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C A P Í T U L O 1

Segurança Redefinida

Michael Renner

Pouco mais de uma década após o términoda guerra fria ter prenunciado uma nova erade paz, temores quanto à segurança estão devolta ao topo da agenda mundial. É palpáveluma sensação mais aguda de insegurança,refletida tanto nas manchetes como empesquisas de opinião em todo o mundo. Osataques terroristas de 11 de setembro nosEstados Unidos foram, sem dúvida, umevento pivotal. Ataques subseqüentes emoutros países, da Espanha ao Quênia, daArábia Saudita à Rússia e do Paquistão àIndonésia reforçaram a sensação generalizadade vulnerabilidade. E o caos crescente noIraque após a ocupação liderada pelos EstadosUnidos nutre a inquietação sobre as reper-cussões de um Oriente Médio desestabilizado.

Mas o terrorismo é apenas sintomático deum conjunto muito mais amplo de temoresque geraram uma nova era de ansiedade. Atosde terror e as conseqüentes reações são comopontos de exclamação num mesclado nocivode profundas pressões socioeconômicas,

ambientais e políticas – forças que, conjun-tamente, criam um mundo tumultuado einstável. Dentre elas, destacam-se pobrezaendêmica, transições econômicas convulsivasque causam desigualdade crescente e altodesemprego, crime internacional, disse-minação de armamentos mortais, movi-mentos populacionais em grande escala,desastres naturais recorrentes, colapso deecossistemas, doenças contagiosas novas eressurgentes, e o incremento de disputas sobreterras e outros recursos naturais, particu-larmente o petróleo. Estes “problemas sempassaporte” deverão se agravar nos anosfuturos. Entretanto, diferentemente de ameaçastradicionais de algum adversário, são melhorentendidas como riscos e vulnerabilidadescompartilhadas. Não podem ser resolvidasatravés de aumentos em gastos militares oumobilização de tropas. Também não podemser contidas com fechamento de fronteiras oumanutenção do status quo num mundoextremamente desigual.1

Unidades de medidas utilizadas neste livro são métricas, salvo quando a prática comum recomende em contrário.

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Numa pesquisa da Gallup International,realizada em 2003, que consultou cerca de43.000 pessoas em 51 nações, os queclassificaram a segurança internacional como“fraca” somaram o dobro daqueles queresponderam “boa”. Quase a metade dosentrevistados considerou que a próximageração viverá num mundo menos seguro,enquanto apenas 25% demonstraramexpectativa de melhoria. Igualmente, umapesquisa de 2.600 “líderes de opinião”,realizada em 2003 em 48 países, constatou umamplo sentimento de pessimismo, com pelomenos dois terços em cada região mundial seautodeclarando “insatisfeitos” com a situaçãoglobal atual. E numa série de consultaspatrocinadas pelo Banco Mundial, envolvendocerca do 20.000 pessoas pobres em 23 paísesem desenvolvimento, uma grande parceladeclarou estar em situação pior do que antes,dispor de menores oportunidades econômicase viver sob maior insegurança do que nopassado.2

Num contraste gritante com o equilíbriobipolar de forças durante a guerra fria,envolvendo arsenais nucleares e ideologiasfundamentais concorrentes, os desafios atuaisde segurança tendem a ser mais difusos,menos previsíveis e mais multidimensionais.Temores de um confronto violento entre duassuperpotências cederam lugar a receios quantoa guerras locais e regionais travadaspredominantemente com armas pequenas,volatilidade pós-conflitos, instabilidadeemanada de governos fracos e fracassados e

aumento de redes internacionais de crime eterror. Todavia, algumas velhas ameaças aindapersistem. Por exemplo, o avanço em direçãoao desarmamento nuclear estancou, enquantoassoma o perigo de armas nucleares e outrasaltamente letais se disseminarem entre umnúmero crescente de nações – ou caírem emmãos de grupos extremistas.

Os desafios que o mundo enfrenta sãoexacerbados por instituições públicas fracas ecorruptas, há falta de recurso à justiça e meiosinconstitucionais ou irregulares de mudançaspolíticas, como golpes de Estado e insur-reições. E são acentuados por um processodesigual de globalização que reúne nações ecomunidades de formas freqüentementeimprevisíveis, implicando riscos efetivos paramuitos e permitindo que grupos extremistasatuem com maior facilidade do que nopassado.3

O confronto Leste-Oeste, que obstaculizouo incremento de cooperação, cedeu lugar auma relação Norte-Sul mais vexatória, mar-cada por enormes desequilíbrios de meios devida, riqueza e poder. A única superpotênciaremanescente mantém uma relação cada vezmais inquietante e contenciosa com o restodo mundo. E as mudanças estruturais einovações cruciais necessárias para geraremuma governança global efetiva – propostasde reforma do Conselho de Segurança daONU ou criação de um órgão ambiental maisforte na ONU – sucumbiram à paralisiapolítica.

A necessidade de cooperação internacionalse tornou mais forte neste novo século, mesmoapós o surgimento de novas cisões e divisões,provocadas em parte pela crise do Iraque.Entretanto, Fred Halliday, Professor de Rela-ções Internacionais da Escola de Economia eCiências Políticas de Londres, alerta que “o

A necessidade de cooperação internacional

aumentou neste novo século, mesmo após

o surgimento de novas cisões e divisões.

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mundo parece cada vez mais distante dasolução das questões fundamentais queenfrenta, e cada vez mais profundamenteimerso numa fase de confrontamento,violência e disparidades culturais exageradas”4.

Políticas que buscam segurança priori-tariamente por meios militares e não lidamcom fatores subjacentes de instabilidade, irãoprovavelmente provocar uma espiral deviolência e instabilidade, e possivelmente causaro colapso de regras e normas internacionais.Políticas derivadas de uma nova conscien-tização de segurança global podem evitar essesperigos e promover alternativas construtivas.Uma abordagem firme e abrangente à criaçãode um mundo mais estável implica medidasdestinadas a impedir o declínio ambiental,romper os grilhões da pobreza e reverter atendência à desigualdade e insegurança socialcrescentes que geram desespero e extremismo.Uma mudança fundamental de prioridades éessencial para a realização dessas tarefas. Emúltima análise, a segurança tem que seruniversal.

As Raízes da Insegurança

A conscientização das ameaças e desafiosque não podem ser resolvidos dentro doarcabouço tradicional de segurança nacional,levou uma vasta gama de organizações nãogovernamentais (ONGs), acadêmicos e outrosa apurarem e redefinirem nosso conceito desegurança, ao longo das últimas duas décadas.Qual o objeto de segurança? Qual a naturezadas ameaças? Quem proporcionará segu-rança? E por que meios? Estas questões ediscussões ganharam ímpeto após o fim daguerra fria. E, hoje, as conclusões fundamentaisa que levaram são mais relevantes ainda:

Armas não proporcionam necessariamente

segurança. Isto é verdade para nações adver-sárias possuidoras de armas de tamanho poderde destruição que nenhuma defesa é possível.É verdade em guerras civis, onde a francadisponibilidade de armas fortalece osimplacáveis mas não proporciona defesa aoscivis. E foi verdade no dia 11 de setembro,quando um grupo obstinado de terroristasatacou com impunidade o país mais militar-mente poderoso do mundo.

A segurança efetiva num mundo glo-balizante não poderá ser proporcionada embases puramente nacionais. Será necessáriouma abordagem multilateral e até mesmo glo-bal para lidar eficazmente com a profusão dedesafios transfronteiras.

O foco tradicional na segurança doEstado (ou regime) é inadequado e precisaabranger a segurança e bem-estar de seushabitantes. Se indivíduos e comunidades estãoinseguros, a própria segurança nacional podese tornar extremamente frágil. A governançademocrática e uma sociedade civil vibrantepoderão vir a se tornar mais imperativas paraa segurança do que um exército.

Dimensões não-militares têm grandeinfluência sobre segurança e estabilidade.Nações em todo o mundo, mas particular-mente as nações e comunidades mais fracas,confrontam uma profusão de pressões.Enfrentam uma combinação debilitante decompetição crescente por recursos, colapsoambiental agudo, ressurgimento de doençasinfecciosas, pobreza e crescente disparidadede renda, pressões demográficas, desempregoe incerteza de meios de vida.5

As pressões diante de sociedades e povosde todo o mundo não geram, automatica-mente, ou necessariamente, violência. Podem,porém, se traduzir numa dinâmica política queleva a uma crescente polarização e radica-

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lização. As piores conseqüências são mais pro-váveis, onde insatisfações se agravam, ondepopulações sofrem com desemprego emmassa ou pobreza crônica, onde instituiçõessão fracas ou corruptas, onde armas estãolivremente disponibilizadas e onde humilhaçãoou desespero político frente à desesperançapor um futuro melhor pode direcionar aspessoas para movimentos extremistas.

A insegurança pode se manifestar em for-mas não necessariamente violentas. A “provados nove” é se o bem-estar e integridade dasociedade estão tão comprometidos a pontode levarem, possivelmente, a períodosprolongados de instabilidade e sofrimento emmassa. Medidas pelo número de vítimas edeslocamento em massa causados, asrepercussões da pobreza intensa e outrosfracassos sociais tendem a surgir de formamais ampla do que as irrupções de conflitoarmado. Enquanto cerca de 300.000 pessoasmorreram em conflitos armados em 2000,por exemplo, outros tantos morrem a cadamês, devido à água contaminada ou à ausênciade saneamento básico.6

Em termos abstratos, questões comodoenças infecciosas, desemprego ou mudançaclimática poderão ou não representar desafiosà segurança. Será, porém, que cruzam limiaresde grandeza ou provocam uma dinâmica queos transformam em algo mais poderoso? Porsi, ou combinados a outros fatores, podemfacilmente criar condições que põem emdúvida o tecido básico de comunidades enações. Como pergunta Alyson Bailes, Diretordo Stockholm International Peace Research Institute:“De que ‘choques’ pode uma sociedade serecuperar facilmente, e quais os que ameaçamminar toda sua viabilidade?” O esforço, então,será incrementar nossa conscientização dasinterações e dinâmica entre esses fatores e as

combinações capazes de causar resultadosdesestabilizadores.7

Os recursos naturais estão no centro demuitos conflitos. Através da história dahumanidade, grandes potências têmrepetidamente intervindo em países ricos emrecursos, seja militarmente ou por outrosmeios, a fim de controlarem suas riquezas na-turais. Freqüentemente, o resultado tem sidoinstabilidade política duradoura. Contra opano de fundo da demanda cada vez maisintensa de petróleo, voltam a se intensificarcompetições geopolíticas por acessopreferencial entre os grandes importadores.(Ver Capítulo 6)

As vantagens e desvantagens de projetosde exploração petrolífera, mineração e extra-ção de madeira freqüentemente se distribuemdesigualmente, provocando disputas compovos indígenas por todo o planeta. Riquezasnaturais também têm fomentado uma sériede guerras civis, com governos, rebeldes edéspotas na América Latina, África e Ásia,disputando recursos como petróleo, metais eminerais, pedras preciosas e madeira. A receitaproveniente destes bens ajuda a pagar pelasarmas e sustentar guerras de conseqüênciasdevastadoras para os civis presos no fogocruzado; lutas e saques rompem infra-estruturas civis, destroem safras e impedem aprestação de serviços vitais.8

Disputas também surgem sobre acesso arecursos naturais renováveis como água, terrascultiváveis, florestas e pesqueiros. Isto ocorreparticularmente entre grupos – como lavra-dores, pastores nômades, pecuaristas e extra-tivistas – que dependem diretamente da saúdee produtividade da base de recursos, mas cujasnecessidades são incompatíveis. Essas tensõesse intensificam com a crescente exaustão dosrecursos naturais e aumento da demanda

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gerado por pressões populacionais, e umcrescente consumo per capita. A violênciaregional em países como Brasil, Costa doMarfim, Haiti, México, Nigéria, Paquistão,Filipinas e Ruanda é, em parte, devida a essesfatores.9

A água é o recurso mais precioso. Tantosua qualidade quanto quantidade são cruciaispara as necessidades fundamentais humanasde alimentação e saúde. Dado o crescimentopopulacional, quase 3 bilhões de pessoas –40% da população mundial projetada –estarão vivendo em países sob estresse hídricoaté 2015. Embora não haja guerras entrenações pela água, como alguns previram, dis-putas e choques locais deverão proliferar. (VerCapítulo 5)10

A mudança climática certamente aguçaráuma vasta gama de desafios ambientais,intensificando, assim, muitas dessas disputas.Secas, enchentes e tempestades mais freqüentese intensas destruirão lavouras, solaparão ahabitabilidade de algumas regiões, aumentarãomovimentos populacionais involuntários etestarão seriamente instituições nacionais einternacionais.

Diferentes grupos sociais e comunidadesexperienciam de forma desigual os efeitos daexaustão de recursos e degradação ambiental.Estas divergências podem reforçar os dese-quilíbrios sociais e econômicos ou aprofundaras divisões étnicas e políticas. Não estáimplícito que a competição por recursos escas-sos ou as repercussões da degradação ambientallevam a conflito armado. Porém, freqüen-temente, agravam privações e dificuldades,acentuam o desespero daqueles mais afetadose reforçam a percepção que disputas têm“soma-zero”. O desafio é evitar estapolarização e, ao invés, transformar osproblemas ambientais em oportunidades de

prevenção de conflito e pacificação. (VerCapítulo 8)

Uma oferta confiável de alimentos é umdos determinantes mais fundamentais do quãoseguro ou inseguro está um povo. A segu-rança alimentar está na convergência dapobreza, distribuição de terras, disponibilidadehídrica e degradação ambiental. Porém, aguerra e colapso social também desempenhamum papel importante em alguns casos. E aproliferação da agricultura industrial e pro-moção de monoculturas vêm gerando preo-cupação crescente quanto à segurança e quali-dade da oferta alimentar. (Ver Capítulo 4)

Cerca de 1,4 bilhão de pessoas, a grandemaioria em países em desenvolvimento, sevêem diante da fragilidade ambiental. Destas,mais de 500 milhões de pessoas vivem emregiões áridas, mais de 400 milhões, a muitocusto, extraem um parco sustento de solos demá qualidade, cerca de 200 milhões depequenos produtores e sem-terras sãoforçados a cultivarem solos extremamenteíngremes e 130 milhões vivem em áreas des-matadas de florestas tropicais e outros ecos-sistemas florestais frágeis. A produtividade dosolo nessas áreas tende a se exaurir com relativarapidez, forçando as pessoas a se deslocaremem busca de oportunidades em outros lugares,às vezes em cidades distantes ou competindocom outras populações rurais.11

A Organização das Nações Unidas paraAlimento e Agricultura constatou que a fome– após ter caído gradativamente durante a pri-meira metade dos anos 90 – cresceu no finalda última década, afligindo hoje cerca de 800milhões de pessoas em todo o mundo. Aoferta inadequada de alimentos torna aspessoas mais suscetíveis a doenças. Mas há,também, um efeito inverso. A epidemia deAIDS causa um impacto devastador na pro-

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dução agrícola e segurança alimentar, poisincapacita e mata jovens adultos na sua idademais produtiva. Projeções indicam que a AIDSdizimará um quinto, ou mais, da mão-de-obraagrícola na maioria dos países da Áfricameridional até 2020, acentuando o risco dafome.12

A carga das doenças pode, em certos casos,ser suficientemente pesada, podendo solapareconomias e ameaçar a estabilidade social.Embora os pobres sejam os mais vulneráveis,as sociedades em todo o planeta se vêem hojefrente ao ressurgimento de doenças infecciosas.(Ver Capítulo 3). Patogenias cruzam fronteirascom uma facilidade cada vez maior, devidoao aumento crescente de viagens e negóciosinternacionais, migração e o tumulto socialinerente a guerras e movimentos de refugiados.A atividade madeireira, construção de estradase barragens, e a mudança climática facilitam adisseminação de doenças como malária,dengue e esquistossomose em áreas outroraimunes, ou expõem as pessoas a novos vetoresde doenças.13

Nos países em desenvolvimento maispobres, as doenças infecciosas estão debi-litando e empobrecendo famílias e comu-nidades, aprofundando a pobreza e aumen-tando as desigualdades, reduzindo drasti-camente a expectativa de vida e onerandogravemente a saúde econômica em geral. AAIDS não só dizima agricultores, mas atingemuitos outros no auge da idade produtiva –incluindo militares, professores, profissionaisda saúde e outros profissionais – e está

tornando órfãs um número alarmante decrianças. Professores em Zâmbia, por exem-plo, estão morrendo num ritmo maior do queo país pode treinar substitutos. A doençaincapacita as sociedades em todos os níveis,minando a resiliência geral de uma nação esua capacidade de governar e prover asnecessidades humanas básicas. Não é difícilconcluir que o impacto sobre a estabilidadepolítica será profundo nos anos futuros.14

Uma combinação de exaustão de recursos,destruição de ecossistemas, crescimentopopulacional e marginalização econômica daspopulações pobres abre caminho paradesastres “desnaturais” mais freqüentes edevastadores – distúrbios naturais agravadospela ação humana. Três vezes mais pessoas –250 milhões – foram afetadas por tais eventos,em 2003, do que em 1990. O desmatamentodeixou o Haiti extremamente vulnerável afuracões devastadores que, no final de 2004,causaram deslizamentos maciços e inundaçõesrepentinas. O ritmo deverá acelerar, na medidaem que a mudança climática se traduza emtempestades, enchentes, ondas de calor eestiagens mais intensas. Além de desastresrepentinos, há também os “primeirossintomas” da degradação de ecossistemas que,em alguns casos, é extrema o suficiente parasolapar a habitabilidade de uma determinadaregião. Isto é mais calamitoso para os pobres,uma vez que tendem a estar mais diretamenteexpostos, têm proteção inadequada e muitopouco em termos de recursos e meios paralidarem com as conseqüências.15

A opção não é outra senão buscar um novolar. Embora não existam dados confiáveis para

Através da história, as grandes potências

têm, repetidamente, intervindo em países

ricos em recursos, a fim de controlarem

suas riquezas naturais.

O mais preocupante é o imenso caudal

de jovens desempregados em muitos

países em desenvolvimento.

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o número desses “refugiados ambientais”, éevidente que muitos milhões são afetados eque suas fileiras deverão aumentar drasti-camente nos anos futuros. A desertificação,por exemplo, coloca cerca de 135 milhões depessoas, mundialmente, sob ameaça de seremexpulsos de suas terras. Em fevereiro de 2004,o Ministro do Meio Ambiente do Canadá,David Anderson, declarou que o “aque-cimento global representa uma ameaça delongo prazo à humanidade maior do que oterrorismo, por forçar centenas de milhões depessoas a abandonarem seus lares e provocarcatástrofe econômica”. Os deslocados podemnão ser bem-recebidos em outras áreas, pro-vocando tensões no acesso à terra, empregose serviços sociais.16

A falta de emprego, perspectivas econô-micas incertas e o acelerado crescimentopopulacional representam uma mistura poten-cialmente volátil, até mesmo na ausência depopulações deslocadas (ver Capítulo 2). Umrelatório de 2004, da Organização Inter-nacional do Trabalho, constatou que três quar-tos dos trabalhadores mundiais vivem sobinsegurança econômica. O mais preocupanteé o imenso caudal de jovens desempregadosem muitos países em desenvolvimento,particularmente onde os jovens entre 15 e 29anos representam 40%, ou mais, da populaçãototal. As Nações Unidas projetam que, até2005, cerca de 138 nações confrontarão esta“inchaço jovem”. O desemprego na juventudeestá disparando para níveis recordes, com astaxas mais altas no Oriente Médio e África doNorte (26%) e na África subsaariana (21%).Pelo menos 60 milhões de pessoas entre 15 e24 anos não encontram emprego, e o dobro– aproximadamente 130 milhões – está entreos 550 milhões de pobres mundiais que nãopodem retirar suas famílias da faixa depobreza.17

Quando um grande número de jovens sesente frustrado em sua busca por status emeios de vida, pode se tornar uma força deses-tabilizadora. Suas perspectivas incertas podemcausar um comportamento criminoso, nutrirdescontentamento que pode irromper emviolência urbana ou fomentar extremismopolítico. Para isto ocorrer, dependerá de umavariedade de fatores – dentre outros, a ex-tensão em que os sistemas políticos estejamabertos à dissensão e aptos a mudanças, osenso de identidade das pessoas e engajamentocívico, e o papel da educação. A Diretora Exe-cutiva do programa Habitat das Nações Uni-das, Anna Tibaijuka, alertou que os cortiçosurbanos podem ser incubadores de extremis-mo, caso os governos não saibam lidar com apobreza e o desespero que os envolvem.18

Particularmente, caso perdurem insatis-fações políticas, os descontentes podem serfacilmente recrutados por grupos deinsurgentes, milícias ou pelo crime organizado– como a experiência em países como Ruanda,Kosovo e Timor Leste demonstrou nos últi-mos anos. Entre os palestinos, o apoio à violên-cia política floresceu numa combinação deocupação cruel, colapso de liderança políticae o desemprego, que ocorreu numa média de35% em 2003. Uma sociedade culta e outrorarelativamente afluente viu sua taxa de pobrezadisparar de 20 para 50%, entre 1999 e 2003.Uma dinâmica semelhante ocorre hoje no Ira-que, onde a taxa oficial de desemprego é de 28%e o subemprego registra 22%, embora algumasestimativas citem números bem maiores.19

Bairros Ruins eVulnerabilidadesCompartilhadas

Problemas sociais, econômicos e ambientaisgraves – particularmente se mesclados a

caudal

uitos

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insatisfações políticas crescentes – podemradicalizar sociedades e até mesmo causarcolapso de governos. Disfuncionais, frágeis epropensos à violência, os assim chamadosgovernos fracassados fomentam instabilidadee desespero crônico, onde déspotas, redescriminosas ou grupos extremistas têm condi-ções de explorar um vácuo de governança elegitimidade.

Antes de 11 de setembro, a pobreza, insta-bilidade e guerras nos países pobres eramamplamente consideradas como marginais aosinteresses e bem-estar dos ricos. Mas, após osataques, ficou claro que as condições deperturbação política e miséria social nãopodem ficar eternamente restritas à periferia.“Se é que aprendemos alguma coisa com 11de setembro,” escreveu o colunista do NewYork Times, Thomas Friedman, “é que, se nãoformos a um bairro ruim, ele virá até nós.” OAfeganistão, desmantelado por lutasgeopolíticas pelo poder e depois esquecidoapós o término da guerra fria, tornou-se umsantuário ideal para a al Qaeda, abrigada peloregime Talibã. Há também evidência de queagentes da al Qaeda puderam utilizar a Libériacomo santuário, entre 1998 e 2002; juntamentecom o déspota-tornado-presidente CharlesTaylor, a organização esteve aparentementeenvolvida no tráfico de diamantes da vizinhaSerra Leoa.20

Por que nações fracassam? Há, claramente,muitas razões internas para isto, e ocorre emmuitas partes do mundo, do Haiti à Libéria ede Ruanda ao Afeganistão. Corrupção eclientelismo abundam. Golpes de Estado eregimes ditatoriais eclipsam regimesdemocráticos e provocam ciclos de repressãoe distúrbios. Estruturas de “Estado fantasma”deliberadamente enfraquecem instituiçõespúblicas, enquanto receitas e serviços são

desviados para redes paralelas que beneficiamapenas uma pequena elite. Divisões étnicas,tribais e de classe são exploradas por líderesoportunistas. E persistem as pressões popu-lacionais e sobre recursos naturais.21

Esses fracassos dão alento a forçasextremistas. No Iraque, por exemplo, acontinuação de um estado de guerra e severassanções internacionais, entre 1990 e 2003,causaram o virtual desaparecimento da classemédia e o colapso de um sistema educacionalsecular, resultando em desesperança eanalfabetismo generalizado, o que facilitou odesenvolvimento de forças religiosas funda-mentalistas.22

Porém, o termo “nação fracassada”esconde uma verdade inconveniente: fatoresexternos são igualmente importantes. ThomasFriedman poderia ter escrito mais apropria-damente: “Se você ajudar a criar um bairroruim, ele acabará por atemorizá-lo.” O regimeatual de comércio e investimentos globaisatende, principalmente, aos interesses de cercade 20% da humanidade que reivindica 80%dos recursos do planeta. Tende a marginalizaros pobres, aguçar as desigualdades sociais eeconômicas e debilitar a capacidade do Estadode prover serviços necessários e enfrentar osdesafios.23

Outro fator crucial é a intervenção externaque semeia desordem. No Afeganistão, porexemplo, os Estados Unidos, Paquistão eArábia Saudita recrutaram combatentesmujahedins nos anos 80, para forçar a retiradadas forças soviéticas de ocupação. Esta luta ea feroz guerra civil que se seguiu entre osgrupos vitoriosos da resistência devastaram opaís. O desfazimento da sociedade afegãpermitiu que elementos cruéis fossemvitoriosos. O Talibã foi o produto desta longadecaída na impunidade e colapso social, e a

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rede al Qaeda de Osama bin Laden nasceu domovimento de recrutamento anti-soviético. Oapoio aos mujahedins, composto de alguns doslíderes mais violentos e extremistas, dentro deum grande “jogo” de poder, parecia fazersentido nos anos 80 sob uma ótica geopolíticaestreita. Porém, os ataques de 11 de setembrocausaram um fatídico efeito bumerangue àguerra por procuração afegã.24

A Somália, freqüentemente citada comouma nação fracassada, desintegrou-se, emparte porque a militarização patrocinada,primeiramente, pelos soviéticos e depois pelosEstados Unidos levou, no final dos anos 70, auma guerra desastrosa com a Etiópia quedeixou o país abarrotado de armas. O imensodescaso das necessidades civis abriu caminhopara uma revolta popular, a derrubada daditadura de Siad Barre e para a guerra civil.Cerca de 500.000 armas caíram em mãos dedéspotas rivais que devastaram o país.25

Alguns comentaristas insistiram em novasintervenções militares, a fim de afastarproblemas emanando de “sociedadesdesordeiras.” Max Boot, do Conselho deRelações Exteriores dos Estados Unidos,escreveu que “o Afeganistão e outras regiõesatribuladas clamam pelo tipo de administraçãoexterna esclarecida outrora conduzida poringleses autoconfiantes, vestidos em calças estilomontaria e chapéu de explorador.” Mas, ainfeliz história de “blowback” – as conse-qüências imprevistas de ações empreendidaspor potências interventoras – indica que oresultado provável será ciclos de violência aoinvés de qualquer estabilidade duradoura.26

A descoberta de que nações fracassadaspodem representar uma ameaça maior àsegurança não corresponde a uma realidadecomplexa. Muito antes de esses casos surgiremnas telas de radar do hemisfério norte, já

haviam falhado perante seu próprio povo. Ouseja, mesmo que nações fracassadas específicasnunca consigam fazer parte da agenda donorte – se nunca forem taxadas como tal –,ainda assim frustram seu próprio povo. O Pa-quistão, por exemplo, pode se encaixar nestadescrição, considerando sua pobreza enraizada,corrupção endêmica, escolas religiosas quemais doutrinam do que capacitam, e escassosrecursos orçamentários desviados para finsmilitares e desenvolvimento de armas nu-cleares, ao invés de atendimento àsnecessidades básicas. A miséria que acompanhacolapsos nacionais precisa ser tratada em seupróprio mérito – e não só porque os ricos epoderosos identificaram essa condição comoameaça a eles mesmos.

O Norte e o Sul, ricos e pobres, tendem aconsiderar os desafios à segurança de formasbem diversas. Mas o Secretário Geral da ONU,Kofi Annan, alertou: “Vemos hoje, com umaclareza perturbadora, que um mundo ondevários milhões de pessoas sofrem opressãobrutal e miséria extrema nunca estará ple-namente seguro, mesmo para seus habitantesmais privilegiados.” Annan instou o mundoem março de 2004 a afastar a idéia de quealgumas ameaças, como o terrorismo e armasde destruição em massa, interessam apenas aospaíses do hemisfério norte, enquanto ameaçascomo pobreza e esforços para assegurar asnecessidades básicas da existência humana sódizem respeito ao sul. “Acho que necessitamosde um entendimento global claro das ameaçase desafios que todos teremos que enfrentar,pois negligenciar qualquer um deles poderáminar fatalmente nossos esforços no con-fronto de outros.”27

Superar as divisões que cada vez maisseparam comunidades, culturas e naçõesdíspares e melhorar dramaticamente a coope-

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ração internacional é claramente uma tarefahercúlea. Países individuais têm poderesimensamente divergentes, capacidades variadasde enfrentar desafios e diferentes perspectivassobre as ações adequadas a serem adotadas.Uma concepção compartilhada de segurançasó poderá ser desenvolvida se as ligações entredesafios diferentes forem reconhecidas e sehouver uma melhor compreensão de quemuitos deles são, efetivamente, riscos eapresentam vulnerabilidades compartilhadasque requerem soluções conjuntas.

Controle de Armas,Desativação de Conflitos

A obtenção de segurança compartilhadadependerá, em parte, do enfrentamento aodesafio tradicional de segurança de limitar adisseminação de armas e resolver conflitosantes de se tornarem violentos. Infelizmente,o histórico recente não é animador. O acervomundial de tanques, artilharia, jatos decombate, navios de guerra e outras armasconvencionais pesadas foi reduzido em umquarto, entre 1985 e2002. Os estoques deogivas nucleares caíram68%, gastos militares fo-ram reduzidos em 30%e as exportações dearmas diminuíram 58%.O número de soldadosencolheu 27% e as fileirasde trabalhadores nasindústrias bélicas 54%.(Ver Figura 1-1)28

O controle de armasleves tornou-se um itemaceitável da agendainternacional (ver

Capítulo 7.) Avanços consideráveis foramobtidos contra um tipo de arma dessacategoria, as minas terrestres antipessoais. Essasarmas indiscriminadas impõem ônus debi-litantes nos sistemas de saúde pública,transformam terras férteis em áreas inúteis,paralisam a atividade econômica e obstruemos esforços de reconstrução pós-conflito. Umtratado pioneiro em 1997, proibindo minasterrestres antipessoais, levou à redução do usode minas, a uma queda dramática na produçãoe à quase paralisação de exportações, àdestruição de mais de 50 milhões de minasestocadas e à redução significativa no númerode vítimas.29

Numa outra importante conquista regu-ladora, muitas nações aderiram a um novoTribunal Criminal Internacional, criado como objetivo de servir como instrumento paratrazer à justiça os perpetradores de genocídio,crimes de guerra e outros atos de impunidade.Os estatutos do Tribunal foram aprovadosem 1998, entrando em vigor a partir de 2002;em outubro de 2004, 139 países haviamassinado e 97 outros ratificado os estatutos.30

Figura 1-1. Progresso no Desarmamento Global, 1985-2002

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excessivos. Enquanto isso, há também o perigode material físsil do setor civil de energianuclear ser perdido ou desviado para finsarmamentistas. As quantidades de plutônio eurânio altamente enriquecido, oriundo dereatores militares e civis, continuam a crescer.Estimados em mais de 3.700 toneladas nofinal de 2003, em cerca de 60 países, isto ésuficiente para produzir centenas de milharesde armas nucleares.33

Enquanto a África do Sul e mais recen-temente a Líbia renunciaram às armasnucleares, disputas políticas e rivalidades regio-nais incitaram Índia, Israel, Coréia do Norte ePaquistão a adquirirem capacidade nuclear, oque pode persuadir outras nações, como oIrã, por exemplo, a seguirem seu exemplo. Aspotências nucleares existentes não deramindicação alguma de que irão cumprir seuscompromissos de desarmamento, nos termosdo Tratado de Não-proliferação. Pelo con-trário, os Estados Unidos estão desenvolvendoprojetos mais aplicáveis de ogivas e armasnucleares de baixa potência, tendo sua NuclearPosture Review [Revisão de Postura Nuclear], de2001, declarado que armas nucleares “propor-

Figura 1-2. Conflitos Armados, 1955-2002

Essas realizações teriam sido impensáveissem o surgimento daquilo que algunsdenominaram “segunda superpotência” – aopinião pública mundial. Os anos 90testemunharam o “poder suave” – umacombinação de diplomacia, persuasão eorganização da opinião pública – exercido porONGs, freqüentemente agindo em concertocom “governos afins.” O envolvimento deONGs ajudou a ampliar o alcance dasdiscussões sobre segurança e promoveu novosconceitos de segurança. Questões não-militarestambém foram levantadas numa série deconferências das Nações Unidas sobre o meioambiente, desenvolvimento social, populaçõese mulheres.31

Todavia, os anos 90 foram uma década deresultados altamente contraditórios – uma eratanto de oportunidades perdidas quanto derealizações notáveis. O desarmamento teveseus limites. Embora os países-membros daOTAN e do Pacto de Varsóvia reduzissemsubstancialmente seus arsenais, uma parcelasignificativa do excesso não foi destruída e simtransferida para países em desenvolvimento– que, hoje, pela primeira vez, possuem maisarmamentos pesados doque os países indus-trializados do hemisférionorte.32

O número de armasnucleares posicionadasdiminuiu, porém, desde1995, o ritmo do desar-mamento desacelerousignificativamente. ARússia, particularmente,precisa de muita ajudapara salvaguardar suasogivas contra roubo edesmontar seus estoques

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cionam opções militares confiáveis dedissuasão de uma vasta gama de ameaças” eajudam a “atingir objetivos estratégicos epolíticos.”34

O número global de guerras declinoudurante os anos 90. (Ver Figura 1-2.) Emboraseja obviamente uma boa notícia, permanecemalgumas questões sobre se as estatísticas dispo-níveis captam a extensão plena da violênciaarmada no mundo. Além de limitaçõesmetodológicas, a distinção entre guerra e pazse tornou nebulosa sob vários aspectos. Aviolência é freqüentemente mais esporádica doque contínua, e a instabilidade continua acontaminar muitas sociedades, mesmo apóso término formal do conflito. Exércitosregulares diminuíram seus efetivos, todaviadéspotas, redes de crime e companhiasmilitares privadas apontam para uma crescenteprivatização da violência e formas de inse-gurança que ainda não foram necessariamentecompiladas pelas estatísticas bélicas.35

Devido à instabilidade crônica, fluxos derefugiados e outros efeitos colaterais, omundo tem interesse óbvio em evitar airrupção de conflitos violentos e terminar asguerras em andamento o mais rápido possível.O número de missões de paz cresceu consi-deravelmente a partir do início dos anos 90.Entretanto, a maioria dos esforços éprejudicada pela inadequação de recursos,apoio político errático e falta de uma estruturapermanente que assegure o posicionamentode forças de paz bem treinadas, de maneiraoportuna e em número suficiente.36

O fim da guerra fria efetivamente criouoportunidades, outrora indisponíveis, demanutenção da paz, permitindo que oConselho de Segurança trabalhasse com maiorprodutividade. Os cinco membros perma-nentes apresentaram apenas 18 vetos entre

1990 e o final de 2004 – uma média anualbem menor do que os 199 vetos entre 1946e 1989. Mesmo assim, os membros perma-nentes vêm recorrendo cada vez mais a umveto “oculto” – ameaçando utilizar o veto afim de manter itens indesejados fora daagenda do Conselho, que nunca age emconflitos em que os membros permanentesconsiderem como sua própria área deinfluência, como na Chechênia, Tibete ouIrlanda do Norte. Tanto os vetos efetivosquanto os ocultos, pelos Estados Unidos,impediram a ação do Conselho no conflitoisraelense-palestino.37

Outrossim, o desinteresse das grandespotências impede repetidamente o envol-vimento do Conselho onde desastres bélicose humanitários exigiriam ação. O resultado éuma escolha desagradável entre paralisia (comoocorreu durante o genocídio em Ruanda, em1994) e intervenção por nações que se auto-declaram “interessadas” (como em Kosovo,em 1999, quando a Rússia bloqueou a açãodo Conselho e a OTAN iniciou uma guerraaérea contra a Sérvia). Sem dúvida, aautoridade do Conselho ficou tremendamenteabalada.38

Em retrospecto, os anos 90 propor-cionaram uma breve janela de oportunidadeapós a guerra fria, para criar instituições emecanismos que pudessem lidar com novosdesafios e agir para uma conscientização maisabrangente de segurança. A oportunidade foiem grande parte desperdiçada: no todo, oinvestimento da comunidade internacional naprevenção de conflitos, manutenção da paz ereconstrução pós-conflito foi inadequado. Ofracasso em avançar mais decididamentedurante a “lua-de-mel” pós-guerra fria voltaagora a nos atormentar na era pós-11 desetembro.39

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O Impacto daGuerra ao Terrorismo

Os temores criados pelos ataques de 11 desetembro provocaram uma reação perigosa:uma guerra ao terrorismo de alcance e duraçãoessencialmente ilimitados que forçou políticasgovernamentais e a cobertura da mídia, emmuitos países, a novamente enfocarem osdesafios à segurança de uma forma exces-sivamente estreita e a retornarem a umadependência mais forte de instrumentosmilitares. Se o terrorismo pode ser “der-rotado” por meios militares é questionável,uma vez que grupos extremistas não são alvosfacilmente identificáveis. O terrorismo é umcaminho escolhido por protagonistas quetendem a ser politicamente desesperados emilitarmente fracos. Atos de terror não irãodesaparecer enquanto as raízes da violênciaextremada não forem tratadas.40

Várias medidas vêm sendo adotadas emnome do antiterrorismo que poderãoperpetuar um ciclo de violência. Essas açõessolapam a cooperação internacional, enfra-quecem as leis de direitos humanos e outrasnormas internacionais e fazem o jogo deextremistas que vicejam no “choque decivilizações.” E esta resposta militarizada estádesviando recursos e atenção política dequestões socioeconômicas e ambientaissubjacentes, gerando tensão e instabilidadecrescentes.

