fabio zanon - música como profissão

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  • 5/12/2018 Fabio Zanon - Msica como Profisso

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    IMUSICA COMO PROFISsAol

    Fabio ZanonMinha fala neste seminario e a de urn pro fissional que ja nao trabalha dire-tamente com a educacao. Sou concertista ha muito tempo e, se por urn la-do, esta e a faceta menos intelectualizada - ou mais "burra", se preferiremassim dizer - da profissao, por outro e aquela que mais movimenta a indus-tria musical. Isso me faz perceber a falta de profissionais qualificados, deforma bastante acentuada no Brasil, em certas areas que considero essen-ciais para 0 born andamento da face publica do fazer musical: concertos,gravacoes, literatura e programas de radio e TV.

    Uma historia curiosa aconteceu ha poucas decadas e ilustra a fal ta decompreensao pela profissao de musico que tern prevalecido ate bern recen-temente. Uma prestigiosa orquestra britanica estava em turne por outropais europeu, e a Embaixada Britanica local ofereceu uma vistosa recepcaopara celebrar a visita. Como de praxe, urn diplomata de alto escalao come-s:ou a proferir 0 discurso de agradecimento aos promotores e patrocinado-res dos concertos. Em determinado momento, ele agradeceu tambem aosempregadores dos musicos, por haverem "concedido licenca do trabalhoem suas firmas" (I), Este episodio real aconteceu ha algum tempo, masaponta para 0fato de que, para quem observa a profissao de fora, ela ain-da e coberta por urn verniz amadortstico. Ainda ha quem acredite que mu-sica nao e uma atividade que pod~ prover 0 sustento de uma familia inte-gralmente, a nao ser, claro, que estejamos tratando de. estrelas da musicapopular, do podio ou das casas de opera.Na esfera da musica classica, na verdade, estamos sempre .trabalhandocom duas hipoteses de exercicio pro fissional: 0 individuo que toca e aque-leque ensina. As demais possibilidades sao ignoradas ou vistas como apen-

    1Palestra profer ida no Se~inario de Educacao Musical da Faculdade de Musica CarlosGomes, no dia 5 de novembro de 2005, na mesa temat ica Alternativas de atuafao profissionaldo musico contemporaneo e do educador musical , integrada pelo autor e os professores FlavioApro, Helena de Souza Nunes e Nadia Dumara Ruiz Silve ira. A palest ra foi t ranscr ita inte-gralmente pelo violonista Flavio Apro e0 texto final foi editado pela professora SoniaAlbano de Lima, que teve autorizada a publicacao, pelo autor.102 --

    dices, principalmente no que diz respeito a formacao profissional. As no-coes ficticias alimentadas por aqueles que estao fora da profissao encon-tram uma contrapartida na visao igualmente pouco imaginativa que osmusicos tern de seu futuro profissional. Como decorrencia, observa-se quemusicos assumem essas outras posicoes por acidente, de forma improvisa-da e sem 0 devido preparo para faze-lo.

    Abordarei, inicialmente, 0 trabalho do concertista de musica classica, quee minha principal atividade profissional. A propria natureza da carreira dosolista e , no mais das vezes, internacional, e se define bern antes de0estu-dante terminar seus estudos superiores. A oportunidade de viver exclusiva-mente da atividade de interprete e uma marca de excelencia conferida auma parcela infima dos aspirantes e, se algum desses "felizardos" esta assis-tindo a esta palestra, provavelmente e so por curiosidade.

    Eu me sinto privilegiado por ser urn solista de reputacao internacional. Aexcecao dos cantores, que forcosarnente iniciam seus estudos mais tarde, oudos regentes, que normalmente se destacam a partir de uma experienciaprevia em outros ramos de atividade musical, a carreira de solista define-sequando termina 0 crescimento corporal, no final da adolescencia. Urnconhecido professor de piano costumava dizer que a tecnica tern de crescerjunto com asmaos; trocando em miudos, isso querdizer que 0pleno domi-nio psicomotor, urn dos atributos essenciais de minha especialidade, crescede forma bern menos acelerada quando 0 crescimento corporal cessa.

    A falta de experiencia de pais e professores pode levar estudantesa cria-rem castelos de areia; eu acho mais honesto e, no longo prazo; menosdecepcionante, tomar esta premissa no rninimo como uma alta probabili-dade. E necessario que a auto-avaliacao - tanto dos estudantes quanta dosprofessores - seja feita de forma serena, porem realista. A imaginacao,nosso maior capital, e mais bern empregada em outros setores.

    Comecei a estudar violao relativamente tarde - como acontece com amaior parte dos violonistas, entretanto, recebi de meu pai uma considera-vel bagagem musical , e, a part ir dos 13anos, tive a chance de estudar comurn excelente professor e manter uma disciplina consideravel, Aos 15anosdei 0 meu primeiro recital e acho que eu ja era capaz de avaliar, de formabastante realista, as minhas possibilidades como concertista. Aos 16, soleipela primeira vez com orquestra; aos 19, participei de urn concurso inter-nacional, -obtendo 0terceiro lugar: aos 20, tinha obtido variospremiosinternacionais e atravessava minha primeira crise, na dtivida entre a carrei-ra de solista, a regencia e a carreira academica, aos 21, ja estava planejandofazer uma pos-graduacao no exterior, 0que ademais facilitaria 0 inicio deuma carreira internacional. Depois de urn hiato de tres anos, fiz urn mes-

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    It rado na.Inglaterra, onde permaneci por doze anos. Ate hoje mantenhouma residencia em Londres. Em 1996 fui vencedor dos dois maio res con-cursos internacionais de violao e, com isso, minha reputacao se consolidou.Hoje, toco uma media de sessenta a setenta concertos por ano, em quatrocontinentes, e ja visitei 38 paises. Metade de minhas atividades sao naEuropa, urn terco na America do Norte, e as demais, no Brasil e em outroslocais. Este nao e urn percurso excepcional , pelo contrario, e a norma e,para falar a verdade, meu desenvolvimento foi lento e entrecortado pormomentos de duvida e recolhimento, e por hiatos profissionais.E uma profissao bastante ardua, mas a satisfacao pessoal, ate 0 momen-to, e proporcional ao desgaste fisico e mental. 0 rigor da formacao musical,para isto, e condicao sine qua non. Em algum momento da sua vida, 0ins-trumentista vai ter de estudar oito ou mais horas diarias, sendo que nashoras vagas 0seu pensamento tambem estara voltado para esse aprendiza-do. A pergunta ingenua, que tantas vezes temos de responder, "quantashoras voce estuda por diai", na verdade s6 pode ter uma resposta: todas.

    E urn aprendizado que supoe urn sacrificio consideravel numa fasemuito delicada da vida, quando 0 individuo esta formando sua identida-de social. Aos 15anos, urn menino tern uma porcao de colegas praticandoatividades sociais bern mais ricas, como esportes, danca, clubes etc.enquanto, como estudante de musica, tern dededicar asmelhores horas deseu dia para 0 instrumento.o dia-a-dia da profissao tambem e objeto de mitologia. Iascha Heifetzdizia que 0 solista internacional tern que ter uma concentracao de monge,nervos de toureiro e energia de dono de borde!. 0 concert ista t ipico naoviaja com luxo, nao tern muito tempo livre para turismo e nao circula 0tempo todo entre vips internacionais. 0 cenario mais comum, na verdade,e 0 de interrninaveis esperas em aeroportosobcecados por seguranya(nunca leio tanto como quando estou em turne). Como nao e todo dia quesetoca em Paris ou Veneza, frequenternente ficarnos ilhados em localidadesdesinteressantes. Isso se alia a constante preocupacao pela qualidade do tra-balho, 0 que se traduz em longas horas de estudo em quartos de hotel epouco tempo para distracao. A solidao e agravada pela obrigacao de seencontrar continuamente com pessoas que nao se conhece e nao se terntempo de conhecer. Enfim, gostar de tocar e uma coisa, gostar de uma car-reira e outra e frequentemente ha uma friccao entre estes dois interesses,correlatos apenas na aparencia,

    Mas0fato e que esta e a imagem que a vasta maioria das pessoas tern deurn musico classico, e nao sepode negar que e a atividade musical de maiorexposicao publica, cujo potencial de remuneracao e praticamente ilimitado,

    proporcional a excepcionalidade do talento do artista e a sua capacidade decriar uma mitica pessoal. E e exatamente isso que faz com que asinumerasoutras possibilidades de atuacao profissional sejam vistas com menosprezoou desatencao, tanto por parte dos estudantes, quanta por parte dos educa-dores em geral, dos professores de musica e dos pais, que as encaram comourn grau maior ou menor de fracasso em comparacao ao exito do solista. Euma opiniao injusta e desinformada. Nenhum musico deveria se sentirconstrangido por nao ter tido a chance de reunir os talentos especificos deurn solista no momenta certo, ou por sua vocacao residir em outro tipo deatividade. Pelo contrario, deveria explorar com mais liberdade a ampla gamade possibilidades que 0cultivo de outros talentos pode oferecer.

