fabio mura

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Universidade Federal do Rio de Janeiro MUSEU NACIONAL Programa de Pós-graduação em Antropologia Social Fabio Mura À PROCURA DO “BOM VIVER” Território, tradição de conhecimento e ecologia doméstica entre os Kaiowa Vol. I e II Rio de Janeiro 2006

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  • Universidade Federal do Rio de Janeiro

    MUSEU NACIONAL

    Programa de Ps-graduao em Antropologia Social

    Fabio Mura

    PROCURA DO BOM VIVER

    Territrio, tradio de conhecimento e ecologia domstica entre os

    Kaiowa

    Vol. I e II

    Rio de Janeiro

    2006

  • 2

    Fabio Mura

    PROCURA DO BOM VIVER

    Territrio, tradio de conhecimento e ecologia domstica entre os

    Kaiowa

    Tese de doutorado apresentada

    ao Programa de Ps-graduao

    em Antropologia Social do

    Museu Nacional - U F R J

    Rio de Janeiro

    2006

  • 3

    procura do bom viver: Territrio, tradio de conhecimento e ecologia

    domstica entre os Kaiowa

    Fabio Mura

    Tese submetida ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em

    Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS-MN) da Universidade Federal do Rio

    de Janeiro (UFRJ), como requisito necessrio obteno do grau de Doutor.

    Aprovada por:

    ___________________________________________ Orientador

    Prof. Dr. Joo Pacheco de Oliveira

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Antnio Carlos de Sousa Lima

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira

    ___________________________________________

    Prof. Dr. John Manuel Monteiro

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Fausto

    ___________________________________________

    Dr. Guillermo Wilde

    Rio de Janeiro

    2006

  • 4

    Ficha Catalogrfica

    Mura, Fabio.

    procura do bom viver: territrio, tradio de conhecimento e

    ecologia domstica entre os Kaiowa / Fabio Mura.-- Rio de Janeiro: UFRJ/ MN/

    PPGAS, 2006.

    504 p.: il. Tese Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu

    Nacional PPGAS.

    1. Guarani-Kaiowa.

    2. Territrio, tradio de conhecimento, ecologia domstica.

    3. Tese (Doutorado UFRJ / PPGAS / Museu Nacional). I. Ttulo.

  • 5

    Para Alexandra e Pedro Tiberio,

    com infinito amor.

    Para Rubem, colega e

    companheiro, por ter me apresentado

    aos Guarani, e por essa nossa jornada,

    sempre juntos, pelas trilhas tecidas por

    estes ndios.

    memria de meu companheiro

    Lzaro, de Pirakua, cuja perda

    entristeceu meu corao.

  • 6

    Agradecimentos

    O longo percurso que resultou no presente trabalho viabilizou-se graas a

    auxlios de diversas ordens, os quais venho aqui a reconhecer publicamente.

    A pesquisa, assim como a sua concretizao nesta tese, so em grande parte

    devedoras da dotao que me foi concedida pelo Conselho Nacional de

    Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), atravs de uma bolsa de doutorado,

    auxlio este de extrema valia.

    Minha experincia de dois anos como professor visitante na Universidade

    Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) caracterizou-se como bastante profcua,

    permitindo-me um sistemtico desenvolvimento de etapas de pesquisa e debates com

    colegas e alunos indgenas e no-indgenas. Foi durante este perodo que pude tambm

    desenvolver muitas das reflexes que aqui se consolidam.

    No que diz respeito especificamente ao PPGAS do Museu Nacional, diversas

    so as pessoas que, com sua amizade, estmulo e/ou prstimos, contriburam para o bom

    fluir de meu trabalho. Assim, agradeo inicialmente a meu amigo e orientador,

    professor Joo Pacheco de Oliveira, por ter me deixado expressar livremente minha

    criatividade, sem, contudo, faltar em me apresentar crticas e observaes construtivas,

    que foram valiosssimas para a realizao desta tese.

    Agradeo tambm de modo especial aos professores Antnio Carlos de Sousa

    Lima, Federico Guillermo Neiburg, Moacir Gracindo Soares Palmeira e Carlos Fausto,

    que me acompanharam e me brindaram com vrios aportes, em diversos momentos.

    Dentre as pessoas da secretaria do PPGAS, sem desconsiderar a ateno dos

    demais, apresento minha gratido a Tnia e, mais recentemente, a Elisabete Ferreira,

    me e filha, pela eficincia marcante com que sempre me atenderam e pelas inmeras

    vezes em que quebraram meu galho.

    A Isabel, Cristina e Carla, agradeo muito a ateno prestimosa no atendimento

    na biblioteca.

    No mbito mais ntimo, compartilhei e compartilho de amizades fundamentais,

    com as quais, nas mesas de bares e/ou festas, em encontros acadmicos, em trabalho de

    campo e/ou em reunies profissionais, conversei sobre coisas da vida e debati temas,

  • 7

    textos e autores com grande paixo, algo que foi fundamental para me enriquecer e para

    compreender o nvel e os limites de minhas reflexes. No Rio de Janeiro, lembro

    especialmente de Andrey Cordeiro, Andrea Roca, Dbora Reston, Edmundo Pereira,

    Elizabeth Linhares, Evangelina Mazur, Fernando Rabossi, Guillermo Wilde, Hernn

    Gmez, Laura Zapata, Maria Jos Freire, Mariana Paladino, Renata Valente, Roberto

    Salviani, Rolando Silla, Rubem Thomaz de Almeida e Sergio Chamorro. J em

    Dourados, Mato Grosso do Sul, fiz diversos companheiros: Adilson Crepalde, Antnio

    de Carvalho, Carlos Pacheco, Charles Pessoa, Gleice Barbosa, Jorge Eremites, Levi

    Pereira, Loureno Alves, Marcos Homero Lima, Ramiro Rockenbach, Rosely Stefanes,

    Spensy Pimentel, Vito Comar e Zelick Trajber. A estas pessoas digo: muito obrigado

    por tornarem minha vida mais rica.

    O kaiowa Tonico Benites merecedor de uma ateno particular. Em um

    primeiro momento, como informante, foi de uma preciosidade nica. Depois, como

    colega, debatendo com uma profundidade incomum os temas levantados durante as

    minhas e as suas pesquisas, foi mais precioso ainda. Finalmente, como amigo, com

    quem ao longo de quase quatro anos compartilhei momentos de alegria e de ansiedade,

    em um relacionamento que foi (e vai ainda) bem mais alm dos limites estabelecidos em

    uma dinmica de investigao, humanamente me enriqueceu muito. Tonico: te agradeo

    enormemente.

    Em casa, onde todos se mobilizaram para que esta empresa chegasse a bom fim,

    contra dvidas enormes. Com meu filho, Pedro Tiberio, pela alegria e energia

    fornecidas a cada dia; com minha sogra/me Dona Dora, pela sua vitalidade e

    solidariedade; com minha cunhada/filha Marianna, pela sua preciosa ajuda na

    composio da grfica e da bibliografia da tese; com minha companheira Alexandra,

    pelo amor e pacincia comigo, e pela grande dedicao em debater nos mnimos

    particulares o trabalho, e na detalhada reviso do mesmo; a eles, os meus mais sinceros

    agradecimentos.

    Em casas mais distantes, agradeo a meus pais, Liana e Giovanni, que, de Roma,

    sempre torceram por mim, nunca me deixando sem apoio, e tambm a minha irm,

    Claudia, pelo seu carinho, solidariedade e contribuio intelectual: muito obrigado.

    Finalmente, agradeo aos Kaiowa e andva de todos os patamares do Cosmo,

    por terem me recebido e por tudo o que me ensinaram; a eles vo os meus mais

    humildes e calorosos agradecimentos.

  • 8

    ...sempre seremos irmos dos ande Rykey [deuses]. Apesar de hoje usarmos roupas diferentes e enfeites diferentes dos ande Rykey, eles vo nos reconhecer por meio de colar, voz, emboe, jeguaka etc. Com estes enfeites, vo nos reconhecer. Mesmo ns tendo errado porque no nos comportamos mais como eles; mesmo que vivamos j diferentes deles, pois ficamos bbados, violentos, brincamos muito; mesmo que nossas roupas, alimentos, atitudes, modo de ser, sejam diferentes de Nossos Irmos; mesmo que queiramos ser diferentes deles, isto impossvel, porque eles so Nossos Irmos legtimos, so nosso princpio, sempre gostam de ns! Eles aceitam, no esto nos excluindo por causa de nossos novos comportamentos. Eles tm a misso e a obrigao de cuidar dos seus irmos menores em qualquer situao (Xam Atans, ande Ru Marangatu, 06 de agosto de 2000).

    A jarra uma coisa como recipiente. Este recipiente, sem dvida, necessita de uma produo. Mas o fato de ser produzida por um ceramista no constitui de fato o que pertence jarra enquanto jarra. A jarra no um recipiente pelo fato de ter sido produzida, mas, ao contrrio, a jarra teve de ser produzida pelo fato de que este recipiente (M. Heidegger 1991 [1957]: 111; traduo prpria).

  • 9

    Resumo

    O presente trabalho busca descrever e analisar a organizao territorial, a

    tradio de conhecimento e a relao estabelecida com o mundo material por parte dos

    Guarani Kaiowa contemporneos localizados no Mato Grosso do Sul. Para tal, pretende

    se distanciar das abordagens sistmicas, que procuram entender a vida social e a relao

    com os elementos materiais a partir de estruturas e/ou sistemas abstratos, preconcebidos

    e coerentes o que oferece imagens incongruentes dos vrios aspectos da vida atual

    desses ndios. Evita-se aqui distinguir a priori entre natureza e sociedade, buscando-se

    analisar as atividades dos Kaiowa inseridas em contextos scio-ecolgico-territoriais,

    contextos estes resultantes da configurao processual dos elementos do Cosmo, em

    uma determinada situao histrica e espao geogrfico. Nestes termos, as atividades

    polticas, a ao sobre a matria e as relaes entre seres viventes so vistas como

    seqncias concatenadas a partir dos atos de sujeitos histricos precisos. Tais sujeitos

    constroem grupos e sistemas abertos e instveis, tendo como ponto de referncia e como

    fator limitador as observaes morais procedentes da tradio de conhecimento qual

    aferem. possvel constatar que, entre esses indgenas, a unidade domstica, constituda

    por uma famlia extensa, o grupo de articulao menos instvel e mais almejado,

    sendo a partir deste ponto de referncia que os indivduos produzem, articulam,

    integram e/ou adaptam historicamente conhecimentos, valores e elementos materiais,

    numa procura constante pelo bom viver (tekove por).

