douta ignorância, filosofia e pascal

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Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, Março 2008: 11-43 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal A “epistemologia do Sul” que tenho vindo a propor visa a recuperação dos saberes e práticas dos grupos sociais que, por via do capitalismo e do colonialismo, foram his- tórica e sociologicamente postos na posição de serem tão só objecto ou matéria-prima dos saberes dominantes, considerados os únicos válidos. Os conceitos centrais da epistemologia do Sul são a sociologia das ausências, a sociologia das emergências, a ecologia de saberes, e a tradução intercultural. Não se trata verdadeiramente de uma epistemologia, mas antes de um conjunto de epistemologias. Ao contrário das episte- mologias do Norte, as epistemologias do Sul procuram incluir o máximo das experiên- cias de conhecimentos do mundo. Nelas cabem, assim, depois de reconfiguradas, as experiências de conhecimento do Norte. Abrem-se pontes insuspeitadas de inter- comunicação, nomeadamente com as tradições ocidentais que foram marginalizadas, desacreditadas ou esquecidas pelo que no século XIX passou a vigorar como o cânone da ciência moderna. A filosofia à venda Suponhamos que, por terem deixado de ser úteis aos seus adeptos, eram postas à venda as filosofias e as teorias que nos acompanharam nos últimos séculos ou mesmo apenas nas últimas décadas: determinismo, livre arbítrio, universalismo, relativismo, realismo, construtivismo, marxismo, liberalismo, neoliberalismo, estruturalismo, pós-estruturalismo, modernismo, pós-moder- nismo, colonialismo, pós-colonialismo, etc. Suponhamos ainda que os adep- tos das diferentes teorias tinham chegado à conclusão de que não só as suas próprias teorias tinham deixado de ser úteis como também todas as outras. Não estariam, pois, interessados em comprar nenhuma delas. Os potenciais compradores, supondo que os havia, seriam necessariamente gente estranha ao mundo onde as diferentes teorias tinham sido desenvolvidas, mundo a que, por comodidade, podemos chamar o mundo académico. Antes de se disporem a comprar, fariam, naturalmente, duas perguntas: qual a utilidade que esta ou aquela teoria poderá ter para mim? Qual o preço? As diferen- tes teorias, elas próprias ou pela voz dos seus criadores, teriam de responder

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  • Revista Crtica de Cincias Sociais, 80, Maro 2008: 11-43

    BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

    A filosofia venda, a douta ignornciae a aposta de Pascal

    A epistemologia do Sul que tenho vindo a propor visa a recuperao dos saberes e prticas dos grupos sociais que, por via do capitalismo e do colonialismo, foram his-trica e sociologicamente postos na posio de serem to s objecto ou matria-prima dos saberes dominantes, considerados os nicos vlidos. Os conceitos centrais da epistemologia do Sul so a sociologia das ausncias, a sociologia das emergncias, a ecologia de saberes, e a traduo intercultural. No se trata verdadeiramente de uma epistemologia, mas antes de um conjunto de epistemologias. Ao contrrio das episte-mologias do Norte, as epistemologias do Sul procuram incluir o mximo das experin-cias de conhecimentos do mundo. Nelas cabem, assim, depois de reconfiguradas, as experincias de conhecimento do Norte. Abrem-se pontes insuspeitadas de inter-comunicao, nomeadamente com as tradies ocidentais que foram marginalizadas, desacreditadas ou esquecidas pelo que no sculo XIX passou a vigorar como o cnone da cincia moderna.

    A filosofia vendaSuponhamos que, por terem deixado de ser teis aos seus adeptos, eram postas venda as filosofias e as teorias que nos acompanharam nos ltimos sculos ou mesmo apenas nas ltimas dcadas: determinismo, livre arbtrio, universalismo, relativismo, realismo, construtivismo, marxismo, liberalismo, neoliberalismo, estruturalismo, ps-estruturalismo, modernismo, ps-moder-nismo, colonialismo, ps-colonialismo, etc. Suponhamos ainda que os adep-tos das diferentes teorias tinham chegado concluso de que no s as suas prprias teorias tinham deixado de ser teis como tambm todas as outras. No estariam, pois, interessados em comprar nenhuma delas. Os potenciais compradores, supondo que os havia, seriam necessariamente gente estranha ao mundo onde as diferentes teorias tinham sido desenvolvidas, mundo a que, por comodidade, podemos chamar o mundo acadmico. Antes de se disporem a comprar, fariam, naturalmente, duas perguntas: qual a utilidade que esta ou aquela teoria poder ter para mim? Qual o preo? As diferen-tes teorias, elas prprias ou pela voz dos seus criadores, teriam de responder

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    a estas perguntas, sob pena de ficarem por vender, e tentariam responder da maneira mais apelativa e de modo a suscitar no clculo do potencial comprador uma boa relao entre utilidade e preo. Por estarem muitas teorias venda, por certo que a concorrncia entre elas seria elevada. A dificuldade das teorias em responder s perguntas seria tanto maior quanto certo que as teorias esto habituadas a impor a sua utilidade, no a oferec-la, e a defini-la em termos de verdade, a qual, obviamente, no tem preo. O resultado da venda dependeria no s da bolsa dos compra-dores, como do valor dos prstimos que eles atribussem s teorias, no tendo estas qualquer possibilidade de influenciar nem a bolsa nem o valor e, portanto, as decises.

    Convenhamos que se, para todos ns, esta venda seria em si mesma um escndalo, a hierarquia de valor-preo que ela estabeleceria entre as teorias seria ainda muito maior. Mas o escndalo dos escndalos seria se os com-pradores afortunados, achando utilidade em teorias que consideramos anta-gnicas (por exemplo, determinismo e livre arbtrio), as comprassem num s lote para permitir usos complementares.

    Antes que o escndalo ser vire contra mim prprio, gostaria de acres-centar duas notas. A primeira que, se tal venda ocorresse, ela no seria indita. Ela foi proposta aproximadamente no ano 165 da nossa era por uma personagem centrfuga da antiguidade clssica, um clssico mar-ginal da cultura ocidental que nasceu brbaro da Sria, em Samsata, junto ao rio Eufrates. Refiro-me a Luciano de Samsata e ao seu dilogo A venda de filosofias (1905: 190), em que Zeus, ajudado por Hermes, pe venda as diferentes escolas de filosofia grega, algumas delas trazidas pelos seus fundadores: pitagricos, Digenes, Heraclito e Demcrito (num s lote), Scrates, Crisipo, epicurismo, estoicismo, cepticismo peripat-tico. Hermes atrai os potenciais compradores, todos comerciantes, gri-tando alto e bom som venda! Uma variedade sortida de filosofias vivas! Posies de todo o tipo! Pagamento vista ou mediante garantia! (1905: 190). A mercadoria vai sendo exposta, os comerciantes vo che-gando e tm o direito de interrogar cada uma das filosofias venda, comeando invariavelmente com a pergunta pela utilidade para o com-prador e a sua famlia ou grupo. O preo estabelecido por Zeus que, por vezes, se limita a aceitar ofertas feitas pelos comerciantes comprado-res. A venda tem pleno xito e Hermes termina, ordenando s teorias que deixem de oferecer resistncia e sigam com os seus compradores, ao mesmo tempo que avisa o pblico: Senhores, esperamos v-los amanh. Estaremos oferecendo novos lotes teis para homens comuns, artistas e comerciantes (1905: 206).

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    A segunda nota que no estou to certo de que esta hipottica e poten-cialmente escandalosa venda no esteja, de facto, j a ocorrer, sob formas muito mais subtis, mas no menos eficazes, e sem causar qualquer escn-dalo. Substituamos Zeus e Hermes por universidades, editoras, resenhas, revistas especializadas, congressos, jornais de divulgao cultural, catlogos, amazon.com, e os comerciantes por estudantes, colegas, pblico culto e sol-vente e o contexto da venda, das utilidades e dos preos aparecer mais ou menos evidente. A diferena que, estando tudo venda e ao mesmo tempo, como num supermercado, ningum passa pela experincia humilhante de se sentir objecto de um especfico acto de compra e venda. Quando tudo acontece em geral, os detalhes no so importantes.

    A vantagem do mtodo de Luciano de Samsata em relao ao contem-porneo que ele permite criar distncia em relao s teorias, ao conhe-cimento constitudo. Transforma-as de sujeitos em objectos, cria um campo de exterioridade em relao a elas e submete-as a testes para os quais no foram desenhadas. No permite que se disputem entre si e antes que dis-putem a ateno de estranhos sobre cujas preferncias no tm controlo. Sujeita-as ao caos da sociedade em que so produzidas e mostra-lhes que a verdade a que aspiram a verdade que Luciano descreve como esta cria-tura sombria, de compleio indefinida nua e sem qualquer ornamento, furtiva observao e sempre a desaparecer de vista (1905: 213) no reside na correspondncia a uma realidade dada e sim na correspondncia a uma realidade por dar, utilidade em funo de critrios e objectivos sociais, em sentido amplo.

    Em meu entender, este distanciamento hoje mais necessrio do que nunca e deve-se a uma das caractersticas mais centrais do nosso tempo, talvez a que melhor define o seu carcter transicional. Refiro-me discre-pncia entre perguntas fortes e respostas fracas. Vivemos um tempo de perguntas fortes e de respostas fracas. Ao contrrio de Habermas (1990), para quem a modernidade ocidental ainda um projecto incompleto, tenho vindo a argumentar que o nosso tempo testemunha da crise final da hege-monia do paradigma scio-cultural da modernidade ocidental e que, por-tanto, um tempo de transio paradigmtica (Santos, 1995, 2000). Os tempos de transio so, por definio, tempos de perguntas fortes e res-postas fracas. As perguntas fortes dirigem-se no s s nossas opes de vida individual e colectiva, mas sobretudo s fundaes que criam o hori-zonte de possibilidades entre as quais possvel escolher. So, portanto, questes que provocam um tipo particular de perplexidade. As respostas fracas so aquelas que procuram responder sem pr em causa o horizonte de possibilidades, imaginando nele virtualidades para esgotar o campo das

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    perguntas e das respostas possveis ou legtimas. Mas precisamente porque o questionamento dessa virtualidade est na raiz das perguntas fortes, as respostas fracas no atenuam a perplexidade que estas suscitam, podendo, pelo contrrio, aument-la. As perguntas e respostas podem variar de acordo com a cultura e a regio do mundo. Contudo, a discrepncia entre a fora das questes e a fraqueza das respostas parece ser comum. Deriva da diver-sidade contempornea de zonas de contacto envolvendo diferentes culturas, religies, economias, sistemas sociais e polticos e modos de vida, resultante do que vulgarmente denominamos por globalizao.1 As assimetrias de poder nestas zonas de contacto so to vastas hoje, se no mais ainda, do que no perodo colonial, sendo mais numerosas e intensas. A experincia de contacto sempre uma experincia de limites e fronteiras. Nas condies presentes, a experincia de contacto que provoca a discrepncia entre as perguntas fortes e as respostas fracas.