    Muitos instrumentistas pensam que, quando uma carreira solo e imprati-cavel, a profissao de camerista e uma das alternativas, Urn engano terrivel,porque a formacao do camerista tern de ser igualmente solida, senao maiscompleta evariada que a deurn solista. 0 solista, decerta maneira, atua comuma certa independencia criativa; 0camerista, contrariamente, ao lado detodos os atributos tecnicos do solista, tern de desenvolver a flexibilidade parasemesclar a outros musicos que pensam diferentemente. 0 que e pior - sejaaqui , na Europa ou na America do Norte, a profissao de camerista e aindamais exclusiva que a de solista. Alguns quartetos de cordas tern residenciaem universidades ou sao mantidos de alguma forma por orgaos oficiais,Temos 0exemplo no Brasil, do Quarteto de Cordas da Cidade de Sao Paulo,que tern 0privilegio de ensaiar diariamente e ter uma programacao consis-tente, embora seus integrantes tambem sejam professores universitarios eatuem ocasionalmente como musicos de orquestra. Mas essa e a excecao,nao a regra, e a atividade de camerista, gratificante que e do ponto de vistaartistico, raramente se cristaliza como opcao profissional exclusiva.

    Instrumentistas de sopro normalmente se iniciam na musica a partir daatuacao em bandas ou em igrejas e costumam ter uma atitude mais madu-ra, mas, entre os violinistas ou cellistas, frequentemente presenciamos 0colapso das ilusoes: a partir da constatacao de que a carreira de solista estafora de alcance, 0 aspirante e forcado a se conformar com 0 que julga seruma atividade cada vez menos "nobre" e a ocupar espacos que, na sua cabe-ca preconceituosa, sao gradualmente menos importantes numa supostahierarquia artistica - camerista, spalla, los. violinos, 205 violinos, orquestra"N: orquestra "B': orquestra no interior, ensino, etc., 0que e patetico, Eugostaria de lembrar a essas pessoas que a quinta estante de segundos violi-nos e tao essencial para a formacao da sonoridade de uma orquestra quan-to a de qualquer outro rnusico, uma orquestra em Goias ou em Alagoascumpre urn papel cultural tao importante quanta asorquestras do Rio e de

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    Sao Paulo. Hoje, exige-se d~ urn rmisico orquestral urn grau de competen-cia e constancia bastante elevado, e cada membro de uma orquestra sentir-se-a mais realizado quando puder enxergar com clareza qual e a dimensaode sua contribuicao e efetua-la com 0maximo desvelo e dignidade.o trabalho orquestral e 0 destino final da vasta maioria das pessoas quetocam instrumentos de corda, sopro e percussao. Apesar da ocasionalextincao de uma orquestra ou das fases dificeis pelas quais toda orquestrapassa, no Brasil, hoje, a atividade orquestral e mais intensa que em qualqueroutro momento da historia, e a demanda por musica de concerto crescemodestamente, mas cresce.

    Naturalmente a concorrencia por boas posicoes e maior nas grandescidades. Hoje, os melhores salaries orquestrais pagos no Brasil estao em SaoPaulo, mais especificamente na Orquestra Sinfonica do Estado de SaoPaulo - OSESP, seguida a uma certa distancia pelo Teatro Municipal. Emoutros lugares os salaries sao sensivelmente men ores, mas tambem 0sao 0volume de trabalho e 0custo de vida. Vejo como uma opcao vantajosafixar-se numa cidade mais aprazivel, onde a pessoa talvez ate ja tenha rai-zes ou familia, com tempo para se diversificar entre a atuacao musical,pedagogics e social. Urn trabalho do qual 0 musico possa se orgulhardepende, cada vez mais, dele e de sua capacidade de galvanizar os colegaspara 0 objetivo comum de desfrutar do resultado, sem atrela-lo as condi-coes de trabalho ou ao nfvel de instrucao mu-sical do publico.

    Uma opcao que tern setornado cada vez mais viavel e atraente, mas queainda e considerada como atividade menor no Brasil, e a da orquestra deteatro musical. Parece que ha agora uma certa constancia em montagens demusicais como Chicago ou Os Miseraveis. E 0 tipo de trabalho ideal para 0musico que prefere uma certa liberdade para desenvolver trabalhos parale-los, sem ter de se preocupar com ensaios diaries. Ademais, e urn filao queainda tern muito a ser explorado, especialmente no que serefere a consoli-dacao de uma producao brasileira de musicais, uma tradicao que remontaa Chiquinha Gonzaga, passa por Noel Rosa e chega a Chico Buarque, masque hoje precisa se renovar e resgatar sua vitalidade.

    Ha trinta anos ou mais, uma opcao real era a de se buscar uma posicaoorquestral no exterior. Urn periodo de estudos numa escola estrangeira, urnborn relacionamento com professores e colegas, e era posstvel concorrer auma vaga na Alemanha ou na Holanda; tenho varies amigos que atuam naEuropa ou nos EUA desde os anos 1970 ou 1980. Hoje, no en!anto, pareceque tal possibilidade se torna cada vez mais remota. A consolidacao eexpansao da Uniao Europeia provocaram urn fechamento de oportunida-des profissionais para quem nao pertence a ela. Os EUA sao algo mais fle-

    xiveis neste aspecto, mas a ernigracao para aquele pais nunca foi tao com-plexa como hoje. Acho que, mesmo para quem ja reside no exterior pormotivo de estudo, este projeto de vida tende a ser adiado cada vez mais epreenchido por hiatos de subemprego musical.

    Uma expansao e flexibilizacao da pericia musical mostram -se valiosas emoutros filoes de atividade do musico pratico. Urn deles e 0trabalho emestudio, seja ele como musico de suporte para gravacoes de musica popu-lar, trilhas sonoras de TV ou radio, ou para publicidade. E urn trabalho, ameu ver, atraente (inclusive do ponto de vista artesanal), independente emuitas vezes bem pago, e, por isso mesmo, bastante disputado.

    Mais que a maioria das outras atividades musicais, este universo tende aseorganizar em grupos exclusivistas, de perfil bern delineado e de confian-~amutua - as famosas "panelinhas" E facil detectar este modo de operacao,basta comparar os creditos de uma dezena de discos de miisica popular:normalmente os musicos de suporte sao os mesmos, e 0 mesmo vale paraa TV ou para a publici dade.o born musico de estudio tern de se concentrar em certos aspectos quenao sao necessariamente relevantes em situacoes de concerto. Nesseambiente, 0 musico que se distrai em passagens faceis, que provoca anecessidade de urn novo take por produzir urn ruido indesejado, que naosabe seguir urn metronome com precisao, que nao confia em sua leituraa primeira vista, que nao consegue se imaginar como parte de urn resul-tado sonoro que ainda nao soa completo, ou que nao tern familiaridadecom a harmonia cifrada, dificilmente tera a concessao de umasegundaoportunidade. Uma formacao, ainda que elementar, como arranjador, esempre bem-vinda.

    Para 0 ingresso neste mercado, e necessaria a formacao de uma rede decontatos. E urn trabalho arduo, mas que vale a pena, e,normalmente, come-~acom 0 seu proprio professor de instrumento, que pode the passar 0 con-tato de alguma gravacao para a qual ele mesmo nao esta disponivel. De maisa mais, e urn complemento interessante para quem ensina ou toea emorquestra, e normalmente trabalha-se com musicos bastante qualificados.

    Ainda neste universo, temos 0trabalho do fixer, que e aquele individuoque faz a arregimentacao de rmisicos para esse tipo de funcao. Muitas vezesele e0coringa, a pessoa que e capaz de resolver desde urn problema com acronometragem de urn arranjo ate 0 posicionamento de urn microfone,mas cuja principal atribuicao e conhecer muita gente. E a pessoa que sabeonde encontrar urn cavaquinista que Ie musica, urn fagotista que tern urncontra-fagote, urn cantor com a voz parecida com a do Tim Maia, urn vir-tuose do flugelhorn ou do banjo.