  • 10

    Abstract

    This research effort aims to describe and analyze the territorial organization,

    tradition of knowledge and the relationship established with the material world by the

    contemporary Guarani Kaiowa indigenous people, situated in Mato Grosso do Sul. For

    this purpose, one needs to take a certain distance from the systemic approaches which

    try to understand social life and the relationship with material elements based on

    structures and/or abstract systems, of a preconceived and coherent nature thus offering

    incongruent images of the various facets of the present life situation of these indigenous

    groups. Avoiding to distinguish a priori between nature and society, Kaiowas activities

    are analyzed in their insertion within the socio-ecological-territorial contexts, which

    result from the process of configuration of the elements of the Cosmos, within a specific

    historical situation and geographical space. Within these terms, political activities,

    actions over material reality and the relationships between living beings are seen as

    concatenated sequences starting from the acts of precise historical subjects as a

    benchmark. These very subjects construct groups and open and unstable systems,

    setting as their benchmark - and as a limiting factor - the moral observation forthcoming

    from the tradition of knowledge from which they spring. It is possible to verify that, for

    these indigenous people, the domestic unit, constituted by the extended family, is the

    least unstable and most sought for group for articulations. It is starting from this

    reference point that individuals produce, articulate, integrate and/or historically adapt

    their knowledge, values and material elements, within a constant search for the good

    life (tekove por).

  • 11

    Sumrio

    INTRODUO........................................................................................14

    PARTE I: SITUAES HISTRICAS....................................................30

    Captulo I: Os Guarani pr-colombianos ................................................................................. 36

    1.1 Organizao territorial e poltica ........................................................................................ 36

    1.2 Atividades tecno-econmicas............................................................................................. 48

    Captulo II: Os Guarani aps a conquista europia ................................................................ 54

    2.1 O regime das encomiendas, as redues jesuticas e as bandeiras paulistas..................... 54

    2.2 Os Guarani no sul da Provncia de Mato Grosso ............................................................... 59

    2.3 Organizao territorial e atividades tecno-econmicas...................................................... 64

    Captulo III: O ciclo da erva mate............................................................................................. 74

    3.1 A Cia. Matte Larangeira e o sistema do barraco........................................................... 74

    3.2 Dinmica territorial e organizao domstica .................................................................... 77

    Captulo IV: A espoliao das terras guarani .......................................................................... 81

    4.1 O processo de aldeamento compulsrio............................................................................. 81

    4.2 ndios aldeados e desaldeados..................................................................................... 86

    Captulo V: Conflito fundirio e Constituio Federal de 1988 ............................................. 89

    5.1 Da luta pela terra redefinio do papel do Estado aps a CF de 1988 ............................ 89

    5.2 Da flexibilizao diversificao das atividades domsticas ............................................ 90

    5.3 Dados sobre a situao contempornea das Terras Indgenas Kaiowa e andva ............ 94

    PARTE II: TERRITRIO E POLTICA .................................................102

    Captulo VI: Dinmica territorial............................................................................................ 103

    6.1 Relaes cosmolgicas com a Terra ................................................................................ 104

    6.2 Morfologia social.............................................................................................................. 109

    6.3 A noo de tekoha ............................................................................................................ 113

    6.4 Dinmica territorial e organizao do teyi ...................................................................... 123

    6.5 - O tekoha guasu............................................................................................................... 131

    Captulo VII: Organizao poltica ......................................................................................... 139

    7.1 O teyi e a construo da comunidade poltica................................................................. 140

    7.2 Relaes intercomunitrias simtricas e assimtricas ...................................................... 152

  • 12

    7.3 O cargo de capito e as polticas intertnicas ............................................................... 156

    7.4 O conflito na reserva de Limo Verde e seu desfecho ..................................................... 165

    7.5 As Aty Guasu.................................................................................................................... 173

    Captulo VIII: Dinmica territorial e processos polticos na T.I. Jaguapire ...................... 180

    8.1 Jaguapire e o tekoha guasu de referncia ......................................................................... 182

    8.2 Processo de reivindicao e reocupao da terra de Jaguapire ........................................ 184

    8.3 Dinmica territorial e de parentela em Jaguapire............................................................. 186

    8.4 A luta poltica em Jaguapire e a reivindicao de Karaguatay ........................................ 189

    8.4 Algumas consideraes gerais.......................................................................................... 192

    PARTE III: TRADIO DE CONHECIMENTO ....................................202

    Captulo IX: Arquitetura e dinmica do Cosmo.................................................................... 210

    9.1 O ra Ypy (o espao-tempo das origens) e suas transformaes..................................... 210

    9.2 O ra Ypyr (o espao-tempo atual) e o Ararapyre (o fim do tempo do bom viver)...... 228

    9.3 Relaes cosmolgicas: entre quadro normativo e prtica social .................................... 241

    Captulo X: O modo de ser kaiowa (ande reko) e a integrao social do indivduo......... 255

    10.1 Construo da pessoa ..................................................................................................... 255

    10.2 O teko por perante o teko reta e as conseqncias para a famlia extensa................... 261

    10.3 Doenas e prticas de cura ............................................................................................. 264

    10.4 O consumo de bebidas alcolicas e a prtica do suicdio .............................................. 278

    10.5 Feitiaria e tcnicas mgicas positivas ........................................................................... 284

    Captulo XI: O xam................................................................................................................. 303

    11.1 A formao ..................................................................................................................... 305

    11.2 Xamanismo e tradio de conhecimento........................................................................ 314

    Captulo XII: A trajetria histrica dos chiru ....................................................................... 327

    12.1 Caractersticas do chiru .................................................................................................. 328

    12.2 Chiru e a dominao colonial......................................................................................... 332

    12.3 Chiru e tradio de conhecimento.................................................................................. 337

    PARTE IV: ECOLOGIA DO GRUPO DOMSTICO .............................342

    Captulo XIII: Bagagem material e atividades tecno-econmicas........................................ 349

    13.1 O habitat ......................................................................................................................... 350

    13.2 Organizao habitacional ............................................................................................... 361

    13.3 Formao e diversificao da bagagem material ........................................................... 382

    13.4 As atividades tecno-econmicas..................................................................................... 393

  • 13

    Captulo XIV: Racionalidades, temporalidades e tecnologias em confronto ...................... 421

    14.1 Normas e prticas de transao e uso dos recursos materiais ........................................ 423

    14.2 Relao com os patres............................................................................................... 430

    14.3 Atividades indigenistas................................................................................................... 437

    14.4 Racionalidades, temporalidades e a dinmica do jeheka ............................................... 455

    CONCLUSES.....................................................................................467

    BIBLIOGRAFIA ....................................................................................479

    GLOSSARIO.........................................................................................499

  • 14

    Introduo

  • 15

    Em fevereiro de 1991 empreendi minha primeira pesquisa de campo entre os

    Kaiowa, com o intuito de investigar aspectos da vida religiosa destes ndios, pesquisa

    esta que devia constituir o material emprico para a redao da tese de graduao na

    disciplina Antropologia Social, do curso de Letras da Faculdade de Letras e Filosofia

    da Universidade de Roma La Sapienza. O meu interesse pelos fatos religiosos

    derivava de minha trajetria nesta universidade, meu plano de estudos de cunho

    antropolgico sendo constitudo em mais de um tero por matrias inscritas no mbito

    da Histria das Religies. Especificamente, os exames feitos para a disciplina

    Religies das populaes primitivas cujo programa incorporava textos sobre ndios

    sulamericanos me estimularam a procurar entrar em contato com algum grupo

    indgena, particularmente no Chaco argentino, onde uma equipe italiana estava

    conduzindo pesquisas entre os Matacos. Em 1988, porm, durante uma viagem turstica

    ao Rio de Janeiro, tive um casual encontro com Rubem Thomaz de Almeida,

    antroplogo que havia dirigido uma ONG que implementava projetos de etno-

    desenvolvimento entre os Kaiowa e andva de Mato Grosso do Sul, nos anos de 1970

    e 1980. A partir desse contato, estabeleci um dilogo com Rubem, que me levou a

    redefinir o local de pesquisa, os ndios a serem abordados e, tambm, a refletir sobre

    alguns preconceitos oriundos de minha formao a respeito da presumida aculturao

    dos povos indgenas1.

    Foi assim que, voltando para a Itlia e entusiasmado pelo contato estabelecido

    no Brasil, me mobilizei para conseguir as condies institucionais para convidar

    Rubem, na inteno de realizar um seminrio voltado a fazer aprofundamentos sobre

    trabalho de campo, etno-desenvolvimento e relaes intertnicas entre os Guarani.

    Juntamente com outros colegas estudantes, em 1990 consegui que este convite se

    tornasse realidade, o Departamento de Estudos Gloto-Antropolgicos da universidade

    aceitando a proposta estudantil, oficializando-se a iniciativa. O seminrio ministrado por

    Thomaz de Almeida no ms de maio de 1990 inaugurava um ciclo de trs, dedicados

    1 Na poca, os meus parcos conhecimentos sobre os ndios das Amricas, incluindo a os prprios Guarani, derivavam principalmente da leitura de estudos sobre movimentos milenaristas e processos de ocidentalizao, foco de interesse da escola romana de Histria das Religies. Gilberto Mazzoleni, ministrante do curso de Religies dos povos primitivos, havia organizado, junto com Pompa e Santiemma, um livro intitulado LAmerica rifondata (1981), cujo pressuposto bsico era demonstrar que os ndios produziam movimentos milenaristas e concepes de mundo como resposta ao Ocidente europeu. A idia da aculturao religiosa, embora no explicitamente elaborada como teoria, estava subjacente perspectiva dessa vertente de estudos.

  • 16

    aos Guarani, a ele seguindo-se os de Bartomeu Meli (dezembro de 1990) e Georg

    Grnberg (maio de 1991) este ltimo, logo depois de minha primeira estadia entre os

    Kaiowa, em Mato Grosso do Sul.

    Os seminrios posteriormente publicados como uma coletnea, intitulada

    ande Reko2 (Nosso modo de ser) (Mura et al. 2000) colocaram em evidncia o

    profundo apego que os Guarani teriam sua religio, apego este ligado a uma

    exaltao da linguagem entendida como sendo ao mesmo tempo fala e alma dos

    indivduos. Nestes termos, Meli (2000) elevava mxima expresso dos estudos sobre

    este povo o que definia como uma etnografia da fala, algo que teria sido inaugurado

    por Cadogan, com seus estudos sobre cantos rituais e mitologia guarani mbya.

