falas e cores: um estudo sobre o português de negros e escravos no brasil do século xix

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Tania Alkimim

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    Falas e cores: um estudo sobre o portugus de negros e escravos no Brasil do sculo XIX

    Tania Alkmim1

    Um texto exemplar: O preto e o bugio (1789)

    Integrados sociedade portuguesa desde os finais do sculo XV, os africanos aparecem como personagens em produes culturais (em au-tos, peas, por exemplo) j no incio do sculo XVI. Assim que no Cancioneiro geral de Garcia de Rezende, publicado em 1516, encontram-se composies literrias que apresentam personagens negros, caracte-rizados pelo uso de uma variedade de portugus particular, cheia de erros e deformaes: a composio de Ferno Silveira (provavelmente de 1445), em que o rei de Serra Leoa faz uma elocuo na celebrao do casamento de uma princesa portuguesa, e a de Henrique da Mota (provavelmente, do incio de sculo XVI), conhecida como Pranto do clrigo, que consiste em um dilogo conflituoso entre um padre e sua escrava africana, acusada de quebrar uma pipa de vinho. O negro como tipo cmico, preguioso, ingnuo, dado a furtos, pouco inteligente, usu-rio de uma variedade de portugus estropiado, surgiu em Portugal e fez histria na tradio literria portuguesa, tendo permanecido vivo at o sculo XIX em obras de carter popular como comdias, entre-mezes e almanaques.2 A variedade de portugus posta na boca de tais

    1 Professora associada do Departamento de Lingstica, no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Integra os projetos: 1) "A Participao das Lnguas Africanas no Portugus Brasileiro" (Capes/Cofecub/511/05); 2) "Para a Histria do Portugus Paulista" (Projeto Caipira) projeto temtico de equipe/Fapesp.

    2 Ver, a respeito, TINHORO, J. Ramos. Negros em Portugal: uma presena silenciosa.

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    personagens negros, que ficou conhecida como lngua de preto, foi alvo de interesse de estudiosos como Carolina de Michalis de Vasconcelos, Wilhelm Giese, Leite de Vasconcelos, Jacques Raimundo, Paul Teyssier e Anthony J. Naro. Algumas peas de Gil Vicente e de Chiado deram vida a personagens africanos no sculo XVI e constituem bons docu-mentos da chamada lngua de preto.3 Inspirada na tradio portuguesa, a literatura espanhola dos sculos XVI e XVII produziu algumas obras com personagens cmicos, que se expressavam em linguagem bozal isto , em uma variedade de espanhol marcadamente distorcido entre as quais se destacam peas teatrais de Rodrigo de Reinosa, Diego San-chez de Badajos e Lope de Vega, como mostram os trabalhos de Kurlat, Chasca, Granda, Leturio e Lipski.

    Entre os variados textos da tradio portuguesa, produzidos entre os sculos XVI e XIX, vale a pena destacar um folheto de cordel, aparecido em 1789, intitulado Historia curiosa e engraada do preto e do bugio ambos no mato discorrendo sobre a arte de ter dinheiro sem ir ao Brasil.4 Trata-se de um dilogo entre um bugio e um escravo africano, que fugiram de seus senhores e se refugiaram nas matas brasileiras. Nesse dilogo, o bu-gio, por ter pertencido a um sbio, mostra-se ilustrado, iluminado pela filosofia rousseauniana. o bugio quem tira o negro da sua condio de bruto, convencendo-o de que a natureza prdiga e benfazeja a todos os seres, os quais, com seus talentos, atravs do trabalho e munidos de liberdade, podem ser felizes. Segundo o bugio-filsofo: A natureza des-tinou o homem para a felicidade: por conseguinte concedeu-lhe os meios para ser feliz.5 E, para tanto, basta seguir duas regras bsicas de modo a garantir a obteno de dinheiro em seu prprio pas sem ir buscar a sepultura nas ondas do mar, ou debaixo das abbodas das minas.6

    3 Peas de Gil Vicente: Frgoa de amor (1524), Nau de amores (1527) e Clrigo da Beira (1529/1530); peas de Chiado: Pr-tica das oito figuras (cerca de 1550), Auto da natural inveno (cerca de 1550) e Auto das regateiras (cerca de 1570).

    4 A edio utilizada no presente trabalho a de 1816, que tem como ttulo O preto, e o bugio ambos no mato discorrendo sobre a arte de ter dinheiro sem ir ao Brazil. Dilogo, em que o bugio com evidentes razes convence ao preto sobre a verda-de desta proposio. A edio de 1789 citada por TINHORO, J. Ramos. Negros em Portugal: uma presena silenciosa.