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    E evidente que urn ambito tao vasto de possibilidades sup6e uma reno-vacao no preparo dos musicos, No Brasil, nao percebo agilidade nessarenovacao, por parte dos musicos ou por parte das instituicoes de ensino.Cada uma das possibilidades que mencionei - super-orquestra, orquestralocal , teatro musical, gravacao de trilhas, etc. - exigira uma habil idadealem daquelade tocar bern. Cada vez menos sepode tolerar musicos comuma tecnica deficiente - ponto pacifico. Mas cada vez mais precisamos dermisicos que possam tocar musica conternporanea com conhecimento decausa; que tenham uma leitura a prime ira vista aceitavel - em qualquerestilo; que tenham alguma familiaridade com instrumentos de epoca e sualinguagem; que saibam improvisar, ainda que de maneira rudimentar; quetenham alguma especie de preparo cenico, que tenham alguma experien-cia com projetos de divulgacao, de educacao, de musicalizacao e de assis-tencia social.

    Entro agora numa esfera de imenso potencial, que e a do musico.de even-tos. 0 potencial desse filao e proporcional ao estigma que ele carrega e aopre-julgamento dos colegas musicos, Perdoem mais urn momenta autobio-grafico, mas na verdade sou muito grato a este ramo de atividade tao dis-criminado. Meu pai faleceu quando eu tinha 20 anos, no ultimo ana deminha graduacao universitaria: a parte a consternacao domestica, ficamoscom dividas hospitalares eeu precisava terminar meu curso de algumaforma. Na epoca, eu regia tres corais (urn universitario e dois de igreja) etocava em eventos. Sem essas atividades, eu provavelmente teria abandona-do temporariamente os meus estudos.o que sao esses eventos? Casamentos, apresentacoes em shopping cen-ters, restaurantes, saguoes de hoteis, festasparticulares, cerimonias de todanatureza. Em retrospecto, tenho uma certa afeicao por esta epoca, mas 0trabalho era bastante incomodo, prejudicado pelos comentarios deprecia-tivos de colegas e pelo tratamento gelido dispensado por outros profissio-nais de rmisica a mera mencao dessa atividade. Parecia que eu exercia umaatividade menor ou censuravel e, para mim, que ja havia sido premiado emconcursos no exterior e estava prestes a iniciaruma carreira internacional,a discriminacao era uma situacao mortificante.

    Tenho plena conviccao de que esta atitude tern de ser mudada. Cabe anos, profissionais, educadores e estudantes, rever esse preconceito. Paraurn instrumentista, tocarbem em urn casamento, escolher bern as musi-cas e atuar com 0nivel de competencia que a situacao exige subentendeconhecimento musical e profissionalismo. Nao e sem razao que compa-nhias, como o coral e orquestra Baccarelli, detem uma fatia apreciavel doseventos de luxo. Urn de meus colegas mais talentosos no cursode regen-108

    cia da Royal Academy of Music, em Londres, hoje man tern uma compa-nhia que oferece concertos barrocos a luz de velas e trajes de epoca e quese apresenta semanalmente em igrejas turisticas. Ele nao perde a reputa-yao entre seus colegas cor causa disso, pelo contrario. Chama-se a istoknow-how: urn leque de eseolhas musicais extremamente amplo, a capa- .cidade de entender 0 que 0 cliente deseja (mas nao sabe expliear), umaorquestra com apresentacao musical e visual adequados, musicos de cate-goria mais que razoavel.

    Assim, acredito que 0musico que seve na contingencia de explorar essenicho de mercado tern de faze-lo com a cabeca erguida, com competencia,criatividade e joie de vivre, pois e,inclusive, urn ramo de atividade que podeadquirir urn vies educativo. Afinal, as pessoas que tern 0poder de pagar urnprofissional competente para urn evento, tambem podem ter a chance deeducar seu gosto e polir sua cultura musical.

    Trabalhei no restaurante de urn hotel durante tres anos, no hiato entreo falecimento de meu pai e minha mudanca para a Inglaterra. Meu prin-cipal colega de trabalho era urn cravista excelente, urn dos melhoresmusicos com quem eu ja trabalhei. Ja com uma familia constituida, tinhadeliberadamente abandonado a ilusao de uma carreira solo, que envolve-ria urna adaptacao de seu modo de vida ao que ele nao estava disposto aefetuar. Sua decisao de se especializar nesse nieho foi dificil, mas honestae consciente. Hoje ele tern uma empresa que se dedica a musica paraeventos, mas nem por isso deixou de ser urn grande rmisico. Na verdade,continua sendo urn dos instrumentistas com quem eu mais gosto detocar. E 0 primeiro nome que me ocorre quando preciso de urn cravistano Brasil; eu 0chamo de "sombra', pois nao importa quao fantasioso e 0meu rubato, ele consegue sempre 0seguir com perfeicao. Isso vem,evi-dentemente, da pratica diaria em restaurantes. Poucos de voces devemsaber que pianistas legendarios como Gyorgy Cziffra, Tamas Vasary eKrystian Zimerman trabalharam como pianistas de bar. Zimerman e pro-vavelmente a urn dos musicos mais soberbos a que ja tive 0privilegio deassistir. Uma vez eu0vi afirmar, numa entrevista, que e mais complicadoprojetar sua musica para a mesa n= 18 do que para urn publico de duasmil pessoas que veio ao teatro exclusivamente para assisti-lo,

    Lembrem-se disso antes de tratar com condescendencia os bons musicosque trabalham em eventos, em bares ou em igrejas. E nao so eles. Raros saoos violonistas que nunea se enveredaram pela musica popular ou que naoextraem sua subsistencia do ensino. Pianistas e organistas tern uma gamamais diversificada de alternativas. AMm da 6bvia demanda de bares, restau-rantes, saguoes de hotels e de clubes ha consideravel procurapor acompa-

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    nhadores de aulas de canto, de ensaios corais e co-repetidores, alern deaulas de danca e ginastica, Cada uma dessas atividades exige uma formacaodiferenciada e, ate mesmo, urn talento bastante espedfico, portanto mere-cern ser tratadas com respeito, especialmente no que se relaciona ao rigorda remuneracao, No casu do organista, as condicoes de trabalho em igrejasno Brasil sao insatisfat6rias e ate deprimentes, mas no exterior 0organistae uma especie de kappelmeister, ou diretor da atividade musical de suapar6quia. Como muitas igrejas ja se descaracterizaram como centros deculto e praticamente funcionam como pontos turisticos ou salas de concer-to, a posicao do organista concentra poder e e bastante cobicada.

    De qualquer forma, acho que os artistas, em associacao aos promotoresde concertos e eventos, aos agentes artisticos e musicologos, tern de uniresforcos para ampliar cada vez mais as possibilidades de atuacao ao vivo,seja aproveitando 0ramo de eventos, seja0de turismo ou 0ramo crescen-te de cursos para adultos, que sempre envolvem algum grau de Interdisci-plinaridade. Como exemplo de cursos, cito 0 Instituto Goethe e a Casa doSaber, que raramente promovem algum evento de musica classica isoladodo resto de sua programacao. Seja urn ciclo de cinema expressionista, sejaurn seminario sobre Schiller, seja urn curso de hist6ria da gastronomia,artistas e agentes tern de desenvolver uma atitude imaginativa, criando pro-gramas que se mesclem satisfatoriamente a esse tipo de conceito.

    Uma possibilidade de evidente potencial decrescimento 1:10 Brasil e 0 doturismo, especialmente 0turismo cultural. Na Europa, isso ja e rotina. Osexemplos sao inumeros e van desde 0pobrezinho estudante que viaja pelaEuropa nas ferias e paga sua estadia tocando nas pracas ou no metro (comoeu mesmo fiz no meu primeiro verao na Europa!), ate urn festival em quetoquei ha algum tempo na Franca, Orpheus et Bacchus, que parte do con-ceito de integrar musica com gastronomia. Ou seja, os h6spedes passam 0dia visitando asvinicolas da regiao de Bordeaux e terminam 0 dia com urnconcerto, seguido de urn magnifico jan tar executado poralgum chef famo-so. Dificil foi me manter s6brio para os concertos!

