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ANÁLISE ANTROPOLÓGICA QUANTO AO FENÔMENO RELIGIOSO- MÁGICO JOENILDO FONSECA LEITE

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ANÁLISE ANTROPOLÓGICA QUANTO AO FENÔMENO

RELIGIOSO-MÁGICO

JOENILDO FONSECA LEITE

Uberlândia - MG2004

JOENILDO FONSECA LEITE

ANÁLISE ANTROPOLÓGICA QUANTO AO FENÔMENO

RELIGIOSO-MÁGICO

Uberlândia - MG2004

2

LEITE,J.F. Análise antropológica quanto ao fenômeno religioso-mágico. 2004. 89 f. Uberlândia-MG.2004.

3

Dedico este trabalho de pesquisa Àquele

que por mim entregou-se para morrer em

meu lugar, meu Senhor e Salvador JESUS

CRISTO.

4

AGRADECIMENTOS

A minha amada esposa Simone Crispim de

Souza Fonseca, que por longos dias teve

que ser mãe e pai para os nossos filhos,

Gabriel e Gabrielle, enquanto, trabalhava

nesta pesquisa;

Aos meus pais, Joel Pereira da Fonseca e

Eni Leite Fonseca, sem eles nada seria;

As comunidades Afro, Templos religiosos,

Associações, e lideranças que serviram

como campo de pesquisa científica;

Aos Mestres que no dia-a-dia contribuíram

para o aprimoramento final do trabalho;

EPÍGRAFE

“Religião significa a

relação entre o homem e o poder sobre-humano

no qual ele acredita ou do qual se sente dependente.

Essa relação se expressa em

emoções (confiança, medo),

conceitos (crença) e

ações (culto e ética).”

C. P. Tiele (1830-1902)

SUMÁRIOI Introdução....................................................................................................... 8

II Antropologia .................................................................................................. 9

2.1 Antropologia – O estudo da Humanidade ........................................ 9

2.2 A utilidade da Antropologia ............................................................... 10

2.3 As qualidades distintivas da Antropologia ....................................... 11

2.4 O estudo da humanidade como um todo ........................................... 11

2.5 O conceito de cultura .......................................................................... 12

III Subdivisões da Antropologia ........................................................................ 13

3.1 Antropologia Física ............................................................................. 13

3.2 Antropologia Cultural ........................................................................ 13

IV O Fenômeno Religioso-Mágico segundo Luiz Gonzaga de Mello ............. 15

4.1 Considerações Iniciais ........................................................................ 15

4.2 Conceito de Religião ........................................................................... 16

4.3 Teorias de Religião .............................................................................. 20

4.3.1 Teorias Psicológicas ............................................................................ 21

4.3.2 Teorias Sociológicas ............................................................................ 24

4.3.3 A mentalidade primitiva de Levy-Bruhl ........................................... 26

4.4 Outros tópicos no Estudo do Fenômeno Religioso ........................... 28

4.4.1 Religião e Cosmovisão ........................................................................ 29

4.4.2 Ritos de passagem e outros ritos ........................................................ 30

4.4.3 Totemismo ........................................................................................... 33

4.4.4 Xamanismo, Êxtase e Possessão ......................................................... 36

V O Etnema Religioso-Mágico segundo Bernardo Bernardi ........................ 40

5.1 O Etnema religioso-mágico e o ambiente .......................................... 43

5.2 O Teísmo silvestre ............................................................................... 45

5.3 O Teísmo agrário ................................................................................ 49

5.4 O Teísmo Pastoril ................................................................................ 51

5.5 A Estratificação hierárquica dos espíritos ........................................ 52

5.6 O Culto em geral ................................................................................. 53

5.7 Mediação e culto: Os Sacerdotes ....................................................... 56

5.8 A Adivinhação: O Adivinho ............................................................... 58

6

5.9 A Feitiçaria: O Feiticeiro .................................................................... 59

5.10 Conservação e Reforma: O Profeta ................................................... 61

5.11 Os Movimentos de Reforma Religiosa .............................................. 63

VI O Fenômeno Religioso-Mágico como Sistema Cultural, segundo

Clifford Geertz. ..............................................................................................

66

VII Religião e Mística, segundo Jean-François Catalan ................................... 71

7.1 A Mística e as Religiões ...................................................................... 71

7.2 Orientações diferentes ........................................................................ 73

VIII A Maturidade Religiosa presente no Fenômeno Religioso-Mágico .......... 75

IX CONCLUSÃO ............................................................................................... 81

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................ 83

ANEXOS ........................................................................................................ 84

I A Dinâmica Magia/Religião............................................................... 85

II Características da Maturidade Religiosa .......................................... 86

III O espírito e a alma. Objetos de investigação científica .................... 87

IV A religião como fato psicológico ........................................................ 88

7

I INTRODUÇÃO.

Em nosso mundo, tido como secularizado, período em que vivemos uma nova era

sistemática, influenciada pela globalização e pela síndrome da pós-modernidade, que avança

assustadoramente para a pós-cristandade, presente já em várias parte do globo, percebemos

que mesmo diante de tão emergente avanço científico em todas as áreas ainda denuncia a

indiferença religiosa e o abandono das práticas tradicionais, há homens, mulheres, jovens e

velhos que continuam a crer, que dirigem suas preces a Deus, aderem a uma religião. Outros,

no entanto, recusam qualquer crença religiosa ou parecem desinteressar-se delas. Surge assim

uma questão, dirigida a todos interessados no assunto em voga que se interrogam sobre essa

situação de fato e se perguntam qual é a sua significação exata. Dentre muitos citamos Freud,

Luiz Gonzaga de Mello, Bernardo Bernardi, Ralph Linton, Clifford Geertz, Jean-François

Catalan, Orlo Strunk Jr, Jung, Fromm, James, Allport, Frankl, que procuraram através de seus

artigos literários esgotar a questão em pesquisa.

No entanto nossa intenção é que inspirados nos trabalhos desses autores, tentamos

traçar algumas pistas, balizar o caminho, oferecer alguns pontos de referência, por onde,

veremos a princípio alguns conceitos fundamentais de propriedade da área antropológica,

destacando suas utilidades, qualidades distintivas, subdivisões, partindo daí para uma análise

antropológica quanto ao fenômeno religioso-mágico, sob os diversos olhares científicos,

procurando destacar em cada um deles os pontos cruciais, e assim expormos a veracidade dos

fatos relacionados à religião, ritos, mitos, possessões; trabalhando a questão etnema religioso,

com os teísmos existentes, a conservação e reforma religiosa, prosseguindo para uma

discussão quanto a classificação como sistema cultural, confrontando religião e mística,

chegando então a uma maturidade religiosa presente no fenômeno religioso-mágico.

“ A [religião ]pura e imaculada diante de nosso Deus e Pai é esta: Visitar os órfãos e as

viúvas nas suas aflições e guardar-se isento da corrupção do mundo.”

(S. Tiago 1:27)

8

II ANTROPOLOGIA.

2.1 Antropologia – o Estudo da Humanidade.

É uma característica do ser humano desejarem as pessoas se conhecer a si mesmas. Por

isso, mesmo sem outro motivo a não ser dar satisfação à nossa curiosidade de investigação, a

humanidade merece ser estudada por si mesma. Entretanto, existem mais possibilidades no

estudo da humanidade. Uma compreensão aprofundada de nós mesmos, adquiridos por nós

mesmos, pode aumentar nossas capacidades básicas de orientar o nosso futuro com maior

inteligência a respeito do destino que queremos atingir e sobre a maneira de o alcançarmos.

Conhecendo a humanidade, podemos compreender mais eficientemente os problemas

humanos e o modo de enfrentá-los.

A antropologia tem poucas respostas finais, mas projeta a luz do fato e da razão em

muitas questões prementes.

Há, por exemplo, universais no comportamento da humanidade? A família é

necessária? Há maneiras “melhores”, isto é, mais felizes e mais satisfatórias socialmente de as

pessoas amadurecerem e criarem os filhos do que as que a família nuclear contemporânea

oferece? Há uma maneira melhor de utilizar o nosso ambiente e os nossos recursos naturais do

que a de que estamos sendo testemunhas em início do século XXI? É sensato promover uma

agricultura mais eficiente, medidas modernas de saúde e de saneamento, tecnologia avançada,

a monogamia, o planejamento familiar, uma educação mais elevada em áreas e sociedades

que existem de há muito sem tudo isso? Há denominadores comuns nos valores humanos e

nos sistemas de controle social que tornam possível o ideal de uma lei mundial? Ou há um

instinto básico agressivo, “imperativo territorial”, ou outro fator profundamente arraigado que

torna a consecução dessa finalidade totalmente inexeqüível? A violência é onipresente? A

guerra é inevitável? Quando os seres humanos saem a colonizar novos mundos no espaço, há

normas ou valores da passada Idade Glacial e do presente caótico – os cinco milhões de anos

da experiência humana – que eles devam levar consigo? Em caso afirmativo, quais são essas

normas e esses valores?

Os antropólogos chegaram agora a um conhecimento bem definido de como eram os

seres humanos primitivos; sabe-se até mesmo bastante sobre seus processos de pensamento,

suas criações, suas “religiões”, se assim nos podemos expressar. É de esperar que o futuro

veja transformações igualmente radicais na psique humana, na fisionomia, na capacidade do

9

cérebro? Ou os seres humanos estão agora biologicamente “completos”, “acabados”? Já

“foram até onde podiam ir”, falando do ponto de vista da evolução?

A propósito, que é o homem? Um “macaco nu”, como lhe chama um famoso

zoólogo?1

Que é que o separa do resto do mundo animal? O uso de instrumentos? O

desenvolvimento da linguagem? Certa tendência para a religião? .

2.2 A utilidade da antropologia.

Vê-se a utilidade e a relevância da Antropologia na busca geral de um conhecimento

mais profundo da natureza humana e de seu comportamento pelo rápido desenvolvimento que

ela teve como disciplina acadêmica.

Além do seu avanço nos meios acadêmicos, nas escolas secundárias e até em escolas

elementares, tanto os métodos quanto os conceitos da Antropologia têm causado um impacto

visível nas ciências naturais e físicas, nas ciências sociais, nos negócios e no Governo.

Termos como “cultura primitiva”, “relatividade cultural”, “método comparativo’ e “choque de

cultura” não são mais de propriedade especial dos antropólogos. O Corpo da Paz tem

recentemente infundido nos seus voluntários as culturas básicas dos povos que eles procuram

ajudar.

A Antropologia Cultural é agora amplamente aceita e é considerada indispensável para

o treinamento de profissionais de saúde pública; foi reconhecida ultimamente pelos Institutos

Nacionais de Saúde dos Estados Unidos como ciência básica, relacionada com a Medicina.2

Mudar os métodos de uma sociedade conseguir alimentos, modificar seus hábitos

alimentares, suas práticas de saneamento e o tamanho de sua família ideal não são projetos

que podem ser levados a efeito com facilidade, mesmo para finalidades tão elevadas como

maior longevidade, melhor saúde e menos sofrimento físico.

Mas a Antropologia tem outras finalidade e funções e causa outros prazeres além de

fornecer orientação àqueles que iriam transformar o mundo. Basicamente, sua finalidade é

explorar a natureza do homem, como criatura que está em evolução, criatura presa a uma

cultura, vivendo em sociedades organizadas – cada indivíduo diferente do outro, mas

semelhante sob muitos aspectos.

1 D. Morris, The Naked Ape.2 B.D. Paul, “Teaching Anthropology in Schools of Public Health”, in D.G.Mandelbaum, G.W. Lasker, e E.M. Albert (orgs.), The Teaching of Anthropology, p. 503.

10

2.3 As Qualidades Distintivas da Antropologia.

A humanidade é uma parte da natureza – do universo com todos os seus fenômenos. O

estudo da humanidade, chamado Antropologia (Gr. , homem + estudo),

quando seguido de acordo com os princípios e métodos científicos, é conseqüentemente uma

ciência natural. Um de seus ramos trata da origem evolutiva, da estrutura física e dos

processos fisiológicos da humanidade. Mas a Antropologia abrange muito mais do que apenas

o estudo da história natural da natureza física do homem, porque o ser humano é também um

animal que produz cultura. Por isso, a Antropologia é a ciência da humanidade e da cultura.

Como tal é uma ciência superior social e comportamental, e mais, na sua relação com as artes

e no empenho do antropólogo de sentir e comunicar o modo de viver total de povos

específicos, é também uma disciplina humanística.

Os antropólogos estudam os seres humanos onde quer que os encontrem – nas neves

árticas ou nas regiões desérticas; nas planícies temperadas, nas regiões florestais e nas selvas

verdejantes. Buscam seus restos nos locais pré-históricos, e realizam estudos de campo ao

vivo sobre as aldeias primitivas e sobre os ambientes urbanos das civilizações modernas. A

Antropologia se ocupa tanto do homem fóssil como das pessoas vivas. Ela, na palavra de

Clyde Kluckhohn, “apresenta um grande espelho ao homem e deixa que ele olhe a si mesmo

na sua infinita variedade”.3

As fronteiras da Antropologia vão desde os relatórios de pesquisa até as análises

profundas do que se encontra atrás das aparências, até as questões da evolução humana, da

motivação, da estrutura social, e da função.

2.4 O estudo da humanidade como um todo.

Em primeiro lugar, a Antropologia fixa como seu objetivo o estudo da humanidade

como um todo. Nenhuma outra disciplina especializada, professa pesquisar sistematicamente

todas as manifestações do ser humano e da atividade humana de uma maneira unificada.

O ser humano é um animal que cria cultura e está preso a uma cultura. Segundo o

geneticista Theodosius Dobzhansky “a evolução humana só pode ser entendida como produto

3 C. Kluckhohn, Mirror, for Man, p. 11.

11

da interação destes dois desenvolvimentos”4. Aqui está a unidade biológica e social da

humanidade. Uma proposição fundamental da Antropologia é que nenhuma parte pode ser

entendida plenamente, ou mesmo com exatidão, se separada do todo. E, de modo inverso, o

todo não pode ser percebido com exatidão sem um conhecimento profundo e especializado

das partes. Para compreender qualquer aspecto do comportamento sexual humano, por

exemplo, deve-se examina-lo em termos de genética, fisiologia, características climáticas,

sistema de valores e estruturas técnicas, econômicas, de parentesco, religiosas e políticas de

cada sociedade humana. A Antropologia toca em virtualmente todos os campos possíveis do

conhecimento, aproveita-se deles e neles se inspira. A unidade da disciplina é mantida pela

concentração no caráter global do homem e da cultura.

2.5 O conceito de cultura.

A segunda característica distintiva da Antropologia o seu desenvolvimento do conceito

de cultura e a importância deste conceito no pensamento antropológico. Cultura é o sistema

integrado de padrões de comportamento aprendidos, os quais são característicos dos membros

de uma sociedade e não o resultado de herança biológica. É o resultado da invenção social e é

transmitida e aprendida somente através da comunicação e da aprendizagem.

Estes são os componentes essenciais do conceito de cultura, tal como o termo é

correntemente usado pela maioria dos antropólogos. Outras formulações são, naturalmente,

possíveis. Assim, Kroeber e Kluckhohn, depois de examinar e avaliar umas quinhentas

formulações e empregos do conceito, deram a seguinte definição: “A cultura consiste em

padrões, explícitos e implícitos, de comportamento e para comportamento, adquiridos e

transmitidos por símbolos, que constituem as realizações distintivas dos grupos humanos,

inclusive suas incorporações em artefatos; o núcleo essencial da cultura consiste nas idéias

tradicionais (isto é, recebidas e selecionadas historicamente) e especialmente nos valores que

se lhes atribuem; por outro lado, os sistemas de cultura podem ser considerados como

produtos de ação e também como elementos condicionantes de ação futura”5.

4 T. Dobzhansky, “Evolution: Organic and Super-organic” (The Rockfeller Institute Review, vol. 1 nº 2, 1963), p. 1.5 A. L. Kroeber e C. Kluckhohn, Culture: A Critical Review of Concepts and Definitions, com permissão de Papers of the Peabody Museum of American Archaeology and Ethnology, Harvard Universisty, vol. 47, 1952, p. 181.

12

III SUBDIVISÕES DA ANTROPOLOGIA.

A Antropologia é tão diversificada que, para alcançar precisão, seus profissionais

devem necessariamente especializar-se. Os dois aspectos essenciais da Antropologia são o

biológico e o cultural; daí, suas duas subdivisões principais, 1. Antropologia Física e 2.

Antropologia Cultural. Cada uma dessas subdivisões tem, por sua vez, grande número de

subdivisões especializadas.

3.1 Antropologia Física.

O ser humano é antes de tudo um organismo biológico, e, só secundariamente, um

animal social. O estudo da natureza do organismo humano através da Antropologia Física é,

portanto, básico para entender a natureza do ser humano. O objetivo da Antropologia Física é

desenvolver um conhecimento preciso do corpo com referência às características biológicas

das populações, antigas e modernas. Naturalmente, só através do estudo de pessoas vivas ou

recém-falecidas é que os antropólogos físicos podem conhecer a estrutura, o crescimento e a

fisiologia do corpo humano nos seus mínimos detalhes.

3.2 Antropologia Cultural

Este ramo da Antropologia, que trata das características do comportamento civilizado

nas sociedades humano passadas, presentes e futuras, é conhecido como Antropologia

Cultural. Esta, por sua vez, tem muitas subdivisões, das quais as mais notáveis são a

arqueologia, a etnografia, a etnologia e a antropologia social.

A Antropologia Cultural tem, por seu lado, um campo de interesse muito mais amplo

que as disciplinas afins no campo das ciências sociais e das humanidades, cada uma das quais

apenas se ocupa de um segmento da atividade humana. O antropólogo cultural estuda em

geral povos que se acham fora da corrente da história cultural européia, e procura investigar,

até onde for possível, um determinado corpo de costumes, como um todo. Ou, se concentra

sobre um aspecto dessa cultura, seu objetivo principal é a análise da inter-relação desse

aspecto com as outras fases da vida do povo. Ao visar uma cultura em seu conjunto, estuda a

sua tecnologia e a vida econômica, as instituições sociais e políticas, a religião, o folclore e a

arte. Ademais, não se limita a analisar cada um desses aspectos para distingui-los dos outros,

13

mas considera-os como formando um sistema funcional que adapta o povo a seu meio.

Vemos aqui como o antropólogo difere do economista, do político teórico, do sociólogo, do

que se dedica ao estudo comparado das religiões, da arte ou da literatura.

As religiões só sobrevivem pela arte; só ela torna os deuses verdadeiramente imortais – dando-lhes forma - Eça de Queirós.

Mas na história não se encontra nenhuma religião sem Igreja... Não existe uma Igreja mágica. Émile Durkheim.

Não é fácil compreender por que um instinto humano profundamente radicado deveria ter necessidade de ser reforçado pela lei. S. Freud.

Qualquer tentativa de falar num idioma particular não tem maior fundamento que a tentativa de ter uma religião que não seja uma religião em particular... Assim, cada religião viva e saudável tem uma idiossincrasia marcante. Seu poder consiste em sua mensagem especial e surpreendente e na direção que essa revelação dá à vida. As perspectivas que ela abre e os mistérios que propõe criam um novo mundo em que viver; e um novo mundo em que viver – quer esperemos ou não usufruí-lo totalmente – é justamente o que desejamos ao adotarmos uma religião. Santayana, Reason in Religion.

14

IV - O FENÔMENO RELIGIOSO-MÁGICO SEGUNDO LUIZ

GONZAGA DE MELLO.

4.1 Considerações Iniciais.

Mesmo não ocupando um lugar de realce igual ao tema do parentesco, não se pode

dizer que a religião não tenha despertado o interesse dos etnólogos. Não há dúvida de que o

assunto atinente à religião e à magia sempre mereceu a atenção dos antropólogos desde o

início. Talvez isso se deva ao fato de ter sido no campo religioso onde os estudiosos

encontraram maior soma de exotismo. Um outro fator que deve ter influído nesta preocupação

com os temas religiosos talvez tenha sido o clima intelectual do século XIX. Era muito

comum, então, contrapor ciência à religião, razão à fé. O clima intelectual da época era mais

ou menos de acordo com o esquema comtiano da “lei dos três estados”. Como é sabido,

Comte acreditava que a humanidade, em geral, passara por três estados diferentes de

pensamento lógico. O primeiro desses estados teria sido o teológico em que os homens

explicavam tudo pela fé ou pelas razões religioso-místicas; o segundo estado, o filosófico,

aquele período em que os homens evoluíram um pouco e passaram a dar explicações

metafísicas para as questões fundamentais que enfrentavam; por fim, vinha o terceiro estado,

o científico ou positivo, em que o homem, abandonando as explicações mirabolantes da

religião e os sofismas da metafísica, passou a preocupar-se com as explicações factuais do

conhecimento experimental.

Com pequenas variações, este era o quadro em que se colocara a religião. De certo

modo, os estudos etnográficos sobre o assunto vieram, por assim dizer, corroborar no

julgamento que se fazia da atividade religiosa em geral. Contudo, pode-se perceber que os

antropólogos podem ter sido influenciados por estas concepções nos seus estudos sobre o

exotismo religioso dos povos simples ou de pequena escala. Isto quer dizer que alguns

antropólogos ao estudarem o tema iam, de antemão, armados de preconceitos contra as

práticas religiosas “selvagens”. Os pressupostos evolucionistas, portanto, levaram muitos

estudiosos a verem na atividade religiosa uma das atividades mais antigas e rudimentares da

humanidade. A preocupação dominante era, pois, analisar ou descobrir a origem da religião.

Esta visão, contudo, foi-se modificando e hoje a antropologia cultural conta com

muitos estudos sobre o assunto. A visão funcionalista, apesar de suas limitações, veio

acrescentar alguma coisa ao estudo da religião. A tradição americana com os seus trabalhos de

15

campo também trouxeram muita contribuição e subsídio ao estudo do tema. Ultimamente, os

estudos antropológicos sobre a religião têm dado muita atenção ao seu caráter simbólico.

Este trabalho propõe-se oferecer um quadro geral dos temas ligados à religião e

tradicionalmente tratados pelos manuais e ensaios antropológicos. Os temas principais ligados

ao assunto “religião” são, religião e magia, ritual e doutrina (rito e mito), totemismo,

xamanismo, etc. aqui acrescentaremos alguns tópicos que dizem respeito a temas ligados ao

Brasil e à sua realidade, tais como: religiões populares e cultos afro-brasileiros.

4.2 Conceito de Religião.

O conceito de “religião” está muito relacionado com o quadro de referência teórica

utilizado. Muitas tem sido as definições apresentadas. Muitos foram os estudos até agora

realizados sobre o assunto e longe se está de chegar a um consenso. Contudo, a antropologia

cultural já conta com lastro razoável que permite relacionar uma série de tópicos e teorias a

respeito do assunto. Não são estudos conclusivos, mas já se fez muito progresso. Depois de

analisar as várias teorias sobre a “religião”, Evans-Pritchard não parece muito otimista como

se pode observar no texto abaixo:

...devo admitir que não encontro, no conjunto das diferentes teorias que revisamos, quer em cada uma delas, isoladamente, quer no todo, muito mais do que simples especulações do senso comum, o que, na maioria das vezes, erra o alvo.6

Não resta dúvida de que o autor está sendo pessimista demais. Afinal, não há leis tão

seguras no comportamento humano. O problema, ao nosso ver, é que o isolamento da religião

deve ser visto como um recurso didático e metodológico e nunca como uma atividade isolada

dentro do padrão geral da cultura. Como já se viu, não é fácil separar o parentesco da vida

política nem econômica dos povos de pequena escala. Nas sociedades modernas torna-se bem

mais fácil isolar as atividades, mas mesmo assim sabe-se que no casamento, por exemplo,

encontram-se aspectos jurídicos (contrato celebrado entre os cônjuges), aspectos religiosos (o

matrimônio como sacramento) e políticos, só para citar três setores da cultura. Esta inter-

relação é mais evidente ainda entre os povos segmentares ou de pequena escala.

Embora se reconheça que o padrão religioso é universal (não se tem conhecimento de

povo que não tenha suas crenças e não realize seus rituais), há, sem dúvida, uma variedade

6 E. E. Evans-PRITCHARD. Antropologia Social da Religião, p. 165.

16

muito grande nesse padrão de comportamento. Relacionada com a unidade política, nem

sempre uma religião é nacional. Há casos em que para uma unidade existe uma só religião;

noutros, nesta mesma unidade política coexistem várias religiões, noutros mais, uma religião

de caráter universalista pode estar presente em várias unidades políticas. Mas as diferenças

não se resumem apenas na amplitude das instituições religiosas. Dizem respeito à cosmovisão

adotada pelo povo, à variedade de doutrinas, de mitos e de rituais adotados.

