fala roça - edição 3

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ANO 2 RIO DE JANEIRO, FEVEREIRO 2014 NÚMERO 3 Pra voltar meu coração pro morro da favela. A resolução 013 e a vida cultural das comunidades do Rio Mobilização no surfe Em meio à campanha pela despoluição na praia de São Conrado, projeto social oferece aulas de bodyboarding Não esqueceremos A família fala sobre Amarildo e segue lutando por justiça Lentes sagazes A história do Favela Art & Foto, projeto que reúne fotógrafos da Rocinha e do Vidigal Reportagem Ímpar página 5 Esporte página 4 Megafone página 7 Você conhece? página 6 Cadê o Amarildo FR edição 3_12.2.indd 1 12/02/2014 09:35:00

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Page 1: Fala Roça - Edição 3

ANO 2 RIO DE JANEIRO, FEVEREIRO 2014 NÚMERO 3

Pra voltar meu coração pro morro da favela.A resolução 013 e a vida cultural das comunidades do Rio

Mobilização no surfeEm meio à campanha pela despoluição na praia de São Conrado, projeto social oferece aulas de bodyboarding

Não esqueceremosA família fala sobre Amarildo e segue lutando por justiça

Lentes sagazesA história do Favela Art & Foto, projeto que reúne fotógrafos da Rocinha e do Vidigal

Reportagem Ímpar página 5

Esporte página 4

Megafone página 7

Você conhece? página 6

Cadê o Amarildo

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Page 2: Fala Roça - Edição 3

2 Editorial

Caso possa ajudar a Heike a encontrar sua amiga, entre em contato com a gente pelo e-mail [email protected]

por Michele Silva

Gorette, moradora da Rocinha, então funcionária do South

American Copacabana Hotel

Heike e Gorete na laje,

na Rocinha

Essa é a pergunta que a alemã Heike Schrader se faz desde outubro de 2010. Heike veio ao Rio de Janeiro a passeio, ficou hospedada no South American Copacabana Hotel e lá conheceu a fun-cionária Gorette Vieira de Abreu.

As duas ficaram amigas e Gorette convidou Heike para conhecer a Roci-nha. Chegando aqui, claro, Heike ficou encantada: “Gostei das pessoas, das casas, das ruas, principalmente a casa dela e a vista.”

Heike voltou para a Alemanha e perdeu o contato com a amiga. O nú-mero de telefone pelo qual elas se fa-lavam não funciona mais. Então, nesta

BAIÃO DE DOIS

VOCÊ CONHECE A GORETTE?

Finalmente chega a terceira edição do Fala Roça, depois de um intervalo maior que o esperado. O jornal passou por algumas mudanças, está de “cara” nova, mas mantém a ideia firme: ser um veículo de comunicação comunitária comprometido com a comunidade, e com foco na cultura nordestina presente na Rocinha e cultivada pelos moradores.

E não é apenas o jornal que vem passando por mudanças. Como te-mos acompanhado, a cidade do Rio de Janeiro passa por um momento im-portantíssimo, com grande parte da população indo às ruas, reivindicando seus direitos, e muitas questões soci-ais fervendo nas discussões em âmbi-tos diversos. Mais do que importante, imprescindível para que as mudanças desejadas aconteçam.

O importante é lembrar que as fave-las nunca dormiram e que as lutas e os movimentos sociais fazem parte do co-tidiano e da constituição da favela no espaço urbano. Desde a reforma enca-beçada pelo então prefeito Pereira Pas-sos, as favelas são alvo de remoções ou de tentativas de remoção. Nas décadas de 1960 e 1970, o poder público nova-

FINALMENTE CHEGA A TERCEIRA EDIÇÃO DO FALA ROÇA, APÓS UM INTERVALO MAIOR QUE O ESPERADO. O JORNAL PASSOU POR ALGUMAS MUDANÇAS, ESTÁ DE “CARA” NOVA, MAS MANTÉM A IDEIA FIRME:

ser um veículo de comunicação comunitária comprometido com a comunidade, e com foco na cultura nordestina presente na Rocinha e cultivada pelos moradores.

terceira edição do Fala Roça pergunta-mos: Você conhece a Gorette? A Heike quer saber e nós também!