Seguramente, governos têm estado longeda unanimidade em suas reações ao 11 desetembro e outros atos terroristas. Narealidade, as divisões transatlânticas e inter-européias sobre o Iraque revelaram diferençaspolíticas profundas e causaram grandes cisõesna aliança ocidental. Enquanto os EstadosUnidos abraçaram o uso da força prati-

camente sem hesitação, a Europa tem sidomuito mais ambígua. Em dezembro de 2003,o Conselho da Europa aprovou umadeclaração sobre a Estratégia de SegurançaEuropéia. Argumentando que, “numa era deglobalização, ameaças distantes podem ser tãopreocupantes quanto as próximas,” odocumento conclui que “a primeira linha dedefesa freqüentemente estará no exterior.”Reconhece que “nenhuma das novas ameaçasé puramente militar; como também nenhumapoderá ser tratada puramente através de meiosmilitares.” Mas, então, o documento endossamais recursos para defesa e a transformaçãodos exércitos europeus em “forças maisflexíveis e móveis.” Em última análise, priorizaa intervenção militar e dá pouca atenção ameios não militares de lidar com os desafiosde segurança.41

Vários países – China, Colômbia, Filipinas,Índia, Indonésia, Israel e Rússia dentre eles –viram a guerra ao terrorismo como umaoportunidade para agir contra insurgentes,separatistas e outros opositores políticos commaior impunidade, taxando-os de terroristas.Campanhas militares vêm acompanhadas deuma abordagem autoritária da lei e ordem,erodindo direitos humanos, restringindoliberdades civis, intimidando dissensõespolíticas internas e adotando medidas punitivascontra refugiados e pessoas em busca de asilo.E, em nome de combate ao terrorismo, naçõesfornecedoras não têm relutado em pro-porcionar armas e ajuda militar a nações quecometem violações graves de direitos huma-

A guerra ao terror ameaça marginalizar

a luta contra a pobreza, epidemias e

degradação ambiental.

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nos. A Anistia Internacional está preocupadacom o fato de os “direitos humanos e leishumanitárias estarem mundialmente sob umaameaça maior do que jamais estiveram desdea fundação das Nações Unidas, há mais demeio-século.”42

A onda sem precedentes de empatia globalcom os Estados Unidos, após os eventos de11 de setembro, lançou a esperança de que ahumanidade se uniria em torno de umpropósito comum. Todavia, o governo Bushrejeitou uma abordagem multilateral. Anulouapoio anterior ou fortaleceu sua oposição avários tratados, como ao estatuto do TribunalCriminal Internacional, o tratado que proíbetestes nucleares, uma proposta de um sistemade verificação para o Tratado e de ArmasBiológicas e Tóxicas, e as disposições de inspe-ção e verificação para um tratado ainda a sernegociado proibindo a produção de materialfíssil para armas nucleares.43

Mais gravemente, o governo arrogou-se umdireito abrangente de realizar guerraspreemptivas em contravenção à Carta dasNações Unidas. A Estratégia de SegurançaNacional, de setembro de 2002, alerta que, “afim de se antecipar ou impedir...ações hostispor nossos adversários, os Estados Unidosirão, caso necessário, agir preemptivamente.”Este é um precedente perigoso que outrospaíses podem ficar inclinados a seguir. ARússia, enredada numa luta brutal com osseparatistas chechenos, se valerá de ataquespreemptivos. Tem havido também espe-culações de que Israel poderá lançar um ataquecontra instalações iranianas suspeitas de estaremproduzindo armas nucleares. O resultado,porém, poderá ser um futuro anárquico deataques e guerras preemptivas. Mesmo queeste cenário lúgubre não se realize, existe operigo de que o regime jurídico internacional,

já freqüentemente violado, seja debilitadoainda mais.44

De acordo com o governo Bush, o Iraqueé “o front central na guerra ao terror.” MasJeffrey Record, um analista da Escola deGuerra do Exercito dos Estados Unidos,argumenta que a administração federal fundiu“Estados delinqüentes,” proliferadores dearmas de destruição em massa e organizaçõesterroristas numa ameaça monolítica e, “emassim fazendo...pode estar conduzindo osEstados Unidos em direção a um conflitogratuito e irrestrito contra entidades ou Estadosque não representam ameaça grave aosEstados Unidos.”45

De fato, a ocupação do Iraque abriu umacaixa de Pandora de violência e caos. Diantede uma violência crescente, medidas de“segurança” absorvem muitos dos recursosostensivamente alocados à reconstrução.Embora muito pouco tenha sido gasto emreconstrução efetiva, os Estados Unidosdecidiram desviar cerca de 3,5 bilhões dedólares de projetos hídricos, esgotamento eeletricidade para uma gama de medidas desegurança. Uma estimativa da US NationalIntelligence pinta um quadro tenebroso, inclusivecom a possibilidade de o país descambar paraa guerra civil. Separatistas curdos, animosidadesentre sunis e xiitas, e a luta pelo poder quejoga forças islâmicas e seculares umas contraas outras, estão entre os fatores que poderãofragmentar o país. Se isto ocorrer, a insta-bilidade poderá se alastrar para os paísesvizinhos também.46

Ao invés de atingir o terrorismo, a ocupaçãodo Iraque acelerou a radicalização de ummundo islâmico já fervilhando com os eventosdos territórios palestinos ocupados, daCashemira e Chechênia. O Iraque tornou-seum possante campo de recrutamento de

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novos extremistas. O Instituto de Estudos deSegurança Internacional, sediado em Londres,divulgou em maio de 2004 que a al Qaedagalvanizou-se pela guerra do Iraque; acreditaque a organização esteja presente em mais de60 países, com uma disponibilidade de“18.000 terroristas em potencial.” De fato, umrelatório do Departamento de Estado dosEstados Unidos revela um aumento nonúmero “significativo” de incidentes e vítimasdo terrorismo em 2003, comparado com2002.47

A guerra do Iraque drenou recursos muitonecessários para a gigantesca tarefa dedesarmamento, desmobilização e reconstruçãono Afeganistão – o país anfitrião da al Qaeda eque está hoje novamente em perigo de cairvítima de déspotas e de um incipiente tráficode drogas. De acordo com A. Yusuf Nuristani,Ministro da Irrigação, Recursos Hídricos eMeio Ambiente, o Afeganistão recebe apenas1 de cada 30 dólares destinado ao Iraque. Anação recebeu muito menos apoio dedoadores internacionais que outros países emprocesso de reconstrução pós-conflito: apenasUS$ 67 anuais, per capita, comparado com US$74 para o Haiti, US$ 114 para Ruanda, US$249 para Bósnia e US$ 814 para Kosovo.48

Sob a perspectiva de um conceito maisamplo de segurança, a guerra ao terror ameaçamarginalizar a luta contra a pobreza, epidemiase degradação ambiental, desviando recursosfinanceiros e capital político já escassos decausas fundamentais da insegurança. Movidosprincipalmente pelo intenso dispêndioamericano, os gastos militares mundiais já seaproximam de US$ 1 trilhão anuais.49

Surpreendentemente, investimentos mo-destos em saúde, educação e proteçãoambiental poderiam explorar um imensopotencial humano hoje agrilhoado pela

pobreza, e quebrar os círculos viciosos queestão desestabilizando grandes áreas do nossoplaneta. Estimativas indicam que programasde abastecimento de água potável e sistemasde esgotos custariam cerca de US$ 37 bilhõesanuais; para reduzir a fome mundial à metade,US$ 24 bilhões; impedir erosão do solo, outrosUS$ 24 bilhões; prestar assistência à saúdereprodutiva de todas as mulheres, US$ 12bilhões; erradicar o analfabetismo, US$ 5bilhões; e vacinar todas as crianças no mundoem desenvolvimento US$ 3 bilhões.Gastando-se apenas US$ 10 bilhões anual-mente num programa global de HIV/AIDS,e cerca de US$ 3 bilhões no combate à maláriana África subsaariana, salvar-se-iam milhõesde vidas. Tudo isto perfaz um pouco mais dametade dos US$ 211 bilhões que foramaportados para a guerra no Iraque, até o finalde 2004.50

Ao mesmo tempo, o fluxo de ajuda aomundo em desenvolvimento caiu durante osanos 90, de cerca de US$ 73 bilhões, em 1992,para US$ 57 bilhões, em 2002. Computandotodos os fluxos financeiros, as Nações Unidasdivulgaram que, em 1994-2002, os países emdesenvolvimento sofreram um fluxocumulativo de saída de US$ 560 bilhões. E osaportes orçamentários de muitos países pobresfavorecem, eles mesmos, as suas forçasarmadas. Para alguns – Burundi, Eritréa ePaquistão, dentre eles – os gastos militaresequivalem ou excedem os dispêndios públicoscombinados de saúde e educação.51

Há um nítido perigo de que os ganhoscruciais em saúde, educação e contra a pobreza,previstos nas Metas Desenvolvimentistas doMilênio das Nações Unidas, aprovadas pelacomunidade mundial em setembro de 2000,não serão alcançados, devido à atenção e osrecursos internacionais terem sido desviados

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para orçamentos militares e a guerra contra oterror. (Ver Capítulo 9.) Todavia, sãoprecisamente esses fatores subjacentes – e aforma como se traduzem em dinâmica etensão política – que estão entre os principaisimpulsionadores de grande parte dainstabilidade global.52

É o esvaecimento da esperança de umfuturo melhor que ajuda a fomentar o extre-mismo e facilitar o recrutamento de agi-tadores. A pobreza está efetivamenteaumentando em partes do mundo, inclusivena África subsaariana, onde cresceu de 42 para47% da população, entre 1981 e 2001. “Ummundo que não avançar em direção às MetasDesenvolvimentistas do Milênio,” alertou KofiAnnan, em setembro de 2004, “não ficará empaz. E um mundo enredado em violência econflito poucas chances terá de atingir essasMetas.”53

Devido ao papel preponderante dosEstados Unidos no mundo, as direçõesfuturas de sua política serão cruciais paradeterminar o caminho que a humanidadeescolherá. Escrevendo antes das eleiçõesamericanas de novembro de 2004, AnatolLieven, da Carnegie Endowment for InternationalPeace, antecipou que “a guerra dos EstadosUnidos ao terrorismo será conduzida deforma muito mais cautelosa de agora emdiante, seja Bush ou Kerry o vencedor emnovembro. Uma política cautelosa, entretanto,não é a mesma coisa que uma política nova.”Uma rededicação ao multilateralismo e aoencontro de abordagens comuns aos desafiosglobais será crucial. Todavia, a invasão doIraque não pode ser desfeita e suasconseqüências desestabilizadoras também nãopodem ser apagadas. Não há forma decolocar este gênio de volta na lâmpada.54

Princípios para um Mundo Mais Seguro

O esforço para reconceituar a segurançanão é um exercício acadêmico. A questão épersuadir legisladores a adotarem uma visãodiferente do mundo – interpretar tendências,acontecimentos e notícias sob um novoprisma e, fundamentalmente, promoveragendas e políticas diferenciadas. Pelo menostrês princípios básicos derivam de umaredefinição de segurança.

Primeiro, uma nova política de segurançaprecisa ser de natureza transformadora,fortalecendo as instituições civis que possamlidar com as raízes da insegurança. Ao ligarmeio ambiente, saúde, pobreza, migração eoutras questões à segurança, há um riscodefinido de “securitizar” essas questões – ouseja, aplicar a linguagem e racionalidade deinstituições tradicionais de segurança e assimpromover um pensamento mais antagonistado que cooperativo. A mera re-rotulagem dealguns desafios como ameaças à segurançapode dar-lhes maior destaque na agendapolítica, porém conseguiria pouco mais do quea ampliação do alcance e poder de instituiçõestradicionais de segurança. A fim de evitar amilitarização de políticas, é importante aplicara linguagem dos direitos humanos, equidadee meio de vida a esta nova visão de mundo.Na realidade, significa recuperar a expressãosegurança.

O segundo princípio flui diretamente destapercepção: uma nova política de segurançadeverá, acima de tudo, ser de naturezapreventiva. A prevenção de conflitos é muitocomumente vista como um esforço tímido,de último recurso, onde a irrupção da violênciapareça iminente. Mas, entender as causasbásicas de conflito e insegurança implica uma

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aplicabilidade prévia muito mais abrangentee não um simples esforço de tratar dossintomas. Países doadores tendem a serrelativamente generosos quando se trata demedidas do tipo “band-aid.” Muito (emboraao mesmo tempo, ironicamente, não obastante) está sendo gasto em medidashumanitárias, tais como alívio a desastres eoutras ajudas emergenciais em apoio aoreassentamento de refugiados, e até mesmoem parcos e tardios esforços de manutençãode paz.55

Robert Picciotto, ex-executivo do BancoMundial e hoje Diretor do Global Policy Project,de Londres, argumenta que “a ciênciaeconômica de segurança internacional seassemelha à economia de saúde pública. Damesma forma que as políticas de saúdepública vão além de medidas curativas, apolítica de segurança se estende à prevençãode conflitos.” A prevenção de conflitosprecisa ser incluída numa ampla gama depolíticas sociais e econômicas. Na realidade,há necessidade de realizar avaliações deimpacto à segurança semelhante às avaliaçõesde impactos ambientais implementadas emalguns países.56

O terceiro princípio é que uma novapolítica de segurança precisa ser intersecionale integradora. O entendimento doscomplexos desafios à segurança, permitindouma avaliação sofisticada da dinâmica queleva à instabilidade, e a realização de umdiagnóstico mais eficaz das políticasnecessárias à prevenção de conflitos e àobtenção de uma segurança significativa,exigirá reunir percepções de uma vasta gamade disciplinas – ciências políticas, economia,sociologia, geografia, história, saúde públicae muitas outras.

As conferências internacionais da últimadécada reconheceram a necessidade de ligaçãode meio ambiente, desenvolvimento esegurança. O desenvolvimento e a paz sãointer-relacionados e simbióticos; sua ausênciaé o que freqüentemente causa o fracasso denações. Embora a pobreza não levenecessariamente à violência, não há dúvida deque a ausência de desenvolvimento benéficogera insegurança e permite, na melhor dashipóteses, uma paz frágil. Para que odesenvolvimento ocorra, é necessário paz eestabilidade política. E o desenvolvimentoprecisa ser infundido com sustentabilidade eeqüidade; a simplória maximização decrescimento econômico pode acabar porameaçar a integridade ambiental, destruindomeios de vida de comunidades pobres eproduzindo resultados altamente desiguais.57

Entretanto, transformar este último prin-cípio numa política efetiva continua sendo umdesafio. Exigirá transcender barreirasacadêmicas e burocráticas e superar osentraves de uma baixa qualificação nummundo especializado – seja em nível degovernos, organizações internacionais,universidades ou ONGs. E requererá fundiressas fontes de especializações através de umaconscientização inter e transdisciplinar, eencorajar o desenvolvimento de uma“linguagem” compartilhada. Dadas as atuaisculturas, agendas e horizontes de tempoconflitantes, isto será extremamente penoso.58

Há também desequilíbrios importantesentre diferentes instituições governamentais. Aresistência política e os recursos à disposição

Uma nova política de segurança

deverá, acima de tudo, ser de

natureza preventiva.

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dos órgãos de defesa são vastos emcomparação a ministérios de desenvolvimentoe meio ambiente. Legisladores estrangeiros ede segurança são capazes de assegurar aatenção política e a força burocrática, maspodem simplesmente varrer as questões desegurança humana para baixo do tapete daagenda tradicional de segurança. Na realidade,a ajuda externa há muito está subordinada aquestões convencionais de “segurançanacional.” As instituições encarregadas deproteção ambiental ou ajuda desenvol-vimentista têm capacidade especializada,todavia pouca influência política e parcosmeios financeiros.

Esses princípios estão sendo testados nocrescente debate sobre a noção de“intervenção humanitária” em Estadosfracassados, onde governos são incapazes deproteger seus próprios cidadãos contraassassinatos em massa ou expulsões, ou quetenham ao menos os objetivado. Os horroresna Bósnia, Ruanda, Kosovo, Timor Leste emais recentemente Darfur, no Sudão, dão voza um coro crescente clamando por novosinstrumentos que evitem desastres huma-nitários em larga escala. O argumento que asoberania de uma nação envolve responsa-bilidades para com seus cidadãos foi adotadopelo Secretário-Geral das Nações Unidas,entre outros.59

Mas provocou uma intensa discussãonormativa sobre como equilibrar os valoresconcorrentes de soberania (e não-intervenção)e direitos humanos. Não há consenso em

Existe o perigo de uma forma global de

apartheid – relações de poder altamente

desiguais – ser ainda mais consolidada

e ratificada.

questões como ‘Quem tem direito a intervir?’‘Sob que condições?’ e ‘Através de que meios?’A Comissão Internacional sobre Intervençãoe Soberania dos Estados (ICISS, na sigla eminglês), patrocinada pelo governo canadense,focou cuidadosamente essas questões em seurelatório The Responsibility to Protect [AResponsabilidade de Proteger], de dezembrode 2001. A Comissão esclarece que taisintervenções devem ser um último recurso,necessita de amplo apoio internacional,devendo cumprir rigorosamente a legislaçãointernacional. A escala, duração e intensidadedas operações devem estar voltadas não àderrubada de um governo, e sim à proteçãoda população. Por extensão, o uso de certostipos de armas é inaceitável.60

São bons princípios e idealmente deveriamestar inseridos numa convenção internacional.Críticos, porém, argumentam que inter-venções humanitárias invariavelmente serãoexecutadas pelo forte contra o fraco, e asnações capazes de intervir só o fazem se forde seu interesse. O humanitarismo podefacilmente servir como desculpa convenientepara outros propósitos, abrindo a porta, naspalavras do jornalista britânico GeorgeMonbiot, “a um sem-número de ações deconquista mascarado em ação humanitária.”61

De fato, existe o perigo de uma formaglobal de apartheid – relações de poderaltamente desiguais – ser ainda maisconsolidada e ratificada. Já há propostas denovas formas de inter vencionismo.Escrevendo em Foreign Affairs, Lee Feinstein eAnne-Marie Slaughter sugerem “um princípiocorolário no campo da segurança global: umcompromisso coletivo, o chamado “dever deimpedir” nações comandadas por governantessem controles internos sobre seus poderes deadquirirem ou utilizarem armas de destruição

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SEGURANÇA REDEFINIDA

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em massa.” A natureza seletiva desta propostaé bastante clara. Os autores escrevem: “Paraser prático, o dever tem que ser limitado eaplicado a casos que podem gerar resultadosbenéficos. Aplicar-se-ia à Coréia do Norte deKim Jong Il, mas não à China de Hu Jintao(ou até mesmo a de Mao).” Presumivelmente,aqueles que fariam a intervenção seriam asmesmas nações que possuem armas nuclearese interesse paroquial em negar tais arsenais aoutros governos.62

Ao invés de perseguir medidas obrigatóriasde desarmamento universal, os paísesocidentais hoje estão mais concentrados emnão-proliferação – em outras palavras, nodesarmamento dos outros. Os instrumentosescolhidos são controle de exportações,sanções e medidas como a Proliferation SecurityInitiative, que prevê a criação de um regimeinformal na área da “contra-proliferação,”através do qual os Estados Unidos e seusprincipais aliados interceptam carregamentosmarítimos, terrestres e aéreos que supos-tamente contenham armas químicas,biológicas ou nucleares, ou componentes demísseis.63

Em nível mais fundamental, existe aquestão se a intervenção militar poderia

jamais ser uma cura para violência e suascondições subjacentes. Talvez o problemamais crucial da intervenção humanitária sejao de fracassar no teste da prevenção. Ela tratados sintomas e não das razões subjacentesdas calamidades humanitárias. É movida poruma paixão de acabar com a violência quefaz manchetes, mas ignora a morte e misériacausadas pela pobreza e colapso ambiental.64

Caso a prevenção de conflitos enfocandoa dinâmica básica e razões estruturais dainsegurança não seja promovida, o mundoentão sempre se verá diante de uma duraescolha entre intervenção militar e inação. Emtal situação, qualquer ação adotada enfatizao papel militar e acaba por consolidar opoder da noção conservadora de segurançae das instituições tradicionais.

Porém, não precisamos nos limitar aopções sem saída. Como este livrodemonstra, há muitas políticas sociais,econômicas e ambientais que podem ajudara criar um mundo mais justo e sustentável, eque podem transformar vulnerabilidadescompartilhadas em oportunidades para umaação conjunta. Essas políticas fazem seupróprio sentido, e oferecem o bônus extrade criar segurança real de uma maneira que aforça das armas jamais poderá.

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CRIME TRANSNACIONAL

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L I G A Ç Ã O D E S E G U R A N Ç A

Crime TransnacionalCom um mundo globalizado, vem umamovimentação maior de pessoas, produtose dinheiro, bem como um aumento dademanda por produtos – inclusive ilícitoscomo drogas, armas, recursosambientalmente sensíveis e até mesmo sereshumanos. Sindicatos criminosostransnacionais, os maiores transportadoresdestes produtos, representam uma ameaçaconsiderável à segurança global. Elesdistribuem materiais perigosos, armas, edrogas, exploram comunidades locais,perturbam ecossistemas frágeis e controlamrecursos importantes da economia. Em2003, os sindicatos do crime transnacionaltiveram um lucro bruto de US$2 trilhões –mais do que todas as economias, comexceção dos Estados Unidos, Japão eAlemanha.1

O lucro total dos sindicatos do crimeadvém do tráfico de drogas. Vendas dedrogas ilegais renderam, em 2001, deUS$300 a US$500 bilhões. Não somentecontribuem diretamente para mais de200.000 mortes anualmente, como adependência das drogas desorganiza 10milhões de vidas e o uso de drogasintravenosas pode disseminar doenças comoHIV e hepatite. A venda de drogas ilícitas é,também, uma fonte importante de recursospara grupos insurgentes e organizaçõesterroristas. 2

Outra importante fonte de recursos paraos sindicatos do crime transnacional são osprodutos ambientais – tudo, desde planta eanimais e recursos naturais sob proteção, até

lixo perigoso e produtos químicosproibidos. Anualmente, os traficantes destesprodutos rendem para as organizações docrime transacional entre US$22 e US$31bilhões. O lixo perigoso é muitas vezestransportado secretamente junto com o lixoe recicláveis exportados, rendendo, porexemplo, de US$10 a US$12 bilhões,criando ao mesmo tempo depósitos de lixotóxico pelo mundo.3

A venda de produtos químicos proibidostambém representa uma importante ameaçaambiental. Por exemplo, o tráfico anual de20.000 a 30.000 toneladas de substâncias quediminuem o ozônio enfraqueceu acapacidade do Protocolo de Montreal deproteger efetivamente a camada de ozônio.À medida que o contrabando destesprodutos químicos diminui nos paísesindustriais, novos mercados surgem nospaíses em desenvolvimento, onde aproibição dos clorofluorocarbonos (CFCs)está se tornando agora mais rígida.4

O contrabando de espécies ameaçadasinjeta de US$6 a US$10 bilhõesprovenientes da venda de mais de 350milhões de espécies sob proteção. Aomesmo tempo em que ameaça asobrevivência destas espécies, o tráficodestas plantas e animais pode comprometera segurança global, disseminando doenças eespécies não nativas em novos habitatssensíveis.

Felizmente, a Convenção de 1973 sobreComércio Internacional de Espécies daFauna e Flora Selvagem Ameaçadas

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(CITES) ajudou areduzir o tráfico,proibindo o comérciode 900 espécies emperigo e restringindo ocomércio de outras32.000 espéciesameaçadas.5

Talvez um dos maistrágicos comércios queas organizaçõescriminosas transnacionaisestão envolvidas seja otráfico de pessoas.Embora seja difícil sabero número exato, o Departamento deEstado dos Estados Unidos estima que pelomenos de 600.000 a 800.000 pessoas sãovendidas internacionalmente, por ano –exploradas como escravas, serviços sexuaisou mesmo para remoção dos seus rins ououtros órgãos para transplante. Este negóciolucrativo rende em torno de US$10 bilhões,anualmente, às custas de milhões deindivíduos, suas famílias e suas comunidades.Ao mesmo tempo em que desbarata umnúmero incalculável de vidas, o tráficohumano alimenta a indústria ilícita do sexo –outro veículo importante de transmissão doHIV/AIDS e outras doenças.6

O contrabando de armas rendecomparativamente pouco – estima-se emquase US$1 bilhão anual –, mas representauma carga tremenda na segurança e bem-estar humanos. Armas contrabandeadas,principalmente de pequeno calibre como

rifles, pistolas e mísseisportáteis, são utilizadasregularmente em conflitoscivis e por gruposcriminosos regionais.Armas de pequeno calibrecontribuíram para meio-milhão de mortes em2002 – 300.000 emconflitos violentos eoutras 200.000 emhomicídios (40% de todosas mortes violentas).Embora as autoridadesestejam constantemente

combatendo os traficantes de armas,existem poucas leis internacionais regulandoo tráfico de armas, e os embargos de armaspelas Nações Unidas muitas vezes não sãoexecutados – desde os meados dos anos 90,nenhum resultou numa prisão. Comoresultado da falta de compromisso político,os traficantes de armas continuam a ser umaameaça significante.7

Realmente, somente com umcompromisso global para combater ocrime transnacional poderá ter sucesso paraajudar a reduzir esta ameaça à segurança – epela primeira vez tal compromisso podeestar em vias de surgir. Em setembro de2003, a Convenção das Nações Unidascontra o Crime Transnacional Organizadofoi ratificada. Ela requer que os paísesparticipantes adotem novas medidas legaisabrangentes que reforçarão a cooperaçãointernacional na investigação, julgamento e

Oficial da Alfândega dos EUA retirandodrogas de uma van na fronteira do México

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sentença de crimes cometidos por gruposinternacionais, que por sua vez ajudarão aevitar que os criminosos tirem vantagem dasdiscrepâncias nas leis nacionais.8

O novo tratado ajudará também a criarum conjunto de leis mais atuantes nalavagem de dinheiro, aumentando adificuldade e risco para as organizaçõescriminosas transnacionais em novosprojetos. Vários protocolos reforçarão estaconvenção. Dois, ratificados em dezembrode 2003 e janeiro de 2004, ajudarão acoordenar leis no tráfico e migração depessoas. Um terceiro, se ratificado, ajudará asuprir a falta de legislação nacional notráfico de armas. 9

Entretanto, sem maior ajuda financeira, asconquistas da CITES, a convenção dasNações Unidas sobre o crime ou outrostratados sobre operações criminosastransnacionais, permanecerão limitadas. Amaioria dos órgãos constituídos paraexaminar as leis ambientais sofre de falta derecursos e de pessoal suficiente,comprometendo significativamente seu

desempenho. Por exemplo, osdepartamentos da CITES teve, em 2002,um orçamento anual de apenas US$5milhões – menos de um milésimo do queos traficantes de animais e plantas ganhamcada ano.10

É também importante reduzir a demandade mercadorias ilícitas. Até que a demandadiminua – seja de ópio ou marfim –, haverásempre grupos dispostos a correr riscospara fazerem grandes lucros. Conscientesdisto, alguns países estão aplicando umaparcela maior de recursos em programas,objetivando a redução da demanda. Suéciapor exemplo, destina agora dois terços deseu apoio para o Departamento deControle de Drogas das Nações Unidas, naredução da demanda por drogas. A longoprazo, a diminuição da demanda e oaumento dos riscos para conseguirsuprimento ajudarão a diminuir arentabilidade do crime transnacional e, noprocesso, construir um mundo maisseguro.11

- Erik Assadourian

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C A P Í T U L O 2

Analisando Ligaçõesentre População e Segurança

Lisa Mastny e Richard P. Cincotta

No início dos anos 90, a Agência Central deInteligência dos Estados Unidos reuniu umaequipe de destacados pesquisadores,acadêmicos e analistas para examinar umaquestão vexatória e sempre presente: por quealguns países são mais propensos à violência econflitos armados do que outros? O grupo,denominado “Força-tarefa para Fracasso deEstados” [State Failure Task Force], analisouminuciosamente centenas de variáveis sociais,políticas, econômicas e ambientais, desde osanos 50 até a década de 90, buscando fatoresque pudessem prever o “fracasso de umEstado” – um colapso da ordem nacionalcausado por genocídios políticos ou étnicos,golpes de Estado ou guerras civis.Objetivavam chegar às raízes das instabilidadesgeneralizadas que continuam a atrasar odesenvolvimento econômico e humano emregiões desde a África subsaariana até o Sulda Ásia.1

Uma constatação particularmente forte esurpreendente se destacou: a alta taxa demortalidade infantil – a proporção de recém-nascidos morrendo antes de atingir o primeiroaniversário – foi o melhor indicador individualde instabilidade mundial. Foi ainda um melhorindicador do que fatores como baixos níveisde democracia ou ausência de abertura aocomércio. A mortalidade infantil, conformeverificado, serve como substituto para umavasta gama de outros indicadores – incluindodesempenho econômico, níveis educacionais,saúde, qualidade do meio ambiente e até apresença de instituições democráticas –,proporcionando, assim, uma indicação segurada qualidade geral de vida de uma nação.2

Não é surpresa que fatores demográficostenham ligações estatísticas fortes com ainstabilidade. A dinâmica da populaçãohumana – particularmente as taxas flutuantesde nascimentos e mortes – pode ser uma força

Richard P. Cincotta é Pesquisador Associado Sênior da Population Action International, de Washington, D.C. Estecapítulo baseia-se, em grande parte, num relatório de 2003 que ele escreveu com seus colegas Robert Engelmane Danielle Anastasion intitulado The Security Demographic: Population and Civil Conflict After the Cold War.

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poderosa. Não apenas influencia a taxa globalde crescimento, porte e configuração de umapopulação, mas também molda sua estruturaetária – a proporção de pessoas em cada grupoetário em relação à população como um todo.Isto, por sua vez, determina variáveiseconômicas importantes, como o número depessoas que entram e deixam a força detrabalho e a relação entre dependentes jovensou idosos e trabalhadores. O fluxo e refluxodas pessoas influencia tendências importantescomo urbanização e também a demanda eoferta de recursos cruciais como alimento,água e energia. Todas essas forças podemexercer fortes pressões políticas, sociais,econômicas ou ambientais sobre uma socie-dade e suas instituições, e ter fortes implicaçõesna estabilidade interna e até mesmo na segurançainternacional. Neste caso, segurança não éapenas a ausência de conflito, mas umaconfiança razoável entre as pessoas da não-iminência ou probabilidade de conflito.3

O mundo está passando por uma épocademográfica interessante. Países de muitahistória política e religiosa e praticamente todasas regiões do mundo têm sofrido mudançasrelevantes no número e estrutura de suaspopulações, ao longo das últimas décadas.Devido, em parte, a esforços internacionais, otamanho médio da família é hoje pouco maisda metade do que era no início dos anos 60 –em torno de três filhos por casal – e amortalidade infantil declinou em dois terços.O crescimento populacional global estádesacelerando mais dramaticamente do quese esperava mesmo há uma década, estandohoje crescendo a uma taxa de 1,2%, quase ametade do que era 35 anos atrás. E, mesmocom o retorno alarmante da malária esurgimento do HIV/AIDS, a expectativa devida no mundo em desenvolvimento subiu

de 41 anos, no início dos anos 50, para 63anos hoje, em grande parte devido ao aumentoda sobrevivência infantil.4

Todavia, essas estatísticas proporcionamuma visão incompleta, mascarando tendênciasdiversas, tanto intra quanto inter países eregiões. A população humana continuaexpressiva, com 6,4 bilhões de pessoas, econtinua crescendo em mais de 70 milhõesanualmente, a maioria nos países emdesenvolvimento. Enquanto isso, a transiçãodemográfica global – a mudança depopulações nacionais de vidas breves e famíliasgrandes para famílias menores de vida maislonga, principalmente no mundo indus-trializado – continua lamentavelmenteincompleta. Cerca de um terço de todos ospaíses, incluindo muitos na África subsaariana,Oriente Médio e Sul e Centro da Ásia, aindase encontra nos estágios iniciais da transição,com taxas de fertilidade acima de quatro filhospor mulher.5

Estudos recentes indicam que esses paísescorrem maiores riscos de se enredarem emconflitos civis armados – guerras internas, quevão de insurgência política e étnica à violênciasancionada pelo Estado, e ao terrorismo do-méstico. A maioria está atolada numa situaçãodemográfica debilitante. Abriga altas ecrescentes proporções de jovens, muitos dosquais inflando as fileiras dos desempregadosou subempregados. Muitos desses paísestambém sofrem não só um aceleradocrescimento populacional urbano –freqüentemente além do que podemacomodar – como também níveis extre-mamente baixos, per capita, de terrascultiváveis ou água doce. Enquanto isso, acrescente pandemia do HIV/AIDS estáatingindo mortalmente os serviços básicos eatividades governamentais de vários países.

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Essas condições atuam como “fatores de riscodemográficos” que podem contribuir emmuito ao ciclo de conflitos recorrentes edeterioração política que inibe o progressoeconômico e social nos países mais fracos einstáveis do mundo.6

O Choque das Idades

Pouco antes da aurora do dia 28 de abrilde 2004, um grupo brandindo facas e facõeslançou um ataque surpresa a um posto policialna província de Pattani, no sul da Tailândia.Não conseguindo tomar o prédio, os militantesfugiram para a mesquita Krue Se, próxima aolocal, onde logo se viram cercados por forçasde segurança governamentais fortementearmadas. Durante três horas as tropasmantiveram fogo cerrado com granadas earmas automáticas contra esta edificação doséculo XVI, abatendo mais de 30 agressores.7

À medida que as notícias do massacre seespalharam, os analistas atribuíram as tensõesà crescente inquietação étnica entre a populaçãodo sul, basicamente muçulmana, que há muitoreclama da repressão cultural, religiosa eeconômica por parte do governo deBancoque. Mas, num pronunciamento à naçãologo após os ataques, o Primeiro-ministroThaksin Shinawatra apontou para uma outravariável: a idade e perspectiva dos comba-tentes, cuja maioria era formada de jovens deidade inferior a 20 anos. “São pobres, compouca educação e desempregados,” observouele. “Dispõem de pouca renda e muito ócio,criando uma lacuna... a ser preenchida.”8

A Tailândia não é o único país a sentir osefeitos do desequilíbrio demográfico. Deacordo com as Nações Unidas, mais de 100países em todo o mundo sofriam de “inchaçosjovens” em 2000 – uma situação onde as

pessoas entre 15 e 29 anos representam maisde 40% de todos os adultos. Todos esses paísesextremamente jovens estão no mundo emdesenvolvimento, onde as taxas de fertilidadesão as mais altas, e a maioria está na Áfricasubsaariana e Oriente Médio. (Na América doNorte e Europa, por outro lado, jovensadultos representam apenas 20-25% de todosos adultos.) (Ver Tabela 2-1).9

Na maioria dos casos, um inchaço jovem éo resultado de várias décadas de crescimentopopulacional acelerado. Ocorre caracteris-ticamente em países nos primeiros estágios datransição demográfica: embora as taxas denatalidade continuem altas, a mortalidadeinfantil começou a cair, devido aos avançosno tratamento da saúde e nutrição, resultandonuma maior sobrevivência infantil em geral.As taxas de natalidade tendem a declinarmenos do que as de mortalidade, não só de-vido a preferências culturais por maior nú-mero de filhos e vida mais longa, mas tambémporque as novas técnicas de controle denatalidade tendem a ser mais complicadas,menos diversificadas e mais polêmicas do queaquelas disponíveis para prolongamento davida. Populações jovens desproporcionalmentealtas podem também estar presentes em paísesonde ocorre uma “explosão de bebês”, ondeum grande número de adultos emigra, ouonde a AIDS é uma das causas principais demorte prematura de adultos. 10

Uma abundância de jovens não é,necessariamente, ruim. Nos Estados Unidose outros países industrializados, onde a maioriados jovens adultos tem bom nível educacionalou técnico, os empregadores vêem os jovenscomo um bem e as empresas buscam intensa-mente sua energia e engenhosidade. Oseconomistas há muito reconhecem que umagrande proporção de jovens trabalhadores

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pode proporcionar um “bônus demográfico”ao crescimento econômico quando a produ-tividade, poupança e impostos de jovenssustentam populações menores de crianças eidosos. Nas regiões mais prósperas daTailândia, por exemplo, jovens trabalhadoresde bom nível educacional e diligentes –inclusive uma grande proporção de mulheresjovens que trabalham nos setores manu-fatureiros e financeiros – contribuemsignificativamente para o crescimentodinâmico do país.11

Entretanto, onde oportunidades econô-micas são escassas, a predominância de jovensadultos pode representar um desafio social erisco político. Ao longo da última década, astaxas de desemprego entre os jovens em todoo mundo deram um salto de 11,7% para umnível recorde de 14,4% em 2003, mais dodobro da taxa total de desemprego global.De acordo com a Organização Internacionaldo Trabalho, cerca de 88 milhões de jovens

entre 15 e 24 anos estavam desempregadosem 2003, representando quase a metade dosdesempregados globais. No mundo emdesenvolvimento – o lar de 85% de todos osjovens mundiais –, o desemprego deste grupoé particularmente expressivo, com taxas 3,8vezes superiores às dos adultos em geral.12

Leif Ohlsson, pesquisador da Universidadede Gotenburgo, na Suécia, observa que jovensem áreas rurais sem condições de herdaremterras são, freqüentemente, os mais afetados.Em alguns casos, seus pais e avós há muitodividiram a propriedade em minúsculos lotesque seriam inviáveis caso fossem novamentedivididos. Em outros casos, a terra degeneroucomo conseqüência de práticas insustentáveis,ou então grandes empresas agrícolasabsorveram todas as terras cultiváveis restantes.Na ausência de meios seguros de vida, essesjovens podem se tornar incapazes de casar ouganhar o respeito de seus pares. O pesquisadorbritânico Chris Dolan cunhou a expressão “aproliferação de pequenos homens” paradescrever o número crescente de jovensdestituídos de cidadania no norte de Uganda,que não podem atingir as expectativas de setornarem “homens plenos” dentro da culturade seu país. Dolan constatou que esses homensse tornam alcoólatras, violentos, suicidas – oujuntam-se a alguma milícia.13

Em países economicamente oprimidos epoliticamente repressivos, organizaçõesinsurgentes podem oferecer aos jovensmobilidade social e auto-estima. Durante arecente guerra civil em Serra Leoa, os jovensrepresentaram cerca de 95% dos efetivos decombate devido, em parte, às suas poucasopções de vida. Em 2003, Serra foi classificadacomo o país menos desenvolvido do mundopelo Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento, e o produto interno bruto

ZimbábueZâmbiaBurundiUgandaMáliRuandaÍndiaChinaEstados UnidosNoruegaJapãoItália

TTTTTabela 2-1. Pabela 2-1. Pabela 2-1. Pabela 2-1. Pabela 2-1. Parcela de Jovens emarcela de Jovens emarcela de Jovens emarcela de Jovens emarcela de Jovens emPaíses Selecionados, Projeções paraPaíses Selecionados, Projeções paraPaíses Selecionados, Projeções paraPaíses Selecionados, Projeções paraPaíses Selecionados, Projeções para

20052005200520052005

TaxaTotal de

Fertilidade

(filhos por mulher)

País Parcela daPopulação Adultacom Idade Entre

15-29 anos(percentual)

3,95,66,87,17,05,73,01,82,11,81,31,2

FONTE: Vide nota final 9.