    Posicionando-se justamente nesta linha de pensamento, Schaden escrevia que

    Os estudiosos dos Guaran so unnimes em consider-los um povo profundamente religioso. J os antigos missionrios assinalam o grande interesse desses ndios por tudo que seja religio, verdadeira ou falsa. O esprito extraordinariamente mstico dos Guaran contemporneos tem despertado a ateno de mais de um pesquisador. Examinem-se a este respeito, entre outros, os escritos de Nimuendaju, Cadogan, Haubert e Meli. Sabemos que tambm no apego religio que os grupos hoje sujeitos ao desintegradora do contato com o mundo civilizado encontram o principal estmulo para insistir em sua identidade tnica. (1982: 6).

    Os fatos religiosos pareciam, portanto, os mais interessantes a serem tratados

    em uma eventual pesquisa sobre os Guarani. Contudo, diferentemente de Schaden,

    minha motivao para viajar ao Mato Grosso do Sul estava em querer realizar uma

    crtica ao paradigma da aculturao adotado por este autor. Em conversas, Thomaz de

    Almeida me convencera de que Schaden teria feito observaes incautas sobre estes

    ndios, no considerando o aspecto arredio que os caracterizaria, bem como a prtica do

    embotavy (fazer-se de bobo), que levaria os ndios a responderem s questes postas

    pelo pesquisador buscando no contradiz-lo. Foi assim que, aps investir em leituras

    2 No tocante s regras de acentuao das palavras em guarani, seguirei a nomenclatura mais utilizada no Paraguai, explicitadas em Meli et al. (1997: 8), no utilizando o acento grfico nas palavras oxtonas, estas sendo a maioria na lngua indgena. A ocorrncia do apstrofe indica parada glotal. Por motivos tcnicos ligados aos recursos do editor de textos do computador, utilizarei dois smbolos distintos para indicar a nasalizao: nas vocais a e o, ser utilizado o til, j no i e no e utilizarei o acento circunflexo. O psilon a sexta vogal guarani, de som gutural; no caso especfico da palavra teyi, esta letra, alm de gutural tambm nasalizada. No existindo recursos no editor de texto para indicar esta condio, ressalto-a aqui.

  • 17

    de material bibliogrfico produzido sobre o grupo em causa, enveredei para a j referida

    viajem a campo, em fevereiro de 1991.

    Nessa minha primeira experincia junto aos Kaiowa da Terra Indgena (T.I)

    Pirakua, permaneci hospedado na unidade residencial de um reconhecido lder poltico,

    Lzaro Morel. As minhas observaes sobre a realidade vivenciada pelos ndios deste

    lugar foram, porm, em certa medida frustrantes, visto que, com base na literatura que

    havia lido, esperava encontrar profuses de rituais e uma profunda dedicao cotidiana,

    por parte dos ndios, s dimenses espirituais. Contrariamente, outros aspectos da vida

    desses Kaiowa me chamaram a ateno, e estes eram justamente os menos valorizados

    na bibliografia sobre os Guarani: a organizao material da unidade residencial. Percebi

    que, com relao s parcas descries sobre os elementos da vida material atribudos a

    estes ndios, quase nada coincidia, no sentido de que os objetos que compunham o

    estoque material das unidades residenciais eram, na sua grande maioria, no produzidos

    pelos prprios Kaiowa. Recipientes metlicos, de vidro e de plstico, panelas de

    alumnio, ferramentas metlicas etc, dominavam na composio da bagagem material

    destes ndios. H que se considerar que, paralelamente, outros elementos tambm eram

    encontrados com freqncia, procedentes estes das redondezas do ptio residencial,

    como as cabaas utilizadas como recipientes (hyakua), assim como vrios tipos de

    confeces em madeira. Instrumentos lticos e cermicos eram totalmente ausentes e a

    cestaria, assim como a tecelagem, praticamente inexpressiva. Nestes termos, atravs de

    apressadas concluses, se poderia concordar com Schaden (1974) no sentido de que a

    aculturao material se processou rapidamente, os aspectos religiosos sendo os mais

    resistentes s presses da civilizao. Mas, de se dizer, esta rpida concluso no

    faz minimamente justia s relaes que os Kaiowa estabelecem com o mundo material.

    Com uma formao tcnica a nvel de segundo grau3, fiquei particularmente

    interessado numa lgica de rendimentos (mecnicos, fsicos e qumicos) dos objetos

    utilizados pelos ndios e sobre o modo como os indgenas operavam a escolha destes.

    Percebi rapidamente que existiam lgicas bem precisas operadas pelos Kaiowa, estas

    procedentes de experincias prticas, no conseguindo eu ver nelas nenhuma imposio

    externa, seja de tipo tcnico, seja simblica como, por exemplo, a necessidade de

    3 Tenho formao como eletrotcnico.

  • 18

    marcar um status diferenciado de um indivduo ou um conjunto destes perante outros

    grupos.

    Para explicitar estas minhas preocupaes, um exemplo poder ser til. A

    freqncia com que encontrava recipientes de hyakua4 com capacidade volumtrica de

    cerca de cinco litros paralelamente a garrafes trmicos com o mesmo volume (v. fotos

    A, B e C) me levava a procurar explicaes para este fenmeno no na presumida

    sobrevivncia do uso de objetos em cabaa, mas no raciocnio feito pelos ndios para

    justificar a manuteno deste material paralelamente aos procedentes de uma produo

    industrial. Com freqncia os Kaiowa me diziam que o recipiente de hyakua a

    geladeira do ndio, afirmao esta, de um ponto de vista tcnico, muito relevante. Com

    efeito, as qualidades trmicas deste objeto so boas leve e no requer muita despesa

    em termos de tempo para a procura do material e a confeco do recipiente. A rigor, os

    ndios quase no produzem o recipiente de hyakua, uma vez que jogadas as sementes

    este tipo de cabaa cresce espontaneamente ao redor do ptio, sua forma e capacidade

    volumtrica sendo produzida pelo simples ato de crescer. Alcanada a dimenso

    desejada, suficiente colher este fruto, deixando-o secar para depois extrair dele o p

    que se foi depositando durante a exsicao, atravs de um furo em uma das

    extremidades do objeto. Podemos dizer que o processo de incorporao em uma

    unidade residencial kaiowa de um recipiente de hyakua requer uma to baixa

    quantidade de energia, em termos de trabalho (no sentido fsico deste conceito), a ponto

    de se poder pensar que a natureza quem mais contribui para produzi-lo, limitando-se

    os ndios a colet-lo, j quase em sua estrutura formal definitiva.

    4 De hya (cabaa) e kua (furo). Trata-se de um tipo de cabaa apropriada para produzir recipientes.

  • 19

    Cabaa hyakua. T.I. Jaguapire. Outubro de 2004.

    Recipiente de Hyakua. T.I. Jaguapire.

    Outubro de 2004.

    Foto B Foto C

    Foto A

    Garrafo trmico. T.I. Jaguapire.

    Outubro de 2004.

  • 20

    Os garrafes trmicos, atualmente muito utilizados pelos ndios, desempenham um

    papel semelhante aos recipientes de hyakua, mas eles precisam ser comprados ou

    trocados, sendo necessrias, neste processo, atividades intermedirias (para se obter

    dinheiro ou outro objeto que sirva na base da troca), isto com custos em termos de

    tempo, relaes sociais e polticas, bem como de energia, os quais devem ser

    computados para se entender quais as estratgias adotadas pelos Kaiowa para incorporar

    em sua bagagem material os objetos e os materiais almejados.

    A comparao entre os recipientes de hyakua e os garrafes trmicos me

    permitiu elaborar uma hiptese, que com o passar do tempo foi adquirindo cada vez

    mais consistncia, e foi constituindo o elemento central de minha abordagem terica e

    metodolgica s atividades tcnicas. Ficava para mim claro que eram as necessidades de

    uso (prtico e/ou simblico) de um determinado objeto que norteavam as aes dos

    indgenas sobre a matria, e no a produo deste objeto. Por sua vez, a nfase por mim

    colocada sobre o uso, ao se conotar as tcnicas, me levava a considerar as atividades

    realizadas pelo homem no meramente como uma ao sobre a matria, mas tambm

    com uma racionalidade nas escolhas, algo que comporta clculos, avaliaes e

    administrao dos objetos. Nestes termos, em lugar de falar simplesmente de

    atividades tcnicas, preferi adotar a expresso atividades tecno-econmicas5.

    Aps pouco mais de dois meses de campo, tornei Itlia, ciente que deveria

    realizar uma viagem mais longa para completar meu levantamento emprico. O dilogo

    com meu orientador, o Prof. Antonino Colajanni, ministrante da disciplina Antropologia

    Social, foi fundamental para a redefinio do objeto de minha pesquisa. Este

    antroplogo trabalha com processos de mudana e com projetos de desenvolvimento, e

    estava particularmente interessado nas atividades tecno-econmicas do grupo que eu

    pretendia estudar. Foi assim que decidi redefinir minha pesquisa, buscando centrar a

    ateno na organizao material dos Guarani-Kaiowa e Guarani-andva.

    5 Ingold (1997: 108) prefere radicalizar e substituir o termo economia por tecnologia, visto que, segundo ele, o primeiro estaria ligado ao desenvolvimento do capitalismo no Ocidente, seu conceito no podendo ser extendido a outras realidades sociais. Embora possa parcialmente concordar com este autor, assim como Firth (1972), considero que as populaes no ocidentais possuem critrios de administrao de bens que podem propriamente ser analisados sob a rubrica de econmico. Neste termos, o que se procura so formas de entendimento nativas do que significa administrar e economizar. Ocupar-me-ei especificamente deste tema mais adiante, na quarta parte.

  • 21

    A segunda etapa de campo, em 1993, durou pouco mais de seis meses, desta vez

    no me limitando a uma nica terra indgena, mas buscando conhecer outros lugares que

    me permitissem ter uma idia bastante ampla sobre os elementos materiais com que

    lidam os indgenas. Nestes termos, visitei a reserva de Dourados, as T.Is Guasuty,

    Cerrito e Jaguapire, com uma breve visita a Panambizinho para presenciar a cerimnia

    de fechamento do ritual de iniciao masculina (o kunumi pepy). Especificamente em

    Jaguapire, consegui estabelecer relaes com famlias locais, que me levaram a escolher

    esta terra, junto com Pirakua, como o lugar onde fazer maior investimento em termos de

    pesquisa.

    Novamente de volta Roma, antes de me empenhar na anlise e classificao do

    material recolhido em campo, busquei aprofundar as leituras sobre tecnologia,

    especialmente algumas famosas obras de Leroi-Gourhan (1977, 1993[1943],

    1994[1945]). Entre os vrios textos, encontrei um artigo publicado por Amodio, em

    1986, na revista Luomo, intitulado Coisas prprias e coisas de outros: objetos

    ocidentais, sincretismos e processos aculturativos entre os Macuxi do Brasil (traduo

    minha). Neste trabalho, o autor prope considerar os objetos industriais utilizados pelos

    indgenas a partir do nvel de transformao formal que tiveram, uma vez incorporados.