    Outro exemplo e 0dos cruzeiros tematicos, Voces devem saber que jaha muito tempo os cruzeiros deixaram de ser somente diversao de luxo, e,depois do filme Titanic, 0 movimento dessa modalidade turistica tripli-cou. Claro que ainda ha uma faixa exclusivissima desse mercado, mashoje, em geral, os cruzeiros atendem a uma faixa bern espedfica da clien-tela. Ha cruzeiros voltados para casais com filhos pequenos, outros volta-dos para apreciadores de gastronomia, outros voltados para pessoas daterceiraidade, outros que sao verdadeiros spas ou raves flutuantes. Variasempresas de cruzeiros ja se especializam em itineraries de musica classica,

    Claro que ha asviagens musicais peIoReno ou pelo Danubio, mas para mui-tos passageiros 0 itinerario nem e relevante; elesbuscam uma boa programa-yao musical. Jatoquei em alguns desses; e uma atividade divertida e considera-velmente rentavel, e0que mais me impressionou e0numeroso pessoal que semovimenta para a realizacao de uma programacao consistente. Num dessescruzeiros, viajamos pelo Amazonas, e a programacao musical culminou numanoite de gala no Teatro Amazonas, em Manaus. Varies astros do CoventGarden e da English Natinal Opera foram convidados e todos concordaramque cantar em Manaus era urn sonho que setomara realidade. Voces ficariamsurpresos em ver que alguns dos maiores nomes da 6pera e da musica decamara tocam com frequencia em cruzeiros musicais, aliando trabalho a ferias,

    Nesses casos, afortunadamente, nossa atuacao e igual a de urn concertonormal dentro de urn teatro, mas num navio de mais de mil passageiros hauma enorme variedade de demanda por musicos, desde aqueles que can-tam musicais nos night clubs ate os pianistas de bar, afinadores de piano etecnicos de som. A programacao musical de urn cruzeiro, que envolve acontratacao de musicos, organizacao do calendario de concertos e deensaios e toda a logistica de apresentacao, ocupa, tranquilamente, variaspessoas em regime integral por varies meses, e ha empresas de agencia-mento artistico que fazem dos cruzeiros 0seu ramo mais rentavel,Ainda nao chegou ao meu conhecimento urn roteiro similar de umacompanhia brasileira, assim como nao vejo roteiros turisticos das cidadeshist6ricas, ou do Rio de Janeiro, ou dos hoteis-fazenda, que incluam even-tos de rnusica classica, para nao mencionar 0turismo especifico de festivaisde musica classica, Que eu saiba, somente 0 Festival de Campos do Iordaoparece criar urn movimento turistico significativo; talvez 0 festival de Pocosde Caldas tambem, mas 0 potencial turfstico de outros festivais em outraspartes do Brasil parece-rne sub-explorado.

    Ate esse ponto tratei das possibilidades que exigem exclusivamente umaformacao como instrumentista, e, com menor enfase, como cantor.Vivemos, entretanto, em urn momenta em que a interdisciplinaridade e atonica, e isso se reflete na atividade musical, especialmente ap6s a SegundaGuerra, quando houve uma explosao da cultura demassa. A partir dos anos1950, as possibilidades de envolvimento com producao, suporte e divulga-yao de musica nas suas mais variadas facetas tern lidado com camadas deinformacao dispares e superpostas, e com ramos de atividade que podematender desde a urn circulo minuscule de iniciados, ate a bilhoes de pessoasem escala global; algo que nao havia acontecido ate entao,

    Lernbro-rne de uma alunade violao que passou por uma fase de ansieda-de ao final de seus estudos, pois, alem de violonista, trabalhava em teatro.

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    Seus professores queriam qut ela abandonasse 0 teatro para se dedicar inte-gralmente ao violao e a umacarreira academics. No meu entender essa ati-tude era incongruente, considerando-se 0 tempo que a carreira academicaconsome. Essa dedicacao integral inviabilizaria a sua atuacao no teatro.Entao eu the disse: "Se voce tern duas paix6es na sua vida, por que diabosvai seconsumir com uma so?".Minha resposta deixou-a estupefata, pois erauma possibilidade que nunca havia considerado, mas ao mesmotempo ali-viada. Fico muito contente de ela ter-se desenvolvido em ambas asdirecoes,pois hoje ela se concentra em musica contemporanea e realiza urn trabalhobastante original de musica cenica,

    Este, na verdade, e urn exemplo tolo, mas evidencia 0fato de que e pos-sivel aliar a musica a qualquer outro ramo de atividade, e justamente 0queexige fundamento solido para qualquer area do conhecimento e0ensino.

    Meu primeiro conselho e: separa voce a pratica de ensino soa como urncastigo, nao lecione! Por favor, bus que uma outra atividade que the sejamais rentavel e prazerosa. Tenho grandes amigos que estudaram na RoyalAcademy of Musice que hoje trabalham como negociantes de carros, advo-gados, editores de livros ou de rmisica, donos de loja de instrumentos ou deantiguidades, assistentes de astros de rock, etc. Estao profissionalmentesatisfeitos, mantern uma carreira consideravel como interpretes e nao dei-xam de contar com 0respeito de seus colegas musicos. A pior coisa que urnprofessor pode passar para seu aluno e a falta ,de entusiasmo pela arte. 0aluno tern de desabrochar na certeza de que trabalhar com musica e a coisamais alegre, bonita e desejavel do mundo. Se voce nao se sentena posicaode passar esse sentimento para seu aluno, por favor, nao trabalhe com edu-cacao, Na verdade, voce estara prestando urn desservico a profissao, a artee a sociedade como urn todo.

    Hi doispreconceitos correntes no Brasil. Urn deles e 0 de que 0 ensino euma profissaornais "nobre" que, digamos, a do negociante de instrumen-tos. 0 outro e de que 0 ensino universitario naturalmente condecora 0 seupraticante, que automaticamente aprende a encarar seus colegas professo-res como se fossem reles comerciantes. Sao duas facetas do bacharelismo.Muitas vezes 0ensino particular pode Ser mais lucrativo e educacional-mente relevante do que 0 ensino universitario. E urn filao, certamente, tra-tado de forma pouco imaginativa e que,hoje, se estende nao so as aulasindividuais de instrumento, como tambern as aulas de apreciacao musical,musicalizacao, formacao te6rica e como suporte de urn sem-numero deterapias ocupacionais para idosos, criancas, deficientes fisicos eexcluidossociais. Todas essas areas demandam urn preparo pessoal cuidadoso. Queeu saiba, poucos cursos universitarios no pais dao muita atencao a elas.112

    Pode ser na escola onde voce da aulas, nas unidades do SESC ou SENAC,em teatros de bairro, nas varias ONGs e em centros culturais da periferia,ou mesmo no seu condominio, Procure meios de levar as pessoas 0supre-mo bern de ter uma vida amparada pela presenya da musica,

    Se esse tipo de espirito empreendedor for dirigido a area de musicaliza-yaOe entretenimento infantil, 0 campo a ser explorado e infinito e extre-mamente gratificante. Tenho uma filha de urn ana e meio e, em comum aoutros pais e maes de nosso bairro, nao tenho pressa em manda-la para aescolinha. Certa mae achou que seria, entao, uma boa ideia juntar algumascriancas que moram pr6ximas e contratar uma professora de musicaliza-yaO infantil. Esta "aula" poderia ser na area comum de urn predio oumesmo na sala de alguma casa. Ate 0momento, encontramos urn proble-ma: e dificilimo encontrar uma professora qualificada que esteja disposta adar aulas em domicilio.

    Nao preciso dizer que 0 ensino em domicilio, seja de piano ou de qual-quer outra coisa, e muito mais rentavel, Uma escola especializada em musi-calizacao de criancas pequenaspoderiaespalhar essa atividade pelos bair-ros de classe media das grandes capitais brasileiras. Ha exemplos concretosdisso. Eu tive a sorte de ter uma grande professora de musicalizacao infan-til, Josette Feres, em Iundiai, a cidade onde cresci. 0 trabalho que ela fez efaz naquela cidade e comovente. Duas de suas fi1has moramno exterior eambas acabaram carregando a vocacao da musicalizacao infantil no san-gue. Agora elas trabalham com criancas de menos de dois anos de idade,uma delas na Franca, outra nos EUA - paises de pouca tradicao em musi-calizacao com bebes.