    5 O PRETO, e o bugio ambos no mato discorrendo sobre a arte de ter dinheiro sem ir ao Brazil, p. 16. 6 Ibid., p. 9.

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    Seguir o gnio, e cultivar os talentos de que o adornou a Natureza. e Evitar os excessos da prodigalidade, e tambm da avareza.7 A assime-tria evidenciada pelos papis de mestre e de aprendiz se traduz no plano lingstico pelo uso de variedades de portugus absolutamente distintas: o portugus perfeito do bugio e uma espcie de algaravia do negro. Uma pequena mostra dessas falas pode ser vista no trecho abaixo, que reproduz a abertura do dilogo:8

    Preto: Agola si: j nem Siolo, nem os fio da puta dos fio, e do muier, nem os roa, nem os mina, nem quanto diabrula ha, far aflion aos Pleto... Ma os mato bore, e os vento non f buia! Non seie ere mia Siolo, que veia por ahi suraparo a por-me os man, e os boa vontare! Mim ergue os cabea, e arregaia os oia l pla dentro dos mato, e v outros Pleto, e non mi palece Pleto! Quem s vozo, e que plocura pola qui?Bugio: Eu sou hum vivente, como tu, nascido, e criado nestes bosques.Preto: que maravia! Vozo mi palece huns Pleto pequeno, nas-ciro como mim l nos Cssa ra Mina: nos fala, nos mam, nos oreia, nos cabea, nos oia... ma s muy caberuro, e non sei, que riabo de feitio, e clecena ter vozo nos cabamento do costa!Bugio: Pois aqui vers, que no Preto como tu, ainda que fosse nascido na tua mesma patria.

    Vemos, a, no trecho selecionado, exemplos de marcas indicativas do carter desviante da variedade de portugus falado por negros, obser-vadas no conjunto de obras portuguesas. Assim que personagens ne-gros de Gil Vicente e de Chiado, ambos do sculo XVI, de um entremez annimo de 1658 Entremez do negro mais bem mandado,9 de comdias do sculo XVIII como A beata fingida de 1774 e O contentamento dos pre-tos por terem a sua alforria, de 1787, ambas annimas, e de almanaques,

    7 Ibid., p. 9.8 Ibid., p. 3.9 Apud TINHORO, J. Ramos. Negros em Portugal: uma presena silenciosa.

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    como Plonostico culioso, e lunario pala os anno de 1819 (annimo)10 e de operetas do sculo XIX como O processo do rasga,11 de Jorge Venncio, de 1879, apresentam, entre outras, marcas lingsticas como as observadas em O preto e o bugio:

    Marcas fonticas: [l] em lugar de [r]: agola, diabrula, ere, palece, pleto, plocula, clecena [r] em lugar de [l]: bore iotizao: fio, muier, maravia, buia reduo de ditongos: aflion, man desnasalizao: si [r] em lugar de [d]: vontare, nasciro, riabo, ra paragoge: Siolo, vozo assimilao: Cossa (Costa) ra (da) Mina afrese: cabamento (acabamento)

    Marcas gramaticais: flexo de nmero marcada apenas no determinante: nem os fio da puta, os mato concordncia de gnero incorreta: do muier, mia Siolo, os oia (olhos) ausncia de concordncia sujeito verbo: ma os mato bore (bolem), os vento non f (fazem) buia (bulha) pronome pessoal tnico em funo de sujeito: Mim ergue os cabea a forma s equivalente ao verbo ser: Quem s (sois) vozo?, ma s (sois) muy caberuro (cabeludo).

    A lngua de preto, em parte caracterizada em O preto e o bugio, antes de mais nada, representa a contraparte lingstica da imagem do negro na sociedade portuguesa. Em Portugal, como em todas as regies que utiliza-ram a mo-de-obra escrava, o negro foi associado inferioridade biolgica, cognitiva e cultural. Do ponto de vista lingstico, um exame superficial

    10 Ibid.11 Ibid.

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    dos dados da lngua de preto nos faz reconhecer, de imediato, a natureza estereotipada da representao da fala de negros. clara a inteno de ressaltar a origem estrangeira dos negros atravs do uso de construes gramaticais e de pronncia incorretas. O negro, como tantos outros tipos populares ciganos, judeus, camponeses, provincianos foi alvo do olhar preconceituoso e discriminador, que selecionava e estereotipava seus traos caractersticos. Mas teriam tais representaes estereotipadas alguma rela-o com a realidade lingstica de negros em Portugal? Um exame do que ocorreu no Brasil nos ajuda a discutir essa questo.