    Atravs de um exemplo, o autor afirma que se uma lata de leo comestvel utilizada

    como recipiente sem sofrer nenhuma alterao, teramos para o uso funcional desse

    objeto uma aculturao completa. Se, por outro lado, os ndios modificassem a lata,

    aportando-lhe, por exemplo, cortes e alas, transformando-a em um porta-objetos, a

    aculturao seria parcial.

    As observaes do autor me pareceram no levar em devida conta a perspectiva

    tecno-econmica do operador; isto , qual raciocnio este ltimo poderia fazer frente a

    um mundo material por ele avaliado a partir de suas necessidades prticas e simblicas.

    Atravs de uma viso dualista, Amodio dividia, de modo apriorstico, entre coisas

    indgenas e coisas ocidentais, a partir da origem da fabricao do objeto em questo.

    Nestes termos, o prprio conceito de aculturao material por ele adotado o coloca em

    contradio, uma vez que, a rigor, para que os ndios fossem aculturados

    materialmente, deveriam ter incorporado do Ocidente a siderurgia, nico meio possvel

    para reproduzir o recipiente metlico.

    Esta constatao tornou-se a idia guia de minha monografia de graduao, onde

    defendi a tese de que os ndios incorporam objetos a partir de suas qualidades e

  • 22

    destinao de uso; o fato de estes procederem do mato dos arredores do ptio (caso, por

    exemplo, da cabaa) ou de uma fbrica em So Paulo ou na China (o garrafo trmico),

    para o usufruturio indiferente, uma vez que o que realmente importa so as

    qualidades (fsicas e simblicas) do objeto, assim como sua disponibilidade e sua

    acessibilidade. Nesses termos, o trabalho de graduao me permitiu enfrentar a relao

    dos ndios com o mundo material indo na contramo de quase todos os estudos sobre

    tecnologia, que, contrariamente, conotam a tcnica a partir da produo de artefatos, na

    maioria dos casos como processo de transformao da natureza. A quarta parte da

    presente tese traz uma considerao especificamente sobre este argumento.

    Fechado o perodo italiano de minha formao, permanecia no meu enfoque uma

    certa incongruncia, entre, por um lado, uma minha abordagem tcnica (fortemente

    vinculada a uma viso poltica da organizao material dos Guarani), e, por outro, a

    aceitao de uma anlise sistmica da organizao social, territorial e religiosa desses

    ndios. Isto decorria, em certa medida, do fato de ter eu relegado a segundo plano estas

    ltimas questes, delegando a autores consagrados (como Cadogan, Meli e Grnberg

    entre outros) sua definio etnogrfica e analtica. Foi j durante o mestrado, sob a

    orientao do professor Joo Pacheco de Oliveira, que me deparei com uma literatura

    que se revelou fundamental para a redefinio de minha abordagem terica e

    metodolgica. As leituras especialmente da obra recente de Fredrik Barth contriburam

    de modo decisivo para resolver as minhas preocupaes a respeito das incongruncias

    de meu enfoque, anteriormente explicitadas. Mas isto ocorreu de modo progressivo. Em

    um primeiro momento, at mesmo pelos curtos tempos de que dispunha durante o

    mestrado para desenvolver uma acurada pesquisa de campo, no consegui me dedicar

    como queria aos outros aspectos que no fossem o da vida material desses ndios.

    Nestes termos, aproveitando dos dados procedentes de minhas pesquisas anteriores,

    enveredei para a realizao de um levantamento pontual de quase dois meses,

    desenvolvido em Jaguapire e Pirakua, sobre o ciclo de construo das habitaes nas

    unidades residenciais. Estabelecendo uma correlao com a abordagem que Barth faz

    cultura (1984, 1987, 1989, 1992 e 1993), considerando-a como uma correnteza, um

    fluxo de conceitos, idias e valores, tracei um paralelo com o mundo material. Assim,

    ao passo que Barth considera os indivduos constituindo, ao longo de suas experincias,

    estoques culturais (cultural stocks), por meio dos quais do vida a seus atos atos estes

    que, por sua vez, contribuem para a gerao de novas experincias , propus

  • 23

    correspondentes estoques material e tcnico6. Neste sentido, atravs da interao entre

    indivduos inscritos em uma especifica tradio de conhecimento, fluxos culturais,

    materiais e tcnicos seriam organizados socialmente, em um contexto histrico

    determinado.

    Como dizia, por motivo de tempo, durante o mestrado no consegui aprofundar

    em sua complexidade os aspectos que contribuem para a organizao desses trs

    estoques, limitando-me a enfrentar os ltimos dois aqui listados. Alm disso, tambm

    me mantive em um nvel de escala bastante micro, abordando em detalhes as

    caractersticas organizativas, de um ponto de vista tcnico e material das unidades

    residenciais, simplesmente indicando, no ltimo captulo, que os processos que a

    ocorrem esto intimamente vinculados organizao mais ampla da famlia extensa

    (entendida como grupo domstico que engloba vrias unidades residenciais). Nestes

    termos, como me foi justamente observado durante a defesa da dissertao, a

    organizao social do grupo abordado encontrava-se apenas esboada, demandando um

    aprofundamento. Com efeito, nas prprias concluses daquele trabalho (dedicadas

    justamente s variaes de escala), eu explicitava a necessidade de enveredar, em um

    segundo momento, para uma abordagem de mais ampla envergadura, fazendo uma

    anlise das atividades dos indivduos luz da organizao do grupo domstico.

    Foi assim que durante meu primeiro ano de doutorado, paralelamente a trabalhos

    sobre tecnologia que permanecia o tema central de minha pesquisa , procurei

    aprofundar estudos sobre unidades domsticas e organizao social, mas ainda no me

    preocupava muito com a organizao territorial. Permanecia eu ento vinculado, de

    modo a-crtico, s formulaes de Meli et al. (1976) sobre a territorialidade indgena,

    formulaes estas amplamente aceitas pela maioria dos estudiosos dos guarani. Durante

    o segundo ano, porm, por ocasio de um trabalho como perito judicial para verificar a

    tradicionalidade de uma terra reivindicada por uma comunidade andva, me deparei

    com um fato para mim inslito. Entre os quesitos apresentados pela parte que se opunha

    aos ndios, constava o seguinte: Qual a bibliografia da Etnografia e da Etnologia

    brasileiras, que poderiam definir o que seriam os Tekoh e onde estivesse localizada a

    Comunidade de Potrero Guasu?. Embora a colocao fosse tendenciosa, visando

    6 Em lugar do termo estoque, preferi aqui lanar mo do termo bagagem, termo este que, com relao ao primeiro, evoca tambm a imagem de um transporte dos elementos estocados.

  • 24

    claramente a desconsiderar a produo paraguaia sobre os Guarani (sem dvida entre as

    mais ricas), e a argumentao do assistente tcnico dos fazendeiros fosse bastante

    inconsistente7, tal quesito me estimulou a procurar na literatura em geral a recorrncia

    histrica da categoria de tekoha expressando organizao territorial. Assim, foi possvel

    constatar que esta remonta ao incio dos anos setenta, justamente com a produo de

    Meli e os cnjuges Grnberg (1976) no Paraguai. Foi ento que comecei a me dedicar

    a um aprofundamento sobre os mecanismos de construo histrica do territrio e dos

    sentidos e nfases atribudos pelos ndios s suas categorias, evitando assim uma atitude

    muito comum nos estudos sobre estes ndios isto , a tendncia a reificar e a

    descontextualizar (tanto espacial quanto temporalmente) essas categorias.

    Minha desconfiana com relao ao modo de organizar os dados etnogrficos e

    nfase dada a alguns aspectos normativos, por parte da maioria dos estudiosos dos

    Guarani, me levou a recuperar meu antigo interesse sobre a cosmologia destes ndios.

    Desta vez, porm, estava firmemente intencionado a buscar relacionar todos os

    elementos por mim tratados, evitando a clssica diviso entre uma vida religiosa

    resistente e vivaz, e uma vida material totalmente aculturada como geralmente feito

    na literatura sobre estes grupos. A posio terica de Cardoso de Oliveira (1968, 1976

    [1960]), que considera os ndios (Terena) integrados em uma sociedade nacional, na

    condio de classe subalterna atravs do trabalho e do comrcio, elementos que

    permitem a integrao material , ao passo que se mantm como grupo tnico,

    diferenciando-se atravs de uma organizao poltica, demonstra-se uma abordagem que

    carece de aprofundamento; baseia-se ela em uma lgica do encapsulamento8, que no

    leva em conta o ponto de vista indgena nas interaes seja entre indivduos aferentes

    a tradies de conhecimento diferentes, seja entre estes e o fluxo de elementos

    materiais. Por outro lado, h tambm as consideraes de Viveiros de Castro ao

    apresentar a verso em portugus do livro de Nimuendaju sobre os Apapocuva Guarani

    (1987) , de que os grupos tupi-guarani se identificam mais nos aspectos cosmolgicos

    que naqueles sociolgicos. Para mim, estas consideraes constituem um modo de

    evitar dar ateno s atividades cotidianas, atravs de um refgio na produo

    normativa que ilustra idealisticamente um Cosmo o qual, por rico que seja, representa

    7 Como fica claro na leitura de seu relatrio justamente sobre Potrero Guasu, a terra em questo. 8 Sobre uma crtica lgica do encapsulamento, ver o primeiro captulo de Oliveira (1988).

  • 25

    os interesses e momentos especficos da vida de indivduos especialistas, como so os

    xams.