Edward Tylor deu uma das mais curtas definições de religião: “uma crença no

sobrenatural”.7 Aí se encontram dois elementos importantes presentes, de maneira implícita

ou explícita, em todas as religiões: a fé e o objeto da fé, o sobrenatural. Com relação à fé,

sabe-se que a religião conta com um corpo doutrinário, um verdadeiro sistema de mitos. A

crença é antes de tudo um ato de confiança, de respeito e reconhecimento. A fé ou a crença,

em certo sentido, é mais forte do que o conhecimento. A fé foi bem definida por S. Agostinho

quando disse o “creio porque é absurdo”. A crença, pois, não supõe a compreensão e o

conhecimento. Bem ao contrário, ela existe para suprir a falta de entendimento em muitos

problemas existenciais humanos. Como se vê, a fé é a aceitação de certos enunciados tipos

como certos e corretos, não porque sejam de fácil compreensão, mas porque alguém deu o

testemunho de que são verdadeiros. É verdade que este conceito de fé é típico das religiões

tidas como reveladas. No entanto, todas elas, em geral, de uma forma ou de outra são frutos

da revelação.

O outro ponto da definição de Tylor – o sobrenatural – é decorrente do primeiro ou,

vice-versa, este daquele. Isto quer dizer que o sobrenatural pode ser definido por exclusão:

tudo aquilo que escapa ao entendimento humano, tudo o que está acima das leis naturais e

físicas. Para os crentes, aqueles que crêem, o sobrenatural é uma outra dimensão da vida e,

por sinal, a mais importante, a mais humana de todas. É bem possível que a concepção do

sobrenatural tenha decorrido da constatação dos vários conflitos que acompanham o existir

humano. De há muito, a humanidade se vê diante do binômio conflitante do bem e do mal, do

certo e do errado; há quem assegure que o problema do bem e do mal perpassa toda a

realidade humana. Uma coisa parece correta: é que o problema do bem e do mal está na raiz

do problema do sobrenatural. É verdade que algumas religiões identificam o bem com o

natural, com aquilo que está em conformidade com a natureza. Diz-se, por vezes, que muitas

religiões “primitivas” são naturais, cultuam a natureza e suas dádivas. Acontece que neste

caso dá-se a supernaturalização do natural. O trovão, a chuva, a fertilidade do solo e bonança

7 Mischa TITIEV. Introdução à Antropologia Cultural, p. 193.

17

dos rios são apresentados como manifestações sobrenaturais de deuses e entidades

sobrenaturais nem sempre bem definidas. Como se percebe, a idéia de sobrenatural pode

variar de cultura para cultura. Para nós ocidentais, o sobrenatural é tudo que escapa ao âmbito

da natureza. No entanto, o próprio conceito de natureza se tem elastecido ultimamente com os

progressos realizados pela técnica e pela ciência. Muitos povos tiveram o sol e a lua na conta

de divindades. Somos levados a ver nisso atraso e ignorância. Contudo, longe está o homem

de afastar de seu caminho as incertezas, os motivos de temores e a estupefação do

desconhecimento e do inaceitável. Quem, mesmo hoje, não se comove com o nascimento de

um novo ente? Quem não estremece face à morte de amigos e parentes? Quem não se

preocupa com o post mortem?

Quando se diz que o sobrenatural é um elemento comum a todas as religiões, não se

está a afirmar que todas elas cultuem divindades antropomórficas. Como já foi dito, a

concepção do sobrenatural varia muito de sociedade para sociedade. No entanto, em todas

elas se faz uma distinção entre o sagrado e o profano. É nessas duas noções que Durkheim

estriba sua definição de religião. Este autor critica as definições de religião que repousam na

crença no sobrenatural, bem como aquelas que definem a religião como uma crença em

divindades ou sobrenaturais. Criticando este segundo tipo de definição, lembra Durkheim que

religiões que não admitem a existência de divindades ou, quando admitem, o fazem de

maneira subsidiária, de forma secundária. O budismo é apresentado como exemplo.8

Analisando o problema da religião, este autor procura estudar o fenômeno religioso de

forma científica, vendo-o como fato social. Nota inicialmente que em qualquer que seja a

religião, primitiva ou moderna, dois elementos despertam a atenção do observador: as crenças

e os ritos. Um outro elemento importante no fenômeno religioso é o da classificação das

coisas em sagradas e profanas. Eis o que diz o autor a respeito:

Os fenômenos religiosos colocam-se naturalmente em duas categorias fundamentais: as crenças e os ritos. As primeiras são estados de opinião e consistem de representações; as segundas constituem tipos determinados de ação. Entre estas duas ordens de fato está toda a diferença que separa o pensamento do movimento.Os ritos podem ser definidos e distinguidos das outras práticas humanas, especialmente daquelas morais, apenas pela natureza particular do seu objeto. Uma lei moral se prescreve de fato, exatamente como um rito, são modos de agir que se voltam porém a objetos de um gênero diverso (...).Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam elas simples ou complexas, têm um mesmo caráter comum: pressupõem uma classificação das coisas reais ou ideais que se apresentam aos homens, em duas classes ou em dois gêneros opostos, definidas geralmente com dois termos distintos – traduzidos bastante bem pelas

8 Emile DURKHEIM. Lê forme elementari della vita religiosa, livro I, p. 25s.

18

designações de profano e sagrado. A divisão do mundo em dois domínios que compreendem um: tudo é sagrado, e o outro: tudo o que é profano, é o caráter distintivo do pensamento religioso: as crenças, os mitos, as gnomas, as lendas são representações, ou sistemas de representações que exprimem a natureza das coisas sacras, as virtudes e os poderes a elas atribuídos, sua história, suas relações recíprocas e com as coisas profanas. Mas por coisas sagradas não é preciso entender apenas aqueles seres pessoais que vêm denominados com deuses ou espíritos: uma rocha, uma árvore, uma fonte, uma pedra, um pedaço de lenha, uma casa, um suma, qualquer coisa pode ser sagrada.9

Essa distinção feita por Durkheim, na verdade, ajuda muito a se entender o fenômeno

da religião. As coisas sagradas são, por exemplo, os objetos do culto, as pessoas do culto e os

próprios seres cultuados. Todos nós percebemos que a água benta dos católicos tem um

significado bem diverso da água comum. A pessoa do sacerdote inspira um respeito especial

para os fiéis. O mesmo se diga de uma pedra de corisco tida como receptáculo ou

materialização de um orixá, para o culto nagô. As coisas sagradas, por sua vez, exigem uma

certa postura de respeito e apresentam, quase sempre, uma característica de tabu. Não se deve

tocá-las impunemente, não se deve delas comer a não ser em certas circunstâncias, dentro do

cerimonial em geral.

Como o próprio Durkheim reconhece, estas características do fenômeno religioso –

doutrina, rito e a classificação do sagrado e do profano – ainda se mostram insuficientes para

determinar o fenômeno. Como diz o autor, “a magia é constituída também ela de crenças e de

ritos”. Como, pois, distinguir a religião da magia? Alguns autores, como se sabe, preferem

não distinguir esses dois fenômenos. Chegam a falar de um fenômeno mágico-religioso. Com

efeito, observando determinados rituais católicos, por exemplo, nota-se que são muito

semelhantes aos ritos mágicos. O batismo realmente válido e eficaz é necessário que o

sacerdote cumpra o ritual fazendo uso correto das fórmulas (palavras) e da matéria. Assim,

para que a criança seja batizada convenientemente é mister que o padre enquanto derrama a

água lustral na cabeça da criança pronuncie as palavras “mágicas”, “Eu te batizo em nome do

Pai, e do Filho e do Espírito Santo”. Quando dizemos isto de forma assim tão fria, pode ferir

a sensibilidade dos católicos. Isso acontece porque juntamente com o cerimonial está a crença

da doutrina; e a fé não discute, aceita os ensinamentos.

Porém, voltando ao nosso problema, como distinguir a magia da religião? Durkheim

mostra como, apesar da semelhança gritante entre ambas, a religião tem um caráter

associativo e a magia, ao contrário, se caracteriza muito mais pelo individualismo. Diz ele:

9 Emile DURKHEIM. Op. Cit., p. 39.

19

“Como a religião, esta (a magia) tem os seus ritos e os seus dogmas, que são apenas

mais rudimentares porque, perseguindo fins técnicos e utilitários, não perde tempo em puras

especulações (...).”

Será necessário, portanto, dizer que a magia não pode ser distinguida exatamente da

religião, que a magia está cheia de religião e a religião de magia e que, portanto, é impossível

separa-las e definir uma sem a outra. O que torna esta tese dificilmente sustentável é a

profunda aversão da religião à magia, e doutra parte a hostilidade desta por aquela. A magia

deposita uma espécie de prazer profissional no profanar as coisas santas; nos ritos esta assume

uma posição oposta àquela das cerimônias religiosas. De sua parte a religião, embora não

tendo sempre condenado e proibido os ritos mágicos, os vê em geral desfavoravelmente.

E propõe uma demarcação entre ambas.

As crenças propriamente religiosas são sempre comuns a uma coletividade

determinada, que faz profissão de a elas aderir e de praticar os ritos a elas ligados. Elas não

são admitidas apenas a título individual por todos os membros desta coletividade, mas são

coisas do grupo e constituem a unidade. Os indivíduos que a compõem sentem-se ligados uns

aos outros pelo simples fato de ter uma fé comum. Uma sociedade, na qual membros são

unidos pelo fato de se representarem do mesmo modo o mundo sagrado e as suas relações

com o mundo profano, e de traduzir estas representações comuns com práticas idênticas, é

denominada “igreja”. Mas na história não se encontra nenhuma religião sem igreja (...).

Não existe uma igreja mágica. Entre o mago e os indivíduos que o consultam, como

entre este últimos, não subsistem vínculos duráveis que façam os membros um mesmo corpo

moral, comparável àquele que formam os fiéis de um mesmo deus, ou os sequazes de um

mesmo culto. O mago tem uma clientela, não uma igreja; e os seus clientes podem

perfeitamente não ter entre si qualquer relacionamento, ao ponto de ignorar-se um ao outro:

também as relações que ele tem são geralmente acidentais e transitórias, de todo semelhantes

àquelas de um doente com seu médico.

4.3 Teorias da Religião.

Não se deseja neste tópico discutir todas as teorias até hoje apresentadas sobre o

fenômeno religioso. Contudo, sentiu-se a necessidade de apresentar um esboço de algumas

delas, de modo a tornar mais completo o presente capítulo. Evans-Pritchard apresenta, em seu

Theories of Primitive Religion, uma série de conferências onde discute as principais teorias

20

sobre a religião primitiva. Aí ele divide a matéria em: Teorias Psicológicas, Teorias

Sociológicas, Lévi-Bruhl e conclusão. Aqui será seguido mais ou menos o mesmo esquema.

4.3.1 Teorias Psicológicas.

São assim chamadas aquelas teorias que, de alguma forma, procuram explicar o

fenômeno religioso a partir dos sentimentos. Essas teorias têm, em geral, um caráter

intelectualista e sofrem a influência da “psicologia associacionista”, para usar a expressão de

Evans-Pritchard. Figuram na relação apresenta das teorias psicológicas apresentadas por este

autor, entre outras, as seguintes: a escola do mito natural de tradição alemã, a crença em

fantasma de Spencer, o animismo de E. Tylor, a teoria da magia de Frazer, o animatismo de

Marrett e a contribuição de Lowie.

A escola do mito natural está muito ligada a Max Muller. Sua tese principal é assim

referida por Evans Pritchard:

Sua tese era de que os deuses da antiguidade – e por extensão os deuses de todos os tempos e lugares – eram apenas fenômenos naturais personificados: sol, lua, estrelas, o alvorecer, a renovação da primavera, rios caudalosos, etc.10

Conforme nosso autor, como ele explica a seguir, Max Muller não pretendeu afirmar

que os homens criaram a religião simplesmente a partir da deificação dos fenômenos naturais,

mas é que estes fenômenos de sua magnitude e beleza despertaram nos homens sentimentos

“de infinitude e serviam de símbolos para o infinito”. Acrescenta nosso autor:

Sua tese (de Max Muller) era de que o infinito, uma vez nascida a idéia, não poderia ser pensado senão em termos de metáforas ou símbolos, os quais só poderiam ser derivados do que parecesse majestático no mundo conhecido: os corpos celestes ou seus atributos. Mas estes atributos, então, perdiam seu sentido original, metafórico, e adquiriam autonomia, tornando-se personificados como deidades de exigência própria. Os nomina (nomes) se tornavam numina (divindades). Assim, sendo, as religiões poderiam ser descritas como sendo ‘doenças da linguagem’, uma expressão vigorosa mas infeliz, que mais tarde Muller tentou explicar, mas não teve vida longa11

Quanto às teorias de Spencer e de Tylor, ambas são semelhantes. Admitem que o

homem primitivo seja racional, embora, devido a seu estágio de desenvolvimento, não tenha o

raciocínio tão vivo como nós. Spencer acreditava que a primeira ou as primeiras noções

religiosas conhecidas pelo homem tenham sido as de fantasmas, enquanto Tylor acreditava

10 E. E. Evans-PRITCHARD. Antropologia Social da Religião, p.36.11 E. E. Evans-PRITCHARD. Op. Cit., p.37.

21

que teria sido a noção de almas. Para ambos, tais noções teriam nascido da própria

consciência humana frente aos fenômenos do sonho, da morte, da vida, das transformações

naturais, todo esse conjunto teria despertado os sentimentos do sagrado e da outra dimensão

da vida. Sobre a teoria do animismo de Tylor escreveu Pritchard:

Nos textos antropológicos, a palavra ‘animismo’ aparece com alguma ambigüidade, sendo às vezes empregada no sentido de uma crença, atribuída a povos primitivos, em que não só as criaturas, mas também os objetos materiais estão dotados de vida e personalidade, algumas vezes com o acréscimo de que tenham também almas.”A teoria de Tylor cobre ambas as possibilidades, mas aqui nos interessa basicamente a segunda delas. A este respeito a teoria conta com duas teses principais, a primeira concernente ao problema da origem, e a segunda referindo-se ao desenvolvimento da alma. As reflexões do homem primitivo a respeito de experiências tais como morte, doenças, transes, visões e, acima de tudo, os sonhos, levaram-no à conclusão de que são fenômenos que se devem à presença ou ausência de alguma entidade imaterial, a alma .Tanto a teoria do fantasma quanto a teoria da alma poderiam ser consideradas como versões de uma teoria ideal da origem da religião.12

Frazer, por seu turno, apresenta uma teoria, em parte semelhante à de Auguste Comte

acerca do progresso da humanidade (lei dos três estágios ou estados: estágio teológico,

metafísico e positivo ou científico). Para Frazer, a humanidade universalmente passou por três

estágios diversos: o primeiro dominado pela magia, o segundo pela religião e finalmente pela

ciência. A rigor, vê-se, que não há muito de novo em sua teoria. Importa, aqui, fazer uma

pequena análise dos fundamentos psicológicos dessa sua teoria. Este autor achava que a

magia e a ciência se assemelhavam e se contrapunham à religião. Tanto a magia como a

ciência realizam operações técnicas, pois acreditam que o mundo obedece a preceitos ou leis

invariáveis; ao passo que a religião acredita, segundo ele, que o mundo vai mais além e está

sujeito aos “caprichos dos espíritos”. A diferença básica entre a magia e a ciência é que a

primeira é uma técnica enganosa e errada e a segunda, ao contrário, é verdadeira e baseada na

experimentação. A religião, por sua vez, exige dos seus cultores uma atitude de medo e temor,

de respeito e dedicação. Os seguidores da magia e da ciência, todavia, apresentam uma atitude

psicológica de arrogância, de confiança e destemor.13

Depois de tantas teorias semelhantes que tomaram o homem “primitivo” como um

filósofo ingênuo, surge a teoria de Marrett que veio inverter a ordem da explicação do fato

religioso. Para ele a religião primitiva tivera início não na doutrina ou na crença, mas a

doutrina teria nascido da ação. Como dizia, “a religião selvagem não é tão pensada quanto

12 E. E. Evans-PRITCHARD Op. Cit., p. 41.13 E. E. Evans-PRITCHARD.Op. cit., p. 41.

22

dançada”. Como se percebe, Marrett deu a prioridade do rito sobre o mito, exatamente o

contrário que se tinha feito até então. Ele acreditava que antes do estado animístico teria

existido um estado anterior em que se acreditava que certas pessoas e certas coisas possuíam

um poder oculto, uma espécie de força ou magnetismo. A existência desta força é que dava o

caráter sagrado às coisas e às pessoas. Este autor não via muita diferença entre religião e

magia entre os primitivos. A sua explicação era do cunho emocionalista. Dizia que a magia

surgira de momentos de grande tensão, ódio, amor ou temor em que o primitivo se via privado

de meios capazes de o satisfazer. Destarte lançou mão de fingimento, expedientes simbólicos

e associativos para fazer face às suas necessidades concretas. A teoria de Marrett é conhecida

como animatismo14 em oposição ao animismo de Tylor.

Lowie também aparece com certa novidade com sua teoria acerca da religião. Como

os demais, sua fundamentação é igualmente de cunho psicológico, porém outra visão sobre o

assunto. Segundo ele, a doutrina, em si, bem como o cerimonial, não são religiosos. “Não há

comportamento especificamente religioso, mas sim sentimentos religiosos”. Poder-se-ia dizer

que só existe o fenômeno religioso no momento em que se tem o sentimento que leva ao

entendimento, ao sentimento de fé no extraordinário, no sobrenatural, no santo, etc. Em

conseqüência o indivíduo entrega-se a ritos que podem até aumentar este complexo de

sentimentos. A respeito do pensamento do Robert H. Lowie diz Evans-Pritchard:

O positivismo, o igualitarismo, o absolutismo e o culto da razão são indistinguíveis da religião; mais: a bandeira de um país é um típico símbolo religioso. Quando a magia se associa à emoção passa a ser, também ela, religião. De certo modo, seria um equivalente psicológico de nossa ciência, como disse Frazer.15

Não se pode negar o valor dessa teoria no que respeita à constatação fática, isto é,

todos sabemos que o fanatismo excede o campo do religioso tradicional. A guerra, por

exemplo, faz tantos mártires quanto às religiões nascentes quando são perseguidas. A

dedicação do homem de ciência e de laboratório só se torna possível pela fé que ele

demonstra em seu trabalho. Porém, também esta teoria peca pelo pouco valor operacional de

seus conceitos. Torna-se difícil realizar estudos e pesquisas com estas teorias de cunho

psicológico.

14 Félix KEESING. Antropologia Cultural, vol. II,p. 490.15 E. E. Evans-PRITCHARD. Antropologia Social da Religião, p. 69.

23

4.3.2 Teorias Sociológicas.

A essas teorias não se dará aqui muito espaço. Não que sejam de pouca monta. Em

absoluto. Já lhes foi dado algum espaço principalmente à teoria de Durkheim. As principais

teorias sociológicas da religião são: a de Fustel de Coulanges e R. Smith, a de Durkheim e

seus seguidores: Marcel Mauss e Radcliffe-Brown. O que caracteriza estas teorias é a

fundamentação da explicação a respeito do fenômeno religioso: este é apresentado como

fenômeno social e não como fenômeno psicológico, como salienta Evans-Pritchard:

Notemos que Durkheim não está dizendo aqui, como fazem os autores emocionalistas, que os ritos são levados a efeito para liberar estados emocionais exaltados. São os ritos que produzem tais estados. Eles podem, portanto, neste aspecto, ser comparados aos ritos expiatórios como os de luto, nos quais as pessoas procuram afirmar a sua fé e cumprir um dever para com a sociedade sem que estejam sob qualquer tensão emocional; esta, enfim, pode estar completamente ausente da ocasião.16

A teoria de Fustel de Coulanges, mestre de Durkheim, procura mostrar como a

organização social existente na antiguidade clássica teve como amálgama o culto dos

ancestrais. Os antepassados pareciam como deidades que traziam unido o grupo familiar ou

de descendência. Segundo Coulanges este culto é que explicava as normas e cerimônias de

casamento, o incesto, a monogamia, a proibição do divórcio, etc.

Para corroborar o que afirma nosso autor, eis aqui uma passagem significativa do livro

clássico de Coulanges, A Cidade Antiga:

A origem da família antiga não está unicamente na geração. A prova disso temo-la no fato de a irmã na família não igualar seu irmão, em o filho emancipado ou a filha casada deixarem completamente de dela fazer parte, e temo-la, enfim, nas numerosas disposições importantes das leis gregas e romanas, como adiante buscaremos ocasião de estudar.17

Dito de outro modo, o mestre Coulanges quis mostrar o papel importante que é

desempenhado pelos pensamentos e ações religiosas na vida social. Aí se vê que o homem é

um ente racional também com relação a valores, principalmente.

Basicamente, se pode afirmar que Coulanges, Robertson Smith e Durkheim tiveram

um ponto em comum: acreditavam que a religião surgira da “natureza mesma da sociedade”.

Smith chegou a afirmar que “os ritos estavam conectados com os mitos; mas os mitos não

explicam os ritos, e sim o oposto”. Ver a religião como um fato social, como propunham esses

16 E. E. Evans-PRITCHARD. Op. Cit., p. 9017 Fustel de COULANGES. A Cidade Antiga, vol. I, p. 54.

24

autores, é vê-la independente das mentes individuais, é reconhecer-lhes uma existência ou

preexistência aos indivíduos. Isto é, ao nascer os indivíduos já se deparam com uma religião

pronta com seus dogmas, seus rituais e sua cosmovisão. Ela se impõe aos indivíduos, ela é

parte importante da realidade social. A importância social da religião parece ser ainda maior

nas sociedades de pequena escala onde ela tem um caráter geral e abrangente, um caráter,

poder-se-ia dizer, mais compulsório ainda do que várias religiões podem subsistir lado a lado.

Já se viu a forma como Durkheim definiu a religião – instituição dotada de ritual e

doutrina, onde se distingue o sagrado do profano e onde existe a igreja como unidade social

integradora e integrante. Em suma, não foi o totemismo que despertou os sentimentos

religiosos do grupo, mas o grupo que despertou o sentimento religioso e totêmico.

Marcel Mauss segue as pegadas de Durkheim e vai além. Como adverte Pritchard, este

autor, num ensaio em colaboração com M. H. Beuchat, Essai sur les variations saisonnières

dês sociétés eskimos: Étude de morphologie sociale, procura demonstrar a tese de

Durkheim de que a “religião é um produto da concentração social e se mantém às custas do

gregarismo periódico”. Prichard assim traduz o argumento geral do ensaio de Mauss:

Basta dizer que o autor mostrou como os Esquimós, durante parte do ano – o verão – quando os mares estão sem gelo, se dispersam em pequenos grupos familiares vivendo em tendas. Quando o gelo se forma já não lhes é possível procurar caça, de modo que passam esta parte do ano (o inverno) em grupos maiores e mais concentrados em habitações comuns, várias famílias ocupando um mesmo cômodo, de sorte que quando as pessoas se encontram numa fase de relações sociais mais amplas (sendo, portanto, a ordem social então não apenas de diferentes proporções mas também bastante diferente em arranjo e estrutura), a comunidade é não apenas um grupo de famílias vivendo juntas por conveniências, mas uma nova forma de agrupamento social em que os indivíduos se relacionam de modo diverso. Com este padrão alterado, surge uma diferente escala de leis, de moral e costumes, adaptada às novas circunstâncias e que cessa durante o período de dispersão. É quando se formam os grupos amplos que as cerimônias religiosas anuais ocorrem; assim, poder-se-ia dizer que os Esquimós confirmam a tese de Durkheim.18

Radcliffe-Brown procurou desdobrar a teoria do totemismo de Durkheim. Na opinião

de Pritchard, a generalização que ele perpetra não foi satisfatória. No entanto, o que importa é

dar relevo ao fato de um autor mais recente ter adotado também uma teoria “sociológica” para

explicar o fenômeno religioso. Referindo-se à teoria do totemismo, diz Radcliffe-Brown:

Esta teoria engloba o que penso ser a parte mais valiosa da análise de Durkheim, no reconhecimento de que a função da religião ritual do grupo para com seu totem é exprimir e deste modo manter viva a solidariedade do grupo. Dá, além

18 E. E. Evans-PRITCHARD. Op. Cit., p.98/9.

25

disso, uma razão, que pode ser demonstrada, penso, com base na própria natureza da organização em si, para a escolha das espécies naturais como emblemas ou representantes de grupos sociais.19

4.3.3 A Mentalidade Primitiva de Lévy-Bruhl.

Passadas em revista as teorias psicológicas e as sociológicas, nosso autor discute a

teoria de Lévy-Bruhl acerca da mentalidade primitiva. Esta teoria é muito estimulante por

tratar a religião de um ângulo diferente. Com relação às duas categorias de teorias vistas, a de

Lévy-Bruhl acha-se muito mais próxima das teorias sociológicas do que das psicológicas. Ele

acreditava, como Durkheim, que ao variarem as estruturas sociais, variam igualmente as

representações (consciência coletiva de Durkheim) e em conseqüência também o pensamento

individual.

