para uma uniformização entre as culturas é o vetor que tem sido responsável por grande parte

das mazelas no mundo. Particularmente, o viés que nos mobiliza é aquele que percebe esses

encontros entre diferenças como propulsores de novas e singulares configurações ético-

estéticas. Investigações artísticas e filosóficas nessas fronteiras transculturais podem ser uma

forma de migrarmos de perspectivas dicotômicas, como esta oriente-ocidente, dentre outros

tantos dualismos excludentes, para novos agenciamentos, heterogêneses, ambivalência em

contínuo movimento. Como salienta o indiano Homi Bhabha, seria no entre – lugar intervalar

– “onde a diferença não é nem o Um, nem o Outro” (2005:301), que se descortinaria um

futuro intersticial, emergente no entre-meio entre as exigências do passado – que não é

originário – e as necessidades do presente – que não é simplesmente transitório: um futuro

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Page 14: Por uma TAO expressividade

que se torna uma “questão aberta, em vez de ser especificado pela fixidez do passado”

(2005:301).

Munida dessa perspectiva é que me movo nessa pesquisa. Dentre as variadas e

instigantes tradições ancestrais que povoam o mundo, elegi a cultura chinesa, como a

fornecedora dos princípios que orienta(liza)ram essa pesquisa, mais propriamente, aspectos

ligados à corrente taoísta. Essa escolha se fundou em um interesse antigo, intermitente, mas

intenso, sobre práticas e pensamentos ligados ao tao, e em esporádicas investigações

artísticas, anteriores às abordadas nessa pesquisa, onde eu já dialogava com esse universo.

Matrizes dessa milenar sabedoria, em diálogo com processos criativos, produziram encontros

expressivos, sobre os quais nos debruçaremos nesse estudo.

Uma das civilizações mais antigas do mundo, a China, ou a República Popular da

China4 se autodenomina, hoje, um estado socialista com sistema econômico de socialismo de

mercado. Trata-se de uma economia de mercado onde a iniciativa do Estado se sobrepõe à

iniciativa privada. Esse peculiar sistema econômico, às vezes confundido com o capitalismo

propriamente, tem sido apontado como uma das principais causas do acelerado crescimento

da economia chinesa nas últimas décadas. Além de mão-de-obra barata e abundante, o país

investe pesadamente em tecnologia, e possui um dos maiores e mais fortes parques industriais

do mundo. Sua produção diversificada vai muito além das bugigangas made in China

exportadas para todo o mundo.

A China é o terceiro maior país do mundo em território e o mais populoso,

concentrando cerca de um quinto da população do planeta. Nos últimos anos vêm ganhando

importante destaque na economia mundial com uma das maiores taxas de crescimento ao ano,

cerca de nove por cento. Esse quadro torna o país, hoje, uma referência de potência emergente

do mapa geopolítico e econômico mundial5. Ao mesmo tempo, o crescimento acelerado da

China tem gerado algumas conseqüências sociais e ambientais importantes. O país já é o

segundo maior emissor de gás carbônico do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos, e por

4 A República Popular da China foi fundada em 1 de Outubro de 1949 por Mao Tsé-Tung. Para informações genéricas sobre o maoísmo, a revolução chinesa, a revolução cultural e outros aspectos históricos da China no século XX recomendamos consulta aos seguintes sites. Neles, além de textos, há indicação bibliográfica adequada para aprofundamento no assunto:http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/china_11.htm http://pt.wikipedia.org/wiki/Rep%C3%BAblica_Popular_da_China#Cultura. http://www.terra.com.br/cgi-bin/index_frame/vizentini/artigos/artigo_11.htm.5 Aqui estamos nos referindo à história recente do planeta, desconsiderando outros momentos históricos de apogeu da região e de seus povos.

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Page 15: Por uma TAO expressividade

isso vem enfrentando forte pressão de organismos internacionais no sentido de reduzir a

poluição.

Na área social, entre outros aspectos, há um aumento de fluxo migratório do campo

para as cidades, o que está aumentando a população urbana, especialmente a mais pobre, e

intensificando o contraste entre as classes. Outro aspecto relevante do quadro social chinês

tem relação com a limitação do número de filhos por casal, determinada pelo governo,

atrelada à preferência por crianças do sexo masculino. Essa combinação de fatores provocou,

nas últimas décadas um enorme índice de abortos de fetos do sexo feminino. Hoje, a China

possui um número bastante superior de homens solteiros, em relação à quantidade de moças

na mesma idade. O extermínio em massa dessas ex-futuras mulheres pode nos dizer bastante

sobre o lugar do feminino nesse país, assim como a tradição de mutilação ou deformação dos

pés das meninas chinesas, processo torturante que vigorou por séculos, em nome de um

fetiche masculino.

Ainda que nosso objeto de pesquisa não passe por analisar a cultura ou o regime

político chinês e suas consequências sociais e econômicas, e nem por propôr uma análise

histórica sobre o país, entendemos que seja importante destacar esses pontos de tensão.

Inclusive para que não se pense que o presente estudo configura uma apologia acrítica e

indiscriminada sobre o conjunto de saberes e fazeres daquele país. Temos ciência das

inúmeras e importantes contradições vividas na China hoje, e historicamente. Aliás, não só na

China, mas em inúmeros países do chamado oriente. Não se trata de imaginar que há pura e

simplesmente uma relação extratificada e dicotômica entre os opressores ocidentais e os

oprimidos orientais. Com Brecht, sabemos que essas relações são sempre complexas,

dialéticas e históricas. Também com Brecht, sabemos que não são nem inevitáveis, nem

imutáveis. Assim, não cairemos aqui no idealismo oriental ingênuo e apenas aparentemente

apolítico denunciado por Said.

Entretanto, em que pesem todos os aspectos expostos, encontramos na sabedoria

chinesa, princípios com os quais nos afinamos, com os quais dialogamos, por desejarmos com

eles operar. Assim, como já dito, nosso propósito foi o de debruçarmo-nos sobre aspectos do

taoísmo, uma das mais influentes tradições milenares chinesas, buscando estabelecer um

diálogo entre esta sabedoria, abordagens filosóficas contemporâneas, a arte do ator, e algumas

tendências da cena teatral atual.

15

Page 16: Por uma TAO expressividade

O taoísmo é uma tradição de cunho filosófico e religioso, que exerce forte influência

não somente na China, mas em todo extremo oriente e, cada vez mais, em outras regiões.

Trata-se de uma tradição trimilenar com ressonâncias em várias áreas - médica, política,

religiosa, social e cultural, o que já aponta para sua versatilidade, abrangência e consistência.

Nosso propósito não foi um mergulho dogmático no taoísmo ortodoxo. Tomamos

emprestados da sabedoria taoísta algumas práticas e aspectos de seu universo simbólico, como

propulsores dos trabalhos criativos desenvolvidos.

O encontro com essa matéria requereu um recorte. Por um lado trouxemos o estudo de

algumas noções da sabedoria chinesa ancestral, e as relacionamos a conceitos e idéias da

filosofia contemporânea. Por outro, aplicamos princípios norteadores desse universo taoísta a

processos criativos em teatro. Os princípios utilizados na pesquisa cênica foram as dinâmicas

entre os contrastes yin yang, a relação das cinco energias em wu hsing, os aspectos

arquetípicos dos trigramas do I ching e algumas práticas meditativas do chi kung.

Manifestações espetaculares ou movimentos artísticos da China não serão contemplados nessa

investigação. Nosso foco, aqui, não são técnicas corporais específicas, como as da Ópera de

Pequim ou das Danças Populares Chinesas, mas matrizes do sistema de pensamento chinês e

seus encontros, contrastes, tensões e fusões com processos criativos para a cena.

Uma das maiores dificuldades na pesquisa que envolve a cultura chinesa refere-se ao

problema da tradução deste idioma. Por um lado os ideogramas são muito mais complexos em

sentidos do que pode mostrar um único vocábulo, por mais amplo que seja seu significado. A

necessidade de escolha de uma das múltiplas possibilidades de significação de um ideograma

- sempre relativa ao contexto em que é usado - no gesto de traduzir, reduz de forma

importante seu alcance. Para se ter uma idéia da natureza da escrita chinesa, basta dizer que a

leitura de um texto em ideogramas chineses é algo que exige criatividade e atividade intensa

por parte dos leitores, que precisam de certa forma fazer escolhas, perceber os significados

mais latentes de cada ideograma dentro de cada bloco de idéias, para lhes darem voz.

Além disso, a própria construção da sabedoria taoísta se deu por símbolos que

agenciam sentidos entre o imaginário e o filosófico, entre o mítico e o científico, entre o saber

e a práxis, entre a idéia e a conduta. A natureza da elaboração intelectual ocidental

predominante muitas vezes não dá conta desse tipo de articulação, seja por uma questão

estrutural de nossa filosofia - derivada da metafísica ocidental, hierarquizante e excludente -

seja por nosso olhar etnocêntrico, com tendência prepotente, exotizante e universalizante.

16

Page 17: Por uma TAO expressividade

Buscando minimizar esses problemas, optamos por manter em chinês, em diversas passagens,

os termos mais importantes para essa pesquisa, e tratar de dar-lhes a maior pluralidade

cabível, trazendo significações pesquisadas em diversas referências e, principalmente,

manejando-os enquanto constelações de sentidos.

O taoísmo é uma abordagem de dupla articulação, religiosa - tao-chiao - e filosófica -

tao-chia, cuja influência sobre a cultura chinesa se faz sentir fortemente até hoje. Aspectos

ligados ao tao-chia, ou taoísmo filosófico, serão abordados em nossa pesquisa. Diferentes

traduções e abordagens bordejam interpretações para o tao: caminho, sentido, via, princípio

ordenador, conduta, o existente e o inexistente, o ritmo da vida, etc. Para Allan Watts o tao é

o curso da natureza, do universo, o fluxo, e a água seria sua melhor metáfora (1975:81).

Ressalte-se que o tao não deve ser pensado como o Deus cristão do ocidente. Em que pese ter

um tom sagrado especialmente no taoísmo religioso, essa idéia não encontra ressonância na

perspectiva hierárquica de Deus, como é concebida na maior parte das religiões monoteístas.

Também não tem o sentido de um governante, líder, criador ou monarca externo à natureza

(Watts, 1975:70). Aliás, segundo Watts, o imaginário associado ao tao é mais

predominantemente maternal, e não paternal (1975:71), e a relação que se estabelece com ele

é menos vertical que horizontal, ou multidimensional.

Entre as muitas tradições surgidas ao longo de séculos de civilização chinesa, o

confucionismo é, ao lado do taoísmo, uma das mais influentes, principalmente no campo

social, político e pedagógico. Ambas as linhas de pensamento são complementares e têm

pontos em comum, como a idéia de tao que ressoa na noção de li no confucionismo, espécie

ordem subjacente ao mundo, a qual não pode ser entendida nem como deus nem como lei,

mas como um princípio regulador e unificador. Essa unificação atribuída ao tao ou a li, ainda

que possa sugerir centralização ou convergência, mostra-se menos como homogeneizante que

como uma negociação contínua, conciliatória sim, mas inclusiva. Veremos adiante que no

ambivalente pensamento taoísta a idéia de uno não se opõe à noção de multiplicidade.

Nesse ponto pode-se destacar uma das principais tensões com que nosso estudo se

depara: como articular um sistema de molde estruturalista, como o taoísmo, com questões da

filosofia contemporânea pós-estruturalista? Como agenciar noções a princípio tão díspares

como unidade (ou dualidades) e multiplicidade, centro e descentramento, equilíbrio e

instabilidade, ancestralidade e desconstrução, etc.? Nesse ponto cabe remeter à pesquisadora

Ciane Fernandes, que se coloca questão parecida na introdução de seu estudo sobre Pina

17

Page 18: Por uma TAO expressividade

Bausch, resultado de sua tese de doutorado (2000). Ela percebe como disturbador - mais que

complementar - o encontro entre o pós-estruturalismo lacaniano e o estruturalismo do sistema

Laban de análise de movimento (LMA), mas nem por isso se furta ao confronto. Fernandes

entende que “dentro do Anel de Moebius, LMA e a cadeia significante de Lacan se desafiam e

se redefinem, numa constante busca pela linguagem da dança” (2000:36).

O Anel de Moebius, ou lemniscate, ou ainda a figura oito, nos foi apresentado por

Ciane Fernandes, e orientará nossa perspectiva de análise e de criação.

O anel é criado pela junção de duas extremidades invertidas de uma faixa, cujas faces

passam a ser simultaneamente internas e externas (Fernandes, 2000:34). A dinâmica

implicada nessa figura é de tal ordem que os limites entre os pólos de uma dupla original (fora

e dentro, ou lado A e lado B) se diluem até borrar a própria idéia de dualidade. Assim, a partir

de um par-parâmetro se multiplicam configurações e se descortinam noções como

reversibilidade, transformação, interdependência. Estas são, ainda, similares às propriedades

que descreveremos, oportunamente, das dinâmicas yin yang, uma de nossas matrizes taoístas.

Do ponto de vista cronológico, as primeiras sementes da tradição taoísta são atribuídas

ao I ching – tratado ou livro (ching) das mutações (I) - que pode remontar há até três mil anos.

O conceito de mutações, basilar ao I ching, provavelmente está, entre outras coisas,

relacionado à imagem do camaleão (cujo ideograma arcaico pode ter originado o ideograma

18

Page 19: Por uma TAO expressividade

I), remetendo à noção de movimento (agilidade) e mutação (mimetismo) (Wilhelm, 1956: xi).

Essa imagem traz de forma reforçada a idéia da transformação e do fluxo, como princípios

organizadores – e desorganizadores e reorganizadores - da vida, idéia marcante no

pensamento chinês. Não há muito consenso em relação às datas, mas as bases que nortearam

grande parte das vertentes chinesas de pensamento parecem advir de uma forte história de

tradição oral a qual remontaria a mais de mil anos antes de Cristo. Nos mais antigos textos

escritos do I ching observam-se referências de cerca de 700 anos a.C.

Mais que um jogo divinatório, essa obra tem sido estudada como um tratado de

situações humanas arquetípicas, a ser consultado por meio de instrumentos como varetas ou

moedas. Além disso, é considerada como uma das mais importantes fontes da genealogia do

pensamento chinês. É no I ching que se observam também as primeiras referências à idéia de

yin yang, inicialmente ligadas a um par de linhas mestras. A yang, representada por um traço

contínuo (_____) e a yin, simbolizada por uma linha cortada (__ __), significavam, na versão

mais remota do jogo, sim e não respectivamente. Posteriormente as respostas foram se

tornando mais complexas, com duas, três, até chegar às seis linhas que formam os hexagramas

como hoje os conhecemos. Cada hexagrama é composto por um par de trigramas, que,

combinados, simbolizam uma determinada situação humana. Os oito trigramas, ou ba gua,

são compostos por um conjunto de símbolos que remetem a um determinado arquétipo, como

será mostrado no capítulo seguinte.

Outra obra à qual estão atribuídas bases do taoísmo é o Tao-te-ching, cuja tradução

mais corrente seria “Tratado do caminho e da virtude”. Trata-se de uma espécie de escritura

sagrada e poética, cujos provérbios vêm inspirando religiões e pensamentos há cerca de 2600

anos. É interessante observar que Lao-Tsé, autor do Tao-te-ching, é praticamente

contemporâneo ao grego Heráclito, cujas proposições têm pontos em comum com o taoísmo.

Heráclito também partilhava da noção de fluxo constante e ciclos de mudança, como motores

do universo e suas manifestações. Assim ele abordou o problema da unidade permanente do

ser diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias. O filósofo

chegou à compreensão de que apreensões duais do mundo não deveriam denotar oposições

estanques, mas revelar a dinâmica não hierárquica entre aspectos de um mesmo fenômeno.

Esta proposição é bastante afim à que explica os emblemas yin yang, a qual também apresenta

as características de inter-transformação, interação, complementaridade.

19

Page 20: Por uma TAO expressividade

Entretanto, o rumo da filosofia ocidental foi ditado, com maior freqüência, pelas idéias

derivadas do pensamento de outros gregos, em especial Sócrates e Platão, com a metafísica

ocidental, onde as oposições binárias vinham acompanhadas de um julgamento hierárquico de

valor. Isso fixava um pólo do dualismo como a instância a ser superada, e o outro como a

meta. A tradição judaico-cristã e o cartesianismo fortaleceram essa noção e, para usar a

terminologia taoísta, houve, no ocidente, a despeito de algumas investidas esporádicas, uma

notória exaltação de fatores yang em detrimento de aspectos yin.

Este quadro foi (e vem sendo ainda) revisto com maior contundência durante o século

XX, fato que se deve em grande parte a novas descobertas científicas, que têm ajudado a

legitimar esta mudança paradigmática. Albert Einstein, Fritjof Capra, Ilya Prigogine, Antônio

Damásio, Humberto Maturana, Francisco Varela, Richard Dawkins são alguns, entre

inúmeros nomes na área científica, cujas pesquisas vêm colaborando nessa transformação.

Para Jean-François Lyotard (1993:99-110), as ciências pós-modernas evoluem por

instabilidades, e não por mecanismos lineares de desenvolvimento. A procura do contra-

exemplo, do ininteligível em seu processo de pesquisa, força sua legitimação pelo que o autor

chama de paralogia (1993:111-120). Esta seria, segundo o autor, uma lógica do paradoxo, dos

inventores. À paralogia, Lyotard contrapõe a homologia, lógica dos experts (especialistas),

entendida como consensual (homo - igual, o mesmo) e situada na modernidade. É importante

frisar, que os pensamentos que se dão por paralogia, ou seja, que evoluem por paradoxos,

diferem de uma visão dicotômica. Para outro teórico contemporâneo, Georges Didi-

Huberman (1998:77,154), o foco da dicotomia seria a escolha entre duas posições de um

dilema e não a compreensão e aceitação da complexidade, e da existência de verdades

distintas.

Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) descrevem uma forma não logocêntrica de

pensamento e produção de conhecimento. Trata-se de uma lógica não linear, sensível e

cambiante. Eles propõem, como alternativa à lógica convencional - para a qual usam a

metáfora de uma árvore, cuja raiz pivotante indica uma investigação unidirecional, uma lógica

rizomática. Rizomas são organismos vegetais, como a grama, nos quais não se identifica nem

o princípio (origem, raiz) nem o fim (objetivos, copa). “Um rizoma não começa nem conclui

se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (1995:11-37). A imagem

do rizoma, trás a idéia de um encadeamento não rígido de idéias, uma teia de conhecimento

sem finalidades a priori, sem ordem preestabelecida, sem hierarquia, permeada de conexões,

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Page 21: Por uma TAO expressividade

agenciamentos, links, configurações inesperadas, que opera privilegiando o processo e o

percurso cartográficos, e não um produto final.

Várias dessas noções podem ter aproximações identificáveis no pensamento chinês. É

bom esclarecer que não nos propomos aqui a defender equivalências absolutas entre as idéias

taoístas e alguns conceitos de vertentes do pensamento contemporâneo ocidental. Tampouco

entendemos um movimento rumo a homogeneização desses saberes como algo que deva ser

buscado. Diferenças existem, podem e devem estar aí. Essa é uma investida no intuito de

dissipar, ou pelo menos minimizar, algumas aparentes incompatibilidades que se apresentam

num primeiro olhar, e que tendem a alimentar ainda mais preconceitos e dicotomias.

O taoísmo traz na perspectiva de wu wei – grosso modo “não ação” ou “agir sem

coagir” - um princípio que contém a noção de devir. A idéia de wu wei é a da espontaneidade,

de deixar-se conduzir pelo ritmo natural da vida, sem forçar os acontecimentos, sem pré-

ocupação, seguindo o fluxo de devires e sem finalidades a priori - só se chega ao tao sem se

tentar chegar ao tao. Esta ênfase no percurso não teleológico, expressa uma das aproximações

da sabedoria chinesa com a noção de rizoma, metáfora de Deleuze e Guattari para uma

perspectiva onde não se identifica, nem privilegia, pontos de partida ou de chegada. A visão

de mundo sistêmica dos chineses tangencia a idéia de rizoma. Em ambas percebemos a

abertura a uma configuração sempre renovada de redes de agenciamentos não hierárquicos.

A forma como se operam os agenciamentos em wu hsing e sua rede de correlações

associadas, por exemplo, têm afinidades com o processo rizomático. Wu hsing é uma visão

sistêmica que parte dos cinco elementos - ou cinco fases, ou ainda cinco movimentos, ou

energias, ressaltando o caráter de transformação ininterrupta que a visão taoísta acentua em

suas abordagens - identificados como terra, metal, água, madeira e fogo. Esta idéia inclui

relações e associações entre estas energias e diversos fenômenos do corpo humano e da

natureza. Como será exposto mais detalhadamente em seção específica ao tema, nesses

processos estão interligados sentidos, órgãos, emoções, temperamentos, sabores, cores,

climas, estações, modos de expressão, etc., formando uma teia que atrela o conhecimento do

corpo humano à experiência e apreensão do mundo que o cerca. Esse sistema norteia

fortemente toda a medicina tradicional chinesa, bem como outros campos de saber na China.

O conceito de mutação - movimento e mimetismo - subjacente ao I ching, e o processo

pelo qual se opera a consulta ao livro remetem às noções de territorialização e

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Page 22: Por uma TAO expressividade

desterritorialização, o que fica mais claro ao se relacionar estes conceitos com os de

atualização e virtualização. Segundo Deleuze (1996:50), o virtual seria um campo ou fluxo de

devires, enquanto a atualização seria o processo de singularização. A atualização, (ou

territorialização), selecionaria aspectos do virtual, convertendo-os em atualizações, e a

virtualização (desterritorialização) seria o processo que reconverteria o atual em virtual.

Podemos considerar como campos de devires (virtuais) tanto o próprio Tratado das

Mutações (ainda que, nesse caso, seja um campo finito) quanto a psique do consulente.

Assim, o modo como se opera uma consulta ao I ching pode ser entendida como uma espécie

de territorialização ou atualização. De certo modo esses princípios também podem ser

percebidos na dinâmica entre as cinco fases e os outros elementos constitutivos da rede, já que

cada um dos aspectos ligados à wu hsing podem apresentar conexões entre si, tornando este

jogo combinatório fundante de uma espécie de campo de devires.

Mesmo pontos que aparentemente tornariam forçada essa aproximação entre noções

do taoísmo e do pós-estruturalismo, podem ganhar um novo olhar, como acontece nas noções

de ordem, essência e unidade, por exemplo. A idéia de uma ordem subjacente ao equilíbrio

dinâmico do mundo, na visão taoísta, pode destoar da noção de rizoma, onde não há ordem

preestabelecida, mas um fluxo não hierárquico nem teleológico de agenciamentos, conexões

inesperadas e linhas de fuga. Talvez seja este um falso paradoxo, gerado pela idéia de ordem

que, para o pensamento ocidental, encerra princípios logocêntricos e enrijecidos, enquanto

para os taoístas é uma noção que envolve transformação e desterritorialização ininterruptas,

adequações e atualizações constantes, ou, para usar um termo corrente entre os adeptos do

taoísmo, regulação.

Para Marcel Granet (1997), por exemplo, a noção de ordem do taoísmo não passa

pelas idéias de lei ou de Deus, nem correspondem a regras dogmáticas ou ortodoxas. Essa

ordem é um princípio de características mutáveis, adaptáveis, fluidas, que, ao mesmo tempo

em que regulam, se moldam às situações e fenômenos. Nesse contexto, ao se fixar em uma

única configuração, essa “ordem” perderia totalmente sua eficácia.

Outro aparente paradoxo envolve as noções de descentramento e multiplicidade, que

parecem esbarrar nas idéias de unidade e essência, associadas ao tao. No rizoma a idéia de

multiplicidade é manejada como substantivo, e não como adjetivo. Isso indica que não há um

uno que se subdivide, mas uma multiplicidade sem anterioridade. Ainda que encontremos o

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Page 23: Por uma TAO expressividade

termo unidade em várias passagens do taoísmo, este não remete a uma idéia centralizadora,

fixadora de identidade, e nem, como vimos, à noção, nos moldes ocidentais, de Deus.

Quer dizer, o termo unidade não parece se referir a um modelo arborescente onde um

centro, hierarquicamente superior, se ramifica, ou para onde tudo converge. Antes, parece

sustentar a imagem de uma força pulverizada, contaminadora, disseminada, concernente a

toda e qualquer vida. Força esta responsável ainda pela interação que se opera entre os corpos,

gerando constantemente novas configurações, mas caracterizando a formação de um elo entre

esses corpos, o que remonta à idéia de unidade. Em outras palavras, o tao é uno e múltiplo. O

que adere a outra perspectiva deleuziana, a do elogio do e, somatório e inclusivo, substituindo

o ou excludente (1995).

No que toca à questão da essência, para os taoístas esta estaria justamente na qualidade

fluídica e dinâmica do universo, e, até por isso, se manifestaria também no jogo das

aparências que tomam os corpos em transformação, na multiplicidade de faces pela qual o tao

se manifesta, se dá a conhecer. Para a filosofia clássica, de um modo geral, essência nos

remete à constância, à imutabilidade e a algo que subjaze à superfície. O antagonismo

deleuziano se refere a esta noção de essência. Parece então que estas também podem ser

contradições forjadas. Por um lado pelas especificidades das linguagens oriental e ocidental,

incluindo as dificuldades de tradução. Por outro, pela insistência de abordagens dicotômicas

por parte do pensamento ocidental, mesmo aquele que, teoricamente, se opõe vigorosamente a

estas.

Deleuze e Guattari, apesar de terem construído um discurso em que buscavam romper

com dualismos antagônicos, acabaram caindo inúmeras vezes no mesmo dilema, ao

contrapor, por exemplo: rizoma x raiz, memória curta x memória longa, unidade x

multiplicidade, essência x aparência, micro-política x macro-política, molar x molecular,

decalque x mapa, etc. No pensamento taoísta as paridades não são, em si, condenáveis, já que

todos os opostos são princípios inextricáveis no tao. O que difere é que ali o olhar sobre o

duplo não está fixado, nem carregado de hierarquia e exclusão. As metas de reforço ou

atenuação de um dos aspectos de qualquer duplo não estão engessadas, são mutantes e

relativas a cada configuração. Novamente a idéia de ambivalência, como um passo para a

superação da dicotomia, ao invés de puramente negar o dual, e, eventualmente, acabar caindo

nele. Para isso é importante frisar que o que é dual não é necessariamente dicotômico.

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Page 24: Por uma TAO expressividade

Novamente: o esforço destas aproximações, que serão aprofundadas no decorrer da

tese, não é no sentido de uniformizar esses modos de pensar que guardam, e devem guardar,

evidentemente, suas especificidades, singularidades e diferenças. O propósito mais importante

é justamente o de não cair na tentação de enquadrar, ou entender o taoísmo somente a partir

de modelos ocidentais, sejam eles arborescentes ou rizomáticos. Até por que uma das grandes

contribuições dessa tradição chinesa, diz respeito a seu caráter mutante, logo incapturável por

moldes estanques. Entretanto, facilita nosso entendimento, de tendência, claro, etnocêntrica,

observar essas qualidades interdependentes de movimento, metamorfose, ambivalência,

multiplicidade, unidade, inclusão, entre outras, com o apoio da epistemologia ocidental

contemporânea. Trata-se também de perceber, na terminologia de Lyotard, as inter-relações

“paralógicas” 6 (1993:111-120) que se estabelecem na dinâmica dessas características.

Segundo Michel Foucault, outro importante pensador contemporâneo, a era moderna

teria sido caracterizada por áreas de conhecimento isoladas, enclausuradas, sem relação entre

si (in Basbaum, 1998). Seriam as áreas das especialidades, dos experts, ou da homologia,

como diria Lyotard. Mas Foucault percebe o movimento em direção a novas relações entre

áreas de conhecimento, ao não enclausuramento, ao foco na fronteira, nas margens entre

campos heterogêneos. Essa perspectiva envolve o olhar e a legitimação do outro - o excluído

do discurso consensual e homogeneizador do mesmo. Para que esse outro - sexo, loucura,

morte, exótico – ganhe espaço e possa contaminar o mesmo - o normativo, o consenso - é

preciso ter disposição para a relação, para a interação com a diferença. Tatear as fronteiras

pode gerar disjunção, confronto, tensão, mas também re-configuração, invenção, inclusão.

Voltamos assim à idéia do rizoma, onde agenciamentos favorecem a dissolução dos limites de

áreas voltadas para si mesmas, configurando um universo de multiplicidade, conexões e

linhas de fuga.

O chamado procedimento transdisciplinar de pesquisa, que vem ganhando espaço no

processo epistemológico contemporâneo, também tem muitos pontos em comum com as

idéias de Foucault, com a noção de rizoma, e com a visão sistêmica, inclusiva e relacional do

pensamento chinês. Basarab Nicolescu7 aponta uma crise cognitiva mundial, gerada pelo que

chama de “big-bang disciplinar” (1999), notadamente fruto de reducionismo na construção

das ciências altamente especializadas no ocidente. O autor menciona o impacto cultural da

6 A paralogia como vimos, seria a lógica do paradoxo, ligada à inventividade e ao dissenso, que Jean-François Lyotard contrapõe à homologia, segundo ele, a lógica consensual dos experts,ou especialistas.7 Físico francês, fundador e presidente do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (CIRET)

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Page 25: Por uma TAO expressividade

revolução cognitiva causada pela física quântica, quando esta coloca em dúvida o dogma da

existência de um único nível de realidade. Segundo Nicolescu, descobriu-se aí que a abstração

não é apenas uma “ferramenta para descrever a realidade, mas uma parte constitutiva da

natureza. [...] parte integrante da realidade” (1999:21).

Dessa forma, uma das características do que se configuraria como

transdisciplinaridade seria o interesse “pela dinâmica gerada pela ação de vários níveis de

Realidade ao mesmo tempo” (1999:16). E ainda, “como o prefixo ‘trans’ indica, diz respeito

aquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além das

disciplinas” (grifo no original. 1999:15). Segundo o autor, a transdisciplinaridade opera pelo

reconhecimento dos vários níveis de realidade, e por uma abordagem holística em relação ao

mundo. Mais que aprofundar-se em conhecimentos específicos, ainda que utilizando

diferentes disciplinas, está em busca de uma compreensão mais integral (o que não dizer

totalitária ou absoluta) do mundo presente e do ser humano. Recorreremos mais uma vez à

noção de rizoma, cuja imagem apresenta afinidade com a idéia de transdisciplinaridade, onde

campos de conhecimento se cruzam, se confrontam, se complementam e se redimensionam.

Observando estas idéias, e outras relacionadas, presentes na Carta de

Transdisciplinaridade, adotada no Primeiro Congresso Mundial da transdisciplinaridade,

Convento de Arrábida, Portugal, 2 a 6 de novembro de 1994, sentimos nossa proposição

afinada a tal perspectiva. Em seus artigos o documento se refere ao que seriam atitudes

transdisciplinares. A seguir estão transcritos trechos que ecoam na proposta da presente

pesquisa:

Artigo 2: O reconhecimento da existência de diferentes níveis de Realidade, regidos por lógicas diferentes, é inerente à atitude transdisciplinar [...] Artigo 5: A visão transdisciplinar está resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o domínio das ciências exatas por seu diálogo e sua reconciliação não somente com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência espiritual. [...] Artigo 11: [...] A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos (1999:177 – 188).

O conhecimento ocidental vive, já há algum tempo, um processo de identificação de

possíveis pontos de apoio, na sabedoria oriental. No campo científico, as descobertas da física

quântica, a teoria da relatividade e a teoria geral dos sistemas, conforme Fritjof Capra mostrou

(1986 e 1990), apontaram cientificamente, para uma série de questões, que já eram

tacitamente incorporadas à sabedoria taoísta. As leis que regem a realidade subatômica não

devem ser aplicadas displicentemente a outros planos de realidade, já que esses níveis de real

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Page 26: Por uma TAO expressividade

são regidos por leis específicas. Entretanto, remontar a noções da ciência, ou de outros

campos do conhecimento, para usá-los, ainda que metaforicamente, como estímulos para

pensar, entender e até construir diferentes níveis de real, pode ser fértil. E aqui vale lembrar

que a visão de mundo sistêmica, a constatação e convivência com paradoxos – ou

ambivalências, tanto na ciência, quanto na filosofia, convive com o modo de pensar chinês há

pelo menos três mil anos.

Vemos com Capra (1986), que no último século, a chamada nova física, constatou

que, no nível subatômico, os elementos são, a um só tempo, destrutíveis e indestrutíveis,

comportam-se ora como ondas e ora como partículas, apresentam, simultaneamente,

materialidade contínua e descontínua, podem estar imprevisivelmente em movimento ou

repouso. Conceitos como tempo e espaço, sempre vistos de forma separada no ocidente,

demandaram uma unificação na física relativística, gerando o espaço-tempo

quadridimensional, que agrega o tempo como a quarta dimensão espacial. E nesse outro plano

de realidade, regido por leis específicas, não é possível lidar com categorias de forma

estanque, faz-se uma névoa que embaça a clara delimitação entre os opostos, inclusive,

segundo Capra, entre que é objeto e o que é processo.

Para Ilya Prigogine, ganhador do Prêmio Nobel de Química de 1977, ser vivo é ser

instável, e só agora a ciência passa a lidar de fato com este dado. Assim, se “a ciência clássica

privilegiava a ordem, a estabilidade, [...] reconhecemos agora o papel primordial das

flutuações e da instabilidade.” (1996:12). Pela constatação de que os sistemas complexos

vivem num estado “longe do equilíbrio”, “assistimos ao surgimento de uma ciência que [...]

nos põe diante da complexidade do mundo real” (1996:14). Certamente nesse longe do

equilíbrio existem “leis” identificáveis, no entanto estas não são estáticas, mas entremeadas

por imprevistos, por eventos que as transcendem e transformam. Esse longe do equilíbrio,

topos de instabilidades de onde brotam paradoxos e dissenso, nos remete claramente à

paralogia de Lyotard (1993).

Em entrevista a Guitta Pessis-Pasternak (1993:35-49), a fala de Prigogine sugere que a

estabilidade, o equilíbrio definitivo, a perfeição, seriam a própria morte, o fim de qualquer

movimento, um estado inanimado. Esse modo de pensar pode ser associado às idéias de fluxo

e mutação, presentes no taoísmo. Para essa tradição, movimento e transformações constantes

caracterizam todas as manifestações do universo. Assim como o rizoma é mapeado por um

número ilimitado de idéias que se cruzam e operam sob uma espécie de estrutura de

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Page 27: Por uma TAO expressividade

hipertexto (1995), Prigogine fala nas “estruturas dissipativas” que proporcionam a ordem por

meio da desordem e produzem a perspectiva de um longe do equilíbrio (1993:38). A busca

constante por estados de meta-equilíbrio, por que sabidamente provisórios, faz parte do

pensamento taoísta. A tradição é ancorada em princípios dialéticos, onde ordem e desordem,

por exemplo, estarão sempre vinculadas.

Toda essa reformulação da ciência tem colaborado para a revisão da idéia do oriente e

do(s) conhecimento(s) aí engendrado(s) como algo distante e exótico. György Doczi (1990),

por exemplo, valoriza o oriente e evita reforçar as separações com clichês generalizantes. O

autor defende a idéia segundo a qual a sabedoria, ligada ao oriente, consistiria em juntar,

relacionar, associar, e o conhecimento, característico do ocidente, em separar, fragmentar,

especializar. Doczi não traz a idéia de modo pejorativo, pelo contrário, faz a diferenciação de

modo relacional, identificando e valorizando as diferenças e os pontos em comum, e

entendendo a sabedoria – qualitativa – e o conhecimento – quantitativo – como

complementares, e não excludentes.

Entretanto ainda vemos várias enunciações similares a esta, onde se flagra o fomento

ao dualismo oriente e ocidente, ainda que nem sempre seja essa a intenção do discurso. Esses

discursos, algumas vezes reproduzidos de forma inconsciente, podem trazer conseqüências

políticas negativas. Por exemplo, a recorrente tendência de se referir ao pensamento ocidental

como filosófico, e à gnose chinesa - e outras não eurocêntricas como sabedoria, nem sempre é

tão lisonjeira como parece. Como vimos em Said (1990), um dos principais dogmas do

orientalismo é a absoluta e sistemática diferenciação entre o Ocidente – racional,

desenvolvido, humanitário e superior – e o Oriente – místico, oculto, aberrante,

subdesenvolvido e inferior.

Para alguns sinólogos como Marcel Granet, François Jullien e André Bueno essa

divisão a princípio inofensiva para os chineses, pode camuflar um processo de não

legitimação desse saber. É claro que os meios de construção do saber na China e no ocidente -

leia-se especialmente a tradição filosófica grega e seus desdobramentos - apresentam mesmo

singularidades que os afastam diametralmente, e essa seria uma justificativa para não se

chamar de filosofia a construção intelectual não européia ou daí derivada. Entretanto, o alerta

dos sinólogos é para a escamoteação de um julgamento de valor por trás dessas distinções.

Ou, ainda mais grave, o disfarce em folclorização ou mistificação, gerando a não legitimação

desse saber, como conhecimento de fato. A exotização dessas tradições pode neutralizá-las

27

Page 28: Por uma TAO expressividade

politicamente, já que simula um reconhecimento colocando-as, teoricamente, em um lugar de

destaque. Esse mecanismo dificulta a identificação do processo de neutralização, e uma

possível reação a este.

É bom registrar ainda que, freqüentemente, apropriações mercantilistas e mistificação

de culturas diferentes, e abordagens por vezes equivocadas de matrizes ou modelos orientais,

têm exposto estas tradições a certa vulgarização - gerando descrédito e demérito por parte de

muitos ocidentais. Por isso não me arvoro aqui a tentar disseminar um modelo oriental puro.

Não nos sentimos aptos, nem instigados a essa tarefa. Nossa perspectiva é de que, a partir de

uma imersão no universo simbólico, filosófico e prático do diálogo proposto, possamos

impulsionar experimentações criativas por vias diferenciadas, a partir de singulares processos

de pesquisa expressiva.

Uma de nossas principais motivações ao buscar matrizes taoístas para fomentar o

processo criativo do ator está ligada à abrangência desse saber, inclusive à sua reverberação

em questões menos consideradas pela tradição filosófica européia. Aspectos ligados à energia,

ou usualmente relacionados a fatores extra-sensoriais e até espirituais, que no pensamento

taoísta transitam com outros de natureza mais cientifica, são de suma importância para o

trabalho do ator. Vários nomes do teatro têm trazido em sua pesquisa aspectos desta natureza,

como Antonin Artaud, Jerzy Grotowski, Eugênio Barba, Joseph Chaikin, Kazuo Ohno, Mark

Olsen – este inclusive revendo os estudos do próprio Constantin Stanislávski a partir de um

viés espiritual - para citar apenas alguns. Entretanto são aspectos que esbarram em

dificuldades gigantescas de verbalização e elaboração teórica. Todo esse arcabouço taoísta

nos forneceu princípios que, em diálogo com outras matrizes, colaboraram na construção de

políticas sutis, que se dão no corpo, por meio de poéticas corporais, e que agem no

fortalecimento das singularidades deste corpo, como estratégias de afirmação desse corpo no

mundo, por um lado, e de mobilização dos corpos em recepção, por outro. Estratégia ético-

estética.

A disciplina e controle a que nossos corpos são sujeitos nesses tempos globalizados

são mais difíceis de identificar. Homogeneização travestida de novos estilos, repressão

vendida como liberdade. Essa dominação sutil, que neutraliza sem violência evidente, através

de cooptação permanente de novos impulsos, desloca nosso potencial inventivo para ações

que interessam à manutenção de um status quo, mascarado de fluídico, de rítmico, de

mutante. A mídia, por exemplo, age sorrateiramente (ou nem tanto) sobre os corpos num

28

Page 29: Por uma TAO expressividade

processo de vetorização de desejos, alavancando uma confusão de valores e prioridades que

muitas vezes nos distancia radicalmente de outras mobilizações, frequentemente mais

genuínas. Assim, o viés de resistência8 a toda essa cooptação precisa buscar apoio em ações

igualmente sutis. Grandes manifestações, discursos inflamados, embates diretos não tem,

sozinhos, resolvido esse tipo de questão. Em alguns casos até alimentam a continuação desse

estado de coisas.

Entendemos que ações em nível micro-político (Guattari e Rolnik, 1996), até por

serem menos evidentes ou explícitas, podem apresentar grande vocação de disseminação e

fortalecimento gradual e efetivo das singularidades. Operar na arquitetura molecular (ordem

dos fluxos e intensidades), reaproximar a idéia de política das noções de ética e desejo,

deslocar, ou somar à retórica nervosa – e muitas vezes estéril - dos palanques e plenários, uma

ação efetiva do corpo, no corpo e entre os corpos, pode ser uma via para proporcionar

resultados políticos mais consistentes. Trazer a fala para o corpo, para a vida, para o dia-a-dia,

fazer com o corpo, e com a arte, uma ação micro-política, poética e sutil: promover uma

articulação político-estética. É tempo talvez de emprestar à política – ou à macro-política - os

instrumentos da estética, e não fazer a arte reproduzir os desgastados e nem sempre eficazes

mecanismos da política convencional – verborrágica, impositiva, generalizante. A ação

poética – via da aisthesis9 - tem vocação para agir sobre corpos – tanto os produtores quanto

os receptores da poética em questão - de modo intenso, por contágio, estimulando-os,

despertando-os e acionando-os em uma percepção mais sensível de si mesmos e do outro.

Justamente no propósito de acionar outros mecanismos de apreensão, de estimular

uma nova cartografia cognitiva, os chineses desenvolveram ao longo de séculos um

conhecimento organizado que pode ser extremamente útil para este propósito. A lida com

aspectos sutis, com planos extra-cotidianos de realidade, legou à sabedoria chinesa uma série

de instrumentos efetivos de trabalho nessa linha.

O chi kung, uma de nossas matrizes de trabalho, consiste em um conjunto de treinos

energéticos que visam estimular o fluxo de chi, de modo a desbloquear e abrir a rede de

canais de energia do corpo. Traduzido comumente por energia, chi assume tanto aspectos

8 O termo não tem aqui um sentido pejorativo de estratificação. Entendemos resistência aqui, com Suely Rolnik (2003), enquanto afirmação de singularidade, enquanto mobilização de uma percepção referente a nossas intenções mais genuínas, reais, próprias, em contraposição às assimiladas por processos globalizantes e midiáticos, de vampirização e vetorização de desejos.9 Segundo Maria Beatriz de Medeiros (2005) “Aisthesis quer dizer estética, mas com o sentido grego do termo: tudo aquilo que toca os sentidos, o sensível; aquilo que é impossível - incompossível - dizer”.

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Page 30: Por uma TAO expressividade

materiais como imateriais, e sentidos variados como energia vital, fluido, ar, atmosfera,

respiração, éter, essência, espírito, vapor, coração, sentimentos, emoções, tempero, cuidado,

disposição, sabor, sopro, alma, odores, pneuma, etc. A idéia aqui é trazer esses meios de

manejo de chi para dentro do contexto de preparação do ator, como forma deste investigar e

aprimorar sua organização de chi para a cena e para a vida.

A partir dessa perspectiva de articulação ético-estética, o presente estudo consiste na

experimentação de processos criativos inspirados por matrizes taoístas. Estas funcionam como

estímulos para dinâmicas que visaram potencializar a expressividade e a criatividade do

atuante, ao mesmo tempo em que operam como fatores de harmonização na sua vida cotidiana

- enquanto estados de equilíbrio dinâmico, provisório, instável e instantâneo.

O diálogo é sempre amparado pela perspectiva da releitura, da transcriação, da

atualização. Trata-se de um olhar, poético e apropriador, sobre essa tradição, e não da

proposição de uma imersão dogmática e ortodoxa em correntes taoístas. Operando na

fronteira entre imaginário e procedimentos taoístas, estudos do corpo, e utilização de

instrumentos das artes cênicas, espera-se viabilizar um espaço de reinvenção, próprio a uma

geografia fronteiriça, à arte e ao zeitgeist10 contemporâneo. Um espaço que abrigue o

exercício e a reflexão sobre o que, no teatro, entendemos como a expressividade do corpo em

cena.

A atração por essas matrizes relacionou-se em grande parte também aos aspectos que

compõem esse imaginário – símbolos, arquétipos, fatores associados em rede, como sabores,

emoções, cores, formas de expressão, etc. -, e as interações dinâmicas entre eles. Tudo isso

pareceu, desde o primeiro contato, constituir fontes de alto poder sugestivo para exploração

em dinâmicas visando à criatividade e à expressividade.

Por outro lado, nos moveu a conjectura de que o trabalho inspirado nessa visão de

mundo, nessa minuciosa e sistêmica estruturação de fatores e eventos, concernentes aos seres

humanos e a toda natureza, possuidora de potencial de energização, harmonização - no

sentido dinâmico que imprimimos ao termo - e profilaxia - conforme mostra sua influência e

atuação abrangentes não só na cultura chinesa, pudesse proporcionar aos atores, além do

estímulo à expressividade, instrumentos para desenvolver propriocepção, re-organização

energética e sensibilização.

10 Espírito de época.

30

Page 31: Por uma TAO expressividade

A investigação prática sobre a qual se debruçou esta tese foi dividida em duas etapas.

A primeira etapa da pesquisa foi experimentada por atores em formação, a segunda consistiu

na construção de um espetáculo solo onde atuo como atriz.

Os estudantes envolvidos na primeira etapa estavam cursando, em sua maioria, entre o

terceiro e o quinto semestre do curso de interpretação teatral, na Universidade Federal da

Bahia. Durante os quatro meses do primeiro semestre letivo de 2005, com dois encontros

semanais de duas horas de duração cada, práticas ligadas à medicina chinesa, noções, teorias e

imagens da sabedoria taoísta, alimentaram as dinâmicas que foram realizadas com os alunos

matriculados na disciplina Técnica de Corpo para Cena III. Onze participantes foram

observados e interrogados com relação às experiências em curso, a fim de que fosse avaliado

o impacto das dinâmicas em seus corpos em estado de criação e expressividade.

Não houve aqui proposição de se comprovar ou refutar hipóteses, tampouco a intenção

de se mensurar índices de aproveitamento ou quaisquer outros. Tais processos em arte,

dependem de aspectos absolutamente subjetivos, logo instáveis, cambiantes e pessoais,

tornando a expectativa por resultados estatísticos fadada à frustração. O que tentamos foi

cartografar, para posteriormente avaliar, o mapa traçado por essa experiência, a partir de

questionários, observação, diálogos, enfim, instrumentos relativos a uma abordagem

etnometodológica, ou mesmo a uma cartografia. As considerações desse processo, bem como

uma descrição detalhada do mesmo serão expostas em seção dedicada a isto.

Nessa primeira etapa o processo foi dividido em quatro fases. Num primeiro momento

a experimentação dos contrastes yin yang norteou as dinâmicas, dirigidas para a

experimentação de parâmetros de movimentos. Em seguida foram os arquétipos ligados aos

trigramas do I ching que fomentaram as aulas, e se voltaram mais para a construção de

estados, ou entidades, como procurei chamar em aula evitando o termo personagem que

poderia gerar construção excessivamente psicológica por parte dos alunos. Na terceira fase,

foram construídos textos poéticos partir de exercícios de escrita solta, por meio de livre

associação em estado de imersão, com estímulos oriundos do I ching. Os materiais escritos

foram confrontados entre si, ainda em estado bruto, e ganharam novas formas. A partir daí,

num último momento, os acervos expressivos gerados no processo criativo foram vasculhados

e atualizados visando à re-contextualização de ações físicas que dialogassem com os textos

criados. Por falta de recursos técnicos apropriados, não há registros visuais adequados dessa

etapa da pesquisa.

31

Page 32: Por uma TAO expressividade

A segunda etapa consistiu em um processo criativo que visava desde o início à

construção de um espetáculo. Essa etapa resultou no espetáculo solo Traços ou Quando os

alicerces vergam, dirigido e iluminado por André Amaro, acompanhado ao vivo pelo músico

Lupa, e com cenário e figurino de Malu Fragoso.

Nesse estágio da pesquisa nos debruçamos inicialmente sobre alguns contrastes yin

yang, criando um repertório expressivo que paulatinamente foi se desdobrando e sendo

aproveitado e transformado ao longo do levantamento das cenas. Também trabalhamos com

algumas imagens de wu hsing, a mandala das cinco fases, buscando trabalhar as energias

afetivas associadas a elas. O chi kung esteve presente durante todo o processo, como forma de

preparação para o trabalho. Em conversa com o diretor do espetáculo, André Amaro, nós

entendemos que teríamos um excesso de fontes sugestivas num mesmo processo, caso

usássemos, além de wu hsing e das dinâmicas yin yang, o I ching. Assim, como essa última

matriz já tinha sido fartamente explorada na etapa anterior da pesquisa, optei por deixá-la de

fora do segundo momento.

A observação nessa etapa se referiu à avaliação do impacto dessas matrizes na

construção de um repertório expressivo, às possibilidades de composição de cenas a partir

desse acervo, e tangenciou o processo de recepção do trabalho.

Amparando e dialogando com a experimentação cênica das matrizes, um estudo sobre

a idéia de expressividade do corpo na cena foi desfiado ao longo da tese. Esta idéia conjuga

noções de criatividade, recursos técnicos e sensibilidade estética. O estudo não esgota um

apanhado histórico do termo no teatro, nem se quer um tratado sobre o conceito de

expressividade. A noção é usada aqui para apoiar a experimentação proposta, e tem, no

decorrer da tese, uma leitura filosófica.

O termo expressividade, no teatro, parece agregar à técnica, valores mais subjetivos,

como criatividade e vigor, que aliados à eficiência no manejo dos elementos técnicos, podem

gerar excelência na atuação. Podemos assistir uma performance notadamente bem arranjada,

tecnicamente virtuosa, conceitualmente bem formulada, mas inócua no que se refere às

latências dos afetos que provoca. Ou ao contrário, podemos ser fortemente afetados ao

presenciar grande força em uma atuação muito simples do ponto de vista técnico, ou da

combinação e arranjo entre seus elementos. Então o que é, onde reside a expressividade?

Estaria esse potencial expressivo ligado ao que muitas vezes é chamado de presença? Termo,

32

Page 33: Por uma TAO expressividade

diga-se de passagem, de difícil manejo no trânsito acadêmico, ainda que, de certa forma,

apresente entendimento tácito no meio teatral.

É certo que a subjetividade da recepção, assim como outros aspectos envolvidos na

fruição em arte, é fator determinante no perceber ou não alguém como portador dessa

presença. A questão que nos colocamos nessa pesquisa é se as matrizes taoístas poderiam

apoiar a busca por essa presença – espécie de vigor sutil do corpo em cena - e de que forma. O

que percebemos com nossas experimentações é que há procedimentos taoístas, mais

precisamente oriundos do chi kung, que ajudam no despertar e na manutenção, dessa força

cênica, da dita qualidade de presença. Assim como constatamos que aspectos simbólicos do

imaginário taoísta são estímulos poderosos para processos criativos e inspiração para

composições expressivas do corpo.

Ressalvamos que não entendemos a inspiração dentro do ideário romântico de

iluminação, dádiva ou dom legado ao artista genial e eleito, mas como uma metáfora, ligada

mesmo ao processo respiratório de um corpo que vive e cria nos trânsitos entre. Entre o que

entra – inspira - e sai - expira - de si. Assim como não tratamos a noção de estímulo dentro de

uma fórmula mecanicista ou comportamental de estímulo-resposta, mas tão somente como

uma imagem de potencial instigante, sugestivo, estimulante, uma provocação que possa

fomentar ações que dialoguem com ela.

A idéia de presença parece se relacionar à disponibilidade de entrega do ator. Entrega

dele a si mesmo, no sentido de permitir-se acessar e aprender a lidar, no processo criativo,

com seus aspectos psíquicos e energéticos – inclusive os de difícil manejo, os excluídos e

rejeitados por ele em dadas ocasiões de vida. Entrega dele ao seu trabalho, em total imersão e

concentração, buscando experimentar sempre, se trair quando tentado a buscar as formas já

estratificadas de atuação, se disponibilizar a propostas dos parceiros de cena e diretor, como

possibilidades de novas conquistas. Entrega do ator ao público, tornando este, um ato de

comunhão, onde se está por inteiro, e quando se percebe o espectador, trocando com ele, sem

que isso signifique necessariamente prescindir ou sair do roteiro.

Refletindo sobre essa idéia da entrega do ator, a expressão qualidade de presença pode

fazer mais sentido. Presença é uma idéia que remete justo a este estar em si, estar no trabalho,

estar no espaço/tempo da (a)presentação. Corpo presente no tempo, no espaço, corpo como

um presente que se dá ao outro. Tanto no processo criativo, quanto na cena, desenha-se,

33

Page 34: Por uma TAO expressividade

então, a figura de um ator-esponja capaz de absorver, escoar, se encher e derramar-se, receber

e doar... E é a partir dessa idéia de trânsito duplo entre imersão e emergência, que caracteriza

o trabalho do ator, que será pensada a noção de expressividade ao longo da tese.

Tentando dar conta do propósito exposto, que muito resumidamente seria investigar o

impacto das matrizes taoístas selecionadas, enquanto norteadoras de dinâmicas de estímulo à

criatividade e à expressividade de artistas cênicos, bem como seu potencial enquanto

fomentadora de estados meta-harmônicos; e ainda proceder a avaliação e a elaboração teórica

pertinentes a essa pesquisa, foi traçado o percurso a seguir.

O capítulo um se dedica a atualizar e relacionar noções taoístas a idéias ocidentais

contemporâneas, a apresentar as matrizes taoístas que fomentam a pesquisa, e a trazer

referências sobre o uso dessas matrizes no processo criativo. O capítulo dois promove

diálogos com tendências e artistas cênicos referenciais para nossa pesquisa. O capítulo traz

ainda, para balizar e alimentar essa pesquisa, maior enfoque nas idéias de Antonin Artaud e

Eugênio Barba, em trânsito com críticas de Jacques Derrida e Patrice Pavis, respectivamente.

O terceiro capítulo aprofunda reflexões filosóficas relativas ao zeitgeist atual, na construção

da idéia de corpo que orienta essa investigação, em interlocução com noções basilares à

sabedoria chinesa. O capítulo quatro descortina questões conceituais imbricadas na idéia de

expressividade cênica. Trata-se de um exercício de conjectura, mais interessado em

problematizar, arriscar, do que a tentativa de chegar a alguma definição fechada para o termo.

O quinto capítulo é dedicado a pensar a idéia de vazio e como esta se articula ao processo

criativo. O capítulo seis traz a avaliação e reflexão acerca dos processos criativos

desencadeados durante o período de feitura desta tese. Finalizando são levantados os aspectos

conclusivos desse estudo, seguidos das referências e anexos pertinentes à tese.

Ao longo dos anexos há uma série de fontes que complementam esse estudo, divididas

em uma parte A, ligada à montagem de Traços, e uma parte B, relacionada à disciplina

Técnica de Corpo para Cena III. Entre os anexos da parte A estão disponíveis o seguinte

material: a transcrição do diário de bordo da criação do espetáculo, incluindo fotos, a

dramaturgia da peça, um texto do diretor André Amaro sobre o processo, cópias de

comentários sobre a peça, deixados em um caderno específico para isso, ficha técnica,

matérias de jornal, exemplares de material gráfico de divulgação da peça, e um DVD com a

filmagem do espetáculo. Na parte B podem ser consultados o diário de aulas, todos os textos

criados pelos alunos em etapa a isto dedicada, bem como os textos híbridos que dos iniciais

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Page 35: Por uma TAO expressividade

derivaram. Há, ainda, os questionários passados para os alunos, com a transcrição das

respostas dos mesmos.

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Page 36: Por uma TAO expressividade

CAPÍTULO 1

MATRIZES TAOÍSTAS

1.1 Atualizando noções taoístas

O instante é semente viva.[...] Mais que um instante, quero seu fluxo (Lispector, 1998).

Essa pesquisa se alimenta de procedimentos do taoísmo, respira conceitos e

imaginário da sabedoria taoísta, numa atitude de apropriação (inspiração) poética desse

universo, e de sua releitura (expiração). Ou seja, lança mão de um acervo - de idéias, práticas,

imagens, em um contexto deslocado de sua origem cronológica e tópica, com uma abordagem

voltada para o exercício criativo-expressivo (transpiração). Isso enseja a trazer também para a

elaboração teórica, e sempre em perspectiva de atualização, alguns construtos teóricos que são

matrizes dessa sabedoria. Idéias como tao, wu wei, te e a dinâmica yin yang, entre outras,

permearão este ensaio, dialogando com outras, mais recorrentes nos trânsitos acadêmico e

teatral. A proposta é esboçar uma aproximação11 entre noções do pensamento filosófico

contemporâneo e idéias presentes na trimilenária sabedoria taoísta.

11 De novo frisamos que não se busca aqui homogeneizar pensamentos de contextos tão diferentes, como o oriental e o ocidental. Além de inútil e ineficaz, seria uma contradição, já que todo esforço desse estudo é em prol da singularidade, da diferença. Trata-se tão somente de tentar perceber os parentescos, descobrir os encontros, buscar as interseções entre formas de pensar que por vezes são percebidas como mais distantes do que de fato são.

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Page 37: Por uma TAO expressividade

Segundo vários autores todas as tentativas de se descrever o tao, a partir da linguagem

falada, estão fadadas ao paradoxo. Por ser absoluto, o tao é inexprimível. Lao-Tsé, no Tao Te

Ching, dá a entender várias vezes que o tao não pode ser descrito, apenas experimentado.

Fala-se que “é a reunião de todas as coisas e fonte do universo de multiplicidades” (Freire,

1996: 9); que “é tão grande que não comporta um fim, e tão pequeno que nada lhe escapa”

(Tchuang-Tse in Kielce, 1986:18). Lao Tsé diz:

Olhando-o, não o vemos, pois não é visívelEscutando-o, não o escutamos, pois não é sonoroTocando-o, não o sentimos, pois não é palpável (Kielce, 1986:18).12

Segundo a tradição taoísta, wu wei é caminho para o tao. É traduzido de diferentes

formas: não intervenção, não ação, espontaneidade, ação sem propósito, agir sem constringir,

não forçar, seguir, não coagir, não representar. Wu wei não tem, entretanto, um sentido de

inércia, preguiça ou mesmo de passividade como entendida pelo senso comum. A idéia

inscrita em wu wei é um “fazer o não-fazer” (Jullien, 1998:112), ou “agir sem agir” (Jullien,

1998:153), é deixar-se conduzir pelo ritmo natural da vida, “seguir a natureza, fluir com a

energia” (Watts, 1975:110), sem empurrar ou emperrar os acontecimentos, sentindo e

seguindo o fluxo dos espaços-tempo, sem expectativas e em perspectiva não teleológica: só se

chega ao tao sem se tentar chegar ao tao. Em linguagem bem popular poderíamos falar em

“não dar murro em ponta de faca”, “nadar a favor da corrente”, “deixar acontecer”, “não

remar contra a maré”, etc. Não há aqui uma posição conformista, ou uma neutralização

política, mas antes uma estratégia energética e sutil de atuação no mundo. Ter uma conduta

que obedece a um fluxo energético, uma convergência ou tendências de forças, não significa

aceitar um status quo passivamente, ou se ausentar do próprio impulso e potencial

transformador, mas operar essas transformações em fluxo.

Allan Watts, em Tao, o curso do rio, diz que “a arte de viver é mais semelhante à

navegação do que à guerra, pois o importante é entender os ventos, as marés, as correntes, as

estações e os princípios de crescimento e declínio, de forma que se possa utilizá-los, e não

lutar contra eles” (1975:49). Imagens ligadas à água são constantemente associadas às noções

taoístas, por exprimir esse caráter maleável, multiforme, fluido. Como se nota nesta

passagem:

12 A tradução encontrada aqui me pareceu mais apropriada que a do volume do Tao Te Ching, de que disponho.

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Page 38: Por uma TAO expressividade

Ah-ah, t’ai chi é o Tao, wu-wei, tzu-jan, como a água, como velejar, como surfar, dançar com as mãos, a cabeça, a coluna, os quadris, os joelhos... com o pincel, a voz... ha ha ha ha... La La Lala ah ah Ah... (Watts, 1975:7).

O surfe, aliás, é uma imagem bastante usada para pensar tanto o wu wei e o tao, quanto como

metáfora para autores que pensam a idéia de tornar-se fluxo, como nesse texto de Pierre Lévy:

Entre o ar e a água, entre a terra e o céu, entre a base e o vértice, o surfista ou aquele que se lança jamais está inteiramente presente. Abandonando o chão e seus pontos de apoio, ele escala os fluxos, desliza nas interfaces, serve-se apenas de linhas de fuga, se vetoriza, se desterritorializa. [...] Torna-se velocidade, passagem, sobrevôo (1996:32).

Note-se ainda esse trecho, onde Denise Sant’Anna fala sobre o viver o tempo presente,

quando o objetivo é estar fazendo exatamente o que passa. Aqui também se recorre à metáfora

do surfe.

...tem-se a impressão de que não é mais possível separar o sujeito que pensa e questiona do sujeito que age. [...] o tempo presente deixa de ser vivido como um trampolim para o futuro. O tempo presente se amplia, se intensifica. [...] O exemplo do surfe [...] o objetivo a ser atingido é a ação de surfar: a meta final coincide com o processo [...] A relação entre o surfista e o mar tende a ser menos a de um domínio de um sobre o outro e mais de uma composição de dois conjuntos de forças heterogêneas. [...] A ação de surfar coincide com a sua percepção (2001:98).

O princípio taoísta wu wei pode ser relacionado à idéia de devir, ou de um “entrar em

devir”. Segundo o dicionário (Ferreira, 1975), devir é a transformação incessante e

permanente pela qual as coisas se constroem e se dissolvem em outras; o vir-a-ser. Para

Deleuze a idéia de devir remete a um deixar de ser. Thomas Tadeu retoma a investigação

deleuziana da idéia de devir, que é originalmente atribuída ao grego Heráclito. Deixar de ser

alguma coisa, mesmo que para se tornar outra, demanda um estágio que caracteriza um “não

ser”, ou “ainda não ser” (Tadeu, 2004). Essa perspectiva - tão inadmissível para a filosofia

grega preponderante, e para o pensamento ocidental derivado desta ontologia de centros,

identidades e essências - se encontra revigorada em grande parte dos pensadores

contemporâneos.

O não ser do devir, e a não ação do wu wei são ambos estados fortemente marcados

por dois fatores: o fluxo - movimento e transformação ininterruptos; e o vazio – interstícios,

hiatos, suspensão de ação, de identidade, e qualquer tipo de fixação ou territorialização. Esses

dois fatores nos levam a uma terceira idéia, que de certa forma abraça as anteriores: o virtual,

campo disforme de multiplicidades intensivas.

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Page 39: Por uma TAO expressividade

Segundo Lévy, o virtual é um complexo problemático, um nó de tendências ou de

forças que acompanha uma situação e que chama um processo de resolução contíguo, mas em

direção oposta: a atualização. A atualização, por sua vez, consiste na criação, na invenção de

uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e de finalidades (1996:16).

Deleuze, como vimos, entende o virtual como o campo ou fluxo de devires - um dado plano

de imanência, e a atualização como o processo de singularização. Segundo o filósofo, a

atualização, (ou territorialização), busca, seleciona, captura aspectos do virtual, convertendo-

os em atualizações, e a virtualização (desterritorialização) é o processo que reconverte o atual

em virtual, é o voltar ao fluxo de intensidades amorfas (Alliez, 1996:50).

Deleuze aponta a estreita relação entre devir e virtual ao mencionar que, para devir, é

preciso sempre remontar à multiplicidade intensiva, ou seja, ao virtual, mesmo que nos

trânsitos ocorram os estados de territorialização. Tadeu, ao pensar como essa questão é

levantada por Deleuze, o faz mencionando que essa seria uma pista de conduta, mais que uma

simples conjectura conceitual (2004: 31). No caso da idéia de wu wei sua relação com a

virtualidade se dá de forma parecida. Para não agir, ou agir sem constringir, também é preciso

remontar ao imponderável, ao imprevisível, ao abismo, ao vazio, ao fluxo de multiplicidades

ao qual escapa toda tentativa de controle. E se é ineficaz a tentativa de controlar ou fixar o

virtual, restam capturas temporárias. Atualizar é capturar intensidades no campo virtual e

territorializá-las, em fluxo. A tentativa de estratificar essas territorialidades tende a esvaziá-las

dos seus sentidos - estético, semântico, patético (Didi-Huberman,1998) - e, por isso mesmo,

de sua potência expressiva.

Denise Sant’Anna, em seu livro Corpos de Passagem, denuncia um processo de

desertificação da vida, ao qual é imperioso que se oponha resistência, sob pena de uma

espécie de neutralização político-subjetiva dos corpos. Ela investiga, investe e instiga a uma

engenharia que possa religar o corpo às suas potências e às suas virtualidades, que possa

“conectá-lo com a espessura da história e, ao mesmo tempo, abri-lo ao imponderável.”

(2001:11).

Te é outra idéia importante no taoísmo, haja vista o Tao-te-ching contê-la em seu

título, e usualmente é traduzida como virtude pelos ocidentais. Virtude é um termo que,

muitas vezes, remete a qualidades morais, disposição para a prática do bem, castidade,

austeridade, entre outros valores afins. Allan Watts, entretanto, ajuda a redimensionar o

entendimento de te ao traduzir o termo por virtualidade (1975:143). Sua opção se dá porque te

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não se refere a uma retidão artificial, acatada, baseada em obediência a regras impostas, mas

sim a uma consonância entre conduta e potencial, o que se aproxima bem mais da idéia de

ética que de moral13. O ideograma que originou te significa “fluir em união com o olho e o

coração (mente)” (1975:160).

Essa idéia parece se relacionar à de desejo enquanto tendência, disposição de seguir

uma vontade. Ainda que os taoístas sejam avessos à idéia do desejo enquanto construção de

expectativa, aquela que arranca o ser do presente, o termo aqui tem outra conotação, mais

próxima a de vocação. Watts, que não segue o taoísmo ortodoxamente, buscando

compreensões menos dogmáticas dessa sabedoria chinesa, chega a dizer que “o gênio – a

pessoa do te – está sempre além das regras, não devido a um espírito rebelde e anti-social com

um propósito hostil, mas porque a fonte da obra criativa reside no questionamento inteligente

das regras.” (1975:159), e lembra que em várias passagens da literatura taoísta te se refere a

habilidades em geral (1975:147), o que nos aproxima de novo das idéias de tendência,

vocação.

Tal articulação entre vontade, potencial, fluxo e conduta, remete te à idéia de

virtualidade. Segundo o sinólogo Marcel Granet (1997) a palavra tao na língua mítica devia

expressar a idéia de uma eficiência indeterminada, mas que seria o princípio de toda

eficiência. Ainda segundo o autor, o termo era constantemente associado a te, quando se

aproximava da noção de eficácia particularizada. Assim, tao-te traria a idéia de uma “eficácia

que se singulariza ao se realizar” (1997:191).

Para constatar no corpo, na própria vida, a ausência ou baixa incidência de te; para

perceber a inadequação das regras vigentes; para se dar conta do nível de insatisfação pessoal

em relação à própria vida; e para identificar as possíveis tendências, é preciso lançar mão de

uma percepção de natureza diferente da exclusivamente racional e daquela só ligada aos cinco

sentidos. Entra em cena a percepção das forças, própria ao que a psicanalista e pensadora

Suely Rolnik chama de corpo vibrátil. Este funcionaria como uma bússola ou alarme,

perceptor e desencadeador de crises (Rolnik, 2003), que por sua vez, seriam motrizes de

transformações. Entra em cena a percepção daquilo que os chineses chamam chi.

O Acupunturista Marcus Vinicius Ferreira em trabalho apresentado no III Congresso

da Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura, Santa Catarina, outubro de 1996, alerta para o 13 Sobre esse tema vale a pena conferir o artigo “Ética como potência e moral como servidão”, do filósofo brasileiro Luiz Fuganti, de 09/07/2001, disponível no site www.linhadefuga.com.br ativo em 2005.

40

Page 41: Por uma TAO expressividade

reducionismo de traduzir chi por energia simplesmente, e argumenta a favor de que alguns

termos chineses sejam usados em sua forma original. De fato os ideogramas chineses são

extremamente complexos e atravessados de imagens e sentidos, logo toda tradução tende a

orientar para uma única possibilidade de interpretação daquela idéia. O professor André

Bueno, da Universidade Gama Filho lembra o simbolismo do ideograma que representa chi,

ou como ele prefere qi - o que é apenas uma diferença de grafia na tradução, ligada a questões

fonéticas.

A concepção do Qi que é representada em seu ideograma, manifesta a idéia do vapor d’água saindo de uma panela de arroz em cozimento. Este vapor pode se condensar e virar novamente água, ou, no frio, se congelar e virar uma pedrinha de gelo; ou ainda, o vapor simplesmente escapa, continuando em seu estado fátuo. Extraindo desta analogia uma concepção profunda acerca de estrutura da matéria, os chineses preocuparam-se, porém, em entender como o Qi funcionava em suas manifestações (Bueno, 2000).

Assim, chi pode ora assumir características de energia fluida, ora de energia condensada,

quando pode causar bloqueios nos canais de energia do corpo.

A percepção e capacidade de regulação de chi são atribuídas ao corpo sutil,

responsável pela alquimia interior. Aparentado à noção de corpo vibrátil (Rolnik, 2003), para

os chineses, o corpo sutil está relacionado à cartografia energética que eles identificaram na

constituição corporal: os pontos, os meridianos, os centros de energia, e suas inter-relações

entre si e com o meio. Watts fala também em percepção intuitiva (1975:154), em algo além

do nosso funcionamento natural e habitual, em uma habilidade inconsciente e espontânea em

lidar com questões (1975:144).

A noção de corpo sutil foi ilustrada com a imagem abaixo, espécie de perfil do interior

de um corpo humano, recheado de detalhes: com animais em lugares onde haveria órgãos,

florestas em pontos energéticos, torres, pessoas, espirais, ideogramas e símbolos variados pelo

corpo14.

14 Imagem: “Diagrama do ‘corpo sutil’ que rasteia a alquimia interior”, datado de 1886, dinastia Ts’ing, (Rawson e Legeza, 1973:82, ilustração 53)

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Page 42: Por uma TAO expressividade

Para dialogar com essa idéia é interessante trazer o modo como Denise Sant’Anna

pensou a sutileza. Entendida como uma “complexidade de gestos, sentimentos e ritmos do

corpo” (2001:124), para a autora a “sutileza inclui zonas de sombra, e estas não significam

caos nem, necessariamente, silêncio” (2001:125). Ainda segundo Sant’Anna o que é sutil só é

frágil na aparência, sendo, em realidade, um amálgama de delicadeza e força, que pode,

inclusive, ser aprendido através “de exercícios, de atenção ao que passa entre os corpos. E,

por mais tautológico que possa parecer, a atenção se aprende com atenção”.(2001:125).

Essas reflexões de Sant’Anna se afinam com o modo como os taoísta lidam com seu

corpo sutil. Os treinos de chi kung, por exemplo, que serão detalhados adiante, além de

operarem pela atenção e concentração sobre os ritmos energéticos corporais, sobre os fluxos e

trânsitos de energia entre o corpo e o meio (terra, céu, árvores, outros corpos), lidam com

essas matérias sem a intenção de esclarecê-las. O que interessa, aos praticantes, é a conquista

dessa percepção de outra ordem, e de um certo manejo sobre as forças que atuam nos corpos,

respeitando as zonas de sombra e mistério.

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Page 43: Por uma TAO expressividade

1.2 Conhecendo as Matrizes

Em meados de 1990 fiz vestibular e entrei para o Bacharelado em Interpretação

Teatral da Universidade de Brasília. Menos de dois anos depois, fui integrada como bolsista

de iniciação científica do Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos (GPCI). Este era – e ainda é

- coordenado pela professora Maria Beatriz de Medeiros, que à época havia recém-chegado de

seu doutorado em Paris, quando se debruçou sobre a Arte da Performance em trânsito com

noções da filosofia contemporânea. Integrei o grupo - que existe até hoje - até o ano 2000,

quando defendi minha dissertação de mestrado Performance em Telepresença, na qual

discutia questões ligadas à pesquisa do GPCI. As leituras e experimentações com este grupo,

na fronteira entre corpo e tecnologia, entre arte e vida, entre política e estética, entre

performance e filosofia, trouxeram-me o desejo de investigar também a linguagem teatral sob

uma ótica diferenciada, e complementar à que eu estava tendo acesso durante o curso.

Assim surgiu a Tribo Atrito, grupo de pesquisa teatral que se voltou a uma

investigação sobre a corporeidade na cena. As responsáveis e idealizadoras desta pesquisa

éramos eu e a atriz e pesquisadora Rita Gusmão, hoje professora mestra no Departamento de

Artes Cênicas da Universidade Federal de Minas Gerais. A partir de princípios ritualísticos -

emprestados de Artaud - e de treinamento quase diário - calcado em procedimentos

psicofísicos de Grotowski, organizados por Celso Nunes, e de Barba, entre outras referências

e intuições – desenvolvemos estudos, cenas e espetáculos.

Dentre os trabalhos que realizamos, talvez o mais importante tenha sido a montagem

de Entre Quatro Paredes, de Jean Paul Sartre, em 1994 e 95. Em cena estávamos eu, Rita

Gusmão, José Delvinei (ator, professor, produtor cultural, ex-coordenador regional da

FUNARTE Brasília) e Cesário Augusto (ator, pesquisador, professor Doutor da Universidade

Federal do Pará). Na época éramos os quatro ainda estudantes, cursando ou bacharelado ou

licenciatura em Artes Cênicas. O espetáculo foi dirigido por mim e Rita Gusmão e

apresentado em vários teatros de Brasília. Após um ano de trabalho praticamente diário sobre

a peça, o grupo estreou, levando à cena intensa pesquisa de dramaturgia corporal (que à época

chamávamos de gestualidade) desenvolvida pelo grupo. A peça teve cerca de quatro

temporadas em Brasília – feito bastante incomum para o momento na cidade, com

interessante repercussão junto ao público brasiliense.

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Page 44: Por uma TAO expressividade

Durante os quatro anos de existência do grupo (1992 a 1995), instituímos, ao lado do

treinamento técnico, a realização do que denominávamos rituais. Estes partiam de wu hsing,

espécie de mandala chinesa que admite cinco forças primordiais na natureza, sobre a qual

trataremos adiante. Juntávamos-nos – às vezes só eu e Rita, às vezes além de nós, havia outras

pessoas com quem estávamos trabalhando no momento- em situações não cotidianas, em

espaços fora do nosso eixo diário. Uma cachoeira, uma mata, uma construção em ruínas, um

parque de diversões, entre vários outros locais, eram palcos de processos de exaltação de um

determinado estado ou energia, os quais conjugavam cores, emoções, forças da natureza,

alimentos e bebidas, etc. Nessas ocasiões cantávamos músicas criadas nesse mesmo ambiente,

ingeríamos alimento e bebida de um dado sabor, vestíamos uma cor e intensificávamos uma

determinada energia afetiva, através de vivências variadas, adotadas com este fim.

Posteriormente, já em situação de treinamento, recompúnhamos a emoção para trabalhá-la em

nível expressivo.

Esse foi meu segundo contato, ainda tênue, com o ideário taoísta. O primeiro havia

sido por volta dos meus 16 anos, através da prática de tai chi chuan por cerca de um ano,

junto ao mestre Dada, em Brasília. Na ocasião em que treinei tai chi chuan, sentia um bem

estar muito grande, porém não busquei, naquele momento, uma intimidade maior com as

origens da prática. Com o tempo acabei me distanciando do tai chi chuan. Porém, manteve-se

no corpo a memória agradável das sensações de concentração, consciência, integridade,

serenidade, as quais a prática costumava me trazer.

Ainda com a Tribo encenei Matamoros, de Hilda Hilst, enquanto trabalho de final de

curso de minha graduação. Tanto no processo quanto na encenação trouxemos a referência

dos cinco elementos chineses. Nosso cenário era constituído de cinco círculos concêntricos

formados por terra, água (tinas, bacias e cuias), fogo (velas), metal (muitas chaves) e madeira

(galhos e folhas secas). Em cada um desses espaços aconteciam ações relacionadas aos

elementos presentes, fossem movidos pelas emoções associadas, ou se relacionassem à fase

de vida ligada ao elemento, etc. Além destas referências, busquei apoio nos arquétipos dos

Arcanos Maiores do Tarô, para composição de personagens. Este foi o último trabalho do

grupo, que acabou ao mesmo tempo em que concluímos o curso, no fim de 1995.

Alguns anos depois, passei a integrar a Cia. Teatral Piramundo, à qual estive ligada

desde 1998 até 2004, quando saí para fazer o doutorado. Além de mim, o grupo era formado,

pelos atores Márcio Menezes, Vanessa Rocha, Rômulo Augusto – estes três eram ex-colegas

44

Page 45: Por uma TAO expressividade

de curso – além de Amara Hurttado, Lupa Marques, entre outros, que iam e vinham ao longo

dos anos.

A Piramundo era conhecida na cidade pela sua versatilidade, e desenvolvemos

diferentes projetos culturais para o mercado brasiliense, como peças institucionais, didáticas

ou temáticas, espetáculos para shoppings, oficinas para recursos humanos, etc. Em 2000,

tomados por uma profunda insatisfação artística, decidimos frear nossa produção voltada ao

mercado e nos voltarmos à pesquisa na linguagem teatral, e no processo criativo do ator.

Acolhendo as pesquisas e tendências individuais dos participantes, criamos trabalhos

envolvendo teatro de animação, inserimos na maior parte das montagens música executada ao

vivo (algumas criadas com o percussionista Lupa, meu atual parceiro em Traços) e realizamos

trabalhos de criação a partir de nossas mitologias pessoais. As criações nasciam de processos

coletivos e a direção das peças era revezada pelos membros ou, esporadicamente, realizada

por diretores convidados.

O último trabalho da cia., de que participei, foi A Roda do Arco-Íris, conduzido pela

atriz e arte-terapeuta Vanessa Rocha, que à época cursava sua pós-graduação em terapia

junguiana. O processo de construção desse espetáculo instalou primeiramente um espaço de

auto-conhecimento e desbloqueio energético. Foram trazidos processos de imersão psíquica

que visavam o contato e a emergência de questões subjetivas que possuíssem ao mesmo

tempo demanda de cura, e potencial criativo. Além disso, trouxemos de volta uma atmosfera

ritualística, a qual fortaleceu os elos do coletivo, e nos predispôs a operar em outros níveis de

realidade que não o real concreto.

Durante esse período vivi alguns processos energéticos bastante intensos e inéditos

para mim. Ao me concentrar para o trabalho, na parte inicial em que simplesmente devíamos

estar disponíveis e deixar acontecer, aconteceu, por várias vezes, de sentir meu corpo tomado

de uma energia tão forte que o movia involuntária e às vezes violentamente. Na maior parte

das vezes essa explosão energética partia do centro do peito, do ventre ou da pélvis, (pontos

energéticos segundo a tradição taoísta e a hindu) e gerava um movimento de certa forma

convulsivo. Também meus braços mantinham um movimento involuntário, em geral muito

rápido e vigoroso, em ocasião de um exercício que nos foi passado por uma profissional de

Reeducação Postural Global (RPG), chamada Angelina Vargas.

45

Page 46: Por uma TAO expressividade

Durante esse processo me senti fortemente impelida a voltar-me para um trabalho de

pesquisa que partisse de pressupostos similares àqueles. Era como se eu estivesse me

reencontrando, depois de muitos anos perdida nas demandas do mercado. Voltou-me toda a

experiência anterior com a Tribo, e tudo isso me trouxe vontade de mudar o rumo que minha

vida no teatro vinha seguindo. Foi quando decidi apresentar um anteprojeto para o doutorado.

Entrei, então, para o PPGAC com um projeto de pesquisa chamado Processos cria-cura-

ativos: Meios de imersão psíquica para criação do repertório expressivo do ator. Com a

ajuda de professores e colegas fui aos poucos conseguindo realizar um recorte -

absolutamente necessário - que acabou concentrando a pesquisa em matrizes taoístas.

A partir daí passei a realizar leituras e descobri o chi kung, perspectiva de trabalho que

ainda não conhecia muito, apesar de o tai chi chuan ser considerado um tipo de chi kung,

coreografado. Fiquei bastante interessada e comecei a praticar, junto ao professor Ernani

Franklin, em Salvador, com quem fiz alguns cursos teórico-práticos. Além dos cursos trouxe a

prática para minha vida diária, ainda que de maneira menos disciplinada do que me era

orientado fazer. A prática do chi kung me trazia a mesma sensação de fluxos involuntários de

energia e movimento que sentira outrora, mas que agora vinham com uma fluidez mais

contínua e lenta, de um modo geral. Também já cheguei a sentir manifestações energéticas no

corpo, parecidas às que sinto com o chi kung em espaços sagrados como Igrejas Católicas,

Terreiros de Candomblé, Centros de Santo Daime e Espiritismo. É sempre uma sensação de

corpo como passagem, o que às vezes se altera, creio, é a densidade da energia que atravessa e

se transforma.

Hoje consigo acionar esse estado de captação e fluxo energético com certa facilidade,

e pude perceber que isto é, também, uma questão de treino. Catherine Despeux (1981) traz

uma descrição que intitula “Fusão da energia espiritual e retorno à vacuidade”, em relação à

qual senti que minha própria experiência se aproximava:

Quando há coincidência, cada vez mais perfeita, entre a execução de um movimento e a emissão, pelo coração, de sua representação mental, quando o corpo responde instantaneamente ao pensamento emitido, há automatismo do movimento e passagem ao inconsciente. Já não se faz necessário o esforço consciente para executar o movimento nem para emitir o pensamento determinado que lhe corresponde. A “palavra do coração” (yi) se escoa por si só. Chegado a esse estádio, o exterior já não perturba o adepto, cuja energia espiritual está concentrada. Já não tem vontade de mover-se segundo um esquema definido, mas responde instantânea e espontaneamente às diferentes circunstâncias, e os movimentos executados, já não são, forçosamente, os do tai chi chuan. O adepto perde a consciência do eu e do corpo, mas ainda está consciente, o que não acontece nos estados de transe. Encontra-se num estado que ultrapassa a dualidade consciência/não consciência, pois foi realizada a união

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Page 47: Por uma TAO expressividade

dos contrários: interior e exterior, movimento e repouso, eu e o outro. É a união do tao com a vacuidade [...] Ele encarna, portanto, o ideal do santo gabado pelos taoístas, o mais célebre dos quais, Zhuangzi afirmou “o sábio supremo não tem eu”. Quando nenhum pensamento se eleva do interior e não há obstruções no exterior, a energia do indivíduo não tem limites, identifica-se com as forças do universo cujas leis segue [...] O praticante não executa por si mesmo os movimentos, deixa operar o tao através de si (1981:72).

Assim fui intuindo - ou desejando - as possibilidades de trânsito da prática do chi kung

com o trabalho de ator. Na disciplina Técnica de Corpo para Cena III, que ministrei no

primeiro semestre de 2005, pude experimentar a prática para abrir trabalhos e apoiar alguns

exercícios, que também partiam de matrizes taoístas - como os trigramas do I ching, e alguns

pares yin yang. A resposta tanto corporal quanto do relato dos alunos em grande parte apontou

para a eficácia da proposta, como veremos no capítulo a isso destinado. A seguir, foi a vez de

associar a prática de chi kung, bem como as outras matrizes como universo sugestivo, à

construção de um espetáculo propriamente. Essa etapa gerou o solo (ou nem tanto já que um

percussionista me acompanha ao vivo) Traços. Também sobre este processo trataremos

oportunamente.

Seguem agora abordagens mais detalhadas sobre nossas matrizes. Todas elas são

sistemas de classificação da tradição taoísta, eleitos como norteadores dessa pesquisa. Há

muito mais a ser pesquisado e dito sobre o vasto ideário taoísta. Tentaremos apenas apresentar

os aspectos relevantes – do ponto de vista desta investigação - do que é o nosso recorte dentro

do grande espectro de referências que é a sabedoria taoísta. É bom esclarecer que há uma

profunda e complexa inter-relação entre os sistemas de classificação que descreveremos a

seguir, assim como entre estes e outros que não serão abordados. Entretanto também não nos

aprofundaremos nessas relações, justamente pela necessidade de recorte, mesmo intuindo que

isso desdobraria ainda mais as possibilidades de interação das matrizes com processos

criativos.

1.2.a Yin yang

A idéia da relatividade yin yang nasceu na China antiga, alguns séculos antes de

Cristo, a partir da observação dos ciclos da natureza, em especial o ciclo dia e noite e fatores a

este associados, como sol e lua, claridade e escuridão, etc. Suas mais antigas referências

conhecidas constam do Hi zi, pequeno tratado anexado ao I ching (1997:85). Neste tratado os

emblemas funcionavam especialmente na caracterização das linhas, a inteira (yang), que

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Page 48: Por uma TAO expressividade

inicialmente denotava sim e a cortada (yin), significando não. Estas linhas são as menores

células do I ching, cujas combinações formarão os trigramas e hexagramas, complexificando

as respostas. Segundo o acupunturista Marcos Freire, se com a idéia de tao, só podemos lidar

a partir de um processo sintético (caracterizado por ser holístico, sistêmico, intuitivo), com

sua manifestação para os homens a partir de duas forças relativas - yin e yang - podemos lidar

a partir de processos analíticos, relacionais (1996:3).