Na infância, Heike Schrader morou no Brasil e tem um caso de amor pela Rocinha. Mesmo hoje morando longe, acompanha tudo que se passa na co-munidade através da internet. Quando conheceu o Fala Roça, logo lembrou da amiga Gorette. “Ela é do nordeste. Não tenho certeza, mas acho que é de Per-nambuco. Gostaria muito de encontrá--la, saber como está. E aproveita para mandar um recado: Oi Gorette! Estou com saudades de você. Espero que con-siga te encontrar outra vez com a ajuda do Fala Roça.” .

mente conseguiu remover centenas de famílias de favelas que ocupavam a Zona Sul, levando-as para localidades afastadas desse centro urbano, des-fazendo comunidades, amizades, la-ços afetivos de longa data, como bem mostra o filme recente de Anderson Quack e Luiz Antônio Pilar, Remoção. Recentemente, diversas áreas da cidade são mais uma vez alvo de remoções e de gentrificação, um movimento de valorização e especulação imobiliária que acaba encarecendo o custo de vida em certos lugares da cidade e afastando as pessoas que lá viviam para dar (mais) lugar a pessoas de maior poder aquisitivo.

No entanto, a favela resiste, e sempre resistiu. E, em meio a esses processos, movimentos, tensões da cidade, a pre-sença de um jornal comunitário que se comprometa com a comunidade e com o interesse dos moradores, priori-zando uma visão da comunidade para ela mesma, em contraste com a visão das instituições e dos grandes meios de comunicação, se faz ainda mais im-portante. O Fala Roça se firma, então, no rastro aberto pelo Viva Rocinha e por tantos projetos sociais e culturais,

mostrando que a Rocinha e todas as favelas do Rio são os lugares de maior produção e efervescência política, cul-tural e artística.

Nesta terceira edição, portanto, o Fala Roça se manifesta em relação ao assassinato de Amarildo e presta uma homenagem, trazendo uma carta de sua sobrinha, Michelle Lacerda, e uma matéria publicada pela agência Pública. Apesar de ser de julho do ano passado, pouco tempo após o ocorrido, decidi-mos republicá-la pela maneira respeito-sa com que trata o assunto e a família de Amarildo.

Nesta terceira edição, portanto, o Fala Roça se manifesta em relação ao assassinato de Amarildo e presta sua homenagem, trazendo uma carta de Michelle Lacerda, sobrinha de Ama-rildo. Outra questão que vem tomando as discussões nas comunidades é a da Resolução 013 e as consequências para a vida artístico-cultural das favelas. Para isso, convidamos Hanier Ferrer para escrever uma matéria sobre o as-sunto e contribuir para o debate.

Dois projetos recebem destaque em duas matérias. Na coluna “Você con-

hece?”, Raquel Magalhães apresenta o Favela Art & Foto, coletivo idealizado pelo fotógrafo Felipe Paiva, morador do Vidigal, e composto por fotógra-fos do Vidigal e da Rocinha, feras dos cliques, dos quais trazemos alguns nessa edição. Estreando nossa coluna de esportes, o outro projeto destacado é a escola de bodyboarding de Wander-ley Silva, o Tio Ley, na matéria sobre o movimento pela despoluição da praia de São Conrado, organizado por surfis-tas e frequentadores tanto do morro quanto do asfalto. É Jorge Kadinho, outro convidado dessa edição, quem assina o texto.

Para completar, Michele Silva traz a história da amizade entre uma es-trangeira da Alemanha e uma mo-radora da Rocinha, então camareira do hotel onde estava hospedada, que perderam o contato. Heike anda tentando reencontrar Gorette e pe-diu a ajuda do Fala Roça. E Michel Silva compartilha a história de Nilton Oliveira, vendedor de sonhos, balas de coco e maçãs do amor conhecido em toda a comunidade, que percorre a pé quase todos os dias. .

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Rio de Janeiro, fevereiro 2014 3Delícia

por Michel Silva texto e fotos

O homem dos sonhosPerseverante, sonhador e batalhador. É assim que se pode definir Nilton Oliveira, de 47 anos, trabalhador autônomo. Carioca da gema do ovo, cria da Rocinha e filho de mineiros, a vida dele é de um andarilho.

Há 15 anos, o doceiro percorre os becos da Roci-nha carregando uma caixa com 60 kg de doces, como sonhos, maçãs do amor e balas de cocos carameli-zadas que oferece por R$ 2,00 cada. Com seus gri-tos, Nilton anuncia sua chegada: “Quem quer sonhar, quem quer! - ou então: Olha a maçã do amor fregue-sa!”. A vida do doceiro é digna de aprendizado.