Pode-se dizer que a teoria de Lévy-Bruhl tem afinidades com as teorias de Karl Marx

sobre a ideologia e a de Vilfredo Pareto sobre as derivações. Trata-se, acima de tudo, de um

estudo epistemológico, onde ele analisa a lógica do pensamento humano através dos tempos e

na sua consistência interna. Não se pode negar que entre as teorias psicológicas não se tenha

tratado, em parte, também do assunto. Ocorre que, neste caso, se procurou mostrar que o

pensamento religioso era rudimentar porque era religioso; era como se o tempo da religião já

tivesse acabado. Não se pense que a teoria da mentalidade primitiva deste autor seja

irretocável. Isto não. Contudo, ela é muito rica por levantar outros aspectos da questão.

Em resumo se pode dizer que este autor via na religião primitiva, não uma forma

errada de interpretação do universo, mas uma forma adequada de interpretação que condizia

com suas representações coletivas. Este autor, quando se refere à mentalidade primitiva e ao

pensamento pré-lógico, não pretendeu negar a logicidade do pensamento dos povos de

pequena escala. Como diz Pritchard, nos extratos abaixo:

Lévy-Bruhl chama de ‘pré-lógicos’ os modos de pensamento (pensamento mágico-

religioso, pois ele não distinguia pensamento mágico de pensamento religioso) que parecem

tão verdadeiros para um homem primitivo e tão absurdos para um europeu. Ele quer aludir,

com esta palavra, a algo muito diferente daquilo que os críticos imaginaram e lhe atribuíram.

Ele não quis dizer que os primitivos são incapazes de pensar coerentemente, mas sim que, na

maioria, as suas crenças são incompatíveis com uma visão crítica e científica do universo (...).

São razoáveis (os primitivos), mas raciocinam em categorias diferentes das nossas.

São lógicos, mas os princípios de sua lógica não são os nossos nem os da lógica aristotélica

19 A. R. Radcliffe-Brown. Estrutura e Função na Sociedade Primitiva, p. 160.

26

(..). Ele não está falando de uma diferença biológica ou psicológica entre nós e os primitivos,

mas sim de diferença social.

Lévy-Bruhl tentou mostrar que todas as sociedades possuem representações coletivas;

os primitivos também as possuem, só que as suas tendem a ser místicas e as nossas, críticas e

científicas. A teoria deste autor é, por vezes, tomada como fundo psicológico, mas, como se

viu, não é bem assim. Nota-se isto no trecho de Lévy-Bruhl, abaixo:

Resta notar como os modos de agir dos primitivos correspondem exatamente aos seus modos de pensar que foram até agora analisados como, nas suas instituições, as suas representações coletivas exprimem-se com o caráter místico e pré-lógico que neles foi reconhecido. Deste modo penso obter um duplo resultado. De um lado a teoria receberia uma verificação precisa; doutro lado, uma vez que a explicação psicológica e simplesmente verossímil dada pelas instituições primitivas o mais das vezes poderia facilitar a descoberta de uma melhor explicação. De fato esta interpretação deverá levar em conta em primeiro lugar a mentalidade própria dos grupos sociais considerados.20

Como se viu Lévy-Bruhl tenta demonstrar que o pensamento pré-lógico desempenha

um papel importantíssimo na vida social dos primitivos. Cinco anos depois de publicado o seu

livro sobre a mentalidade primitiva (o que ocorreu em 1910), um autor italiano, Vilfredo

Pareto (1848-1923), edita o seu enorme Tratado di sociologia generale, em que monta toda a

sua concepção sociológica na idéia de que os homens são movidos muito mais pelos

sentimentos do que pela lógica experimental e fática. Não obstante o caráter psicológico desta

teoria paretiana, ela assume uma importância ímpar para o estudo da religião, de vez que,

diferentemente de Lévy-Bruhl, ele acha que aquela “mentalidade primitiva” (ele não cita este

autor nem se refere ao termo) domina não apenas os povos primitivos, mas também os povos

hodiernos. Utilizando as categorias weberianas, se poderia dizer que, para Pareto, as ações

racionais quanto a valores e ações tradicionais são mais freqüentes na vida social média do

que as ações racionais quanto a fins. Pareto ainda distingue a verdade da utilidade. Para ele

nem tudo que é certo é útil e bom para a sociedade.

O que Pareto denomina de ações e teorias não-lógicas não quer dizer que sejam

ilógicas ou desprovidas de qualquer lógica. Por uma questão metodológica ele chama de não

lógica todas as ações e teorias que estão em desacordo com os fatos, com a experimentação ou

observação controlada.21 Este autor ainda separa a ação da teoria, achando que a ação

antecede a teoria. O homem age e depois explica. Aí está a expressão de sua teoria das

20 Lucien LÉVY-BRUHL. Psiche e società primitive, p. 273.21 Luiz Gonzaga de MELLO. O valor Heurístico das teorias sociológicas de Vilfredo Pareto, p. 43.

27

“derivações” que não deixa de ser uma ampliação da teoria da “ideologia” de Marx. Enquanto

este via os valores sociais como expressão de interesses de classe, principalmente os

interesses políticos, Pareto estende à maioria das teorias ou explicações orais ou não o caráter

de derivações. Para ele derivação é uma espécie de verniz ou capa de lógica com que procura,

normalmente, encobrir a falta de lógica das ações subjetivas. Em outras palavras, muitas

teorias (na política, na religião, na própria economia, enfim, em todos os setores sociais) não

passam de simples justificativas, de puras racionalizações para justificar os interesses e ações

subjetivas. Se bem que este autor atribua a uma fonte comum as ações e as teorias – ou seja,

não crer que umas derivem das outras, nem as ações das teorias, nem as teorias das ações.

Segundo Pareto tanto as ações como as teorias derivam, principalmente, de um certo

estado psíquico do homem; de sorte que as teorias não seriam uma espécie de tradução dos

atos humanos nem estas ações gerariam as teorias. Contudo, ele admite que a influência dos

atos sobre as teorias é maior do que aquela exercida pelas teorias nas ações humanas.

Resta-nos observar que há muita similitude entre o conceito de religião adotado por

Lowie e por Pareto, na medida em que ambos acham que esta é expressão, principalmente, de

sentimentos. Pareto, a exemplo de Lowie, como já foi visto, tem na conta de religião as várias

formas fantásticas de nacionalismo, de socialismo, de liberalismo, de democracia, etc. Esta

posição de Pareto está de acordo com a sua teoria das derivações; estas assumem as mais

diversas formas para justificar, essencialmente, os mesmos sentimentos humanos. Os resíduos

(expressões de sentimentos) permanecem basicamente os mesmos, enquanto as derivações

permitem aos homens modificar as formas de expressão deles, numa denominada “lógica de

sentimentos”.

4.4 Outros Tópicos no Estudo do Fenômeno Religioso.

Neste tópico pretende-se abordar, embora de forma rápida, alguns assuntos

habitualmente estudados nos manuais e tratados de antropologia cultural quando enfocam o

problema religioso. Esta parte tem um caráter complementar, de vez que no item 3 se passou

em revista boa parte das teorias sobre a religião e se fez referência à boa parte dos assuntos de

que voltaremos a tratar. Ao contrário do item anterior, aqui se buscará a brevidade.

4.4.1 Religião e Cosmovisão.

28

Quando se fala da religião como cosmovisão, procura-se salientar um aspecto do

religioso: o sistema de conhecimentos. Na verdade, o homem sempre procurou desenvolver

um sistema de conhecimento globalizante que servisse para dar sentido à sua vida social. O

conhecimento religioso tem um objeto vastíssimo. Ao contrário da ciência, que restringe seu

campo de conhecimento e de estudos apenas ao mundo sensível, isto é, suscetível de ser

experimentado pelos sentidos, a religião existe para explicar tudo, sem exceção. Ela é tida

como autoridade em todos os domínios. Tem explicação para o sentido da vida, para a origem

de tudo.

É verdade que, normalmente, aquelas religiões em que sua parte doutrinária é mais

elaborada são consideradas religiões superiores. Nas denominadas religiões inferiores a parte

doutrinária é, de certo modo, sobrepujada pelo vigor dos rituais, das festas e da “experiência

do divino”. Este fato é tão notório nas sociedades de pequena escala que, por isso, alguns

autores chegam a falar de povos sem religião. Evidentemente, trata-se de exagero.

A propósito de ritual e doutrina, respectivamente, ação religiosa e teoria ou

verbalização religiosa, há vários estudos. Neste mesmo capítulo vimos a opinião de Pareto

segundo a qual o rito não nasce do mito nem vice-versa. Para Durkheim, por exemplo, o rito

teria uma função educativa, a tarefa de reviver as crenças e de perpetuá-las. Para Robertson

Smith, como se viu, os ritos é que explicam os mitos e não o inverso. Já os primeiros

antropólogos, como Tylor e Frazer, achavam que a doutrina era uma interpretação errônea da

realidade existencial do homem e assim por diante.

Uma coisa é verdade, a linguagem utilizada pelos mitos, pela doutrina e pelas crenças

é, em geral, hermética, analógica e plena de simbolismo. Igualmente é ela cercada do

maravilhoso, seja acerca da forma como ela foi legada à posteridade seja no conteúdo das

narrativas. Talvez se possa dizer que tanto o rito como o mito apresentam-se como linguagem

na medida em que os ritos são realizados com a finalidade de reavivar as crenças.

Em todos estes casos, é uma função do ritual realçar a importância social de algo que é mantido como um valor na sociedade que tem o ritual. Se o ritual é um tipo de linguagem, um modo de dizer coisas, então a magia da canoa nas ilhas Trobriand acentua a importância da construção de canoas para os trobriandeses; o ritual de pacto de sangue enfatiza a necessidade de apoio mútuo entre as partes, e o ritual da evitação sustenta a necessidade de boas relações entre grupos ligados por afinidade.22

22 John BEATTIE. Introdução à Antropologia Social, p. 248.

29

Ao que tudo indica, a linguagem ritual é de mais fácil compreensão do que a

linguagem doutrinária. Nas nossas pesquisas sobre os cultos afro-brasileiros constatamos que

filhos e filhas-de-santos podem falar muito bem a linguagem ritual – participação completa no

ritual com, até a experiência do êxtase ou possessão – e se mostrar pouco enfronhados na

doutrina do candomblé ou xangô. Em outras palavras, é-lhes mais fácil sentir a presença dos

orixás do que explicar a natureza destes.

Ainda com respeito à relação entre ritual e doutrina (mito), podem-se identificar

determinados ritos que se encontram intimamente ligados à doutrina e a ela se referem

explicitamente; outros, porém, aparentemente não se mostram tão ligados assim à doutrina e

aos mitos. Contudo, ao que parece, a religião deve ser vista como um sistema integrado onde

a separação entre ritos e mitos não passa de um expediente de análise, como diz Mauss no

texto abaixo:

Verdadeiramente, o porvir está reservado a um método mais eclético. O deus, o rito, o nome e o mito, tudo isso forma conglomerado cujos elementos unicamente podem ser dissociados mediante a abstração; não existe anterioridade do nome sobre a idéia, nem do rito sobre o mito. Este método, enquanto eclético, será também mais objetivo e sociológico. Já que o nome, vinculado desta maneira ao rito, deixa de ser uma simples expressão verbal, transforma-se em parte integrante de todo um sistema de coisas do que é inseparável, e essas coisas são sociais.23

4.4.2 Ritos de Passagem e Outros Ritos.

Não se tem notícia de povo algum que desconheça os rituais em sua vida cotidiana.

Nenhum povo desconheceu até hoje essas práticas simbólicas, ricas em coreografia e cheias

de sentido místico e sagrado. Normalmente tais práticas revestem-se de uma expressão

estética formidável. Neles são utilizadas fórmulas que são recitadas em tom solene e

dramático: muito freqüente também é o uso de cânticos fervorosos, bem como a presença de

danças dramáticas e expressivas. Ao lado dos grandes ritos em que a comunidade toda é

chamada a deles participar ativamente ou como espectadores, existem pequenos rituais

particulares também de uso coletivo. H. D. Munro define o ritual desta forma:

Os antropólogos concordam geralmente em afirma que o ritual é uma ação prescrita, repetitiva, pela qual a prescrição pode caminhar desde a rigorosa definição da forma e da seqüência até a possibilidade de escolher entre um número limitado de ações.24

23 Marcel MAUSS. Institución y culto, p. 155.24 G. Duncam MITCHELL. Dizionario di sociologia, p. 225/6.

30

O caráter repetitivo e de prescrição assumido pelo ritual denota claramente sua

condição social. Isto não impediu a Van Gennep de toma-lo como expressão mágica (por

tratar-se de prática) e crença como expressão religiosa. Isso se entende, em parte, pelo fato de

este autor não estabelecer uma separação maior entre religião e magia. Como ele próprio

explica:Estas teorias constituem a religião, cuja técnica (cerimônias, ritos, culto) chamo magia. Como esta prática e esta teoria são indissolúveis, pois a teoria sem a prática torna-se metafísica, e a prática fundada sobre outra teoria torna-se ciência, empregarei sempre o adjetivo ‘mágico-religioso’.25

De modo geral, os ritos de passagem denotam a sensibilidade das pessoas com relação

ao dinamismo da própria existência humana. O peregrinar do homem através de sua

existência envolve uma gama enorme de situações, de transformação, de passagem, de

metamorfose. No plano biológico o indivíduo nasce, cresce, se reproduz, envelhece e morre.

No plano social acontece algo semelhante. A ocupação das várias posições sociais implica em

modificações substanciais na vida das pessoas. De resto, o dinamismo e o movimento – a vida

– atinge todo o cenário em que tem lugar a vida social dos povos. Por isso adquire significado

a própria transformação cíclica do ambiente: o movimento da lua e do sol, a mudança das

estações climáticas (primavera, verão, outono e inverno), etc.

Como é sabido, a transformação, de modo geral, traz consigo um momento crítico –

um momento da passagem de um estado a outro – um momento de crise, de angústia e de

esperança, de temor e confiança, de saudade e expectativa. Trata-se de um momento

paradoxal em que os sentimentos assumem um caráter contraditório e, por isso, torna-se

doloroso para quem dele participa. Como salientou Van Gennep, esta situação de transição

compreende três momentos específicos: a separação (saída do estado anterior), a liminaridade

( o estado de passagem, propriamente, em que a pessoa se acha entre o estado anterior e o

posterior) e a agregação ( quando se dá a introdução no novo estado). Cada momento desses

pode comportar ritos específicos denominados pelo autor citado como: ritos pré-liminares ou

de separação, ritos liminares ou ritos “executados durante o estágio de margem” e os ritos

pós-liminares ou “ritos de agregação ao novo mundo”.

O momento crucial da passagem é precisamente o de liminaridade por se constituir

naquela hora de indefinição e de imponderabilidade. É a soleira, é a “marginalidade”, é um

momento “mágico” e normalmente com uma marca sagrada.

25 Arnold VAN GENNEP. Os Ritos de Passagem, p. 33.

31

Sente-se que na vida as pessoas passam por muitos momentos de liminaridade e que

eles se prestam, perfeitamente, para alimentar os elos sociais que vinculam as pessoas entre si.

Tanto é verdade que, normalmente, tais momentos críticos da vida das pessoas assumem um

caráter ritual onde toda a communitas (para usar a expressão de TURNER) é convocada

como testemunha e participante. A communitas, por assim dizer, é que dá forças à entidade

liminar que se encontra despojada, no momento, de qualquer condição social e espera assumir

uma nova condição. A communitas não só testemunha a nova condição social do ser liminar,

mas ela própria toma ares de sacralidade porque dela é que emana a outorga da nova condição

desejada e “temida” pelo neófito. Tacitamente, é também a communitas que promete ajudar o

neófito na sua nova condição, não só reconhecendo-lhe o novo posto como auxiliando-o no

desempenho do mesmo.

A presença de ritos de agregação, de liminaridade e de separação é grande tanto entre

os primitivos como entre os povos ditos civilizados. Entre nós numerosos são tais ritos. Como

atos sagrados, os ritos de passagem comportam a prática de tabus, a troca de bens, a

reciprocidade, a confraternização, a comensalidade e muitas outras práticas. Tais ritos

constituem numa modalidade de festa. O batizado, o casamento, o nascimento dos filhos, o

aniversário, as vitórias, as promoções de toda origem, a investidura de cargos, etc. os ritos de

passagem são como os sacramentos – os sacramentos tais como o batismo, o matrimônio, a

confirmação, a eucaristia, etc., são ritos de passagem.

Efetivamente, pode-se objetar que tomando-se os ritos de passagem num sentido mais

amplo da palavra, o seu caráter religioso pode parecer, em certos casos, bastante rarefeito.

Como sentir o significado religioso numa colação de grau, numa promoção ocupacional,

numa conquista de nova patente nas forças armadas e assim por diante? Já foi visto que o

conceito do sagrado e da religião apresenta-se, na prática, como uma questão de agregação; os

ritos são mais ou menos sagrados, mais ou menos significativos. Ao que tudo indica a religião

nas sociedades modernas está longe de perder sua força e sua presença. Ela assume novas

formas e utiliza-se de novo quadro simbólico, mas continua presente. Poder-se-ia dizer que o

momento atual é pródigo em situações de crise. Há quem diga que vivemos tempos de crise

por excelência. Nisso há muita razão se considerarmos que as crises decorrem, precisamente,

da transformação. Ora, nunca na história o homem experimentou tanta transformação em tão

curto espaço de tempo. Nesse aspecto pode-se dizer que os ritos de passagem são hoje em

maior número. Mas não seria esta freqüência maior de transformações um motivo para

vulgarizar a transformação e minimizar as crises, tornando a transformação um estado

32

permanente quase anulando a sensação de passagem? Não existe subliminarmente uma busca

generalizada de transformação por parte da sociedade moderna? É provável. Contudo, admitir

que os homens de hoje se sentem atraídos pela transformação não significa necessariamente

que eles não sintam temores e expectativas na caminhada de suas vidas. Como se sabe, boa

parte das posições (status) na vida moderna é adquirida – as pessoas crêem que conquistaram

o posto que passam a assumir – ao contrário do que costuma acontecer nas sociedade de

pequena escala onde as posições são atribuídas, outorgadas segundo um procedimento

institucionalizado e bastante estável. Isto não quer dizer que, na prática, a maioria das

posições sociais de hoje não sejam, de uma forma ou de outra, institucionalizadas e, portanto,

endossadas pela sociedade. Todavia pode-se admitir que a consciência coletiva já não é tão

monolítica como era entre os povos de pequena escala. Quase se poderia dizer que o coletivo

está cedendo o individualismo. Neste caso, talvez se pudesse dizer que as sociedades de

pequena escala são mais religiosas e as sociedades de larga escala mais mágicas, aquelas mais

coletivas e estas mais individualistas, aquelas teriam a forma de communitas e estas a forma

societas. Naturalmente, esta colocação pode ser válida para os tipos de sociedades tomadas

como unidades globais. Contudo, ao que parece, nas sociedades comunitárias e sagradas onde

a vida religiosa se desenvolve com intensidade e vigor. Exemplos disso são as paróquias, as

“igrejas” evangélicas, os terreiros de xangô, os centros espíritas, etc.

4.4.3 Totemismo.

O fenômeno do totemismo está intimamente ligado à existência do clã. Durkheim vê

no fenômeno uma forma elementar da vida religiosa. Quando se tratou das teorias acerca da

religião se viu que este autor considera a religião como um fato social, coletivo e aglutinador.

Nela se distinguem, segundo ele, dois elementos formadores: de um lado, as representações

coletivas (parte doutrinária) e, doutro lado, os ritos (parte cerimonial e prática). A palavra

“totem” é derivada de tribo algonkina, portanto de origem norte-americana. Tal palavra foi

incorporada à antropologia cultural para significar um fenômeno bastante freqüente na vida

religiosa dos povos de organização clãnica. Embora se possa falar de totemismo individual e

sexual, tem mais relevo aquele de cunho social que caracteriza o clã todo.26 O totem

impessoal e coletivo é considerado um emblema do clã. O totem pode ser de espécie animal

ou vegetal e raramente de natureza inorgânica. O totem não é determinado animal ou uma

planta isolada, mas a espécie em questão.27 Em virtude da crença dos membros do clã de que 26 A. P. ELKINS. The nature of Australian Totemism, p. 159/6.27 Emile DURKHEIM. Le forme elementari della vita religiosa, p. 111.

33

eles descendem de um ancestral comum e que este é simbolizado por determinada espécie

vegetal ou animal, esta torna-se o totem do grupo, o que equivale a dizer que tal espécie

assume a condição sagrada que imprime respeito e certo temor a todo o clã. Disso deriva toda

uma série de tabus com relação ao totem. Ora é a proibição de o clã alimentar-se da espécie

totêmica, ora o consumo da mesma só é permitido em determinadas ocasiões rituais e

seguindo todo um cerimonial coberto de regras e procedimentos formais. Cabe, com

freqüência, ao grupo ou clã zelar pela espécie totêmica. Se a tribo conta com vários clãs, os

tabus que atingem um determinado clã não obrigam os outros clãs.

É conveniente observar que o totem que dá o nome ao clã, também o identifica. Os

índios Fulniô, por exemplo, ainda hoje conservam sua organização clãnica e são constituídos

de cinco clãs, a saber: o clã do Fumo (Sedaytô), o clã do Pato (Faledaktoá), o clã do Porco

(Waledaktoá), o clã do Periquito (Lidyaktô) e o clã do Peixe (Txokôtkwá). Esta organização

social de índios que já se encontram em estreito contato com os brancos no interior de

Pernambuco (cidade de Águas Belas) tem ainda hoje um papel relevante: este papel não se

estende à própria organização social, mas também ao regime alimentar e ao culto do ouricuri

em que toda a tribo se isola durante três meses (setembro a dezembro) para as práticas

religiosas. Nesta ocasião a divisão do culto obedece à organização social e totêmica.

Talvez se possa julgar inverossímil que os povos totêmicos acreditem de fato na sua

origem real e comum ligada a uma espécie animal ou vegetal. É bem de notar, todavia, o lado

mitológico da vida de qualquer povo. Também nós de tradição cristã acalentamos crenças e

mitos por demais maravilhosos e inverossímeis. Mas, como diz a tradição, “a fé remove

montanhas...”. A crença e a tradição cobrem com o véu da fé as aparentes e visíveis

demonstrações de falta ou falha de lógica e de racionalidade. De certo modo se pode dizer que

o mito e a crença são tanto mais fortes e vivos quanto mais maravilhosos e inacessíveis à

compreensão das pessoas. A fé não deixa de pôr à prova os crentes.

Uma outra maneira de ver o totemismo é do ponto de vista psicológico. Freud também

estudou o fenômeno do totemismo e procurou ver na festa totêmica uma celebração em que

simbolicamente o grupo rememorava o crime parricida relacionado ao complexo de Édipo.