Marcel Granet (1997: 83) observa duas tendências de análise sobre o conceito, uma

atribuída aos críticos contemporâneos chineses, de entendê-los como forças, e outra,

ocidental, de tratá-los como substâncias. Refutando ambas as proposições, Granet observa

que, de forma bem mais simples que se possa imaginar, os termos yin e yang funcionam

principalmente como emblemas, dotados de potencial de evocação de todos os contrastes

possíveis existentes. Yin e yang formam, assim, um par de rubricas mestras com alto poder

sugestivo e simbólico (1997:88).

Segundo Granet, a existência deste conceito parece traduzir a idéia de que o contraste

de dois aspectos concretos caracteriza o universo e cada uma de suas aparências (1997:89),

entretanto, como será discutido em outros trechos, o duplo yin yang não se configura nos

moldes dicotômicos, derivados da metafísica ocidental, e nem rechaça a noção de

multiplicidade em detrimento de dualismos estanques. Não há relação hierárquica ou

excludente, mas movimentos incessantes e interdependentes entre as duas faces. Há ainda

uma infinidade de configurações possíveis entre os dois pólos limítrofes de um fenômeno,

além de uma pluralidade de fenômenos caracterizáveis. Ou seja, ainda que tudo possa ser

compreendido a partir da noção de um duplo, as proporções entre as partes não são estáveis,

nem equivalentes. Trata-se de variáveis que oscilam no tempo e no espaço, prenhes de ritmo e

pulsação, como tudo que é inerente ao universo e suas manifestações.

Na representação gráfica do símbolo yin yang, chamada tai chi - grande energia, em

tradução simplificada - há uma pequena circunferência branca na metade preta e vice e versa.

Isso traduz uma particularidade da dinâmica: cada uma das faces extremas (pólos) carrega em

si o germe da outra. Donde temos:

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Page 49: Por uma TAO expressividade

As seguintes propriedades da dinâmica entre yin yang mostram bem essas

características:

A. Oposição: Esta propriedade diz que todos os fenômenos da natureza têm, ao mesmo

tempo, dois aspectos contrastantes, e denota a existência de polaridade e tensão entre eles.

Entretanto não se refere a um dualismo antagônico, hierárquico ou excludente, antes, aponta

para complementaridade e ambivalência. Expressa aspectos alternantes. Esta não é uma

antítese absoluta, mas relativa, rítmica, e é especialmente esse caráter de revezamento, que a

diferencia daquela oposição encontrada em uma dicotomia. Esta contradição inerente a todos

os fenômenos constitui a força motriz de toda modificação, desenvolvimento e deterioração

das coisas (Maciocia, 1996: 70).

B. Interdependência: Propriedade que mostra que um pólo só existe na dependência do

outro, apresenta a imbricação entre os opostos. O quente não é sequer compreendido sem o

parâmetro oposto: o frio. São fatores inextricáveis, e isso é condição para existência de cada

um. A qualidade yin ou yang de algo não é realmente intrínseca, mas somente relativa a algo.

O clima da Suíça é yin (frio) em relação ao Brasil, mas é yang (quente) em relação a

Antártida.

C. Inter-consumo: Essa propriedade mostra que o aumento de um dos lados acarreta a

diminuição do lado oposto e vice-versa. Configura uma mudança quantitativa, há movimento

e mudança constantes caracterizando um equilíbrio dinâmico, instável e instantâneo, entre os

pólos. Para a medicina chinesa, se no corpo humano ocorre um aumento ou diminuição

excessivos de um fator, o equilíbrio relativo fica comprometido. Isso caracteriza excesso ou

deficiência de yin ou yang no corpo, ou num órgão, gerando enfermidade e demandando

tratamento. Têm-se então quatro quadros possíveis de desequilíbrio: preponderância de yin,

preponderância de yang, debilidade de yin, debilidade de yang. Destes quadros importa dizer

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Page 50: Por uma TAO expressividade

que, por exemplo, numa situação de debilidade de yin, haverá a aparência de excesso de yang,

mas é preciso que se identifique o quadro com clareza para melhor eficácia de abordagem no

tratamento pela medicina chinesa.

D. Inter-transformação: Aqui se apresenta uma mudança qualitativa. Em certas

situações, geralmente no auge da predominância de um lado, este poderá se transformar em

seu oposto, produzindo um processo de transubstanciação, uma mudança radical. “Ações

extremas produzirão resultados inversos”, diz o adágio chinês. Há duas condições para que

ocorra esta transmutação:

Condições internas: uma mudança só ocorre quando primeiramente as condições

internas estiverem amadurecidas, e, secundariamente devido às causas externas.

Fator tempo: só há mudança quando as condições estiverem preparadas para ela, num

estágio de desenvolvimento propício para isso.

Uma metáfora interessante para pensar a relação entre os aspectos yin e yang dos

fenômenos, a qual contempla as propriedades acima descritas, e será usada também em outros

momentos da pesquisa é a do Anel de Moebius. Proposta pelos matemáticos alemães August

Ferdinand Moebius e Johann Benedict Listing em 1858 e redimensionada por pensadores

como Lacan, José Gil, e artistas como Escher e Ligia Clark, o Anel de Moebius é um enigma

da geometria e do espaço: o lado externo é ao mesmo tempo o interno.

Como vemos, a imagem acima é similar àquela utilizada para simbolizar o infinito. A

pesquisadora Ciane Fernandes também usa o anel, e assim explica sua natureza:

Como no Anel de Moebius ou Figura Oito (descrita por Laban em termos de movimento, 1974, 98), ou mesmo como no espelho mágico de Escher (ERNST, 1996, pp.99, 76), dualidades tornam-se contínuas gradações em transformação (2006.1).

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Page 51: Por uma TAO expressividade

Ou ainda a mesma autora, nessa outra formalização da idéia:

No Anel de Moebius [...] as duas extremidades do tempo (passado e futuro) se encontram num ponto de inversão, criando uma torção sem interno-externo. [...] Dentro da Figura Oito, [...] dualidades opostas e excludentes passam a ser transições entre diferenças (2006.2).

Assim, não há nunca uma extremidade pura, mas sim transições em gradações, aumentando

ou diminuindo de intensidade e transformando-se no outro. Ressalte-se ainda, que o interior

do Anel de Moebius, como o tao, traz o vazio.

A seguir uma tabela que contém exemplos de pares yin yang. Esta é uma seleção de

alguns aspectos a partir das diferentes fontes usadas na pesquisa. Aqui estão aqueles que

consideramos mais aplicáveis ao propósito de servir como estímulos para criações corporais.

Uma tabela é um mecanismo bastante restrito, e em termos visuais não dá conta da

representação das propriedades apontadas acima. Assim, optamos por criar esse formato de

tabela que busca traduzir, ou pelo menos se aproximar das características dinâmicas entre yin

yang.

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Page 53: Por uma TAO expressividade

Este material orientou várias dinâmicas corporais ao longo das etapas da pesquisa. As

propriedades acima descritas também foram trazidas na orientação de atividades de pesquisa

criativa, visando desdobrar suas possibilidades.

Frisamos que os pólos não se esgotam em si, como nos modelos dualistas dicotômicos,

mas agenciam configurações múltiplas a partir de sua mútua articulação. Assim, entre o curto

e o longo, ou entre o vazio e o cheio, por exemplo, há uma pluralidade de atualizações

possíveis e sempre renováveis. Como há também as relações de reciprocidade,

reversibilidade, interdependência, complementaridade e ambivalência.

A seguir descreveremos alguns exercícios que partiram dessa matriz, partindo-se

sempre de um dos pares acima enumerados:

A. Diagonais individuais:

Diagonais em que se busca a transformação gradual de um pólo para o outro do

duplo. Por exemplo, saída com movimento centrípeto aos poucos se

transformando em centrífugo. Aqui está implícita a propriedade de inter-

consumo orientando a dinâmica.

Diagonais onde se busca a mudança súbita de um estado em sua polaridade

máxima para o inverso. Como uma saída em movimento o mais sombrio

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Page 54: Por uma TAO expressividade

possível até o centro, a partir do qual se troca subitamente para movimento

luminoso. A característica marcante aqui é de inter-transformação.

B. Diagonais em dupla:

Cada um sai de um canto da sala, com energias opostas. Vão se dirigindo

gradualmente para o outro pólo do par yin yang escolhido, e encontram-se no

centro buscando estarem em equilíbrio simétrico (no meio do caminho entre os

pólos) nesse ponto, para, a partir daí, irem trocando as polaridades com as

quais iniciaram o exercício. Por exemplo, um sai de um lado com movimento

de recepção e outro com movimento de penetração, no centro eles devem estar

com movimentação intermediária entre os pólos, para depois cada um ir

buscando a outra polaridade. Aqui se busca enfatizar o caráter oposto,

complementar e interdependente dos duplos. Outra variação é saírem das

extremidades num pólo, intensificarem este mesmo pólo, para no centro, ao se

encontrarem, promoverem a transformação súbita no pólo oposto.

C. “Dimmerização”:

Os pólos funcionam ainda como uma espécie de dimmer ou graduador de

intensidades, que, na pesquisa de movimento, torna-se mais um parâmetro a ser

aplicado. Assim, tem-se uma dada partitura de ação física, advinda de alguma

experimentação, e nela se aplica um par de parâmetros como, por exemplo,

lentorápido. Tal partitura mais rápida, ou mais lenta, vai apresentar

desdobramentos da frase original que podem adequá-la melhor a um

determinado contexto. Outros pares podem funcionar nesse propósito. Alguns

tornam-se parâmetros mais concretos, como pesadoleve, e outros fornecem

imagens mais abstratas, como densosutil, vaziocheio, contraçãoexpansão,

altobaixo, curtolongo, tristealegre, etc. Com isso há a possibilidade de

explorar cada partitura ou célula física com pares que agem de formas

diferentes.

A idéia de usar os pares yin yang desta forma surgiu a partir da leitura do estudo de

Ciane Fernandes sobre Rudolf Laban (2002). Laban e seus discípulos organizaram seu

sistema de análise do movimento nesta relação dinâmica entre polaridades: teoriaprática,

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Page 55: Por uma TAO expressividade

dançateatro, corpopalavras, leveforte, livrencontido, funçãoexpressão, internoexterno, entre

outras. Para Laban, o espaço começa dentro do corpo (arquitetura do corpo) e este se expande

para o espaço (arquitetura do espaço), conectados através de variações de combinações

expressivas. Nesta “harmonia espacial”, interno e externo, e impressão e expressão, estão em

constante diálogo e recíproca transformação nos percursos ou traços de energia. Esta

harmonia fundamenta a expressividade do ator-dançarino, em ritmos, fraseados e ênfases

diversas.

Laban identificou quatro duplas de qualidades expressivas como norteadoras de

movimento, a saber: fluxo (contido ou livre), peso (forte ou leve), tempo (acelerado ou

desacelerado) e foco (direto ou indireto). Algumas destas duplas encontram aproximação na

listagem acima, dos pares yin yang. Além disso, discípulos de Laban vêm estabelecendo

diversas correspondências quaternárias aos fatores expressivos, inclusive com elementos da

natureza. Assim, peso é associado à terra, fluxo ao elemento água, tempo ao fogo e foco ao ar.

E, assim como na tradição chinesa, as qualidades expressivas nunca estão isoladas, mas

agrupam-se para criar uma imagem ou uma espécie de arquétipo energético. Por exemplo, nas

ações básicas temos variações de tempo, peso e foco, mas mantemos o fluxo constante.

Portanto, podemos associar acelerado, forte e direto (socar), ou desacelerado, leve e flexível

(flutuar).

Relacionamos os trigramas do I ching - e seus respectivos atributos - às ações básicas

de Laban, como disposto em quadros na próxima seção. E acrescentamos ainda a

possibilidade de graduar partituras ou movimentos com parâmetros que atuem de forma mais

abstrata – imaginária, poética, ou mesmo teatral - como com os pares frioquente,

noturnodiurno, medoraiva, entre outros15.

Esses emblemas demonstraram constituir material altamente sugestivo, podendo gerar

as mais diversas dinâmicas expressivas, de acordo com a necessidade e imaginação dos

envolvidos no trabalho. Como vimos, as propriedades ligadas aos emblemas também podem

servir de estímulo na invenção de propostas. As aqui descritas investigam as características de

oposição e inter-transformação, nos exercícios de transformação súbita, e a propriedade de

inter-consumo nos exercícios de transformação gradual. A propriedade interdependência está

presente em todas as dinâmicas, em especial na aplicação dos pares como dimmer, onde o ator

15 Em caso de interesse em se aprofundar nesse tema, a pesquisadora Ana Cristina Coelho Brandão, em sua dissertação de mestrado, também associa princípios de Laban ao universo taoísta, em seu caso, mais especificamente ao Tai chi chuan (2005).

55

Page 56: Por uma TAO expressividade

pode perceber mais claramente, em sua partitura, a ação de cada pólo de um par graças ao

contraste relativo à ação do outro pólo.

Tanto nos exercícios descritos acima, quanto nos próximos, utilizamos, quando

achamos que é necessário, como recurso de apropriação da célula expressiva gerada o

seguinte percurso: após experimentação a partir de uma imagem sugestiva solicitamos ao

aluno, ou ator, que ele solte a sensação aos poucos e posicione as mãos sobre o umbigo

(principal centro de energia, usado em exercícios de chi kung). Então sugerimos que ele

percorra mentalmente o trajeto criado na experimentação, reconstituindo-a imaginariamente.

Depois de um tempo solicitamos que ele volte a instalar a sensação e a célula expressiva

criada a partir desta, e indicamos ainda que se perceba qual foi o caminho – psicofísico -

trilhado nesse processo de re-instalação.

Aqui estamos dando o espaço para que o ator entenda como se dará o acesso àquela

construção e sua manutenção, ou a manutenção daquilo que a anima, que a mantém viva.

Trata-se daquilo a que muitos teatrólogos vêm chamando sub-partitura, como veremos à

frente. Em seguida propomos a repetição do gesto de soltar e re-instalar a célula, até que o

ator tenha segurança de tê-la incorporado. Esse trabalho ajuda também a evitar a perda de

células conquistadas em experimentações, mas muitas vezes esquecidas depois.

1.2.b I ching

Podemos pensar no I ching como um meio de atualização de respostas mais ou menos

inconscientes, fornecidas (atualizadas) pelo próprio jogador, através do instrumento oracular.

O I ching, que inicialmente consistia tão somente em dois signos como respostas a perguntas,

foi sofrendo acréscimos até chegar, há cerca de 2.500 anos, ao formato próximo do que

conhecemos. A dupla de signos no qual se baseia o oráculo consiste em um par dinâmico e

complementar, e foi, posteriormente, vinculada às noções de yin e yang, que orientam a

filosofia taoísta.

O I ching é composto de 64 hexagramas (formados por seis linhas) que surgem a partir

da combinação de dois núcleos menores, os trigramas (formados por três linhas). As respostas

procuradas no I ching como oráculo, ou como um conjunto de situações humanas

arquetípicas, são dadas pelos hexagramas. Em nosso estudo focamos na simbologia dos oito

56

Page 57: Por uma TAO expressividade

trigramas, também conhecidos como ba gua. Cada um desses conjuntos de três linhas

representa um arquétipo, com determinados atributos, ligado tanto à posição familiar, como a

fenômenos da natureza, animais, partes do corpo, etc. Além do uso oracular do I ching - ação

que faz parte de nossa vida, nosso estudo se concentrou em referências ligadas aos oito

trigramas associando-as a exercícios, parâmetros e texturas de movimentos afins, visando

favorecer construções de determinados estados, ou “personagens”.

A imagem a seguir é o bagua,e mostra os símbolos dos oito trigramas básicos do I

ching, bem como os ideogramas que os representam. Os trigramas devem ser “lidos”

considerando a linha superior como a externa, e a inferior como a próxima da imagem do tai

chi.

Segue uma tabela hipotética, construída a partir de referências ligadas aos trigramas

arquetípicos do I ching, buscadas nas diversas fontes consultadas. Além destas referências,

acrescentamos algumas propostas cênicas de origens diversas, às quais relacionamos os

trigramas. Esta relação se pautou na tipologia de construções expressivas que cada dinâmica

tende a fomentar, de modo a intensificar um determinado aspecto a ser trabalhado. As

propostas associadas foram coletadas em matrizes diferentes como os estudos de Laban,

Barba, Decroux, Grotowski, Bob Wilson, Grupo Lume, etc., além de nosso próprio acervo de

propostas desdobradas a partir de fontes como as mencionadas.

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Page 58: Por uma TAO expressividade

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Page 60: Por uma TAO expressividade

A partir desse material é possível, por exemplo, concentrar as atividades de uma aula,

ou de um dia de pesquisa, ou de uma dada composição, em um desses trigramas e buscar a

construção psicofísica de cada um desses estados. No caso de se completar o ciclo, cada ator

passa a contar com oito matrizes ou naturezas corpóreo-energéticas em seu repertório. Estas

podem ser usadas como bases para diferentes personagens, ou como suportes de estados de

uma mesma personagem. Podem ainda ser investigadas em perspectiva mais performática,

desvinculadas da construção de uma identidade. A abordagem vai variar de acordo com a

proposta em questão. A idéia é que se possa excluir e/ou incluir diferentes dinâmicas

associadas aos trigramas, desde que as escolhidas sejam percebidas como mobilizadoras de

uma mesma qualidade de estado.

60

Page 61: Por uma TAO expressividade

1.2.c Wu hsing

O primeiro nome relacionado à teoria wu hsing é o de Tsou Yen (-350 a –270), mestre

do yin yang e homem de profunda erudição e imaginação. As cinco energias foram

simbolizadas ciclicamente como: madeira, que é combustível para o fogo, que produz cinzas

originando terra, que em suas minas possui metal, que purifica a água, que por sua vez

alimenta a madeira, caracterizando assim o ciclo gerador. Entretanto, no ciclo destruidor, a

madeira suga os nutrientes (ou na forma de arado domina) a terra, que represa e absorve a

água, que apaga o fogo, que derrete e liquefaz o metal, que corta a madeira. (Watts, 1975: 62).

Há ainda outros ciclos fazendo com que haja uma relação intrínseca entre cada um dos

elementos e os restantes, caracterizando uma abordagem sistêmica. A cada elemento da

natureza estão relacionados uma emoção, uma forma de expressão, dois órgãos do corpo, uma

cor, um sabor e uma série de outros fatores que incorporamos ao universo de estímulos da

pesquisa.

Tal formulação teórica, em conjunto à relação yin e yang, são as principais fontes de

orientação da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), em suas diversas vertentes, como a

acupuntura, a moxabustão, a ventosaterapia, massagens como tuiná, do-in, shiatsu, a

auriculoterapia, etc. A MTC baseia toda sua compreensão e atuação sobre os corpos a partir

das relações aqui estabelecidas.

Na apreciação do diagrama-síntese (figura a seguir), criado a partir das diversas fontes

consultadas - o qual suprime informações consideradas não relevantes para esta pesquisa,

voltada à expressividade em cena - deve-se atentar para as seguintes observações:

Existência de um ciclo de criação ou geração energética. Também conhecido

como relação mãe-filho, é o demonstrado pelas setas que unem os elementos

circularmente. Neste ciclo a madeira gera o fogo (queimando), o fogo gera a

terra (cinzas e preparo para plantio), a terra gera o metal (sob o solo), o metal

gera a água (purificando-a) e a água gera a madeira (alimentando-a).

Importante ressaltar que elemento filho também pode afetar o elemento mãe,

estabelecendo o que se chama de relação de ultraje, com as setas no sentido

contrário (sentido mostrado pelas setas tracejadas).

Existência de um ciclo de restrição, depressão ou dominância. É o ciclo da

relação avô-neto, identificado pelas setas que formam uma estrela no centro da

61

Page 62: Por uma TAO expressividade

mandala. Aqui o elemento avô controla e limita a existência do elemento neto

na seguinte seqüência: a madeira domina a terra (sugando os nutrientes), a terra

domina a água (absorvendo-a), a água domina o fogo (apagando-o), o fogo

domina o metal (derretendo-o) e o metal domina a madeira (cortando-a).

Quando essa relação se estabelece de forma mais forte o ciclo é denominado

agressor, ou de dominância excessiva. Também neste ciclo há o movimento

contrário, denominado de contra-dominância, ilustrado pelas setas tracejadas

no sentido contrário.

Assim fica mostrado que cada um dos cinco elementos pode afetar (ou ser

afetado) aos outros quatro de alguma forma, mostrando o caráter complexo e

dinâmico da teoria das cinco fases. A exemplo do que ocorre com os cinco

elementos, essas inter-relações expressas nos ciclos são válidas para todos os

outros aspectos associados da estrutura. Essas informações são fundamentais

para a realização das dinâmicas de estímulo à expressividade, uma vez que

cada emoção (ou sentido, ou outros aspectos) pode ser acionada pelo estímulo

ao elemento mãe e/ou sedação do elemento avô, por exemplo.

A relatividade yin yang também é considerada, por parte da medicina chinesa,

em sua ação dinâmica sobre os aspectos da teoria das cinco fases, sendo que há

a busca pelo equilíbrio destes fatores. Nos fenômenos da natureza e do corpo

humano, há os considerados de natureza yin e os de natureza yang.

A emoção associada à terra, que aqui consideramos como “obsessão” é

também, dependendo da fonte, considerada como “preocupação”, ou

“saudade”, ou ainda “desejo” e até “simpatia”. Consideramos melhor

adotarmos para este trabalho a “obsessão” por parecer-nos que esta pode, de

certo modo, englobar as outras.

É interessante fazer a apreciação da figura a seguir, conjuntamente à leitura e

análise das observações acima dispostas, para maior entendimento:

62

Page 63: Por uma TAO expressividade

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Page 64: Por uma TAO expressividade

Passo agora a apresentar exemplos de outras propostas de experimentação cênica,

inspiradas em matrizes chinesas. Aqui mostraremos dinâmicas norteadas pela matriz wu

hsing, nome chinês da mandala das cinco fases:

A. Vivência de exaltação de uma energia :

Buscando acessar uma das energias da mandala instala-se um ambiente voltado para um

dos elementos, usando-se como apoio os fatores associados listados na mandala. Usando

como exemplo a energia água, o encontro pode ser feito em uma praia ou cachoeira, por

exemplo, ou ainda levando-se água (física ou imaginariamente) para o local habitual de

trabalho. Desde o início tem-se em mente que a proposta é acionar e trabalhar os aspectos

ligados à água, de acordo com o que está descrito na mandala. Pode-se usar vestes de cor

negra, ingerir-se, dentro de uma organização ritualística, alimentos e bebidas de sabor

salgado. De acordo com o grupo envolvido pode-se usar uma pequena dose de bebida

alcoólica, como saquê, ou tequila, nesse caso, já que podem ser consumidos com sal. A

presença de pequena dose de álcool, usado de forma dirigida nesse tipo de trabalho, ajuda

a quebrar resistências habituais, já que instala estado alterado de consciência. É feito um

exercício de olhos fechados, buscando potencializar a audição. Trabalham-se emissões

vocais na vibração da vogal U. É feito um trabalho de expressividade física a partir da

sensação de frio (seja real ou sugestionada). Da mesma forma o sabor salgado estimula a

construção de uma corporalidade e fisionomia. Então se parte para um trabalho de

expressividade usando as idéias de velhice, medo e gemido. Todos os fatores associados

são usados visando a instalação de um estado para o trabalho do ator. As propostas podem

ser criadas de acordo com o grupo, respeitando-se a organização da mandala. Cada ator

deve trabalhar registrando no corpo as células expressivas, partituras e sensações, para ser

capaz de re-acionar o estado posteriormente. Este trabalho é feito com cada uma das cinco

energias, obedecendo a seqüência de geração, e pode ser feito um intervalo de pelo menos

duas semanas entre cada uma.

B. Construção de “entidades” :

Nos encontros posteriores a cada vivência pode-se trabalhar na composição de uma

entidade, a partir das conquistas expressivas daquele trabalho de exaltação. No caso da

água, retoma-se com mais tempo para cada proposta, o trabalho com a supervalorização

da audição, com a sensação do frio, com a impressão de salgado, com a idéia de velhice,

64

Page 65: Por uma TAO expressividade

com a expressão vocal gemido, com a emoção medo. Nessa fase busca-se trabalhar

isoladamente cada uma das propostas (ou duas por encontro), e ao mesmo tempo compor

a entidade que vai agregando as conquistas de todas as experiências, ou de quase todas de

acordo com a construção de cada ator. O processo de ir trazendo os resultados para a

construção da corporeidade pode ser retomado no fim de cada encontro e/ou em um

encontro específico para isso.

C. Ciclo de emoções :

Aqui se visa trabalhar a transição entre a expressão de estados afetivos, inicialmente

respeitando as relações da mandala, ou seja, a tristeza se transforma em medo, que se

transforma em raiva, que se transmuta em alegria, que gera obsessão. O foco é a energia

afetiva, ou emoção, separando-se aqui os outros aspectos da construção da entidade.

Opera-se então a transformação gradual da expressão de uma energia afetiva em outra.

Inicialmente trabalha-se em câmera lenta, numa diagonal, buscando vivenciar cada

milímetro de mudança no processo de transição. Depois se pode agregar a qualidade física

conquistada com o fator “tempo perigoso”, no caso da água, a resposta expressiva à

sensação de frio, que seria associada à emoção medo. Esse ciclo é baseado no ciclo de

criação da mandala. Outra proposta de exercício é trabalhar no ciclo de restrição, indicado

pelas setas em forma de estrela. Aqui se pode trabalhar em salto, ao invés da gradação, por

exemplo. A alegria é cortada pelo medo, o qual é rompido pela obsessão. Esta é cessada

pela raiva, que é cortada pela tristeza, que por sua vez é apagada pela alegria. É feito,

então, um exercício em que cada emoção vai sendo bruscamente transformada pela vinda

intensa e inesperada da outra, obedecendo aos ciclos. A gradação e o trabalho em salto

podem ser aplicados a todos os ciclos, sendo esta apenas uma proposta inicial. Pode-se

ainda trabalhar as mudanças, independente das seqüências da mandala.

D. Ciclo de fases :

Este trabalho respeita a princípio o ciclo de geração e inicia na madeira, cuja fase

associada é nascimento, seguindo para as outras. Assim as “entidades” vão

transformando-se obedecendo a uma cronologia real - do nascimento à velhice. Pode-se

experimentar a ordem do ciclo de restrição, ou outras aleatórias, visando partituras menos

realistas. Aqui se pode associar a fase à forma de expressão descrita no mesmo elemento

ou energia, e ainda inserir a respectiva emoção e alguma corporeidade conquistada com o

65

Page 66: Por uma TAO expressividade

fator tempo perigoso e/ou sabor. Nossa experiência demonstrou não ser produtivo associar

muitas referências ao mesmo tempo, então, sugere-se escolher no máximo três, a serem

indicadas gradativamente, para impulsionar uma experimentação.

Sempre importante lembrar que quanto mais inventividade e sensibilidade estiverem

envolvidas na construção dessas propostas, mais contribuições poderão ser trazidas. Essa não

é a proposta de um método fechado de trabalho, mas o esboço de uma idéia que pode - e deve

ser desdobrada, experimentada, questionada, acrescida, mexida, transformada, atualizada,

misturada, etc..

1.2.d Chi kung

Os meridianos são canais ou condutos invisíveis, por onde se dá a circulação de chi.

Estes trilhos imateriais se situam em nível subcutâneo e são responsáveis pela defesa,

regulação e ressonância do organismo, segundo a Medicina Tradicional Chinesa. Assim, para

os chineses, a saúde está diretamente ligada à boa circulação de chi por estes canais. Cada

meridiano é formado por determinado número de pontos que transmitem a energia em sentido

e ordem sempre constantes. Nesses pontos, trabalhados, por exemplo, em massagens chinesas

e na acupuntura, o chi pode ser mais facilmente atingido e manipulado. Segundo os estudiosos

eles possuem uma resistência elétrica menor do que as áreas ao redor, funcionando como

amplificadores, e transmissores de chi de um ponto para outro.

A MTC cartografou no corpo humano 59 meridianos, sendo que entre estes há 14

considerados mais importantes para a ação médica. Doze deles estão ligados às cinco fases

descritas na mandala dos elementos, caracterizando o aspecto yin e o yang de cada energia

(terra, água, madeira, fogo, metal). Apenas o elemento fogo possui quatro e não dois

meridianos, o que, somado aos outros, totaliza 12. Esses meridianos são ligados mais

especificamente aos órgãos yin e yang descritos em um dos elementos de wu hsing. Segue

imagem que mostra percursos de alguns meridianos no corpo:

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Page 67: Por uma TAO expressividade

Os outros dois, entre os meridianos mais importantes, são os chamados vasos

maravilhosos, e passam verticalmente pelo centro do corpo, tendo como função regular o

fluxo de chi dos outros 12 meridianos. São eles o vaso da concepção e o vaso do governo ou,

em outra tradução, o canal de função e o canal de controle.

A seguir imagem que mostra o vaso da concepção (VC) e os pontos deste meridiano:

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Page 68: Por uma TAO expressividade

E o vaso do governo (VG) e seus respectivos pontos:

Como vimos, além da acupuntura, há vários outros procedimentos ligados à MTC, que

se baseiam nesse mapa energético. Entre as práticas que operam nessa cartografia,

escolhemos alguns procedimentos do chi kung para acessar alguns desses pontos e canais. O

chi kung, é uma prática de reorganização energética que remonta aos primórdios da cultura

chinesa. Chi é um dos conceitos chave para a medicina taoísta, e é traduzido, usualmente, por

energia vital. O ideograma originário - que simboliza uma panela em cozimento de onde sai

vapor - indica uma noção que abriga características materiais e não materiais, remetendo ao

éter, ao vapor, ao sopro, à respiração, etc., o que mostra que, talvez, o melhor seja não traduzir

o termo.

Segundo Catherine Despeux (1981), os chineses sempre dedicaram atenção especial à

respiração, inclusive lidando com a idéia para além do processo fisiológico, e ligam a

inspiração ao yin e a expiração ao yang. Assim, dedicaram-se a “absorver os sopros aéreos

externos a fim de aumentar própria vitalidade e desenvolveram a arte de enriquecer o próprio

sopro pela troca com o sopro externo” (1981:58). Por volta de 403-221 a.C., período dos

reinos combatentes, exercícios psico-fisiológicos e respiratórios foram introduzidos pelos

68

Page 69: Por uma TAO expressividade

taoístas para tratamento e prevenção de certas enfermidades. Ao longo dos séculos novos

procedimentos foram sendo acrescidos à tradição taoísta, visando promover a regulação e

conservação de chi. O chi kung, derivado deste processo, é uma técnica de cultivo interior da

energia. A expressão chi kung ora é traduzida como “trabalho do sopro” ou “trabalho sobre

energia”. Despeux lembra que hoje, na China, realizam-se muitas pesquisas sobre as virtudes

terapêuticas da prática as quais têm sugerido que, entre outras benesses, ele aumenta a

resistência de doentes. Acredita-se ainda que o trabalho de emissão de chi possa ainda quebrar

ou mover objetos e curar pessoas. (1981:58). Em curso com o professor Ernani Franklin ele

apresentou um exercício de re-programação da água (purificando-a, tornando-a uma espécie

de água benta), e falou de estudos que mostram a transformação na forma de suas moléculas a

partir do chi kung. Outra imagem usada pelos mestres taoístas para descrever esse tipo de

trabalho, do qual o chi kung é um exemplo, é a de uma alquimia interior. As ações desses

treinos psicofísicos, ou psíco-fisiológicos, seriam de tal maneira transformadoras, que

mereceram tal designação.

Em textos datados do séc. XI, aos quais Catherine Despeux teve acesso, as seguintes

sensações são consideradas provas de eficácia do exercício:

Se através dos exercícios de flexibilização conduzimos o sopro de acordo com o processo conveniente, sentimos calor e umidade nos pés e nas mãos... Destarte, todo o corpo transpira, e sabemos, assim, que o exercício é eficaz (1981:70).

Ainda em Despeux, têm-se outras descrições de sensações, por parte de mestres taoístas:

Ao cabo de certo tempo, a transpiração desaparece, substituída por tremores: o movimento imaginário do sopro guiado pelo pensamento criou um movimento real. Tais práticas do sopro acarretam grande calma do espírito (1981:70).

E mais uma sensação descrita por um mestre taoísta, trazida por Despeux, esta parecendo

referir-se à sensação de formigamento “Quando você sentir insetos deslocarem-se entre a pele

e os músculos, acredite que foi bem sucedido” (1981:68). O professor Ernani Franklin

alertava também que às vezes o chi kung gerava desconforto, especialmente nos iniciantes:

tontura, baixas de pressão, enjôo, alem de dores musculares, em caso de pessoas menos

preparadas fisicamente. Para o professor, tais sensações podem estar ligadas a desequilíbrios

energéticos, ou de chi. Veremos que vários depoimentos de alunos da disciplina Técnica de

corpo para a cena 3 descrevem sensações similares às trazidas acima.

69

Page 70: Por uma TAO expressividade

Esses procedimentos são incorporados ao trabalho de maneira sutil. Não se trata da

prática tradicional de chi kung. Primeiro por que escolhemos apenas uns poucos

procedimentos, de um acervo bastante amplo de exercícios. Segundo por estarmos voltados

também para sua eficácia em cena. Assim trazemos o chi kung para compor momentos

iniciais e finais de dinâmicas, apoiar exercícios específicos, intensificar o trabalho energético

em determinada parte do corpo, despertar qualidades específicas de energia, etc. E ainda

visando maior concentração e consciência da realidade energética do corpo, no intuito de

habilitar cada ator a manusear, reorganizar, concentrar, expandir e direcionar seu chi. Nossa

prática indica que artistas que se apropriam de princípios do chi kung, podem ter instrumentos

diferenciados para construir processos singulares de reorganização energética, preparação

para o trabalho artístico, propriocepção do corpo sutil, além de estarem se beneficiando com

os efeitos profiláticos e terapêuticos da técnica. Ou seja, este trabalho mostrou potencial para

proporcionar aprofundamento nos processos de auto-conhecimento e crescimento pessoal e

profissional do artista.

A seguir o mapa dos centros energéticos segundo a cartografia corporal chinesa, que

deverá ser consultado para que o leitor possa visualizar melhor os treinos que descreveremos

em seguida. Segundo a sabedoria taoísta, há no corpo seis centros de energia, além de um

sétimo, considerado “a mãe dos centros”. Estes estão abaixo representados por círculos. Para

os treinos incorporados à nossa pesquisa, apenas três serão referidos. O primeiro é lin tai, uma

esfera mais ou menos do tamanho de uma laranja no centro da cabeça, iniciando três dedos

abaixo do topo (cocuruto) e a dentro da testa, na direção do “terceiro olho”. Este é o principal

centro de energia yang do corpo. O segundo, yin chao, é também uma esfera, de acordo com

as ilustrações um pouco menor que a primeira, que se encontra no colo do útero, ou na

próstata, e concentra nossa maior parte de energia yin. Por fim, tai yuen, a mãe dos centros, é

uma esfera um pouco mais robusta, e fica três dedos a dentro, acima e abaixo do umbigo. na

altura do umbigo. Nela se encontram dinamicamente as energias yin e yang do corpo. Em sua

base, chamada tan tien, três dedos abaixo e adentro do umbigo se encontra a maior

concentração de chi do corpo, trata-se de uma espécie usina de forças e zona de re-

organização energética. Observe-se a seguinte figura:

70

Page 71: Por uma TAO expressividade

A seguir serão descritas as práticas de chi kung adotadas na pesquisa. Nas descrições

abaixo há referências cruzadas, advindas das diferentes fontes consultadas, incluindo

diferentes livros, apostilas e aulas por mim freqüentadas. Não me preocupei aqui em lidar

com as palavras – sejam imagens ou conceitos – em perspectiva acadêmica. Ative-me a

descrever os treinos usando os termos encontrados nas fontes, os quais demonstram eficácia

para a prática – entendimento tácito - ainda que possam ser questionáveis do ponto e vista

científico. A opção por narrar o procedimento como quem orienta o processo visa facilitar o

uso prático desse material por parte de quem se interesse em fazê-lo.

A. Entrar no vazio:

O kata base (postura básica) desse exercício, e de muitos outros consiste em deixar os pés

paralelos, abertos altura dos quadris, enraizados, o peso distribuído, os joelhos levemente

flexionados.

71

Page 72: Por uma TAO expressividade

Começa-se lembrando a imagem de wu chi - o vazio, na ausência, trazendo a sensação de

sem-limite, de não-existência, de vacuidade, representado por uma esfera vazia. A cabeça

esvazia, o peito esvazia e o baixo-ventre e a barriga relaxam expandindo lentamente com a

respiração. Para o mestre Liu Pai Lin, este é momento de “entrar no vazio do vislumbre

das maravilhas”.

Em seguida há o surgimento de chi (energia, primeira manifestação, representado por um

pontinho preto no centro da esfera), o espírito serena no centro yang: ling tai, localizado

no centro da cabeça, morada espiritual, sol interior. O olhar se volta para dentro e no

centro do vazio surge chi, a energia primordial, o germe da vida, a raiz celestial do/no

humano, origem da vida e da morte.

Daí desce-se o olhar interno lentamente, pelo meio do corpo, ao mesmo tempo em que se

engole saliva, até chegar a tai yuen, que é a mãe dos centros, circunferência localizada três

dedos adentro, abaixo e acima do umbigo. Manifestação de tai chi (grande energia, limite

supremo, existência manifestada, onde yin e yang estão dinamicamente unidos,

visualizadas como o símbolo redondo dividido em uma metade preta e outra branca, onde

cada uma contém o germe da outra).

Então a energia yang desce atraindo a energia yin que emana da terra e entra por yin chao,

centro yin, localizado na altura do colo do útero ou da próstata. As energias se encontram

na mãe dos centros, e fortalecem tan tien, base da mãe dos centros, localizada três dedos

abaixo e adentro do umbigo.

A união das energias da terra e do céu gera e fortalece tai chi. A eletricidade yin do yin

chao é atraída como um imã para o tan tien pela eletricidade yang do ling tai. Apenas usar

o olhar interno, sem esforço, treino no vazio. Manter a atenção aí por algum tempo.

B. Sentar na Calma:

No mesmo kata base deve-se visualizar um redemoinho cujo vértice esta no centro yang,

(a imagem do redemoinho entra pelo local onde outrora estava nossa moleira, o chamado

cocuruto da cabeça, através do ponto bai hui, ou portal dos Cem Encontros). Este furacão

imaginário capta energia celeste traz para o ling tai (centro de energia yang, quatro dedos

abaixo do topo da cabeça e adentro da testa na direção do ponto tian men, conhecido por

72

Page 73: Por uma TAO expressividade

porta celestial, ou terceiro olho, também conhecido por VG 24 – que significa ser o ponto

24 do meridiano vaso do governo. Por esse ponto também é possível captar energia).

Em seguida engole-se saliva, trazendo a energia yang captada para mãe dos centros tai

yuen (circunferência energética três dedos adentro do umbigo, cuja base tan tien, três

dedos adentro e abaixo do umbigo, é o ponto central de equilíbrio, o campo do elixir, e

reúne/concentra toda energia da esfera. É o ponto do vazio).

Coloca-se mão esquerda por baixo e direita por cima, firma energia na mãe dos centros.

Depois concentra atenção no portal yon chuen, traduzido por fonte borbulhante ou

jorrante, (que é o ponto R1 – ponto 1 do meridiano dos rins, na sola dos pés, entre os

montes do polegar do pé e o monte dos outros dedos). Por este portal se capta energia yin,

da terra.

Então pulsa-se o períneo, captando ainda essa energia yin por tin guan, ponto de captação

conhecido como portal da essência, localizado entre o sexo e o ânus. Esta energia é então

direcionada, ainda por meio da pulsação do períneo, para o centro yin, yin chao

(localizado no colo do útero/próstata) e daí segue para mãe dos centros, tai yuen. As mãos

permanecem lá, a esquerda por baixo, tocando diretamente o ventre, a direita por cima,

sobre a mão esquerda.

Engolir em cima e pulsar embaixo reúne as energias do céu e da terra em nossa usina de

força. A energia yin, fria (ligada a terra e a água) deve ser estimulada a subir, já que tende

a estagnar embaixo, e a energia yang, quente (ligada ao céu, e ao fogo) deve ser

estimulada a descer já que tende naturalmente a subir.

C. Captação de energia

Se colocar na posição descrita como kata base. Os cotovelos se dobram de modo que as

palmas das mãos se voltem na direção da fonte de energia a ser captada. Deve-se ter

consciência de que no centro da mão há um ponto de captação, o nei lao gong, traduzido

por palácio do trabalho interno, e que as pontas dos dedos operam como antenas. Abrindo

polegar e indicador em ‘L’ ativa-se a entrada do portal, o processo de captação de energia.

Mexendo as “antenas”, pontas dos dedos, também. Pode-se captar energia do sol, da lua,

estrelas, flores, árvores, terra, etc. Após um tempo de captação inclina-se a coluna pra

73

Page 74: Por uma TAO expressividade

frente, junto com a expiração do ar, trazendo as mãos para tai yuen (mãe dos centros),

então as mãos sobem abrindo diafragma e corpo vai para traz, engole-se saliva/energia e

pousa-se novamente as mãos na mãe dos centros.

É interessante olhar a fonte de onde se capta energia com o que os mestres chineses

chamam de “olhar de mulher enamorada”, ou seja, mantendo os olhos semi-cerrados

durante a captação. Também é aconselhável, em todos esses exercícios, mater um certo

sorriso nos lábios. E ainda, em todas essas praticas de chi kung aqui descritas, deve-se

encostar a ponta da língua no palato. Este gesto estabelece a reconexão entre os vasos do

governo e da concepção, segundo a medicina chinesa separados na ocasião do fechamento

da moleira. O vaso do governo nasce em tai yuen (mãe dos centros), desce internamente

até yin chao (centro yin) e segue pelas costas, acompanhando a linha da coluna vertebral,

circulando o corpo pelo topo da cabeça, entrando pela parte de cima da boca até terminar

na gengiva superior. Já o vaso da concepção, nasce no mesmo lugar desce igualmente por

dentro do corpo só que segue pela frente do tronco, paralelo à coluna, passa pelo umbigo,

pelo centro do peito, entra pela parte inferior da boca, e termina na raiz da língua.

D. A Circulação do Pequeno Universo

Colocar-se na posição base. Este é um exercício de conexão e circulação energética entre

o vaso da concepção (também conhecido como meridiano ren) e vaso do governo (ou

merdiano du). Para melhor visualização da prática recomendamos observar novamente as

figuras que ilustram o VC e o VG. Inicialmente se concentra no centro yang e no terceiro

olho, faz esse percurso algumas vezes, até deixar a energia sair e circular a partir do ponto

yin tang (entre as sobrancelhas, componente do portal celestial, ponto tienmen, ou tien mu,

terceiro olho). A energia desce pelo VC (vaso da concepção) circulando o tronco pelo

meio, passa para o VG (vaso do governo), subindo pelas costas, dá a volta no corpo,

retoma o VC e termina mãe dos centros, abraçando a mão esquerda em baixo, a direita em

cima. (vide ilustração dos meridianos VC e VG)

Durante o percurso deve-se prestar atenção e intensificar energeticamente a ação em

alguns pontos. São eles: entre as sombrancelhas (yin tang), entre os mamilos (VC 17, tanz

hong, ou centro aberto), no umbigo (VC 8, qiz hong, ou meio do umbigo), quatro dedos

abaixo do umbigo (VC 4, tan tien), na ponta do cóccix (VG 1, gui wei, ou cauda da

tartaruga), no centro do osso sacro (centro energético alma run), na coluna na mesma

74

Page 75: Por uma TAO expressividade

altura do umbigo (VG 4, abaixo da segunda vértebra lombar - centro energético yi, ou

intenção), na coluna na mesma altura do centro dos mamilos (VG 11, abaixo da quinta

vértebra torácica - ponto relacionado ao coração, jia ji guan), abaixo da sétima cervical,

início da torácica (VG 14, daz hui,ou grande vértebra - ponto relacionado à menopausa)

abaixo da base do crânio (VG 16, tien lin kai), no topo da cabeça (VG 20, bai hui, ou cem

encontros). Outros pontos são indicados nas fontes consultadas, mas pela dificuldade em

localizá-los durante o exercício, optei por não focá-los.

Além dos treinos acima descritos, há desdobramentos possíveis que experimentamos

para apoiar exercícios específicos. Por exemplo, ao investigarmos os trigramas arquetípicos

do I ching, damos ênfase, no chi kung (que abre os trabalhos do dia), às partes do corpo a

serem investigadas expressivamente naquele dia, irradiando energia ao local. No caso do

trigrama Trovão, enfocamos os pés, com exercícios de base, e a coluna, que trabalhada no

exercício da serpente. Ambas as partes estão associadas a esse mesmo trigrama, e são focadas

pelo chi kung naquele dia. Assim, partimos do treino sentar na calma, por exemplo, e

lançamos a energia re-organizada e fortalecida na mãe dos centros, para a parte do corpo em

questão, como o pé. Ou, no caso da coluna, podemos partir do treino “Circulação do Pequeno

Universo” e, ao fim do treino, focamos a energia só na coluna.

Outra forma de usar o chi kung para apoiar exercícios é dar ênfase á captação de energia

yin ou yang, conforme o trabalho do dia. No dia que é trabalhado o trigrama Céu, há ênfase na

captação pelo centro yang, que fica na cabeça, parte do corpo a ser trabalhada no dia. No dia

do trigrama Terra há ênfase no centro yin, que fica no baixo ventre, parte do corpo ligada ao

trigrama. Às vezes, dependendo da ênfase empregada, é importante fazer o chi kung também

ao fim do trabalho, visando re-organizar as energias mobilizadas em função do trabalho

expressivo, já que pode haver desequilíbrio de captação pela necessidade da pesquisa do dia.

Nesse caso pode ser feito o treino “Sentar na Calma” para finalizar o processo.

Na pesquisa expressiva das energias da mandala o chi kung pode ser feito com ênfase

na emanação de energia para os órgãos e o tecido ligados à determinada energia, como por

exemplo, pulmão e intestino grosso e/ou pele, no caso do metal. Ou ainda é possível usar o

treino “Captação de Energia”, diretamente voltado para o elemento que vai ser trabalhado,

seja fogo, água, terra, metal ou madeira. Nesse caso, havendo possibilidade de deslocamento,

75

Page 76: Por uma TAO expressividade

é bom estar em contato com uma amostra significativa do elemento, por exemplo: fogo – sol

ou fogueira; água – cachoeira ou mar; terra – terra, areia ou grama; metal – jazidas de metais;

e madeira – árvores.

Vale lembrar que as possibilidades de desdobramento na utilização das matrizes no

trabalho de ator são infinitas, e dependem de criatividade e feeling de cada um. Só alertamos

para o fato de qualquer trabalho, especialmente ao se lidar com corpos e energias, seja feito de

modo responsável, atento, sensível e ético.

76

Page 77: Por uma TAO expressividade

CAPÍTULO 2

MATRIZES CÊNICAS

Após a apresentação das matrizes taoístas que alimentam nossa pesquisa cumpre que

tratemos também das matrizes na área das artes cênicas que norteiam a presente investigação.

Parte das experimentações na cena ocidental atual apresenta, inclusive, tendências afins ao

ideário – tanto filosófico, como taoísta - abordado neste estudo. Entre essas experimentações,

há algumas com as quais a presente pesquisa se identifica. Porém, falar de características

desse suposto recorte – cena contemporânea ocidental – exige antes algumas ressalvas.

Em primeiro lugar, como vimos, o ocidente, tal qual o oriente, é uma construção por

demais abstrata. Ou seja, tais idéias que se arvoram totalizadoras e uniformizantes são

insuficientes, falhas e não dão conta da diversidade que cada uma dessas convenções

geopolíticas abriga. Assim, ao nos referirmos à cena ocidental, estamos deixando de fora as

manifestações artísticas tradicionais desse suposto oriente, ainda que cientes de que muitas

destas tenham balizado fortemente o redimensionamento da cena em nomes como Artaud,

Brecht, Grotowski, entre vários outros16. E vale frisar também que no teatro realizado no

16 Na bibliografia desta tese há alguns livros que podem fornecer mais informações sobre a cena dita oriental. Sobre linhas específicas, como o Nô e o Butô, os livros de Christine Greiner podem ser consultados. Há ainda estudos comparativos entre a cena ocidental e a oriental, como Teatro leste & oeste, de Leonard C. Pronko, A Canoa de Papel de Eugênio Barba e A Arte Secreta do Ator, de Eugênio Barba e Nicolas Savarese. Os estudos de Brecht e Artaud, assim como o livro de Matteo Bonfitto, trazem alguma contribuição sobre o assunto, além de estudos de Ciane Fernandes (2006.3).

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Page 78: Por uma TAO expressividade

oriente, hoje, há diversas perspectivas teatrais altamente contaminadas por tradições

ocidentais, dentre as quais certamente várias caberiam em nossa moldura.

Da mesma forma vale registrar que o termo contemporâneo não deverá ser entendido

como ligado a uma escola, uma linha estética, uma crítica ou uma avaliação. Quando falarmos

em contemporâneo aqui, será da forma mais literal possível: como fazendo parte de uma

mesma época. Entretanto não se pretende dizer que qualquer das tendências aqui discutidas

seja genuína ou exclusiva desta época contemporânea, assim como não é do chamado

ocidente. Ou seja, vários dos aspectos que serão trazidos podem ser observados em escolas

oriundas de diferentes épocas e regiões.

Assim, entenda-se que, por falta talvez de melhores termos ou noções menos

desgastadas e criticadas, falamos em observar tendências de parte da cena ocidental

contemporânea. E, frisamos, trataremos apenas de uma parte dessa moldura – já que esta não

é tampouco um bloco uniforme - parte essa que apresenta algumas tendências afins às

presentes em nossa perspectiva de encenação e interpretação.

Poderíamos buscar apoio na noção de teatro pós-dramático, de Hans-Thies Lehmann

(2003), que inclusive discute aspectos bastante coincidentes com vários dos que aqui

trataremos. A revisão do lugar do texto dramático, no espetáculo, fazendo emergir um

alargamento da própria noção de dramaturgia, que passa a dar conta de outros elementos

enunciadores da cena. A conseqüente problematização da representação, enquanto recurso

ilustrativo ou redundante à dramaturgia textual, assim como da construção logocêntrica e

linear da narrativa ou da cena. As produções nas encruzilhadas entre arte e vida, cena e platéia

e diferentes linguagens artísticas. O foco na recepção, com um cunho político, de provocação

de diferentes vieses de percepção/apreensão da obra/vida, acionando (cri)atividade também

por parte do espectador. A aceitação - e busca - dos paradoxos, dos vazios, da multiplicidade

de sentidos, da não-hierarquização, da não-centralização, dos silêncios, dos hiatos, das forças

performativas da materialidade cênica. Estes, entre outros aspectos, são trazidos por

Lehmann, como concernentes ao pós-dramático.

Entretanto, ainda que o conceito pareça favorecer esse estudo por um lado, algumas

críticas já apontadas ao termo tornam sua utilização problemática17. Um desses aspectos diz

17 Conferir a revista Humanidades, número 52, de novembro de 2006, com vários artigos sobre o pós-dramático. Dentre eles destacamos os de Silvia Fernandes, Fernando Villar, Rosangela patriota, Luiz Fernando Ramos e Matteo Bonfitto. (2006)

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Page 79: Por uma TAO expressividade

respeito à totalização. Ou seja, ao se tentar dar conta de um conjunto de ações ou tendências

cênicas, que, em outros aspectos são sutil ou extremamente diversas entre si, incorre-se no

risco de se desprezar importantes especificidades. Por outro lado, os conceitos, apesar de

operativos, podem tender a uma postulação – por vezes subliminar - de regras ou leis, o que

poderia tornar esse estudo um jogo de “se encaixa ou não” na noção de pós-dramático. Não

creio que isso contribuiria aqui. Além disso, em virtude do recorte temporal que Lehmann

sinaliza como sendo o referente ao pós-dramático – as últimas décadas do século XX -

acabaríamos tendo que excluir importantes referências para nossa pesquisa, como Artaud e

Meyerhold, por exemplo. Dessa forma, mesmo ciente da importância de se elencar e discutir

parâmetros e princípios afins a um dado conjunto de obras, tarefa a que se propôs Lehmann,

entre outros18, preferimos pensar tais tendências e características sem tratar de dar-lhes um

título comum.

2.1. Tendências afins

O deslocamento do enfoque no discurso verbal/textual do ator para uma dramaturgia

que vai passar em grande parte pelo corpo em cena, seus movimentos, gestos e suas ações

físicas, é uma dessas orientações. Trata-se da quebra da hierarquia em que o texto é

protagonista, como queria Artaud a partir do que ele percebe em manifestações do teatro

oriental. O corpo, assim como adereços, figurinos, luz, cenário, não vêm apenas corroborar ou

ilustrar um discurso centrado na palavra, mas ganham estatuto dramatúrgico, enunciam. Tais

discursos, do corpo e da mise-en-scène, ganham uma maior autonomia e também atuam como

definidores do teor da obra. Não funcionam mais como acessórios, prolongamento ou

reafirmação do texto necessariamente, mas dialogam com este performativamente,

acrescentando dados, tornam-se elementos prenhes de sentidos próprios e necessários à

apreensão do espetáculo. Diz Derrida sobre a proposição artaudiana, a qual reflete a

disposição para a “morte de Deus”, entendida como o fim das hierarquias, das centralizações,

do sujeito como mônada, entre outros desdobramentos:

18 Fernando Villar em artigo na revista Humanidades (2006), acima mencionada, relembra o termo teatro performance, proposto por Timothy Wiles em movida semelhante à de Lehmann. A própria arte da performance poderia ser pensada como fomentadora ou balizadora de várias dessas tendências cênicas atuais, discutiremos isso adiante, especialmente a partir de estudos de Renato Cohen (1998). Entretanto, da mesma forma que em relação ao conceito de pós-dramático, o esforço pela adequação ou não dos termos às referências aqui trazidas nos desviaria de nosso foco.

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Page 80: Por uma TAO expressividade

O palco é teológico enquanto for dominado pela palavra, por uma vontade de palavra, pelo objetivo de um logos primeiro que, não pertencendo ao lugar teatral, governa-o à distância. O palco é teológico enquanto [...] um autor-criador [que] ausente e distante, armado de um texto vigia, reúne e comanda o tempo ou o sentido da representação (1971:154).

No tenro início do século XX, Vsevolod Meyerhold já trazia investida semelhante,

demonstrada por sua insatisfação com a preponderância do viés ilustrativo e realista da cena

de então. Em recente publicação Fátima Saadi organizou e traduziu alguns ensaios de Béatrice

Picon-Vallin sobre o encenador (Picon-Vallin, 2006). Arlete Cavaliere também dedicou uma

investigação importante sobre a poética meyerholdiana (Cavaliere, 1996). Nesses estudos

percebemos que ainda que partisse de textos dramatúrgicos propriamente, o encenador se

recusava a uma posta em cena previsível, linear e reprodutiva. A busca consciente por uma

artificialidade teatral, amparada por princípios como o paradoxal, o grotesco, a musicalidade,

a corporeidade, a ênfase no desenho, na visualidade e na materialidade da cena, tinha também

um teor político. Meyerhold desejava uma recepção ativa e perceptiva por parte do público. A

proposital não-coincidência entre os discursos da fala e do texto por um lado, e do corpo e da

cena por outro, já visava claramente a uma enunciação polissêmica.

Essa busca por outras falas, outras vozes na cena, é identificada por Renato Cohen em

seu estudo sobre o teatro contemporâneo, onde ele entende que “orquestra-se uma cena

polifônica e polissêmica apoiada na rede do hipertexto” (1998:xxiv). As idéias de Deleuze e

Guattari encontram aqui uma possível tradução. É nos agenciamentos dos sentidos – estético,

semântico e patético19 - que se vetorizam de maneira nem sempre ordenada, que o espectador

vai produzir sua apreensão. Tais cenas procedem por para-lógicas (Lyotard) ou eco-lógicas

(Guattari), as quais têm uma natureza não causal, e não linear, e que proporcionam maior

trabalho no processo de recepção.

Essa mudança paradigmática na cena, onde o verbal e o racional passam a não

predominarem como fatores de apreensão, encontra ecos no ideário taoísta. O jogo dialético

entre o visível e o invisível, o oculto e o evidente, o explicável e o inexplicável, o

19 Esse triplo entrelaçamento é proposto por Georges Didi-Huberman em O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. Tradução: Paulo Neves. O autor refere-se a uma espécie de conjunto de pontes que se lançam no processo de recepção, entre as vias de apreensão: sensorial (estética), racional (semântica) e emocional ou sintomática (patética). Não fosse um tema tão desgastado, desacreditado e ingrato ao trânsito acadêmico, acresceríamos uma quarta acepção da noção de sentido a essa trama de Didi-Huberman. Esta se ligaria à energética dos corpos em cena. Adiante veremos que Patrice Pavis se arrisca nesse terreno, trazendo o conceito de teatro energético, de Lyotard. Apesar de criticar Barba pelo uso, segundo ele pouco formal, do termo energia. Em tal campo – uma espécie de energética da cena - os treinos com chi (chi kung) podem produzir importantes resultados, ao favorecer o manejo de chi no corpo, seja pela captação, emissão ou pela re-organização deste.

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Page 81: Por uma TAO expressividade

compreensível e o incompreensível (do ponto de vista da lógica clássica), é privilegiado na

sabedoria chinesa. François Jullien, filósofo contemporâneo estudioso de tradições chinesas,

traz em seu livro Um sábio não tem idéia (2000) várias considerações que ajudam a perceber

melhor alguns princípios e noções comuns à sabedoria de um modo genérico, e mais

especialmente ao taoísmo e ao confucionismo. Sobre a questão acima a seguinte passagem

pode ser elucidativa:

em vez de se redundar verticalmente (por abstração) numa universalidade de essência (e isso com um simples objetivo de conhecimento), sua capacidade de efeito leva-o a se comunicar transversalmente, cada vez mais, com todos os outros lanços, aspectos ou “momentos”, da experiência (2000: 46-47).

A motivação de alguns encenadores por não mais privilegiar o aspecto textual ou lógico da

montagem visa, entre outras coisas, essa comunicação transversal, essa dilatação da

perspectiva de um entendimento para uma experimentação da obra, por parte da recepção. Há

o intuito – político e, por conseguinte de cunho ético-estético - de provocar um tipo especial

de apreensão, através de uma cena que promovesse algo que poderia ser descrito nas seguintes

palavras de Jullien sobre a sabedoria:

Em vez de forçar o pensamento, ela se infiltra nele e, nele se dissolvendo, o “banha” e contamina. E, por conseguinte, certo sentido (sabor) se difunde continuamente, imperceptivelmente, cada vez mais. Essa consideração se alastra, como dizemos; e, propagando-se tão discretamente, não cessa de levar a outros aspectos, faz levar em conta outros lanços, mais vastos, ainda não percebidos. Sua “sutileza”, para retomar outra noção chinesa – que também vale para um corpo ou para um sentido: sentido sutil, substância sutil, - é indicial (2000: 45-46).

Outra abordagem que vem redimensionando vertentes da cena teatral passa por pensar

as noções de corpo e presença para além da fisicidade, abrangendo latências, sensações,

sentimentos e pulsões. Essa perspectiva parece ser enfraquecida pela pré-disposição de anular

ou mascarar os vestígios do ser-ator por trás de uma personagem construída. Aqui seria menos

o gesto de incorporar uma subjetividade forjada, totalmente alheia, e mais a perspectiva de

propor recursos que fomentem composições expressivas, a partir de matérias singulares, a

serem re-alocadas em cena.

Essa perspectiva se relaciona, dentre outros aspectos, à busca de maior autonomia por

parte do ator. À época da luta de Artaud contra o poder do texto e do autor, o que estava em

jogo era ao mesmo tempo a defesa da independência, e de poder do encenador/ diretor. Pouco

depois, os atores também passam a reivindicar, o direito à criação de discurso (mesmo que

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Page 82: Por uma TAO expressividade

não verbal). Surgem termos como intérprete-criador, performer, ator-compositor, os quais

traduzem essa vontade por parte do artista cênico.

Apesar de que, convém lembrar, Meyerhold já trazia, em seus postulados sobre a

biomecânica, uma equação que colocava o ator (N), como a somatória entre uma instância

criadora (A1: organizador) e outra executante (A2: material organizado): N=A1 + A2

(Cavaliere, 1996). Em que pesem, nessa matemática, vestígios de uma dicotomia corpo-

mente, o que salta aos olhos, é o pioneirismo da abordagem, tendo em vista seu lugar

histórico. A equação sugere uma legitimação da participação ativa do ator no processo de

escolhas, recortes e até composição de ações. Provavelmente seu aprendizado com o mestre

Stanislávski, que revê radicalmente o papel da formação e do trabalho do ator influenciou

ativamente nessa perspectiva.

Entretanto, a tendência à qual nos referíamos anteriormente, se refere mesmo à

proposição de fazer dialogarem aspectos dramatúrgicos, singularidades do artista, e ainda

recursos técnicos de construção de teatralidade. Muitos desses recursos de criação expressiva

se apóiam em uma espécie de desnudamento do ator, como propôs Grotowski. Passariam,

assim, por uma imersão desse artista em si mesmo, quando ele vai investigar questões

próprias que possam tanto alimentar seu processo criativo, como trabalhar sua personalidade,

para então serem devolvidas à cena, transmutadas em composições poéticas.

Patrice Pavis aborda a questão no verbete corpo de seu Dicionário de teatro (2003).

Ele entende que a abordagem do corpo em cena oscila entre duas concepções.

a.O corpo não passa de um ralé e de suporte de criação teatral, que se situa em outro lugar: no texto ou na ficção representada. O corpo fica, então, totalmente avassalado a um sentido psicológico, intelectual ou moral; ele se apaga diante da verdade dramática, representando apenas o papel de mediador na cerimônia teatral. A gestualidade desse corpo é tipicamente ilustrativa e apenas reitera a palavra.

b.Ou, então, o corpo é um material auto-referente: só remete a si mesmo, não é a expressão de uma idéia ou de uma psicologia. Substitui-se o dualismo da idéia e da expressão pelo monismo da produção corporal: ‘o ator não deve usar seu organismo para ilustrar um movimento da alma; deve realizar o movimento com seu organismo’ (Grotowski, 1971:91). Os gestos são - ou ao menos se dão como – criadores e originais. Os exercícios do ator consistem em produzir emoções a partir do domínio e do manejo do corpo (2003:75).

Entendemos o efeito didático dessa separação, ainda que acreditemos que tamanho

purismo está cada vez mais raro de se presenciar, na prática. Há muitas abordagens da cena

que ultrapassam esse (pseudo) dilema exposto por Pavis, trazendo aspectos de uma e outra

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Page 83: Por uma TAO expressividade

concepção de corpo em cena, atrelados em uma busca mais basilar ao teatro: por

expressividade e teatralidade. De qualquer forma, parece haver mesmo certo descompasso

entre uma perspectiva contemporânea do corpo e a proposição que entende que o ator deva

emprestar seu aparato físico a uma outra organização física e mental - a personagem. Como -

e por que - dissociar o corpo-ator de si mesmo - de sua própria história, sua subjetividade - se

essa espessura ontológica pode, inclusive, ser fonte abundante de criatividade e

expressividade? Além de, segundo vários artistas, poder ser essa uma ação que colaboraria no

processo de auto-conhecimento e crescimento pessoal do ator.

Grotowski, por exemplo, é um dos nomes mais emblemáticos, e talvez pioneiros,

nesse tipo de abordagem. Para ele, o desnudamento do ator, o despojamento de suas máscaras,

o esforço de auto-aceitação e revelação, seriam as atitudes a serem buscadas por um intérprete

diante de seu público, visando um encontro real com este (1971). E para Grotowski, a

disponibilidade de trabalho pessoal do ator está diretamente ligada a seu desempenho

expressivo:

Quanto mais nos absorvemos no que está escondido dentro de nós, no excesso, na revelação, na auto-penetração, mais rígidos devemos ser nas disciplinas externas; isto quer dizer a forma, a artificialidade, o ideograma, o gesto. Aqui reside todo o princípio da expressividade (1971:34).

Essa inter-relação está ainda mais explícita em uma outra citação de Grotowski,

encontrada no livro A canoa de papel, de Eugênio Barba:

A ação física deve apoiar-se e fundar-se sobre associações pessoais, íntimas do ator, sobre suas baterias psíquicas, sobre seus acumuladores internos (1994:164).

E Jean Jacques Roubine, autor de alguns estudos sobre o teatro, acrescenta sobre o método

grotowskiano:

mas o cansaço, o esgotamento psíquico e nervoso que, numa prática tradicional, são prejudiciais, permitem aqui, pelo contrário, a emergência de uma verdade refugiada, recalcada, que o autocontrole não pode mais mascarar nem deformar. Em suma, o esgotamento é o estado mais propício ao autodesvendamento (1998:195).

Roubine lembra, inclusive, que a pesquisa de Grotowski foi, em diversos momentos,

considerada aparentada a um viés psicanalítico, mas alerta para constantes equívocos e

armadilhas que semelhantes perspectivas podem trazer (1998:196). Em que pese o fato da

noção de verdade poder ser exaustivamente questionada do ponto de vista filosófico – assim

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Page 84: Por uma TAO expressividade

como as idéias de auto-conhecimento, autodesvendamento, auto-penetração, se pensados em

sentido teleológico e definitivo – não nos estenderemos nesse ponto.

Apresentando o livro de Cohen, Silvia Fernandes entende que “a fala disforme, o gesto

avesso, a cena assimétrica e disjuntiva, a colagem estranha talvez componham as vicissitudes

necessárias de uma arte que recusa a forma acabada e faz sua ontologia no território obscuro

da subjetividade” (1998: xvii). Esse território da subjetividade, como diz a autora, é muitas

vezes atribuído como fonte de criação de ações da chamada arte da performance. Entretanto,

ainda que possam derivar daí instigações para novas ações das artes cênicas, o fato é que a

dança e o teatro, por exemplo, já incorporaram essa abordagem em seus campos específicos e

a trouxeram para seus processos criativos e suas pesquisas sobre o intérprete-criador e a cena.

Cohen traz um estudo sobre a cena contemporânea, pensando-a como contaminada por

elementos da performance, conceito que ele restringe ao campo da linguagem artística. A arte

da performance seriam ações envolvendo diferentes formas artísticas, inspiradas pelas

vanguardas a partir de meados do século XX. Porém, ainda que seja grande a contribuição de

Cohen no pensar diversos aspectos da cena contemporânea, o autor às vezes cai em dilemas

que fazem seu discurso esbarrar no problema da dicotomia. Quando diz que “o performer

acumula autoria e atuação”, e “o ator opera mais próximo do campo do transporte, da

representação” (1998:81), ele restringe o alcance da noção de ator, e também da de

performance, que contraposta à idéia de ator fica confinada à perspectiva da ação

vanguardística, ou ainda ao campo da linguagem, como ele mesmo sugere20. O paroxismo

dessa dicotomia seria a generalização e radical oposição das idéias de teatro e performance, o

que em nada favorece uma perspectiva plural, que venha a tentar dar conta da diversidade que

é a cena contemporânea.

O teatro tem várias faces, algumas inclusive bastante contaminadas por princípios da

arte da performance. Aliás, de certa forma é o que ele mesmo defende em Work in progress

na cena contemporânea (1998), mas não sem esbarrar em algumas proposições que, a nosso

ver, alimentam antagonismos que não contribuem nesse pensar a cena. Uma delas é a de

achatar – ou até banir em alguns contextos – ao invés de alargar a noção de ator.

20 Performance como linguagem é o título de seu primeiro livro.

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Page 85: Por uma TAO expressividade

Em outra passagem, Cohen remete a outra oposição, dessa vez entre as idéias de

poiesis e mimesis. Para o autor, a performance instauraria uma cena da ordem da poiesis em

contraposição à cena da mimesis. E propõe as seguintes definições:

Poiesis enquanto cena gerativa, primária, abstrata - com estatuto próprio enquanto ‘realidade’, sem contraponto. Mimesis como cena reprodutiva, iconográfica, secundária a uma realidade primeira (1998:9).

Mais uma vez, e possivelmente sem esse propósito, Cohen parece fomentar uma dicotomia

em uma relação dual, que ganharia mais ao ser pensada como ambivalente.

Alguns dos chamados exercícios de composição de Grotowski (1976:116), por

exemplo, envolvem essa dupla perspectiva. Eles partem de processos imitativos, seja de

animais, vegetais, pessoas em idades diferentes, paródias de conhecidos, para depois

ganharem atualizações, nuances singulares, tratamento criativo. Nos trabalhos vocais também,

segundo Grotowski, pode-se partir de imitações paródicas de timbres, vícios de fala, ou

dificuldades de dicção (1976: 139-141). Em Grotowski esse recurso funciona como meio para

o ator explorar suas possibilidades expressivas, podendo em seguida criar a partir disto,

dando-lhes o viés poético.

Se pensarmos no trabalho do grupo brasileiro Lume, também vamos encontrar

vestígios de uma interação bastante imbricada entre as idéias de mimesis e de poiesis. Luís

Otávio Burnier (2001), fundador do grupo, falava sobre a imitação das corporeidades, que

passaria por uma observação atenta e sensível, quase intuitiva, por parte do ator em relação ao

objeto sobre o qual atuará a mimesis. Essa natureza de olhar já contém aspectos criativos. Ela

se interessa não apenas pela fisicidade - os aspectos concretos e mecânicos da ação, mas

também pela corporeidade do que será imitado. E ainda, para recriar em seu próprio corpo

aquelas “qualidades de vibração” (2001:184) percebidas, além da pura estrutura física de

movimentos, o ator precisa entrar em um campo criativo de trabalho.

O mesmo procedimento é descrito por Renato Ferracini, ator do grupo, em sua

dissertação de mestrado. Segundo ele a mimesis corpórea inicia com a imitação de ações

físicas de uma pessoa viva, animal, foto ou quadro, e passa, em seguida, por um processo no

qual o ator vai encontrar em si equivalências orgânicas para criar uma poética a partir desse

material. Diz Ferracini:

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Page 86: Por uma TAO expressividade

O LUME não usa essa palavra [imitação] para nomear sua pesquisa nessa área, pois ela pode sugerir uma imitação estereotipada e estilizada da pessoa. Não é esse o objetivo. Buscamos uma imitação precisa e real, sim, mas não só da forma e da fisicidade, mas principalmente das corporeidades da pessoa. [...] Na verdade, uma definição mais precisa seria algo como “equivalências orgânicas de observações cotidianas”, pois busca imitar não somente os aspectos físicos, mas também orgânicos, encontrando equivalências (2001: 203, 204).

Em um outro momento, descrito por Burnier (2001: 186), essas ações imitadas passam

por um processo de teatralização, onde são transformadas em material de trabalho, quando

podem ser desdobradas, limpadas, recortadas, coladas, transformadas, enfim, passam por um

verdadeiro processo de montagem, no sentido fílmico do termo.

Matteo Bonfitto investiga a noção de ação física, passando por vários teatrólogos

ocidentais, para depois se perguntar se no kata, esta idéia de ação física – da forma como ele a

vinha tecendo - também se faria presente (2002). O kata é uma espécie de coreografia ou

partitura de movimentos codificados, presente em diferentes tradições de dança e/ou teatro do

oriente, como o Nô, o Kabuki e o Kathakali21. O processo de apropriação do kata, por parte

dos artistas aprendizes, inicia pela imitação do “esqueleto estrutural” (2002:90), o qual é

imutável, do ponto de vista da forma. Entretanto, Bonfitto percebe que à forma se agrega o

que ele chama “qualidade de energia” (2002:90), que seria a contribuição singular de cada

corpo, em cada espaço-tempo de execução deste kata, e que promoveria a atualização desta

forma. Essa re-configuração do kata, na combinação entre seu esqueleto estrutural e a

qualidade de energia empregada por quem o executa, tornaria possível “reconhecer um espaço

de interpretação contido na imitação” (2002:92). Esse espaço de interpretação pode ser

entendido como o aspecto criativo – poiesis – da imitação – mimesis.

José Bizerril, em sua investigação sobre o taoísmo, também fala sobre a mimeses em

práticas corporais ligadas a essa tradição:

A faculdade mimética consiste em tornar-se Outro. Para aprender o Caminho (Tao), é preciso praticar uma dupla mimese. Imitando em primeiro lugar o mestre, como modelo das técnicas e atitudes existenciais taoístas e a partir de seu exemplo aprendendo a imitar a natureza, para desta forma integrar-se a seus ritmos. Essa imitação não é uma simples repetição mecânica, mas uma recriação do outro em si mesmo e de si mesmo através do outro (2000:206).

Em nossa investigação também passamos por essa dupla articulação, que envolve ao

lado do trabalho criativo, um processo de certa forma mimético. Pensar a ação do vento sobre

o próprio corpo, por exemplo, e deixar surgir daí uma corporeidade a ser transformada em

21 O conceito de kata também está presente em algumas lutas e atividades marciais como o Karatê, o Judô, o Kung Fu, o Tai Chi Chuan, etc.

86

Page 87: Por uma TAO expressividade

recurso de composição, passa de certa forma por imitar ou o vento, ou nosso próprio corpo

exposto ao vento, e simultaneamente, ou posteriormente, lidar com esse movimento em

perspectiva poética.

Talvez seja apressado dizer, mas parece difícil imaginar mimesis e poiesis totalmente

dissociadas em uma criação cênica. Poderá haver preponderância de uma ou outra abordagem,

e talvez seja isso que Cohen tenha buscado dizer. Entretanto, mesmo que possam se opor em

alguns aspectos, elas não são excludentes, mas apresentam, tal como numa dinâmica yin yang,

uma complementaridade que parece bastante fértil aos processos criativos. Ou como prefere

Ciane Fernandes, podemos usar o Anel de Moebius, onde “dualidades tornam-se contínuas

gradações em transformação” (2000:123). Então:

Já em outra passagem, Cohen mostra-se avesso a idéias duais quando diz que “não dá

para pensar em apenas dois vetores, opostos, e sim numa multiplicidade de fatores

contingenciais” (1998:23), e usa a expressão “topos pluralético” fazendo referência à diluição

dessas dualidades e à emergência de um estado de pluralidade. No entanto, o que nos parece

mais problemático não é a perspectiva de pensar por pares: usando polaridades como

instâncias-parâmetro, entre as quais, movimento e configurações variadas se darão. Mas sim,

como já foi dito, lidar com o duplo de maneira estanque, intolerante e não reversível,

equívoco bastante comum, em que o próprio Cohen, mesmo criticando o padrão, acabou

incorrendo.

A discussão sobre mimesis remete a outra questão. Trata-se da crítica à representação,

bastante forte no pensamento contemporâneo. Maria Alice Milliet percebe que tanto em Lygia

Clark quanto em Artaud, por exemplo, há um repúdio ao modelo representação - seja

enquanto encenação ou atuação, em Artaud, ou enquanto composição em Clark. Para a autora,

ambos entendem a representação como repetição e a rejeitam por crer na capacidade

inovadora da ação, e por perceber que repetir é reter o tempo e fixar o “mesmo” por medo da

inevitável alteridade (1992:117). No mesmo viés, Christian Descamps, em estudo sobre o

pensamento de Deleuze, afirma que, segundo este filósofo, “produzir uma obra de arte não é

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Page 88: Por uma TAO expressividade

obedecer a um modelo ou realizar um sentido da história, é concretizar potencialidades”

(1991:62).

Porém, se pensarmos no trabalho do ator, especialmente dentro de algumas

abordagens com as quais estamos dialogando, a atitude de (a)presentar, se conjuga à de

representar, e não compete, ou não precisa competir com ela. O interprete sempre se remeterá

a alguma referência a priori, seja ela dramatúrgica ou temática, no caso de um espetáculo, ou

de uma imagem sugestiva, ou outro ponto de apoio que funcione como uma sub-partitura, no

caso do processo criativo. Mas, por outro lado, o ator sempre atualiza essa referência em seu

corpo, com sua subjetividade, agregando um tanto de si àquilo a que sua representação se

refere. Isso caracteriza um ato ao mesmo tempo de (a)presentação e de representação. Ciane

Fernandes alude a esta imbricação de fatores ao comentar que “paradoxalmente, movimento

(inovação) é a memória (manutenção) de si mesmo. A memória não apenas imagina ou

representa nosso passado, mas o atua” (2006.3), e o atualiza. O ator é aquele que conta, vive e

re-escreve a obra ao mesmo tempo.

Talvez possamos até falar em uma tendência de deslocamento de uma atuação mais

representativa – predominante em escolas teatrais mais clássicas - para a do tipo

(a)presentativa. O ator está mais disponível para o desnudamento de si em cena, para se

mostrar em características muitos pessoais, idiossincráticas, redimensionadas por abordagens

poéticas e releituras de conceitos. Mas novamente, teremos ainda – e talvez sempre - um jogo

dialético entre as duas perspectivas. Adiante, ao apresentarmos as idéias de Artaud, traremos

também a problemática levantada por Derrida, a respeito da impossibilidade do fim absoluto

da representação.

Ainda sobre esse ponto, no que tange a recepção, Lyotard propõe que quanto menos

representacional for uma obra de arte mais impulsos libidinosos serão provocados no

espectador (Casullo:1993:360-377). Lyotard situa a representação pura no período clássico,

uma semi-representação e positividade energética parcial no período moderno e identifica a

pós-modernidade estética como energia em pleno movimento livre e em metamorfose

contínua (1993: 370). Scott Lash, em análise do livro Francis Bacon – Lógica da Sensação,

de Gilles Deleuze (1993:377-379), atribui a este a idéia de que uma estética pós-moderna se

basearia nas noções de corpo e de força. Deleuze conceberia, ainda, uma lógica da sensação.

Esta sensação teria lugar quando sobre o corpo atuassem forças. Ainda segundo Lash,

Deleuze sugere que a pintura clássica reproduziria formas, a moderna as inventaria e a pós-

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Page 89: Por uma TAO expressividade

moderna tornaria as forças visíveis. O pós-moderno implementaria uma cultura da sensação,

não apenas para o artista e a obra, mas também para o consumidor de arte e para a crítica.

Percebemos em comum nesses autores, ao se referirem a uma estética pós-moderna,

ou, para não entrarmos nessa seara, a uma manifestação consoante ao zeitgeist

contemporâneo, um interesse maior na instauração de forças, de vida, do que na alusão,

reprodução ou representação de modelos apriorísticos. Essa visão se relaciona àquela das

vanguardas artísticas do século XX, e de outras manifestações contemporâneas: a busca pela

dissolução das barreiras entre arte e vida, já que aí estaria um meio de se restituir vigor à cena.

Arte e vida se comportando como as duas faces de um Anel de Moebius: se imbricando, se

afetando, se transformando.

Notamos ainda, que, para esses autores mencionados acima, seria a partir desse tipo de

abordagem que surgira o elemento encantatório, de sedução e impacto em relação ao público.

Para Jean Baudrillard (1997), por exemplo, o que interessa ao público é justamente o que o

atrai para fora de sua razão, o que o motiva é o segredo, a não revelação, uma espécie de

desafio à irrazão. Para ele, o desconhecido e a provocação, instigam e seduzem,

proporcionando um maior envolvimento e cumplicidade do fruidor com a obra.

De novo preferimos encontrar um ponto mais conciliatório, ou antes, inclusivo, do que

nos arvorarmos como representantes de uma estética pós-moderna ou qualquer outra. Como

os chineses – ainda que tampouco nos arvoremos taoístas - ficamos com o caminho do meio.

Segundo François Jullien, o meio tem para os confucionistas acepção próxima à idéia de vazio

para os taoístas: o lugar onde nossa intencionalidade permanece livre e indeterminada (2000:

39). Assim, para o autor “o verdadeiro meio deve ser entendido, positivamente, como poder

uma coisa e outra, e não, negativamente, como não ousar uma coisa nem outra” (2000:36).

Não se trata de uma posição em cima do muro, sem tomada de partido. O partido é o meio, a

possibilidade de trânsito entre opiniões, idéias, propostas, e a contínua checagem destas junto

a parâmetros diversos, e especialmente, junto a si mesmo.

Então, entendemos como Baudrillard, que zonas de sombra favorecem sim uma

intensidade de recepção, à medida que provocam no espectador uma espécie de trabalho: o de

produzir sua própria apreensão, retirando-o de uma posição passiva de entendedor de uma

enunciação excessivamente explicitada. Por outro lado, como quer Patrice Pavis (2005), é

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Page 90: Por uma TAO expressividade

preciso flechar sentidos, promover certa vetorização de idéias que, em alguma medida,

conduzam, ou indiquem percursos ao público.

Assim, nem a pura representação, nem somente a energia em livre e contínua

metamorfose (Lyotard), nem a simples reprodução de formas, nem apenas jogo de corpo e

forças (Deleuze), mas a liberdade de composição poética com todas essas possibilidades é a

aposta de boa parte do cenário teatral (diria até artístico) contemporâneo. Até por que,

diferente da proposição de Baudrillard para quem o desconhecido e o desafio nunca

esbarrariam na recusa (1997: 73), pode haver sim uma rejeição bastante grande por boa parte

do público a obras inacessíveis do ponto de vista de um mínimo entendimento ou apreensão.

Ou de lógica interna, ou para usar o termo de Barba, de incoerência coerente.

A questão da recepção em arte é bastante ampla e exigiria um estudo muito mais

aprofundado. Não nos propomos aqui a esgotar o tema, muito pelo contrário, estamos

trazendo uns poucos aspectos com os quais sentimos necessidade de dialogar. Assim, a peça -

“uma rede aberta, mas coerente” (Pavis, 2005: 25) - vai ter, no entendimento de Pavis, uma

recepção que entrelaça perspectivas psicológica, sociológica, antropológica e semiológica.

Mas esta mesma recepção se depara também com o que o autor chama de “não-representável”

(2005:20), e que se relaciona à presença e à energia do ator (2005:20), termos usados por

Pavis para dar conta desses aspectos invisíveis, a despeito de sua crítica a Barba pelo uso da

mesma terminologia (2007).

Ao se dar conta desses aspectos, Pavis busca em Lyotard o conceito para expressá-los.

Haveria, assim, uma distinção entre um modelo discursivo, da ordem do signo e do

lingüístico, e o figural, que seria um acontecimento libidinal irredutível à linguagem (Pavis,

2005:80). Mesmo que susceptíveis à interpretação ou tradução - o que será sempre possível -

os figurais pediriam outros meios, “além dos da análise gestual semiológica inspirada pela

comunicação não verbal para que se faça sentir os efeitos estésicos dessa coreografia”

(2005:79). Aí entraria o modelo energético do efeito artístico sobre o espectador, o qual se

processaria não tanto pela conjunção e concordância entre signos que agenciam sentidos, mas

também por meio do:

circuito energético que cremos descobrir neles e entre eles, e para o qual a encenação nem sempre dá a chave, por estar tão ligada e se fixar em sinais visíveis e fixos. A vetorização de certos elementos do espetáculo produz necessariamente surpresas, potencialidades que é preciso reter ou descartar. [...] a um outro nível, o dos investimentos psíquicos do espectador [...] não há mais nenhuma certeza. Se considerarmos esses corpos e esses gestos como um

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Page 91: Por uma TAO expressividade

sonho que foi trabalhado e que devemos trabalhar, tudo permanece aberto ao olhar do intérprete (2005: 80,81).

Deixemos então a recepção para estudos mais estritamente voltados a ela e nos

voltemos à outra tendência comum entre alguns encenadores contemporâneos. Esta é descrita

e estudada por Cohen, para quem o work in process:

tem por matriz a noção de processo, feitura, interatividade, retro-alimentação, distinguindo-se de outros procedimentos que partem de apreensões apriorísticas, de variáveis fechadas ou de sistemas não-interativos (1998:17).

A proposição de não estratificação em um produto tido como final ou pronto, se

aparenta à perspectiva de abertura e não fixação de verdades, idéias e identidades (Jullien,

2000) por parte da sabedoria chinesa. Dentro da acepção de wu wei uma obra não concluiria.

Ela atinge meta-equilíbrios, estados de estabilidade temporários, a serem sempre colocados

em cheque, testados em sua vitalidade, pelo próprio fluxo da vida. Para Jullien, o sábio é

aquele que não encerra uma questão, não permite que sua conduta se esclerose, que não se

apega em definitivo a uma posição, que não se congela em uma proposta, que não obstrui o

fluxo de possibilidades de mudança (2000: 7-20).

A idéia aqui não é procurar ser sábia, no sentido mais ortodoxo do termo. A proposta é

que princípios, lampejos de compreensão dessas formulações encorajem uma disposição ao

fluxo, ao erro (no sentido de nomadismo e de tolerância aos equívocos), à ação da vida sobre

nossas produções artísticas, de nossa arte sobre a vida. Abraçar essas idéias tampouco

significa prescindir de produtos, roteiros ou obras, mas estar disponível a revisitá-los, checá-

los, questioná-los, transformá-los, sempre que isso for necessário. Necessidade esta não

apenas ligada à razão ou análise da obra em si, mas envolvida à percepção dos fluxos de chi

no corpo em cena, e no corpo da cena, à confrontação permanente de te – a virtude enquanto

consonância entre nossa vocação/vontade e nossa conduta, e à pré-disposição a wu wei – ao

devir.