    A especificidade da discrepncia entre perguntas fortes e respostas fra-cas na transio paradigmtica que vivemos resulta de os problemas do nosso tempo os que suscitam as perguntas fortes terem deixado de ser objecto de reflexo por parte do conhecimento privilegiado do nosso tempo, a cincia moderna, medida que esta se institucionalizou e profis-sionalizou. Na sua origem, a cincia teve plenamente conscincia de que os problemas mais importantes da existncia lhe escapavam, por exemplo, na altura, o problema da existncia de Deus, o problema do sentido da vida, o problema do modelo ou modelos de uma boa sociedade, o problema da felicidade, o problema das relaes entre os homens e as outras criatu-ras que, no sendo humanas, partilhavam com os homens a dignidade de serem igualmente criaes de Deus. Estes problemas convergiam para um outro bem mais dilemtico para a cincia: o problema de a cincia no poder dar conta do fundamento da sua cientificidade, da verdade cientfica enquanto verdade. No mundo ocidental, estes problemas continuaram a ser do domnio da filosofia e da teologia durante os sculos XVII e XVIII. A partir do sculo XIX, porm, e com a crescente transformao da cincia em fora produtiva do capitalismo, ocorreu uma dupla reduo nesta com-plexa relao entre saberes. Por um lado, a hegemonia epistemolgica da cincia converteu-a no nico conhecimento vlido e rigoroso. Com isto, os problemas dignos de reflexo passaram a ser apenas aqueles a que a cincia pudesse dar resposta. Os problemas existenciais foram assim reduzidos ao que deles pudesse ser dito cientificamente, o que implicou uma dramtica reconverso conceptual e analtica. Assim se criou o que, na esteira de Ortega

    1 Sobre os processos de globalizao, ver Santos, 2001: 31-110.

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    y Gasset (1987: 39), designo como pensamento ortopdico: o constrangi-mento e o empobrecimento causado pela reduo dos problemas a marcos analticos e conceptuais que lhes so estranhos. Com a crescente institucio-nalizao e profissionalizao da cincia concomitante da passagem, assi-nalada por Foucault, do intelectual universal ao intelectual especfico a cincia passou a responder exclusivamente aos problemas postos por ela. A vastido dos problemas existenciais que lhes subjaziam desapareceu. Mas desapareceu devido a uma outra reduo que entretanto ocorreu. Como acontece, em geral, com qualquer hegemonia, a hegemonia da cincia esten-deu-se para alm da cincia, submetendo a filosofia, a teologia e as huma-nidades em geral a um processo de cientifizao, um processo que ocorreu de mltiplas formas, correspondentes s mltiplas faces do positivismo, sobretudo na forma de positivismo ou empirismo lgico. Com isto, o pen-samento ortopdico prolongou-se para alm da cincia e, com a crescente institucionalizao e profissionalizao destas disciplinas, os problemas por elas tratados passaram a ser exclusivamente os problemas por elas enuncia-dos. Em suma, respostas acadmicas para problemas acadmicos cada vez mais distantes e redutores dos problemas existenciais que estavam na sua origem, cada vez mais irrelevantes para dar conta deles.

    Este vasto processo de monopolizao epistemolgica no ocorreu sem contradies. O sinal destas est precisamente na discrepncia entre per-guntas fortes e respostas fracas que caracteriza o nosso tempo. Selecciono ao acaso quatro dessas perguntas. Primeira pergunta: se h uma s huma-nidade, por que to grande a diversidade dos princpios, concepes e prticas de dignidade humana e so to bvias as divergncias e mesmo contradies entre elas? A resposta do pensamento ortopdico consiste em reduzir essa diversidade ao universalismo abstracto dos direitos humanos. Uma resposta fraca porque nega o que afirma (o universalismo) ao afirmar o que nega (a diversidade). Se os direitos humanos so mltiplos e interna-mente diversos, no h nenhuma razo para crer que tal multiplicidade e diversidade se confinem s que eles propem. Basta pensar que a diferen-ciao interna dos direitos humanos, longe de ser um processo sistmico auto-poitico, o resultado de contradies e lutas sociais que, entre mui-tas outras manifestaes, se condensam em direitos.

    Segunda pergunta: existe realmente uma alternativa ao capitalismo? Depois do fracasso histrico de tantas tentativas de construo de uma sociedade no capitalista, com consequncias to trgicas, no deveramos buscar alternativas dentro do capitalismo em vez de alternativas ao capita-lismo? A perplexidade causada por esta questo reside na teoria da histria que lhe est subjacente. Se tudo o que existe na histria histrico, ou seja,

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    tem um princpio e um fim, porque razo deveria o capitalismo ser dife-rente? Mas tambm provm de alguns factos perturbadores. No existir alternativa para um mundo em que 500 dos indivduos mais ricos detm um rendimento semelhante ao rendimento somado dos 40 pases mais pobres, com uma populao de 416 milhes de pessoas (PNUD, 2005: 30) e onde a catstrofe ecolgica uma possibilidade cada vez menos remota? Devemos assumir como um facto inevitvel que os problemas causados pelo capitalismo s podero ser resolvidos por mais capitalismo, que a economia da reciprocidade no uma alternativa credvel economia do egosmo, e que a natureza no merece outra racionalidade que no seja a irracionali-dade com que tratada pelo capitalismo? A perplexidade causada por estas perguntas tanto maior quanto se sabe que sem a concepo de uma socie-dade alternativa e sem uma luta politicamente organizada que a possibilite, o presente, por mais violento e injusto, tende a ser despolitizado a dis-cusso das questes polticas d lugar discusso do carcter dos polticos e, como consequncia, deixa de ser uma fonte de mobilizao para a revolta, o inconformismo e a oposio.

    A resposta fraca dupla. Por um lado, a igualdade essencial dos homens no colide com a desigualdade circunstancial do mrito entre eles. Por outro lado, a fome e a desnutrio e as pandemias no so causadas pelo capita-lismo mas, pelo contrrio, pela incipiente penetrao deste em muitas par-tes do mundo. No resultam de falhas de mercado, mas antes do facto de o mercado no estar ainda suficientemente implantado. So duas respostas fracas, por um lado, porque qualquer cidado comum, dotado das simples luzes da vida, sabe que, se verdade que a desigualdade depende do mrito, no menos verdade que o mrito depende da desigualdade. E, por outro lado, porque as mesmas luzes mostram que, com excepo das vacinas, a causa de um problema no pode ser a sua soluo.

    A terceira pergunta pode formular-se assim: como possvel que tudo o que foi defendido em nome da paz perptua, de Adam Smith a Kant, Locke e Hobbes (o mercado, a democracia, o direito e o Estado) tenha produzido ou tenha sido impotente para impedir a produo da situao de guerra perptua em que nos encontramos? A resposta fraca tambm aqui dupla. As guerras entre pases do Sul global so o resultado do despotismo e do atraso civilizacional, enquanto as guerras entre os pases do Norte global e os do Sul global (incluindo o colonialismo) so o resultado da luta contra o despotismo, em nome da democracia e do progresso civilizacional. A res-posta fraca porque para qualquer cidado, dotado das simples luzes da vida, estranho que, por razes to opostas, se produza exactamente o mesmo resultado: a morte desnecessria de milhes de pessoas inocentes.

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    Se, por definio, o despotismo no se pode impor democraticamente, possvel impor despoticamente a democracia? O atraso civilizacional de alguns o oposto ou a consequncia do avano civilizacional de outros? O cidado comum tem, assim, de guardar as perguntas fortes para si.

    Finalmente, a quarta pergunta. Parece evidente que, sem o que hoje designamos por natureza, a humanidade no pode sobreviver. Como expli-car ento que o mais ambicioso projecto, posto em marcha nos ltimos quatrocentos anos, para controlar a natureza e a colocar ao servio do homem, tenha resultado no mais trgico descontrolo e na ameaa, cada vez mais iminente, sobrevivncia da humanidade? A resposta fraca conhe-cida e tambm dupla: os problemas ambientais so problemas cientficos e tecnolgicos que se podem resolver com mais cincia e tecnologia; a cria-o de mercados ambientais de indstrias da ecologia (no necessariamente ecolgicas) pode trazer uma nova fonte de equilbrio e de sustentabilidade ambientais. Esta resposta deixa o cidado comum, dotado das simples luzes da vida, com uma inquietante perplexidade. Como que estes mercados ambientais e indstrias da ecologia podem garantir a sustentabilidade ambiental se a sustentabilidade de uns e de outras depende da contnua ameaa da insustentabilidade ambiental?

    Esta discrepncia entre perguntas fortes e respostas fracas uma carac-terstica geral do nosso tempo, constitui o esprito epocal, mas os seus impac-tos nos pases do Norte global e do Sul global so muito distintos. As res-postas fracas tm alguma credibilidade no Norte global porque foi neste que mais se desenvolveu o pensamento ortopdico e porque, traduzidas em polticas, so as respostas fracas que asseguram a continuao da dominao neocolonial do Sul global pelo Norte global e permitem aos cidados deste ltimo beneficiar dessa dominao sem que dela se dem conta. No Sul global, as respostas fracas traduzem-se em imposies ideolgicas e violn-cias de toda a espcie no quotidiano dos cidados, excepto no das elites que constituem o pequeno mundo do Sul imperial, a representao do Norte global no Sul global. Adensa-se, no entanto, no esprito da poca, o senti-mento de que esta diferena de impactos, apesar de real e abissal, esconde a tragdia de uma condio comum: a saturao de conhecimento-lixo inces-santemente produzido por um pensamento ortopdico que h muito deixou de pensar nas mulheres e nos homens comuns. Esta solido exprime-se na carncia inabarcvel de conhecimento credvel e prudente que nos garanta a todos, mulheres, homens e natureza, uma vida decente.2 Essa carncia no

    2 A problemtica da construo de um conhecimento prudente para uma vida decente analisada em Santos (org.), 2003.

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    nos permite sequer identificar e muito menos definir a verdadeira dimen-so dos problemas que afligem a poca. Eles manifestam-se como um conjunto de sentimentos contraditrios: exausto que no esconde carn-cia, mal-estar que no esconde injustia, raiva que no exclui esperana. A exausto decorre da incessante doutrinao de vitrias onde os cidados, com as simples luzes da vida, vem derrotas, de solues onde vem pro-blemas, de verdades periciais onde vem interesses, de consensos onde vem resignaes. O mal-estar decorre da falta de razoabilidade cada vez mais patente da racionalidade proclamada pelo pensamento ortopdico, uma mquina de injustia que se vende a si prpria como mquina de feli-cidade. A raiva emerge da regulao social disfarada de emancipao social, da autonomia individual usada para justificar servides neoesclava-gistas, da proclamao reiterada da impossibilidade de um outro mundo melhor, para calar a ideia difusa, mas muito genuna, de que a humanidade e a natureza tm direito a algo melhor do que o actual estado de coisas. Da exausto aproveitam-se os mestres do pensamento ortopdico para a trans-formar em realizao plena: o fim da histria (Fukuyama, 1992). Quanto ao mal-estar e raiva, so tratados com prteses farmacuticas, com a anestesia do consumo ou, na esmagadora maioria dos casos, com a anes-tesia da ideologia do consumo sem possibilidade realista de consumo e, finalmente, com a vertigem da indstria do entretenimento. Nenhum des-tes mecanismos, porm, parece funcionar de modo a disfarar totalmente, com a eficcia do funcionamento, a abissal disfuno que ele prprio cons-titui ao ser necessrio e eficaz.