595756555554403027232119

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per capita em 2002 totalizou apenas US$ 150(em comparação a US$ 36.006 nos EstadosUnidos). Uma autoridade do Fundo Cristãopara Crianças, na capital Freetown, declarou,a respeito do grande número de jovenssoldados, o seguinte: “São uma coorte hámuito negligenciada; carecem de emprego etreinamento, e é muito fácil convencê-los a sejuntarem à luta.”14

Mas não são apenas os pobres ou os seminstrução que estão descontentes. “Temos umgrande número de jovens entre 18 e 35 anosque possuem instrução adequada, mas que nãotêm nada a fazer,” lamentou William Ochieng,ex-autoridade governamental, escrevendo parao jornal The Daily Nation, de Quênia, em janeirode 2002. Estudos revelam que os riscos deinstabilidade entre jovens podem aumentarquando membros capacitados das elites sãomarginalizados por falta de oportunidade. Osociólogo Jack Goldstone observou que asrebeliões e movimentos religiosos dos séculosXVI e XVII foram liderados por jovens dasclasses dominantes que, quando atingiam aidade adulta dentro de um grupo excessi-vamente grande da mesma idade, viam que oapadrinhamento do Estado não podiarecompensá-los com o salário, terras ouposições burocráticas que correspondessema seu status e conquistas educacionais.15

Não é difícil encontrar paralelos contem-porâneos. Goldstone atribui o colapso doregime comunista da União Soviética no iníciodos anos 90, em parte, à mobilização degrande número de jovens descontentesimpossibilitados de exercerem sua capacidade

técnica devido a restrições do partido na suaascensão às elites. E Samuel P Huntington,Professor de Harvard e autor do tratadopolêmico sobre o “choque das civilizações”,assinalou as ligações entre as expectativasinsatisfeitas de jovens capacitados e as tensõescontínuas no Oriente Médio, onde 65% dapopulação têm idade inferior a 25 anos. Muitospaíses islâmicos, argumenta ele, aplicaram suasreceitas petrolíferas no treinamento e educaçãode um grande contingente de jovens. Porém,com baixo crescimento econômico, poucosdesta força de trabalho em crescimentoacelerado têm a oportunidade de utilizar seusconhecimentos. Jovens com boa formaçãoeducacional nessa região, conclui Huntington,freqüentemente se vêem diante de trêscaminhos: migrarem para o Ocidente,juntarem-se a organizações fundamentalistase partidos políticos, ou alistarem-se em gruposguerrilheiros e redes terroristas.16

Elites descontentes podem, por sua vez,mobilizar grupos menos instruídos para suacausa. Investigações do recente incremento daviolência na Tailândia apontam para o possívelenvolvimento de grupos extremistas muçul-manos, que podem estar recrutandoativamente jovens fervorosos e com poucainstrução formal para promover seusobjetivos islâmicos. Na cidade de Suso, queperdeu 18 homens com menos de 30 anos deidade no levante de abril de 2004, a maioriados mortos havia se formado em escolasparticulares islâmicas do país, freqüentementeum recurso extremo das famílias que nãopodem pagar por uma educação formal

As taxas de mortalidade reverteram

seu declínio em mais de 30 países,

mundialmente

De acordo com as Nações Unidas,

mais de 100 países em todo o mundo

sofriam de “inchaço jovem” em 2000.

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superior. Enquanto isso, no Paquistão, estudosestimam que até 10-15% das 45.000 escolasreligiosas do país possuem laços estreitos comgrupos militantes.17

Qual a força da ligação entre os jovens e osconflitos? Os cientistas políticos ChristianMesquida e Neil Wiener, da Universidade deYork, no Canadá, analisaram conflitos aolongo da segunda metade do século XX econstataram que em regiões assoladas porconflitos, como os Bálcãs e a Ásia Central,países com populações mais jovens sofrerammaior índice de mortes por mil pessoas,relacionadas a combates, do que outros países.Mais recentemente, pesquisadores da PopulationAction International [PAI], sediada emWashington, divulgaram que os países commaior inchaço jovem – onde jovens adultosrepresentam mais de 40% de todos os adultos– tinham aproximadamente duas vezes e meiamais chances de sofrer irrupção de conflitoscivis durante os anos 90 do que os paísesabaixo desse referencial.18

A boa notícia é que grandes inchaços jovensacabarão por se dissipar, caso as taxas defertilidade continuem seu declínio mundialprojetado. Já durante os anos 90, o númerode países onde jovens adultos representam40% ou mais de todos os adultos declinouem cerca de um sexto, devido principalmenteà queda das taxas de natalidade no Leste daÁsia, Caribe e América Latina. Ao mesmotempo, contudo, um subconjunto menor depaíses nos primeiros estágios de suas transiçõesdemográficas – a maioria na África sub-saariana e Oriente Médio - sofre umcrescimento acelerado em suas populações dejovens entre 15 e 29 anos, que às vezesrepresenta mais da metade de todos os adultos.Até que essas populações jovens declinem eas perspectivas de emprego melhorem, esses

países provavelmente continuarão a repre-sentar um desafio ao desenvolvimentoregional e segurança internacional.19

Em geral, a conclusão da transiçãodemográfica é vista como uma realizaçãoauspiciosa. As crianças em famílias menores,caracteristicamente, crescem com melhorsaúde e instrução do que outras na mesmafaixa de renda. Mas a consecução da transiçãotraz consigo seus próprios desafios. Em algunspaíses pós-transição, como Rússia e Japão, ena maior parte da Europa, o que foi antes uminchaço jovem do pós-guerra desenvolveu-sehoje num alarmante inchaço idoso. Emborao envelhecimento e o declínio populacionalsustentado não deverão ser tão ameaçadoresà segurança global como o é o grandenúmero de jovens desempregados, legisla-dores e economistas estão cada vez maispreocupados com as implicações disto nocrescimento econômico e prontidão militar.(Vide Quadro 2-1.)20

A Ameaça Emergentedo HIV/AIDS

Em 2003, quase 3 milhões de pessoasmorreram de infecções relacionadas ao HIV,elevando a mais de 20 milhões o número totalde mortes causadas pela AIDS, a partir dosprimeiros casos identificados em 1981.21

Basicamente em função desta crescentepandemia, as taxas de mortalidadeefetivamente reverteram seu declínio em maisde 30 países, mundialmente. A disseminaçãoglobal do HIV/AIDS ameaça criar umaestrutura etária mortalmente desequilibrada –de uma forma jamais vista na história.

Nenhuma doença na experiência humanadebilita e mata como a AIDS, derrubando àsdezenas de milhões não apenas jovens e velhos,

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mas também pessoas nos anos maisprodutivos de suas vidas. Quase 90% dasfatalidades associadas à doença ocorrem entrepessoas em idade produtiva. Nove países daÁfrica subsaariana hoje perdem mais de 10%de suas populações em idade produtiva a cadacinco anos, principalmente pela alta prevalênciado HIV. (Vide Tabela 2-2.) (Compara-tivamente, os países industrializados perdemcerca de 1% desse grupo etário a cada cincoanos, enquanto até mesmo em países assoladospor guerras com relativamente baixa preva-lência do HIV, como Afeganistão e Sudão, estenúmero foi de 4 – 6% no final dos anos 90.)22

A Organização Internacional do Trabalho

QUADRO 2-1. ENVELHECIMENTO E POPULAÇÕES DECLINANTES SÃO UM PROBLEMA?

Nos últimos anos, analistas populacionais e desegurança começaram a questionar as implicaçõesda mudança demográfica nos países que concluíramsuas transições demográficas, onde as populaçõessão cada vez mais idosas. No Japão, EstadosUnidos e muitos países europeus, as taxas denatalidade estão hoje caindo ao ponto onde aparcela de adultos em idade produtiva encolheu, eas populações idosas representam um quinto ou atémesmo um terço do total. Rússia, Itália, grandeparte da Europa Oriental e uma dezena de outrospaíses sofreram tamanha baixa fertilidade nosúltimos anos que a população está efetivamente emdeclínio – uma situação que só poderá ser revertidano curto prazo por níveis muito elevados deimigração. Com uma taxa total de fertilidade depouco mais de um filho por mulher, a populaçãorussa hoje está encolhendo 0,7% anuais – cerca deum milhão de pessoas a cada ano.

Até agora, nenhum país deu sinais flagrantes deinstabilidade econômica ou política devido aoenvelhecimento da população. (Na realidade, tantoJapão e Rússia mostraram recentemente avançoseconômicos.) Economistas, todavia, estãoalarmados com projeções demográficas indicandoque a relação trabalhadores/aposentados naEuropa irá provavelmente cair pela metade, dequatro para apenas dois – estressando sistemasprevidenciários e aumentando a pressão sobre ossalários. Carência de mão-de-obra e aumentos

salariais em muitos setores poderão, por sua vez,afetar as taxas de alistamento militar nesses países,levando à escassez de soldados de carreira.

Enquanto isso, os custos de tratamento desaúde para idosos estão crescendo a taxas de doisdígitos. Até 2040, os custos da saúde e outrosbenefícios públicos para os idosos estão projetadosa ultrapassarem 27% do produto interno bruto naItália, Espanha, Japão e França. E, nos EstadosUnidos, a alocação de recursos para aposentadoriajá não acompanha a promessa do governo: odéficit entre o orçado e o alocado hoje excede US$44 trilhões.

Entretanto, contrariamente a muitas nações emdesenvolvimento em confronto com asconseqüências do crescimento populacionalacelerado, a maioria dos países industrializadosdispõe de capacidade significativa para se ajustaraos desafios do envelhecimento populacional.Vários governos europeus, por exemplo, aceitaramimigrantes adicionais, estenderam a idade deaposentadoria e atraíram mais mulheres à força detrabalho, incrementando, ao mesmo tempo, aassistência infantil. E o Japão está devolvendo aresponsabilidade dos cuidados com idosos àsfamílias, e se valendo mais da tecnologia eterceirização para cargos de baixa qualificação oude mão-de-obra intensiva.___________________________________________________________________________________________fonte: Vide nota final 20

prevê que, na ausência de tratamento, cercade 74 milhões de trabalhadores em todo omundo poderão morrer de causas relacionadascom a AIDS, até 2015 – o equivalente à perdade um país inteiro do tamanho da África doSul ou Tailândia. Como observou Peter Piot,Diretor Executivo da UNAIDS, “a AIDS estádevastando as fileiras dos membros maisprodutivos da sociedade com uma eficácia[que] a história reserva para grandes conflitosarmados”.23

Ao invés de provocar confrontos diretoscom, digamos, acesso a medicamentos outratamentos contra AIDS, o HIV/AIDSprovavelmente se destacará de forma mais

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insidiosa – afetando o desenvolvimentoindustrial, reduzindo a produção agrícola,enfraquecendo a integridade militar e políticae erodindo a capacidade de resposta aodescontentamento interno crônico e crisesrepentinas nos países mais fracos do mundo.Onde a epidemia está mais desenvolvida,como na África sub-saariana, a doença estásignificativamente disseminada, conturbandoas atividades governamentais, escolas, fábricas,fazendas, instalações de saúde e forçasarmadas. O impacto da AIDS sobre as forçasarmadas em cerca de 20 países em todo omundo é particularmente alarmante,constituindo-se numa ameaça à prontidãooperacional e a compromissos de manutençãoda paz – e representando um perigosoreservatório para maior disseminação dadoença. (Ver também Capítulo 3.)24

Os países afetados pela AIDS tambémpodem ficar vulneráveis à instabilidade política,à medida que o número crescente de criançasorfanadas pela doença aumenta a proporçãode pessoas dependentes, agrava a pobreza eaumenta as desigualdades. Conforme um

TTTTTabela 2-2. Pabela 2-2. Pabela 2-2. Pabela 2-2. Pabela 2-2. Países com Maiores Taíses com Maiores Taíses com Maiores Taíses com Maiores Taíses com Maiores Taxasaxasaxasaxasaxasde Mortalidade Adulta, 2000-05de Mortalidade Adulta, 2000-05de Mortalidade Adulta, 2000-05de Mortalidade Adulta, 2000-05de Mortalidade Adulta, 2000-05

relatório conjunto recente do UNICEF,UNAIDS e Agência de DesenvolvimentoInternacional dos Estados Unidos, entre 2001e 2003, o número de órfãos da AIDS emtodo o mundo aumentou de 11,5 milhõespara 15 milhões – a grande maioria na África.Na ausência de apoio governamental paracolocar órfãos desabrigados em famílias eescolas, essas crianças poderão se tornar umafonte de futuro descontentamento urbano,atividade criminosa e recrutas parainsurgências.25

Por enquanto não há sinal aparente deviolência em massa ou rebelião inspirada pelaAIDS. Isto porém pode mudar à medida quea pandemia continua em disseminação global.Em 2003, o número de pessoas convivendocom o HIV aumentou em quase 5 milhões,para um total de 38 milhões – o maioraumento num único ano desde o início daepidemia. Enquanto os nascimentos mais doque compensem as mortes pela AIDS namaioria dos 53 países hoje consideradosafetados por ela, esta situação pode reverter,dentro dos próximos anos, em um punhadode nações, causando declínios populacionais.A República Central Africana, Lesoto, Malawi,Moçambique, Suazilândia, Zâmbia eZimbábue têm hoje expectativas de vidaabaixo de 40 anos, enquanto pelo menos 13países sofreram reversões mensuráveis emdesenvolvimento humano, desde 1990.Tragicamente, alguns dos desaceleramentosmais dramáticos do crescimento populacionalem todo o mundo ocorrem hoje em paísessofrendo tanto altas taxas de prevalência doHIV quanto declínios significativos defertilidade. Mas, contrariamente à desa-celeração provocada pela taxa de natalidadeque se mostrou economicamente benéfica paramuitos países ao longo do último meio-século,

ZimbábueSuazilândiaZâmbiaLesotoBotsuanaMalawiNamíbiaRepública CentralAfricanaMoçambique

País Taxa de Mortalidade Adulta naFaixa Etária de 15-64 anos,

2000-05

(percentual morrendo)18,115,915,214,714,011,210,710,5

10,2

FONTE: Vide nota final 22

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o crescimento populacional mais lento devidoà AIDS, provavelmente, dificultará ocrescimento econômico.26

Em geral, a epidemia da AIDS está criandouma combinação perniciosa de aprofun-damento da pobreza e perda de confiança emgovernos que se mostram cada vez maisincapazes de prestar serviços básicos, sem falarna promoção de desenvolvimento econô-mico. O Secretário de Estado dos EstadosUnidos Colin Powell descreveu a doençacomo um iminente “destruidor de na-ções...[com] o potencial de desestabilizarregiões, talvez até continentes inteiros.” E oEx-presidente dos Estados Unidos BillClinton denominou a pandemia como umprelúdio a “mais terror, mais mercenários,mais guerras...e colapso de democraciasfrágeis.” Sem a capacidade de planejar eresolver problemas de longo prazo eresponder a crises agudas, os países maisafetados pela AIDS correm o risco de estancarem seu caminho para a industrialização,democracia e as fases finais da transiçãodemográfica.27

Crescimento UrbanoAcelerado

Já há muitos anos, ciclos intensos de seca eenchentes causaram caos na minúscula Malawi,no coração da África meridional. Em 2002 e2003, chuvas torrenciais provocaramdeslizamentos maciços, destruindo pontes eresidências e devastando lavouras de milho, oprincipal alimento básico. Impossibilitados deextrair algum sustento da terra devastada, apopulação rural se deslocou maciçamente paraas florescentes cidades do país – concedendoa Malawi a distinção dúbia de ser a nação demaior desenvolvimento urbano do mundo.

Porém, como muitos países em desen-volvimento crescendo aceleradamente, estanação pobre está despreparada para lidar comos efeitos colaterais desse ataque urbano,incluindo desabrigo, crime e desemprego.28

Desde 1950, a população urbana mundialmais que quadruplicou, indo de 733 milhõesaté um pouco mais de 3 bilhões, e hoje crescemais rapidamente do que a população mundialcomo um todo. Cerca de 60% destecrescimento é resultado de aumentos naturais– nascimentos menos mortes urbanas. Porém,uma onda incessante de migração representaquase todo o resto, com as pessoas simulta-neamente “empurradas” para as cidadesdeixando as áreas rurais, devido à estagnaçãoou devastação de guerras, e “puxadas” peloencanto de empregos mais promissores,educação e os atrativos da modernização. Àmedida que esta tendência continua, ahumanidade se aproxima de um marcohistórico: até 2007, pela primeira vez nomundo, mais pessoas viverão nas cidades doque em áreas rurais.29

A urbanização é, em geral, uma tendênciademográfica positiva. Tradicionalmente, odeslocamento para as cidades contribuiu parao crescimento econômico e integração global,à medida que mais pessoas encontramresidências próximas a escolas, clínicas, locaisde trabalho e redes de comunicações. Comoas cidades são centros de indústria e educação,seus habitantes estão quase sempre à frentedas populações rurais no acesso a novastecnologias, informação e bens. Populaçõesurbanas também são geralmente as primeirasa experienciarem declínios em mortalidadeinfantil e fertilidade, à medida que os governospriorizam clínicas urbanas que podem prestarserviços de saúde mais eficientes em termosde custo/benefício. Na África, por exemplo,

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as recentes mudanças de comportamento nagravidez e declínios de fertilidade são,basicamente, fenômenos urbanos.30

Mas a urbanização é uma faca de doisgumes. Os próprios aspectos que fizeram ascidades do mundo industrializado prósperas– população jovem, diversidade étnica ereligiosa, classe média e proximidade ao poderpolítico – são fontes potenciais de volatilidadepara muitas cidades emergentes e econo-micamente deprimidas no mundo emdesenvolvimento. As extraordinárias taxas decrescimento que muitas cidades do mundo emdesenvolvimento sustentaram durante os anos70 e 80 – Jacarta e Déli, por exemplo, quaseque duplicaram de tamanho durante esteperíodo – não puderam sustar a exaustão dosorçamentos urbanos, abarrotar os mercadosde trabalho e desafiar a adequação dosserviços e infra-estrutura existentes. Mesmohoje, menos da metade dos habitantes damaioria dos centros urbanos na África, Ásia eAmérica Latina possui água encanada, e menosde um terço dispõe de saneamento básico. Asprefeituras nos países mais pobres são asmenos capazes de reunir recursos humanos efinanceiros para lidar com esses problemas,especialmente quando o segmento mais pobree não-contribuinte da população continua acrescer aceleradamente.31

Quando as prefeituras e líderes comunitáriostêm vontade política e recursos para superardiferenças étnicas, religiosas e regionais, uma

íntima interação entre grupos díspares podeter implicações sociais positivas. “As cidadesforçam as pessoas a se misturarem e sefamiliarizarem com membros de grupos cujoscaminhos podem nunca se cruzar em áreasrurais,” observa Marc Sommers, da CAREInternational. Porém, quando interesses grupaisse conflitam, as cidades podem manter umacompetição econômica e política intensa,particularmente se os mercados imobiliáriose de trabalho realçam disparidades no acessoà educação, capital e poder político.32

Quando ressentimentos históricos e desen-tendimentos culturais afloram, as cidadespodem se tornar um lócus para conflitos étnicose religiosos. Em 1992, nos arredores da cidadenormalmente tranqüila e rural de Ayodhya, nonorte da Índia, cerca de 150.000 militanteshindus irromperam numa mesquita do séculoXVI praticamente abandonada, atacandoforças de segurança e destruindo o prédio. Aoinvés de se espalhar pela vizinhança, ondecomunidades muçulmanas e hindus coexistiampacificamente, o ódio explodiu a centenas dequilômetros de distância, em Mumbai, Calcutá,Ahmedabad e Déli. Três dias de violênciaintensa em Ahmedabad e na vizinha Vadodaradeixaram mais de 850 mortos e milharesdesabrigados. No total, quase 95% das 1.500pessoas mortas nos tumultos comunais quese desenvolveram eram moradores urbanos.Os incidentes, alguns dos quais foramignorados ostensivamente por líderes locais,não só frustraram esforços de moderados quemediavam cooperação entre políticosmuçulmanos e hindus, mas também agra-varam as relações já tensas entre a Índia e ovizinho Paquistão.33

Em geral, de acordo com a Population ActionInternational, os países com taxas aceleradas decrescimento populacional urbano – 4% ao ano,

Países com taxas aceleradas de crescimento

populacional urbano tiveram

aproximadamente duas vezes mais chances

do que outros países de se envolverem em

conflitos civis nos anos 90.

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maioria dos países – particularmente aquelesnos estágios iniciais da transição demográfica– oferece a esperança que as cidades, também,cresçam a um ritmo mais controlável eestável.36

Competindo por Águae Terras Cultiváveis

Na região seca e contenciosa outroraconhecida como o Crescente Fértil, três países– Iraque, Síria e Turquia – há muito estudamplanos para extrair mais água dos rios Tigre eEufrates. Há, porém, um problema. Em 2002,a população conjunta dos três países cresceuem mais de 2 milhões, para 110 milhões depessoas. Nem o Eufrates, que flui do centroda Turquia, através da Síria e do Iraque, nemo Tigre ao leste, podem proporcionar águasuficiente para satisfazer as demandas anuaiscrescentes destes consumidores, particular-mente durante os anos mais secos. “Os paísesreconheceram a impossibilidade de unir seusplanos,” escreveu Douglas Jehl no New YorkTimes, em 2002. “Mas nenhum demonstrouqualquer disposição de abandoná-los.”37

Muitas regiões do mundo estão sofrendodeclínios acelerados, tanto na qualidade quantona disponibilidade de recursos naturais críticos.Mais de 30 países – a maioria na África eOriente Médio – já caíram abaixo até mesmodo referencial mais conservador de escassez,seja de terras cultiváveis (0,07 hectares porpessoa), seja de água doce renovável (1.000metros cúbicos por pessoa). (Vide Tabela 2-3.) Alguns países chegaram a esta situaçãodevido a uma combinação de clima e soloadversos e uma população em rápidocrescimento; outros, todavia, estão sofrendoessa escassez quase que exclusivamente como

ou mais – tiveram aproximadamente duasvezes mais chances do que outros países de seenvolverem em conflitos civis durante os anos90. Jovens urbanos desiludidos – sejamestudantes politizados ou desempregadosirados – são freqüentemente os primeirosrecrutas. Já há décadas, os filhos sem-terra deagricultores paquistaneses se amontoam emcortiços urbanos em torno de Carachi eIslamabad, onde muitos encontraram umasaída para suas frustrações, através dodescontentamento político e violênciasectária.34

A inquietação urbana provavelmenteaumentará se as grandes cidades no mundoem desenvolvimento se estenderem mais parao campo e os entroncamentos e cidades-mercado se transformarem rapidamente emcentros populosos. Hoje, 16 das 20 “mega-cidades” mundiais – com mais de 10 milhõesde habitantes – estão em países emdesenvolvimento, e a parcela urbana da popu-lação do mundo em desenvolvimento estáprojetada para atingir 60% até 2030,comparado com 42% em 2003 e apenas 18%em 1950. A Ásia já tem mais pessoas vivendoem cidades do que os habitantes de todos ospaíses industrializados juntos, e cerca de metadedo seu crescimento urbano ainda está por vir.35

À medida que as associações entrecrescimento urbano e conflitos se tornam maisevidentes, os analistas precisarão dar maioratenção ao papel da urbanização em suasavaliações. No curto prazo, os legisladoresdeverão considerar programas que apri-morem a qualidade e capacidade da gover-nança municipal, estimulem a criação deemprego e fortaleçam as relações étnico-comunitárias nas regiões em rápida urba-nização. No longo prazo, entretanto, só adesaceleração do crescimento populacional na

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conseqüência do crescimento populacional.(Quatro países – Egito, Israel, Kuwait e Omã– atingiram níveis críticos em ambas as áreas,

com as taxas de crescimento populacionalacima da média do mundo em desen-volvimento, de 1,5%.)38

FONTE: Vide nota final 38.

TTTTTabela 2-3. Principais países enfrentando escassez abela 2-3. Principais países enfrentando escassez abela 2-3. Principais países enfrentando escassez abela 2-3. Principais países enfrentando escassez abela 2-3. Principais países enfrentando escassez per capitaper capitaper capitaper capitaper capita de terras de terras de terras de terras de terrascultiváveis e água doce, 2005cultiváveis e água doce, 2005cultiváveis e água doce, 2005cultiváveis e água doce, 2005cultiváveis e água doce, 2005

País

Kuwait

Cingapura

Maldivas

Bahrein

Brunei

Islândia

Malta

Bahamas

Omã

Catar

Egito

Japão

Terras cultiváveis

disponíveis

per capita

(hectares

por pessoa)

<0,01

<0,01

0,01

0,01

0,02

0,02

0,02

0,03

0,03

0,03

0,04

0,04

Taxa de crescimento

populacional

2000-05

(percentual)

3,46

1,69

2,98

2,17

2,27

0,79

0,42

1,13

2,98

1,54

1,99

0,14

País

Kuwait

Arábia Saudita

Líbia

Jordânia

Iêmen

Israel

Omã

Argelia

Tunísia

Burundi

Ruanda

Egito

Água doce renovável

disponível

per capita

(metros cúbicos

por pessoa)

7

78

173

174

186

299

331

426

498

547

581

775

Taxa de

crescimento

populacional

2000-05

(percentual)

3,46

2,92

1,93

2,66

3,52

2,02

2,98

1,67

1,07

3,10

2,16

1,99

Diante dessa realidade, os analistasmanifestaram grande preocupação quanto àinevitabilidade de “guerras por recursos” naspróximas décadas, particularmente por águadoce. Quase metade das terras do planetaencontra-se dentro de cerca de 263 baciashidrográficas internacionais que se estendempelas fronteiras de dois ou mais países –representando 60% do manancial mundial.(Vide Capítulo 5.) Os 71 milhões de habitantesdo Egito, por exemplo, dependem do Nilopara mais de 97% de suas necessidades, masprecisam compartilhá-lo com a Etiópia eoutros oito países a montante, todosmilitarmente mais fracos e empenhados emincrementar a produção agrícola e serviçosurbanos frente ao crescimento populacionalacelerado, estiagens longas e cíclicas, e

precipitação sazonal.39

Até agora, todavia, a história demonstrouque as nações que “procuram briga” emfunção da água – e outros recursos naturaisrenováveis – têm brandido mais palavras doque armas. As hostilidades internacionaisrelacionadas aos recursos têm, caracte-risticamente, terminado de forma não-violenta, como acordos negociados ouformação de instituições reguladoras pararesolução de disputas. No futuro próximo,pelo menos, o maior risco provavelmente serádisputas por recursos, influenciadas porquestões populacionais não entre, mas intra,países. Embora teóricos ainda mantenhamdebates acirrados quanto a tais disputaschegarem mesmo a provocar conflitos civisem grande escala ou colapso de algum país,

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há um consenso geral de que a escassez deágua, terras cultiváveis e outros recursos podeaumentar os riscos de fricções menoreslocalizadas e esporádicas. Estas disputas sótendem a escalar para conflitos armados maisgraves quando as instituições que devem ajudara gerir os recursos de um país e solucionarcarências são muito frágeis, mal financiadasou corruptas para fazê-lo. No futuro,entretanto, o crescimento populacionalacelerado e continuado no mundo emdesenvolvimento – e as demandas semprecedentes sobre a oferta que isto trará –desafiará até mesmo as instituições maiscapacitadas.40

Uma fonte de tensão crescente é a alocaçãode água doce entre usuários locaisdiversif icados – particularmente entreagricultores e o conjunto mais politicamenteinfluente e cada vez maior de usuários urbanose industriais. O Instituto Internacional dePesquisa de Política Alimentar estima que àstaxas atuais de crescimento populacional e usoda água, o consumo residencial global de águaaumentará mais da metade, até 2025. Pelomenos parte deste aumento ocorrerá às custasdos agricultores – particularmente no mundoem desenvolvimento, onde as lavourasdependem mais de irrigação do que naAmérica do Norte ou Europa. Isto não sócolocará cada vez mais a integridadeeconômica de comunidades rurais emconfronto com o crescimento de centrosurbanos e industriais, mas também poderárepresentar ameaças à segurança alimentarnacional ou regional ao prejudicar os esforçosde produção de alimentos.41

Reivindicações concorrentes por água docepoderão complicar os esforços para soluçãodos infindáveis conflitos no Oriente Médio.Por mais de três décadas, Israel vem

restringindo árabes da Margem Ocidentalocupada de perfurarem novos poços paraagricultura, enquanto os colonos israelensescontinuam a perfurar mais fundo – em algunscasos fazendo com que os lençóis freáticoscaiam bem abaixo do alcance dos poçospalestinos. Desde 1967, o percentual das terrascultivadas que os agricultores palestinos irrigamcaiu de 27% para cerca de 5%, contribuindopara o desemprego e perda de produtividade,como também para o aumento do descon-tentamento contra o governo israelense.42

Apesar da importância da água doce parao desenvolvimento econômico e humano deuma nação, estudos indicam que disputas civissobre a água tendem a ser menos voláteis doque sobre terras cultiváveis. Isto pode refletirdiferenças em como os dois recursos sãocontrolados e apreçados, como também oacesso que as pessoas têm a eles. A água étradicionalmente considerada como umrecurso comunitário, e as disputas sobredireitos são freqüentemente dirimidas porautoridades hídricas ou tribunais provincianos.A terra, por outro lado, é mais propensa a serpropriedade privada, e quase sempre desigual.Quando as terras cultiváveis se tornam escassas,disputas sobre sua distribuição podem surgirentre camponeses que reconhecem direitoscomunitários étnicos e de usucapião e latifun-diários ou proprietários, de etnias diferentes,que asseguraram sua posse através de escriturasou conquistas ancestrais.43

Em alguns casos, disputas locais por terrasse estenderam a ameaças maiores. A rebeliãozapatista no Estado de Chiapas, ao sul doMéxico, por exemplo, desenvolveu-se aolongo de tensões seculares entre poderososlatifundiários e peões maias sem-terrapressionados por outros assentados pobres eexcluídos das reservas florestais protegidas

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pelo governo. A escala e organização darebelião inquietaram investidores estrangeirose, de acordo com alguns analistas, pode tercontribuído para a crise monetária nacionalque acabou por solapar o poder do regimeem vigor.44

Independentemente dos vários exemploshistóricos de violência relacionada a recursosnaturais, pesquisas indicam que as ligações entreescassez de recursos e conflitos podem nãoser tão fortes quanto aquelas entre conflitos eoutros fatores demográficos, comourbanização ou inchaço jovem. A maioria dosteóricos concorda que mudanças ambientais– sejam terras cultiváveis ou escassez hídricaou aumento de desmatamento e erosão dosolo – são apenas uma pequena parte de ummisto complexo de estresses que promoveminstabilidade social maciça. O sociólogo JackGoldstone, por exemplo, argumenta que odescontentamento entre as elites é umelemento mais agudo na evolução de conflitocivil. Escassez ambiental e “marginalizaçãoecológica,” assegura Goldstone, não sãodeterminantes poderosos de vulnerabilidade,uma vez que estes fatores raramente afetamos meios de vida ou poder da elite de formaadversa.45

Ademais, existe uma vasta gama deoportunidades para mediar escassezespotencialmente explosivas, através delegislação e políticas econômicas seguras, docomércio e cooperação técnica. Ruanda, porexemplo, está em vias de finalizar uma nova

política agrária nacional que, caso seja efeti-vamente implementada, poderá resolverquestões renitentes sobre distribuição de terras.(Vide Quadro 2-2.) E muitos países europeuscom escassez de recursos, como tambémnações asiáticas industrializadas como Coréiado Sul, Taiwan e Japão, incrementaram suasimportações de alimentos e ração animal, afim de aliviar as crescentes demandas agrícolassobre terras e água doce. Outros, começarama importar água doce através de adutoras eoutros meios diretos, tornaram-se maiseficientes no uso da água ou se voltaram paraa dessalinização, a fim de suplementar acarência de água potável.46

Naturalmente, a maioria dos paísesindustrializados ricos tem condições de investirem tecnologia eficiente no uso da água epossuem amplos recursos financeiros paraimportar grãos – tornando-os muito menosvulneráveis a um conflito envolvendo recursosnaturais. Para a maioria dos países emdesenvolvimento enfrentando diminuição derecursos e populações em constante aumento,há pouca esperança imediata de atrair o capitalnecessário para uma rápida industrialização, oupara transformar radicalmente seus usos dosolo e da água. Seja qual for o registro histórico,as conseqüências da competição cada vezmaior por esses recursos cruciais são incertase pouco animadoras. Por este motivo, anecessidade de focar as forças demográficas

Reivindicações concorrentes por

água doce poderão complicar os

esforços para solução dos infindáveis

conflitos no Oriente Médio.

Para a maioria dos países em

desenvolvimento enfrentando diminuição

de recursos e populações em constante

aumento, há pouca esperança imediata

de atrair o capital necessário para

uma rápida industrialização.

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subjacentes que movem a escassez de recursos– e investir em programas que ajudem adesacelerar o crescimento populacional nessasregiões afetadas – é cada vez mais urgente.

Minimizando Riscose Avançando

Em muitos casos, os quatro “fatoresdemográficos de risco” – aumento crescentede jovens, crise do HIV/AIDS, urbanizaçãoacelerada e disponibilidade reduzida de terrascultiváveis ou água doce – não ocorremisoladamente. Pelo contrário, interagem unscom os outros e com variáveis não-demográficas, incluindo tensões étnico-históricas, governança insensível e instituiçõesfracas, produzindo um estresse que desafialideranças governamentais e a capacidade dospaíses funcionarem eficazmente. Embora sejaimprovável que levem diretamente ao caospolítico ou à guerra, podem agravar em muitoa vulnerabilidade de um país a conflitos. Deacordo com a Population Action International,países que revelaram dois ou mais fatores, sejaalta proporção de jovens, altas taxas de cres-cimento urbano ou carências de dispo-nibilidade per capita de terras cultiváveis ou águadoce, representaram 23 dos 36 países quesofreram novas eclosões de conflitos civisdurante os anos 90.47

Felizmente, demografia não é destino. Masa probabilidade de conflito futuro poderá vira refletir a forma que as sociedades escolhemde como enfrentar seus desafios demo-gráficos. Por exemplo, a PAI constatou que,cerca da metade dos países que deveriam estarcorrendo riscos demográficos muito altosdurante os anos 90, na realidade navegarampacificamente o período pós-guerra fria. Porquê? Em pelo menos alguns desses casos, os

países conseguiram compensar esses riscosatravés de governança forte, resolução deconflitos, mediação étnica ou políticaseconômicas bem-sucedidas – incluindo acriação de emprego urbano, importação derecursos críticos, distribuição de terras eencorajamento à imigração. Cabo Verde, naÁfrica Ocidental, pode ter compensado suavulnerabilidade durante os anos 80 e 90,facilitando a migração de seus cidadãos paraEuropa em busca de emprego, e encorajando-os a remeterem uma parcela de suas rendasde volta ao país.48

Enquanto isso, países do Leste e Sudesteda Ásia, como a Coréia do Sul e a Malásia,transformaram um inchaço jovem crescentenos anos 60 e início dos anos 70 numa forçaeconômica positiva, através de investimentoscríticos em educação e treinamento pro-fissional. E muitos países ricos em petróleocriaram empregos urbanos, grandes exércitose burocracias excessivas para absorver suascrescentes populações – além de reprimirimpiedosamente qualquer dissensão quepudesse levar a conflito. Na Coréia do Norte,China e Turcomenistão, a expansão das forçasmilitares e de segurança interna provavelmenteajudou os regimes repressivos a manteremestabilidade política durante a era pós-guerrafria, apesar da grande proporção de jovensadultos.49

No longo prazo, todavia, a única forma dealiviar as pressões demográficas potencial-mente voláteis será através do enfrentamentodireto ao crescimento populacional. A quedasignificativa de fertilidade que ocorreu em cercade 20 países em desenvolvimento no Lesteda Ásia, Caribe e América Latina, nas últimasdécadas, é uma tendência encorajadora.Grande parte do crédito para esta trans-formação deve-se aos países que investiram

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em serviços vitais de saúde reprodutiva, in-cluindo melhoria de acesso a planejamentofamiliar e tratamento de saúde materna einfantil. Tunísia e Tailândia, por exemplo,

conseguiram entrar rapidamente no últimoestágio da transição demográfica através depolíticas sociais proativas, eficiência de custo,programas de saúde reprodutiva de largo

O acesso à terra é uma questão crítica em Ruanda,

que sofre aguda escassez de terra. Ao longo dos

últimos 40 anos, a densidade demográfica em terras

agrícolas aumentou de 121 pessoas para cerca de

321 por quilômetro quadrado. Cerca de 60% das

famílias possuem menos de meio-hectare de terra.

A distribuição também é altamente desigual: o

quarto da população que possui mais de um hectare

por família representa quase 60% das propriedades

do país. Devido à pressão populacional, os períodos

de alqueive são mínimos, levando à queda da

fertilidade do solo, com muitas famílias cultivando

solos inadequados.

Nos últimos anos, ondas sucessivas de

deslocamento populacional e reassentamentos

causaram impactos profundos no assentamento e

propriedade de terras. Ruanda foi afetada por

conflitos internos desde sua independência,

culminando no genocídio de 1994, que resultou na

morte de cerca de 800.000 pessoas. Discussões

sobre terra são hoje mais numerosas sendo também

as disputas legais mais intratáveis do país. Embora a

governança pós-conflito tenha sido, em geral, mais

inclusiva, Ruanda tem tido pouca experiência com

governança participativa, e a capacidade da

sociedade civil influenciar políticas continua duvidosa.