Cohen busca a variável work in process por sentir embutida no termo progress22 certa

noção de evolução, avanço, que ele não considera estar totalmente de acordo com os

princípios do procedimento. O work in process23, assim como a imagem do rizoma, de

22 A expressão original é work in progress.23 Há problemas em usar o termo metodologia para classificar o work in progress. Segundo o dicionário, metodologia é arte de dirigir o espírito na investigação da verdade, o que até poderia se aplicar ao work in Progress, no entanto o verbete método tem um sentido teleológico, um método é um meio para se chegar a um fim. Se não é possível pensar work in Process enquanto metodologia, isso se dá pelo fato de que o termo método,

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Page 92: Por uma TAO expressividade

Deleuze e Guattari, opera privilegiando o processo, aberto a interferências, associações e

hibridizações, com a possibilidade, inclusive, de prescindir de um produto final ou objetivo

último. Em abordagens menos radicais, como já foi falado, esse produto final estaria sempre

disponível a revisões e atualizações.

Jullien lança um olhar comparativo entre a filosofia, que seria histórica, ligada à

progressão, e a sabedoria, ligada à variação (2000:20)24. Tentando não reforçar essa distinção

como uma dualidade estéril, vale a pena observar seus aspectos. Na filosofia haveria a

expectativa de uma totalização por acontecer, ela evoluiria no tempo, dando saltos causais.

Na sabedoria há a perspectiva de constante regulação, evitando privilegiar o que quer que seja

(2000:48). A filosofia, de lógica panorâmica, tenderia a conceber, enquanto a sabedoria, de

lógica itinerante, atravessaria (2000:54). Para o autor, o que a filosofia trata como enigma, a

ser desvendado em sua epopéia pela verdade, a sabedoria lida como “o oculto evidente”, com

o qual se relaciona por vias diferenciadas daquelas explicativas (2000:57-63).

Partindo desse entendimento de Jullien, poderíamos dizer que quando Cohen prefere

process a progress, ele de certa forma está - ainda que sem ter acesso, talvez, a esse estudo -

abraçando as perspectivas mais voltadas ao universo da sabedoria: variação, processo,

regulação; do que as ligadas à filosofia: progresso, evolução, perspectiva de uma conclusão.

A perspectiva de se trabalhar articulando ética e estética, seja por um discurso que olhe

a noção de ética mais pelo viés da política, ou da filosofia, ou por um viés mais espiritual, ou

ligado à sabedoria, também tem estado presente em várias ações do teatro. Nesse mister a

busca por referências orientais, teóricas ou práticas, é freqüente. Como já foi mencionado,

expoentes do teatro como Constantin Stanislávski, Vsevolod Meyerhold, Bertolt Brecht,

Gordon Craig, Antonin Artaud, Jerzy Grotowski, Eugênio Barba, Peter Brook, para citar

apenas os mais emblemáticos, se debruçaram, de diferentes maneiras, sobre fontes não

ocidentais, buscando nutrientes para suas pesquisas25.

Decidimos pela omissão, em nosso estudo, dos exemplos oriundos da dança e da

dança-teatro, unicamente por uma necessidade de recorte. Sabemos que vários artistas nessas

contido em metodologia, compreende uma finalidade, além de remeter, ainda que num sentido já desgastado, à idéia de rigidez de percurso, carecendo também sofrer um redimensionamento. Pensar que se trata de um princípio de trabalho parece mais apropriado.24 Jullien usa os termos sabedoria e filosofia aqui, mas não sem criticar, adiante, essa distinção, denunciando nessa terminologia um processo de infantilização da noção de sabedoria. (2000: 85-99)25 Para abordagem mais abrangente sobre essa questão, recomendamos consultar Meyer-Dinkgräfe (1996), que traz reflexões sobre a influência de teoria e práticas orientais sobre vários artistas cênicos ocidentais.

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Page 93: Por uma TAO expressividade

áreas têm trabalhos bastante afinados às questões aqui debatidas, e ainda instigados por

parâmetros – sejam estilísticos, conceituais ou existenciais – de orientação não etnocêntrica.

Entretanto optamos manter nossa moldura restrita ao teatro, tentando aí produzir uma

contribuição mais consistente.

Em nosso estudo elegemos dois nomes pelos quais sentimos nossa investigação

particularmente provocada, com quem dialogaremos um pouco mais intensamente. A escolha

por estes nomes relaciona-se mais a uma afinidade por seus princípios e inquietações do que a

uma coincidência de fontes ou matrizes propulsoras. Artaud e Barba não se voltaram

estritamente para a sabedoria taoísta, como é a proposta dessa pesquisa, mas têm fundamentos

e perspectivas de trabalho que balizam nossa própria prática. Além destes, adiante

intensificaremos um diálogo com o encenador Meyerhold quando estivermos analisando a

cena de Traços, espetáculo resultante da senda etapa de nossa pesquisa.

2.2 Antonin Artaud

Uma das razões que nos fez eleger matrizes taoístas como norteadoras do trabalho é a

pista dada por Antonin Artaud, em Um atletismo afetivo (1993:129), sobre uma provável

localização fisiológica de emoções, mencionando a acupuntura como possível meio para esse

estudo. Essa menção gerou o pressuposto de que o estímulo a alguns pontos trabalhados pela

medicina chinesa pudesse promover o acesso a cada uma das cinco energias afetivas,

associadas aos órgãos do corpo, por sua vez relacionados aos cinco movimentos (teoria base

da medicina chinesa): terra, fogo, água, metal e madeira. Imaginamos ser possível erigir uma

metodologia baseada na medicina tradicional chinesa, voltada ao manuseio expressivo dos

afetos. Embora, como já mencionado, não tenhamos conseguido dispor de instrumentação e

pessoal adequado para a confirmação ou refutação de tal hipótese – o que exigiria

acompanhamento especializado e, provavelmente, uma tese de doutorado exclusivamente

voltada a tal ponto, ainda assim Artaud se manteve como uma forte referência. Então,

esboçamos a seguir uma aproximação entre nossa investigação, princípios taoístas e idéias

artaudianas.

Ainda que o projeto artaudiano venha sendo, muitas vezes, encarado como

impraticável e/ou utópico, é inegável sua influência sobre várias manifestações de vanguarda,

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Page 94: Por uma TAO expressividade

sobre a arte da performance e sobre o teatro contemporâneo. Isso demonstra que há em seu

discurso - híbrido de manifesto, poesia, crítica e propostas práticas – princípios extremamente

pertinentes e atuais. O que Artaud ora nos empresta não é o seu projeto, mas alguns de seus

princípios. Estes parecem fortalecer e fundamentar a idéia de um trabalho em prol do

exercício expressivo, ancorado em uma sabedoria a um só tempo ancestral e contemporânea.

Lembrando que entendemos esse último termo como relativo a ideários que expressem o

caráter de seu tempo, estando em concordância com o espírito de época atual e suas

necessidades mais flagrantes.

No corpo de textos de Artaud o que primeiro se deflagra é uma crise em relação à

dissociação entre cultura e vida. Ele protesta contra a separação entre as idéias de vida e

cultura, como se cada uma estivesse de um lado, e como se a verdadeira cultura não fosse, ou

devesse ser, um meio refinado de compreender e de exercer a vida (1993:4). E clama então

por uma idéia de cultura em ação, que funcionaria em nós como que um novo órgão, uma

espécie de segundo espírito, rechaçando todo discurso ou sistema de pensamento que não

ecoasse de fato nos corpos da cultura ao qual se refere (1993:2).

A partir dessa insatisfação, Artaud anuncia sua investigação no seio de culturas

diferentes, intuindo que o que chama de concepção ocidental de arte teria se dissociado da

cultura, na acepção artaudiana do termo. Ao mencionar o teatro ocidental, ele está referindo-

se especialmente à Europa e Estados Unidos, onde predominavam, no teatro, ações

subjugadas ao texto. Para Artaud, segundo Derrida, “uma cena que apenas ilustra um discurso

já não é totalmente uma cena” (1971:155).

Em busca de uma espécie de teatralidade perdida - ou pervertida como aponta Derrida

- Artaud busca o oriente – ou o não eurocêntrico – como fonte de idéias. Assim é que encontra

em manifestações espetaculares do México26 e de Bali27, por exemplo, esse potencial de vida,

onde vai identificar fatores capazes de restituir força e energia ao teatro. E Artaud vai associar

essa potência com o sentido de sagrado. Para ele, nessa outra forma de teatro, estaria inscrita

a possibilidade da expressão pelas formas, e por tudo que for gestos, ruídos, cores, plasticidade, etc. [o que devolveria ao teatro] sua destinação primitiva, [...] seu aspecto religioso e metafísico, [reconciliando-o] com o universo (1993:67).

26 O que Artaud presenciou no México, a despeito de sua localização geográfica, não se inseria, para o autor, nos padrões estéticos ocidentais, especialmente por não caracterizar um teatro textual e psicológico.27 Artaud assiste ao espetáculo balinês em Paris.

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Em relação ao teatro de Bali, ele se sente invadido por uma superabundância de impressões

(1993:52). Isso parece indicar que há aí um extraordinário potencial expressivo, e que é esta a

expressividade reclamada por Artaud aos atores ditos ocidentais - de tendência textual e

psicológica. Para ele, aí estaria um dos elementos que devolveriam ao teatro sua força

originária, ligada aos rituais, ao sagrado, ao sacrifício, à crueldade. Artaud vai sugerir que,

para além do texto dramatúrgico, se produza uma “linguagem do palco”, sendo que esta seria

cifrada, ou figurativa (mas não ilustrativa). Similar a uma transcrição musical (note-se que a

idéia de partitura também se encontra em Artaud), aos hieróglifos egípcios, ou aos ideogramas

chineses (Derrida, 1971:163-164).

A diferenciação que Artaud faz, de teatro ocidental enquanto cena psicológica, e teatro

oriental como cena metafísica, coloca-nos frente à utilização desse termo – metafísica - de

modo diferente ao que é corrente na filosofia. Para Artaud, esse termo encerra um caráter

duplo, como uma “metafísica em atividade” (1993:38), noção que insere a idéia de um teatro

essencialmente físico e ao mesmo tempo poético e sagrado, onde a materialidade se apropria

de seus sentidos e significações, e é desdobrada em imagens, referindo-se a “uma espécie de

Física primeira da qual o espírito nunca se separou” (1993:56). A metafísica artaudiana está,

sim, ligada à transcendência, mas esta não acontece longe do corpo, em um lugar além. Antes,

a idéia de transcendência, para ele, como para os taoístas, está intrinsecamente ligada à noção

de imanência.

A metáfora da alquimia em Artaud (1993:43-47), ligada ao potencial transformador do

teatro, é usada também pelos taoístas, que falam de processos de alquimia interior, ao se

referir às práticas de reorganização de chi. Em ambos os casos a alquimia é um movimento

que acontece ao mesmo tempo no concreto e não-concreto, no visível e não visível que há no

corpo e na cena.

Quando Artaud grita pelo fim das dicotomias – o que nem sempre é feito com muita

clareza, mas é perceptível em várias passagens - ele encontra eco na relação yin yang, que

rege a vida, segundo os chineses. Diz ele:

Não se separa o corpo do espírito, nem os sentidos da inteligência, sobretudo num domínio onde a fadiga incessantemente renovada dos órgãos precisa ser bruscamente sacudida para reanimar nosso entendimento (1993: 83).

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Page 96: Por uma TAO expressividade

Essa idéia de renovação, de ciclo, onde a fadiga se reanima, e onde esse movimento é

condição para a apreensão do conhecimento, é uma constante na sabedoria chinesa.

Artaud temia o preconceito gerado pelo maniqueísmo ocidental, em relação a

abordagens que trouxessem a dimensão sagrada, seja às artes, seja a outro campo de

conhecimento. Para ele - como para os chineses, dentre outras culturas - a sacralidade não está

fora, mas inscrita na própria vida, e o encontro com o sagrado se dá no corpo. Entretanto, ele

parece sofrer resistências a essa idéia:

O fato de bastar alguém pronunciar as palavras religioso ou místico para ser confundido com um sacristão [...] alienado [...], mostra nossa incapacidade de extrair de uma palavra todas as suas conseqüências e nossa profunda ignorância do espírito de síntese e de analogia (1993:40-41).

Nessas palavras está novamente manifesta a crítica à visão reducionista que segrega e

hierarquiza valores.

Ainda segundo Artaud:

As idéias que roçam na Criação, no Devir, no Caos e que são todas de natureza cósmica, fornecem uma primeira noção de um domínio em relação ao qual o teatro se desacostumou. Elas podem criar uma espécie de equação apaixonante entre o Homem, a Sociedade, a Natureza e os Objetos (1993:115).

É nesse domínio que a sabedoria chinesa se construiu, e é dele que surgem as bases

para os diferentes campos de conhecimento que contamina. É a certeza da existência de uma

apaixonante (porque movediça e intensa) equação entre o homem e o mundo que o cerca, que

se mostra presente tanto na sabedoria quanto na medicina e em outras práticas taoístas. Ainda

em outra passagem, as idéias de Artaud aproximam-se tanto dos princípios chineses que

parece que o autor está falando destes. Ele diz que a matéria ou temas com os quais o diretor

ou “ordenador mágico” do teatro vai trabalhar “não são dele, mas dos deuses [...] provêm, ao

que parece, das junções primitivas da Natureza que um duplo espírito favoreceu. Ele [o

diretor] mexe com o MANIFESTADO [em maiúsculo no original]” (1993:56). Ora, no que se

constitui toda a base da medicina chinesa senão numa relação (junções primitivas) entre os

cinco elementos (ou fases) da natureza e os outros aspectos a estes associados – manifestações

do tao – bem como nas relações duplas – yin yang – que ocorrem entre eles?

Entretanto, mesmo que muitas outras vozes de Artaud possam ainda ser trazidas como

referências para este trabalho, o ponto mais importante no que tange especificamente a este

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projeto parece estar mesmo no ensaio Um atletismo afetivo. Aí Artaud indica meios para se

proceder uma busca fisiológica das energias que regem as emoções, considerando de antemão

ser preciso admitir no ator “uma espécie de musculatura afetiva que corresponde a

localizações físicas dos sentimentos” (1993:129). Além de mencionar a Cabala, de origem

hebraica, como matriz de uma possível dinâmica de respirações que venha a desvendar esse

caminho, ele cita a acupuntura como um conhecimento a ser aproveitado nesse estudo:

Há trezentos e oitenta pontos na acupuntura chinesa, dos quais setenta e três principais que servem a terapia corrente. Há um número bem menor de saídas grosseiras para nossa humana afetividade. Um número bem menor de apoios que possamos indicar e nos quais se baseará o atletismo da alma (1993:136).

De fato, na medicina chinesa existe uma profunda inter-relação entre cinco duplas de

órgãos (sendo um considerado o órgão yin e outro o yang) e cinco emoções básicas, que se

desdobram ainda em outros cinco temperamentos, conforme vimos no diagrama wu hsing. E

Artaud demonstra, inclusive, certo conhecimento sobre a medicina taoísta, note-se essa

passagem:

Todo sentimento feminino que cala fundo, o soluço, a desolação, a respiração espasmódica, o transe, é na altura dos rins que ele realiza seu vazio, nesse mesmo lugar onde a acupuntura chinesa dilui a obstrução do rim. A medicina chinesa procede apenas através do cheio e do vazio. Côncavo e convexo, tenso e relaxado, Yin e Yang. Masculino e feminino (1993:135).

É a partir de todo esse conhecimento estruturado há mais de dois milênios pelos

chineses acreditamos ser possível investigar meios que possibilitem ao ator desvendar ou

percorrer um possível caminho fisiológico das energias afetivas. Estes meios seriam

inspirados na lógica dinâmica da mandala das cinco fases, e de suas inter-relações yin yang, e

visariam, em última instância, não somente o acesso a energias afetivas, mas também certo

domínio expressivo sobre as mesmas, por um melhor desempenho na atuação. Tal tarefa não

foi cumprida até a conclusão desta tese, mas permanece como um desafio a ser trilhado.

Compartilhamos ainda da convicção artaudiana de que:

A crença em uma materialidade fluídica da alma é indispensável ao ofício do ator. Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria, dá sobre as paixões um domínio que amplia nossa sabedoria (1993:136).

Essa convicção alimenta nosso desejo de experimentar caminhos orgânicos, físicos, para a

exploração de afetos, estados, corporeidades, e também instigou-nos a propor os laboratórios

expressivos e processo criativo, pautados numa relação corporal, ao mesmo tempo física,

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energética e anímica, do ator com os aspectos estruturantes da mandala chinesa e das outras

matrizes eleitas. Esse desejo foi alimentado também por essas palavras de Artaud:

Basta de uma magia casual, de uma poesia que não tem a ciência para apoiá-la. No teatro, doravante, poesia e ciência devem identificar-se. Toda emoção tem bases orgânicas. É cultivando sua emoção que o ator recarrega sua densidade voltaica. (...) Conhecer as localizações do corpo é, portanto, refazer a cadeia mágica. (1993:136).

Encontramos na sabedoria chinesa, mais especificamente a ligada ao taoísmo e suas

ramificações, uma construção que conjuga aspectos científicos (por que baseados em

pesquisas milenares e responsáveis, inclusive cada vez mais avalizados pela ciência

ocidental), a outras questões, de natureza talvez não nominável (para não termos de usar

termos como energética ou espiritual). No universo de Artaud encontramos princípios

legitimadores de uma pesquisa do ator em cena em trânsito com matrizes taoístas.

Artaud é alvo de inúmeras referências – entre críticas e elogios. As críticas muitas

vezes se referem à impossibilidade cênica de suas idéias, tidas como utópicas, ou a

contradições conceituais de seus postulados. Derrida é um dos pensadores que se debruçou

sobre o projeto artaudiano, encontrando aí contribuições e problemas. Para ele, a busca por

essa espécie de “véspera do teatro ocidental”, essa origem remota da arte enquanto uma

espécie de ritual, onde vida e cultura se amalgamavam, onde o sagrado se fazia presente, essa

busca traria ao mesmo tempo o anúncio do fim da representação (1971:151). Pois

paradoxalmente, o nascimento do teatro - ou da tragédia - teria sido a sua morte, o fim da

teatralidade. Artaud propõe os duplos do teatro, por meio dos quais tentaria devolver vigor,

potência afirmativa, teatralidade, presença, vida e sentido de sagrado ao teatro. A peste, a

crueldade, a metafísica, a alquimia seriam vias (talvez mais metafóricas que práticas) para

repensar e redimensionar o lugar do teatro, seu espectro de possibilidades para além da

encenação de um texto, para além da representação.

Derrida percebe nos escritos de Artaud solicitações que vão muito além do campo

estrito da arte teatral. Ao expulsar Deus do palco, na forma de repúdio a um texto onipotente e

à construção logocêntrica e hierárquica, tal crítica artaudiana se estenderia ao monoteísmo, à

filosofia clássica, à política, à ciência, às relações sociais, enfim, teria alcance “no todo da

história do ocidente” (1971:153). Vale notar aqui como Artaud desarticula a idéia de Deus da

noção de divino. O sagrado não está separado da vida em Artaud, como não está para os

taoístas, cabe lembrar. O divino está em Artaud - e no taoísmo, ligado também ao mundo do

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Page 99: Por uma TAO expressividade

sensível, da práxis, do cotidiano, incluindo a arte, para além de um sentido inalcançável,

restrito ao campo das idéias e do espírito.

Entretanto Derrida desconstrói a possibilidade do fim absoluto da representação,

sugerido por Artaud. Segundo o crítico o que se instala é o:

Fechamento da representação clássica, mas reconstituição de um espaço fechado de representação originária, da arquimanifestação da força ou vida. Espaço fechado, isto é, espaço produzido dentro de si mesmo e não mais organizado a partir de um lugar ausente. [texto/autor] [...] Representação originária [...] Representação como auto-representação do visível e mesmo do sensível puros (1971:158).

Se Artaud quis apagar a repetição em geral, se para ele a repetição era o mal, responsável pela

separação de si própria da força e da vida, então sua busca era pela presença pura como

diferença pura (Derrida, 1971: 170, 172). Porém, Derrida constata o paradoxo do fim da

representação no teatro:

o inacessível limite de uma representação que não seja representação, de uma re-presentação que seja presença plena, que não carregue em si seu duplo como sua morte, de um presente que não se repete, isto é, de um presente fora do tempo, de um não-presente. O presente só se dá como tal, só aparece a si, só se apresenta, só abre a cena do tempo, ou o tempo da cena acolhendo sua própria diferença intestina, na dobra interna da sua repetição originária, na representação, na dialética (1971:173).

Até porque, segundo o crítico:

o teatro da crueldade não começa nem se realiza na pureza da presença simples mas já na representação, no “segundo tempo da Criação”, no conflito das forças que não pôde ser o de uma origem simples (1971:173).

Derrida desfia ainda uma longa lista de todo o teatro que não poderia ser considerado

fiel ao projeto artaudiano (1971 167-170), chegando praticamente à impossibilidade do

mesmo. Porém, ao fim ele diz que ainda que o teatro primitivo e a crueldade comecem

também pela repetição,

a idéia de um teatro sem a repetição, a idéia do impossível, se não nos ajuda a regular a prática teatral, permite-nos talvez pensar a sua origem, a véspera e o limite, pensar o teatro de hoje a partir da sua história e no horizonte da sua morte. [...] Artaud manteve-se muito perto do limite: a possibilidade e a impossibilidade do teatro puro. A presença para ser presença e presença a si, começou já sempre a representar-se. [...] O que quer dizer que o assassínio do pai [Édipo matando Laio, na tragédia grega] que abre a história da representação e o espaço da tragédia, o assassínio do pai [Artaud matando o texto, matando Deus] que Artaud quer em suma repetir [...] esse assassínio não tem fim e repete-se indefinidamente (1971: 174-175).

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Page 100: Por uma TAO expressividade

Mas Derrida sabe que Artaud tinha consciência de ter querido ao mesmo tempo

produzir, recuperar e destruir a cena. Ele não teria conseguido resignar-se ao teatro como

repetição e nem renunciar ao teatro como não-repetição (1971:175).

O teatro como repetição daquilo que não se repete, o teatro como repetição originária da diferença no conflito das forças [...] tal é o limite mortal de uma crueldade que começa pela sua própria representação. Por que ela sempre já começou, a representação não em portanto fim.[...] O fechamento é o limite circular no interior do qual a repetição da diferença se repete indefinidamente. Isto é, seu espaço de jogo. [...] Pensar o fechamento da representação é pensar o trágico: não como representação do destino, mas como destino da representação. A sua necessidade gratuita e sem fundo. Eis porque no seu fechamento é fatal que a representação continue (1971: 176-177).

Assim podemos voltar ao ponto em que discutíamos tendências dessa cena

contemporânea, em grande medida inspirada por Artaud e repetir que não se trata de

desatrelar – ou dicotomizar - mimesis e poiesis, assim como representação de apresentação.

Essa constatação não invalida em hipótese alguma a contribuição artaudiana no repensar e

redimensionar a noção de teatro, a idéia de arte e seu lugar no mundo, na história, na

sociedade, a partir da proposição do fim da representação. Como observou Derrida essa

reivindicação fazia todo um sentido naquele contexto, e provocou diversos desdobramentos

na cena, e fora dela. Possibilitou inclusive este desdobramento, agora, que já não vê sentido

nessas distinções.

2.3 Eugênio Barba

Eugênio Barba se debruçou sobre manifestações espetaculares de diferentes tradições.

Em perspectiva que ele denomina antropológica – em que pese isso ser constantemente

colocado em questão - estudou expressões de culturas do oriente e do ocidente, buscando

identificar princípios análogos e recorrentes em ações envolvendo teatralidade. Seu esforço de

compreensão e mapeamento da linguagem cênica parece mais voltado à construção de

princípios práticos de pesquisa do ator, do que propriamente a formulação de uma teoria

abstrata. Não obstante, em várias passagens Barba parece mesmo se propor a uma elaboração

conceitual, de cunho científico ou acadêmico, e isso é constantemente alvo de críticas.

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Page 101: Por uma TAO expressividade

Patrice Pavis é o responsável por uma das principais críticas a Barba, debruçando-se

detalhadamente sobre sua Canoa de papel (1994)28. Em relação à denominação de

antropologia que ele dá a sua cartografia, o questionamento de Pavis (2007) levanta alguns

aspectos. Um deles é fato de que Barba se exime de articular aos aspectos que ele nomeia

pré-expressivos, outras questões, de ordem sociológica e estética. Porém Pavis lembra que,

por um lado, essa formulação pré-expressiva ou biológica, referente à base das manifestações

expressivas de gênero, estilos e papéis, engoloba sim categorias claramente estéticas. Por

outro lado, o crítico ressalta que as relações entre os elementos teatrais identificados em uma

determinada manifestação, e outros aspectos da mesma cultura, são ignoradas por Barba.

De fato parece que o título Antropologia Teatral quer projetar as idéias barbianas

como mais científicas do que realmente seriam, de acordo com os princípios acadêmicos e

epistemológicos vigentes. Pavis aponta ainda a confusão que o termo teatral provoca na

expressão Antropologia Teatral, já que Barba se debruça não somente sobre o teatro como

linguagem, mas também sobre ações culturais que contém teatralidade e espetacularidade.

Enfim, para Pavis:

A Antropologia Teatral teria mais valor se fosse considerada como uma teoria provisória que como uma ciência dura, mesmo que seja uma “ciência pragmática” (expressão que nos parece mais contraditória que um oximoro) (2007:17, 18).

No entanto, a despeito das críticas acima, os pressupostos que Barba se dispôs a

identificar e compartilhar costumam ter uma compreensão tácita por grande parte dos atores e

outros profissionais ligados à cena. Ou seja, se Barba se equivoca na natureza do discurso que

ele formula, por outro lado o que o move, os princípios deste discurso, demonstram utilidade

prática e eficácia na formação de atores e na composição da cena, por exemplo. O próprio

Pavis enxerga isso em diferentes passagens onde reconhece a “bagagem de grande riqueza”

(2007:1) de Barba, e admite que “ele nos encoraja a estabelecer nosso próprio programa que

subverte as antigas separações (hoje em dia fora de moda) entre teoria e prática” (2007:18). E

Barba também mostra ter consciência da dificuldade que seu estudo gera:

A escritura desenrola a meada que se torna mais linear e menos verídica. A experiência, em vez disso, é contigüidade de ações, de perspectivas simultâneas. Quando agimos, estamos contemporaneamente presentes em diversos níveis de organização (1994:193).

28 O texto Uma Canoa à Deriva?, de Patrice Pavis, publicado originalmente em: Théâtre Science Imagination – 2, teve tradução, ainda não publicada, de Mônica Mello e Joice Aglae com revisão de Armindo Bião. A tradução foi gentilmente cedida pelas autoras, em colaboração a esta tese. Todas as citações de Pavis indicadas pela data (2007) referem-se a esta tradução, até o momento sem publicação.

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Page 102: Por uma TAO expressividade

Barba mostra aqui, conforme notou Pavis, sua angústia ao perceber o hiato que se instala na

dissociação, ainda que circunstancial, entre teoria e prática. Tal percepção está tratada em

abordagens da sabedoria taoísta, onde prática e teoria - ou conduta e idéia – apresentam, ou

deveriam, uma complementaridade tal que as tornam indissociáveis. Este amálgama seria de

tal natureza que, quando rompido, corromperia também sentidos específicos de cada uma

dessas instâncias.

É interessante ressaltar que Barba, quando aponta diferenças que considera mais

intensas entre perfis de atores no mundo, não o faz em relação a oriente e ocidente, mas entre

os hemisférios sul e norte (1994). Grosso modo, para Barba os atores do Pólo Norte29

caracterizam-se pelo aprofundamento técnico e pela imersão em um estilo de atuação ao

longo da carreira, enquanto os atores do Pólo Sul seriam orientados por várias influencias as

quais, mestiçadas, levariam a um estilo pessoal e menos rígido. Paradoxalmente, no entanto,

Barba lembra que isso não significa que os atores do sul tenham mais liberdade no processo

criativo do que os do norte. Ao contrário, segundo ele, seria a técnica, quando corporalmente

assimilada por meio de um treinamento rigoroso (segunda natureza – veremos esse conceito

adiante), a principal responsável pela desenvoltura criativa do artista.

Essa inversão da bússola poderia sugerir que o autor não se dobra a categorizações

usualmente aceitas – teatro oriental e ocidental, se esforçando por identificar, através de suas

próprias investigações - minuciosos estudos teórico-práticos, frutos de observações, leituras,

trocas, treinos - as distintas características em diversas faces do teatro. Entretanto esta

observação é criticada por Pavis, que percebe aí a perda de uma oportunidade de análise

comparativa por meio de aspectos que aproximem, e não que afastem os dois objetos de

estudo:

uma outra oposição parece-nos igualmente nefasta e artificial: essa entre ator do Pólo Norte, que “modela seu comportamento cênico segundo uma rede bem experimentada de regras que definem um estilo ou um gênero codificado” (p. 27) e o ator do Pólo Sul que “não pertence a um gênero espetacular caracterizado por um detalhado código estilístico.” (p. 27). Tal dicotomia separa radicalmente duas maneiras de atuação que se poderia, pelo contrário, confrontar examinando, antes, aquilo que os aproxima, ou seja, o fato de que a convenção do ator, a codificação, a semiotização do corpo e do comportamento são mais ou menos afixados e conscientes, mas existe sempre (2007:6).

Porém, o que parece escapar a Pavis, é que o estudo comparativo levantando os pontos de

contato entre diferentes abordagens da cena é justamente o objeto maior de Barba. Se ele se

29 A tradução brasileira optou por tratar por pólos sul e norte, o que a nosso ver parece que estaria mais bem descrito por hemisférios sul e norte.

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Page 103: Por uma TAO expressividade

propõe a esse comentário - que diferencia o ator do hemisfério sul do ator do hemisfério norte

- não é por que ele creia que deva proceder a sua análise pela via da contraposição. Antes, é

justamente visando desconstruir a oposição vigente e automática - entre a cena do leste e a

cena do oeste - que ele tenta demonstrar que poderia não estar aí a maior diferença existente

entre tendências do teatro no mundo.

Mas nem sempre Barba evitou essa terminologia. No ensaio Teatro euroasiano

(1991:193), Barba comenta a mútua admiração e o potencial de troca e aprendizagem entre as

formas como, de um modo geral, se pratica teatro nos chamados oriente e ocidente.

Entretanto, ele se recusa a fazer parte de um dos pólos desse dualismo, se colocando como um

híbrido, como representante de um teatro euroasiano, que se inscreve numa “dimensão

transcultural, no fluxo de uma ‘tradição das tradições’” (1991:193). A posição fronteiriça

assumida por Barba nessa declaração o insere numa abordagem bastante contemporânea, por

um lado. Por outro se flagra aqui um traço de seu discurso que também esbarra em críticas.

O autor parece em busca de uma universalização, seja ao se referir a uma possível

“tradição das tradições”, seja ao pretender que sua proposição de uma antropologia teatral dê

conta de englobar a totalidade de manifestações espetaculares, o que parece por vezes ser sua

intenção ao descrever os “princípios-que-retornam”, comuns às tradições teatrais (1994:27-

59). Pavis questiona se a abordagem de Barba não se limitaria aos intercâmbios eurasianos, ou

de forma ainda mais estrita, “aos empréstimos feitos pelos ocidentais (como Craig, Brecht ou

Artaud) das formas asiáticas, aliás, mal compreendidas e adaptadas aos seus interesses

ocidentais” (2007:3). Pode ser que Pavis esteja correto em sua análise. Entretanto,

acreditamos que Barba apesar de parecer generalista, talvez não tenha de fato essa pretensão.

A escolha de algumas terminologias e expressões, movida talvez por uma expectativa de

legitimação, acabou denotando essa tentativa universalizante. O ponto a favor, porém, é que o

autor em nenhum momento se coloca fechando a questão, ou esgotando o assunto. Ao

contrário, Barba parece ter noção clara da vulnerabilidade de seu próprio discurso. O último

capítulo de A canoa de papel inicia com a seguinte frase:

As palavras estáveis possuem a fragilidade de sua estabilidade. Para cada afirmação clara existe um equívoco. No trabalho, certas palavras iluminam como relâmpago n’água. Quando escritas mudam perigosamente sua natureza (1994:193).

Barba usa o conceito de ilhas flutuantes, nas quais se formariam “raízes

desenraizadas”, e onde o que vigora não são laços espaciais, mas o vínculo a um ethos que

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Page 104: Por uma TAO expressividade

permitiria a mudança de lugares, sem a perda referencial das origens (1991:195). Essas idéias

transculturais têm pontos em comum com a noção de rizoma, tipo de raiz não pivotante,

metáfora para processos de desterritorialização. Esta semelhança reforça no projeto de Barba

seu caráter contemporâneo, ou seja, o de estar em consonância com aspectos do ideário que

rege seu tempo. Buscar apoio em outras culturas, mestiçar, trocar, desenraizar segundo um

ethos, operar na fronteira, são princípios que regem também a nossa pesquisa.

Quando Barba fala nesse ethos regente – cuja base passa por um imperativo ético e um

comportamento artístico (1991:193) - parece se referir fundamentalmente a um sentido para

vida, que cada um deve descobrir em si, e no seu labor. Para Barba, “não se pode escolher

idéias esperando que estas o mudem. É necessário escolher condições de vida e de trabalho”

(1991:160). Como os taoístas ele se nega a separar o campo das idéias do campo da conduta.

E ainda, para Barba o sentido do teatro é bem mais que produzir e mostrar espetáculos,

passando por entender que o processo cênico que se escolhe viver, a forma como são

construídas as relações de grupo, podem, e devem envolver o ser humano como um todo, não

apenas do ponto de vista técnico e artístico.

Ele alerta, quanto à questão ética e quanto à função do teatro para sociedade - muitas

vezes encarada de forma simplista – que “apegar-se a um teatro político significa evitar o

problema de fazer, com o teatro, uma política” (1991:158). Para além de um teatro partidário,

que age pela via do discurso ideológico, é preciso provocar com a arte transformações

moleculares, aquelas no campo de fluxos e intensidades singulares (Deleuze e Guattari:1995).

E estas não devem apenas mirar os corpos da recepção, mas partir dos corpos que criam.

Talvez seja por tudo isso que Barba, a exemplo de outros nomes do teatro, prefira falar numa

atuação que se ergue na “fronteira entre representação e testemunho” (199:130). Não se

desvincula, aqui, o ator do homem. Em última instância, quiçá, não se desvincule o

personagem deste homem. Trata-se de perspectiva similar a que buscamos em nossas

proposições artísticas, e está inscrita entre as tendências que discutimos há pouco.

Existe outro ponto em comum entre as idéias de Barba e nosso propósito. Há nessa

pesquisa uma intenção além da busca de expressividade, ainda que esta seja nosso objeto

norteador. Move-nos a conjectura – de difícil comprovação científica - de que os

procedimentos criados, por partirem das já mencionadas fontes, são capazes de legar aos

atores – antes de tudo seres humanos – caminhos para meta-equilíbrios, os quais partem e

retornam ao “longe do equilíbrio”. Embora não seja um pensador da arte, Ilya Prigogine ora

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Page 105: Por uma TAO expressividade

nos empresta suas idéias, que se referem à viabilidade da vida apenas como organismo em

contínuo agenciamento. Segundo ele, “num tom metafórico, pode-se dizer que no equilíbrio a

matéria é cega, ao passo que longe do equilíbrio ela começa a ver” (1996:70). A proposta de

nossa investigação é usufruir de todo esse potencial criativo, energético e vital do “longe do

equilíbrio”, o qual, ao mesmo tempo em que parece caótico, tem sua vocação de visão. O

artista, estimulado em sua inteligência vibrátil, em seus potenciais perceptivo, sensitivo,

sensorial, energético, pode, ao criar, também se orientar por um sentimento de busca de

harmonizações provisórias, ou regulações, as quais não têm, aqui, sentido teleológico e

enraizante, e nem desejam evitar zonas de instabilidades “longe do equilíbrio”.

Barba contribui com novas leituras para a noção de harmonia. Para ele, a conquista

dessa harmonia estaria ligada àquela busca pessoal, vinculada ao ethos, que se materializa, se

transforma em algo objetivo, e se manifesta como “proporção ativa, movimento em quietude”

(1991:20). Ainda para Barba, “a palavra ‘harmonia’ indica o sentido desta luta pessoal em

busca de novas tensões que recriam a vida, que impulsionam um renovado sentido àquilo que

perdeu e está perdendo sentido” (1991:22). Reforçamos assim que, quando falamos em

harmonia ou equilíbrio, entendemo-los enquanto estados transitórios, mutáveis e temporários.

Orientamos-nos pela busca destes meta-equilíbrios, mas cientes de quem tão logo os

alcancemos, antes que a eles nos enraizemos, já será hora de questiona-los, e de recomeçar

nossa busca. Jullien lembra que essa é uma das características da sabedoria:

ela não separa o “estável” do “instável” [...] como ela não sonha com uma estabilidade que não seja a da regulação (a do caminho, o tao), também não é consciente de uma instabilidade das coisas, ou pelo menos o caráter movediço destas não é capaz de afeta-la. Por isso o sábio não se desinteressa da ocasião, como momento oportuno, mas tampouco permanece prisioneiro dele [...] Seu pensamento se volta ao mesmo tempo para o “possível” [...] e para o “momento”. [...] Sua adequação não é puramente circunstancial [...] nem tampouco repousa em princípios ideais [...] e é, aliás, precisamente a esta não-separação que se deve sua sabedoria (2000:110-111).

Entender a busca de estados de harmonia como um diálogo constante com o momento e o

possível - cônscios do entrelaçamento entre estabilidade e instabilidade, e movidos por

alarmes de nosso corpo vibrátil (veremos esse conceito de Suely Rolnik, adiante), é a nossa

busca, e parece ser a de Barba: “a ação do pensamento funciona como [...] na situação criativa

e nos bios cênico: através da dialética entre ordem e desordem. Ordem sem ordem”

(1994:135).

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Page 106: Por uma TAO expressividade

Um outro tema trazido por Barba que mereceu extensa provocação por parte de Pavis

é a noção de pré-expressividade. Para Barba, o que o treinamento em nível pré-expressivo

proporciona ao ator é o livre exercício da criação, sua afirmação enquanto artista, a liberdade

de criar sem objetivos a priori, “é o que faz o ator existir como ator” (1994: 174). Segundo

ele, independente do estilo, o campo pré-expressivo concerne ao caráter real da ação. E esse

caráter real parece se referir a duas idéias. Primeiro ao empenho, à implicação total do ator no

seu trabalho, sua mobilização, sua opção em abraçar o ofício. Segundo, à construção de um

corpo extra-cotidiano, mas crível. É no campo pré-expressivo que o ator vai treinar

tecnicamente e alcançar uma “segunda natureza” - termo que ele toma emprestado a Decroux.

Esta noção se refere à capacidade do artista criar corporeidades extra-cotidianas, com uma

desenvoltura adquirida na prática com rigor de um treinamento específico, em nível pré-

expressivo. A noção de segunda natureza pode ser entendida ainda a partir da descrição de

François Jullien sobre a prática da sabedoria:

[...] a partir do momento em que, de tanto esforço e dedicação, “isso” começa a dar resultado, como se diz (dizendo assim a imanência), a capacidade tende em seguida a se manifestar por si mesma, sem que precisemos mais nos preocupar, nem sequer pensar para fazê-lo – sem mais esforço nem atenção: como um “fundo (patrimônio)”, sempre pronto a surgir (2000:80).

Para Barba, um treinamento pré-expressivo teria como base os “princípios-que

retornam”, que ele muito bem descreve30, e que visariam à construção desse corpo extra-

cotidiano. Ainda segundo ele, o ator teria nessa segunda natureza, forjada nesse treinamento

pré-expressivo, instrumentos por si só capazes de atrair a atenção do espectador, antes mesmo

de sua posta em cena, ou em contexto dramatúrgico.

Uma das críticas de Pavis é para o fato de que, para ele, o nível pré-expressivo não

seria suficiente “para dar conta da produção concreta do sentido, fenômeno que vai muito

além dos princípios do bios, da energia, da presença e da oposição” (2007:11). Porém nos

perguntamos: teria Barba querido dizer que seria? Afirmar que um corpo extra-cotidiano salta

aos olhos e chama atenção equivale a afirmar que se possa ou deva prescindir de uma

construção dramatúrgica ou de sentido da cena? Será mesmo que, como diz Pavis, Barba “não

se interessa por uma teoria semântica do sentido para explicar a passagem do físico ao

mental” (2007:9)? Ou não será mais plausível imaginar que, se Barba não se propôs a tal

função, não é porque, como Pavis sustenta, ele creia ou abrace uma abordagem que

30 Conferir capítulo homônimo em A canoa de papel, presente em nossa bibliografia.

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limita a força de atração do teatro aos princípios pré-expressivos e desconfia da beleza, da forma e da cena, rebaixando ou negando a materialidade cênica, como se sua diversidade barroca e inclassificável fosse vertiginosamente perturbada e desafiasse todo princípio científico de organização e abstração (2007: 7).

Mas, tão somente, talvez, porque o lugar de onde Barba formula sua “teoria”, o lugar onde ele

transita com intimidade e segurança, onde ele alimenta seus próprios postulados e de onde

fornece subsídios de alta eficiência ao trabalho do intérprete, é o lugar de quem faz, o lugar do

ator, do diretor, dos fazedores da cena. Diferente do lugar de Pavis, lugar que se propõe a dar

conta do fenômeno de forma mais complexa, e que, por isso, precisa necessariamente lançar a

ponte entre a produção e a recepção. Talvez o que Pavis esteja solicitando a Barba,

simplesmente não seja de sua alçada - o que não o coloca em uma posição menos legítima ou

útil à pesquisa em arte, inclusive a acadêmica. O próprio Pavis tem estudos importantes sobre

a recepção31, e demonstra poder colaborar no desdobramento das idéias barbianas, dentro da

perspectiva que ele reivindica. Aliás, ele mesmo anuncia isso: “Vetorização do desejo: tal será

o oximoro que nós proporemos para ligar a energia ao pensamento, para estudar o percurso

energético do sentido e o sentido desse percurso” (2007:10).

Pavis entende ainda que a idéia de pré-expressividade está tratada por Barba com

imprecisão, do ponto de vista teórico (2007:2). E solicita:

Desejaremos que ele resolva o entrave da oposição, para nós insustentável visto que artificial, entre pré-expressivo e expressivo e volte-se para aquela mais tangível da partitura/sub-partitura que abre, de uma vez por todas, a visão a uma dramaturgia do ator (2007: 14).

De fato, a pré-expressividade é uma idéia mais empírica que conceitual, e Barba a cerca

menos por meio de definições do que através de associações e levantamento de suas funções,

o que parece não satisfazer Pavis. Entretanto, talvez Barba fuja dessa definição exata,

justamente por estar consciente de que a divisão por ele proposta tem caráter didático, não

real. Não se trata de desatrelar o que é expressivo do que é pré-expressivo - entendimento que

também incomoda Pavis - nem de entender este último como cronologicamente anterior ao

primeiro. Para ele o nível pré-expressivo não é um nível que deva ser separado da expressão,

mas apenas uma categoria pragmática:

O substrato pré-expressivo está incluído no nível da expressão global percebida pelo espectador. Mas, se o mantiver separado durante o processo de trabalho, o ator, nesta fase, pode intervir em nível pré-expressivo como se o objetivo principal fosse a energia, a presença, o bios de suas ações, e não o seu significado (1994: 154).

31 Conferir “A análise dos espetáculos”, presente na bibliografia.

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Page 108: Por uma TAO expressividade

E o termo expressividade se referiria mais ao ato ou momento da mostra, quando, aí sim, o

processo de comunicação, vetorização e significação, teriam prioridade.

Na crítica a Barba, Pavis propõe a revisão das noções de expressividade e pré-

expressividade, substituindo-as pelas de partitura e sub-partitura, também encontradas em “A

canoa de papel”, as quais ele considera “mais sólidas e concretas” (2007:2). O verbete

partitura mereceu de Pavis em seu Dicionário de Teatro (2003), uma longa abordagem, que

relaciona o termo às tentativas de registro de ações físicas ou de uma espécie de escritura da

cena, como os hieróglifos de Artaud, as ondas rítmicas de Stanislávski, os esquemas

biomecânicos de Meyerhold, as notações de Laban e os gestus de Brecht. Em seu dicionário,

o autor entende o registro da “partitura cênica” como algo ainda por se conquistar, e trata de

buscar definições para derivações do verbete como: “texto como partitura”, “partitura como

texto” e “sub-partitura”.

Em outros textos o crítico tenta mais aproximações com a idéia. Após diferenciar uma

“partitura” preparatória – constituída durante os ensaios pelas seqüências de escolhas no

processo, e uma “partitura terminal” – a do espetáculo tal como apresentado ao público, ele

liga esta última idéia à noção de “texto espetacular” (2005:89,90). Em outro momento ele

aproxima mais a idéia do trabalho de interpretação, pensando uma partitura cênica, ou

partitura do ator, a partir de princípios de Barba e Grotowski:

A partitura é, em Barba, própria do ator, do desenho de seus movimentos. Com o sentido de destacar os movimentos físicos e vocais do ator, a partitura distingue-se, em Barba assim como em Grotowski, do texto escrito e falado. Ela se compõe do conjunto de sinais extralingüísticos que o ator trabalha e fixa, cuidando, sobretudo, para não ilustrar sistematicamente de maneira mimética pela partitura o que é dito no texto. [...] Criada ao acaso, a partitura restitui o desenrolar da ação cênica (começo, apogeu, desenlace), ela fixa os detalhes com precisão, orquestra as diferentes partes do corpo, estabelece o tempo/ritmo da ação (2007:14, 15).

Nas palavras do próprio Barba (1994) o termo partitura implica:

a forma geral da ação, seu ritmo em linhas gerais (início, ápice, conclusão); a precisão dos detalhes fixados: definição exata de todos os segmentos da ação e de suas

articulações [...]; o dínamo-ritmo, a velocidade e intensidade que regulam o tempo (no sentido musical) de

cada segmento. É a métrica da ação, o alternar-se de longas e curtas, de tônicas (acentuadas) e átonas;

a orquestração da relação entre as diferentes partes do corpo (1994:174).

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Page 109: Por uma TAO expressividade

Num mesmo contexto de significação temos o termo dramaturgia do ator, também

mencionado por Barba, que diz:

Se se entende dramaturgia como a arte de entrelaçar ações, pode-se falar de uma dramaturgia do ator para indicar o modo pelo qual ele entrelaça as suas composições no quadro geral do texto e da construção do espetáculo (1994:179).

E ainda em Barba:

A palavra “texto”, antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou manuscrito, significa tecendo junto. Neste sentido, não há representação que não tenha “texto”.

Aquilo que diz respeito ao texto (a tecedura) da representação pode ser definido como “dramaturgia”, isto é drama-ergon, o “trabalho das ações” na representação. A maneira pela qual as ações trabalham é a trama (1995:69).

E Pavis arremata, articulando as idéias de partitura e dramaturgia do ator:

O domínio – tanto o levantamento quanto a seleção – da partitura pelo ator não é outra coisa senão a dramaturgia do ator. [...] Na tradição ocidental o texto pré-existe em relação à encenação. Diferentemente, na dramaturgia do ator haverá um material gestual elaborado por este – a partitura – e, em seguida, disposta em uma montagem segundo a lógica do encenador (2007:15).

Já a idéia de uma sub-partitura de certa forma substituiria – ou complementaria - a de

um sub-texto, que tem sua função primordial no teatro predominantemente psicológico. O

termo tem, no dicionário de Pavis (2003), definição originalmente encontrada em seu outro

estudo, A análise dos espetáculos (2005):

Esquema diretor cinestésico e emocional, articulado sobre pontos de referência e de apoio do ator, criado e configurado por este, com a ajuda do encenador, mas que pode se manifestar apenas através do espírito e do corpo do espectador (2005:92).

Como podemos observar, Pavis desloca parcialmente a eficácia do conceito acima, de

um campo mais pragmático - lugar do ator - lançando-o para um diálogo com a recepção.

Mais abrangente que a perspectiva de Barba, para quem a sub-partitura estaria ligada a uma

espécie de “forro-pensamento que o ator alinhava para si mesmo.” (1994:167) para sustentar a

coerência da ação externa. Barba chega a considerar a sub-partitura como “pontos de apoio

pessoais invisíveis ao espectador” (1994:94). Essa diferença de abordagem pode parecer

contraditória. Porém quando Pavis fala que ela “pode se manisfestar apenas através do [...]

espectador”, ele está lidando com aspectos de teorias da recepção, para as quais o teor ou

sentido de uma obra só se realiza mesmo no encontro com o corpo do público, no confronto

com suas memórias, associações, sintomas, identificações e estranhamentos. Já o que Barba

109

Page 110: Por uma TAO expressividade

está considerando “invisível ao espectador”, é todo um esquema interno de organização –

imagética, energética, afetiva, psicológica, gestual - que o ator aciona para reproduzir – ou

atualizar - uma partitura criada.

Para o crítico a idéia de sub-partitura é uma importante chave na superação do

dualismo entre corpo e mente, já que se trata de uma estratégia a um só tempo cognitiva e

física (2007:15). Porém, mesmo elogiando o que ele considera como a ferramenta mais

sofisticada da Antropologia Teatral, ele não se furta a retomar sua crítica:

O estabelecimento tão objetivo de uma partitura obriga a pensar na existência de uma sub-partitura, já devidamente diferenciada do pré-expressivo. A sub-partitura não tem nada de impreciso ou universal como esse último, ela é a base diacrônica que acompanha e sustenta a dramaturgia do ator e sobre a qual ele se apóia para fazer emergir sua partitura (2007:15).

Entretanto nos perguntamos por que Pavis entende que Barba deva substituir a

articulação entre pré-expressividade e expressividade, pela de sub-partitura e partitura, se,

apesar de se complementarem, as noções se referem a aspectos diferentes de um mesmo

campo de trabalho – o do ator. Assim, quando o crítico diz:

Para nós, essa (pré-expressividade) é uma noção bastante imprecisa de um ponto de vista teórico, que preferimos substituir por outras mais sólidas e concretas, da partitura e sub-partitura (2007:2),

talvez devesse apenas reivindicar maior clareza na noção de pré-expressividade, a mesma,

quem sabe, que ele percebe no tratamento do outro conceito. A idéia de pré-expressividade

tem eficácia diferente da de sub-partitura. A primeira está inscrita em um campo mais

abrangente, ligado mais genericamente à preparação do ator, ao treinamento de sua segunda

natureza ou corpo fictício. A segunda, sub-partitura, se refere a uma instrumentação

individual e variável do ator (a cada espetáculo ele poderá contar com partituras e sub-

partituras diferentes), que funciona na sustentação da ação em cena.

Em nosso processo de criação do espetáculo as noções de partitura e sub-partitura

foram, de fato, altamente eficazes. Após experimentações soltas, fomentadas por diálogos

com as matrizes taoístas, chegávamos a células expressivas que, depois, se desdobravam em

partituras, no processo de sua re-contextualização na cena. O conjunto dessas partituras

constituiu a dramaturgia de ator do espetáculo, a qual engloba uma série de seqüências de

ações responsáveis por grande parte do sentido da obra. Apesar de a pesquisa expressiva ter

partido do universo taoísta, a peça não aborda esse tema em momento algum. As partituras

110

Page 111: Por uma TAO expressividade

tampouco remetem a idéias e imagens ligadas ao tao, uma vez que sofreram re-alocação de

significado na posta em cena. As sub-partituras, por outro lado, estão recheadas desse

imaginário taoísta, constantemente acionado para que possamos re-instalar as formas e

qualidades do movimento, evitando cair em uma literalidade que o processo de re-

contextualização poderia trazer, com o tempo, ao distanciar-nos das matrizes.

Um outro ponto de contato entre nossa pesquisa e a de Barba é lida com aspectos sutis,

chamemos estes de energia ou de chi. Termo também criticado em Pavis (2007:2), energia

tem em Braba a acepção de uma “temperatura-intensidade pessoal que o ator pode individuar,

despertar e modelar” (1995:94). Os treinos com chi, usados em nossa preparação, funcionam

como acionadores e re-organizadores de nosso chi, visando o re-equilíbrio corporal constante,

objetivo original do chi kung. Mas também foram aplicados com função expressiva,

intensificando pontos e partes do corpo, ou buscando qualidades energéticas específicas (mais

yin, mais yang, captação da força do sol ou da terra, etc.).

Após revisar diferentes idéias, de diferentes tradições teatrais ou espetaculares, às

quais relaciona a noção de energia, Barba por fim busca uma acepção-síntese. Para ele, em

que pese ser um conceito facilmente associável a manifestações impetuosas e externas como

gritos e excessos musculares ou emotivos, energia se refere também “a algo íntimo, algo que

pulsa na imobilidade e silêncio, uma força retida que flui no tempo sem se dispersar no

espaço” (1995:81). A perspectiva da retenção nos lembra a noção de sutileza, ligada ao tao e a

noção de chi. Na cena, entendemos que essa sutileza se faz na preservação das zonas de

sombra, é preciso reter algo de chi que passa a operar como motor da ação, e não implicar

toda a carga energética corporal no movimento.

Barba associa esse tema à outra noção basilar a seu acervo técnico, o de corpo-mente.

Barba revê as separações usuais das instâncias do ser, com expressões como “exercícios

físicos são sempre exercícios espirituais” (1994:128), ou “o pensamento tem um aspecto

físico” (in Pavis, 2007:11), ou “corpo decidido” (1995:18). Pavis vai então reivindicar, a

partir da abordagem barbiana que:

a busca do sentido deve se efetuar, para o ator como para o espectador, do ponto de vista de um corpo-mente, de uma entidade inseparável, e não, examinando como uma emoção se expressa externamente numa forma ou, inversamente, como uma forma exterior, impressa ao corpo, produz emoção. A formação do ator e sua intervenção cênica consistem em ultrapassar o dualismo para realizar a experiência da unidade entre as dimensões interior e exterior. [...] O

111

Page 112: Por uma TAO expressividade

corpo-mente convida a fazer, justamente, o caminho entre interioridade e exterioridade em ambas as direções, sem privilegiar uma delas (2007:11).

Aqui vale anteciparmos a idéia que traremos no próximo capítulo, para pensar a noção

de expressividade. Cientes de que a colocação de Pavis mostra pertinência, optamos por tratar

essa noção imbricando processos contínuos e complementares de expressividade e do que

chamamos impressividade. Como veremos, tais processos funcionam inseparavelmente, qual

num Anel de Moebius, onde não sabemos sequer quando um lado acaba e o outro começa.

Finalizando nosso diálogo com Barba retomamos Pavis, que após toda sua minuciosa

crítica à canoa de papel barbiana, termina seu ensaio em tom reconciliatório:

Mas, no fundo, que importância tem essa deficiência, já que toda essa “base teórica” (p.08) é feita para estimular os artistas e que sua metalinguagem, misturando cientificidade (duvidosa) e poesia (sublime), é concebida mais para agir sobre sua prática que para descrevê-la. Daí a eficiência e originalidade de suas palavras-instrumento: o sats, a energia, a eficácia pré-expressiva, a ação disciplinada por uma partitura, instrumentos eficazes tanto para sua base teórica como para o debate atual a cerca do interculturalismo (2007:17).

Assim entendemos que o acervo conceitual-prático de Barba funciona mesmo por meio de

compreensões tácitas, ou até corporais, por parte dos artistas, mas principalmente: funciona,

demonstra eficácia.

A esse proposto convém trazer mais uma vez a sabedoria chinesa para balizar nosso

entendimento. François Jullien distingue a eficácia derivada da filosofia grega - onde formas

ideais e modelos abstratos apriorísticos se projetariam sobre o mundo, e onde a vontade teria

como meta realizá-los – e outra idéia de eficácia advinda da China – “a que ensina deixar

advir o efeito: não visá-lo [...], mas implicá-lo [...], não buscá-lo, mas recolhê-lo” (1998:9). A

primeira perspectiva descrita é a mesma que privilegia a teoria em relação à prática, em

abordagens que primeiro determinam em um plano teórico o que a prática, àquele submetida,

deve executar (1998:15). A segunda, não inverte os papéis, simplesmente desconsidera a

relação teoria-prática, enquanto questão, talvez por sequer conceber uma desarticulação entre

ambas. O pensamento chinês

desconhece-a [a relação teoria-prática], mas não por ignorância, ou porque ele teria permanecido na infância; ele simplesmente passou ao lado. Como passou ao lado da idéia do Ser ou do pensamento de Deus (1998:29).

112

Page 113: Por uma TAO expressividade

Assim, teremos, na China, uma noção de eficácia ligada ao efecto, dimensão operatória do

efeito, o efeito em curso, efetivo, já que o termo efeito, simplesmente, pode soar como uma

perspectiva causal, explicativa e demonstrativa (1998:147). Citando Jullien, sobre o efecto:

Sua questão é antes como o real advém: como ele “funciona” [...] e se torna “viável” (ao ser regulado: o tao). Pois, não cessando de se entre-afetar [...], a realidade não cessa de tornar-se efetiva: estando sempre a se desdobrar, e justamente por ser coerente e regulada, realidade nunca acaba de advir e não pode se esgotar. Um pensamento da processualidade, poder-se-ia dizer [...] Diferentemente do efeito (visando agir numa relação meios-fim), o efecto não deve ser “buscado”, de forma direta e voluntária; ele é chamado a decorrer “naturalmente” do processo encetado (1998:148).

Parece-nos que o ideário barbiano teve sua construção mais pautada nessas noções

chinesas de eficácia e efecto – mesmo que ele ignore isso – do que naquela ocidental. É claro

que a construção metafísica de pensamento, com mais de dois mil anos, deixa suas marcas por

vezes insuperáveis, mesmo quando tentamos driblá-la. Claro também que essa mesma

construção não está aqui sendo colocada em cheque em sua totalidade, aliás, seríamos

absolutamente incompetentes – até por que ignorantes dessa totalidade – para fazê-lo de

forma minimamente responsável. Nossa disposição – e não pretensão – é de questionar alguns

pontos dessa construção filosófica dominante, propondo aqui e ali algumas abordagens que

operem por outras vias, fomentando outras formas de percepção, partindo de princípios

diferenciados. Por fim, em que pesem as ressalvas de Pavis feitas à Barba, assim como várias

críticas pós-colonialistas que entendem seu projeto como colonizador e universalista, nos

apoiaremos em alguns aspectos pragmáticos – eficazes – de seu estudo, conscientes da

deficiência de seu discurso.

113

Page 114: Por uma TAO expressividade

CAPÍTULO 3

CORPO: MAPA E CARTÓGRAFO

Quando penso no que já vivi me parece que fui deixando meus corpos pelo caminho (Lispector, 1998:67).

Nas linguagens cênicas, que envolvem atuação ao vivo, o corpo tanto é o objeto

quanto sujeito da obra32. Pela própria natureza dessas linguagens, e de forma cada vez mais

intensificada, o corpo confunde-se com o projeto artístico. A intensificação desse viés se deve

especialmente à apropriação crescente de princípios da arte da performance e das vanguardas

artísticas do século XX, por parte da cena contemporânea, e à revisão da noção de corpo por

parte da ciência e da filosofia. Além disso, uma montagem teatral ou de dança, diferente de

uma pintura, escultura ou vídeo, por exemplo, não terão jamais autonomia em relação a seus

a(u)tores. Por tudo isso cumpre que tratemos deste corpo.

32 Conferir MEDEIROS, Maria Beatriz. L'Artiste Plasticen, Suject et Object de L'Art. Vol. I Tese de Doutorado. Universidade de Paris I, Sorbonne, Paris, 1989.

114

Page 115: Por uma TAO expressividade

3.1 Do dilema ao diálogo

É mais que sabido que a filosofia ocidental, fortemente marcada pelo platonismo, pela

tradição judaico-cristã e pelo cartesianismo, legou-nos uma idéia dicotômica do ser humano 33:

constituído por um organismo físico, foco de prazeres e/ou mazelas, e por uma organização

não física (ou metafísica), responsável pelas faculdades tidas como mais nobres pela maior

parte das abordagens filosóficas: a razão, a linguagem, a transcendência. Esta última instância

foi chamada de mente, espírito, consciência. A primeira instância foi usualmente tratada por

corpo.

A problemática desta questão reside, principalmente, no fato de que, em geral, as

dicotomias sofrem abordagens que atribuem maior valor a um de seus pólos em detrimento do

outro. Assim, durante toda história filosófica ocidental, é possível apontar representantes em

ambos os pólos deste, que poderia ser resumido basicamente como um debate entre idealismo

(ou espiritualismo) e materialismo. O corpo é visto, ao longo da tradição ocidental, ora como

possibilidade de satisfação e realização, ora como empecilho à evolução do espírito e da

mente. Nízia Villaça e Fred Góes comentam que “toda visão filosófica oscilaria, assim, entre

uma denúncia do corpo como obstáculo, prisão e lugar de alienação e a sua exaltação como

espaço de prazer, como meio de liberação individual e coletiva” (1998:23).

No entanto, é possível notar um predomínio evidente de visões idealistas ou

espiritualistas, ou no mínimo perceber que estas sempre ocuparam um espaço mais legitimado

pelo senso comum no Ocidente. Há, como sabemos, um evidente privilégio da esfera mental e

psíquica do ser em detrimento de sua esfera física, carnal, dita corpórea. Isso porque, na visão

de mundo ocidental predominante, o corpo palpável seria o que nos remete (nos relembra) à

nossa condição animalesca, vulnerável e mortal, abrigo de instintos, refém de desejos e

medos, instância a ser vencida, superada, sublimada. A mente, por outro lado, entendida como

a nossa capacidade de gerar, apreender e transmitir conhecimentos seria o que nos aproxima

do divino, do criador, da imortalidade/vida eterna, apontando no sentido que a humanidade

tem almejado seguir, por significar-lhe, neste ponto de vista, uma evolução.

Não nos estenderemos na questão do feminino, por não ser este o objeto do presente

estudo, no entanto, não podemos ignorar por completo esta questão. Então diremos muito

resumidamente que a discriminação que a mulher tem sofrido ao longo dos séculos se 33 Especialmente no século XX, começa a haver investidas mais constantes da ciência, da filosofia e da arte no sentido de desconstruir essas dicotomias.

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Page 116: Por uma TAO expressividade

relaciona, entre diversas outras razões, a esse predomínio da visão idealista ou espiritualista

sobre a visão materialista. As mulheres abrigam diferentes processos de fortes indícios

selvagens, todos ligados à possibilidade de geração, reprodução. Menstruação, gravidez,

parto, aleitamento, são signos muito fortes de referência à nossa condição animal. O

raciocínio, de modo simplificado, seria: se os processos corporais femininos possuem mais

indicativos de animalidade do que os masculinos, então as mulheres se aproximariam mais

daquela instância a ser vencida, superada, sublimada, e, consequentemente, se distanciariam

da instância inteligível, já que nos pensamentos dicotômicos estão inscritas hierarquias que

fortalecem um dos pólos dicotômicos no enfraquecimento do outro.

Faz-se importante, nesse ponto, indicar o julgamento hierárquico presente em ambas

posições deste debate. O valor de uma instância se fortalece na desvalorização da outra. Esse

movimento é possibilitado e incentivado por visões duais excludentes do ser e do mundo

(sensível/inteligível, natureza/cultura, aparência/essência, diabo/deus, inferno/céu), noção que

vem sendo debatida e revista por alguns filósofos no século XX, e desestruturada pelos novos

rumos da ciência.

Na tradição taoísta o dual não significa dualista, ou antagônico. Como observamos nas

dinâmicas entre yin e yang, as paridades são impregnadas de movimento e interação. A

instância a ser alcançada ou recuada vai estar de acordo com uma determinada circunstância.

Para a medicina chinesa, fortemente influenciada pelo ideário taoísta, por exemplo, se uma

pessoa ou um órgão do corpo está muito yin procura-se estimular a diminuição desse aspecto,

se seu lado yang está frágil, age-se no fortalecimento deste. Não se trata nunca de uma

equação estática e absoluta, mas relativa às necessidades de um dado contexto.

A ciência e o pensamento contemporâneo problematizam fortemente a questão da

dicotomia. Desse esforço emerge uma nova forma de conceber o corpo. Em lugar de um

corpo-abrigo, corpo-invólucro, corpo-continente, esboça-se a idéia de um corpo-forças, corpo-

subjetividade, corpo simultaneamente mapa e cartógrafo. No filósofo Georges Didi-

Huberman percebemos um processo de questionamento das idéias dicotômicas. O autor

afirma que:

Os pensamentos do dilema são [...] incapazes de perceber seja o que for [...]. Não há que se escolher entre o que vemos [...] e o que nos olha. Há apenas que se inquietar com o entre [...] tentar dialetizar [...] voltar ao ponto de inversão e de convertibilidade, ao motor dialético de todas as oposições (1998: 77).

116

Page 117: Por uma TAO expressividade

Didi-Huberman se refere aqui a uma questão específica, ligada às artes visuais, mas

seu comentário nos serve de alerta em relação à redução de possibilidades de compreensão e

leitura a que nos levam pensamentos binários, quando orientados por princípios que

promovem o elogio de um pólo e o rechaço do outro. Enquanto o foco de preocupação estiver

sendo escolher entre um dos pólos de um dilema, perde-se a oportunidade de se questionar

sobre a própria validade da idéia do dual enquanto dilema. É o que Didi-Huberman reafirma

ao defender que, em qualquer domínio a verdadeira questão consistiria, não em optar por uma

posição de um dilema, mas em se construir uma posição capaz de ultrapassá-lo (1998:154).

Gaston Bachelard também se debruçou sobre as questões duais imbuído de uma

perspectiva inclusiva. A princípio identificava mais a ambivalência com a atividade artística,

na qual esse movimento encontraria maior legitimidade. No ensaio O instante poético e

metafísico ele sugere que “para o arroubo, para o êxtase, é preciso que as antíteses se

contraiam em ambivalência. Surge então o instante poético” (1986:184). Em seu texto “A

raíz” comenta: como “ativaríamos a imaginação se buscássemos sistematicamente os objetos

que se contradizem” (1990:224), e refere-se a palavras (imagens) indutoras, que pelo corpo de

seu texto parecem concentrar um potencial de ambigüidade e contradição, funcionando,

assim, como chaves de acesso ao inconsciente, acionando uma proliferação de imagens.

Seriam idéias virtualizadoras, capazes de abrir campos de devires, de multiplicarem-se,

desdobrarem-se em muitas outras imagens, lembranças, arquétipos, desejos, provocando

assim o devaneio, e abrindo, com ele, espaço para o processo criativo. Bachelard se ressentiu

pela maneira ocidental de construção do pensamento científico e filosófico, e expressa isso

em várias passagens. No ensaio Fragmentos do diário de um homem, desabafa: “ah, se o

filósofo tivesse o direito de meditar, com todo o seu ser, com seus músculos e seu desejo,

como se livraria dessas meditações fingidas onde a lógica esteriliza a meditação” (1986:192).

E, na vontade de fugir às lógicas reducionistas, à construção puramente racional e inequívoca

vigente, chega a propor que no reino do pensamento, a imprudência seja um método

(1986:ix), almejando a liberdade do devaneio também na construção filosófica e científica.

Ora, imbricação entre teoria e práxis, e idéia e conduta, a noção de um pensamento que

engendre eficácia no campo do concreto, e não como pura abstração, o fantasioso em co-

evolução com o filosófico, o mítico alimentando a ciência. Todos esses princípios fomentados

pela tradição taoísta mostram-se como uma alternativa a essa postura, de ascendência grega,

cristã e cartesiana, do ser que medita, ou pensa, dissociado de seu corpo, de sua prática, de sua

vida cotidiana.

117

Page 118: Por uma TAO expressividade

Outro pensador no empenho de superação do pensamento dicotômico, Guattari lembra

que, diferente das dicotomias judaico-cristãs, e das dialéticas hegelianas e marxistas, o que ele

propõe e designa como eco-lógica, lógica da ambivalência desejante, não se presta a resolver

contrários. Mas a garantir o espaço das e para as diferenças, espaço para a liberação e

legitimação das antinomias, tanto na ecologia social, quanto na mental (1990:42). Também

vemos aqui perspectivas aparentadas às taoístas: suportar a ambivalência, a diferença, o

paradoxo. Como vimos, a disposição de pensar categorias duais não enquanto dicotomias -

verdades excludentes - mas como ambivalências ou paradoxos, já fazia parte da cultura

chinesa há cerca de três milênios, expressa na dinâmica de interação entre os dois princípios

taoístas que regem boa parte dos modos de conhecimento chinês: yin e yang.

O processo dicotômico está preso a um ou excludente - que entende a negação de um

pólo como condição para a evidência do outro, e pautado em um é, acentuado e absoluto - que

encara os pólos de forma estanque e não aceita a dinâmica das relações entre estes. A

mudança paradigmática na epistemologia contemporânea mostra-se através de um esforço por

um e que agrega, inclui. Trata-se de perceber, inclusive nas relações duais, instâncias que

existam em conjunto, complementares e inextricáveis, como para-instâncias. Lembrando

Jean Baudrillard, que entende que na sedução pode morar a possibilidade dos duplos

ultrapassarem os problemas das dicotomias, baseando-se na sedução, ao invés da exclusão:

Suponhamos que todas as grandes oposições distintivas que organizam nossa relação com o mundo sejam atravessadas pela sedução, em vez de ser fundadas na oposição e na distinção. Que não apenas o feminino seduza o masculino, mas que a ausência seduza a presença, que o frio seduza o calor, que o sujeito seduza o objeto, ou ao contrário, claro, pois a sedução supõe esse mínimo de reversibilidade que acaba com toda oposição ordenada (Baudrillard, 1991:119) .

Entretanto, muitas vezes observa-se uma condenação prévia de idéias baseadas em

composições duplas, como se residisse no fato destas operarem como par o processo

dicotômico. Reafirmamos que a característica dual – ou pareada - não configura

necessariamente um dualismo, ou uma dicotomia. Mesmo Deleuze e Guattari, por exemplo,

que propõem a multiplicidade como modelo alternativo, recorrem a modelos pareados como

rizoma e raiz, memória curta e longa, micro e macro-política, mapa e decalque, para apenas

citar algumas. O que parece demonstrar que a crítica dos autores também seria lançada à

dicotomia em si, e não ao uso de registros duais como parâmetros para conceitos. E essa é

uma das coisas a ser aprendida com os princípios yin yang da cultura chinesa: as partes desses

118

Page 119: Por uma TAO expressividade

pares não necessariamente se organizam de maneira dicotômica, mas em trânsito e

agenciamentos, como na perspectiva do Anel de Moebius.

Um questionamento crítico sobre o discurso de Deleuze e Guattari vem de Elizabeth

Grosz (1994), que acusa os autores de se apropriarem de um imaginário metafórico feminino

para darem conta de suas proposições conceituais. Na visão da autora esta apropriação tem

desdobramentos perigosos. Um deles é o reforço da associação entre a mulher (devir-mulher)

e o instintivo e irracional (devir-animal), entre a mulher e a loucura (esquizo), entre a mulher

e o descontrole (rizoma), entre a mulher e a instabilidade (multiplicidade, agenciamentos,

linhas de fuga), etc.. Outra preocupação da crítica é de que essa apropriação masculina de um

ideário feminino neutralize o próprio discurso e a luta feminista, além de possivelmente

mascarar especificidades e perspectivas masculinas nesse processo de apropriação. Haveria

assim uma despolitização dos discursos de gênero. Para a autora, até que se torne claro o que

esse devir-mulher significa, não só para os homens, mas principalmente para as próprias

mulheres, o trabalho dos autores permaneceria obscuro, especialmente para o feminismo.

Sem o intuito de invalidar os importantes questionamentos que a autora traz,

poderíamos, entretanto, problematizá-los em alguns aspectos. Se por um lado a apropriação

desse acervo arquetípico ligado ao feminino pode ser encarado como neutralizador, ele pode

também ser pensado como um reforço ao projeto feminista, ou, se não tanto, ao menos pode

ser visto como parte do esforço por um reposicionamento – positivo - de valores

historicamente ligados ao lugar da mulher no mundo. Esse elogio ao feminino reafirma de

fato, em Deleuze e Guattari, algumas associações historicamente problemáticas, contudo,

também essas outras referências à que a mulher está sendo relacionada, experimentam um

outro status ou estatuto no mundo contemporâneo. Talvez Deleuze e Guattari queiram mesmo

desconstruir uma idéia de discurso de gênero, e instalar um espaço de discursos inter-gêneros,

ou transgêneros, ou trans-transgêneros, inclusive para além do que se refere às orientações

eróticas.

119

Page 120: Por uma TAO expressividade

Por outro lado, Grosz, critica menos o conceito em si - devir-mulher - do que o fato

deste não estar sendo criado por mulheres. De qualquer modo, em que pese tanto a crítica de

Grosz, quanto de outros tantas pensadores sobre alguns aspectos dos discursos de Deleuze e

Guattari, encontramos ainda muita eficácia em várias das metáforas e noções usadas pelos

autores. Assim, atenta a eventuais problemas na lida com as construções trazidas por eles, me

parece bastante proveitoso fazer uso destas.

Nossa perspectiva é critica e inclusiva, e deslindou um processo criativo baseado em

textos ligados ao imaginário feminino (vide cap.6), e a partir da releitura destes em meu

próprio corpo-mulher. Esta abordagem é uma afirmação do feminino, a partir do diálogo com

uma tradição que, apesar de em seus princípios filosóficos defender a integração e

reciprocidade não hierárquica de yin e yang, contraditoriamente desenvolveu-se – cultural,

social, econômica e politicamente - com vários indícios de negação ou mutilação do feminino.

É o caso, como comentado na introdução, da questão da recente onda de abortos em massa de

ex-futuras meninas, e das históricas deformações nos pés de mulheres chinesas até pouco

tempo. Pode parecer apressado, mas é impossível conter o ímpeto de fazer uma leitura

simbólica deste gesto: mulheres cujos pés foram aleijados não são senhoras de sua própria

base, têm a estrutura fragilizada, apresentam pouquíssima mobilidade, e, não raro, podem se

tornar fortemente dependentes de alguém que as ampare e as conduza.

Por outro lado, o atual boom de cirurgias plásticas entre mulheres chinesas – e de

outras origens orientais – apresenta outra face de escravidão desse feminino: a ânsia pela

alteração das feições e características étnicas. Cirurgias nos olhos, narizes, nas pernas (quebra

de ossos e enxertos para ficarem mais altas), entre outras transformações, são buscadas por

mulheres chinesas visando parecerem cada vez mais com o padrão ocidental. Há aí algo além

das questões relativas à busca frenética de um corpo perfeito, o corpo da revista ou da TV.

Essas questões são globalizadas, não se trata de um privilégio das mulheres de feições

orientais. Mas além de aspectos como a recusa do envelhecimento, a busca da aparência

sedutora, a dificuldade da mulher se afirmar por outras vias, e uma série de outras

implicações, há aí uma negação adicional: a de sua identidade racial.

No espetáculo Traços - desenvolvido nesta pesquisa (vide cap.6) - aspectos

relacionados ao imaginário e realidade femininos sob dominação são destacados. Nas cenas

iniciais há uma seqüência onde a personagem faz ginástica compulsivamente, se mede

obcecada pelos números denunciados na fita métrica (que poderiam ser os da balança,

120

Page 121: Por uma TAO expressividade

também) e passa a enumerar alimentos de um regime rigoroso – verduras e frutas. Por fim ela

se oferece à audiência com o texto “olha que xuxu, olha que xuxu...”, como uma “icônica

mulher-fruta, ‘típica’ de tantas versões de naturalização de nossos femininos nacionais”, como

observou o professor Fernando Passos, em comentário sobre o espetáculo que me foi enviado

por e-mail (vide anexo B.6, que traz comentários do público).

3.2 Por um novo estatuto do corpo

Maurice Merleau-Ponty, refletindo sobre a noção de corpo, do ponto de vista

fenomenológico, afirma que a “animação do corpo não é a junção, uma contra a outra, de suas

partes - nem, aliás, a descida no autômato, de um espírito vindo de outro lugar, o que ainda

suporia que o corpo é sem interior e sem ‘si’” (1978:279). O autor sugere ainda que a alma

pensaria segundo o corpo, e que este seria para a alma o seu espaço natal e a matriz de

qualquer outro espaço existente. E complementa que deveríamos então conceber o

pensamento como corporal (1978:289). As palavras de Merleau-Ponty também nos levam a

perceber o corpo de forma diferenciada da usual, não como uma massa de carne animável ou

dirigível por uma alma e um pensamento, mas como um todo humano, pleno de subjetividade,

definidor de seu pensamento e de sua alma, que congrega todas as instâncias que nele operam.

Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem, como vimos, uma lógica rizomática.

Segundo os autores um rizoma não começaria nem acabaria, mas se encontraria sempre no

meio, entre as coisas, inter-ser (1995:37). A expressão “fazer rizoma” pode, ainda, ser

entendida como a feitura de uma trama de agenciamentos e conexões entre vetores

imprevisíveis e linhas de fuga, que vão criando um mapa, uma teia de

pensamento/entendimento não linear. A noção põe em cheque estruturas causais e retilíneas,

baseadas, entre outras coisas, em visões dualistas e polarizantes, na medida em que privilegia

o inter-ser, o percurso e não os pontos extremos e fixos de chegada ou saída, que seriam as

polarizações. Lembremos que a imbricação yin yang se dá na mobilidade do par, nas várias

configurações de percurso entre os pólos – o que promove multiplicidade, e na possibilidade

de inter-transformação destes pólos. Ainda a partir da metáfora do rizoma, Deleuze e Guattari

apresentam a idéia de multiplicidade (1995). Um determinado plano de imanência, o ser, por

exemplo, manifestaria uma predisposição inata de mudar, se desterritorializar, de estar

continuamente em negociações, de assumir e descartar orientações múltiplas, advindas das

121

Page 122: Por uma TAO expressividade

múltiplas possibilidades que a experiência de estar/ser vivo nos oferece. É a transição de uma

idéia de sujeito enquanto indivíduo, para a de uma subjetividade em movimento.

François Jullien, re-visita o adágio confucionista que diz que o sábio não tem eu, para

daí derivar que o sábio não tem idéia. O que o autor quer dizer é que o sábio nem privilegia

nem exclui idéias, simplesmente não se fixa em nenhuma delas, buscando abordar o mundo

sem visão preconcebida (2000:21). Por sua relação aberta, ele esposaria toda a diferença, e se

adaptaria a cada caso (2000:22). Como o real, a conduta do sábio também sofreria uma

transformação contínua, sob pena de, não o fazendo, esclerosar (2000:22). Isso nos remete à

distinção entre identidade (fixa) e identificação (mutável, ajustável). Se há uma noção de mal

para o sábio, esta estaria ligada a essa identidade, à estratificação das idéias. Em última

instância, também aqui o sujeito, assim como Deus, está morto. O sábio não tem idéia, por

que não tem eu (2000:23).

Deleuze e Guattari se apropriam e redimensionam a noção artaudiana de “Corpo sem

Órgãos”34 (CsO) – insubordinado à fragmentação e redução científicas em sistemas, aparelhos

e órgãos (Artaud,1993). Os autores percebem este corpo sem órgãos não como “um corpo

vazio e desprovido de órgãos, mas um corpo sobre o qual o que serve de órgãos (...) se

distribui segundo movimentos de multidões, (...) sob a forma de multiplicidades moleculares”

(1995:43). Os autores vêem o corpo para além de sua concretude e palpabilidade, e propõem a

idéia de corpo enquanto zona de intensidades, afetos, dilatando a idéia de corporalidade, antes

restrita ao aparato bio e fisiológico. Deleuze e Guattari trazem, com Artaud, o brado desse

corpo:

O CsO grita: fizeram-me um organismo! Dobraram-me indevidamente! Roubaram meu corpo! O juízo de Deus arranca-o de sua imanência, e lhe constrói um organismo, uma significação, um sujeito. É ele o estratificado. Assim, ele oscila entre dois pólos: de um lado, as superfícies de estratificação sobre as quais ele é rebaixado e submetido ao juízo, e, por outro lado, o plano de consistência no qual ele se desenrola e se abre à experimentação (1996:21-22).

Nízia Villaça e Fred Góes também comentam a respeito desse conceito corporal,

ligado a um novo paradigma estético onde o corpo surgiria como carne e imagem, matéria e

34 Artaud bradou em sua transmissão radiofônica Para Acabar com o Julgamento de Deus, “Nada de boca, de língua, de dentes, de laringe, de esôfago, de estômago, de ventre, de anus. Eu reconstruirei o homem que sou.” O inconformismo de Artaud, ao ver o ser subjugado a um determinismo fisiológico, como o aqui descrito sistema digestivo, e ao perceber o autismo humano decorrente disso, o leva a clamar e conclamar as pessoas à reconstrução da idéia de homem. Segundo Deleuze e Guattari teria sido “uma experimentação não somente radiofônica, mas biológica, política, atraindo sobre si censura e repressão. Corpus e Socius, política e experimentação” (1996:10).

122

Page 123: Por uma TAO expressividade

espírito simultaneamente (1998:29), e comentam ainda, a partir de Deleuze e Guattari, sobre o

deslocamento da noção de corpo-indivíduo (corpo morada do eu) para corpo-subjetividade:

o importante [...] é a possibilidade da reconfiguração do estatuto do corpo enquanto singularidade como fluxo e multiplicidade e, portanto, desvinculado da unidade do ‘eu’. A singularidade se dá justamente, no lugar da heteronímia e do devir-outro e é [...] na dissolução do ‘eu’ e de suas figuras (psicológicas, sociais, morais, filosóficas) que ela se constitui (Villaça; Góes, 1998: 52).

A polaridade corpo-mente é apenas uma das faces do fundamento dicotômico que

regeu o pensamento ocidental até então, um paradigma vertical, hierarquizante, excludente,

homogeneizante, que se apresentou sob vários formatos bem conhecidos: cultura e natureza,

bem e mal, ideal e sensível, razão e emoção. A orientação paradigmática horizontalizante, ou

multidimensionalizante, que ora se manifesta, bem metaforizada na noção de rizoma, surge

como um grito de basta desse corpo subjugado, reivindicando a própria legitimação. E é fato

que começa a haver uma maior abertura para com a problematização destas questões,

traduzida na re-significação e revalorização do corpo em diferentes contextos, que se

desdobra, por exemplo, em maior tolerância para com a diferença e para com o paradoxo.

Desdobra-se também em aceitação, e uma espécie de reverência (não solene) ou

aceitação, pela complexidade que rege a vida, visível pelo deslocamento da postura

excessivamente explicativa, racionalista, rumo a outras possibilidades de conduta, que

inclusive interajam e freqüentem as zonas de sombra, sem o esforço por desvendá-las. De

novo, na perspectiva do sábio, trazida por Jullien, temos pistas dessa conduta. O autor diz que

“o que a filosofia trata como enigma (ou mais religiosamente como mistério [...]), a sabedoria

trata como ‘evidência’” (2000:57). E mais adiante vai completar:

Essa evidência é a da imanência. Como ela se expõe em toda parte e a todo momento, como ela é ao mesmo tempo mais comum e mais ordinária, já que tudo, no mundo, não passa de processo, que tudo, e nós em primeiro, está sempre “atravessado” por ela, a imanência não tem lugar próprio, não é “localizável”, nem tampouco isolável, portanto ela não é identificável – sua “sutileza” nos escapa; e como o menor processo a encarna, mas nenhum a esgota, já que o mundo não acaba de proceder dela, a imanência é sempre mais do que o que dela se atualiza: ela é um fundo (patrimônio) sem fundo (plano) “que podemos sondar”. Mas esse insondável [...] não é o da filosofia. Porque, enquanto esta [...] busca o oculto dos princípios (ou do número, ou do em-si, um oculto transcendental, em suma), a sabedoria desconfia de tal “profundidade” [...] o mais difícil de ver – ou o mais difícil de dizer – é da ordem do próximo, do raso, do cotidiano (2000:65, 66).

Jullien faz a contraposição de certa forma dicotômica entre filosofia e sabedoria (por extensão

entre ocidente e oriente), sem se dar conta, talvez, que ele próprio, na construção de discursos

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Page 124: Por uma TAO expressividade

como este acima, já está operando na fronteira entre essas definições. No meio, no vazio deste

Anel de Moebius:

Para Deleuze e Guattari, onde a psicanálise diria: “pare, reencontre o seu eu, seria

preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda

suficientemente nosso eu” (1996:11). Segundo os autores seria preciso substituir a

interpretação pela experimentação. Como na perspectiva taoísta, não há perspectiva de

fixação em uma idéia ou um eu imutável. A conduta, a vivência, a práxis, assumem novo

lugar no processo cognitivo. O entendimento se dá no corpo, via experiência.