    Este esprito epocal suscita o mesmo distanciamento em relao s teo-rias e s disciplinas que nos revelado por Luciano de Samsata. As teorias e as disciplinas esto demasiado ocupadas consigo mesmas para poderem responder s questes que o nosso tempo lhes coloca. O distanciamento explica a predominncia de epistemologias negativas e, concomitantemente, de ticas e posies polticas tambm negativas. As razes da rejeio do que existe tica, poltica e epistemologicamente so muito mais convincen-tes do que as que so invocadas para definir e defender alternativas. Mesmo que o desequilbrio entre rejeio e alternativa seja comum a todos os tempos, parece ser desproporcionalmente grande no nosso tempo. Porque o horizonte das revolues modernas colapsou ou porque o nosso tempo se indecide em ser demasiado prematuro para ser pr-revolucionrio ou demasiado tardio para ser ps-revolucionrio? Assumir plenamente o nosso tempo significa reconhecer essa desproporo e proceder a partir dela. Signi-fica, por outras palavras, radicalizar a rejeio e procurar as alternativas a partir da radical incerteza destas.

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    No plano epistemolgico, o nico de que me ocupo neste texto, a rejei-o implica um certo tipo de aco directa epistemolgica que consiste em ocupar as teorias e as disciplinas em desrespeito pelos seus proprietrios (escolas ou correntes de pensamento, instituies) com um triplo objectivo:

    1 Mostrar que as teorias e disciplinas perdem a compostura e a sereni-dade quando so interpeladas por questes que no tenham formulado a si prprias, por mais simples que sejam;

    2 Identificar complementaridades e cumplicidades onde as teorias e disciplinas vem rivalidades e contradies;

    3 Mostrar que a eficcia das teorias e disciplinas reside tanto no que mostram como no que ocultam, tanto na realidade que produzem como existente, como na realidade que produzem como no-existente.

    Para realizar o primeiro objectivo ser til simular experimentaes sociais em que as teorias e as disciplinas sejam postas na situao dos macacos do Rei Egpcio, contada por Luciano de Samsata noutro dilogo, O pescador:

    a histria de um rei egpcio que ensinou aos seus macacos a dana da espada. As criaturas, com apurado instinto imitativo, rapidamente aprenderam e passaram a actuar na corte adornadas com trajes vermelhos e mscaras. Durante algum tempo o espectculo foi um grande xito. At que um dia um engenhoso espectador trouxe consigo algumas nozes e as atirou para o palco. Num pice, os macacos esqueceram a dana, deitaram fora a sua humanidade e voltaram sua macaquice: ei-los rasgando os trajes e esmagando as mscaras, numa luta feroz pelas nozes. E assim ruiu o corps de ballet e a solenidade do auditrio. (1905: 222)

    A minha hiptese que as teorias e disciplinas reagiro de modo no--terico e no-disciplinar quando forem objecto de questes no previstas por elas. A manipulao ortopdica que elas exercem sobre a realidade de nada lhes servir no momento em que forem assim questionadas. A resposta no ser ortopdica. A imaginao epistemolgica, filosfica e sociolgica do nosso tempo exercita-se privilegiadamente identificando as questes que descompem as teorias e disciplinas e as obrigam a confrontar-se com o impensado que habita o seu pensamento. Para realizar os dois ltimos objec-tivos tambm podemos socorrer-nos de Luciano de Samsata e, metafori-camente, pr venda, tal como Zeus e Hermes, as diferentes teorias e dis-ciplinas. Compreende-se que haja resistncia. fcil imaginar o desconforto que tero sentido Demcrito e Heraclito ao serem vendidos no mesmo lote. Por outro lado, as teorias e disciplinas, que se consolidaram ditando utili-dades sociedade, no compreendero que a sua utilidade possa ser objecto

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    de avaliao. Do mesmo modo, as teorias e as disciplinas que teorizaram, a favor do capitalismo, a universalidade da concorrncia contra a cooperao, da compra e venda contra a ddiva, do interesse prprio contra a genero-sidade no aceitaro que elas prprias sejam postas venda, e muito menos por agentes intrusos e no certificados.

    Mas a rejeio das teorias e disciplinas sob a forma metafrica da compra e venda no to radical quanto se pensa. Afinal, se h compra e venda porque as teorias e disciplinas tm alguma utilidade. Doutro modo, seriam simplesmente deitadas ao lixo. A radicalidade reside em avali-las a partir de uma racionalidade mais ampla do que a que lhes subjaz. No se trata de fazer uma sociologia convencional das teorias e das disciplinas, pois esta ser sempre refm do seu objecto sob pena de se rejeitar a si mesma. Trata-se, outrossim, de construir um modo de interpelar as teorias e as disciplinas a partir de uma racionalidade mais ampla que designo por razo cosmopolita assente nos procedimentos no convencionais da sociologia transgressiva das ausncias e das emergncias. Como tratei detalhadamente deste tema noutro lugar (Santos, 2006: 87-126), limito-me aqui a reiterar que a socio-logia das ausncias parte da ideia de que a racionalidade que subjaz ao pensamento ortopdico ocidental uma racionalidade indolente, que no reconhece e, por isso, desperdia muita da experincia social disponvel ou possvel no mundo. Muita da realidade que no existe ou impossvel activamente produzida como no existente e impossvel. Para a captar, necessrio recorrer a uma racionalidade mais ampla que revele a disponi-bilidade de muita experincia social declarada inexistente (a sociologia das ausncias) e a possibilidade de muita experincia social emergente, decla-rada impossvel (a sociologia das emergncias).

    Como referi, assumir a condio do nosso tempo consiste, no s em rejeitar o pensamento ortopdico, como tambm em procurar alternativas a partir da radical incerteza destas. Ou seja, a sociologia das ausncias e das emergncias deve assentar em procedimentos epistemolgicos que credibi-lizem a busca de alternativas em condies de elevada incerteza. Antes de identificar esses procedimentos, passo a analisar as duas grandes incertezas que confrontam o nosso tempo e que o confrontam tanto mais quanto mais ele se liberta do pensamento ortopdico e da razo indolente.

    O paradoxo da finitude e da infinitudeA primeira incerteza diz respeito diversidade inesgotvel e inabarcvel das experincias de vida e de saber do mundo. Os movimentos de liberta-o contra o colonialismo e os novos movimentos sociais do movimento feminista ao movimento ecolgico, do movimento indgena ao movimento

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    dos afrodescendentes, do movimento campons ao movimento da teologia da libertao, do movimento urbano ao movimento LGBT alm de amplia-rem o mbito das lutas sociais, trouxeram consigo novas concepes de vida e de dignidade humana, novos universos simblicos, novas cosmogonias, gnoseologias e at ontologias. Trouxeram tambm novas emoes e afecti-vidades, novos sentimentos e paixes. Foram estes movimentos que criaram as condies para a sociologia das ausncias e das emergncias. Paradoxal-mente, este processo, que aponta para a infinitude da experincia humana, ocorreu de par com um outro, aparentemente contraditrio, que foi reve-lando a finitude do planeta terra, a unidade da humanidade e da natureza que a habita (a hiptese Gaia), os limites da sustentabilidade da vida na terra. O que designamos por globalizao contribuiu, de maneira contra-ditria, para aprofundar a dplice conscincia de infinitude e de finitude.

    A primeira incerteza coloca-nos, pois, perante o paradoxo da finitude e da infinitude. Como que, num mundo finito, a diversidade da experincia humana potencialmente infinita? Por sua vez, este paradoxo coloca-nos perante uma carncia epistemolgica aparentemente insupervel: o saber que nos falta para captar a inesgotvel diversidade do mundo. A incerteza causada por esta carncia ainda maior se tivermos em mente que a diver-sidade da experincia do mundo inclui a diversidade dos saberes que exis-tem no mundo e, portanto, das concepes, quer sobre a finitude do mundo, quer sobre a prpria diversidade infinita do mundo.

    O pensamento ortopdico e a razo indolente que lhe subjaz iludem esta complexidade, criando totalidades feitas de partes homogneas. A carncia a respeito da finitude transforma-se num problema tcnico-cientfico, enquanto a carncia a respeito da diversidade infinita ignorada como um no-problema. Sabemos hoje do mal-estar que esta resposta (uma res-posta fraca) nos cria. Da a incerteza que nos assola. No h, pois, como fugir proposta de uma epistemologia que nos permita caminhar no meio de tanta incerteza e que permita ver esta, no como um constrangimento, mas antes como o outro lado da capacitante afirmao de uma insuspei-tada e inesgotvel diversidade dos saberes e das experincias humanas. Sem querer ser demasiado essencialista, poder talvez afirmar-se, como o fez Ortega y Gasset (1987: 51), que o ser humano um ser condenado a transformar necessidade (finitude, sustentabilidade) em liberdade (diver-sidade, infinitude). certo que, mesmo que esta seja uma hiptese onto-lgica plausvel, ela s resolve em parte o paradoxo. Deixa em aberto a questo epistemolgica. Com que saberes revelar as experincias produ-zidas pelo pensamento ortopdico como no existentes (sociologia das ausncias) ou como impossveis (sociologia das emergncias)? Como iden-

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    tificar, avaliar e hierarquizar saberes to diversos e os modos como cons-tituem a experincia do mundo? Como articular os saberes que sabemos com os saberes que ignoramos?