Assim comenta Beattie a teoria freudiana do totemismo:

Como Durkheim, ele baseou sua hipótese no material australiano. Supôs que a origem da instituição está no complexo de Édipo, que considerou como universal. Na família primitiva, diz ele, os filhos cobiçavam as mulheres de seus pais e, para adquiri-las, matavam e comiam seu pai. Posteriormente, morriam de remorso e a festa totêmica (que, de fato, pode ter ocorrido na Austrália mas não é encontrada em nenhum outro lugar) é realmente um restabelecimento simbólico daquele

34

primeiro crime parricida. Freud não deixa claro em que ponto da história humana supõe que isto ocorreu, ou se ocorreu uma única vez ou em muitas ocasiões. Sua teoria não é levada a sério pelos antropólogos sociais, que, de qualquer modo, não estão muito interessados nas origens indevassáveis das intituições humanas.28

Como bem salientou Beattie, acima, a teoria freudiana neste particular tem pouca

importância para a antropologia. Contudo, ela tem o mérito de trazer à baila o problema da

natureza e da cultura ao tentar mostrar que o tabu do incesto existe não por ser contra a

natureza, mas por constituir-se num dado da natureza. Curiosamente ele foi buscar apoio em

Frazer que é citado por ele em seu livro. Considere-se o trecho abaixo citado por Freud e

retirado do Ramo de Ouro de autor inglês:

Não é fácil compreender por que um instinto humano profundamente radicado deveria ter necessidade de ser reforçado pela lei. Não existem leis que ordenem ao homem comer e beber ou que proíbam meter as mãos no fogo. Os homens comem e bebem e têm as mãos longe do fogo por instinto, por medo das penas naturais, e não legais...Podemos portanto admitir tranqüilamente que os crimes proibidos pela lei são sempre crimes que muitos homens cometeriam sob o impulso da própria propensão natural. Se não existisse esta propensão não existiriam tais crimes, e se não se cometessem tais crimes, qual o objetivo de proibi-los? Por isso, ao invés de deduzir, por causa da proibição legal do incesto, que existe uma aversão natural que leva ao incesto, devemos concluir antes que é um instinto natural que leva ao incesto, e que, se a lei o reprime assim como reprime outros instintos naturais, o faz porque os cidadãos concordaram que a satisfação destes instintos é danosa aos interesses da sociedade.29

Aí a razão por que se incluiu aqui o pensamento de Freud a respeito do assunto: a

argumentação utilizada não é estranha dentro da antropologia. Não só isso, esta argumentação

merece a atenção por não ser fácil descarta-la. Fica portanto o registro. Quanto à explicação

social do totemismo adotada por Durkheim e por autores, desponta nela a idéia de religião

como controle social, uma espécie de procedimento que visa a autodefesa do grupo – uma

forma de conservação e perpetuação do sistema social.

4.4.4 Xamanismo, Êxtase e Possessão.

Já foi visto que as explicações e as teorias a respeito do fenômeno religioso tanto são

de caráter psicológico como de cunho sociológico. Aquelas explicações psicológicas, por sua

vez, são intelectualistas ou emocionalistas. O tópico em questão – o xamanismo – quando

analisado, apresenta-se marcado principalmente por seu caráter emocionalista. Isto não quer

28 John BEATTIE. Introdução à Antropologia Social, p. 263.29 Sigmund FREUD. Totem e Tabu, p. 172.

35

dizer que esta marca não derive da consciência coletiva da comunidade considerada. Da

mesma forma como existem religiões em que a parte doutrinária assume a hegemonia, assim

também há outras em que a parte do ritual torna-se preponderante e chega quase a ofuscar a

parte reservada à doutrina. É o que acontece com o fenômeno religioso conhecido pelo nome

de xamanismo: neste a parte doutrinária é tão diminuta que parece inexistir.

O Xamanismo caracteriza-se, principalmente, pelo vigor e dramaticamente dos rituais.

Os participantes destes entregam-se de corpo e alma à função ritual onde buscam um contato

direto com a divindade e com os espíritos. Todos buscam ser possuídos, ao menos por

instantes, pelos espíritos. Este último fenômeno é conhecido por vários termos: transe,

possessão, êxtase, visão ou fenômeno mediúnico. Este fenômeno é universal, embora com

variações de região a região e de religião a religião. No catolicismo, por exemplo, a tradição

fala de visões e de experiências intensas de transes por parte dos santos e de pessoas piedosas.

Nos cultos afro-brasileiros o fenômeno é ainda mais freqüente. Em todos os toques realizados

nos terreiros de xangô ocorre o fenômeno da possessão ou do transe. Nestas ocasiões, de

acordo com o ponto executado (cada ponto é dedicado a um orixá), os filhos-de-santo vão

entrando em transe. Aí eles passam a dançar com mais entusiasmo, suas fisionomias se

transformam, passam a suar com abundância, fazem trejeitos, soltam gritos, gesticulam com

vigor e parecem ficar fora de si – é o “santo que baixa”. Nota-se que a possessão, embora

possa ser vista como uma experiência individual e íntima, apresenta um padrão coletivo.

Todos os filhos de Ogum, por exemplo, dançam do mesmo modo e cumprem um coreografia

padronizada – ao dançarem parece que empunham uma espada e assumem uma postura

guerreira, mesmo quando não empunham de fato uma espada ou um simulacro. A respeito do

fenômeno escreveu Bernardi:

A palavra ‘êxtase’, na sua derivação etimológica do grego ex-stasis, sugere a idéia do estar fora de si. No possesso dá-se como que uma dissociação da personalidade. O fenômeno é acompanhado de muitas outras manifestações, mais ou menos marginais, tremores, suores, baba, grunhidos, glossolalia, injunções, predições, mudança de identidade pessoal, força hercúlea, debilidade, etc.Os objetivos do êxtase são, em geral, os do culto, isto é, o contato com a divindade e os espíritos. As motivações são determinadas por preocupações sociais. As aspirações individuais ficam à margem, como secundárias. Entre as sociais prevalece a cura de doenças; o êxtase e a possessão são os meios para transmitir o remédio curativo. Procuram-se também desejos de libertação e de alívio; libertação da angústia do viver quotidiano, recreação e satisfação psicológica. No momento culminante do êxtase e da possessão, dar-se-á uma fortíssima tensão da pessoa toda, que não tem longa duração (desde poucos minutos a algumas horas). Segue-se o colapso, a distensão e o despertar, que sendo também momentos de

36

possessão e cansaço provocam serenidade e paz, não só no sujeito mas também nos assistentes que participam na sessão.30

Como já foi dito, o xamanismo assume várias formas. Mesmo onde quase a totalidade

dos participantes pode entrar em transe, há um deles que é reconhecido como o ministro do

culto, o sacerdote, o xamã. O termo xamanismo deriva da primeira descrição do fenômeno

observado no norte da Ásia. O xamanismo implica no conhecimento e uso de várias técnicas

que facilitam a entrada em transe. O fenômeno foi encontrado entre os índios norte-

americanos, entre os índios da América Latina, na África e em muitos outros lugares. Pelas

observações feitas em terreiros de xangô, por exemplo, observa-se que o “pai-de-santo”,

embora podendo entrar em transe, é o único que parece ser senhor da situação, tem uma

atitude ativa no transe; ao passo que as demais pessoas entregam-se descontroladamente ao

fenômeno, de forma passiva. O mesmo fenômeno de poder do xamã sobre os espíritos é

observado por Charles Wagley no xamanismo Tapirapé.

Com respeito ao xamã nota-se uma coisa muito interessante, trata-se de como

determinadas pessoas se tornam xamãs. Melhor dizendo, quase todos os xamãs passam por

um determinado rito de iniciação para transformar-se em xamã. Franz Boas estudou o

fenômeno de modo intensivo entre os Kwakiutl e observou certa constância no processo de

transformação pelo qual passaram todos os xamãs estudados. Em geral, na comunidade

existem vários jovens tidos como possuidores de virtudes xamanísticas. Eles passam provas

que evidenciem suas capacidades e habilidades. Devem demonstrar a coragem de enfrentar os

espíritos da floresta e também demonstrar que tem poder sobre eles. Além disso, é necessário,

para que sejam reconhecidos como xamãs de fato, passarem pela prova final, que consiste

num período de enfermidade – em geral deliberada - durante o qual sofrem crises e acessos.

No meio da noite, quando os espíritos estão à solta, são acometidos de crises e soltam gritos

lancinantes. A comunidade que está recolhida diz que o noviço está se tornando xamã. Vão a

ele e dão prosseguimento ao ritual. Vestem-no com roupas e colocam numa casa

especialmente construída para ele. Em suma, apesar das variações possíveis, uma coisa é

comum: acreditam que, se o noviço não conseguir tornar-se xamã, ele virá a morrer.31

Ainda com relação à pessoa do xamã, em geral os xamãs são homens, embora possa

ocorrer que algumas mulheres também ocupem esta posição.

30 Bernardo BERNARDI. Introdução aos Estudos Etno-Antropológicos, p. 421/2.31 Franz BOAS. Kwakiutl Etnography, p. 133.

37

Charles Wagley, no estudo que empreendeu sobre o xamanismo, observou que o xamã

pajé entre os índios Tapirapé, na década de 1940, que habitavam o Brasil central a oeste do rio

Araguaia, tinha uma série de obrigações. Entre outras enumera as seguintes:

a) Tratar dos doentes da aldeia. O fumo é utilizado invariavelmente nos rituais de cura.

A defumação, tão utilizada hoje nas sessões de Umbanda, ali é praticada com todos os

requintes e em todos os acontecimentos xamanísticos. À defumação segue-se o ritual assim

descrito pelo autor:O pajé sopra fumaça por todo o corpo do paciente, depois nas próprias mãos, cospe nelas e começa, vagarosa e firmemente, a fazer massagens no enfermo, sempre em direção às extremidades do corpo. Demonstra estar removendo uma substância estranha por um movimento rápido das mãos, quando atinge a extremidade de um braço ou de uma perna.32

É notável observar-se que esta descrição aplica-se quase perfeitamente a uma sessão

de Umbanda quando o mestre do culto está a dar os passes. É de notar também que o rito

acima descrito denota um procedimento mágico.

b) Cabe também aos pajés proteger os Tapirapé contra os espíritos. Entre esses índios

o medo dos espíritos das florestas (os Anhangás) ou dos mortos é muito forte e pode causar

desmaios e cenas de incontrolável pavor.

c) Uma obrigação muito importante do pajé dá-se por ocasião da gravidez. Embora

esses índios saibam que a gravidez está relacionada com a relação sexual, esta não é condição

suficiente para que ela ocorra, “acreditam que a concepção só é possível quando um pajé

‘traz uma criança para uma mulher’”. Essa gente acredita que várias espécies de aves e

peixes, bem como o trovão, possuem ou dominam os “espíritos das crianças” cabendo ao pajé

consegui-los.

d) A segurança é também tarefa dos pajés. É ele que deve proteger as pessoas contra

os ataques dos animais ferozes. A ele cabe dominar as serpentes e os jacarés.

e) Outra obrigação do pajé ou dos pajés é a do suprimento de alimentos. A ele cabe

atrair as varas de porcos-do-mato e outros animais que servem de alimento para os índios

Tapirapé. Os pajés também encarregam-se de provar e aprovar os alimentos para o consumo

da aldeia. As primícias passam, assim, sempre pelas mãos dos pajés.

Tudo isso faz com que a posição social desfrutada pelos pajés nas aldeias Tapirapé –

pode-se dizer o mesmo para a maioria das tribos Tupi – seja muito importante. Aos pajés é

atribuído todo bem e todo mal. Daí perceber-se que a existência dos pajés ou xamãs é

32 Charles WAGLEY. Xamanismo Tapirapé, p. 248.

38

perigosa e sujeita à ameaça de morte contínua. Neste caso ele é visto como um feiticeiro que

pode fazer também o mal.

Como se vê, não obstante os perigos pelos quais os pajés passam, também é verdade

que o xamanismo é o canal mais importante dentro da cultura Tapirapé de atribuição de

prestígio. Daí se poder dizer que o poder dos pajés não é apenas religioso-mágico, mas

também político. É verdade que em face da existência de mais de um pajé tido como mais

poderoso e acreditado e os outros menos poderosos. Ao que parece, existe uma convergência

na atribuição de prestígio ao xamã. Ao lado das qualidades pessoais, há o fator idade: quanto

mais experiência e vida têm o pajé, mais acreditado ele se torna, e maiores os riscos de vida

ele corre.

V O Etnema Religioso-Mágico – Segundo Bernardo Bernardi.

Se na pesquisa antropológica se deve sempre evitar a inclinação etnocêntrica que tende

a fazer da própria cultura a medida e a pedra de toque, tal norma torna-se ainda mais premente

quando se trata de investigar a religião e a magia como etnema. Não há dúvida de que

discussões sobre monoteísmo e politeísmo que animaram os primeiros estudiosos das

religiões “primitivas” se revelaram bastante estéreis para a compreensão das próprias culturas

39

“primitivas”, e não porque não fosse legítimo formular uma catalogação das religiões na base

da crença em uma ou mais divindades supremas, mas porque se baseava numa problemática

intimamente conexa com a história cristã e humanista do Ocidente, alheia a essas culturas.

Não foi sem razão, por exemplo, que aos estudiosos ocidentais se censurou o terem feito da

análise das religiões africanas um assunto de polemica e de interesses internos da sua cultura,

assim como o avalia-la na perspectiva peculiar das culturas africanas.

O estudo antropológico aborda a religião e a magia sem preconceitos. Para o

antropólogo, todas as religiões são verdadeiras e todas as formas de magia são dignas de

atenção, porque exprimem uma necessidade humana e constituem parte essencial da cultura.

A procura duma explicação da presença do homem sobre a Terra, do significado da

vida, do bem e do mal, do sofrimento e da dor, da morte e do pós-morte, não dá tréguas, e o

esforço de interpretação nunca atinge o fim. Mas a partir desta procura definem-se os valores

conceituais de base e determinam-se as normas racionais do comportamento, numa visão e

numa prática de vida que relaciona o homem com toda a natureza.

Trata-se de uma atividade tipicamente racional. Toda a forma de religião e de magia

propõe um sistema de pensamento (ou doutrina). Esta atividade participante levou bem

depressa os antropólogos a refutar os preconceitos e as escalas evolutivas construídas pelos

seus próprios mestres e a descobrir o filósofo, mesmo no homem “primitivo”.

O etnema (resultado dos antropemas – expressões capilares da cultura, originadas pela

intuição inventiva dum indivíduo, e que, portanto, se especificam como raízes da estrutura

cultural e social) religioso-mágico não se limita apenas ao nível intuitivo e interpretativo.

Estrutura-se num conjunto de atos e de manifestações culturais, religiosas e mágicas que tem

por fim colocar o homem numa relação precisa com o universo, corrigir todos os desvios e

manter eficiente a ordem estabelecida. E, visto que o homem se encontra imerso totalmente na

realidade cósmica, não há manifestação cultural que não reflita, de maneira específica, a

preocupação de estabelecer o homem numa relação cósmica precisa. Por outras palavras: não

há aspecto da cultura, não há etnema, que não seja, também de qualquer modo, religioso.

Os aspectos misteriosos do cosmos, exatamente porque são misteriosos e

incognoscíveis, suscitam reações contrastantes nos homens individuais. Há pessoas que se

sentem estimuladas à procura e à contemplação; outras que, embora sensíveis ao mistério, não

ficam, senão espordicamente, a pensar nele; outras, por fim, que permanecem indiferentes e

quase cépticas perante a sua realidade e, em particular, perante as explicações ensaiadas pelos

outros homens. Quando, por exemplo, se diz que os “primitivos” são profundamente

40

religiosos, se se quer dizer que a religião, como interpretação e norma de relação com o

mistério do cosmos, forma uma unidade com toda a cultura “primitiva”, exprime-se quase

uma tautologia; se em vez disso se quer dizer que todos os “primitivos” são religiosos, afirma-

se uma inexatidão. Também entre os “primitivos”, como entre todos os homens, há

indiferentes e cépticos.

Na pesquisa é necessário ter presente estas diferenciações, seja para a escolha dos

interlocutores seja para a avaliação do seu testemunho. Assim, deve acrescentar-se que a

diferenciação pode distinguir todo o conjunto de culturas particulares, como se salienta a

partir da diversidade das especulações e das expressões mitológicas e rituais.

O aspecto misterioso do cosmos é o objeto em volta do qual se desenvolve a atividade

religiosa e mágica do homem. A unicidade do objeto explica como é difícil traçar uma linha

nítida de diferença entre uma e outra atividade. A própria compreensividade unitária do

conceito de força vital, para o qual convergem as interpretações do mistério do cosmos,

oferece um outro motivo de explicação da íntima ligação entre religião e magia.

A dificuldade de distinguir com exatidão os dois conceitos foi complicada pelas

perspectivas inexatas com que se colocou o problema, sobretudo em relação às religiões

primitivas. Desde o fim do século XIX até cerca de metade do século XX, também este

problema foi dominado pela busca das origens históricas. A disputa entre os evolucionistas

clássicos e os histórico-culturais dizia respeito à anterioridade histórica da magia; por um

lado, fazia-se corresponder a religião a um estado racional mais perfeito e, portanto, posterior

ao estado mágico; por outro, via-se a magia como uma forma de decadência e, daí, posterior à

religião. Também esta disputa, como todas as pesquisas sobre as origens “históricas” da

cultura, se revelou completamente estéril “historicamente”.

Outras teorias “originárias” mostraram-se, igualmente, subjetivas. Por exemplo,

segundo Frazer, a magia e a religião seriam estados anteriores à ciência, e assinalam a

passagem evolutiva do conhecimento humano da irracionalidade para a racionalidade.

Durkheim, por sua vez, distingue a religião e a magia em termos de sagrado e profano, social

e pessoal. A religião tenderia a constituir-se em igreja, desenvolve um estrutura associativa e

persegue objetivos sociais. A força coerciva da sociedade-igreja estabelece a norma, isto é,

põe limites que o homem não pode ultrapassar: a coerção, a proibição, isto é, o tabu,

assinalam o limite do sagrado. A magia, pelo contrário, serviria somente para fins individuais,

de interesse particular; não impõe limites, antes procura ultrapassa-los, quando existem, por

meio de fórmulas e encantamentos; é o terreno do profano. Nas estruturas totêmicas dos

41

Australianos, Durkheim vê a demonstração etnográfica das suas teorias e indicou que o totem

é o símbolo mais exato da sua idéia de sociedade.

A distinção de Durkheim parece muito arbitrária e o seu conceito de totem não

corresponde à realidade etnográfica australiana. De fato, o totem dos australianos é

multiforme; há totens coletivos, próprios de grupos de parentesco, mas também há totens

individuais, ligados às simples pessoas.

A cultura humanística e cristã contribui para radicar e difundir o estereótipo da

distinção entre religião e magia, oposição entre o racional e irracional, relação com agentes

pessoais e com forças impessoais. O próprio De Martino se conforma com esta concepção e

contrapõe constantemente a magia à civilização como a irracionalidade à racionalidade, a não

história à história. Nas pesquisas sobre o Sul da Itália interpreta a magia como

“sobrevivência” de antigos estados irracionais. (DE MARTINO, 1966. p. 8 e 137).

Uma distinção assim não pode considerar-se universalmente válida, se tiverem

presentes às concepções sobre a religião e a magia, que a antropologia se encontra no dever de

analisar. O etnema religioso-mágico exprime a interpretação humana do cosmos, na sua

totalidade misteriosa e inatingível, composto por um conjunto de forças vitais e de morte,

contra o qual o homem deve defender constantemente a sua existência e determinar as

próprias relações. O mistério do cosmos continua oculto, quer perante os esforços “racionais”

da religião quer perante as ligações “irracionais” da magia. A este nível fundamental de

interpretação e de pesquisa deve admitir-se que não existe qualquer diferença entre religião e

magia; ambas constituem um etnema único. Estas conclusões são confirmadas pelos estudos

comparativos mais recentes.

“A distinção entre magia e religião”, escreve D. Hammond, “expressa como

dicotomia e polaridade, não pode defender-se. A magia não é uma entidade distinta da

religião, mas uma forma de comportamento ritual e, portanto, um elemento da religião”

(HAMMOND, 1970. p.1355). E um outro estudioso, H. Philsooph, conclui deste modo uma

pesquisa sua: ... nem podemos dizer, como se tendeu a afirmar especialmente nos últimos decênios, que as crenças primitivas mágico-religiosas têm dois pólos, pessoal e impessoal. Em primeiro lugar, o poder sobrenatural não entra em oposição com os atuantes, mas pertence-lhes, emana deles e, assim, é-lhes essencial. Os agentes podem existir ou, pelo menos, crê-se que existem, só que são fenômenos físicos, sociais, psicológicos, e assim por diante, que podem interpretar-se como manifestações do seu poder. Em segundo lugar, uma vez que o poder sobrenatural pertence aos agentes pessoais, não é exato chamá-lo impessoal. Assim, a concepção, seja da religião primitiva seja daquilo que, bem ou mal, é considerado magia primitiva, é uma concepção só e verdadeiramente personalista. (Philsooph, 1971, p.201.)

42

É lógico observar que o termo “personalista” e a palavra “pessoa” correspondem a

conceitos culturais tipicamente ocidentais e clássicos. São, portanto, entendidos, não em

sentido etnocêntrico, mas como termos de referência para compreender e analisar os sistemas

de pensamento das culturas “alienígenas”, estranhas à tradição clássica-ocidental.

Em todas as culturas, simples ou complexas, o enigma da vida e da morte permanece

como documento persistente da condição humana perante o mistério. Por esta razão, a religião

e a magia não cessam de adequar os termos das suas interpretações e das suas estruturas aos

conhecimentos novos adquiridos pela mente humana. Isto acontece tanto no âmbito das

religiões estabelecidas como nos movimentos espontâneos de reforma; tanto nas práticas

tradicionais da magia como nas novas expressões mágicas da atualidade. A intenção é sempre

idêntica: atenuar a angústia do homem perante o oculto, que é precisamente o mistério da vida

e da morte. Assim se explicam o renovado interesse religioso dos nossos tempos e a

proliferação de novas magias, não obstante o extraordinário e estupendo progresso das

ciências que levou à conquista do espaço e dos planetas.

5.1 O Etnema religioso-mágico e o ambiente.

A ação eficaz do oikos na formação da cultura manifesta-se nitidamente também em

relação à atividade religiosa e mágica. Antes de tudo, presta-se à simbolização, sugerindo os

termos de confronto e as analogias que entram na linguagem religioso-mágica. Não é possível

penetrar a fundo o significado dos conceitos e dos termos religiosos e mágicos duma cultura

sem ter em conta o ambiente natural dentro do qual cada determinada cultura se desenvolve.

Não só as expressões conceituais e teóricas estão estritamente ligadas ao oikos, mas também

as manifestações rituais. E é simplesmente lógico que assim aconteça. De fato, o objetivo

primário e imediato da religião e da magia é aliviar o peso existencial da condição humana, o

que seria completamente ilusório e ineficaz se a atividade religiosa e mágica se não

movessem de acordo com a situração ambiental dentro da qual toma consistência a condição

humana.

Existe, portanto, uma relação estreitíssima entre religião, magia e oikos. A análise

antropológica moderna começou a encarar as manifestações religiosas e mágicas também

nesta perspectiva. Viu-se, assim, que contribuem para manter o equilíbrio interno dum

ecossistema no mesmo momento em que são condicionadas por este. A busca da direção de

caça ou pesca, ligada à linha do rio adivinhatório – tanto entre os Pigmeus como entre os

43

Esquimós - , serve para estabelecer uma espécie de rotação entre os lugares de caça e de pesca

e permitir um recrudescimento da vida animal, de outro modo ameaçada na sua própria

existência. Rappaport, analisando a relação entre o ciclo ritual dos Tsembaga da Nova Guiné

e as suas condições ecológicas, chega à conclusão de que “não seria impróprio considerar os

Tsembaga e as outras entidades com as quais compartilham o seu território como um

‘ecossistema ritualmente regulado’, e considerar os próprios Tsembaga e os seus vizinhos

como uma ‘população ritualmente regulada’. No desenvolvimento do ciclo, o conjunto dos

ritos ajuda a manter intacto um ambiente, limita o recurso à violência da guerra de maneira a

não pôr em perigo a existência regional da população, reproporciona a relação entre homem e

território, serve para equilibrar entre os vários distritos o excessivo número de doentes e, com

os sacrifícios de suínos, assegura às gentes uma alta qualidade de proteínas no momento em

que tem delas maior necessidade” (RAPPAPORT, 1967. p.28-29).

O caso mais típico de relações entre o etnema religioso-mágico e o ambiente tem-se

talvez no respeito dos hindus pela vaca. Este animal nutre-se de alimentos em que o homem

não toca, e por isso deixam-no vaguear; com as suas fezes proporciona argamassa e

combustível que, na situação ambiental da Índia, seria difícil obter industrialmente; serve para

os trabalhos agrícolas duma maneira essencial; uma vez que a agricultura continua na base da

atividade econômica e cultural da Índia, o caráter sagrado do animal transmitir-se-á de

geração em geração.

Muito semelhante é o comportamento dos povos pastores africanos, os Masai, por

exemplo, e os Nuer, que também, sem chegarem ao extremo da atitude hindu, rarissimamente

permite a morte de um bovino.

Também as manifestações de culto, a oração, o sacrifício e a adivinhação estão

estreitamente condicionadas pela situação ecológica.