    Como pude verificar ao longo dos ltimos anos de pesquisa, o fato de minha

    primeira experincia etnogrfica no ter revelado uma grande recorrncia a ritos e

    narraes sobre a estrutura do Cosmo no se constitua em uma observao incauta de

    minha parte. Existem momentos e lugares especficos onde esses conhecimentos (bem

    como os valores a eles atrelados) so sistematizados e enfatizados; fora destas ocasies,

    a vida indgena norteada por muitos outros fatores que no podem ser relegados a

    segundo plano, afirmando-se, assim, que a organizao social guarani padeceria de

    uma fluidez ou simplicidade acentuadas (Viveiros de Castro 1987: xxx). Ademais,

    como espero que fique claro ao longo desta tese, no se pode separar cosmologia,

    sociologia e anlise das tcnicas, nem mesmo com finalidades metodolgicas,

    procedendo-se com o escopo de posteriormente relacion-las. Ao contrrio, necessrio

    se relacionar todos os elementos do Cosmo, sejam eles sujeitos e/ou objetos, atravs de

    aes sociais, polticas, tecno-econmicas, mgicas, fsicas, qumicas, mecnicas etc.,

    formando cadeias causais desenvolvidas processualmente. Tais cadeias, s vezes

    formam redes, s vezes sistemas instveis e abertos, mas isto sempre a partir de

    contextos histricos determinados. Mas, neste ponto, uma pergunta se coloca: o que se

    entende por contexto histrico? No meu entender, aqui no estaria em jogo

    simplesmente uma realidade social, devendo ser includos tambm os elementos

    materiais, e a prpria causalidade material. Ademais, a configurao deste contexto no

    ocorre em um lugar indeterminado, mas se inscreve ela em um espao geogrfico, a

    partir do qual os atores podem desenhar a arquitetura do Cosmo, numa perspectiva

    tridimensional, e mesmo multidimensional, abrangendo, neste ltimo caso, espaos

    considerados invisveis para a maioria dos seres humanos. Nestes termos, na falta de

    uma palavra especfica para adjetivar o contexto, enveredei para a juno de trs

    aspectos que me parecem extremamente significativos na considerao da vida

    indgena; em um s adjetivo, o contexto scio-ecolgico-territorial.

    Importa, por um momento, tornar minha trajetria. Aps a primeira

    experincia como perito judicial (em 2002), minhas etapas de campo com fins

    acadmicos se foram alternando com aquelas dedicadas a trabalhos tcnicos (como

    identificaes de terras, levantamentos situacionais e diagnsticos), encomendados por

    organismos como a FUNAI e o Ministrio Pblico Federal, trabalhos estes realizados na

  • 26

    companhia de Rubem Thomaz de Almeida. Nos ltimos tempos, juntou-se a ns

    tambm minha esposa, Alexandra Barbosa da Silva, tambm ela desenvolvendo

    pesquisa de doutorado sobre os Guarani com nfase sobre a relao destes ndios com

    os centros urbanos e as fazendas.

    A transferncia, junto com Alexandra, para Dourados (MS), cidade esta situada

    a apenas 5 Km de distncia da rea indgena homnima, nos permitiu uma experincia

    constante com os ndios que a vivem. A relao estabelecida com a FUNAI e o MPF,

    na qualidade de consultores, nos mantinha sempre informados sobre processos polticos,

    dinmicas territoriais e processos tecno-econmicos.

    Como professor visitante na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul

    (UEMS), entre agosto de 2003 e setembro de 2005, consegui realizar trabalhos de

    campo pontuais, em linha com o tema desenvolvido no meu doutorado, alm de

    estabelecer uma rica parceria com o eclogo Vito Comar, com o qual desenvolvi

    algumas etapas de campo. Este tipo de relao me possibilitou aprofundar alguns

    aspectos sobre processos ecolgicos, muito teis para o que eu pretendia argumentar no

    presente trabalho. Nesta instituio tive tambm o enorme prazer de orientar o kaiowa

    Tonico Benites, da T.I. Jaguapire, um de meus mais valiosos informantes, orientao

    esta que se transformou em um dilogo intelectual que segue at hoje.

    Relevante tambm foi (e ) minha experincia como co-orientador informal do

    psiquiatra Antnio de Carvalho Silva, que me levou a aprofundar certos argumentos

    sobre processos de cura entre os Kaiowa, os quais resultaram fundamentais na

    elaborao da terceira parte deste trabalho. O posterior convite feito a mim pela

    FUNASA, para elaborar um projeto de pesquisa sobre sade mental, permitiu iniciar

    uma reflexo, juntamente com Antnio, Alexandra e Tonico, sobre o aspecto

    emocional-afetivo nas famlias extensas dos Kaiowa, reflexo de no pouco peso na

    feitura desta tese.

    Assim, os ltimos quatros anos antes tornar ao Rio de Janeiro (em julho de

    2005) foram caracterizados por uma insero em campo com papis diferenciados. A

    heterogeneidade de contextos locais em que foram recolhidos os dados no constituiu,

    de modo algum, um problema, revelando-se antes uma grande vantagem, visto que as

    situaes encontradas permitiam entender como se processavam as dinmicas em

    escalas diferenciadas, e como os ndios agiam e/ou reagiam s circunstncias

    encontradas em cada lugar. Nestes termos, j como equipe, incluindo Alexandra,

  • 27

    Rubem, Vito, Tonico e Antnio, e com a constante colaborao com o antroplogo do

    MPF, Marcos Homero Lima, foi possvel levantar uma significativa massa de dados,

    conseguindo-se, por um lado, um mapeamento geral das demandas fundirias dos

    Guarani de MS. Em alguns casos foram possveis levantamentos detalhados, pois que

    nas micro-bacias dos rios Iguatemi, Apa e Brilhante-Ivinheima, chegou-se a levantar

    relaes de parentela, organizao domstica, aspectos emocionais-afetivos, processos

    de construo de comunidades, relaes simblicas e materiais com a terra,

    manifestaes ritualsticas e embates polticos e blicos (tanto entre ndios quanto entre

    estes e os brancos) consumados seja atravs de atos verbais, seja como com armas

    materiais e imateriais, em uma escala que transcende a dimenso especfica de cada

    terra indgena. Foi possvel tambm reconstruir processos de formao de

    acampamentos nas terras tradicionais demandadas pelos ndios e que relaes as

    comunidades a localizadas estabelecem com fazendas, cidades e demais terras

    indgenas da regio. Conseguiu-se mapear tambm circuitos de intercmbio de bens e

    de atividades mgico-polticas, em uma escala que permitiu o entendimento das relaes

    estabelecidas pelos ndios em ambientes diferentes, com comerciantes, fazendeiros,

    pees, curandeiros, usineiros etc. O monitoramento das dinmicas estabelecidas entre

    ndios, MPF e FUNAI, FUNASA, governos municipais, estadual e federal, misses e

    ONGs, assim como com os vrios nveis da justia federal, permitiu, por sua vez,

    ampliar a escala de enfoque, observando processos e impasses em um mais amplo

    espectro de relaes e interaes entre atores inscritos no espao geogrfico do estado-

    nao brasileiro.

    Em suma, toda as minhas experincias em Mato Grosso do Sul constituram-se

    em campo. A heterogeneidade de situaes e dinmicas aqui assinaladas so fatores

    constitutivos do referidos contextos e requeriam ser cuidadosamente estudados. Nestes

    termos, tendo eu uma vez decidido me ocupar das unidades domsticas construdas

    pelos Kaiowa e de suas transformaes organizativas ao longo do tempo isto como um

    processo adaptativo s condies encontradas nos espaos geogrficos onde

    desenvolvem suas atividades , constatei que eu no podia me limitar a considerar os

    ndios relacionando-se, por um lado, entre si, por outro, com o que definimos como

    natureza, e, por outro ainda, com os brancos. Tampouco as relaes sociais e

    polticas dos indgenas podiam ser separadas das relaes tcnicas e econmicas. De

    fato, nas observaes empricas, o que unicamente se constata que as

  • 28

    relaes/interaes se do sempre entre sujeitos e entre estes e objetos. Foi justamente a

    partir destas observaes que, seguindo as sugestes de Barth (1966 e 1987), busquei

    construir modelos de processos, que apresentarei ao longo desta tese.

    ***

    Dividi o presente trabalho em quatro partes, sendo que na primeira busco

    desenhar cinco situaes hitricas, partindo do perodo imediatamente anterior

    conquista, por parte dos europeus, dos espaos ocupados pelos grupos Guarani. Meu

    objetivo com esta parte ilustrar as condies dos contextos scio-ecolgico-territoriais

    configurados em cada uma das situaes, centrando a ateno sobre os processos de

    adaptao dos indivduos que compem as unidades domsticas s mudanas (de ordem

    social e material) ocorridas nos espaos geogrficos em que se encontravam. Apontando

    as dificuldades para se analisar em detalhes perodos anteriores segunda metade do

    sculo XIX, esta parte procura principalmente reconstruir os contextos scio-

    ecolgicos-territoriais das ltimas trs situaes histricas, identificadas a partir do

    fim da guerra entre Brasil e Paraguai. Com efeito, tomando-se esse momento possvel

    reconstruir, para o cone sul de Mato Grosso do Sul, as trajetrias de muitas famlias

    kaiowa e a transformao organizativa dos grupos domsticos, at os dias de hoje.

    A segunda parte j aborda especificamente o tema da organizao territorial e

    poltica no como expresso de uma territorialidade indgena, mas como o resultado

    de dinmicas territoriais protagonizadas por sujeitos indgenas e no-indgenas, em

    espaos geogrficos disputados para se obter seu controle e usufruto. Nestes termos, as

    categorias guarani que implicam a definio de espaos geogrficos, familiar e

    etnicamente exclusivos, com fronteiras fixas, foram entendidas como uma construo

    histrica em disputa e interao com sujeitos brancos dominantes, tutelados por leis

    que substantivam cartesianamente as terras pleiteadas em termos de propriedade privada

    e alienvel. A organizao das relaes comunitrias e inter-comunitrias so analisadas

    tambm como construtos em contnua transformao, devido s prprias dinmicas de

    parentesco e de controle territorial. Neste sentido, alianas situacionais entre membros

    de famlias indgenas e agentes brancos so constitutivas dos arranjos poltico-

    territoriais realizados em cada contexto local.

    A terceira parte, por sua vez, centra o foco sobre a construo de sentido das

    atividades e aes indgenas a partir de um arcabouo normativo cujos mentores

    principais so os xams depositrios de saberes especializados, que permitem dialogar

  • 29

    de modo profcuo com as divindades, bem como operar magicamente na vida cotidiana

    e em processos de cura. Por outro lado, as normas constituem um parmetro para a

    hierarquizao dos saberes, distribuindo competncias entre os membros de uma

    determinada comunidade poltica local. Nestes termos, elas simplesmente servem como

    ponto de referncia e como advertncias morais, deixando aos indivduos certa

    flexibilidade na determinao de escolhas e aes a serem realizadas, bem como na

    incorporao de conhecimentos atravs das experincias propiciadas ao longo de suas

    trajetrias de vida. Assim, toda esta parte busca colocar em evidncia e analisar os

    mecanismos que permitem a sistematizao dos saberes e sua hierarquizao, a partir de

    disputas tanto entre autoridades gestoras dos conhecimentos valorizados quanto entre

    famlias rivais. Com efeito, um determinado xam ser visto como tal por seus aliados,

    mas como feiticeiro por seus inimigos. Portanto, os conflitos e a tenso constante entre

    norma e prticas so abordados como fatores integradores e no como produtores de

    anomias como geralmente so considerados na literatura sobre os Guarani.