Os primeiros empregos foram como entregador de farmácia, entregador de jornais e feirante. O envolvi-mento com os doces começou quando Nilton conse-guiu um emprego como lavador de pratos em um ho-tel. O supervisor, atento à dedicação do empregado, ofereceu uma oportunidade para que ele trabalhasse na confeitaria. “Ganhava pouco como lavador de pra-tos. Com a oportunidade na confeitaria, ia somente na minha folga e não recebia salário. Eu ia por con-

ta própria porque queria ter uma profissão adequa-da”, lembra Nilton. Bastante interessado pelo ofício de confeiteiro, o doceiro trabalhou em outros hotéis, como o Sheraton, no Leblon.

Com a saída do emprego, Nilton começou a ven-der doces pelos becos da Rocinha. Sempre fazendo o mesmo trajeto, há 15 anos, de terça a domingo. Ele inicia a caminhada a partir da própria casa, na Cacho-pa, passa pela Vila Verde, volta para a Cachopa, Paula Brito e Dionéia. “Vendo mais ou menos 600 sonhos por mês. Às vezes a venda é fraca, então vou para a praia vender sorvetes e biscoito Globo, aos sábados e domingos, para complementar a renda”.

Perguntado sobre a abertura de uma loja para ven-der seus produtos, o doceiro revelou um desejo: “O meu maior sonho é ter meu próprio negócio. É um trabalho árduo. Não é nem questão de andar. Às vezes está cho-vendo e atrapalha muito a minha renda., e exalta: Os sonhos, as balas de coco... eu faço com prazer.”

O andarilho fez com que percebesse a transfor-mação urbanística na Rocinha. “Na Vila Verde você tinha que andar se agarrando nas paredes porque era barro puro. Só depois de um tempo que os moradores se reuniram e colocaram concreto na rampa.”, relem-bra.

A entrevista é interrompida por uma moradora que havia comprado dois sonhos fiado. Durante todos esses anos, andando pelos becos da Rocinha, Nilton é uma figura conhecida. Todos o conhecem. Mesmo aceitando fiado ele demonstra cautela. “Eu confio e não confio. Eu não posso ver o coração das pessoas.O que prevalece é a palavra da pessoa.”

Sonhos, maçãs do amor, balas de coco carameli-zadas. Nilton também aceita encomendas e vende os doces em eventos. “A pessoa me liga e diz que em tal hora e tal dia vai ter uma festa em um local. Eu preparo as coisas e fico na entrada da festa. Isso me ajuda.”, conta ele. .O telefone para contato de Nilton é (21) 3322-8023.

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4 Esporte

Mobilização no surfeEm meio à campanha pela despoluição na praia de São Conrado, projeto social oferece aulas de bodyboarding

Pepino, Praia da Gávea, São Conra-do, Cantão ou “Canto Esquerdo”, estes são alguns dos nomes que são atribuí-dos a essa praia. Cravada entre quatro bairros da Zona Sul carioca, a praia de São Conrado foi a maior diversão na década de 80 para os moradores da Ro-cinha, uma febre.

Todos pegavam ou queriam pegar ondas. O pico sempre foi frequentado por surfistas como Chiquinho Calan-go, Byla Ramon, Xandinho, Abelhudo, Cão, Marcelo Pedro, Nano Dias, Kung, Guilherme Tâmega e Fábio Aquino. Eles foram responsáveis pela integra-ção entre o morro e o asfalto, além dos competidores locais que sempre le-varam o nome de nossa comunidade. Entre eles, Guilherme Ximenes, Bru-no Pão, Juninho Back Fliper, Marcos Bambam, Ricardo Ramos “Choco” e muitos outros esportistas.

Desde a década de 80, muitas coisas mudaram e houve até autorização para colocarem uma placa em homenagem aos antigos surfistas e bodyboarders próxima à praia. A poluição aumentou junto com o “crowd”. São Conrado é

por Jorge Kadinhotexto e fotos

“DESDE O FINAL DE

AGOSTO, A PÁGINA

DO MOVIMENTO NO

FACEBOOK CONTA

COM QUASE 1.200

”CURTIDAS”.

uma das praias cariocas mais procura-das pelos surfistas, já que as ondas são perfeitas para a prática do esporte. É também a mais frequentada pelos mo-radores da favela da Rocinha, que fica próxima ao local.

SURFISTAS LUTAM CONTRA O ESGOTO

Cansados de pegar onda em meio a tanto esgoto, surfistas criaram um mo-vimento chamado “Salvemos São Con-rado” para combater a sujeira na praia de São Conrado.