    Fantasia ou realidade?

    A ausncia de registros histricos sobre a realidade lingstica de negros e escravos no Brasil um fato notvel. Muitos e variados as-pectos da histria dos africanos e seus descendentes no Brasil tm sido objeto de pesquisas e assim transformado a compreenso da sociedade brasileira. Mas pouco sabemos sobre as prticas lingsticas. Nas fontes histricas mais tradicionais (por exemplo, cronistas, viajantes, histo-riadores), encontramos registros esparsos, informaes pouco detalha-das. Nesse contexto, foi extremamente produtivo buscar o testemunho de fontes literrias no Brasil. Mas no podemos deixar de assinalar as limitaes e restries que toda fonte escrita apresenta em relao representao de uma oralidade original. Embora as fontes literrias no forneam dados indiscutveis, sugerem pistas e indcios que no podemos desprezar.

    No Brasil, os primeiros exemplos de uma caracterizao lingsti-ca particular de personagens negros e escravos foram encontrados em duas peas de Martins Pena Os dous ou O ingls e o maquinista, de 1842, e O cigano, de 1845. Mas, ao longo do sculo XIX, muitos autores de teatro e de prosa de fico procuraram construir seus personagens negros e escravos com a ajuda de marcas lingsticas que assinalavam o carter desviante de suas falas em relao fala de personagens

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    brancos.12 Nesse sentido, podemos citar Jos de Alencar, Joaquim Ma-nuel de Macedo, Frana Jnior, Artur Azevedo, Bernardo Guimares, Jos do Patriocnio, Jlio Ribeiro e Machado de Assis. Como exemplos ilustrativos, apresentamos trechos de algumas obras:

    Pai Francisco: escravo domstico africano, velho, residente em zona ur-bana, personagem da pea Os extremos, de Anbal Teixeira de S, 1866:

    Eh! Eh! ... Balanco n tem qui faz, mandingueiro. Zicrive, zarabisca e t rizendo, e t farando! ia l! ... Balanco o riabo ... fitiaria t i! ... (Ato 3, cena I.)

    Domingos: escravo negro, adulto, residente em uma fazenda no inte-rior do Rio de Janeiro, personagem da pea Como se fazia um deputado, de Frana Jnior, de 1882:

    Eh! Eh! Domingos no negro novo. Eu j no tem votado tantas vezes? (Ato 2, cena II.)Meu sinh; se vosmec nos d licena, ns vem saudar tambm sinhozinho com a nossa festa. (Ato 3, cena XII.)

    Marcolina: mucama (escrava domstica), residente em zona rural do Rio de Janeiro personagem da pea Abel, Helena, de Artur Azevedo, de 1877:

    Seu Pantaleo, Seu Pedrinho, aqueles dois estudante da cidade, aqueles dois lojista da rua do Imperad, e que andam sempre cumo unha com carne, e mais um punhado deles. T tudo na sala, e vossemc metida na sala do engomado, no lugar das pre-tas... (Ato 2, cena II.)

    12 fato que nem todos os personagens negros e escravos do sculo XIX so representados com uma fala incorreta ou distorcida.

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    Teriam os autores brasileiros copiado os portugueses? Ou inventa-ram um portugus de negros? Ou suas representaes lingsticas to-maram como base as prticas reais de negros e escravos?

    A propsito da questo da verossimilhana ou no da representao literria da fala de negros e escravos no Brasil, muito oportuno revisitar a famosa polmica entre Joaquim Nabuco e Jos de Alencar, travada pelo jornal, em 1875. Em meio s pesadas crticas feitas em relao qualidade da produo literria de Alencar, Nabuco focaliza a lingua-gem do personagem Pedro um moleque, isto , um escravo jovem da pea Demnio familiar, de 1857. Nabuco assim se expressa:

    A primeira acusao que eu fao ao Demnio familiar de que essa comdia de costumes no conta a vida de nossa sociedade, mas a deprime e desmoraliza a nossa famlia, sem mesmo ter o mrito da verdade. Pedro no um tipo conhecido; no h entre os negros criados no seio das famlias do pas um s que fale essa lngua inventada pelo Sr. J. de Alencar, com a mesma pacincia com que inventou o seu dialeto tupi. Ningum ainda ouviu o singular idioma frico-portugus que fala o Demnio familiar. Pedro j; no custa! Meio dia, nhanh vai passear na rua do Ouvi-dor, no brao de marido. Chapeuzinho aqui na nuca; peitinho estufado; tund arrestando s. Assim moa bonita! Quebran-do debaixo de seda, e a saia fazendo x, x, x! Moo, rapaz deputado, tudo na casa do Desmarais de luneta no olho: Oh! Que paixo... O outro j: V. Exa. Passa bem. E aquele homem que escreve no jornal tomando nota (este era provavelmente o Sr. J. de Alencar, que maneira dos grandes pintores retrata-se sempre em suas obras, para meter nhanh no folhetim!).13

    13 Apud COUTINHO, Afrnio (Org.). A polmica Alencar-Nabuco, p. 105.

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    Em seguida, Nabuco acrescenta:

    Essa linguagem de telegrama no falada entre ns; mas se o fosse, ainda no teria o direito de passar da boca dos clowns, pin-tados de preto, dos nossos circos para a dos atores. O negro, nas-cido no pas e criado na famlia do senhor, como esse Pedro, que teve a mesma educao dos filhos da casa, no suprime assim o artigo e no fala uma lngua que nos parece brbara. Falasse-a porm, ela no devia ser repetida em cena. J bastante ouvir nas ruas a linguagem confusa, incorreta dos escravos; h certas mculas sociais que no se devem trazer ao teatro, como nosso principal elemento cmico, para fazer rir.14

    Alencar, em sua resposta, tambm no se mostra ameno em relao pessoa de Nabuco, e no que diz respeito questo da linguagem, rea-firma a verossimilhana da sua representao lingstica. Nas palavras de Alencar:

    Pedro pura e simplesmente uma cpia no que se refere lin-guagem, no aos fatos que so de mera fantasia. H muito quem ainda conheceu o original, no tempo de sua garrulice infantil, e eu ao escrever estas linhas, apesar dos faniquitos do Sr. Nabuco, sinto molhar-me as plpebras uma lgrima de saudade por aquele bom companheiro de minha adolescncia que tantas vezes nas longas e frias noites de So Paulo, deliu-me o tdio e tristeza com a sua palrice jovial, como o trinado de um passarinho.Morreu a tempo de no ver negada a sua existncia, e qualifica-da de inveno a sua linguagem pitoresca alis falada com pe-quena diferena por todos os garotos fluminenses de sua idade, brancos, ou pretos.15

    14 Ibid., p. 106.15 Ibid., 122-123.

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    Como veremos adiante, o testemunho de Alencar se revela digno de confiana.

    A representao lingstica de negros e escravos na literatura brasileira do sculo XIX16

    O exame de dados coletados na literatura brasileira do sculo XIX (peas de teatro e prosa de fico), que envolvem personagens negros e escravos, nos permite perceber de imediato, que a representao lin-gstica destes contrasta com a de personagens brancos. Vemos, assim, que os negros e escravos so caracterizados por um conjunto de marcas que os singulariza e os distancia dos brancos. Como observado em re-lao tradio portuguesa, os negros e escravos brasileiros se expres-sam em uma variedade de portugus cheia de erros e imprecises. Em um segundo momento, vemos que os dados apontam tambm para uma ntida distino entre a representao lingstica de personagens africanos e de crioulos (escravos e negros nascidos no Brasil), indepen-dente de serem livres ou escravos. Ou seja, se de um ponto de vista global, havia uma oposio primria entre um portugus de brancos e um portugus de negros, havia tambm uma oposio secundria entre um portugus de africanos e um portugus de crioulos. Mais precisamente:

    africanos e crioulos apresentam marcas lingsticas comuns; africanos apresentam marcas lingsticas privativas, no observveis nos personagens crioulos.

    Consideremos alguns exemplos das principais marcas lingsticas acima referidas:

    Marcas lingsticas comuns a crioulos e africanos:

    16 Os dados aqui referidos so resultado do meu projeto de pesquisa de ps-doutorado Linguagem de negros e escra-vos: um estudo a partir da literatura brasileira do sculo XIX. Todas as obras consideradas envolviam personagens negros e escravos, que usavam uma variedade de portugus distinta daquela usada por personagens brancos.