Em resposta a esses desafios, o governo de

Ruanda está finalizando uma nova Política Agrária

Nacional e uma Lei Nacional da Terra. A política

objetiva implantar diretrizes e programas

apropriados para alocação e uso da terra,

promover consolidação da terra, formar comissões

locais da terra e realizar o cadastramento de todos

os lotes. Pretende também encorajar a participação

comunitária e assegurar que as mulheres se

beneficiem da terra através de heranças.

A consolidação da terra é uma das questões mais

complexas. O processo de incorporar lotes menores

em propriedades mais produtivas e

economicamente viáveis envolverá, provavelmente,

algum grau de compulsão, aumentando o perigo de

lavradores mais pobres perderem o controle de seus

meios agrários de vida. A composição, capacidade

QUADRO 2-2. REFORMA AGRÁRIA EM RUANDA.

técnica e responsabilidade das novas comissões da

terra encarregadas da implementação de

reassentamentos serão muito importante.

Enquanto isso, o cadastramento dos lotes de

terra em Ruanda exigirá recursos financeiros e

técnicos maciços. A nova política requer que os

proprietários assumam os custos do cadastramento

– levando a temores que os ricos terão condições

de se cadastrarem às custas dos pobres, embora

pareça que um sistema de duas classes poderá ser

implantado, com um sistema subsidiado para a

maioria. A política requer a criação de uma reserva

a fim de alocar terras para aqueles que não a

possuam, porém sua definição muito estreita de

quem é sem-terra exclui uma alta proporção desta

população.

A implantação de comissões distritais da terra

poderá proporcionar meios eficazes de resolução de

disputas locais sobre acesso à terra – muitas das

quais surgiram do “compartilhamento” ocorrido

após 1994, com o fim de acomodar reivindicações

concorrentes de refugiados. Para ter sucesso,

entretanto, as novas comissões da terra deverão

prestar contas às comunidades locais ao invés de

escalões superiores do governo.

Em geral, a nova política e legislação da terra

proporcionam várias oportunidades potencialmente

positivas para melhoria da gestão agrária e

governança ambiental. Mas precisarão ser

implementadas com cautela e transparência. Já surge

confusão em nível comunitário sobre as possíveis

implicações da propriedade familiar. O envolvimento

e coordenação de todos os setores do governo

precisarão melhorar, e as organizações comunitárias

e grupos não-governamentais terão que

desempenhar um papel-chave no apoio às novas

comissões da terra e monitoração da

implementação.

Chris Huggins e Hermon Musahara,

Centro Africano para Estudos Tecnológicos

Fonte: Vide nota final 46.

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alcance e assistência técnica do exterior. Muitospaíses também promoveram políticas queajudaram a permanência escolar de meninas eaumentaram as oportunidades de empregofora de casa para mulheres – incrementandoo status e a renda das mulheres, melhorandoa nutrição e a sobrevivência infantis e amplian-do a demanda por contracepção moderna.50

Infelizmente, a maioria dos países quecorrem altos riscos demográficos hoje nãodispõe de capacidade institucional pararesponder a esses desafios. Precisam dossistemas financeiros e mercados estáveis,aplicação adequada de leis, direitos depropriedade claramente delineados, e sistemaseducacionais e de saúde eficientes, que são osalicerces de nações fortes. E, na maioria doscasos, o nível e qualidade dos serviços quepoderiam evitar o agravamento da situaçãodemográfica desses países – inclusiveplanejamento familiar, educação feminina,saúde materna e infantil e prevenção do HIV/AIDS – são lamentavelmente inadequados.

A extensão desses serviços aos países maisfracos e pobres do particularmente mundoexigirá muito mais colaboração e assistênciainternacional do que existe hoje. Países maisricos precisarão tomar a iniciativa de contribuircom capacitação técnica, recursos financeirose suprimentos. O mundo hoje enfrentacarências críticas de suprimentos necessáriospara contracepção, prevenção de HIV/AIDSe outros serviços de tratamento e cuidadossexuais e de saúde reprodutiva. Conforme umestudo recente, em 1999, menos de cincopreservativos por homem em idadereprodutiva foram disponibilizados pordoadores internacionais e governos para todaa África subsaariana. E o custo anual de suprirpreservativos grátis e acessíveis suficientes emtodo o mundo está projetado a mais que

duplicar dentro da próxima década, de US$239 milhões em 2000 para US$ 557 milhõesem 2015.51

Infelizmente, justamente quando há maisurgência, o apoio internacional para oplanejamento familiar e serviços afins continuaa diminuir. Em 2000, chegava apenas a metadeda meta de US$ 17 bilhões estabelecida pelasNações Unidas, em 1994, na ConferênciaInternacional sobre População e Desen-volvimento, no Cairo. A parcela dos EstadosUnidos se traduziu em US$ 1,9 bilhão, porémem 2000, os recursos dos EUA para saúdereprodutiva – que inclui programas deplanejamento familiar, HIV/AIDS e saúdematerna e infantil, e uma contribuição aoFundo de População das Nações Unidas(FNUAP) – totalizaram apenas um terço da-quele compromisso. Em 2004, pelo terceiroano consecutivo, o governo dos EstadosUnidos reteve os US$ 34 milhões que deveao FNUAP – cerca de 10% do orçamentochave da organização. O fracasso contínuo decumprimento dos compromissos inter-nacionais prejudicará significativamente oavanço da transição demográfica, dificultandoainda mais a contenção da disseminação doHIV.52

Embora políticas e programas queinfluenciam as tendências populacionaistenham estado tradicionalmente na esfera dedoadores e prestadores de serviços sociais ede saúde internacionais, a comunidadeinternacional de segurança, também, começaa se apresentar. Em abril de 2002, numaresposta por escrito ao questionamento doCongresso, a Agência Central de Inteligênciados Estados Unidos observou que “váriastendências globais graves – especialmente ocrescente inchaço demográfico jovem nasnações em desenvolvimento, cujos sistemas

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econômicos e ideologias políticas encontram-se sob uma gigantesca pressão – incentivarãoo aumento de grupos mais rebeldes, dispostosa utilizar violência para resolver suasinsatisfações.” A agência alertou que, caso asoperações antiterroristas dos Estados Unidosnão enfoquem muitas das causas subjacentesque movem os terroristas – inclusive ademografia –, poderão a vir a fracassar naeliminação da ameaça de futuros ataques.53

Apesar desses avisos, estrategistas elegisladores de segurança têm sido lentos emagir. Na maioria, optam por focar suasatenções na promoção da democracia ereformas de mercado que, na ausência demudanças paralelas na esfera social, poderávir, ironicamente, a desestabilizar nações. Ajudaaos países para se aproximarem da fase finalda transição demográfica – uma fase na qualas pessoas têm vidas mais longas e as famíliassão menores, sadias e instruídas, e onde apopulação quase parou de crescer – prometeajudar a reduzir a freqüência dos conflitos ecriar um mundo mais pacífico. Já há amplasevidências de que, ao enfrentar os fatores chaverelacionados à mudança demográfica, osgovernos poderão fortalecer a segurança depaíses estratégicos, regiões pivotais e domundo como um todo.54

Sem o apoio da comunidade nacional desegurança, os programas internacionais desaúde reprodutiva correm o risco de seremignorados – ou, o que é pior, serem sacri-ficados entre disputas internas por vantagem

política. Analistas de segurança e defesanacional, como também autoridades militares,freqüentemente exercem influência quetranscende mudanças em liderança gover-namental e no clima político – tornando-osaliados importantes no movimento para mu-dança demográfica. Ao incluir dados popula-cionais e projeções em estudos de área,previsões operacionais ambientais e outrasavaliações de segurança e ameaças, eles podemproporcionar informações e orientaçõesprecisas a legisladores, mídia e líderes deopinião sobre os benefícios globais quepodem advir da conclusão de uma transiçãodemográfica completa. Esse apoio podeajudar na obtenção de fundos para programasde planejamento familiar, educação feminina,saúde materna e infantil, e prevenção etratamento do HIV/AIDS.55

A comunidade de segurança pode agir deforma mais direta também, ajudando afacilitar o acesso a serviços de saúde repro-dutiva para refugiados, civis em situações pós-conflito e todo o efetivo militar através deoperações de manutenção de paz e outras.Oficiais militares graduados e diplomatas sãofreqüentemente os únicos com autoridadedireta em áreas restritas, encontrando-se assimsingularmente posicionados para ajudar aaumentar a disponibilidade de serviços desaúde reprodutiva a essas pessoas. Comandosmilitares podem também prestar apoiologístico e organizacional a grupos externosencarregados de prestar serviços de saúdereprodutiva em ambientes pós-conflito –inclusive a FNUAP, o Alto Comissariado dasNações para Refugiados, órgãos oficiais desaúde e várias organizações não-gover-namentais.56

Autoridades militares e diplomáticas eorganizações internacionais de ajuda podem

Justamente quando há mais urgência,

o apoio internacional para o

planejamento familiar e serviços afins

continua a diminuir.

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contribuir para assegurar que particularmenteas mulheres tenham oportunidade derepresentar seus próprios interesses e dos seusfilhos – não só em situação de refugiadas, mastambém durante o processo de paz ereconstrução de países afetados por conflitos.O Departamento de DesenvolvimentoInternacional do Reino Unido, por exemplo,fortaleceu sua inclusão de mulheres em pro-cessos de mediação e de paz, como tambémem assuntos legais e políticos em ambientespós-conflito. Ao apoiar mudanças sociais epolíticas que encorajam moças a perma-necerem na escola e oferecem às mulheresmaiores oportunidades, esses grupos podemajudar a melhorar o status das mulheres, redu-zir taxas de fertilidade e possivelmente atémesmo desviar as prioridades nacionais deconflitos para o desenvolvimento humano. “Aquestão de participação igualitária das mulheresnão é simplesmente uma questão de igualdadede gênero e direitos humanos, mas sim umaque representa um fator decisivo para amanutenção de desenvolvimento pacíficonuma região conturbada,” observou LulSeyoum, uma ativista de direitos femininos daEritréa, numa conferência em 1999 sobremulheres e conflitos.57

Na área de prevenção e tratamento doHIV/AIDS, governos com programas exem-plares em suas próprias forças armadas podemcompartilhar essas ações de uma forma maisampla com populações militares e civis emoutros países. Governos doadores, enquantoisso, podem ampliar seus programas de saúdereprodutiva para assegurar que tratamentos dealta qualidade incluindo informações e serviçoscontraceptivos abrangentes, prevenção dedoenças sexualmente transmissíveis e saúdematerna e infantil – estejam disponibilizadospara militares e suas famílias. Essas iniciativas

poderão ajudar as forças armadas na África eÁsia a reduzirem suas altas taxas de transmissãode HIV, que hoje ameaça os militares, suasfamílias e comunidades vizinhas.

Claramente, o incentivo à mudança demo-gráfica poderá criar grandes oportunidades.Não é, porém, uma fórmula milagrosa paraa segurança. Obviamente, o avanço demo-gráfico por si só não pode garantir que umpaís derrube uma liderança opressiva, junte-se à família global de nações democráticas ouresista a conluio com insurgentes e terroristas.Não se pode depender de mudanças demo-gráficas para reduzir riscos onde conflitosarmados sejam persistentes ou recorrentes,onde uma cultura de violência e retribuiçãoesteja firmemente enraizada, ou onde pro-blemas se alastrem de países instáveis vizinhos.Colômbia, Irlanda do Norte e Sri Lanka sãoregiões onde avanços demográficos nos anos90 deveriam ter ajudado a aliviar riscos.Entretanto, em cada um dos casos, conflitoscivis onerosos que tiveram início em anosanteriores, persistiram por toda a década.58

Da mesma forma, a mudança para osúltimos estágios da transição demográfica nãoé a única forma de um país reduzir suavulnerabilidade à instabilidade ou conflito.Processos demográficos raramente – oununca – agem sozinhos aumentando oureduzindo a chance de instabilidade política.Conflitos civis, particularmente, são processoscomplexos, de múltiplos estágios, que sealimentam das vulnerabilidades históricas emodernas de um país e são movidos ao longodo tempo por eventos basicamenteespecíficos e imprevisíveis. Os esforços inter-nacionais de resolução de conflitos e manu-tenção da paz fizeram muito para reduzir afreqüência de conflitos menores e incipientes.E há fortes evidências que os países podem

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reduzir sua vulnerabilidade a conflitos atravésda disseminação de instituições democráticas,desenvolvimento econômico e alívio dapobreza, e ampliação das relações comerciaisinternacionais.59

Todavia, a demografia precisa formar parteda análise. Se as relações entre transição demo-gráfica e conflitos for mantida nas próximasdécadas, as decisões tomadas hoje que afetamessa importante transição poderão ter uma

enorme influência não só nas perspectivasdemográficas, mas também no futuro dasegurança global. Para países nos primeirosestágios de suas transições demográficas,poderá levar quase duas décadas após afertilidade começar a cair para se observar umaredução significativa no crescimentopopulacional. Os vários riscos da demora dessatransição sublinham a necessidade de osgovernos implementarem políticas de apoioo mais cedo possível.

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L I G A Ç Ã O D E S E G U R A N Ç A

Em 2003, aproximadamente, uma em cada370 pessoas na Terra – 17,1 milhões no total- foi classificada como “pessoa vulnerável”,pelo Alto Comissariado das Nações Unidaspara Refugiados (ACNUR), a agência dasNações Unidas dedicada à proteção derefugiados e outras populações desalojadas.Esta cifra inclui 9,7 refugiados (pessoasfugindo de perseguição ou temendoperseguição), 1,1 milhão de refugiadosrepatriados , 4,2 milhões de pessoasdesalojadas internamente (PDIs), 233.000pessoas desalojadas repatriadas e realojadas,995.000 em busca de asilo e 912.000 emoutras categorias, incluindo “apátridas”.1

Esta estimativa não inclui o númerocrescente de refugiados ambientais –pessoas “forçadas a abandonar seu habitattradicional, provisória ou permanentemente,em decorrência de uma perturbaçãoambiental marcante... que coloque emperigo sua existência e/ou afeteprofundamente sua qualidade de vida.”Entre os fatores ambientais naturais oucausados pelo homem que forçam aspessoas a mudar, estão a escassez derecursos e distribuição injusta de recursosnaturais; desmatamento e outrasdegradações ambientais; desastres naturaisou industriais; mudança climática; destruiçãosistemática do meio ambiente comoinstrumento de guerra e remanescentes deguerra; superpopulação e projetos dedesenvolvimento. Em 2004, Essam El-Hinnawi, do Instituto Ambiental e deRecursos Naturais do Cairo, estimou que

Refugiados Ambientaisexistem, atualmente, 30 milhões derefugiados ambientais em todo mundo.2

Em 2002, a Cruz Vermelha informouque o número de pessoas mortas pordesastres naturais, incluindo enchentes, secas,e terremotos, caiu 40% entre as décadas de1970 e 1990 (devido principalmente àmelhor prontidão para desastres), enquantoo número de vidas afetadas adversamentepor estes acontecimentos aumentou 65%.Prevê-se o aumento desta cifra, à medidaque se intensificam os impactos previstospela mudança climática: de acordo com oPainel Intergovernamental sobre MudançaClimática, poderá haver perto de 150milhões de refugiados ambientais até 2050.3

Adicionalmente, o deslocamento demassas populacionais desalojadas podedeflagrar instabilidade ou conflito no país deorigem, nos países hospedeiros ou dentroda região. Recursos escassos podem serainda mais degradados ou exauridos e gerarcompetição pelo acesso a eles; infra-estrutura insuficiente ou distribuição injustapode reforçar divisões sociais e tensões.Condições de superpopulação ou insalubrese falta de água potável podem causarepidemias mortais. Se acontecerem osmovimentos globais populacionaisprevistos, estes e outros impactos poderãoter implicações graves na segurança global.

A despeito da seriedade destas tendências,o tema “refugiados ambientais” temrecebido pouca atenção nos níveis maisaltos. O foco tem sido mais o impacto queo desalojamento de massas tem no

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REFUGIADOS AMBIENTAISEstado do Mundo 2005

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Meninas aprendendo a escrever no Campo de Refugiadosde Kakuma, Quênia

ambiente do queo papel que opróprio ambienteexerce na criaçãode refugiados. Énecessário maioranálise para ajudara definir oconceito de refugiados ambientais,identificar as causas subjacentes doproblema, explorar as conseqüênciasimediatas e de longo prazo e chegar arespostas eficazes.

Duas abordagens distintas se apresentamcomo respostas possíveis às conseqüênciasdo desalojamento ambiental: um reexamedo esforço internacional para tratar da crisedo refugiado e análise da relação homem-ambiente, no que diz respeito às operaçõesin loco. .

Sob a legislação internacional, éconcedido aos refugiados um status especialque garante a eles certos direitos e os tornaelegíveis à assistência legal e material. Todosos países participantes da ConvençãoRelacionada à Situação dos Refugiados, de1951, ou do seu protocolo de 1967, sãoobrigados a prover um mínimo de recursosbásicos e proteção aos refugiados.

O ACNUR implementa a convenção e oprotocolo, provê proteção legal, coordenaauxílio de emergência e ajuda a encontrarsoluções de longo prazo.

O ACNUR foi contra a ampliação daconvenção para incluir o meio ambientecomo uma fonte de perseguição - alegando

que, embora amovimentaçãoforçada seja umtema comum,pessoasemigrando porrazões ambientaispodem ainda

procurar proteção de seus própriosgovernos, enquanto aquelas fugindo, devidoàs categorias tradicionais de perseguição, nãopodem. Além disso, O ACNUR já está seesforçando para direcionar seus recursoslimitados à grande variedade de criseshumanas cobertas pelo seu mandato atual.Críticos argumentam que a exclusão dosambientalmente desalojados é mesquinha e,especialmente, injusta com países pobrescuja condição ambiental pode ser aconseqüência do comportamento de outrospoluidores. 4

Dadas as limitações atuais de proteçãolegal sob a convenção dos refugiados, a faltade consenso para mudá-la e o déficit derecursos da UNHCR, muitos observadorescontinuam afirmando que a saga dosrefugiados ambientais necessita de umaresposta mais acolhedora do sistema dasNações Unidas e da comunidadeinternacional. Enquanto continuam asdiscussões sobre a reforma da convenção oua criação de uma nova, a ausência de umaorganização específica direcionada para osrefugiados ambientais vem trazendo repostasinconsistentes e, muitas vezes, incompletaspara as crises de desalojamento.5

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REFUGIADOS AMBIENTAIS

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Além de resposta institucional e legal,organizações que dão assistência em crisespodem adotar ações adicionais. Entretanto,incorporar preocupações ambientais aosesforços existentes de assistência às crisespode ser um assunto delicado.Diferentemente das conseqüências de muitascrises convencionais, o prejuízo ambiental émuitas vezes menos óbvio, não melhoracom o tempo, nem permanece dentro dasfronteiras nacionais. A comunidade de ajuda,ainda que muitas vezes consciente dadimensão ambiental, vem tendendo aprotelar ações, a menos que estejaclaramente relacionada a um assuntohumanitário ou de segurança.

Embora afirmando que a vida humana éa preocupação principal numa emergênciahumanitária, a mitigação ambiental precisaser vista, não como um luxo ou uma carga,mas como um instrumento outro que asagências de ajuda possam usar paramelhorar sua resposta aos desalojados. Umestudo sugere que “$1 investido na

mitigação pode poupar $7 nos custos derecuperação.” Embora uma série deagências de ajuda já tenha estabelecidoprogramas e diretrizes voltadas para amitigação ambiental, pesquisas adicionais sãonecessárias no modo como terceiros podemgerenciar estes bens ambientais maiseficientemente e por que necessitam assimfazê-lo, dentro de uma resposta humanitáriageneralizada. 6

O aumento previsto de refugiadosambientais ameaça minar a estabilidadelocal, segurança ambiental e a qualidade devida de milhões de pessoas. Isto aumenta apressão na comunidade internacional – tantonas instituições quando naqueles grupos quedão assistência quando necessário – paradesenvolver um esforço conjunto, visandomelhor definir o problema dos refugiadosambientais, encontrar uma solução queatenda às necessidades humanas básicas eajudar a preservar a qualidade do meioambiente.

- Rhoda Margesson,U.S. Congressional Research Service

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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

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C A P Í T U L O 3

Contendo DoençasInfecciosas

Dennis Pirages

Movendo-se lentamente para o oeste com osmercadores e outros viajantes, ao longo dasrotas comerciais da China, a Morte Negrachegou a Kaffa, na Criméia, em 1346. Levadade região a região pelo rato negro (Rattus rattus)e suas pulgas, a doença seguiu lenta einexoravelmente pelo continente europeu,chegando à França, Itália e Espanha, em 1348.A peste seguiu, alcançando a costa leste doMar do Norte e Mar Báltico, em 1350. Emquase toda Europa Ocidental, cerca de 40%da população morreu durante esta epidemia.1

Numa região remota do sul da China, nofinal de 2002, uma nova doença respiratória,que ficou conhecida como SRAG (síndromerespiratória aguda grave), saltou de animaispara humanos e se alastrou rapidamente paraoutras partes do país. Em questão de poucassemanas, a doença avançou célere, levada porviajantes em trens e aviões por toda a Ásia, edaí para grande parte do mundo. Dentro deapenas seis meses, surgiram relatos da SRAG

em 29 países, matando quase 800 pessoas efazendo adoecer mais de 8.000. Felizmente, aextensão do surto foi limitada pelo fato de ovírus ser transmitido por gotículas respiratórias,tornando a doença susceptível a medidaspreventivas simples, como máscaras cirúrgicas.Caso fosse de mais fácil transmissão, apandemia (epidemia global) resultante teriamatado milhões em todo o mundo.2

Medida em número de mortes prematurase sofrimento físico associado, a maior fontede insegurança humana, no passado e presente,é a temida doença infecciosa, o QuartoCavaleiro do Apocalipse. Em 2002, porexemplo, as guerras foram responsáveis por0,3% de todas as mortes mundiais. Doençascontagiosas representaram 26%. A aceleraçãode viagens internacionais e o crescimento docomércio global estão transformando adisseminação rápida de doenças infecciosasnum desafio extremamente urgente àsegurança.3

Dennis Pirages é Professor de Política Ambiental Internacional da Harrison, no Departamento de Governo ePolítica da Universidade de Maryland.

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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

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Ao longo dos séculos, o número de mortose feridos em combates militares diminuiu, emcomparação ao número correspondente adoenças. Estima-se que todas as guerras doséculo XX mataram 111 milhões decombatentes e civis, uma média de cerca de1,1 milhão por ano. Doenças contagiosas, hoje,matam 14 vezes mais, anualmente. Mesmodurante o período em que o mundo estavaenvolvido pelos horrores militares da I GuerraMundial, um vírus da influenza disseminava-se por todo o mundo. Estimativas do númerode mortes desta pandemia variam, porém,calcula-se que o vírus ceifou a vida de 20 a 40milhões de soldados e civis, muitas vezes maisdo que o número de mortes diretamenteatribuíveis à guerra.4

Considerando o legado extremamentevisível de conflitos violentos entre os povos,compreende-se por que a segurança veio aser definida principalmente como questãomilitar. Guerras são vívidas, violentas edestrutivas. Porém, mais importante, aspessoas historicamente têm sido capazes deperceber a natureza das ameaças militares econceber estratégias para lidar com elas.Contrariamente, embora as patogenias tenhamcausado números maiores de perdas humanas,relativamente, poucos recursos dos tesourospúblicos têm sido alocados para lidar comelas, uma vez que as causas e reparações têmsido muito pouco entendidas.

Outra razão pela qual as doenças não têmsido consideradas como grave ameaça àsegurança é porque, durante a maior parte doúltimo século, a campanha contra doençasinfecciosas esteve, presumivelmente, no limiarda vitória. Encorajadas pelas melhorias dascondições sanitárias, avanços em pesquisasmédicas, novas vacinas e melhores antibióticos,as autoridades de saúde, nos anos 70,

declararam que os países industrializados nãomais precisavam se preocupar com a pragadas doenças contagiosas. Trinta e cinco anosatrás, o Ministro da Saúde W.H. Stewarddeclarou ao Congresso dos Estados Unidosque havia chegado a hora de “fechar o livro”das doenças infecciosas. E, 30 anos atrás, ofamoso biólogo John Cairnes escreveu que omundo ocidental havia, praticamente,eliminado a morte por doença infecciosa.5

Infelizmente, o otimismo deles foi mal-fundado. Não só a campanha de erradicaçãode doenças infecciosas continua, comotambém as patogenias têm revelado notávelresiliência e flexibilidade. Antigas moléstiascomo tuberculose, malária e cólera persisteme se disseminam geograficamente. E doençasanteriormente desconhecidas, como Ebola,hepatite C, hantavírus e HIV, emergiram comonovas ameaças. Por que, após repetidasdeclarações de que a luta contra doençasinfecciosas havia terminado, os especialistasagora estão muito mais cautelosos sobre osdesafios apresentados pelos microorganismospatogênicos?

Pesquisa e vigilância hoje geram umentendimento muito maior da dinâmica dossurtos de doenças, e novos medicamentosestão cada vez mais disponíveis para lidar comelas. A redução da mortandade mundialcausada por doenças infecciosas deveria terprioridade máxima. Se mesmo uma pequenaporcentagem do dinheiro que os EstadosUnidos e outras potências militares aplicamna defesa fosse desviado para a promoção

A redução da mortandade mundial

causada por doenças infecciosas

deveria ter prioridade máxima.

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da melhoria da saúde pública mundial, o bem-estar humano teria um avanço dramático,aumentando imensamente o sentimento desegurança pessoal. Conforme dizem osespecialistas, se os gastos com tratamento desaúde nos 60 países mais pobres do mundopudessem ser aumentados gradativamente dosatuais US$ 13 per capita, para US$ 38, até 2015,poder-se-ia salvar uma média de 8 milhõesde vidas, a cada ano. Isto exigiria umacontribuição total dos países industrializadosde cerca de US$ 38 bilhões – uma fração doque os Estados Unidos gastou recentementepara depor Saddam Hussein no Iraque.6

Há boas indicações de que o pensamento eas prioridades sobre a segurança estãocomeçando a mudar. Devido a seu impactoem questões econômicas e militares, asdoenças infecciosas estão cada vez mais sendotratadas como uma ameaça convencional àsegurança. Forças militares estão sendodebilitadas significativamente e economiasdevastadas em regiões do mundo seriamenteafetadas pelo HIV/AIDS. Em abril de 2000,a percepção de que governos poderiam serderrubados devido à doença levou o Ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton adeclarar o HIV/AIDS como uma ameaça àsegurança nacional do país. Assim, aconsciência dos desafios de doenças novas eressurgentes está mudando, a compreensão desuas causas e conseqüências está aumentandoe a determinação de fazer algo quanto a esteaspecto crucial da segurança está crescendo.7

A Dinâmica dosSurtos de Doenças

Cair doente é uma experiência comum, e amaioria dos confrontos com doenças causarelativamente pouco dano duradouro às

vítimas. Os sistemas imunológicos humanoscoevoluíram com uma variedade depatogenias e desenvolveram defesas ao longodo tempo para lidar com a maioria delas.Entretanto, surtos significativos de doençaspodem ocorrer quando as pessoas enfrentamnovas patogenias ou novos serótipos dedoenças antigas. Contudo, mesmo a maioriadessas patogenias estranhas causa relativamentepouco dano às vítimas, e os sintomasdesaparecem após alguns dias. Ocasio-nalmente, todavia, surgem patogeniasvirulentas e debilitantes - para as quais ossistemas imunológicos têm pouca defesa -,podendo fazer, então, com que doenças fataisse disseminem mais rapidamente pelapopulação humana.

Surtos de doenças em larga escala,epidemias e até pandemias ocorrem quandoacontece algo que perturba o equilíbrioevolutivo, normalmente, existente entre pessoase patogenias. O desequilíbrio pode resultar demudanças no comportamento humano oucircunstâncias, mutações ou movimentaçõesde patogenias, ou alterações em ambientescompartilhados. Quando as pessoas viajampara novos ambientes, arriscam encontroscom patogenias para as quais têm poucaimunidade. Viajantes internacionais, porexemplo, freqüentemente adoecem durantesuas viagens ou logo após seu retorno. Namaior parte do tempo, essas doenças causampouco dano permanente e são, simplesmente,um estorvo. Porém, como o surto da SRAG,em 2003, ilustrou, as viagens às vezes têmconseqüências trágicas.

Da mesma forma, vírus e bactériasrazoavelmente benignas podem sofrermutações para serótipos mais destrutivos. Epatogenias anteriormente desconhecidaspodem saltar de animais para humanos. A atual

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disseminação global da gripe aviária éparticularmente grave, uma vez que estadoença, até agora detectada principalmenteem aves, pode aparentemente se transformare ser transmitida de pessoa para pessoa.Finalmente, a mudança ambiental podeperturbar equilíbrios já estabelecidos entrepessoas e patogenias, facilitando novos surtosde doenças. A mudança climática, porexemplo, deverá alterar padrões de preci-pitação e temperatura, permitindo assim quedoenças tropicais vicejem em regiõesanteriormente mais frias, onde não podiamantes sobreviver.8

Em pelo menos três períodos da históriamundial recente, mudanças significativas nasrelações entre pessoas e micróbios facilitaramsurtos de doenças ou mesmo epidemias. Aprimeira onda de mudança começou a ganharimpulso há cerca de 10.000 anos, quando adomesticação de animais selvagens durante osprimórdios da Revolução Agrícola aproximouo homem dos animais, proporcionando,assim, maior oportunidade para circulação deorganismos de doenças entre eles. Assen-tamentos em comunidades agrárias e,posteriormente, nas cidades, também colo-caram as pessoas em contato mais próximoao lixo acumulado, que freqüentementecontinha organismos nocivos.9

A segunda onda teve início há cerca de 2.500anos, quando o aumento de contato entrecentros de civilização acelerou a disseminaçãode doenças às quais as pessoas não tinham sidoainda expostas. O Império Romano noOcidente e a Dinastia Han no Orienteaproximaram-se, à medida que o comérciose expandiu, e germes foram trocadosmutuamente. Assim, a expansão do ImpérioRomano foi repetidamente afligida pormoléstias desconhecidas que, aparentemente,

se originavam na periferia.10

Uma terceira onda de proporçõessignificativas ganhou ímpeto durante a era deexploração transoceânica e expansãocomercial, que começou nos séculos XIV eXV. A peste bubônica chegou à Europa vindada Ásia no início deste período, e osexploradores e colonos europeus chegados aohemisfério ocidental trouxeram varíola,sarampo, influenza e outras doenças quedizimaram populações indígenas.11

Há evidências consideráveis de que umaquarta onda está se formando hoje, devido àdinâmica da industrialização, globalização,crescimento populacional e urbanização. Aspandemias de gripe asiática de 1957 e da gripede Hong Kong de 1968 que, conjuntamente,mataram mais de 4 milhões de pessoas emtodo o mundo, podem bem ser precursorasde algo muito pior. E a lenta pandemia doHIV/AIDS já matou mais de 20 milhões depessoas e deixou enfermos de 34 a 46 milhões.Por que, diante de todos os avanços recentesno tratamento da saúde, a “microssegurança”– proteção contra vários efeitos adversos àsaúde de agentes em escala microbiana –parece novamente estar diminuindo? Há váriasmudanças significativas em curso em pessoas,patogenias e seus ambientes compartilhadosque estão hoje facilitando a disseminação dedoenças infecciosas.12

Mais evidentes entre esses fatores deses-tabilizadores são as mudanças nascircunstâncias e comportamento humanos.Mudanças demográficas, incluindo aumentopopulacional, urbanização acelerada emigração crescente, são hoje grandescontribuintes da insegurança (ver Capítulo 2.).A população mundial atual de 6,4 bilhõesdeverá crescer para mais de 7,9 bilhões, aolongo dos próximos 20 anos. Quase todo esse

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aumento populacional deverá ocorrer nospaíses em desenvolvimento. Em 1965, 36%da população mundial era urbana. Estenúmero hoje já se aproxima de 50%. Onúmero de pessoas que vivem em cortiçosabarrotados nos países pobres estáexplodindo. Na Ásia, a população empilhadanas cidades aumentará do atual 1,5 bilhão para2,6 bilhões, até 2030. Na África, a quantidadede citadinos crescerá de 297 milhões para 766milhões, durante o mesmo período.Obviamente, à medida que maior número depessoas vivem sob condições anti-higiênicasem cidades mais densamente habitadas, torna-se fácil a disseminação de patogeniasrapidamente.13

Não apenas esse crescimento populacional,como também a violência étnica periódica nospaíses em desenvolvimento, está forçando doistipos de migração que também contribuempara a disseminação de doenças. O cres-cimento populacional na maioria desses paísesestá pressionando as pessoas a se assentaremem terras anteriormente desocupadas,freqüentemente florestas desmatadas. Estenovo tipo de assentamento é freqüentementecompartilhado com inúmeras patogeniaspotencialmente perigosas. Esses micróbiospermaneceram em animais hospedeiros emáreas rurais, até que pessoas se intrometeram,proporcionando assim novas rotas fora dafloresta para populações humanas. Igualmente,há aproximadamente 17 milhões derefugiados e populações deslocadas interna-

A mudança ambiental pode perturbar

equilíbrios já estabelecidos entre

pessoas e patogenias, facilitando

novos surtos de doenças.

mente em todo o mundo, devido a vários tiposde emergências humanitárias. Campos derefugiados abarrotados são incubadoras ideaisde doenças, e as pessoas que conseguem sairdeles, freqüentemente, levam doenças paraseus novos destinos. Na região conturbada deDarfur, no Sudão, por exemplo, do final demaio até o final de agosto de 2004, houve3.573 casos confirmados de hepatite E, quecausaram 55 mortes.14

A persistência da pobreza diante docrescimento populacional acelerado domundo em desenvolvimento em urbanizaçãoé outro fator que está aumentando o potencialde surtos de doenças. Apesar do crescimentoda economia global ao longo das últimasdécadas, o fosso entre ricos e pobres, tantodentro como entre países, está efetivamenteaumentando. Entre 1970 e 1995, a renda realper capita para o terço mais rico de todos ospaíses aumentou 1,9% anualmente, o terçointermediário teve um aumento anual deapenas 0,7%, enquanto o terço inferior nãoregistrou aumento algum. Esses númerosmudaram pouco ao longo da última década.Cerca de 2,8 bilhões de pessoas vivem hojecom menos de US$ 2 por dia. As desigual-dades atuais de renda estão refletidas nosgastos comparativos com a saúde. NosEstados Unidos, o total de gastos per capitacom saúde foi de US$ 4.887, em 2001. EmNiger, este número, à taxa média de câmbio,foi de US$ 6, em Serra Leoa US$ 7, e naNigéria US$ 15. As pessoas vivendo sobcondições de tamanha pobreza têm poucoacesso a tratamento de saúde.15

Dessa forma, vivemos hoje num mundoepidemiologicamente dividido. Muitas pessoassofrem das doenças infecciosas dossubnutridos, ao mesmo tempo em que umnúmero cada vez maior é afligido pelas

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doenças crônicas dos superalimentados.Embora a fome persistente seja a condiçãode pelo menos 1,2 bilhão de pessoas, umnúmero semelhante come muito mais do queprecisa. Na África, doenças infecciosas eparasitárias são responsáveis por cerca dametade de todas as fatalidades, enquanto naEuropa representam apenas 2%. A cada ano,mais de 2,3 milhões de pessoas,principalmente nos países pobres, morrem deoito doenças que poderiam facilmente serevitadas através da vacinação.16

Países de renda baixa e média suportammais de 90% da carga mundial de doenças,mas representam apenas 11% dos gastos emsaúde. As doenças que afetam mais comu-mente os pobres atraem pouca pesquisa eparcos gastos desenvolvimentistas. A indústriafarmacêutica vê pouca lucratividade nodesenvolvimento de medicamentos paradoenças endêmicas para países pobres. Entre1975 e 1997, apenas 13 dos 1.233 medica-mentos que chegaram ao mercado mundialse aplicavam a doenças tropicais, responsáveispelo maior número de mortes por doençasinfecciosas.17

Mudanças de comportamento (positivo ounegativo) também estão entre os fatoresperturbadores do equilíbrio entre pessoas epatogenias. Práticas ecologicamente nocivas,como moer partes de animais mortos paraalimentar os vivos, só podem incrementar aspatogenias. Mudanças de padrão de compor-tamento sexual, incluindo sexo desprotegidocom múltiplos parceiros, aumentaramdramaticamente a incidência de doençassexualmente transmissíveis como herpes, sífilise gonorréia. E é difícil se conceber uma formamais eficaz de disseminar doença do que ouso intravenoso de drogas acompanhado pelocompartilhamento de seringas, que acelerou

enormemente a disseminação da hepatite,HIV/AIDS e outras doenças.