    A urgncia e a mudana civilizacionalA segunda condio de incerteza diz especificamente respeito s alternati-vas culturais, polticas, sociais, econmicas que podem ser pensadas e accio-nadas a partir da inesgotvel diversidade humana, existindo num mundo finito. Se a primeira incerteza nos coloca perante o paradoxo da finitude- -infinitude, a segunda incerteza coloca-nos perante o paradoxo da urgncia e da mudana civilizacional. Nos ltimos duzentos anos, o pensamento ortopdico, tanto esquerda como direita, e a razo indolente que lhe subjaz, atriburam um sentido e uma direco histria assentes numa concepo linear do tempo (progresso) e numa concepo evolucionista das sociedades (do subdesenvolvimento ao desenvolvimento). Com base nesta concepo, foi possvel definir alternativas, determinar o movimento da histria e tambm definir o seu fim, o estado final da evoluo (idade positiva de Comte, solidariedade orgnica de Durkheim, industrialismo de Spencer, comunismo de Marx, etc., etc.). A crtica desta teoria da histria est feita e dela no me ocupo aqui. Concentro-me no que ficou do colapso dela. Apesar de o colapso ser da teoria no seu todo, os mestres do pensa-mento ortopdico manipularam-no para reduzir a vigncia da teoria defi-nio do ltimo estdio: as teses do fim da histria. nesta posio que se inspiram muitas das respostas fracas que tm sido dadas s perguntas fortes que o nosso tempo nos coloca. Vimos, porm, que as respostas fracas tm vindo a causar sentimentos de exausto, carncia, mal-estar, injustia e raiva que esto na base do distanciamento em relao ao pensamento ortopdico. Resulta daqui que a incerteza das alternativas reside no nelas em si, mas no pensamento que as descredibiliza. Como tenho vindo a defender, no pre-cisamos de alternativas mas de um pensamento alternativo de alternativas.

    Este distanciamento em relao ao pensamento ortopdico manifesta-se na recusa dos futuros por ele proposto e na afirmao difusa e aspiracional de um futuro melhor, de um outro mundo possvel.3 uma afirmao fraca porque a sua fora decorre mais das suas rejeies do que das propostas alternativas.4 a afirmao de um futuro melhor sem saber se ele possvel

    3 Um outro mundo possvel precisamente o mote que agrega os movimentos e as organizaes sociais que, desde 2001, tm animado o Frum Social Mundial. Ver Santos, 2005, 2008a, 2008b.4 Mais abaixo, fao uma distino entre respostas fracas-fracas e respostas fracas-fortes e, noutro lugar, atribuo s mobilizaes sociais conduzidas globalmente em nome do Frum Social Mundial o carcter de respostas fracas-fortes. Ver Santos, 2008a e 2008b.

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    e muito menos como ser. Tem a natureza de uma utopia, mas de uma utopia muito diferente das utopias modernas. Para ela, mais importante afirmar a possibilidade da alternativa do que definir o seu perfil. uma exigncia tica revelia das necessidades histricas, uma luta in extremis pelo inaca-bamento da histria. A necessidade de exigir vai de par com a incerteza do que se exige. Desta conjuno decorre a preferncia pelo futuro que est mo, por agir aqui e agora, pela actio in proximis. Esta preferncia vivida como uma necessidade que decorre da urgncia de agir sob pena de ser demasiado tarde. Tambm aqui a nossa condio utpica diverge funda-mentalmente da condio utpica moderna, que sempre se centrou num futuro to brilhante quanto distante, na actio in distans, na submisso da tctica estratgia.

    Mas tambm neste domnio a condio do nosso tempo paradoxal. Se, por um lado, domina o sentimento de urgncia, por agir agora j que ama-nh pode ser demasiado tarde, por outro lado, e paradoxalmente, domina a ideia de que a dimenso do que h a fazer para garantir a possibilidade de um mundo melhor implica uma mudana civilizacional, a qual s poder ocorrer a longo prazo, uma actio in distans.

    O paradoxo traduz-se na polarizao entre as duas temporalidades extre-mas da aco colectiva de transformao social: a moldura temporal da aco urgente e a moldura temporal da mudana civilizacional. A moldura temporal da aco urgente decorre de fenmenos como o aquecimento global e a sensao de uma iminente catstrofe ecolgica, a preparao mal disfarada de uma nova guerra nuclear, a eroso das condies de susten-tabilidade bsica (gua, por exemplo) da vida de camadas cada vez mais vastas de populao, o impulso descontrolado para uma guerra eterna e a destruio injusta de tantas vidas humanas provocadas pelo esgotamento dos recursos naturais, o crescimento exponencial da desigualdade social, as novas formas de despotismo social e a emergncia ou reemergncia de regimes sociais regulados apenas pela fora de diferenas de poder extremas ou por hierarquias estamentais de novo tipo, ditas neofeudais. Todos estes factores parecem impor que seja dada prioridade imediata aco de curto prazo, aqui e agora, uma vez que o longo prazo pode nem sequer existir se as tendncias expressas evolurem fora de controlo. Certamente que a pres-so da urgncia tem origem em factores distintos no Norte global e no Sul global, mas parece estar presente em toda a parte.

    Por sua vez, a moldura temporal da mudana civilizacional assenta na ideia de que as realidades do nosso tempo exigem mudanas civilizacionais mais profundas e a longo prazo. Os factos acima mencionados so sintomas de estruturas profundamente enraizadas e de organizaes que no podem

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    ser confrontadas por intervencionismo de curto prazo j que a lgica de tais intervenes pertence ao actual paradigma civilizacional e, portanto, s pode contribuir para o reproduzir mesmo se diz combat-lo. O sculo XX provou com uma crueldade imensa que tomar o poder no suficiente e que, em vez de tomar o poder, necessrio transform-lo.5

    A coexistncia destas polaridades temporais produz uma enorme tur-bulncia em velhas distines e clivagens do pensamento crtico social e poltico, como sejam as dicotomias entre tctica e estratgia e entre refor-mismo e revoluo. Enquanto o sentido de urgncia apela para posies tcticas e reformistas, o sentido paradigmtico de mudana civilizacional apela para posies estratgicas e revolucionrias. Mas o facto de ambos os sentidos coexistirem e pressionarem conjuntamente, ainda que em direces opostas, desfigura os termos das distines e clivagens, tor-nando-os mais ou menos irrelevantes e desprovidos de sentido. Na melhor das hipteses, transformam-se em significantes vagos, susceptveis de apro-priaes contraditrias.

    Se a primeira incerteza da condio do nosso tempo a inesgotvel diver-sidade do mundo nos pe perante o paradoxo da finitude e infinitude, a segunda incerteza sobre a possibilidade de um outro mundo melhor pe-nos perante o paradoxo da urgncia e da mudana civilizacional. Esta dupla e paradoxal incerteza coloca-nos desafios epistemolgicos e polticos novos. Para os enfrentar, socorro-me de duas tradies esquecidas da moder-nidade ocidental: a douta ignorncia de Nicolau de Cusa e a aposta de Pas-cal. Foram formuladas por autores que viveram intensamente as incertezas do seu tempo e foram esquecidas porque se adequavam mal s certezas que a modernidade ocidental pretendia garantir. Esto, pois, nos antpodas do pensamento ortopdico e da razo indolente que passaram a dominar nos sculos seguintes. Foram esquecidas por eles, mas, em contrapartida, tam-bm no foram colonizadas por eles. So, pois, mais transparentes, quer quanto s suas potencialidades, quer quanto aos seus limites. Porque no partilharam da aventura moderna ocidental, permaneceram no Ocidente margem do Ocidente. Eram inteis e at perigosas para uma aventura que era tanto epistemolgica como poltica: o projecto imperial do colonialismo e do capitalismo globais que criou a diviso abissal entre o que hoje designa-mos por Norte global e Sul global.6 Estas duas tradies so, por assim dizer, o Sul do Norte e, por isso, esto em melhores condies do que qualquer

    5 As verses mais extremas desta temporalidade podem mesmo apelar transformao do mundo sem a tomada do poder (Holloway, 2002).6 Esta diviso abissal transformou-se ela prpria, numa condio epistemolgica. Sobre o pensa-mento abissal, ver Santos, 2007.

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    outras para aprender com o Sul global e colaborar com ele na construo de epistemologias que ofeream alternativas credveis ao pensamento orto-pdico e razo indolente.

    A douta ignorncia Nicolau de Cusa, filsofo e telogo, nasceu na Alemanha em 1401 e morreu em 1467. Entre 1438 e 1440, escreveu a obra intitulada A Douta Ignorncia (Cusa, 2003). Confrontado com a infinitude de Deus, que no designa como tal e sim como Mximo absoluto, o autor prope-nos uma reflexo cen-trada na ideia do saber do no saber. O importante no saber, , sim, saber que se ignora. Diz Nicolau de Cusa, com efeito, nenhum outro saber mais perfeito pode advir ao homem, mesmo ao mais estudioso, do que descobrir-se sumamente douto na sua ignorncia, que lhe prpria, e ser tanto mais douto quanto mais ignorante se souber (2003: 5). A novidade de Nicolau de Cusa reside em que ele usa o pretexto da infinitude de Deus para propor um procedimento epistemolgico geral, que vale para o conhecimento das coisas finitas, o conhecimento do mundo. Por ser finito, o nosso pensamento no pode pensar o infinito no h proporo entre o finito e o infinito , mas, alm disso, limitado no pensar a finitude, o mundo. Tudo o que conhecemos est sujeito a essa limitao, pelo que conhecer , antes de tudo, conhecer essa limitao. Da o saber do no saber.

    A designao douta ignorncia pode parecer contraditria, pois o que douto , por definio, no ignorante. A contradio , contudo, aparente j que ignorar de maneira douta exige um processo de conhecimento labo-rioso sobre as limitaes do que sabemos. Em Nicolau de Cusa h, por assim dizer, dois tipos de ignorncia, a ignorncia ignorante, que no sabe sequer que ignora, e a ignorncia douta, que sabe que ignora e o que ignora.7 Pode pensar-se que Nicolau de Cusa se limita a repetir Scrates, mas, de facto, assim no .8 que Scrates no conhece a ideia de infinitude, que s entra no pensamento ocidental por via do neoplatonismo de raiz crist.9 Esta

    7 Para Nicolau de Cusa, conhecer medir o que se pretende conhecer. A medio tem lugar a dois nveis: o nvel directo ou de primeira ordem, em que assumimos a separao absoluta entre a unidade de medida e o que se pretende medir; e o nvel de segunda ordem ou reflexivo em que medimos a primeira medio. Esta reflexo revela que, sendo a unidade de medida, ela prpria, um produto do conhecimento humano, aquilo que este ltimo mede no pode ser separado em termos absolutos da medida com que o mede. , pois, neste segundo nvel que ocorre a douta ignorncia. Nicolau de Cusa antecipa, assim, em cinco sculos o princpio da incerteza de Heisenberg. Ver Santos, 1987: 26. Sobre a actualidade do pensamento de Nicolau de Cusa, ver Andr, 2001. 8 Ambos, no entanto, convergem na ideia de que o que conhecemos muito menos importante que o que no conhecemos, sendo, pois, de privilegiar epistemologicamente a ignorncia. Ver tambm Miller, 2002: 16. 9 Sobre este tema, ver Andr, 1997: 94.