A reação íntima entre os ecossistemas e o etnema religioso-mágico deve, portanto,

considerar-se importante e fundamental. Entre outras coisas, como oferece motivo de

simbolização interpretativa e de estrutura prática, presta-se, pela tipologia, à distinção das

várias formas de atividade religiosa e mágica. Vamos nos ater a esta relação para indicar uma

tipologia do etnema religioso-mágico que respeite a validade cultural de toda a sua expressão.

Assim, conformando-se às antigas denominações, distinguiremos três tipos: teísmo silvestre,

agrícola e pastoril. Nesta denominação põe-se em relevo o tema central da busca de deus, mas

não a idéia de deus como tal, e a diferença de que tal busca se reveste em relação com os

correspondentes ecossistemas.

44

Contudo, primeiro é necessário fazer algumas observações sobre o conceito

antropológico de deus. Antes de mais, deve-se recordar que o vocábulo e o conceito derivam

da raiz indo-européia div, que significa “luzente”. O brilho descreve uma qualidade do Sol e

serve como símbolo para indicar o ser supremo que possui a plenitude da força vital. Desta

raiz e deste conceito derivam os vários apelativos indo-europeus para “deus-Pai”: do sânscrito

dyauspiter, do grego zeuspater, do latim júpiter, etc. Há aqui um traço cultural comum que

ficou da tradição histórica, mas que igualmente respeita aos conceitos fundamentais de um

deus do céu, simbolizado pelo Sol luzente, e que, pela característica eminente de pai, trata da

analogia da estrutura da família patrilinear. Referindo-se a este significado etimológico, o

grande sanscritista Max Muller chamou-lhe a maior descoberta do século XX. Assim, é

possível dar-se conta da relatividade etnémica do termo deus e dispor-se a compreender, com

a maior amplitude, o esforço religioso e mágico das culturas estranhas à tradição indo-

européia. Na realidade, o simbolismo do mistério cósmico com referência a uma força

suprema, que n caso indo-europeu é o Sol, da qual emana a vida e que por isso é comparável à

figura do pai, encontra-se em quase todas as religiões de maneira mais ou menos acentuada.

Por este motivo, parece-nos ser objetivo dar ao termo “teísmo” um significado lato de busca

religioso-mágica e de especificar o caráter do aspecto ecológico.

5.2. O teísmo silvestre

A selva, entendida como estepe ou floresta, caracteriza de forma compreensiva a

cultura dos povos recoletores e caçadores. O seu trabalho não tende a modificar as condições

ambientais para as tornar mais fecundas, mas simplesmente a explorá-la para extrair a

alimentação e o sustento. A selva condiciona toda a vida destas gentes, mesmo nas expressões

simbólicas.

Pertencem a estas culturas todos os grupos de Pigmeus africanos (Gabão, Camarões e

Zaire) e asiáticos (Malásia, Filipinas, Nova Guiné). Os Pigmeus do Zaire que habitam s

florestas do Ituri são os mais bem conhecidos, chamados igualmente pelo nome tribal bantú

Bantuti e também, simplesmente, por Mbutis. As pesquisas de Schebesta e de Turnbull

confirmaram a autonomia da cultura dos Pigmeus e o extremo interesse dos seus etnemas.

A floresta está no centro das concepções e das práticas religiosas e mágicas dos

Pigmeus do Ituri. Eis o que escreve Turnbull, reproduzindo as palavras dum interlocutor seu,

de nome Moke, por ocasião do molimo, um rito da floresta:‘A floresta é para nós pai e mãe’, disse ele, ‘e, como um pai ou uma mãe, dá-nos todas as coisas de que temos necessidade – comida, vestuário, proteção, calor e

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afeto. Normalmente tudo corre bem porque a floresta é boa para os seus filhos, mas, quando as coisas correm mal, deve haver uma razão.’ Estava curioso por ouvir aquilo que ele teria dito sobre este assunto, porque sabia que as gentes das aldeias, nos momentos de crise, crêem ter incorrido na maldição de qualquer espírito ruim ou dum feiticeiro ou dum bruxo. Mas, os Pigmeus, não; a sua lógica é simples e a sua fé mais forte, porque o seu mundo é mais bondoso.

Moke demonstrou-mo quando disse que, normalmente, tudo corre bem no nosso

mundo. Mas, de noite, enquanto dormimos, pode acontecer que qualquer coisa vá mal. As

formigas guerreiras invadem o campo, vêm os leopardos e levam um cão ou uma criança. Se

estivéssemos acordados, estas coisas não seriam admissíveis. Assim, quando qualquer coisa

corre mal, há doença, falta a caça ou vem a morte, deve ser porque a floresta dorme e não

cuida dos seus filhos. Sendo assim, que fazer? Despertá-la. Despertamo-la cantando para ela,

e fazemo-lo porque queremos que se torne calma. Então, de novo, tudo correrá bem. Assim,

quando o nosso mundo vai bem, também então cantamos para a floresta, porque queremos

que ela participe da nossa felicidade.

Turnbull comenta que a expressão máxima das crenças dos Pigmeus na bondade da

floresta é oferecida pelo grande molimo, cantado por ocasião da morte dum deles. Nos cantos

não exprimem qualquer pedido; é suficiente despertar a floresta, e tudo se torna normal. Mas

se a floresta não acorda, se a morte intervém, que se faz?Então, os homens sentam-se em volta do fogo da noite, como eu também fiz na sua companhia, nos meses passados, e cantam cânticos de devoção, cânticos de louvor, para despertar a floresta e acalma-la, para a tornar, de novo, feliz. Quanto à desgraça acontecida, aludem a ela assim: à nossa volta, tudo é obscuridade; mas se a obscuridade é da floresta, então deve ser boa. (Turnbull, 1961: 92-93; cf. também 158-159).

Os Mbuti sustentam que no homem também há um poder espiritual (espiritual no

sentido de que se não conhece a natureza). Têm grande interesse sobre a sua natureza e

indicam-no, indiferentemente, com cinco termos: pepo, kéti, boru, roho, satani. Estas palavras

derivam todas da língua bantú (Lese, Bira, Ndaka, Ngwana).

No que respeita à divindade, Turnbull escreve que, para os Mbuti, não tem sentido

querer descrever o que se não viu nunca. Todavia, olhando para os vários aspectos da vida mbuti, podemos discernir uma crença num ser espiritual cuja natureza é, genericamente, a da floresta... A floresta é a divindade (ndura nde Kalisia, ou ndura nde mungu), não a sua habitação; daí a santidade da floresta e a profundidade de tudo o que é floresta (p.252).

A floresta é considerada boa, conseqüentemente afetuosa com os seus filhos. O som é

o melhor modo para a manter acordada e tranqüila. O som torna-se comunhão com a floresta,

especialmente nas celebrações noturnas do pequeno molimo, por ocasião de preocupações

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menores quanto à saúde e à caça, e do grande molimo, em ocasiões graves, sobretudo de

morte.

Uma outra população africana que apresenta um interesse cultural excepcional é a dos

Bosquímanes da África do Sul. Há diversos grupos, todos de proporções reduzidas, e vivem

mesmo na selva. Referimo-nos aos !Kung do Kalahari, estudados por Laura Marshall em

1962.

Os !Kung não acreditam que os animais tenham espíritos ou almas e que os objetos da Terra (como as árvores ou água, por exemplo) sejam penetrados por espíritos ou animados de espíritos próprios que já possuem (p.222).

Contrariamente a quanto tinha sido escrito sobre os Bosquímanes do Cabo, os !Kung

não consideram seres divinos o Sol, a Lua e as estrelas. Não personificam a chuva nem lhe

prestam culto.

Por outro lado, o conceito de deus do !Kung é bastante complexo. Sustentam que há

“dois deuses, um maior, outro menor, que têm mulher e filhos, e que os espíritos dos mortos

ficam adstritos ao seu serviço”.

Todos estes seres vivem no céu. O deus grande vive no Oriente, no lugar onde surge o

Sol; o deus menor, no Ocidente, onde o Sol se põe.

O deus maior é criador; criou-se a si mesmo e, depois, ao deus menor. Criou, também,

duas mulheres, uma para si e outra para o deus menor. A mulher mais idosa vive,

habitualmente, com o deus maior, no Oriente; a mais jovem, no Ocidente, com o deus menor;

mas, em qualquer momento, o deus maior pode levar as duas mulheres consigo para o

Oriente. As mulheres geraram seis filhos aos deuses, três machos e três fêmeas. Por fim, criou

a Terra, os homens, as mulheres e todas as coisas.

O deus maior deu também um nome a si mesmo, ao deus menor, às suas mulheres e

aos filhos. O seu nome deu-o em louvor próprio. Disse: “Eu sou Hishe. Não sou conhecido;

sou estranho. Ninguém pode mandar em mim.” Louvou-se também a si mesmo, com o nome !

Gara, quando fez algo contra os homens; e as gentes disseram: “Causa a morte entre o povo e

faz trovejar a chuva.” Dar a si mesmo um nome ruim era como reconhecer-se a causa da

doença e da morte.

São sete os nomes divinos do deus grande e só um é um nome terrestre. Os nomes

divinos pertencem só aos deuses; não podem ser usados pelos homens e devem pronunciar-se

com respeito.

47

A relação entre o deus grande e o deus menor não é a de pai-filho, e Marshal põe-na

em relevo para fazer notar a diferença da idéia Bosquímane em relação à cristã de Deus-Pai e

Deus-Filho. Trata-se duma relação padrinho-afilhado !gu!na-!guina, que no sistema de

parentesco bosquímane exprime uma relação divertida, respeitosa, pela diversidade de idade,

mas não consentida entre pai e filho.

Os montes dos deuses são objeto de profundo respeito; não devem ser pronunciados

em vão, especialmente pelas crianças (p.225). Marshall registrou também as transformações

recentes do conceito de deus. Os contos mitológicos das festas dos heróis confundem-se com

a descrição da atividade divina. Hoje, segundo Marshall, as duas figuras fundiram-se numa

imagem bastante antropomórfica do antigo criador.

A concepção dualista que distingue as crenças dos Bosquímanes, embora sendo

fundamental, não é tão precisa como se poderia concluir, acentuando a polaridade do deus

grande e do deus pequeno. Na realidade, a sua relação com os homens é alternadamente boa e

ruim, e exprime-se nos tons da vida, mas também nas calamidades e na morte. Tanto um

como o outro dão o bem e dão o mal,e algumas vezes o mal deriva do seu desacordo (pp. 244-

245).

Também os aborígenes Australianos pertencem ao teísmo silvestre. De fato, são

recoletores, não praticam qualquer forma de agricultura e de criação e vivem, como os

Bosquímanes, numa selva, que é a estepe.

Os etnemas religiosos tradicionais são assaz complexos. Elkin (1956) atribui três

características à sua “filosofia”: espiritual, totêmica e histórica (p.139). A concepção

espiritual exprime-se pela crença em seres espirituais que enchem o mundo e que inçaram de

vez em quando, tomando forma de vida humana. Porém, na base de toda esta complexa visão

cosmológica está a figura do ser supremo e da sua atividade.

Cada grupo dá um nome a este ser; os Kamilaroi chamam-lhe Baiame, os Kurnai

cham-lhe Bunfil e os Yuyin dão o nome de Daramulun.

A característica comum destes múltiplos seres é a atividade criativa e a indicação de

todos os ordenamentos sociais e religiosos dos homens. Por este motivo são chamados “heróis

culturais”; mas porque, depois donde tinham vindo, são também chamados “heróis celestes”.

A tendência para identificar o criador com qualquer herói cultural, já assinalada entre os

Bosquímanes, encontra-se bastante difundida; existe em numerosas culturas de maneira mais

ou menos evidente.

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“O herói celeste”, escreve Elkin, “era freqüentemente concebido como o herói que

conduziu a tribo ao seu local presente e fez a Terra com as suas características atuais. Além

disso, deu aos homens vários elementos da cultura material, ditou-lhes as leis sociais, e,

sobretudo, instituiu os ritos de iniciação” (p.218). A figura do ser supremo apresenta-se,

assim, intimamente associada, entre os aborígines Australianos, não apenas às formas

propriamente silvestres, mas também às instituições e às estruturas sociais. As iniciações

reconstituem “dramaticamente a era do sonho, isto é, os tempos dos primórdios, para

recobrar a plenitude primigénia do impulso vital dado pelos heróis culturais.”

Analogicamente, a concepção totêmica, nas referências lingüísticas e nos simbolismos

estruturais, relembra constantemente a presença dos antigos heróis aos homens de hoje.

5.3 O teísmo agrário.

A característica distintiva das concepções religiosas e mágicas dos agricultores é a

vida como fecundidade. O conceito de fecundidade deve compreender-se, em sentido lato,

como fertilidade dos campos e das famílias e sempre como continuidade da vida e da

sociedade no vínculo permanente com os antepassados.

A fé no ser supremo cede perante o predomínio dos antepassados ou de outros seres

primordiais. Na mitologia dos Wogeo, habitantes da ilha de Schouten, ao Norte da Nova

Guiné, os heróis culturais – manarang – criaram a ordem a partir do caos primordial;

modelaram o ambiente físico, descobriram a utilidade das árvores e das plantas, inventaram os

instrumentos e as armas, deram origem aos costumes locais e, direta ou indiretamente,

introduziram os sistemas de magia. Cada um deles tinha semelhanças humanas e agia como

um ser humano, homem ou mulher, idoso ou jovem, amante ou odioso; nascido, casado, com

família, sujeito à morte; mas não eram feitos de carne e sangue. Num dado momento,

desapareceram em grande parte e, de repente, apareceram os homens mortais, gente real como

nós. Ninguém procura saber de onde vieram estes passados das origens nem como terá sido

possível adquirir, depois do desaparecimento de tais mestres, as técnicas específicas e deduzir

as normas de comportamento estabelecidas. As gentes de hoje dizem simplesmente que os

heróis, ao irem-se embora, levaram somente a sombra (vanuru) das coisas e deixaram os

objetos (ramata, literalmente, “pessoas”). (HOGBIN, 1970. p.27).

O predomínio dos antepassados no teísmo agrário destaca-se também nas

manifestações do culto, especialmente nas ocasiões mais especiais e mais freqüentes, são

dirigidas diretamente para os antepassados. Por conseguinte, a relação dos homens com o ser

49

supremo debilita-se; sente-se como um ser longínquo e a sua invocação é rara. Desta posição

derivou, na linguagem da história das religiões, a expressão deus otiosus, que descreve um

ser supremo isolado, não invocado, afastado da vida humana. Todavia, seria errado dar um

valor excessivo a esta designação. Na visão conceitual de muitas culturas agrárias não é

possível separar o poder do ser supremo do dos antepassados. Por exemplo, entre os Kikuyú,

nas circunstâncias de extrema gravidade, quando é evidente que só a intervenção do ser

supremo pode ser eficaz, o pai de família dirige-se aos antepassados para que se reúnam aos

seus filhos na oração para demonstrar que a situação é verdadeiramente extrema.

(KENYATTA, 1938. p.240).

O conceito de fecundidade é amiúde ao valor do pensamento e da palavra. Temos um

exemplo significativo na atividade criadora de Gauteovan, o ser supremo dos Kogi da serra de

Santa Marta, na Colômbia. Gauteovan é a grande mãe que criou todas as coisas do mar, por

meio da aluna. Aluna é o pensamento, a imagem, a vontade, a memória, tudo o que é

atividade da mente. Não se trata de um conceito bem preciso, mas refere-se àquela visão

profunda do espírito da qual emergem as coisas que se traduzem em realidade. (REICHEL-

DOLMATOFF, 1951. p.9-14). Na África Ocidental, os Dogon, conhecidos pela sua mitologia

rica, dão muito relevo à força do pensamento e da palavra do deus criador Amma. “Na

origem, antes de todas as coisas, havia Amma, que repousava sobre o nada. Quando Amma

começou as coisas, tinha o pensamento no seu cérebro. O pensamento tinha-o escrito no seu

cérebro. O pensamento era a primeira figura”. (GRIAULE, 1965. p.61,87). A mitologia

dogon procede com um vastíssimo giro descritivo, como que para dar a medida do

incomensurável mistério de deus antes de chegar ao homem. A relação entre o homem e o

cosmos, entre o bem e o mal, entre a vida e a morte, emerge do mais profundo íntimo do

espírito criativo. A correspondência dos conceitos fundamentais, a proporção entre as coisas,

a recomposição contínua do equilíbrio, representa os elementos típicos da narrativa

mitológica: - Amma: nada; Pensamento: Signo; Palavra: Ação; Ovo cósmico: Estrutura

essencial; Vibração: ser; Unidade: Generalidade(GRIAULE, 1965).

A força da palavra como meio criativo encontra-se freqüentemente nas culturas da

Melanésia. E também nas culturas peruanas e andinas.

Um outro aspecto típico do teísmo agrário é a valorização simbólica da terra. Também

ela está intimamente ligada ao conceito de fecundidade. Antes de tudo, a terra proporciona o

solo para cultivar; nele se depositam as sementes que germinarão. A lavoura dos campos, a

obtenção excitante dos frutos, a angústia do desaire, a alegria do êxito das colheitas,

50

exprimem-se numa atitude de afeto e apego inteiramente normal e coerente nas culturas

agrárias. A terra, além disso, é a morada dos antepassados. Eles foram os primeiros a ocupá-

la, viveram sobre ela e foram nela sepultados. Às vezes, fazem-se descrições da vida dos

antepassados no interior da terra que reproduzem a imagem da estrutura social à superfície.

Deste modo, a terra adquiriu um valor sagrado e um significado simbólico próprio e universal.

Por exemplo, entre os Tallensi do Gana a terra é considerada “viva”, num sentido místico,

como unidade total; tem o seu limite no horizonte e a sua vida manifesta-se na relação com as

criaturas que a habitam. (FORTES, 1945. p.142,43).

Deste conjunto de conceitos tiraram o seu grande desenvolvimento o culto religioso e

as práticas mágicas. A magia, em especial, parece prosperar com maior amplitude nas culturas

agrárias.

5.4 O teísmo pastoril.

A visão constante de céu e a ligação sólida do homem ao gado que cria são as

características fundamentais do teísmo pastoril. Para o pastor, o céu apresenta-se como o

símbolo mais evidente da totalidade do cosmos e os animais dos seus rebanhos oferecem-lhe

o meio de pagar constantemente, com sacrifícios, as relações com o céu.

Normalmente, portanto, o ser supremo tem um caráter urânico que lhe advém por

meio das relações com os seres celestes e as manifestações atmosféricas. É freqüentíssima a

denominação “céu” para exprimir o nome de deus. Os Samoiedas da Ásia setentrional

chamam-lhe Num, céu. Tängri, céu, é o ser supremo dos povos altaicos. Wak, céu, é o deus

dos Galla da Etiópia e do Quênia e dos Rendille dos Quênia.

Asis é o deus dos Kipsigis do Quênia. Peristiany nota que as explicações que as gentes

dão destes nomes são várias.

Deus, espírito do céu, que é como o vento e o ar, é o criador, o impulsionador de todas

as coisas. Porque fez o Mundo, é invocado nas orações como Kwoth ghana, espírito do

universo, no sentido de criador do universo. (EVANS-PRITCHARD 1956. p.4). Evans-

Pritchard analisa o verbo cak, que “significa criação, exnihilo, e quando se fala das coisas

pode-se usar só em relação a deus”.

Na concepção de Nuer, deus é espírito criativo. É também ran, uma pessoa viva, cujo

yiegh, espírito de vida, sustém o homem. Nunca se ouviu os Nuer dizer que ele tem forma

humana, mas, por ser onipresente e invisível, vê e ouve tudo o que acontece, pode ficar

inquieto e pode amar.

51

Nos atributos do ser supremo nuer encontram-se de maneira bastante definida os

caracteres das figuras análogas do teísmo pastoril. Propositadamente, transcreveu-se o texto

de Evans-Pritchard, quer pelo seu valor documental quer porque serviu, mais do que outros

textos, para a discussão geral do problema.

Uma observação concludente é oportuna depois desta breve exposição dos vários

teísmos. Diz respeito à impropriedade dos termos monoteísmos e politeísmo, aplicados a estas

concepções religioso-mágicas. Os dois termos, como já se disse, são alheios à visão

existencial das culturas, fora da área mediterrânica e cristã. Querer insistir no seu uso em

relação a estas culturas cria apenas motivos de confusão e constituem um impedimento à

compreensão etnémica e autônoma do seu valor. Não se trata de definir o mono ou o poli, mas

de compreender que a multiplicidade, talvez contraditória, das forças misteriosas do cosmos

se apresenta à mente humana como partes integrantes da única realidade do universo.

5.5 A estratificação hierárquica dos espíritos.

A concepção teísta, como se viu de maneira particular entre os Nuer, é espiritualista.

Não seria exato, em vez disso, chama-la animista. O termo animismo, como a palavra

primitivos, é uma sobrevivência das teorias evolucionistas. Hoje continua ainda a fazer uso

deles para indicar, de modo compreensível, as “religiões-pagãs” (FROELICH, 1964). Mas o

termo “pagão” está ligado à história cristã e tem um significado negativo – sem religião - que

o torna inutilizável para a classificação geral. Em todo o caso, o animismo entendido neste

sentido é muito diferente do animismo descrito por Tylor como “crença em seres espirituais”,

elemento mínimo da religião.

O fenômeno animista, compreendido no sentido novo de expressão dum modo

singular de ver os seres e as coisas, encontra-se, sobretudo, correlacionado com os fenômenos

da natureza, seja física (espíritos da natureza) seja humana (espíritos dos mortos e dos

antepassados).

A animação do universo por meio dos espíritos é concebida de maneiras variadas e

caracterizantes. Os aborígenes Australianos sustentam que os heróis celestes deixaram em

todo o território um enormíssimo número de espíritos, alguns dos quais, entre outros, entram

no ventre das mulheres para encarnarem como homens.

As montanhas, os rios, as águas, as árvores, os astros, não há coisa alguma ou ser que

não possa ser considerado como morada e manifestação de qualquer espírito.

52

Ordinariamente, os espíritos da natureza não são considerados divinos nem tem um

reconhecimento de culto. Às vezes, pelo contrário, atribui-se-lhes um conjunto de capacidades

superiores, de forma subordinada entre si, e em torno dos lugares das suas manifestações

estabelece-se centros e formas de culto.

Há também casos em que são considerados divindades e postos em relação direta e

subordinada como o ser supremo. Chega-se assim à formação dum verdadeiro panteão com

uma estratificação hierárquica de todos os espíritos do cosmos. É a este tipo de concepção

que, em geral, se aplica a designação de politeísmo, com os conseqüentes equívocos que já se

mencionaram.

5.6 O culto em geral.

As manifestações exteriores da religião e da magia exprimem-se no culto. Também na

exteriorização dos meios cultuais nem sempre é possível traçar uma distinção nítida entre o

que é religioso e o que é mágico. A ação ritual desenvolve-se como um fato único. Segundo

experiência recolhida por Bernardo Bernardi entre os Meru do Quênia e junto de outras

populações africanas e americanas, em todos os atos do culto é possível, mesmo na unidade

do rito, reconhecer diversos níveis: o nível empírico, mediante o qual se atua à base dos

conhecimentos tradicionais sobre o valor das coisas (ervas medicinais, partes do corpo da

vítima sacrificada, etc); o nível mágico, cuja ação se desenvolve, segundo um certo

automatismo, com palavras e gestos, a exatidão dos quais condiciona a eficácia do rito; o

nível religioso, mediante o qual se entrega à imponderável potência e vontade da divindade.

O culto individual é, em geral, íntimo e espontâneo e esgota-se na intimidade da mente

e do pensamento. O culto coletivo é sempre social e faz-se acompanhar, freqüentemente, com

solenidades exteriores. A espontaneidade pode acompanhar também o culto social,

especialmente nas sociedades privadas de normas escritas. Igualmente, quando há uma

tradição a respeitar e a ação se desenvolve sob a orientação dum mestre de cerimônias, a

medida da correspondência individual que dá frescura à repetição tradicional é ampla.

As formas mais comuns do culto são a oração e o sacrifício. A oração exprime a

intenção do culto por forma verbal. Numa obra sistemática, que foi considerada clássica

durante muitos anos, Heiler (1921) classificava a oração dos “primitivos” como ingênua ou

naïve. Também esta avaliação etnocêntrica acabou por se revelar incompleta. Entre os

“primitivos” há expressões simples e ingênuas de oração, e há complexas formulações que

acompanham as cerimônias. Uma destas é o chamado mito Bagre dos Los Dagaa do Gana.

53

Trata-se duma longa narração elaborada sobre a relação entre deus, Naangmin, os seres da

selva e o homem, recitada em parte antes e em parte durante as cerimônias da associação

Bagre.