Ao discorrer sobre o corpo sem órgãos, que não seria necessariamente bom, em si, os

autores trazem a prática sexual tântrica como exemplo de como criar um CsO. Note-se como

mencionam noções taoístas:

Não se trata de sentir o desejo como falta interior, nem de retardar o prazer para produzir um tipo de mais-valia exteriorizável, mas, ao contrário, de constituir um corpo sem órgãos intensivo, Tao, um campo de imanência onde nada falta ao desejo e que, assim, não mais se relaciona com critério algum exterior ou transcendente. É verdade que todo circuito pode ser rebaixado para fins de procriação (ejacular no bom momento das energias); e é assim que o confucionismo o entende. Mas isto é verdade apenas para uma face deste agenciamento de desejo, a face voltada em direção aos estratos, organismos, Estado, família... Não é verdade para a outra face, a face Tao de desestratificação que traça um plano de consistência próprio ao desejo ele mesmo (1996: 18-19).

Entretanto, os autores deixam no ar uma incômoda questão ao fim do texto:

Por isto o problema material de uma esquizoanálise é o de saber se nós possuímos os meios de realizar a seleção, de separar o CsO de seus duplos: corpos vítreos vazios, corpos cancerosos, totalitários e fascistas (1996:29).

Mas será o caso de separar o CsO de seus duplos? Se o sentido de “duplo” em Artaud - assim

como no Anel de Moebius e na dinâmica yin yang - opera justamente por projeções,

reconversões e retro-alimentação? Tal procedimento é que parece totalitário e fascista.

Selecionar, categorizar, rechaçar, reprimir ou sublimar os duplos “maléficos” visando um

CsO “puro” ou “bom” não parece ser proposição condizente à perspectiva fluídica e inclusiva

do entre, trazida, entre outros, pelos próprios Deleuze e Guattari. Ou do viés de uma ecologia

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Page 125: Por uma TAO expressividade

do fantasma, defendida por Guattari como uma ação poética justamente sobre as questões

subjetivas negadas, os “excluídos psíquicos” (Guattari, 1990: 42). A esta, preferimos a

pergunta anterior dos mesmos autores, a de “como criar para si um CsO sem que seja o CsO

canceroso de um fascista em nós, ou o CsO vazio de um drogado, de um paranóico ou de um

hipocondríaco?” (1996:26)

Sobre este aspecto, os treinos que lidam com o chi parecem sugerir caminhos para

essas políticas corporais, para remontar ao fluxo de intensidades pró-ativas, e dar-lhes vazão

em um espaço propício a isso. Mostram-se ainda como vias para perceber e regular essas

latências. Na seção 4.1 trataremos mais dessa questão.

Em que corpo chegamos, então? Em um corpo psicofísico. Corpo como lugar de

imanência e transcendência, onde imanência é transcendência. Corpo escritor e escritura,

corpo mapa e cartógrafo de memórias, afetos, sensações... Este corpo afeta e é afetado numa

relação co-evolutiva com seu meio, e nesse jogo experimenta certa autonomia de reinventar-

se. É com este corpo que muitas abordagens nas artes cênicas contemporâneas têm operado.

Um corpo que reivindica criação, que recusa cada vez mais a mera execução ou reprodução

de coreografias, marcas ou partituras preconcebidas. Um corpo criador e criatura, corpo

enquanto campo virtual e zona de atualizações.

3.3 Corpo vibrátil. Corpo sutil.

A partir desse esforço de re-significação do estatuto do corpo, enquanto princípio

fundante da subjetividade contemporânea, a criatividade passa a ser, nessa nova configuração

paradigmática, um valor que desperta com grande fôlego. E esse valor ressurge potente, com

o vigor de um atraso, de uma opressão milenar. Entretanto, esta que pode parecer uma espécie

de “tábua de salvação das subjetividades oprimidas”, torna-se também uma poderosa fonte de

alimento para o capitalismo mundial integrado, que a vampiriza, se alimentando dessa

disponibilidade, desse novo estado corporal, cooptando e neutralizando essa potência

emergente, direcionando-a com fins de mercado.

125

Page 126: Por uma TAO expressividade

Tratamos aqui do que Guattari designa como subjetividade capitalística (1990): uma

re-padronização destes corpos operada de maneira tão poderosa quanto sutil, o que torna

muito difícil a resistência ao processo. Paradoxalmente, e estrategicamente, essa

homegeneização se dá sob o disfarce da diferença: o capitalismo estimula nos corpos sua

recém reconquistada predisposição a criar, a entrar em devir, seu desejo latente de

desterritorialização. Porém o direciona - especialmente através da mídia e da publicidade -

promovendo a composição de uma massa amorfa que investe toda sua intensidade em

“comportamentos prèt-a-porter”, conforme aponta, na linha de Guattari, a psicanalista Suely

Rolnik (2003).

A mesma autora sugere que essa vulnerabilidade, esse calcanhar de Aquiles existe,

porque vigora, nos sujeitos contemporâneos, uma ruptura com seu corpo vibrátil. Rolnik

(2003) usa essa noção, referindo-se à nossa capacidade perceptiva de forças, talvez mais

ligada ao que usualmente se chama intuição. Para a psicanalista, os cinco sentidos seriam os

responsáveis por apreender o mundo das formas, pela nossa capacidade sensorial, enquanto

que, ao corpo vibrátil, caberia perceber o mundo das intensidades moleculares. Esse corpo

funcionaria como uma espécie de bússula, ou alarme, que desencadearia as crises, cruciais ao

processo de crescimento, à resistência ontológica, e à própria experiência vital. Ao utilizar o

termo resistência, Rolnik não está defendendo uma fixidez ou imutabilidade, mas se refere a

uma perspectiva de defesa do corpo em relação a ações que possam oprimi-los em sua

diferença, sua singularidade e suas demandas.

Esta ruptura com o corpo vibrátil desconectou os potenciais de criação e de resistência

(no sentido que vimos o termo), super-estimulando o primeiro e neutralizando o segundo,

tornando nossa criatividade um importante nutriente do capitalismo, esvaziada de seu fôlego

de transformação. Com o potencial de resistência - responsável pela preservação de um eros

psíquico, um instinto de preservação de vida que aciona alarmes, sintomas ou mesmo a

consciência do problema – neutralizado, o outro potencial - de criação - é então cafetinado

pelo capitalismo, ou seja, apropriado e usado enquanto usina de fabricação mercadológica

(2003).

Assim, se coloca, e com grande gravidade, a questão de saber como reconectar nos

sujeitos (aqui no sentido de subjetividades movediças e não de indivíduos) a criatividade à

força vital de resistência. Como tornar seus corpos vibráteis mais despertos e atuantes? A

tentativa de responder a essa questão poderia ajudar se misturar a respostas para uma outra

126

Page 127: Por uma TAO expressividade

questão persistente na arte: como devolver à estética seu potencial político, transformador,

mobilizador? Obviamente não se trata aqui de falar sobre política, ou fazer uma arte

panfletária ou partidária, que remete mais a abordagens didáticas e ideológicas do que

políticas, no sentido em que aqui se emprega o termo. Mas sim de exercer, com a arte, uma

política. Mas fiquemos no primeiro questionamento.

Como reconectar, então, nos sujeitos, a criatividade à força vital de resistência? Como

promover o desenvolvimento de uma face da inteligência humana, de natureza sensível e

intuitiva, um saber de outra ordem, que não racional, uma inteligência que concerne a

aspectos do que Rolnik chama de corpo vibrátil (2003). Algumas tradições orientais

preservam práticas com princípios similares a estes, fomentando esse saber. A tradição taoísta

é uma delas. Como vimos, várias práticas taoístas - como o tai chi, o chi kung, a acupuntura,

massagens como o tui ná, e o do-in, etc, operam fortemente com o conceito de energia (chi),

visando justo este reconectar-se energético do sujeito. O chi kung visa ao desenvolvimento de

uma auto-percepção energética, bem como da capacidade de captação de energias nas forças

da natureza e de objetos, e o treino da redistribuição ou reorganização energética no corpo de

acordo com os estados corporais em vigor.

A cultura chinesa não se refere ao corpo com um substantivo, remetendo a um

instrumento ou objeto. A noção de corpo aparece mais sob a forma de adjetivos ou da

descrição de estados, o que indica o reconhecimento do caráter movediço dessa idéia

(Greiner, 2005:22). Uma noção que também atravessa a sabedoria taoísta é a de “corpo sutil”,

que está ligada à cartografia energética identificada por eles nos pontos, portais, centros e

meridianos pelos quais circula nossa energia vital, o chi. As inter-relações sempre rizomáticas

entre esse mapa energético, os órgãos, as emoções, os sentidos, os arquétipos, e outros

aspectos relacionados, tudo isso configuraria esse corpo sutil, espaço onde se daria a alquimia

interior mencionada pelos taoístas. Lembremos ainda, com Bizerril, que esse corpo sutil não

se dissocia do corpo concreto. Ele lembra que “o taoísmo combina o cultivo do corpo físico e

do espírito” (2000:114). Assim, para os adeptos:

a realização do tao, ou sua busca, inclui necessariamente a dimensão corporal [...] A união entre teoria e prática se dá nas situações de treinamento, em que os princípios da cosmologia taoísta são atualizados nos corpos dos praticantes através de metáforas antropomórficas e da faculdade mimética. [...] O corpo taoísta – incluindo o visível e o invisível - não é um texto a ser lido e analisado, mas sim o território de uma experiência vivida (Bizerril, 2000: 157).

127

Page 128: Por uma TAO expressividade

Para se ter uma idéia da diferença na abordagem de corpo para os ocidentais e para os

orientais, basta recorrer às respectivas medicinas. O esquema corporal, utilizado pela

medicina chinesa é um mapa de linhas e pontos de energia não identificáveis concretamente.

É uma cartografia do invisível. Enquanto que a representação corporal ocidental se atém às

suas partes palpáveis: ossos, músculos, órgãos, sistemas, etc.

O saber manejar a energia, ou o treino desse saber, parece configurar então uma

importante estratégia de re-conexão entre o potencial criativo e o potencial de resistência –

como Rolnik usa o termo - nas subjetividades. Por isso mesmo é também um recurso técnico

propício ao trabalho de ator. Assim, percebemos que as buscas de Artaud, Barba, Grotowski,

e outros, por matrizes orientais, como alimento para seus projetos estéticos têm, entre outros

fatores, relação com esse aspecto.

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Page 129: Por uma TAO expressividade

CAPÍTULO 4

O CORPO EM EXERCÍCIO EXPRESSIVO

Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever. Esse é um modo de não haver defasagem entre o instante eu: ajo no âmago do próprio instante (Lispector, 1998:49).

4.1 Estratégias de Conduta

A idéia de corpo que orienta essa pesquisa é então a de um corpo enquanto escritor e

escritura, ou para driblarmos a marca logocêntrica impressa nas terminologias relativas ao

texto, corpo enquanto mapa e cartógrafo. É o corpo que afeta e é afetado numa implicação

total com o ambiente, as circunstâncias, e as histórias que o cercam, e que nessa interação,

promove incessantes heterogêneses. Esta é uma idéia de corpo em contínua re-singularização,

que não se coaduna à idéia centralizadora de sujeito como identidade fixa. Para Denise

Sant’Anna,

o contrário do corpo totalitário talvez seja todo corpo que, no lugar de manter-se como substância, mônada isolada e livre, existe como um elo entre corpos, floresce como uma dobra do tecido da vida; na finitude de sua existência este corpo ressoaria a infinita potência criadora do mundo (2001:100).

Essa dobra de que fala Sant’Anna, e que é metáfora conceitual usada por vários

pensadores, pode ser relacionada à torção no Anel de Moebius: o lugar processual – entre –

que conecta e dilui as dualidades, e que, fazendo os lados contaminarem-se mutuamente, de

129

Page 130: Por uma TAO expressividade

certa forma os reinventa a cada reconversão. Essa imagem traduz a fixidez de identidade

como algo incompatível ao fluxo da vida. Outro aspecto no Anel, é que seu interior é vazio,

ou seja, é a intensidade pura e sem forma, é o fluxo em si, a virtualidade. O tao.

Em Lévy, a virtualização é um deslocamento do ser para a questão, o que também

problematiza a idéia clássica de identidade, territorializada. O que a virtualização promove

incessantemente é a heterogênese, o devir outro, o processo de acolhimento da alteridade.

(1996:25). Segundo o autor, o processo provoca transformações identitárias, deslocando o

centro de gravidade ontológico do objeto considerado, fazendo com que, em vez de se definir

principalmente por sua atualidade, ou qualquer território pontual, a entidade encontre sua

consistência num corpo complexo, problemático (1996:18-19). Assim, no lugar da idéia de

identidade, de indivíduo, de caráter, surge:

um si, um si jamais definitivamente fechado mas sempre em desequilíbrio, em posição de abertura, de acolhimento, de mutação; um si cuja ponta fina é talvez a qualidade singular do processo de assimilação do outro e de heterogênese. Essa abertura começa na simples sensação, passa pela aprendizagem e o diálogo, culmina com o devir: quimerização ou transição para uma outra subjetividade (Lévy 1996:106).

Entendemos a colocação de Lévy, mas chamamos atenção ao problema da escolha de

terminologias para dar conta da questão. Ao termo desequilíbrio, marcado pejorativamente –

especialmente nos âmbitos psi – preferimos pensar em equilíbrios dinâmicos, ou instáveis,

que se caracterizam mais por serem outro tipo de equilíbrio, do que por serem contra, ou a

negação do equilíbrio (des).

Esse corpo passa a ser encarado, então, tanto por sua palpabilidade, quanto por seu

caráter complexo, rizomático, que articula agenciamentos entre questões e fatores contextuais

que componham seu plano de imanência. Um corpo que não se deixa capturar em formatos

engessados, que se lança em linhas de fuga tornando a imprevisibilidade um aspecto

constante. Esse corpo, de uma impermanência permanente, há de buscar um eixo não-eixo –

eixo móvel - onde se possa apoiar, há de criar para si uma política – corporal – que favoreça

certa regulação em fluxo. Para descobrir, como alertaram Deleuze e Guattari, como criar – e

130

Page 131: Por uma TAO expressividade

recriar constantemente - para si um CsO que não seja o de uma fascista, de um neurótico ou

de um assassino (1996:26).

Entendendo o corpo enquanto mapa e cartógrafo, temos uma instância, a um só tempo,

campo virtual e zona de atualizações. Considerando que: 1. O corpo é virtual, e o virtual é

uma zona de devires. 2. Wu wei é estar em devir. 3. A re-visitação às práticas e ao imaginário

da tradição taoísta parece oferecer caminhos que promovam wu wei, ou esse estar em devir.

Então se esboça aqui uma estratégia, ou recurso (que seja sempre atualizado, como um re-

curso), para lidar com o caráter virtual do corpo. Lembremos que Tadeu (2004), trazendo

conceitos de Deleuze, ao mencionar meios para devir, refere-se a uma pista de conduta, ou

seja, aponta a possibilidade de incentivar ou estimular essa forma de agir. Aqui a propomos

enquanto estratégia ética e estética, dimensões que quando imbricadas tendem a se tornar

políticas.

Sobre esta questão, Guattari, por exemplo, propõe o que chama de ecosofia, que define

como uma postura ética, política e estética que atua sobre os três registros ecológicos que

identifica: social, mental e ambiental. Para ele, um novo tipo de ecosofia, ao mesmo tempo

prática e especulativa, deveria substituir as formas antigas de engajamento religioso, político e

associativo - já defasadas (1990:54). Denise Sant’Anna também vê nas relações éticas entre o

ser e o mundo a possibilidade da construção de uma conduta, de uma estratégia política e de

auto-realização. Isso passa pelo deslocamento da idéia de ser como identidade, para a de ser

como atitude. Trata-se também de transpor o incômodo e recorrente abismo entre o que se

anuncia e o que se realiza. Sant’Anna lembra que por vezes vivenciamos:

conexões com o mundo sem degradá-lo e sem degradar a condição humana. Inúmeras vezes eles reúnem ação e reflexão, intensificando a vivência do presente e tornando o eu de cada um menos sólido, menos uma substância do que um ato. E, ao lembrar da alegria vivida nesses momentos (por vezes tão fugazes), talvez se possa estimular o corpo e a alma a continuar cultivando estas condutas éticas, agora e cotidianamente (2001:101).

Para Guattari, a ação ecosófica pode, e deve, se dar tanto em nível macro-político

(campo molar: objetos, sujeitos, representações e seus sistemas de referência), quanto em

nível micro-político (ordem molecular: fluxos, devires, transições e intensidades) (1996:317).

131

Page 132: Por uma TAO expressividade

Sempre em perspectiva inclusiva e ambivalente Guattari defende que, ao lado (e não em

substituição) da lógica dos discursos hegemônicos, se inaugure a eco-lógica, ou lógica das

intensidades (1990:42), que abraçaria outros meios e objetos de apreensão e percepção,

instrumentando os processos ecosóficos.

Lidar com a virtualidade do corpo, devolvendo-o à sua intensidade, demanda uma

predisposição para lidar com conteúdos não conscientes, para ouvir, e dar voz, aos “excluídos

psíquicos”, e trabalhar, como quer Guattari, na perspectiva de uma “ecologia do fantasma, que

tenha por objeto transferências, translações, reconversões de suas matérias de expressão”

(1990: 42). Uma ecologia do fantasma configura um procedimento afirmativo do ser na

própria singularidade e diferença. Esse processo pode parecer, talvez, um tanto doloroso, já

que demanda uma auto-exposição, exige que se lide com aspectos usualmente recônditos e

convoca à sustentação de atitudes por vezes pouco assumidas (e/ou pouco aceitas) no meio

social. Entretanto, a despeito disso, parece ser uma forma de driblar cooptações e dominações

sutis a que estamos sujeitos em nosso tempo.

Como vimos, o modelo econômico capitalista valoriza, estimula e vampiriza valores

buscados arduamente, como liberdade, criatividade, fluidez, ousadia, diferença, predisposição

à mudança, mestiçagem, etc., muitas vezes esvaziando essas atitudes de sua potência

inaugural. A moral que vigora e resiste nesse mundo assim configurado, é de caráter

econômico. A nova disciplina a que obedecemos está ligada à fabricação e consumo de

modelos. Quando falamos em religar o corpo a suas potências, ou em transformarmos “o

corpo num território de ressonâncias destituído de todo autismo” (Sant’Anna, 2001:99), em

re-acionarmos nosso corpo vibrátil, em operarmos na perspectiva de uma ecologia do

fantasma, e ainda quando abraçamos o devir como conduta – e identidade! -, estamos nos

dispondo a estratégias micro-políticas de resistência a apropriações capitalísticas – resistência

não rígida, mas por vias afirmativas e pró-ativas de diferenciação e singularização - por meio

de procedimentos ligados aos fluxos, aos interstícios, às heterogêneses.

Algumas práticas taoístas parecem voltadas a estimular justamente um tipo de

percepção vibrátil, sutil, intuitiva, a qual pode ser bastante eficaz no processo de identificação

dessas neutralizações, igualmente sutis, às quais estamos sujeitos. O já mencionado chi kung

consiste em uma série de treinos psicofísicos, com apoio em exercícios respiratórios, de teor

meditativo, que configuram uma técnica de cultivo e regulação da energia no corpo, e ainda

de trânsito e troca (captação e emissão) de energia com o meio. Trata-se de um conjunto de

132

Page 133: Por uma TAO expressividade

práticas energéticas que visa estimular o fluxo de chi, de modo a desbloquear e abrir a rede de

canais corporais de energia. Dentro da perspectiva de lidar com esses aspectos sutis do

próprio corpo e do mundo que o cerca, a prática não se propõe, como já foi dito, a desvendar e

explicar os processos, mas a estimulá-los e mobiliza-los, até porque, como alerta Sant’Anna:

todos os seres que nos cercam (e mesmo as coisas) são esfinges; mas com os ardis da sutileza eles não nos revelam os seus enigmas, assim como nós, por delicadeza, não os deciframos. Apenas não os deixamos morrer (2001:127).

Sant’Anna percebe, ainda, uma tendência pela busca de meios alternativos que

devolvam aos corpos uma certa quietude perdida na busca frenética de um “nomadismo”

como moda, que, muitas vezes, é muito mais uma agitação travestida de fluidez, uma

compulsão que se supõe estado de criação constante, mas que não devem ser confundidos

com o devir - enquanto wu wei - que não caracteriza processos desterritorializantes, apenas

traduzem ansiedade. Então a autora denuncia o risco do deslocamento dessa ansiedade, para

um consumo compulsivo da lentidão oferecida em guias e workshops, em formatos prêt-à-

porter, possivelmente fadado ao fracasso, já que não há receita para essa lentidão. Essa

pressa, a busca de um atalho para a lentidão, ou o ato de eleger como identidade um suposto

nomadismo, ou uma lentidão idealizada, pautando-se mais num propósito de fotogenia como

a autora nomeia, são condutas ineficazes do ponto de vista político, desprovidas de qualquer

força mobilizadora (2001).

Entretanto, apesar deste alerta, a própria Sant’Anna reconhece legitimidade nessa

busca, mesmo que esta torne-se muitas vezes inócua, como ela assinala. A autora entende que

é “preciso saber que as coisas e os seres possuem forças, apelos, latências, cujas

singularidades a compreensão humana não conseguem esgotar” (2001:114), e observa que,

em rituais e cerimônias, quando se entra em contato com a multiplicidade e complexidade de

vegetais, minerais e objetos em geral, vigora “a repetição do que difere” (2001:114). Talvez

uma forma ética de lidar com essas tradições35, que têm demonstrado durante séculos seu

potencial mobilizador de percepções extra-cotidianas, descontextualizadas do ponto de vista

espacial e muitas vezes temporal, seja exatamente a perspectiva de atualização das mesmas,

que é a perspectiva que vigora também em alguns rituais, como mencionou Sant’Anna. A

idéia de diferença e repetição, sobre a qual Deleuze se debruçou, mostra que a diferença passa

35 As pessoas têm buscado tanto na sabedoria chinesa, como na indiana, como no xamanismo, no candomblé, e em tantas outras fontes esse tipo de apoio. Guattari constata inclusive que “a procura de um território ou de uma pátria existencial não passa necessariamente pela de uma terra natal ou de uma filiação de origem longínqua. [...] Toda espécie de ‘ nacionalidades’ desterritorializadas são concebíveis” (Guattari, 1990: 51)

133

Page 134: Por uma TAO expressividade

necessariamente pelo processo de repetição (Tadeu, 2004). A repetição aqui não é cópia,

duplicação ou reprodução, o que se repete é o processo, o ciclo, a predisposição de remontar

ao devir, ao virtual, e não o que se configura como resultado ou atualização deste ciclo.

Assim, admite-se a possibilidade de investigação e vivência dessa sabedoria chinesa nos dias

de hoje, no Brasil, sem que isso configure o que Sant’Anna nomeia como fotogenia. Trata-se

de uma atualização: a partir de meu olhar - ocidental, contemporâneo e artístico – e de uma

inspiração em matriz oriental e arcaica, chego a uma expiração própria, o que caracteriza um

processo de heterogênese: respirando no entre. Conspirando.

Bordejando o contemporâneo e o arcaico, o ocidente e oriente, a cena e o taoísmo:

operar nesses “entre-lugares”, nesses “espaços intersticiais” (Bhabha, 2006) é estar em espaço

potencialmente criativo e político. De fato, como alerta Susan Stanford Friedman (1998), a

fronteira tem uma dupla vocação. Pode ser espaço de dominação, cooptação, negação,

proibição, quando estão em jogo lutas de poder, sujeição de povos e culturas, quando a zona

raiana delimita as diferenças configurando-se uma demarcação que impõe a

impermeabilidade. Mas é também lugar de heterogênese, quando neste entre têm lugar as

reconfigurações das diferenças, as migrações contínuas de referências, as interações,

contaminações, transições, mestiçagem36. Sant’Anna, de certa forma, também se refere ao

interstício como um lugar que deve ser buscado quando, ao apontar para o hábito estratificado

de se contrapor a velocidade à lentidão, sugere que “saindo desses dois pólos extremos, é

possível viver uma situação em que as oposições dão lugar à complexidade de sentidos”

(2001: 97).

A fronteira é lugar onde há grande tensão atuando. Estar nesse interstício com pré-

disposição a heterogênese permite o trilhar por caminhos outros, diferenciados dos recorrentes

e normativos, singulares. Não se trata da pretensão de “descobrir a pólvora”, de inventar algo

novo, mas simplesmente do desejo de não me ater a dogmas para instaurar um processo de

pesquisa. Assim qualquer ortodoxia ligada seja ao taoísmo, seja ao teatro, seja à filosofia, é

aqui preterida em nome da conjectura, do estar entre, do estar em devir, do exercício de borrar

os contornos dessa geografia fronteiriça, rumo a outros esboços.

4.2 Exercício impressivo-expressivo 36 Lembrando que o sincretismo e o hibridismo não são fenômenos novos, apenas acontecem hoje em velocidade e frequência crescentes.

134

Page 135: Por uma TAO expressividade

Para Didi-Huberman, o visível se torna inelutável, quando sua modalidade,

usualmente ligada ao ter, torna-se votada ao ser, quando, no ato de ver, sentimos que algo nos

escapa. Assim, uma obra de arte seria inelutável:

quando uma perda a suporta ainda que pelo viés de uma simples associação de idéias, mas constrangedora, ou de um jogo de linguagem, - e deste ponto nos olha, nos concerne, nos persegue (1998:33).

Para o autor, a perda que opera (n)esta obra é um trabalho do sintoma, aqui pensado por viés

dissociado da psicanálise. Este seria, para Stephane Huchet, que apresenta a obra de Didi-

Huberman, um:

evento crítico, acidente soberano, dilaceramento. Ele é a via promovida pelas imagens para revelarem à leur corps défendant sua estrutura complexa e suas latências incontroláveis. Ele torna a imagem um verdadeiro corpo atravessado de potencialidades expressivas e patológicas que são configuradas num tecido feito de rastros sedimentados e fixados. Ao presentificar-se na inelutabilidade de sua abertura somática e crítica, o sintoma dá acesso a seus fundamentos fugidios e abissais (1998:17).

A potência identificada por Didi-Huberman no sintoma é da mesma ordem daquela

que Guattari atribui ao que chama ecologia do fantasma. Nos processos ético-estéticos,

Guattari acha necessário jogar o jogo da ecologia do imaginário (1990: 42) e preconiza a

expressão, a estética e a inventividade como importantes chaves de acesso à ecosofia mental.

Esta reinventaria a relação do sujeito com o corpo, com os fantasmas, com os mistérios da

vida e da morte. Seu modo de proceder se afina mais com aquele do artista do que o dos

profissionais “psi”, segundo o autor, sempre “assombrados por um ideal caduco de

cientificidade” (1990: 16). Também para Lévy, questões ligadas à imaginação, à memória, à

presença, ao conhecimento, à religião, são vetores de virtualização (1996:20). E ainda

Susanne Langer traz esse conceito, e chama de “poderes virtuais”, o conjunto de intensidades

– sensações e seus efeitos – que operam na recepção artística (1980:184).

É por esses domínios, de vocação desterritorializante, que me sinto impelida a

transitar, em perspectiva entrelaçada, a um só tempo ética e estética; acreditando que é no

devir em imersão, no escavar contínuo e persistente de si mesmo, no trânsito que não

reconhece isolamento entre o dentro e o fora de cada um, que o artista (aqui, o artista cênico)

pode encontrar sua maior potência criadora, transformadora, política. Quando a criação

estética lança uma ponte entre sentidos sensoriais e semânticos, tramando os sentidos de

sema, aïsthèsis e pathos (Didi-Huberman, 1998:12), parece gerar inclusive uma recepção

intensificada, tendendo a ser mais mobilizadora para quem cria e para quem frui.

135

Page 136: Por uma TAO expressividade

O espectro virtual (associações, lembranças, referencias, sensações, etc) que se

apresenta ou emerge, no ato de fruição de uma obra, quando nos vemos, por vezes

incomodados, por outras em estado de prazer, nada mais é do que o espaço onde se manifesta

em nós o “sintoma”. Se for vocação da arte instaurar um espaço de potencialidades, onde seja

possível recriar o cotidiano e repensar nossas realidades internas e externas, a partir de uma

experiência sensível, então talvez o maior desafio de uma manifestação artística seja o de ser

capaz de provocar em quem a acompanha um grau intenso de sintoma.

Uma cena que nasce por sintoma, pode, talvez, aglutinar os elementos capazes de

provocar no receptor esse grau intenso de sintoma. O artista que vasculha em si, em seus

próprios vestígios e rastros, em seus restos, em sua memória involuntária, em seu chi, em seus

corpos, o material psíquico e orgânico que vai engendrar sua ação, deve encontrar aí material

para gerar um trabalho que ao mesmo tempo lhe sirva apoio processos de auto-conhecimento,

crescimento pessoal, regulação, “curas” provisórias de questões incômodas, também cause

uma recepção intensificada.

Esse exercício expressivo como conduta estética, ética e política, no caso dos artistas

da cena, funciona como atualizações do corpo, no corpo. Cartografias do corpo, no corpo, em

nome do corpo e para fruição por outros corpos. Muito mais se poderia falar sobre como a

atualização expressiva de um corpo, aciona a desterritorialização em outro, no processo de

recepção, desdobrando intensidades, esburacando resistências, fazendo emergir, no fruidor,

afetos, memória involuntária, associações, inéditas ou recorrentes, e ainda, proporcionando,

no público, outros ímpetos para diferentes atualizações. Mas a recepção não é o objeto deste

estudo. Assim nos concentraremos no processo criativo e na questão da expressividade.

Interessante lembrar que em grande parte das vezes em que Matteo Bonfitto (2002),

trazendo o pensamento de nomes emblemáticos do teatro, fala em expressividade, parece usar

o termo associado a duas vias de um processo. Seja a um procedimento psicofísico

(Grotowski, Stanislávski, Checkov), ou ao trânsito entre visível e invisível (Peter Brook),

interno e externo (Stanislávski, Grotowski, e outros), imagens às quais podemos acrescentar

os circuitos físico-metafísico de Artaud e pré-expressivo e expressivo em Barba. O fato é que

a idéia de expressividade, não parece se referir a um caminho de mão única (dentro para fora),

como o termo parece implicar. Aparentemente, para os artistas cênicos, expressividade é uma

noção que encerra um movimento dialético, operando em uma via de mão dupla, que

subentende também o que chamaremos aqui de impressividade. Talvez a opção em se contrair

136

Page 137: Por uma TAO expressividade

no termo expressividade uma operação que conjuga dinamicamente movimentos impressivos

e expressivos, se relacione à atenção voltada ao espectador (que implica um fora, um sair)

como objetivo último, foco, destino desta mesma operação. Assim, na tensão psíco-física, e

nos diálogos constantes produzidos pelos trânsitos entre os vetores impressivos e os

expressivos, estaria o que o teatro designa usualmente como expressividade.

O termo expressividade remete também à construção de um corpo extra-cotidiano e de

uma segunda natureza (Decroux), à estilização ou teatralização do corpo em ação, a

qualidades e texturas identificáveis e conquistáveis no movimento (Laban e Decroux). Vemos

muitas vezes, também, a idéia de expressividade relacionada a uma qualidade de presença, à

força orgânica impressa na ação cênica, ao vigor na interpretação. Não fosse o conceito de

verdade um campo tão minado, tão atravessado de interpretações variadas e díspares,

poderíamos relacionar expressividade à idéia de verdade. Não mais no sentido de

verossimilhança, mas de energia, de potência, de implicação do corpo do ser-ator na

construção estética, e de estímulo e manutenção do circuito impressivo-expressivo, enquanto

fomentador das ações criativas e de suas atualizações em cena.

Detenhamo-nos, então, no corpo do artista cênico. Nesse corpo, que é criador e

criatura, escritor e escritura, cartógrafo e mapa, cada atualização, também promove re-

virtualizações. José Gil diz, sobre o movimento dançado, parafraseando Deleuze, que “a

imanência que caracteriza esse movimento descreve-se do seguinte modo: o que se move

como corpo regressa como movimento de pensamento” (2001:50). Independente de tratar-se

de dança, cada aspeto capturado no campo virtual psíquico, imaginário, energético, no plano

de imanência de um corpo, quando singularizado em uma ação criativo-expressiva, da ordem

da exterioridade, vetorizada para o espaço intersticial entre o corpo e o outro, tende, por sua

vez, a re-acionar um novo trânsito por devires, sempre em contaminação. Em relação a esse

contágio, inerente ao processo co-evolutivo entre ser e meio, dentro e fora, Lévy também

menciona o filósofo francês: “como diz Gilles Deleuze, o interior é uma dobra do exterior”

(1996:106). Essas colocações nos remetem mais uma vez à figura do Anel de Moebius e à

dinâmica yin yang:

137

Page 138: Por uma TAO expressividade

É bom frisar que a divisão forjada, entre expressividade e impressividade é mais

esquemática do que prática. Esse circuito configura uma paridade impregnada mais do sentido

do duplo de Artaud (pleno de projeções, sombras, conversões, retro-alimentação), e da

relatividade yin yang, do que de um binarismo hierárquico herdado da metafísica ocidental.

Trata-se um movimento dialético, mas que não busca síntese ou estabilidade, vive em

movimento, produz equilíbrios instáveis e instantâneos, dinâmicos. O tipo de harmonia que é

gerado aí, não é da ordem do repouso, de uma estética estática, e sim deve ser entendido como

uma espécie de harmonia momentânea, um estado suspenso num trânsito, a atualização de

uma plenitude que é da ordem do instante (ainda que, por ser poética, tenha o poder de aí

suspender, atravessar o tempo). A noção de harmonia também ganha leitura não teleológica

em Barba, que a define, como vimos, como zona de “acordo entre tensões”, “proporção ativa”

entre diferenças (1991:20-21). Trata-se, talvez, do que Clarice Lispector chama de “harmonia

secreta da desarmonia” (1998:12). Não se refere ao “equilíbrio perigoso [...] perigo de morte

de alma” (1998:23), mas a algo nada definitivo: “quero não o que está feito, mas o que

tortuosamente ainda se faz” (1998:12).

Se, do ponto de vista biológico, o equilíbrio, enquanto estabilidade definitiva sinaliza a

morte, a não vida, a inexistência, a fossilização, sob outros aspectos não parece ser diferente.

O que pode ser revisto ao nos instalarmos num território mais subjetivo e afetivo do que

biológico, é procurarmos lidar com a idéia do “longe do equilíbrio” (Prigogine, 1996), menos

como um vetor des-harmonizante, e mais como um impulso re-harmonizante. Assim, buscar-

se-ia mais uma atitude fluídica, afirmativa e pró-ativa, do que niilista e depressiva. É

importante que se aprenda a aceitar e lidar – em wu wei – com esse paradoxo do equilíbrio

não equilíbrio, da inconstância constante, que pode ser metaforizado naquela torção do Anel

de Moebius – que indica sua reversibilidade. Os caminhos não caminhos do tao parecem ser

prenhes desta perspectiva, e podem colaborar nesse aprendizado de, através de nossos corpos

– sutis, vibráteis, físicos não físicos - abraçarmos o paradoxo, dança-lo, vivê-lo, sem tentar

desvenda-los, nem evitá-los.

Voltando ao circuito impressividadexpressividade (que assim designado mostra mais

seu caráter movediço e reversível, do que se o chamássemos de circuito impressão-

expressão), qual em uma superfície de Moebius não há, a rigor, dentro e fora, antes, um se

transforma no outro e o contamina insistentemente. Assim temos:

138

Page 139: Por uma TAO expressividade

Para Lévy essa passagem do interior ao exterior e do exterior ao interior está sempre

relacionada à virtualização, e esse “efeito Moebius” se descortinaria em registros variados,

como o das relações entre privado e público, próprio e comum, subjetivo e objetivo, mapa e

território, autor e leitor etc. (1996:24). Esse continnum entre dentro e fora, corpo e espaço, é

observado também em José Gil, quando explica que, especialmente na construção estética

cênica, “o espaço do corpo resulta de uma espécie de secreção ou reversão [...] do espaço

interior do corpo em direção ao exterior. Reversão que transforma o espaço objetivo

proporcionando-lhe uma textura próxima daquela do espaço interno” (2001: 59).

Sobre essa reversibilidade vale lembrar que quando falamos em entrar em devir, não

devemos imaginar que este só se dê no processo, por assim dizer, impressivo. Ou seja, esse

devir não se instala somente num campo virtual da interioridade (psíquico, imaginário), mas

pode configurar também um devir físico (por movimentos, ações). Pensando em nosso duplo

circuito podemos pensar a expressividade como o processo de atualização de algo do campo

virtual psíquico no espaço virtual físico. Já a impressividade como o processo na

“contramão”, ou seja, caracterizando o modo pelo qual um devir físico promove atualizações

no campo psíquico ou anímico do ator, como um desencadeamento de ações convoca

questões internas a virem à tona. Neste último caso (impressividade) tende a ocorrer

preenchimento de sentidos em formas geradas, e no primeiro caso (expressividade), há um dar

formas a conteúdos emergentes capturados.

Usualmente se relaciona o trânsito que estamos concebendo como impressivo

enquanto princípio recorrente ao chamado “teatro físico” – de fora para dentro, e o outro,

expressivo, relacionando-se mais ao dito “teatro psicológico” – de dentro para fora. Apesar de

ser uma divisão ilustrativa, que até revela certas características dessas tendências, não nos

parece ser um esquema que dê conta das complexidades de cada uma das abordagens.

Stanislávski, na segunda fase de construção de seu método, concebe uma inversão de acesso à

personagem, ao perceber que a ação física funciona como isca de processos internos.

Entretanto ele ainda visa à cena – e uma personagem - realista e psicológica. De outro lado,

diferentes dinâmicas que objetivam composições corporais de estética não realista e

139

Page 140: Por uma TAO expressividade

psicológica, partem de sensações, imagens ou outros processos instalados “internamente”, que

detonam movimentos, gestos, ações físicas. Se entendermos o corpo como esse amálgama

onde se fundem e se afetam aspectos psíquicos e físicos, então toda corporeidade será

psicofísica, importando pouco o lado (interno ou externo) em que se dá o start. Até porque,

após o impulso inicial, esse movimento não cessa de percorrer o circuito

impressividadexpressividade, trazendo atualizações constantes em cada face (interna e

externa) do processo. De novo remetemos às nossas matrizes. As dinâmicas intrínsecas a esse

duplo circuito podem encontrar ressonâncias na relatividade yin yang. Lévy chegou a cogitar,

na ocasião em que se refere à suposta dicotomia entre substância e acontecimento, que talvez

coubesse considerar esse contraste a partir da relatividade entre yin e yang: “haveria

passagem, transformação perpétua de um no outro. Cada um deles exprime uma face não

eliminável e complementar dos fenômenos, como a onda e a partícula na física quântica”

(1996:144).

As propriedades da relatividade yin yang, expostas na seção 2.2.a, implicam em uma

fluidez que pode ser relacionada ao circuito impressividadexpressividade. A “oposição”

sugere justamente a existência de dois aspectos contrastantes em fenômenos e/ou processos, e

mostra a existência de tensões entre estes aspectos. Não se trata de um antagonismo, mas de

uma oposição rítmica e fluídica. Já a “interdependência” mostra que um pólo só existe na

relação com o outro, explicitando a absoluta imbricação entre ambos. Essas duas propriedades

são claramente identificadas no circuito que apresentamos. Já o “interconsumo” sustenta que

o aumento de um dos lados acarreta a diminuição do lado oposto e vice-versa. Essa

propriedade não pode ser encarada como uma regra no processo expressivo, mas pode ser

observada em algumas ocasiões. É comum que, quando exacerbamos processos externos -

sejam movimentos, sons, formas – tenhamos diminuída a voltagem interna. Até pelo fato da

vazão a essa voltagem estar em curso. O contrário também ocorre por vezes. O aumento de

mobilização interna pode gerar a redução de atividade externa. Em ambos os casos há ainda a

possibilidade de essa configuração gerar um processo que pode ser identificado na próxima

propriedade yin yang: a “intertransformação” mostra que em certas situações, geralmente no

auge da predominância de um lado, este poderá se transformar em seu oposto. É aquele

momento em que após intensa atividade interior, chegando ao auge desta, subitamente passa-

se a uma ação externa. Ou vice-e versa, momento em que na seqüência de uma profusão de

gestos e movimentos, se configure um momento de maior introspecção. Repetimos que não se

trata de admitir como leis do corpo em cena essas propriedades. Porém, pensá-las ajuda-nos a

140

Page 141: Por uma TAO expressividade

reforçar o entendimento do fenômeno como um amálgama de dois processos contíguos e

inseparáveis.

A seguir trataremos da noção de vazio, pensando sua eficácia. Entendendo-o como um

recurso para o exercício da expressividade. Um recurso a ser sempre novamente aplicado, em

re-curso e sempre cursado como na primeira vez, num movimento rítmico entre criar e

esvaziar.

141

Page 142: Por uma TAO expressividade

CAPÍTULO 5

O VAZIO COMO RE-CURSO

Quando eu morrer, vou começar de novo dentro do universo. Vou continuar dançando... (Kasuo Onho in Luisi e Bogéa, 2002: 98).

A vontade primeira era nada escrever. Trazer um silêncio para o corpo desse estudo

tão repleto de tentativas explicantes. Um hiato em meio às palavras. Poder escutar o branco da

página...

Entretanto as exigências que envolvem a feitura de uma tese me pedem que encha de

idéias o vazio nessas próximas linhas. Por outro lado, o vazio do tao é vazio sempre re-

preenchido. Assim, não desejo mais negar a palavra ou o texto, mas tentar garantir um vazio

pleno através e apesar das palavras. Tentar fazer com que a palavra signifique, sem

estratificar, fazer com que provoque desdobramentos, novas interpretações e mesmo novas

palavras.

E, além disso, o vazio não termina em si mesmo, senão que se reinventa todo o tempo,

fomenta criação sempre renovada, gera experiências, imagens, e textos. Para voltar a ser

vazio.

5.1 Imagens do (v)entre

Eu danço na barriga da minha mãe, que é também a barriga do universo (Kasuo Onho in Luisi e Bogéa, 2002: 80).

142

Page 143: Por uma TAO expressividade

A metáfora do ventre me veio do nada, de repente. Veio em wu wei, veio do meio do

vazio, por que não estava pensando sobre isso, ou buscando-a. Depois li algumas falas do

dançarino de butô Kasuo Onho se referindo às barrigas - da mãe e do universo, e lembrei que

há entre no ventre, tanto em seu significante quanto nos seus significados. E talvez também

porque já tive um ente no entre do ventre. Aliás, mais de um ente. Mas fiquemos no antes dos

entes. No entre do ventre. O ventre-oco, que é véspera da criação - quando então é ventre-oca,

ventre-ovo, para em seguida voltar, re-curso vazio, a ser ventre-oco. Então percebi que aí

também a criação se dá no oco do entre. Entre um espermatozóide e um óvulo, por exemplo.

Opostos – aqui masculino e feminino - que se encontram e se fundem num vazio que é

vazio/cheio de orgasmo também. Suspensão, supressão de controles, profusão de sentidos.

Explosão no entre-oco. Big Bang. Criação. Preenchimento provisório. E o eterno remontar ao

vazio.

Também se deu criação entre meu corpo vazio, em diálogo com imagens, sugestões,

ambiências. Entre meu corpo vazio de expectativas e intencionalidades, em encontros com

matrizes de um imaginário chinês, também elas vazias de idéias pré-concebidas: deu-se

criação. Mas houve dias, também, em que chegava ao ensaio, já repleta de imagens,

preenchida de vontades e torturada de idéias. Nesses dias conseguia, no máximo, forjar um

estado criativo... Mas nem eu acreditava... Tudo bem, como diz o I ching, “nenhuma culpa”, é

só jogar tudo fora e começar de novo. Mas começar do zero, do vazio.

Ainda no entre, lembremos da noção de meio, para os confucionistas, que se relaciona

à noção de vazio para os taoístas: seria um espaço no qual nossa intencionalidade

permaneceria livre e indeterminada (Jullien, 2000: 39). Essa idéia, por sua vez, remonta à pré-

expressividade descrita por Barba, a qual se diferenciaria do campo da expressividade,

justamente pela ausência da intenção de expressar (no sentido de uma vetorização consciente

de sentido). Na pré-expressividade, segundo Barba, a idéia seria o treino da “presença pura”,

sem vínculo ou compromisso com contextos ou significados. O que, paradoxalmente, pode

promover construções de vocação altamente polissêmicas, já que o fato de não haver a

intenção de significar não implica na ausência da significação.

Segundo Jullien, o meio e o vazio são ainda o lugar do e, assim, “o verdadeiro meio

deve ser entendido, positivamente, como poder uma coisa e outra, e não, negativamente,

como não ousar uma coisa nem outra” (2000:36). Ainda segundo o autor, o vazio taoísta não

apenas se contrapõe ao cheio, mas funciona correlativamente a este. Este vazio seria o meio

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Page 144: Por uma TAO expressividade

em que o pleno se reabsorveria e se indiferenciaria, o que remete à noção de virtualidade

(voltaremos a esse ponto adiante), além de ser também de onde o pleno adviria e se tornaria

efetivo. Esse vazio seria uma espécie de fundo latente das coisas, como se fala do fundo de

uma tela, onde se pinta, ou o espaço onde o som ressoa, vibra, se propaga (1998:135, 136), ou

de uma folha em branco em que se escreve. Essas correspondências vinculam o vazio às

noções de efeito e eficácia:

Uma noção resume essa eficácia do vazio [...] o vazio é simplesmente o que permite a passagem do efeito. ‘Onde nada existe de atualizado, não há parte alguma onde não [se] possa parar, parte alguma onde não [se] possa ir’. Ao contrário, o que impede o efeito de se exercer, é quando o pleno não está penetrado de vazio e, tornando-se opaco, gera obstáculo: fazendo anteparo, ele leva o real a imobilizar-se, ficamos presos nele; não sendo possível mais nenhuma circulação, enterramo-nos nele. [...] se todo vazio é eliminado, elimina-se também o jogo que permitia o livre exercício do efeito (1998:137, 138).

Ainda para Jullien, essa interação entre vazio e pleno, dentro da noção de efeito, revela a

interdependência entre aspectos opostos do real, graças à qual o próprio real não cessaria de

operar e advir. Ele lembra ainda que, no pensamento chinês, a exemplo da interação entre

vazio e pleno, todos os contrários se engendram um ao outro. Assim, Jullien pensa a eficácia

como conseqüência de uma lógica de não exclusão dos contrários. Ao invés disso os opostos

se condicionariam mutuamente, e da lógica dessa dinâmica o sábio tiraria sua estratégia de

eficácia (1998:140).

Voltando ao entre, lembremos que este é um lugar privilegiado ainda por Deleuze e

Guattari, ao desfiarem seu rizoma, também propondo a conjunção e como alternativa à

excludente ou, e até mesmo ao peremptório é. Dizem os autores:

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. [...] é aliança [...] tem como tecido a conjunção “e... e... e...” [...] É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início e nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio (1995:37).

Homi Bhabha talvez tenha sido um dos primeiros autores a usar a imagem do entre.

Para ele, como vimos, o entre – intersticial - é o lugar “onde a diferença não é nem o Um nem

o Outro, mas algo além, intervalar” (2006:301). Se Deleuze e Guattari articulam o entre de

maneira mais filosófica, ligado a conceitos como desterritorialização, devir e virtual, em

Bhabha vamos nos aproximando de um entre mais antropológico, ligado à noção de fronteira,

onde encontros entre diferenças culturais articulam novas identidades – híbridas e não fixas.

144

Page 145: Por uma TAO expressividade

Esses esgarçamentos identitários, as heterogêneses que aí se produzem, a perspectiva de

reciprocidade como alternativa às dicotomias, a ambivalência, a tolerância ao paradoxo, logo

à diferença, e com isso a disposição à mestiçagem, todos esses aspectos nos aproximam de

princípios da sabedoria chinesa.

A pesquisa a que me propus se insere nessa zona fronteiriça entre diferentes territórios

– culturais e disciplinares - visando justo esse entre-lugar intervalar. Num encontro de ritmo

ambivalente, de tensão e fusão, entre a sabedoria taoísta - com seu imaginário milenar, e o

teatro, pelo corpo de uma atriz cuja abordagem de cena está impregnada de outras tantas

referências culturais, se abre um espaço outro – e singular - de experimentação.

A metáfora da fronteira traz a idéia de campos propícios à invenção, a outras

configurações – inclusivas e abrangentes. Mas não se pode ignorar outros aspectos ligados à

imagem. Essas zonas liminares, a exemplo de suas sua versões geo-políticas, são muitas vezes

espaços de dominação e violência. As divisas – reais e simbólicas - entre países, regiões,

etnias, culturas, classes sociais, religiões, orientações sexuais, etc têm mesmo vocação

ambígua. Podem inspirar controle, cooptação, guerras de poder, exclusão, e toda a sorte de

ciladas. Mas têm também vocação para fomentar outras configurações identitárias,

heterogêneses. O antropólogo Vincent Crapanzano fala da idéia de fronteira com essa

perspectiva:

as fronteiras me interessam como horizontes que se ampliam da insistente realidade do aqui e agora para aquele espaço ou tempo optativos – o espaço-tempo – do imaginário. [...] Ao contrário das divisas, que podem ser cruzadas (a menos que estejam fechadas), e dos limites, que podem ser transgredidos, as fronteiras, conforme estou empregando a palavra, não podem ser atravessadas. Elas marcam uma mudança de registro ontológico. [...] Assim, estou particularmente interessado nas vias paradoxais pelas quais a irrealidade do imaginário imprime o real na realidade e por que o real da realidade compele a irrealidade do imaginário. Essas vias não podem ser separadas. (2005).

Além do paradoxo entre irrealidade e realidade, trazido por Crapanzano - que nos

remete à dinâmica do Anel Moebius e dos pares yin yang - interessou-nos, na articulação do

antropólogo, o lugar do imaginário dentro de sua visão da fronteira. Isso porque, em nosso

processo criativo, o âmbito do imaginário é crucial. Tanto por ser a principal fonte de matrizes

– já vimos que a sabedoria chinesa imbrica o imaginário, o simbólico, o conceitual e o

operacional, no sentido de práxis e eficácia - quanto por ser o meu próprio motor imaginário

altamente afetado e solicitado nas dinâmicas criativas.

145

Page 146: Por uma TAO expressividade

Durante as experimentações a imaginação era uma das funções mais presentes e

eficazes ao trabalho. Para dialogar ou atualizar as sugestões (matrizes taoístas) que deveriam

me provocar uma criação, eu adensava tais imagens em meu corpo. E ainda é assim, nas

apresentações: imagens são evocadas como uma sub-partitura, que atuam gerando

corporeidades – enquanto encontros entre fisicidade e imaginário. Além desses aspectos, há

ainda o do espaço imaginário criado no entre do encontro de público e peça, que diz respeito a

questões de recepção. Voltaremos a esses temas na seção sobre os processos criativos.

Outro conceito que pode ser trazido para dialogar com as idéias de meio, de vazio e de

entre, é o de ma. Apesar de ser um termo japonês, ma, segundo Crapanzano, é uma noção

oriunda da cultura chinesa: “diz-se que o ma vem do chinês, o caractere que mostra o sol no

meio de portão aberto” (Crapanzano, 2005). Também Kunio Komparu, bailarino de Nô e

arquiteto, atribui a origem da noção à cultura chinesa (in Greiner:1998, 101). É bastante

sabido o quanto a civilização chinesa influenciou o Japão, ao longo dos séculos, e,

provavelmente, esta é uma das inúmeras assimilações culturais nesse processo.

Para Komparu, ma pode ser traduzido por “espaço, espaçamento, intervalo, lacuna,

vão, lugar, interrupção, pausa, tempo, ocasião ou abertura” (1983). O termo, originalmente,

designava espaço, mas na música, por exemplo, ganha também conotação temporal. Assim, é

usado, musicalmente, para descrever uma pausa, articulando as idéias de tempo e espaço, na

noção de intervalo, ou suspensão. E ainda para a música, não é um intervalo sem função, ao

contrário, agrega dramaticidade ao som. Trata-se, então, de um tempo-espaço intersticial, e,

por isso mesmo, um vazio potencial.

Norvall Baitello Junior, em apresentação ao livro Butô: pensamento em evolução de

Christine Greiner, traz o conceito de ma, a partir do estudo do antropólogo Edward T. Hall.

Ma é uma idéia que implicaria uma fusão do espaço com o tempo, e se associaria a outras

idéias, se desdobrando em sub-conceitos: um tempo-espaço sagrado de gênese de divindades,

que conjuga a obscuridade e a luz, o espaço-tempo intervalar e fronteiriço, a pausa, a idéia de

abertura, a noção de mudança processual, entre outras. Assim, segundo Baitello, “Ma é um

complexo conceito histórico-mitológico” (Greiner:1998, xii).

Greiner, ao longo seu estudo sobre o Butô, articula o conceito de ma ao vazio como

virtualidade (1998:40-41), favorecendo a idéia de um espaço-tempo desterritorializado, onde

as potencialidades estão à disposição de atualizações. Em seguida, traz a idéia de um tempo-

espaço negativo com dimensões e funções, o que ajuda a reforçar a associação de ma, com a

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Page 147: Por uma TAO expressividade

idéia anteriormente exposta de Jullien, de um vazio eficaz. Nas palavras de Greiner, trata-se

de um “intervalo de tempo-espaço, onde tudo pode acontecer” (1998:101).

Segundo a antropóloga Rita Castro, o ideograma japonês da palavra ma representa:

dois portais que se inclinam em direção ao outro, como duas pessoas no cumprimento japonês (rei) que se curvam uma em direção à outra, com o vazio pleno que se estabelece entre elas (2005:186).

Para Crapanzano, o termo ma tem conotações tanto abstratas como concretas, e resiste à

tradução, justamente por seu caráter ambíguo, que imbrica espaço e tempo em uma

configuração única. Para a apreensão do termo, ele acha importante levar em conta, ainda, a

noção chinesa de chi, “uma concepção de energia ou poder espiritual (ki ou chi) que ressoa no

interior do espaço-tempo, entre e em meio a” (2005). Podemos, então, relacionar o fluxo de

chi, à intensidade amorfa e potencialmente criativa, que habita o entre intervalar. A

fecundidade desse “cronotopo negativo – um silêncio, um vazio” (2005), se refere

precisamente a um estado de latência, de ainda não ser, e de, por isso mesmo, poder ser

qualquer coisa, ao se territorializar, ou atualizar em um “espaço-tempo positivo da ação”

(2005). Assim, o chi kung, ao promover a lida com chi, através da instalação de um estado de

esvaziamento, configura-se uma vez mais como importante estratégia para remontar a um

estado de potência criativa. Voltaremos a falar sobre isso.

Se, como diz Crapanzano, “um lugar é ma porque é um espaço entre paredes; [e] em

música, uma pausa também é ma, porque ocorre entre duas notas” (2005), então o espaço

criado na relação complexa e dinâmica entre dois aspectos, também pode ser relacionado a

esse conceito. Com Jullien já tínhamos mostrado como os opostos se condicionam

reciprocamente, e com isso produzem o real, indicando a eficácia na relação de não exclusão

dos contrários (1998). Assim, podemos entender as noções de entre, de vazio e de ma, como

relacionadas ao intervalo ou fronteira presentes entre os aspectos yin e yang de cada uma das

duplas sobre as quais falamos. E ainda, talvez possamos aferir que há aí também aquele

caráter de latência e propulsão criativa.

Na figura do Anel de Moebius, podemos perceber uma representação gráfica do entre,

na torção do anel, que metaforiza a contaminação entre dentro e fora. Este entre é trânsito, e

desdobra em multiplicidade e nomadismo o vazio intersticial do encontro entre as duas faces.

O vão do anel imbrica e está imbricado por ambas as faces da faixa. Nessas encruzilhadas se

abrem, então, zonas de heterogêneses, de outras configurações, para além da realidade visível,

mensurável, comprovável. Como diz Crapanzano, um espaço que se abre ao imaginário, já

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Page 148: Por uma TAO expressividade

que “a imaginação é uma ‘realidade’ intermediária, ambígua por natureza e melhor descrita

como ‘nem isso nem aquilo ou tanto isso quanto aquilo’” (2005). Espaço propício à

criatividade, ao exercício de impressividadesxpressividade, em seu movimento ininterrupto.

Remontar ao vácuo infinito criado entre as faces desse Anel de Moebius. Deixar-se inundar

pelo vazio, pleno de latências amorfas. Re-cursar o vão, o entre. Eis o que se configura como

recurso.

5.2 Re-curso vazio

Para que se contentar com os limites da argila do vaso, se é no vazio do vaso que está sua utilidade (provérbio popular chinês).

De acordo com os taoístas é necessário instalar o vazio para se chegar ao tao. O mestre

Liu Pai Lin, um dos maiores divulgadores da medicina chinesa e do tai chi chuan no Brasil, se

referia ao vazio como “o vislumbre das maravilhas”. A idéia nos treinos taoístas é de que o

espírito é um vácuo que a tudo abrange, e de que o tao inclui, ou é esse vácuo, e que “este é o

jejum do coração (da mente)”, diz Watts (1975:156). Quem pratica meditação e outras

técnicas orientais nesta linha, busca a quietude dos sentidos e dos pensamentos, um

esvaziamento interior, que muitas vezes é conjugado, no procedimento, ao esvaziamento de

ar, na expiração. A orientação é de não fixar os pensamentos, sensações e emoções,

insistentes especialmente quando se é iniciante na prática, nem tampouco de tentar impedi-los

à força, mas simplesmente deixá-los vir e ir. A cada nova meditação, o mesmo (sempre outro)

vazio.

A idéia desse vazio em re-curso37 convida a articulação deleuziana entre diferença e

repetição, sugerindo que o ato de instaurar o vazio é o que deve ser repetido, o vazio sempre

em re-curso, o vazio re-cursado a cada vez. O que advir de cada novo curso, pelo mesmo

recurso, o vazio, é a diferença, o imponderável, o que não podemos prever, o que tem vocação

37 Agradeço à Professora Drª. Maria Beatriz de Medeiros pela sugestão de hifenizar a palavra recurso - e pelas implicações conceituais deste gesto, chegando aos sentidos desdobrados do termo re-curso.

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Page 149: Por uma TAO expressividade

para heterogênese. Do mesmo modo que Denise Sant’Anna sugere ser “na longa repetição de

gestos e sons constituintes da possessão em cada culto, [que] há a invenção do diferente”

(2001:105). O que o estado de vácuo promove ao corpo/ser é um “zerar-se” para entrar em

devir, para tornar-se passagem, canal, trânsito de intensidades.

O filósofo português José Gil também aborda a idéia do vazio para pensar o processo

criativo no corpo, em seu livro Movimento Total (2001). Para José Gil, só o silêncio - o vazio

-permitiria a concentração mais extrema de energia não-codificada, e ao mesmo tempo a

prepararia para escorrer nos fluxos corporais (2001: 17). Esse estado tem potencial altamente

criativo, primeiro pela natureza ainda informe, logo com vocação para vetorizações infinitas,

vazões variadas. E segundo pela quantidade de intensidades que articula e mobiliza, ao

acessar, para Gil, uma espécie de violência primordial representada pelo vazio de toda forma

(Gil, 2001:18). Segundo Gil, o vazio absorve todos os tipos de força, de energias diversas,

musculares, nervosas, físicas e psíquicas, filtrando-as, transformando-as, fazendo o vazio

dentre e em redor (2001:18), imagem que remete à força de atração dos buracos negros do

universo.

É esse acionar de intensidades informes que nos interessa no vácuo. No vazio

encontramos um lugar de trabalho que fomenta, a um só tempo, um processo de

amadurecimento e de conduta ética, e que ainda é fonte de criações estéticas. Se estivermos

totalmente preenchidos, então não resta nada a fazer. As estratificações e anseios por

fechamentos, definições, soluções, nos distancia das infinitas possibilidades de ser/criar, nos

torna pessoas rígidas. Lévy relaciona o vazio ao virtual, ao ato de remontar à intensidade sem

forma, e vê essa virtualização dissolvendo distinções instituídas, aumentando os graus de

liberdade, criando um vazio motor. (1996:19).

O vazio, como princípio, conceito e/ou procedimento, tem sido trabalhado por

inúmeros artistas. A via negativa em Grotowski é por um lado o esvaziamento de tudo que se

mostrava desnecessário ao acontecimento teatral, e por outro uma espécie de pedagogia às

avessas, que “ensina a não fazer” (Roubine, 1998:195):

O fator decisivo nesse processo é a humildade, uma predisposição espiritual: não para fazer algo, mas para impedir-se de fazer algo, senão o excesso se torna uma imprudência, em vez de um sacrifício (Grotowski, 1971: 32).

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Page 150: Por uma TAO expressividade

Ele via no desnudamento do palco – teatro pobre – e do ator – por meio de exercícios de

esgotamento psíquico e físico – um caminho para a criação. Essa “coragem passiva [...],

coragem de um desarmado, a coragem de revelar-se [...] de rasgar as máscaras [...] num

estado de completo e desvelado abandono” (Grotowski, 1971:212), vai ser básica para sua

idéia do desempenho psicofísico do ator: um “ato total” ou “ato da alma” (Grotowski,

1971:212). Além disso, para Grotowski - que entende o teatro como o que se passa entre o

ator e o espectador ou testemunhas (1971:28) - é esse desnudamento, essa “morte ritual do

indivíduo” (Pavis, 2005:346), que vai fazer do teatro um encontro transformador. Encontro do

ator com o público, e do ator consigo mesmo. Ainda para Grotowski, segundo Antônio

Januzzeli, todo método que não se abre no sentido do desconhecido – vazio - é um mau

método (1992). Januzelli fala ainda da articulação entre o silêncio e os opostos imbricados -

atividade e passividade – requerida por Grotowski a seus atores:

O silêncio é algo difícil do ponto de vista prático, mas é de absoluta necessidade no trabalho do ator. Ele gera a passividade criadora – o ator deve começar não fazendo nada, silêncio total; isso inclui até seus pensamentos, pois é necessário que o processo o possua. Nesses momentos, o ator deve permanecer internamente passivo, mas extremamente ativo; são reações que desimpedirão as suas possibilidades naturais e integrais (1992).

Barba fala de um momento que parece negar a busca por resultados. Seria uma

desorientação voluntária que mobilizaria a energia e sentidos do artista na mesma intensidade

de quando se caminha no escuro. Neste ponto perder-se-ia o domínio sobre a significação da

própria ação, mas ao mesmo tempo haveria dilatação das potencialidades. Essa negação do

significado traria “a precisão de uma ação que prepara o vazio no qual um sentido imprevisto

poderá ser capturado” (1994:127).

Januzelli fala sobre a proposta de Joseph Chaikin, diretor e um dos fundadores da

companhia americana Open Theatre, que trabalha com a idéia de um homem-ator. Aqui há a

preocupação com uma conduta pessoal que seja regida não de fora para dentro, ditada pela

moral da sociedade industrial, mas conquistada por descaminhos, por espaços de ser onde o

ator se sinta “desnorteado e vivo”, aberto e disponível para a vida, pelo trânsito em “partes

não-informadas”, (1992:32-40). Também para Chaikin o vazio é um recurso. Assim, o ator

deve:

encontrar um espaço claro, vazio, através do qual a corrente viva não-informada possa mover-se; para isso o ator terá que dar licença a si mesmo, ser capaz de descobrir-se e chamar-se de dentro [...]; estar presente em seu corpo e em sua voz, com cada parte e o todo do corpo acordados; estar sensível para reagir através do imaginário e dos estímulos imediatos. O

150

Page 151: Por uma TAO expressividade

encher-se com experiências emocionais diversas barra a existência desse espaço vazio, que é o verdadeiro condutor da descoberta (in Januzelli, 1992:36).

O vácuo também orienta os processos criativos de Peter Brook. Frederico Bustamante

em seu estudo sobre Brook (2006), aproxima as idéias deste à noção taoísta de vazio. Segundo

Bustamante, Brook vai trabalhar com uma idéia de vazio que é:

ao mesmo tempo sutil, subjetivo, e que se dá a partir de um lugar oferecido ao imprevisível durante o curso do evento (denominação de Brook aos seus experimentos cênicos), só ocorrendo se todas as pessoas envolvidas no momento deste encontro estiverem realmente próximas, disponíveis e abertas para uma troca verdadeira e dinâmica. Há então uma fluidez da energia e uma vitalidade na comunicação entre elas, através de uma interação única e original entre o público e os atores (2006:179).

Em sua dissertação de mestrado, Rita Castro se refere à inscrição de uma tabuleta

fixada na porta de entrada para os ensaios do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), coordenado

por Antunes Filho, em São Paulo. Esta contém as seguintes palavras de Kazuo Ohno:

De maneira nenhuma pode-se dizer que não haja nada num palco vazio, num palco que se pise de improviso. Pelo contrário, existe ali um mundo transbordante de coisas. Ou melhor, é como se do nada surgisse uma infinidade de coisas e acontecimentos, sem que se saiba como e quando (Castro, 2005:244).

Mas o mestre do butô também sabe que estar disponível ao vazio não é alguma coisa tão

simples de se alcançar. Ou ainda, paradoxalmente, é tão simples e tão difícil ao mesmo

tempo:

Na verdade, eu penso de manhã à noite. Penso, penso até o esgotamento e, no final, chego ao vazio. Estou lhes dizendo [isso] para que pensem, pensem até que, no final, cheguem ao não pensar, jogando tudo fora. É um não pensar que vem do ter pensado – e pensado muito [...] Tentar estar no não-pensar sem ter nada pensado é como querer comer o moshi (bolinho de arroz) de um desenho (Kasuo Onho in Luisi e Bogéa, 2002: 37).

Essa fala de Ohno me remete ao que aconteceu comigo durante o processo criativo do

espetáculo Traços. Pareceu-me que quando eu tentava impedir ou interromper um excesso de

pensamentos, idéias e vontades que muitas vezes me assolavam, mas de uma forma pré-

concebida, estes tendiam a voltar e me perturbar. Então em vários momentos acabei dando

vazão a algumas dessas idéias insistentes, fosse articulando-as em debates com a equipe, ou

em alguma experimentação, até exauri-las. A partir daí então, era menos penoso abrir mão

daquilo que não se afinava à proposta. Foi o caso de muitos trechos de textos da própria Ana

Miranda, que eu às vezes queria que ficassem, por um apego ou admiração, mas que, após

muito repeti-los em experimentações e em ensaios, foram se tornando cada vez menos

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Page 152: Por uma TAO expressividade

necessários, até pela presença silenciosa das ambiências dos mesmos em ações físicas e/ou

atmosferas da peça.

Voltando a Kasuo Ohno, artista que, como vimos, também articula a noção de vazio

em sua prática, vale trazer um depoimento de Antunes Filho sobre o dançarino, onde ele traz

essa idéia, sob outro aspecto:

Kasuo propõe o tempo lento, espichado, esticado. Ele está fazendo as coisas e de repente começa a rompê-las. Como se fosse uma folha em branco, onde começa a desenhar, quase um desenho abstrato; ele não fecha muito as coisas, só sugere. É você que tem que fechar. Trabalha com nosso subconsciente: a gente está vendo ele dançar e aos poucos vai abstraindo a figura do homem em cena, que vai desaparecendo, até ficar invisível e só se vêem as linhas e uma onda de coisas, que vão nos conduzindo. Quer dizer: a partir de certo momento, não o vemos mais, mas na rotunda preta do fundo começam a aparecer imagens, umas em cima das outras. Quem está fazendo a dança ali? Ele faz... E nós também, a partir de suas sugestões. Ele atualiza uma potencialidade de jogo, por que lida com a vida e a morte permanentemente. Sabe o valor das metáforas, e se permite brincar: é como uma criança pura. Trabalha ao mesmo tempo os três níveis: o consciente, o inconsciente e o subconsciente. Não tem mais sexo: é homem, é mulher, uma coisa só. [...] Agora: ele trabalha sempre no vazio. O que eu vejo é uma dança no vazio. [...] está criando, iludindo, brincando, jogando. A gente vê a realidade de maneira sensorial: é preciso começar a ver a realidade de maneira clarividente (Antunes Filho in Luisi e Bogéa, 2002: 104-106).

Outro artista que encontrou na vacuidade princípios para fomentar a criação expressiva

foi Merce Cunningham. O coreógrafo utilizava o acaso em seus processos composicionais,

através de jogos de dados, e do uso do I Ching. Sobre seus processos criativos, José Gil

comenta que a fonte “onde a energia pura cria o movimento da dança, lá de onde ela irrompe

como saída de si encontra-se no silêncio sem forma, o grande silêncio do corpo” (2001:17).

Esse silêncio, esse vazio, se liga também a uma quietude, mas uma quietude acordada, ativa

no sentido da prontidão, da atenção. A associação entre silêncio e vazio pode ser percebida

também nesta outra passagem:

Para Cunningham, o bailarino deve fazer silêncio no seu corpo. Deve suspender nele todo movimento concreto, sensorial, carnal a fim de criar o máximo de intensidade de um outro movimento, na origem da mais vasta possibilidade de criação de formas. Só o silêncio ou o vazio permite a concentração mais extrema de energia não-codificada (Gil, 2001:17).

A predisposição ao fluxo, ao devir, a “não ser”, a “não agir”, às suspensões de

identidade, aos hiatos de idéias, aos vácuos de posição, ao vazio enfim; abriga o tudo, o

possível, o potencial, a intensidade, toda forma. O vazio contém a forma, mas a forma,

sedimentada, é limitante, frágil. No instante mesmo em que uma dada configuração salta da

intensidade amorfa, para tornar-se ente, já deve estar disponível ao desfacelamento, já deve

resistir à tentação da identidade fixa. É preciso dizer que estamos nos referindo a um espaço

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Page 153: Por uma TAO expressividade

de criação, experimentação. Há um momento no processo criativo em formas são escolhidas,

trabalhadas, disponibilizadas à composição. Porém mesmo nessa fase, é possível preservar o

germe do vazio no seio do pleno, a fim de manter viva a própria forma.

Se pensarmos do ponto vista da recepção da obra, esses hiatos de codificação podem

promover uma abertura na fruição, no sentido de estimular a imaginação, provocar maior

índice de desdobramentos de sentidos, dificultando as soluções internas ligeiras e explícitas

por parte do público. Parece ser estimulante manter na cena algumas zonas de sombra, certas

supressões. Trata-se de assegurar a presença da ausência, ou como nos lembra José Gil,

garantir o lugar do vazio:

o grande vazio, ou vazio primordial, vazio invisível que fica fora do plano das formas criadas – e que fascina porque não representa nada nem nada o representa, manifestando-se apenas na energia irradiante que dele irrompe (Gil, 2001:17).

Segundo Chaikin, “atuar é uma espécie de rendição profundamente libidinal que o ator

reserva para a sua audiência; é um encontro delicado e misterioso entre ele e o espectador,

causado pelo silêncio entre ambos” (in Januzelli, 1992:39). Novamente a proposição de que é

eficaz haver hiatos de sentido na cena (e demais construções estéticas), espaços que se deixam

preencher por quem frui uma obra artística. Abordagens excessivamente desvendadas podem

tender a restringir e enfraquecer o processo de recepção. Sobre este aspecto, ainda que não se

refira especificamente à arte, Denise Sant’Anna advoga “uma vontade de preservar uma parte

da vida que seja sem nome, sem interpretação” (2001: 114), e alerta que para isso “é preciso,

enfim, que o silêncio não seja compreendido como falta de linguagem, e sim como a presença

de sons que não conseguimos ouvir” (2001:115), ou ainda, acrescentamos, que o silêncio seja

compreendido como sons que podem ser percebidos por vias diferentes e de maneiras

variadas, já que ecoam singularmente nos vazios de cada corpo. A presença dessas

suspensões, a não revelação completa dos teores da cena, vai proporcionar mais (cri)atividade

por parte do público, fomentar mais crises e maior complexidade ao encontro do fruidor com

o trabalho artístico.

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Page 154: Por uma TAO expressividade

No processo criativo teatral é comum o anseio pela definição seja de partituras, textos,

cenários, etc. E, claro, há o momento em escolhas precisam ser feitas. Interessa não antecipar

esse momento, e não definir nada além do que realmente pede definição. Não é preciso, nem

desejável, “encher” o vazio totalmente. E mesmo as escolhas feitas devem se saber, como

tudo, provisórias, mutáveis. Como já mencionado, a perspectiva work in process de

abordagem da cena, inclusive no caso de trabalhos já estreados, abraça essa disposição, e

permite o deslocamento da idéia de “manutenção” da cena, para a de uma “regulação” da

cena. O que se mantém aqui não é um formato estanque com tendência à defasagem de

intensidades, mas o persistente re-curso – e checagem - pelas intensidades ligadas ao trabalho

e ao artista, que em infinitos trânsitos agenciam as novas construções da obra.

Dentre os treinos de chi kung, um dos mais básicos, que inclusive freqüentemente

antecede outros, é conhecido como “entrar no vazio”. Trata-se, conforme já descrito em

detalhes na seção 1.2.d, de posicionar-se no kata e voltar os olhos para dentro. Nessa posição

procura-se internamente um estado de wu chi, ausência das fixações de chi no corpo, o vazio,

o silêncio, a sensação de não-existência, de vacuidade, de não-limite entre dentro e fora. Aqui

podemos lembrar da imagem do infinito, do Anel de Moebius, onde interno e externo formam

um continnum. O treino continua por outras etapas, e usualmente é seguido pelo exercício

nomeado “sentar na calma”, que procede por captação de energias do céu e da terra,

direcionando-as e fortalecendo os principais centros energéticos do corpo. Estes são: o centro

yang, que fica dentro da cabeça, o centro yin, que se encontra na altura do colo do útero ou

próstata, e a mãe dos centros, onde essas energias se encontram dinamicamente, encontro este

representado pela imagem do tai chi38. A mãe dos centros está localizada cinco dedos para

dentro do umbigo, devendo ser visualizada como uma esfera de cerca de oito dedos de

diâmetro. Assim, só após esvaziar o corpo do chi estagnado, devolvendo-o ao fluxo, busca-se

a captação de novas fontes energéticas, ou sua reorganização.

As reações dos praticantes são variadas, mas de um modo geral costuma ser freqüente

certa vertigem, uma percepção ampliada da cabeça e das mãos, sensações térmicas, vibração

e, especialmente após certo tempo de treino, começam a surgir movimentos involuntários

(contínuos e/ou espasmódicos). É como se as energias aprisionadas no corpo se

fluidificassem, soltando-se de seus pontos de fixação e ganhando uma renovação ou

38 O tai chi, usualmente traduzido por “grande energia” é representado por aquele conhecido círculo formado por duas metades em movimento incessante, uma preta com uma “contaminação” branca e a outra ao contrário, simbolizando que uma energia contém o germe da outra, e que estão em continuo intercâmbio.

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Page 155: Por uma TAO expressividade

circulação. O que parece também, muitas vezes, é que o corpo se torna uma passagem tanto

de energias internas quanto externas, se torna um Corpo sem Órgãos. Nos treinos que

envolvem captação de energia, a presença de chi alheio tende a ser sentida mais intensamente,

seja esse chi advindo de árvores, do sol ou de outras fontes.

Denise Sant’Anna fala sobre esta idéia de corpo-passagem quando discorre sobre os

processos que tomam o corpo “possuído”, em rituais africanos e indígenas, por exemplo:

quando há possessão, mais do que se tornar outro, de possuir um outro corpo ou de passar para outro corpo, ocorre uma espécie de transformação do próprio corpo num local para passagem. [...] o termo possuído não remete apenas à posse, mas, ainda, à experiência de possibilitar: o corpo do possuído possibilita, de fato, uma presença sagrada, materializando-a em gestos visíveis, desdobrando-se em macrocosmo, juntando num mesmo corpo o eterno e o efêmero (Sant’Anna, 2001:104).

A autora comenta que nestes rituais, há uma transformação do próprio corpo em um

veículo para forças que estão em um campo além do humano, exigindo aos médiuns, aos pais-

de-santo ou aos xamãs que cedam espaço e recolham-se na inconsciência. Assim, “durante a

possessão, o possuído não tem consciência de si, abdica do controle de seu corpo e de seus

atos.” (2001:104).

Essa inconsciência de si não caracteriza o estado meditativo ou de chi kung, de um

modo geral. Aparentemente, no chi kung se lida com energias menos densas, ou com as

mesmas energias, mas de forma mais sutil. Porém são questões que não arriscamos responder.

Muito menos há qualquer valoração nessas conjecturas. Entretanto outros aspectos da

descrição de Sant’Anna sobre a possessão podem ser trazidos para ilustrar também o que

ocorre nos treinos taoístas. A autora diz que quando um corpo é tornado passagem, torna-se

tempo e espaço dilatados, e diz ainda que o presente seria assim substituído pela presença,

fazendo co-existirem a duração e o instante (2001:105). Essa é uma imagem bastante

pertinente ao tipo de percepção que vigora em estados de chi kung, e que remete ainda às

noções de corpo dilatado e de presença do ator, trazidas por Barba, em diferentes momentos

de seus textos. É uma descrição que vale também para experiências místicas variadas, e que o

escritor mexicano Octávio Paz relaciona à sensação de dissolução do eu, também percebida

durante o orgasmo, no ato erótico. Não nos aprofundaremos nessa relação trazida por Paz,

mas a título de curiosidade, e como uma bela descrição das sensações que envolvem esses

estados, transcrevemo-la:

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Page 156: Por uma TAO expressividade

Várias vezes se tentou explicar essa enigmática afinidade entre mística e erotismo, mas nunca se conseguiu [...] O ato em que culmina a experiência erótica é indizível. É uma sensação que passa da extrema tensão ao mais completo abandono e da concentração fixa ao esquecimento de si próprio; reunião dos opostos, durante um segundo: a afirmação do eu e sua dissolução, a subida e a queda, o além e o aqui, o tempo e o não-tempo. A experiência mística é igualmente indizível: instantânea fusão dos opostos, a tensão e a distensão, a afirmação e a negação, o estar fora de si e o reunir-se a si próprio no seio de uma natureza reconciliada (1994:100/101).

Sobre essa passagem cabe mencionar o alto grau de prazer que envolve ambas as

experiências articuladas em Paz. Não é de se espantar que haja sempre tantos fiéis ligados a

tantas religiões, seitas e correntes esotéricas. O ser humano está ligado a esses rituais por

diferentes motivos, que passam pela crença, pela fé, pela culpa, pela cultura, mas também

pelo prazer.

Outra questão presente em Paz, que convida à reflexão é a da reunião dos opostos, em

uma natureza reconciliada. Paradoxalmente, o vazio é o tudo, em potencial. Há um adágio

budista que diz que “a forma é o vazio e o vazio é a forma” (Hridaya Sutra in Watts,

1975:53). Aliás, ao vazio estão associados diversos oximoros. O nada e o tudo, o mesmo e o

outro, a forma e o conteúdo, a ausência e a presença, o ser e o não ser. Todos eles se fundem,

se confundem, se reconciliam, na idéia de vacuidade. Inês Bogéa traz essa idéia de fusão de

contrastes na arte de Kasuo Ohno, que, segundo ela:

dança entre o mundo visível e o invisível. Num lusco-fusco difícil de descrever, e mais difícil ainda de definir, o que é obscuro e o que é luminoso na nossa natureza dão-se aos sentidos sem perder a ambigüidade, e sem contradição. [...] A linguagem, atual e arcaica, valoriza os conteúdos velados do inconsciente, mas também a expressão clara das formas – e seu desfazimento ( 2002: 80).

O próprio Kasuo Ohno, em entrevista à Inês Bogéa, fala sobre a vida e a morte,

levando-nos a perceber como esses duplos - não dicotômicos - configuram ciclos em que os

opostos se alternam ritmicamente:

Dentro dessa superposição de vida e de morte é que podemos ver o florescimento da nova vida, que é o novo homem que vai nascer, como parte da doação da mãe. Ao longo de minha existência, eu sempre achei que deveríamos ter uma percepção muito concreta, muito real, sobre essa dualidade com que é feita a nossa existência. Isto é, a vida e a morte são componentes da nossa existência ( 2002: 85).

Na experiência do vazio meditativo ou místico, podemos dizer muito do se passa é o

que chamamos entrar em devir. E esse entrar em devir, que pode ser detonado pela instalação

de um vazio-silêncio no corpo, promove o desenvolvimento de qualidades muitas vezes

inexploradas de percepção. Sant’Anna lembra que nesses estados de corpos-passagem há a

156

Page 157: Por uma TAO expressividade

ampliação do corpo sensível, “sente-se a partir de dimensões do corpo até então inexistentes”

(2001:105), ou melhor, diríamos, ignoradas. O meio em que vivemos nos solicita

constantemente determinadas naturezas de apreensão, tornando o corpo viciado em acionar

sempre as mesmas vias de se relacionar com o mundo. Há modos diferenciados de

percebermos o que há a nossa volta, que não são nem melhores nem piores entre si. Apenas

algumas dessas formas são bem mais utilizadas, e outras atrofiadas e até desconhecidas.

Estimular outros meios de percepção é, ao mesmo tempo, desenvolver essa vias de cognição,

e entrar em contato com conteúdos diferenciados, incapturáveis pelo nosso entendimento

cotidiano. Trata-se de incrementar nossa inteligência, no sentido mais amplo que esse termo

possa ter.

O despertar desse tipo de percepção, ligado ao corpo sutil, ao corpo vibrátil, configura-

se importante instrumento na conquista daquela conduta política, ético-estética, que buscamos

como norteadora do trabalho do ator. Esta conduta, que percebemos como uma verdadeira

trama. Tanto em seu sentido de entrelaçamento, rede de agenciamentos éticos e estéticos

fazendo rizoma, como enquanto estratégia afirmativa, pró-ativa. Micro-política para conquista

de singularidades do ser-estar no mundo, por meio de linhas de fuga e vetores dissidentes que

fomentem heterogêneses.

157

Page 158: Por uma TAO expressividade

CAPÍTULO 6

PROCESSOS CRIATIVOS

Os processos criativos que alimentaram e foram alimentados pelos estudos teóricos

dessa tese, dividiram-se em duas etapas. Inicialmente, no primeiro semestre de 2005, ministrei

a disciplina Técnica de Corpo para Cena III, no curso de graduação em interpretação teatral

da Universidade Federal da Bahia, onde foram trazidos vários dos recursos descritos nas

seções 1.2.a, 1.2.b, 1.2.c, e 1.2.d, para fomento de processos criativos em aula. Esta etapa foi

bastante útil para averiguação de como as matrizes eleitas nessa pesquisa dialogavam com

corpos diferentes entre si, e, especialmente, diferentes do meu, que já há algum tempo me

sentia particularmente estimulada pelo material.

Porém, ao longo dessa etapa, senti falta - e desejo - de investir meus próprios recursos

de intérprete (com outras experiência e disposição, em relação às dos alunos de graduação)

nos processos criativos. E ainda, ao fim, senti que, a despeito de um trabalho consistente e

proveitoso, e de importante retorno positivo por parte dos alunos, no que se refere à pesquisa

sobre a própria expressividade, não havíamos chegado a um “produto” que me satisfizesse

como tal, ou seja, que fizesse jus ao próprio processo. Mesmo que, em realidade, criar um

“produto final” não fosse objetivo desta etapa. Além disso, há o fato de que em uma disciplina

de quatro créditos dificilmente se consegue dispor de tempo e constância necessários a uma

pesquisa que exige forte imersão por parte dos participantes, envolvimento que eu viria a ter

no processo de criação do espetáculo. Processo que contou, ainda, com a vantagem de se

seguir a um momento prévio de experimentação – a disciplina, a qual me deixou mais madura

na pesquisa.

158

Page 159: Por uma TAO expressividade

Por esses fatores decidi realizar a segunda etapa da pesquisa prática - a qual eu já tinha

intenção de fazer, mas cogitei protelar para depois da defesa da tese, concluindo-a apenas com

as questões levantadas na experiência com a disciplina. Senti que seria para mim, antes de

tudo atriz, inconcebível e frustrante cursar um doutorado em um programa com linha de

pesquisa reconhecidamente voltada à práxis artística, e não realizar um processo criativo onde

eu estivesse implicada como intérprete.

Havia também o ímpeto inicial de minha movida rumo ao doutorado, que tinha como

cerne me colocar como sujeito e objeto de minha pesquisa: construir um processo em que eu

fosse ao mesmo tempo intérprete-criadora e observadora. Afinal, entendi, ainda, que meu

objeto de estudo pedia uma complementação da primeira etapa de experimentação – a qual

também foi de suma importância para o estudo – que pudesse afinal checar a eficácia da

proposta em termos de utilização em uma encenação. Vejo a primeira etapa, aquela junto à

disciplina Técnica de Corpo para a Cena III, como uma importante preparação para o segundo

momento, o de montagem da peça.

Para criar o espetáculo senti que deveria contar com um acervo temático –

dramatúrgico - distinto das matrizes exploradas na tese. Isso por que, dessa forma, poderia

perceber a eficácia destas matrizes no processo de elaboração de corporeidades, independente

de contextos dramatúrgicos. Assim, fui em busca de fontes textuais que me parecessem

apropriadas para um diálogo com um acervo expressivo que seria criado, a priori, sem foco

em uma história.

Os contos Noturnos, de Ana Miranda (1998), “me perseguiam” desde 1998, quando

me presentearam-no. Sempre que o relia me enchia de vontade de transpor alguns contos ou

trechos para o teatro. Sentia que a obra - toda escrita em uma primeira pessoa feminina e

inquieta, praticamente sem pontuação, como que se obedecesse a um fluxo de pensamento ou

desabafo - apresentava vocação para a cena. Depois, já durante o processo de criação da peça,

somou-se a este livro a ficção biográfica Clarice (1999), da mesma autora, que igualmente me

impactou. Clarice é uma ficção biográfica inspirada em um cotidiano hipotético e poético de

Clarice Lispector, cuja obra também sempre me perturbou.