Embora a inovação tecnológica sejacomumente considerada como uma fortealiada na contenção de doenças infecciosas,há aspectos na tecnologia que têm efeitoexatamente oposto. No lado positivo,inovações em tecnologias biomédicas criamnovos instrumentos de controle de doenças.O lado negativo, entretanto, é que a tecnologiaestá transformando a natureza do ambienteonde as pessoas e as patogenias interagem. Avelocidade cada vez maior e a difusibilidadedas viagens internacionais significa que maispessoas, produtos e patogenias semovimentam rapidamente através defronteiras. O número de passageiros/quilô-metros voados internacionalmente aumentoude 28 bilhões, em 1950, para 2,6 trilhões, em1998. O volume de carga aérea que sedeslocou internacionalmente cresceu de 730milhões para 99 bilhões de toneladas/quilômetros durante o mesmo período. Maisde 2 milhões de pessoas hoje cruzam umafronteira internacional, diariamente.18

Todos esses viajantes, mercadorias eprodutos agrícolas podem levar patogenias deum lugar no mundo para outros distantes, emquestão de horas. Surtos limitados de doenças,devido ao aumento das viagens e comérciointernacionais, ocorrem regularmente.Ocasionalmente, surgem surtos mais graves.O vírus da SRAG deslocou-se do sul da Chinapara outros países da Ásia e, então, para grandeparte do hemisfério norte, em questão desemanas. E, uma vez que quantidades cada vezmaiores de frutas e legumes consumidos nosEstados Unidos hoje vêm de outros países,autoridades de saúde pública começaram adivulgar aumentos agudos de surtos dedoenças ligadas a produtos agrícolas

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importados e aos micróbios que, freqüen-temente, contêm.19

Da mesma forma que a era das exploraçõestrouxe varíola e várias outras doenças européiaspara o hemisfério ocidental, com efeitosdevastadores para os americanos nativos, asviagens de animais domesticados e outrosdisseminaram suas próprias patogenias.Provavelmente, os 300 suínos que Hernandode Soto trouxe consigo para a Flórida, em1539, foram mais responsáveis pelatransmissão de mais enfermidades aosamericanos nativos, alces e perus do que seussoldados. No mundo contemporâneo,inúmeras doenças infecciosas estão sedisseminando entre populações animais. NaÁfrica central, surtos de Ebola matarammilhares de primatas. O vírus do Nilo, quematou 241 pessoas nos Estados Unidos, em2002, também adoeceu 14.000 cavalos naqueleano e disseminou-se para quase 200 espéciesde aves, répteis e mamíferos, causando umnúmero desconhecido de mortes. O aumentodas viagens e do comércio também estádisseminando patogenias virais, bacterianas efúngicas a vegetais em todo o mundo.20

A gripe aviária é um vírus animal que,periodicamente, ameaça disseminar-seamplamente para populações humanas. Em1997, 18 pessoas adoeceram em Hong Konge 6 morreram quando a gripe saltoudiretamente dos frangos para as pessoas.Como resultado, 1,4 milhão de frangos foram

eliminados, num esforço para prevenir maiordisseminação da doença. A gripe aviáriareapareceu na Europa, em 2003, e 30 milhõesde frangos foram mortos como medidapreventiva. Em 2004, a gripe aviária varreuoito países asiáticos, matando mais de duasdúzias de pessoas e levando ao matadouromais de 100 milhões de aves. A doençatambém apareceu no Canadá e EstadosUnidos. (Vide também o Capítulo 4.)21

A forma atual do vírus da gripe aviária(H5NI) demonstrou uma capacidade de saltardas aves para apenas um número limitado depessoas. Mas, no final de setembro de 2004, aOMS divulgou o primeiro caso provável detransmissão pessoa-a-pessoa, quando umamulher na Tailândia morreu. O temor é que agripe possa continuar a mudar de tal formaque possa vir a ser transmitida facilmente entreas pessoas, possivelmente abrindo caminhopara uma pandemia mortal. Especialistascontinuam a monitorar a doença, atentos amudanças que possam indicar o aparecimentode variantes mais letais. Há temores tambémquanto a recentes mudanças genéticas em vírusda gripe suína que poderiam desenvolver umavariante letal aos seres humanos.22

A inovação tecnológica também está ligadaàs muitas mudanças ambientais que estãoajudando o surgimento de novas doenças e oressurgimento e disseminação de antigasmoléstias. Mudanças na qualidade da água, porexemplo, são freqüentemente o resultado daurbanização intensa e industrialização da

A cada ano, mais de 2,3 milhões de

pessoas, principalmente nos países

pobres, morrem de oito doenças que

poderiam facilmente ser evitadas por

vacinação.

O uso generalizado e quase sempre

indiscriminado de antibióticos e outros

agentes antibacterianos está criando

famílias de micróbios resistentes a drogas.

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agricultura. Doenças veiculadas pela água sãoresponsáveis por cerca de 90% das conta-minações nos países em desenvolvimento,onde quase 95% do esgoto urbano édespejado, sem tratamento, em rios e lagos.Na Índia, 114 cidades despejam esgoto semtratamento e corpos parcialmente cremadosno Ganges. E o escoamento agrícola,incluindo dejetos animais e resíduos químicosameaçam ecossistemas aquáticos em paísestanto industrializados quando em desen-volvimento.23

Mudanças atmosféricas, devidas principal-mente à atividade industrial, também estãoaumentando a exposição das pessoas adoenças. O acúmulo de gases de estufa estáaumentando o potencial de maior incidênciade doenças, pois a mudança climática deveráaumentar o alcance geográfico das doençasque vicejam em climas quentes. Doenças gravescomo cólera, malária e febre amarela – hojepraticamente restrita aos trópicos – poderãose disseminar para áreas atualmentetemperadas, à medida que o aquecimentoocorre. E o vírus do Nilo, transmitido pelomosquito sensível à temperatura Culex pipiens,chegou a Nova York no verão de 1999 e, desdeentão, tem atacado animais e pessoas por todaa América do Norte. Poderá bem ser opressagiador do que está por vir.24

Finalmente, a tecnologia também estádesempenhando um papel não-intencional natransformação do mundo microbiano.Paradoxalmente, os antibióticos e outrosmedicamentos destinados a controlarpatogenias freqüentemente têm efeitosdanosos. Cerca de 23 milhões de quilos deantibióticos são produzidos anualmente nosEstados Unidos. Mais de um terço deste totalé administrado a animais agrícolas. O usogeneralizado e quase sempre indiscriminado

de antibióticos e outros agentes antibacterianosestá criando famílias de micróbios resistentesa drogas. Isto é acelerado por pacientes quenão completam os tratamentos prescritos, epelo uso em larga escala de agentes antibac-terianos em sabonetes, loções e detergentes.25

A resistência antimicrobiana é um problemagrave e crescente. Cerca de 14.000 pessoasmorrem anualmente nos Estados Unidos pelaação de micróbios resistentes a drogas, atravésde infecções hospitalares. Metade das pessoascontaminadas com HIV hospeda umalinhagem que é hoje resistente a pelo menosum dos medicamentos utilizados paracombater esta doença. A pneumonia continuasendo uma ameaça grave, matando de 3 a 4milhões de pessoas por ano. Em algumasregiões do mundo, até 70% das infecçõespeitorais são resistentes aos antimicrobianosdisponíveis. A bactéria que causa o cóleratambém está se tornando resistente aosprincipais antibióticos utilizados para seucombate. Em Ruanda, por exemplo, existeuma resistência de quase 100% à tetraciclina eao cloranfenicol, dois dos principais anti-bióticos usados no combate ao cólera.26

A tuberculose também está se tornandoresistente a muitos medicamentos. Um simplesperíodo de tratamento de seis meses para atuberculose não resistente a drogas pode custarapenas US$ 20. Porém, o tratamento comantibióticos de segunda e terceira linha podecustar entre US$7.000 e US$8.500. Em algunscasos mais graves, o tratamento da tuberculoseresistente a múltiplos medicamentos podecustar US$250.000 e levar até dois anos.27

O Estado Atualda “Microssegurança”

Considerando esses e muitos outros fatoresque estão alterando significativamente as

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relações entre pessoas e patogenias, fica claropor que a campanha contra doenças infecciosasestá longe de terminar. Na realidade, 20doenças outrora muito conhecidas ressur-giram ou se disseminaram geograficamente, epelo menos 30 delas ainda não conhecidascomo infecciosas foram identificadas ao longodas três últimas décadas. Entretanto, avaliarprecisamente o estado atual da biossegurançaem várias regiões do mundo é uma tarefacomplicada. A coleta e agregação de dadosde forma oportuna é difícil, uma vez quemuitas das doenças infecciosas mais graves sãoendêmicas nos países pobres, onde médicossão escassos e o registro de dados é esporádico.Apenas cerca de um terço de todas as mortesque ocorrem no mundo a cada ano éefetivamente captada por sistemas nacionaisde registros vitais; o resto é estimado.28

Tendo em mente essas ressalvas sobredados, cerca de 57 milhões de pessoasmorreram de causas variadas, mundialmente,em 2002; 5,2 milhões dessas mortes foramcausadas por diferentes tipos de acidentes elesões, assim, teoricamente, a maioria poderiater sido evitada. O maior número de mortesmundiais, 33,5 milhões, foi devido a doençasnão-contagiosas e crônicas. Destas, 16,7milhões de pessoas morreram de doençascardiovasculares, 7,3 milhões de várias formasde câncer, 3,7 milhões de doenças respiratórias

não-infecciosas e 2 milhões de doençasdigestivas. Embora haja avanços constantes notratamento dessas doenças não-contagiosas,muitas dessas vítimas eram idosas, enquantooutras morreram devido, pelo menos emparte, a escolhas em seus estilos de vida.29

As 18,3 milhões de mortes restantes foramcausadas por condições maternas e perinatais,deficiências nutricionais e doenças contagiosas.A maioria era evitável, tornando-se assimquestões apropriadas de segurança. Doençascontagiosas foram responsáveis por 14,9milhões de mortes nesta categoria (vide Tabela3-1). Infecções respiratórias – principalmenteinfluenza e pneumonia – foram os grandesalgozes. Causaram 4 milhões de mortes,praticamente o mesmo número de dois anosantes. O HIV/AIDS vem em segundo lugar,com 2,8 milhões de mortes. (Embora seja umligeiro declínio do número de 2000, aquantidade de pessoas contaminadas com HIVcresceu rapidamente, e os últimos relatóriosindicam que as fatalidades aumentaram em2003.) Mortes por diarréia e tuberculosecaíram ligeiramente, enquanto a malária ceifou200.000 vidas mais do que em 2000. Alémdesses grandes assassinos, o sarampo foiresponsável por 611.000 mortes, princi-palmente entre crianças.30

A expectativa de vida no nascimento é umbom indicador sumário do estado atual da

TTTTTabela 3–1. Mortes Causadas por Doenças Contagiosas, 2000 e 2002abela 3–1. Mortes Causadas por Doenças Contagiosas, 2000 e 2002abela 3–1. Mortes Causadas por Doenças Contagiosas, 2000 e 2002abela 3–1. Mortes Causadas por Doenças Contagiosas, 2000 e 2002abela 3–1. Mortes Causadas por Doenças Contagiosas, 2000 e 2002

Doença

Infeções respiratóriasHIV/AIDSDiarréiaTuberculoseMalária

2000

(em milhões)3,92,92,11,71,1

2002

(em milhões)4,02,81,81,61,3

Parcela de todas asMortes em 2002

(percentual)6,94,93,22,72,2

FONTE: Vide nota final 30

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saúde de um país. O Japão hoje possui o maioríndice de expectativa de vida. Uma criançanascida lá, hoje, viverá teoricamente 81,9 anos.Um indicador de saúde mais matizado,entretanto, é a expectativa de vida saudável,chamada HALE, na sigla em inglês. Esta é umamedida do número de anos saudáveis que umrecém-nascido pode hoje esperar viver, combase nas taxas atuais de má saúde emortalidade. No Japão, a HALE hoje é 75,ou seja, a criança média japonesa nascida hojepode esperar ter 75 anos de saúde e 6,9 anosde incapacitação, devido a doenças infecciosasou crônicas. Em Serra Leoa, num contrastegritante, uma criança nascida hoje tem umaexpectativa de vida sadia de apenas 28,6 anos.31

Há uma diferença enorme nas expectativasde vida saudável nos países ricos e pobres(vide Tabela 3-2). As populações do Japão,

Suécia e Suíça podem contar com, no mínimo,73 anos de vida saudável. Os Estados Unidos,apesar de ter, de longe, o maior gasto médicoper capita do mundo, estão classificados apenasem 28o lugar, com uma expectativa de vidasaudável de 69,3 anos. No extremo inferiorda distribuição estão sete países da Áfricasubsaariana, com HALEs de menos de 35anos, resultante de uma conjugação de pobrezae da devastação do HIV/AIDS.32

Olhando para o futuro próximo, a questãomais urgente continuará sendo o HIV/AIDS.Presume-se que o HIV saltou dos chimpanzéspara os seres humanos, tendo sido origi-nalmente identificado no início dos anos 80.O vírus é particularmente perigoso devido aseu longo período de incubação, ataque diretoao sistema imunológico e mutação freqüente,como também por não haver, ainda, vacinanem cura para ele. O longo período deincubação significa que podem passar anosantes que as vítimas exibam sintomas. Assim,elas podem involuntariamente contaminaroutras pessoas ao longo de um extensoperíodo de tempo.

A ameaça mais preocupante de curto

prazo de doenças tradicionais é a da

influenza.

TTTTTabela 3–2. Expectativa de Vida Saudável em Pabela 3–2. Expectativa de Vida Saudável em Pabela 3–2. Expectativa de Vida Saudável em Pabela 3–2. Expectativa de Vida Saudável em Pabela 3–2. Expectativa de Vida Saudável em Países Selecionados, 2002aíses Selecionados, 2002aíses Selecionados, 2002aíses Selecionados, 2002aíses Selecionados, 2002

Maior Expectativa de Vida Menor Expectativa de Vida

País

JapãoSuéciaSuíçaItáliaAustráliaEspanhaCanadáFrançaNoruegaAlemanha

Anos de Vida Saudável

75,073,373,272,772,672,672,072.072,071,8

País

Serra LeoaLesotoAngolaZimbábueSuazilândiaMalawiZâmbiaBurundiLibériaAfeganistão

Anos de Vida Saudável

28,631,433,433,634,234,934,935,135,335,5

FONTE: Vide nota final 32.

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As últimas estimativas indicam que entre 34milhões e 46 milhões de pessoas vivem hojecom HIV/AIDS, em todo o mundo. Em 2003,havia de 4,2 a 5,8 milhões de novascontaminações, e de 2,5 a 3,5 milhões de pessoas– principalmente na África subsaariana –morreram da doença. Até hoje, já houve maisde 20 milhões de fatalidades do HIV/AIDS.Desde que o vírus foi originalmenteidentificado, 4 milhões de crianças contraíramHIV de suas mães durante a gravidez, parto ouamamentação. A doença é tão predominantena África subsaariana, porque a maior parte dasvítimas tem pouco acesso a tratamento médico,vive em penúria e possui pouco conhecimentode como a doença é transmitida.33

O número de vítimas de HIV/AIDSdeverá aumentar significativamente, à medidaque a doença se alastra para outros países. Índia,China, Nigéria, Etiópia e Rússia provavelmenteverão um crescimento acelerado do HIV/AIDS nos próximos anos. O número depessoas infectadas nesses cinco países estáprojetado a aumentar dos 14 a 23 milhões dehoje, para de 50 a 75 milhões até 2010. A Índiadeverá ter de 20 a 25 milhões de casos e umataxa de predominância entre os adultos de 3 a4%. A China deverá ter de 10 a 15 milhões devítimas, com uma taxa de predominânciaadulta abaixo de 2%.34

A ameaça mais preocupante de curto prazode doenças tradicionais é a da influenza. Umadoença comum, a influenza (gripe) éconsiderada mais como uma inconveniênciado que uma ameaça grave. Surtos anuaisocorrem, à medida que o vírus sofre mudançascontínuas que o ajudam a se safar de algumasdas imunidades de exposições ou vacinasanteriores. Periodicamente, todavia, o vírusassume formas novas e mais mortais quepodem se disseminar rapidamente de pessoa

a pessoa. Como observado anteriormente, aspandemias de gripe em 1957 e 1968 mataram,em conjunto, mais de 4 milhões de pessoas.Viagens internacionais mais rápidas efreqüentes, e também o agrupamento urbano,indicam que uma pandemia futura poderáse alastrar muito mais rapidamente e sermuito mais mortal. A Organização Mundialde Saúde (OMS) estima que, mesmo sob ascondições atuais, um surto desta ordempoderá matar 650.000 e hospitalizar 2,3milhões de pessoas apenas nos paísesindustrializados.35

Muitos dos fatores responsáveis pelas novase reemergentes doenças entre as pessoas estãocausando impactos adversos semelhantes nosanimais. Isto é preocupante, não só pelosefeitos no reino animal, mas também porqueas doenças freqüentemente saltam dos animaispara as pessoas. Assim, o vírus Nilo étransmitido das aves para as pessoas atravésdos mosquitos, a doença de Lyme dos ratospara as pessoas através de carrapatos de alcese o Hantavírus diretamente para as pessoasde ratos do campo (ver também Capítulo 4.)Presume-se que o vírus da SRAG foitransmitido para as pessoas da civeta, ou gato-de-algália (Paguma larvata) – um animal arbóreode corpo semelhante ao gato. Ao mesmotempo, doenças humanas são freqüentementetransmitidas para animais. Há evidência de quedoenças humanas infectaram primatas quandoas pessoas tiveram maior contato com elesem habitat florestal. Alguns gorilas montesesameaçados de extinção em Ruanda morreramde moléstias humanas como sarampo,freqüentemente transmitidas por turistas ecientistas. Estudos também documentamanticorpos para doenças humanas comoinfluenza, sarampo e tuberculose em macacose orangotangos selvagens.36

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Conseqüências Econômicasdas Doenças Infecciosas

É óbvio que as grandes epidemias epandemias da história causaram impactostremendos no desempenho econômico. Apeste bubônica no século XIV na Europa, porexemplo, devastou tamanha parcela dapopulação que criou as condições para asinovações de economia de mão-de-obra quedeterminaram a Revolução Industrial. Surtoscontemporâneos de doenças também tiveramconseqüências econômicas significativas, razãopela qual os governos freqüentemente tentamabafá-los. Um surto do que se julgou ser apeste pneumônica na Índia, em 1994, resultounuma perda de US$ 1,7 bilhão em exportaçõese turismo, e um surto de cólera na Tanzânia,em 1998, significou um prejuízo econômicode US$ 36 milhões, ambos choquesexpressivos em economias em desen-volvimento. Mas estes empalidecem, frente aodano econômico causado à Ásia pelo surtorecente da SRAG, e na África, pela continuadapandemia de HIV/AIDS.37

O surto da SRAG, de 2003, causou umimpacto devastador no leste da Ásia, umaregião densamente habitada e econo-micamente dinâmica. Levou apenas poucassemanas para que a primeira morte relacionadaà SRAG levasse as economias da China,Taiwan e Cingapura a entrar em parafuso.Comércio e turismo são essenciais para osucesso destas economias e a SRAG foi umgrande fator restritivo para viagens eexportações. O tráfego aéreo ficou prati-camente paralisado na região, com as principaiscompanhias aéreas retendo até 40% de seusvôos. O aeroporto de Cingapura, ondegeralmente circulam 29 milhões de passageirosanualmente, viu seus números caírem

vertiginosamente. No sul da China e HongKong, alguns hotéis operaram com uma taxade ocupação de apenas 10%. Naquele ano, aFeira de Comércio de Cantão, que faturanormalmente US$ 17 bilhões em negócios,foi um desastre econômico. Poucoscompradores potenciais se dispuseram acomparecer.38

Na China, a indústria turística perdeu cercade US$ 7,6 bilhões e 2,8 milhões de empregos.A perda geral da economia de viagens daChina, em 2003, situou-se em torno de US$20,4 bilhões. A indústria turística de Cingapurasofreu um choque de aproximadamente US$1,1 bilhão e 17.500 empregos. Na realidade,os economistas eliminaram cerca de 1,5 pontopercentual das estimativas de crescimento daseconomias de Hong Kong, Cingapura eMalásia, em 2003. É extremamente difícilcalcular os custos econômicos mundiais diretose indiretos do surto da SRAG, porém,superaram, sem dúvida, a marca dos US$ 100bilhões.39

A pandemia de HIV/AIDS impôs custosgigantescos, diretos e indiretos, desde queiniciou seu lento alastramento mundial, há umquarto de século. É difícil chegar a um númeroexato uma vez que o impacto maiscontundente da pandemia foi sentido emalguns dos países menos desenvolvidos domundo, onde grande parte da atividadeeconômica ocorre no setor informal. Nospaíses economicamente desenvolvidos, ondea predominância do HIV entre adultos é

As fileiras de pessoas mais produtivas

em alguns dos países mais pobres do

mundo estão sendo sistematicamente

esvaziadas pelo HIV/AIDS.

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geralmente muito inferior a 1%, o principalimpacto econômico da doença tem sido noaumento das despesas de saúde. O custoeconômico indireto em perda deprodutividade foi insignificante. Mas, emmuitos dos países menos desenvolvidoseconomicamente que estão mais afetados peladoença, a predominância do HIV entre adultosem idade produtiva situa-se acima de 20%(vide Tabela 3-3). Gastos de saúde per capitanesses países são geralmente muito baixos, e éo custo econômico indireto causado peloimpacto da doença sobre a força de trabalhoque tem sido mais devastador.40

A África subsaariana é a região mais atingidapelo HIV/AIDS. Em 2003, cerca de 26,6milhões de pessoas na região eramsoropositivas, e cerca de 2,3 milhões morre-ram da doença. Em geral, o crescimento do

Produto Interno Bruto (PIB) das 33 naçõesafricanas que revelam um impacto econômicomensurável do HIV/AIDS caiu em média1,1% ao ano, entre 1992 e 2002; até 2020, istosignificará uma perda coletiva de crescimentoeconômico da ordem de 18% - ou aproxi-madamente US$ 144 bilhões. Em torno de 9a 18% dos adultos em idade produtivamorrem prematuramente a cada cinco anosnos países subsaarianos mais afetados. Destaforma, as fileiras de pessoas mais produtivasem alguns dos países mais pobres do mundoestão sendo sistematicamente esvaziadas peloHIV/AIDS. A doença está retardando odesenvolvimento industrial, reduzindo aprodução agrícola, devastando a educação,debilitando as forças armadas (vide Quadro3-1.), podendo vir a solapar a estabilidadepolítica.41

TTTTTabela 3–3. Pabela 3–3. Pabela 3–3. Pabela 3–3. Pabela 3–3. Países mais afetados pelo HIV/AIDSaíses mais afetados pelo HIV/AIDSaíses mais afetados pelo HIV/AIDSaíses mais afetados pelo HIV/AIDSaíses mais afetados pelo HIV/AIDS

País

BotsuanaZimbábueSuazilândiaLesotoNamíbiaZâmbiaÁfrica do SulQuêniaMalawiMoçambique

Predominância do HIVAdultos entre 15-49 anos em

2001

(percentual)

39343331232220151513

Taxa de Mortalidade,Adultosentre 15-64 anos

(percentual das fatalidadesem 2000-05)

141816151115109

1110

PopulaçãoSoropositiva

(em milhares)

3302.300170360230

1.2005.0002.500850

1.100

FONTE: Vide nota final 40

Com mais de 5 milhões de pessoassoropositivas, a África do Sul possui hoje omaior número de vítimas do mundo. Mais de500.000 pessoas já morreram e o número desoropositivos deverá atingir 6 milhões até 2010.

A maior parte dessas mortes ocorrerá entre apopulação adulta jovem. Entre 1992 e 2002,a África do Sul perdeu cerca de US$ 7 bilhõesanuais, devido ao declínio de sua força detrabalho. Os esforços para criar um sistema

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educacional numa era pós-apartheid estãosendo dificultados pela perda de pessoalcausada pela doença, e prevê-se uma graveescassez de professores secundários euniversitários ao longo da próxima década.O capital humano está sendo exauridosignificativamente por doenças, e osinvestidores estrangeiros hesitam em investirmais no país. Como conseqüência doesvaziamento da força de trabalho e quedanos investimentos, o PIB da África do Sul parao período 2006-10 está projetado para 3,1%abaixo do que seria sem o HIV/AIDS.42

Lidando com FuturosSurtos de Doenças

Há uma corrida em curso entre, de um lado,o ritmo acelerado da globalização, mudançasassociadas na condição humana e novosdesafios afins do mundo microbiano e, dooutro lado, a crescente capacitação de cientistas,médicos e autoridades de saúde para localizar,diagnosticar e conter os surtos. O enfren-tamento aos desafios de doenças novas evelhas num mundo mais densamente habitadoexige que a comunidade internacional adotevárias medidas importantes: aumentarrapidamente a fiscalização para detectar novossurtos; antecipar planos e ação para se preparare evitar possíveis pandemias futuras; iniciar umacampanha de erradicação de doenças gravesentre os pobres do mundo; encorajar maiortransparência nos países onde surtos dedoenças podem ocorrer; e desviar gastos desegurança de fins militares para a criação desistemas eficazes de saúde pública.43

A experiência recente com a rápidadisseminação da SRAG, a ameaça de umanova pandemia de influenza, a disseminaçãocontinuada do HIV/AIDS e o espectro do

bioterrorismo (vide Quadro 3-2) têmfomentado uma nova conscientização quantoà necessidade de maior fiscalização em escalaglobal. Foram criadas duas redes na internetpara pesquisar e monitorar surtos de doenças.O ProMED-mail (Programa de Monitoraçãode Doenças Infecciosas) foi implantado em1994. Este sistema de alerta na internet édestinado a reunir e disseminar rapidamentetodas as informações sobre surtos de doençasmundialmente. Possui hoje links com mais de30.000 assinantes em 150 países. A qualquerhora, correspondentes de todo o mundoregistram informações sobre surtos queafetem pessoas, plantas ou animais. A OMStambém participa, utilizando a internet parafazer as ligações entre especialistas em doençase laboratórios, quando necessário.44

Devido à rapidez com que as doençaspodem surgir e se alastrar por todo o mundo,as autoridades de saúde hoje precisam agir deforma previdente. Um novo vírus de influenzapode facilmente se disseminar mundialmente,bem antes de uma vacina eficaz ser preparada.Assim, a OMS implantou uma rede demonitoração de alcance global encarregada deinvestigar mutações virais que possam não sócausar uma nova pandemia de influenza, comotambém ajudar a determinar a composiçãoda vacina a cada ano. Nos Estados Unidos,todo mês de fevereiro, a FDA (órgão quecontrola os alimentos e medicamentos nosEstados Unidos) utiliza um painel de técnicospara selecionar linhagens virais comocandidatas a vacinas que serão distribuídas nosegundo semestre. Em fevereiro de 2003, aOMS identificou uma nova linhagem da gripe(A/Fujian) que os assessores da FDAdesejavam incluir em sua vacina anual. Porém,um meio de cultura aprovado, necessário paraa produção da vacina, não pôde ser

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QUADRO 3-1. HIV/AIDS ENTRE OS MILITARES

As doenças contagiosas têm causado um impactodesproporcionalmente alto em soldados ecombatentes através da história. Nos temposantigos, o tifo e cólera eram os algozes. Hoje oproblema é a AIDS.

A incidência de HIV/AIDS é consideravelmentemaior em muitas forças armadas hoje do que entre apopulação civil. O problema é mais pronunciadoentre soldados nos países em desenvolvimento. EmZimbábue e Malawi, por exemplo, algumasestimativas revelam taxas de infecção de 70 e 75%,respectivamente. Na realidade, em Zimbábue, cercade três quartos de todos os soldados que dão baixamorrerão de AIDS dentro de um ano.

As razões para essas taxasdesproporcionalmente altas são várias. O etosinstitucional nas forças armadas tende a encorajar atomada de risco, o que pode se estender para asrelações sexuais do soldado, influenciando decisõescruciais, como usar ou não preservativo. E comouma pessoa infectada com HIV pode nãodemonstrar sintomas durante anos, soldadossoropositivos continuam na ativa sem saber queestão doentes. Isto permite a disseminação muitomaior do HIV/AIDS. Também faz com que governose autoridades militares ignorem a gravidade dasituação.

O próprio conflito militar pode freqüentementeajudar a disseminar o HIV, principalmente devido àalta incidência da doença entre combatentes e àviolência sexual durante as guerras. Em alguns paísesem conflito, como a República Democrática doCongo e Angola, de 40 a 60% dos combatentes sãosoropositivos. O HIV/AIDS é a causa principal deincapacitação e morte entre várias forças policiais emilitares africanas.

O perigo de alastramento do HIV/AIDS entre asforças de manutenção de paz – que vem sendoignorado há muito tempo – está hoje também sendo

gradativamente reconhecido. O fato de muitospaíses receberem gordos pagamentos pelacontribuição de efetivos à força de paz pode estaragindo como desincentivo para a coleta de dadosque poderiam prejudicar a participação de suastropas. Outro aspecto da alta incidência de HIV/AIDS entre as forças armadas diz respeito àdesmobilização após o fim de conflitos: ao “reinserir”ex-combatentes infectados em comunidades menosafetadas, os programas que ignoram o HIV/AIDSpodem agravar ainda mais a situação. Na ausência deeducação de prevenção ao HIV/AIDS e preservativosacessíveis, a desmobilização e reintegração decombatentes pode criar uma crise de saúde públicapor regiões inteiras, como ocorreu na Áfricasubsaariana.

Uma alta taxa de predominância do HIV/AIDSentre os militares tem inúmeras implicações para asegurança nacional de um país. A doença diminui aeficiência operacional das forças armadas de uma paísde várias formas. Com um grande número depessoas doentes ou morrendo, a desmoralizaçãoentre as tropas é um problema; disciplina e eficiênciaficam ameaçadas. Presteza e prontidão paracombate também podem deteriorar, pois substitutosprecisam ser recrutados e treinados, envolvendogastos humanos e financeiros. O tratamento médicodas tropas doentes é outro item de custo. O HIV/AIDS tem o efeito de exaurir as fileiras especializadas:a capacidade militar global é debilitada devido àperda da capacidade de liderança e padrõesprofissionais, que não são facilmente substituídos. Emalguns países com taxas de predominânciaextremamente altas, alguns comandantes temem nãoter condições de preencher seus contingentes nosanos futuros.

- Peter CrollCentro Internacional de Conversão de Bonn

___________________________________________________________________________________________fonte: Vide nota final 41

disponibilizado a tempo: conseqüentemente,faltou à vacina um antígeno A/Fujian, tendouma eficácia bem menor do que poderia ter.E, em outubro de 2004, as instalações deprodução de um dos dois únicos fornecedoresda vacina dos Estados Unidos foraminterditadas pelas autoridades britânicas devidoa problemas de contaminação de bactérias.Isto deixou os Estados Unidos com apenasmetade das vacinas de que necessitava.45

Técnicas também estão sendo desen-volvidas para o uso de satélites na identificaçãode locais de alto risco de doenças mortais,antes que os surtos ocorram. Os satélitespodem monitorar condições ambientais comotemperatura, precipitação e vegetação ligadasa aumentos populacionais entre animaisportadores de doenças. Por exemplo, osmosquitos transmissores da malária requerempoças de água estagnada para depositar seus

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ovos, e umidade entre 55 e 75%, para quepossam sobreviver. O parasita levado pelomosquito, a causa efetiva da doença, requertemperaturas superiores a 18ºC. Informaçõespertinentes são reunidas por satélites ealimentadas a computadores que calculam osriscos de surtos para várias áreas geográficas.A Índia já está considerando a implantaçãode um sistema de pré-alarme de malária viasatélite para todo o país.46

As campanhas de erradicação completa dealgumas doenças infecciosas são outraabordagem para incrementar a biossegurança.

A campanha contra a varíola é um dossucessos mais visíveis. Em 1967, a OrganizaçãoMundial de Saúde lançou um programamundial de erradicação da doença. Naquelaocasião ocorriam de 10 a 15 milhões de casosde varíola, anualmente, resultando em cercade 2 milhões de mortes anuais. A campanhaconseguiu eliminar a doença dentro de 10anos; o último caso de varíola ocorreu naSomália, em 1977. Mais de US$ 300 milhõesforam gastos para atingir este objetivo, e maisde 200.000 trabalhadores locais foramenvolvidos nos países mais afetados.47

A erradicação da varíola se desenvolveu tãotranqüilamente por vários motivos. A varíolaé uma doença grave, facilmente identificável.Os cientistas conseguiram criar uma vacinabarata que proporcionava imunidade a longoprazo. Campanhas de vacinação em largaescala foram acompanhadas por uma rígidamonitoração e informação de casos.Finalmente, um esclarecimento público sobrea doença foi desenvolvido para ajudar adescobrir casos ocultos. Ironicamente, uma dasconseqüências menos fortuitas da erradicaçãoda varíola foi o fato de os países pararem suascampanhas de vacinação. Nos EstadosUnidos, as vacinações terminaram em 1972,e não se sabe até que ponto os americanosmais idosos, hoje, têm imunidade residual àdoença. Uma vez que tanto Estados Unidosquanto Rússia retêm amostras congeladas dovírus, teme-se que terroristas possam seapossar de parte delas e introduzi-las nessaspopulações extremamente vulneráveis.48

Uma campanha semelhante para erra-dicação da poliomielite, lançada em 1988,ainda está em curso. Mais de US$ 3 bilhões jáforam gastos. O Esforço Global daErradicação da Poliomielite está sendoatualmente liderado pela OMS, pelos Centros

Armas biológicas ligam questões militares tradicionaisà biossegurança. Não requerem necessariamente umgrande nível de especialização e recursos para seremproduzidas. Na realidade, armas biológicas toscasforam utilizadas quando Kaffa foi sitiada em 1346, eas vítimas Tatar da peste foram arremessadas decatapulta sobre as muralhas, para dentro da cidade.

No mundo contemporâneo, o conhecimento eequipamento necessários para fabricação de armasbiológicas mais sofisticadas estão amplamentedisponíveis. Porém, as grandes potências, emboratenham programas para tais armas, hesitam emutilizá-las em guerras. Isto se deve, em parte, aproibições morais quanto ao seu uso, mas tambémao fato de não serem particularmente eficazes nocampo de batalha e de armas melhores estaremdisponíveis.

Para os pequenos países e organizaçõesterroristas, todavia, armas biológicas podem ser oequivalente à bomba atômica dos pobres. As cartascontendo antrax que mataram cinco pessoas nosEstados Unidos, em 2001, foram uma pequenademonstração de como os terroristas podem utilizararmas biológicas para criar caos nos paísesindustrializados. Grupos terroristas podem utilizarpatogenias para atacar pessoas, animais ou lavouras.Nos Estados Unidos, a fim de ajudar a se prepararpara esta possibilidade sombria, a Lei que criou o“Projeto Bioescudo” autoriza o Departamento deSegurança Interna a gastar até US$ 5,6 bilhões, aolongo de 10 anos, para armazenar vacinas emedicamentos contra o terrorismo._______________________________________________________fonte: Vide nota final 44

QUADRO 3-2. BIOGUERRA

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de Controle e Prevenção de Doenças dosEstados Unidos, Rotary International eUNICEF. Como conseqüência da campanha,que objetivou eliminar a poliomielite até 2000,as Américas, o Pacífico Ocidental e a Europaforam certificados como livres da doença. Onúmero de países onde a pólio é endêmicacaiu de 125 para apenas 6 – Afeganistão, Egito,Índia, Niger, Nigéria e Paquistão. A doençatem se mostrado difícil de ser erradicadaporque, diferentemente da varíola, apenascerca de um caso em 200 resulta em fraquezaou paralisia de membros que permite odiagnóstico da doença. Assim, é necessário seproceder à vacinação generalizada (80%) paraquebrar o ciclo de transmissão do vírus, umameta difícil de ser alcançada em muitos paísesde baixa renda.49

A política tem desempenhado um papelfeio, frustrando os esforços de eliminação dapoliomielite, particularmente na Nigéria. Oestado nortista de Kano, predominantementeislâmico, suspendeu a vacinação no final de2003, temeroso que a vacina estivessedeliberadamente contaminada pelos “paísesocidentais” para causar infertilidade ou HIV/AIDS. Subseqüentemente, centenas de novoscasos de pólio foram confirmados na Nigéria,muitos na região de Kano, e o vírus alastrou-se rapidamente para 10 outros países africanos.Uma das regiões afetadas foi Darfur, noSudão, onde quase 1,5 milhão de pessoas ficoudesabrigada pela guerra civil prolongada. Amaioria assentou-se em campos derefugiados, onde a falta de água limpa einstalações sanitárias adequadas criaram ascondições ideais para a disseminação da pólio.Dada a natureza transitória da população, temsido difícil manter as crianças num local parareceber o número necessário de doses davacina.50

A crise política na região de Kano foiaparentemente resolvida, quando umadelegação de nigerianos do norte foi àIndonésia, um país islâmico, para testar a vacinae inspecionar as instalações onde é fabricada.A vacina da poliomielite de origemexclusivamente indonésia será utilizada nonorte da Nigéria no futuro.51

Uma campanha para erradicar outrasdoenças importantes também está em curso.Em 2001, o Secretário-geral da ONU, KofiAnnan, solicitou a criação do Fundo Globalde Combate a AIDS, Tuberculose e Malária– três das doenças mais devastadoras domundo. O fundo é uma parceria entregovernos, sociedade civil e setor privado. Seuobjetivo é atrair, gerir e distribuir recursos paracombater a AIDS, tuberculose e malária, masnão para implementar diretamente osprogramas. Até hoje, as contribuiçõestotalizaram cerca de US$ 1,6 bilhão ao ano –muito aquém dos US$ 8 bilhões que oSecretário-geral declarou serem necessários.Embora o Presidente George W. Bush tenhaprometido em seu discurso presidencial de2003 doar US$ 15 bilhões ao longo de cincoanos para o combate a AIDS na África eCaribe, sua alocação em 2004 foi de apenasUS$ 200 milhões.52

O Grupo Global de Prevenção ao HIV –50 especialistas de saúde de 15 países, reunidospela Bill and Melinda Gates Foundation e a HenryJ. Kaiser Family Foundation – está também ativono combate à disseminação do HIV/AIDS.Em 2004, a fundação Gates lançou umprograma de prevenção ao HIV de US$ 200milhões na Índia que, em número de pessoasinfectadas pela doença, só fica atrás da Áfricado Sul. O programa objetiva conter adisseminação do HIV/AIDS na Índia, atravésde um programa agressivo de educação e

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esforços de distribuição de preservativos entreprostitutas e caminhoneiros, nos seis estadosmais afetados.53

Uma das questões mais importantes nacampanha permanente para conter o HIV/AIDS, e outras doenças infecciosas nos paísespobres, é a necessidade de desenvolvermecanismos melhores para distribuição demedicamentos anti-retrovirais e outrosprodutos farmacêuticos às vítimas maispobres. Os defensores das vítimas que nãotêm condições de pagar pelos tratamentosdesenvolvidos e apreçados nos paísesindustrializados discordam das questões delucro e propriedade intelectual levantadas pelasindústrias farmacêuticas. Ao mesmo tempo,o forte setor farmacêutico dos EstadosUnidos tem utilizado seu poder paraobstaculizar os esforços de produção deversões genéricas mais baratas para o combatea doenças nos países pobres. Seus repre-sentantes argumentam que os direitos depropriedade intelectual (e preços altos) devemser protegidos caso novos medicamentossejam desenvolvidos. Outros adotam aposição de que uma crise humanitária existe eque genéricos mais acessíveis devem serdisponibilizados.54

Os avanços em fazer chegar medicamentosanti-retrovirais às vítimas do HIV/AIDS naÁfrica subsaariana têm sido prejudicados poressa disputa de propriedade intelectual. E háo problema associado de treinamento detrabalhadores da saúde suficientes paraadministrarem esses medicamentos e moni-

torarem a condição dos pacientes, umproblema agravado pelo fato de os própriostrabalhadores estarem morrendo de AIDS emnúmeros consideráveis, ou emigrando. Comoresultado, a meta da OMS de fazer com que3 milhões de pessoas soropositivas nos paísespobres tenham acesso a medicamentos anti-retrovirais, até 2005, provavelmente não seráatingida.55

O surto recente do vírus da SRAG ilustratanto os sucessos dos esforços atuais deprevenção de doenças quanto um dos desafiosainda a ser enfrentado – maior transparênciaou abertura. Esta tragédia limitada poderia tersido muito pior, caso os recém-estabelecidosesforços de monitoração não tivessem sidoimplantados. A Rede Global de Alerta eResposta a Surtos, da OMS, que inclui umaequipe em Genebra e 120 organizações desaúde colaboradoras, rastreou rapidamente oavanço do vírus. Os pesquisadores conse-guiram localizar sua provável fonte no sul daChina. Á medida que o vírus se alastrou paraoutros países, as vítimas foram isoladas ecolocadas em quarentena. Como resultado,um quinto das vítimas da SRAG eramtrabalhadores da saúde. O surto pôde sercontido com pouco menos de 800fatalidades.56

Ao mesmo tempo, entretanto, consi-derações políticas e econômicas impediram oavanço inicial na identificação da nova doença,e a falta de abertura foi um problema

O número de países onde a poliomielite

é endêmica caiu de 125 para apenas 6 –

Afeganistão, Egito, Índia, Niger, Nigéria e

Paquistão.