O projeto foi desenvolvido para de-nunciar o despejo irregular de esgoto na praia. Os constantes vazamentos es-tão poluindo a água, que fica imprópria para banho e para a prática de esportes, como o surfe. Desde o final de agosto, a página do movimento no Facebook conta com quase 1.200 ”curtidas”. Lá, os membros do grupo publicam men-sagens e outros conteúdos de protesto contra a degradação da praia.

Diante de tanta mobilização, o pro-jeto conseguiu conquistas significati-vas. As obras do programa Sena Limpa já foram iniciadas e a esperança é que o problema do despejo irregular de es-

goto chegue ao fim. De acordo com o presidente da Cedae, Wagner Victer, o projeto de engenharia é um dos mais complexos dos últimos anos. A Estação Elevatória de São Conrado será feita dentro das mais avançadas técnicas de automatização, redução de consumo de energia elétrica, baixo nível de ruído e sistema de desodorização próprio.

ESCOLINHA DE BODYBOARDING FAZ SUCESSO

Há 12 anos, um sonhador e aman-te do bodyboarding, Wanderley Silva, conhecido como Tio Ley, vem man-tendo uma escolinha de bodyboarding que profissionaliza jovens da Rocinha e adjacências no esporte. “Eu treinava alguns atletas locais quando começa-ram a aparecer crianças querendo pra-ticar o esporte. E foi assim que nasceu a escolinha”, conta ele. O projeto pos-sui quatro instrutores: Renan, Rafaela, Luiz e Daniel, e atende mais de 100 jo-vens de 9 a 17 anos para que possam ter no esporte uma vida melhor longe das drogas.

As aulas da escolinha são feitas na praia de São Conrado, no canto esquer-do, todas as terças e quintas das 8h às 10h e aos sábados das 9h às 12h. Para fazer parte da escolinha, o jovem pre-cisa estar estudando (a frequência esco-lar é monitorada pela escolinha), apre-sentar uma foto 3x4 e atestado médico.

Um dos maiores problemas do pro-jeto é a falta de material para atender a demanda de jovens interessados em praticar bodyboarding..

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Rio de Janeiro, fevereiro 2014 5Reportagem Ímpar

“Pra voltar meu coração pro morro da favela.”

“Zero-treze”. Por este nome, atende o polêmico mecanismo do Estado que regulamentou o Decreto 39.355 de maio de 2006, que estagnou a efervescên-cia cultural do funk e dos eventos em lugares popu-lares. Pela sua formação, após uma leitura paciente, fica fácil perceber que, apesar de afirmações como “uniformizar atuação de órgãos da ordem no âmbi-to do Estado”, ela, como um todo, é voltada para o impedimento da realização de eventos à parte popu-lar da sociedade civil, mais diretamente às favelas, subúrbios e periferias. Um resquício de medidas da ditadura civil-militar.

Requisitos pouco objetivos, inúmeros termos indefinidos e sem conceituações claras, prazos am-bíguos e extremamente curtos, grande poder de decisão nas mãos da PMERJ… Enfim, desde sua promulgação e publicação nos idos de 2007, tem ser-vido ao Estado como meio para conferir à Secretaria de Segurança uma prerrogativa que deveria ser pri-mordialmente da Secretaria de Cultura, principal-mente, apesar dos defeitos apontados, pela temática tratada na resolução. O que ocorre dentro da política atual de gestão do Estado é a busca pela obtenção do controle dos territórios populares de forma a manter a ideia de asfalto e morro, do que é cidade e o que não é cidade, reforçando conceitos que não são de-mocráticos, mas, pelo contrário, favorecem a manu-tenção de um apartheid na cidade.

Fato é também que o secretário Mariano Beltra-me defende a ideia de que isso deve ser controlado pelas forças de ordem para evitar a corrupção de seus subordinados. Então, a ordem cronológica dos acontecimentos deixa tudo às claras. Em 2006, o Decreto é publicado, tendo sido regulamentado em 2007, para que em 2008 o projeto piloto das UPPs fosse lançado no Santa Marta, favela estrategica-mente escolhida para vender o projeto para a mídia nacional e internacional como uma metodologia efi-caz que proporcionasse a inserção das favelas, áreas supostamente carentes, na lista de espaços a serem ocupados com planos sociais.

Um grande problema, ao se perceber isso, é jus-tamente o que o governo estadual diz, sem precisar

por Hanier Ferrer

falar, que todas as ações, realizações e militância das Associações de Moradores, de ONGs e projetos diversos foi ineficaz ou inexistente nestes contextos territoriais. Assim, busca levantar o foco para uma falsa ideia de cuidado e preocupação com a redução das desigualdades sociais, que veio sendo fomenta-da pela mídia convencional, e busca invisibilizar os problemas e o terror causado pelos entraves com a presença da PMERJ nas favelas, que tem o aval do governo estadual para proibir, inclusive, festas de aniversário de crianças. A PMERJ também tem o poder totalmente autoritário de mudar de ideia, caso tenha permitido a realização de algum evento e, no dia, avisar que não será mais possível a realização do mesmo – caso que aconteceu certa vez na reali-zação de um evento no Borel.