Apesar de serem compostas de contos, as obras funcionam também como romances

fragmentados, já que trazem uma série de pequenas narrativas em torno de uma mesma

mulher - uma em cada livro. Em ambas as obras há uma espécie de liberdade narrativa, que

159

Page 160: Por uma TAO expressividade

permite que leiamos os contos em qualquer ordem, sem comprometer o sentido geral da

personagem e de seu mundo. Em Noturnos, a opção pela não utilização de pontuação na

maior parte do tempo, provoca ainda mais esse desdobrar de sentidos. Todos estes aspectos –

que indicam certa abertura da obra - me pareceram favoráveis à proposição de recriar um

universo poético presente em uma obra literária, no corpo e na cena teatral. A mesma

perspectiva de composição e montagem, que nortearia o trabalho com o acervo expressivo,

indicaria os caminhos para lidar com as fontes textuais, as quais, desde sua origem, já

apresentavam características fragmentárias, mutáveis, desdobráveis e nômades.

Uma descrição detalhada das cenas do espetáculo consta em anexo, assim como o

DVD com a filmagem da peça. Ainda que a sinopse descritiva do item 6.2.b. traga em linhas

gerais uma descrição da peça, é aconselhável que aqueles anexos sejam consultados para uma

melhor apreciação das próximas seções. Isso vale também para o anexo em que transcrevo e

comento meu “diário de bordo”.

Em relação à disciplina está disponível, em anexo, a transcrição de todo o meu diário

de aulas, com o detalhamento das atividades de cada dia, seguidas de comentários dos alunos

sobre os trabalhos, colhidos em seus “diários de bordo”. Há ainda uma seção que contém os

questionários aplicados em cada fase e respostas dos alunos a estes. Por fim está o espaço

dedicado à transcrição dos textos criados por eles na quarta fase do curso.

6.1–Técnica de Corpo para Cena III

Essa etapa inicial ocorreu no primeiro semestre letivo de 2005, com a turma de

Técnica de Corpo para Cena III, do curso de interpretação teatral da Escola de Teatro da

UFBA. Os alunos cursavam, em média, o quinto semestre do curso. Participaram dessa etapa

os seguintes estudantes de teatro: Altamar Araújo da Silva, Afrânio de Carvalho Soledade,

Cinara Maria Paiva dos Santos, Clarissa Santana de Oliveira Torres, Fábio Roberto Ferreira

de Souza, Júlia Barreto de Almeida, Justina Maria Lima de Souza, Leonardo Batista Passos,

Lisa Vietra (trancou a disciplina nas primeiras semanas), Luciana Hortélio Silva Sales e Maria

Eugênia Santos Caldas.

A disciplina foi dividida em cinco fases, totalizando 25 encontros. A primeira fase foi

de diagnóstico, a fase dois voltada à matriz yin yang, a fase três orientada pelos trigramas do I

160

Page 161: Por uma TAO expressividade

Ching, a quarta fase de construção textual e a última dedicada à transposição do material

expressivo gerado para a cena, em diálogo com os textos criados na fase anterior.

De um modo geral a metodologia aplicada em aula seguia o seguinte roteiro base:

realização de treino de chi kung (aproximadamente 15 minutos), dinâmicas de aquecimento

de/ou integração da turma (cerca de 15 minutos), experimentação de algum(s) princípio(s)

técnico(s) relacionado(s) às matrizes a serem exploradas no dia (mais ou menos 25 minutos),

e a inserção, propriamente, das referências associadas às matrizes, norteando um processo

criativo (etapa de cerca de 35 minutos). Esta inserção era feita através de palavras que

estimulassem a imaginação, associações simbólicas, metáforas, e com o apoio de músicas e,

eventualmente, outros elementos como tecido e água, por exemplo. Como fechamento da

aula, após essas atividades era aberto um espaço de diálogo com os alunos, onde eram

compartilhadas as impressões, dúvidas, dificuldades, conquistas, etc.

6.1.a. Fase 1

Na fase 1, composta de três aulas, foi feito um diagnóstico da turma, através de

questionário e exercícios simples de composição a partir de sugestões imaginárias. Nessa fase

ainda não introduzi as matrizes taoístas propriamente, com exceção de uma primeira

experimentação com a prática de chi kung. As atividades desenvolvidas no período foram:

Base: formas de pisar/andar a partir de deslocamento do peso nos pés.

Equilíbrio e desequilíbrio.

Caminhada em solos imaginários.

Nesse primeiro momento pude ter uma idéia da turma, seus corpos e disponibilidades

para a fabulação corporal. O conjunto mostrou-se um tanto heterogêneo em termos de

recursos técnicos já incorporados. O seguinte questionário foi apresentado aos alunos, nessa

fase 1, com função de auxiliar o diagnóstico:

1. Para você o que é expressividade? E corpo expressivo?

2. Quando e por que você se sente (sente seu corpo) mais expressivo? Descreva essa

sensação, ou dê exemplos.

As respostas à primeira questão relacionam expressividade e corpo expressivo a

alguns fatores, dentre os quais destacam-se como os mais mencionados:

161

Page 162: Por uma TAO expressividade

Comunicação (Fábio, Afrânio, Altamar, Cinara, Luciana, Maria Eugênia, Clarissa)

Energia (Justina, leonardo, Júlia, Clarissa)

Construção não cotidiana (Lisa, Maria Eugênia, Clarissa)

Pensando nesses fatores eleitos, me parece que o trabalho guiado pelas matrizes tem

essa abrangência. Em termos de energia, creio que tudo que foi dito até aqui demonstra ser o

trabalho energético objetivo importante de nossa investigação. Em que pese a noção de

energia apresentar nuances diferenciadas por parte de quem a enuncia, há, especialmente no

teatro, certo entendimento tácito, senão sobre o conceito em si, ao menos sobre a eficácia do

manuseio do elemento energia no trabalho do ator. Em relação à construção de um corpo

extra-cotidiano, vimos que também este é um ponto que pode ser favorecido pelo trabalho

com as matrizes. No que se refere à comunicação, esta está relacionada à significação,

processo que, com o uso re-contextualizado das matrizes, pode ganhar desdobramentos e

multiplicidade, como veremos na análise de Traços.

Entretanto, veremos adiante que, nesta etapa da pesquisa – a disciplina, esta foi o salto

que não conseguimos dar. Ao longo das aulas, os alunos, como mostram depoimentos,

despertaram, re-organizaram e mobilizaram chi para o trabalho. Além disso, como pude

presenciar, e pela própria análise deles, houve uma série de construções corporais

extremamente interessantes e não cotidianas, ao longo da disciplina. E ainda, de acordo com

depoimentos dos próprios alunos, houve momentos em que eles romperam padrões corporais

expressivos, a partir de nossa proposta. Porém, no salto entre as conquistas no processo

criativo, e a posta em cena, não soubemos aproveitar o vasto material que tínhamos. Parece-

me, hoje, que isso pode se relacionar tanto a uma inexperiência metodológica minha em

relação a esse processo – voltarei a falar sobre isso – quanto a algumas falas detectadas nesse

primeiro relatório.

Alguns alunos falaram de expressividade, relacionada à comunicação, como um

processo que demandasse uma coincidência entre os discursos de ordem corporal, e de ordem

textual. Leonardo diz que “falando do corpo do ator, acho que esse é expressivo quando está

vivo em cena e diz ao espectador o que o texto (se houver) quer dizer”, e Clarissa diz que

“quando meu corpo está expressivo ele complementa ou referenda meu discurso verbal”. Ora,

essas falas nos trazem um entendimento da via mais ilustrativa desse processo de significação.

Nem tanto, se pudermos entender esse complementa como uma ação muito ampla, que prevê

inclusive o corpo negando o texto, porém, como está seguido do termo referenda, dificilmente

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Page 163: Por uma TAO expressividade

a fala da aluna prevê possibilidades como esta. E ainda, quando Clarissa diz que “um corpo

expressivo é aquele que comunica, (...) possibilitando a ele (espectador) uma leitura direta

(grifo meu) com o significado do movimento”, o termo direta traduz, ou denuncia, um desejo

de univocidade. Digo ou denuncia, pois tanto Clarissa quanto Leonardo foram alunos

altamente disponíveis para criações não ilustrativas e polissêmicas, no decorrer das aulas de

experimentação. Entretanto ambos, assim como toda a turma – incluindo minha dificuldade

em ajudá-los a romper com tal padrão – acabou se rendendo a um processo de significação

unívoca e ilustrativa, quando passamos para a última etapa de trabalho. Voltaremos a falar

sobre esse momento adiante.

Houve elaborações que indicaram predisposição diferente em relação ao entendimento

de expressividade, por parte de alguns alunos. Fábio diz “corpo expressivo é aquele que

comunica (o que independe de intencionalidade)”. Mas note que aí, quando ele diz que

independe de intencionalidade, ele se refere ao corpo expressivo fora de contexto

dramatúrgico, ou seja, ainda no campo da experimentação, ou campo pré-expressivo de

Barba. A fala de Lisa, “corpo expressivo é um corpo extra-cotidiano. Ele tem a função de

fugir do naturalismo”, se por um lado pode parecer desvincular a noção de expressar com a de

traduzir literalmente um contexto, por outro parece privar o naturalismo, enquanto estilo, do

recurso da expressividade. E ainda, a ilustração e univocidade na significação, não se dão

exclusivamente pela abordagem realista. Nosso resultado, por exemplo, nada tinha de realista,

apesar de ser altamente ilustrativo. Em Luciana, que diz que “expressividade é uma maneira

de você colocar para fora o que está sentindo”, vemos a necessidade de associar o discurso

corporal no campo da teatralidade, à presença ou vivência, por parte do ator, de sentimento ou

emoção correspondente.

Apenas uma aluna relacionou a noção de expressividade à técnica ou treino, e mesmo

assim, não diretamente. Clarissa diz “acredito ser expressividade a capacidade do artista de

expandir seu instrumento – corpo e voz – no intuito de ultrapassar a maneira de se expressar

cotidianamente.” Aí lembramos o mapeamento de Barba, já comentado na seção 2.3, que vê

os atores do pólo sul distantes da prática de um treinamento técnico. A aluna pensa ainda o

corpo expressivo como psicofísico, ainda que não use o termo, quando diz que este “é o

criador de ponte entre o físico e o mental no processo criativo”. E Maria Eugênia também,

ampliando os âmbitos e trânsitos entre psíquico e físico, ao dizer que:

163

Page 164: Por uma TAO expressividade

Algumas vezes essa comunicação não está relacionada à racionalidade, mas ao sentimento, este, no nível das sensações. Corpo expressivo é um corpo capaz de ultrapassar a mera reprodução de movimento, chegando a expressar as tensões/sensações que envolvem aquela determinada situação.

Em relação ao que predispõe o corpo à expressividade pode-se ressaltar nas respostas

as seguintes ocasiões como favoráveis:

Trabalhos que envolvam atividade física, ligada a movimento (Justina, Afrânio,

Cinara, Leonardo, Júlia, Clarissa);

Trabalhos que envolvam estímulos como imagens e sugestões em diálogo com o corpo

(Justina, Altamar, Luciana, Maria Eugênia);

Momentos em que a atenção está voltada para o corpo (Fábio, Lisa, Maria Eugênia,

Clarissa);

Estados de relaxamento ou “mente aberta” (Justina, Júlia);

Estados de mobilização energética (Maria Eugênia, Justina, Clarissa).

Os três últimos itens puderam ser contemplados pela prática de chi kung, previamente

ao trabalho. Mobilizar energia, se esvaziar e estar presente no próprio corpo estão entre os

principais benefícios da prática. Em relação ao primeiro tópico, nosso programa de aula

previu um momento – entre o chi kung e a experimentação das matrizes - de abordagem de

algum princípio de técnica corporal. Este momento teve a função de aquecer o corpo do

aluno, de promover conhecimento e ampliação de seus próprios recursos psicofísicos. Ao

mesmo tempo funcionava como facilitador para imersão em um estado que se relacionasse à

matriz a ser explorada no dia. Nos quadros presentes na seção 1.2.d, que relacionam os

trigramas do I ching a propostas de trabalho corporal, e que nortearam uma das fases dessa

etapa, essas associações podem ser percebidas. Por fim, o segundo item apontado foi

contemplado nos diálogos entre os corpos e as matrizes taoístas, trazida em recortes de todo

seu acervo de imagens e aspectos associados (apresentados no capítulo 1).

Para efeito de consultas, há em anexo uma seção em que se encontram transcrições

mais completas das respostas aos questionários, bem como trechos dos cadernos dos alunos -

“diários de bordo”.

6.1.b. Fase 2

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Page 165: Por uma TAO expressividade

Na fase 2 passamos para experimentações a partir de emblemas yin yang. Durante 5

aulas, após trabalharmos o chi kung seguido de algum princípio técnico de movimento,

passávamos à experimentação de alguns pares dos emblemas no corpo. Os aspectos técnicos

experimentados nessa fase visaram uma conscientização e ampliação de possibilidades

corporais em movimento, bem como a experimentação da idéia de oposição de forças no

corpo, antes do trabalho com as oposições mais simbólicas ou abstratas, a partir dos

emblemas yin yang. Foram trabalhados:

Parâmetros de movimento: rotação/ torção, inclinação, níveis/ planos.

Deslocamento sob resistência/oposição: a partir de tração com tecido, puxando partes

do corpo na direção oposta ao deslocamento, e depois só imaginando a resistência do

tecido em várias partes do corpo.

Dilatação/ oposição: a partir de vetores imaginários atuando tridimensionalmente, em

três oposições corporais (cima e baixo, frente e trás, direita e esquerda).

Após essa etapa técnica passávamos para um trabalho mais criativo com as matrizes

yin yang. Em diagonais – esse formato se mostrou eficaz para essa fase – cada aluno, ou

dupla, ou grupo, saia de um pólo – da sala e da dupla yin yang proposta – para o outro. As

variações incluíam a transformação gradual de um aspecto em outro, a intensificação de um

dos pólos até seu limite, para em seguida transformá-lo subitamente em seu oposto, o trabalho

em duplas que saiam de pólos opostos e se contaminavam no percurso, entre outras. Além

disso, trabalhamos a construção de uma partitura composta por células colhidas nas diagonais,

e em trocas entre os alunos, e ainda experimentamos inserir aspectos yin yang diferentes dos

que geraram as partituras, funcionando como sub-partitura para estas.

Nesta fase houve a manifestação de dificuldades por parte de alguns alunos em lidar

com sugestões mais abstratas como as que regem alguns pares de opostos trabalhados, como

por exemplo, frioquente, úmidoseco, vaziocheio, substancialnão-substancial ou docesalgado.

Com pares mais diretamente relacionáveis com movimento como lentorápido,

troncomembros ou contraçãoexpansão, eles se sentiram mais confortáveis. Também surgiram

dificuldades na visualização de imagens evocadas na prática do chi kung como o redemoinho

de energia vindo do cosmos, ou o movimento de chi na mãe dos centros, por exemplo. À

época, a prática ainda se mostrava incômoda para a maior parte dos alunos.

165

Page 166: Por uma TAO expressividade

O seguinte questionário foi solicitado após a fase com as dinâmicas yin yang e maior

contato com chi kung:

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as

dinâmicas relativas aos emblemas yin yang? Comente.

2. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.

3. O chi kung facilita, dificulta ou não interfere no seu trabalho técnico/ criativo/

expressivo? Comente.

Em relação às duas últimas questões, as quais estão presentes também em

questionários das próximas fases, optei por deixar para abordá-las em um item

exclusivamente voltado à prática do chi kung, visando observar a evolução (no sentido de

processo, e não necessariamente de progresso) dos alunos em relação a este aspecto, no

decorrer do semestre.

Quanto à primeira questão, algumas respostas demonstraram uma preocupação em

“entender” racionalmente a sugestão, para executá-la de forma supostamente “correta”.

Justina diz: “não sei exatamente ainda que qualidade de energia atribuir a cada emblema, não

é claro ainda pra mim a que se refere o princípio do yin/yang”, e Cinara:

em alguns momentos a mente e o corpo aceitam (entendem) o que está sendo pedido e em outros não, por exemplo, quando se pede ‘claro’ e ‘escuro’ fica difícil fazê-los sem ser interpretando com os meus conhecimentos do que é claro e escuro.

Essas falas pareceram evidenciar certa angústia por ter maior conhecimento ou entendimento

sobre as matrizes e também sobre o que eu – como professora – estaria propondo, ou

esperando, a partir dessas experimentações. Busquei ir esclarecendo esses aspectos, mas

principalmente tentei, a partir dessas respostas, fazê-los entender que o que me interessava

eram seus diálogos corporais espontâneos com essas idéias, da forma mais livre e

despreocupada possível. Expliquei que não se tratava de acertar ou errar, apenas de deixar

acontecer, a partir do encontro do corpo com uma dada imagem, composições expressivas.

Alguns trechos de depoimentos colhidos nos cadernos, indicaram dificuldades

parecidas. Júlia disse: “com alguns pares de opostos, por serem muito abstratos, não consegui

sentir realmente a sensação no corpo”, e reforçou “alguns emblemas são extremamente

abstratos e acabam sendo ilustrados [com a resposta corporal], o que não acho tão válido”.

Para Leonardo:

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Page 167: Por uma TAO expressividade

algumas imagens de oposição do yin yang são mais fáceis de serem trabalhadas, talvez por fazerem parte do cotidiano mais ilustrativo. Nesse caso o maior desafio era sair do repertório de movimentos pré-conceituados.

Aqui se percebe uma maior consciência das próprias dificuldades diante do trabalho.

Especialmente no que se refere à tendência maior à ilustração daquilo que está sendo

sugerido, ao invés da disposição a um diálogo corporal com a imagem e com as sensações que

esta provoca. Questões similares estão expostas nessa fala de Fábio:

a qualidade de movimento não me convencia. Mais uma vez a desagradável sensação de que a ação suplantava a sensação. Parecia que os colegas e eu também estávamos muito mais preocupados com o mostrar, o que conduz a obviedade.

Fábio ressente, ainda, a falta de um sentido teleológico para as experimentações. Em nossa

programação, essa “finalidade” tão clara só viria no fim do processo, com a utilização de

algumas células experimentadas no trabalho final. Ele disse ainda “sinto mais como uma

obrigação de aula do que como processo criativo (inspirado). Talvez pela expectativa outras

vezes frustrada de não chegar, aparentemente a lugar nenhum”. Isso me levou a rever a etapa

posterior, inserindo diariamente um ponto de chegada do trabalho, ou seja, uma espécie de

apresentação individual ou coletiva que concentrasse as descobertas do dia. Creio que manter

esse momento na aula – ou ao menos periodicamente - ajuda, de fato, a compreender e

concretizar as possíveis aplicações do trabalho com as matrizes.

Houve, por outro lado algumas manifestações entusiastas em relação às

experimentações dessa fase. Eugênia disse:

Outro exercício que me trouxe uma perspectiva nova foi a diferença entre uma passagem gradual entre o yin e o yang, e uma passagem brusca. Uma cena é construída a partir de muitos elementos, mas um dos mais importantes é o ritmo.

Para Leonardo “os emblemas yin yang têm revelado nesse primeiro contato formas corporais

libertadoras de alguns estereótipos”, e Júlia afirmou “na maioria das vezes me senti

estimulada a criar e brincar com essas duas energias”, enfatizando o seguinte:

quando ouvia as sensações/energias (estímulos relativos ao yin yang), e meu corpo respondia organicamente achei interessante. Quando fazia um movimento ilustrando uma sensação, não era um movimento negligente, mas era pouco criativo. Acho que em certos emblemas eu não tinha tanta consciência do estímulo que me levava a fazer determinado movimento. E às vezes funcionava.

A fala de Júlia sugere - paradoxalmente às dificuldades anteriormente mencionadas por parte

de alguns alunos, incluindo ela própria – que, por vezes, as duplas yin yang que não

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Page 168: Por uma TAO expressividade

favoreciam um entendimento muito claro, ou uma construção corporal diretamente associada,

por outro lado poderiam estimular uma construção mais orgânica e criativa. A própria Júlia

alerta em seu depoimento: “mesmo com a recepção racional, essa sensação tem que sair de

forma orgânica e criativa”, dando a entender que, eventualmente, quando não tinha apreensão

tão objetiva do que estava sendo sugerido, a criação podia acontecer com mais liberdade. E

Justina ainda se perguntou:

a dinâmica em si, aplicada nessas aulas tem sido um elemento positivo para o estímulo a construção de imagens e metáforas corporais; mas não sei exatamente se posso atribuir aos pares/opostos referentes a tais emblemas as imagens que me são sugeridas, uma vez que o quer que se apresente, a princípio, pareça-me apenas tratar-se de opostos simples.

Ou seja, é como se Justina se cobrasse ou tivesse a expectativa de algum tipo de resposta

específica por se tratarem de opostos ligados ao yin yang, que, para ela, soavam como todo e

qualquer par de opostos. Em realidade, essa é uma preocupação desnecessária, e foi o que

tentei explicar-lhes ao longo das aulas. Não se tratava de mi(s)tificar a proposição, em virtude

de sua origem taoísta. Até por que não havia necessidade de se dar conta dessas imagens do

ponto de vista de qualquer significação. Estas estavam funcionando apenas como starts para

construções corporais, que podiam vir a inspirar, associar ou relacionar várias outras

referências que despertassem nos corpos de cada um, durante a experiência.

6.1.c. Fase 3

A terceira fase foi norteada pelos trigramas do I ching. Compôs-se de nove encontros,

sendo cada qual voltado a um dos oito trigramas, e o nono, a pedido dos alunos, destinado a

jogar, propriamente, o I ching para eles. Essa foi a etapa em que senti a turma mais presente e

aberta à experimentação. Em que pese a dificuldade demonstrada na etapa anterior, nesta fase

eles se permitiram brincar mais com as sugestões, se julgando menos, e menos preocupados

em “acertar”. Apesar de, hoje, achar que excedi na quantidade de estímulos propostos - muitas

imagens, sensações e sugestões a cada encontro - ainda assim, houve grande aproveitamento

por parte dos alunos, como demonstram seus depoimentos sobre o período. Por outro lado,

talvez o próprio bombardeio de imagens sugestivas tenha favorecido, em certo aspecto, a

minoração da atividade racional, estimulando a imersão no trabalho. Isso é inclusive

mencionado em alguns relatos por parte deles.

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Page 169: Por uma TAO expressividade

As perguntas que seguem compõem o questionário referente à terceira fase - após

experimentação com o I ching e contato continuado com chi kung (respostas em anexo):

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as

dinâmicas relativas aos arquétipos/trigramas do I ching? Comente.

2. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.

3. O chi kung facilita, dificulta ou não interfere no seu trabalho técnico/ criativo/

expressivo? Comente.

De acordo com as respostas pôde-se constatar que houve, nessa fase, um crescimento

na relação com a prática do chi kung, que passou a ser mais bem aceita e percebida em sua

influência positiva sobre os trabalhos técnicos e criativos. Como já mencionado, eles

responderam em questionários aplicados em diferentes fases, perguntas específicas sobre o

chi kung, e ainda inseriram relatos sobre a prática no caderno. Em seção específica

apreciaremos essas respostas e comentários relativos ao chi kung.

Com relação à primeira questão transcrevo, a seguir, trechos que demonstram a forte

identificação dos alunos com o trabalho dessa fase.

A combinação das sensações e estímulos propostos sempre casava perfeitamente e os resultados percebidos não só em mim, mas também nos colegas, foram fantásticos. Houve composições maravilhosas que me lembro que nasceram de todos esses estímulos e que tinham uma profundidade fascinante (...) os estímulos dos trigramas proporcionaram criações ao me ver indispensáveis para o meu crescimento. Eles mexem com todos os tipos de sensações que já existem dentro da gente. (Júlia, resposta ao questionário)

Acredito que o trabalho de composição de um personagem se dê a partir de estímulos de personalidade, texturas, movimentos, relações com outras fontes. Enfim, o processo com os trigramas possibilitou uma gama de possibilidades de criação, pois além de trabalhar com arquétipos conhecidos, próximos, trouxe várias fontes de estímulos (natureza, temperamento, comportamento). O fato de trabalharmos com esses arquétipos deixou o grupo mais à vontade para criar. Não houve imposições de características realistas, cada um seguiu o seu desenho e a sua leitura. A criação vinha a partir do corpo, mas não deixava de lado a criação intelectual. Ao contrário, desde o trabalho do chi kung, valorizamos os nossos dois pólos de energia, o yin e o yang. (Clarissa, resposta ao questionário)

Me senti estimulado, os trigramas agrupam significados, apontam várias coisas que tem um ponto comum (ex: terra, profundo, escuro, frio, etc.), e isso cria uma ‘atmosfera’, um campo mais delimitado para que uma ação seja realizada de modo definido. (Altamar, resposta ao questionário)

Acho as imagens do I ching muito fortes, mas acredito que elas apenas não conseguiriam suscitar em mim tantas respostas. (...) Cada aula era conduzida direcionada a um fim. E os resultados corporais obtidos me deixaram muito satisfeito. As respostas com os trigramas

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Page 170: Por uma TAO expressividade

eram muito verdadeiras e sem dúvida já estão armazenadas em minha memória corporal. Me diverti muito criando a partir dessas imagens. (Leonardo, resposta ao questionário)

O processo aguça a imaginação, a criar imagens, que deixam o corpo ‘flexível’, as criações, as composições passam do racional para o experimental. Esta etapa mexeu muito com as emoções, estas expressas no corpo. Se fosse compor um personagem teria um excelente material, principalmente as personagens que exigem uma partitura corporal, que aliás, acho que todas precisam de uma certa forma. (Cinara, resposta ao questionário)

Acredito que todo repertório apresentado na aula nos estimule efetivamente a compor, uma vez que a condução se presta a unir nosso potencial subjetivo, a imagens sugeridas pelos arquétipos. (...) Era sempre surpreendente o quanto cada arquétipo se delineia em uma propriedade energética expressiva e em um repertório de imagens, muitas vezes comum entre os integrantes do grupo, o que, pra mim, remete ao aspecto do inconsciente coletivo e, quanto à contribuição individual, certamente é o que estabelece o diferencial, e a pluralidade das composições. (Justina, resposta ao questionário)

A maior disposição ao trabalho nessa etapa se deve, a meu ver, a alguns fatores:

primeiro ao fato deles enxergarem mais claramente uma aplicabilidade da proposta, já que

terminávamos as aulas, nessa etapa, com uma construção que era apresentada à turma. O

segundo motivo é o fato do trabalho ter sido dirigido para a construção de algo mais próximo

a uma “personagem”, que ora chamei de “entidade”, ora de “criatura”, ou “estado” tentando

evitar uma psicologização excessiva por parte dos alunos. Entretanto, se eles aproveitaram

melhor essa fase que a anterior, onde a experimentação ainda estava mais solta e sem foco

perceptível para eles, por outro lado, acredito que a etapa anterior os preparou para esta.

É interessante consultar o diário de aulas, em anexo, para observar os comentários

específicos sobre as construções de cada dia, ligadas a cada um dos trigramas, bem como

sobre como as atividades associadas, incluindo o chi kung, contribuíram para tal construção.

Como crítica ao meu próprio trabalho de facilitadora, hoje vejo que faltou instalar

nessa fase, um espaço diário de registro, repetição/transformação e incorporação das

construções expressivas. Percebi isso especialmente ao fim do processo, quando muito pouco

do que foi levantado por eles ao longo do processo pode ser trazido no trabalho final. Não

havia suficiente treino de composição, com suas características de recortar, aumentar,

diminuir, colar, etc. as células expressivas. Assim, mesmo quando lembraram alguma

construção e trouxeram para o trabalho final, na última etapa, não o fizeram na perspectiva de

montagem. Ou seja, trouxeram as construções bem próximas do original, por que não os

provoquei suficientemente para o exercício de transformá-las. Voltaremos a falar sobre isso.

170

Page 171: Por uma TAO expressividade

6.1.d. Fase 4

A quarta fase, composta por três encontros, voltou-se à criação de textos tendo por

motivação todo o processo vivido até então. A partir de um exercício de escrita, em que

estavam mobilizados pelo chi kung, e sugestionados – através de palavras e músicas - por

aspectos dos oito trigramas trabalhados nas últimas semanas, eles criaram uma série de textos.

Os alunos se mostraram particularmente mobilizados pelo ato de escrever. Houve

bastante envolvimento, algum choro, muita emoção, tanto durante o exercício da escrita,

quanto no momento de leitura dos textos. Não houve questionário específico, referente a esta

etapa, mas pude coletar comentários em seus cadernos. Altamar disse “fiz um texto onde

elementos profundos preponderavam, havia sempre uma volta para o interior”, e Cinara

constatou “quando fui criar o texto o que foi dito e tudo que estava impregnado das

dinâmicas, me fizeram viajar”. É fato que, de um modo geral os textos apresentaram

características bem poéticas e intimistas. Os comentários a seguir mostram bem o quanto o

trabalho afetou a turma de um modo geral:

Foi tranqüilo enquanto eu estava escrevendo. Eu sabia o que escrevia, mas não tinha noção do resultado de todas as palavras ligadas. Ler o resultado é que foi desagradável, pois me lembrei de coisas que preferia ter esquecido e comecei a pensar em outras que nunca me ocorreram. Eu me acho muito fraco pra esse tipo de trabalho, por que se por muito pouco me comovo, imagine num trabalho desses que mexe com sentimentos pessoais. Não consigo segurar e começo a chorar. (Leonardo, depoimento em caderno).

Foram dados estímulos a partir dos trigramas e nós íamos escrevendo palavras ou imagens que viessem à mente. Foi uma experiência inesquecível. Passar pelos trigramas, sentir sensações das mais complexas e variadas possíveis. Afloraram em mim sentimentos que por muito tempo estavam esquecidos nas gavetas da minha mente. Fui tomada por uma grande melancolia e tristeza, palavras que inclusive estão no texto. Podemos dizer que sofri uma catarse. É esse o nome com que defino a experiência vivenciada hoje. Apesar das lágrimas e das lembranças dolorosas, considero positiva a experiência, pois preciso saber lidar com os sentimentos que por ventura possam transbordar de dentro de mim (...) Vieram à tona sentimentos guardados que precisavam sair, não deixaram de ser doloridos, mas talvez de uma próxima vez eu saiba lidar melhor com eles. (Júlia, depoimento em caderno).

O processo de construção da dramaturgia me pegou de surpresa. Realizar, em aula, um trabalho escrito representou uma quebra nas nossas atividades, mas essa sensação foi somente inicial, por que o processo utilizado trouxe de volta as imagens trabalhadas em sala. Para mim foi fácil reviver imagens e emoções e coloca-las no papel. (Afrânio, depoimento em caderno).

Após esse exercício inicial, os outros dias foram destinados à fusão e à recriação

dessas escritas, visando construir um texto que norteasse o trabalho final. No anexo B.2 estão

transcritos, na íntegra, tanto os textos originários, realizados em estado de imersão e chi kung,

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Page 172: Por uma TAO expressividade

quanto os derivados - que orientaram os trabalhos finais - criados a partir da fusão e

transformação nos encontros entre dois ou mais textos.

6.1.e. Fase 5

A última fase, com cinco encontros, voltou-se para a preparação de uma apresentação

final, tendo como norteadores os textos criados na fase anterior. A idéia era que eles

buscassem suas produções expressivas geradas ao longo do semestre, e trouxessem-nas para

um diálogo com esses textos, dentro de composições em grupos de três a quatro pessoas.

Entretanto, essa foi a fase mais frustrante para mim e para a turma. Não conseguimos um

resultado condizente com o processo, que se mostrou tão interessante. Em análise conjunta,

elencamos alguns fatores para isso.

Primeiramente, houve certo descompromisso – ou em alguns casos dificuldades nos

horários de aula nesta fase – por parte de alguns alunos, prejudicando os grupos de um modo

geral. Outra questão, é que propus trabalhos mais individuais durante o semestre, e talvez

devesse ter continuado com essa perspectiva até o fim, já que eles haviam exercitado essa

disposição. Ou então, eu poderia ter trazido mais propostas em grupo desde antes.

Posteriormente à discussão em aula, fiz uma retrospectiva do curso e, individualmente

identifiquei outros fatores para nosso “insucesso” no trabalho final. Um aspecto que pode ter

contribuído é o fato de eu ter decidido não dirigir os trabalhos, preferindo deixar que fossem

criados e desenvolvidos pelos grupos, com o mínimo de interferência minha. Hoje,

especialmente após ter sido dirigida em circunstância parecida com a deles, vejo o quanto um

olhar externo pode contribuir nesse processo de posta em cena e re-alocação das matrizes.

Um outro problema detectado foram os próprios textos escolhidos para as cenas finais.

Se por um lado o processo de criação desses textos foi extremamente estimulante para a

turma, por outro, talvez não fosse o material dramatúrgico mais adequado para aquela

experiência. Hoje imagino que se tivesse trabalhado com textos de outros autores, fossem

poemas, contos ou mesmo trechos de textos dramáticos, talvez a fase tivesse sido mais

produtiva. Isso porque o tema dos textos por eles produzidos era coincidente aos temas que

geraram seus movimentos, o que favoreceu um processo ilustrativo: falo sobre o vento, trago

a matriz do vento, e assim por diante. Essa abordagem é bem diferente da que experimentei

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Page 173: Por uma TAO expressividade

em Traços, e que achei mais eficaz. Outro aspecto é a própria estrutura, e a eficácia

dramatúrgica dos textos. Como produção criativa, dentro do contexto da disciplina, os textos

são interessantes e poéticos. Entretanto, para orientar uma cena, não são apropriados. Ou seja,

não têm uma “qualidade” dramatúrgica necessária.

Como um último aspecto crítico dessa escolha, vejo o fato de os textos terem sido

produzidos por eles mesmos. Imagino que dialogar com um material textual/dramatúrgico

totalmente alheio tornaria a experiência mais complexa, e provocaria maior ação criativa.

Certo distanciamento do texto estimularia mais processos de interpretação e significação, por

parte dos alunos na posta em cena. Ter proposto a fusão e re-elaboração dos textos individuais

minimizou, mas não solucionou esta questão.

Também não houve um questionário específico para esse momento, mas há

depoimentos coletados sobre a etapa na transcrição do diário de aulas. De um modo geral eles

refletem essa frustração.

Esse processo final foi bastante conturbado e frustrante. Por conta da falta constante dos componentes do meu grupo, inicialmente, fizemos tudo racionalmente. Isso não funciona nem um pouco. Particularmente tive uma experiência muito rica e um material de trabalho profundo. Todo esse material que adquiri ao longo das aulas não consegui resgatar e aplicar na apresentação final. Seria muito mais produtivo se tivéssemos continuado com as aulas que estavam sendo bastante enriquecedoras. Gostei muito das aulas. Essa experiência vou levar para vida enquanto atriz e o chi kung, principalmente, para o lado pessoal. (Júlia, caderno de registro)

Esse trabalho final foi pouco para todo o processo, fizemos pouco. A construção do texto foi prazerosa, os estímulos foram bastante importantes, fluíram, o pior é que tínhamos bagagem para uma montagem, não sei por que não rolou. Gostaria de continuar no próximo semestre para entender melhor tudo (me refiro ao aprimoramento). (Cinara, caderno de registro)

Estive ausente nas duas primeiras aulas de construção conjunta do texto (...) Nos correspondemos por e-mail durante o São João, discutindo inclusive os conectivos que deveriam estar presentes ou ausentes no texto. Somente em sala, pensando juntos é que as imagens, inclusive corporais, foram surgindo. A imagem idealizada racionalmente estava linda. Como realiza-la. Não tínhamos a resposta e exatamente nesse momento as faltas começaram a acontecer (...) a ausência de um imobilizava o grupo. Gostaria de pedir à professora que não se sentisse frustrada pelo resultado, mas sim feliz pelo processo, que pra mim pelo menos foi o mais bem aproveitado e que mais ressoou em termos de expressividade. (Leonardo, caderno de registro)

Para finalizar essa seção, transcrevo um poema de Fábio sobre esse momento do

trabalho. O belo nesse poema, a meu ver, é que ele reflete de modo sutil, mas intenso, saberes

ligados ao imaginário taoísta, como: o aspecto cíclico dos processos, a natureza ambivalente e

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Page 174: Por uma TAO expressividade

incerta das questões, e a perspectiva de um universo não cognoscível, mas nem por isso,

imperceptível.

As coisas são como são?

As coisas têm um tempo de maturação (caju só dá no tempo).

As coisas não são tão feias quanto parecem.

As coisas vão melhorar.

As coisas nem têm um fim.

As coisas servem à reflexão.

Há muito mais coisas. (Fábio, caderno de registro)

6.1.f. Sobre o chi kung

Fiz a opção de tratar do chi kung em um item à parte, ao invés de trazer as impressões

dos alunos sobre a prática ao longo das fases. Creio que assim podemos ter uma noção mais

elucidativa do processo deles nos treinos, seja individualmente, seja da turma como um todo.

A seguir estão transcritos trechos de depoimentos colhidos nos cadernos, e nas respostas aos

questionários, especificamente sobre o processo de adequação ao chi kung. Os trechos vêm

precedidos pelas datas, para que se possa ter uma visão progressiva da relação de cada aluno

com a prática. Quando for o caso, há menção de que se trata de respostas aos questionários. A

título de recordação transcrevo novamente as duas questões que figuraram nos questionários

da fase 2 e 3, relativas ao chi kung:

1. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.

2. O chi kung facilita, dificulta ou não interfere no seu trabalho técnico/ criativo/

expressivo? Comente.

Passarei a comentar cada compilado de declarações sobre o chi kung, oriundo de cada

aluno, e, ao mesmo, tempo irei desdobrando-os em comentários mais genéricos ou

comparativos. Não há declarações de todos os alunos, assim, trago apenas vozes que

apresentem reflexões sobre a prática em pelo menos três momentos diferentes do processo.

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Page 175: Por uma TAO expressividade

Júlia Barreto foi uma aluna que escreveu bastante sobre todo seu processo, o que

apenas reflete seu envolvimento grande com a disciplina. Assim, opto em analisar suas

impressões sobre a prática em dois blocos, o das anotações espontâneas, no caderno, e o de

respostas aos questionários. Comecemos pelo primeiro.

(05/04) Senti bastante a energia yin subindo pelos pés, pernas e com o pulsar da vagina chegar na mãe de todos os centros. Era uma energia quente, uma sensação de formigamento. Na hora de captar energia yang senti tontura e uma agonia, acho que não consegui captar essa energia de forma organizada. (07/04) Sensação de meu corpo estar se expandindo. Sendo que, para mim, meu corpo projetava-se para frente. Impressão de que o corpo estava completamente torto. A energia yin foi mais vibrante que a yang. Senti uma evolução em relação à aula passada, mesmo com a energia yang. (12/04) Hoje, particularmente não estava concentrada. Senti um incômodo com o exercício e um pouco de tontura. Talvez isso tenha acontecido porque meu corpo está muito dolorido. (14/04) Sensação de expansão e tranqüilidade. Quando abri o olho estava conectada comigo mesma. O meu corpo parecia estar em equilíbrio. (10/05) Consegui me concentrar bastante. Fluiu, não fiquei agoniada. (12/05) Ainda no chi kung foi irradiada a energia para a coluna. Essa energia foi impulsionando e provocando movimentos com a coluna. Minha coluna realmente parecia estar regida por essa energia, sugando do centro de todas as mães. Eram movimentos sinuosos, verticais e horizontais. Minha coluna parecia uma serpente. (17/05) Hoje senti as duas energias equilibradamente. Ainda em chi kung meu corpo, como foi proposto, foi derretendo. Era uma energia passiva, pesada. Senti os fluidos do corpo e isso impulsionou movimentos lentos, contidos e sinuosos vindos do corpo todo. (19/05) Não estava concentrada, as coisas não fluíram. (24/05) Entrei numa sintonia forte com minha energia e a que circundava. (09/06) Hoje fizemos sem comando. Foi bom. Acho que prefiro seguindo o comando (14/06) Senti meu corpo muito torto, mas não incomodou. (28/06) É sempre bom reorganizar as energias. As energias ficaram equilibradas. (Júlia Barreto)

A fala de Júlia mostra uma disposição bastante positiva em relação à prática, desde o

início. Note-se que há uma consciência forte no que se refere às dificuldades e às sensações

que o treino provoca. Não se pode inferir uma “evolução” ou “melhora” de aproveitamento

por sua fala, até por que, como já dito, trata-se de um corpo pré-disposto à experimentação

desde o primeiro contato. Vale ressaltar que houve dias, no decorrer do processo, em que o

exercício mostrou-se mais penoso, mas nem por isso, em momento algum a aluna invalida a

prática, antes demonstra consciência de que sua desconcentração estaria dificultando o

processo. Há ainda menções, do meio para o fim do relato, do fato dela passar a alcançar

estados de equilíbrio de energias yin e yang. Outro aspecto a ressaltar é o link que ela sente

entre a prática e exercícios posteriores, a partir do chi kung, mas já em perspectiva técnica ou

de experimentação expressiva, como o caso dos exercícios da “serpente na coluna”, e do

“corpo em derretimento”. Em suas respostas aos questionários, ela própria dá uma idéia de

como sua relação com o treino foi se dando no decorrer do processo.

(10/05, em questionário) A presença cênica é estimulada pelo centro energético. Acho minha energia bastante desorganizada, nas vezes que consegui realizar bem, sem interferência o chi

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Page 176: Por uma TAO expressividade

kung, senti minha energia em harmonia não só na aula, mas no resto do dia. O chi kung precisa ser um exercício diário, pois me incomoda um pouco. Nas vezes que me concentrei e realizei bem o chi kung meu corpo ficou em estado de prontidão para criar. No sentido técnico/expressivo sinto uma dilatação no corpo, uma sensação de expansão. Especificamente em alguns processos sentia a energia partindo da mãe de todos os centros e visualizava a energia yin e yang. Quando o centro energético é ativado, a criatividade aflora. Eu procuro deixar fluir as indicações e deixar de lado o racional para que meu corpo aja de forma espontânea. (09/06, em resposta a questionário) Hoje posso afirmar que com chi kung consegui reorganizar melhor minhas energias. A concentração também é algo imprescindível para o ator e o chi kung permite desenvolver muito bem isso. O contato com o chi kung foi maravilhoso não só porque vai me ajudar, ou melhor, já está ajudando profissionalmente, mas também auxilia espiritualmente e mentalmente. Até porque o ator tem que saber lidar muito bem com seu emocional, por isso o ofício do ator é muito difícil. Particularmente gosto muito dos preceitos e da filosofia oriental e pretendo continuar usando a sabedoria oriental em todos os ramos da minha vida. No meu entendimento o chi kung permite o equilíbrio das energias que partem do centro energético de forma a irradiar de forma cíclica todo o espaço. Isso está diretamente ligado com a presença cênica. Quando faço o chi kung fico extremamente concentrada e mais criativa durante os laboratórios. Além dessa dilatação do meu corpo que já havia dito anteriormente, sinto uma conexão muito grande com o meu corpo, o espaço e as pessoas ao meu redor. É como se fosse aguçada a percepção, a consciência de tudo que me cerca. À medida que fui fazendo o chi kung em aula e às vezes em casa, ficou mais fácil mergulhar nesse equilíbrio das energias yin yang. Senti um progresso na execução do exercício, apesar de ainda continuar sentindo a energia yin mais presente. Tecnicamente falando, consegui desenvolver em sala resultados que me deixaram muito satisfeita. Sinto hoje uma evolução na minha consciência corporal, no meu estado de prontidão. Acredito que isso tenha se dado devido ao princípio de tudo, que, no caso foi o chi kung, que impulsionou esse estágio em que me vejo agora. Sinto-me à vontade a criar com o corpo sem travas e tensões. Tomara que possa dar continuidade ao chi kung para que possa atingir esse ponto que é de extrema importância. (Júlia Barreto)

As respostas apontam para grande aceitação e reconhecimento dos benefícios da

prática tanto em termos de favorecimento de criatividade e expressividade, como em relação à

vida diária. Note-se que ela menciona que passou a praticar em casa, também, e ainda

demonstra disposição para continuar praticando. Além disso, Júlia relaciona a prática à noção

de dilatação, de Decroux, assimilada por Barba.

Outro aluno que demonstrou grande receptividade às propostas ao longo do semestre

foi Leonardo Batista. Aqui também, em virtude do volume de impressões registradas,

separarei as falas espontâneas das relativas aos questionários, iniciando pelas primeiras:

(05/04). Senti um calor na sola dos pés e no centro da cabeça na hora de visualizar o redemoinho e misturar as energias na mãe de todos os centros, região que não consegui mobilizar e sentir. (07/04) Hoje, em vez dos pés e cabeça, foram as mãos que ficaram quentes. E comecei a sentir a concentração de energia na região ‘mãe de todos os centros’, mesmo que de maneira descontinuada. (12/04) Segundos antes de a professora dar as indicações dos pontos eu sempre pensava neles, como se eu estivesse de alguma forma conectado ao pensamento dela. (14/04) Maior percepção da energia yin promovida pela contração do períneo. (10/05) A captação da energia yin tem me deixado um pouquinho tonto. Não consigo sentir nada pelo canal da fonte borbulhante, mas a pulsação do períneo agonia meu corpo.

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Page 177: Por uma TAO expressividade

(17/05) Ainda é difícil entender o que aconteceu, quando a concentração estava direcionada ao centro yang (redemoinho) eu fiquei angustiado, o meu peito apertou e tive uma sensação horrível de sufocamento. Fiquei tonto e me deitei, mas não melhorei. Foi então que a professora encostou em mim e colocou a mão no meu peito e o sufocamento foi desabafando em choro. Não havia motivo algum, mas chorei e fui desabafando e não queria soltar a professora porque senti uma energia muito maternal. Me assustei um pouco, mas além de revelador me deu uma ótima sensação de purgação. (31/05) Consegui trabalhar hoje com a energia yang, mas no momento de concentração e captação de energia yin senti-me tonto e desconfortável e interrompi o processo. (07/06) O chi kung hoje não foi orientado (não aconteceu como antes, quando cada etapa era explicada verbalmente durante o processo) pela professora, mas por cada um de nós dentro de nosso tempo para cada fase. E eu adorei, me senti muito bem sendo o senhor de meu tempo. (09/06) Novamente executado sob o tempo de cada um, em seu ritmo. Muito tranqüilo e proveitoso pra mim. (Leonardo Batista)

Assim como Júlia, Leonardo apresenta forte percepção das sensações e dificuldades

durante a prática, apontado para uma conscientização progressiva das próprias características

energéticas, por assim dizer. Interessante apontar que Júlia sente mais facilidade com a

energia yin, enquanto Leonardo menciona maior desenvoltura na relação com a energia yang.

Seria muito simplório, e provavelmente equivocado, afirmar que isso se deve a uma questão

de gêneros. Parece-me mais plausível pensar em singularidades ou tendências energéticas.

Que por sua vez não devem necessariamente se dar como estanques ou definitivas. Eu

particularmente, tendo a perceber a energia yang com maior intensidade, por exemplo, o que

não significa que não possa haver épocas ou circunstancias em que isso se altere.

Sensações como tontura, sudorese, formigamento, náuseas são relativamente

freqüentes, entretanto, a emoção descrita por Leonardo, que o fez, de fato, chorar bastante, já

não é tão recorrente. Não desejo interpretar o fato, não me sinto à vontade, nem habilitada

para isso, mas penso que manifestações como essa demonstram a estreita relação entre

aspectos energéticos e afetivos do corpo, sugerindo mais uma vez a importância de olhar esse

corpo em sua complexidade.

Passemos agora às respostas de Leonardo aos questionários.

(10/05, em questionário) Desconforto foi a primeira sensação. Não consegui me concentrar por que meu corpo doía um pouco e mesmo que eu visualizasse as imagens de formação de energia (wu chi, chi, tai chi) não conseguia sentir a energia se formar. Com o tempo tive outras respostas. O corpo suava, as mãos aqueciam e formigavam e tanto visualizava, quanto começava a sentir a energia, mas de maneira desorganizada e caótica, em especial na região da mãe de todos os centros. Sem dúvida alguma [o chi kung] facilita [o trabalho técnico, expressivo e criativo] principalmente pelo fato de ser a primeira aula do dia. O chi kung possibilita uma reorganização ativa das energias do corpo, e amplia no ator a experimentação vigilante e investigativa. Isso tem me ajudado no processo de percepção. (09/06, em resposta a questionário) A captação de energia yin me desestabiliza. Queria entender por que. O que não acontece com a captação da energia yang. Nesse caso, além de facilidade de captação, acho

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que manipulo muito bem essa energia. Hoje afirmo que [o chi kung] facilita [o trabalho expressivo] com muito mais propriedade, pois tive a oportunidade de experimentar a prática dentro dos trabalhos do meu grupo de teatro, e então pude perceber o quanto surte efeito. (Leonardo Batista)

Leonardo mostra nessas falas um crescimento em relação á prática. Entretanto me

inquieta a seguinte afirmação: “a captação de energia yin me desestabiliza”. Creio que essa

impressão mereceria uma análise mais preparada, por parte de um acupunturista ou mestre de

chi kung. Poderia ser considerada a possibilidade de que Leonardo estivesse com um tal

desequilíbrio energético que o fato de estar buscando uma energia que em seu corpo estivesse

ou em excesso ou em falta, acabou lhe trazendo a pseudo impressão de que esta o

desestabilizava. Quando talvez a “estabilidade” ameaçada fosse, em realidade, um

desequilíbrio, a que seu corpo já teria se habituado. Leonardo, assim como Júlia, mostra a

vontade de levar a prática para além da disciplina, como diz ter feito em seu próprio grupo de

teatro.

Clarissa Santana, outra aluna de fácil abertura para ações experimentais, também

demonstra em suas falas sobre a prática, perceber a eficácia da mesma em relação ao trabalho

do ator. Sua fala mostra sensações recorrentes, as quais já mencionamos, e a consciência

sobre a interação de energias diferentes no corpo.

(07/04) Calor nas mãos, enraizamento dos pés que levou a um movimento lento de saída para a caminhada. Lacrimejamento, bocejo (menos que na aula anterior). (19/04) Passei mal. Minha pressão baixou durante o trabalho energético, mas consegui superar. Depois não teve mais jeito, não consegui absorver mais nada. (03/05) Acho a prática do chi kung bastante eficiente para a manutenção viva da energia, mesmo nos momentos de não movimento. (12/05) Gosto da prática do chi kung. Concentramos a energia, nos conectamos conosco e automaticamente nos tornamos mais presentes na aula. (09/06, em resposta a questionário) O chi kung me proporcionou a percepção de união dos nossos opostos complementares. O fato de acreditar muito numa construção intelectual em nenhum momento me bloqueou para trabalhar com a proposta do chi kung. Percebi que o processo é concomitante, fonte yin e fonte yang, uma se alimenta da outra. A vigilância sobre o processo não precisa ser somente questionadora, mas auxiliadora. O corpo sabe agir, sem precisar seguir apenas ordens. O chi kung me proporcionou essa experiência. Qualquer técnica que seja utilizada antes da criação interfere em seu processo. O chi kung proporciona a concentração da energia, o equilíbrio. Coloca o grupo, o indivíduo, num estado de tranqüilidade e de propriedade sobre si. Ele lida com a qualidade de energia e essa qualidade que devemos levar pra cena. (Clarissa Santana)

Passemos agora às observações de Altamar Araújo.

(05/04) Um pouco difícil se concentrar. Havia dois pedidos, um para se desligar e centrar o corpo nos pontos, o outro nas entrelinhas: “siga minhas orientações”. Mesmo assim senti a cabeça pesar e os pés pesarem, tendência a sair do equilíbrio, cair para frente, e ao mesmo tempo havia a força que não me fazia cair. (12/04) peso corporal: pés: suporte de peso, cabeça: parte a ser suportada, abdome: união das duas partes citadas. (10/05, em questionário)

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Page 179: Por uma TAO expressividade

Tranqüilidade, agonia, imagens coloridas, medo, dor nos pés, peso, relaxamento. Tal trabalho possibilita concentração do corpo, fato fundamental para passear pelas técnicas de corpo. É uma preparação para as múltiplas possibilidades e o observo como um portal de entrada que diferencia o ocasional, cotidiano, etc, do controlado, criativo, artístico. Talvez fosse interessante para valorizá-lo como preparação, início, portal, a existência de uma técnica similar para finalizar o momento criativo. (24/05) Senti-me desconcentrado. Porém, ao voltar-me para o chacra central consegui recuperar a concentração. (09/06, em resposta a questionário) As respostas do chi kung foram às vezes calafrio, autopercepção, consciência corporal, funciona em mim como um corte de energia de produção de ações cotidianas e minha energia de ações de pesquisa corporal. O chi kung facilita e interfere no processo no sentido de possibilitar uma concentração para início de um trabalho de ator. Acho importante separação entre ‘arte’ e ‘realidade’ em se falando do trabalho de ator, pois estes espaços possuem ‘leis físicas’ diferentes. (Altamar Araújo)

Altamar destaca na sua fala dois aspectos importantes. O primeiro é a vontade de que

houvesse um momento similar de chi kung no fechamento das aulas, e não só no início. De

certa forma ele pode ter razão. Como o trabalho com a energia acaba sendo orientado para

uma criação expressiva, pode haver tendência a um novo desestabilizar energético após toda a

canalização em prol do momento de experimentação. O tempo exíguo de aula não comporta

mesmo um outro momento da prática no fim das atividades, entretanto, um gesto como

abraçar o centro (mão esquerda em contato com o umbigo, e a direita por cima), com a

intenção de soltar as energias incentivadas no processo experimental, já pode colaborar nesse

aspecto.

Outro apontamento importante de Altamar, é a relação da prática com a noção de

extra-cotidianidade, de Barba. Assim como Júlia, que articula ao chi kung a idéia de dilatação,

Altamar também se vê favorecido pela compreensão corporal de uma noção que muitas vezes

se situa no plano teórico, através da prática de chi kung.

Nem todos os alunos manifestaram uma boa aceitação em relação à prática,

especialmente no início. Houve resistência, crítica e autocrítica que dificultaram a abertura ao

processo. Observemos as impressões de Cinara Paiva.

(12/04) Senti dor, incômodo. Continuo sem sentir muita coisa e quando sinto foge rapidamente e aí vem o mal-estar. Sinto dificuldade em me concentrar. Não quero criar preconceitos e resistência em relação ao chi kung. (10/05 em questionário) Incômodo e mal estar. Não consigo ver nada, sinto muita dor nas costas, agonia, vontade que acabe logo. Tento várias vezes seguir todos os passos do exercício, até sigo, mas na hora de sentir energia, de ver o ponto entrando em minha cabeça já era. Não funciona comigo (pelo menos por enquanto). (09/06 em questionário) Hoje em dia vem me deixando mais concentrada, mais centrada no trabalho diário. Ainda bem que o processo é um crescente, pelo menos esse foi, só agora me dei conta de que forma as dinâmicas poderiam me ajudar. Ajuda. Como eu resolvi converter em prazer, consegui que me ajude na concentração. (Cinara Paiva)

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Page 180: Por uma TAO expressividade

A aluna mostra o quão difícil foi para ela praticar os treinos. Entretanto, em resposta

ao último questionário há clara referência de uma mudança de disposição em relação ao chi

kung. Processo em alguns pontos similar ao de Fábio Ferreira. Vejamos seus relatos.

(05/04) Durante o tempo de concentração ou captação de energia, afastar os pensamentos é muito difícil, manter o equilíbrio do peso bem dividido nas solas também. Sensação de estar com o corpo torto. (07/04) Novamente senti desconforto. Mesmo assim acredito ter aproveitado melhor. É mais fácil para mim a conexão com a terra. O meu vazio é colorido. A tendência dos meus joelhos é travarem (isso me consome atenção). (12/04) Estava sem concentração, por mais que me esforçasse tudo era rápido demais, se processava estranhamente, desorganizado, a impressão era de que não estava funcionando, ou funcionando de forma que eu não compreendia. (14/04) Hoje percebi uma maior concentração de energia embora ainda não seja a que suponho ideal. Continua mais difícil a conexão yin, mas entendo que houve certa evolução. (10/05, em questionário) Acredito aproveitar o chi kung como meio de me concentrar, me trazer pra sala, trazer a atenção pra mim e meu corpo. Nisso me agrada. No trabalho técnico/ expressivo/ criativo por enquanto não interferiu. Talvez seja cedo. Talvez o tempo não seja suficiente. (24/05) No chi kung de hoje senti que de fato consegui me concentrar. Não sinto ainda o corpo se manifestando por conta própria. (Fábio Ferreira).

Fábio apresenta disposição oscilante em relação à prática, por vezes parecendo

desacreditá-la, por outras, apresentando maior aproveitamento. Extremamente crítico e

racional, o aluno demonstrou essa tendência ao longo de toda a disciplina. Trata-se de uma

característica que em alguns aspectos foi extremamente benéfica para turma, já que suas

observações costumavam ter uma clareza de análise que favoreciam a consistência de nossas

reflexões. Entretanto creio que, especialmente para seu próprio aproveitamento nas

experimentações tal atitude não ajudou. Fábio tinha dificuldade de entrar em contato com as

práticas e imagens propostas, e suas criações vinham sempre acompanhadas de forte

autocrítica e julgamento. Em que pese o aluno afirmar, em resposta ao último questionário,

que a prática não interferiu em seu trabalho técnico/criativo/expressivo, outras afirmações,

como a de que o trabalho ajuda na sua concentração e a trazer sua atenção para o próprio

corpo, parecem soar, no mínimo, paradoxais àquela primeira.

Para concluir as análises individuais, trazemos agora as impressões de Justina Souza.

(12/04) pude perceber uma manifestação energética que, salvo em flagrante clássico de auto-sugestão, se apresentava em minhas mãos em forma de calor e certa sensação vibrátil. (10/05 em questionário) Percebi que a qualidade de energia que se instala com o treinamento tende a conferir um estado inusitado entre a prontidão, concentração e relaxamento. Do ponto de vista filosófico, ideológico e até físico, o chi kung me trouxe o despertar de um olhar sobre meus canais de manipulação energética e, sobretudo, a verificação de um nível ainda embrionário de exploração nesse sentido. Considero o chi kung um elemento de conexão com o corpo integral (físico, energético, intelectual, etc). O que, por si só, oferece ao ator e ao indivíduo um fortalecimento e ampliação da percepção interior (o que há de contribuir de alguma via para o

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despertar e aprimoramento da criatividade); e exterior também, no sentido de expandir nossa atenção e os sentidos em geral (que me parece estabelecer um nível de consciência física e experimentação emocional e energética que me sugere um ambiente ideal para a expressividade). (17/05) O chi kung ajuda sempre a concentrar na aula, no espaço, centrar a percepção do corpo. De fato, para mim, a grande a contribuição está em me conduzir a uma prontidão e atenção viáveis para o trabalho expressivo. (09/06, em questionário) Me despertou para um aspecto importante da construção do meu repertório de expressividade, que é a importância de investigar essa via de energização de forma a prescindir um pouco da minha tendência intelectual e racional. Ou seja, muitas vezes, talvez pelo aspecto racional e a insistente observação dos aspectos físicos, não conseguia acessar o ‘canal’ que me ligasse (ou desligasse), para a percepção da manifestação energética. Acredito que se possa usar o chi kung como via de acesso à subjetividade e, por meio dessa, atingir certo nível de expressividade elaborado pela formação e fisicalização das imagens suscitadas no processo. Em nível energético, no entanto, não me sinto ainda suficientemente sensibilizada, e, apesar da limitação individual, verifico uma contribuição em nível de estímulo à formação de imagens e condicionamento criativo/expressivo. (Justina Souza)

Interessante notar que os relatos escritos de Justina por vezes parecem conflitantes

com alguns de seus depoimentos em aula. Isso porque, ao longo do semestre, em diferentes

ocasiões a aluna abordou a própria dificuldade de entrar em contato com as sensações e com a

prática, mencionando sua extrema racionalidade como fator impeditivo, nesse caso. Além de,

cumpre frisar, ela ter tido problemas pessoais sérios ao longo daquele semestre. Já nos relatos

escritos, fica uma impressão de que houve forte aproveitamento, e até alto nível de

compreensão dos benefícios e aplicações dos treinos. Não sei ao certo o que inferir disso,

talvez o tempo tenha corrompido positivamente sua resistência, talvez tenha havido um

entendimento racional das possibilidades de aproveitamento, mesmo que isso não tenha

ocorrido em nível vibrátil, talvez seus depoimentos, em aula, revelem uma auto-exigência

extremada, ou ainda um forte viés questionador.

Tanto os depoimentos, como a minha observação ao longo do curso, mostram que

houve, de um modo geral, uma transformação dos alunos dentro da prática. Seja por uma

confrontação e/ou superação processual de possíveis desconfortos causados pelo treino, ou

através das manifestações corporais que foram se intensificando. Seja ainda pela

conscientização progressiva de aspectos que concernem tanto ao campo energético de cada

corpo, quanto à importância dessa questão nos universos técnico, criativo e expressivo das

artes cênicas.

Uma mudança significativa percebida ao longo do semestre, é como a prática foi se

tornando necessária – e independente - ao processo criativo-expressivo dos alunos. Em

diversos momentos de ensaios ou ao longo das aulas presenciei os alunos recorrendo ao gesto

de abraçar o centro de olhos fechados, por exemplo, como se isso lhes devolvesse uma

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Page 182: Por uma TAO expressividade

inteireza, uma disposição à entrega para o trabalho. Além disso, vimos relatos de alunos que

levaram a prática para momentos extra-classe.

Na própria apresentação final, que não teve caráter de espetáculo, mas de um recorte

do processo, ainda que tenhamos identificado alguns problemas, já mencionados, era nítida

uma qualidade de presença naqueles corpos. Havia ali o prazer de se estar por inteiro, o prazer

da entrega.

Vale ressaltar também que, ainda que os treinos de chi kung sejam executados

individualmente, o fato de todos praticarem ao mesmo tempo confere ao espaço e à

coletividade uma energia de grupo coesa, uma cumplicidade vibrátil que favorece a aula, tanto

nas dinâmicas coletivas, quanto nas contracenas propriamente. Percebendo essa propriedade

de dilatação e interação do corpo grupal, em várias ocasiões, após o treino inicial, eu os

solicitava que andassem pelo espaço em estado de chi kung, mantendo inicialmente o olhar

semi-cerrado – como quem olha para fora, mas sem perder o “olhar para dentro” – e pedia que

se olhassem intensamente, ou ainda propunha algum trabalho em dupla nesse estado.

O chi kung mostrou-se altamente eficaz no processo de regulação energética, de auto-

percepção, de irradiação de presença, e na instalação daquele vazio motor, que favorece a

criação. A prática desdobra-se, assim, em recurso a ser usado pelo artista por seu próprio bem

estar pessoal, e enquanto ferramenta de trabalho. Nessa última perspectiva cabe recorrer à fala

da aluna Justina que percebe que:

Podemos falar senão de uma técnica “de atuação”, ao menos de uma técnica “para a atuação”, no sentido que o treinamento se presta a um aspecto de sustentação do ator/indivíduo como ser integral, ligado ao ambiente em que se insere. (Justina)

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Page 183: Por uma TAO expressividade

6.2. Traços ou Quando os alicerces vergam

6.2.a. O processo

O espetáculo foi concebido e montado ao longo de três meses e meio de trabalho –

entre julho e outubro de 2006, com, em média, três encontros semanais de cerca de três horas

cada. Nas primeiras seis semanas estivemos envolvidos no processo eu e o diretor do

espetáculo, André Amaro. Em seguida, quando já tínhamos esboçado as diretrizes básicas de

nossa estrutura dramatúrgica, o músico Luciano Marques (Lupa) passou a integrar os

encontros, e a agregar conceitos sonoros ao trabalho. Por fim, a artista plástica Maria Luiza

Fragoso (Malu), responsável pelo cenário e figurino, se somou a nós. Quando Malu chegou,

nosso processo já indicava uma série de demandas cenográficas, como os elásticos, alguns

objetos de cena e peças de indumentária, que ganharam unidade e resolução estética e

funcional a partir do trabalho da artista. Cerca de duas semanas antes da estréia passamos a

ensaiar e adequar o trabalho à estrutura cenográfica pronta.

Antes de prosseguir cabe apresentar os termos que serão usados na descrição e análise

desse processo. Quando falarmos em “matriz”, ao longo do capítulo, estaremos nos referindo

tanto a fonte inicial de uma determinada criação – em nosso caso de origem taoísta, e já

apresentadas no capítulo 1 – quanto ao conjunto de células expressivas gerado na relação de

experimentação com essa mesma fonte. Assim, a matriz frioquente, por exemplo, refere-se ao

mesmo tempo a um dos pares yin yang existentes, quanto ao conjunto do material expressivo

gerado em meu diálogo corporal com este par. “Células” ou “células expressivas” são termos

que farão referência aos vários elementos componentes dessas experimentações, surgidas a

partir do encontro do corpo com uma dada matriz.

Após o processo de experimentação com cada matriz, era possível decompor o

material bruto em células, que podiam ser: movimentos, posturas, timbres vocais, ritmos,

corporeidades, estados afetivos, atmosferas, ambiências, etc. Estas células expressivas

funcionam como matéria combinatória, com as quais lidamos em uma perspectiva de

composição - ou montagem. O conjunto de células, advindas de matrizes variadas,

pesquisadas corporalmente, constituiu certo acervo de recursos que foi consultado,

desdobrado, mexido, cortado, colado, revisado, ampliado, reduzido, acelerado, desacelerado,

etc., durante o processo de re-alocação no espetáculo. Na perspectiva de re-contextualização

das células originais para o contexto da peça, matrizes e/ou células expressivas se tornaram ou

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Page 184: Por uma TAO expressividade

apoiaram ações físicas. Ou seja, ao ganharem uma significação voluntária, ao passarem a

enunciar, no sentido dramatúrgico, dentro de uma partitura global do texto espetacular, as

células e matrizes adquiriram estatuto de ação física39.

Assim, basicamente a criação do espetáculo Traços ou Quando os alicerces vergam

consistiu neste percurso: durante o período de ensaios trabalhei com o imaginário taoísta me

provocando criações a princípio dissociadas do tema do espetáculo, o que ia gerando um

acervo de células expressivas. As células criadas eram depois re-contextualizadas em ações

físicas a partir das demandas da peça, processo este já norteado pelos textos de Ana Miranda.

Parti, por exemplo, de uma experimentação em cima do contraste profundosuperficial - tirado

das associações yin yang - e isso gerou uma corporeidade, que, depois, foi re-alocada na peça.

Surgida como movimento absolutamente inespecífico, ou seja, sem intencionalidade de

sentido ou significado proposital, esta matriz acabou transfigurada na ação em que a

personagem se relaciona com seu animal de estimação (cenas 6 e 21: “Bicho 1” e “Bicho 2”,

conforme descrito na sinopse descritiva, seção 6.2.b). Isso ocorreu com uma série de outras

matrizes ligadas ao yin yang, e ao wu hsing (as cinco energias). Dessa forma, o tema da peça

não tem relação direta com o taoísmo, mas as matrizes expressivas que animam o espetáculo

surgiram a partir de vivências com esse universo, para serem, em seguida, contaminadas pelas

ambiências dos textos de Ana Miranda.

Durante os ensaios, várias impressões, bem como a descrição dos acontecimentos,

foram sendo registradas em um “diário de bordo”. Posteriormente comecei a estruturar essa

análise de forma mais distanciada, a partir de anotações e lembranças. Tal hiato temporal,

bem como o acompanhamento do processo de recepção do espetáculo em diferentes

temporadas, foi importante para um olhar mais crítico e analítico do percurso. A transcrição

do “diário de bordo”, incluindo algumas reflexões posteriores às anotações, pode ser

conferida na seção de anexos.

Essa etapa de criação do espetáculo foi crucial pra pesquisa, pois pude perceber

diferentes formas de relacionar as matrizes taoístas à criação e à cena, além das que eu havia

imaginado em minhas conjecturas iniciais. Em princípio, a proposição se concentrava em

criar corporeidades expressivas a partir das sugestões taoístas, de maneira dissociada da

39 Sobre a composição como perspectiva do trabalho atoral, e sobre a diferença entre movimento, gesto e ação física, conferir o estudo de Matteo Bonfitto (2002)

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Page 185: Por uma TAO expressividade

fábula, para depois inseri-las na peça. Esta se mostrou, de fato, como uma aplicação possível,

e bastante produtiva, e se configurou como a linha diretiva de todo processo.

Entretanto, também pude lançar mão de outras possibilidades, que foram se

descortinando no percurso. Ao longo dos ensaios, por exemplo, alguns contrastes yin yang, e

aspectos da mandala das cinco energias entraram, a posteriori, em diálogo com ações físicas,

funcionando como uma espécie de sub-partitura, o tal “forro-pensamento” por traz da atuação,

sem que tivessem sido geradores de células expressivas na fase inicial de experimentação.

Visando uma construção menos realista trouxemos essas referências para momentos da peça

que pediam uma densidade ou intenção que poderia me fazer cair em uma interpretação com

vocação ilustrativa ou psicológica, o que não era o desejado aqui. Nesse caso, houve um

deslocamento de uma idéia de subtexto, espécie de pensar como a personagem, oriundo da

técnica de Stanislávski, para a noção de sub-partitura, já abordada na seção 2.3. Além disso,

utilizei matrizes como propulsoras de expressividade especificamente na vocalidade - seja no

gesto de cantar, seja em relação ao texto falado, ou ainda em outras expressões da voz como

riso, choro ou interjeições. Essa proposta foi usada tanto a partir de demandas surgidas no

contexto dramatúrgico, como em momentos de livre experimentação40.

Durante a primeira fase dos ensaios, o primeiro momento do trabalho era dedicado à

criação de material expressivo - matrizes em diálogo com corpo. Este material gerava

imagens que eram “lidas” pelo diretor da peça, André Amaro, e eventualmente por mim, à luz

de nossas necessidades. Essa era uma função que propositalmente eu delegava ao André,

justamente para evitar imaginar de antemão uma possível adequação entre a matriz a ser

experimentada, e algum conto ou ambiência da obra de Ana Miranda. Tal decisão me permitia

criar mais livremente. A partir daí esse material ia sendo desdobrado e re-contextualizado,

visando à dramaturgia.

Depois, já com a estrutura eixo da peça levantada, as matrizes foram sendo usadas

também para adensar ou complexificar o desenho, como uma provocação interna de estados,

que não estavam originalmente ligados àquelas formas corporais que agora animavam. Ou

seja, em clara perspectiva de composição (Bonfitto, 2002), uma mesma ação física pôde ter o

desenho de movimentos ligado a uma determinada matriz - experimentada em dada ocasião, e

a sub-partitura ligada à outra.

40 Nesse contexto da voz, pretendo ainda aprofundar a pesquisa após a conclusão do doutorado. Ainda que tenha trazido esta nuance para o processo, creio poder ir mais longe com tal perspectiva, especialmente no sentido de trazer mais as construções vocais para a cena propriamente.

185

Page 186: Por uma TAO expressividade

Como exemplo do acima exposto, temos as cenas em que a personagem se relaciona

com a poeira - ou o perigo minúsculo, já que em alguns momentos a leitura pode ser de que se

trata de uma luta contra um inseto ou o que mais a recepção projetar aí. Não estamos nos

referindo à primeira cena com a poeira, a qual é composta por ataques que remetem a lutas de

espada, jogos com raquete, e tiros de metralhadora41. Referimos-nos às cenas seguintes, onde

a atitude corporal se caracteriza por um movimento anguloso, com ênfase nas dobras de

cotovelos e joelhos, e cabeça deslocando-se para as laterais, fazendo parecer que a

personagem está à espreita, construção que pode lembrar uma postura de danças balinesa ou

indiana (cenas 11 e 17: “Poeira [Perigo Minúsculo] 2” e “Poeira [Perigo Minúsculo] 3”,

conforme descrito na sinopse descritiva, seção 6.2.b). Este movimento surgiu com a

experimentação da matriz ossos + audição + medo (aspectos ligados à força da Água, em wu

hsing), mas durante a cena, já transformado em ação física foi intensificado pela matriz

recepçãopenetração, funcionando como sub-partitura, ou seja, indicando metaforicamente a

intenção da personagem – especialmente de seu jogo de olhares - na relação com a poeira:

persegui-la e ser atacada por ela.

Em outro momento a personagem se dirige à camisa que lhe recorda o amante (cena

13: “Varal + Traço 1”, conforme descrito na sinopse descritiva, seção 6.2.b). Vai até lá com

os pés rastejantes, e o corpo lânguido, célula expressiva ligada à matriz umidade, mas sua

intenção é colorida pela matriz expansão + luminoso, que metaforiza o estado de espírito

daquela mulher em relação à visão de seu homem. A idéia de trabalhar com essas sub-

partituras mais abstratas e distantes de idéias psicológicas, visa preservar as zonas de sombra

– ou os vazios – do espetáculo, com uma construção de interpretação mais sutil, que favoreça

a implicação intensificada do fruidor na construção dos sentidos da obra.

Durante os ensaios, os treinos “entrar no vazio” e “sentar na calma” fizeram parte da

rotina diária. O chi kung era feito após um alongamento e aquecimento, precedendo as

investigações corporais a partir das matrizes. Os treinos me traziam a perspectiva do re-curso

vazio, sobre o qual falamos no item 5.2. Muitas vezes chegava ao ensaio com outras coisas na

cabeça, preocupações diversas – relacionadas ou não ao processo - e fazer o chi kung me

colocava – na maior parte das vezes - de volta no vazio, aberta ao devir, minimizando as 41 Voltamos a frisar que descreveremos cenas que serão mais bem compreendidas ao se assistir a peça, disponível em DVD anexo. Além disso, há a descrição mais detalhada do processo de criação na transcrição do diário de bordo. A leitura da dramaturgia da peça, que descreve as ações do corpo no espaço, além de trazer o texto, também favorece esse entendimento. Tanto o DVD, como o diário de bordo e a dramaturgia estão em anexo.

186

Page 187: Por uma TAO expressividade

interferências de idéias. Além disso, a prática me ajudava a mobilizar meu chi, trazendo um

estado vibratório que se mostrou bastante adequado às experimentações.

Após cumprir os passos do treino padrão, permitia-me uns minutos de chi kung

espontâneo, o qual consiste em deixar o chi se manifestar em movimentos involuntários, não

coreografados e nem planejados. Esse momento me é particularmente especial. Deixar o

corpo se mover, sem o comando mental consciente, assumir internamente uma posição de

sentir e observar, diferente da usual de controle dos movimentos, traz sensações como soltura,

liberdade, surpresa. Parece que o corpo sabe exatamente o que precisa/deseja, o que acaba por

trazer um profundo bem-estar. De um modo geral, o exercício de reconectar-me às minhas

próprias energias, e demandas de ordem vibratória, me trazia intensamente para o tempo e

espaço presentes. A sensação de dilatação de meu corpo e presença parecia facilitar o deixar-

me ser passagem, para que as matrizes se manifestassem em corporeidades.

Depois dessa fase, partia para o diálogo corporal com a matriz propriamente. Como

disse, a sensação de presença no tempo e no espaço me abria a possibilidade de um encontro

profundo com as matrizes. Salvo raras exceções, o trabalho fluía sem que eu me pré-ocupasse

em pensar o que fazer. Era o corpo que vibrava em sintonia com a imagem da matriz, o corpo

que “pensava”, e produzia os entre-lugares expressivos dos trânsitos matrizesalice.

Após a estréia passei a fazer o chi kung sempre antes de entrar em cena. Após um

aquecimento básico de alongamento e prontidão, faço os treinos e parto para a atualização

corporal de matrizes e células expressivas usadas na peça, bem como para uma troca de chi

com o espaço e os objetos cenográficos. É, inclusive, neste estado que inicio o espetáculo,

propriamente. Quando o público entra no teatro já me encontro em cena, deitada. Em

contraste com o som suave e delicado de um brinquedo de corda, meu corpo manifesta alguns

movimentos involuntários, como em quem dorme, mas em estado de tensão e sobressalto.

Esses movimentos são chi kung espontâneo, e, quando a peça começa, estou sob efeito da

circulação energética proporcionada por este. Deitada, deixo simplesmente essas

manifestações ocorrerem em meu corpo, enquanto o público entra em cena.

O músico Lupa não se envolveu com os treinos de chi kung propriamente, mas vale

notar que, como praticante esporádico de ioga, ele também dedica alguns minutos antes de

entrar em cena à meditação. Além do que já foi dito, a prática de chi kung me traz maior

atenção e concentração, e ainda a possibilidade de irradiação e foco energético, elementos

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Page 188: Por uma TAO expressividade

altamente eficazes ao trabalho de ator. Esta perspectiva remete à convicção artaudiana de que

o ator precisa crer e lidar com a materialidade das paixões - e da alma e de energias -

aprendendo a manusear esses fluxos moleculares com objetivos e estratégias claros, visando à

intensificação da presença e, por conseguinte, da recepção (1993:136).

Interessante observar os diferentes desdobramentos sofridos pelas matrizes no decorrer

do processo criativo. Algumas ficaram no espetáculo em formato bem próximo ao

originalmente experimentado. Outras foram se modificando várias vezes durante a

contextualização. Umas sugeriram a cena, situação ou a ação da personagem, mas acabaram

não permanecendo como formas de movimento na cena que sugeriram, tendo, eventualmente,

células re-alocadas em outros momentos da peça. A seqüência do varal, por exemplo, só

existe graças à experimentação com a matriz troncomembros (cena 13: “Varal + Traço 1”,

conforme descrito na sinopse descritiva, seção 6.2.b).

As imagens produzidas nessa experimentação remeteram André – o diretor - ao ato de

lavar roupas. Entretanto, ao longo dos ensaios, apenas a situação de lavar e estender roupa se

manteve na cena que esta matriz inspirou, mas com uma movimentação totalmente distinta da

original. Por outro lado, alguns movimentos da matriz troncomembros estão presentes na cena

35: “Noite + Traços Teia” (vide seção 6.2.b, sinopse descritiva). Pode-se dizer que o próprio

conceito visual dos elásticos na peça se deve a esta experimentação, pois o varal foi o

primeiro fio puxado em cena, gerando a idéia de surgirem novos fios no decorrer da trama.

Uma outra variação de uso das matrizes, não pensada previamente, mas surgida na

demanda do processo criativo, foi sua exploração já dentro do contexto dramatúrgico, seja

contexto ligado a ações, textos ou climas. Foi o caso de experiências como na cena 34:

“Banho” (vide seção 6.2.b, sinopse descritiva), para onde levamos a matriz obsessão, que já

tinha sido experimentada, mas voltou para nova investigação, agora dentro de uma cena

específica. Na cena 35: “Noite + Traços Teia”, exploramos pela primeira vez vários

estímulos, entre eles o conjunto branco + outono + pele (ligado ao Metal, em wu hsing), que

acabou trazendo vários elementos que foram usados ali.

Entretanto ressalto que quando da experimentação solta e desvinculada de contextos

das matrizes, sentia meu corpo entrar em um estado de maior presença e concentração cênica.

Este estado, fortemente favorecido pela imersão proporcionada pelo chi kung, era

intensificado, talvez, pelo fato da criação não passar, nesses momentos, por uma busca

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Page 189: Por uma TAO expressividade

racional de adequações, sentidos ou associações a um determinado contexto (ação ou texto

predeterminado). O que parece é que, nessa experimentação não teleológica, cada corpo vai

criar um acervo expressivo altamente singular, ligado tão somente às suas experiências em

relação ao estímulo proposto – matriz - e ao seu momento particular, já que não há ancoragem

no produto final. O resultado em termos de repertório expressivo nesse tipo de trabalho indica

polifonia e polissemia: um amplo leque de discursos e possibilidades de leitura e aplicação

cênica do material.

André observou, no entanto, que, ao apreciar as células expressivas geradas nas

encruzilhadas entre meu corpo e o universo taoísta, ele já tinha como norteador o universo dos

livros de Ana Miranda. Isso o levava à tendência de enxergar, nas experimentações, os traços

criativos a serem re-alocados ao nosso universo temático, ou seja, o levava a identificar ali,

situações e ações que nossa personagem poderia viver e executar. Foi o caso da ação de correr

atrás do “bicho” (espanador), pegá-lo, afagá-lo e soltá-lo (cenas 6 e 21: “Bicho 1” e “Bicho

2”, conforme seção 6.2.b). Assim como o caso das cenas de lavagem de roupas, da cena da

costura, entre outras (cenas 9 e 12: “Lavação 1” e “Lavação 2 + Canto 1”, e cena 14: “Costura

+ Traço 3”, conforme seção 6.2.b).

Estas situações - é bom que se diga - não constavam nos contos de Ana. André

identificou essas ações em experimentações a partir de matrizes yin yang, que, no ato da

exploração, nem de longe me remeteram a elas. Se nosso tema ou texto fosse outro,

provavelmente André teria enxergado outras coisas. Assim, pudemos chegar a um

desempenho pouco realista dessas ações não por meio de uma estilização, abstração ou

descaracterização progressiva destas, senão por intermédio de material expressivo pré-

existente, que, em re-contextualização, imprimiu teatralidade e polissemia à cena. De um lado

tínhamos uma atriz criando, mas não de forma dirigida ao tema da peça, e sim a partir dos

estímulos taoístas propostos, e de outro um diretor, este sim prenhe do espírito do espetáculo,

assistindo e compondo com o que via. Um determinado movimento remetia-o à ação de varrer

e tirar o pó, provavelmente pelo fato de estarmos lidando com uma personagem solitária e

enfurnada no apartamento, a quem seria presumível esta ação. Fosse uma serial killer, por

exemplo, possivelmente o mesmo movimento o levasse a vislumbrar alguma outra ação.

É certo que a ponte entre a pura experimentação expressiva - fornecedora de ritmos,

corporeidades, e leituras variadas – rumo à ação – ou seja, à contextualização desses

movimentos, sons e outros recursos – gerou insistentes desdobramentos, adequações, re-

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Page 190: Por uma TAO expressividade

alocações e derivações das células criadas. Entretanto, por terem surgido em pesquisa

dissociada de sentidos unívocos ou direcionados – até por que vários estímulos taoístas já

tendem a certa abstração – tais células parecem manter um caráter menos territorializado,

parecem resistir à fixação em um contexto inequívoco. Em outras palavras elas geram atuação

e cenas menos realistas, talvez mais metaforizadas e polissêmicas.

Na transição da expressividade solta à ação física - esta ligada à estrutura dramatúrgica

- há, certamente, uma maior ancoragem no real e na significação, mas mantém-se um

nomadismo de sentidos, uma multiplicidade de leituras. O que aqui é desejado, e vai ao

encontro de idéias taoístas abordadas, como a de wu wei, com vocação de fluxo contínuo e

recusa à estratificação. Tal característica também casou com princípios do Teatro

Caleidoscópio, investigados por André Amaro, que vê o corpo do ator “como matéria

fragmentária e combinatória, que se modifica em desenho e energia numa metamorfose

contínua em busca da expressão e beleza” (em entrevista ao Correio Brasiliense de 28 de

outubro de 2006)42.

Houve, como mencionado, oportunidades em que criei já dentro de contexto da peça,

mas tendo como referência, além deste, um universo sugestivo taoísta que o contaminava. É

fácil pensar que isso poderia por um lado encurtar o caminho para a cena, já que o material

criado tenderia a ter uma adequação mais direta ao contexto a que se pretendia aludir.

Entretanto, o que ocorreu é que várias vezes acabei caindo em uma obviedade de construções

que destoava das criações anteriores. Assim, muito do que criamos em contextos de ações

específicas acabou sendo re-alocado para outras cenas, o que devolvia a multiplicidade de

sentidos àquela construção. Foi o caso, por exemplo, da experimentação com a matriz ossos +

audição + medo, que gerou a construção apelidada de “aranha”, surgida no contexto da teia,

mas que pela obviedade “aranha na teia” – entre outros fatores – foi re-alocada para a relação

de apreensão e medo dos perigos minúsculos: poeira e/ou insetos (cenas 11 e 17: “Poeira

[Perigo Minúsculo] 2” e “Poeira [Perigo Minúsculo] 3”, conforme descrito na sinopse

descritiva, seção 6.2.b).

É fato toda obra artística porta certa polissemia, e que sempre contempla certo grau de

recepção criativa e variada por parte do público. Afinal, nessa característica reside um tanto

do que define algo como arte. Mas, da mesma forma que uma pintura figurativa tende a

direcionar mais a fruição do que uma obra cubista, por exemplo, no que se refere ao grau de

42 Para saber mais sobre o trabalho de André Amaro o site www.teatrocaleidoscopio.com.br pode ser consultado.

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Page 191: Por uma TAO expressividade

“ilustração” do tema por parte do artista, há viéses diferenciados na abordagem de uma obra.

E é importante saber que estes têm conseqüências diretas sobre aspectos da recepção.