Há uma necessidade premente para

se criar mecanismos inovadores que

proporcionem medicamentos acessíveis

para as vítimas de doenças nos países

pobres.

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constante. Nos primeiros dias do surto, aburocracia chinesa bloqueou o fluxo oportunode informações para os médicos. NaProvíncia de Guangdong, o departamento desaúde inicialmente recebeu informação sobrea doença em documento “altamente confi-dencial” de um comitê de saúde do governocentral. Infelizmente, o documento ficou numacarteira durante três dias, porque ninguém naocasião tinha autoridade para abri-lo.Inicialmente, o Partido Comunista tentouabafar o surto, a fim de proteger o comércio,especialmente turístico. Mas o temor e a irados cidadãos forçou o Presidente Hu Jin-taoa voltar atrás e liberar a comunicação sobre aSRAG. Vários membros responsáveis dopartido foram expulsos e antigos comitês de“vigilância local” voltaram à ativa ecomeçaram a monitorar cuidadosamente asaúde da população. No final, o PresidenteHu provavelmente obteve um ganhoconsiderável de popularidade pelos seusesforços.57

O estágio seguinte da contenção de doençasinfecciosas exige um confrontamento dequestões políticas e econômicas difíceis. Aprincipal delas é a redefinição das prioridadesde financiamento da segurança, que reflita anatureza grave dos desafios das novas eressurgentes doenças numa era de globa-lização. E, como os recentes surtos de doençasvieram acompanhados de uma relutância porparte de autoridades governamentais defornecerem informações oportunas, umamaior transparência é claramente essencial paralidar com a ameaça de vírus de alastramentoacelerado. Há também questões de obrigações

econômicas que devem ser consideradas, emfunção da necessidade de rápido desen-volvimento de vacinas no caso de doenças demovimentação acelerada. Finalmente, há umanecessidade premente para criar não apenasmecanismos inovadores que proporcionemmedicamentos acessíveis às vítimas de doençasnos países pobres, como também incentivospara o desenvolvimento de novas vacinas emedicamentos aplicáveis às doenças graves queainda são endêmicas nessas nações.

Assim, a corrida continua entre a capacidadecrescente de doenças novas e ressurgentes sedisseminarem com maior velocidade e acapacidade de uma rede cada vez maissofisticada de autoridades de saúde elaboratórios em todo o mundo de respon-derem rapidamente a novas ameaças. A boanotícia é que o HIV/AIDS, a SRAG e aameaça do bioterrorismo alertaram oslegisladores quanto às questões graves desegurança humana representadas pelas doençasinfecciosas. O primeiro passo na resposta àameaça crescente das doenças foi o uso dacapacidade tecnológica na criação de redes demonitoração mais eficazes e na aplicação denovas especializações e tecnologias médicas,na tarefa de identificação rápida de doençaspotencialmente fatais. Porém, resta muito aindaa fazer. A infra-estrutura da saúde públicadeverá ser aprimorada substancialmente emquase todos os países, ricos e pobres. O maisimportante, todavia, é que as prioridades egastos da segurança deverão ser drasticamenterevistos para refletirem a gravidade dasameaças que as doenças infecciosas repre-sentam num mundo cada vez mais interligado.

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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

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L I G A Ç Ã O D E S E G U R A N Ç A

BioinvasõesAumentos consideráveis no comércio eturismos mundiais estão desorganizando osecossistemas em todo globo. O valor dasmercadorias e serviços exportadosmundialmente aumentou seis vezes nas trêsúltimas décadas – de US$ 1,5 trilhão, em1970, para US$ 9,1 trilhão, em 2003.Somente entre 1990 e 2003, as chegadasturísticas internacionais aumentaram 50%,alcançando um pico de 702,6 milhões dechegadas em 2002. Do mesmo modo queas pessoas se movimentam pelo mundo,especialmente por navio ou avião, outrasespécies também o fazem. E, comoespécies invasivas – organismosintroduzidos com potencial de diminuir abiodiversidade e prejudicar economias e omeio ambiente – espalhadas por todomundo, é mais provável que elas colonizemecossistemas degradados pelo usoinsustentável de recursos ou simplificadospela agricultura intensificada. 1

Embora em torno de 50.000 espéciestenham entrado nos Estados Unidos nosúltimos 200 anos, somente uma em cadasete é considerada invasora. Na realidade,espécies introduzidas deliberadamente –incluindo milho, trigo, arroz, gado e aves –foram responsáveis por 98% do sistemaalimentar dos Estados Unidos, em 1998.Mas muitos outros tipos de organismos,especialmente invertebrados e micróbios,são introduzidos intencionalmente. Estasnovas espécies vegetais e animais muitasvezes invadem os ecossistemas, seespalhando rapidamente e competindo

pelos recursos locais com as nativas. Elassobrecarregam os pastos, perturbamsistemas hídricos e levam outras espécies àextinção. No México, 167 dos 500 peixesnativos de água doce estão atualmenteameaçados de extinção – e 76 destes casosestão relacionados com a disseminação deinvasoras.2

Espécies invasivas também causamprejuízos econômicos. Na China, perdasdecorrentes de espécies invasivas atingemhoje US$ 14,5 bilhões anuais, ou 1,36% doProduto Interno Bruto do país. NosEstados Unidos, estas perdas ultrapassamUS$ 138 bilhões a cada ano. Espéciesinvasivas também causam impactoseconômicos locais. No Benin, as mulheres,tradicionalmente, se dedicam ao transporte eao comércio, enquanto os homens pescam earam. Após um dos rios do país ter sidoinfestado por uma planta aquática chamadajacinto, eles sofreram uma queda de 70% nasua renda anual, de US$ 1.984 para US$607, em sete anos. E as mulheres queganhavam anualmente US$ 519comercializando ao longo do rio, antes queseus roteiros fossem invadidos pelosjacintos, ganharam somente US$ 137anuais, durante a infestação.3

Devido aos potentes efeitos ecológicos eeconômicos dos agentes biológicos e afacilidade com que terroristas podem obtê-los, a bioinvasão é atualmente consideradacomo uma possível ameaça terrorista.Robert Pratt, escrevendo no US Army WarCollege Quarterly, sugere que os terroristas

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BIOINVASÕES

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podem introduzirespécies invasivasnos EstadosUnidos para“confundir,desorganizar edesmoralizar ogoverno e os cidadãos dos Estados Unidos,ao longo do tempo, tradicionalmente.Embora não seja tão dramática como umaepidemia de catapora, a introduçãodespercebida de espécies exóticas em lagose rios, por exemplo, “pode não serdetectada durante anos, até que as espéciesestejam bem implantadas e impossíveis deserem combatidas.” Isto poderia causarefeitos ambientais e econômicos a longoprazo, com enfraquecimento dos sistemasnaturais e exaustão dos recursos financeirosnos esforços de eliminação das invasoras.4

Todas estas preocupações apontam paraa necessidade urgente de retardar novasbioinvasões e minimizar o prejuízocausado por espécies que já invadiramoutros ecossistemas. No início de 2004, aOrganização Marítima Internacional (OMI)adotou uma convenção para combater adisseminação de espécies aquáticas na águade lastro dos navios – água retida paraestabilizar navios vazios cruzandohidrovias. Esta água é então sempredepositada longe dos portos de destinação.Quantidades de até 4.000 espéciesinvertebradas são transportadas em águade lastro, diariamente. Logo que aconvenção seja ratificada pelos 30 países-

membros daOMI, todos osnavios serãoobrigados apossuirequipamentospara tratamento

de sua água de lastro, até 2016. Seimplementado adequadamente, o tratadopode evitar a disseminação maior deespécies invasivas, como a do mexilhãozebra europeu. Estes animais infestaramcorpos de água doce em quase 40% dosEstados Unidos, desalojando outrasespécies marinhas e a um custo para o paísem torno de US$ 1 bilhão na erradicação,somente nos anos 90. 5

Vários acordos ambientais internacionais,incluindo a Convenção sobre DiversidadeBiológica (CDB) e a Convenção Ramsarde Áreas Úmidas, destacam as ameaçasrepresentadas pelas espécies invasivas àbiodiversidade e propõem ações pararestringir sua introdução e disseminação. ACDB conclama outras organizaçõesintergovernamentais, tais como aOrganização Internacional do Comércio(OIT) e a Organização para Alimentação eAgricultura, a criarem políticas para lidarcom o problema criado pelas espéciesinvasivas. Particularmente, ha necessidadede maior comunicação entre as secretariasdo tratado para que possam harmonizarsuas políticas referentes a espécies invasivas.Como ponto de partida, a Secretaria daCDB se ofereceu como observadora junto

Mexilhões zebra cobrindo um mexilhão nativo

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BIOINVASÕES

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à Comissão de Medidas Sanitárias eFitossanitárias da OIT. 6

Adicionalmente, governos devemtrabalhar para sincronizar os esforçosdomésticos no combate à disseminaçãodas espécies invasivas. Nos Estados,agentes alfandegários e de fronteiraassumiram agora a responsabilidade defazer vistorias à procura de espéciesinvasivas nos portos de entrada, comoparte de uma decisão de transferir para onovo Departamento de Segurança Interna(DSI) as secções da Guarda Costeira dosEstados Unidos e do Serviço de InspeçãoAgrícola e de Saúde Vegetal da Flora.Recentemente, o DSI também aderiu aoConselho Nacional de Espécies Invasivas,um painel interagência formado em 1999para tratar deste problema nos EstadosUnidos. Este esforço para consolidar asegurança doméstica e controlar espéciesinvasivas pode trazer avanços importantes,porém somente se o DSI receber fundos

suficientes e não for empanado por outraspreocupações com segurança. 7

A União Européia, através de seuInstrumento Financeiro para o MeioAmbiente, alocou € 27 milhões para 102projetos voltados para o controle eerradicação de espécies invasivas nos países-membros. No entanto, muitos outros paísesnão dispõem de fundos suficientes,tecnologias de monitoramento etreinamento para tratar adequadamentedeste novo problema. Para preencher estalacuna, a CDB está convocando paísesdoadores a ajudarem a capacitar ilhas-nações e outros países vulneráveis, naminimização da disseminação e impacto dasespécies invasivas. 8

Sem sistemas de monitoramento eerradicação nacionais cuidadosamenteimplantados, a cada dia, aviões e navioscontinuarão a transportar espécies invasivaspelo planeta, ameaçando a segurançaeconômica e ambiental no seu destino final.

- Zoë Chafe

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CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

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C A P Í T U L O 4

Cultivando a SegurançaAlimentar

Danielle Nierenberg e Brian Halweil

Na Conferência Internacional sobre a AIDS,em Julho de 2004, participantes de todo omundo reuniram-se em Bancoque paradiscutir as perspectivas cada vez mais terríveisde milhões de pessoas que sofrem destadoença. A cobertura da mídia divulgoudezenas de artigos sobre como as mulheressão o segmento de maior crescimento dapopulação aidética, sobre a explosão da AIDSna Ásia e sobre a falta de medicamentosadequados no mundo em desenvolvimento.Uma reportagem onde a maioria falhou,entretanto, foi como a AIDS se tornoucúmplice da insegurança alimentar. Narealidade, a doença está gradativamentedesfazendo a base agrícola de muitos paísesem desenvolvimento.

Na África, 7 milhões de trabalhadoresmorreram entre 1985 e 2000, nos 25 paísesmais afetados. No Quênia, um estudoconstatou que o consumo de alimentos caíra40% nos lares onde havia pessoascontaminadas. As mulheres, que perfazem 80%da mão-de-obra agrícola, representam hoje

cerca de 60% das pessoas que convivem coma AIDS na África subsaariana e muitas foramforçadas a abandonar a lavoura para cuidarde seus maridos e parentes. A região tambémestá perdendo grande parte do seuconhecimento de agricultura, pois os pais estãomorrendo antes de passarem suas noções eexperiências à geração seguinte. Assim,crianças órfãs com o encargo de cuidar dasplantações estão, em alguns casos, substituindocultivos alimentares tradicionais como feijão,de alto teor protéico e nutricional, portubérculos que são muito mais fáceis decultivar, porém menos nutritivo.1

O impacto da AIDS sobre a produçãoagrícola pode ser novo, mas não é, de formaalguma, a única ameaça à segurança alimentar.Onde as pessoas não têm condições financeiraspara adquirirem alimento suficiente, problemaseternos como a falta d’água continuam arepresentar o fator principal da fome.Mundialmente, 434 milhões de pessoas sevêem diante da escassez hídrica e, até 2025,de 2,6 a 3,1 bilhões de pessoas estarão vivendo

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sob condições de estresse ou escassez hídrica.À medida que a água para agricultura se tornamenos disponível, as nações se tornam maisdependentes de importações caras dealimentos. Além disso, mais de 80% das terrascultiváveis em todo o mundo perderamprodutividade, devido à degradação do solo.Embora as colheitas globais tenhamaumentado durante a segunda metade doséculo XX, especialistas calculam que ascolheitas teriam crescido mais 10%, caso nãohouvesse esse problema. Conflitos, também,ameaçam a capacidade de milhões de pessoasobterem o suficiente para comer. Em 2002,no Afeganistão, os lavradores não podiamcultivar suas terras; muitos foram forçados amatar seu gado para sobreviver e, de acordocom a FAO (Organização das Nações Unidaspara Alimento e Agricultura), a violência naGrande Darfur, no Sudão, em 2004, forçou1,2 milhão de pessoas a abandonarem seuslares e plantações.2

As conseqüências de toda essa insegurançaalimentar são bem conhecidas e fáceis deperceber. Nos acostumamos com imagens demulheres sudanesas tão magras que nemconseguem carregar seus filhos, homens etíopestão subnutridos que não mais conseguem andare – talvez o mais trágico de tudo – criançasde barriga inchada, chorando por comida. Narealidade, o número de famélicos nos paísesem desenvolvimento aumentou em 18milhões, na segunda metade dos anos 90,atingindo hoje cerca de 800 milhões.Mundialmente, quase 2 bilhões de pessoaspassam fome e sofrem de deficiêncianutricional crônica. Por trás das fotografiastrágicas dessas pessoas desesperadas,entretanto, estão os problemas menos visíveisque ameaçam a oferta global de alimentos.Tanto em nível local quanto nacional, os

determinantes mais importantes da segurançaalimentar no futuro poderão ser muitodiferentes daqueles do passado.3

Dentre as principais ameaças à segurançaalimentar que surgem no horizonte estão: aperda da diversidade de espécies vegetais eanimais; o surgimento de novas moléstias edoenças veiculadas pelos alimentos; e obioterror alimentar. Fotos perturbadoras deavicultores asiáticos que foram forçados aenterrar ou incinerar milhões de frangos,devido à gripe aviária, podem ser o prenúnciode maiores epidemias no horizonte. Aomesmo tempo, a uniformidade de nossosrebanhos e as condições amontoadas e sujasem que são criados não só facilitam novasdoenças, mas também deixam nossas fazendasescancaradas e vulneráveis à disseminação depatogenias alimentares e ataques biológicosmalignos. (Ver também Capítulo 3.)

Possivelmente, a nova ameaça maisimportante seja a interação entre agricultura emudança climática. O cultivo da terra pode sera atividade humana mais dependente de umclima estável. As ameaças mais graves não serãoa grande estiagem ou onda de calor ocasional,e sim mudanças sutis de temperatura duranteperíodos-chave no ciclo de vida de uma lavoura,pois elas são mais disruptivas para plantas decultivo sob condições climáticas ótimas.Cientistas agrícolas da Ásia constataram que atemperatura em elevação pode reduzir aprodução de grãos nos trópicos em até 30%,ao longo dos próximos 50 anos.4

A uniformidade de nossos rebanhos e as

condições amontoadas e sujas em que

são criados deixam nossas fazendas

escancaradas e vulneráveis à

disseminação de patogenias alimentares

e ataques biológicos malignos.

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Ironicamente, as tecnologias desenvolvidasa partir dos anos 60 para revolucionar aagricultura podem estar, na realidade,aumentando a vulnerabilidade de nossasfazendas. Por exemplo, inicialmente pesticidase inseticidas químicos fizeram com que osprodutores reduzissem seus prejuízos comdoenças e pragas. Mas, começaram a falharquando as pragas desenvolveram resistência eos produtos químicos passaram a deixarresíduos tóxicos em nossa água, solo ealimentos. A criação de milhares de animaisem fábricas-fazendas baixou o preço da carne,permitindo que mais pessoas comessemhambúrgueres, filés e peitos de frango,diariamente. Mas, a sociedade está pagando opreço da carne mais barata, sob a forma deperda de diversidade de animais domésticose de doenças que saltam a barreira das espéciese contaminam pessoas.

Todavia, da mesma forma que as ameaças– tanto novas quanto velhas – à segurançaalimentar são inúmeras, também o são assoluções. Nossa ferramenta mais importantenão é um novo produto químico oufertilizante, ou sementes transgênicas, e sim umanova abordagem à agricultura que dependado conhecimento dos produtores e um usosofisticado do meio ambiente que oscircundam.

A Perda da DiversidadeAgrícola

No final dos anos 90, os agricultoresfranceses começaram a sentir que algo estavafaltando em seus campos – o zumbido deabelhas. De maçãs a haricot verts, centenas delavouras na França dependem das abelhas parapolinização. O mistério do desaparecimentodas abelhas, entretanto, não foi difícil de

solucionar. O culpado era a imidacloprida, umingrediente inseticida de amplo espectro, doproduto Gaúcho. Este produto da Bayer éaplicado diretamente nas sementes de milho egirassol e absorvido por toda a planta. Asabelhas polinizadoras pegam o inseticidajuntamente com o pólen que retiram para fazero mel, carregando-o de volta à colméia, ondeenvenena as outras abelhas. Embora o Gaúchotenha sido proibido na França, em 1999, seusubstituto, o Fipronil – um inseticida fabricadopor outra multinacional do agronegócio, BASF– é igualmente mortal.5

De acordo com a União Nacional deApicultores da França, a imidacloprida matoucentenas de milhares de abelhas, levando àfalência um grande número de apicultoresfranceses. O fipronil também foi proibido naFrança, porém o governo está permitindo ouso de estoques remanescentes, paraexasperação de muitas pessoas. Em fevereirode 2004, centenas de agricultores, lideradospelo ativista José Bove, ocuparam os escritóriosdo órgão nacional de alimentação da França,exigindo a proibição do uso do inseticida, nãosó por aniquilar as abelhas, mas também pordestruir a diversidade agrícola da região eameaçar a segurança econômica.6

O declínio de polinizadores não é um fatoisolado na França. Apesar do seu valoreconômico – são responsáveis pela polinizaçãode lavouras que valem US$ 10 bilhões anuais–, as abelhas estão desaparecendo em todo omundo. Abelhas domésticas perderam umterço de suas colméias, mundialmente, eespécies silvestres também estão em declíniodevido ao uso de pesticidas e inseticidas,expansão imobiliária e espécies invasivas.7

As abelhas não são as únicas espéciesagrícolas importantes “desaparecidas emcombate.” Perdem-se milhares de espécies

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vegetais e animais a cada ano, devido a guerras,pragas e doenças, mudança climática,urbanização, comércio global de materialexótico de criação e a agricultura industrial emlarga escala. Grandes fazendas mecanizadasnão podem lidar com uma variedade deculturas e gigantescos fabricantes de alimentosexigem produtos de uniformidade e tamanhopadronizados. À medida que as fazendas setornam mais e mais tecnologicamentesofisticadas, também se tornam mais e maisecologicamente frágeis.

Desde o início do século passado,perderam-se 75% da diversidade genética daagricultura. Na China, 10.000 variedades detrigo estavam sob cultivo em 1949; já nos anos70, só 1.000 estavam em produção. Apenas20% - um quinto – das variedades existentesno México, em 1930, são conhecidas hoje. Eos agricultores nas Filipinas, que outroracultivaram milhares de variedades de arroz,nos anos 80 possuíam apenas duas variedadescobrindo 98% de toda a área produtora.Variedades da Revolução Verde, introduzidasapenas quatro décadas antes, hoje cobrem maisda metade de todos os arrozais nos países emdesenvolvimento. De acordo com PatrickMulvany, da Intermediate Technology DevelopmentGroup, o mundo dispõe de 7.000 – 10.000espécies vegetais comestíveis; cerca de 100destas são importantes para a segurançaalimentar da maioria dos países, todaviaapenas 4 – milho, arroz, trigo e batata –fornecem 60% da energia dietética mundial.8

Recursos genéticos pecuários são causa depreocupação hoje. (Ver Tabela 4-1.) Emboraações de conservação dos recursos vegetaismundiais tenham se desenvolvendo há maisde um século – os primeiros bancos desementes foram criados em 1894 –, a pecuáriatem sido foco de atenção apenas nas últimas

décadas. De acordo com a FAO, a demandacrescente de carne, ovos, leite e outrosprodutos animais forçou os produtores aabandonarem raças locais e a se concentraremnum número cada vez mais limitado de gadode alta produtividade.9

Durante o último século, 1.000 raças – cercade 15% das raças pecuárias e avícolas –desapareceram e cerca de 300 dessas perdasocorreram nos últimos 15 anos. O problematem sido mais grave nos países industrializados,onde a atividade de fábricas-fazenda é maisintensa. Na Europa, mais da metade de todasas raças de animais domésticos se tornaramextintas desde a virada do último século, e 43%das remanescentes estão sob ameaça deextinção. Porém, à medida que os países emdesenvolvimento ascendem na escala protéica,o estoque genético de raças pecuárias tambémestá se erodindo, pois raças indígenas estãosendo substituídas por raças industriais demaior produtividade. Esta homogeneidadegradativa debilita a capacidade de reação doscriadores contra pragas, doenças e mudançasclimáticas.10

A importância da diversidade agrícola, ousua falta, tornou-se assustadoramente clara nosEstados Unidos, algumas décadas atrás. Em1970, mais de 80% da lavoura de milhopossuía um gene que tornava a plantasusceptível à Helmintosporiose, um fungo queproduz lesões roxas nas folhas ou manchaspretas nas espigas. Este fungo reduziu aprodução em até 50%, causando um prejuízoaos produtores de quase US$ 1 bilhão, apenasem 1970. Surpreendentemente, a cura não veiode um laboratório, mas dos campos do suldo México, onde pequenos produtoresconservam a diversidade genética do milho,cultivando centenas de raças de polinizaçãoaberta – genitores genéticos do milho

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TTTTTabela 4-1. Raças de Animais de Corte sob Ameaça de Extinçãoabela 4-1. Raças de Animais de Corte sob Ameaça de Extinçãoabela 4-1. Raças de Animais de Corte sob Ameaça de Extinçãoabela 4-1. Raças de Animais de Corte sob Ameaça de Extinçãoabela 4-1. Raças de Animais de Corte sob Ameaça de Extinção

Raça

Gado Lulu

Suíno do Sul da China

Galinha Mukhatat

Ovino Criolla Mora

Cherne

Importância

O gado Lulu do Nepal está bemadaptado à vida em ambientes extremose é altamente resistente a doenças.Requer poucos insumos e éextremamente produtivo, produzindo atédois litros de leite por dia.

O suíno do Sul da China é uma raçaforte, adaptada à pouca alimentação ealtamente resistente ao calor e radiaçãosolar direta. É também imune à verme dorim e fascíola hepática, contrariamente àsraças estrangeiras.

Nativa do Iraque, a galinha Mukhatatpode ser criada em ambientes hostis compouca exigência nutricional.

Criolla Mora é uma raça de ovinoscolombianos que datam de 1548.Utilizados pela carne e lã, são resistentesà infestação endoparasitária.

Este peixe do sudoeste do Atlântico épopular pela sua carne branca eescamosa, podendo atingir peso superiora 660 quilos.

Situação

Este gado está ameaçado devido aocruzamento descontrolado, uma vez queas raças indígenas são consideradasinferiores a raças exóticas.

Devido à intensificação das fábricas-fazenda na Malásia, restam apenas cercade 400 destas espécies.

Restam menos de 600 aves.

Cientistas não dispõem de númerosexatos, estimando restarem cerca de100 a 1.000 nos planaltos colombianos.

Por nunca sair de seu habitat imediato, éfácil de ser pescado. De acordo comcientistas, corre “extremo alto risco” deextinção nos próximos 10 anos.

FONTE: Vide nota final 9.

moderno. Os cientistas conseguiram identificaruma variedade resistente ao fungo e cruzá-lacom a variedade americana.11

Durante séculos, agricultores maia e outrosindígenas, onde é hoje o sul do México eAmérica Central, utilizaram raçasgeneticamente ricas e diversificadas paraincrementar suas safras. Em contraste, amaioria dos produtores americanos cultiva umpequeno grupo de híbridos de milho quasegeneticamente idêntico, que requer um coquetelquímico de fertilizantes e inseticidas parasobreviver até a colheita. Infelizmente, essastecnologias da Revolução Verde se tornaramnorma comum, substituindo variedades

nativas e representando uma ameaça àsegurança alimentar, tanto local quantoglobal.12

Da mesma forma que as f lorestas epastagens dependem de uma vasta gama deplantas e animais para serem produtivas,ecossistemas agrícolas também dependeram,durante milênios, de uma imensa, rica ediversificada reserva de sementes e raçasanimais silvestres e domesticadas paraimpulsionar a produtividade agrícola.Agricultores, pastores e pescadores em todoo mundo dependem da agrobiodiversidade– a variedade e variabilidade de animais, plantase microorganismos utilizados direta e

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indiretamente para alimento e agricultura – paraalimentarem a si mesmos e suas comunidades.Através de uma criação seletiva e poupançade sementes, os agricultores conseguiramadaptar culturas e animais a diferentes climase condições de cultivo.13

De acordo com Jose Esquinas-Alcazar,Secretário da Comissão de Recursos Genéticospara Alimento e Agricultura, “recursosgenéticos são a base da segurança alimentar.”Ele compara as milhares de raças diferentesde lavouras e gado aos blocos de LEGO: “Damesma forma que as crianças utilizam umavariedade de blocos coloridos de tamanho ecor diferentes para construir um prédio oucastelo, nós também precisamos de todas aspequenas peças da diversidade genética daagricultura para construir a segurançaalimentar.”14

Mesmo nas nações ricas, os agricultoresdependem de um fluxo contínuo degermoplasma para desenvolver novasvariedades resistentes a pragas e doenças. Asmais recentes tecnologias de cultivo agrícola,inclusive engenharia genética, ainda dependemdos genes e variedades existentes. E camposagrícolas espalhados preservam melhor adiversidade, uma vez que bancos de sementes,livrarias de germoplasma e outros repositóriosmortos de diversidade, são susceptíveis àdeterioração, falhas mecânicas e até mesmosabotagem.15

Porém, a diversidade genética agrícola nãoé importante apenas para a agriculturaindustrial. Na Índia, membros do MovimentoNavdanya estão reagindo à perda debiodiversidade – e à ameaça de propriedadecorporativa de sementes através de patentes–, protegendo variedades locais de trigo, arroze outras culturas, catalogando-as e declarando-as propriedade comum. Navdanya também

implantou bancos de sementes, lojas defornecimento agrícola e instalações dearmazenagem locais, e ajudou a estabelecer“Zonas de Liberdade” – aldeias que secomprometem a rejeitar fertilizantes epesticidas químicos, sementes transgênicas epatentes sobre a vida. A diversidade agrícolareduz a dependência de agroquímicos caros eoutros insumos, proporcionando resiliênciacontra grandes surtos de pragas ou mudançasclimáticas. E, quando os agricultoresproduzem para mercados locais e não paraexportação, sua base de clientes se diversificaconsideravelmente, encorajando-os aplantarem uma maior variedade de culturas.Desta forma, a diversidade agrícola reforça aauto-suficiência.16

Nesta época de “alertas de terror”, asfazendas que renegam a diversidade genéticase despem efetivamente de sua armadura debatalha. Apesar de sua gigantesca capacitaçãotecnológica, imensos armazéns abarrotados deaves ou suínos são mais vulneráveis do que asfazendas menores e mais diversificadas àintrodução maligna de doenças (ver Quadro4-1). De acordo com Chuck Bassett, daAmerican Livestock Breeds Conservancy, “a perdade recursos genéticos faz com que o gadotenha mais dificuldade de sobreviver a umdesastre, seja de causa natural, humana outerrorista. Um vetor bem introduzido poderádestruir 90% de um rebanho confinado – semproblemas. Num rebanho de variação genéticamais ampla, isto é mais difícil.”17

Alerta Alimentar

Da brucelose e aftosa para micotoxinas erequeima da batata, durante séculos osagricultores têm sido afligidos por doençasque atacam seus animais e lavouras. No século

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QUADRO 4-1. PODERÁ O ALIMENTO SE TORNAR UMA ARMA DE DESTRUIÇÃO EM MASSA?

Desde 11 de setembro de 2001, a segurançaalimentar adquiriu um novo significado. A escalaimensa da agricultura, particularmente nos paísesindustrializados, e sua importância econômica atornam um alvo fácil para atos terroristas. Deacordo com Peter Chalk, especialista em“agroterrorismo” da RAND Corporation, fábricas-fazenda são alvos particularmente atraentes porinúmeras razões. “Terroristas”, diz Chalk, “escolhemo caminho de menor resistência. Atacar a agriculturaé muito mais simples do que utilizarem bombas,devido às vulnerabilidades inerentes ao sistema.”

Uma das maiores vulnerabilidades é o setorpecuário dos Estados Unidos. A pecuária, conformeChalk, tornou-se cada vez mais propensa a doençasnos últimos anos, devido às condições industriaisintensivas nas fazendas. E, uma vez que cada fazendacontém dezenas de milhares de animais, osoperadores não têm condições de monitorarregularmente todo o gado, só percebendo umairrupção de doença quando já está disseminada portodo o rebanho.

Outra vulnerabilidade da agricultura industrial é omovimento acelerado de produtos agrícolas das

fazendas às plantas processadoras e, daí, aoconsumidor. Na indústria de laticínios, por exemplo,há uma tendência para contratação de criação denovilhos, o que pode envolver operações com mais de30.000 animais de até 80 fazendas diferentes. Estesanimais viajam de e para fazendas diariamente. “Seuma doença for introduzida sem ser percebida, jáviajou milhares de quilômetros”, declara Chalk.

O Departamento de Agricultura dos EstadosUnidos (USDA, na sigla em inglês) observa que, caso aaftosa fosse introduzida nos Estados Unidos, poderiase alastrar por 25 estados em apenas cinco dias. E,uma vez que alimentos processados podem serdisseminados em centenas de mercados dentro depoucas horas, um único caso de adulteração químicaou biológica poderia se alastrar extensamente.

No mundo em desenvolvimento, a ausência deregulamentos de segurança alimentar ou veterináriostreinados para identificar doenças animais tambémtornam a agricultura vulnerável a ataques. E, à medidaque o comércio global se expande, os terroristaspodem ter maiores oportunidades de utilizar oalimento como uma arma de destruição em massa.___________________________________________________________________________________________fonte: Vide nota final 17

passado, todavia, com a agricultura se tornandomaior e mais intensificada, expandindo-separa outras áreas, a natureza dessas doençastambém mudou. Imensas fábricas-fazendaabarrotadas de animais e inchadas com esterco,monoculturas substituindo sistemas de cultivomúltiplo, reciclagem de animais e lixo pararação animal, concentração da indústria deabate e processamento, uso indevido deantibióticos – todos esses referenciais daagricultura industrial dão às patogenias maioresoportunidades de infeccionarem cada camadada cadeia alimentar e, por fim, afetar a saúdehumana. (Ver Tabela 4-2.)18

Tomemos a gripe aviária, por exemplo. Deacordo com a FAO, a disseminação da gripedo Paquistão para China pode ter sidofacilitada pelo aumento acelerado dasoperações avícolas e suínas e a concentraçãogeográfica maciça de gado na Tailândia, Vietnã

e China. Só no leste e sudeste da Ásia, cercade 6 bilhões de aves são criadas para corte,com a maioria delas criadas nas megacidadesda região, em rápido crescimento. Estaintensidade cada vez maior na produção defrangos e outros animais em centros urbanose áreas rurais, juntamente com sua proxi-midade a residências, começa a ter conse-qüências que podem ameaçar a saúde humana.Desde 1997, a gripe aviária se disseminou deaves para humanos, pelo menos em trêsocasiões. E, em outubro de 2004, o primeirocaso provável de transmissão pessoa-a-pessoafoi constatado na Tailândia.19

O último surto apareceu no final de 2003 e2004, disseminando-se pela Ásia econtaminando milhares de aves. Pelo menos100 milhões foram “despopuladas” – emoutras palavras, sacrificadas – quando a doençasaltou a barreira das espécies e a maioria das

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TTTTTabela 4-2. Doenças animais selecionadas que podem se disseminar paraabela 4-2. Doenças animais selecionadas que podem se disseminar paraabela 4-2. Doenças animais selecionadas que podem se disseminar paraabela 4-2. Doenças animais selecionadas que podem se disseminar paraabela 4-2. Doenças animais selecionadas que podem se disseminar parahumanoshumanoshumanoshumanoshumanos

Doença

Influenza Aviária

Vírus Nipah

Encefalopatia EspongiformeBovina(EEB, ou doença da vaca louca)

Patogenias veiculadas poralimentos

Descrição

A gripe aviária saltou a barreira das espécies pela primeira vezem 1997, matando seis pessoas em Hong Kong. Em 2003 e2004, o virulento vírus H2N51 matou pelo menos 30 pessoas.

Em 1997, Nipah foi descoberto na Malásia, onde sedisseminou de suínos para humanos, provocando um grandesurto de encefalite; 93% das pessoas contaminadas tinhamexposição ocupacional a suínos e 105 morreram.

A EEB é transmitida através de ração para bovinos contendofarelo de carcaças de outros ruminantes. Desde suadescoberta, no Reino Unido, em 1986, mais de 30 outrospaíses divulgaram casos desta doença e da varianteCreutzfeldt-Jakob (vCJD) – a forma humana da doença – quematou mais de 150 pessoas mundialmente.

Doenças veiculadas pelos alimentos são um dos problemas desaúde mais comuns em todo o mundo. Campylobactéria,E.coli patogênica e salmonela são as patogenias maisfreqüentemente associadas à carne contaminada e produtosanimais.