Há algum tempo, grupos como a Agência de Re-des para Juventude, a Associação de Profissionais e Amigos do Funk (APAFunk), Meu Rio, as Comis-sões de Cultura e Direitos Humanos na Assembléia Legislativa, entre outros, têm lutado para que a re-alização dos bailes e outras festividades voltem a acontecer nas favelas. Três meses atrás, ocorreu a II Conferência Municipal de Cultura, no Teatro Im-perator, no Méier. Lá, debatemos sobre a resolução 013 e redigimos uma moção, assinada por todos os presentes, exigindo a revogação dessa medida, o que foi feito alguns dias depois.

Militarizar a cultura na favela é simplesmente dar respaldo à utilização do termo “pacificação”, de cunho militar, que significa nada mais que invasão de um território específico por meio de ações incisi-vas, posteriormente visando a desestabilização dos

“NO GRUPO DE TRABALHO SOBRE A RESOLUÇÃO QUE VAI

SUBSTITUIR A “ZERO-TREZE ONDE ESTÃO MORADORES,

ASSOCIAÇÕES, FUNKEIROS E OUTROS PRODUTORES DE

CULTURA DAS FAVELAS, SUBÚRBIOS E PERIFERIAS NESTE

GRUPO DE TRABALHO?“

A resolução 013 e a vida cultural das comunidades do Rio

moradores do lugar para anulá-los, além de ir contra a própria Constituição por vedar a liberdade de ex-pressão e direito à reunião. Tal medida é inviável e comemoramos a queda dela.

Agora, o que está em pauta é a discussão sobre a resolução que vai substituir a “zero-treze”. Cabral já declarou que um grupo de trabalho com integrantes da Casa Civil do Governo do Estado, Secretaria de Segurança, Secretaria de Assistência Social e Direi-tos Humanos, Corpo de Bombeiros e Prefeitura irão estabelecer as novas normas – mas onde estão mo-radores, associações, funkeiros e outros produtores de cultura das favelas, subúrbios e periferias neste grupo de trabalho?

Do outro lado, a Fundação Getúlio Vargas, jun-tamente com a APAFunk, também estuda uma pro-posta de texto e fará frente ao que o governo es-tadual quer empurrar sem a participação popular na fiscalização, construção e organização da nova resolução. Não podemos apenas comemorar! A luta continua para que o funk e outras expressões cultu-rais populares retornarem com total liberdade não só nas boates do asfalto, mas na vielas, esquinas, quadras, ruas e calçadas, onde há o vigor originário, sendo produzido, festejado e promovido pelos seus próprios criadores!.

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6 Você conhece?

Lentes sagazesA história do Favela Art & Foto, projeto que reúne fotógrafos da Rocinha e do Vidigal

No dia 14 de Janeiro de 2011, quatro amigos re-solveram criar um projeto em que o morador de favela pudesse registrar o seu espaço, se reconhecer ali e fazer com que os outros moradores também recon-heçam as belezas que aquele espaço tem. Assim, Fe-lipe Paiva e Pedro Castro, do Vidigal, junto com Fla-vio Carvalho e Leandro Lima, da Rocinha, criaram o Favela Art & Foto.

Felipe Paiva (28) explica: “O foto clube Favela Art & Foto nasceu a partir do anseio de um grupo de fotó-grafos e amigos que se propuseram a criar um espaço onde pessoas oriundas de favelas e de outras partes da cidade pudessem discutir e popularizar a arte da fotografia, onde profissionais e amadores se encon-tram aos fins de semana para registrar as favelas do Rio de Janeiro. Nosso objetivo principal é fomentar e popularizar a arte da fotografia dentro dos territórios de favelas. Queremos fazer exposições itinerantes, além de percorrer os espaços que a gente foi foto-grafar. Queremos também estar em outros espaços da cidade, e consequentemente em galerias, mostras culturais etc.”.

Nascido na favela do Vidigal, Felipe sempre gostou de fotografar, é um jovem humilde, estudioso, alegre, divertido, e encontrou na fotografia uma forma de ex-pressar seus sentimentos.