A oração exprime-se através do silêncio, da palavra e de gestos. O valor do silêncio

como oração está bastante espalhado. Neste sentido se interpreta a breve paragem dos

Andamaneses antes da partilha da peça de caça. No silêncio e no isolamento dá-se a procura

do espírito protetor por parte dos jovens índios da América do Norte. A forma litânica, na

qual o corifeu exprime a intenção e o coro confirma com uma invocação rítmica e

estereotipada, é freqüentíssima entre os pastores. A dança é uma oração de gestos: por meio

da música, do ritmo dos movimentos e das máscaras procura estabelecer o contato com o

mundo místico.

O sacrifício tem um valor simbólico preciso: a oferenda, da qual o homem se priva,

exprime a dependência da divindade. É evidente que a expressão total, neste aspecto, se tem

no sacrifício humano. Algumas culturas, sobretudo do tipo agrário, deram uma importância

aberrante a esta forma de sacrifício.

Em geral, porém, o sacrifício humano é raro. Encontra-se sempre uma vítima animal

para substituir o homem. A importância máxima do sacrifício de animais encontra-se, como já

foi indicado, no teísmo pastoril. Mas também aqui a preciosidade do gado leva a encontrar um

substituto nos pequenos animais do rebanho ou da corte e, em vez destes, recorre-se

espontaneamente a frutos vegetais.

A natureza do sacrifício corresponde ao aspecto ecológico da cultura. Assim como os

pastores oferecem os animais que criam, bovinos, cavalos, renas, etc., os agricultores

oferecem as suas colheitas. As celebrações das festas das colheitas ou das sementeiras

assinalam as estações do calendário. No teísmo silvestre, o sacrifício consiste na oferta de

uma porção mínima da caça (parte do coração ou do fígado) ou da colheita (um pedaço do

favo de mel) e que por esta razão é chamada, embora também impropriamente, primícia.

O objetivo genérico do culto é estabelecer uma relação com a divindade ou com os

espíritos, quer para atingir um contato direto e pessoal (visões, êxtases, estado de possessão),

quer para obter proteção e ajuda, quer para reparar uma culpa cometida. Neste sentido, há

uma correspondência entre a finalidade do culto e o ordenamento das divindades e dos

espíritos. Em geral, recorre-se ao ser supremo em circunstâncias graves e solenes,

proporcionadas ao seu poder e à sua grandeza; os espíritos da natureza são invocados segundo

54

as suas características; os antepassados têm uma relação direta com os seus parentes e, mais

genericamente, com todo o seu povo.

O culto dos antepassados, como já se fez notar, tem um desenvolvimento particular no

teísmo agrário, mas requer uma explicação ulterior. Antes de mais, não corresponde

literalmente ao culto dos mortos; nem todos os mortos são considerados “antepassados”.

Aproximadamente, pode dizer-se que o culto dos defuntos respeita ao conjunto das

cerimônias para a sepultura. Por vezes, estão são reduzidas ao mínimo (por exemplo,

antigamente, entre os Kikuyú do Quênia), enquanto o culto dos antepassados é muito

complexo. O defunto só se torna antepassado depois do cumprimento duma série de

cerimônias, nas quais se incluiu a sepultura; e antepassados são somente as pessoas que em

vida tiveram uma importância social, que no âmbito do parentesco quer na atividade social.

Mbiti propõe substituir o temo ancestors pela expressão the living-deal – os mortos vivos,

para sublinhar o conceito de continuidade.

A expressão inglesa acestors woship, que literalmente se traduz por “adoração dos

antepassados”, ocasionou a definição de alguns escritores africanos (KENYATTA, MBITI).

Não se trata, de fato, duma adoração; os antepassados não são considerados divindades, senão

no caso da sobreposição do primeiro antepassado pelo ser supremo, mas apenas espíritos de

mortos que foram vivos. A motivação do seu culto é a coordenação com os parentes vivos e,

logicamente, pode-se considerar como uma “comunhão”, ou seja, uma correspondência de

relações, como sugere Kenyatta: communion with ancestral spirits, comunhão com os

espíritos antepassados (KENYATTA, 1938. p.26).

Os lugares de culto podem encontrar-se onde quer que seja e cada lugar, no próprio

momento em que se realiza o ato cultual, pode ser sagrado. Isto mostra mais uma vez o caráter

existencial das religiões etnológicas e a artificialidade da distinção entre sagrado e profano.

Por outro lado, há locais, como bosques, cascatas, fontes, etc., mais precisamente

ligados a manifestações de espíritos especiais. Os termos “santuário”, shrine, e “altar”, autel,

tem acepções mais vastas na linguagem antropológica do que na linguagem comum, ligada à

cultura e tradição cristã, e não estão necessariamente restritas a formas arquitetônicas

precisas. “Santuário” ou shrine pode indicar um centro de culto de qualquer espírito, seja no

interior duma casa seja nas suas proximidades, e encontra-se nas formas mais variadas, que

podem ser construções análogas às casas habitadas, ou também simples objetos, escabelos,

ramos de árvores, montes de pedra ou de terra, etc. O altar, analogamente, não é só a ara

romana ou a mesa cristã, é um objeto qualquer ou local, feito de pedra ou a própria pedra,

55

sobre o qual se oferecesse um sacrifício ou uma libação. A sua forma não é manifesta e

escapa quase sempre à observação superficial.

5.7 Mediação e culto: os sacerdotes.

O exercício do culto não exige necessariamente um mediador. Há cultos e sociedades

em que se não aceita sequer a idéia de mediação e onde não existe sacerdócio. Entre as

grandes religiões, o Islão ortodoxo, por exemplo, não tem sacerdotes e os adidos às mesquitas

são meros servidores (Maomé não é um mediador, mas apenas profeta). Todavia, a

necessidade de chegar mais facilmente ao contato com a divindade e com os espíritos por

meio dum intermediário está muito espalhada. O sacerdote é o homem da mediação cultual. O

elemento fundamental do sacerdócio consiste no direito de representação sagrada. Trata-se

duma representação ambivalente que permite ao sacerdote representar o seu grupo perante a

divindade e a divindade perante o seu grupo.

Devem distinguir-se duas formas sacerdotais: o sacerdócio ocasional e o sacerdócio

profissional. No sacerdócio ocasional, a atividade sacerdotal é exercida somente segundo a

necessidade do momento. O tipo mais autêntico de sacerdócio ocasional e, talvez, do próprio

sacerdócio é a atividade sacral do pai de família. Pela sua função no grupo familiar, o pai

possui um direito de representação que afeta mesmo as relações com a divindade e os

espíritos. A figura do pai sacerdote revela-se principalmente onde o parentesco tem um valor

estrutural proeminente e em relação ao culto dos antepassados. Mas a sua representação sacral

estende-se também aos atos referentes ao ser supremo nos momentos de particular urgência

ou gravidade para a família. Fortes escreve, acerca dos Tallensi do Gana, que “a autoridade

jurídica e ritual reside nos homens que se encontram na condição de pais. Ninguém,

enquanto não morre o seu pai, possui independência jurídica ou pode oferecer diretamente

um sacrifício a um antepassado da linhagem” (FORTES, 1959. p.27,30). O mesmo direito

observara Lindblom a respeito dos Kamba do Quênia: “Um filho não pode oferecer sacrifícios

enquanto o pai vive, nem o pode fazer uma mulher, exceto em casos especiais e só quando o

ordena o adivinho ou o mágico-médico”. (LINDBLOM, 1916. p.217-18).

Análogo ao sacerdócio ocasional do pai de família é o do chefe de parentesco (clã ou

linhagem), dos chefes em geral e do rei-divino. Normalmente, a função e a condição social de

quem, ocasionalmente, exerce uma atividade sacerdotal são de outra ordem (pai, chefe, rei),

mas podem tornar-se “sacerdotais” graças a polivalência do direito de representação, que

inclui, também, o aspecto sacral.

56

O sacerdócio profissional é representado pelo reconhecimento de funções sacras, como

qualificação social permanente, a ponto de constituir a condição e atividade normal de quem

nelas está investida. As formas mais típicas encontram-se, sobretudo, mas não

exclusivamente, nas religiões chamadas “politeístas”. Correspondendo às variedades e fluidez

renovadas das “divindades encontram-se outras tantas formas de cultos específicos com

sacerdotes, por vezes associados também em “colégios”.

As antigas descrições do Taiti apresentam-nos um quadro bastante articulado da vida

religiosa daquelas ilhas. Cada atividade e cada mester eram postos sob a égide dum deus

protetor, com edifícios sagrados separados e sacerdotes especializados. Os templos, marae,

podiam ser públicos e particulares; locais, territoriais, intraterritoriais, visitados estes últimos

pelas gentes de toda a Polinésia Oriental. Para se tornar sacerdote, tahré a-pure, era necessária

a escola de outros especialistas, com o fim de “aprender as invocações” e adquirir a

capacidade de se por em contacto com os espíritos-divindades. O exame que o candidato fazia

perante a assembléia de sacerdotes, se era positivo, admitia-o à festa pública, templo

territorial, que lhe conferia a consagração, ou seja, o direito de representação sacral.

(HENRY, 1962. p.162-163.)

Parrinder (1949) descreveu-nos o tirocínio dos “sacerdotes” no sistema religioso da

África Ocidental, especialmente entre os Fon do Daomey. Os candidatos são escolhidos pelo

espírito que deles se apossa no paroxismo da dança. Há uma distinção entre “sacerdotes” e

“oblatos”; os sacerdotes, olorishá, são proprietários da divindade; o seu ofício é hereditário na

família; os oblatos são chamados “mulheres do deus”: iyawo, aya-orishá, vodem-si – porque

no período da formação não devem ter relações sexuais, mesmo se forem casados. No fim do

período de formação a sua nova condição perante a divindade é ratificada através dum

sacrifício durante o qual o novo sacerdote diz à divindade; “Hoje contraíste matrimônio

comigo”. Amadurecido assim o seu direito de representação sacral, fica livre para volta à vida

ordinária, para se casar ou para retomar as relações sexuais.

O período de segregação dos candidatos Fon dura cerca de três anos para uma moça e

nove meses para um jovem. Durante este período, a vida é comunitária, sob a vigilância dos

sacerdotes antigos, com cerimônias de iniciação elaboradas. A disciplina é bastante severa;

nos casos de transgressões graves constitui-se um tribunal especial de iniciados. Contra as

culpas sexuais a pena máxima, no passado, podia ser a morte, atualmente é a expulsão. Uma

formação tão severa dá ao candidato uma personalidade nova, não só no sentido psicológico e

moral, mas também pelo conjunto de conhecimentos específicos que adquire, entre os quais a

57

língua crítica do culto; quando o novo sacerdote volta para a família, comporta-se durante

alguns dias como se não compreendesse já a língua materna.

Os sacerdotes possuidores do culto, passado o período iniciatório, não vivem

separados, mas integram-se completamente nas atividades sociais. Nestas atividades, entre as

quais a política, podem assumir tarefas e funções predominantes; muito depende da

personalidade e da sorte do indivíduo. É um fato que nas sociedades “políticas” a posição dos

sacerdotes é sempre de máximo poder, acima do qual impende só o poder absoluto do

monarca.

Das figuras autênticas de sacerdotes, que desenvolvem uma atividade de pura

meditação, devem distinguir-se os “para-sacerdotes”. Estes se diferenciam porque a sua

profissão é de caráter técnico, ao serviço de clientes. Tais são, por exemplo, o adivinho, o

mago-médico, o profeta, etc. Pode acontecer que também esses exerçam a atividade ocasional

de mediação sacral, mas a sua função religioso-mágica normal não é sacerdotal.

5.8 A adivinhação: o adivinho.

Na história religiosa da humanidade a arte da adivinhação ou mântica está

espalhadíssima e apresenta aspectos bastante complexos. Pode-se dizer que representa uma

manifestação constante da cultura humana, própria do etnema mágico-religioso. À conspícua

bibliografia sobre mântica dos antigos povos do Médio Oriente e mediterrâneo (Mesopotâmia,

Etrúria, Grécia, Roma, etc) (BOUCHÉ-LECLERCQ, 1879. p.82; CAQUOT, 1968) juntou-se

nos últimos decênios uma documentação etnográfica sempre mais vasta.

O problema situa-se na necessidade humana de descobrir, para o bem-estar da vida, o

que está escondido no mistério do cosmos. Se se tiver presente este dado fundamental, não

teremos dificuldade em admitir o caráter simultaneamente religioso e mágico da arte

divinatória. A atividade mântica pode, de fato, basear-se no contacto com uma divindade ou,

então, no recurso a meios empíricos de observação, mas tenta sempre “descobrir o que é

desconhecido e que, freqüentemente, não pode ser revelado mediante experiências e a lógica”

(EVANS-PRICHARD, 1937. p.11).

Essencialmente, a adivinhação é uma técnica de leitura de certos sinais, naturais ou

artificiais, para obter informações e conhecimentos úteis. Os sinais naturais, os astros, a

atmosfera, o movimento dos animais e das aves, as linhas da mão, as rugas do corpo, os

sonhos, tem um valor casual que se torna significativo através da leitura interpretativa do

adivinho. Os sinais artificiais são procurados diretamente pela leitura divinatória. A

58

interpretação dos sinais leva o adivinho a exprimir prognósticos augurais (os amina dos

latinos) e respostas ou oráculos (orácula).

A astrologia era a técnica mais difundida na antiguidade clássica; ainda o é na Índia e

voltou a espalhar-se no mundo ocidental, especialmente com o horóscopo.

Muito exatamente observa Forelich que o adivinho não é um vulgar charlatão. Crê na

eficácia da sua arte e valoriza as suas capacidades psicológicas para compreender e pressentir

as intenções do cliente. Por outras palavras, o adivinho é o técnico do diagnóstico; descobre a

causa do mal ou a chave do problema, mas não é a ele que cabe fazer a cura ou o sacrifício

prescrito; quando muito, dirige o desenvolvimento exato da ação.

Entre os vários conhecimentos do adivinho, há também as virtudes medicinais das

ervas e de outras substâncias. Neste sentido, é herbanário e mago-médico. Em geral, contudo,

nas sociedades e culturas em que a medicina não é uma ciência sistemática, não existe um

profissional específico para a cura das doenças. Há tradições e conhecimentos empíricos que

todos conhecem e que ampliam segundo as necessidades. Assim, algumas vezes a cura do

doente é um momento típico de intercâmbio social. Isso acontece, sobretudo, nas sociedades

de pequeno âmbito, como, por exemplo, entre os Bosquímanos, onde a cura do doente leva

todos os membros do grupo a unirem-se para realizar a dança mediúnica a fim de com ela

obter a cura. Em algumas situações modernas, por exemplo, na República da África do Sul,

foi instituída uma licença de herbanário para reconhecer legalmente a atividade médica

tradicional do médico-adivinho.

5.9 A feitiçaria: o feiticeiro.

Aquilo que se disse já sobre a aceitação social do xamã é certo e aplica-se a todos os

agentes do culto, sacerdotes, adivinhos, mágico-médicos. Mas não é verdadeiro nem se aplica

ao feiticeiro ou a quem pratique atividades de feitiçaria. O feiticeiro e as bruxas surgem como

figuras anti-sociais. Quando descobertos e detidos como culpados, são condenados, mesmo

com a pena de morte. Esta primeira observação, aparte quaisquer outras considerações sobre a

crença na feitiçaria, serve para distinguir nitidamente a figura e a função do feiticeiro, da

figura e das funções dos agentes do culto. Freqüentemente, ainda se confundem todos estes

tipos e com o nome de feiticeiro define-se quem quer que, nas culturas e nas sociedades não

ocidentais, exerça uma atividade de culto.

Na noção tradicional da magia costuma-se distinguir a magia branca e a magia negra;

a feitiçaria pertence à magia negra. Enquanto a magia branca opera às claras e tem fins

59

benéficos, a magia negra usa as trevas e a obscuridade para fins maléficos. O conceito de

feitiçaria, todavia, não coincide exata e completamente com o de magia negra. Evans-

Pritchard, no campo da antropologia, foi o primeiro a por em relevo a distinção, encontrada

entre os Zande, entre magia negra (sorcery) e feitiçaria (witchcraft).

O automatismo natural e “psíquico” da feitiçaria (mangu, witchcraft) encontra uma

analogia singular no conceito napolitano de “jettatura” (mau-olhado). Segundo De Martino, a

ideologia napolitana da “jettatura” está ligada ao iluminismo e é um “elemento de relação e

de compromisso entre o fascínio feiticeiro da baixa magia cerimonial e as exigências

racionais do século das luzes”. Como se vê, a correspondência analógica entre o conceito

zande de mangu, interpretado por Evans-Pritchard (um ato psíquico), e o conceito napolitano

de “jettatura”, descrito por De Martino (um poder psíquico), é notabilíssima. Isto põe em

relevo que o aspecto racionalista da concepção mágica não é somente uma característica da

cultura iluminista.

Se quisesse encontrar uma relação entre a tradução italiana da dicotomia zande e a

tradução inglesa de Evans-Pritchard, seria necessário reservar o termo stregoneria (feitiçaria)

para gbigbita ngwa = sorcery, ou seja, para descrever a “baixa magia cerimonial” feita de

fascinação e de atos “deliberadamente urdidos com um cerimonial definido”, enquanto o

termo napolitano jettatura (mau-olhado) serviria bem para mangu = witchcraft, para indicar

um poder ou um ato oculto, psíquico.

Tanto a “jettatura” como a mangu/witchcraft são concepções típicas, mas não

universais. Na realidade, a concepção mágica de feitiçaria é muito mais variada e complexa.

Nalgumas culturas não está muito desenvolvida e crê-se que a malignidade atinge a sua

culminância com o uso do veneno, isto é, com uma ação voluntária do homem; o feiticeiro é

um envenenador. Mas há outras culturas em que a feitiçaria é identificada com atitudes

externas, com palavras de maldição. Em todo o caso, a feitiçaria é o mal, o ódio; por isso é

universalmente condenada.

Uma pergunta pertinente diz respeito à identidade do feiticeiro. Uma vez que a

feitiçaria é anti-social, ninguém pode, impunemente, confessar-se feiticeiro; seria o máximo

da injúria. Segue-se que ninguém é feiticeiro e todos são feiticeiros, no sentido de que a

suspeita pode tocar qualquer um. Na prática, faz-se uma seleção.

60

5.10 Conservação e reforma: o profeta.

A atividade religiosa e mágica serve-se de noções e de normas rituais devidamente

conservadas e transmitidas como parte da herança cultural comum de uma sociedade. Visto

que a eficácia dos ritos se mantém quase sempre subordinada à observância da tradição, é

importante que ela seja transmitida com autenticidade.

Perante esta exigência, é diferente a situação das sociedades que confiam a tradição à

escrita das que se servem da simples transmissão oral. Como já se observou, nestas últimas

sociedades a iniciativa individual dos agentes do culto encontram mais amplo e mais fácil

âmbito para a iniciativa individual, embora continuando firme o respeito pela tradição. Na

sociedade com tradição escrita, a letra tende a sobrepor-se à espontaneidade e à rapidez, e a

própria escritura assume um valor autônomo de sacralidade.

Também a estrutura institucional apresenta aspectos diversos. A tendência associativa,

para constituir-se em igreja, não é apanágio apenas da religião, como afirmava Durkheim,

mas também da atividade religiosa e mágica. Em todo o caso, são muitas as sociedades, e não

só “simples” ou “primitivas”, nas quais a atividade religiosa e mágica não dá lugar a estrutura

social. Nas sociedades deste gênero não se encontram igrejas, nem corpos colegiais de agentes

do culto, mas a atividade religiosa e mágica desenvolve-se segundo uma exigência

existencial, no âmbito das estruturas do parentesco ou políticas, e os agentes do culto,

sacerdotes ocasionais, adivinhos ou xamãs, são considerados na mesma medida que todos os

outros membros da sociedade. Entretanto, são numerosas as sociedades nas quais o etnema

religioso-mágico se reveste de formas associativas eclesiásticas, com corporações sacerdotais

ou de profissionais do culto.

Em todo o caso, exista ou não escritura, exista ou não estruturas eclesiásticas, deve-se

reconhecer uma forte tendência conservadora como típica do etnema religioso-mágico. Esta

tendência genérica é reforçada pelos interesses da classe sacerdotal e causa um desfazimento

entre a conservação tradicional e a exigência renovadora do momento existencial bastante

profundo, criando motivo de desentendimento e de conflito. A superação de situações deste

gênero consegue-se por meio da reforma.

O profeta, em sentido antropológico, é o homem da reforma. Assume a tarefa de

denunciar o desfazimento entre o respeito da tradição e da letra e a realidade existencial, e

faz-se promotor de novas normas e de novas estruturas.

A palavra profeta deriva do antigo verbo grego pro-phémi, que significa

“dizer antes, com antecipação”, explicando aos outros aquilo que já conhece por revelação

61

dum oráculo. Platão, no Timeo, 72b, chama profetas “àqueles que falam em “êxtase”. Na

tradição bíblica, profeta corresponde ao hebraico nabi; podem-se distinguir três categorias: os

“profetas fanáticos”, reunidos em grupos ou escolas, com manifestações frenéticas e atitudes

estranhas e violentas; os “videntes”, hábeis em predizer e em resolver situações difíceis,

sendo, portanto, consultados por pessoas, como Saul consultou Samuel devido à perda das

jumentas do pai (I Sam.9:6); os “grandes profetas” investidos de uma missão divina, expressa

mediante mensagens ao povo, para a reforma religiosa, social e política.

Todas estas concepções se encontram nas culturas não bíblicas e extra-ocidentais, mas,

no significado antropológico, a atividade reformista constitui o elemento discriminante.

Na missão do profeta podem distinguir-se os momentos iniciais, reformista e

conclusivo. O momento inicial respeita à vocação ou à investidura do profeta. Apresenta

notáveis analogias com a chamada do xamã: o espírito toma posse do futuro profeta. O seu

comportamento torna-se estranho, isola-se, jejua ou alimenta-se de comidas repugnantes. É

um período de demência e as gentes consideram-no louco. Por fim, acaba-se por reconhecer

nesta loucura o sinal da missão.

Se em certos aspectos o profeta apresenta analogias com o xamã, diferencia-se deste

porque não efetua uma atividade técnica de cura, mas uma atividade moral de conselho, de

guia e de reforma. É neste momento reformista que se salienta a personalidade carismática do

profeta. A sua mensagem ressoa, as gentes consultam-no, rodeiam-no, seguem-no com

confiança e exaltação até ao fanatismo. A atividade reformista deve ser entendida em sentido

geral; pode limitar-se a um simples conselho indicativo e pode chegar a uma ação peremptória

de mudança. Depende muito da natureza da mensagem e da personalidade do profeta.

O sucesso ou insucesso assinala o momento conclusivo do profeta. Se a sua ação

reformadora é acolhida, ele coloca-se à frente de uma situação nova que tende a

institucionalizar-se e a estabilizar-se. O insucesso marca o seu fim, por vezes mesmo violento.

A situação complica-se se, como acontece freqüentemente, o profeta junta à reforma moral a

promoção de movimentos políticos. Enquanto a reforma moral o coloca em contraste com a

autoridade estabelecida, a ação política expõe-se ao confronto e torna-o chefe duma facção.

5.11 Os movimentos de reforma religiosa.

A proliferação dos movimentos de reforma religiosa é um dos fenômenos mais

significativos da dinâmica cultural, posto em movimento pela situação colonial. O significado

do fenômeno não está só ligado à situação colonial como tem também um valor essencial. As

62

condições de angústia, de sofrimento, de opressão, específicas da situação colonial,

manifestam-se com trágica fatalidade nas vivências humanas por muitas causas e noutras

situações. Fatalidades individuais, calamidades coletivas, cataclismos naturais, põem a nu as

insuficiências da condição humana, mas também das instituições sociais, e constituem,

amiúde, o momento determinado para mudanças e renovações culturais e sociais. Pela

impotência perante os acontecimentos o homem aprende a avaliar-se a si mesmo e a provar a

validade ou não dos conhecimentos culturais, a eficiência ou ineficiência dos ordenamentos

sociais. Assim, é levado a tentar novos caminhos e refugia-se, de modo místico, na esperança

de nova salvação. Nesta expectativa do que há de vir encontra resposta imediata a profunda

necessidade de cada homem, de dignidade, autonomia, independência e vida.