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    Fonticas: apcope (quebr, qu, maj, az, jorn, agradave), iotizao (ia, canaia); fechamento do timbre de vogal em slabas pretnica, tonas finais e em monosslabos (piquinina, minti, disgraa, podi, qui, mi); af-rese (t, cunteceu, trapalhado); mettese (pruqu, primita, cravo). Gramaticais: forma subjetiva do pronome em funo de objeto (en-contrei ela, Si Dona mandou ns); ausncia de artigo (Marido j ti-nha morrido, Moleque est fino no namoro); concordncia de nmero marcada apenas no determinante (cinco vassoura, meus filho); ausn-cia de concordncia verbal (ns agora vai ajust conta, meus filho tudo tambm fica livre?).

    Marcas lingsticas privativas de africanos: Fonticas: [r] em lugar de [d] (rizendo, riabo); [l] em lugar de [r] (fa-rando, ronge); r fraco em lugar de r forte (tera, moreu); [z] em lugar de [] (Zoaquim, hozi); paragoge (mazi, cruzo); prtese do segmento zi (zincontr, zere). Gramaticais: concordncia de gnero incorreta (numa campo, sua pai, esse gente); concordncia verbal de primeira pessoa incorreta (eu vai, eu toca).

    Como no caso portugus, vemos que os africanos so representados como usurios de uma variedade de portugus bem distanciada daquela falada por brancos, que os identifica como estrangeiros: sua pronncia e suas frases os tornam quase incompreensveis. Quanto aos crioulos, a representao parece incidir sobre marcas fonticas e gramaticais que os caracterizam como falantes de um mau portugus, diferente do por-tugus dos brancos, prprio a indivduos grosseiros, socialmente infe-riores.

    Os dados considerados at aqui, obtidos em um conjunto de obras literrias do sculo XIX, nos permitiram esboar um quadro em que negros e escravos como um todo se distinguiriam lingisticamente dos brancos, e que, tomados como um grupo, internamente, apresentam comportamentos lingsticos diferenciados.

    Portugus de brancos e portugus de negros no Brasil do sculo XIX? Foi preciso redimensionar o olhar sobre a questo da representa-

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    o lingstica, e tambm buscar novas fontes de dados para perceber que essa oposio, na verdade, era redutora e simplista.

    Um novo olhar

    Duas ordens de fatos concorreram para que a viso de uma oposi-o entre um portugus de brancos e um portugus de negros fosse ultrapassada: a considerao de obras literrias do sculo XIX que incluam persona-gens brancos, pouco ou no escolarizados, originrios de zona rural; a sistematizao de informaes histricas do sculo XIX que apon-tam caractersticas lingsticas, de natureza fontica e gramatical, de va-riedades regionais e sociais da poca.

    Embora no tenha sido possvel examinar um nmero significativo de obras literrias que procuraram representar lingisticamente perso-nagens populares, pouco ou no escolarizados e originrios de zona ru-ral, a pequena mostra considerada forneceu dados muito interessantes. Observemos, inicialmente, trechos de duas peas de Frana Jnior: Matias Novais, capito de cavalaria, 50 anos, originrio de Alagoas, resi-dente no Rio de Janeiro, personagem da pea O defeito de famlia, de 1871:

    Pornuncia l isso, mas com toda vagareza. (Cena III.) Tens razo; com uma mulher de tua orde e um criado destes pode-se passar a vida de braos encruzados. (Cena III.) [...] Vinha uns cadetinhos no bndio dos fumantes, j se sabe charutinho na boca, e nada de me tirarem os chapus, apesar de eu estar fardado e trazer as competentes divisa. Eu viro-me para eles e digo com certo ar de ironia: Senhores cadetes, como vai?... (Ato 2, cena VIII.)

    Gregrio: doente, originrio da zona rural, que veio ao Rio de Janeiro consultar-se com uma mdica, personagem da pea As doutoras, de 1889:

    U gentes! Tinham-me dito l na roa que era uma mui via e feia. Ora essa! ... (Ato 2, cena VIII.)

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    ... Tarvez ela te d vorta. E aqui estou eu nas mo da sinh dona. (Ato 2, cena VIII.)