A ideia de percorrer outros espaços surgiu na pri-meira vez que saíram para fotografar no Complexo do Alemão, onde já existia um foto clube. Os fotógrafos perceberam que valia a pena ampliar, até para faz-erem um paralelo de como são as favelas da Zona Sul, Zona Norte e Zona Oeste. E o caminho deles agora é esse, a cada sábado vão fotografar em favelas diferen-tes, conhecendo culturas distintas.

Quando o grupo vai fotografar em outras favelas, as pessoas ficam curiosas: perguntam o que estão fotografando, de onde são... Depois que eles se apre-sentam como fotógrafos de favelas, e explicam que foram lá para mostrar a beleza daquela comunidade específica, há um acolhimento grande. A união dos moradores chama a atenção deles: “No morro do Ma-

por Raquel Magalhães

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caco, todas as casas têm bares, parece que todo mun-do bebe. É uma coisa inusitada, que você não vê de forma comum... E nas favelas da Zona Norte, as pes-soas têm o costume de criar animais; eu vi cavalos, porcos, galinhas, cabritos etc. Lá ainda tem essa cul-tura”, conta Felipe.

Hoje, a equipe se tornou uma grande familia e pre-tende continuar sempre assim, unida pela fotografia. Rafaella Cardoso, moradora da Rocinha, estudante de design e de comunicação visual, afirma: “Foto-grafar é a melhor forma de expressão que encontrei para exteriorizar o que sinto e assim alimentar minha alma. Fazer parte do Favela Art & Foto é estar entre amigos que vivem em prol do mesmo alimento, que é fotografar, registrar e eternizar a beleza da vida”.

Bruno Pires, também membro do FAF, fala de sua motivação: “Sempre interagi muito com favelas. O que me motiva a fotografar é a possibilidade de me entregar ao momento, eternizá-lo sempre me fasci-nou! Conheci o FAF através de uma amiga que soube que passariam perto de casa, no Morro dos Macacos. Hoje faço parte de uma grande família que tem em comum o amor pela fotografia.” .

fotos 1 Karina Tude 2 Bruno Pires 3 Marcos L. Sales 4 Flavio Carvalho 5 João Lima

Se você se interessou por esse projeto e quer fazer parte dessa grande familia, entre em contato: www.facebook.com/favelartefoto | [email protected]

Telefones Felipe Paiva (21) 7425-0660 Flávio Carvalho (21) 9698-0154 Antônio Golgenstein (21) 7869-1321 Bruno Pires (21) 7530-0982 Wellington Costa (21) 8727-7200

1

Fiquem ligados na fanpage do grupo para saber onde o FAF irá fotografar nos próximos sábados e divirtam-se!

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Rio de Janeiro, fevereiro 2014 7Megafone

Não é preciso passar muito tempo junto à famí-lia de Amarildo para entender que a UPP da Rocinha se envolveu em um problema bem grande. Amarildo não é uma pessoa que poderia desaparecer sem que sua família deixasse de perguntar por ele, não é o pai de quem os filhos esqueceriam facilmente, não é o so-brinho, tio, primo, irmão, marido por quem ninguém perguntaria: onde está Amarildo?

Neste pedaço bem pobre da Rocinha, onde nasceu, cresceu, viveu e desapareceu Amarildo, “muitos são de nossa família”, diz Arildo, seu irmão mais velho, apontando os quatro lados da casa. Em uma caminha-da pela comunidade na companhia de um sobrinho de Amarildo, a repórter , conheceu algumas primas, depois umas sobrinhas, tomou um café com as tias lá em cima, de onde desceu acompanhada de irmãos e filhos de Amarildo. De todos, ouviu a descrição de Amarildo como “um cara do bem” que, por desgraça, tornou-se famoso – e não por sua característica mais marcante, o bom coração.

As casas são ligadas por escadas antigas, feitas possivelmente por seus avós que vieram da zona rural de Petrópolis para o Rio, com os três filhos ainda bem pequenos. “A Rocinha nessa época ainda era mato e poucas casas de madeira, uns barracos, como se diz, e nada mais”, diz Eunice, irmã mais velha de Ama-rildo.

A curiosidade da repórter sobre o passado da fa-mília é o suficente par que ela pegue o telefone, para ligar para uma tia avó, “a única que pode saber algu-ma coisa sobre a história é ela”, diz. A tia-avó, que também vive na Rocinha, confirma por telefone o que Eunice já sabia: a “tataravó era escrava, possivelmen-te em uma fazenda de Petrópolis, mas não se sabe mais do que isso”.