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    ideia, sujeita a mltiplas metamorfoses (progresso, emancipao), vai ser fundamental na construo do paradigma da modernidade ocidental. Mas o seu destino no interior deste paradigma muito diferente daquele que tem no pensamento de Nicolau de Cusa. As verses dominantes do para-digma da modernidade transformaram o infinito num obstculo a superar: o infinito o af infinito de o superar, controlando-o, domesticando-o, reduzindo-o a propores finitas. Assim, a infinitude que, partida, devia suscitar um sentimento de humildade perante ela, transforma-se no fun-damento ltimo da arrogncia das verses hegemnicas do pensamento ocidental: o pensamento ortopdico e a razo indolente. Ao contrrio, em Nicolau de Cusa, a infinitude aceite enquanto tal, enquanto conscincia de uma ignorncia radical. No se trata de a controlar ou dominar, mas de a reconhecer por uma dupla via: pela total ignorncia que temos dela; e pelas limitaes que pe preciso do conhecimento que temos das coi-sas finitas. Perante ela, no possvel a arrogncia, to s a humildade. Contudo, a humildade no significa negatividade ou cepticismo. Pelo con-trrio, a reflexo e o conhecimento dos limites do saber contm uma insus-peitada positividade. que, dialecticamente, e como afirma Joo Maria Andr, reconhecer os limites , de algum modo, estar para alm deles (1997: 94). O facto de no ser possvel atingir a verdade com preciso no nos dispensa de a buscar. Ao contrrio, o que est para alm dos limites (a ver-dade) comanda o que possvel e exigvel dentro dos limites (a veracidade, enquanto busca da verdade).

    Sem surpresa, quase seis sculos depois, a dialctica da finitude/infi-nitude, que caracteriza o tempo presente, muito diferente da de Cusa. A infinitude com que nos debatemos no transcendental;10 decorre da inesgotvel diversidade da experincia humana e dos limites para a conhe-cer. No nosso tempo, a douta ignorncia ser um laborioso trabalho de reflexo e de interpretao sobre esses limites, sobre as possibilidades que eles nos abrem e as exigncias que nos criam. Acresce que da diversidade da experincia humana faz parte a diversidade dos saberes sobre a expe-rincia humana. A nossa infinitude tem, pois, uma contraditria dimenso epistemolgica: uma pluralidade infinita de saberes finitos sobre a expe-rincia humana no mundo. A finitude de cada saber , assim, dupla, cons-tituda pelos limites do que conhece sobre a experincia do mundo e pelos limites (qui bem maiores) do que conhece sobre os outros saberes do mundo e, portanto, sobre o conhecimento do mundo que outros saberes

    10 A incerteza da infinitude transcendental no desapareceu, mas permanece nas margens ou zonas de fronteira criadas pela hegemonia do secularismo moderno. Sobre este tema ver Santos, no prelo.

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    proporcionam. sobretudo a diversidade epistemolgica do mundo que causa incerteza no tempo actual. O saber que ignora o saber que ignora os outros saberes que com ele partilham a tarefa infinita de dar conta das experincias do mundo. O pensamento ortopdico e a razo indolente no podem guiar-nos adequadamente nesta incerteza porque fundam um saber (a cincia moderna na concepo hegemnica que temos dela) que conhece mal os limites do que permite conhecer da experincia do mundo e conhece ainda menos os outros saberes que com ele partilham a diversidade episte-molgica do mundo. Alis, mais do que no conhecer os outros saberes, recusa reconhecer sequer que eles existam. Entre as experincias dispon-veis do mundo produzidas como no existentes, assumem particular impor-tncia os saberes que no cabem no pensamento ortopdico e na razo indolente. Por isso, uma das dimenses principais da sociologia das ausn-cias a sociologia dos saberes ausentes, ou seja, a identificao dos saberes produzidos como no existentes pela epistemologia hegemnica.

    Ser um douto ignorante no nosso tempo saber que a diversidade episte-molgica do mundo potencialmente infinita e que cada saber s muito limi-tadamente tem conhecimento dela. Tambm neste aspecto a nossa condio diferente da de Nicolau de Cusa. Enquanto o saber do no saber de que ele parte um saber nico e, portanto, uma nica douta ignorncia, a douta ignorncia adequada ao nosso tempo infinitamente plural. Mas, tal como acontece com a douta ignorncia de Nicolau de Cusa, a impossibilidade de captar a infinita diversidade epistemolgica do mundo no nos dispensa de procurar conhec-la, pelo contrrio, exige-o. A essa exigncia chamo a ecolo-gia de saberes. Por outras palavras, se a verdade s existe como busca da ver-dade, o saber s existe como ecologia de saberes.11 Conhecidas as diferenas que nos separam de Nicolau de Cusa, torna-se mais fcil aprender a lio que ele nos d. Ela s frutfera se formos para alm dele e o pusermos ao ser-vio das nossas preocupaes e incertezas, seguramente diferentes das dele.

    A ecologia de saberesSendo infinita, a pluralidade de saberes existentes no mundo inatingvel enquanto tal, j que cada saber s d conta dela parcialmente, a partir da sua perspectiva especfica. Mas, por outro lado, como cada saber s existe nessa pluralidade infinita de saberes, nenhum deles pode compreender-se a si prprio sem se referir aos outros saberes. O saber s existe como plu-ralidade de saberes, tal como a ignorncia s existe como pluralidade de ignorncias. As possibilidades e os limites de compreenso e de aco de

    11 Sobre este tema, ver Santos, 2006: 87-126.

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    cada saber s podem ser conhecidas na medida em que cada saber se pro-puser uma comparao com outros saberes. Essa comparao sempre uma verso contrada da diversidade epistemolgica do mundo, j que esta infinita. , pois, uma comparao limitada, mas tambm o modo de pres-sionar ao extremo os limites e, de algum modo, de os ultrapassar ou deslo-car. Nessa comparao consiste o que designo por ecologia de saberes.

    Os limites e as possibilidades do que um dado tipo de saber permite conhecer sobre uma dada experincia humana decorrem de esta ser tam-bm conhecida por outros saberes que esse saber ignora. Os limites e as possibilidades de cada saber residem, assim, em ltima instncia, na exis-tncia de outros saberes e, por isso, s podem ser explorados e valorizados na comparao com outros saberes. Quanto menos um dado saber conhe-cer os limites do que conhece sobre os outros saberes, tanto menos conhece os seus prprios limites e possibilidades. A comparao no fcil, mas nela reside a douta ignorncia adequada ao nosso tempo.

    A dificuldade da comparao reside em que as relaes entre saberes so assombradas por uma assimetria. Em princpio, cada saber conhece mais e melhor os seus limites e possibilidades e do que os limites e possibilidades de outros saberes. Esta assimetria constitui o que chamo diferena episte-molgica. Ela ocorre nas relaes entre saberes vigentes na mesma cultura e ainda mais intensamente nas relaes entre saberes vigentes em diferentes culturas. Esta assimetria complexa porque, sendo epistemolgica, mani-festa-se menos como uma questo epistemolgica do que como uma ques-to poltica. Ou seja, a assimetria entre os saberes ocorre sobreposta assi-metria dos poderes. Em termos de tipos-ideais, h dois modos opostos de accionar essa assimetria. A primeira consiste em maximiz-la, levando ao mximo a ignorncia a respeito dos outros saberes, ou seja, declarando a sua inexistncia. A este modo chamo fascismo epistemolgico porque cons-titui uma relao violenta de destruio ou supresso de outros saberes. Trata-se de uma afirmao de fora epistemolgica que oculta a epistemo-logia da fora. O fascismo epistemolgico existe sob a forma de epistemi-cdio, cuja verso mais violenta foi a converso forada e a supresso dos conhecimentos no ocidentais levadas a cabo pelo colonialismo europeu e que continuam hoje sob formas nem sempre mais subtis. No plo oposto, est a tentativa de minimizar ao mximo essa assimetria na relao entre saberes. A complexidade desta tentativa decorre de ela no poder ser rea-lizada com xito unilateralmente por um dado saber. Pelo contrrio, pres-supe que a assimetria seja reconhecida por outros saberes e que todos faam dela o motor da comparao com outros saberes. Por outras palavras, a diferena epistemolgica s pode ser minimizada atravs de compara-

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    es recprocas entre saberes na busca de limites e possibilidades cruza-das. A este segundo modo de viver a assimetria chamo a ecologia de saberes. Da anlise precedente, decorre que o primeiro modo tem predominado nas epistemologias hegemnicas da modernidade ocidental e nos modos de racionalidade e de pensamento que elas sustentam, a razo indolente e o pensamento ortopdico. A proposta que fao, da ecologia de saberes, a epistemologia da douta ignorncia.

    A ecologia de saberes confronta-se com dois problemas: a) como com-parar saberes, dada a diferena epistemolgica; b) como criar o conjunto de saberes que participa de um dado exerccio de ecologia de saberes j que a pluralidade de saberes infinita. Para confrontar o primeiro, proponho a traduo e, para confrontar o segundo, proponho a artesania das prticas.

    A traduoPor ter tratado deste tema noutro lugar (Santos, 2006: 127-154), limito-me aqui a uma breve referncia. Pautado pela douta ignorncia, cada saber conhece melhor os seus limites e possibilidades comparando-se com outros saberes. A existncia da diferena epistemolgica faz com que a comparao tenha de ser feita atravs de procedimentos de busca de proporo e corres-pondncia que, no conjunto, constituem o trabalho de traduo. Como referi, para que estes procedimentos actuem necessrio que eles sejam levados a cabo por todos os saberes que compem um dado crculo de ecologia de saberes. Na acepo que aqui lhe dou, a traduo traduo recproca. Atravs dela, a diferena epistemolgica, ao ser assumida por todos os saberes em presena, torna-se uma diferena tendencialmente igual. Os procedimentos de proporo e correspondncia so procedimentos indirectos que permitem aproximaes sempre precrias ao desconhecido a partir do conhecido, ao estranho a partir do familiar, ao alheio a partir do prprio. Entre eles, menciono sinais, smbolos, conjecturas, enigmas, pistas, perguntas, paradoxos, ambiguidades, etc.12 O uso recproco destes pro-cedimentos, longe de eliminar a incompletude de cada saber, aumenta-a. A douta ignorncia consiste precisamente em levar ao mximo a conscin-cia dessa incompletude. O aumento da incompletude resulta da astcia da douta ignorncia. O exerccio reiterado da traduo vai revelando que os

    12 Tambm aqui haveria muito a aprender com uma outra tradio ocidental esquecida ou margi-nalizada, a reflexo filosfica realizada na primeira modernidade ocidental (sculo XVI-XVII), a modernidade ibrica, em especial a reflexo filosfica dos Conimbricences, os jesutas (mas tambm os dominicanos) que ensinaram filosofia no Colgio das Artes da Universidade de Coimbra a partir de 1555. Especificamente a respeito da reflexo dos Conimbricences sobre os sinais que tanto inspirou a semitica de Charles Sanders Peirce , ver Doyle, 2001.