Os movimentos de reforma religiosa são conhecidos sob muitas denominações, cada

uma relativa às circunstâncias históricas em que se deram, ao seu conteúdo e também ao

nome do profeta que foi o seu promotor. La Barre, num ensaio comparativo, chamou-lhes,

sinteticamente, crisis cults – cultos derivados da crise. A crise, segundo La Barre, “é uma

frustração profundamente sentida ou um problema basilar que não pode ser resolvido por

métodos ordinários (de rotina), seculares ou sacros” (LA BARRE, 1971:11). No conceito de

crise encontra-se o elemento comum que está na origem destes movimentos. A referência ao

culto destaca um dos muitos aspectos do fenômeno, postos em relevo por várias

denominações e catalogados sob títulos genéricos (neopagãos, islâmicos, hebraicos, cristãos);

movimentos de adaptação, de espera de salvação, antifeiticistas, cultuais, quiliásticos,

escatológicos, de guerra santa, de liberdade e salvação, messiânicos, milenaristas, de massa,

nativistas, populares, proféticos, revitalistas, revivalistas, de rebelião, de revolta, sincretistas,

visionários, etc., etc.

O valor essencial e universal dos movimentos de reforma religiosa como manifestação

da dinâmica cultural pode já se observar na mitologia. As narrações mitológicas e as gestas

dos heróis culturais desenvolvem-se freqüentemente em volta de temas de superação do caos,

do domínio das forças naturais, da introdução de novos sistemas de agricultura ou criação, de

rebelião contra tiranos, de libertação ou de chegada a uma terra prometida. Se for verdade que

estes mitos pertencem a um gênero literário que dá corpo e explicação à história primigénia

dos povos, também é verdade que há muitos particulares tecidos em volta da figura histórica

de homens excepcionais, exaltados, depois da morte, a um papel heróico mítico. A este tipo

pertencem os mitos sobre os fundadores das dinastias ou sobre antepassados de parentescos

que, segundo se julga, possuem um poder místico.

63

Na história moderna os movimentos da história religiosa têm-se multiplicado em toda

a parte. Na Oceania, o tipo mais espalhado é o do cargo cults = cultos do cargueiro. Trata-se

dum módulo ao qual se conformam diversos movimentos das ilhas oceânicas com alusão aos

vapores mercantis europeus que chegam de regiões longínquas e desconhecidas com uma

carga de mercadorias riquíssimas; de maneira análoga, vinda de regiões místicas, chegaram os

antepassados num barco branco (pelo que os cultos se dizem também do “navio”), não só

trazendo a prosperidade, mas, sobretudo a independência política.

Na América do Norte, os movimentos são conhecidos como ghost dances = danças dos

espíritos. O termo refere-se ao valor tradicional da dança como expressão do culto; os

espíritos são os antepassados que voltarão para tornar a dar a independência aos índios,

privados da sua cultura pela invasão européia. Análogo é o culto do peyote, mais

especificamente sincretista, iniciado por John Willson, que pregava a fraternidade entre todas

as gentes por meio da comunhão do peyote, uma espécie de cacto que, comido, tem efeitos

levemente alucinantes.

Na América Central o movimento mais espalhado é o vudu (voudou ou, também

vodou), no qual prevalecem os elementos tradicionais das religiões africanas com técnicas de

possessão. Bastante afins ao vudu são o umbanda e o espiritismo, praticados numa

multiplicidade de cultos, sobretudo no Brasil.

Na Ásia, particularmente na Índia e no Japão, os movimentos de reforma têm relação

com o budismo.

Na África o fenômeno apresenta-se com proporções vistosas. Barrett (1968) analisou

em sentido comparativo seis mil movimentos contemporâneos. Entre os numerosos profetas

de reforma aparecidos na África no período colonial, alguns suscitaram um séqüito

vastíssimo, originando, enquanto eram ainda vivos, processo de transformação, mito-poiética,

que os exaltou, depois, à categoria de divindades. A figura mais típica neste gênero é Simon

Kimbangu, do antigo Congo Belga, hoje Zaire. Muitíssimas afirmações lendárias sobre a sua

vulnerabilidade apareceram em torno da sua pessoa, antes que fosse condenado à morte e

depois condenado à prisão perpétua. Hoje, o movimento kimbanguista é oficialmente

reconhecido como “Igreja de Jesus Cristo segundo Simon Kimbangu”, e este Kimbangu é

reconhecido como o Messias dos africanos, como Cristo o foi dos brancos.

No desenvolvimento de cada movimento podem-se reconhecer fases típicas do

processo cultural. Antes de tudo, há uma fase profética, que se acentua em torno da pessoa do

profeta, o qual desenvolve a sua atividade de reforma em tom muito polêmico contra o

64

establishment, ou seja, contra as instituições religiosas da Igreja estabelecida e também contra

a situação política, ou ainda, contra as crenças populares tradicionais. A fase seguinte é mais

calma, de consolidação do sucesso ou de paciente incubação depois do insucesso: o

movimento kimbanguista atravessou um período deste gênero, durante a longa prisão de

Simon Kimbangu. Por fim, dá-se uma terceira fase, institucionalizante, na qual se corrobora a

coesão interna do movimento: ele próprio torna-se instituição, estrutura ou “igreja”, com

doutrina e culto oficial. Na medida em que os movimentos continuam a corresponder à

realidade existencial mantêm a sua vitalidade; se não, aparece depressa a necessidade de

renovação e de reforma das suas estruturas e da sua própria doutrina.

Não há culturas nem “religiões” que não sofram o fenômeno de cristalização das suas

estruturas e que, portanto, não necessitem de reforma e de renovação. Este processo de

diástole e de sístole deve considerar-se elemento essencial da cultura e, em particular, do

etnema mágico-religioso. Na realidade, muitos episódios e muitas vivências do período pós-

conciliar nas Igrejas cristãs e, especialmente, na Igreja católica, explicam-se e colocam-se

nesta perspectiva.

VI O Fenômeno Religioso-mágico como Sistema Cultural, Segundo

Clifford Geertz .

No trabalho antropológico sobre religião levado a efeito a partir da II Guerra Mundial,

duas características destacam-se como curiosas quando se compara esse trabalho com o

desenvolvido antes e após a I Guerra. Uma delas é o fato de não ter sido feito qualquer

progresso teórico de maior importância; ele continua a viver do capital conceptual de seus

antepassados, acrescentando muito pouco a ele, a não ser certo enriquecimento empírico. A

65

segunda característica é que esse trabalho continua a extrair os conceitos que utiliza uma

tradição intelectual estreitamente definida. Existem Durkheim, Weber, Freud ou Malinowski,

e qualquer trabalho segue a abordagem de uma ou duas dessas figuras transcendentais, com

apenas as poucas correções marginais exigidas pela tendência natural ao excesso das mentes

seminais ou em virtude da expansão do montante da documentação descritiva religiosa.

Praticamente ninguém pensa em procurar idéias analíticas em outro lugar – na filosofia, na

história, no direito, na literatura ou em ciências mais “exatas” – como esses homens fizeram.

E o que ocorre, ainda, é que essas duas características não deixam de ter relação uma com a

outra.

Se o estudo antropológico da religião está, de fato, num estado de estagnação geral,

duvido que ele possa por em movimento novamente apresentando apenas pequenas variações

sobre temas teóricos clássicos. E, no entanto, uma meticulosidade maior em relação a

proposições já bem estabelecidas, como a de que o culto dos ancestrais apóia a autoridade dos

mais velhos, de que os ritos de iniciação são meios de estabelecer a identidade sexual e a

posição de adulto, de que os grupos rituais refletem oposições políticas ou de que os mitos

fornecem os quadros das instituições sociais e as racionalizações dos privilégios sociais,

poderá finalmente convencer um grande número de pessoas, tanto dentro como fora da

profissão, de que os antropólogos, como os teólogos, dedicaram-se firmemente a comprovar o

indubitável.

A discussão de Durkheim sobre a natureza do sagrado, a metodologia Verstehenden de

Weber, o paralelo de Freud entre rituais pessoais e coletivos, e a exploração feita por

Malinowski sobre a diferença entre religião e senso comum – parecem-nos pontos de partida

inevitáveis para qualquer teoria antropológica da religião que seja útil. Mas elas são apenas

pontos de partida. Para ir além delas é preciso colocá-las num contexto muito mais amplo do

pensamento contemporâneo do que elas abrangem, com elas e a partir delas. Todavia, os

perigos de um tal procedimento são óbvios: um ecletismo arbitrário, uma traficância teórica

superficial e a simples confusão intelectual.

Trabalhando para uma tal expansão do âmbito conceptual no qual nossos estudos

ocorrem, pode enveredar-se, sem dúvida, por uma grande variedade de direções, e o problema

inicial mais importante é evitar tomar todas essas direções ao mesmo tempo, restringir-se-á

todo esforço ao desenvolvimento daquilo a que se refere seguindo Parsons e Shils, como a

dimensão cultural da análise religiosa.

66

Como vamos lidar com o significado, comecemos com um paradigma: ou seja, que os

símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo – o tom, o caráter e a

qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo - o

Quadro que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas idéias mais

abrangentes sobre ordem. Os símbolos religiosos formulam uma congruência básica entre um

estilo de vida particular e uma metafísica específica (implícita, no mais das vezes) e, ao fazê-

lo, sustentam cada uma delas com a autoridade emprestada do outro.

A noção de que a religião ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada e

projeta imagens da ordem cósmica no plano da experiência humana não é novidade. Todavia,

ela também não é investigada e, em termos empíricos, sabemos muito pouco sobre como é

realizado esse milagre particular. Sabemos apenas que ele é realizado anualmente,

semanalmente, diariamente e, para algumas pessoas, até a cada hora, e dispomos de uma

enorme literatura etnográfica para demonstra-lo. Todavia, o arcabouço teórico que nos

permitiria fornecer um relato analítico do assunto, um relato da espécie que fornecemos para a

segmentação da linhagem, para a sucessão política, as mudanças no trabalho ou a socialização

da criança, este não existe.

Vamos, portanto, reduzir nosso paradigma a uma definição. Embora seja notório que

as definições em si nada estabelecem, se forem cuidadosamente construídas elas podem, por

elas mesmas, fornecer uma orientação ou reorientação útil do pensamento, de forma que

desenrola-las pode ser um caminho efetivo para desenvolver e controlar uma linha nova de

pesquisa. Elas têm a virtude muito útil de serem explícitas: elas se comprometem de uma

forma que a prosa discursiva não assume, pois sempre está disposta a substituir o argumento

por uma retórica, especialmente neste campo. Portanto, sem mais cerimônias, uma religião é:

(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras

disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem

de existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatalidade que (5) as

disposições e motivações parecem singularmente realistas.

O que Geertz diz é que a religião é um sistema de transformação no qual os conceitos

de ordem e a negação do caos, juntamente com crença na justiça e na moralidade diante da

injustiça e do mal, são apaixonadamente afirmados como a realidade dominante diante da

evidência contrária. Através de transformações simbólicas, o senso humano inicial da ordem e

o direito moral é convincentemente afirmado ao crente que traz a marca dos símbolos.

67

Pra um antropólogo, a importância da religião está na capacidade de servir, tanto para

um indivíduo como para um grupo, de um lado como fonte de concepções gerais, embora

diferentes, do mundo, de si próprio e das relações entre elas – seu modo da atitude – e de

outro, das disposições “mentais” enraizadas, mas nem por isso menos distintas – seu modelo

para a atitude. A partir dessas funções culturais fluem, por sua vez, as suas funções social e

psicológica.

Os conceitos religiosos espalham-se para além de seus contextos especificamente

metafísicos, no sentido de fornecer um arcabouço de idéias gerais em termos das quais pode

ser dada uma forma significativa a uma parte da experiência – intelectual, emocional, moral.

O cristão vê o movimento nazista contra o pano de funda da Queda, a qual, embora não

explique no sentido causal, coloca-o num sentido moral, cognitivo e até afetivo. Um zande vê

a queda de um celeiro sobre um amigo ou parente contra o pano de fundo de uma emoção

concreta e muito especial de bruxaria e evita, assim, tanto os dilemas filosóficos quanto a

pressão psicológica do indeterminismo. Um javanês encontra no conceito do rasa (“sentido-

paladar-sentimento-significado”), emprestado e re-elaborado, um meio através do qual “ver”

os fenômenos coreográficos, gustativos, emocionais e políticos a uma nova luz. Uma sinopse

da ordem cósmica, um conjunto de crenças religiosas, também apresentam um polimento no

mundo mundano das relações sociais e dos acontecimentos psicológicos. Eles permitem que

sejam apreendidos.

Mais que um polimento, porém, tais crenças são também um gabarito. Elas não são

meras intérpretes dos processos sociais e psicológicos – mas também os modelam. Na

doutrina do pecado original também está embutida uma atitude recomendada em relação à

vida, uma disposição periódica e um conjunto persistente de motivações. O Zande aprende

com as concepções de feitiçaria não apenas a compreender os “acidentes” aparentes como não

sendo acidente algum, mas a reagir a esses acidentes espúrios com ódio pelo agente que

causou e a tomar as resoluções adequadas contra ele. O rasa, além de ser um conceito de

verdade, beleza e bem, é também um modo de experimentação preferido, uma espécie de

desligamento sem afetação, uma variedade de brando alheamento, uma calma inatacável. As

disposições e motivações que uma orientação religiosa produz lançam uma luz derivativa,

lunar, sobre os aspectos sólidos da vida secular de um povo.

Reconstituir o papel social e psicológico da religião não é, pois, tanto o caso de

encontrar correlações entre os atos rituais específicos e os laços sociais seculares específicos –

embora essas correlações existam, sem dúvida, e valha a pena prosseguir nas investigações,

68

principalmente se há algo a dizer a respeito delas. Ademais, trata-se de compreender de que

maneira as noções dos homens, embora implícitas do “verdadeiramente real” e as disposições

que essas noções induzem neles, dão um colorido a seu sentido do racional, do prático, do

humano e do moral. Até onde isso alcança (em muitas sociedades os efeitos da religião

parecem muito circunscritos, enquanto em outras eles são inteiramente difundidos), quão

profundamente eles atingem (pois alguns homens e grupos de homens parecem utilizar a

religião com muita superficialidade no tocante ao mundo secular enquanto outros parecem

aplicar sua fé em cada ocasião, não importa quão trivial), quais os resultados efetivos ( pois é

muito variável o hiato entre o que a religião recomenda e o que as pessoas fazem realmente,

culturalmente) – todos esses são temas cruciais na sociologia e na psicologia comparada da

religião. Até mesmo o grau em que os sistemas religiosos se desenvolvem parece variar de

modo extremo, e não apenas numa base evolutiva. Numa determinada sociedade, o nível de

elaboração das formulações simbólicas da realidade final podem alcançar graus

extraordinários de complexidade e de articulação sistemática. Em outras sociedades, não

menos desenvolvidas socialmente, tais formulações podem permanecer primitivas no sentido

verdadeiro, pouco mais do que amontoados de crenças passadas fragmentárias e imagens

isoladas, de reflexos sagrados e pictografias espirituais. É preciso apenas pensar nos

australianos e nos bosquímanos, nos Toradja e nos Alorese, nos Hopi e nos Apaches, nos

hindus e nos romanos, ou até mesmo nos italianos e nos poloneses, para ver que o grau de

articulação religiosa não é uma constante mesmo em sociedades de complexidade semelhante.

O estudo antropológico da religião é, portanto, uma operação em dois estágios: no

primeiro, uma análise do sistema de significados incorporado nos símbolos que formam a

religião propriamente dita e, no segundo, o relacionamento desses sistemas aos processos

sócio-estruturais e psicológicos. A pouca satisfação que se vêm obtendo com grande parte do

trabalho antropológico social e contemporâneo sobre religião provém não do fato de ele se

preocupar com o segundo estágio, mas do fato de negligenciar o primeiro e, ao fazê-lo,

considerar como certo aquilo que precisa ser elucidado. Discutir o papel do culto dos

ancestrais na regulamentação da sucessão política, dos festins de sacrifício que definem as

obrigações do parentesco, da adoração dos espíritos na programação das práticas agrícolas, da

divinização para reforço do controle social ou dos ritos de iniciação para apressar a maturação

da personalidade não constitui tentativas pouco importantes, e não se recomenda que elas

sejam abandonadas em favor da espécie de cabalismo árido no qual pode cair tão facilmente a

análise simbólica de crenças exóticas. Mas fazer essa tentativa tendo apenas uma idéia muito

69

geral, de senso comum, sobre o que representam o culto dos ancestrais, o sacrifício de

animais, a adoração do espírito, a divinização ou os ritos de iniciação como padrões religiosos

não parece muito promissor. Somente quando tivermos uma análise teórica da ação simbólica

comparável, em sofisticação, à qual temos hoje para a ação social e para a ação psicológica,

estaremos em condições de enfrentar decisivamente aqueles aspectos da vida social e

psicológica nos quais a religião (ou a arte, a ciência, a ideologia) desempenha um papel

determinante.

VII - A Questão Religião e Mística, Segundo Jean-François Catalan.

“O desejo do homem é o desejo do outro”, como já foi mencionado, e, na religião, esse

desejo pode tomar a forma de um desejo de Deus. Essa fórmula, tal como foi demonstrada, é

ambígua, e esse “desejo de Deus” não está isento de uma boa dose de narcisismo, pelo menos

em certos casos. O homem busca a si mesmo ao buscar Deus. O que não invalida o fato de

que a religião deve “falar ao desejo”; além disso, no caso de uma religião como o

cristianismo, que invoca um Deus pessoal, há que reconhecer que certa forma de amor

também está implicada. O “Tu amarás...”, de acordo com as próprias palavras do Evangelho,

é o primeiro e o maior dos mandamentos. Esse amor, por mais sublimado que seja, é um amor

70

humano: independentemente das transformações que a religião possa impor-lhe, esse desejo

continua sendo um desejo humano. Quando tentamos definir com maior precisão esse objeto e

esse amor, deparamo-nos com o que se costuma chamar de dimensão mística da religião,

embora nem toda religião seja mística, e nem toda mística seja forçosamente religiosa, no

sentido estrito da palavra. Por isso, é conveniente entender o que chamamos de mística.

Dizemos que é uma dimensão essencial, pois o que seria, na verdade, uma religião na

qual não houvesse nem desejo nem amor? Entretanto, e já o assinalamos, há outras dimensões

ética (ou o ‘senso do dever’), a atenção dada aos ritos e à liturgia, a preocupação com os

outros, ou o fato de pertencer (eventualmente de forma ativa e construtiva) a uma instituição,

etc.

7.1 A mística e as religiões.

Dizer que nem toda religião é mística, e que nem toda mística é religiosa, é uma

afirmação paradoxal e que pode parecer excessiva. Como concilia-la com esta outra

afirmação, segundo a qual a mística remete a uma dimensão essencial da religião? No

admirável prefácio que o Pe. Henri de Lubac escreveu para o livro La Mystique et lês

mystiques, há algumas precisões interessantes33:

Poder-se-ia observar que a religião é uma coisa, e o misticismo outra. Ainda

não foi provado que a raiz de todo sistema religioso deva ser buscada nos estados da

consciência mística, como queria William James e afirmava Alfred Loisy contra a doutrina

bergsoniana das “duas fontes”. Pelo menos é sabido que toda religião não é sempre

atualmente mística, e que toda mística também não é religiosa. O essencial da religião de

Hesíodo repousava, ao que parece, num legalismo piedoso, junto com uma sabedoria que

desconfiava das ambições muito elevadas. Os deuses gregos “amam a medida” entre os

homens... A religião dos antigos Romanos não só era moral, como também não continha

nenhum germe místico, embora comportasse um elemento de verdadeira piedade. A própria

palavra religio... parece ter significado apenas o sentimento, acompanhado de temor e

escrúpulo, de uma obrigação para com as potências superiores. E mais perto de nós, uma

grande religião monoteísta não está a oferecer um caso análogo? O Alcorão, “código de uma

religião exterior e ritual”, deixa talvez aberto “pelo menos um vão estreito para a irrupção do

Espírito”, mas a comunidade muçulmana fecha geralmente esse vão. Movida pela consciência

confusa segundo a qual “a intervenção da religião interior na religião legal deslocaria a 33 La Mystique et les mystiques, sob a direção de André Ravier, Paris, Desclée de Brouwer, 1965, pp. 7-39 (principalmente pp. 13-15).

71

armadura histórica do Islã”, essa comunidade considera que “Deus não tem nenhuma

necessidade dos homens, e só quer deles uma obediência reverente. Por isso, ela condena a

temeridade sacrílega daquele que intenta a união divina”34.

Essas constatações, que podem ser esquemáticas, não devem dissimular um outro fato.

Mesmo nas religiões mais ou menos opostas ao misticismo, percebe-se freqüentemente um

“impulso místico”, como o Pe. De Lubac também notava:

Apesar dos interditos da ortodoxia muçulmana, é fato que numerosos místicos surgiram em seu seio, vivendo um drama solitário no interior de uma religião que tinham consciência de cumprir embora parecessem ameaça-la indo além do que ela prescrevia. Quanto mais se observa a história espiritual da humanidade, mais o misticismo aparece como fato virtualmente universal35.

E é certamente um fato cirtualmente universal, pois o misticismo aparece até em

contextos que se poderia chamar de ateus. A Índia conhece um “yoga-sem-Deus”(na-isvara-

yoga); certos exercícios e certas concepções do budismo zen não tem, à primeira vista, nada

de especificamente religioso. Da mística tibetana, já se disse que ela parece “fechar a porta ao

conhecimento de Deus”. E, no Ocidente, Nietzsche proclamava: “Sou místico e não creio em

nada!”. Há que reconhecer, ao menos, que certa forma de mística não se refere a nenhuma

religião revelada.

Essa (relativa) universalidade da mística poderia induzir em erro: “Acabo de ler

sucessivamente, dizia alguém, textos sobre a bhakti, citações de autores hassídicos, uma

mensagem de São Francisco de Assis, e algumas palavras budistas, e estou impressionado

pela semelhança entre eles” (R. Daumal, citado por Michel de Certeau, “Mystique”,

Encyclopaedia Universalis, p. 1.036).

7.2 Orientações diferentes.

Pensa-se tratar de impressão falaciosa, pois a mística “em si” não existe; ela só existe

em contextos, senão diretamente religiosos, pelo menos marcados por concepções

“metafísicas” através das quais o homem busca o sentido último da existência. Mas aí também

podem surgir divergências notáveis.

Catalan, sem querer entrar em considerações teológicas que escapam à alçada do

psicólogo, nota que o cristianismo, e em sua esteira uma parte do Ocidente cristão e pós-

cristão, dá ênfase às relações interpessoais. O Deus cristão é Trindade de Pessoas, e a este

34 La Mystique et les mystiques, op. Cit., pp. 13-14. 35 La Mystique et les mystiques, op. cit.

72

respeito a Teologia fala de relações subsistentes. Esse Deus, afirma-se, é Pai, Filho, Espírito,

Gerador, Engendrado e Laço de amor. É um Deus Criador, daí o tipo de relação entre a

criatura e ele, que exclui qualquer identidade: o homem não é Deus, e não poderá vir a sê-lo,

senão pela graça e participação, como afirmava, entre muitos outros São João da Cruz. Enfim,

esse Deus, pelo fato da Incarnação, entre na história humana, que se torna assim “humano-

divina”. Jesus de Nazaré não é nem um mito nem um avatar: ele é historicamente situado e

torna-se, para o cristão, a referência incontornável.

Por aí se vê o que separa a mística cristã de uma mística que, ao negar a história ou

considera-la como mera ilusão (a maya do hinduísmo), caracteriza-se pela ascensão em

direção do Uno no qual tudo se resolve a ponto de abolir qualquer distinção. “Tu és isto...”,

eis o que diz o místico hindu. Trata-se de uma mística da identidade, na qual tudo se une para,

em definitivo, se fundir. O eu tende a perder-se no todo.

Inversamente, a mística cristã – quer dela se diga que é nupcial ou filial – nunca será

uma mística da identidade; ela é união (por mais íntima que seja essa união), e não fusão.

Donde os obstáculos com os quais se defrontaram aqueles que, em perspectivas que se

queriam ecumênicas no mais amplo sentido da palavra, haviam tentado aproximar

cristianismo e hinduísmo.

Entre o Extremo Oriente, o Islã, o judaísmo e o cristianismo (inclusive em seu

interior), os caminhos da mística podem, portanto, divergir largamente, assim como as suas

realizações finais podem diferir profundamente, apesar de algumas expressões às vezes

similares.

A relação do místico com uma religião revelada, com uma tradição, com uma

comunidade humana (eclesial ou não), com o mundo e com a história humana, etc., tomará

formas diferentes. Conforme o caso, um distanciamento da mística face às religiões

estabelecidas poderá resultar ou em frutuosos questionamentos internos, ou na marginalização

do místico, que tenderá a viver uma experiência solitária, com ou sem a presença de gurus.