    De forma alguma pretendo dissuadir os verdadeiros musicologos a sededicarem a musicologia, urn ramo do conhecimento tao essencial e que-sonos ultimos vinte anos tern se desenvolvido de forma consistente no Brasil.Para estes, a universidade e 0caminho mais adequado. Mas gostaria defazer dois pedidos. Primeiro, nao percam 0ponto de contato com os inter-pretes. Eu, como interprete, nao tenho como dominar todas as areas deconhecimento dentro de urn repertorio que abrange 500 anos de musica,Meus melhores amigos sao os musicologos, que podem me orientar sobrecomo encurtar caminhos e chegar ao fragmento de conhecimento queminha interpretacao precisa. Segundo ponto: nao inflijam sua carreira aca-demica sobre seus alunos. Se sua tese de doutoramento discorre sobre urnassuntomuito especifico e circunscrito, nao ha nenhuma razao para gastarmetade de seu curso de Analise ou de Historia da Miisica com esse assun-to alem de sua vaidade e preguica, Importem-se com seusalunos mais doque com sua carreira academica,

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    IPara nao estender demasiado a questao da educacao musical, s6 gosta-

    ria de dizer que, como em qualquer atividade artistica, ela tern de ser tra-tada com criatividade e usada para preencher lacunas na educacao ordina-ria das pessoas. Nao importa qual seja sua especialidade, se e 0 ensino deurn instrumento oude canto, se e musicalizacao, se e a educacao de adul-tos, se e a musica como complemento terapeutico ou como trabalho de re-integracao social, orgulhem-se disso e tentem encontrar espayos insuspei-tos para defender a nossa "causa" e, por tabela, aumentar sua rentabilida-de como pro fissional de.musica.

    Acho que esse amor-proprio e a certeza de se realizar urn trabalho neces-sario e valoroso e 0 que deve acompanhar 0 musico que envereda peloscaminhos da interdisciplinaridade. Ja que discorri 0 bastante sobre oscaminhos 6bvios do solista, do musico de orquestra e do professor, queroagora falar urn pouco sobre 0que e possivel fazer com musica quando elacombina com alguma outra especialidade.

    Imagino que muitos de voces estejam fortemente ligados a alguma igre-ja, seja cat61ica, protestante, judaica ou qualquer outra. As novas denomi-nacoes protestantes sao, hoje, as que mais crescem no Brasil. Muitas delastern musica nos seus cultos e eventos; a qualidade, na maioria das vezes,tern ainda urn longo caminho a percorrer, mas nao sepode negar que a par-ticularidade desses cultos tern estimulado urn numero muito grande depessoas a se dedicar a musica,o diretor do Departamento de Musica da USp, em Ribeirao Preto, chamouminha atencao para 0fato de que metade dos alunos daquele curso vern dasigrejas evangelicas. Fiquei muito contente ao saber que ele pretende aumen-tar a enfase nos estudos de musica sacra. Temos de perceber que 0 ambientepara que a pratica musical floresca nessas comunidades ja e nutritivo. Os cul-tos requerem musica, e as criancas ja comeyam a trabalhar com musicamovidas por uma conviccao religiosa. E uma situacao ideal para que sepossaalmejar 0 crescimento da qualidade, variedade e complexidade vinda da pra-tica musical religiosa. Claro que isso nao e valido somente para. os musicosprotestantes; a musica na Igreja Cat6lica, em particular, varia dramaticamen-te de uma comunidade para a outra, e urn projeto de reformulacao adquireuma.dimensao especial quando isso parte de urn membro da comunidade, enao s6 de uma autoridade eclesiastica, Faz-se necessario, portanto, que seinvista numa formacao especifica, que envolva 0 estudo de teologiae deslo-que a enfase para 0estudo da musica sacra e sua hist6ria, aliado a uma pra-tica pedag6gica. Diga-se de passagem, que isto nao e valido somente para amusica; a arquitetura e 0urbanismo ainda nao deram conta dasnecessida-des impostas pelo crescimento assustador da dimensao dos temples.

    Urn adolescente que anuncia a seus pais que pretende prestar Urn vesti-bular para 0 curso de rnusica muitas vezes enfrenta oposicao ferrenha. Paisque nao tern familiaridade com a rmisica, como ja disse, costumam criaruma imagem totalmente fantasiosa e imprecisa do campo de acao profis-sional para urn musico. Esta oposicao costuma ter 0 efeito contrario aodesejado, fortalecendo, ao inves de enfraquecer a vocacao dos filhos, quetalvez nem fosse tao forte assim, para inicio de conversa. Essa teimosia dasduas partes, a meu ver, tern urn efeito adverso. Por isso me dirijo aos estu-dantes: ha uma chance de que seus pais estejam certos. Para a pessoa de 17ou 18 anos que ainda nao tern urn destino tracado como instrumentista,pode ser bastante vantajoso - do ponto de vista artistico e pessoal- inves-tir em outra profissao, sem abandonar a musica, Comentarei brevementealgumas possibilidades.

    Quando comecei minha carreira, la pelos idos de 1982 ou 83, nao haviaInternet, nem fax. Meu material de divulgacao normalmente nao passavade uma fita cassette, urn par de opcoes de fotos e urn curriculum datilo-grafado. Como nunca tive orientacao alguma sobre como administrarminha carreira, a medida que 0 tempo passava e eu comecava a abriroutros espayos, fui aprendendo que quanta menos conhecido se e mais epreciso caprichar na apresentacao, Cheguei a passar pela fase do CD-demo e pelo impresso de divulgacao acompanhado de urn pacote de cita-coes da imprensa. Hoje 0material de divulgacao de urn jovem concertis-ta ou grupo de camara vai forcosamente incluir, alem do Cd de audio,clipping de imprensa e uma bela variedade de fotos em varies formatosimpressos e digitais, urn Cd multimidia, urn website e possivelmente urnblog. Bern, e dai?

    E dai que acabo de evidenciar a necessidade de varios profissionais quefariam muito melhor seu trabalho se tivessem alguma formacao em musi-ca, e tambern de alguns musicos que melhor desempenhariam seu trabalhose tivessem uma perspectiva urn pouco mais ampla que as quatro paredesda sala de aulas. Afinal, seurn estudante nao pode contar com seus profes-sores para ter uma orientacao sobre como comeyar sua carreira, a quempodera recorrer?

    Musicos de todas as coloracoes precisam de fot6grafos. Muitos dos foro-grafos mais conhecidos da cena de musica popular na verdade sao mem-bros de bandas, mas eu nao conheco, no Brasil, nenhum fot6grafo especia-Iizado em rmisica classica; talvez seja esta uma das razoes de eu me depa-rar com urn material antiquado com tanta frequencia. Nem todo musicosabe como redigir seu material de divulgacao ou fazer 0seu clipping deimprensa, nem tern urn agente que possa ajuda-lo nessa tarefa. Ambas as

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    atividades poderiam tranqiiilamente tornar-se uma atividade extra paraalguem que trabalhe como professor ou musico free-lancer.

    A relacaoda musica com a computacao e urn assunto extenso, complexoe fascinante, mas yOU me deter no que nos interessa neste momento. Claroque 0 computador sempre sera urn grande auxiliar dos compositores earranjadores, seja como parte do processodecriacao, seja produzindo par-tituras, grava~6es ou ajudando a planejar seu.calendario de aulas. Hoje,entretanto, a presenya na Internet e uma necessidade premente, que assoladesde omais conhecido dos Tres Tenores ate 0guri que vai dar seu primei-ro concerto. Hi poucos web-designers que tern alguma nocao de como deveser a apresentacao de ummusico classico: 0resultado normalmente cai emdois extremos: ou e espalhafatoso e poluido, ou e sisudo demais e carentede inforrnacao. Com os recursos de multimidia, a apresentacao de urnartista, tanto na Internet quanto em material impresso ou em CD, podecriar mais interesse e aliar a informacao indispensavel (curriculum, calen-dario, discografia, etc.) a urn conceito que ja erie uma imagem mais nitidade quem e e como pensa 0 artista, associando material sonoro as imagense texto e anexando material mais "recreative", por assim dizer. A presencade urn blog normalmente cai nesta categoria recreativa.

    Mencionei a necessidade de uma gravacao, Quando comecei minha car-reira ha quase 25 anos, produzir urn LP era um bicho-de-sete-cabecas, urnpasso enorme, reservado a musicos ja estabelecidos, e proporcionalmentemuito mais caro que produzir urn CD. Artistas em inicio de carreira faziamo que podiam, gravando concertos em fita cassette para servir como mate-rial de divulgacao.

    Hoje, com 0barateamento e a sensivel melhora de qualidade proporcio-nada pela gravacao digital, a demanda por gravacoes de musica classicaaumentou exponencialmente. Nao e so 0 musico consagrado que lancarasua gravacao comercialmente quem precisa de boas condicoes para grava-~ao. 0 estudante que se inscreve num programa de boisas de estudo, 0jovem quase anonimo que busca concertos em teatros de bairro, 0 amadorque quer ter urnborn registro de sua atividade, todos elesprecisam dos ser-vices do tecnico, ou "engenheiro" de som e do produtor.