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    procedimentos desenvolvidos para conhecer outros saberes so os mesmos com que cada saber conhece a experincia do mundo em geral e no apenas a experincia epistemolgica do mundo.

    Os procedimentos da traduo, ainda que basicamente os mesmos, variam consoante os diferentes saberes pertencem mesma cultura ou a culturas diferentes. Neste ltimo caso, a traduo assume a forma de traduo inter-cultural e o seu exerccio particularmente complexo.

    A artesania das prticasTal como o fascismo epistemolgico, a ecologia de saberes uma opo epistemolgica e poltica. Sendo sempre limitado o conjunto de saberes que integra a ecologia dos saberes, h que definir como se constituem esses conjuntos. partida, possvel um nmero ilimitado de ecologias de sabe-res, to ilimitado quanto o da diversidade epistemolgica do mundo. Cada exerccio de ecologia de saberes implica uma seleco de saberes e um campo de interaco onde o exerccio tem lugar. Um e outro so definidos em funo de objectivos no epistemolgicos. A incerteza sobre a diversi-dade inesgotvel da experincia do mundo decorre de uma preocupao em no desperdiar a experincia do mundo num contexto em que este parece ter esgotado a capacidade de inovao libertadora. Do mesmo modo, a incerteza sobre a possibilidade e a natureza de um mundo melhor decorre de um sentimento contraditrio de urgncia e de mudana civilizacional a respeito de uma exigncia de transformao social. Desta dupla preocupa-o, nasce o impulso para a ecologia de saberes e os contextos especficos em que a preocupao ocorre determinam os saberes que integraro um dado exerccio de ecologia dos saberes. A preocupao da preservao da biodiversidade pode levar a uma ecologia entre o saber cientfico e o saber campons ou indgena.13 A preocupao da luta contra a discriminao pode conduzir a uma ecologia entre saberes produzidos por diferentes movi-mentos sociais: feministas, anti-racistas, de orientao sexual, de direitos humanos, indgenas, afrodescendentes, etc., etc. A preocupao com a dimenso espiritual da transformao social pode levar a ecologias entre saberes religiosos e seculares, entre cincia e misticismo, entre teologias da libertao (feministas, ps-coloniais) e filosofias ocidentais, orientais, ind-genas, africanas, etc. A preocupao com a dimenso tica e artstica da transformao social pode incluir todos esses saberes e ainda as humanida-des, no seu conjunto, a literatura e as artes.

    13 Especificamente sobre a nova relao ecolgica entre cincia e outros saberes, ver Santos, 2003 (org.) e Santos, Meneses e Nunes, 2004: 19-101.

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    As preocupaes que suscitam os exerccio de ecologia de saberes so partilhadas por diversos grupos sociais que, em dado contexto, convergem na ideia de que as suas aspiraes e os seus interesses s podem ser pros-seguidos com xito em articulao com outros grupos sociais e, portanto, com os saberes dos outros grupos sociais. A ecologia de saberes a dimen-so epistemolgica de uma solidariedade de tipo novo entre actores ou grupos sociais. uma solidariedade internamente diversa em que cada grupo apenas se mobiliza por razes prprias e autnomas de mobilizao, mas, por outro lado, entende que as aces colectivas que podem trans-formar essas razes em resultados prticos extravasam do que possvel levar a cabo por um s actor ou grupo social. A ecologia de saberes sinaliza a passagem de uma poltica de movimentos sociais para uma poltica de inter-movimentos sociais.

    Esta caracterizao das razes que criam a necessidade da ecologia de saberes e seleccionam os saberes que, numa situao concreta, a integram ajuda-nos igualmente a identificar os campos de interaco em que a ecolo-gia de saberes ocorre. Esses campos no so epistemolgicos. Os saberes que dialogam, que mutuamente se interpelam, questionam e avaliam, no o fazem em separado como uma actividade intelectual isolada de outras actividades sociais. Fazem-no no contexto de prticas sociais constitudas ou a constituir, cuja dimenso epistemolgica uma entre outras, e dessas prticas que emergem as questes postas aos vrios saberes em presena. Tais questes s so epistemolgicas na medida em que forem prticas, isto , tiverem consequncias para o contexto das prticas em que a ecologia de saberes tem lugar. Da que os saberes sejam confrontados com problemas que, por si, nunca poriam. Em geral, tais problemas tomam os saberes de surpresa e estes, com frequncia, revelam-se incapazes de os resolver. A interpelao cruzada dos saberes nasce do reconhecimento dessa inca-pacidade e da tentativa de a superar.

    Esta prioridade das prticas produz uma transformao fundamental na relao entre os saberes em presena. A superioridade de um dado saber deixa de ser definida pelo nvel de institucionalizao e profissionalizao desse saber para passar a ser definida pelo seu contributo pragmtico para uma dada prtica. Fica assim desactivado um dos motores do fascismo epis-temolgico que tem caracterizado a relao da cincia moderna com outros saberes. Para certas prticas, a cincia ser certamente determinante, tal como para outras ser irrelevante ou at contraproducente. Esta deslocao pragmtica das hierarquias entre saberes no elimina as polarizaes entre os saberes, mas redu-las s que decorrem dos contributos prticos para a aco almejada. Neste sentido, a ecologia de saberes transforma todos os

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    saberes em saberes experimentais. Tambm aqui a lio de Nicolau de Cusa frutfera. Em 1450 redigiu trs dilogos, De Sapientia, De Mente e De Staticis Experimentis, em que a personagem central o Idiota, um homem simples e iletrado, um pobre arteso que faz colheres de pau.14 Nos dilogos que ele tem com o filsofo credenciado (o humanista, o orador), ele o sbio capaz de resolver os problemas mais complexos da existncia a partir da experincia da sua vida activa, qual conferida prioridade em relao vida contemplativa. Como afirma Leonel dos Santos (2002: 73), O Idiota contraposto ao homem erudito e letrado, possuidor de um saber escolar, fundado em autores e autoridades, e que destes tira a sua competncia, mas que perdeu o sentido do uso e cultivo autnomo das suas prprias faculda-des. O Orador provoca o Idiota: Que presuno a tua, pobre idiota completamente ignorante, que assim minimizas o estudo das letras, sem o qual ningum progride? (2002: 78). O Idiota responde: No , grande Orador, presuno o que me no deixa calado mas a caridade. Pois vejo-te dedicado busca da sabedoria com muito trabalho em vo A opinio da autoridade fez de ti, que s livre por natureza, algo semelhante a um cavalo preso pelo cabresto manjedoura, que s come aquilo que lhe servido. O teu conhecimento alimenta-se da autoridade dos que escrevem, limitado a um pasto alheio e no natural (2002: 79). Pouco depois acrescenta: Eu, porm, digo-te que a sabedoria grita nos mercados e o seu clamor anda pelas praas (2002: 79). A sabedoria exprime-se no mundo e nas tarefas mundanas, particularmente naquelas que so obra da razo e que implicam operaes de clculo, de medida e de pesagem (2002: 81).

    So dilogos muito irnicos, em que o Idiota afinal o expositor da douta ignorncia proposta por Nicolau de Cusa.15 Neles, as grandes disputas entre escolas de saber erudito deixam de ser importantes se a sua importncia para a vida e para a experincia prticas no for demonstrada. Este descen-tramento dos saberes fundamental para que a ecologia de saberes atinja os seus objectivos: a promoo de prticas sociais eficazes e libertadoras a partir da interpelao cruzada dos limites e das possibilidades de cada um dos saberes em presena.

    O descentramento dos saberes tem ainda uma outra dimenso. O campo de interaces prticas (isto , com objectivos prticos), em que se realiza a ecologia de saberes, exige que o lugar da interpelao dos saberes no seja um lugar exclusivo dos saberes, por exemplo, universidades ou centros de

    14 Sobre os dilogos e a sabedoria do idiota ver Santos, Leonel (2002: 67-98) 15 De perspectivas muito diferentes da de Nicolau de Cusa, a ideia de privilegiar a ignorncia como princpio pedaggico tem sido tratada por muitos autores. Ver, por exemplo, Rancire, 1987.

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    investigao. O lugar de enunciao da ecologia de saberes so todos os lugares onde o saber convocado a converter-se em experincia transfor-madora. Ou seja, so todos os lugares que esto para alm do saber enquanto prtica social separada. Significativamente, os dilogos de Nicolau de Cusa tm lugar ou no barbeiro ou na humilde oficina do arteso. O filsofo , pois, levado a discutir num terreno que lhe no familiar e para o qual no foi treinado, o terreno da vida prtica. o terreno onde se planeiam aces prticas, se calculam as oportunidades, se medem os riscos, se pesam os prs e os contras. este o terreno da artesania das prticas, o terreno da ecologia de saberes.

    Em concluso, a douta ignorncia e a ecologia dos saberes so as vias para enfrentar uma das condies de incerteza do nosso tempo: a diversi-dade infinita da experincia humana e o risco que se corre de, com os limi-tes de conhecimento de cada saber, se desperdiar experincia, isto , de se produzir como inexistentes experincias sociais disponveis (sociologia das ausncias) ou de se produzir como impossveis experincias sociais emer-gentes (sociologia das emergncias).

    A aposta de PascalPara enfrentar a segunda condio de incerteza do tempo presente a incer-teza de no sabermos se o mundo melhor a que julgamos ter direito e de que necessitamos com urgncia ser efectivamente possvel proponho outra sugesto filosfica da modernidade ocidental igualmente esquecida: a aposta de Pascal. Partilhando o mesmo esquecimento e marginalizao a que foi sujeita a douta ignorncia de Nicolau de Cusa, a aposta de Pascal pode, tal como a douta ignorncia, servir de ponte ou de abertura para outras filosofias no ocidentais e para outras prticas de interpelao e de transformao social que no as que vieram a ser sufragadas pelo pensa-mento ortopdico e pela razo indolente. Alis, entre a douta ignorncia e a aposta h uma afinidade bsica. Ambas assumem a incerteza e a precarie-dade do saber como uma condio que, sendo um constrangimento e uma fraqueza, tambm uma fora e uma oportunidade. Ambas se debatem com a desproporo entre o finito e o infinito e ambas procuram elevar ao limite mximo as potencialidades do que possvel pensar e fazer dentro dos limites do finito.