FONTE: Vide nota final 18

pessoas que se contaminou morreu. Umestudo recente na China também demonstrouque, com cada novo surto, o vírus se tornamais e mais mortal. Autoridades internacionaisde saúde temem hoje que esta linhagem mortalda gripe aviária não possa ser eliminada nasaves asiáticas, podendo um dia precipitar umapandemia global da gripe humana. Uma vezque pode se mover rápida e facilmente depessoa a pessoa, os especialistas temem quepoderá ser ainda mais mortal do que a AIDS.(Ver também Capítulo 3.)20

Os efeitos da gripe nas populações aviáriase humanas, igualmente, podem serdevastadores. A FAO, a Organização Mundialde Saúde e a Organização Mundial de SaúdeAnimal informam que o abate de todas asaves nas fazendas próximas a um surto é uma

das únicas formas eficazes de controle dadoença. Embora os especialistas suspeitemque a difusão de fábricas-fazenda por toda aÁsia, condições insalubres, concentração deanimais e a uniformidade genética dos animaisajudaram a facilitar o surgimento edisseminação da gripe aviária, são os pequenosprodutores os mais devastados econo-micamente pela doença. A Tailândia, porexemplo, é o quarto maior exportador de avesdo mundo, e muitos fazendeiros perderão seunegócio. De acordo com EmmanuelleGuerne-Bleich, da FAO, estes fazendeiros quepossuem, caracteristicamente, cerca de 50frangos, os utilizam como uma “apólice deseguro” para momentos de crise – vendendo-os para abate, setor médico ou outrasnecessidades – e estão “entre os mais afetados

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e menos capazes de se recuperarem” do surtoda gripe aviária.21

O vírus Nipah é uma das mais novaszoonoses – doenças que podem saltar deanimais para humanos. É um exemploperfeito, embora complicado, do que podeacontecer quando a grande agricultura écombinada à destruição de ecossistemasfrágeis. O Nipah foi originalmente descobertoem 1997, num pequeno vilarejo da Malásia,local de um dos maiores criatórios de suínosdo país. Moradores vizinhos começaram aadoecer apresentando sintomas de gripe emais de 100 deles morreram. Epide-miologistas finalmente constataram que adoença originava-se em morcegos, quecontaminaram suínos e depois humanos. Mas,como?22

Os cientistas especulam que, em 1997,incêndios florestais no Bornéu e em Sumatra,provocados pelo El Niño, forçaram milharesde morcegos frugíveros a buscarem alimentona Malásia. Muitos deles ficaram em árvoresfrutíferas em torno de grandes criatórios desuínos. Lá comiam as frutas, pingando suasaliva e largando frutas semiconsumidas nasmanjedouras, onde eram comidas pelossuínos. Embora o Nipah não afetasse osmorcegos, em suínos causava uma doençacom fortes acessos de tosse, permitindo adisseminação fácil para humanos. De acordocom Peter Daszak, Diretor Executivo doConsortium for Conservation Medicine da WildlifeTrust, “o dano causado ao habitat do morcegofrugívero e o crescimento maciço doscriatórios suínos, provavelmente levaram aosurgimento do vírus Nipah. Sem essescriatórios intensivos na Malásia, seria muitodifícil que este vírus surgisse.” Em abril de2004, o Nipah atacou novamente, desta vezem Bangladesh, matando cerca de 74% de suas

vítimas humanas. Os cientistas prevêem que, àmedida que a agricultura industrial continua ase expandir para ambientes tropicais, aumentao risco do vírus Nipah e de outras doençasque podem saltar a barreira das espécies.23

Contrariamente ao Nipah e à gripe aviária,a doença da vaca louca (encefalopatiaespongiforme bovina) não teve origemsilvestre e sim, conforme alguns especialistasespeculam, nas indústrias processadoras deração do Reino Unido. Uma das formas queos fazendeiros conseguem que seus animaisganhem peso rapidamente, e a custo baixo, éalimentando-os com os pedaços nãocomestíveis de outros animais. Esta reciclagemde ovinos e outros ruminantes de volta à cadeiaalimentar, em instalações que utilizam baixastemperaturas por economia, provavelmentecausou a formação de certas proteínaschamadas prions. Elas destroem as proteínasnormais nos cérebros do gado, fazendo-ostropeçarem, serem agressivos e, finalmente,morrerem. A doença pode se disseminar parahumanos que comem a carne infectada. Desde1986, quando foi detectada, mais de 150pessoas morreram da doença varianteCreutzfeldt-Jakob, a forma humana da vacalouca.24

Embora a prática de utilizar carne e farelode osso de outros ruminantes na alimentaçãodo gado bovino tenha sido proibida no ReinoUnido, é impossível prever quantas pessoaspodem ter consumido a carne infectada comEEB, ou quantas pessoas poderão vir acontrair a vCJD. Ademais, os cientistas nãosabem o período de incubação e se o risco dedesenvolver vCJD depende da quantidade decarne consumida ou da freqüência doconsumo. Antes de 1996, carne e farelo deosso foram embarcados do Reino Unido paratodo o mundo. Pelo menos 12 nações da

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África importaram o farelo, como tambémos Estados Unidos e a maioria das nações daEuropa, Oriente Médio e Ásia.25

Um estudo recente do Instituto de Saúde ePesquisa Médica da França divulgou que umaepidemia da doença da vaca louca na Françaficou sem ser detectada durante anos, fazendocom que 50.000 animais gravementeinfectados entrassem na cadeia alimentar. NosEstados Unidos, após garantias repetidas doDepartamento de Agricultura de que o riscoda EEB era praticamente inexistente, oprimeiro caso da doença da vaca louca nosEstados Unidos foi descoberto no final de2003.26

Recentemente, uma nova forma da doençafoi descoberta no gado italiano. Diferen-temente da EEB, esta nova linhagem, chamadaencefalopatia espongiforme amiloidóticabovina (EEAB), apareceu em vacas que nãoapresentavam sintoma algum. Pesquisadoresnão sabem se a EEAB pode se disseminarpara humanos, porém suspeitam que pode serresponsável por alguns casos da doençaCreutzfeldt-Jakob que ocorreram aparen-temente de forma espontânea. Até que tenhamcerteza, os cientistas estão solicitando testesmais rigorosos nas vacas para ambos, EEB eEEAB.27

A agricultura industrializada também causaproblemas de saúde que não ganham tantodestaque, incluindo o aumento de doençasveiculadas por alimentos, um dos problemas

de saúde mais comuns, mundialmente. Deacordo com a Organização Mundial de Saúde,os episódios destas doenças podem ser de 300a 350 vezes mais freqüentes do que tem sidodivulgado. Condições amontoadas, insalubrese tratamento inadequado de resíduos nasfábricas-fazenda agravam o movimentoacelerado de doenças animais e infecçõesalimentares. Por exemplo, a patogenia mortalE.coli 0157:H7 dissemina-se de animais parahumanos, quando as pessoas consomemalimentos contaminados por esterco. Otransporte de animais vivos também podeaumentar a incidência de doenças animais ealimentares. Conforme a FAO, 44 milhões debovinos, ovinos e suínos são comercializadosmundialmente a cada ano. Um estudo de2002, no Journal of Food Protection, constatouque o transporte de gado de corte das fazendaspara abatedouros e frigoríficos aumenta apredominância de salmonela nos couros efezes, que posteriormente pode acabar noalimento.28

As fábricas-fazenda dependem de altasdoses de antibióticos. Mas, drogar animaispode ter conseqüências desastrosas.Antibióticos são freqüentemente adminis-trados ao gado subterapeuticamente – ou seja,na ausência de doenças –, como parte dafórmula diária de ração. Os resíduos dos anti-bióticos acabam em nosso alimento e podemtransitar no meio ambiente através dos dejetosdo gado, poluindo tanto a água superficialquanto subterrânea. Este uso constante, oumau uso, de drogas – algumas das quais sãoimportantes classes de antibióticos na medicinahumana – está causando resistências edificultando o combate de doenças, tantoentre humanos quanto entre animais.29

Além das doenças, novas tecnologiastambém podem contaminar rebanhos e

Agricultores, desde a região celeira

americana até a Planície Norte da China,

estão constatando que padrões de

precipitação e temperatura, dos quais

dependeram por gerações, estão mudando

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lavouras, alterando sua composição genéticae enfraquecendo sua capacidade desobrevivência. Vejamos organismosgeneticamente modificados (OGMs).Enquanto seus proponentes alegam que atecnologia alimentará o mundo, os quedefendem a agricultura sustentável temem queos OGMs eliminem populações nativas esilvestres de milho, arroz, trigo, peixes e outrasfontes de alimento. Conforme um relatóriorecente de autoria do biólogo RichardHoward, da Universidade Purdue, peixestransgênicos têm o potencial de substituiralgumas populações de peixes silvestres.Howard e seus colegas introduziram genes decrescimento do salmão no medaka, uma espéciejaponesa de peixe pequeno de água doce quese reproduz rapidamente. Constataram que omacho transgênico cresceu mais do que suascontrapartidas silvestres, afugentando os peixesmenores de seus machos durante a época daprocriação. Conseqüentemente, os peixesmaiores tinham melhor condição dedisseminar seu DNA. Mas, numa viradairônica, os filhotes de peixes transgênicostinham menos probabilidade de sobrevivência.Os pesquisadores chamaram isto de “efeitogenes de Tróia.” Caso peixes transgênicos selibertem e substituam os nativos, poderão vira levar espécies inteiras à extinção.30

Nos Estados Unidos, mais de dois terçosdas lavouras convencionais estãocontaminadas com material geneticamentemodificado, conforme um relatório recenteda Câmara dos Comuns britânica, sobre adisseminação de culturas transgênicas naAmérica do Norte. Citando dados da Unionof Concerned Scientists – a União de CientistasPreocupados – (UCS, na sigla em inglês), orelatório declara que “a contaminação (deOGMs)... é endêmica no sistema.” E mais,

que “permitir, negligentemente, a conta-minação de variedades vegetais tradicionaiscom seqüências transgênicas, é uma apostagigantesca na nossa capacidade de entenderuma tecnologia complicada que manipula avida em seu nível mais fundamental.”31

O problema é que, após as sementes nativasserem contaminadas com OGMs, não hápossibilidade de reversão do processo. Elealtera para sempre a própria natureza dassementes. Em breve, a contaminação poderáincluir traços nunca intencionados paraconsumo alimentar: “culturas farmacêuticas,”por exemplo, são engendradas para produzirvacinas e medicamentos. Ademais, acontaminação da oferta de sementes retiraqualquer rede de segurança que o mundopoderia ter, caso se verifique que osproponentes de OGMs estão errados. Deacordo com o relatório da UCS, “as sementesserão nosso único recurso caso a crençapredominante na segurança da engenhariagenética seja infundada... Nossa capacidade devoltar atrás, caso a engenharia genéticadesapareça, será seriamente prejudicada.”32

Variações Climáticas

Nos altiplanos dos Andes peruanos, a cincohoras de carro de Cuzco e seis horas a cavalo,uma nova doença invadiu os campos de batatada cidade de Chacllabamba. O tempo maisquente e úmido associado à mudança climáticapermitiu que a requeima – o mesmo fungoque provocou a fome na Irlanda – penetrasse4.000 metros montanha acima, pela primeiravez, desde que foi iniciado o plantio detubérculos nesta região, há milhares de anos.Em 2003, os produtores locais assistiram àquase destruição de suas lavouras. Cultivadoresse apressam a desenvolver batatas que

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conservem o paladar, textura e qualidadepreferida pela população local e que resistamà “nova” doença.33

Da mesma forma que os produtores deChacllabamba, agricultores desde a regiãoceleira americana passando pela Planície Norteda China e até os campos do sul da África,estão constatando que os padrões deprecipitação e temperatura dos quaisdependeram por gerações estão mudando.Como a agricultura depende tanto de um climaestável, este setor se empenhará mais que osoutros para lidar com um clima mais errático,tempestades fortes e mudanças na extensãodas estações de cultivo. (Ironicamente, osarqueólogos hoje acreditam que a mudançapara um clima mais quente, úmido e estável,no final da última Era do Gelo, foi vital paraa incursão bem-sucedida da humanidade naprodução de alimentos.)34

A possibilidade de essas mudançasdilapidarem a oferta mundial de alimentos nãopassou despercebida pela comunidade dedefesa. Em fevereiro de 2004, o Pentágonodivulgou um relatório considerando que amudança climática pode trazer o mundo àbeira da anarquia, quando nações desenvolvemuma ameaça nuclear para defender e assegurarrecursos decrescentes de alimentos, água eenergia. Os autores, Doug Randall e PeterSchwartz, da Global Business Network, empresade consultoria futura sediada na Califórnia,analisaram a possibilidade do aquecimentoglobal e degelo polar conturbarem atransferência de calor oceânico e lançar aAmérica do Norte e Europa numa mini Erado Gelo – um cenário freqüentementediscutido, substanciado por evidências noregistro climático. “Com preparaçãoinadequada, o resultado poderá ser uma quedasignificativa da capacidade humana de manter

o meio ambiente da Terra,” observou orelatório. Em outras palavras, a súbitamudança nas condições climáticas 8.200 anosatrás, que causou o colapso generalizado daagricultura, fome, doenças e migrações emmassa, poderá se repetir em breve.35

No mesmo mês que o relatório doPentágono foi divulgado, o Ministro do MeioAmbiente do Canadá, David Anderson –numa declaração rara, senão singular, para umlíder governamental –, considerou a mudançaclimática uma ameaça maior que o terrorismo,sugerindo que as planícies cultivadas com trigono Canadá e na região das Grandes Planíciesdos Estados Unidos acabariam por nãoproduzir alimento suficiente para sustentar suaspopulações, caso nada fosse feito paracombater a mudança climática. Em suma,segundo Doug Randall: “Não fomosatingidos por um evento climático dramático,desde a aurora da civilização moderna.” Deum lado, as tecnologias do mundo modernopermitirão que países como a América oenfrente. Por outro lado, um planeta maispopuloso e edificado terá mais a perder.36

À medida que os cientistas vegetais apuramseu conhecimento da mudança climática – eas formas sutis de reação das plantas –,começam a pensar que as ameaças mais gravesà agricultura não serão as mais dramáticas: umaonda mortal de calor, estiagem aguda oudilúvio sem fim. Ao invés, para as plantas queo homem desenvolveu para condiçõesclimáticas ótimas, as mudanças sutis detemperatura durante períodos-chave de seucultivo serão mais perturbadoras.

Cientistas vegetais do Instituto Internacionalde Pesquisa do Arroz, nas Filipinas, já estãodetectando danos regulares provocados pelocalor no Camboja, Índia e em seus próprioscultivos experimentais em Manila, onde a

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temperatura média hoje está 2,5oC acima doque era, 50 anos atrás. “No arroz, trigo e milho,a produção deverá cair 10% por cada graude aumento da temperatura acima de 30oC,”diz o pesquisador John Sheehy. “Estamosperto ou já neste limiar.” Sheehy estima que aprodução de grãos nos trópicos pode cair ematé 30%, ao longo dos próximos 50 anos –um período quando a população já mánutrida da região aumentará 44%.37

Hartwell Allen, cientista vegetal do USDAe da Universidade da Flórida-Gainsville,constatou que, enquanto uma duplicação dedióxido de carbono e uma temperaturaligeiramente mais alta estimulam a germinaçãode sementes e fazem as plantas crescerem maise com maior exuberância, temperaturas maisaltas serão mortais quando a planta começara produzir pólen. Por exemplo, a umatemperatura acima de 36oC durante apolinização, a produção de amendoim caicerca de 6% por grau de aumento. Allen estáparticularmente preocupado com asimplicações para locais como Índia e ÁfricaOcidental, onde o amendoim é um alimentobásico e as temperaturas durante a estação decultivo já se movem para a faixa alta dos 30oC.“Nestas regiões, as lavouras são alimentadaspela chuva,” observa ele. “Se o aquecimentoglobal também levar à seca nestas áreas, aprodução poderá ser até menor.”38

Os principais vegetais do mundo podemlidar, até certo ponto, com mudanças detemperatura, porém, desde a aurora daagricultura os produtores têm selecionadoplantas que vicejam sob condições estáveis.Entretanto, quando os climatólogos consultammodelos climáticos globais, vêem tudo commenos estabilidade. À medida que os gasesde estufa concentram mais calor do sol naatmosfera da Terra, há também mais energia

no sistema climático, o que significa maismudanças extremas – seco para úmido, quentepara frio. (É por esta razão que ainda podehaver invernos rigorosos num planeta emaquecimento e por que março de 2004 foi omês mais quente da história, após um dosinvernos mais frios.) Vários desses impactosprojetados já estão sendo observados porclimatólogos, na maioria das regiões:temperaturas máximas mais altas e dias maisquentes; temperaturas mínimas mais altas e diasmenos frios; eventos de chuva mais variáveise extremos; maior seca no verão e riscoassociado de estiagem nos interiores conti-nentais. Todas essas condições provavelmenteirão se acelerando até o próximo século.39

Talvez o local em que a previsibilidade émais crucial para a agricultura seja nos arrozaisnão irrigados e campos de trigo da Ásia, ondeas monções anuais fazem o sucesso ou ruínade milhões de vidas. “Se tivermos umaquecimento global significativo, não tenhodúvida que haverá mudanças profundas namonção,” disse David Rhind, pesquisadorclimático sênior do Instituto Goddard deEstudos Espaciais da NASA, na Universidadede Colúmbia. Por exemplo, eventos do ElNiño freqüentemente correspondem amonções mais fracas, e os El Niñosprovavelmente aumentarão com oaquecimento global. O que não está claro, disseRhind, é a direção dessas mudanças. “Meupalpite é que as respostas serão muito maisintensas em todas as direções.”40

Cynthia Rosenzweig, cientista pesquisadorasênior do Instituto Goddard, argumenta que,embora modelos climáticos estarão sempresendo aprimorados, há certas mudanças quejá podemos prever com algum grau decerteza. Primeiro, a maioria dos estudosindicam “intensificação do ciclo hidrológico”

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– palavras grandes que significamessencialmente mais secas e mais enchentes,chuvas mais variáveis e mais extremas. Segundo,Rosenzweig observa que “todos os estudosdemonstraram, basicamente, que haverá maiorincidência de pragas agrícolas.” Estações decultivo mais longas significarão maior geraçãode pragas durante o verão. Invernos maiscurtos e quentes significam que um menornúmero de adultos, larvas e ovos morrerão.41

Terceiro, a maioria dos climatólogosconcorda que a mudança climática atingirámais duramente os agricultores no mundo emdesenvolvimento. Isto, em parte, é o resultadoda geografia. Os agricultores nos trópicos jáestão próximos aos limites de temperatura damaioria das culturas. Assim, qualqueraquecimento destruirá suas lavouras. “Todosos aumentos de temperatura, mesmopequenos, causarão declínio de produção,”declarou Robert Watson, cientista chefe doBanco Mundial e Ex-presidente do PainelIntergovernamental sobre Mudança Climática.(Até o final da década de 2080, acrescentaWatson, as projeções indicam que até mesmoas latitudes temperadas começarão a seaproximar deste limiar.) “Estudos vêmmostrando consistentemente que as regiõesagrícolas no mundo em desenvolvimento sãomais vulneráveis, mesmo sem considerar suacapacidade de manejo,” observa CynthiaRosenzweig. Possuem menos recursos,tecnologia de irrigação mais limitada epraticamente nenhum sistema de rastreamentoclimático. “Se olharmos para a estratégia demanejo, então é nocaute.” Na Áfricasubsaariana – centro focal da fome mundial,onde o número de famélicos duplicou nosúltimos 20 anos –, os problemas atuais irão,sem dúvida, ser agravados ainda mais pelamudança climática.42

“Os cientistas precisarão realmente dedécadas antes de estar seguros que a mudançaclimática está ocorrendo,” diz Patrick Luganda,Presidente da Rede de Jornalistas Climáticosda Região do Chifre da África. “Mas, aqui eagora, os agricultores não têm escolha senãolidar com a realidade diária da melhor maneirapossível.” Vários anos atrás, as comunidadesagrícolas locais em Uganda podiamdeterminar a época das chuvas anuais comboa precisão. “Hoje, não há garantia de queas chuvas irão iniciar, ou parar, na épocacostumeira,” diz Luganda. O povo Ateso, nocentro-norte de Uganda, informa odesaparecimento da asisinit, uma gramínea decharco ideal para cobertura das casas por suabeleza e durabilidade. Esta gramínea rareiacada vez mais devido ao plantio de arroz emilheto em áreas pantanosas, em resposta asecas mais freqüentes. (Produtores de arrozna Indonésia, lidando com secas, fizeram omesmo.) Produtores em Uganda tambéminiciaram a semear uma maior diversidade delavouras e escalonar o plantio para seprecaverem contra mudanças climáticassúbitas. Luganda acrescenta que quedasrepetidas de colheita forçaram muitosagricultores para as cidades: o mecanismo demanejo final.43

Novas Abordagenspara Novas Ameaças

Embora as ameaças à segurança alimentarpareçam se multiplicar – do HIV/AIDS emudança climática até a perda da diversidadeagrícola e doenças animais emergentes –, nãohá falta de soluções para assegurar uma ofertasegura de alimentos. E, embora muitasautoridades agrícolas, cientistas e executivosdo agronegócio continuem a defender ajustes

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tecnológicos, é improvável que esta mesmaênfase, que gerou muitos dos atuaisproblemas, seja a solução. Ao invés, legisla-dores e produtores estão desenvolvendomudanças conceituais e políticas na base.

Por exemplo, após mais de duas décadasde negociações quase sempre ásperas, oTratado Internacional sobre RecursosGenéticos Vegetais para Alimentação eAgricultura entrou em vigor em 29 de junhode 2004. Seu objetivo é proteger abiodiversidade agrícola e assegurar a divisãojusta e eqüitativa de seus benefícios – efinalmente proteger a base da segurançaagrícola e alimentar. Embora esta conquistaseja significativa, algumas organizações não-governamentais (ONGs) estão preocupadascom algumas ambigüidades no tratado quepodem permitir que nações economicamentepoderosas extraiam e privatizem recursosgenéticos, minimizando sua contribuição àproteção desses recursos para os agricultoresem todo o mundo. O que falta ao tratado,alegam algumas ONGs, é uma declaraçãoclara de direitos dos agricultores que protejasua capacidade de guardar e trocar sementes,sem as restrições impostas por direitos depropriedade intelectual.44

De acordo com Cary Fowler, Diretor dePesquisa do Centro Internacional de EstudosAmbientais e Desenvolvimentistas, daUniversidade Agrícola da Noruega, o tratadotambém não define uma função clara para osgovernos na proteção de recursos genéticosvegetais e não estabelece compromissos.Apesar dessas falhas, diz Fowler, “o tratadooferece normas internacionais positivas paraconservação e manejo de recursos genéticosvegetais para alimentação e agricultura.” Podetambém reduzir as tensões políticas que hámuito vêm prejudicando a cooperação,

conservação, e pesquisa e desenvolvimentonessa área.45

Os agricultores estão agora reivindicandoum tratado semelhante para a proteção deraças de animais domésticos. Em outubro de2003, líderes de comunidades pastoraistradicionais, ONGs e representantes gover-namentais reuniram-se em Karen, no Quênia,e minutaram o Compromisso de Karen,exigindo a proteção dos recursos genéticosanimais contra patentes e que os pastores sejamreconhecidos por seus esforços naconservação e proteção das raças de animaisdomésticos.46

Porém, será necessário muito mais do quetratados para criar segurança alimentar eproteger a diversidade agrícola. Enquanto acomunidade científica e governos se ocupamem disputas burocráticas sobre o estado dosrecursos agrícolas mundiais, os fazendeiros vêmcalmamente cultivando suas próprias lavourase animais geneticamente diversificados. Deacordo com Pat Mooney, do Grupo de Açãopara Erosão, Tecnologia e Concentração,“embora os números oficiais mostremgrandes perdas de diversidade vegetal eanimal, muito ainda continua desconhecidopela comunidade científica. O que édesconhecido para cientistas nem sempre édesconhecido para agricultores.” Na realidade,através da armazenagem de sementes e criaçãoseletiva, os fazendeiros estão conservandorecursos genéticos na base e compartilhandoo fruto do seu trabalho com outrosfazendeiros em feiras e mercados desementes.47

Os fazendeiros, obviamente, sabem melhordo que ninguém como “cultivar” diversidadee proteger lavouras e animais de doenças edo clima na fazenda. No Nordeste brasileiro,por exemplo, bancos de sementes

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comunitários (BSCs) estão sendo implantadospara proporcionar aos agricultores acesso asementes e treiná-los para conserva abiodiversidade agrícola. A Assessoria eServiços a Projetos Agrícolas Alternativos eoutras organizações locais, treinaramagricultores que, em 2000, organizaram 220BSCs, estocando mais de 80 toneladas desementes das principais variedades agrícolas,inclusive 67 variedades de três tipos diferentesde feijão. E, no Quênia, feiras de semente setornaram uma forma eficaz e poderosa defazer as mulheres agricultoras comercializaremsementes, compartilharem conhecimentos eincrementarem a diversidade genética esegurança alimentar em nível local.48

A conservação ex-situ – manteranimais em zoológicos, embriões de gadocongelados em bancos de genes ou sementesem bancos de sementes – tem sido umaabordagem eficaz, embora custosa. Mas nãoé muito útil para pessoas que dependem daagricultura para seu sustento. Uma forma bemmais eficaz e produtiva dos fazendeirospreservarem as raças de gado e plantas é nafazenda, especialmente se os fazendeiros criamraças de alto valor monetário. Por exemplo,os couros multicoloridos do gado N’guni daÁfrica do Sul estão “em voga” para estofados.O porco da África do Sul (chamado hut pig)também está se tornando popular, devido agrande quantidade de gordura que produzem,para torresmo ou pele de porco frita, para omercado local. Estes porcos chegam a custar1.000 rands (US$ 150), muito superior aovalor dos porcos comerciais. Nos EstadosUnidos, a Heritage Foods USA está restaurandotradições culinárias – e salvando da extinçãoraças de gado norte-americanos –desenvolvendo um mercado para raças rarasde perus, gansos e porcos, como também para

comidas americanas nativas.49

Além do valor de mercado, há outrasrazões para preservar raças raras de gado. Aconservação da diversidade genética animal éuma forma barata de proteger a segurançaalimentar nos países em desenvolvimento.Animais de fazenda não são apenas fonte dealimento. O esterco é um recurso valioso,mantendo o solo fértil e produtivo. A forçaanimal é utilizada na fazenda para cultivo,irrigação e transporte das lavouras na épocada colheita. A carne, couro, lã e penasproporcionam fontes importantes de rendapara comunidades rurais. De acordo com Dr.Jacob Wanyama, do Intermediate TechnologyDevelopment Group, “é importante conservar nãosó os recursos genéticos animais atuais em uso,ou de uso provável no futuro na alimentaçãoe agricultura, mas também assegurar que aspessoas que os têm conservado para seusustento continuem a fazê-lo.” Para muitos dospobres que vivem em regiões áridas e semi-áridas, o gado é o único meio eficiente deprodução de alimento.50

Manter o gado sadio e livre de doençastambém fortalece a segurança alimentar. Em2004, a Organização Mundial de SaúdeAnimal e a FAO concordaram em cooperarpara a monitoração e controle de doençasanimais altamente contagiosas. Elas vêmexigindo não só mais pesquisas sobre atransmissão da gripe aviária de aves para suínose outras doenças zoonóticas, como também

Enquanto governos se ocupam em

disputas burocráticas sobre recursos

agrícolas, os fazendeiros vêm calmamente

cultivando suas próprias lavouras e

animais geneticamente diversificados

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grandes investimentos no fortalecimento deserviços veterinários para a detecção edivulgação da doença. Na fazenda, muitosfazendeiros estão protegendo tanto a saúdehumana quanto a animal, através da rein-trodução de raças indígenas de gado quetendem a ser mais resistentes a doenças doque as não-nativas. Governos nacionaispodem reforçar este trabalho colaborandocom fazendeiros e associações de criadores,como a American Livestock Breeds Conservancy,ajudando-os a se responsabilizarem por umaparcela maior de manadas e rebanhos emtodo o mundo.51

As muitas variáveis associadas à mudançaclimática fazem o manejo difícil, mas nãoinútil. Em suma, os fazendeiros resistirãomelhor a uma variedade de choques, ao setornarem mais diversificados e menosdependentes de insumos externos. Quandoa temperatura muda dramaticamente, umagricultor que cultive uma única variedade detrigo terá mais probabilidade de perder todaa safra do que um agricultor cultivando váriasvariedades, ou até outras variedades além dotrigo. As culturas adicionais ajudam a formarum tipo de barreira ecológica contra osgolpes climáticos. Fazendas maisdiversificadas lidarão melhor com estiagens,mais pragas e uma variedade de outroschoques relacionados ao clima. E tenderão ase tornar menos dependentes decombustíveis fósseis para fertilizantes epesticidas. A mudança climática poderátambém ser o melhor argumento parapreservação de variedades de lavouras locaisem todo o mundo, possibilitando aoscultivadores maior variedade possível deopções, ao tentarem desenvolver plantas quepossam lidar com secas mais freqüentes ounovas pragas.

Plantar uma maior variedade de lavouras,por exemplo, é talvez a maior garantia que osagricultores podem ter contra um climaerrático. Em partes da África, o plantio deárvores junto às lavouras – um sistemachamado agroflorestamento, que pode incluircafé e cacau cultivados à sombra, ou árvoresleguminosas com milho – pode ser parte daresposta. “Há bons motivos para acreditar queesses sistemas serão mais resilientes do que umamonocultura de milho,” declara Lou Verchot,cientista-chefe, sobre mudança climática doCentro Agroflorestal Mundial de Nairobi. Asárvores se enraízam mais profundamente doque as culturas, permitindo a sobrevivência auma estiagem de três a quatro semanas quepode danificar uma cultura de grãos. Alémdessa proteção, as raízes das árvoresbombearão água para as camadas superioresdo solo, onde as culturas podem se servir dela.Árvores também melhoram o solo: suas raízescriam espaços para a água fluir; suas folhas sedecompõem e formam composto. Em outraspalavras, um agricultor com árvores nãoperderá tudo.52

Agricultores no centro do Quênia estãoutilizando um mix de café, macadâmia e cerealque resulta em até três safras comerciais numbom ano. “Naturalmente, em qualquer ano, amonocultura renderá mais,” admite Verchot,“porém, os agricultores precisam trabalharmuitos anos.” Esses mixes mais diversificadossão ainda mais relevantes, uma vez que astemperaturas em elevação eliminarão grande

O Projeto Sunshine Farm do Land

Institute desenvolve cultivos sem

combustíveis fósseis, fertilizantes ou

pesticidas, como forma de reduzir sua

contribuição à mudança climática.

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parte das áreas tradicionais de café e chá noCaribe, América Latina e África. Em Uganda,onde café e chá representam quase toda aexportação agrícola, um aumento médio datemperatura de 2oC reduziria dramaticamentea colheita, pois todas as áreas, com exceçãodas maiores altitudes, se tornarão muitoquentes para o cultivo do café.53

Fazendas com árvores estrategicamenteplantadas entre as lavouras não só resistirãomelhor a chuvas torrenciais e estiagensescaldantes, como também reterão maiscarbono. Verchot observa que os alqueivesmelhorados utilizados na África podem reteraté de 10 a 20 vezes o carbono da vizinhamonocultura cerealista e 30% do carbono deuma floresta intacta. E o acúmulo do estoquede matéria orgânica no solo – o materialescuro, esponjoso que dá aos solos um cheiroforte e é a forma pela qual os solosarmazenam dióxido de carbono – não sóaumenta o volume de água que o solo podereter (bom para resistir às secas), comotambém ajuda a aglutinar mais nutrientes (bompara o desenvolvimento da lavoura).54

No Land Institute de Salina, Kansas, ondeclimatólogos locais suspeitam que a mudançaclimática poderá transformar os campos detrigo do estado num deserto, os agricultoresnão estão ouvindo isto passivamente. OProjeto Sunshine Farm [Fazenda Ensolarada]do Instituto desenvolve cultivos semcombustíveis fósseis, fertilizantes ou pesticidas,como forma de reduzir sua contribuição àmudança climática e encontrar uma soluçãoessencialmente local para um problema global.Como seu nome indica, a fazenda basicamentefunciona à luz solar. Sementes de girassolcultivado localmente e grãos de soja setransformam em biodiesel, que move tratorese caminhões. A fazenda produz quase três

quartos da ração – aveia, sorgo em grão ealfafa – que necessita para seus cavalos detração, gado de corte e aves. Esterco eleguminosas na rotação do cultivo substituemos fertilizantes de nitrogênio devoradores deenergia. Um sistema fotovoltaico de 4,5quilowatts opera a oficina, cercas elétricas,bombeamento de água e as chocadeiras. Notodo, a fazenda eliminou a energia utilizadapara fabricar e transportar 90% dos seussuprimentos. Incluindo a energia necessáriapara fabricar os equipamentos da fazenda, opercentual cai para 50%, mas mesmo assim éum ganho imenso comparado com umafazenda americana comum.55

Marty Bender, Diretor de Pesquisa daSunshine Farm, observa que “o cultivo decarbono é uma solução temporária.” Eleassinala um trabalho recente na revista Science,demonstrando que, mesmo se todos os solosnos Estados Unidos retornassem a seu teorde carbono pré-lavra – um nível máximoteórico de quanto carbono poderiam reter –,isto equivaleria apenas a duas décadas dasemissões americanas. “Isto mostra quão poucotempo estaríamos comprando,” diz Bender,“apesar do fato que poderá levar cem anosde cultivo de carbono e florestamentoagressivo para restaurar o carbono perdido.”Cynthia Rosenzweig, do Goddard Institute,também observa que o potencial de retençãode carbono é limitado e que um planeta maisquente reduzirá a quantidade de carbono queos solos podem reter: à medida que a terra seaquece, micróbios revigorados do soloproduzem mais dióxido de carbono.56

“Deveríamos na realidade estar enfocandoeficiência energética e conservação de energia,a fim de reduzir as emissões de carbono danossa economia nacional,” conclui MartyBender. Nos Estados Unidos, como em

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outras nações, embora a agricultura venha emsegundo lugar entre os setores econômicos quecontribuem para o efeito estufa, suacontribuição é menos de um décimo daqueleda produção de energia. Para a agriculturadesempenhar um papel significativo naminimização da mudança climática, as práticasagrícolas deverão ser modificadas em largaescala por todas as regiões da Índia, Brasil,China e o Centro-Oeste americano.57

É do melhor interesse dos agricultoresrealizarem reduções óbvias em seu próprioconsumo de energia, simplesmente paraeconomizar dinheiro. Porém, a soluçãoduradoura para as emissões de gás de estufa emudança climática dependerá principalmentedas escolhas que todos façam. Por exemplo,uma refeição básica – carne, grãos, frutas e

legumes –, utilizando ingredientes importados,pode facilmente gerar quatro vezes as emissõesde gás que a mesma refeição com ingredienteslocais. E, mesmo que os fazendeiros decidamdiversificar mais seu gado e culturas, amudança ainda dependerá da preferência dosconsumidores por esses alimentos nossupermercados.58

Em suma, os fazendeiros não são os únicosinteressados num sistema alimentar maisseguro, mas não podem proteger nossasplantações e criatórios por si só. Precisarãoda ajuda de uma população comprometidacom um campo que possa suportar mudançasclimáticas e novas doenças e que produzaalimentos seguros para o consumo. Isto é algoque, afortunadamente, não seria difícil de seralcançado.

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L I G A Ç Ã O D E S E G U R A N Ç A

Produtos Químicos TóxicosEm 1984, um defeito numa fábrica de

pesticida em Bhopal, na Índia, originou opior desastre químico da história. Mais de27 toneladas do gás isocianado de metilovazou, formando uma nuvem mortal quematou milhares de pessoas e prejudicououtras centenas de milhares. Porém, este foisomente um dos 10 milhões de vazamentosquímicos acidentais que ocorrem a cada ano.Somente nos Estados, ocorreram mais de32.000 em 2003. Os produtos químicos sãoessenciais para as economias modernas eservem a inúmeros usos. Entretanto,quando mal-administrados, eles representamuma ameaça considerável à segurançamundial, não somente pelos vazamentosacidentais, mas devido ao possível uso porterroristas, bem como por seus efeitos nomeio ambiente e na saúde humana. 1

Os produtos químicos – armazenados eprocessados em milhões de instalaçõesindustriais e transportados em inúmeroscaminhões, trens e navios – representamalvos importantes para os terroristas. Deacordo com o Departamento Médico doExército dos Estados Unidos, num cenáriobem pessimista, um ataque numa fábrica deprodutos químicos pode matar mais doque 2 milhões de pessoas. Em 2004, emAshdod, Israel, homens-bomba se mataramperto de uma fábrica de embalagem defrutas cítricas que usam o pesticida brometode metila. Se eles tivessem rachado osreservatórios de brometo, a liberação desteproduto químico venenoso poderia termatado milhares de pessoas. 2

Mais traiçoeiro do que estes perigosimediatos é o fato de que muitos produtosquímicos podem ameaçar, a longo prazo, asegurança de pessoas e do meio ambiente.Poucos dos 70.000 ou mais produtosquímicos no mercado europeu foramadequadamente avaliados em termos desegurança. Porém, muitos dos que foramtestados aumentam a incidência do câncer,alteram os sistemas hormonais e retardam odesenvolvimento infantil. Mesmo pessoasque tiveram pouca exposição a produtosquímicos são afetadas: 200 produtosquímicos tóxicos foram detectados noscorpos dos Inuit, na Groelândia – algumasvezes em concentrações tão altas que certostecidos e leite materno de alguns delespodem ser classificados como resíduotóxico. Juntamente aos aumentos dosíndices de doenças e óbitos, estas toxinaspodem aumentar significativamente oscustos sociais e de assistência médica, o querepresenta um problema a mais em paísesque estão enfrentando dificuldades comoutros pesados encargos de saúde pública. 3

Talvez o maior risco para a segurançaseja o fato de que a solução para osproblemas que os produtos químicospodem causar talvez não surja até que sejatarde demais para resolvê-los. Em 1962, acientista americana Rachel Carson alertou opúblico para os efeitos desastrosos que oDDT estava causando no meio ambiente –inclusive pondo em risco a viabilidade daspopulações de pássaros e causandoproblemas à saúde humana. Isto aconteceu

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PRODUTOS QUÍMICOS TÓXICOS

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depois dequase 20 anosde usogeneralizado.Mas foramprecisos outros10 anos paraque ocomposto fosse banido nos EstadosUnidos. 4

Produtos químicos perturbadores dosistema endócrino podem ser o próximoperigo oculto. Eles perturbam os cicloshormonais não só humanos, mas de muitasespécies. Isto fica claramente patente nodeclínio de mariscos e moluscos, após usoextensivo de tributyltin para evitar queorganismos grudem nos cascos dos navios.Devido ao longo espaço de tempo entre aexposição e os efeitos, a alteração endócrinapode ter impactos humanos e sociaissignificativos, se providências não foremtomadas para tirar de circulação osprodutos químicos responsáveis. NosEstados Unidos e Europa, a contagem deesperma humano já caiu significativamente,enquanto em muitos países industrializadoso câncer da próstata aumentou – doisacontecimentos possivelmente relacionadoscom aumento das quantidades de produtosquímicos disruptores do sistema endócrino.5

Entretanto, se administradosadequadamente, os produtos químicos nãoprecisam representar uma ameaça àsegurança. A exigência de que as instalaçõesindustriais informem ao público sobre suas

descargas anuais deprodutos químicospode ajudar areduzir o uso e aemissão deprodutos químicostóxicos. NosEstados Unidos, o

Toxics Release Inventory informa uso edescargas. Em 2002, as descargas de 300produtos químicos detectados desde 1988caíram pela metade. Este sistematransparente tem permitido à sociedade civilpressionar a indústria a usar produtosquímicos com mais eficiência e maiorsegurança. 6

Em outubro de 2003, a ComissãoEuropéia adotou a proposta REACH –Registro, Avaliação e Autorização paraProdutos Químicos. Se aprovada, ela exigiráque os fabricantes registrem todos osprodutos químicos mais usados (cerca de30.000). Os fabricantes necessitarão avaliar asegurança dos que representempreocupação e estar atentos, a fim de que osmais tóxicos obtenham autorização paracontinuarem a ser usados – após sejaprovado que não existe alternativa maissegura. Os benefícios ambientais e para asaúde desta legislação prometem sersignificativos. Na Suécia, por exemplo,quando se reduziu a exposição a três tiposde produtos químicos relacionados com olinfoma non-Hodgkin, a incidência destecâncer também diminuiu. 7

Quando fica claro que certos produtos

Lixão químico, Espanha

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PRODUTOS QUÍMICOS TÓXICOS

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químicos precisam ser banidos, governosdevem agir com firmeza. Neste sentido, umsucesso recente vem da Convenção deEstocolmo sobre Poluentes OrgânicosPersistentes, que passou a vigorar em maiode 2004. Este tratado, ratificado por maisde 70 países, proibiu ou restringiurigorosamente a produção e uso de 12 dosmais perigosos produtos químicos, inclusiveDDT e dioxina, e mobilizará centenas demilhões de dólares pra garantir que elesdesaparecerão gradualmente. 8

Mesmo quando os produtos químicosnão são banidos, é necessário que sejamadotadas, prontamente, alternativas maisseguras. O dióxido de carbono (CO2) , porexemplo, possui muitas das propriedadesdos solventes orgânicos – produtosquímicos que são muitas vezes altamenteperigosos. O CO2 substitui o cloreto demetileno na descafeinização do café e, emalguns casos, esta substituindo opercloroetileno nas operações de lavagem aseco (ambos são cancerígenos). Entretanto, apassagem para produtos químicos maisseguros tem sido limitada pelos altos custos

de produção e pelos investimentosnecessários em novas tecnologias. Osgovernos terão de acelerar as transições,tornando as alternativas menos tóxicas maisaccessíveis – ou diretamente através desubsídios ou colocando preços maiscompatíveis (como através de impostosquímicos mais altos para compensar osaltos custos ambientais e da saúde).9

Processos industriais mais eficientesajudarão a reduzir a demanda pordeterminados produtos químicos,diminuindo o risco de descargas acidentaisou intencionais permitindo, ao mesmotempo, maior reuso e reciclagem dequaisquer produtos químicos usados.Enquanto os produtos químicoscontinuarão indubitavelmente abundantes,seu uso e toxicidade podem ser diminuídos,deixando de ser uma ameaça imediata ou delongo prazo. Entretanto, isto somenteocorrerá com líderes políticos, industriais ecomunitários compromissados comsegurança, eficiência, transparência ecautela.10

- Erik Assadourian

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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

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Gerindo Disputase Cooperação Hídricas

Aaron T. Wolf, Annika Kramer,Alexander Carius e Geoffrey D. Dabelko

C A P Í T U L O 5

Stanley Crawford, um ex mayordomo (gerentede vala) de uma acequia (vala de irrigação) noNovo México, escreve sobre dois vizinhos que“nunca se davam bem... o vizinho a jusanteacusando o outro, a montante, de nunca a águacorrer para sua propriedade ou de despejarlixo nela nas raras ocasiões que deixava.”Rivalidades como esta sobre a água têm sidomotivo de disputas desde a revoluçãoNeolítica, quando a humanidade começou acultivar alimentos, entre 8000 e 6000 A.C.Nossa língua reflete essas raízes antigas:“rivalidade” vem do Latim rivalis, ou “aqueleque usa o mesmo rio que outrem.” Ripários– países ou províncias limítrofes ao mesmorio – são freqüentemente rivais pela águacompartilhada. Hoje, a reclamação de umvizinho a jusante contra o outro a montante éecoado é ressoado pela Síria contra à Turquia,

Paquistão contra a Índia, e Egito contra aEtiópia.1

Independente da escala geográfica ou nívelrelativo de desenvolvimento econômico entreos ripários, os conflitos que enfrentam sãoeminentemente semelhantes. Sandra Postel,Diretora da Global Water Policy Project, descreveo problema em Pillars of Sand [Pilares deAreia]: a água, contrariamente a outrosrecursos consumíveis escassos, é utilizada paraalimentar todas as facetas da sociedade, desdea biológica e economica até a estética e práticaespiritual. A água faz parte integral dosecossistemas, entrelaçada com o solo, ar, florae fauna. Uma vez que flui, o uso de um rio ouaqüífero em um local afetará (e será afetadopor) seu uso em outro local, possivelmentedistante. No âmbito de bacias hidrográficas,tudo está interligado: água superficial e

Aaron T. Wolf é Professor Adjunto de Geografia do Departamento de Geociências da Universidade do Estado deOregon e Diretor da Transboundary Freshwater Dispute Database. Annika Kramer é Fellow de pesquisa e AlexanderCarius é Diretor da Adelply Research de Berlim. Geoffrey D. Dabelko é Diretor do Projeto de Mudança e SegurançaAmbiental do Woodrow Wilson International Center for Scholars, em Washington, D.C.