    Claro que existe muitas nuances nessas atividades relacionadas a produ-~ao de grava~6es. Tecnicos de estudio progridem naturalmente par animarfestinhas em que gravam os colegas, e dai podem passar ao periodo deaprendizado num estudio e finalmente ao trabalho de "engenheiro de som",propriamente dito, que e 0 de avaliar ascondicoes acusticas do ambiente degravacaoe encontrar a disposicao do equipamento que tira melhor provei-to dessas condicoes em favor da visao musical do artista, Oprodutor cui-u6

    daria praticamente de todo 0resto - desde garantir que a temperatura doestudio seja a adequada para a gravacao, ate supervisionar a afinacao dosinstrumentos, mapear os takes de gravacao e dirigir 0miisico para que eleobtenha 0melhor resultado com 0minimo dedesgaste. Nao sei qual e asituacao na esfera da rmisica popular; imagino que produtores e tecnicosexistam desde os mais qualificados e artisticamente sofisticados, ate verda-deiros "acougueiros" Mas no ambito da rmisica classica, a situacao e desa-lentadora. Rarissimas vezes0engenheiro de som tern alguma instrucao for-mal em musica ou sabe acompanhar uma partitura, ou pode entender anecessidade de se usaracustica natural em alguns casos. Ainda mais raro eencontrar urn produtor que seja urn born musico, capaz de ler a partituracom tanta inteligencia quanta os musicos que estao gravando e cooperar nabusca de melhor equilibrio sonoro e de uma experiencia estetica plena.

    Quase todos os meus CDs solo foram gravados com 0 mesmo produ-tor, que tarnbem faz as vezes de engenheiro de som, r .a Inglaterra - JohnTaylor. John chegou a tocar violao profissionalmente e se formou emFisica na Universidade de Oxford. Em urn dado momenta ele juntou suaexperiencia nas duas areas e produziu urn livro que trata da producao desom no violao, do ponto de vista de urn fisico. Como ele tambem tinha agravacao como um hobby, os colegas cornecaram a pedir que ele os gra-vasse informalmente e isso acabou se tornando sua principal atividade.Hoje ele e 0 produtor mais requisitado para as gravacoes de violao oucravo, e trabalha como free-lancer para dezenas de companhias, A cadagravacao fico mais admirado com a qualidade de seu trabalho. Ele nao soe capaz de entender - nao so de ler - uma partitura melhor que a maio-ria dos musicos que grava, mas tern plena nocao do que esta sepassandoem cada take, onde esta a imperfeicao e 0 que precisa ser repetido, e con-segue transmitir isso com tal tranqiiilidade, que 0art is ta se sente amp a-rado. Ele tern uma habilidade unica de entender 0 que 0 artista esta pro-curando expressar e, quando isso nao fica claro na gravacao, ele sabecomo explicar 0queesta errado e extrair uma interpretacao mais vividae intensa. Felizmente conheco alguns produtores no Brasil que poderiamatingir 0 mesmo patamar, desde que tivessem mais pratica e urn treina-mento especifico, Mas eles ainda sao minoria. 0 setor precisa investir dra-maticamente na formacao desse profissional,

    'Como minha experiencia com gravacao e maior na Inglaterra do que noBrasil',e inevitavel que eu faca essa comparacao, La 0treinamento envolveexperiencias nos estudios e na radio. A BBC mantem uma equipe de milha-res de pessoas espalhadas pelo pais; a Classic PM e asoutras emissoras de TVdevem manter, no mtnimo, outro tanto. Urn aspirante nao qualificadosim-

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    plesmente nao entrano sistema, e aquele que, alem de qualificado, e inspi-rado, tern toda uma carreira pela frente. A producao de filmes de musicaclassica e emblematica. Tive 0prazer de conhecer Humphrey Burton, 0pro-dutor detodos os filmes dos ultimos anos da carreira de Leonard Bernsteine uma boa parte dos de Herbert von Karajan. Ele teve ampla experienciacomo regente e como administrador quando era jovem, e em urn dadomomenta seespecializou na producao de filmes sobre musica, Talvezele naotivesse muito futuro como regente ou como roteirista, mas seu conhecimen-to musical foi mais que suficiente para criar urn conceito totalmente novode filmagern de concertos. Foi ele quem popularizou a gravacao ao vivoentremeada por takes suplementares dos closes dos musicos, S6 quem ternexperiencia com orquestras sabe que e quase impossivel para os rmisicosmanterem-se em linha, sem se coyar e sem soprar aschaves de seus instru-mentos num concerto ao vivo. Ponto para a interdisciplinaridade.o universo da mtisica classica no Brasil esta crescendo, senao de formavertiginosa, ao menos de maneira signif icativa. Eu ja sinto uma agudanecessidade de melhora na formacao do pessoal especializado em sono-rizacao e gravacao de audio e video. Sonorizacao e urn assunto correlatoe, para mim, que toco violao, de suma importancia, Eu preciso de ampli-ficacao, como todo musico, quando tenho de tocar ao ar livre; mas aocontrario da maioria, tambern preciso de amplificacao em teatros gran-des e de acustica inadequada, ou quando atuo como solista de orquestra.Todas essas situacoes podem se tornar pesadelos, quando tenho a rnasina de trabalhar com pessoal semiqualificado. Lembro-me de urn con-certo em que toquei com orquestra em Minas Gerais: Como sempre,conversei com 0 tecnico antes do ensaio com a orquestra e passei 0 som.o equipamento e 0 posicionamento eram inadequados; tentei contornaro problema com a maior paciencia, Uma vez que chegamos a urn resul-tado aceitavel, pedi que ele marcasse 0posicionamento dos microfones ea regulagem da mesa de som. Ele respondeu, girando os bot6es: "po ficartranquilo, tenho 20 anos de experiencia animando todos os bailes daregiao" 0 ensaio foi razoavel. Na noite do concerto, 0 energumeno naoparava de mexer nos botoes, Sempre que eu tocava piano, ele aumentavao volume. Quando eu tocava forte, ele reduzia. Ele conseguiu arruinar 0concerto com urn dedinho.

    Esse e urn exemplo que acontece com frequencia bern maior que 0desejavel . Os teatros brasileiros - inclusive os grandes - ainda contamcom animadores de festinha para fazer esse trabalho, sendo que 0 queprecisamos e de urn misto de cientista com artista. Pelizmente.zhoje, aomenos em Sao Paulo e no Rio, posso contar com colaboradores - ambos

    musicos e formados em eletronica - para esses momentos tao importan-tes. Para aqueles que tern experiencia como rmisicos, mas que ao mesmotempo sentem inclinacao por uma carreira relacionada a tecnologia, vejoessa atividade com urn campo de enormes possibilidades, inclusive por-que bons musicos sao cada vez mais necessaries no ambito da musicapopular, da musica comercial e da musica para radio e TV. Por mais pre-visivel e banal que possa ser a producao de musica comercial, nao haespayo para amadorismo. 0 produto tern de ser perfeito e lustroso.Nossa te1edramaturgia, tao admirada em todo 0mundo, tern urn pontofraco, que e a enorme inconsistencia daqualidade das tri lhas sonoras. 0mesmo e valido para 0 cinema, que costuma confiar a trilha sonora aocompositor de rock "intelectualizado" de plantao. Nossos soberbos cur-sos de bacharelado em composicao ainda nao atentaram que composi-cao nao e somente uma postura estetica, e tambern uma profissao. Essasposicoes sao preenchidas por aqueles que nao sao qualificados, mas estao"afinados" com uma certa estetica, porque quem e diplomado nao e taoqualificado para exercer aquela funcao. Acho que deveriamos deixar deentregar 0Duro aos bandidos e cada vez mais admitir que urn composi-tor tambern deveria ser capaz de escrever urn born jingle ou urn temaromantico de novela.Urn ramo essencial de nossa atividade, que e visto de forma totalmenteficcional e tortuosa no Brasil, e 0de administracao, agenciamento e promo-yao de eventos. Nossa inclinacao novelesca pinta 0 agente artistico comouma raposa que e capazde fazer ou desfazer carreiras, ou como urn fact6-tum cuja especialidade e resolver todas as agruras da vida real para seuartista, enquanto ele toca seu piano junto aos vasinhos de violetas. 0 pro-motor de eventos e visto como urn tubarao fora d'agua, sempre pronto ainventar baboseiras superfaturadas e circular no jet-set sem dependerdeseu talento. Acredito que existam muitos desses "profissionais" na esfera damusica popular mais comercial, e nada poderia ser rnais distante da verda-de (ao menos na maio ria das vezes) na esfera da musica classica,

    Na esfera da musica popular e dos shows, 0 agente e 0promotor normal-mente fazem urn percurso que comeca como roadie (0 pau-para-toda-obraque acompanha turnes de cantores ou bandas, carregando instrumentos ouservindo cafezinho) ou na administracao de urn centro cultural ou algo dogenero, posteriormente evolui para a posicao de assistente pessoal e even-tualmente cria uma companhia pr6pria, muitas vezes para atender exclusi-vamente a urn ou dois art istas de alta demanda. Nao e raro que seja urnparente do art ista (caso de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Ivete Sangalo,etc.). Muitas vezes urn agente de alguma banda aumenta sua companhia

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    para que setorneuma produtora de shows, para tirar partido da experien-cia e dos contatos ja consolidados.