Eunice diz ter retomado as origens familiares ao fazer de sua casa um centro de Umbanda. É aqui, na parte debaixo da casa, a mais silenciosa, que ela rece-be as pessoas que querem saber de seu irmão. “Temos a mesma mãe, mas nosso pai não é o mesmo. Minha mãe gostava de variar”, comenta, rindo.

Ali, na casa construída por ela, moram pelo me-nos dez pessoas, entre crianças e adultos. Na cozi-nha, as panelas são grandes, como numerosas são as bocas. No primeiro quarto, três mulheres comem sentadas na cama. Em outro quarto, duas sobrinhas estão em frente ao computador, trabalhando na pá-gina do Facebook feita para Amarildo, seguindo os cartazes virtuais de “onde está Amarildo?” que vêm de várias partes do país.

Não esqueceremosA família fala sobre Amarildoe segue lutando por justiçapor Anne Vigna , da Agência Pública*

ENTRE ONZE IRMÃOS

A mãe de Amarildo teve 12 filhos e trabalhou muito tempo como empregada doméstica na casa de uma atriz famosa do bairro do Leblon. “Essa atriz quis adotar um de nós, mas minha mãe nunca quis”, lembra o irmão Arildo, três anos mais velho do que ele. Sobre o pai de ambos, não se sabe onde nasceu, apenas que era pescador, com barco na Praça XV, no centro do Rio, onde conheceu a sua esposa. Os ne-tos não se lembram como nem quando, mas ele se acidentou em um naufrágio e acabou morrendo em consequência de um ferimento na perna. Amarildo tinha um ano e meio. Mas, adulto, Amarildo tinha paixão pela pesca. “Era a única coisa que ele fazia na vida quando não estava trabalhando ou nos ajudando: ia pescar sozinho ou com um primo nas rochas de São Conrado. Voltava com muitos peixes”, conta, or-gulhoso, Anderson, o mais velho dos seus seis filhos.

As varas de pescar de bambu, que ele mesmo fa-zia, estão encostadas em casa desde o dia 14 de julho, um domingo, quando os policias da Unidade de Po-lícia Pacificadora da Rocinha o levaram “para verifi-cação”. Ele tinha acabado de limpar os peixes trazi-dos do mar e Bete, apelido de Elizabete, sua esposa há mais de 20 anos, esperou que ele voltasse da UPP para fritar os peixes “como em tantos domingos”, ela conta, o olhar perdido. Foram 20 anos de união, seis filhos, a vida dividida em um único cômodo que ser-via de dormitório, cozinha e sala.

Semanas após o desaparecimento do marido, Bete se esforça para conseguir contar como conheceu o “meu homem”, ela diz, evocando a lembrança do jovem que se sentou ao lado dela em um banco em Ipanema: “Eu não saía muito desde que cheguei de Natal (RN) para trabalhar como empregada em uma família. No domingo, ia caminhar um pouco no bair-ro. Ele veio conversar comigo, nos conhecemos, e ele me trouxe para a casa de sua mãe aqui na Rocinha. Nunca mais saí”, conta.

Bete trouxe os dois filhos que vieram com ela do Nordeste, sem criar problemas com Amarildo. “Ele adora crianças”, ela diz. O que as duas menorzinhas da família confirmam: “É o tio Amarildo que nos leva para a praia de São Conrado, ele que nos ensinou a nadar”. A mãe apenas sorri, sempre fumando, e, sem disfarçar a tristeza, conta que está preocupada com a filha mais nova, de cinco anos. “Ela sempre estava com o pai”, suspira. No começo, Bete lhe disse que o pai tinha ido viajar e que, por ora, não voltaria. A

pequena conserva a esperança de filha que sempre acreditou nas palavras do pai, e ele lhe prometeu um bolo grande no próximo aniversário.

“ERA UM MENINO E PULOU NO FOGO”

Aos 11 anos, Amarildo se tornou o heroi da comu-nidade ao se meter em um barraco em chamas para salvar o sobrinho de quatro anos. “Era um menino, e pulou no fogo. Me salvou e também tentou salvar a minha irmã, que tinha oito anos. Não conseguiu tirá--la de lá, ela morreu, e eu fiquei meses no hospital”, lembra Robinho, hoje com 34 anos, a pele marcada pelas cicatrizes desta noite de incêndio.