    Uma vez esboadas as dinmicas polticas e territoriais e a tradio de

    conhecimento qual aferem os ndios, na ltima parte deste trabalho concentro minha

    ateno sobre a ecologia do grupo domstico. Neste caso, ilustro como as

    transformaes ocorridas ao longo do tempo nos espaos geogrficos onde vivem os

    Kaiowa levaram modificao dos contextos-scio-ecolgicos territoriais, permitindo

    aos indgenas o abandono progressivo de boa parte dos objetos por eles produzidos,

    favorecendo e potencializando as tcnicas de aquisio. Por outro lado, possvel se

    perceber que princpios morais, racionalidades, temporalidades e regras de propriedade

    e uso de objetos produzem uma configurao desses objetos, configurao esta

    especfica das unidades domsticas kaiowa.

  • 30

    Parte I

    SITUAES HISTRICAS

  • 31

    Os Kaiowa constituem um grupo tnico de fala guarani e, na literatura

    especfica, so considerados como descendentes dos Itatim (v. mapa I), ndios estes em

    grande parte reduzidos pelos jesutas e que foram vtimas das incurses dos

    bandeirantes (Meli et alii 1976, Susnik 1970-80, Thomaz de Almeida 1991, Gadelha

    1980). Existem hoje muitas informaes sobre os Kaiowa, resultando difcil, porm,

    estabelecer critrios precisos que permitam registrar com segurana processos de

    mudana e/ou de continuidade com relao a vrios aspectos da vida social, tecno-

    econmica, poltica e religiosa de seus antecessores, seja com relao aos primeiros

    sculos aps a conquista europia, seja no que concerne s pocas anteriores s

    importantssimas variveis introduzidas pela interveno colonial. Quanto mais nos

    afastamos das condies scio-ecolgico-territoriais do presente, mais as informaes

    disposio se fazem fragmentrias, a escala geogrfico-temporal dilatando-se muito.

    Deste modo, na extensa literatura sobre os Guarani9 apresentam-se dados relativos a

    lugares e grupos diferentes, recolhidos por missionrios, viajantes e administradores

    coloniais, em pocas muito distintas umas com relao s outras. Cabe observar que

    nem todas as fontes apresentam o mesmo teor descritivo, muitas delas limitando-se a

    nomear, em poucas frases, traos genricos dos indgenas encontrados. Perante esta

    diversidade de rigor descritivo, os trabalhos que Meli et alii (1987: 20) classificaram

    como de Etnologia Antropolgica e Antropologia Etno-Histrica privilegiaram um

    nmero limitado de fontes, entre as quais se destacam as obras do jesuta espanhol

    Antonio Ruiz de Montoya. Este religioso, em 1639 redigiu tanto um rico vocabulrio da

    lngua guarani (1876) quanto um livro (1985), onde relatou as viagens por ele realizadas

    no intento de instituir redues religiosas nas denominadas provncias do Itatim e do

    Guair.

    9 Para uma panormica das fontes e os trabalhos relativos aos Guarani, ver Baldus 1954; Meli et alii 1987, e Noelli 1993.

  • ,0

  • Cabe observar tambm que os trabalhos de cunho etno-histrico no se

    limitaram a tentar compreender a vida indgena no passado, remetendo as fontes

    disponveis aos contextos histricos da sua produo. O objetivo principal da maioria

    desses trabalhos o de reconstruir a vida indgena em sua totalidade, para tal propsito

    prescindindo desses contextos. Aspectos da vida social, religiosa, poltica e tecno-

    econmica so conectados entre si, tendo como norte principal as etnografias realizadas

    no presente e, em grande medida, pelas categorias lingsticas recolhidas no dicionrio

    redigido por Montoya. Deste modo, como se poder ver mais adiante, traos culturais

    so articulados e sobrepostos, seguindo-se imagens preconcebidas da vida indgena,

    preenchendo-se esse modelo com informaes oriundas de lugares e pocas distintas.

    Neste proceder, o importante que essas informaes refiram-se aos Guarani (e em

    muitos casos tambm aos Tupi), cuja cultura e organizao social so considerados a

    partir de uma suposta originalidade (no duplo sentido de primordial e de distinto de

    outros grupos tnicos), a ser progressivamente descoberta. Assim, as informaes

    etnogrficas do presente podem servir como norte, na medida em que estas se

    demonstrem como tpicas de populaes silvcolas, os outros aspectos do cotidiano

    sendo considerados como meramente oriundos da situao do contato com o

    colonizador.

    Nestes termos, o grupo trabalhado apresenta-se como bastante homogneo, com

    estruturas em larga medida a-histricas, sendo as variaes abordadas como produto de

    contingncias, estas sim historicamente determinadas. Percebe-se, deste modo, o

    delinear-se de dois distintos critrios para realizar comparaes entre os dados

    recolhidos: por um lado, para estabelecer continuidade formal e de significado no

    tempo, procede-se a juntar informaes tidas como originalmente indgenas,

    articulando-as entre si, e buscando a coerncia quase exclusivamente atravs de

    categorias micas (recolhidas e comparadas indistintamente nas fontes e nas etnografias

    modernas); por outro lado, para compreender as mudanas e descontinuidades, procede-

    se no sentido contrrio, procurando nos eventos histricos a introduo de elementos

    sociais, polticos, econmicos e tcnicos, que perturbariam ou obrigariam os Guarani a

    mudar, sendo as variaes interpretadas a partir da anlise de categorias

    prevalentemente ticas.

    Na tentativa de reconstruir a suposta cultura guarani como algo atemporal,

    apresentam-se claras diferenas nas formas de sistematizao dos dados relativos a cada

  • 34

    um dos aspectos da vida indgena. No tocante s informaes sobre organizao dos

    rituais, circuitos de cooperao e de organizao territorial, a maior parte das

    informaes procede de etnografias recentes, preenchendo estas os vazios deixados

    pelas fontes histricas e funcionando como, o que se poderia definir, referente

    contextual atemporal para as categorias lingsticas presentes no dicionrio de

    Montoya10. Estas ltimas, por sua vez, atravs de um efeito feedback, so utilizadas

    como estratgia narrativa para atribuir autoridade aos discursos sobre a maior ou menor

    autenticidade da cultura guarani contempornea11. Para os aspectos da vida material,

    por outro lado, o procedimento se inverte, as fontes histricas e arqueolgicas tornando-

    se preponderantes, visto que os Guarani contemporneos deixaram h muito de produzir

    e utilizar vrias tcnicas e objetos que caracterizavam a vida indgena no passado.

    Como j observado em outro trabalho (Mura 2000), todos estes procedimentos

    levam, em certa medida, a essencializar e reificar os Guarani, no momento em que

    subtraem estes indgenas de seus contextos histricos onde eles produzem e reproduzem

    suas categorias sociais e culturais. Alm disso, esta atitude tem como conseqncia, nos

    estudos sobre a realidade contempornea, o deslocamento da compreenso do grupo

    focado para o passado, subtraindo aos ndios o papel de sujeitos histricos do presente,

    o que lhes nega o status de serem coevos (Fabian 1983) a outros grupos sociais com os

    quais compartilham a construo de um determinado contexto histrico.

    Estas observaes crticas sobre como operar com fontes histricas e dados

    etnogrficos no tm, em hiptese alguma, a inteno de negar a possibilidade de se

    realizar comparaes e buscar critrios que permitam entender processos de mudanas e

    de continuidade na vida indgena. Aqui to somente se quer alertar sobre alguns perigos

    nos procedimentos adotados e na determinao de certos paradigmas analticos

    conseqentes. Neste mesmo sentido, Oliveira alerta que:

    Para que a observao realizada pelo cronista faa sentido para uma etnografia moderna (e no corresponda a uma induo do prprio cronista ou do pesquisador atual), necessrio que ela seja localizada em um eixo que abranja tempo e espao. Isso requer efetivamente deixar o material falar sobre aquilo que est sendo observado, as situaes sociais concretas, deixando de lado tanto as

    10 Como resultar claro mais adiante, Susnik (1879-80 e 1982), Meli (1986), Noelli (1993) e Soares (1997). 11 Por exemplo, nas obras de Schaden (1974) e Watson (1952).

  • 35

    generalizaes duvidosas feitas pelos prprios cronistas, quanto a pretenso do antroplogo de reunir informaes procedentes de diferentes tribos e diferentes momentos num monstro mecnico e artificial (a sociedade ou a cultura tal). (1987: 88-89).

    Ciente de que em muitos casos reconstruir contextos histricos com um mnimo

    de detalhes uma tarefa muito difcil, creio que oportuno o estabelecimento de limites

    bem precisos especulao analtica, evitando-se atribuir sentidos micos a dados

    colhidos em contextos temporal e espacialmente muito distantes um com relao aos

    outros. Alm disso, seria forar excessivamente as fontes documentais atribuir s

    categorias lingsticas colhidas por Montoya o mesmo status daquelas descritas nas

    etnografias modernas, visto que estas ltimas so registradas procurando entender seu

    sentido a partir do contexto de uso, com o qual o pesquisador, se supe, deveria estar

    familiarizado. Para o passado, ao contrrio, resulta muito difcil se ter esse nvel de

    controle contextual.

    Levando em conta estas limitaes na construo de paradigmas analticos,

    pretendo, no presente captulo delinear diferentes situaes histricas (Oliveira 1988),

    cada uma com caractersticas distintivas, fato que permitir estabelecer limites precisos

    especulao. Cabe observar que, como salienta o prprio Oliveira em sua definio, a

    situao histrica trata-se de uma construo do pesquisador, uma abstrao com

    finalidades analticas... (idem: 57). Neste sentido, o objetivo deste captulo no

    construir ou reconstruir a histria dos Guarani em geral ou dos Kaiowa em particular,

    como em alguns momentos poder parecer. Visto que outros autores forneceram

    valiosas contribuies neste ltimo sentido12, e estando meu trabalho focalizado mais

    que tudo na realidade contempornea dos Kaiowa, pretendo, com esta ferramenta

    analtica, estabelecer critrios de comparao que permitam reconstruir as

    caractersticas centrais dos contextos scio-ecolgico-territoriais nos quais os Guarani

    estiveram e esto inscritos. Deste modo, ser possvel enfocar as mudanas e/ou a

    continuidade de determinadas caractersticas sociais, ecolgicas ou territoriais, no a

    partir de uma suposta cultura guarani, que constituiria o ponto zero da comparao,

    mas como variaes histricas das configuraes desses contextos aqui analisados.