    No universo da musica classica nao e muito diferente - a diferenca e deescala. A maioria dos agentes de rmisica classica no Brasil tambem come-~ou como assistente na producao de eventos de outrem, e se especializouquase que acidentalmente. Outros comecaram com pequenas companhiaspara administrar 0proprio negocio e acabaram por perceber que essa ati-vidade e incrivelmente gratificante, ate mais que a de musico,

    Grosso modo, podemos.dividir 0 setor em quatro ramos: 0 de agencia-mento de artistas, 0 de promocao de eventos, 0de relacoes publicae e asses-soria de imprensa e0de adrninistracao de organismos (teatros, centros cul-turais, orquestras, festivais, etc.), que podem seintercambiar. No ramo deagenciamento, normalmente 0 agente e uma especie de secretario especia-lizado; 0empresario tende a cuidar de todos osaspectos da carreira de seusartistas. Desde 0mais humilde secretario ate os diretores de companhiasdegrande porte, a qualificacao que se exige e a mesma: a de urn administra-dor especializado em arte.

    No Brasil, que eu saiba, nao existe nenhum curso especialmente voltadopara a administracao de empreendimentos artisticos, Creio que 0 caminhomais natural e que 0 aspirante segradue em algum curso ligado a adminis-tracao ou comercio, faca uma extensao - por exemplo, urn mestrado- emmusica, e passe por urn periodo de aprendizado.ern uma ou "arias compa-nhias de razoes e portes distintos. Desde os primeiros passos, por exemplo- uma secretaria junior - e absolutamente imprescindivel 0manuseiorazoavel de urn computador e 0 conhecimento mais que passageiro da ati-vidade musicaL Quem esta nesse ramo tern de saber soletrar Tchaikovsky,tern de saber que urn cantor nao da entrevistas uma hora antes de urn con-certo e que Allegro nao enorne de musica, e urn milhao de outros detalhesque fazem parte do metier do musico. Ingles fluente e obrigatorio, e saberquatro ou cinco linguas pode abrir muitas portas. Uma certa diploma cianatural e urn entusiasmo genuino pelo processo que antecede 0 espetaculosepara quem e competente de quem e excelente.

    Essa industria, no Brasil, ate recentemente era de dimensoes liliputianasetao concentrada na mao de estrangeiros que secontam nos dedos ospro-fissionais do ramo que atendem a todos estes quesitos. Na Europa, nos EUAe em alguns paises do Oriente, entretanto, e uma area extraordinariamentecompetitiva. Quem hoje e diretor de urn conservatorio pode, gentro depoucos anos, passar por varias posicoes administrativas ou criativas emorquestras, centros culturais, festivais, orgaos governamentais, co~panhiasdiscograficas e assim por diante. Aqui no Brasil, quando algum organismo120

    que trabalha com urn grau elevado de profissionalismo - uma orquestra ouurn festival de verao, por exemplo - perde urn born administrador, e urndeus-nos-acuda Ha poucos administradores contabeis que entendem quenao e possivel cancelar a contratacao de uma tuba extra numa opera deWagner para controlar despesas.

    Alem da falta generalizada de pessoal qualificado, percebo ao menos tresvertentes dessa industria que precisam de uma urgente renovacao. Umadelas e a producao de musica popular, que, como eu disse, muitas vezes caina mao de parentes ou de tietes graduados, ou de publicitarios de olho emlucro rapido. Esta e uma das causas mais flagrantes da imbecil izacao denossa musica popular e da fronteira tenue que ha entre 0 sucesso e a con-travencao. Uma industria que movimenta tantos recursos e mexe com 0imaginario de tantos milhoes de pessoas nao pode permanecer amerce dafal ta de estetica, por muito tempo. Isto e prejudicial para nos - musicos, epara 0 publico.

    A segunda vertente e 0enorme crescimento da demanda por musicaclassica no interior do pais que tern sido mal atendida. A vasta maioria demeus concertos no Brasil acontece em meia duzia de capitais , mas cadavez que toco em algum lugar men os obvio fico entusiasmado com a sededo publico. Algumas cidades como Uberlandia ou Iundiai acabaram sebeneficiando da pericia de figuras isoladas e agora tern uma programacaoque faz inveja para ascidades bern maiores. No entanto, e dificil imaginarqual e a vida musical de uma cidade como Cuiaba, Presidente Prudenteou Feira de Santana. Agentes e produtores tendem a trabalhar em conjun-to ease restringir as cidades de maior tradicao musical - Rio, Sao Paulo,Porto Alegre, Belo Horizonte. Eu sinto que estamos em urn momentapropicio para uma ampliacao das fronteiras desse network. Seria urninvestimento consideravel de recursos humanos, mas e preciso que asnovas empresas de producao e agenciamento conhecam e cultivem con-tatos em toda cidade do pais com mais de 100 mil habitantes e 0minimode presenya culturaL Nisso, como em tantas outras areas culturais, 0Brasil ainda se encaixa no estereotipo do gigante adormecido.Ha setentaanos, 0 mesmo poderia ser dito dos EUA, que nao tinham cultura musi-cal significativa fora das grandes cidades costeiras. Esse networking foifeito e hoje e possivel para urn artista, mesmo emergente, percorrer cen-tenas de cidades. Na verdade, e 0 unico pais que oferece a chance de umacarreira nacional para urn solista de musica classics.

    Outra ausencia flagrante e 0agenciamento de pequeno porte, para artis-tas emergentes. Artistas em alta demanda - tim Arnaldo Cohen, urnFernando Portari - tern urn calendario bastante previsivel para suas ativida-

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    des no Brasil. Jasao conhecidos e a demanda e constante; elespoderiam ateprescindir dos services de urn agente e manter somente uma secretaria, Masha uma faixa enorme de artistas menos conhecidos, especialmente os maisjovens, que simplesmente nao dao conta de administrar a propria carreira,mesmo que ela selimite a concertos em teatros pequenos, ou em pequenascidades. Normalmente 0 artista acaba fazendo isso por conta propria, masnem sempre ele tem tempo ou inclinacao para faze-Io com eficiencia, Poroutro lado, ha quem queira adquirir experiencia com agenciamento artisti-co, mas ainda e estudante, ou nao sabe por onde comeyar. Este casamentode carencias pode render frutos; claro que nao seria uma fonte segura derenda para nenhuma das partes, mas aumentaria consideravelmente 0movimento. Eu mesmo me servi de urn expediente parecido por algumtempo: uma aluna fazia as vezes de secretaria, em troca de aulas gratis.

    Se0 talento para musica cria tantos desdobramentos quando secasacoma tecnologia ou com a administracao, ainda mais quando vem associado aurn pendor pelas letras e livros. Desde 0 livro como objeto. As colecoes demusica - partituras, gravacoes e material museo16gico - tern necessidadesespeciais. 0pais nao se notabiliza pela excelencia de suas colecoes, mas vejouma demanda consideravel em varies setores: os maiores museus, os arqui-vos de institutos de pesquisa e universidades, os arquivos das novas funda-coes e centros culturais pertencentes a bancos e outros part iculares, e osarquivos de igrejas, especialmente das cidades historicas e

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    espaco para que se tenha ao rhenos uma revista de musica classica mensalcom distribuicao nacional.

    Enquanto isso nao acontece, e necessario que se erie alternativas para apresenya de musica classica nos jornais. A critica de musica passa por umaviolenta crise existencial e isso seria assunto para outra palestra.Para tor-nar sucinto urn problema muito grande, a critica jornalistica tende a cairnos extremos do despreparo do jornalismo de reportagem e no bacharelis-mo deslumbrado da critica. Cabe a proxima geracao uma profunda revi-sao de qual e a funcao da critica musical, e como sepode aumentar 0espa-yoe a qualidade do texto e da substancia da critica musical nos jornais. Haanos nao se ve uma critica minimamente consequente de alguma obra decompositor brasileiro; obras importantes de nossos maiores compositoressao estreadas e, a julgar por uma passada de olhos pelos jornais, e como senao existissem. Enquanto isso sedesdobram em minucias sobre a mais"nova" interpretacao da 2" Sinfonia de Brahms, cavalo de batalha pela ene-sima vez de alguma orquestra visitante. Esse tipo dejornalismo e urn des-service imenso a nossa profissao e ao ambiente cultural do pais. Seeste e 0estado nos principais jornais, tenho calafrios ao imaginar 0 que acontecelonge de Sao Paulo, Rio e Porto Alegre. E necessario tambern que se saibaque a profissao jornalistica e bastante corporativista e,hoje, 0diploma dejornalismo e obrigatorio.