Não se trata de defender esta ou aquela abordagem de cena como melhor ou mais

contemporânea. O fato é que, particularmente, me propus a experimentar uma determinada

via de trabalho que, pelo processo e resultado, pareceu demonstrar grande vocação a uma

recepção por devir, uma fruição menos estratificante. Talvez por que sua criação também foi

sustentada pelo princípio do devir, de wu wei e do vazio. Esta espécie de fruição remete aos

conceitos de “cadeia significante” em Jacques Lacan, e de “infinitização do discurso”, em

Júlia Krsiteva, referidos por Ciane Fernandes em sua análise do processo e obra de Pina

Bausch (Fernandes, 2000: 26-38). Para a autora, Bausch explora justamente o não-repouso e a

arbitrariedade do signo (2000:32)

É bom frisar que, a despeito desse esforço, a peça acabou apresentando certas

seqüências, senão óbvias, pelo menos redundantes em termos de texto e ação. É o caso da

cena 13: “Varal + Traço 2”, em que os gestos muitas vezes ilustram o texto falado. O que

suaviza, a meu ver, o grau ilustrativo dessa composição é o fato de se passar numa

circunstância não cotidiana, ou antes, na metaforização de uma ação cotidiana - lavar roupas.

A relação com a camisa pendurada cria imagens pouco usuais a esse contexto, digamos, de

lavanderia, e desdobra em extra-cotidiano o gesto doméstico de lavar roupas e recordar as

carícias de um homem.

Por outro lado, a possibilidade de reinvenção do cotidiano – perspectiva impressa na

cena – traz a ela um viés político. E isso, de certa forma, reconcilia a cena com a noção de

vazio, na medida em que este, enquanto potência pura, nada tem de abstrato ou apolítico. Pelo

contrário, comporta infinitamente a possibilidade de transformação. Lembrando que o campo

molecular, segundo Deleuze Guattari (1995), é o campo da micro-política, que opera no fluxo,

na potência, no vazio.

Outra questão que se colocou durante o processo, como vimos, foi o uso das matrizes

como sub-partitura. Uma motivação interna que não era traduzida em uma intenção

presumível, como “raiva”, “desespero”, ou em algo como uma “memória emotiva”. Por vezes

esse “forro-pensamento” era da ordem de uma memória muscular, como no contraste

contraçãoexpansão. Por vezes operava uma memória da sensação, como nas sub-partituras

paladar, olfato ou visão. Em outros casos o que animava o gesto ou a ação era uma idéia mais

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abstrata como cheiovazio, sombrioluminoso, entre outras. Esse grau de abstração contribuiu aí

- da mesma forma que nas construções de movimentos - para intenções talvez mais

conotativas que denotativas, sutis como no entendimento de Sant’Anna, ou seja,

preservadoras das zonas de sombra.

Em especial dentro dos contrastes yin yang, a intenção tende a parecer ainda mais

complexa, paradoxal ou ambivalente. A relação com o marido, por exemplo - oscilando entre

a leveza do afeto para com sua bonequinha, e simultaneamente a violência de seu contato

físico com ela - foi buscada pelo contraste densosutil, que permeia toda a cena do varal (cena

13: “Varal + Traço 2”). Isso nos remete às propriedades descritas das dinâmicas yin yang.

Não apenas a oposição, mas a interdependência, a inter-transformação e o inter-consumo, que

podem ser identificados nesse trânsito entre as polaridades de um mesmo núcleo de

“sentimento”.

6.2.b. Sinopse descritiva

No início do espetáculo o espaço cênico consiste em um cubo formado por 7 barras

verticais de metal vermelho e 8 barras horizontais, de metal prateado, criando um ambiente de

4 metros de largura por 4 de profundidade e 3,5 de altura. Esse espaço faz referência ao cubo

de Laban, espaço onde ocorrem as oito ações básicas que combinam tempo, peso e espaço43.

O piso desse quadrado está forrado com um carpete verde escuro. O ambiente sugere um

apartamento, uma clausura, uma jaula: o lugar onde vive a personagem. Nas 7 barras

vermelhas verticais – alicerces - estão dispostos, pendurados em alturas variadas alguns

objetos. Usaremos como referência a posição da personagem virada para o público para

considerar esquerda e direita, na seguinte disposição:

1. Na barra da frente, à esquerda: um par de luvas vermelhas com as barras em tecido

estampado.

2. Na barra central da lateral esquerda: um espanador de cabo prateado e penas

vermelhas.

3. Na barra do fundo da esquerda: um sapato prateado com detalhe em verde. Próxima a

esta barra, no chão há uma saia estampada com a mesma estampa da barra das luvas.

A saia fica em pé graças ao seu tecido encorpado.

43 Conferir o já mencionado estudo de Ciane Fernandes sobre o método de Laban e Barthinieff (2002).

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Page 193: Por uma TAO expressividade

4. Na barra central do fundo: um lenço vermelho pendurado, e uma bacia prateada, com

o fundo estampado no mesmo motivo da saia e barras da luva.

5. Na barra da direita, ao fundo, está pendurada no alto uma camisa branca de punhos e

gola vermelha. Em baixo, encostado na barra está o par do sapato da barra 3. Este com

um detalhe vermelho.

6. Na barra do centro da lateral direita está pendurado um balde prateado, cujo interior é

revestido de um tecido vermelho.

7. Na barra da direita frontal há um livro cuja capa tem a mesma estamparia da saia,

fundo da bacia e barras das luvas.

Em algumas barras há outros ganchos pendurados, além dos que já estão com objetos,

mas que não são imediatamente percebidos pelo público. Há também alguns elásticos

escondidos nas barras, que só aparecerão no decorrer das cenas. A personagem inicia vestindo

uma espécie de camisola curta, em modelo “tomara que caia”, sendo o bojo que sustenta os

seios em tecido vermelho, e o corpo da camisola em verde. Em baixo usa uma calça de malha

justa, tipo legging também verde, num tom mais escuro que o da camisola.

Do lado esquerdo, em um espaço recoberto com o mesmo tapete verde escuro que

forra o chão do cubo, está o músico e seus instrumentos, estrategicamente posicionado para

acompanhar todas as minhas ações.

Para facilitar a descrição e análise da peça, a mesma foi dividida em 38 cenas44. Cabe

frisar que há subdivisões forjadas para favorecer a análise, mas que não funcionam como

divisões no correr da peça propriamente. Estas subunidades estão relacionadas às ações e/ou

às repetições e transformações presentes no espetáculo. Estas repetições rítmicas explicam a

repetição de alguns títulos de cena. A seguir as sinopses das cenas.

1. despertar

Quando o público entra a peça já começou. Há uma delicada música de um brinquedo de

corda infantil, e uma mulher está deitada, dormindo no centro do cubo, manifestando alguns

movimentos espasmódicos. Ela tem os cabelos soltos e, entrelaçado ao seu corpo, um elástico

44 Interessante lembrar que Meyerhold, com sua referência cinematográfica (o encenador inclusive influenciou fortemente o cineasta Sergei Eisenstein), passou a não se contentar com as divisões habituais em atos, dos textos dramáticos. Assim, seus espetáculos costumavam ser divididos em inúmeros episódios, o que favorecia uma perspectiva fílmica de montagem, na relação com a composição cênica: jogos simultâneos, ritmo cinematográfico, re-ordenação de seqüências, etc.

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Page 194: Por uma TAO expressividade

recoberto de tecido verde. Ao som de um despertador ela acorda, se espreguiça e vai

apreensiva até a “janela” 45, ainda envolta com o elástico.

2. janela 1

Ela abre a janela e cumprimenta pessoas fora do espaço, olhando para baixo. Volta-se para o

interior e se depara com um “espelho”.

3. espelho 1

Ela se analisa, usa um “fio dental”, e passa a fazer ginástica. Por mim se mede com uma “fita

métrica” e constata que não está nos padrões.

4. feira

Ela passa a listar uma série de produtos light, e outras necessidades, enquanto prende os

cabelos no alto e calça as luvas, que deixam metade dos dedos a mostra.

5. unhas

De repente se dá conta de que nasceram “garras” estranhas em suas mãos, e passa se

relacionar com estas questionando o sentido das unhas. Termina por espremer uma espinha

em frente ao espelho.

6. bicho 1

Depara-se com o “bichinho de estimação” e passa a se relacionar carinhosamente com ele

pelo espaço, até por fim se dar conta da presença de poeira nos “móveis”.

45 Coloco entre aspas as primeiras referências a objetos imaginários e/ou re-significados. Não há uma janela de fato, mas o gesto sugere-a. Assim como não há uma fita métrica, mas o uso que se faz do elástico promove essa interpretação. Quando o objeto faz as vezes dele mesmo, trago sem as aspas.

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Page 195: Por uma TAO expressividade

7. poeira (perigo minúsculo) 1

Passa a travar uma intensa luta com a poeira, usando o espanador (objeto que acabara de ser

manuseado como bicho). Nesta luta o espanador assume, a partir das ações físicas,

características de espada, esfregão, desentupidor, taco de golfe, raquete e metralhadora. Por

fim, ameaçada, ela se esconde da poeira atrás de uma bacia, e inicia os preparativos para uma

nova ação – lavar roupas. Ela pega uma camisa e um balde, até que toca o telefone.

8. telefone 1 + traço 1

Ela se assusta, as coisas caem de suas mãos. Ela atende ao “telefone”. Ao tirar o fone do

gancho revela-se o primeiro elástico. Este vai ser levado até o outro lado do cubo, formando o

traço um. Ninguém responde ao telefone. Ao fim apenas uma voz sinistra diz alô até a ligação

cair.

9. lavação 1

Como ninguém responde, ela desiste leva o sapato (que era telefone há pouco), em direção às

coisas caídas. Passa a manusear a água e se lavar. Molha o sexo e tenta lavar as mãos com

“sabão”. Passa a procurar onde jogar a água suja.

10. janela 2

Joga a água suja da bacia pela janela e se esconde atrás do objeto.Volta à ação de lavar até

que percebe poeira no espaço.

11. poeira (perigo minúsculo) 2

Passa a perseguir a poeira com o balde, até prendê-la neste.

12. lavação 2 + canto 1

Volta a si e percebe a camisa no chão. Passa a se relacionar amorosamente com a peça,

lavando-a enquanto canta.

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Page 196: Por uma TAO expressividade

13. varal + traço 2

Puxa um novo elástico e forma o traço 2, um “varal”, onde pendura a camisa. Dança com a

camisa e passa a interagir com a mesma, como se recordasse o homem que a usou. Cria uma

série de imagens com a camisa pendurada no varal. Ao fazer sexo com a camisa tem uma

costela quebrada com um sôfrego toque de amor.

14. costura + traço 3

Pega “agulha” e “linha” – quando puxa o traço 3 – e passa a costurar a própria costela.

15. espelho 2 + canto 2

Vai até o espelho e verifica se a costura ficou boa. Passa a se observar e resolve se arrumar.

Veste uma saia, um sapato, e passa a procurar o outro pelo espaço, jogando com a presença

dos traços elásticos. Acha um lencinho e o coloca no pescoço. Acha uma “bolsinha”, segura-

a. Por fim vê o sapato, calça-o, limpa-o, e se admira no espelho. Canta uma canção para si

mesma, se masturba, e de repente se vê com um “buquê” nas mãos.

16. casamento + traço 4

Ao som da marcha nupcial passa a desfilar como numa igreja, mas se dá conta que está presa

ao passado pelo sapato (traço quatro). Desespera-se e se livra do sapato e do elástico. Nessa

altura os quatro traços já estão atravessando o espaço, e todas as ações da mulher tem driblar

ou se relacionar a estes.

17. poeira (perigo minúsculo) 3

No desespero de se livrar do passado acaba desemborcando o balde que prendia a poeira. Ela

se arruma quixotescamente, com um “chapéu”, um “escudo” e uma “lança”, e passa a

perseguir a poeira até esmagá-la em um dos alicerces.

18. desfazer-se

Deprime-se e se dá conta que deve se desfazer de tudo. Passa a catar os objetos do cenário, e

algumas peças que está vestindo, e colocar na bacia. O telefone toca quando ia pegar o livro.

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Page 197: Por uma TAO expressividade

19. telefone 2

Ela vai atender, mas o telefone para de tocar.

20. janela 3

Ela vai até a janela, chama por alguém para doar as coisas que não quer mais, e passa a jogar

peça por peça, enlevada pela beleza destas atravessando o espaço até cair lá embaixo. Por fim

joga objetos muito pesados e parece ferir gravemente – ou matar – quem estava recebendo as

coisas.

21. bicho 2

Desesperada foge da janela e encontra o bicho novamente. Tenta se acalmar e passa a brincar

com o animal até que toca o telefone.

22. janela 4

Com o susto acaba jogando sem querer o animal pela janela.

23. telefone 3

Fica ainda mais desesperada e vai atender ao telefone tentando disfarçar a agitação. Ninguém

responde, ela puxa todos os traços do espaço tentando um sinal, mas é inútil. Ao fim a mesma

voz sinistra, que a assusta. Com uma “lupa” (alça de elástico de um os traços) ela investiga o

telefone e o espaço, enquanto se dirige ao alicerce onde está o “livro”.

24. livro + canto 3

De repente tudo a sua volta escurece e ela fica apreensiva, encolhida junto ao alicerce.

Percebe o livro, o pega, abre-o. De dentro do livro uma luz ilumina-a. Ela lê, ri, descobre uma

“carta”, chora, faz um “cigarro de maconha”, fuma, cheira “cocaína”, e fica ligada. Nesse

estado canta uma canção, enquanto se dirige até a janela. Serve-se de “bebida” e vira a “taça”

de uma só vez.

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Page 198: Por uma TAO expressividade

25. janela 5

Embriagada termina a música cantando na janela. Deseja Feliz Ano Novo às pessoas lá

embaixo. Sente-se mal, vomita no livro, e o joga pela janela enojada. Percebe que o vômito

caiu em alguém, e se desculpa constrangida. Fuma um “cigarro” ansiosamente.

26. telefone 4

O telefone toca de novo, ela procura destrambelhadamente pelo telefone por todos os

elásticos, enquanto os estica e solta. Por fim acha e pisa no fio, desligando o telefone.

27. corda bamba + canto 4

Passa a andar sobre uma “corda bamba” tocando em uma “corneta” a música Adeus ano

velho. Embriagada, tenta se equilibrar até que toca o telefone de novo.

28. telefone 5

Ela atende angustiada, e o mesmo de sempre: ninguém fala nada até que no fim uma

misteriosa voz fala alô e desliga.

29. monstro

Ela desconfia se tratar de um monstro, e lembra que há um que habita a calçada da esquina.

30. janela 5

Ela vai até a janela e confirma que o monstro está lá. Ela o ataca jogando o sapato e papel

amassado.

31. reza

Melancólica ela solta os cabelos e usa o elástico com “terço”. Passa a rezar e pedir perdão.

Sente culpa. Lembra dos filhos.

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Page 199: Por uma TAO expressividade

32. filhos + canto 5

Passa a lembrar da relação neurótica que teve com os filhos, enquanto se relaciona com o

elástico fazendo uma cama de gato. Tira a saia e a coloca no chão, transformando-a em

“filho”. Pega-o no colo e canta uma doce cantiga infantil.

33. janela 6

Vai até a janela cantando, com o bebê nos braços, e ao fim da música o atira pela janela.

34. banho

Sente-se ainda levemente embriagada e vai até o “box” tomar banho. Toma uma “ducha”

gelada, sai, se enxuga.

35. noite + traços teia

Percebe os traços no espaço e passa a pegar um a um com as mãos, até juntá-los no centro e

amarrá-los com o elástico solto. Cria a imagem da “teia” no espaço, se entrelaça ao elástico

solto - agora amarrado aos traços - como no início do espetáculo e dorme. Acorda com sons

de fogos de artifício. Entra em desespero, acha que a casa vai cair. Sai de sua casa.

36. telhado

Sobe até o telhado e se depara com a visão da cidade lá embaixo. É repreendida por alguém

por estar pisando na “antena” e atrapalhando o sinal da TV, pois vai começar a contagem

regressiva. Chega o novo ano. Fogos de artifício estouram no céu.

38. asa delta + canto 6

Ela se encanta com os fogos. Encanta-se com a cidade lá embaixo. E canta a música Solidão,

de Tom Zé. E salta de “Asa Delta” sobre a cidade.

Acende-se um painel atrás do cenário, com a imagem noturna de uma grande cidade. Na

frente a mulher canta e voa de Asa Delta.

A luz vai caindo em resistência, a música vai abaixando. Fim.

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Page 200: Por uma TAO expressividade

6.2.c. A cena

Traços ou Quando os Alicerces Vergam mostra um dia na vida de uma mulher

solitária cujo cotidiano parece não caber em sua presumível normalidade, ganhando contornos

ora patéticos, ora fantásticos, ora trágicos, ora absurdos. Confinada em seu apartamento no

alto de um prédio, uma mulher isolada gera, compulsivamente, um mundo imaginado. O

zelador e a faxineira do prédio são os únicos personagens que parecem compartilhar sua

existência presente. O silêncio é uma companhia difícil, ruidosa. A memória também. Em

seus devaneios os tempos vividos e fabulados se misturam. Tudo parece confiná-la cada vez

mais a uma solidão povoada de fantasmas. Ela quer uma casa nova, uma existência nova e

luta, inutilmente, contra cada partícula de sujeira ou insetos que entram pela janela, invadindo

sua casa-corpo. É o último dia do ano. Da janela, ela comemora o ano vindouro com uma

melancólica e patética alegria. As lembranças da família, do homem amado, dos filhos que

partiram retorcem a sua memória. A noite é um mundo selvagem, perturbador. Ela dorme

embalada pelo ranger das vigas do prédio. Por fim, encorajada pela virada do ano, ele sobe ao

telhado do edifício e se lança em um vôo sobre a cidade... Estes são os alicerces de nossa

história46.

O primeiro título, Traços, surgiu antes mesmo do espetáculo e de sua concepção, pela

necessidade de um nome, na feitura do projeto para concorrer ao prêmio Myriam Muniz de

estímulo à montagem47. Não quis usar o nome da obra de Ana Miranda, pois intuía que esta

nortearia, forneceria as ambiências para o espetáculo, mas não necessariamente as mesmas

palavras, em uma mesma ordem ou composição. O que propunha no projeto era uma espécie

de transcriação, para tomar de empréstimo o conceito de Haroldo de Campos, ligado à

tradução literária. A tradução aqui seria não entre línguas, mas entre linguagens, ou sistemas

semióticos: da literatura para a cena. Isso certamente redimensionaria, entre outras coisas, o

volume, a seqüência e até o conjunto verbal da obra de origem, já que havia ainda a

perspectiva de tramar na cena diferentes dramaturgias, além da textual. O fato é que,

justamente visando garantir a presença da poesia de Ana na obra cênica, possivelmente

haveria a necessidade de mudanças textuais nesse processo de transposição de linguagens.

Em realidade eu estava no vazio, sem ter idéia do que seria a peça. Alias, não queria

saber, nem projetar nada sobre o espetáculo, já que desejava - e acreditava - que o processo

46 Este parágrafo, que traz a sinopse do espetáculo, foi escrito em parceria com André Amaro.47 Este espetáculo foi contemplado com o prêmio Myriam Muniz da FUNARTE, através de uma verba para a montagem, em 2006.

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Page 201: Por uma TAO expressividade

criativo o descortinaria. Então, pensei que o nome Traços seria um termo meio que “guarda-

chuva”, genérico. Por outro lado o termo remetia à personalidade (personagem,

idiossincrasias) e desenhos (movimento, corpo, espaço), aspectos que eu imaginava que

estariam presentes no trabalho.

Com o processo, sentimos necessidade de recortar melhor o universo da peça, e assim

surgiu o segundo título, Quando os alicerces vergam. Esta frase foi retirada do próprio texto

de Ana Miranda, e, além de serem palavras ditas em cena, cria uma metáfora para a condição

de fragilidade absoluta da personagem. Em português popular, seria algo como “quando a

casa cai”. O fato de a palavra alicerces conter meu próprio nome – Alice - também contribuiu

para a escolha, uma vez que me propus a um trabalho em que estão imbricadas,

voluntariamente, um tanto de características próprias e questões pessoais, em diálogo com as

matrizes taoístas e com os textos de Ana.

Contudo, para nossa surpresa – por não ter sido uma proposição prévia, e nem algo a

que nos forçamos – a noção de traços se infiltrou no trabalho muito além do previsto. Além

dos desenhos que o corpo descreve na cena, que vão ao mesmo tempo mostrando ações e as

metaforizando, num desvendar e diluir contínuo, a idéia de traços se amplia e contamina o

espaço cênico. Nosso cenário é uma composição de traços no espaço: um quadrado de metal

fixo, composto por 13 barras - traços fixos - de sustentação, sendo 8 horizontais e 7 verticais,

e as 4 linhas elásticas - traços móveis, que são manuseadas no decorrer das cenas, culminando

por criar, com as imagens de teia, antena e asa delta, um conjunto de 10 traços, fora os da

estrutura metálica. Estes são: as 8 metades dos elásticos presos às barras de metal verticais,

mais os 2 traços descritos pelo elástico encapado com tecido, que fica entrelaçado ao corpo da

personagem. São os seguintes os desdobramentos de significação dos quatro traços-elásticos,

presos aos alicerces (as barras de metal verticais):

1. Varal/ muro/ fio de telefone/ vara de equilíbrio/ teia/ asa delta/ antena

2. Fio de telefone /corda bamba / teia/ asa delta/ antena

3. Linha de costura/ elástico de pular (brincadeira infantil)/ fio de telefone/

teia/ asa delta/ antena

4. Passado amarrado ao corpo/ fio de telefone/ corda bamba do bicho/ box de

banho/ teia/ asa delta/ antena

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Page 202: Por uma TAO expressividade

Esses são os desdobramentos previstos, mas esta lista não inclui as outras possíveis

leituras advindas da recepção. Já surgiram interpretações espontâneas por parte do público

que entenderam o conjunto de elásticos no espaço como labirinto, ringue de boxe ou cama de

gato, por exemplo.

Além disso, o conceito que moveu o trabalho da artista Maria Luiza Fragoso foi o de

objetos-traços, ou seja, peças que - ainda que identificáveis como utensílios com uma função

principal ou original presumível - mantivessem características mutantes, propiciando uma

espécie de transformação de sentidos, a partir da relação do corpo com o mesmo - atuação e

manuseio. A seguir trago um detalhamento dos desdobramentos dos objetos-traços, ao longo

da peça. Primeiro consta a descrição do objeto em sua forma básica, em seguida suas

transformações pelo uso:

1. Espanador: bicho de estimação/ espada/ esfregão/ desentupidor/ taco de golfe,

raquete/ metralhadora/ bolsinha/ escova de sapatos/ microfone/ pincel de blush/

falo artificial/ vagina/ buquê de noiva

2. Elástico solto: lençol, cama e espaço do corpo/ fio dental/ aparelho de ginástica/

fita métrica/ prendedor de cabelo/ terço/ cama de gato/ janela/ toalha/ chicote/

porta da noite/ cama/ base da antena/ base da asa delta

3. Balde: prisão de poeira-inseto/ banco/ capacete/ móvel jogado pela janela

4. Bacia: cabeção/ escudo/ recipiente de coisas usadas/ móvel jogado pela janela

5. Sapatos: telefone/ sabão/ agulha/ mata-inseto ou espanta-poeira

6. Livro: abajur/ isqueiro/ bolsa/ garrafa com bebida/ porta-vômito

7. Papel: carta/ cigarro de maconha/ canudo de cocaína/ batom/ perfume/ monóculo/

zarabatana/ taça/ cigarro/ corneta/ papel amassado jogado pela janela

8. Camisa: homem/ composição das imagens na seqüência do varal, como montanha,

jaula, pássaro, corpo jogado do precipício, casa, igreja, etc.

9. Saia/ recipiente onde se cogita derramar água suja/ filho

Afinal menciono alguns dos traços idiossincráticos da personagem, desenhados a

partir das matrizes taoístas em diálogo com as mulheres descritas – e/ou por mim projetadas –

na obra de Ana Miranda. Frisando que a perspectiva que moveu o trabalho de composição da

personagem passou ainda por confrontá-la com questões minhas, questões do feminino em

mim, de minha ancestralidade – e aí vale enfatizar a memória/fantasma de minha avó paterna,

que havia recém-falecido quando montamos a peça. Ao longo dos anos ouvi diversas

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Page 203: Por uma TAO expressividade

referências a semelhanças entre mim e minha avó. Algumas me agradavam, outras não. A

personagem de Traços é fortemente contaminada pelo desnudamento e implicação de mim

mesma no processo, o que em alguns momentos do processo me trouxe certa dor, e em outros

momentos sensação de libertação.

O que importa aqui é dizer que em nenhum momento empunho esta personagem como

algo fora de mim, como uma construção alheia à minha própria experiência. Não empresto

meu corpo para que outra construção ontológica ou psicológica ganhe vida. Tampouco se

trata de uma auto-exposição generalizada, ou apresenta qualquer filiação ao psicodrama ou

demais terapias. Novamente, nos trânsitos pelos entre-lugares, nos “nós” que mobilizam

intensidades, nós que são as amarras, couraças e impasses por um lado, mas que são também

aquilo que movimenta a trama, o fiar. “Nós” que denotam os laços do tecer e da

multiplicidade de encontros: meu corpo e o tao, e Ana, e as mulheres de Ana, e Clarice, e

André, e Ciane, e Lupa, e Malu, e Bia, e minha mãe, e minha avó, e minha filha, e meu filho,

e os homens que habitaram minha vida, e o público, e, e, e, e... É visível a relação entre esta

abordagem e diretrizes da arte da performance, ou a perspectiva grotowskiana, por exemplo,

ainda que guardadas devidas proporções.

Com esses nós se bordou a personagem, que, por sua vez apresenta um conjunto de

traços característicos próprio, que não necessariamente dizem respeito a minha pessoa.

Traremos estes traços aqui hipoteticamente associados às cinco forças descritas em wu hsing,

apresentada na seção 1.2.c:

FOGOEmoção associada: AlegriaTraços da personagem: Euforia, vaidade, prazer, excessos.

TERRAEmoção associada: ObsessãoTraços da personagem: Compulsão, saudade, culpa, TOC48.

METALEmoção associada: TristezaTraços da personagem: Vazio, solidão, melancolia, depressão.

ÁGUAEmoção associada: Medo

48 Transtorno obssessivo-compulsivo.

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Traços da personagem: Fantasmas, insegurança, pânico, baixa auto-estima.

MADEIRA

Emoção associada: RaivaTraços da personagem: Libertação, revolta, impulsividade, impaciência.

Quanto à sonoplastia do espetáculo, cabe dizer que esta também flui ao longo do

espetáculo na perspectiva de wu wei, se desdobrando em diferentes timbres, ritmos, funções.

Lupa produz sons que por vezes explicam ou complementam ações, por vezes simulam vozes

que dialogam com a personagem, por vezes acentuam climas ou criam atmosferas, além de

acompanhar os momentos de canto. Como em uma perspectiva meyerholdiana, aqui a

gestualidade e a música (ritmo) estruturam-se de forma altamente imbricada, e ainda, “o

elemento musical significa para a economia do espetáculo muito mais que uma base de

atmosfera para o desenvolvimento da ação dramática” (Cavaliere, 1996:119)

Ainda em relação à música do espetáculo, vale mencionar que algumas das canções

que compõem o espetáculo fizeram parte de minha própria história pessoal. É o caso de On

my own, de Irene Cara e Nikka Costa, e de Hi Lili hi low!, composição de B.Kaper e

H.Deusch, com versão brasileira de Haroldo Barbosa. A primeira, presente na cena 15:

“Espelho 2 + canto 2” marcou minha adolescência e a segunda, que era cantada para mim

pelo meu pai, durante minha infância, compõe a cena 24: “Livro + canto 3”. Já Boi da cara

preta, de domínio público, é uma música que eu própria cantava para meus filhos ao colocá-

los para dormir, e volta aqui na cena 32: “Filhos + canto 5”. Solidão de Tom Zé, foi uma

sugestão de Lupa. Estávamos procurando uma música para encerrar o espetáculo, na imagem

do vôo da cena 38: “Asa Delta + canto 6”, e ele lembrou que esta canção falava sobre vários

elementos presentes na peça: solidão, poeira, telefone que toca e é engano, além de mencionar

que quem perde o telhado, em troca recebe as estrelas - numa clara alusão à saída de um

confinamento. A música que a personagem canta enquanto dança com a camisa, na cena 12:

“Lavação 2 + canto 1”, Dream a little dream of me, de Gus Kahn, Wilbur Schwandt e Andres

Fabian, foi escolhida por mim em pesquisa de temas de cinema, que remetessem ao amor

romântico e idealizado. Além dessas, a personagem toca em uma corneta a melodia de Adeus

ano velho, de domínio público, enquanto tenta se equilibrar numa corda bamba, na cena 27:

“Corda bamba + canto 4”. Os trechos dessas músicas, os quais são cantados no espetáculo,

estão transcritos no item “Dramaturgia”, em anexo.

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Chamo atenção para a característica de impermanência49 que se observa nas dinâmicas

do cenário, dos objetos, dos estados da personagem, do som e das ações físicas na peça. O

fluxo e a mutabilidade desses elementos em cena seguem uma lógica do devir, do wu wei,

ainda que isso não tenha sido buscado de forma forçosa – como, aliás, pede a sabedoria: agir

sem agir, ação sem coação, co-ação, sem coação. Penso que chegamos a um trabalho onde

não se fala sobre o tao, ou sobre as matrizes taoístas, mas que está prenhe desses princípios,

muito mais do que poderíamos supor quando nos propusemos a essa investigação. Princípios

do tao, furtiva e intensamente, sem que tentássemos agarrá-los, se incorporaram e nortearam

toda a nossa encenação.

Os traços-fios que materialmente vão surgindo e transfigurando o espaço podem ser

entendidos, de certa forma, como fios-guia, vetores de sentido (Pavis, 2005) que vão

deslindando a lógica interna do espetáculo, ou sua incoerência coerente (Barba, 1994). Por

outro lado, podem fazer referência à noção de linhas em Guatarri e Deleuze (1995), já que

funcionam, ora como linhas de estratificação e significação, ora como rupturas a-

significantes, linhas de fuga que desterritorializam um sentido, por exemplo, remontando ao

vazio, para, daí, detonar novos processos de significação.

Em que pese seu caráter geométrico e visualmente não-orgânico, distinto da figura

botânica do rizoma, a presença dessas linhas, e as tramas que com elas se configuram no

espaço, podem nos remeter a outros aspectos do pensamento rizomático. O que elas

atualizam, por exemplo, são os entre-lugares que habitam e desestabilizam esse cubo

aparentemente frio e estático. Espacialmente falando vão ficando em evidência, não mais os

pontos de onde saem as linhas, como era no início do espetáculo - em que os próprios objetos

ocupavam e destacavam esses lugares de polarização - mas os espaços intersticiais, caminhos

que se vão revelando por meio de uma cartografia ininterrupta produzida com o corpo, e pelo

corpo no espaço.

Os traços no espaço, bem como a transformação contínua que o manuseio promove

nas re-significações dos objetos-traços, estão relacionados à noção de wu wei, anteriormente

já associada à de devir. Essas metamorfoses seguem a eficácia e a lógica do fluxo e da não

fixação identitária. Da mesma forma, as alterações de ordem corporal se dão por devires de

matrizes ou células expressivas: estados, ritmos, posturas, etc. Há ainda um incessante re-

49 Noção do Budismo, que se relaciona com o caráter cíclico da vida, com os movimentos de existência e transformação ou finitude de todos os fenômenos. E, assim, se relaciona com a idéia chinesa de wu wei, e com a noção filosófica de devir.

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instalar de vazios na cena, seja por meio de longos silêncios textuais, pelas rupturas de

sentido, pela polissemia que a cena comporta. Dinamicamente, como nos emblemas yin yang,

momentos de excessos se esvaziam, para em seguida irem se preenchendo de novos sentidos,

contaminados por sentidos anteriores, mas dobrando-se sobre estes. Temos aí cenas, corpos e

imagens que criam dobras no tempo e no espaço, imprimindo outras possibilidades de

significação em constante repetição e transformação50. Como se vê, a cena, assim como o

processo, acabou impregnada pelos princípios do tao.

A dinâmica yin yang está presente em vários aspectos de nossa construção cênica. A

seguir listo uma série de duplas que funcionam, no decorrer da peça, segundo a lógica do

Anel de Moebius, já abordada:

Corpoespaço

Sujeitobjeto

Tragicomédia

Gritosilêncios

Excessosvazios

Geometrcorgânico

Verdevermelho

Sutilezasexplicitudes

Fluxoanti-fluxo

Cada um dos dois registros dos pares acima listados ora se alternam, ora transitam em

devir com seu duplo, criando outras configurações nos espaços-entre. O que se produz nestas

encruzilhadas-usinas não é um terceiro lugar da ordem da superação ou síntese de suas

paridades de origem, mas multiplicidades da ordem da mestiçagem e das dobras.

Aqui cabe remeter à composição paradoxal proposta por Meyerhold. Segundo Picon-

Vallin, é nos espaços entre que o encenador realiza sua poética:

Entre a vivacidade da arte popular e o refinamento da arte erudita [...] Entre a eternidade do teatro de feira e a atualidade dos tablados construtivistas. Entre o trágico e o cômico, entre o familiar e o estranho, entre o cômico e o horrível, entre o belo e o monstruoso [...] Organizar seu corpo, pensar sua atuação e estrutura-la em função dessa série de oposições [...] são

50 Sobre a idéia de repetição e transformação, conferir o estudo sobre a perspectiva de trabalho de Pina Bausch, de Ciane Fernandes (2000). Ainda sobre essa perspectiva conferir a formulação deleuziana sobre diferença e repetição (2000).

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operações geradoras de distâncias variáveis, necessárias à criação – para o espectador – de dispositivos de visão ativa, não fusional, estrangeirizante51. (2006:34, grifos no original)

A estes – e outros descritos por Picon-Vallin, somam-se contrastes mencionados por

Cavaliere, como o entre o plano da dramaturgia textual e do jogo do ator e da encenação, e a

dialética entre surpresa alegre e assombro, por parte da recepção (1996:90). A noção de

grotesco, bastante presente nos postulados de Meyerhold, está associada a essa composição

paradoxal, ao passeio pela alternância de registros polares, e ao efeito bizarro e de

exacerbação que tal jogo promove.

Com os jogos ambivalentes e contrastantes da poética meyerholdiana somos

novamente levados ao Anel de Moebius, que, como em uma dinâmica yin yang, articula

ambiguamente a reversibilidade e interdependência entre registros polares. Dentre as

diferentes composições paradoxais mencionadas acima, algumas encontram eco especial em

nossa encenação. Uma delas é a que articula o jogo entre as dramaturgias de texto e de cena

(corpo, ações, relação com espaço e objetos, sons, etc.), ao mesmo tempo em que eleva o

estatuto da segunda a tão enunciadora quanto a primeira. Esta perspectiva, por sua vez,

incrementa o que, em Meyerhold, vai assumir um lugar político: o impacto da construção

cênica sobre o espectador. Diz Picon-Vallin:

Meyerhold designa sua pesquisa sob o termo genérico de “grotesco” – procedimento ou estilo – que ele define sintomaticamente por seu impacto sobre o público, pelo “modo constante pelo qual ele arranca o espectador de um plano de percepção que ele mal havia acabado de adivinhar, levando-o para um outro, que ele não esperava”. Esse deslocamento constante dos planos de percepção é tributário de um jogo de contradições, oposições, coerções, que articula simultaneamente a expressividade corporal do ator e seu projeto significante. (2006:35)

Em Traços, assim como na perspectiva do encenador russo, vimos anteriormente

como a polissemia cênica vai provocar incessantes desterritorializações e atualizações de

sentidos junto ao espectador. Essa disposição - e favorecimento - de uma recepção, em última

instância, singularizada traduz a vocação ético-estética da pesquisa, também sob esse aspecto.

Promover vetorizações de significação que garantam vazios propiciadores de apreensões

particularizadas é abraçar e respeitar o imaginário e o potencial de fabulação do público, além

de favorecer associações, desdobramentos, emergência de memória involuntária, escolhas,

etc.

51 Esta perspectiva “estrangeirante” é responsável pela aproximação que alguns estudiosos fazem entre a obra do encenador russo e a de Brecht. O efeito de estranhamento é relacionado ainda à idéia meyerholdiana de pré-jogo (ou pré-interpretação) por alguns autores. Não é à toa que Stanislávski vai ser ora polarizado com um, ora com outro, ainda que ambas as dicotomias já encontrem importantes desconstruções por parte de críticos e pensadores da cena.

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Page 208: Por uma TAO expressividade

Outra dupla articulação bastante presente em Meyerhold, com a qual a cena de Traços

dialoga é a dialética entre os registros trágico e cômico. Especificamente sobre essa

reversibilidade é interessante transcrever um trecho do dramaturgo Friedrich Dürrenmatt, cuja

tradução que segue foi encontrada no estudo de Ciane Fernandes sobre Pina Bausch

(2000:91):

A tragédia pressupõe culpa, desespero, moderação, lucidez, visão, um senso de responsabilidade. No agressivo jogo de nosso século, nesta recaída da raça branca, não há mais indivíduos culpados ou responsáveis. Ninguém poderia fazer nada a respeito, e nem gostaria. De fato as coisas acontecem sem que ninguém em particular seja responsável por elas. Tudo é arrastado e todos são pegos em algum ponto no fluxo dos eventos. Somos todos coletivamente culpados, coletivamente atolados nos pecados de nossos pais e antepassados. Somos as crianças de nossos ancestrais. Este é o nosso infortúnio, mas não nossa culpa [...]. A comédia é a única coisa que ainda pode nos atingir. Nosso mundo tem levado ao grotesco, tanto quanto à bomba atômica. [...]. E, ainda assim, o grotesco é apenas uma forma de expressar de maneira tangível, de nos fazer perceber fisicamente o paradoxal; [...]. Mas o trágico ainda é possível, mesmo que a tragédia pura não o seja. Podemos atingir o trágico a partir da comédia, podemos trazê-lo como um momento amedrontador, como um abismo que se abre de repente. (Dürrenmatt, in Fernandes, 2000:91)

Dürrenmatt também articula a tragicomédia ao grotesco, provavelmente remetendo a

Meyerhold. Interessante notar que a impossibilidade da tragédia, conforme explicada pelo

dramaturgo, pode ser claramente associada a um trecho da dramaturgia de Traços, onde a

personagem interrompe uma Ave Maria para se dirigir à Virgem e admitir:

...rogai por nós pecadores... eu sei que eu sempre fui fiel aos meus pecados, mas é que eu nasci com eles... eu repito todos os pecados na minha mãe e do meu pai e dos meus avós e dos avós dos outros, eu amo os pecados. Não me castigue, minha Santa, a senhora é mãe, a senhora sabe como é difícil, eu tentava acertar, mas eu não conseguia... (vide anexo A.2 Dramaturgia)

Há aí claramente um misto de sentimento de culpa e de consciência de também ter

sido vítima de circunstâncias que a levaram a ser/estar como agora. A esse momento segue,

inclusive, a cena em que a personagem joga (ou lembra, ou manifesta o desejo reprimido de

jogar) o filho bebê pela janela, enquanto canta docemente uma cantiga de ninar. Outro duplo

registro de nossa cena: entre o doce e o monstruoso.

Outro aspecto importante nas construções tragicômicas é a presença de certa auto-

ironia. Revela-se aí a capacidade de rir-se de si mesmo, dos próprios dramas. A constatação –

não sem algum sarcasmo - do quanto são risíveis e patéticas determinadas atitudes e posturas

(com as quais, mesmo que não sejam exatamente as nossas, nos identificamos), pode nos

ajudar inclusive a lidar melhor com elas. À minha disposição – muitas vezes dolorosa - de

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Page 209: Por uma TAO expressividade

desnudamento ao longo do processo criativo, seguiu a possibilidade – em grande medida

libertadora – de rir-me amorosamente de mim mesma, das muitas mulheres que me cercam,

do ser humano, enfim.

Cumpre registrar que ao falarmos em cômico e trágico aqui, dilatamos os conceitos

para além de seus referenciais dramatúrgicos, e das manifestações máximas que poderiam

provocar no espectador (gargalhadas ou choro, por exemplo). Digo isso por que, em que pese

a platéia não necessariamente “se descabelar de chorar” ou não “se acabar de rir” ao assistir

Traços, a presença tanto de densidade trágica, quanto de humor é constantemente apontada

pelo público. O que nos remete à fórmula da cena meyerholdiana, trazida em Picon-Vallin: a

de um “trágico com sorriso nos lábios” (2006:20).

Se for verdade que teatro é conflito, como se costuma dizer, nenhum lugar é mais

apropriado para que este elemento se produza do que as fronteiras, ou espaços onde se dão os

encontros entre diferenças. Nos jogos entre contrastes ocorrem conflitos. E também

apropriações, fusões, heterogêneses. Segundo Picon-Vallin, Meyerhold abraça a perspectiva

paradoxal em sua cena, por que entendia que “é por meio de uma luta de forças em jogo, e

numa formulação conflituosa, que a atuação alcançará seu mais alto nível de expressividade,

encontrará sua acuidade” (2006:65).

Tal composição por contrastes, em Meyerhold, está presente tanto na dimensão da

construção cênica, quanto na estruturação corporal do atores - aspectos estes investigados na

biomecânica. Também na construção física da personagem de Traços estão inscritas várias

oposições ambivalentes:

Base estreitalarga

Postura côncavaconvexa

Ênfase para altobaixo

Joelhos para dentrofora

Estado eufóricodepressivo

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Page 210: Por uma TAO expressividade

Sentimentos paradoxais como Amoródio, vaidadinsegurança, etc.

Por fim creio ser possível dizer que construímos uma cena onde os jogos entre o

oculto e o evidente, o explicável e o inexplicável, o compreensível e o incompreensível

brincam e provocam o espectador ao exercício de criar junto, se projetando, fazendo escolhas,

enfim, fabulando nos vazios. O que não quer dizer que nosso espetáculo não siga uma

narrativa. Mas cabe dizer que esta é tecida por um conjunto de dramaturgias, que ora se

corroboram, ora se confrontam, ora se negam, mas que, no conjunto, contam, sim, uma

história. Essa trama dramatúrgica se apóia principalmente nos seguintes fios:

O texto,

O corpo e as ações físicas,

O espaço e suas transformações,

Os objetos e suas transformações,

O som.

Como ponto culminante, talvez, dessa trama de fios dramatúrgicos, pode-se

mencionar o encontro de fios elásticos que, no fim do espetáculo, convergem para uma

espécie de “ponto de fuga”. A imagem produzida no agrupamento dos traços remete a esse

recurso técnico do desenho em perspectiva, e, ao mesmo tempo, à perspectiva de um “ponto

de fuga” metafórico: o vôo sobre a cidade... Um passeio de asa delta? Um suicídio? Uma

libertação? Todas estas respostas são bem-vindas, assim como outras que a elas ainda se

somarão.

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Page 211: Por uma TAO expressividade

6.3 Desdobramentos ulteriores

Acho importante dizer que, após minha volta para Brasília em dezembro de 2005, tive

a oportunidade de refinar uma abordagem metodológica baseada em estratégias processuais

das duas etapas práticas anteriormente mencionadas: na disciplina Técnica de Corpo para a

Cena III, na UFBA, e como espetáculo Traços. Ao longo dos últimos quatro semestres como

professora substituta na Universidade de Brasília (1 e 2/2006 e 1 e 2/2007), à frente da

disciplina Interpretação I (quarta da cadeira de interpretação, precedida pelas Oficinas Básicas

de Artes Cênicas I e II e por Introdução à Interpretação), vários daqueles princípios

operatórios, que estão sendo usados, vêm se tornando mais claros, e se mostrando bastante

eficazes. A articulação das duas etapas práticas da pesquisa muito contribuiu para o

entendimento progressivo e aplicação pedagógica dos princípios metodológicos

experimentados.

Hoje, a disciplina, como a ministro, está voltada para uma abordagem de interpretação

a partir da ação física. Tendo como principal base teórica para discussão com os alunos o

estudo panorâmico sobre ações físicas, de Bonfitto (2002) – o qual frequentemente aciona

outras pesquisas por parte dos alunos, a disciplina faz uso de matrizes taoístas, entre outras

eventuais, em perspectiva que promove tanto uma desconstrução de padrões corporais dos

alunos, como a criação de uma cena não-realista. Como a disciplina anterior aborda técnicas

da primeira fase de Stanislávski, que parte das Forças Motivas da Vida Psíquica – sentimento,

mente e vontade - como desencadeadoras do trabalho do ator, nossa abordagem funciona

como uma transição para uma segunda perspectiva de construção de personagem por parte do

mestre russo: pela via das ações físicas (Bonfitto: 2002, 21-37). Ao mesmo tempo o curso

transita por referências de outras técnicas de atuação, que visam uma composição menos

realista, a de um corpo fictício, como alternativa à idéia de personagem como uma pessoa

(psicológica) fictícia.

O curso está atualmente estruturado em duas etapas, que se seguem a uma fase

introdutória de seminários baseados no livro O Ator-compositor (Bonfitto:2002).

Resumidamente, a primeira etapa consiste em aulas que começam com um aquecimento -

uma série fixa que conjuga alongamentos e posturas a exercícios vocais - repetida

diariamente, seguida de experimentações com matrizes – de origem taoísta e, eventualmente,

de outras referências. Diariamente mantém-se um espaço para seleção, registro e repetição de

células expressivas geradas no dia e anteriormente. Esse momento é permeado de princípios

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Page 212: Por uma TAO expressividade

do chi kung, como o gesto de abraçar o centro (mão esquerda sobre o umbigo e direita por

cima), manter os olhos fechados e repassar imaginariamente as células antes e depois de fazê-

lo fisicamente. Treinos de chi kung, propriamente fazem parte apenas de aulas pontuais. Pela

restrição de tempo não trago o treino diariamente.

Assim, ao fim dessa etapa, cada aluno tem uma partitura corporal, com a qual ganha

grande intimidade, pela repetição diária e por experimentar diferentes propostas de

desdobramentos. Esse acervo de possibilidades expressivas é, durante essa primeira etapa,

pesquisado em termos de variações de tempo, peso, amplitude, humor, etc., e ainda sofre

mudanças de significação, em exercícios em dupla ou grupo, onde um aluno faz as vezes de

diretor, e maneja o material dos colegas dentro de determinados contextos (textos ou temas).

A segunda etapa consiste no momento em que o material levantado é confrontado a

um texto dramatúrgico, visando à construção de uma cena. Os alunos se dividem em grupos,

ou eventualmente formam um grande grupo – dependendo do texto escolhido e/ou do número

de estudantes – e são orientados em uma análise do texto, que enfoca questões referentes à

obra como um todo, e a cada personagem em relação à obra. Após a análise são feitas

algumas improvisações em grupo, onde os alunos deixam as construções de sua partitura

dialogar com o texto.

Nesse momento de improvisação os alunos já estão munidos do prévio levantamento

das cenas e ações que compõem a fábula, características de personagem, e já tem apropriadas

algumas partes do texto. Dessas improvisações são coletados momentos considerados

eficazes, ou seja, onde a articulação entre o texto ou ação (necessidades dramatúrgicas) e as

células expressivas, tenham contribuído na vetorização dos sentidos - significação não

necessariamente unívoca ou ilustrativa – da cena. E a partir daí os grupos passam a levantar as

cenas propriamente. Quando toda a turma está envolvida com uma mesma cena ou texto, eu

os acompanho diariamente. Quando há a divisão da turma em montagens diferentes, uma

primeira proposta de cena é feita entre o grupo, e periodicamente apresentada a mim, que

assumo a função de uma direção geral da cena.

Em relação ao espetáculo Traços, podemos nos referir a duas espécies de

desdobramentos ulteriores. O primeiro diz respeito às apresentações que o espetáculo vem

fazendo, às quais me refiro, a seguir, por meio de tópicos, que descrevem o histórico do

espetáculo até então.

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Page 213: Por uma TAO expressividade

A peça Traços ou Quando os alicerces vergam teve sua estréia em 12 de outubro de

2006, no Teatro Caleidoscópio, em Brasília. Após uma primeira temporada de dez

apresentações, com ótima repercussão de público e crítica, o espetáculo foi apontado

como uma das melhores montagens brasilienses do ano. Nesse momento o espetáculo

foi objeto das duas críticas que seguem, a primeira publicada, a segunda não:

Jorro de Criatividade, por Sérgio Maggio

Alice Stefânia emociona e surpreende em belo espetáculo.A concepção do teatro como caleidoscópio inunda o palco no espetáculo Traços ou Quando os Alicerces Vergam. Com Alice Stefânia, alguns objetos de cena e o músico Lupa na sonoplastia, André Amaro monta uma das peças mais criativas da temporada 2006 em Brasília. A cada seqüência, esses elementos constroem inusitadas possibilidades de interpretação para a platéia. O mote parte da obra Noturnos, de Ana Miranda. Mulher solitária que vive entre o limiar de ações físicas do cotidiano e do delírio. Trabalha com lembranças que são recriadas de forma inesperada, a partir de dramaturgia de movimentos. Numa das mais belas seqüências, Alice Stefânia contracena com uma camisa masculina, valsa com a peça e recompõe os carinhos do amante. Em outra, banha-se em bacia, em sincronia com os sons criados ao vivo por Lupa. O texto de Ana Miranda pontua o espetáculo, sendo parte de dramaturgia criada no somatório dos elementos. Quando surge, é imperativo pela fluidez e beleza com que é interpretado por Alice Stefânia. A atriz brinca com o corpo numa leveza que reflete seus estudos acadêmicos (ela faz doutorado na Bahia, onde pesquisa relação entre movimentos opostos, como yin/yang, quente/frio, seco/úmido). Com a ajuda de elásticos (aqueles com que as meninas brincam na infância), traça mosaicos curiosos e emocionantes dentro de cenário inteligente, que se molda à proposta. Realçado numa iluminação narrativa e precisa de André Amaro, o espetáculo reapresenta a Brasília Alice Stefânia, atriz de infinitas possibilidades, que ao final canta lindamente Poeira Leve, de Tom Zé. (Sérgio Maggio, crítico de teatro do Correio, 28 de outubro de 2006, capa do caderno de Cultura)

Sobre Traços, por Chico Simões

Chovia, pensei que não haveria público, mas quase não encontro ingresso, bom sinal, Teatro Caleidoscópio, pequeno, lotado, aconchegante. Chamou-me atenção o cartaz, o vermelho e o preto, pé de galinha? Linhas... Traços... Ou Quando os Alicerces Vergam, vamos ver: adaptação de obra literária... Monólogo... Mulher de meia idade, solitária, delirando... A atriz, Alice Stefânia, pouco a pouco desenha com o corpo e na relação com os objetos ações dramáticas que afastam qualquer lembrança de tantos outros monólogos e adaptações que tenho visto, Alice constrói, contraditoriamente, com o fio condutor, um labirinto onde, enquanto a personagem se perde, o espectador vai se encontrando no caminho traçado com rigor e simplicidade, marca já conhecida, do diretor, também ator, André Amaro provando que por mais que se espere o teatro ainda pode surpreender, teatro que se faz a muitas mãos, mas que é arte do ator e Alice o exerce com completo domínio; de corpo, voz e ainda cantando bem, muito bem. Cenário e figurino, nem seguem o cotidiano formal nem exageram no "teatral", antes, parecem ser objetos de arte, modelos desenhados, a propósito, pela artista plástica Malu Fragoso, compõem, com o corpo da atriz e o espaço cênico, um belo quadro, um apartamento, um quadrado. Da janela, uma luz, almas vivas, vizinhos que não vemos, nem ouvimos, mas sabemos: estão lá. O diretor também está lá,

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Page 214: Por uma TAO expressividade

mantendo a tensão necessária com o espectador, sem perdê-lo e sem envolvê-lo demasiadamente em uma história que ele veio apenas “assistir”. A trilha sonora merece comentário à parte, aliás, a trilha faz jus ao significado: senda, vereda, caminho sonoro por onde o teatro se passa. Lupa Marques, o mago da Casa de Farinha, literalmente “encantado” segue cada ação, cada gesto da personagem, improvisando músicas e sons onomatopéicos como convém a quem muito sabe; in-pró-visar.A cena em que a camisa do marido ausente é lavada e pendurada no varal é exemplar, nela o teatro salta aos sentidos do espectador mais exigente, sons e imagens bem escolhidas propõem, sem impor, leituras particulares de símbolos universais reunidos em uma seqüência dramática, precisa e inteligente; lavar roupa (purificar) pendurar no varal (expor a luz, espiar) e interagir com a peça estendida (comungar) criam uma atmosfera perfeita para o texto que evoca o sacrifício da personagem que morre e ressuscita a cada instante. O jogo entre a atriz e a camisa pendurada no varal, é teatro de animação para bonequeiro nenhum botar defeito, onde a camisa se transforma no dono, que salta da memória da personagem para os sentidos do espectador, materializado como boneco de manipulação direta. Isso é teatro, sem os excessos histriônicos tão comuns na cena contemporânea mundial, teatro essencial, sem mais adjetivos. Bsb, 25/10/2006, Ainda é tempo! Ainda há teatro! (Chico Simões,pesquisador de cultura popular, bonequeiro e articulador cultural em Brasília, em crítica espontânea, enviada por e-mail. 25 de outubro de 2006)

Em maio de 2007, a peça foi reapresentada em nova temporada em Brasília. Em três

semanas e nove apresentações, o espetáculo obtém novamente importante retorno de

público.

Em julho o espetáculo esteve em cartaz na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, em

Salvador, Bahia. Em uma curta temporada (quatro apresentações) a peça ganha

reconhecimento do público e destaque na imprensa baiana.

Em setembro o espetáculo participou da edição 2007 do Festival Internacional Cena

Contemporânea, um dos mais expressivos festivais do Brasil, com duas apresentações.

Na ocasião recebeu o seguinte comentário, produzido em oficina de crítica promovida

pelo festival:

Música afinada - Por James Fensterseifer

Trilha sonora, iluminação e interpretação em perfeita sintonia conduzem o espectador no espetáculo multifacetado, Traços ou quando os alicerces vergam. O músico Luciano Campos (Lupa), que acompanha a cena ao vivo, impressiona com a conexão precisa e a qualidade dos sons que produz. A trilha cria diálogo direto com a atriz Alice Stefânia, tirando o espetáculo da alcunha de monólogo, fazendo com que o som seja parte integrante da interpretação.A incisiva iluminação de André Amaro (que também assina a direção) reforça o relacionamento entre os elementos, ressaltando de forma considerável a atuação. A atriz Alice Stefânia está generosa em cena, revelando qualidades, mostrando ser material humano de múltiplos recursos. Por vezes, nos toca

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Page 215: Por uma TAO expressividade

com uma profunda dramaticidade de expressões e gestos. Outras, enquanto canta, pela suavidade de sua voz. A bela e precisa performance somente é maculada por alguns pontos de fragilidade na costura das facetas dramáticas e pela sensação de distanciamento provocada pelo cenário – uma gaiola de ferro. (James Fensterseifer, diretor, iluminador e produtor, setembro de 2007)

Em 19 de outubro de 2007 apresentamos a peça no XV Festival de Monólogos de

Teresina, Piauí, um dos mais expressivos do gênero no país, e primeiro evento

competitivo do qual participamos. Dos oito prêmios oferecidos o espetáculo ganhou

sete: melhor espetáculo pelo júri oficial, melhor espetáculo pelo júri popular, melhor

direção (André Amaro), melhor intérprete (Alice Stefânia), melhor sonoplastia (Lupa

Marques), melhor iluminação (André Amaro) e melhor cenário (Malu Fragoso).

Ainda em outubro, no dia 28, o espetáculo participou da Mostra SESC de Teatro

Candango promovida pelo SESC. Por sua participação na Mostra, o espetáculo ganhou

prêmio de melhor sonoplastia (Lupa Marques), além de ser indicado para as categorias

de melhor iluminação (André Amaro) e de melhor atriz (Alice Stefânia).

O espetáculo recebeu convite para o II Encuentro de Teatro Contemporâneo, que será

realizado, em Lima, Peru, por ocasião dos 25 anos do Grupo Maguey, um dos mais

atuantes na capital peruana. O evento acontecerá no mês de novembro, quando

faremos duas apresentações, nos dias 17 e 18.

A segunda dimensão de desdobramentos se refere à minha relação com a peça, e às

alterações que a mesma vem sofrendo. Em perspectiva de work in progress o espetáculo está,

em certa medida, aberto para alterações e atualizações constantes. Para se ter uma idéia houve

uma série de trocas e inserções musicais, alterações, incrementos e acréscimos de ações

físicas, além de inúmeras mudanças sutis, praticamente a cada apresentação. Não vale a pena

mencioná-las pontualmente, até porque, além de sutis, não encontram uma justificação teórica

ou racional para se darem. São tão somente minhas estratégias de atriz, para manter o

espetáculo e a personagem vivos em mim, para avivar os preenchimentos das ações, para

renovar o meu fôlego no trabalho. Processo esse altamente estimulado pela prática do chi

kung anteriormente a cada apresentação.

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Page 216: Por uma TAO expressividade

6.4. Fotos

Seguem fotos de ensaios e do espetáculo. O equipamento de que dispunha não era

apropriado para as fotos em movimento. Assim, seguem fotos de momentos mais estáticos,

que são as que ficaram um pouco mais nítidas, e ainda assim, algumas têm problema de foco.

Todas as fotos dessa seção foram tiradas por André Amaro. Infelizmente não há fotos da

disciplina, pois, à época só dispunha de uma câmera analógica antiga, a qual danificou o filme

com o qual fiz os registros do processo.

Imagens de meu aquecimento durante os ensaios:

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Aquecimento antes de entrar em cena:

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Imagens de treinos de chi kung, durante os ensaios:

Em chi kung espontâneo:

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Page 221: Por uma TAO expressividade

Imagens de treinos de chi kung, e chi kung espontâneo, antes de entrar em cena:

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Page 222: Por uma TAO expressividade

Experimentando matrizes

Matriz profundosuperficial:

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Page 223: Por uma TAO expressividade

Matriz calmagitação:

Matriz medoraiva

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Page 224: Por uma TAO expressividade

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Page 225: Por uma TAO expressividade

Matriz tronco membros:

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Page 226: Por uma TAO expressividade

Outras imagens de ensaio:

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Page 227: Por uma TAO expressividade

Imagens do espetáculo:

Cena 1: “despertar”

Cena 5: “unhas”

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Page 228: Por uma TAO expressividade

Cena 2: “janela 1”

Cena 6 “bicho 1”

Cena 6 “bicho 1”

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Page 229: Por uma TAO expressividade

Cena 9: “lavação 1”

Cena 7: “poeira (perigo minúsculo) 1”

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Page 230: Por uma TAO expressividade

Cena 11: “poeira (perigo minúsculo) 2”

Cena 13: “varal + traço 2”Cena 13: “varal + traço 2”

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Page 231: Por uma TAO expressividade

Cena 13: “varal + traço 2”

Cena 14: “costura”

Cena 15: “espelho + canto 2”

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Page 232: Por uma TAO expressividade

Cena 17: “poeira (perigo minúsculo) 3”

Cena 21: “bicho 2”

Cena 23: “telefone 3”

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Page 233: Por uma TAO expressividade

Cena 35: “noite + traços teia”

Cena 36: “telhado”

Cena 38: “asa delta + canto 6”

Detalhe da teia

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Page 234: Por uma TAO expressividade

ASPECTOS CONCLUSIVOS

Sinto-me chegando ao fim de um início. Início de uma pesquisa que apresenta uma

vasta gama de desdobramentos possíveis ainda por advir. Início de história de um espetáculo

que, me parece, ainda muito circulará, e se transformará, e me transformará. Nos primeiros

passos de uma vida de trocas prazerosas, ensinando e aprendendo com artistas em formação, e

com parceiros de pesquisa. Como num Anel de Moebius, já sei que os fins abrigam

princípios, assim como nos princípios já se deixavam antever alguns fins.

Então, volto aos princípios, e refaço agora essa trajetória, revendo-a com um olhar

implicado, mas renovado. Minhas motivações originárias foram de ordem muito íntima e

potente. Sentindo-me afastada de um teatro que me realizasse enquanto artista-pessoa, movi-

me em busca de uma pesquisa que pudesse me trazer, para além de um título, um sentido. Ou

vários.

Foi um prólogo difícil, que muito me custou psicológica e emocionalmente.

Inicialmente não tinha qualquer clareza de como rumar. Dessa forma me vi, num primeiro

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Page 235: Por uma TAO expressividade

momento, tateando às cegas em busca de referências que me ajudassem nesse meu encontro

comigo, através de uma tese de doutorado em teatro. Após uma série de equívocos, dúvidas,

errâncias e muita vontade, tratei de focar o tao como a matriz norteadora desse meu caminho.

Caminho, sentido, fluxo subjacente, curso do rio... São, inclusive, algumas traduções para o

tao.

Acercar-me de princípios de uma tradição oriental ancestral, sendo eu uma mulher

brasileira do século XX, requereu cuidados. Não pude me furtar à compreensão da

complexidade política que aí se implicaria. Ouvir, por exemplo, a colega – agora já doutora -

Paula Vilas,52 tanto em diálogos informais sobre nossas pesquisas, quanto ao longo da defesa

de sua tese (Vilas, 2007), frisar com intensa dignidade e profundo respeito a importância de

uma atitude de “apropriação sem expropriação”, de “reconhecimento sem saqueamento”, foi

bastante significativo para mim. As provocações do professor Fernando Passos alertando-me,

de forma bem humorada, do perigo de eu cair num registro “perua new age”, também muito

contribuíram nessa reflexão. Encontrei em referências como Edward Said e Homi Bhabha,

por exemplo, importantes alertas para esse aspecto de minha investida.

Assim, tratei de me mover ao caminho do meio. Não por encontrar aí o conforto inerte

da não tomada de posição, não para não estar nem de um lado nem de outro. Mas por entender

o meio, com os taoístas e confucionistas, como um lugar de trânsito, potente. Pus-me então na

fronteira desses campos sobre os quais venho trilhando meu caminho: o tao, o teatro, a

filosofia contemporânea, o corpo, a relação ensino-aprendizagem, a conduta ético-estética.

Tentando não esquecer da dupla vocação da fronteira: a de dominação e cooptação, por um

lado, e a de novas configurações identitárias - onde procurei operar - por outro.

A perspectiva de uma articulação ético-estética é talvez o que mais me mobiliza desde

que escolhi o teatro como profissão-vida. Viver a arte como meio para redimensionar lugares

estratificados, sejam os meus, os de meus alunos, os de meus parceiros ou os do público, foi

sempre uma espécie de bússola para mim. Mesmo quando ainda não tinha clareza sobre isso.

Sempre acreditei na potência, ainda que entre a “dor e a delícia”, de implicar minha vida,

minhas questões, meu amor, minha energia, meu corpo, no teatro, visando minha própria

transformação - ou regulação - assim como tentando contribuir para mudanças alheias.

Sempre acreditei em ações micro-políticas, na força de contágio dos fluxos e das intensidades.

52 Paula Vilas ficou alguns dias hospedada em minha casa, quando morei em Salvador. Nessa ocasião, em diálogos sobre nossas pesquisas, ela muito me ajudou a despertar um olhar mais crítico, especialmente em relação às trocas inter-culturais.

235

Page 236: Por uma TAO expressividade

A lida com aspectos do corpo vibrátil, através dos treinos de chi kung, redimensionou

o alcance desse viés. Foi crucial aprender com o taoísmo e com Artaud – teatrólogo que desde

o início de minha vida teatral norteou minha prática -, através de meu corpo e do corpo de

meus alunos, que a percepção da materialidade da energia é algo crucial para a vida e para a

arte. Em especial para a arte que envolve a presença corporal no ato de sua apreciação. E

crucial para fazer a articulação ético-estética.

Logo no início me dei conta de que, mais do que hipóteses, o que me movia eram

conjecturas, inquietações, intuições, desejos. Agora me dou conta de que não cheguei a um

método, pelo menos não no sentido ortodoxo do termo, já que essa terminologia pode remeter

a um roteiro engessado de ações. Creio, sim, ter cartografado processos criativos que partiram

de matrizes específicas, e que lidaram com determinados princípios operatórios, dentro de

uma lógica da eficácia. Estes podem certamente nortear diferentes desdobramentos e

atualizações por parte de outros artistas e pesquisadores, e até por mim mesma.

O imaginário taoísta mostrou-se altamente sugestivo para criação de dinâmicas

criativas e construções expressivas. Os arquétipos ligados ao I ching, por exemplo,

provocaram sobremaneira aos alunos da disciplina Técnica de Corpo para a Cena III. Assim

como os contrastes yin yang, que ao lado da mandala de wu wei, forneceram as sementes

originárias da expressividade corporal que anima o espetáculo Traços.

Além disso, muitas das noções ligadas ao saber taoísta foram percebidas em sua

extrema atualidade, pertinência e abrangência. Várias idéias ligadas ao tao apresentaram

eficácia operatória nas reflexões sobre o corpo, a cena e o zeitgeist contemporâneo. Foi o caso

de wu wei, te, chi, vazio/meio, por exemplo. Os duplos yin yang, por sua vez, além de

operarem como provocadores de corporeidades e parâmetros para gradação dessas

construções, em ambos os processos criativos (a disciplina e o espetáculo), favoreceram ainda

reflexões na desconstrução de modelos dicotômicos.

Inquietei-me com a associação direta, e muitas vezes ligeira, que usualmente se faz

entre um modelo duplo como o yin yang, entendendo-o como necessária e pejorativamente

dualista. Tratei de articular a idéia de que não é o fato de ser dual em si, mas sim o como se

estabelece a relação entre as faces deste par, que irá identificá-lo, ou não, como dicotômico.

Nesse ponto foi importante perceber como mesmo alguns críticos ferrenhos das construções

binárias acabaram, por vezes, caindo em modelos parecidos.

236

Page 237: Por uma TAO expressividade

A mandala das cinco forças – wu hsing – matriz que primeiro me descortinou as

possibilidades estéticas de referências taoístas no teatro – no início dos anos 90 – estiveram

fortemente presentes ao longo do processo de criação de Traços, fomentando, como vimos,

partituras e sub-partituras que sustentam o espetáculo.

Dentre as conjecturas iniciais ligadas ao wu hsing, havia, ainda, pistas dadas por

Artaud, em Um atletismo afetivo (1993: 129), sobre uma possível localização fisiológica de

emoções, inclusive mencionando a acupuntura como possível meio para esse estudo. Essa

leitura gerou a intuição de que o estímulo a alguns pontos dos meridianos, relacionados aos

órgãos do corpo, pudesse facilitar o acesso a energias afetivas associadas a estes.

Tal investigação teria como base o mapa das cinco energias: terra, fogo, água, metal e

madeira - wu hsing – principal norteadora da medicina tradicional chinesa. A idéia era tentar

promover a vazão e o manejo estéticos dos afetos latentes ligados aos pontos mapeados pelos

chineses, passíveis, talvez, de serem acionados por meios adequados.

Esta proposição não pôde ser experimentada em profundidade, por se tratar de um

processo que demandaria a presença constante de um estudioso da medicina chinesa. Deparei-

me com a necessidade de conhecer muito profundamente não apenas os meridianos, como a

forma de acessá-los – massagens, agulhas, exercícios específicos de chi kung, etc. – para

poder realizar o estudo dessa conjectura de forma mais científica e segura.

Por outro lado, percebi traços de um viés determinista nessa intenção investigativa.

Mapear um caminho para um afeto específico via pontos de acupuntura ou massagem, é

ignorar as diversas e singulares interações e configurações – sempre renováveis - entre cada

corpo e seus afetos, entre cada corpo e seus pontos energéticos. Ainda me parece instigante

incrementar e aprofundar a pesquisa com maior instrumental associado – agulhas, manobras

de massagem, etc. – mas não mais na perspectiva de criar um roteiro preconcebido para

acessar determinados estados afetivos.

O percurso dessa pesquisa desenhou uma trajetória de visitas a diferentes campos de

saberes e fazeres: as matrizes taoístas, as matrizes cênicas, a noção de corpo, a noção de

expressividade, a noção de vazio como re-curso, e a análise dos processos criativos. A

estruturação pela qual me decidi foi a de enfocar cada um desses campos por vez, ainda que

sempre buscando relacioná-los entre si. Isso talvez traga a impressão de que a tese apresenta

237

Page 238: Por uma TAO expressividade

blocos distintos e independentes de estudo, mas, por outro lado, creio que permitiu uma maior

organização e verticalização em cada um desses campos.

Em que pese essa construção aparentemente não rizomática da tese, penso que,

internamente, as seções trazem diferentes agenciamentos e linhas de fuga – como ocorre na

cena de Traços – e que estes promovem uma intensa inter-relação entre os capítulos.

Passemos agora a re-visitá-los, relembrando o percurso que trilhamos até aqui.

Inicialmente, no capítulo um, foi proposta uma apresentação das matrizes taoístas que

orientaram nossa pesquisa. Buscou-se olhar algumas noções desse universo a partir de

analogias com conceitos do pensamento contemporâneo, o que já vinha sendo esboçado desde

a introdução.

Esse recurso foi usado por um lado para intensificar a minha própria apreensão – que

já ia se dando em nível energético e corporal - desse saber tão distante da minha realidade.

Por outro lado percebi ser possível problematizar certas incompatibilidades entre construtos

teóricos de saberes ocidentais e orientais, ancestrais e contemporâneos, estruturalistas e pós-

estruturalistas, por meio da imbricação dessas fontes. Houve, entretanto, nesse processo, a

preocupação de não homogeneizar esses campos epistemológicos, e a percepção crítica sobre

a própria necessidade – etnocêntrica e acadêmica - de tomar apoio do saber ocidental para

compreensão e até legitimação do saber taoísta.

Ainda no primeiro capítulo tracei meu próprio histórico de aproximação com as

matrizes, e procedi a explanação sobre aspectos de determinados sistemas de classificação

chineses, os quais forneceriam o principal material sugestivo para o exercício criativo. Os

pares yin yang, os trigramas do I ching e as cinco forças de wu hsing, e alguns treinos de chi

kung foram apresentados em linhas gerais, com enfoque naquilo que neles me interessava

enquanto princípios operativos para o exercício expressivo.

O capítulo dois concentrou-se nas referências cênicas dessa pesquisa, a partir de um

levantamento de certas tendências do teatro, identificadas em determinado recorte no qual nos

localizamos. Algumas dessas tendências observadas foram relacionadas a idéias taoístas e

construtos de pensadores contemporâneos, e comentadas a partir dessas interfaces. Dentre os

nomes que figuraram neste capítulo, Artaud e Barba ganharam maior aprofundamento por

fomentarem mais especificamente alguns dos princípios e questões cruciais que moveram a

238

Page 239: Por uma TAO expressividade

tese. Além destes, Meyerhold e Grotowski, por exemplo, foram referências intensas, com

quem dialoguei em diversos momentos ao longo da tese.

No capítulo três foram destacadas as transformações no lugar e estatuto do corpo,

diante das novas configurações contemporâneas. Dialogando com o redimensionamento da

corporeidade enquanto enunciadora na cena teatral atual, a noção de corpo foi revista

historicamente dentro da construção metafísica ocidental, e re-compreendida a partir de novos

pressupostos científicos, filosóficos e estéticos, e a partir de confrontações com saberes

oriundos da tradição taoísta.

Essa investigação se desdobrou em críticas sobre certa neutralização política através

de apropriação e esvaziamento dos novos valores corpóreos por parte de um motor social

ditado por uma economia capitalista globalizada. Desdobrou-se ainda no entendimento de

como a cartografia corporal chinesa - com a noção de corpo sutil, suas rotas e pontos

energéticos, e suas práticas sobre estes – poderia operar politicamente - pela via de uma

micro-política, molecular, sorrateira e intensiva - enquanto estratégia de percepção, afirmação

e resistência dos corpos vibráteis.

Destacando novamente que resistência, aqui, não tem o sentido de qualquer

estratificação, mas de uma capacidade perceptiva sobre o próprio corpo, em fluxo, que possa

defendê-lo de desterritorializações indesejáveis ou fragilizantes, como as por manipulação

midiática, por exemplo. De novo ecoa a pergunta de Deleuze e Guattari, de “como criar para

si um CsO sem que seja o CsO canceroso de um fascista em nós, ou o CsO vazio de um

drogado, de um paranóico ou de um hipocondríaco” (1996:26), que pode encontrar pistas de

resposta em uma prática como o chi kung, por exemplo, que se relaciona à noção de wu wei –

agir sem coagir – e à idéia do devir como conduta.

O quarto capítulo foi dedicado à compreensão da noção de expressividade enquanto

componente de um circuito dinâmico e reversível, nos moldes de um Anel de Moebius.

Assim, em co-articulação a essa idéia está a de impressividade, a qual não é nem anterior nem

posterior, mas contígua e inseparável da primeira. O exercício desse duplo circuito - que se

contrai no termo expressividade - foi também entendido como um espaço favorável ao

exercício ético-estético de afirmação de singularidades e diferenças, e de manejo estético de

questões subjetivas latentes, com potencial de regulação das mesmas. Entendendo regulação

239

Page 240: Por uma TAO expressividade

não como controle, nem como equilíbrio definitivo ou cura, mas como um processo

permanente – e em fluxo - de re-organização.

No capítulo cinco adentrei a noção de vazio, bordejando-o com auxílio de referências

dos campos de saberes por onde trilhamos: a filosofia contemporânea, a sabedoria taoísta, e

algumas abordagens cênicas. As noções-metáforas de (v)entre, de fronteira, de entre-lugares,

de meio e de ma, assim como referências de artistas que compõem a partir do vazio como

princípio operativo, balizaram essa reflexão. Cheguei a uma idéia de eficácia do vazio,

tratando-o sob a perspectiva de um re-curso: ao mesmo tempo um princípio operativo

(recurso), e um estado para o qual estar sempre disposto a se voltar (e re-cursar).

Por fim, no capítulo seis, passei a observar como todos esses princípios se fizeram

presentes em minha própria prática artística e pedagógica. Nesse capítulo foi constatada a

eficácia das matrizes enquanto geradoras de imagens sugestivas para processos criativos.

Tanto na disciplina como no espetáculo referências do imaginário taoísta se desdobraram em

partituras, sub-partituras, construções corporais (físicas, vocais, afetivas, energéticas, etc.),

que apresentaram tanto potencial para composições extra-cotidianas e diferentes de padrões

pessoais recorrentes, quanto forte vocação polissêmica.

Essa polissemia foi compreendida como instrumento político no processo de recepção:

a multiplicidade de sentidos que se descortina aí, paradoxalmente associada a um vazio

(ausência do entendimento definitivo, da univocidade, da mensagem), provoca pró-atividade

por parte do espectador – associações, agenciamentos, decisões.

Ao longo dos processos criativos o chi kung teve papel crucial, com conseqüências em

diferentes níveis. Por um lado a prática redimensiona a nossa própria relação com nosso corpo

vibrátil – e isso pôde ser identificado em ambas as etapas dos processos: nos corpos dos

alunos e no meu próprio. Por outro lado os treinos propiciaram um estado altamente favorável

para criação, já que o vazio instalado abria espaço para um todo potencial a ser acessado.

Além disso, a mobilização energética promovida pelos exercícios de chi kung geram uma

dilatação corporal - qualidade de presença e irradiação cênica - que atuam sobremaneira tanto

no desempenho do ator quanto – consequentemente - na recepção.

Apesar de, a exemplo da estruturação em blocos da tese, uma suposta parte prática

estar separada de toda uma articulação teórica, é importante frisar que, em realidade, esta

240

Page 241: Por uma TAO expressividade

configuração tem muito mais um caráter de organização e facilitação do discurso, do que o

propósito de retratar o modo como se deu a pesquisa. Houve retro-alimentação constante entre

os âmbitos – indissociáveis em última instância – prático e teórico, na qual um sempre

redimensionava o outro.

Os processos criativos já experimentados, e os que daqui por diante ainda frutificarão

em nossa investigação como atriz e professora, têm como objetivo intensificar os recursos

expressivos do artista cênico, alimentando sua capacidade de dialogar poeticamente com

sugestões – em nosso caso de origem taoísta, visando à geração de acervo expressivo, cujas

células sirvam à composição estética. Assim, é possível projetar, inúmeras possibilidades de

desdobramentos para tal perspectiva.

Dentre os que se descortinam num primeiro momento destacaria as possibilidades de

interface dos princípios do tao com ações vocais – perspectiva não tão explorada ao longo dos

processos criativos que alimentaram esta tese. Referências como as professoras doutoras

Meran Vargens, do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA (2005) e Silvia

Davini, do Departamento de Artes Cênicas e do Mestrado em Artes da UnB (2000) poderão

ser fontes importantes nesse estudo.

Outro desdobramento provocativo seria operar na fronteira entre o imaginário taoísta e

ações em arte e tecnologia. Aqui trabalhos como o das professoras doutoras Maria Beatriz de

Medeiros – coordenadora do Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos (1989, 2005) e Maria

Luiza Fragoso (2003), ambas do Departamento de Artes Visuais e do Mestrado em Artes da

UnB, seriam referenciais. Desconstruir a dicotomia entre contemporaneidade e ancestralidade

seria um bom veio conceitual para essa abordagem. As investigações do professor doutor

Edvaldo Couto, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, sobre o lugar e

estatuto do corpo na sociedade tecnológica, também poderiam intensificar essa abordagem

(2000).

Outro diálogo fértil se instalaria na interface entre o taoísmo e a performance. Seja

pelo viés da Performance Art, ou pelo dos estudos culturais, importantes desdobramentos

poderiam aí se desvelar. Nomes como os dos professores doutores Fernando Villar (2003,

2006) do Departamento de Artes Cênicas e do Mestrado em Artes da UnB (2000), Ciane

Fernandes (2003, 2006.3) e Fernando Passos (2004), ambos do Programa de Pós-graduação

241

Page 242: Por uma TAO expressividade

em Artes Cênicas da UFBA, assim como os estudos da já mencionada professora Maria

Beatriz de Medeiros (1989, 2005), seriam importantes nessa abordagem.

Outra via de desdobramento se daria no aprofundamento do diálogo com artistas e

professores que também vêm utilizando referências taoístas – outras abordagens similares -

em suas pesquisas e/ou ações artístico-pedagógicas. Além da professora doutora Ciane

Fernandes, já mencionada, que vem praticando chi kung há algum tempo, tenho notícia de que

a professora doutora Antônia Pereira Bezerra, também do Programa de Pós-graduação em

Artes Cênicas da UFBA, vem experimentando tal interface. A professora doutora Rita de

Cássia Castro (2005), do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, por sua

vez, norteou sua tese de doutorado a partir de um conjunto de princípios de movimento

corporal japonês, conhecido por Do-ho53.

Foram omitidos acima inúmeros outros nomes importantes nas áreas indicadas. Estão

mencionados aqui apenas alguns professores com os quais mantenho certa aproximação, com

quem me encantaria dialogar, e que poderiam até, eventualmente, orientar-me em

desdobramentos dessa investigação, em nível de pós-doutorado, por exemplo.

Chego, então, ao fim dessa empreitada. Esperando que tal esforço possa figurar entre

as importantes referências para artistas dispostos a pensar e repensar sua própria prática, para

professores dispostos a aprender com seus alunos, para pesquisadores comprometidos com

uma conduta ético-estética.

Mas acima de tudo, e talvez egoisticamente falando, sinto que essa pesquisa tem um

significado gigantesco na minha própria vida. Num primeiro momento me pareceu

extremamente difícil formular conceitualmente todo aquele desejo que tanto me mobilizava, o

qual era oriundo de uma busca intensa, mas ainda confusa, que imbricava necessidades

artísticas, pedagógicas, energéticas, corporais, espirituais - ético-estéticas, portanto. E é com

muita alegria que vejo, hoje, como foi importante ter sido resoluta o bastante para não me

demover de algo que me era absolutamente necessário e genuíno.

Todo processo pelo qual passei ao longo da feitura desta tese ecoou em mim, para

além de uma perspectiva meramente intelectual. Percebo o quanto amadureci como

53 Em 2006 tive a oportunidade de participar de uma oficina de Do-ho em Brasília, de 15 horas-aula. Esta foi promovida pela professora Rita Castro, e ministrada por Toshi Tanaka e Ciça Ohno, importantes referências na tese de Rita (2005). No curso, assim como lendo a tese, pude notar pontos tangentes aos princípios taoístas, inclusive os presentes no chi kung, como as noções de vazio, ma, chi, a idéia de sutileza, entre outros aspectos.

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Page 243: Por uma TAO expressividade

professora, artista, mulher, mãe, pessoa. E sinto um amor imenso por tudo que movimentei

nestes últimos quatro anos: as idéias, os agenciamentos, as encruzilhadas, as corporeidades, a

cena, as energias, os medos, as superações - as poéticas e as políticas, enfim. Todas as

reflexões aqui tecidas nasceram de inquietações muito íntimas, e se articularam à realização

de uma obra artística na qual pulsam minhas próprias singularidades como atriz.

Este rito de passagem marca minha vida de uma maneira radical, que se relaciona à

apropriação e afirmação - em meu próprio cotidiano - de uma conduta micro-política. Esta

conduta, que percebo como uma verdadeira trama, em seu duplo – e recíproco e desdobrável –

sentido: de constelação e de conspiração. Constelação em seu caráter rizomático, de

entrelaçamento de princípios éticos e estéticos, formando uma rede de fluxos e

agenciamentos. Conspiração em seu aspecto de maquinação, estratégia de infiltração e

afirmação, política nos fluxos, nas intensidades, nos subterrâneos, ações contagiosas e pró-

ativas de singularidades mestiças.

243

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257

Page 258: Por uma TAO expressividade

ANEXO A

ANEXOS SOBRE A DISCIPLINA

A.1 Diário de aulas

A seguir a transcrição detalhada dos encontros da disciplina Técnica de corpo para a

cena III, com trechos de depoimentos dos alunos sobre cada aula, coletados nos cadernos.

Primeira fase: diagnóstico

aula 1

Neste encontro, no primeiro momento, foram feitas as apresentações e combinações relativas

ao programa, caderno, avaliação, horários, freqüência, etc.

Atividades:

Trabalho com a base (grounding). Experimentar o peso nas bordas (calcanhar, ponta,

laterais do pé) dos pés até achar o centro.

Escrever o próprio nome e outras palavras com os quadris.

Desequilíbrio com pé plantado e com deslocamento

258

Page 259: Por uma TAO expressividade

Andares com peso em locais diferentes do pé, ver imagens associadas que vêem,

deixando vir e agregar sentidos às formas.

Escolher um tipo de andar e dar sentido, contextualizar, estabelecer motivações, etc.

Mostrar para o resto da turma a construção.

Conversamos sobre teatro físico e psicológico. Foi dito que nossa proposta pode dialogar com

as duas tendências, já que o processo criativo é sempre pautado por uma relação psico-física,

e já que não a entendemos excludentes entre si.

aula 2

Conversamos sobre o histórico e expectativas de cada um, falei mais sobre meu projeto de

doutorado. Foi passado o primeiro questionário, e respondido em aula.

aula 3

Primeiro contato com chi kung, através de exercícios de captação energética das árvores.

Atividades:

Experimentação com pés, pernas, joelhos, formas de pisar, andar.

Exercício: reagir corporalmente a diferentes tipos de solo e ir registrando as

formas/forças criadas. Solos imaginários usados como estímulo: arenoso,

escorregadio, frio, quente, congelado, ovos, com buracos, poças d’água, capim alto,

pedrinhas, chiclete, lama, areia movediça, etc. Observar como o trabalho cria

alterações do equilíbrio corporal.

Escolher uma forma entre as experimentadas. Re-significar, re-contextualizar, deixar

acontecer timbre vocal e ruídos associados.

Re-significar novamente a partir da inserção de um texto (abaixo), e dentro de ação

coletiva na seguinte situação: um a um chega e se posiciona numa mesma fila, mas

cada um se comporta na fila cujo contexto foi criado para seu próprio personagem,

sem saber em qual contexto de fila o outro está imaginando estar. Ao chegar cada um

usa o seguinte texto (ou aproximações): “Por favor, seu número? E o seu?... Sou o

259

Page 260: Por uma TAO expressividade

penúltimo. (pausa) Com licença. (pausa) Está demorando muito? (pausa) O que não é

fila hoje em dia, não é, amigo?”

Conversamos sobre corpo extra-cotidiano e teatralidade, a partir da leitura de Eugênio Barba.

Após a aula, a partir de consulta feita ao professor Ernani Franklin, que me orientou quanto ao

chi kung, foi feita uma mudança de abordagem. O chi kung, passa a ser trabalhado apenas

com os exercícios “entrar no vazio” e “sentar na calma”, mais apropriados para nosso

objetivo.

Segunda fase: yin yang

aula 1

Foi explanada uma base teórica sobre o chi kung. Foram mostrados mapas dos centros

energéticos principais e respectivos portais de acesso e meios de absorção energética. Foi feita

ainda uma explanação sobre o par de rúbricas yin yang.

Chi kung: “entrar no vazio” e “sentar na calma”.

Atividades:

Trabalho técnico: parâmetros de movimento (com estímulo musical/dança): rotação,

inclinação, níveis/planos

Retirada da música, tentativa de partir pra ação menos dançada.

Estímulo a partir de fatores yin yang, alternando entre os dois pólos energéticos de

cada par.

Em dupla um num pólo e o outro no outro (trabalhando oposição) trocando

dinamicamente de pólo, na dupla, sem combinação prévia.

Escolha de células criadas a cada novo fator de estímulo (par yin yang), ir repetindo a

célula selecionada e colando à próxima para criar composição.