Aqui, Amarildo é conhecido por todos como “Boi”, por ser um homem forte que carregava as pessoas que precisavam de socorro para descer as escadas e che-gar com urgência a um hospital. “Uns dias antes de desaparecer, ele carregou no colo uma vizinha, e a salvou. Era uma ótima pessoa, sempre ajudava os ou-tros – numa emergência ou numa mudança”, conta a cunhada Simone, sem conter as lágrimas. “Eu tenho muita saudade dele, principalmente do seu sorriso. Meu marido não fala nada, mas eu o conheço, está com muita raiva. Na primeira noite, ficou debruçado na janela a noite toda, esperando o irmão voltar”, diz, emocionada.

Toda a família está com raiva. E, dessa vez, nin-guém quer ficar quieto, mesmo sabendo os riscos da denúncia. Vários familiares foram ameaçados por po-liciais. “Por que foram atrás dele? Estamos voltando à ditadura?”, pergunta a prima, Michelle. “Ele traba-lhou toda a vida. Quando não trabalhava, nos ajuda-va, ou ia pescar para a família. Nunca se meteu com ninguém”, comenta, revoltada.

Boi era pedreiro havia 30 anos e ganhava meio sa-lário mínimo por mês. “Por isso, às vezes, carrega-va sacos de areia aos sábados para ganhar um pouco mais”, comenta Anderson, mostrando os tijolos que o pai comprou com o dinheiro extra para fazer um pu-xadinho no segundo andar na casa: “Na verdade, ele ia ter que voltar a fazer a fundação aqui de casa por-que está caindo, eu e meu irmão íamos ajudar”, de-talha. “Ele era meu pai, irmão, amigo, era tudo para mim”, diz, escondendo as lágrimas quando chega a irmã mais nova, de 13 anos.

Os familiares vivem em suspense, à espera das no-tícias que não chegam. Não desistem: organizam-se como podem com vizinhos, amigos e outras vítimas da polícia. Negaram uma oferta do governo do Estado do Rio de Janeiro para entrar no programa de prote-ção à testemunha. Preferiram continuar na Rocinha, sua comunidade. “Temos que lutar para que essa im-punidade não continue. Queremos justiça por Ama-rildo e para todos nós que convivemos agora com essa polícia”, revolta-se a sobrinha Erika.

Aos 43 anos, Amarildo desapareceu sem que a fa-mília tenha direito sequer a uma explicação oficial, como tantas outras pessoas de tantas favelas brasi-leiras, vítimas de violência policial. Mas, dessa vez, ninguém vai se calar. Onde está Amarildo?

*reportagem publicada em 29/07/2013 pela Agência Pública

e reproduzida conforme as normas de republicação da Agên-

cia. http://www.apublica.org/2013/07/amarildo-presente/

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Cambito e sua turma Otavio Rios

TIRINHAS

Carta da sobrinha de Amarildo, Michelle Lacerda

Os dias são mais vazios, falta um espaço à mesa. Fica um abraço que não foi dado, um carinho que não foi feito, uma palavra que não foi dita, um sorriso que não foi entregue e, principalmente, os beijos e o amor que nunca mais teremos.

Amarildo de Souza, Boi, como era conhecido por sua força de luta e de trabalho, tinha 43 anos e era pai de seis filhos e companheiro de Elizabete, mas antes disso ele era filho de Carmen, e criado pela irmã Ma-ria Eunice e a companheira Jurema. Um homem de princípios e bem educado.

Amarildo, negro, morador de comunidade e aju-dante de pedreiro, uma pessoa muito companheira, solícita e ligada à família, que, por qualquer lugar que passava na comunidade, estava sempre acompanha-do de Milena (a filha caçula, de 6 anos), foi retirado da porta de sua casa em 14 de julho de 2013 e fez um caminho sem volta, deixando um amargo gosto de quero mais. Nossa família, que luta diariamente, precisa dar um enterro digno a um membro que faz tanta falta.

Toda vez que se ouvia aquele barulho de beijo, eu já sabia: “Já vem o tio Amarildo” que chegava che-gando, com um ar de rei leão, um jeito de durão, mais um homem de coração mole que ficava muito triste quando eu não o beijava e nem o abraçava, e que toda vez que me via, dizia: ” Me amarro na minha sobri-nha, mas acho que ela não gosta mais de mim, porque ainda não me deu o meu beijo hoje.”

E sempre que sentia-se mal corria para os braços de minha mãe (Eunice), todos os medos compartilha-va com ela e logo depois me perguntava “o que você acha minha sobrinha?”, pois a opinião da família era o que mais contava...

Hoje já não temos mais o prazer de desfrutar de sua companhia.

Está faltando um filho, um irmão, um marido, um pai, um tio, um vizinho, um Boi, está faltando um Amarildo!.

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