    12 Considero entre as mais significativas Susnik (1979-89), Meli (1986), Meli et al. (1976), Thomaz de Almeida (1991), Noelli (1993) e Soares (1997). Especificamente sobre a relao entre os Guarani e as misses, ver Gadelha 1980, Necker 1990 e Wilde 2003.

  • 36

    Captulo I

    Os Guarani pr-colombianos

    1.1 Organizao territorial e poltica

    Susnik (1979-80, 1982, 1983) considera que a organizao poltico-territorial

    entre os Guarani pr-contato era expressa pelo gura, um amplo espao territorial onde

    relacionavam-se unidades formadas por famlias extensas, unidades estas definidas pela

    autora como teyi-ga, isto , o teyi constituindo a famlia extensa e ga, representando

    a habitao comum que abrigava a totalidade do grupo familiar. Localizando-se os teyi-

    ga a vrias lguas de distncia um do outro, os encontros entre eles efetuavam-se

    periodicamente, especialmente em ocasio de convites para as festas religiosas e

    profanas, assim como para determinar alianas e expedies guerreiras. Na vida

    cotidiana, porm, as atividades tecno-econmicas eram fruto da cooperao do grupo

    domstico constitudo simplesmente por um teyi-ga, este garantindo, assim, uma

    autonomia relativa para com a unidade maior do gura.

    Segundo a autora, no interior do gura

    Cuando varios tei se asociaban , 5,6 o ms, formbase una conciencia socio local unitaria, el vnculo aldeano, teko; los Guaranes no desarrollaron, empero, aldeas multipoblaciones al modo de los Chan-Arawak. Al iniciarse la conquista hispana, las unidades teko estaban en algunas regiones recin en el proceso de integracin, de donde algunas peculiaridades socio polticas de los gura (Susnik 1983: 128).

    possvel observar que as trs unidades sociolgicas introduzidas pela

    autora expressam uma viso concntrica da organizao poltico-territorial dos Guarani

    histricos: em primeiro lugar estaria o espao restrito do teyi-ga, liderado por um

    teyi-ru (literalmente, pai, da famlia extensa); em segundo lugar, o espao mais amplo

    do tekoha, que seria um conjunto instvel e incipiente quando da colonizao

    espanhola de teyi-ga, unidos pelo vnculo aldeo, num modelo de povoado

    constitudo de residncias dispersas com distncias entre elas variveis, liderado por um

    tuvicha-ruvicha (chefe dos chefes); e, por ltimo, o espao regional abrangente definido

    como gura, tambm neste caso liderado por um tuvicha-ruvicha.

  • 37

    O arquelogo Soares, defendendo recentemente (1997) este tipo de modelo

    clssico de organizao poltico-territorial, insiste sobre o fato de que os Guarani pr-

    colombianos estariam organizados em cacicados, fato que para ele seria evidente

    devido recorrente meno nas fontes histricas de lderes muito respeitados em escala

    territorial ampla. Neste sentido, apoiando-se quase exclusivamente no vocabulrio

    redigido por Montoya, procura ele tambm definir as unidades sociolgicas seguindo o

    mesmo critrio de Susnik, acrescentando, porm, um nvel a mais nesse jogo de crculos

    concntricos. Isso ocorre porque o autor, para definir formas aldes de agrupamento e

    integrao social dos teyi, prefere manter-se fiel definio fornecida por Montoya,

    usando, para este nvel de organizao territorial, o termo amund. O tekoha, segundo

    Soares, seria um nvel intermedirio entre a aldeia e o gura.

    Aps as observaes feitas por este ltimo autor, os nveis de

    organizao territoriais podem ser expostos da seguinte forma:

    Para compreender qual o grau de interpretao analtica e de abstrao terica

    alcanados pelos dois autores, parece-me oportuno entrar minimamente nos detalhes das

    categorias nativas sobre as quais a argumentao feita. Os termos utilizados para

    denominar os quatro nveis relatados encontram-se em Montoya (1876), cujos verbetes

    teyi-ga

    tekoa

    amund

    gura

    Figura I

  • 38

    so apresentados a seguir, em seguida sendo feitos alguns comentrios que me parecem

    pertinentes.

    Teyi:

    Tei, manada, compaia, parcialidad, genealoia, muchos. Cherei, mi parcialidad, Religi, los mios. Cherei guar nde, tu eres de los mios, de mi Religion. Jei hei hecni. Tei tei, andan em manadas. Gueipe chemoyng cherend pguama, en medio me pufieron para oirme. Teipe ha, dixelo en publico. Tei tape, publicamente. Tei upba, lugar publico, o lugar de muchos. De aqui fale. Teyp, el rancho por los caminos. Nde eic orereimo, fed vos nueftro caudillo. Orereimo toroguerec Per, elijamos por nueftro caudillo a Pedro. Gueia, ellos all, fu parcialidad dellos en fu pueblo fon muchos. Orerei a oroic, todos los de vna parcialidad eftamos juntos. Pendei a, los vuesftros de vueftra parcialidad. Tei eup aqu. Tei pe ah. Teiereheguarup ayquie, paffaronfe al outro vdo. (p. 376).

    Amund:

    pueblo, la vezindad de pueblos pequeos. Amundabigura, vezinos en aldeas cerca de pueblos grandes. Amundra, idem. A amund hec, poner fu cafa, o ueblo cerca de otro.Amo amund, hago que fe pueblo cerca de otro pueblo, cafa. Oroo amund, acercamonos vnos a otros con las cafas, viuienda. Nache amundbi, no tengo vezinos. Oo amund tba oicbo, eftn los pueblos cercanos vnos a otros. (p. 34).

    Teko / Tekoa:

    Tec, fer, eftado de vida, condicin, eftar, coftumbre, ley, habito. Cherec, mi fer, mi vida. Teco, cogerle fu coftumbre, imitar. Chereco, me imita. Aheco, yo le imito. Aheco ruc, hazer que le imite. ande remieco rm Iefu Chrifto .y. el que hemos de imitar es Iefu Chrifto nueftro Seor.

    Teco, fuerte, caer fuerte. Chereco ibi catupiripe, cayome la fuerte en buena tierra. Chriftianos reco pip pendeco . Cayoos la fuerte de Chriftianos; entre Chriftianos. Tec catupiri pip chereco , cayome muy buena fuerte. Cherori cat ibi catupiri pip nde recori, huelgome q os aya cado en fuerte tan buena tierra. () (p. 363).

    Gura:

    Utilidad pertenecer a cofas, y perfonas, y tiempos, conftar de materia y forma, para de perfona, tiempos, y cofas, patria, parcialidad, paifes, region, fum, es, fui, participio, aduerbios, tiene quatro tiempos como los demas nombres, gura guerra, gurma, garan, gera.

    Vtilidad.

    Ab chebegara, hombre que me es vtil. Che a ychup gara, yo folo le foy de prouecho. (...).

    Pertenecer con rehe.

  • 39

    Cherehegara, lo que me pertenece. Cheret rehegara, lo que pertenece a mi cuerpo. Mba che rehegara, los bienes que me pertenecen. (...)

    Conftar de materia y forma.

    Ab ibi rehegara, hombre de tierra. Ogibirap rehegara, cafa de tablas. (...).

    Para de perfona y cafas.

    Chebegarma ehey am, dexa algo para mi. Chebeguarangera ocay, lo que auia de fer para mi fe perdio. (...).

    Patria.

    Ponen el nombre del rio de que beuen, o lo de q toma la denominacion. Paragaigara, los que fon del rio Paraguay. Paran igara, los del Parana. (...). Chertambigara, los de mi pueblo.

    Parcialidad, Paifes, Region.

    Efte, gara, haze finalefa con ram. V.g. gamo, humo, uamo, dize parcialidad. Oroygumo oroyc, eftamos en parcialidades.Oyo hamoquybongara na p ram rugua, los deftos paifes de aca no fomos como vsotros. (...). Oyou amo rehegara, los de fu parcialidad dellos, o de aquella region. (...).

    Sum, es, fui.

    Oy e gara, lo q es de oy. P ceh gara bi, petuy bae ep aub, mbittich im gara, vofotros que naciftes ayer eftais viejos, que fer yo.

    Particpio de verbos.

    Acaa, beuer yerua, caagara. Aca, beuer vino. (...). Amombe, dezir. (p. 129-130).

    Como se pode observar, Montoya muito detalhista na definio dos termos,

    indicando vrios contextos lingsticos de uso. Neste sentido, o nvel de interpretao

    semntica feita pelo jesuta reduzido - porm no ausente -, fornecendo ao leitor uma

    ampla gama de significados.

    Rapidamente se poder notar que existe uma clara correspondncia entre alguns

    significados registrados por Montoya e aqueles atribudos pelos autores anteriormente

    citados, em trs das quatro categorias examinadas. A primeira e a segunda (isto , teyi e

    amund) deixam pouca margem para que se faa delas uma interpretao ambgua. J

    para a categoria de gura, sobre a qual o jesuta se deteve amplamente, no se pode

    afirmar o mesmo. Quando o termo se refere associao entre grupos de indivduos e o

    espao, o significado permanece genrico, a categoria lingstica podendo se referir ao

    domnio de uma residncia, mas tambm ao de uma regio neste ltimo caso, no se

    partindo de uma determinada organizao poltico-territorial, mas em funo das

    caractersticas hidrogrficas de um determinado lugar. Esta ambigidade ocorre porque,

    a rigor, gura significa Deve-se observar tambm que, em relao classificao dos

    significados, Montoya deixa transparecer certo nvel de interpretao, que permite

  • 40

    localizar a projeo de suas categorias, enquanto categorias compartilhadas com a

    populao colonizadora. A diviso em ptria e parcialidade, pases e regio, por

    exemplo, parece responder mais a uma tentativa de sistematizao dos significados do

    termo gura segundo uma imagem predeterminada dessas unidades polticas e

    territoriais, imagem esta em certa medida construda a partir da ideologia europia do

    sculo XVII. De qualquer forma, o rigor descritivo demonstrado pelo jesuta de

    considervel apreciao, prevalecendo o significado literal do termo gura. Isto nos

    permite observar que para indicar parcialidade, no s o termo gura pode ser

    utilizado, mas tambm teyi. Esta comparao me parece pertinente porque se, no caso

    de gura, a construo do tamanho da parcialidade determinada por via indireta,

    atravs de uma equao analtica que associa o porte de um curso fluvial ao nmero dos

    grupos de indivduos englobados no espao geogrfico desenhado por sua bacia (ou

    micro-bacia), no caso de teyi, parcialidade indica um grupo baseado no parentesco,

    apresentando-se como uma categoria essencialmente social e no geogrfica.