    A editoracao de partituras no Brasil, hoje, .assemelha-se urn pouco aextracao de madeira: e urn ambiente quase criminoso, obscuro e terrivel-mente terceiro-rnundista. A total falta de renovacao das editoras dos anos1950 para ca e a apoteose do xerox simplesmente destruiram a industrianacional de edicao de musica, Recentes tentativas de abertura de novasempresas feneceram ainda no broto, devido aadocao de uma linha edito-rial inviavel. Pode ser que eu esteja errado, mas acredito que ainda ha 0quese fazer neste setor. Nao faz muito tempo, recebi convites de editoras arne-ricanas e alernas para editarseries de musica brasileira - musica hist6rica ecompositores atuais. Claro que esta e uma particularidade do mundo doviolao, mas chama a atencao para 0fato de que nao ha ainda edicoes con-fiaveis de Ernesto Nazareth ou Pattapio Silva.Garoto e publicado nos EUA,Baden Powell (mal) publicado ria Alemanha, mas ainda nao ha uma edicaointegral de Dilermando Reis ou Pixinguinha, por exemplo. Esse tipo deproduto, portanto, tem uma demanda no exterior e pode abrir espayo parauma industria nacional de publicacao de compositores atuais. Como essaarea esta passando por uma revolucao tecnologica, especialmente no quetange a distribuicao, pode, dentro de urn curtoprazo, setransforrnar numaalternativa viavel para os music6Iogos, que podem produzir suas proprias

    edicoes e vender seu downloadpela Internet. Ha varies exemplos de edito-ras que funcionam exclusivamente dessa maneira - uma delas, no Uruguai.Em suma,e uma lacuna de mercado que exigira alguem com pleno conhe-cimento de musica e capacidade para pensar sem fronteiras.

    Para aquele que quer trabalhar com musica, mas nao tern afinidade como palco, poucas profissoes podem ser mais gratificantes que a construcao ernanutencao de instrumentos musicais. Alem da formacao em musica,essas atividades requerem urn aprendizado artesanal. 0 pais possui umaproducao significativa de bons violoes, instrumentos de arcoe de percus-sao, mas com a expansao dos projetos sociais com base no ensino de musi-ca, a demanda por tecnicos para construcao e manutencao crescera expo-nencialmente nos proximos anos. Voltarei a este assunto rnais tarde.o que me parece, no entanto, que precisa de um grande chacoalhiio e aproducao industrial de material para musica. 0 pais ainda nao produz cor-das minirnamenteaceitaveis para qualquer instrumento. Asfabricas de ins-trumentos de sopro, de arco e de violoes nao tern como competir com 0trabalho semi-escravo da China; a unica maneira de encontrar um bornespayo e a qualidade. Um outro especialista que falta no cenario nacional eo afinador de pianos; se ha algum investimento que vale a pena para urnjovem recem-formado e uma especializacao nos EUA ou na Alemanha. Ademanda por bons afinadores e imensa e muito mal suprida.

    Duas profissoes bern tradicionais que ainda tern uma ligacao muitotenue com a musica sao a medicina e 0 direito. Uma area que se desenvol-ve rapidamente na medicina e a medicina esportiva. No entanto a medici-na voltada para musicos ainda e pouco disseminada. As varias sindromesde esforco repetitivo, a distonia focal e a ansiedade sao problemas, infeliz-mente, presentes em musicos de todo 0mundo. Algumas orquestras ja con-tam com terapeutas de plantae. Esta e uma bela associacao de duas voca-

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    envolvimento dil' 1 : om a inateria da musica, urn advogado com conheci-mento II nsibili id para lidar com as necessidades de musicos tern urnsignif ntiv mpo de atuacao a sua frente.

    Pin lm ut , a maioria dos especialistas e soci6logos concorda que umah (J 1 f .t 0, d mercado de trabalho nas pr6ximas decadas estara nas ONGs.B rn , aqui mesmo estamos numa ONG, 0 SESe. A tendencia dos governosl' gularern a atividade produtiva e comercial a distancia e delegarem amanutencao de problemas sociais apropria sociedade e visivel. Alem deONGs, como 0projeto Baccarelli, ha uma quantidade imensa de projetossociais desenvolvidos pelas tres esferas do Governo; os que mais rapida-mente vern a mente sao; Projeto Guri e 0Projeto Villalobinhos, mas tenhoconhecimento de projetos brilhantes em lugares tao distantes quanta 0interior do Rio Grande do Norte. Muitos desses projetos tern sido alvo decriticas no que se refere ao conteudo e eficacia da pedagogia e da atuacaosociaL Eu sou obviamente 0 primeiro critico de projetos pedag6gicossuperficiais, mas 0 argumento contrario e irrefutavel: 0 indice de crimina-lidade nas comunidades beneficiadas por esses projetos se reduz a pratica-mente zeroNao ha como argumentar com tal estatistica.

    Eu considero a participacao nesses projetos uma escola para 0musicorecem-formado. Uma escola de participacao social, de pratica pedag6gica ede formacao musical. Acho que 0tempo e a energia serao bern empregadosse, partindo-se de urn projeto que e bern intencionado sob ponto de vistasocial, chegarmos a urn grau mais elevado de eficiencia pedag6gica. Isto sose pode fazer atuando nesses projetos e nunca criticando do lado de fora.De mais a mais, projetos governamentais e ONGs estao longe de cobriruma fracao que seja das demandas de nossa sociedade. Cada profissional demusica tern de desenvolver a sensibilidade para perceber 0 tipo de projetoque pode servir as necessidades das comunidades com que esta envolvido.

    Bern, eu poderia gastar mais algumas horas fazendo conexoes entre asprofiss6es mais estapafurdias e a rnusica. Ate 0 meu agente de viagens,grande conhecedor de musica, con segue organizar melhor meus itinerariespor entender meu ritmo de 'trabalho. Mas muitos de voces devem estar seperguntando - com razao - "tudo muito bonito, mas sera que e possivelganhar a vida com estas atividadesi" A resposta, na maioria das vezes, serianao, ao menos de forma integraL 0 quadromais comum - e, na minha opi-niao, omais saudavel e rico - e 0do musico que gasta sua segunda-feiradando aulas particulares, que faz urn trabalho social na terca, que participade alguma gravacao ou tira 0dia livre para projetos pessoais na quarta, quetoca num musical ou em eventosnas noites de quinta, sexta e ~abado, queda urn curso aos sabados de manha e ainda consegue mantero seu grupo

    de camara e seenvolver com a organizacao de urn curso de ferias nas horaslivres. Sevoce conseguir manter uma vida interior rica e urn padrao de vidarazoavel com tudo isso, meus parabens, voce e tambem urn grande artista.S6 tenho uma ultima recornendacao: em nossa profissao de free-lancer,quem vive pelo rel6gio produz melhor e tern mais tempo livre.

    FABIO ZANON e violonista consagrado, tern se apresentado por toda a Europa,America do Norte e do Sui,Australia e Oriente, e e convidado regular das maioresorquestras e de teatros como 0Royal Festival Hall e Wigmore Hall em Londres,Carnegie Recital Hall em Nova York, Sala Verdi em Milao, Musikhalle emHamburgo, KKR em Lucerna, Sala Tchaikovsky em Moscou e Philharmonie em SaoPetersburgo, alem de todos os maio res teatros do Brasil. Suareputacao internacio-nal consolidou-se em 1996, ap6s sagrar-se vencedor pot unanimidade dos doismaio res concursos internacionais: 0 30 Concurso "Francisco Tarrega" na Espanhaeo 14Concurso da Fundacao Americana de Violao (GFA) nos EUA, urn feito semprecedentes. Em 1997 recebeu 0Prernio Moinho Santista e em 2005 recebeuoPrernio Carlos Gomes de Melhor Solista Instrumental. Radicou-se em Londres apartir de 1990, onde estudou na Royal Academy of Music f' completou sua forma-s:aoem regencia, obtendo 0Mestrado pela Universidade de Londres.

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