    Pascal parte de uma incerteza radical: a existncia de Deus no pode ser demonstrada racionalmente. Diz Pascal: Se h um Deus, ele infinitamente incompreensvel, uma vez que, no tendo nem partes nem limites, no tem qualquer comparao connosco. Somos, portanto, incapazes de saber o que ele e se existe (1988: 103). Em face disso, pe a questo de saber como

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    formular razes que levem um no-crente a mudar de opinio e passar a acreditar em Deus. A resposta a aposta. Apesar de no podermos racio-nalmente determinar que Deus existe, podemos pelo menos encontrar um meio racional de determinar que apostar na sua existncia nos traz mais vantagens do que acreditar na sua no existncia. A aposta envolve um risco certo e finito de ganhar ou perder e a possibilidade de obter um ganho infi-nito. Apostar na existncia de Deus obriga-nos a ser honestos e virtuosos. E, claro, tambm nos obriga a renunciar a prazeres nocivos e glria mun-dana. Se Deus no existir, perdemos a aposta mas em compensao ganh-mos uma vida virtuosa, cheia de boas obras. Em contrapartida, se ele exis-tir, o nosso ganho infinito, a salvao eterna. De facto, no perdemos nada com esta aposta e o ganho pode ser infinito: [] a cada passo que derdes neste caminho vereis tanta certeza de ganho, e to grande o nada que arris-cais, que reconhecereis, por fim, que haveis apostado numa coisa certa, infinita, pela qual nada haveis dado (1988: 107)

    A racionalidade da aposta consiste em que, para apostar na existncia de Deus, no preciso ter f. , contudo, uma racionalidade muito limitada, pois nada nos diz sobre a real existncia de Deus e muito menos sobre a sua natureza. Como a existncia e natureza de Deus sempre um acto de f, Pascal tem de encontrar uma mediao entre a f e a racionalidade. Essa mediao o hbito. Diz Pascal: O costume a nossa natureza. Quem se acostuma f cr nela (1988: 50). Ou seja, o apostador, ao apostar reite-radamente na existncia de Deus, acabar por acreditar nela.

    Tal como aconteceu com Nicolau de Cusa, a preocupao que decorre da incerteza do nosso tempo muito diferente da de Pascal. Para a grande maioria, o que est em causa no a salvao eterna, o mundo do alm, mas antes um mundo terreno melhor do que o mundo actual. No havendo necessidade ou determinismo na histria, no h nenhuma maneira racional de saber ao certo se um outro mundo possvel e muito menos como ser a vida nele. O nosso infinito a incerteza infinita a respeito da possibilidade ou no de um outro mundo melhor. Perante isto, a questo que nos con-fronta pode ser formulada assim: que razes nos podem levar a lutar por uma tal possibilidade, correndo riscos certos para obter um ganho to incerto? Sugiro que a resposta seja a aposta, como nica alternativa tanto s teses do fim da histria como s teses do determinismo vulgar. A aposta a metfora da construo precria, mas minimamente credvel, da possi-bilidade de um mundo melhor, ou seja, a possibilidade de emancipao social, sem a qual a rejeio da injustia do mundo actual e o inconformismo perante ela no fazem sentido. A aposta a metfora da transformao social num mundo em que as razes e vises negativas (o que se rejeita) so muito

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    mais convincentes do que as razes positivas (a identificao do que se quer e como l chegar).

    Acontece que a aposta do nosso tempo sobre a possibilidade de um mundo melhor muito diferente da aposta de Pascal e bem mais complexa. So diferentes as condies da aposta e a proporo entre os riscos de ganhar e os riscos de perder. O que h de comum entre Pascal e ns so os limites da racionalidade, a precariedade dos clculos e a conscincia dos riscos. Quem o apostador no nosso tempo? Enquanto para Pascal o apostador o indivduo racional, no nosso tempo o apostador a classe ou o grupo social excludo, discriminado, em suma, oprimido e os seus aliados. Porque a possibilidade de um mundo melhor ocorre neste mundo, s aposta nessa possibilidade quem tem razes para rejeitar o status quo do mundo actual. Os opressores tendem a experienciar o mundo em que vivem como o melhor possvel e o mesmo acontece com aqueles que, no sendo directamente opressores, beneficiam das prticas opressivas destes. Para eles no faz sentido apostar no que j existe.

    Dado o carcter transicional do nosso tempo h a considerar uma dis-tino no seio do grupo dos oprimidos e seus aliados. Trata-se da distino entre aqueles que se formaram na convico da necessidade determinstica de um mundo melhor (a iluso do futuro), para quem, por isso, nunca fez sentido apostar, e aqueles que, mais fustigados pela opresso ou mais sujei-tos doutrinao dos opressores, no acreditam na possibilidade, por mais remota, de um outro mundo melhor (a iluso do presente), e, portanto, para quem no faz agora sentido apostar mesmo se no passado fez. Quanto aos primeiros, as razes para apostar estaro associadas desiluso do deter-minismo do futuro; quanto aos segundos, as razes estaro associadas desiluso do determinismo do presente.

    Tambm as condies da aposta do nosso tempo divergem muito das da aposta de Pascal. Enquanto, para o apostador de Pascal, a existncia ou no de Deus no depende dele, para o apostador do nosso tempo a possibili-dade ou no de um mundo melhor depende da sua aposta e das aces que resultarem dela. Mas, paradoxalmente, os seus riscos so maiores. que as aces que resultarem da aposta ocorrero num mundo de classes e grupos em conflito, de opressores e de oprimidos, e, por isso, encontraro resis-tncias e sero objecto de retaliao. Os riscos (as possibilidades de perda) so, assim, duplos: os riscos decorrentes da luta contra a opresso; e os riscos decorrentes do facto de, afinal, um outro mundo melhor no ser possvel. Da que no seja convincente no nosso tempo a demonstrao que Pascal faz ao seu apostador: [] por toda a parte onde est o infinito e onde h uma infinidade de probabilidades de perda contra a de ganho, no h que hesitar: preciso dar tudo (1988: 105).

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    Pelo contrrio, no nosso tempo, h muitas razes para hesitar e para no arriscar tudo. So o outro lado da prevalncia das razes negativas sobre as razes positivas. Daqui decorrem vrias consequncias para o projecto da aposta na emancipao social. A primeira diz respeito pedagogia da aposta. Ao contrrio da aposta de Pascal, as razes para apostar na emancipao social no so transparentes. Para se tornarem convincentes, devem ser objecto de argumentao e de persuaso. Em vez da racionalidade demons-trativa da aposta, a razoabilidade argumentativa da aposta. A pedagogia da aposta deve ter lugar em conformidade com a ecologia de saberes, nos con-textos e campos de interaco em que esta opera. Trata-se, em suma, de um projecto de educao popular em que o conhecimento acadmico e a cin-cia podem participar, desde que o faam nos termos da ecologia de saberes.16 A pedagogia variar segundo o lugar e o contexto da sua prtica e tambm segundo o tipo de apostadores. Por exemplo, em referncia distino feita acima, a pedagogia da aposta visa, no caso da iluso do futuro, transformar a necessidade do futuro na liberdade do presente, e, no caso da iluso do presente, transformar a necessidade do presente na liberdade do futuro. Em ambos os casos, a pedagogia da aposta visa transformar uma negao dialctica quer o mundo actual seja visto como anttese ou com sntese numa negao tica.

    A segunda consequncia diz respeito s relaes entre razo e paixo. Enquanto Pascal incita o apostador a diminuir as suas paixes, j que estas o impedem de reconhecer as razes que justificam a aposta, o apostador do nosso tempo precisa de complementar as razes da aposta, e consequente-mente da luta pela emancipao social, com as paixes da aposta e da aspi-rao de emancipao social. As paixes razoveis17 intensificam a razoabi-lidade das razes da aposta, sedimentam a indignao e o inconformismo ante a injustia e fortalecem a coragem para enfrentar os riscos de lutar contra os interesses instalados.

    A terceira consequncia da condio da aposta do nosso tempo diz res-peito ao tipo de aces que decorrem da aposta. A radical incerteza do futuro melhor e os riscos inerentes luta por ele levam a privilegiar as aces que incidam no quotidiano e se traduzam em melhorias aqui e agora na vida dos oprimidos e excludos. Por outras palavras, a aposta privilegia a actio in proximis. Este tipo de aco refora, pelo seu xito, a vontade da aposta

    16 Um tal projecto de educao popular subjaz proposta de criao da universidade popular dos movimentos sociais que tenho vindo a defender. Ver Santos, 2006: 155-165.17 As paixes dizem-se razoveis porque so complementares da razo. Mas a verdade que elas s sero eficazmente razoveis se a razo for apaixonada, ou seja, se a razo e a paixo se deixarem interpenetrar.

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    e satisfaz o sentimento da urgncia da transformao do mundo que referi acima, o sentimento de que preciso actuar j sob pena de mais tarde ser demasiado tarde. A aposta no se adequa actio in distans, pois esta cons-tituiria um risco infinito perante uma incerteza infinita. Isto no significa que tal aco no esteja presente. S que no est presente nos seus prprios termos. As transformaes do quotidiano s ratificam a aposta na medida em que tambm so sinais da possibilidade de emancipao social. Para isso, devem ser radicalizadas e, ao serem-no com xito, respondem ao sen-timento da necessidade de mudana civilizacional para que um outro mundo melhor seja possvel. A radicalizao consiste na busca dos aspectos subver-sivos e criativos do quotidiano e que podem ocorrer na mais bsica luta pela sobrevivncia.18 As transformaes do quotidiano tm, assim, uma dupla valncia: as melhorias concretas do quotidiano e os sinais que estas do de possibilidades bem mais amplas. por via destes sinais que a actio in distans se faz presente na actio in proximis. Por outras palavras, a actio in distans s existe como dimenso da actio in proximis, como vontade e razo da radicalizao da aco. Atravs da aposta, torna-se possvel juntar quoti-diano e utopia sem, no entanto, os dissolver um no outro. A utopia o que falta ao quotidiano para nos dispensar de pensar na utopia. O ser humano no apenas o ser humano e a sua circunstncia, como ensina Ortega y Gasset, tambm o ser humano e o que falta na sua circunstncia para ele ser plenamente humano.