Repetição, treino e mostra da partitura. Registro.

260

Page 261: Por uma TAO expressividade

Conversa sobre sensações no chi kung, dificuldades de concentração, lacrimejação e

salivação, dores no corpo, sensação do corpo torto, pode estar relacionada à percepção de

outras camadas corporais que não a física, como o corpo sutil, ou vibrátil.

Depoimentos recolhidos dos cadernos sobre esta aula:

Leonardo: (sobre a partitura a partir das dinâmicas yin yang) “A parte mais complicada é a

colagem. Tentei unir as diversas células numa mesma unidade corporal, mas também de

pensamento lógico e racional. Não sei se essa foi uma boa idéia porque meus movimentos

estavam bem distantes do que se pode chamar de realista. Mas fiquei muito satisfeito com o

resultado”.

Fábio: (referindo-se à partitura a partir das dinâmicas yin yang) “Passar do movimento

espontâneo para o dirigido é sempre brusco para mim”.

Júlia: (sobre as dinâmicas yin yang): “busquei as relações mais interessantes com o outro e

onde meu corpo ficava mais orgânico, apesar do movimento ser extra-cotidiano”.

aula 2

Chi kung: “entrar no vazio” e “sentar na calma”.

Atividades:

Com a energia mobilizada e concentrada no chi kung, abrir os olhos e entrar em contato

com ambiente, mantendo firme dentro, acionar outros sentidos fazendo ponte dentro e

fora. Olhar a rua, ouvir os sons. Encontrar parceiro, olhar no olho e em estado de chi kung

fazer exercício do “espelho” sem predeterminar o guia e o seguidor, mudando estes papéis

ao longo do processo sem indicação prévia.

Ainda na dupla relembrar partitura (sem falar), mostrar pro outro que a aprende e vice e

versa, troca de partituras.

Exploração da partitura alheia lembrando princípios opostos yin yang, tentando

experimentar aspectos (recheios, sensações) diferentes naquela mesma forma. Chegar a

uma nova partitura, a partir da mesma forma, mas com “texturas/tempos” diferentes.

Assistimos cada partitura original e transformada. O que teve sua partitura transformada

261

Page 262: Por uma TAO expressividade

escolhe aspectos, células, texturas que deseja assimilar à partitura original e aprende-a

novamente.

Conversa sobre o chi kung que mobilizou muita energia hoje, algumas pessoas sentiram

energia quente vindo da terra e fria do céu. Conversamos sobre como as respostas são

individuais, e que especialmente nesse início da prática não se deve forçar um tipo de

sensação, mas apenas tomar consciência das respostas no corpo. Falamos sobre a diferença

entre intenção (há um subtexto com motivações psicológicas, ou racionais, que move a

partitura ou movimento) e sensação (quando o que move, gera a ação física, é a sensação –

imaginada ou real - atuando sobre o corpo).

Depoimentos recolhidos dos cadernos sobre esta aula:

Fábio: (sobre partituras trocadas e mexidas): “Mais uma vez minha racionalidade demasiada

interferiu. Minhas seqüências são geralmente quadradas. Ver o colega repetindo e depois

transformando minha seqüência é a princípio desesperador, depois faz sentido. Refazer a

seqüência modificada acrescentando as qualidades que o outro agregou, isso parece

bom!.P.S.: Preciso ter paciência comigo e com meus limites, mas nem tanto”.

Leonardo: (sobre partituras trocadas e mexidas): “Foi interessante perceber a desconstrução

de cada movimento. No caso de minha partitura, surgiram qualidades que principalmente

davam um ‘quebra’ na linearidade dos meus movimentos”.

Júlia: (sobre partituras trocadas e mexidas): “Toda essa desconstrução abriu muitas

possibilidades e minha seqüência ficou mais rica. Assistindo a do colega percebi que abriram

novos caminhos também para ele. Pude hoje perceber meu corpo muito vivo e mais presente,

como se estivesse dilatado”.

aula 3

Atividades de chi kung. Abrir olhos, deixar contato visual com mundo exterior se estabelecer,

mas não cortar a concentração. Caminhar pelo espaço mantendo o trabalho e ir aos poucos se

“naturalizando”.

Trabalho técnico com tecido, visando trabalhar oposição, e sua relação com yin yang.

262

Page 263: Por uma TAO expressividade

Dupla com tecido, peso fora, alongando ao mesmo tempo.

Um de cada vez experimentando enquanto o outro faz base, sustentando a

experimentação do colega.

Trio com tecido, dois sustentam segurando as pontas enquanto um explora

movimentos dentro.

Todos com tecido: várias duplas, cada dupla segura um tecido de ponta a ponta,

delimitando uma área na sala. Um brinca nesse espaço, explorando as possibilidades

com os vários tecidos, inclusive com mais de um de uma vez. Quem segura também

pode explorar, mantendo tecido aberto ou fechado, explorando planos, tensão, etc.,

desde que mantenha a base para o colega. Podem também se mover e até envolver o

corpo que brinca no espaço.

Resistência com tecido em diferentes partes do corpo, caminhadas com diferentes

resistências. Trabalhamos com tecido no quadril, no peito e na testa: um vai na frente

com tecido neste local, e o outro segura as pontas atrás. Trabalhamos sempre a

caminhada com tecido e sem tecido depois, percebendo as forças de oposição no

corpo, após a experiência, mantendo o tônus. O de trás também experimenta formas de

segurar, conquistando novos espaços corporais.

Conversamos sobre como foi prazeroso trabalhar com tecido, especialmente na primeira parte,

antes do trabalho de oposição e resistência (derivado de propostas de Decroux e Barba), muito

lúdico e criou lindas imagens. Surgiu a vontade de fazer um trabalho final a partir dessa

proposta. Alguém falou que nem seria preciso, no trabalho de resistência eu frisar que era

como se o tecido ainda estivesse, pois o corpo já havia incorporado a sensação e naturalmente

isso acontecia. Alguns falaram sobre como o chi kung refletiu no resto da aula, inclusive foi

lembrado que alguns pontos de resistência trabalhados no tecido coincidiam com a

localização aproximada dos pontos trabalhados no chi kung, centro yang, centro yin e mãe dos

centros. Leonardo comentou hoje que sentiu energia fria em baixo e quente vindo de cima, ao

contrário do que costumava sentir, e consoante com o que a indicação do exercício sugere.

Depoimentos colhidos dos cadernos:

Júlia: (tecido livre) “Inúmeras possibilidades, tirando o corpo do eixo”. (oposição com

tecido) “Foram exploradas inúmeras formas de se mover com a resistência. A depender de

onde estava o tecido tinha uma qualidade de movimento diferente. Remeteu a personagens,

263

Page 264: Por uma TAO expressividade

sensações, estados diversos só com a forma de se movimentar. Estabeleceu-se uma relação

fortíssima de confiança com os colegas”.

Fábio: (tecido) “Boas possibilidades corporais”.

Justina: (oposição e resistência com tecido): “Este trabalho despertou a percepção da relação

de força, fisicalização de energia, dramaticidade do movimento e, principalmente, agregou

uma qualidade de energia própria, peculiar a cada ponto monitorado pelo obstáculo do tecido.

Chamou-me a atenção a correlação que me fora espontaneamente sugerida entre tal trabalho e

a concepção de evocação energética de cada ponto verificado no trabalho básico de chi kung”.

(ela se refere ao centro yin, baixo ventre, à mãe dos centros, cintura e ao centro yang, testa/

cabeça).

Clarissa: (oposição com tecidos). “Tinha lido sobre Decroux, no livro o Ator-compositor, e

ele falava sobre o deslocamento da energia para manter o “mesmo” movimento (link direto!)

com o objeto concreto”.

Altamar: (tecido): “Exercício bom para laboratório, pesquisa de posturas e formas de compor

personagem”.

aula 4

Atividades de chi kung. Abrir olhos, deixar contato visual com mundo exterior se estabelecer,

mas não cortar a concentração. Caminhar pelo espaço mantendo o trabalho e ir aos poucos se

“naturalizando”.

Trabalho técnico: oposições/vetores (direções, forças que atuam no corpo – pelo menos 6

vetores – cima/baixo, frente/traz, esquerda/direita). Pedi para imaginarem uma força

puxando para frente, sem o corpo resistir. Depois uma força para traz. Aí ambas as forças,

iguais, como que dilatando o corpo. Então a da frente é um pouco maior e eles se

deslocam dilatados. A mesma coisa com os lados direito e esquerdo, depois acrescentando

as forças da frente e trás. Por fim, o mesmo percurso com as forças que puxam para cima

e para baixo, acrescendo os outros vetores e por fim o deslocamento com os seis vetores

264

Page 265: Por uma TAO expressividade

atuando. Pedi para executarem ações, mantendo a dilatação, e para irem limpando o corpo

da tensão excessiva, sem perder a sensação dos vetores atuando.

Diagonais: Estímulo fatores yin yang indo de um pólo máximo para transformar-se

gradualmente no outro pólo. Em dupla, um sai do lado yin e o outro do lado yang, em

relação, e vai ocorrendo a transformação no deslocamento pela diagonal. Depois o mesmo

exercício com a transformação ocorrendo em corte seco, subitamente e de preferência ao

mesmo tempo com os dois alunos, foi lembrada a importância da relação pelo olhar. Em

dupla foi escolhido um par de fatores yin yang e experimentados cortes secos e

transformações graduais, podendo os dois alunos estarem no mesmo pólo, ou em pólos

opostos. Livre experimentação, deixando virem sentidos e intenções. Depois cada dupla

apresentou um pouco do trabalho.

Conversamos sobre a necessidade ou não da tensão provocada pelo exercício dos vetores no

corpo, para conquistar maior presença. Falamos sobre a importância de identificarmos o grau

necessário dessa tensão e de nos desfazermos do excesso. Alguém falou da importância de

quem esta fazendo a aula perceber o que ocorre no corpo do outro para entender a diferença

entre os estados corporais. Outro aluno lembrou Barba falando que nas técnicas extra-

cotidianas, ao contrário que na vida cotidiana onde empregamos o mínimo de esforço para

obter o máximo de resultado, investimos o máximo de energia, para, muitas vezes, a mínima

ação. Lembrei que há ainda uma diferença entre o momento do treinamento e o momento da

apresentação, e que é preciso fazer o corpo experimentar, sentir, apreender e conquistar a

segunda natureza, o corpo extra-cotidiano. Falei ainda que ao pedir para eles irem limpando o

exercício de tensão no fim, mantendo a atuação dos vetores, era por que o corpo já tinha se

submetido um certo tempo ao trabalho, então já havia incorporado aqueles princípios, aquela

qualidade. Cinara falou da dificuldade em se concentrar no chi kung, e comentei que percebo

nela essa mesma dificuldade em outros momentos da aula. E comentei sobre o quão

importante, justamente por ser tão difícil, era esse trabalho para ela. Fábio falou da

dificuldade de “acreditar” nos trabalhos e em propostas mais ligadas ao imaginário, de um

modo geral. Tem uma resistência, mas quer vencê-la, tende a julgar o trabalho do colega

também, como se não acreditasse que o outro pudesse acreditar e realizar o trabalho com

verdade. Nessa fala se referiu mais ao trabalho das diagonais com yin yang que ao chi kung.

Muitos sentiam dificuldade quando trabalhávamos as associações mais abstratas dentro da

tabela do yin yang.

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Page 266: Por uma TAO expressividade

Depoimentos colhidos dos cadernos:

Júlia: (vetores, dilatação): “Realmente senti meu corpo expandir muito. Isso é a presença

cênica. Meu corpo presente, consciente e em harmonia com o espaço. Com essa dilatação

aconteceu que meu corpo ficou extremamente tenso. Com a indicação para eliminar essa

tensão, meu corpo continuou dilatado e emanando energia. Muito legal!” (diagonais yin

yang): “Com alguns pares de opostos, por serem muito abstratos, não consegui sentir

realmente a sensação no corpo”.

Clarissa: (vetores, dilatação): “Primeira vez que vivi essa sensação de corpo dilatado. Corpo

dilatado através de um trabalho específico, com essa finalidade. Com os seis vetores atuando

no corpo, os meus olhos viam uma esfera de energia externa lilás, para a qual me deslocava.

A caminhada contínua me libertou das tensões e questionamentos sobre que partes do corpo

mexer ou como fazer”.

Leonardo: (diagonais yin yang) “Bons exercícios para perceber as alterações de determinados

grupos musculares do corpo. Algumas imagens de oposição do yin/yang são mais fáceis de

serem trabalhadas, talvez por fazerem parte do cotidiano mais ilustrativo. Nesse caso o maior

desafio era sair do repertório de movimentos pré-conceituados”.

Fábio: (vetores, dilatação) “Tive a impressão de estar utilizando mais energia do que de fato

era necessário, muito mais ação do que sensação. Temo que o racional em demasia atrapalha

os exercícios. Nas duplas (...) a qualidade de movimento não me convencia. Mais uma vez a

desagradável sensação de que a ação suplantava a sensação. Parecia que os colegas e eu

também estávamos muito mais preocupados com o mostrar, o que conduz a obviedade”.

Eugênia: (vetores, dilatação) “Muito importante hoje foi a idéia da força puxando o corpo

todo. A experiência geralmente é feita imaginando-se um fio puxando o corpo por um

determinado lugar. A idéia de puxar pelo corpo como um todo dá uma transformação muito

diferente ao corpo, pois o corpo é sentido de forma integral. Outro exercício que me trouxe

uma perspectiva nova foi a diferença entre uma passagem gradual entre o yin e o yang, e uma

passagem brusca. Uma cena é construída a partir de muitos elementos, mas um dos mais

importantes é o ritmo. Um personagem tende a ser representado justamente naquilo em que

afetado pelos acontecimentos, por isso esse ritmo é tão importante para a interpretação.

Aprender, tanto observando quanto vivenciando, transformações corporais tem de ser parte do

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Page 267: Por uma TAO expressividade

aprendizado do ator, pois será um elemento constante e fundamental em seu trabalho de

interpretação. Essa disciplina tem se voltado para a questão da energia. É prazeroso ver como

esse aspecto aparentemente tão ‘ilusório’, e talvez ‘distante’, pode ser concretamente usado

para a interpretação. Essas aulas têm me mostrado meios de entrar em contato com essa

energia, de ampliá-la e até de transformá-la, criando a partir da possibilidade de usar essa

energia como base para a construção de um corpo receptivo à criação interpretativa”.

aula 5

Atividades de chi kung. Abrir olhos, deixar contato visual com mundo exterior se estabelecer,

mas não cortar a concentração. Caminhar pelo espaço mantendo o trabalho e ir aos poucos se

“naturalizando”.

Retomada de princípios de trabalho abordados nessa fase como:

Formas de pisar/andar

Caminhada/solo

Desequilíbrio

Parâmetros de movimento: rotação/ torção, inclinação, níveis/ planos

Deslocamento sob resistência: imaginando tecido em várias partes do corpo.

Vetores atuando tridimensionalmente, dilatando o corpo

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Page 268: Por uma TAO expressividade

Terceira fase: I ching

aula 1

Chi kung com ênfase no centro yang.

Atividades:

Corpo se move em atmosfera densa, corpo em vibração.

Movimento inspirado em dinâmica Laban: Empurrar/ pressionar: forte, direto e lento.

Movimento puxado pela cabeça.

Trabalho expressivo agregando a essa qualidade de movimento, referências ligadas ao

trigrama, no sentido de compor uma “entidade”.

Deixar surgir uma respiração e sonoridade deste corpo e trazer uma palavra.

Apresentação de cada “entidade” inserindo falas curtas, enquanto as outras se

mantinham vivas, mas imóveis, observando a que se apresentava.

Diálogo final: Surgiram entidades muito díspares e houve de modo geral dificuldade deles

manterem ou aplicarem recursos técnicos e sugestões trabalhadas no dia, durante o processo

criativo. Também pareceu haver uma certa interpretação maniqueísta e notadamente ocidental

dos conceitos atribuídos ao trigrama. A energia das entidades, de um modo geral, era

caricatamente maléfica, com referências a sacerdotes maquiavélicos, com sede de poder. A

leitura do conceito de “poder”, por boa parte da turma, foi responsável pela construção ter

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Page 269: Por uma TAO expressividade

seguido essa linha, segundo o debate que tivemos. Falei para eles que ainda que as

construções surgidas pudessem estar, dee certa forma, distantes da noção taoísta do trigrama,

isso não caracterizava insucesso no trabalho, já que as leitura eram subjetivas mesmo e é isso

que enriquece e diversifica o trabalho. Mas sugeri que eles tentassem, na próxima experiência,

receber as palavras com o mínimo de preconceito possível, a fim de ampliarem as

possibilidades de livre associação. Solicitei ainda que fossem buscadas a manutenção e

aplicação (ainda que atualizada e singularizada) dos princípios técnicos abordados no dia.

Depoimentos colhidos em cadernos:

Cinara: “De todos os exercícios que fiz, a experiência que ficou mais forte foi quando citou-

se a cabeça, o céu e o cavalo. A palavra “entidade” também ficou, mas resolvi não pensar

muito, acabou criando uma personagem: o poder que ela tinha, o andar foi baseado no cavalo

e a palavra (ordem) ‘saia’ veio depois desta construção e com o ambiente” (contexto que ela

criou para a entidade).

Afrânio: “‘Hor’ Adorado pelo povo, cuida deles procura saber das energias, o que é melhor

para todos. Ordena que se faça e obedecem. Essa divindade é como uma grande estátua viva

com a base púrpura e uma cabeça de metal líquida que olha, vigia seu povo. Ele está

localizado no centro do universo e gira em seu eixo quando percebe de onde vem os clamores,

as reverências, orações, etc. A base é humana, a cabeça de cavalo”.

Fábio: “Entidade. Torta, imponente, tensa, soberana, em pânico, soberba, casca oca. Anda

desenhando o ar, com os pés abertos, levanta os joelhos o ombro direito quase sempre

suspenso o que desalinha todo o corpo. Cabeça que procura erguida, que vigia. A criatura que

insiste em dominar, que se vê acima, mas não dentro de si mesma. Focos específicos, atenção

direcionada em busca do eixo. Voz nasal, na respiração. Achei interessantes as relações que

foram feitas tanto por mim quanto pelos colegas. As palavras usadas para motivação

(vermelho, poder, pai, céu, cavalo) racionalmente me sugerem imagens muito diferentes das

que foram mostradas. É como se o avesso se apresentasse, como se, sem pensar, aflorassem

aquelas imagens tão ‘distorcidas’, irregulares. Surpresa total!”.

Clarissa: “Minha personagem acabou se tornando o papa. A voz mesclava uma tonalidade

mais aguda com uma ressonância gutural. No corpo, um olhar inquisidor, de cima para baixo,

foco direto. Uma tensão no pescoço, nas pernas, braços e troncos como se a locomoção não

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Page 270: Por uma TAO expressividade

fosse algo facilmente conquistado. A palavra escolhida foi Deus. A forma de mostrar o

trabalho foi muito bacana. Todos em cena e um se movia e falava”.

Altamar: “Densidade me sugeriu água, cavalo sugeriu-me cavalo marinho, cabeça sugeriu-

me direção e força. Minha entidade era um cavalo marinho buscando algas, motivado por sua

fome”.

aula 2

Chi kung com ênfase no centro yin e focando respiração baixo ventre.

Atividades:

Marionete em duplas: um toca e puxa indicando de onde parte e qual a direção do

movimento, o outro espera parado a indicação, executa e volta à neutralidade (parado).

Começando em pequenas partes do corpo.

O mesmo, buscando deslocamento pelo espaço.

O mesmo, buscando alongar ao máximo a parte puxada na direção sugerida, antes de

deslocar (flexibilidade).

O mesmo buscando propor múltiplos focos ou direções: um movimento não acaba

antes do próximo começar, vindo de outro ponto do corpo e indo a outra direção.

O mesmo, em trios, ampliando a multiplicidade de focos/direções, mas sem acelerar.

Dinâmica Laban: flutuar/ esvoaçar: leve, indireto/flexível e lento.

270

Page 271: Por uma TAO expressividade

Agregar ao trabalho uma respiração profunda que torne o ventre presente na

construção corpórea.

Trabalho expressivo: agregando a essa qualidade de movimento, referências ligadas ao

trigrama, no sentido de compor uma “entidade”. Ênfase na idéia de sombrio, mas leve,

doce. Insistência nesse contraste.

Criar, evitando obviedade, uma partitura a partir dessa construção, que passasse por

fecundação, gestação e parto.

Apresentação dos trabalhos.

Obs: O exercício com a energia da Gueixa (Odim e Lume) também pode ser associado à este

trabalho.

Depoimentos colhidos em cadernos:

Júlia: “Consegui aproveitar desde o chi kung até o trabalho com os fios (marionete) para

fazer minha partitura. O grupo estava em sintonia e o trabalho fluiu”.

Clarissa: “Construí a partitura em três momentos: o pai, a mãe e o filho. Entre um

movimento e outro uma pequena transição semi-circular e energética, no ritmo, no olhar, na

intenção”.

Leonardo: “A gestação foi a mais complicada, não sabia o que fazer e o fato de não poder ser

figurativo acaba me levando à construção de coreografias. (...) acho que em minha cabeça a

objetividade está a serviço do drama e a subjetividade a serviço da dança, que, aliás, pra mim,

é mais libertadora de meu potencial criativo”.

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Page 272: Por uma TAO expressividade

aula 3

Chi kung com ênfase na linha que une centro yang ao centro yin e que se liga à linha da

coluna. Estímulo para liberação de eventuais manifestações de energia na coluna.

Atividades:

Deitado, iniciar movimentos ondulares na coluna, sutilmente, num crescente, do chão

ao plano alto, buscando deslocamento e dinamizando, sempre partindo da coluna.

(lembrar que os olhos são o fim da coluna vertebral, já que correspondem à direção da

base do crânio, criar a imagem de uma serpente na coluna, cujos olhos coincidem som

os nossos).

Fazer paradas (estátua) mantendo o dinamismo interno e ao bater da palma retomar o

movimento em “explosão”, partindo da coluna, mas buscando um deslocamento em

salto. (foco nos pés – base - e coluna)

Ir aos poucos diminuindo o tamanho do movimento, mas mantendo o impulso interno.

Esse trabalho gera algo como espasmos corporais e forte concentração energética.

Dinâmica de Laban socar/ bater/chutar: forte, direto/reto e rápido/súbito.

Trabalho expressivo: agregando a essa qualidade de movimento, referências ligadas ao

trigrama, no sentido de compor uma “criatura”. Imagens lançadas: trovão, impulsão,

dragão, decisão, filho mais velho.

Solicitação de que cada um tivesse uma arma imaginária, a escolher, proposição da

experimentação do manejo desta no ataque e na defesa.

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Page 273: Por uma TAO expressividade

Jogo de poder/luta. A sala toda pára em estátua, mantendo a energia, e um dos

guerreiros convida outro para lutar. O que convida só ataca, o convidado só defende

até o sinal, e daí o que convidou pára, e o que foi convidado chama outro e inverte seu

papel, isso até fechar a roda. Não vale tocar no colega durante a luta. Usar a arma

imaginária.

Após a experimentação a turma se divide em duplas, e cada par cria uma partitura de

luta. Mostrar para turma.

Obs: Surgiram várias imagens próximas à do caboclo, e também de arquétipos de guerreiros

de outras mitologias, como Thor e samurais.

Obs2: O treinamento Samurai do Odin Teatret pode ser uma associação interessante ao

trabalho com este trigrama.

Depoimentos colhidos em cadernos:

Júlia: (serpente/coluna): “Ainda no chi kung foi irradiada a energia para a coluna. Essa

energia foi impulsionando e provocando movimentos com a coluna. Minha coluna realmente

parecia estar regida por essa energia, sugando do centro de todas as mães. Eram movimentos

sinuosos, verticais e horizontais. Minha coluna parecia uma serpente. Senti falta de explorar

mais o exercício da coluna. Mesmo assim a energia estava vibrante todo o tempo e isso

sustentava todos os movimentos do meu personagem. Movimento de explosão, quebra a

energia, impulsionava tudo, e também no manejar a arma”.

Fábio: (serpente/coluna): “Trabalho com a coluna evolui do micro para o macro tanto na

sensação quanto no movimento em si. As palavras que foram incluídas (dragão, irmão mais

velho, impetuosidade, decisão) de fato se aliaram ao corpo ou às sensações do corpo. A luta e

as armas escolhidas também se relacionaram com as indicações e o exercício foi bem fluido,

muito embora minha empolgação tenha me levado à dor. Os movimentos bruscos que fiz com

os braços (o chicote nas mãos) acabaram por forçar muito o braço e o ombro”.

Clarissa: “Me veio a figura de Thor. O Thor do desenho animado da minha infância. Com

seu tacape, sua força, seus cabelos longos, sua rudeza. A figura do irmão mais velho me traz a

idéia do desbravador, aquele que sai em busca do desconhecido, desenha seu pé na areia

inexplorada. Criar o personagem através da coluna foi bem interessante, com a idéia das

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Page 274: Por uma TAO expressividade

labaredas de fogo, incansáveis, inconstantes em suas aparições, e ao mesmo tempo, manter o

peso, a força da entidade e buscar a luta, o ataque e a defesa. Gostei!”.

Leonardo: “A arma que escolhi foi o arco e flecha, imediatamente me veio a imagem do

caboclo, do índio que utiliza a natureza ao seu favor, se guiando pelos elementos que ela lhe

oferece. A visão era um sentido importante, mas para identificar seu alvo usava a audição e o

olfato. Mesmo em luta (o caos), me sentia integrado a uma atmosfera que me proporcionava

tranqüilidade”.

aula 4

Chi kung ênfase centro yin, fonte borbulhante puxando seiva da terra, seiva percorre corpo

derretendo-o, especialmente articulações. Corpos vão ao chão

Atividades:

Forma fluida (vide Fernandes, 2002), respiração, sangue, seiva. Perceber próprios

líquidos e ouvir ruídos internos.

Reagir aos sons e sensações dos fluidos internos. Inicia pequeno e vai deixando

acontecerem desdobramentos. Imagem de deixar rastros. Escorrer, derramar, espirrar

líquido. Ir aumentando a velocidade.

Dinâmica de Laban: chicotear: forte, indireto/flexível e rápido/súbito.

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Page 275: Por uma TAO expressividade

Em duplas ou trios, condução pelo som da voz – pela audição: um de olhos fechados,

reage a chamados pelo seu nome. Pode-se trabalhar a questão da direção (de onde vem

o som), e do estímulo ao movimento (pelo timbre, volume, altura e outras

características da voz). Manter como qualidade de movimento uma fluidez densa.

Trabalho criativo, inserção dos estímulos relativos ao trigrama água, com

deslocamento do atributo perigo, para o atributo loucura.

Depoimentos colhidos em cadernos

Júlia: “Ainda em chi kung meu corpo, como foi proposto, foi derretendo. Era uma energia

passiva, pesada. Senti os fluidos do corpo e isso impulsionou movimentos lentos, contidos e

sinuosos vindos do corpo todo. (...) Todos os meus movimentos tinham vários focos e meu

corpo todo espanava. Um ruído surgiu a partir desses movimentos. Era um grito agudo e

curto, com se estivesse se queixando de alguma coisa. Quando foi pedido para construir um

personagem enxuguei o movimento que partia do tronco e refletia e espanava os braços e as

mãos. Surgiu também uma palavra a partir da sensação de indiferença que havia sentido, que

foi: ‘Ôxe!’ Todo o corpo e as sensações da personagem foram gerados pela palavra loucura e

por uma certa irritabilidade que existiu com um dos estímulos, que foi ‘irmã do meio’.

Consegui aproveitar desde o chi kung na construção da personagem. Foi uma evolução nítida

do exercício de derretimento, dos estímulos dados até chegar à personagem. Hoje, realmente

achei tudo proveitoso”.

Clarissa: “Criei a personagem através do movimento da mão direita. Movimentos rápidos,

sinuosos e angulosos. A mão carregava o braço, pés e cabeça e voz, como se regesse a

máquina. Em oposição a mão esquerda permanecia imóvel, braço e ombro também. A voz da

loucura variava seu registro de acordo com a regência. No alto aguda, embaixo mais grave e

baixa, no meio modal. O som saia a partir do “TR”. Quando não havia som a mão se perdia,

tentava se esconder, mexia no cabelo. Uma situação de sempre chamar, comentar, reclamar”.

Fábio: “Depois de imaginar a seiva viscosa que passava pelo meu corpo e de certa forma

transformava todo o corpo nessa seiva, percebi vários momentos em que finalmente estava no

exercício. Os estímulos dos colegas através de meu nome dito de diversos lugares ‘levavam’

meu corpo, que por indicação fazia movimentos indiretos espalhados. Depois a criação a

partir desses estímulos mais o das palavras (lua, abismo, irmão do meio, loucura). Boa

experiência”.

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Page 276: Por uma TAO expressividade

Justina: “Hoje se investigou a energia da loucura, e as imagens que me eram sugeridas

remetiam a uma certa perdição, lentidão, descontrole e bestialidade. É curioso perceber a

forma pela qual cada um sente a loucura: uns com agressividade, outros com devaneio e até

com humor ou exacerbação da sexualidade. Parece ser a falta de ‘limites’ que sempre

configura cada imagem subjetiva do que se chama louco, afinal, o sentimento ou sensação em

si, manifestado no comportamento, está em todos nós. O que nos fornece o sentido de louco é

esse ‘descontrole’, ‘exagero’. O exercício de atender ao estímulo da voz do outro trabalha

uma qualidade de atenção e sistematização muito efetivo... é preciso se concentrar no que se

ouve e no que te parece mais ‘convidativo’ ou ‘imperativo’. Mas a pluralidade de estímulos

nos oferece essa ‘perdição’, o status de louco”.

aula 5

Chi kung com ênfase na percepção e energização das mãos. Aproximar palmas das mãos do

rosto para perceber essa energia.

Atividades:

A partir da posição final do chi kung, fazer marionete facial, puxando fios imaginários

no rosto e conquistando fisionomias (estampas) diferentes. Repete várias vezes,

sempre voltando ao ponto neutro.

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Page 277: Por uma TAO expressividade

A partir da instalação da estampa, deixar migrar para o corpo, fazer estátua no corpo e

rosto, e voltar para neutralidade. Repetir algumas vezes.

Movimento é feito com a energia da Câmera Lenta: Contínua, penetrante, devagar. O

corpo se move lentamente pelo espaço. Ora ativamente, empurrando o ar, ora

passivamente, escorregando pelo ar.

Mesmo exercício, só que em duplas, esculpindo, ou manejando os fios do outro.

Primeiro estampa (rosto), depois corpo, depois som.

Primeiro estampa (rosto), depois corpo, depois som, depois movimento.

Voltar com as mãos para frente do próprio rosto e a partir da idéia de deslizar

(dinâmica Laban): leve, direto/reto e lento, vai seguindo a própria mão (pode trocar de

mão), com o rosto próximo a palma. Mão puxa, empurra, torce o corpo, só na

intenção.

Mãos passam a puxar fios na face novamente, criando novas máscaras.

Trabalho de composição. Inserção dos aspectos relacionados ao trigrama, visando

investir de ‘sentido’ o trabalho.

Criação de uma imagem comum com toda a turma. Um segue em câmera lenta para

uma imagem parada (estátua) e uma a uma vai se agregando a esta, visando uma

composição única. Parte daí para a qualidade de movimento conquistada, a turma

passa a trabalhar em 2 grupos, pensando em compor imagens.

Cada grupo para um pouco para assistir o outro.

Obs: Outras dinâmicas que poderiam ter sido aplicadas:

Dupla: no contínuo/slow o ator vai construindo imagens. E o parceiro vai tirando

fotos. Escolhe uma. Interfere, e assim sucessivamente.

Trabalho de sustentação (colinhos, pegadas) em diagonal, variando quem carrega e

quem é carregado.

Depoimentos colhidos em cadernos

Afrânio: “A condução do trabalho com fios imaginários facilitou, a meu ver, o processo de

desconstrução das fórmulas prontas que costumamos apresentar. Num segundo momento,

fomos deixando aquelas faces esdrúxulas fluírem para o corpo, assumindo um personagem, e

chegando a uma voz. Num último estágio, interagimos rapidamente com os outros

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Page 278: Por uma TAO expressividade

personagens. Nesse trabalho, o que mais me chamou atenção foi a performance de alguns

colegas que desenvolveram formas realmente surpreendentes”.

aula 6

Chi kung com ênfase em concentrar energia na mãe dos centros e dirigir para braços e mãos,

seguindo para trabalho com pinceladas de energia.

Atividades:

Pinceladas livres: braços e mãos são pincéis e traçam desenhos no ambiente.

Pinceladas com paralelismo: os dois pincéis executam o mesmo desenho. (esse

trabalho gerou movimentos que lembraram o kata do tai chi chuan)

Pinceladas assimétricas: cada pincel trabalha em uma direção/tempo/textura. Sugestão

de lembrar as oposições yin yang para mobilizar a assimetria.

Voltando energia para mãe dos centros, agora o trabalho (e o caminho visualizado da

energia – chi) parte do tronco migrando para os membros. Buscando voltar para o

ponto neutro periodicamente.

Buscar inserir e valorizar o elemento torção no movimento. Sucessões, no sentido

tronco para membros.

Ênfase nas características da dinâmica de Laban, Torcer: forte, indireto/flexível e

lento.

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Page 279: Por uma TAO expressividade

Inserção das seguintes imagens: penetração da terra por raízes (madeira, torção),

caminho sinuoso do vento, doçura, veemência, ofensiva e indecisão, e, a partir disso

construir uma imagem grotesca, um bufão medieval, com defeitos, corcundas, partes

do corpo retorcidas. A partir desse corpo foi criada uma sonoridade vocal expressa em

linguagem não inteligível, foram propostas as seguintes situações em duplas: um

contar para o outro, nessa língua, algo extraordinário que presenciou; ambos

arquitetam um plano; executam o plano. A partir daí a sala toda interagia na mesma

proposta.

Depoimentos colhidos em cadernos:

Fábio: “Percebo que a simetria (exercício dos pincéis), o paralelismo é mais natural, mas a

assimetria proporciona mais ‘liberdade’. Gosto do grotesco. Fico razoavelmente confortável

quando a idéia é criar bizarrices. As últimas aulas tem sido interessantes nesse sentido, os

exercícios se desenvolvem até chegar a um lugar”.

Altamar: “Composição de um ser grotesco, mole e reto como uma minhoca, pegajoso”.

Leonardo: “Vento, galhos retorcidos. Achei interessantíssimas as tensões corporais surgidas

em algumas pessoas. Movimentos torcidos e leves nos reportam ao cômico ou tragicômico.

Me lembrei do corcunda de Notre Dame e me senti muito à vontade com o que construí. Foi

uma das melhores construções que já fiz”.

Cinara: “Quando foi citada ‘tinta luminosa’ (exercício dos pincéis) facilitou a imagem. Em

seguida todo corpo se contorcia a partir do tronco. Quando ‘brincamos’ com as figuras

grotescas, possibilitou-se várias composições”.

Júlia: “Minha figura grotesca tinha uma energia sombria. Minhas pernas estavam

flexionadas, a perna direita se arrastava no chão, rosto tenso com a língua empurrando a

bochecha. Depois todos começaram a se relacionar e foram formando várias histórias

paralelas que no final virou uma única história. O que gostei mais foi a relação com as

pessoas, você estar ligado no que o outro propunha e entrar no jogo. Foi o jogo de olhar e a

sintonia com o outro que mais me ajudou. Os bufões de todos estavam muito legais. O chi

kung ajudou bastante”.

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Page 280: Por uma TAO expressividade

aula 7

Chi kung com ênfase na energia saindo pelo olhar. Circular pelo espaço olhando nos olhos

com esse trabalho

Atividades:

Isolamento das partes: Deitado energia saindo da mãe dos centros irradia pra partes

isoladamente que se movem (ex: dedinho esquerdo do pé, dedão da mão, quadril, um

ombro, joelho, etc.) Depois começa a mover apenas os dedos dos pés, o resto imóvel,

e vai somando partes do corpo, parte a parte, mantendo o que se movia antes, até

ganhar deslocamento, mudança de planos. Aumenta ritmo, tentando mover tudo ao

mesmo tempo.

Reforçar a idéia de Sacudir (dinâmica Laban): leve, indireto e rápido/súbito. Manteve

até exaustão. Deixar soltar o som. Ir até o limite. Congela. Retém energia, abraça

centro, retoma respiração.

Trabalho expressivo: deitado de olhos fechados visualizar uma ave dourada. Observar

seu movimento, porte, corpo. Imaginar como a ave respira, para ter aquela

corporeidade. Identificar o modo da respiração (ex: curta, longa, entrecortada, rasa,

funda, mais tempo inspirando ou expirando, etc.). Instaurar essa respiração no próprio

corpo. Deixar nascer internamente um olhar advindo disso. Abrir os olhos com a idéia

de que é um olhar luminoso. Deixar também vir uma corporeidade a partir disso.

Deslocamento, construção desse ser no espaço. Ao sinal todos observam um, instala-

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Page 281: Por uma TAO expressividade

se o clima de observar e ser observado. Todos passam a reproduzir no corpo a forma

daquele. Voltam para a própria. Depois outro e assim por diante, retomando às vezes

formas anteriores – de outros – já experimentadas.

Na conversa final sobre a experiência falei sobre a importância da respiração em Artaud: "O

que a respiração voluntária provoca é uma reaparição espontânea da vida" (1987). "O esforço

terá a cor e o ritmo da respiração artificialmente produzida" (idem).

Depoimentos colhidos em cadernos:

Júlia: “Primeiramente a ave ficou no campo do racional. Imaginei uma galinha, e ela tinha

uma energia agitada e explosiva. Quando levantamos o corpo já foi se formando

instantaneamente e de forma orgânica. Minha personagem tinha uma relação forte com o

olhar e uma conexão com os outros. Foi muito legal observar as composições dos colegas.

Cada um tinha um corpo mais interessante que o outro. Foi bom também quando imitávamos

alguém e tínhamos que reproduzir fielmente o corpo e o olhar do outro. Tínhamos que ter

consciência da energia e da composição do outro. Fora tudo isso adorei minha

composição!!!”.

Justina: “Mantendo-se o estado físico e mental atingido pelo chi kung, trabalhamos o

isolamento das partes. É uma investigação minuciosa dos limites e propriedades de cada

membro. O mais interessante é perceber os quão fundamentalmente independentes são as

partes do corpo quanto à capacidade de isolamento, mas dado o condicionamento usual,

parece-nos difícil a dissociação. Este trabalho nos dá a oportunidade de experimentar

possibilidades gestuais incomuns pelo isolamento de cada grupo muscular e, mais que isso, a

oportunidade de perceber que determinados grupos estão de tal forma condicionados que não

se pode aciona-los sem o suporte de outro, que na verdade é independente... O que nos exige

um estado de concentração apurado. Esse trabalho foi realizado sem música, e isso também

confere propriedade ao exercício. Quando a música é inserida, um sentido de fluidez se

relaciona com o corpo, e agora, embora as partes voltem a atuar correlacionadas, cada

subgrupo, de músculos e membros, parece se expressar com mais efetividade, não vira um

bailado, mas dá uma qualidade expressiva ao corpo com certa dilatação. O trânsito para a

imagem da ave parte da sugestão de uma figura elaborada na individualidade do repertório de

cada um, o que, aliás, confere a cada pássaro uma qualidade de energia semelhante ao

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Page 282: Por uma TAO expressividade

humano que a expressa. Outra curiosidade desses trabalhos é a constante do trabalho físico

com ênfase na sustentação e tônus muscular”.

Leonardo: “Acho que atingi a exaustão. Me identifico com esse tipo de trabalho pois é

evidente o tolhimento do racional. No trabalho com a ave não consegui um bom resultado,

mas gostei de observar e experimentar a construção da ave de alguns dos colegas”.

aula 8

Chi kung com ênfase na boca/saliva54.

Atividades:

Energia do Desequilíbrio: leve, inerte, fluida. O corpo pende em uma direção e no

último segundo a vontade do ator (a partir das possibilidades vislumbradas, mas

seguindo o fluxo do corpo) “resolve” o movimento.

Em grupos, um fica de “bobo”, na energia/proposta do desequilíbrio, e os outros

propondo movimentos a partir de interferências no corpo do que está no centro.

Voltam a trabalhar sozinhos, deixando a idéia de desequilíbrio migrar para um

movimento de maior leveza.54 Treino da água sagrada: posicionado no kata base, ou sentado em uma cadeira com coluna ereta e pés tocando o chão. O exercício se inicia com 36 mordidas. Em seguida faz-se 9 rotações da língua, dentro da boca, pra cada lado. Realiza-se bochecho da saliva produzida, divide-se esta saliva em três porções e engole-se em três momentos, espraiando essa energia pelo corpo, fortalecendo em especial a mãe dos centros.

282

Page 283: Por uma TAO expressividade

Trabalhar a dinâmica de Laban, pontuar/ brilhar: leve, direto/reto e rápido/súbito.

Inserção de pequenos saltos, energia próxima à trabalhada na Dança dos Ventos

(Odin): Pulsante, compassada, ritmada. O corpo se lança pelo espaço em

deslocamentos graciosos e aéreos. Intensificando até a exaustão. Intensificar a sede e o

desejo por água.

Chi kung: reprogramação da água55.

Trabalhar o desejo pela água energizada, a partir da sede sentida. Trabalho com

textura, sabor, cheiro e som da água, onde o ator deve permitir uma adaptação do

corpo àquelas impressões sensoriais. Migrar para relação de prazer e sedução,

inserindo aspectos do trigrama do dia.

Em roda cada um vai para o centro, se exibe, seduz/convida, tem relação com o

colega, (sem tocar) e aí por diante. Os que ficam na roda se mostram e seduzem para

serem o próximo convidado. Cada um pode ser convidado várias vezes.

Na conversa final eles estavam muito empolgados com o trabalho, falando muito.

Conversamos que essa energia (sexual, de sensualidade, libidinal) pode se perder facilmente

em comportamentos dispersos ou ser canalizada, concentrada. Falei que estávamos fechando

o ciclo I ching nesse dia e eles pediram para que jogássemos na aula seguinte.

Depoimentos colhidos em cadernos:

Fábio: “Muito bom exercício, bom perceber as diferenças de quem de fato está no exercício e

de quem só quer mostrar”.

Cinara: “Pulamos muito, e depois foi difícil segurar (controlar) a respiração. Veio a sede...

Os copos cheios de água e só podíamos olhar... aumentou a sede e a vontade (...) o respeito

pela água surgiu logo, o valor que não damos, a vontade e o desejo realizado, finalmente

bebemos a água (...) Roda da sedução, quem estava no centro seduzia, brincava com esse

poder de sedução, os que faziam o círculo aproveitavam para atrair o parceiro pra si. Muito

jogo corporal, muitas expressões surgiram”.

55Treino de reprogramação da água: com os dedos indicador e médio da mão direita, unidos, formando uma espécie de “espada” de energia, aponta-se esta “espada” para o céu, captura-se por alguns segundos energia yang, e em seguida aponta-se para um copo cheio de água. Gira-se os dedos em sentido horário pela borda do copo, podendo tocá-la ou não. Em seguida bebe-se a água, que segundo os mestres taoístas passa a ser uma espécie de “água benta”, para usarmos uma referência próxima a nossa cultura.

283

Page 284: Por uma TAO expressividade

Justina: “O trabalho de exaustão (...) me causou tontura, (...) tentei me concentrar e não

abandonar o trabalho. Na segunda fase, no entanto, o procedimento de reprogramação da água

inseriu um aspecto ritualístico que nos envolveu a todos. O vínculo criado com o líquido logo

se converteu em impulso sexual e se manifestou na roda”.

Afrânio: “O início do trabalho, com o desequilíbrio, trouxe uma sensação de liberdade. A

energia sensual dominou a aula, fluidez nos movimentos, ondulações dos corpos, contatos

corporais esporádicos, semi-intencionais. Mais uma vez fui influenciado pelo universo

infantil, e adolescente, alternadamente. Sensação de deslizar rápido, como na patinação, vento

no rosto. Equilíbrio precário. Brincar com água me deu vontade de ser/expressar uma fonte

caudalosa, sempre em movimento, rápida ou lenta. Ainda não consigo tirar proveito do

trabalho em exaustão (num trabalho de tanto prazer, a dor não me trouxe nenhum benefício)”.

Leonardo: “Exaustão: esse tipo de trabalho me mobiliza porque tolhe o racional. No trabalho

com a sedução eu arrasei, explodi de desejo e sedução na aula. Engraçado como a gente nunca

sabe quando é caça ou caçador. Senti-me dentro de uma vitrine sendo escolhido para

consumo. Essa foi a aula do semestre”.

Júlia: “Criamos uma relação forte com a água. Desejei bebê-la como nunca. Quando realizei

o que queria a água estava com o sabor mais delicioso do mundo. A sensualidade, o prazer

foram marcantes no estado em que estava. Foi feita uma roda logo em seguida e foi

estabelecida a relação com o outro. (...) Senti a energia yin muito presente e às vezes a dança

que fazia remetia à dança do ventre, que é uma dança bem feminina e sensual. (...) Adorei a

aula de hoje!”

aula 9

Chi kung com ênfase no terceiro olho e mãos.

Jogos de I ching sobre o momento de cada um.

Leitura de cada resultado com comentários dos colegas.

284

Page 285: Por uma TAO expressividade

Quarta fase: criação textual

aula 1

Chi kung ênfase terceiro olho.

Deitaram com papel e caneta do lado, em estado de chi kung. Fui falando de cada trigrama e

seus atributos, na ordem que foram trabalhados em sala, e eles foram escrevendo coisas

aleatoriamente, palavras, frases soltas, memórias, livre associação. Como fundo musical

foi usado o CD I ching, do Uakti, tendo o tema de cada trigrama como fundo ao momento

em que este estava orientado o trabalho.

Cada um fez uma viagem pela própria memória corporal, pelo processo recente, ligado aos

trigramas do I ching.

Juntaram-se, em dupla ou trio, e cada autor leu seu texto para o(s) colega(s) que, de olhos

fechados percorreram a própria memória do corpo ligada à fase dos trigramas tentando

trazer movimentos ou corporeidades que dialogassem com cada trecho. Trocaram os

textos. Cada colega se familiarizou com o outro texto.

Cada um leu um texto de um colega para a turma como um todo.

Os textos mostraram-se densos e poéticos, de um modo geral. Algumas pessoas se

emocionaram durante o processo e durante a leitura. (ver mais detalhes sobre esse trabalho e

os textos produzidos na seção 6.2.c)

Depoimentos colhidos em cadernos:

Leonardo: “Foi tranqüilo enquanto eu estava escrevendo. Eu sabia o que escrevia, mas não

tinha noção do resultado de todas as palavras ligadas. Ler o resultado é que foi desagradável,

pois me lembrei de coisas que preferia ter esquecido e comecei a pensar em outras que nunca

me ocorreram. Eu me acho muito fraco pra esse tipo de trabalho, por que se por muito pouco

me comovo, imagine num trabalho desses que mexe com sentimentos pessoais. Não consigo

segurar e começo a chorar”.

Júlia: “Foram dados estímulos a partir dos trigramas e nós íamos escrevendo palavras ou

imagens que viessem à mente. Foi uma experiência inesquecível. Passar pelos trigramas,

285

Page 286: Por uma TAO expressividade

sentir sensações das mais complexas e variadas possíveis. Afloraram em mim sentimentos que

por muito tempo estavam esquecidos nas gavetas da minha mente. Fui tomada por uma

grande melancolia e tristeza, palavras que inclusive estão no texto. Podemos dizer que sofri

uma catarse. É esse o nome com que defino a experiência vivenciada hoje. Apesar das

lágrimas e das lembranças dolorosas, considero positiva a experiência, pois preciso saber lidar

com os sentimentos que por ventura possam transbordar de dentro de mim”.

Afrânio: “O processo de construção da dramaturgia me pegou de surpresa. Realizar, em aula,

um trabalho escrito representou uma quebra nas nossas atividades, mas essa sensação foi

somente inicial, por que o processo utilizado trouxe de volta as imagens trabalhadas em sala.

Para mim foi fácil reviver imagens e emoções e coloca-las no papel”.

Altamar: “Fiz um texto onde elementos profundos preponderavam, havia sempre uma volta

para o interior”.

aulas 2 e 3

Atividades de chi kung.

Trabalho em duplas ou trios. Os alunos leram o material dos três ou dois integrantes do grupo,

e transformaram em texto para cena, buscando o poético, mas dramatúrgico, inserindo ou

retirando trechos, até sentirem-se satisfeitos com o resultado, que visava à cena.

Lembraram as construções mais interessantes produzidas na fase I ching (gestos, estados,

corporeidades, vocalidades, movimentos, entidades).

Selecionaram elementos, retomaram e/ou reconstruíram corporeidades a partir das

lembranças.

Passei o questionário FASE 3

Depoimentos colhidos em cadernos:

Justina: “A opção pelo texto composto por palavras soltas, que inicialmente me pareceu

estimulante, mostrou-se um tanto complexa – até pela pluralidade de possibilidades que

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Page 287: Por uma TAO expressividade

oferecia. Foi difícil encontrar um sentido (ou não sentido) que contemplasse todas as imagens

sugeridas pela subjetividade de cada um. Fábio nos deu uma contribuição (...) e compôs um

poema inspirado das nossas palavras pré-eleitas na delimitação do repertório. Esse poema

tornou-se o eixo de sustentação de nossa composição. Pretende-se trabalhar aspectos como a

repetição, a livre associação de idéias e a expressão da subjetividade acessada por essas

palavras aliados ao repertório gestual elaborado ao longo do curso”.

Fábio: “Não estava na aula que individualmente os textos foram escritos a partir de estímulos

específicos. Só depois (...) participei da transformação. Tanto no meu grupo quanto nos outros

o texto foi recriado depois que todos lemos, nos ouvimos lendo e experimentando

possibilidades. No meu grupo a criação foi coletiva, discutida e assim elaborada. Quando

participei do grupo de Eugênia, Altamar e Justina, o processo de criação foi mais pessoal,

ouvi os textos e escrevi o que chamo de um poema. Escrevi de vez, sozinho sem mostrar nem

discutir a princípio. Depois compartilhei, eles gostaram e resolveram usar.”

Afrânio: “A junção dos textos abriu a perspectiva do trabalho. Mais uma vez a observação

dos resultados dos colegas foi enriquecedora. O trabalho sugerido, montar uma partitura

corporal para encenar o texto criado, funcionou para mim, como respostas às minhas

expectativas do que fazer com o material desenvolvido durante o semestre.”

Quinta fase: trabalho final

aula 1

Atividades de chi kung.

Retomaram texto.

Selecionaram elementos, retomaram e/ou reconstruíram corporeidades a partir das

lembranças. Experimentaram até construir uma partitura com o texto.

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Page 288: Por uma TAO expressividade

aula 2

Atividades de chi kung.

Trabalharam as cenas criadas na aula anterior.

Adequaram a partitura com dimmer yin yang (mais forte mais fraco, mais rápido mais lento,

denso/sutil, etc.).

Mostraram, trocamos comentários sobre os trabalhos.

aulas 3 e 4

Ensaios e aperfeiçoamento do trabalho.

aula 5

Apresentação e avaliação.

Depoimentos sobre etapa trabalho final e apresentação:

Justina: “As idéias primordiais partiam da expressão retórica de um movimento de

experimentação física e energética pautada sempre no repertório mítico investigado na aula.

As imagens sugeridas pelo processo ganhavam forma verbal e, após a construção

dramatúrgica formal, eram reapropriadas em cena com a qualidade de energia compatível com

a que gerou. Isso, por fim, confere à relação texto/corpo uma peculiaridade e simbiose que se

reflete na cena”.

Júlia: “Esse processo final foi bastante conturbado e frustrante. Por conta da falta constante

dos componentes do meu grupo, inicialmente, fizemos tudo racionalmente. Isso não funciona

nem um pouco. Particularmente tive uma experiência muito rica e um material de trabalho

profundo. Todo esse material que adquiri ao longo das aulas não consegui resgatar e aplicar

na apresentação final. Seria muito mais produtivo se tivéssemos continuado com as aulas que

288

Page 289: Por uma TAO expressividade

estavam sendo bastante enriquecedoras. Goste muito das aulas. Essa experiência vou levar

para vida enquanto atriz e o chi kung, principalmente, para o lado pessoal”.

Cinara: “Esse trabalho final foi pouco para todo o processo, fizemos pouco. A construção do

texto foi prazerosa, os estímulos foram bastante importantes, fluíram, o pior é que tínhamos

bagagem para uma montagem, não sei por que não rolou. Gostaria de continuar no próximo

semestre para entender melhor tudo (me refiro ao aprimoramento)”.

Leonardo: “Estive ausente nas duas primeiras aulas de construção conjunta do texto (...) Nos

correspondemos por e-mail durante o São João, discutindo inclusive os conectivos que

deveriam estar presentes ou ausentes no texto. Somente em sala, pensando juntos é que as

imagens, inclusive corporais, foram surgindo. A imagem idealizada racionalmente estava

linda. Como realiza-la. Não tínhamos a resposta e exatamente nesse momento as faltas

começaram a acontecer (...) a ausência de um imobilizava o grupo. Gostaria de pedir à

professora que não se sentisse frustrada pelo resultado, mas sim feliz pelo processo, que pra

mim pelo menos foi o mais bem aproveitado e que mais ressoou em termos de

expressividade”.

Fábio: “As coisas são como são?

As coisas têm um tempo de maturação (caju só dá no tempo).

As coisas não são tão feias quanto parecem.

As coisas vão melhorar.

As coisas nem têm um fim.

As coisas servem à reflexão.

Há muito mais coisas”.

289

Page 290: Por uma TAO expressividade

A.2. Criação textual

No processo de transcrição do material gerado pelos alunos a pontuação, ou ausência

desta nos originais, foi respeitada, salvo em momentos onde pareceu ser esquecimento do

autor. Alguns textos pareceram verdadeiros desabafos, vômitos de sensações sob a forma de

uma escrita em fluxo poético. Outros criaram imagens a partir das idéias que iam sendo

lançadas, gerando verdadeiras narrativas, e ainda houve textos que eram apenas palavras

soltas jogadas, uma após a outra.

Textos individuais gerados

Leonardo:

Amo amo amo amo amor amor morte

Sofrimento ou recuo – libertação > encontro

Renovação

Oculta e apaixonante é a vontade de amar e sofrer e aprender a errar mais uma vez nas

escolhas seguir as influencias boas e más, mas quais

Há sempre uma saída, um repouso uma continuidade e perdas. Pense pense pense pensamento

e ação

O semeador não tem controle sobre o que planta – vida própria

Mar água serena da tempestade de meus pensamentos

O cuidado cuidado sempre

Cuidado medo espiritualizar-se

Caboclos – passes – anjos da guarda guais

Cosme Damião – meninos moleques alegria

O frescor

290

Page 291: Por uma TAO expressividade

Ai meu Deus dai-me asas

Somos anjos de uma asa só – abracem-se

Me busca

Me pega

Me infiltra

Encontro – complemento – desintoxicação – aura

Mutação – de casulo a borboleta

No encontro com o Deus que há em mim

O Deus que me fortalece e mais que eu sabe o que é melhor para mim Ah vontade de fugir de

me abandonar um pouquinho pra poder me encontrar no plano do irreconhecível conhecer

conhecer conhecer chorar mais gritar mais gritar preciso me doar se encontrar

Me encontrar

Em outro ser criança ser adulto sonhar a juventude plenitude – viver – fugir

Fugir

Fugir

Raiva que dá dá dá libido – desejo

Dá dá dá coagir encurralar

Medo apoio – fuga desejo imposição – menos compreensão ser mais e melhor caompreendido

VOVÓ – espírito – pra onde vai será que vem?

Oração amigos os meus são minha responsabilidade. Tenho medo de não conseguir dar conta

Raiva

291

Page 292: Por uma TAO expressividade

Vontade de bater, quebrar, romper

Morder, chupar, cuspir, exalar, liberar

Pensar o fútil e o efêmero

Sabedoria – o anfiteatro da emoção do coração

Dá-me asa – busco voar. Não se feche pra mim. Calma depois da tempestade...

Desejo desejo

Um beijo apenas depois decidimos se entrega não pensa, se deixar envolver nesse jogo nessa

dança – EXPLODE JUNTO

A MIM.

Vem, vem, vem

Lambuza

Pecado? Não sei acho que não prefiro acreditar que não. Esse não é meu Deus ele não me

impõe pergunta. Temos juntos o controle de tudo.

Cinara

Aceitar o que nos parece estranho...

Às vezes o que procuramos, encontra-se dentro de nós mesmos... o céu o paraíso, a força que

nos equilibra que precisamos para caminharmos.

A segurança de estar dentro de um ventre, de voltar para ele, a dor de não estar mais nele, o

medo de não ser mais criança, quero caminhar...

O fogo que queima, a força que nos destrói, a dureza das cristalizações, as frustrações das não

realizações, a calmaria que tortura, a dúvida, a surpresa, a certeza...

292

Page 293: Por uma TAO expressividade

Busco uma cachoeira, um cheiro bom, uma luz, noites tranqüilas, o vermelho das paixões...

Ultrapassar obstáculos, devorar leões, plantar algodões, chegar ao céu, destruir a escuridão...

Viver na inocência da loucura, plantar e tirar os pés do chão, no silêncio da madrugada, ouvir

o silêncio, sentir o silêncio...

Chegar ao topo, nunca estar sozinho, calma, muita calma na sutileza do carinho.

Quero ouvir o som do sopro e o barulho da respiração, entrar em outros universos e depois ir

embora sem sofrimento, sempre costurando retalhos e queimando lembranças... Quero saber o

quero, seus olhos azuis.

O sucesso, o sucesso, desejo a todos o sucesso, voar nas nuvems, sem choques... águas

cristalinas, sorrisos, felecidade, ou pelo menos momentos felizes, maçã, pisar no macio, gozo,

abundância, sem perigo.

Deixando este corpo, desenvolvendo a espiritualidade encontrar a luz.

Altamar

Branco leve que flutua na perna que vai vai vai

Microtubulos círculos azul e vermelho vinho vinho céu descer

Rodar leve girar extrair entrar descer

Descer para frente para as águas que tem bordas claras frio azul que nada e tudo flutua queima

não sai mas flui flui f.l.u.i. i l f i funda e deusa puxa e concentra choque, choca, espraiar do

centro e espalhar pelos limites e tudo brilha e tudo limita e escurece afeta afeta some e

aparece de repente um branco que que as águas brilham com fogo de sol e chega ao olho e as

mãos espraiam e tudo de pé no pé e o pé e a perna de ferro de coluna que em pé sustentava o

tudo as pétalas os brilhos que seguem caminhos pelo ar por tudo que as viagens querem dizer

eu digo que nada e tudo é a coisa que se espraia e é não vista por que não é vista mas é olhada

pelos olhos que estão dentro de tudo da luz e do escuro que para e escorre pelo aterrador

destruidor que foge para a construção de qualquer coisa que agarra e prende e que não deixa

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Page 294: Por uma TAO expressividade

sair prender mesmo e prender e perder do nada. Que nada que flui pelo pequeno pequeno

demais e das paixões que acontecem de fora de dentro dos vidros e do chão e que chega nos

encontros de cada coisa que nunca diz coisa alguma só se olham olham olham olham olhão

--------------repouso--------------- há coisas no alto que não param as coisas que vivem isoladas

de todos por não poder se integrara por ver que nada se encontra de fato porque nada se

completa e tudo é o que é em si cercado pelas (?) que fluem de tudo o que sopra expulsa e

impele vai e participa passa e procura no escuro que não é tão escuro assim pois no fundo do

mar há polvos que sabem para onde ir e coordenam suas coxas e dança com precisão de suas

necessidades e todos os peixes escuros e todos os peixes que possuem luzes como postes

dançam em outras metrópoles fundas e deusas sobre um peso que o corpo suporta lá onde não

chega a luz da parte mais baixa da terra pense bem o céu lá é mais distante ainda. Há estrelas

de pedra e estrelas de carne já pensou carne que se acende no fundo do mar em volta do corpo

e que o peixe grande o polvo devora as lulas também, e os peixes comem outros peixes e tudo

se come e tudo se brota num jorro que descreve um círculo impreciso incompleto como uma

mola que não se completa jamais vai vai e não cai nunca na sua cabeça porque o espaço é

outro e jamais os espaços se completam por você pensar

Afrânio

Melodia, a voz que preenche o espaço e envolve transmitindo beleza, quietude. Todo esse

sentimento de paz remete à natureza. Vejo as folhas da árvore lá fora ao vento, me transporto

para um campo gramado já bem conhecido, o céu é limpo, tem nuvens claras. Estou voando e

percorro esses campos com rapidez sem esforço ou atrito. Os animais surgem cavalgando

juntos velozes, vou com eles pelos campos, estradas de barro, poeira, pedras, ouço som de

água ao longe, quero chegar e entrar na água, me sentir envolvido, protegido. O conforto não

sai da cabeça, ainda vou com os cavalos abaixo mas penso nessa proteção, esse lugar gostoso

que contrasta com a secura de onde estou. O céu de repente se fecha. Vai chover? O som do

trovão é ameaçador mas é envolvente e quero conhecer esse poder, quero subir ao céu cada

vez mais rápido entrando nas nuvens, parece noite o clarão cega, estremece e excita ainda

mais. Procuro como se fosse encontrar de onde vem, quem faz aquele barulho e surge a

criatura, o dragão. Penso se ele está fazendo o barulho. A criatura é linda com cores fortes.

Vermelho predomina e amarelo. Também azul e verde cores fortes, reluzentes como que

pintadas, as escamas entalhadas. Começou a chover forte e eu chovo junto com as gotas,

294

Page 295: Por uma TAO expressividade

veloz e mergulho num lago muito grande a água é limpa, mas escura, mergulho, vou ao fundo

procurando sorver aquela força que parece dar vida à floresta em volta. Animais em volta

bebem água à noite, a luminosidade azulada da noite ilumina seus rostos assustados. Estão à

espreita, vai acontecer alguma coisa. Não estou sozinho no lago, não sei quem está comigo.

Não chove mais, mas as nuvens bailam ao vento, encobrem a lua, projetam estranhas sombras

nas árvores e nos animais, parece que todos dançam juntos uma coreografia que me abraça e

ao lago. Todos juntos somos fortes. União na Terra, mas sem alvoroço. Existe comunhão, a

sensação de perigo passou e tudo dorme naquelas matas. Só o vento, a lua, o lago e eu. Saio

do lago descanso na margem. Cais de madeira corpo nu. Reflexão estrelas repouso, silêncio.

Eu quero alguém comigo. Sentir a respiração do outro junto com a minha. A brisa corre forte,

venta, não incomoda, sacode as árvores, elas balançam inteiras mas estão fixas no solo,

enraizadas bem fundo, a terra as acolheu e elas foram fundo fundo tecendo caminhos internos.

No centro da Terra, cada vez mais quente é que vejo o centro da Terra, de lá a quentura da

lava, brilha em meu rosto a lava laranja, vermelha, incandescente, dá vida a uma fênix

dourada que sobe como um raio que invade o céu e já estou com ela, voando de novo.

Sobrevoamos o mesmo lago, é muito bom, lembro do campo gramado para onde quero voltar,

rever os amigos. Ter o prazer da companhia e contar o que aconteceu e deitar com eles na

grma, rolar, rir, beijar, beber juntos, cantar com o chegar da noite. Deitar no chão, sentir o

colo, o contato da pele e poder se envolver no mais íntimo do outro. Pegar, apertar, maciez,

gostoso.

Júlia

Tristeza, melancolia, lágrimas, procura...

Ternura, busca, incessante busca, visceral, preocupações...

Liberdade, vento, solidão, afastamento, medo, aprendizagem...

Amor, angústia, compreensão, o medo da descoberta, vida, cansaço, relações com os outros,

sensualidade, provocações, olhar, queda, corrida, busca, eterna busca, libertação, força,

liberdade, olhar no olho, olhar para dentro, distância, cansaço, sentimento preso, percepção,

tranqüilidade, transtorno, tranqüilo, confuso, calmo, tumultuado, eu, o que não se toca, paz,

cheiro, passado, amigos, liberdade, morte, andaime, loucura, dilaceramento, paixão, sangue,

295

Page 296: Por uma TAO expressividade

jogo, incapacidade, entrega, abismo, medo, paredes, labirinto, eco, redemoinho, energia,

sensibilidade, isolamento, desistência, angústia, firmeza, apego, espelho, olhar, profundidade,

amigos, circo, trapézio, sinceridade, praia, timidez, sexo, água que brota, beleza que se

dissolve, alcance, ofuscamento, desejos ocultos, força, sutileza, palavras, silêncio, ressoar,

palavras, paixão, silêncio, sexo, desprendimento, jogo de seduzir, experiência, imaturidade

emocional, busca.

Clarissa

Concentração forçada. Dona de meu caminho. Guia. Quando havia um guia externo,

encontrava mais tempo para esvaziar minha mente.

Céu, o criativo, luz. Raiz, conexão, respiração, descoberta, luminosidade, segredo revelado

por mérito. Cabeça, pensamento, guia, mentor, aquela que vai. Força, beleza, imponência,

equilíbrio, rápido, veloz, elegante, rítmico, terra, pé, mãe, eu, aconchego, manjedoura, colo,

acolhe, ventre, calor, gostoso, seguro, força, apoio, meu, para mim, elasticidade, amplitude,

leve, mel, produção, eternidade, cíclico, passagem, veículo, através, força, veloz, passageiro,

estimulante, instigante, excitante, efêmero, para cima, para frente, para o alto, base,

segurança, início, impulsivo, agora, já, sem pensar, libido, estímulo, dúvida, ambigüidade,

jogo, peso, domínio, sem discussão, voa, cospe, árvore, natureza, frio, isola, casa, música,

instrumento, existe, se molda, escapa, molhada, boa, beber, banho, boca, língua, escorregadia,

misteriosa e reveladora, se esconde e se apresenta, dentro, percorre, ciclo, transforma,

absorve, luz, fria, bonita, céu, grande, mênstruo, quente, vermelho, corpo-vivo, seiva, líquido,

vulcânico, surpresa, medo, perigo, cuidado, atenção, devagar, passam, escuridão, oculto,

mistério, segredo, fora de si, lucidez, rápido, universo, chão, pé, sólido, razão, pensado, vejo,

piso, ando, seguro, tranqüilo, silêncio, mansidão, certeza, descanso, permitido, desejado,

necessário, alto, conquista, escalada, caminhada, um, eu, só, profundo, prudente, análise,

pensar sobre, reflexão, pegar, dominar, guiar, soltar, apóias, escrever, pintar, lavar, desenhar,

leve, solto, livre, sutil, some, frio, vem, sopra, areia, onda, mar, corta, profunda, entra, chega,

chão, emaranha, cresce, se apodera, penetra, torce, vai poro lado de lá, retorce, curva, ciclo,

giro, trançado, costurado, construído, queima, quente, calor, rápido, machuca, aquece,

ilumina, certeza, sorriso, bonito, desejo, desperta, estímulo, claridade, sol, lareira, fogueira,

ouro, brilho, beleza, poder, ave, voa, asas, liberdade, entrega, medo, rápido, sonoro,

296

Page 297: Por uma TAO expressividade

iluminado, apreensão, água, tranqüilo, parado, pra cima, dentes, olhos, bocas, bochechas,

sorriso, macia, molhada, percorre, beijo, sexo, libido, tesão, conquista, provação, gozo, alvo,

estado de graça, cachoeira, jorro, cama, gostosa, prazer, satisfação, físico, força, desejo, pegar,

provar, morder, comer, cheirar, lamber, sugar, ter nas mãos, jogo, poder, sensual, sangue,

sorver.

Maria Eugênia

Controle, prazer, calma, acumular, tranqüilidade, equilíbrio, força, atração, caminho,

atmosfera, calor, sonho, harmonia, alegria, acumular, capacidade, energia, poder, mundo,

realização, capacidade, poder, velocidade, beleza, espiritualidade, caminho, vida,

transformação, aprimoramento, caminho, aconchego, formação, tempo, prazer, proteção,

flexibilidade, sonho, capacidade, realização, expectativa, caminho, aceitação, amor,

população, amizade, importância, valor, dificuldade, concentração, desafio, guerra disputa,

luta, energia, tentativa, diferente, inesperado, abrigo, força, balanço, início, capacidade, eu,

querer, objetivo, aliança, irritação, dragão, fogo, eu, sonho, realizar, poder, querer, fazer,

especular, determinar, árvore, construção, sangue, vida, transformação, composição,

construção, adaptação, tenacidade, eu, sonho, caminho, meditação, pensamento, viagem,

desconhecido, procuro, desafio, procura, aceitação, vida, água, composição interna, beleza,

sensualidade, impossível, vida, vermelho, grudada, resistência, falta de resistência, agitação,

pulsar, armadilhas, cuidado, cautela, atenção, tudo, mundo, perigo, inesperado, atenção,

mundo, nuvens, contradição, oculto, cinza, profundidade, surpreender, capacidade,

individualismo, centro, falta de centro, mãe, mamar, vida verde, alimento, proteção,

conhecimento, ama, meditação, dificuldade, necessidade, preparação, observação, poder, alto,

grande, beleza, solidão, realização, interno, inércia, confusão, contato, externo, dar, receber,

sensação, caminho, agressão, vida, prazer, contato, dor, destruição, composição, fragilidade,

alimento, terra, quem sou, dor, força, controle, poder, subjugar, construir, adaptar,

composição, calor, interno, capacidade, idéia, inteligência, encontro, divindade, adivinhar, eu,

estado, vôo, liberdade, poder, energia, grande, tudo, mundo, desvendar, mostrar, sol, amarelo,

criança, amor, sensualidade, corpos, prazer, contato, descobrir, conhecer, tocar, sentir, água,

alegria, sensação, egoísmo, gostoso, desfruta, comer, textura, toque, espasmos, delícia, caldo,

escorrer, amaciar, macio, completo, boca, beijo, dente, língua.

297

Page 298: Por uma TAO expressividade

Textos gerados em aula pela fusão dos textos individuais

A partir do confronto do material bruto criado em estado de imersão, e de novas

criações a partir das fusões entre textos, foi gerado o material dramatúrgico a seguir, que em

diálogo com as partituras corporais trabalhadas, orientou o trabalho final.

Grupo 1: Léo, Clarissa e Afrânio

1 - Uma voz preenche o espaço, envolve, transmite beleza, quietude. Um sentimento de paz

me remete à natureza.

2 - Folhas de árvore lá fora, vento, céu. Ouço o som da água ao longe. Ela me envolve, me

protege, me conforta.

3 - Som do trovão. Choque, choca. Som ameaçador, envolvente.

2 - O clarão cega,

3 - estremece,

1 - excita.

3 – Outro barulho.

2 - De onde vem?

1 - Surge uma criatura, o dragão. Lindo e aterrador.

2 - De repente não mais é visto.

298

Page 299: Por uma TAO expressividade

1 - Começou a chover forte e eu chovo junto.

2 - Procuro sorver a força que dá vida à floresta.

3 - No centro da Terra é cada vez mais quente.

1 - O nada das paixões acontece de fora para dentro.

3 - Porque nada se completa...

2 - ...e tudo é o que é em si.

3 - De lá, sinto a quentura incandescente, que dá vida a uma fênix dourada, ...

1 - ... que vai, expulsa, impele, ...

2 - ... e sobe como um raio que invade o céu.

1 - Sinto o colo agora, o contato da pele. Me envolvo no mais íntimo do outro.

2 - Como peixes, que comem outros peixes, pego, aperto e gosto.

3 - Tudo se come, tudo se brota.

1 - Escolho o que como ...

2 - ... e me faço cardápio para as escolhas.

1 - Penso que jogo com o outro.

2 - Ele pensa que joga comigo.

3 - Nesse jogo não se sabe a caça ou o caçador. Vítimas?

299

Page 300: Por uma TAO expressividade

1 e 2 - Sim, somos.

1 - Mas gosto!

2 - Gosto!

1 - Gozo!

2 - Sou gozado!

3 - E no final, somos todos vencedores.

Grupo 2: Cinara, Fábio, Júlia, Luciana

Um encontro com Deus, com o Deus que está em mim, na inocência da loucura.

Tristeza, melancolia, lágrimas, procura...

Aceitar o que nos parece estranho...

Ternura, busca, incessante busca, visceral, preocupações...

Cuidado! Cuidado! Cuidado!

Olhar para dentro...

Cuidado!

A segurança de estar dentro de um ventre.

Amor...

De voltar para ele... A dor de não estar mais dentro dele.

Meninos, moleques, alegria, o medo de não ser mais criança.

Ai meu Deus dai-me asas!

300

Page 301: Por uma TAO expressividade

Libertação!

Liberdade!

Quero caminhar...

Somos anjos de uma asa só!

As frustrações das não - realizações.

Abracem-se...

A calmaria que tortura

Me busca

A dúvida

Me pega

A surpresa

Infiltra

Sexo, águas cristalinas, gozo, paixão...

Sorrisos, jogo de seduzir, cheiro bom, noites tranqüilas...

O vermelho das paixões, desprendimento, experiência...

Águas serenas na tempestade dos meus pensamentos.

Um beijo apenas, depois decidimos.

Viver na inocência da loucura?

301

Page 302: Por uma TAO expressividade

Se deixar envolver nesta dança?

O semeador não tem controle sobre o que planta.

Certeza

Morte!

Grupo 3: Fábio, Maria Eugênia, Altamar e Justina

1° Etapa, a poesia (negrito) é dita por Maria Eugênia e as inserções (entre parênteses) por

Altamar; na segunda etapa a poesia é dita por Altamar e as inserções por Maria Eugênia.

Tempo Vazio

Agora Vaio

Já!! (Fogo Claro Calor)

Tempo vazio (Tempo vazio)

Já? Já! Já? Já! (Caldo Mundo)

Vazio Agora (Sonho Cavalo)

Tempo, tempo ... (Caminho)

Completo?

Prazer? Gozo? (Balanço interno)

Vazio (Alimento)

Agora vazio

Tempo, tempo (Contato completo gostoso)

Efêmero tempo (Cuidado)

302

Page 303: Por uma TAO expressividade

Vazio tempo

Sagrado tempo

Conheci Tempo

Aprimora tempo

Controlado

Costurado

Construído (Conhecimento Relâmpago)

Caminha tempo

Cavalga tempo

Sagrado Tempo

Veloz

(Aprimoramento)

Tempo Vazio (Prazer Gozo)

Agora Vaio (Calma)

Já!!

Tempo vazio

Já? Já! (Calma)Já? Já!

Vazio Agora (Boca Língua escapa molhada)

Tempo, tempo

Completo?

303

Page 304: Por uma TAO expressividade

Prazer? Gozo?

Vazio (Poder)

Agora vazio

Tempo, tempo

Efêmero tempo

Vazio tempo (Poder)

Sagrado tempo

Conheci Tempo

Aprimora tempo

Controlado (Poder)

Costurado (Poder)

Construído (Poder)

Caminha tempo (Poder)

Cavalga tempo

Sagrado Tempo (Poder)

Veloz

304

Page 305: Por uma TAO expressividade

A.3. Questionários

Referente à primeira fase (Início do processo - função de diagnóstico)

1. Para você o que é Expressividade? E Corpo Expressivo?

2. Quando e por que você se sente (sente seu corpo) mais expressivo? Descreva essa

sensação, ou dê exemplos.

Alguns trechos de respostas questionário fase 1:

1. Para você o que é Expressividade? E Corpo Expressivo?

Justina: “Entendo por expressividade a capacidade de um corpo de emitir energia, fazendo-a

circular em si e interagindo com o ambiente que o contém; corpo expressivo, portanto, seria

um corpo dotado de tal qualidade energética que lhe confira a propriedade de se fazer

perceber”.

Fábio: “O termo expressividade está intimamente ligado com o conceito de comunicação.

Portanto, corpo expressivo é aquele que comunica (o que independe de intencionalidade).

Entendo que todo corpo guarda em si, essencialmente, informações, e a partir do momento em

que ele, o corpo, é percebido, está sendo expressivo”.

Afrânio: “Expressividade, pra mim, é a simples capacidade de exercer, em qualquer grau,

comunicação. Corpo expressivo é o que se obtém do corpo trabalhado fisicamente para que

possa se comunicar através de sua postura e ações físicas”.

Lisa: “Dizer algo. Tornar externo alguma idéia, pensamento ou sentimento pessoal. Corpo

expressivo é um corpo extra-cotidiano. Ele tem a função de fugir do naturalismo (da forma

que se apresenta no dia-a-dia) para passar essa idéia, pensamento ou sentimento em questão”.

Cinara: “Expressa é mostrar, representar, manifestar algo. Um corpo expressivo se define em

uma valorização dos gestos e do movimento... No teatro a expressão corporal se desvincula da

literatura, ou não, o corpo se faz conhecer, revela um sentido sem ao menos precisar da

palavra”.

305

Page 306: Por uma TAO expressividade

Altamar: “É a capacidade de expressão do indivíduo, a comunicação ou contato físico entre a

alma, ou espírito, ou personalidade, ou caráter com o mundo. (...) Acho que todos os corpos

têm um grau expressivo, explicando por imagem: uma represa de água tem um potencial de

acordo com a quantidade de água que possui, mas peraí, uma vez eu vi um rio tão seco com

pequenas poças de lama e água e tinha muitos peixes nessas poças, isso na seca do sertão, isso

é tão expressivo”.

Luciana: “Expressividade é uma maneira de você colocar para fora o que está sentindo, seja

uma emoção, um estado, ou simplesmente demonstrar amizade, dor, etc.”.

Leonardo: “Expressividade, pra mim, é a energia que por si só comunica algo. (...) Falando

do corpo do ator, acho que esse é expressivo quando está vivo em cena e diz ao espectador o

que o texto (se houver) quer dizer”.

Júlia: “Quando o ator consegue emanar energia através de pontos do seu corpo. (...) Da

cabeça ao dedo do pé o ator precisa liberar energia. Acredito que este processo se dá através

de uma força interior, talvez espiritual e muito íntima”.

Maria Eugênia: “Para mim é a capacidade de comunicar. Algumas vezes essa comunicação

não está relacionada à racionalidade, mas ao sentimento, este, no nível das sensações. Corpo

expressivo é um corpo capaz de ultrapassar a mera reprodução de movimento, chegando a

expressar as tensões/sensações que envolvem aquela determinada situação”.

Clarissa: “Acredito ser expressividade a capacidade do artista de expandir seu instrumento –

corpo e voz – no intuito de ultrapassar a maneira de se expressar cotidianamente e, no placo,

conseguir comunicar ao espectador sua intenção cênica. Um corpo expressivo é um corpo que

irradia energia do ator através de movimentos conscientes alinhados com o objetivo

previamente idealizado. É um corpo-em-vida, um corpo quente, um corpo incandescente. É o

criador de ponte entre o físico e o mental no processo criativo. Um corpo expressivo é aquele

que comunica, que estabelece uma relação com o espectador, possibilitando a ele uma leitura

direta com o significado do movimento. (...) A partir de uma eterna leitura (não linear) do

livro ‘A Arte Secreta do Ator’, percebo que expressividade é o que eles chamam de dilatação.

É o momento em que o corpo, previamente preparado, deixa de ser criação e passa a ser

criatura. A expressividade é a ampliação das ações típicas do comportamento diário, é o fluxo

de energias cotidianas redirecionadas e selecionadas para o palco”.

306

Page 307: Por uma TAO expressividade

2. Quando e por que você se sente (sente seu corpo) mais expressivo? Descreva essa

sensação, ou dê exemplos.

Justina: “Ao realizar atividades que estimulem meu corpo em nível orgânico, metabólico

e/ou energético. Como quando ao correr, fazer alongamento, ao lidar com a manipulação

energética e apelo emotivo ligados á atividade teatral, durante procedimentos de relaxamento

e indução de pensamentos/emoções, etc”.

Fábio: “Sinto meu corpo mais expressivo sempre que penso a respeito, ou volto minha

atenção pra ele. Acredito que durante todo o tempo, a cada respiração, participo da

transformação do universo e como conseqüência, me transformo. Nas aulas de técnica, por

exemplo, a minha atenção está voltada para o corpo, suas ações e reações”.

Afrânio: “Sinto meu corpo mais expressivo quando faço coreografias em grupo. É um

momento em é possível sentir muitas forças convergindo”.

Lisa: “Quando existe ema atenção voltada pra ele, quando meu foco se torna ele; por que ele

se torna conscientemente uma extensão do meu pensamento/sentimento/idéia. É como se o

corpo ganhasse voz”.

Cinara: Sinto meu corpo mais expressivo quando tenho aulas de expressão corporal, como,

por exemplo, na cadeia de técnica de corpo. Também conto com meu corpo para compor

personagens (...). Sempre ouço o que o meu corpo tem a me dizer”.

Altamar: “Sinto meu corpo mais expressivo quando o mundo me pede uma reação diante de

coisas inesperadas. Há um aumento nos meus órgão de sentido: vejo o foco, percebo o que

está junto do meu foco, se o cheiro é bom eu me preparo pra ficar diante e receber, se é

comida eu quero devorar, me apropriar, se são sensações eu busco as explorar. Ou seja, há um

movimento em sentido favorável se há prazer, ou repulsa se há desprazer”.

Luciana: “O corpo expressivo é aquele que responde a estímulos e sensações”

Leonardo: “Quando danço. Independente do estilo musical, quando estou dançando me sinto

mais livre do racional. Experimentei grandes descobertas quando fiz dança contemporânea.

Na verdade, quando se une corpo e música consigo perceber em mim capacidades expressivas

que não experimentei até hoje em nenhum outro trabalho”.

307

Page 308: Por uma TAO expressividade

Júlia: “Quando minha mente está sem preocupações, existe um desprendimento, uma entrega,

uma desconstrução. (...) depois de longos exercícios repetitivos e cansativos minha mente

estava livre e liberou a passagem para a criação e expressão do meu corpo”.

Maria Eugênia: “Para mim são três os elementos mais significativos para reconhecer essa

sensação (de sentir o próprio corpo expressivo): primeiro a consciência de meu corpo de

forma total. Momentos em que eu sinto cada parte do meu corpo viva e em prontidão.

Segundo é a capacidade de concentração em uma sensação/ objetivo, tornada concreta em

meu corpo. Terceiro é a ampliação da energia física dando a sensação de que meu ser

ultrapassou os limites do corpo e tomou conta do ambiente”.

Clarissa: “Quando faço um trabalho corporal; quando descubro a movimentação de um

personagem ou cena; quando consigo decupar um movimento e controlar sua intensidade, seu

ritmo; quando canto e quando estou no palco. Essa sensação decorre de um olhar que lanço

sobre meu corpo, muitas vezes desprezado. No momento em que recorro a ele ou trago dele a

energia para moldar uma cena ou um estudo, é como se percebesse sua existência. A partir

dali o horizonte da consciência se amplia, pois a ‘tensão’ de estar no palco não se encontra

apenas no texto, na voz, no outro, nas marcas, nas emoções, etc, mas também, e

primordialmente, no meu instrumento. Não falo de tensão como trava ou bloqueio, mas como

ponto de atenção. (...) Quando meu corpo está expressivo ele complementa ou referenda meu

discurso verbal. Me sinto mais forte, atenta e consciente do que estou dizendo e fazendo”.

Referente à segunda fase (após fase dinâmicas yin yang e mais contatos com chi kung)

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as

dinâmicas relativas aos emblemas yin yang? Comente.

2. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.

3. Chi kung facilita, dificulta ou não interfere no trabalho técnico/ criativo/ expressivo?

Comente.

Alguns trechos de respostas questionário fase 2:

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as

dinâmicas relativas aos emblemas yin yang? Comente.

308

Page 309: Por uma TAO expressividade

Justina: “A dinâmica em si, aplicada nessas aulas tem sido um elemento positivo para o

estímulo a construção de imagens e metáforas corporais; mas não sei exatamente se posso

atribuir aos pares/opostos referentes a tais emblemas as imagens que me são sugeridas, uma

vez que o quer que se apresente, a princípio, pareça-me apenas tratar-se de opostos simples,

ou seja, não sei exatamente ainda que qualidade de energia atribuir a cada emblema, não é

claro ainda pra mim a que se refere o princípio do yin/yang”.

Cinara: “Em alguns momentos a mente e o corpo aceitam (entendem) o que está sendo

pedido e em outros não, por exemplo quando se pede “claro” e “escuro” fica difícil fazê-los

sem ser interpretando com os meus conhecimentos do que é claro e escuro, e por aí vai”.

Fábio: “Sinto mais como uma obrigação de aula do que como processo criativo (inspirado).

Talvez pela expectativa outras vezes frustrada de não chegar, aparentemente a lugar nenhum”.

Leonardo: “Os emblemas yin yang têm revelado nesse primeiro contato formas corporais

libertadoras de alguns estereótipos. Estou satisfeito também com a forma com que as aulas

têm sido conduzidas”.