    Observemos ainda outros dados: Alusio Azevedo, em Casa de penso, de 1884, assim descreve um per-sonagem, natural do Maranho: Era um velho de sua provncia, muito falador de poltica, apaixonado pelas eleies, pelos conservadores, mas que, nem mo de Deus Padre, pronunciava os rr e os ss e dizia: Os partido liber, os senad e outras barbaridades.17

    No conto Praa de escravos, de Valentim Magalhes (1886), o perso-nagem Barroso ruivo traficante de escravos, diz: Mas, ento, vamos ver a gente. Eu sem ver ela no remato.; O que ele tem iteria.18

    Na pea A mascote na roa, de Artur Azevedo, de 1882, um coronel e um major, residentes na zona rural do Rio de Janeiro, assim se expres-sam: [...] Se esta mulata uma mascote de verdade, e se meu irmo me manda ela, no cedo. (major, ato 2, cena VI); [...] Previno aqui minha mulher que trate ela com todo carinho [...] (coronel, ato 2, cena VIII).Vemos, nos trechos apresentados, algumas marcas lingsticas que tam-bm aparecem nas representaes da fala de negros e escravos, e, parti-cularmente, na fala de crioulos. Por exemplo: Mettese, como em pornncia; reduo de ditongo como em orde (ordem), iteria (ictercia); iotizao, como em mui via; [r] em lugar de [l], como em tarvez, vorta; apcope, como em liber, senad; afrese, como em remato (arremato); concordncia de nmero apenas no determinante, como em os chapu, nas mo, os partido liber; forma subjetiva do pronome em funo de objeto, como em ver ela, se meu irmo me manda ela, que trate ela; ausncia de concordncia verbal, como em Senhores cadetes, como vai?.So esparsas e nada sistemticas as observaes de natureza lingstica que alguns comentadores, estudiosos e intelectuais do sculo XIX fize-ram sobre a lngua do seu tempo, mas so de grande interesse. Assim que Serafim da Silva Neto nos fornece as seguintes informaes:

    17 AZEVEDO, Alusio. Casa de penso, p. 168.18 MAGALHES, Valentim. Praa de escravos, p. 49.

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    Em 1819, o frei Francisco dos Prazeres comenta o portugus falado por indivduos rsticos do Maranho, dando exemplos como: apcope (pesc, feit, m), iotizao (mi, cui), forma subjetiva do pronome em funo de objeto (que eu cuidei ele), flexo nominal de nmero marcada apenas no determinante (das tua sezo, duas faca, muitas lembrana), ausncia de concordncia verbal (tu esteja).19

    Em 1820, o viajante francs Saint-Hilaire aponta, como caractersti-ca da fala do Esprito Santo, a supresso quase inteira do R final tal-vez adquirida dos negros e que deixa a pronncia destes to infantil e estpida.20

    Em 1842, o frei Miguel do Sacramento Lopes Gama, no jornal O Ca-rapuceiro, de Recife, critica a fala dos regionais de todas as classes sociais, apontando, entre outros, exemplos como: apcope (mand, dormi, sin-gul) e iotizao (oreia, veiaco, cui, mui).21

    Em O portugus do Brasil: textos crticos e tericos (1820-1920), de Edith P. Pinto, de 1978, encontramos textos de autores do sculo XIX, que apontam algumas particularidades de variedades regionais e sociais brasileiras. So autores como: Paulino de Sousa (1870), Jos de Alencar (1874), Couto de Magalhes (1876), Tefilo Braga (1877), Batista Caetano (1881), Pacheco da Silva Jr. e Lameira de Andrade (1887) e Slvio Romero (1888). Entre as muitas caractersticas apontadas pelos autores, encon-tramos aquelas j assinaladas anteriormente: mettese (perciso), iotiza-o (mui), apcope (pi, cas, m), afrese (maginar), concordncia de nmero marcada apenas no determinante (as casa), forma subjetiva do pronome em funo de objeto (vi ele).

    fato que um trabalho de pesquisa mais amplo, que rena um nmero maior de dados, precisa ainda ser feito. Mas o que queremos destacar aqui o fato de que h indcios seguros que apontam uma pro-ximidade entre a fala de crioulos livres ou escravos, negros ou mestios e a fala de brancos com pouca ou nenhuma escolaridade, originrios

    19 SILVA NETO, Serafim. Introduo ao estudo da lngua portuguesa no Brasil, p. 81.20 Ibid., p. 200.21 Ibid., p. 65.

  • de zona rural. Tal proximidade sugere um novo olhar sobre a realida-de lingstica do Brasil do sculo XIX: crioulos no se destacaram lin-gisticamente do conjunto da populao brasileira. Mais precisamente, os crioulos, diferentemente dos africanos, estariam perfeitamente inte-grados comunidade lingstica brasileira, como falantes de variedades lingsticas no padro ou populares, distintas das variedades faladas pelos grupos letrados, social e culturalmente dominantes o portugus de brancos. Nesse sentido, o quadro sociolingstico do Brasil do scu-lo XIX se organizaria em torno da oposio portugus de letrados e portugus de no letrados.

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    Referncias bibliogrficas

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