    Concluso: de respostas fracas-fracas s respostas fracas-fortesEnquanto no confrontarmos os problemas, as incertezas e as perplexidades prprios do nosso tempo, estaremos condenados a neo-ismos e a ps-ismos, ou seja, a interpretaes do presente que s tm passado. O distanciamento que propus em relao s teorias e disciplinas, construdas pelo pensamento ortopdico e a razo indolente, assenta no facto de elas terem contribudo para a discrepncia entre perguntas fortes e respostas fracas que caracteriza o nosso tempo. Essa discrepncia traduz-se em grandes incertezas, entre as quais salientei duas principais: a incapacidade de captar a inesgotvel diver-sidade da experincia humana e o temor que com isso se desperdice expe-rincia que nos poderia ser preciosa para resolver alguns dos nossos pro-blemas; e a incerteza decorrente da aspirao a um mundo melhor sem que disponhamos de uma teoria da histria que nos indique que ele necessrio ou sequer possvel. Para enfrentar estas incertezas, propus duas sugestes

    18 Sobre o quotidiano enquanto elemento intrnseco da realidade e da aco transformadora, ver Isasi-Daz, 2003: 365-385.

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    epistemolgicas construdas com base em duas tradies particularmente ricas da modernidade ocidental, ambas marginalizadas e esquecidas pelo pensamento ortopdico e a razo indolente que tm vindo a dominar nos ltimos dois sculos: a douta ignorncia, com a ecologia dos saberes que dela decorre, e a aposta. Ambas revelam que o conhecimento erudito ou acadmico tem uma relao ingnua com o conhecimento que considera ingnuo. Ambas revelam a precariedade do saber (saber que ignora) e a precariedade do agir (apostar com base em clculos limitados).

    Como penso ter mostrado, estas propostas no visam eliminar as incer-tezas do nosso tempo. Visam antes assumi-las plenamente e us-las produ-tivamente, transformando-as de constrangimento em oportunidade. Pode dizer-se que, em certo sentido, so respostas fracas. Em face disto, neces-srio fazer uma distino conceptual entre respostas fracas-fortes e respos-tas fracas-fracas.

    Existem dois tipos de respostas fracas. O primeiro tipo aquilo que denomino de resposta fraca-forte. Parafraseando Lucien Goldmann (1966, 1970), esta resposta representa o mximo de conscincia possvel de uma dada poca. Transforma a perplexidade provocada pela pergunta forte em energia e valor positivos. Em vez de assumir que a perplexidade intil ou que pode ser eliminada por uma resposta simples, transforma a perplexi-dade num sintoma de complexidade implcita. Assim, a perplexidade trans-forma-se na experincia social de um novo campo aberto de contradies onde existe uma competio relativamente desregulada entre as diferentes possibilidades. Sendo os resultados desta competio muito incertos, existe lugar de sobra para a inovao social e poltica, logo que a perplexidade seja transformada na capacidade de viajar sem mapas fiveis.

    O outro tipo de resposta fraca a resposta fraca-fraca. Representa o mnimo de conscincia possvel de uma determinada poca. Descarta e estigmatiza a perplexidade como sintoma de um fracasso na compreenso de que o real coincide com o possvel, valorizando as solues hegemnicas como um produto natural da sobrevivncia dos mais aptos. A perplexi-dade , neste caso, vista como uma debilidade decorrente da recusa em viajar de acordo com mapas historicamente testados. Porque os mapas no podem ser questionados, a resposta fraca-fraca convida ao imobilismo e, portanto, rendio. Inversamente, a resposta fraca-forte um convite para um movimento de alto risco.

    As respostas fracas que mencionei no incio deste trabalho so respostas fracas-fracas. Pelo contrrio, a douta ignorncia, a ecologia dos saberes e a aposta so respostas fracas-fortes. Ainda que ocidentais na sua origem, representam uma racionalidade muito mais ampla (porque muito mais cons-

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    ciente dos seus limites) do que a que veio a dominar. Porque marginalizadas e esquecidas, mantiveram uma abertura a outras tradies e problemticas no ocidentais que a modernidade ocidental foi perdendo medida que ficou refm do pensamento ortopdico e da razo indolente. Porque mar-ginalizadas e esquecidas, estas tradies tiveram um destino semelhante ao de muitos saberes e tradies no ocidentais e, por isso, esto hoje em melhores condies para aprender com eles e para, em conjuno com eles, contriburem para as ecologias de saberes e para a interculturalidade.

    A douta ignorncia e a aposta, ainda que respondendo s incertezas cria-das pelas concepes e prticas hegemnicas da modernidade ocidental, tm uma versatilidade e uma abertura que lhes permite serem utilizadas em contextos geopolticos diferentes. Mas com uma ressalva importante de natureza geopoltica. Estas propostas implicam des-pensar ou desaprender o pensamento ortopdico e a razo indolente, o que procurei ilustrar com a metfora das filosofias venda que recolhi de um brbaro civilizado, capaz de ver a barbrie da civilizao, Luciano de Samsata. No entanto, des-pensar e desaprender assumem formas muito distintas no Norte global e no Sul global, j que o pensamento ortopdico e a razo indolente tm sido os instrumentos que justificam a diviso Norte/Sul e a dominao imperial do Norte global sobre o Sul global. Em parte, a dominao tem consistido na imposio do des-pensamento e da desaprendizagem de sabe-res no ocidentais ou no imperiais, ou seja, na imposio de monoplios analticos que produzem ausncias e desperdiam experincia. Com base no pensamento ortopdico, o Norte global s conhece do Sul global o que pode justificar a continuao da dominao sobre ele. Por isso, des-pensar e desaprender no Sul global visa sobretudo reinventar ou reabilitar, como sbios e vlidos, saberes e experincias que o pensamento ortopdico e a razo indolente declararam ignorantes e produziram como ausentes. No Norte global, des-pensar e desaprender visa sobretudo aprender a ignorar. Uma boa metfora disso mesmo -nos oferecida por Luciano de Samsata: os filsofos podem ficar escandalizados por ver reunidas no mesmo lote de venda filosofias to opostas como as de Heraclito e Demcrito, mas o comer-ciante que se aproxima de Zeus e de Hermes para as comprar pode ter boas razes para ver nelas uma complementaridade til.

    Por outro lado, o facto de a douta ignorncia, a ecologia de saberes e a aposta privilegiarem, como lugar de enunciao, o quotidiano, onde a refle-xo e a aco no se separam, permite ter presentes as abissais diferenas do quotidiano no Norte global e no Sul global. Essas diferenas so activa-mente ocultadas pelas abstraces conceptuais do pensamento ortopdico, com base nas quais se constroem os universalismos que intensificam a domi-

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    nao na medida em que a eliminam conceptualmente. Pelo contrrio, no quotidiano os conhecimentos e os conceitos purificados so devolvidos vida donde emergiram e onde estiveram antes de serem o que so. Coladas vida, a douta ignorncia, a ecologia de saberes e a aposta so prticas de conhecimento que ocorrem no contexto de outras prticas, tal como, meta-foricamente, a sabedoria do Idiota de Nicolau de Cusa se exercita na bar-bearia ou na oficina do arteso. Esta contextualizao obriga a ter presente que o quotidiano da grande maioria da populao do Sul global que inclui o Sul global que existe no interior do Norte global, o terceiro mundo inte-rior uma luta incessante pela sobrevivncia e pela libertao frente s imposies com que o Norte global e a sua epistemologia imperial exercem a sua dominao sobre o Sul global. A douta ignorncia uma luta contra a ignorncia ignorante do Norte global em relao ao Sul global; tal como a ecologia de saberes visa a construo de um senso comum emancipatrio enquanto autoconscincia da luta contra a opresso; tal como a aposta tem presente que os apostadores habitam no Sul global ou assumem radical-mente a solidariedade com os que habitam no Sul global.

    Da douta ignorncia, ecologia dos saberes e aposta no emerge um tipo de emancipao social, nem sequer uma tipologia de emancipaes sociais. Emerge to s a razoabilidade e a vontade de luta por um mundo melhor e uma sociedade mais justa, um conjunto de saberes e de clculos precrios animados por exigncias ticas e por necessidades vitais. A luta pela sobre-vivncia e libertao contra a fome e a violncia o grau zero da emancipa-o social e, nessas situaes, tambm o seu grau mximo. A emancipao social algo como a arte perfectoria do sbio idiota de Nicolau de Cusa, que faz colheres de madeira sem se poder limitar a imitar a natureza (no h colher na natureza), mas tambm sem nunca atingir com preciso a ideia da coclearidade (a essncia da colher, que pertence arte divina). A eman-cipao social , assim, toda a aco que visa desnaturalizar a opresso (mostrar que ela, alm de injusta, no nem necessria nem irreversvel) e conceb-la com as propores em que pode ser combatida com os recursos mo. A douta ignorncia, a ecologia de saberes e a aposta so as formas de pensar que esto presentes nessa aco. E, de facto, da existncia delas s temos prova no contexto dessa aco.

    Quais as instituies da douta ignorncia, da ecologia de saberes e da aposta? Da anlise precedente, torna-se evidente que no tm instituies especficas onde possam ser exercitadas independentemente das prticas sociais que as mobilizam. Em vez de instituies, h contextos doutamente ignorantes, gnoseo-ecolgicos e apostadores. Isto no significa que as insti-tuies universidades, centros de investigao que foram moldadas pelo

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    pensamento ortopdico e pela razo indolente estejam condenadas a ser refns destes. Tambm elas so prticas sociais e nelas circulam nas salas de aulas, nos corredores, nos bares, na extenso universitria, nas associaes acadmicas muitos saberes e prticas, incertezas e preocupaes, culturas no oficiais, lutas por sobrevivncia e libertao que no so reconhecidos pelos objectos purificados da educao certificada do curriculum formal. Uma vez relativizado este pelo procedimento da filosofia venda, abrem-se campos de interaco onde a douta ignorncia, a ecologia de saberes e a aposta podem ser exercitadas. Admito mesmo que, sobretudo nesta fase de transio, seja possvel criar contextos hbridos onde intervm as instituies do pensamento ortopdico e da razo indolente que logram distanciar-se relativamente deles e instituies e prticas de saber e agir que o pensamento ortopdico e a razo indolente consideraram ignorantes ou produziram como ausentes.19 Retiradas do seu refgio indolente onde s respondem s per-guntas que elas prprias formulam, as teorias e disciplinas podem dar um contributo til na construo de um senso comum emancipatrio.

    Por ltimo, quais as foras polticas adequadas promoo da aposta em articulao com a douta ignorncia e a ecologia de saberes? Certamente muito distintas das que tm promovido concepes ortopdicas e indolen-tes da emancipao social. Sero certamente organizaes doutamente igno-rantes, politicamente ecolgicas e decididamente apostadoras nas poten-cialidades emancipatrias do quotidiano enquanto actio in proximis. Por agora, no possvel defini-las at porque a sua definio h-de comear por um processo correspondente filosofia venda, um processo j em curso, ainda que de modo incipiente.20 Capt-las constitui, pois, um exer-ccio da sociologia das emergncias.

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    19 A proposta da universidade popular dos movimentos sociais, referida acima, um desses contextos hbridos.20 assim que concebo o processo do Frum Social Mundial. Ver Santos, 2005.

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