Júlia: “Desde o início achei extremamente interessante o trabalho com as energias opostas

(yin yang). Na maioria das vezes me senti estimulada a criar e brincar com essas duas

energias. Existiam alguns emblemas que são extremamente abstratos e acabam sendo

ilustrados (com a resposta corporal), o que não acho tão válido. Mesmo com a recepção

racional, essa sensação tem que sair de forma orgânica e criativa. Quando ouvia as

sensações/energias (estímulos relativos ao yin yang), e meu corpo respondia organicamente

achei interessante. Quando fazia um movimento ilustrando uma sensação, não era uma

movimento negligente, mas pouco criativo. Acho que em certos emblemas eu não tinha tanta

consciência do estímulo que me levava a fazer determinado movimento. E às vezes

funcionava”.

2. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.

Justina: “Percebi que a qualidade de energia que se instala com o treinamento tende a

conferir um estado inusitado entre a prontidão, concentração e relaxamento. Do ponto de vista

filosófico, ideológico e até físico, o chi kung me trouxe o despertar de um olhar sobre meus

canais de manipulação energética e, sobretudo, a verificação de um nível ainda embrionário

de exploração nesse sentido”.

309

Page 310: Por uma TAO expressividade

Cinara: “Incômodo e mal estar. Não consigo ver nada, sinto muita dor nas costas, agonia,

vontade que acabe logo. Tento várias vezes seguir todos os passos do exercício, até sigo, mas

na hora de sentir energia, de ver o ponto entrando em minha cabeça já era. Não funciona

comigo (pelo menos por enquanto)”.

Leonardo: “Desconforto foi a primeira sensação. Não consegui me concentrar por que meu

corpo doía um pouco e mesmo que eu visualizasse as imagens de formação de energia (wu

chi, chi, tai chi) não conseguia sentir a energia se formar. Com o tempo tive outras respostas.

O corpo suava, as mãos aqueciam e formigavam e tanto visualizava, quanto começava a sentir

a energia, mas de maneira desorganizada e caótica, em especial na região da mãe de todos os

centros”.

Júlia: “A presença cênica é estimulada pelo centro energético. Acho minha energia bastante

desorganizada, nas vezes que consegui realizar bem, sem interferência o chi kung, senti minha

energia em harmonia não só na aula, mas no resto do dia. O chi kung precisa ser um exercício

diário, pois me incomoda uma pouco”.

Altamar: “Tranqüilidade, agonia, imagens coloridas, medo, dor nos pés, peso, relaxamento”.

3. O chi kung facilita, dificulta ou não interfere no trabalho técnico/ criativo/ expressivo?

Comente.

Justina: “Considero o chi kung um elemento de conexão com o corpo integral (físico,

energético, intelectual, etc), o que, por si só, oferece ao ator e ao indivíduo um fortalecimento

e ampliação da percepção interior (o que há de contribuir de alguma via para o despertar e

aprimoramento da criatividade); e exterior também, no sentido de expandir nossa atenção e os

sentidos em geral (que me parece estabelecer um nível de consciência física e experimentação

emocional e energética que me sugere um ambiente ideal para a expressividade). Com isso,

claro, podemos falar senão de uma técnica “de atuação”, ao menos de uma técnica “para a

atuação”, no sentido que o treinamento se presta a um aspecto de sustentação do

ator/indivíduo como ser integral, mais ligado e ao ambiente em que se insere”.

Fábio: “Acredito aproveitar o chi kung como meio de me concentrar, me trazer pra sala,

trazer a atenção pra mim e meu corpo. Nisso me agrada. No trabalho técnico/ expressivo/

criativo por enquanto não interferiu. Talvez seja cedo. Talvez o tempo não seja suficiente”.

310

Page 311: Por uma TAO expressividade

Leonardo: “Sem dúvida alguma facilita principalmente pelo fato de ser a primeira aula do

dia. O chi kung possibilita uma reorganização ativa das energias do corpo, e amplia no ator a

experimentação vigilante e investigativa. Isso tem me ajudado no processo de percepção”.

Júlia: “Nas vezes que me concentrei e realizei bem o chi kung meu corpo ficou em estado de

prontidão para criar. No sentido técnico/expressivo sinto uma dilatação no corpo, uma

sensação de expansão. Especificamente em alguns processos sentia a energia partindo da mãe

de todos os centros e visualizava a energia yin e yang. Quando o centro energético é ativado, a

criatividade aflora. Eu procuro deixar fluir as indicações e deixar de lado o racional para que

meu corpo aja de forma espontânea”.

Altamar: “Tal trabalho possibilita concentração do corpo, fato fundamental para passear pela

técnicas de corpo. É uma preparação para as múltiplas possibilidades e o observo como um

portal de entrada que diferencia o ocasional, cotidiano, etc, do controlado, criativo, artístico.

Talvez fosse interessante para valoriza-lo como preparação, início, portal, a existência de uma

técnica similar para finalizar o momento criativo”.

Referente à terceira fase (Após fase dinâmicas I ching e contato mais constante com chi

kung)

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as

dinâmicas relativas aos arquétipos/trigramas do I ching? Comente.

2. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.

3. Chi kung facilita, dificulta ou não interfere no trabalho técnico/ criativo/ expressivo?

Comente.

Alguns trechos de respostas questionário fase 3:

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as

dinâmicas relativas aos arquétipos/trigramas do I ching? Comente.

Júlia: “Muito. A combinação das sensações e estímulos propostos sempre casava

perfeitamente e os resultados percebidos não só em mim, mas também nos colegas, foram

fantásticos. Houve composições maravilhosas que me lembro que nasceram de todos esses

311

Page 312: Por uma TAO expressividade

estímulos e que tinham uma profundidade fascinante como exemplo o dia em que trabalhamos

o irmão do meio, a água e no fim foi dado o estímulo da loucura. Surgiu em cada um, figuras

muito bacanas, distintas e longe de qualquer estereótipo de louco. Outro exemplo que me

lembro agora foi a criação da ave, um dos momentos mais interessantes, o trigramas

trabalhado foi o fogo. Criei uma galinha bem tensa onde toda a energia partia da base que

tinha uma relação com olhar formidável. O que é fundamental é essa consciência de onde está

a energia executada e que ao mesmo tempo seu corpo está vivo e seu olhar preenchido. O ator

precisa ao mesmo tempo ter consciência e estar completamente vivo. Além de todos os

estímulos dos trigramas que proporcionaram criações ao me ver indispensáveis para o meu

crescimento. Eles mexem com todos os tipos de sensações que já existem dentro da gente. No

momento em que esses estímulos serviram para elaboração de um texto desencadearam

sensações que estavam aquietadas, muito boas e muito ruins. Vieram à tona sentimentos

guardados que precisavam sair, não deixaram de ser doloridos, mas talvez de uma próxima

vez eu saiba lidar melhor com eles”.

Clarissa: “ Sim. Acredito que o trabalho de composição de um personagem se dê a partir de

estímulos de personalidade, texturas, movimentos, relações com outras fontes. Enfim, o

processo com os trigramas possibilitou uma gama de possibilidades de criação, pois além de

trabalhar com arquétipos conhecidos, próximos, trouxe várias fontes de estímulos (natureza,

temperamento, comportamento). O fato de trabalharmos com esses arquétipos deixou o grupo

mais à vontade para criar. Não houve imposições de características realistas, cada um seguiu o

seu desenho e a sua leitura. A criação vinha a partir do corpo, mas não deixava de lado a

criação intelectual. Ao contrário, desde o trabalho do chi kung, valorizamos os nossos dois

pólos de energia, o yin e o yang”.

Altamar: “Me senti estimulado, os trigramas agrupam significados, apontam várias coisas

que tem um ponto comum (ex: terra, profundo, escuro, frio, etc.), e isso cria uma ‘atmosfera’,

um campo mais delimitado para que uma ação seja realizada de modo definido.”

Leonardo: “Acho as imagens do I ching muito fortes, mas acredito que elas apenas não

conseguiriam suscitar em mim tantas respostas. (...) Cada aula era conduzida direcionada a

um fim. E os resultados corporais obtidos me deixaram muito satisfeito. As respostas com os

trigramas eram muito verdadeiras e sem dúvida já estão armazenadas em minha memória

corporal. Me diverti muito criando a partir dessas imagens.”

312

Page 313: Por uma TAO expressividade

Cinara: “Sim. O processo aguça a imaginação, a criar imagens, que deixam o corpo

‘flexível’, as criações, as composições passam do racional para o experimental. Esta etapa

mexeu muito com as emoções, estas expressas no corpo. Isto tudo estou dizendo do trabalho

corporal, mas quando fui criar o texto o que foi dito e tudo que estava impregnado das

dinâmicas, me fizeram viajar. Se fosse compor um personagem teria um excelente material,

principalmente as personagens que exigem uma partitura corporal, que aliás, acho que todas

precisam de uma certa forma”.

Justina: “Acredito que todo repertório apresentado na aula nos estimule efetivamente a

compor, uma vez que a condução se presta a unir nosso potencial subjetivo, a imagens

sugeridas pelos arquétipos. (...) Era sempre surpreendente o quanto cada arquétipo se delineia

em uma propriedade energética expressiva e em um repertório de imagens, muitas vezes

comum entre os integrantes do grupo, o que, pra mim, remete ao aspecto do insciente coletivo

e, quanto à contribuição individual, certamente é o que estabelece o diferencial, e a

pluralidade das composições.”

2.Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.

Júlia: “Hoje posso afirmar que com chi kung consegui reorganizar melhor minhas energias. A

concentração também é algo imprescindível para o ator e o chi kung permite desenvolver

muito bem isso. O contato com o chi kung foi maravilhoso não só porque vai me ajudar, ou

melhor, já está ajudando profissionalmente, mas também auxilia espiritualmente e

mentalmente. Até porque o ator tem que saber lidar muito bem com seu emocional, por isso o

ofício do ator é muito difícil. Particularmente gosto muito dos preceitos e da filosofia oriental

e pretendo continuar usando a sabedoria oriental em todos os ramos da minha vida. No meu

entendimento o chi kung permite o equilíbrio das energias que partem do centro energético de

forma a irradiar de forma cíclica todo o espaço. Isso está diretamente ligado com a presença

cênica”.

Clarissa: “O chi kung me proporcionou a percepção de união dos nossos opostos

complementares. O fato de acreditar muito numa construção intelectual em nenhum momento

me bloqueou para trabalhar com a proposta do chi kung. Percebi que o processo é

concomitante, fonte yin e fonte yang, uma se alimenta da outra. A vigilância sobre o processo

não precisa ser somente questionadora, mas auxiliadora. O corpo sabe agir, sem precisar

seguir apenas ordens. O chi kung me proporcionou essa experiência”.

313

Page 314: Por uma TAO expressividade

Altamar: “As respostas do chi kung foram às vezes calafrio, autopercepção, consciência

corporal, funciona em mim como um corte de energia de produção de ações cotidianas e

minha energia de ações de pesquisa corporal.”

Leonardo: “A captação de energia yin me desestabiliza. Queria entender porque. O que não

acontece com a captação da energia yang. Nesse caso, além de facilidade de captação, acho

que manipulo muito bem essa energia. Porque isso acontece?”.

Cinara: “Hoje em dia vem me deixando mais concentrada, mais centrada no trabalho diário.

Ainda bem quer processo é um crescente, pelo menos esse foi, só agora me dei conta de que

forma as dinâmicas poderiam me ajudar.”

Justina: “Me despertou para um aspecto importante da construção do meu repertório de

expressividade, que é a importância de investigar essa via de energização de forma a

prescindir um pouco da minha tendência intelectual e racional, ou seja, muitas vezes, talvez

pelo aspecto racional e a insistente observação dos aspectos físicos, não conseguia acessar o

‘canal’ que me ligasse (ou desligasse), para a percepção da manifestação energética.”

3.Chi kung facilita, dificulta ou não interfere no trabalho técnico/ criativo/ expressivo?

Comente.

Júlia: “Facilita. Quando faço o chi kung fico extremamente concentrada e mais criativa

durante os laboratórios. Além dessa dilatação do meu corpo que já havia dito anteriormente,

sinto uma conexão muito grande com o meu corpo, o espaço e as pessoas ao meu redor. É

como se fosse aguçada a percepção, a consciência de tudo que me cerca. À medida que fui

fazendo o chi kung em aula e às vezes em casa ficou mais fácil mergulhar nesse equilíbrio das

energias yin yang. Senti um progresso na execução do exercício, apesar de ainda continuar

sentindo a energia yin mais presente. Tecnicamente falando, consegui desenvolver em sala

resultados que me deixaram muito satisfeita. Sinto hoje uma evolução na minha consciência

corporal, no meu estado de prontidão. Acredito que isso tenha se dado devido ao princípio de

tudo que no caso foi o chi kung que impulsionou esse estágio em que me vejo agora. Sinto-me

à vontade a criar com o corpo sem travas e tensões. O ponto que gostaria de destacar é quando

há inserção de texto. Sinto que às vezes consigo me comunicar bem com o corpo, mas quando

vem acompanhado de texto existe algo fora do eixo, sei que preciso investir mais nisso.

314

Page 315: Por uma TAO expressividade

Tomara que possa dar continuidade com o chi kung para que possa atingir esse ponto que é de

extrema importância”.

Clarissa: “Qualquer técnica que seja utilizada antes da criação interfere em seu processo. O

chi kung proporciona a concentração da energia, o equilíbrio. Coloca o grupo, o indivíduo,

num estado de tranqüilidade e de propriedade sobre si. Ele lida com a qualidade de energia e

essa qualidade que devemos levar pra cena”.

Altamar: “O chi kung facilita e interfere no processo no sentido de possibilitar uma

concentração para início de um trabalho de ator (..) Acho importante separação entre ‘arte’ e

‘realidade’ em se falando do trabalho de ator, pois estes espaços possuem ‘leis físicas’

diferentes.”

Leonardo: “Hoje afirmo que facilita com muito mais propriedade, pois tive a oportunidade de

experimentar a prática dentro dos trabalhos do meu grupo de teatro, e então pude perceber o

quanto surte efeito.”

Cinara: “Ajuda. Como eu resolvi converter em prazer, consegui que me ajude na

concentração”.

Justina: “Acredito que se possa usar o chi kung como via de acesso à subjetividade e, por

meio dessa, atingir certo nível de expressividade elaborado pela formação e fisicalização das

imagens suscitadas no processo. Em nível energético, no entanto, não me sinto ainda

suficientemente sensibilizada, e, apesar da limitação individual, verifico uma contribuição em

nível de estímulo à formação de imagens e condicionamento criativo/expressivo”.

315

Page 316: Por uma TAO expressividade

ANEXO B

REFERENTE AO ESPETÁCULO

B.1. Ficha técnica

Dramaturgia: inspirada nos livros Noturnos e Clarice, de Ana Miranda

Transcriação e concepção: Alice Stefânia e André Amaro

Direção: André Amaro

Interpretação: Alice Stefânia

Sonoplastia: Luciano Marques (Lupa)

Cenário, objetos e figurino: Maria Luiza Fragoso (Malu)

B.2. Transcrição do diário de bordo

A seguir transcrevo os principais trechos do meu diário de bordo. Há partes que

acrescentei posteriormente, a partir de reflexões e associações que foram surgindo com o

tempo. Essas partes - acrescidas depois ao diário de bordo - estão sublinhadas. Acredito que o

316

Page 317: Por uma TAO expressividade

relato das experiências, aliado às explicações, torne mais claro o processo ao leitor. O DVD

com a filmagem do espetáculo, que acompanha essa tese, também deve ser consultado,

especialmente por quem não assistiu ao espetáculo.

03/07/06

15:58 pm

Finalmente. O primeiro ensaio chegou. Era pra ser de manhã. Não pude, remarquei pra

tarde. Esse adiamento de 7 horas me incomoda. Estou ansiosa pelo início. Meu corpo pede, há

algum tempo, por esse processo criativo.

André ainda não chegou... Espero que não demore...

...aqui estou cheia de vontades, medos, expectativas, dúvidas, sonhos, garra.

16:04 pm

Ai meu Deus... André chegou. Vai começar... a coisa!

17:53 pm

Aconteceu, começou, desencantou. Fiz um aquecimento - minha série básica, depois

um chi kung espontâneo partindo do “sentar na calma”. Em seguida André quis ler os contos

pré-selecionados e pediu para eu me expressar ao ouvi-los, em estado de chi kung... Foi isso

hoje. Ele disse que gostou do que viu. Combinamos que nossa dinâmica inicial será: eu faço

um aquecimento, o chi kung e parto para uma criação expressiva em cima de uma matriz

taoísta escolhida por mim ou proposta por ele (ele tem as tabelas dos contrastes yin yang, e

das cinco energias. Decidimos não usar o I ching, pra não ficar um excesso de matrizes). Daí

ele assiste e propõe outros desdobramentos, na interação com o texto (ou não) a partir do que

ele me vir criando.

Preciso fazer um cronograma.

Hoje, ao ouvir o texto e me expressar com o corpo me senti um pouco repetindo

padrões habituais. Em alguns momentos consegui quebrar, mas nem sempre... Estava

nervosa...

317

Page 318: Por uma TAO expressividade

05/07

Após o aquecimento e ainda em estado de chi kung, realizei experimentação

expressiva a partir de contrastes retirados das associações yin yang.

O primeiro contraste a ser trabalhado foi profundosuperficial. A idéia de

superficial veio como um jogo de mãos na altura do peito e sons com “tsc, tsc,

tsc” e “sssssssss”. A idéia de profundo surgiu com um deslocamento rápido

com os braços em direção ao chão, como tronco dobrado e pisadas fortes,

pesadas. A transição entre uma e outra imagem, partiu do princípio de

transformação gradual, e veio com uma torção de tronco e mãos. André

visualizou nessa experimentação a relação com um gato ou outro animal de

estimação, que estaria em minhas mãos (na experimentação com matriz

superficial) e se soltaria e eu sairia atrás (na matriz profundo). Começamos a

explorar essa ação física, que nomeamos inicialmente de “gato”, e depois de

“bicho”, e que gerou as cenas com o espanador-bicho de estimação (por que o

público viu, além de um gato, um cão e um pássaro).

O segundo contraste experimentado foi troncomembros. Tronco veio com sons

guturais e movimentos ondulares em profundidade da coluna, gerando em

ondas movimentos com os braços (membros). Os cotovelos ficavam próximos

ao tronco, o antebraço era jogado com a cabeça e as pernas. André viu nessa

movimentação uma imagem de lavar roupas e estender no varal. A idéia foi

sendo redimensionada, o corpo passou a se dobrar com movimento de tronco,

pegar as roupas com os braços e estender no varal usando os dedos como

pregadores. Puxo tecidos do varal (ainda só trabalhando com objetos

imaginários), me enrolo, enxugo suor, me lavo, lavo tecido novamente. Jogo

tecidos no chão e corpo, ajudo a jogar ou a pegar com pernas, a partir de

joelhos dobrados. Essa experimentação se desdobrou na cena do varal.

Importante frisar que, antes dessa experimentação, não havia nenhuma

referência ou idéia pré-concebida de uma cena que usasse ações como lavar

roupa, pendurar no varal e interagir com essa roupa pendurada. Assim como no

caso da ação do gato. Células expressivas dessa mesma matriz foram usados na

318

Page 319: Por uma TAO expressividade

cena da teia, quando a personagem parece remeter à imagem de um bicho

preso.

Fizemos ainda uma experimentação em cima do conto Casa, onde a personagem varre,

limpa e muda as coisas de lugar obsessivamente. Apesar de partirmos do conto, e não de uma

matriz taoísta, a experimentação com membros, feita anteriormente ecoou nessa também,

gerando gestos de varrer com as mãos o próprio corpo e o ar, com a sensação da poeira

invadindo, dos pés varrendo o chão. Células expressivas dessa experimentação foram usados

em toda a cena da luta com a poeira no espaço e no próprio corpo.

06/07

Após a preparação, ainda em estado de chi kung, realizei experimentação expressiva a

partir de contrastes retirados das associações yin yang.

Hoje André propôs os contrastes a serem explorados. O primeiro foi

transportararmazenar conjugado ao dareceber. O transportar-dar surgiu como um ato de

carregamento de peso, com braços esticados como se estivesse oferecendo algo. Desdobrou-se

em várias formas de carregar, transportar, sempre com a sensação de peso. Essa matriz foi

usada nas cenas carregando o balde e a bacia. Armazenar - receber surgiu como um gesto de

recolher ar em torno de si com as mãos e guardar no próprio corpo. Essa matriz foi usada na

cena do banho de bacia, em que a personagem se relaciona com a água.

O segundo contraste experimentado expressivamente foi úmidoseco. Úmido gerou

gestos de respingamento, como se o corpo deixasse rastros de água, pingos. Os pés rastejavam

no chão com o dorso voltado para baixo. Essa matriz também foi usada na cena do banho com

bacia, conjugada à matriz armazenar. Os pés rastejantes foram usados em diferentes

momentos de caminhada durante o espetáculo, como quando ela vê a camisa no chão e vai em

sua direção para lavá-la, ou quando vai jogar o filho pela janela. A idéia de seco fomentou

uma construção gestual rija e entrecortada, nas mãos e pés. Um deslocamento com os dedos

dos pés retesados pra cima ou pra baixo, e as mãos na altura do peito também tensionadas,

abrindo e fechando, criando uma movimentação de palpitação. Células dessa matriz foram

usadas no acordar com o despertador e na cena da oração a Nossa Senhora, com o terço. Os

319

Page 320: Por uma TAO expressividade

pés eriçados, isoladamente, voltam em vários momentos de tensão da peça, como ao soar do

telefone, junto à matriz frio.

Trabalhamos um pouco mais as idéias das cenas do gato e do varal, desdobrando as

matrizes que deram origem a essas cenas. Conversamos que nosso tema, tema da obra

Noturnos de Ana Miranda, parece ser a solidão. Surgiu a idéia dela se relacionar em vários

momentos com o animal, e talvez matar o gatinho no fim, talvez sem querer. Surgiu também a

idéia de trabalharmos com uma camisa de homem no varal, partindo da matriz

troncomembros e desdobrando-a, e usando os textos em que ela se refere a uma presença

masculina.

10/07

Após o aquecimento e o chi kung, ainda em estado de chi kung, realizei

experimentação expressiva a partir de contrastes retirados das associações yin yang.

André propôs novos contrastes. Pediu para que eu inserisse mais som nas

experimentações. O primeiro contraste a ser trabalhado foi calmagitação. Calma surgiu como

um gesto de quem corta ou costura o ar e canta com muita suavidade. Agitação veio como

quem se fura com uma agulha e em cada furo grita e lamenta, em tom cantado: “Ai!!! Ai!!!”

A matriz calma emprestou princípios para algumas cenas de canto da peça. A matriz agitação

gerou a cena onde a personagem se costura, após ter sua costela quebrada no coito.

A outra dupla experimentada foi raivamedo. Raiva veio como um gesto de birra, de

menino mimado que não consegue algo que quer, e infla as bochechas e esmurra o chão pra

baixo. Elementos dessa matriz foram usados no momento em que ela grita “Passa passado,

passa” e arranca sapato. Em alguns momentos de relação com a poeira e na hora que ela pisa

no telefone. A experimentação com medo gerou uma expressão fisionômica intensificada pela

ação das mãos puxando o rosto pra baixo, e um som de terror, susto, com o ar entrando.

Células dessa matriz foram usadas em diferentes momentos de susto: quando ela se percebe

gorda, quando percebe as unhas, quando joga as coisas pela janela, quando fala das olheiras,

etc.

320

Page 321: Por uma TAO expressividade

11/07

Após a preparação inicial fizemos uma recapitulação das matrizes até o momento,

relembrando as formas surgidas e relacionando às sensações. Assim temos até então:

Matriz: profundosuperficial. Ações: relacionar-se com animal de estimação, sair atrás

dele e pega-lo no colo. Sensações: afeto, ternura, apego.

Matriz: troncomembros. Ações: sexo, lavar roupa, estender no varal. Sensações:

prazer, limpeza, obsessão por organização.

Matriz: umidadesecura. Ações: limpar, varrer, palpitar de coração. Sensações:

purificação, prazer, medo, espreita, pulso acelerado.

Matriz: calmagitação. Ações: cantar, costurar, se furar. Sensações: tranqüilidade, paz,

prazer, lúdico, incômodo, tormenta interna, angústia.

Matriz: medoraiva. Ações: esconder-se, retesar o corpo, sons guturais rosto puxado

pra baixo, birra ofensiva, briga, com corpo avançado e punhos cerrados. Sensações:

pânico, susto, incredulidade, belicosidade, irritação.

Importante notar que as sensações associadas são em grande parte contrastantes,

justamente por partirem de um par de opostos complementares. Assim, foram experimentadas

transições graduais e em salto entre os dois aspectos de uma matriz.

13/07

Após a preparação inicial, sempre com aquecimento e chi kung, iniciamos a

construção do desenho de algumas cenas: a do animal de estimação, a da relação com a

poeira, a do banho de bacia, a da lavagem da camisa, e a da camisa no varal. Essa seqüência,

esboçada nesses dois dias, nortearam todo o fluxo dramatúrgico do espetáculo. Durante a

construção das cenas, as ações físicas foram trazendo o máximo de células expressivas

geradas até então na exploração dos contrastes trabalhados.

14/07

321

Page 322: Por uma TAO expressividade

Após a preparação, retomamos o desenho de ações e passamos a experimentar a

inserção de textos. Trabalhamos alguns contrastes a partir da voz trazendo o texto. O duplo

densosutil foi explorado nos textos relacionados à presença masculina. Em seguida

exploramos a oposição sombrioluminoso no texto sobre as unhas.

A experimentação dos contrastes no texto falado gerou por vezes uma intenção

paradoxal no discurso, o que favoreceu a polissemia na cena.

Nos ensaios que seguiram a este fomos amadurecendo nosso desenho de ações e

cenas, inserindo os textos que julgamos pertinentes.

24/07

Após a preparação usual, em estado de chi kung, retomamos o processo de

experimentação a partir de matrizes ligadas a três estados afetivos descritos em wu hsing (vide

seção 1.2.c):

Matriz alegria - este estado foi favorecido a partir da inserção gradual, por parte do

André, dos seguintes estímulos: coração + calor + gargalhada. Dirigi o chi kung

irradiando energia ao coração, o que me trouxe logo uma vontade de rir. Esse trabalho

gerou um espreguiçar do tronco em cadência de dança e uma sensação crescente de

aquecimento no peito culminando em uma gargalhada. Devo ter ficado uns quinze

minutos gargalhando, às vezes de forma mais espontânea, às vezes reforçando um

pouco o calor no peito pra despertar o riso novamente.

Matriz obsessão + canto: a vivência gerou movimentos insistentemente espiralados de

dedo e tronco.

Matriz tristeza + secura + choro: essa experimentação foi uma das mais fortes

emocionalmente para mim. A partir de um movimento de cata com as mãos, abrindo-

as e fechando-as com os dedos retos, me veio um violento sentimento de perda,

imediatamente associado a imagem de meus filhos. A partir desse momento o choro

surgiu compulsivamente e se manteve até o fim do trabalho. Ao repassarmos todas as

vivencias no fim do ensaio o choro veio de novo, facilmente, ao associar o movimento

à idéia de secura. Essa matriz foi posteriormente usada na imagem das unhas

agarrando “o vazio, o passado, o eu perdido”, e catando algo dentro da “saia-filho”.

322

Page 323: Por uma TAO expressividade

Após o trabalho André observou que despertar tanto as emoções trouxe uma

expressividade mais sentimental e psicológica que física. Para ele, menos interessante

nessa proposta.

Ao longo dos ensaios seguintes continuamos a criar nosso desenho de ações, usando

elementos das experimentações do dia e outras. Criamos a cena da costura da costela

quebrada, a partir de células da matriz obsessão (movimento espiralado de mãos e tronco).

Posteriormente esse movimento em espiral se aplicou também à procura do sapato, à

imagem das unhas como raízes, etc.

03/08

Estou em crise. Esboçamos a peça até o momento em que a personagem dorme, cena

na qual emperramos... A pura experimentação com o objeto - a trama de elásticos - não

está funcionando. Sinto vontade de voltar às matrizes, que não trabalhamos há mais de

uma semana. Penso em aproveitar o movimento de palpitação da matriz securaumidade,

ou o gesto de catar, da matriz tristeza. Também intuo experimentar alguma matriz, mas de

forma mais dirigida, ou seja, dentro da própria cena, e não dissociado para depois re-

contextualizar, como foi até agora.

09/08

Eu e André resolvemos voltar à experimentação para tentar sair da estagnação. Hoje

experimentamos os estímulos com a teia montada, para que eu pudesse interagir com o

objeto. Após a preparação com o chi kung, passamos às seguintes investigações

expressivas, com imagens tiradas de wu hsing:

Ossos + audição + medo: esse tripé engendrou um movimento que batizamos

como “aranha”, ora com saltos, ora não, o corpo se movia de forma angulosa,

buscando perscrutar algo com ouvidos atentos, e muita apreensão. Essa matriz foi

usada em vários momentos da peça, em especial na relação com a poeira e insetos,

e na imagem do “brinquedo”.

323

Page 324: Por uma TAO expressividade

Obsessão + doce + canto: realizei um movimento de andar fervorosamente de

joelhos pelo espaço, com as mãos fechadas batendo continua e obstinadamente no

chão, enquanto cantava Ave Maria com a voz contrastantemente doce. Células

dessa matriz foram usadas na cena em que ela canta para o filho nos braços e o

joga pela janela.

Olfato + picante + choro: gerou um ato de farejar que vai se tornando um choro

mais teatral, enquanto a fisionomia e o corpo respondiam à sensação de picante na

boca, com contrações musculares. Essa matriz foi usada na cena em que a

personagem acha uma carta dentro do livro, cheira-a e chora.

Velhice + frio + gemido: surgiu um personagem velho com elástico preso à boca,

curvado, com um gemido grave, num tom quase gutural. A célula vocal foi usada

nos “alôs” finais dos telefonemas anônimos.

Outono + pele + tristeza: aqui o movimento era de tentar se livrar da teia que

insistia em grudar no corpo, movimentos de empurrar a teia e ser por ela engolida,

de deitar-se e tentar mover-se pela força abdominal. Essa foi a única das matrizes

experimentadas na teia, que ficou de fato na cena da teia, especialmente no

momento em que a personagem dorme e acorda com o trovão (ou os fogos de

artifício, ou o que quer que a imaginação de cada espectador invente). Ela está

presente também na cena inicial do despertar da personagem e seu espreguiçar-se.

10/08

Seguimos o impulso da véspera e continuamos o trabalho com novas matrizes. Após

preparação passamos a fazer experimentações com o livro, ainda tendo como fonte wu hsing.

Vaso sanguíneo + gargalhada + crescimento: ação de folhear o livro em

movimento que seguia um fluxo de líquido denso, e uma euforia crescente.

Essa matriz associada à da alegria, em especial à sensação do aquecimento do

peito, e “dimmerizada” para sutileza, gerou a matriz gargalhada sutil. Esta se

encontra na cena do abrir e ler o livro, até o encontro da carta.

Bexiga + gemido + declínio: gerou ação de ter vontade forte de urinar ao fim

da risada, e o ato de fazer xixi gemendo. Essa matriz não foi usada na peça.

324

Page 325: Por uma TAO expressividade

Picante + estômago + puberdade + canto: ação de comer o livro com

fisionomia de quem come algo com muita pimenta. Matriz não usada.

Fígado + grito: ação de sentir ânsia de vômito e vomitar um grito. Matriz usada

no momento em que a personagem, drogada e bêbada vomita no livro.

Nos ensaios seguintes trabalhamos na re-contextualização dessas e outras matrizes no

desenho de ações, bem como na finalização desse desenho – roteiro do espetáculo.

25/08

Após trabalho inicial de concentração e chi kung experimentamos matrizes para buscar

textura corporal da bebedeira.

Vento + leve: essa combinação gerou um corpo bêbado pela sensação de

desequilíbrio dada pela imagem do vento, com a sutileza das passadas leves.

As passadas pesadas, também experimentadas, geraram um corpo mais

caricatamente bêbado, quase canastrão.

Anotações sobre a partir do dia 28/08 em diante.

Sinto que entro numa fase do trabalho em que passo a buscar contrastes e referências

não como referências a priori, mas também como apoio para fortalecer as construções cênicas,

tanto as derivadas de trabalhos com matrizes, como as surgidas de experimentação direta com

objetos e texto.

Assim, se agregaram ao trabalho referências como:

Penetraçãorecepção: estímulo à relação visual entre a personagem e os perigos

minúsculos: poeira, insetos.

Altobaixo e interiorexterior: estímulo à relação posicional da personagem com

o zelador e a faxineira, com os objetos que caem, com o precipício e com a

cidade aos seus pés.

325

Page 326: Por uma TAO expressividade

Levepesado: estímulo à relação da personagem com o objeto elástico ao

verbalizar a lista de compras. E ainda estímulo à relação com a resistência

oferecida pelo elástico na cena em o “passado se arrasta atrás de mim como um

rabo”. Usado também na cena em que ela joga as coisas pela janela.

Contraçãoexpansão: presente na cena de abertura da peça, no espreguiçar-se

da personagem despertando.

Vaziocheio: especialmente a idéia de vazio serviu como estímulo à fala para

expressar as contradições internas ao falar dos filhos. O contraste foi útil na

cena em ela se olha no espelho, na relação com a auto-imagem.

Densosutil: estímulo à fala para expressar a relação paradoxal com o ex-

marido.

Sombrioluminoso: estímulo à fala na hora da reza, com medo do monstro.

Inibição/excitação: estímulo à relação com a própria auto-imagem, nas cenas

de espelho.

Quietudemovimento: usado para compor imagem do “casulo de seda” na cena

do varal, em que o corpo está imóvel, mas o balanço do varal o faz subir e

descer.

Frio: estímulo físico para sensação de apreensão suscitada a cada novo toque

de telefone. Intensificada a matriz dá o estímulo ao pânico, na relação com o

monstro.

Ascendente: estímulo visual para a subida da montanha, na cena do varal.

Descendente + sombrio: estímulo para a cena em “entra” no mundo noturno –

teia.

Tato: relação corporal com o ex-marido, cena do varal.

Audição: relação com o ex-marido, cena do varal.

Fala: estímulo à explosão verborrágica na cena do varal.

Visão: relação lembrança de imagens sonhadas, cena do varal.

Paladar: relação corporal erótica com o ex-marido, cena do varal.

Inspiraçãoexpiração em transição para olfato: cena da queda do precipício e o

farejar da camisa, na cena do varal.

Expansão + luminoso: sensação ao ver a camisa no chão, antes da cena do

varal, estímulo às descobertas sendo feitas durante a leitura do livro, e à

sensação após fumar o baseado.

Contração + azedo: estímulo à sensação após cheirar cocaína.

326

Page 327: Por uma TAO expressividade

Nascimento + vento + leve: usada após beber todo o champanhe da taça, antes

da transição para matriz fígado + grito, em que vomita no livro.

Lento + pesado + úmido: estímulo à maneira de falar quando a personagem

está embriagada.

12/10/06

Estréio num 12 de outubro. Mais um parto, mais um filho criado em meus vazios, mais

um saindo pro mundo. E no dia de Nossa Senhora de Aparecida. O dia das crianças! Rezo a

elas. Internamente ofereço à Santa e às crianças essa apresentação parida. Peço a uma o dom

da presença energética, irradiante, epifânica, e às outras o privilégio do prazer, do jogo, de ser

lúdica. Duas (entre tantas) faces do teatro. E de mim.

B.3. Dramaturgia

Inicialmente faço algumas observações sobre as diferentes vias de enunciação que

tecem a dramaturgia geral do espetáculo:

1. Os trechos sublinhados mostram o que é falado ou cantado pela

personagem, ou seja, referem-se a uma dramaturgia enunciada pela voz.

2. As partes entre parênteses, em negrito, remetem às matrizes que ou

originaram ou animam/sustentam dada ação.

3. Os outros trechos descrevem as ações físicas do espetáculo - dramaturgia

corporal, sendo que em alguns momentos referem-se a uma dramaturgia

cenográfica também, ao narrar transformações do espaço e dos objetos,

através da manipulação destes em cena aberta.

4. Os títulos, em maiúsculo e negrito, referem-se à divisão do texto

espetacular.

5. Há ainda, no espetáculo, a presença de uma dramaturgia do som, com o

qual a personagem contracena, e da luz, as quais não estão descritas aqui.

A seguir nosso texto dramatúrgico.

327

Page 328: Por uma TAO expressividade

TRAÇOS ou QUANDO OS ALICERCES VERGAM

1. despertar

(matriz outono + pele + tristeza, experimentada com elástico)

Toca despertador, ela acorda, abre só olhos, se espreguiça ampliando o espaço do corpo até os

dedos, fazendo o quadrado do elástico solto/cama/espaço corporal. (matriz

contraçãoexpansão). Vira de costas para público estica um braço e uma perna, senta, estica

os braços lateralmente torcendo tronco, pousa braços no chão se apoio e fica de pé.

2. janela 1

Vê a janela, solta as mãos e vai até lá apreensiva, (matriz frio sutil) abre a janela/cortina,

com cuidado, observando.

(matriz contrastes altobaixo e interiorexterior)

Bom dia seu Hilário, bom dia Odete!

Vira-se e depara-se com espelho.

3. espelho 1

Confere rugas nos olhos e ao lado da boca, confere brancura dos dentes, usa elástico solto/fio

dental, cospe. Volta-se para espelho, confere sorrindo. Faz ginástica com braço e com perna,

até soltar elástico. Mede cintura com elástico solto/fita métrica, estica-a ao máximo. Vê

resultado, fica feliz, olha no espelho, se percebe gorda, pega na barriga. (matriz medo, do

contraste raivamedo, em dimmer sutil).

Ahhhh!

328

Page 329: Por uma TAO expressividade

4. feira

Enrola o elástico (matriz levepesado).

Alface, rúcula, uma beterraba esmagada no chão lembra uma poça de sangue... abacaxi,

maças e as pêras até que enfeitariam a copa...

Ajeitando o cabelo, prendendo no alto com elástico solto.

cebola roxa, cebola em conserva, cebolinha, a cebola é tão bela pra murchar na fruteira!

Indo em direção às luvas, a cada passo uma fala.

Veneno anti-mosquito, veneno anti-barata, veneno anti-ratos.

Puxando as luvas.

A feira é livre, mas eu não!

Vestindo as luvas.

Olha o xuxu, olha aí olha aí, olha o xuxu, olha aí, olha aí, olha que xuxu, olha que xuxu, olha

que xuxu...

5. unhas

Percebe as unhas, abrindo os braços.

(matriz frio sutil + medo)

Olha aí! Que isso? Nasceram esta noite... Parecem garras! Para que servirão?

Mãos se fecham, puxando os braços, como numa dança indiana, enquanto ela olha pra Deus.

Mas será que todas as noites eu preciso passar por alguma metamorfose...

329

Page 330: Por uma TAO expressividade

Mãos vindo em direção ao rosto.

Serão as unhas os meus pecados que se tornaram visíveis?

Empurrando as mãos (matriz transportar).

Serão um castigo?

Vindo pra barriga cravando-as no ventre.

Algo que meu corpo criou noturnamente para me destruir essa manhã?

Tirando e catando (matriz tristeza + secura + choro).

As unhas serão para agarrar o vazio, o passado, o eu perdido?

Vem na direção dela como se fosse lhe arrancar os olhos (matriz tristeza + secura + choro).

São minhas mas parecem contra mim!

Braços como se fossem raízes (matriz obsessão, espirais com as mãos).

Serão as unhas raízes que nascem do lado errado,

Empurrando (matriz transportar).

eu tentando sair de mim mesma,

Ficam só dois dedos, fazendo imagem de revólver.

ou apenas armas vulgares para eu mesma me escarificar?

Espreme uma espinha, pus pula pro chão, ela nota o espanador/gato.

6. bicho 1

(matriz profundosuperficial)

Entra atrás do espanador/bicho, faz uma volta no espaço chega perto desacelerando, abaixa o

tronco pra pegá-lo, ao tocar nele corpo fica mole, curte o bicho brinca, ele muda de mão –

330

Page 331: Por uma TAO expressividade

torcida de corpo, depois de novo até ir ao chão. Volta atrás dele de novo, até que se depara

com a presença da poeira.

7. poeira (perigo minúsculo) 1

Percebe poeira na parede, passa o dedo, olha em volta (relação de olhar com a poeira

durante toda a cena inspirado em matriz recepçãopenetração).

Essa poeira entra pela frestas!

Puxa espanador como espada de esgrima. Frente da cena.

Pela porta!

Lateral da cena.

Pelas janelas!

Atinge janela e puxa espada para si. Chega ao canto esquerdo no fundo e faz enceradeira, em

4 pontas, mecanicamente, 3 vezes. Espanador vira desentupidor, entre as pernas. Outro ritmo,

sucção, 3 vezes. Sacode espanador. Vê poeira no chão, prepara 3 vezes, joga golfe com

espanador/taco, joga longe, pra fora da janela, vai até lá, vê poeira voltando, recua e se

defende com espanador. Sacode este novamente, prepara 3 vezes e joga como squash com

espanador/raquete, recebe em manchete e finaliza com uma cortada forte, poeira sai pela

janela. Vai até janela de frente conferir vê poeira que volta, ela se abaixa, vira em samurai,

num salto. Dá duas passadas redondas, depois chuta e ataca com bastão/espanador. Abre

braços e dá giro em torno de si, vira-se pra frente e agradece. Percebe ainda a presença da

poeira. Constata tensa (relação de olhar com a poeira inspirado em matriz

recepçãopenetração).

Preciso todos os dias de uma casa nova!

Pega espanador/metralhadora e atira loucamente fazendo rotação com tronco até esquerda,

depois direita e voltando ao centro. Sopra o espanador, como quem sopra um revólver, poeira

volta-se contra ela, ela se defende, sopra. Acompanha uma poeirinha com estrabismo, cair no

331

Page 332: Por uma TAO expressividade

umbigo. Pega irritada. Fala consigo mesma (relação de olhar com a poeira inspirado em

matriz recepçãopenetração).

Essa poeira invade a casa,

Peteleco. Poeira sobe e cai na coxa direita, acompanha com olhar.

cobre os lençóis das camas, penetra nos colchões, nas roupas.

Começa a deslizar mãos pela perna.

É uma areia absoluta, eterna, entranhada nos alimentos,

Mãos chegam ao pé, depois vão subindo espalmadas até gesto de entranhadas.

eu lavo as frutas

Fecha uma mão.

eu lavo as folhas,

Cerra a outra.

eu lavo as roupas,

Com ambas fechadas.

é inútil, a areia está sempre ali, grudada no meu corpo, na minha pele.

Com agonia e nojo, termina limpando as mãos. Areia cai, ela se agacha, sopra, poeira vai nos

olhos, ela faz cambalhota pra traz. Tenta escapar da poeira, foge pra traz da bacia, se esconde

com a bacia/escudo, que vira uma grande cara, (matriz ossos + audição + medo, “aranha”)

foge lateralmente espiando por baixo, pelos lados ou por cima, e variando planos, até colocar

sobre a cabeça. Por fim bota a bacia na cintura, pega a camisa, anda até o balde e o pega,

sente o peso, e leva ao centro. (matriz transportar) Quando está quase chegando toca o

telefone (matriz frio). Deixa a bacia e a camisa caírem já no centro, e equilibra o balde ao

lado.

332

Page 333: Por uma TAO expressividade

8. telefone 1 + traço 1

(matriz frio). Vai ao alicerce do fundo esquerdo do palco e atende no sapato/telefone

amarrado ao traço 1-elástico/fio de telefone, levando-o até o alicerce do fundo direito onde

deposita o traço 1. Tira sapato/telefone do elástico.

Alô, alô, alô quem é? Alô! (ao fim voz vai ficando com timbre da matriz velhice + frio +

gemido)

Sem resposta, volta, vai andando com o sapato apertado junto ao peito (matriz frio).

Recupera a ação.

9. lavação 1

Deixa balde, ajoelha-se, deposita bacia. Enche a bacia de água (matriz de torcida da

transformação superficialprofundo). Toca a água, sacode 3 vezes, lava o rosto, sacode 1

vez. Pega e joga água 2 vezes pra direita e depois 2 vezes pra esquerda (mix das matrizes

armazenar + umidade). Traz água pra corpo 5 vezes, do pescoço até pélvis e chega no

“banho tcheco”. Ao fim sacode mãos com nojo três vezes, pega sabão e esfrega na mão, e

molha-as de novo.

10. janela 2

Pensa o que vai fazer com a água suja, olha um lado e outro, levanta vai em direção ao

fundo/banheiro, vê janela e joga lá embaixo. Esconde-se atrás da bacia e volta ao centro.

Coloca nova água na bacia. Ainda com o balde na mão...

11. poeira (perigo minúsculo) 2

(relação de olhar com a poeira inspirado em matriz recepçãopenetração)

333

Page 334: Por uma TAO expressividade

Percebe poeira (ou inseto – perigo minúsculo) vai atrás dela (matriz ossos + audição +

medo, “aranha”). Espera pousar e prende-a no balde emborcado. Poeira tenta fugir uma vez,

ela senta em cima. Sai dali ainda tensa e se depara com camisa. (matriz expansão +

luminoso). Vai até lá, (pés rastejam matriz umidade) agacha, pega-a, traz para a bacia e

molha, pega o sapato/sabão e passa na camisa, começa a cantar, e deixa o sapato/sabão na

bacia.

12. lavação 2 + canto 1

(relação com a camisa a partir de matriz densosutil ao longo da cena toda do varal)

Canta trecho da música Dream a little dream, de Gus Kahn/ Wilbur Schwandt/ Andres Fabian

Say nighty-night and kiss me

Just hold me tight and tell me you’ll miss me

While I’m alone and blue as can be

Dream a little dream of me

Coreografia da lavada: esfrega camisa no centro, primeiro dentro bacia, depois esfrega numa

perna e noutra, cheira virando-se, passa camisa pelo corpo, pés fora do chão, vira-se pra baixo

em flexão, esfrega no chão e traz pra si, enxágua 3 vezes e sobe.

Segue cantando:

Stars fading but I linger on dear

Still craving your kiss

I’m longin’ to linger till dawn dear

Just saying this

Vai até alicerce central da lateral direita e puxa traço 2 (elástico)/varal até alicerce central da

lateral esquerda. Olha por cima do varal colocado, pros dois lados pra ver se alguém está

vendo.

334

Page 335: Por uma TAO expressividade

13. varal + traço 2

Pendura, se enrola na manga em uma dança, cantando, vai deslizando pelo varal, pega na mão

dele e vai pra frente em passo de dança, se joga pra trás na dança. Passa a mão pelo peito dele

e veste a blusa, não termina a música, sacode manga ao final. Fica vestida na blusa pendurada

no varal. Transição entre fim da música e fala.

(matriz tato)

Ele me amava como se eu fosse um animal de estimação, frágil e macia feita de pelúcia,

Mãos no rosto, puxa bochechas pra baixo.

Me queria pálida, com olheiras...

Levantando os braços.

Gostava de ver as veias aparecendo debaixo da pele branca para ver o avesso do corpo....

Gesto de braço torcido, como se ele a tomasse.

Ai, ele era forte, quando apertava meu braço eu sentia os ossos como se fossem quebrar... Ai,

ai! Cuidado, cuidado meu amor, cuidado!

Mostra dor, se retorce em assimetria. Vira pra um lado por cima do fio, e pro outro no meio

da frase.

(matriz audição)

Anh? Eu sei que você não fez por mal. Anh? Eu sei você é doce e inofensivo, uma flor.

Vira-se e faz casulo de seda, agachando.

As pessoas diziam que ele era bruto mas ele era delicado,

Balançando em flexão de joelho (matriz quietudemovimento).

como um casulo de seda...

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Page 336: Por uma TAO expressividade

Gesto de abraçar virando a cabeça.

abraçava as árvores...

Gesto de oração.

me pedia perdão.

Subindo montanha pelo varal (matriz ascendente).

queria ter uma vida nova, fugir desse lugar, ter uma casa na montanha, só nos dois

(matriz tato)

E me abraçava fundo e sufocante

Se enrosca no varal

Ai, meu amor, ai, me solta um pouquinho...

Se desenrosca.

mas ele nunca me largava.

(matriz fala, como quem entrega alguém)

Tinha medo que eu saísse voando

Vai a frente é puxada de volta pelo varal elástico.

que fugisse com um desconhecido

Insinua-se a frente, sentindo resistência como se ele a puxasse. Tira a camisa que fica pelo

avesso.

que me tornasse uma ilusão!

Fala parada na frente. Imagem de ave segurando braços da camisa. Vai recuando.

(matriz visão)

336

Page 337: Por uma TAO expressividade

às vezes no meio da noite ele penetrava no meu sonho como uma ave de rapina

Começa a recuar fechando as mangas em torno de si.

aí eu sonhava com ele, no sonho ele me trancava numa jaula

Camisa de força.

e me alimentava com carne crua e sangue, ou me jogava de um precipício,

Imagem de beira de precipício, olhando pra baixo, (matriz altobaixo + medo) solta a camisa

que voa. Ela cai no chão (matriz inspiraçãoexpiração em transição para matriz olfato).

Vai de quatro até a camisa, puxa, camisa balança ela vai junto e passa pra frente da camisa.

Faz cabaninha com a camisa.

Meu corpo é sua casa,

Imagem de igreja.

é sua Igreja,

Imagem de santa.

a imagem de Deus...

Ficando em pé, segurando a camisa.

E eu toda lhe pertenço.

Veste a camisa ao contrário, abertura pra traz com afeto, sacudindo as mangas (matriz tato).

Meu corpo é seu diário, é seu brinquedo...

Imagem de boneco, marionete (matriz ossos + audição + medo, “aranha”, sem intenção de

medo, e mais entrecortada).

Vem meu amor,

(matriz paladar) subindo a camisa mostrando barriga.

337

Page 338: Por uma TAO expressividade

me ama por dentro, olha meu coração,

Intenção de sexo.

beija meus pulmões, arranca meu útero, acaricia minhas finas e longas clavículas...

Fica de costas pra camisa, volta as mangas pro lado certo (não avesso) de novo, ele a penetra

por traz.

Marca todo meu corpo com as manchas roxas de seus dedos,

Imagem de sexo. Enrola-se na camisa de novo, espremida grita como se fosse um orgasmo.

Você quebrou minha costela!

Joga camisa pro canto.

14. costura + traço 3

Sai andando torta, furada, se agachando pra pegar sapato/agulha, dá a volta pela bacia onde

está o sapato e volta na direção do alicerce central da lateral direita do palco. Puxa o traço 3

(um novo fio elástico)/linha de costura, coloca no sapato/agulha, senta-se no balde

emborcado/banco, e costura-se três pontos, com os punhos redondos, tronco acompanha.

(matriz obsessão, caracóis com a mão e pulso em mix com matriz agitação do contraste

calmagitação “ai, ai”) Dá um nó. Deposita o traço 3 no alicerce da frente esquerda, mas puxa

o meio do elástico para alicerce central da lateral esquerda, criando no espaço duas linha com

o mesmo elástico.

15. espelho 2 + canto 2

Confere no espelho a costura. Relação com a auto-imagem. Resolve colocar saia, entra na

saia. Depois sapato. Calça um sapato com tronco dobrado e nessa posição começa a procurar

o outro (matriz obsessão, movimentos em espiral). Passa embaixo do traço 3 e lembra de

conferir poeira (ou inseto – perigo minúsculo) embaixo do balde. Vai até o outro canto do

338

Page 339: Por uma TAO expressividade

palco, não acha. Pisa no elástico com um pé e leva o outro como na brincadeira de pular

elástico, acha lenço no alicerce central do fundo. Coloca-o no pescoço, e continua a procurar

sapato até achar no alicerce do fundo lateral direito. Vai até sapato e calça com tronco

dobrado, alcança espanador/escova e limpa sapatos. Olha-se, vai subindo limpando a roupa e

se olhando no espelho enquanto fala:

(intenção matriz de transição cheiovazio)

As mulheres precisam de muitos vestidos diferentes porque há muitas mulheres dentro de

cada mulher e é preciso vestir todas, por que nuas elas não podem sair do corpo...

Maquia-se com espanador/blush.

Nem todas as pessoas são reais... Eu talvez seja mais real no espelho, do que em carne e osso.

Pára tudo (matriz vazio).

Às vezes até esqueço de ser quem sou!

Vira penas do espanador pra baixo. No espanador/microfone. (matriz calma, do contraste

calmagitação). Canta trecho da música On my own, de Irene Cara e Nikka Costa.

Sometimes I wonder

Where I've been

Who I am

Do I fit in

I may not win

But I can be thrown

Out here, on my own

Dedos em estalo passam a marcar ritmo (matriz excitação).

When I'm down and feeling blue

339

Page 340: Por uma TAO expressividade

I close my eyes, so I can be with you

Aponta braços e espanador, com pompom pra frente pra espelho.

Oh baby, be strong for me

Baby belong to me

Help me through, help me, need you…

Coloca espanador entre as pernas.

Vira de frente. Penas de espanador como se fossem pelos pubianos.

(matriz excitaçãoinibição)

Acaricia seios sutilmente.

Ah, mas eu vou ter tanta saudade de mim quando eu morrer!

Acaricia espanador/vagina sutilmente.

Que boneca de luxúria!

16. casamento + traço 4

Tira espanador do meio das pernas. Com espanador/ buquê de noiva sai andando em direção

ao altar, puxando traço 4 (novo elástico)/passado, que está amarrado ao sapato que acabou de

calçar (antes da cena com espelho). Sente a dificuldade do elástico no sapato (matriz de

transição do contraste levepesado). Passa por debaixo de traço 3 com o corpo arqueado para

trás, pé é puxado, ela vai ao chão, solta buquê e tenta segurar-se no balde/banco, perna

descreve um arco até alicerce central da lateral esquerda.

Que isso? Meu passado cresceu e se arrasta atrás de mim como um rabo cada vez mais longo

e denso...

Acaba tirando balde do chão e grita dentro dele.

340

Page 341: Por uma TAO expressividade

Passa passado, passa! (matriz raiva, do contraste raivamedo, birra).

Pega o sapato, solta do elástico, prende o traço 4 no alicerce lateral esquerdo, e encaixa sapato

pendurado.

17. poeira (perigo minúsculo) 3

Vira-se pra frente e se dá conta que a poeira, que estava presa no balde, escapou. Coloca

balde/capacete na cabeça, e se arma com sapato e bacia/escudo (matriz ossos + audição +

medo, “aranha”). Persegue poeira com o olhar, até ela pousar no alicerce no frontal

direito/parede da casa. Bate com o sapato nela, como se matasse uma mosca. Olha a sola do

sapato (matriz vazio).

18. desfazer-se

Essas coisas não me servem mais, não se parecem mais comigo... quero me desfazer dessas

coisas...

Joga sapato na bacia.

Ter uma casa vazia, sem roupas,

Tira lenço e joga na bacia.

sem móveis,

Tira balde/capacete/banco/móvel da casa e joga na bacia.

Sem poeira, sem documentos, sem cartões, sem talão de cheque, sem marido,

Tira camisa do marido e joga na bacia.

sem filhos, sem empregada, sem...

341

Page 342: Por uma TAO expressividade

19. telefone 2

Na hora que vai pegar o livro que está pendurado no alicerce frontal da direita toca o telefone

(matriz frio). Encosta-se ao traço 3 e vai à direção do telefone, mas quando chega perto, este

para de tocar. Solta traço 3 do alicerce central da lateral esquerda, segurando-o no alto:

Me desfazer de mim mesma...

Solta traço 3 no ar e ao mesmo tempo vai em desequilibro detonado ao soltar traço, para a

janela.

20. janela 3

(matrizes contrastes altobaixo, interiorexterior e levepesado)

Odete! Odete… Tudo bem? Não não estou precisando de faxina não, viu? Seu Hilário

comentou que você está responsável por um bazar beneficente! É que eu queria contribuir,

tem umas pecinhas aqui que eu não estou mais usando e... Não! Não precisa subir... Olha só

que bonito: (matriz leve) o lenço passa diante de mil vidraças que refletem mil edifícios de

vidraças que refletem mil edifícios...

Tempo, olha Odete lá embaixo.

Gostou?

Faz gesto de espera aí com a mão.

A camisa passa diante de mil vidraças que refletem mil edifícios de vidraças que refletem mil

edifícios.....

Tempo, olha Odete lá embaixo.

Bonito, né?

Faz gesto de espera aí com a mão.

Os móveis passam diante de mil vidraças...

342

Page 343: Por uma TAO expressividade

Joga bacia com objetos pesados que fazem ruído ao cair no chão. (matriz frio) Olha pra

baixo.

Odete?

(matriz de medo contraste medoraiva, som e rosto de susto, pânico)

AHHHHH!!!

Sai desnorteada empurra traço 2 até alicerce frontal direito e prende com livro, braços

levantados, vira de costas e vê o gato.

21. bicho 2

Esquece Odete e vai atrás do espanador/bicho (matriz profundosuperficial). Pega o bicho e

acompanha-o andando sobre traço 4 indo em direção à janela, até que telefone toca (matriz

frio).

22. janela 4

Joga bicho pela janela (matriz de medo contraste medoraiva, som e rosto de susto,

pânico).

AHHHHH!!!

Telefone chama sua atenção, olha telefone, olha janela, até que vai atender no alicerce central

da lateral esquerda (matriz frio). Pega sapato/telefone.

23. telefone 3

Alô, alô, alô quem é? Alô! (ao fim voz vai ficando a da matriz velhice + frio + gemido)

Pega só sapato, traço fica, tenta ouvir, sem sinal, vai mexendo no traço 3 até chegar ao traço

1, passa a tentar sinal neste, tira do gancho e vai olhando dentro do círculo do elástico,

343

Page 344: Por uma TAO expressividade

procurando algo e trazendo elástico pra alicerce da frente direita, onde deposita traço 1, e

encaixa telefone, desliga-o. Encosta no alicerce, (matriz frio) sente o livro.

24. livro + canto 3

Pega o livro e solta traço 3 que estava fixado aí, ainda olhando em volta (matriz frio). Abre

livro, vem luz de dentro dele no rosto dela. Começa a ler, vai achando graça, começa a andar

acompanhando traço 1 na diagonal, (matriz vento leve, com pequena intensificação a cada

risada) segue lendo, gargalhada sutil (matriz vasos sanguíneos + gargalhada sutil), vai até

o centro. Segura livro aberto com mão esquerda, na parte de cima da lombada. Acha

papel/carta deposita livro/abajur no traço, levanta abajur pra ver carta embaixo da luz.

Começa a ler, fica triste, cheira, chora, (matriz olfato + choro) colhe as lágrimas que viram

maconha sendo destrinchada, enrola papel/carta, faz um rolo/baseado. Acende no

livro/isqueiro, fuma cigarro de maconha, se infla, (matriz expansão + luminoso) prende a

fumaça, percebe poeira, acompanha-a, sopra fumaça nela, acompanha-a voando cair no

elástico, cheira a poeira com rolo/canudo até chegar ao livro pendurado no mesmo traço

(matriz contração + azedo). Travada passa rolo/batom, coloca rolo/perfume. Pega

livro/bolsa e encaixa embaixo do braço. Canta a música Hi Lili Hi Low!, composição de

B.Kaper/ H.Deusch, e versão de Haroldo Barbosa.

Um passarinho me ensinou, uma canção felizzzzzzzzzz.

E quando solitária estou, mais triste do que triste sou...

lembra da poeira e procura com rolo/monóculo, vê a poeira no chão

Recordo que ele me ensinou, uma canção que diz!

pisa no elástico com um pé, depois com outro. Abaixa-se, sopra pelo rolo/zarabatana e salta,

tirando os pés e soltando o elástico.

Eu levo a vida cantando, hi Lili, hi Lili, hi low!

serve com livro/garrafa, seu rolo/taça de champanhe

344

Page 345: Por uma TAO expressividade

Por isso sempre contente estou, o que passou passou!

brinda e bebe tudo em vários goles. Sente embriaguez

O mundo gira depressa, e nessas voltas eu vou!

25. janela 5

Segue até a janela

Cantando a canção tão feliz, que diz: hi Lili, hi Lili, hi low!

Por isso é que sempre contente estou, hi Lili, hi Liliiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, hi low! Feliz ano novo!

(matriz nascimento e vento + leve em transição gradual para matriz fígado + grito).

Transição para ânsia de vômito pensa onde vai vomitar, vomita longamente no livro sente

nojo joga o livro pela janela.

Ah! Desculpe seu Hilário.

Silêncio. Gesto de brinde.

Feliz Ano Novo!

Silêncio. Ainda com taça erguida.

Uhu!

Sai da janela sem graça, embriagada, fumando rolo/cigarro.

26. telefone 4

O telefone toca, (matriz frio fundida com matriz vento + leve da embriaguez) ela procura

puxando cada traço e soltando após o som do telefone, até chegar ao sapato/telefone, no traço

1 preso ao alicerce frontal da direita, quando pisa no traço 1/fio desligando-o.

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Page 346: Por uma TAO expressividade

27. corda bamba + canto 4

Anda em corda bamba fazendo o tubo de papel de corneta. Tocando a melodia de Adeus ano

velho, Feliz ano novo, de autoria desconhecida. (matriz de vento + leve). Sai da linha reta,

dá uma volta sobre si, pega elástico à frente faz de vara de equilíbrio. Passa por baixo dele,

vira e vai voltando.

28. telefone 5

telefone toca de novo (matriz frio do telefone fundida com matriz vento + leve da

embriaguez). Volta em direção a ele, atende tirando só o sapato/telefone, deixando o traço lá

(fala com matriz lento + pesado + úmido).

Alô, alô, alô quem é? Alô! (ao fim vai ficando fala da matriz velhice + frio + gemido)

29. monstro

Aperta o sapato junto ao peito, e, assustada, lembra do monstro.

Será que é o monstro? (matriz frio intenso + vento leve)

Vai olhar a janela, se agacha, passa embaixo do traço 3 e olha pela janela escondida.

(matriz de medo contraste medoraiva, som e rosto de pânico) AHHHHH!!!

30. janela 5

Ta lá! Ele ta sempre lá, deitado na calçada imunda.... Tenho tanto medo do monstro da

esquina, o monstro barrigudo, cabeludo, o monstro manchado... As manchas dele fedem! Será

que o monstro tem mãe?

Joga papel amassado nele e depois o sapato.

346

Page 347: Por uma TAO expressividade

Vai embora monstro! Vai!

31. reza

Puxa rabo de cavalo pra cima. Solta cabelo. Tira elástico da cabeça e reza com elástico

solto/terço (fala em matriz lento + pesado + úmido).

Minha Nossa senhora, me livra do monstro da esquina! Eu não tenho paz! (matriz secura do

contraste secoúmido unida a vento leve) Ave Maria cheia de graça o senhor é convosco,

bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre Jesus! Santa Maria mãe

de Deus, rogai por nós pecadores... (fala em matriz contraste sombrioluminoso) Eu sei que

eu sempre fui aos meus pecados. Mas é que eu nasci com eles, eu repito os pecados de minha

mãe e de meu pai e de meus avós, e dos avós dos outros, me perdoa minha santa, não me

castigue! A senhora é mãe, a senhora sabe como é difícil! Eu tentava acertar, mas eu não

conseguia!

32. filhos + canto 5

Senta-se no traço1 /meio fio (fala em matriz vazio). Puxa fio como cordão umbilical. Passa a

fazer cama de gato com elástico.

Quando tive minha filha meu coração se destroçou, não conseguia amamentar, meu leite saia

fraco, uma água amarelada, a criança chorava de fome, de abandono... Passei dias sem tirar do

berço, entreguei a uma babá, e de noite via na parede do quarto a imagem de minha filha

vestida de branco enfeitada com flores os lábios roxos como se estivesse morta... uma

alucinação de arrancar lágrimas mas eu não conseguia... Meu filho... dizendo que vai embora,

minhas mãos ainda sujas de leite, eu sem saber que conselhos dar,

Levanta. Faz janela com fio.

Não peça nada a ninguém! Engraxe os sapatos... Pobre filho, teve uma mãe tão

destrambelhada...

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Page 348: Por uma TAO expressividade

Tirando a saia.

Nunca tive paciência para ajudar no dever de casa, pra ensinar a fazer um nó, quantas vezes

adormeci antes dele ou dei mingau queimado...

Coloca saia em pé/filho a sua frente

Ele teve que suportar a minha instabilidade, as mudanças de trabalho, de casa, de cidade...

(matriz tristeza + secura) mãos catam algo dentro da saia/filho.

Uma vez ficou um ano sem desfazer as malas, sem abrir o baú de brinquedos...

Abaixa-se à altura da criança, pega filho no colo, coloca pra ninar cantando (matriz obsessão

+ canto + doce, pés rastejam matriz umidade).

Canta a música Boi da cara preta, de autoria desconhecida:

Boi, boi boi

Boi da cara preta.

Pega esse menino, que tem medo de careta.

Não, não, não

Não pega ele não...

Ele é bonitinho ele chora coitadinho!

33. janela 6

Vai à janela olha a criança e joga-a. (matriz vazio) Anda de costas até o traço 1/box do

banheiro, vira-se pra ele.

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Page 349: Por uma TAO expressividade

34. banho

Coloca um pé na água, sente, coloca o outro e andando arrastando os pés na água. Pendura

elástico solto/toalha, dá dois passos e ao virar-se para frente sente água gelada, gesto e som de

água gelada (matriz vazio + frio denso). Vai lavando-se, lava o rosto, (matriz obsessão) e os

cabelos. Joga cabeça pra baixo e lava os cabelos, até ir subindo tronco, com cabelo no rosto.

Pega elástico solto/toalha como se fosse um chicote e dá impressão de um auto-flagelo.

Enxuga-se do pescoço aos pés, enquanto caminha para o centro. Pega traço a traço (elásticos),

unindo-os, enquanto sobe o corpo tirando o cabelo do rosto. Prende-os com o elástico solto e

abre a porta da noite/elástico solto.

35. noite + traços teia

(matriz descendente + sombrio)

Entrando no mundo noturno

O mundo noturno é cheio de lembranças, de sensações.

Enforca-se no elástico solto, agora preso aos traços unidos, e recua

Os fatos flutuam na escuridão, imprecisos...

Abaixando de joelhos, e em movimento de flutuação (matriz vento + leve) senta no chão.

Minha mente está começando a embaralhar as idéias...

Ainda no balanço frente e traz amarra os pés. Espreguiça, lutando contra o sono, amarrando as

mãos. Dorme balança a cabeça até imobilidade. Ao som de estouro acorda em salto e

assimetria. Percebe-se presa nos elásticos/teia e começa a tentar escapar, estica-se toda, tenta

soltar-se com força abdominal elevando o corpo, formas assimétricas com apoio da cabeça

(matriz outono + pele + tristeza). Pega nos fios laterais da teia joga joelhos pra frente, e

levanta-se. Prende-se nos fios frontais da teia, vira imagem de bicho (matriz

troncomembros).

Vivo separada do mundo por paredes grossas...

Toca a teia como uma parede.

349

Page 350: Por uma TAO expressividade

de um apartamento abafado. Um monstruoso interior de uma máquina de viver. Minha casa

fica entre um instante e outro, entre o passado e o futuro. Tem cortinas pesadas

Sente peso nas teias.

e o assoalho frouxo.

Queda. Começa balanço vertical, vai transformando na imagem de pássaro.

Tão frouxo... Mas como é que as pessoas dormem tranqüilas nesse edifício enquanto os

alicerces vergam e as vigas cedem, um milímetro por século, um século num milésimo de

segundo. A qualquer momento tudo pode desmoronar!

Crescente de movimento, indo para trás da teia, ainda presa, imagem de pássaro voando.

Preciso de uma casa nova! Preciso de uma casa nova! Preciso de uma casa nova!

36. telhado

Levanta a cabeça e constata, puxa teia pra si, olha pra baixo e constata:

Nunca estou no lugar onde pareço estar.

Abre teia, deslizando as mãos.

Meu corpo é manso, mas minha alma vive fugindo pelas janelas...

Vai andando.

Pelos silêncios, pelos espelhos, pelas escadas... até o último andar do edifício....

Sobe teia.

O telhado.

Solta teia.

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Page 351: Por uma TAO expressividade

O estado intermediário entre a terra e o céu!

Pisando na teia.

A cidade aos meus pés, as pessoas lá embaixo parecem fantoches, os sinais vermelhos, as

balas perdidas, os assaltos, as vitrines tudo que eu vejo nos jornais fica lá embaixo...

(matriz contraste altobaixo)

Seeeu Hilaaaaaaaaaaárioooooooooo! O queeeê? Que imagem? Ah!

Sai de cima dos elásticos/antena de TV

Desculpe!

Mexendo na antena.

O que? A contagem regressiva? Peraí! Sintonizou? Feliz ano novo!

Olhando os fogos de artifício no céu.

Mais um ano...

Olha pra baixo, vê a cidade.

Meus sonhos me escapando nas miudezas cotidianas.

37. asa delta + canto 6

Canta enquanto abre elásticos para entrar dentro. Música Solidão, de Tom Zé.

Solidão, que poeira leve

Solidão, olha a casa é sua

O telefone tocou, foi engano

Joga-se com elásticos/asa delta.

351

Page 352: Por uma TAO expressividade

(matriz expansão + luminoso)

Na vida, quem perde o telhado

Em troca recebe as estrelas

Pra rimar até se afogar

E de soluço em soluço esperar

A vida que sobe na cama

E acende o lençol

Sol lhe chamando

Solicitando

Corpo se soltando no espaço.

Uma parte de mim se desfaz, outra se despedaça, e os pedaços vão caindo sobre a cidade...

Solidão, que poeira leve

Solidão, olha a casa é sua

Voando sobre a cidade. Cai luz em resistência.

fim

B.4. Traços por André Amaro

Aqui transcrevo algumas laudas do diretor André Amaro sobre nosso processo

criativo. O presente texto integra o livro Teatro Caleidoscópio – o teatro por-fazer (2007),

que o artista escreveu com orientação parcial de Eugênio Barba, durante encontros da ISTA

(International School of Theatre Anthropology) e que trata de sua investigação da metáfora do

caleidoscópio para o corpo e a cena. Outras informações sobre o trabalho de André Amaro

352

Page 353: Por uma TAO expressividade

podem ser obtidas no site www.caleidoscopio.com.br. Segue seu texto, sobre nosso trabalho

conjunto:

Ainda em 2005, a atriz Alice Stefânia – que ajudara a fundar a Companhia Piramundo, nos idos dos anos 90 - propôs-me a direção de um trabalho no qual aplicaríamos princípios do universo taoísta como estímulos à criatividade e à expressividade, objeto de sua pesquisa de Doutorado na Universidade Federal da Bahia. A experimentação passaria inicialmente pela prática do chi kung – técnica milenar chinesa que visa o cultivo interior da energia – aplicada como meio de treinamento da concentração e da consciência energética do corpo. Em seguida, passaríamos a explorar a construção de diferentes dinâmicas corporais a partir da idéia de relatividade yin yang. Tínhamos, como referência, uma tabela de idéias opostas e complementares que compõem o vasto e milenar imaginário chinês: o frio e o quente, o profundo e o superficial, a contração e a expansão, a secura e a umidade, o denso e o sutil, o armazenar e o transportar, o medo e a raiva, entre tantas outras imagens de contrastes aparentes. ‘Ainda que tudo possa ser compreendido a partir da noção de um duplo, as proporções entre as partes não são estáveis, nem equivalentes. Tratam-se de variáveis que oscilam no tempo e no espaço, prenhes do ritmo, da pulsação inerente ao universo e suas manifestações’, observa a atriz em sua pesquisa. A Teoria wu hsing relacionada às cinco energias ou estados de movimento – terra, fogo, água, metal e madeira – associadas, por sua vez, a um largo repertório de atributos, imagens, símbolos, sabores, emoções, cores, zonas corporais, formas de expressão, seriam agregados ao processo criativo como meios auxiliares na construção de parâmetros físicos e dos estados emocionais/afetivos/sensoriais correspondentes.

Além destas ‘fontes de alto poder sugestivo’ utilizadas na exploração do potencial psicofísico do ator e na construção de sua expressividade, contaríamos ainda com um outro componente para a concepção do trabalho: trechos do livro Noturnos (contos, 1999) e curtas passagens da novela Clarice (1996), ambos escritos pela poeta e romancista cearense Ana Miranda. Em Noturnos, principal obra consultada, uma mulher se vê às voltas com o mundo que a rodeia; no alto de um edifício, confinada em seu apartamento, ela repassa silenciosamente o testemunho solitário da sua vida. Alice fez a primeira extração de textos. O material seria usado na composição dramatúrgica da peça. Selava-se assim o nosso desafio: contar a história daquela mulher desenhada poeticamente por Ana Miranda, agora segundo uma dramaturgia e uma poética cênica, utilizando movimentos e expressões criados sob a inspiração da simbologia taoísta.

Dedicamos nosso tempo inicial explorando repetidamente as dinâmicas corporais desenvolvidas com base no wu hsing e no yin yang. A cada ensaio, Alice criava dinâmicas variadas com raro domínio corporal. Estava diante de uma atriz de ilimitadas possibilidades. No exercício criativo de seus recursos físicos, inclusive vocais, demonstrava nítida vocação caleidoscópica, o que me açodou o ânimo de imediato.

O próximo passo foi explorar aquelas dinâmicas, não mais como isoladas representações físicas de conceitos, sensações e imagens extraídas do palavrório taoísta, mas como um conjunto de mecânicas corporais a serviço da ação do personagem. Ou seja: o corpo, ao se movimentar e se expressar segundo uma determinada matriz, deveria também atuar, agir. Partimos então para a etapa seguinte: descobrir as ações que enredariam o drama daquela mulher solitária. Fomos aos textos de Ana Miranda escolhidos por Alice e ali vislumbramos alguns caminhos, aplicando – sempre que compatíveis - as dinâmicas desenvolvidas. De outra feita, foram os gestos ou desenhos corporais contidos naquelas matrizes que passaram a evocar, por associação, outras ações. Exemplo: o corpo curvado, caminhando nas pontas dos pés, os braços esticados e as mãos apontadas para o chão, numa dinâmica inspirada na idéia de ‘profundo’, converteu-se na postura – ou partitura física - do personagem ao perseguir o seu gato de estimação. O movimento de levantar os ombros construído a partir da palavra ‘frio’

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remetia tanto à reação de susto provocada pelo toque de um telefone quanto à reação à água fria de uma ducha sobre o corpo.

Depois de boa parte da peça desenhada, algumas matrizes – sem vínculo inicial com o universo taoísta – foram ainda utilizadas por Alice como uma espécie de sub-partitura, de sub-texto para ‘preencher’ algumas ações, a exemplo da cena em que a personagem recorda os filhos (idéias de vazio e cheio) e da cena em que ela se observa no espelho (inibição e excitação). Estas matrizes serviram, ao mesmo tempo, de ‘tonificadores’ da corporeidade da ação criada, como na cena em que estira e recolhe seu corpo ao despertar pela manhã (contração e expansão); na cena em que um fio preso ao sapato retém seus passos (leve e pesado); quando fala com os vizinhos pela janela (interior e exterior) ou quando utiliza o olhar para relacionar-se com a poeira da casa (recepção e penetração).

Diferente de uma adaptação, esse processo de ‘transcriação’ - como define Alice – põe à prova a capacidade poética da dramaturgia e da encenação. Criamos para o espaço cênico um território simbólico, opção para romper o realismo e elevar a encenação a uma poética igualmente delicada, minimalista, cheia de sutilezas. Fios elásticos – remissão aos fios de um ambiente doméstico: o fio do telefone, a linha de costura, o varal de roupas ou mesmo o ‘rabo cada vez mais longo e denso’ do passado - cruzavam o palco e depois se entrelaçavam para compor a teia noturna onde a protagonista, embalada pelo ranger dos alicerces do edifício, envergava seu sono. Serviram, ainda, para compor as asas de um planador com as quais, já no final da peça, ela se arremessava do alto do edifício, num vôo libertador sobre a cidade. Objetos foram inseridos no espaço como auxílio à interpretação, numa construção sucessiva de imagens e significados, gerando uma dinâmica visual de familiaridade caleidoscópica. O tratamento plástico do cenário, figurino e objetos cênicos coube à sensibilidade da artista plástica Malu Fragoso, que usou o verde e o vermelho – complementares no círculo das cores – numa apropriação igualmente criativa dos princípios opostos do yin yang. A encenação ganhou ainda mais vivacidade com o acompanhamento sonoro, percussivo, talismânico de Lupa Marques (do Grupo ‘Casa de Farinha’).

O mais interessante – recorrendo ao testemunho de Alice - foi perceber ‘a importância de prescindir, em vários momentos, do texto, propriamente, de Ana Miranda, em nome de suas ambiências ou sugestões. A dramaturgia foi redimensionada, recriada no conjunto do texto com o corpo, as ações, os objetos e cenário transformados, os sons, a luz... Difícil abrir mão de tantas belas palavras e construções poéticas, mas foi fundamental acreditar na poética cênica que criamos e que, no fim das contas, descobrimos tão fiel aos contos de Miranda!’. Sim, havíamos construído, nas pegadas do tao – sinônimo aqui de ‘caminhar espontâneo que dá às coisas a sua perfeição’ – um belo espetáculo a que chamamos de Traços ou Quando os alicerces vergam. Apresentada em outubro de 2006, a montagem – que ganhara o prêmio Myriam Muniz concedido pela Funarte - chamou a atenção da crítica. O jornalista Sérgio Maggio, do Correio Braziliense, escreveu:

JORRO DE CRIATIVIDADE: Alice Stefânia emociona e surpreende em belo espetáculo. A concepção do teatro como o caleidoscópio inunda o palco no espetáculo Traços ou Quando os Alicerces Vergam. Com Alice Stefânia, alguns objetos de cena e o músico Lupa na sonoplastia, André Amaro monta uma das peças mais criativas da temporada 2006 em Brasília. A cada seqüência, esses elementos constroem inusitadas possibilidades de interpretação para a platéia. O mote parte da obra Noturnos, de Ana Miranda. Mulher solitária que vive entre o limiar das ações físicas do cotidiano e do delírio. Trabalha com lembranças que são recriadas de forma inesperada, a partir de dramaturgia de movimentos. Numa das mais belas seqüências, Alice Stefânia contracena com uma camisa masculina, valsa com a peça e recompõe

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os carinhos do amante. Em outra, banha-se em bacia, em sincronia com os sons criados ao vivo por Lupa. O texto de Ana Miranda pontua o espetáculo, sendo parte de dramaturgia criada no somatório dos elementos. Quando surge, é imperativo pela fluidez e beleza com que é interpretado por Alice Stefânia. A atriz brinca com o corpo numa leveza que reflete seus estudos acadêmicos (ela faz doutorado na Bahia, onde pesquisa relação entre movimentos opostos, como yin/yang, quente/frio, seco/úmido) Com a ajuda de elásticos (aqueles com que as meninas brincam na infância), traça mosaicos curiosos e emocionantes dentro de cenário inteligente, que se molda à proposta. Realçado numa iluminação narrativa e precisa de André Amaro, o espetáculo reapresenta a Brasília Alice Stefânia, atriz de infinitas possibilidades, que ao final canta lindamente Poeira Leve, de Tom Zé. (28 de outubro de 2006)

Chico Simões, conhecido bonequeiro da cidade, também deixou seu comentário:

Chovia, pensei que não haveria público, mas quase não encontro ingresso, bom sinal, Teatro Caleidoscópio, pequeno, lotado, aconchegante. Chamou-me atenção o cartaz, o vermelho e o preto, pé de galinha? Linhas... Traços... Ou Quando os Alicerces Vergam, vamos ver: adaptação de obra literária... Monólogo... Mulher de meia idade, solitária, delirando...

A atriz, Alice Stefânia, pouco a pouco desenha com o corpo e na relação com os objetos ações dramáticas que afastam qualquer lembrança de tantos outros monólogos e adaptações que tenho visto. Alice constrói, contraditoriamente, com o fio condutor, um labirinto onde, enquanto a personagem se perde, o espectador vai se encontrando no caminho traçado com rigor e simplicidade, marca já conhecida, do diretor, também ator, André Amaro, provando que por mais que se espere o teatro ainda pode surpreender, teatro que se faz a muitas mãos, mas que é arte do ator e Alice o exerce com completo domínio; de corpo, voz e ainda cantando bem, muito bem. Cenário e figurino não seguem o cotidiano formal nem exageram no ‘teatral’; antes, parecem ser objetos de arte - modelos desenhados, a propósito, pela artista plástica Malu Fragoso - que compõem com o corpo da atriz e o espaço cênico um belo quadro, um apartamento, um quadrado. Da janela, uma luz, almas vivas, vizinhos que não vemos, nem ouvimos, mas sabemos; estão lá. O diretor também está lá, mantendo a tensão necessária com o espectador, sem perdê-lo e sem envolvê-lo demasiadamente em uma história que ele veio apenas ‘assistir’.

A trilha sonora merece comentário à parte, aliás, a trilha faz jus ao significado: senda, vereda, caminho sonoro por onde o teatro se passa. Lupa Marques, o mago da Casa de Farinha, literalmente ‘encantado’ segue cada ação, cada gesto da personagem, improvisando músicas e sons onomatopéicos como convém a quem muito sabe: in-pró-visar.

A cena em que a camisa do marido ausente é lavada e pendurada no varal é exemplar, nela o teatro salta aos sentidos do espectador mais exigente, sons e imagens bem escolhidas propõem, sem impor, leituras particulares de símbolos universais reunidos em uma seqüência dramática, precisa e inteligente; lavar roupa (purificar) pendurar no varal (expor a luz, espiar) e interagir com a peça estendida (comungar) criam uma atmosfera perfeita para o texto que evoca o sacrifício da personagem que morre e  ressuscita a cada instante.  O jogo entre a atriz e a camisa pendurada no varal é teatro de animação para bonequeiro nenhum botar defeito; ali a camisa se transforma

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no dono, que salta da memória da personagem para os sentidos do espectador materializado como boneco de manipulação direta. Isso é teatro, sem os excessos histriônicos tão comuns na cena contemporânea mundial, teatro essencial, sem mais adjetivos. Ainda é tempo! Ainda há teatro! (25 de outubro de 2006)

No final de tudo, Alice me perguntou: - Tudo funcionou porque a proposta é mesmo potencialmente fomentadora de construções expressivas, extra-cotidianas, ou você acha que eu sou uma atriz que teria criado coisas parecidas independentemente dessa pesquisa ancorada no universo taoísta? Não tenho dúvida de que o corpo de Alice – como matéria-prima da modelagem teatral - é um campo seguro para a exploração de construções físicas expressivas e extra-cotidianas; carrega uma qualidade de consciência que o torna apto a enfrentar qualquer processo criativo, sobretudo os que valorizam a matéria corporal como elemento de manipulação estética. Teria criado, em outras circunstâncias, coisas parecidas ou completamente diferentes a depender dos estímulos propostos. Seu embasamento técnico é anterior à forma como organiza seu material ou como este se adapta à encenação. É verdade também que as teorias e o simbolismo que habitam a sabedoria taoísta se oferecem como ricos estímulos ao surgimento de uma dança corporal expressiva, mas não me parecem os únicos responsáveis por ela. Um sistema cognitivo ágil e a capacidade de decodificar signos (palavras, imagens) corporalmente com precisão e beleza me parecem agentes transformadores tão preponderantes no processo de criação como a substância de que se nutrem. Não é a simbologia taoísta que associa yin à substância e yang ao funcionamento? Devem estar em perfeito equilíbrio, pois um depende do outro. E nesse caso, o ‘motor psicofísico’ de Alice - seu nível pré-expressivo, usando a terminologia de Barba - tem avançada tecnologia para processar as mais variadas substâncias, sejam elas criadas pelo pensamento taoísta ou por qualquer outro conteúdo simbólico. Um corpo-mente que ‘funciona’ bem.

Em resumo: a expressividade de Alice - resultado do estímulo aplicado - é desenvolvida sobre uma cultura corporal anteriormente adquirida e ela a possui como afortunada ferramenta de trabalho. Uma ferramenta que até pode ter sido talhada na prática do chi kung ou dos preceitos taoístas, mas que ganhou funcionalidade mais ampla, até para lidar com outros estímulos igualmente criativos. Bastariam, por exemplo, uma palavra, uma frase, um poema, uma imagem fotográfica para ver seus recursos físicos e mesmo interpretativos convergirem para a esteira da criatividade ou, nas suas palavras, para construções expressivas e extra-cotidianas. Esta é uma das razões pelas quais tudo funcionou bem, entre outras que considero igualmente importantes: o campo poético proporcionado pela literatura de Ana Miranda, a utilização do espaço cênico segundo uma visão caleidoscópica (sucessão de imagens imprevisíveis a partir do corpo e sua interação com outros elementos cênicos) e a presença de uma cumplicidade silenciosa do grupo – afetiva e profissional - que reforçava nas entrelinhas a idéia do tao: ‘cada coisa tem seu modo espontâneo e natural de ser. E todas as coisas são felizes desde que evoluam de acordo com a sua natureza. (AMARO, 2007: 162-170)

Esse testemunho vem de um artista cuidadoso e talentoso, a quem muito admiro e

agradeço. Um artista que generosa e intuitivamente – em fluxo, em wu wei – aceitou

participar de um projeto quando este ainda não contava com qualquer verba, sobre o qual

tinha pouquíssimas informações, com uma atriz que havia visto em cena uma ou duas vezes, e

que há dois anos estava fora da cidade. Com o tempo ele abraçou e assumiu o trabalho como

seu também, e, para além do “produto” peça, ele muito contribuiu nessa etapa da pesquisa.

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