Trata-se de uma tensão inevitável, bem conhecida em nossa época, mas que também marcou

no passado, e mais de uma vez, a história das Igrejas.

73

VIII - A Maturidade Religiosa Presente no Fenômeno Religioso-Mágico.

Este capítulo relaciona-se com todos os outros capítulos no aspecto voltado para a

evolução espiritual do homem. Tem-se observado diante de diversas pesquisas como os

conceitos dos adolescentes, do adulto ou da pessoa idosa se diferem consideravelmente em

cada uma das fases da vida, a religião parece cumprir finalidades específicas, e apresentam

características típicas em cada uma dessas idades.

Tanto física como emocionalmente, há milhares de seres humanos que, por

circunstâncias várias, não atingirão um grau satisfatório de maturidade, quer do ponto de vista

físico quer do ponto de vista emocional. A longa história religiosa do homem comprova que

nem todos que professam uma fé alcançam necessariamente maturidade espiritual.

74

Clark sugere que maturidade religiosa pode ser definida de dois modos: do ponto de

vista do indivíduo, e, nesse caso, representa o ponto máximo de seu desenvolvimento

religioso, ou do ponto de vista abstrato, segundo o qual maturidade religiosa seria um

conceito ideal pelo qual o desenvolvimento de cada pessoa é avaliado. Clark define religião

como sendo “a experiência interior do indivíduo ao sentir o sobrenatural”, à luz dessa

definição podemos concluir que, na pessoa normal, o conceito de maturidade religiosa

envolve a consciência de Deus ou de alguma realidade cósmica, uma experiência interior e

uma expressão externa desse amadurecimento espiritual.

Orlo Strunk Jr., define maturidade religiosa como a organização dinâmica dos fatores

cognitivos-afetivos-conativos, que possui certas características de profundidade e altitude –

incluindo um sistema de crença altamente consciente, articulado e purgado, por processos

críticos, de desejos infantis, intensamente adaptável e bastante vasto para encontrar

significado positivo em todas as vicissitudes da vida. A relação dinâmica entre o sistema de

crença e os fatos de experiência produzirá sentimentos de admiração e reverência, um senso

de unidade com o Todo, humildade, elação e liberdade; e, com grande consistência,

determinará o comportamento responsável do indivíduo, em todas as áreas de reações

pessoais e interpessoais, incluindo esferas como moralidade, amor, trabalho, etc.

Partindo de quatro conceitos fundamentais da doutrina freudiana, a saber, que o

homem é basicamente um ser egocêntrico, que emoções irracionais são a base de quase todo

comportamento humano, que o homem tem uma forte tendência a racionalizar seu

comportamento e que as atitudes de adultos têm suas raízes nas experiências da infância, Orlo

Strunk Jr., concluiu que, para Freud, “qualquer religião que trata apenas de idéias e

conceitos intelectuais é fragmentária e, provavelmente, falsa”36. A crença freudiana de que a

única esperança para o homem consiste sem sua habilidade de sintetizar seus instintos, razão e

consciência, implica em que uma das características de maturidade religiosa seja sua

capacidade de encontrar a correta relação entre aquilo que é e aquilo que deve ser.

A posição de Erich Fromm é bem mais clara do que a de Freud ou a de Jung, e a de

Strunk, quanto à maturidade religiosa. Em sua vasta produção literária, Fromm claramente

defende a posição de que a maturidade é a realização dos poderes racionais do homem, bem

como a sua capacidade de amar e de realizar trabalho produtivo.

36 Orlo Strunk Jr., ”.Mature Religion: A Psychological Study, New York, Abingdon Press (1965), p. 25-26.

75

Fromm define religião como “qualquer sistema de pensamento e ação seguido por um

grupo capaz de conferir ao indivíduo uma linha de orientação e um objeto de devoção”37.

Distingue ele entre religião humanista e religião autoritária. A primeira é baseada na razão e,

conseqüentemente, é amadurecida; a segunda é baseada nos desejos infantis e,

conseqüentemente, imatura. Em suas próprias palavras, é assim que Fromm distingue a

religião humanista da religião autoritária, a religião secular, autoritária, segue o mesmo

princípio. O Fuehrer ou adorado “Pai do seu povo”, o Estado, a Raça ou o Vaterland

Socialista tornam-se objeto de devoção; a vida do indivíduo torna-se insignificante, e o valor

do homem consiste precisamente na negação do seu valor e força. Freqüentemente, a religião

autoritária postula um ideal tão abstrato e distante, que perde as conexões com a vida real do

povo, como este se apresenta. O bem-estar pessoal é sacrificado a ideais, como, por exemplo,

“a vida eterna” ou “o futuro da espécie humana”; os fins justificam todos os meios e tornam-

se símbolos, em nome dos quais as elites religiosas ou seculares controlam os seus

semelhantes.

A religião humanista, ao contrário, está centralizada pela idéia do homem e das suas potencialidades. O homem deve desenvolver a força da sua razão, para que possa entender a si próprio, as suas relações com os seus semelhantes e o lugar que ocupa no universo. Ele deve reconhecer a verdade, tanto no que se refere às suas limitações, como às suas potencialidades. Cabe-lhe desenvolver a sua capacidade afetiva, não apenas em relação ao próximo, como a si mesmo, e experimentar solidariedade por todas as coisas vivas. Naturalmente, ele precisa de princípios e normas para guia-lo nesse sentido: a experiência religiosa, nessa espécie de religião, é a experiência de união como universo como o homem o concebe e sente. O objetivo humano consiste em atingir a máxima força, e não fraqueza; a virtude é a realização pessoal, e não a passividade da obediência. A fé, na religião humanista, alicerça-se na certeza da convicção obtida através das experiências intelectuais e emocionais, ao passo que na religião autoritária o homem aceita as proposições porque acredita em quem as formulou. Na religião autoritária, o humor predominante é de tristeza e culpa; na religião humanista, o tom emocional prevalente é de alegria38

O outro conceito de Fromm, que se relaciona diretamente com a idéia de maturidade

religiosa, é sua teoria quanto a trabalho produtivo. Este conceito muito se assemelha à idéia de

“geratividade”, de que fala Erikson. A pessoa produtiva é aquela vivamente interessada em

transformar para melhor, por meio de esforço constante, tudo aquilo que lhe vem às mãos. A

pessoa religiosamente amadurecida, portanto, seria aquela de profunda consagração espiritual

37 Erich Fromm, Psicanálise e Religião (tradução de Iracy Doyle), Rio; Editora Civilização Brasileira (1956), p. 21.38 Id. Ibid., págs. 33,34.

76

e perfeitamente cônscia de suas responsabilidades para consigo mesma e para com o próximo.

Em suas palavras, Fromm declara:

A pessoa verdadeiramente religiosa, se segue a essência da idéia monoteísta, não pede coisa alguma, nada espera obter de Deus; não ama a Deus como um filho ama seu pai ou sua mãe; adquiriu a humildade de sentir suas limitações até o grau de saber que nada sabe a respeito de Deus. Deus torna-se para ela um símbolo em que o homem, numa etapa anterior de sua evolução, expressou a totalidade daquilo por que o homem luta, o reino do mundo espiritual, do amor, da verdade, da justiça. Tem fé nos princípios que ‘Deus’ representa; pensa verdade, vive amor e justiça e considera a sua vida inteira como só valiosa enquanto lhe dá ocasião de alcançar um sempre mais amplo desdobramento de seus poderes humanos – como a única realidade que importa, com o único objetivo de preocupação última – e acaba não falando a respeito de Deus, nem mesmo mencionando seu nome. Amar a Deus, se tal pessoa fosse usar esta expressão, significaria, então, ansiar pelo atingimento da plena capacidade de amar, pela realização daquilo que ‘Deus’ representa em alguém.39

Finalmente, à semelhança de Otto, Fromm preconizou que a religião amadurecida se

caracteriza por um senso do maravilhoso no universo. A pessoa genuinamente religiosa

preocupa-se com as maravilhas e os problemas da vida e do mundo. Além disso, a pessoa

religiosa tem o senso de unidade com o universo. É essa, aliás, uma das características da

experiência mística. O homem sente-se ligado não só ao seu semelhante, mas à própria vida e

ao universo.

Strunk sintetiza o pensamento de Fromm a esse respeito, chegando às seguintes

conclusões:

A pessoa religiosamente amadurecida integrará as formas de religião que salientam o

raciocínio adulto e é livre das fantasias de onisciência e onipotência, características da religião

infantil.

Na sua concepção de Deus, a pessoa religiosamente amadurecida o verá como símbolo

dos poderes do próprio homem, e não como um símbolo externo de força e poder.

A pessoa religiosamente amadurecida amará o seu próximo como a si mesma, sendo

este amor uma ativa preocupação pela vida e o desenvolvimento do objeto amado.

A religião da pessoa religiosamente amadurecida dará ênfase à produtividade, e não à

receptividade, exploração, ganância ou transação comercial; isto é, a maior preocupação da

pessoa religiosamente amadurecida será a transformação de potencialidade em realidades.

39 Id. Ibid., págs. 99, 100.

77

A pessoa religiosamente amadurecida manifestará profunda humildade, perfeitamente

cônscia de que nada pode saber da verdadeira natureza de Deus, e, conseqüentemente, não

deve julgar a religião de seu próximo.

A pessoa religiosamente amadurecida é aquela que é cheia do senso do maravilhoso e

de preocupação – faz perguntas sobre a existência e preocupa-se com o significado último da

vida.

Ao lado dessa preocupação, a pessoa religiosamente amadurecida tem o profundo

desejo de se tornar um com o universo; o desejo de se unir ao Todo.

Poderíamos multiplicar o número de autores que falam sobre a maturidade religiosa,

mas terminaremos essa excursão com as normas de avaliação da maturidade religiosa

apresentadas por Strunk no quadro que segue no Anexo II, por onde traçamos nossos

comentários em torno desse quadro.

O exame do quadro mostra que todos os autores parecem concordar com os seguintes

pontos:

A religião é amadurecida na proporção em que é purgada das características de

religião infantil. Stolz afirma, com justeza, que na personalidade amadurecida religião não é

mágica, mas visão, imaginação, poder e cooperação com Deus. Por outro lado, a religião

imatura é ao mesmo tempo fuga da realidade e ópio que dá à sua vítima um falso senso de

segurança. Na religião amadurecida o homem terá independência de juízo e de ação. Nela o

homem se emancipa emocionalmente das tradições e da rigidez da autoridade externa. Ao

invés de obediência à letra da lei, a pessoa religiosamente amadurecida tem uma atitude

criativa baseada no espírito da lei. Ao invés de regras inflexíveis, ela adotará princípios gerais

aplicáveis a situações concretas.

Maturidade religiosa implica na convicção da existência de um Ser Supremo e de

idéias básicas sobre a vida e o universo. Essa convicção dá suficiente sentido à vida do

homem e leva-o a um comportamento moral consistente com sua filosofia de vida e suas

crenças religiosas.

Finalmente, a maturidade religiosa caracteriza-se pela capacidade de amar o próximo,

de ser humilde, de ser criativo, de ajustar-se socialmente e de ser consagrado aos objetivos

supremos da vida como concebidos pelo indivíduo.

Assim como há a possibilidade de um ser humano atrofiar-se no processo do seu

desenvolvimento físico e mental, isto também pode acontecer com relação à sua experiência

78

religiosa. Alguns amadurecem e produzem frutos espirituais; outros permanecem imaturos e

grandemente estéreis.

Maturidade religiosa não pode ser definida em separado da maturidade emocional do

homem, se bem que tenha suas características distintivas.

Dentre os numerosos autores que direta ou indiretamente falaram sobre maturidade

religiosa, salientamos os seguintes:

Para Freud, a religião madura é aquela capaz de sintetizar instintos, razão e

consciência e de levar o homem a uma compreensão adulta da realidade, livrando-o de

desejos e dependência infantis, tornando-o cônscio da diferença entre aquilo que é e aquilo

que deve ser.

Para Jung, a pessoa religiosamente amadurecida é aquela que experimenta a verdade

espiritual num nível tão profundo que essa experiência, embora inefável, torna-se não só a

fonte de autoridade para a pessoa, ma o próprio leit Motiv de sua existência.

Para Erich Fromm, a religião amadurecida é a do tipo humanista, que, por

conceituação será livre de fantasias infantis, caracterizada por profundo amor ao próximo,

mística em sua natureza mais profunda, humilde e cheia de simpatia para com o semelhante.

No dizer de William James, o verdadeiro santo, que para ele significa a pessoa

amadurecida, é aquele que sente parte de um universo muito mais amplo do que seus

mesquinhos interesses pessoais ou, por outras palavras, é o indivíduo que possui uma

consciência cósmica. A religião amadurecida é aquela que dá ao homem o verdadeiro senso

de liberdade, ou, como disse Jesus Cristo: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos

libertará”(João 8:32).

Para Viktor Frankl, a religião amadurecida será aquela que dá ao indivíduo uma razão

para viver, apesar da tragédia pessoal ou dos infortúnios da existência. Será aquela religião

capaz de tornar o homem responsavelmente livre e de levá-lo a dedicar-se integralmente a

uma causa suprema que se constitui o centro de sua lealdade.

Finalmente, para Gordon Allport, a maturidade religiosa apresenta seis características:

a. A religião amadurecida é bem diferenciada através de um processo consciente de

autocrítica em que o indivíduo transforma em sua própria a experiência religiosa

meramente recebida de seu grupo social.

b. A religião amadurecida é aquela que tem grande poder transformador e diretor na

vida do homem. O indivíduo religiosamente maduro é dinâmico, sem ser fanático

ou compulsivo em seu comportamento religioso.

79

c. A religião amadurecida expressar-se-á através de frutos no comportamento, isto é,

ela produz uma condição de coerência entre o que o homem crê e o que faz.

d. A religião amadurecida é tolerante e pronta a reconsiderar sua própria posição.

e. A religião amadurecida tem função integradora e abrange o contexto geral da vida.

f. Finalmente, a religião amadurecida é de caráter heurístico, isto é, será sempre uma

busca da verdade integral.

IX Conclusão.

O Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, surgiu em um mundo de muitos “deuses”

e muitos “senhores” (1 Co. 8:5) e entre gente muito “religiosa”. Isto ocorreu há mais de mil

novecentos anos, e ainda hoje encontramos muita gente religiosa e temos muitas religiões. O

Evangelho segue chamando os homens sejam eles religiosos ou não, a aceitar humildemente a

dádiva da redenção de Deus em Cristo Jesus.

80

Urge no campo da antropologia uma argüição concernente a uma definição acerca da

religião, e, pelo fato de que a maioria das pessoas possuírem seus próprios pensamentos sobre

a mesma, quando tentamos uma definição nos encontramos imediatamente com alguns

problemas. Um dos manuais mais populares sobre as religiões do mundo oferece em torno de

vinte definições diferentes de religião, sendo ainda estes exemplos representativos.

Até onde sabemos, o homem é a única criatura neste universo que tem uma

consciência religiosa. O homem não é somente único em sua religiosidade, mas sim é

universalmente religioso. Isto não quer dizer necessariamente que cada indivíduo seja

religioso, mas sim que todas as pessoas tem uma religião, ou religiões. A arqueologia e a

história nos dizem que, até onde alcança o conhecimento sobre o homem primitivo

encontramos evidencias de sua religião. Podendo afirmar que a universalidade da consciência

religiosa do homem parece estar bem estabelecida. O homem parece ser uma criatura

incuravelmente religiosa.

O desenvolvimento religioso do homem, como igualmente outros aspectos de sua

cultura, caminha cada dia mais para um complexo do religioso-mágico. Há muitas religiões e

muitos substitutos para a religião no mundo pós-moderno. Verdadeiramente parece que

vivemos em um tempo de insuperável fermento religioso na história humana.

Estranho como pode parecer, o avivamento religioso, e o interesse pelas coisas

religiosas, tem chegado a uma época de secularismo estendido e um espírito irreligioso. Por

volta do ano 1920, os missionários cristãos foram advertidos de que o rival maior do

cristianismo não eram as religiões não cristãs, mas “um mercado espírito secularista e uma

interpretação materialista da vida”.

Os que nos acompanharam até aqui estão, provavelmente, desapontados por terem

aprendido tão pouco a respeito da Análise Antropológica quanto ao Fenômeno Religioso-

Mágico e dos processos presentes nos artigos sob os pontos de vistas do pesquisador na sua

respectiva área científica. Fizemos algumas generalizações, e em quase todos os capítulos

perguntas se levantaram mais numerosas que as respostas fornecidas. Esta situação não exige

desculpas, mas merece explicação. Todas as ciências passaram em sua juventude por períodos

semelhantes. E a Antropologia ainda é uma das mais jovens. Até agora, a Antropologia nem

mesmo conseguiu ordenar sistematicamente seu material, nem desenvolver técnicas realmente

eficientes para estudá-lo. Suas primeiras tentativas para aplicar à cultura e à sociedade quanto

ao fenômeno religioso-mágico, as abordagens anteriormente desenvolvidas nas ciências

81

naturais provaram-se em grande parte abortivas, devido a serem de ordem muito diferente os

fenômenos de que trata.

Hoje, nossos pesquisadores das ciências da religião estão em posição muito

semelhante à dos gregos de Alexandria em seus estudos da natureza. Chegamos a uma porta

além da qual há um mundo de conhecimentos que promete dar ao homem uma vida melhor

que todas as que ele já conheceu. Mas parece haver poucas probabilidades de podermos

transpor o limiar. Há sinais evidentes de que esta era de liberdade também está sendo levada a

termo, e mal se pode duvidar de que o estudo da cultura e o fenônemo religioso-mágico será a

primeira vítima da nova ordem. No estado totalitário não há lugar para ele. Na realidade, o

próprio interesse dos homens por tais assuntos é uma crítica à ordem existente, um índice de

que se duvida de sua perfeição. A não ser que a história esteja errada, o cientista do fenômeno

religioso seguirá o caminho do filósofo grego. Mas, deixará, também, um patrimônio de

técnicas de pesquisa e problemas discernidos, mas não resolvidos; uma nova fronteira, de

onde os espíritos livres forçarão novamente a marcha para o desconhecido. Quando essa

época chegar, talvez depois de séculos de trevas e de estagnação, os homens terão por nós a

consideração que temos pelos gregos.

Referências Bibliográficas:

MELLO, Luiz Gonzaga de. “Antropologia Cultural – Iniciação, Teoria e Temas” – Editora

Vozes, 1982, Petrópolis, RJ, p. 526.

BARRETT, D. B. 1968. Schism and Renewal in Africa. An Analysis of Six Thousand

Contemporary Religious Movements. Oxford, XX-363.

82

BERNARDI, Bernardo “Uomo Cultura Società – Introduzione agli studi etno-antropologici”,

Franco Angeli Editore, Milão, 1974. 450 p.

LINTON, Ralph, “O Homem – Uma introdução à Antropologia”, São Paulo, Martins Fontes,

2000, 470 p.

CATALAN, Jean-François, “O Homem e sua Religião”, São Paulo, Paulinas, 1999, 163 p.

GEERTZ, Clifford, “The Interpretation of Cultures” NY, EUA, 1973, Basic Books, 323 p.

E. Adamson Hoebel e Everett L. Frost, “Antropologia Cultural e Social”, Cultrix, São Paulo,

1976, 470 p.

BASTIDE, Roger, “ Antropologia Aplicada”, São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, 196p.

BIANCO, Bela Feldman, “Antropologia das Sociedades Contemporâneas”, São Paulo, Global

Universitária, 1987, 402 p.

Série Ciências Sociais, Fundação Getúlio Vargas, 1975, Rio de Janeiro, 100 p.

CLASTRES,P. M. Garchet, A. Adler, J. Lizot, Paris, 1977, Edições 70.

HSU, Francis L. K., “O Estudo das Civilizações Letradas”, E.P.U, 1974

PELTO, Pertti V. “Iniciação ao Estudo da Antropologia”, 3ª Edição, 1975, Rio de Janeiro,

Zahar Editores, 144 p.

COPELAND, E. Luther. “El Cristianismo y Otras Religiones”, Casa Bautista de Publicaciones, 1977,Buenos Aires, Argentina, 191 p.

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ANEXOS

Anexos I

A Dinâmica magia/religião.

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Anexo II

Características da Maturidade Religiosa

Cognitivas –(Crenças) Afetivas- (Sentimentos) Conativas – (Ações)

85

(O E

NER

GU

MEN

O)

O E

SQU

IZO

FRÊN

ICO

PER

SON

ALI

DA

DE

FA

TIC

A

(O F

AR

ISEU

)

Livre de idéias infantis (Freud) Experiência de fatores

religiosos inconscientes (Jung)

Viver de acordo com os fatores

religiosos do psiquismo. Amar

o próximo. (Fromm).

Incluirá emoção e intelecto,

fatores conscientes e

inconscientes (Freud).

Experiência autoritária (Jung) Produtividade (Fromm)

Organizará instintos, razão e

consciência (Freud)

Experiência inefável (Jung) Continuidade amigável com o

Poder Ideal (James)

Terá profundo respeito aos

fatos, eventos e a outros

indivíduos (Jung)

Vida interior enriquecida (Jung) Moral consistente (Allport)

Consciência dos fatores

religiosos no psiquismo(Jung)

Admiração e reverência

(Fromm)

Amor à vida (James)

Convicção da existência de um

Poder Ideal (James)

Senso de participação de um

universo mais amplo (James)

Dinâmica (Allport)

Deus como símbolo dos

poderes do homem (Fromm)

Unidade com o Todo (Fromm) Dedicação mesmo em face da

incerteza (Allport)

Fé crítica (Allport) Elação e liberdade (James) Liberdade, responsabilidade,

consagração (Frankl)

Fé articulada (Allport)

Fé abrangente (Allport)

Dará ênfase ao significado da

vida (Frankl)

Adaptado de Mature Religion, por Orlo Strunk Jr. (1965).

Anexo III

O espírito e a alma,

Objetos de investigação científica.

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O espírito e a alma são objetos da pesquisa científica da mesma maneira que qualquer

outra coisa estrangeira ao ser humano. A psicanálise goza de um direito particular para falar

aqui em nome da Weltanschauung científica, porque não pode ser acusada de ter

negligenciado o psíquico na imagem do mundo. sua contribuição à ciência consiste

precisamente na extensão da pesquisa ao campo psíquico. Sem essa psicologia, a ciência

certamente seria muito incompleta. Mas, se se inclui a investigação das funções itelectuais e

emocionais do homem (e dos animais) na ciência, ver-se-á que nada muda na posição de

conjunto que é a sua; pois disso não resulta quaisquer novas fontes de saber nem novos

métodos de pesquisa.

Sigmundo Freud,

Nouvelles Conférences d´introduction à la psychanalyse,

Nova tradução feita por Rose-Marie Zeitlin, Paris, Gallimard,

Coll. “Connaissance de l´ Inconscient”, 1984, pp. 212-213.

Anexo IV

A religião como fato psicológico

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A religião é sem contradito uma das manifestações mais antigas e mais gerais da alma humana. Por conseguinte, é evidente que toda psicologia, preocupada com a estrutura psicológica da personalidade humana terá, pelo menos, de reconhecer que a religião não é unicamente um fenômeno social ou histórico, mas que constitui também, para muitos seres humanos, uma questão pessoal.

Embora eu tenha sido muitas vezes tratado de filósofo, eu sou um empírico e como tal situo-me de um ponto de vista fenomenológico. Entretanto, não creio que esteja a pecar contra os princípios do empirismo científico por fazer ocasionalmente reflexões que ultrapassam os limites da simples acumulação de observações e sua classificação.

Com efeito ensino que sem reflexão integrante toda experiência é impossível, posto que “a experiência” é um processo de assimiliação fora do qual não poderia ser compreendida. Dessa constatação se deduz que é do ponto de vista das ciências naturais, e não de um ponto de vista filosófico, que abordo os fatos psicológicos. À medida que o fenômeno denominado religião engloba um aspecto psicológico considerável, trato esse assunto de um ponto de vista puramente empírico, limitando-me à observação dos fenômenos e abstendo-me de qualquer consideração metafísica ou filosófica. Não que eu negue o valor de outras maneiras de abordar ou considerar esses problemas, mas eu não poderia ter a pretensão de utiliza-los corretamente (...).

Minha intenção é a de propor pelo menos alguns enfoques sobre a maneira pela qual a psicologia prática vem a confrontar-se com o problema religioso.

Carl gustav Jung, Psychologie et religion,Trad. Francesa, Paris, Buchet-Chastel/Corréa, 1958. pp. 13-15

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