    Estas ltimas observaes no tm como objetivo negar o entendimento do

    gura como espao no interior do qual existiam formas precisas de organizao poltica.

    Aqui se quer simplesmente indicar que no dispomos de elementos suficientes para

    detalhar este tipo de organizao. O simples fato de existirem indivduos

    reconhecidamente prestigiosos no nos autoriza a considerar a organizao poltica

    como sendo hierarquicamente ordenada em torno a esta figura, gerando um sistema

    poltico centralizado em escala territorial ampla.

    Referindo-se ao Itatim, Gadelha (1980) observa que esta provncia no era

    povoada por uma nica parcialidade, e para fundamentar esta posio se apia no

    seguinte trecho da Carta nua do padre Nicols Mastrillo Duran, escrita em 1628:

    Cada una [casa] es una grande pieza donde vive el cacique con toda su parcialidad, o vasallos que suelen ser veinte, treinta, cuarenta, y a veces ms de cien familias; segn la calidad del cacique (apud Gadelha 1980: 258).

    A autora considera este documento como esclarecendo que a parcialidade vem

    a ser o cacique principal e sua linhagem (idem: 258). Alm disso, acrescenta que a

    relao entre cacique e nmero de famlias conjugais permanece constante nas

    descries feitas pelo padre Antonio Sepp no sculo XVII, sendo que o padre Cardiel,

    no sculo XVIII, afirmava que o nmero de famlias podia chegar a ser mais de

  • 41

    duzentas (ibidem). Nestes termos, se calculamos como mdia cinco pessoas por famlia,

    ter-se-ia, em casos excepcionais, pouco mais de 1.000 indivduos.

    No podemos perder de vista o fato de que as fontes apresentadas por Gadelha

    so fortemente emprenhadas das concepes polticas da poca, a hierarquia

    estabelecida entre cacique principal (tuvicha ruvicha13) e cacique (tuvicha,

    mburuvicha) no sendo endossada por uma efetiva demonstrao emprica dessa

    eventual diviso de status poltico. O caso do cacique principal anduavusu

    apresentado pela autora (idem: 260) como sendo emblemtico especialmente do grande

    poder religioso exercido por esta figura em escala territorial ampla, gozando ele do

    respeito e da considerao de muitos outros caciques da regio do Itatim. Isto, porm,

    no implica diretamente que existisse uma relao de mando e nem indica o tempo

    efetivo em que este importante lder-xam teria mantido seu grande prestgio.

    Um trecho de Azara extremamente significativo, pelo fato de nos fornecer

    (segundo sua ptica, obviamente) preciosos detalhes sobre o papel dos caciques. Este

    viajante, no final do sculo XVIII, afirmava que

    El cacicazgo es una especie de dignidad hereditaria como nuestros mayorazgos, pero muy singular, porque el que la posee no se difiere de los dems indios en casa, vestido ni insignia, ni exige tributo, respecto, servicio ni subordinacin, y se ve precisado a hacer lo que todos para vivir. Tampoco manda en la guerra, y si es tonto le dejan y toman otro (Azara apud Gadelha 1980: 260).

    A descrio que nos fornece o autor contrasta plenamente com a imagem do

    lder desenhada por outras fontes coloniais, aproximando-se mais daquela oferecida

    pelas etnografias modernas14. Isto nos deveria alertar para evitarmos definies frgeis e

    pouco confiveis de um modelo de organizao poltica dos Guarani pr-coloniais

    baseado no cacicado. Acredito que os dados numricos fornecidos por duas tabelas

    redigidas por Wilde (2003), apresentadas a seguir (v. tabelas I e II), podem colocar

    ainda mais dvidas neste sentido.

    Nelas, embora se fale de cazicazgos, com um simples clculo pode-se

    perceber que a relao entre o nmero de lderes e as pessoas a eles associadas desenha

    grupos relativamente pequenos, constitudos de poucas dezenas de indivduos. Nestes

    13 Cf. Susnik 1979-80. 14 Ver especialmente Meli et al. 1976, Thomaz de Almeida 2001, L. Pereira 1999, 2004, Mura 2000, 2004.

  • 42

    termos, o que os Jesutas chamavam de cacique, com muita probabilidade era

    simplesmente o tami (av), chefe da famlia extensa, ou um de seus filhos.

    Tambm Meli apresenta srias dvidas sobre a presumida organizao poltica

    em grandes cacicados, como fica evidente na seguinte argumentao:

    Lo que los espaoles de la poca y entre ellos los jesuitas llamaban cacicazgos, no eran muchas veces sino aquellos tyy cuyo significado, segn el Tesoro de la lengua guarani de Montoya (Madrid 1639b: f. 376), es compaa, parcialidad, genealoga, muchos. Y estas parcialidades por linaje no contaban con un nmero fijo de familias. Aquellas 400 familias, respondiendo a 27 caciques, que se juntaron en San Pablo de Iniay, dan una media de 15 familias por cacique. (Meli 1986: 79-80).

    Podemos concluir que para formular modelos minimamente confiveis de

    organizao poltico-territorial dos Guarani do perodo colonial necessrio ter

    disposio muito mais elementos dos que nos fornecem as fontes. Dever-se-ia saber

    tambm a nfase que era dada pelos ndios aos fatores de ordem poltica, religiosa,

    blica e tecno-econmica, cuja variao poderia resultar na determinao de

    configuraes sensivelmente diferentes entre si, dependendo do lugar e das

    circunstncias historicamente dadas.

  • 43

    Tabela I Evoluo de censos

    PUEBLOS 1647 1676 1735 1747

    (Querini) 1772 1784

    (Melo) 1796 (Als)

    1800

    Loreto 44 66 64 Itapua 55 55 53 San Ignacio Mini 32 85 San Ignacio Guasu 31 23 21 Corpus (14) 44 Jess 31 26 Santa Rosa 21 Santiago 27 26 Nuestra Seora de Fe 23 21 Trinidad 24 24 Santa Ana 39 San Cosme 23 Pueblos del Paran 269 Pueblos del Uruguay 302

    Fonte: Susnik 1966 (Wilde 2003)

    Tabela II Nmero de cacicados por Pueblo em 1799

    PUEBLOS PRESENTES FUGITIVOS N DE CACICADOS Santa Ana 1329 1689 39 Itapua 2244 793 53 Jess 981 824 26 San Ignacio Mini 771 1046 72 Loreto 1212 840 64 Trinidad 937 528 24 Candelaria 29 Santa Rosa 1228 286 21 San Cosme 939 358 23 Santiago 1289 266 26 Corpus 2287 1671 43 Santa Mara de Fe 21 San Ignacio Guazu 24

    Censo de pueblos (redues) sob jurisdio paraguaia realizado por Lazaro de

    Rivera em 1799. Dados obtidos de AGN Sala IX.18.2.2. (apud Wilde 2003)

  • 44

    Por exemplo, o fator religioso como elemento central na construo da tradio

    de conhecimento dos Kaiowa contemporneos, unido s condies de sujeio

    dominao colonial exercida pelos Estados brasileiro e paraguaio que imps regras de

    acesso aos espaos geogrficos alheias quelas anteriormente consideradas por estes

    ndios favoreceu o surgimento de formas especficas de organizao territorial,

    reforando sentimentos de autoctonia e introduzindo critrios dinmicos de diviso de

    espaos etnicamente exclusivos, indicados atravs da importante categoria de tekoha15.

    Tornando s quatro categorias listadas anteriormente, h uma delas cujo

    significado registrado por Montoya no corresponde quele atribudo pelos autores

    analisados: justamente a de tekoha. Como foi evidenciado, hoje tekoha, como categoria

    que indica espacialidade, uma noo muito importante para os Kaiowa, bem como

    para os outros grupos guarani, mas seu significado no dicionrio do jesuta no nos

    oferece qualquer indcio neste sentido. Registrando o significado de teko Montoya

    fornece uma clara descrio de sua conotao como ser, estado de vida, condio,

    estar, costume, lei e hbito. Na extensssima descrio deste verbete, porm, o autor

    trata sinteticamente as formas tec e teco, a primeira significando imitao e a

    segunda sorte.

    Em face da enorme riqueza descritiva fornecida pelo jesuta sobre o verbete

    teko, parece ser muito estranho ter-lhe passado despercebida a conotao de tekoha

    como categoria de espacialidade; no obstante, boa parte da literatura recente sobre os

    Guarani histricos e pr-histricos parece enveredar neste sentido.

    Para preencher essa presumida lacuna nessas e outras descries da poca, Meli

    prope o seguinte:

    El tipo de poblados que describen las fuentes jesuticas presenta notables coincidencias con los tekoha, tal como se conocen a travs de la etnografa moderna; de ah que sea permitido inducir supuestas analogas incluso para aquellos aspectos que la documentacin histrica no seal (1988: 104).

    15 Deste tema me ocuparei no segundo captulo, dedicado dinmica territorial desenvolvida recentemente nos territrios onde vivem os Kaiowa contemporneos. Aqui o que se quer sublinhar o fato de que, com os elementos disposio, no possvel desenhar apropriadamente, atravs de categorias micas e poucos elementos contextuais, a natureza organizativa dos gura, tanto do ponto de vista de suas variaes regionais como em sua amplitude scio-poltica.

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    Entre as fontes mais significativas s quais se refere Meli, encontram-se as

    fornecidas pelo prprio Montoya em outro livro (A Conquista Espiritual). Vejamos o

    trecho que diz respeito ao tema tratado:

    Note-se que chamamos Redues aos povos ou povoados de ndios que, vivendo sua antiga usana em selvas, serras e vales, junto a arroios escondidos, em trs, quatro ou seis casas apenas, separados uns dos outros em questo de lguas duas, trs ou mais, reduziu-os a diligncia dos padres a povoaes no pequenas e vida poltica (civilizada) e humana, beneficiando algodo com que se vistam, porque em geral viviam na desnudez, nem ainda cobrindo o que a natureza ocultou. (1985 [1639], p. 34)

    Como perceptvel, o tipo de descrio feita pelo jesuta nos oferece to

    somente uma imagem sobre a distribuio das residncias de modo disperso nos espaos

    geogrficos; o autor no detalha a organizao interna a essa unidade territorial.

    Portanto, no existindo uma etnografia do povoado realizada na poca colonial,

    muitos autores pretendem associar significados do presente a essas imagens fornecidas

    pelas fontes da poca.

    A analogia proposta por Meli, no trecho anteriormente citado, entre o presente

    e o passado seria mais pertinente se tivssemos disposio registros recorrentes da

    categoria tekoha pelo menos nos ltimos cem anos de histria