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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

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subterrânea, qualidade e quantidade. A águaflutua livremente no tempo e no espaço,complicando ainda mais sua gestão que é,geralmente, fragmentada e sujeita a princípioslegais arcanos ou contraditórios.2

A água não pode ser manejada para umaúnica finalidade: toda gestão hídrica atendeobjetivos múltiplos e navega entre interessescompetitivos. Dentro de uma nação, estesinteresses – usuários domésticos, fazendeiros,geração hidrelétrica, usuários recreativos,ecossistemas – são freqüentemente conflitantes,e a probabilidade de uma solução mutuamentesatisfatória cai exponencialmente emproporção ao número de interessados.Acrescentem-se fronteiras internacionais e aschances caem ainda mais. Sem uma soluçãomútua, as partes acabam em disputa, ou atémesmo conflito violento entre si ou comautoridades governamentais. Mesmo assim,disputas relacionadas com a água devem serconsideradas dentro de um contexto político,étnico e religioso mais amplo. Água nunca é aúnica – e quase nunca a maior – causa deconflito. Porém, pode agravar tensõesexistentes e assim deverá ser consideradadentro de um contexto mais amplo deconflito e paz.

Do Oriente Médio ao Novo México, osproblemas são os mesmos. Como, por outrolado, são muitas das soluções. A engenho-sidade humana desenvolveu meios de lidarcom escassez hídrica e cooperar na gestão dosrecursos hídricos. Na realidade, eventoscooperativos entre nações ripárias superaramos conflitos numa relação de dois para um,entre 1945 e 1999. Além disso, a água temsido um caminho produtivo para criarconfiança, desenvolve cooperação e evitarconflito, mesmo em bacias particularmentecontenciosas. Em alguns casos, a água propor-

ciona um dos poucos caminhos de diálogoem sérios conflitos bilaterais. Em regiõespoliticamente instáveis, a água é parte essencialdas negociações desenvolvimentistas regionais,que servem como estratégias de facto deprevenção de conflito.3

Questões Chave

Embora as razões subjacentes decontrovérsias relacionadas à água possam sernumerosas, como disputas pelo poder einteresses desenvolvimentistas competitivos,todas as disputas hídricas podem ser atribuídasa uma ou mais de três questões: quantidade,qualidade e oportunidade. (Ver Tabela 5-1.)4

Reivindicações competitivas por umaquantidade limitada de água são os motivosmais óbvios de conflito relacionado com aágua. O potencial para tensões sobrealocações aumenta quando o recurso é escasso.Mas, mesmo quando a pressão sobre o recur-so é limitada, sua alocação para usos e usuáriosdiversos pode ser altamente disputada. Àmedida que as pessoas se conscientizam dasquestões ambientais e do valor econômico deecossistemas, também reivindicam a águacomo esteio para o meio ambiente e os meiosde vida que sustenta.

Outra questão litigiosa é a qualidade da água.A baixa qualidade – seja causada por poluiçãode esgotos e pesticidas ou níveis excessivosde sal, nutrientes ou sólidos em suspensão –torna a água inadequada para consumo,indústria e, às vezes, até mesmo paraagricultura. A água suja representa ameaçasgraves para a saúde humana e dos ecossistemas.A degradação da qualidade pode, assim setornar uma fonte de disputa entre os que acausam e os que são afetados por ela. Ademais,questões de qualidade da água podem levar a

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TTTTTabela 5-1. Exemplos Selecionados de Disputas Hídricasabela 5-1. Exemplos Selecionados de Disputas Hídricasabela 5-1. Exemplos Selecionados de Disputas Hídricasabela 5-1. Exemplos Selecionados de Disputas Hídricasabela 5-1. Exemplos Selecionados de Disputas Hídricas

Local

Rio Cauvery

Rio Okavango

Bacia do Mekong

Rio Incomati

Rio Reno

Syr Darya

Questão Central

Quantidade

Quantidade

Quantidade

Qualidade eQuantidade

Qualidade

Oportunidade

Observação

A disputa do Rio Cauvery, na Índia, surgiu da alocação deágua entre o estado a jusante de Tamil Nadu, que vinhautilizando a água para irrigação, e o estado a montante deKarnataka, que desejava incrementar a agricultura irrigada. Aspartes não aceitaram adjudicação judicial da disputa, levandoà violência e mortes ao longo do rio.

Na bacia do Okavango, as reivindicações hídricas de Botsuanapara sustentar o delta e seu lucrativo setor ecoturísticocontribuíram para alimentar uma disputa com a Namíbia, amontante, que deseja fazer a transmissão de água, através daFaixa Caprivi para abastecer a capital.

Após a construção da Barragem Pak Mun, na Tailândia, maisde 25.000 pessoas foram afetadas pelas reduções drásticasdos pesqueiros a montante e outros problemas de meios devida. As comunidades afetadas vêm lutando por indenizaçõesdesde a conclusão da barragem, em 1994.

Barragens na região sul-africana da bacia do Incomati reduzirama vazão e aumentaram a salinidade do estuário do Incomati emMoçambique. Isto alterou o ecossistema do estuário e causou odesaparecimento de plantas e animais intolerantes ao sal,importantes para o sustento da população local.

O porto de Rotterdam teve que ser dragadoconstantemente para remoção do lodo contaminadodepositado pelo Reno. O custo foi gigantesco levando,conseqüentemente, à controvérsia sobre compensação eresponsabilidade entre os usuários do rio. Embora, nestecaso, as negociações resultaram em solução pacífica, nasáreas que ficaram de fora da resolução, problemas deassoreamento podem levar a disputas montante/jusante,como ocorreu na bacia do Rio Lempa, na América Central.

As relações entre o Casaquistão, Quirjistão e Uzbequistão –todos ripários do Syr Darya, principal tributário domoribundo Mar de Aral – exemplificam os problemascausados pela ocasião da vazão. Sob a gestão central daUnião Soviética, a irrigação de primavera e verão noUzbequistão e Casaquistão, a jusante, equilibrava o uso dahidroenergia do Quirjistão, a montante, para geraraquecimento no inverno. Porém as partes quase nãocumprem mais os acordos recentes de troca de vazões amontante de fontes alternativas de aquecimento (gás natural,carvão e óleo combustível), por irrigação a jusante,rompendo esporadicamente os acordos.

FONTE: Vide nota final 4.

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manifestações públicos se afetarem meios devida e o meio ambiente. A qualidade da águaestá intimamente ligada à quantidade:quantidade decrescente concentra poluição,enquanto quantidade excessiva, comoenchentes, pode levar à contaminação peloextravasamento de esgotos.

Terceiro, a ocasião da vazão de água éimportante sob vários aspectos. Assim, ospadrões operacionais das barragens sãofreqüentemente contestados. Usuários amontante, por exemplo, podem liberar águade reservatórios no inverno para produçãode hidroenergia, enquanto usuários a jusantepodem necessitá-la para irrigação no verão.Além disso, os padrões de vazão são cruciaispara a manutenção de ecossistemas de águadoce que dependem das enchentes sazonais.

Interesses conflitantes referentes à qualidade,quantidade e oportunidade podem ocorrerem muitas escalas geográficas, porém adinâmica do conflito age diferencialmente emnível internacional, nacional e local. (Ver Tabela5-2.) Seja a disputa sobre qualidade, quan-tidade e oportunidade, ou em nível inter-nacional, nacional ou local, a chave para

entender – e prevenir – conflitos relacionadosà água pode ser encontrada em instituiçõesestabelecidas para gerir recuros hídricos.

Bacias Internacionais

Bacias internacionais que incluem fronteiraspolíticas de dois ou mais países, cobrem 45,3%da superfície da Terra, abrigam cerca de 40%da população mundial e representamaproximadamente 60% da vazão fluvial global.E o número está crescendo: em 1978, asNações Unidas listaram 214 bacias interna-cionais (última contagem oficial). Hoje, existem263, devido à “internacionalização” de baciasatravés de mudanças políticas, como ocolapso da União Soviética e nações Balcãs,como também o acesso à melhor tecnologiade mapeamento.5

Extraordinariamente, 145 nações possuemáreas dentro de bacias internacionais e 33países estão quase que inteiramente localizadosdentro dessas bacias. O alto nível deinterdependência é ilustrado pelo número depaíses que compartilham bacias internacionais

TTTTTabela 5-2. Dinâmica de Conflito em Níveis Diferentes Níveis Espaciaisabela 5-2. Dinâmica de Conflito em Níveis Diferentes Níveis Espaciaisabela 5-2. Dinâmica de Conflito em Níveis Diferentes Níveis Espaciaisabela 5-2. Dinâmica de Conflito em Níveis Diferentes Níveis Espaciaisabela 5-2. Dinâmica de Conflito em Níveis Diferentes Níveis Espaciais

Escala Geográfica

Internacional

Nacional

Local (indireta)

Características

Disputas podem surgir entre países ripários sobre águas transfronteiriçasBaixa violência,mas tensões existentes entre as partes são arraigadas e difíceis de superar, resultando emmás relações políticas, gestão hídrica ineficiente e ecossistemas negligenciadosRegistrolongo e pleno de resolução de conflitos e desenvolvimento de instituições flexíveis

Disputas podem surgir entre unidades políticas subnacionais, incluindo províncias, gruposétnicos ou religiosos ou setores econômicosMaior potencial de violência do que no nívelinternacionalFundamentos para envolvimento internacional são mais difíceis, dadas asquestões de soberania nacional

Perda de meios hídricos de vida (devido à perda de água de irrigação ou ecossistemas deágua doce) pode levar a migrações politicamente desestabilizadoras para cidades ou paísesvizinhosInstabilidade local pode desestabilizar regiõesAlívio da pobreza está implicitamenteligado à melhoria das questões de segurança

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Estado do Mundo 2005

(ver Tabela 5-3); os dilemas representados porbacias como a do Danúbio (compartilhadapor 17 países) ou do Nilo (10 países) podemser fáceis de imaginar.6

O alto número de rios compartilhados,combinado com uma escassez hídrica cadavez maior para populações crescentes, levamuitos políticos e manchetes a trombetearemum porvir de “guerras hídricas.” Em 1995,por exemplo, o Vice Presidente do BancoMundial, Ismail Serageldin, adiantou que “asguerras do próximo século serão pela água.”Estes alertas apontam, invariavelmente, parao árido e hostil Oriente Médio, onde exércitosse mobilizam e se chocam por este recursoprecioso e escasso. Teorias complexas, se bemque mal-denominadas como de “imperativohídrico,” citam a água como a motivaçãofundamental de estratégias militares econquistas territoriais,particularmente nos

conflitos em andamento entre árabes eisraelenses.7

O único problema com este cenário é aausência de corroboração. Em 1951-53, enovamente em 1964-66, Israel e Síria trocaramfogo em função do projeto sírio de desviar oRio Jordão, porém o confronto final –destacando-se ataques de tanques e aviões –paralisou a construção e acabou de fato comas hostilidades relacionadas à água entre os doispaíses. Não obstante, a guerra de 1967 eclodiuquase um ano depois. A água teve pouco – ounenhum – impacto sobre a estratégia militar naviolência subseqüente entre árabes e israelenses(inclusive as guerras de 1967, 1973 e 1982).Todavia, a água foi o motivo subjacente deestresse político e um dos tópicos mais difíceisnas negociações posteriores. Em outras palavras,embora as guerras não houvessem sido travadaspela água, desacordos sobre alocação foram

TTTTTabela 5-3. Número de Pabela 5-3. Número de Pabela 5-3. Número de Pabela 5-3. Número de Pabela 5-3. Número de Países Compartilhando uma Baciaaíses Compartilhando uma Baciaaíses Compartilhando uma Baciaaíses Compartilhando uma Baciaaíses Compartilhando uma Bacia

Númerode Países

3

4

5

6

8

9

10

11

17

BaciasInternacionais

Asi (Orontes), Awash, Cavally, Cestos, Chiloango, Dnieper, Dniester, Drin, Ebro, Essequibo,Gâmbia, Garonne, Gash, Geba, Har Us Nur, Hari (Harirud), Helmand, Hondo, Ili (Kunes He),Incomati, Irrawaddy, Juba-Shibeli, Kemi, Lago Prespa, Sistema Lago Titicaca-Poopo, Lempa,Maputo, Maritsa, Maroni, Moa, Neretva, Ntem, Ob, Oueme, Pasvik, Vermelho (Song Hong),Rhone, Ruvuma, Salween, Schelde, Sena, St. John, Sulak, Torne (Tornealven), Tumen, Umbeluzi,Vardar, Volga e Zapaleri

Amur, Daugava, Elba, Indus, Komoe, Lago Turkana, Limpopo, Pantanal Lotagipi, Narva,Oder (Odra), Ogooue, Okavango, Orange, Pó, Pu-Lun-T’o, Senegal e Struma

La Plata, Neman e Vistula (Wista)

Mar de Aral, Ganges-Brahmaputra-Meghna, Jordão, Kura-Araks, Mekong, Tarim, Tigre eEufrates (Shatt al Arab) e Volta

Amazonas e Lago Chad

Reno e Zambezi

Nilo

Congo e Niger

DanúbioFONTE: Vide nota final 6.

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um impedimento para a paz.8Embora mananciais e infra-estrutura

tenham servido frequentemente comoinstrumentos ou alvos militares, nenhumanação foi à guerra especificamente por recursoshídricos desde que as cidades-nações de Lagashe Umma se defrontaram na bacia do Tigre-Eufrates em 2.500 A.C. Ao invés, de acordocom a Organização das Nações Unidas paraAlimentação e Agricultura, mais de 3.600tratados hídricos foram assinados, entre 805A.D e 1984. Embora a maioria fosserelacionada à navegação, um número crescenteao longo do tempo focou gestão hídrica,incluindo controle de enchentes, projetoshidrelétricos ou alocações em baciasinternacionais. Desde 1820, mais de 400tratados hídricos e outros acordos foramassinados, com mais da metade destesconcluídos nos últimos 50 anos.9

Pesquisadores da Universidade do Estadode Oregon compilaram um conjunto dedados de todas as interações registradas –conflituosas ou cooperativas – entre duas oumais nações provocadas pela água. Sua análisedestacou quatro importantes constatações.10

Primeiro, apesar do potencial de disputasem bacias internacionais, a incidência deconflitos graves por recursos hídricosinternacionais é superada pelo nível decooperação. Os últimos 50 anos teste-munharam apenas 37 disputas graves(envolvendo violência), com 30 destasocorrendo entre Israel e um dos seus vizinhos.Fora do Oriente Médio ocorreram apenas 5eventos graves, enquanto, durante o mesmoperíodo, 157 tratados foram negociados eassinados. O número total de eventos entrenações relacionados com a água tambémpende mais para a cooperação: 507 eventosconflituosos contra 1.228 cooperativos,

implicando que a violência relacionada com aágua não é estrategicamente racional,hidrologicamente eficaz, nem economicamenteviável.11

Segundo, apesar da retórica veemente dospolíticos – dirigida mais para seus eleitores doque seus inimigos – a maioria das açõesadotadas sobre a água são brandas. Entretodos os eventos, cerca de 43% se enquadramentre leve apoio verbal e leve hostilidadeverbal. Se adicionarmos o nível seguinte –apoio verbal oficial e hostilidade verbal oficial– os eventos verbais representam 62% dototal. Ou seja, quase dois terços de todos oseventos são apenas verbais e mais de doisterços destes não tinham sanção oficial.12

Terceiro, há mais exemplos de cooperaçãodo que de conflito. A distribuição de eventoscooperativos cobre um amplo espectro,incluindo quantidade, qualidade e desenvol-vimento hídricos, hidroenergia e gestãoconjunta. Em contraste, quase 90% doseventos relacionados a conflito referem-se àquantidade e infra-estrutura. Ademais, quasetodas as ações militares extensas (casos maisextremos de conflito) se encaixam nestas duascategorias.13

Quarto, apesar da ausência de violência, aágua atua tanto como irritante quanto comounificante. Como irritante, a água pode azedarboas relações e exacerbar más relações. Apesarda complexidade, entretanto, águas interna-cionais podem agir como unificadoras embacias com instituições relativamente fortes.

O registro histórico comprova que disputasde águas internacionais são resolvidas, mesmoentre inimigos, e mesmo quando surgemoutros conflitos. Alguns dos inimigos maisturbulentos negociaram acordos hídricos ouestão negociando, e as instituições que criaramfreqüentemente demonstraram flexibilidade,

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mesmo quando as relações são tensas.A Comissão do Mekong, por exemplo,

estabelecida pelos governos do Camboja,Laos, Tailândia e Vietnã, como uma agênciaintergovernamental em 1957, trocaram dadose informações sobre o desenvolvimento derecursos hídricos durante toda a Guerra doVietnã. Israel e Jordânia mantiveram encontrossecretos na confluência dos rios Jordão eYarmuk (que ficaram conhecidos como“conversações à mesa de piquenique”) sobrea gestão do Rio Jordão, a partir do fracassodas negociações Johnston de 1953-55, mesmoestando em guerra desde a independência deIsrael em 1948, até o tratado de 1994. (VerQuadro 5-1.) A Comissão do Rio Indussobreviveu a duas grandes guerras entre Índiae Paquistão. E todos os 10 países ripários daBacia do Nilo estão atualmente envolvidos emnegociações em nível ministerial para odesenvolvimento cooperativo da bacia, apesarda ferrenha retórica de “guerras hídricas” entrenações a montante e a jusante.14

No sul da África, foram assinados váriosacordos de bacias hidrográficas quando aregião esteve envolvida numa série de guerraslocais nos anos 70 e 80 (incluindo a “guerrado povo” na África do Sul e guerras civis emMoçambique e Angola). Embora as nego-ciações fossem complexas, os acordos pro-porcionaram raros momentos de cooperaçãopacífica entre muitos dos países. Hoje, quandoa maioria das guerras e a era do apartheidacabaram, a água é um dos alicerces de coope-

ração na região. De fato, o Protocolo sobreSistemas de Cursos de Água Partilhados, de1995, foi o primeiro protocolo assinado noâmbito da Comunidade Desenvolvimentistada África do Sul. Ripários se sujeitam anegociações duras e demoradas a fim de obterbenefícios do desenvolvimento conjunto derecursos hídricos. Assim, alguns pesquisadoresidentificaram cooperação em recursos hídricoscomo um ponto de acesso particularmenteproveitoso para construção da paz. (VerCapítulo 8.)15

Então, se a água compartilhada não conduzà violência entre nações, qual é o problema?Na realidade, complicadores como o lapsode tempo entre o início das disputas e acordosfinais, podem fazer com que questões hídricasagravem tensões. Ripários freqüentementedesenvolvem projetos unilateralmente em seuspróprios territórios, numa tentativa de evitaras complexidades políticas das partilhas derecursos. A certa altura, um dos ripários (geral-mente o mais poderoso) iniciará um projetoque afetará pelo menos um dos vizinhos.

Sem relações ou instituições conducentes àresolução de conflitos, ação unilateral podeagravar tensões e instabilidade regional,necessitando de anos ou décadas para seremsolucionadas: o tratado do Indus levou 10 anosde negociações; do Ganges, 30; e do Jordão,40. A água foi a última – e mais contenciosa –questão negociada num tratado de paz de1994, entre Israel e Jordânia, sendo relegada àcategoria de “situação final” entre Israel e ospalestinos, juntamente com questões comple-xas como refugiado e o status de Jerusalém.Durante este longo processo, a qualidade equantidade da água pode degradar até que asaúde das populações e ecossistemasdependentes seja prejudicada ou destruída. Oproblema se agrava à medida que a disputa se

O registro histórico comprova que

disputas de águas internacionais são

resolvidas, mesmo entre inimigos, e

mesmo quando surgem outros conflitos.

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QUADRO 5-1. PARTILHA DE ÁGUA ENTRE ISRAEL, JORDÂNIA E OS PALESTINOS

A escassez hídrica mais grave do mundo é a doOriente Médio. O déficit é particularmente alarmantena bacia do Rio Jordão e aqüíferos adjacentes daMargem Ocidental, onde se cruzam os interesseshídricos israelenses, palestinos e jordanianos. EmGaza e na Margem Ocidental, a disponibilidade anualde água é bem abaixo de 100 metros cúbicos deágua renovável por pessoa, enquanto Israel temmenos de 300 e Jordânia em torno de 100 metroscúbicos. Um país é geralmente considerado carentede água quando a disponibilidade é inferior a 1.000metros cúbicos.

Crescimento populacional, resultante tanto dealtas taxas de natalidade entre palestinos ejordanianos quanto da imigração para Israel,pressiona cada vez mais os já escassos recursos eaumenta o risco de conflitos relacionados à água.Colonos israelenses na Margem Ocidental e em Gazarecebem uma parcela maior da água disponível doque os palestinos, complicando ainda mais a situação.

Apesar dos temores de violência relacionada àágua, Israel tem mantido um clima de cooperaçãocom Jordânia e os palestinos sobre suas águaspartilhadas, mesmo após o início da segunda intifada,em setembro de 2000. Esta cooperação básica entreIsrael e Jordânia – sob os auspícios da ONU – seestende desde o início dos anos 50, apesar destespaíses estarem formalmente em guerra. Estainteração ajudou a criar confiança e um conjuntocompartilhado de normas e regulamentos,posteriormente formalizados no âmbito do acordode paz entre os dois países, em 1994. Conformeestipulado neste acordo, foi implantada umaComissão Hídrica Conjunta de coordenação eresolução de problemas que ajudou a solucionar osdesacordos sobre alocações.

Um acordo provisório de 1995 regula questõeshídricas israelenses-palestinas, como a proteção dossistemas de água e esgoto. A Comissão HídricaConjunta e suas subcomissões continuaram a seencontrar, apesar da violência dos últimos anos. Paraos palestinos, o acordo atual é insatisfatório sob aperspectiva de direitos e disponibilidade.Conversações para se chegar a um acordo finalformam parte de um processo global de negociaçãomas, considerando o impasse político e a continuação

QUADRO 5-1. PARTILHA DE ÁGUA ENTRE ISRAEL, JORDÂNIA E OS PALESTINOS

da violência, não deverão ser concluídas tão cedo.Não obstante, israelenses e palestinos concordamque é indispensável manter a cooperação sobre suaágua partilhada.

Duas importantes recomendações programáticaspodem ser estabelecidas deste caso. Primeiro, acooperação hídrica está intimamente ligada à política– um processo altamente complexo influenciado porconsiderações tanto domésticas quantointernacionais. Se os doadores não realizarem umaanálise completa do contexto político,provavelmente não irão entender como a água está,às vezes, subordinada a prioridades políticas maisimportantes e é utilizada como instrumento político.

Segundo, agências doadoras e organizaçõesinternacionais podem desempenhar um papelimportante se estiverem dispostas a oferecer apoiode longo prazo para o estabelecimento decooperação para água compartilhada. Os doadorescaracteristicamente desejam ver resultados tangíveisdentro de uma curta escala de tempo. Todavia, éessencial entender que há riscos envolvidos,obstáculos ocasionais ocorrerão e benefícios não irãose materializar rapidamente. Os doadores precisarãose engajar num “financiamento de processo” de apoionão a um projeto comum de desenvolvimento comum ciclo de 2-4 anos, e sim a um processo que podecobrir 10-25 anos. No caso Israel- Jordânia, aOrganização de Supervisão da Trégua da ONU, queagiu como uma organização “guarda-chuva” paradiscussões sobre coordenação hídrica apesar daausência de um acordo de paz, desempenhou umpapel crucial.

Embora exista a possibilidade de surgirem maisconflitos de interesse no futuro sobre as águas dabacia do Rio Jordão, a gestão hídrica – com suporteadequado – proporciona uma janela de oportunidadepara uma cooperação mais ampla nesta regiãoconturbada do mundo.

- Anders JägerskogGrupo de Especialistas sobre Questões

Desenvolvimentistas Ministério de Relações Exteriores,Suécia

___________________________________________________________________________________________fonte: Vide nota final 14. As opiniões expressas são doautor e não do Ministério de Relações Exteriores daSuécia.

intensifica; os ecossistemas do Baixo Nilo, BaixoJordão e tributários do Mar de Aral já foramconsiderados por alguns como “perda total,”produto infeliz da intratabilidade humana.16

Quando iniciativas unilaterais produzemtensões internacionais, fica mais difícil sustentarum comportamento cooperativo. À medidaque aumenta a desconfiança entre ripários,

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irrompem ameaças e disputas através defronteiras, como se viu na Índia e Paquistão,ou Canadá e Estados Unidos. Desconfiança etensões (mesmo que não levem a conflitosabertos) podem prejudicar desenvolvimentosregionais ao impedir projetos conjuntos einfra-estrutura mutuamente benéfica. Uma dasfontes mais importantes de água tanto paraisraelenses quanto para palestinos, o Aqüíferoda Montanha, está ameaçada pela poluição deesgotos não tratados. O conflito existenteimpediu iniciativas de doadores para aconstrução de estações de tratamento deesgotos na Palestina, iniciando um círculovicioso à medida que a poluição da águasubterrânea aumenta a escassez da águaregional e, por sua vez, agrava o conflito entreisraelenses e palestinos.17

Disputas intra Nações

A literatura sobre águas transfronteiriçasfreqüentemente trata as entidades políticascomo monólitos homogêneos: “Canadásente...” ou “Jordânia deseja...” Recentemente,analistas identificaram os perigos destaabordagem, mostrando como subgrupos deatores nacionais possuem valores e prioridadesdiferentes para a gestão hídrica. Na realidade,a história da violência relacionada à água incluiincidentes entre tribos, setores de uso da água,populações rurais e urbanas e estados ouprovíncias. Algumas pesquisas até sugerem queà medida que a escala geográfica cai, aprobabilidade e intensidade de violênciaaumentam. Em todo o mundo, questõeshídricas locais giram em torno de valoresbásicos que, freqüentemente, remontam avárias gerações. Irrigadores, populaçõesindígenas e ambientalistas, por exemplo,podem, todos, considerar a água como ligada

a seu estilo de vida, cada vez mais ameaçadopor novas demandas para cidades ehidroenergia.18

Conflitos hídricos internos levaram aconfrontos entre usuários a montante e ajusante, ao longo do Rio Cauvery, na Índia, eentre americanos nativos e colonos europeus.Em 1934, o estado interiorano do Arizonaconstituiu uma força naval (um ferryboat) eenviou a milícia estadual para impedir umprojeto de barragem e desvio no RioColorado. Disputas relacionadas à água podemtambém engendrar também desobediênciacivil, atos de sabotagem e manifestaçõesviolentas. Na província chinesa de Shandong,milhares de agricultores entraram em choquecom a polícia em julho de 2000, devido aoprojeto do governo de desviar a água deirrigação da agricultura para as cidades eindústrias. Várias pessoas morreram nasmanifestações. E de 1907 a 1913, no ValeOwens, na Califórnia, os agricultoresbombardearam repetidamente uma adutoraque desviava água para Los Angeles.19

A instabilidade nacional também pode serprovocada por uma gestão falha ou injustade serviços hídricos. As disputas surgem sobreconexões em subúrbios ou zonas rurais,responsabilidade pelo serviço e especialmentetarifas. Na maioria dos países, o estado éresponsável pelo fornecimento de águapotável; mesmo quando concessões sãooutorgadas a empresas privadas, o estadogeralmente continua responsável pelo serviço.As disputas sobre a gestão do abastecimento,

Ação unilateral pode agravar tensões e

instabilidade regional, necessitando de

anos ou décadas para serem solucionadas

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portanto, surgem geralmente entrecomunidades e autoridades estaduais. (VerQuadro 5-2.) Protestos ocorrem quandousuários suspeitam que os serviços sãogeridos de forma corrupta ou que recursospúblicos estão sendo desviados em proveitopróprio.20

Impactos Locais

Quando a qualidade da água se degradaou a quantidade diminui, afeta a saúde daspessoas e destrói meios de vida quedependem dela. A agricultura consome doisterços da água mundial e é a maior fonte desustento, especialmente nos países emdesenvolvimento, onde uma grande parcelada população depende da agricultura desubsistência. A lista de Sandra Postel de paísesque dependem da água de irrigação cada vezmais escassa, inclui oito que atualmentepreocupam a comunidade de segurança:Bangladesh, China, Egito, Índia, Irã, Iraque,Paquistão e Uzbequistão. Quando o acesso àágua de irrigação é interrompido, grupos dehomens desempregados e insatisfeitospodem ser forçados a deixar o campo e sedeslocar para as cidades – um notóriocontribuidor para instabilidade política. Amigração pode provocar tensões entrecomunidades, especialmente quando aumentaa pressão sobre recursos já escassos, e amigração transfronteiriça pode contribuirpara tensões inter-nações. (Ver Capítulo 2.)21

Assim, problemas com a água podemcontribuir para causar instabilidade local, oque, por sua vez, pode desestabilizar umanação ou toda uma região. Desta formaindireta, a água contribui para disputasinternacionais e nacionais, embora as partesnão entrem em luta explicitamente pela água.

Durante os 30 anos que Israel ocupou a Faixade Gaza, por exemplo, a qualidade da águadeteriorou constantemente, a água salgadainfiltrou-se nos poços locais e doençasrelacionadas à água causaram perdas entreos habitantes. Em 1987, a segunda intifadacomeçou no Faixa de Gaza, e o levante logose alastrou pela Margem Ocidental. Emboraseja simplista alegar que a perda de qualidadeda água tenha causado a violência, ela semdúvida exacerbou uma situação já sensível aocausar danos à saúde e meios de vida..22

Um exame das relações entre Índia eBangladesh demonstra que as instabilidadeslocais podem surgir de disputas hídricasinternacionais, vindo a agravar tensõesinternacionais. Nos anos 60, a Índia construiuuma barragem em Farakka, desviando umaparte do Ganges de Bangladesh para removera sedimentação do porto de Calcutá, 160quilômetros ao sul. Em Bangladesh, a vazãomenor drenou a água superficial esubterrânea, impediu a navegação, aumentoua salinidade, degradou pesqueiros e colocouem risco o abastecimento de água e a saúdepública, forçando alguns habitantes amigrarem – muitos, ironicamente, para aÍndia.23

Assim, embora não tenha ocorridonenhuma “guerra hídrica,” a ausência de águadoce pura ou a competição pelo acesso arecursos hídricos causou, ocasionalmente,instabilidade política intensa que resultou emviolência aguda, embora em pequena escala.Acesso insuficiente à água é uma das causasprincipais de perda de meios de vida,alimentando assim conflitos relacionados ameios de sustento. Proteção ambiental, paz eestabilidade são difíceis de seremconquistadas num mundo onde tantossofrem de pobreza.24

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QUADRO 5-2. CONFLITOS SOBRE GESTÃO DE SERVIÇOS HÍDRICOS: O CASO DE COCHABAMBA

Questões de gestão de abastecimento de águapodem levar a conflitos violentos, conforme foidemonstrado pelas confrontações que irromperamem 2000 em Cochabamba, terceira maior cidade daBolívia, após a privatização da empresa estatal deágua. Cochabamba há muito vinha sofrendo escassezde água e um fornecimento insuficiente e irregular. Naexpectativa de melhoria dos serviços e ampliação dasligações domiciliares, o Governo da Bolívia assinou,em setembro de 1999, um contrato de concessãode 40 anos com o consórcio internacional privadoÁguas Del Tunari (AdT).

Em janeiro de 2000, a tarifa sofreu um aumentodrástico; alguns domicílios tiveram que pagar umaparcela significativa de renda familiar mensal para seuabastecimento. Os consumidores, sentindo queestavam simplesmente pagando mais para o mesmoserviço ruim, reagiram com greves, bloqueio de ruase outras formas de manifestação que paralisaram acidade durante quatro dias em fevereiro de 2000.

Embora o aumento da conta de água tenhaprovocado as manifestações, algumas pessoastambém se opuseram a uma lei que ameaçava ocontrole público dos sistemas rurais. A prolongadaescassez havia encorajado o desenvolvimento defontes alternativas já bem estabelecidas. Nosmunicípios rurais na periferia de Cochabamba,cooperativas agrícolas perfuraram seus própriospoços e utilizaram um mercado informal para a águacom base num sistema antigo de direitos depropriedade. Nos termos do contrato de concessão,a AdT detinha o uso exclusivo dos recursos hídricos

em Cochabamba, como também quaisquer fontesfuturas necessárias para abastecer a cidade. Tambémpossuía direitos exclusivos para prestar serviços eexigir de consumidores potenciais ligação ao seusistema. A população rural temia perder seus direitostradicionais e que a AdT viesse a cobrar pela água deseus próprios poços.

Agricultores de municípios vizinhos juntaram-se àmanifestação em Cochabamba, que se alastrou paraoutras regiões da Bolívia. Meses de distúrbios civisculminaram em abril de 2000, quando o governodeclarou estado de sítio em todo o país, enviandotropas para Cochabamba. Vários dias de violênciaresultaram em mais de cem pessoas feridas umapessoa morta. A calma só foi restabelecida depoisque o governo concordou em revogar a concessãoda AdT e devolver a gestão dos serviços de água aomunicípio.

Todavia, o serviço continua insatisfatório. Muitosbairros recebem água ocasionalmente e o lençolfreático do vale continua caindo. Embora muitostenham considerado o cancelamento da concessãocomo uma vitória para o povo, não solucionou seusproblemas de água. Enquanto isso, a AdT entroucom uma ação contra o governo boliviano no tribunalcomercial do Banco Mundial, o Centro Internacionalpara Resolução de Disputas, em Washington, D.C.De acordo com o San Francisco Chronicle, oconsórcio pede US$ 25 milhões de indenização pelocancelamento do contrato. O caso continua subjudice.___________________________________________________________________________________________fonte: Vide nota final 20.

Capacidade Institucional:O Cerne das Disputas e

Cooperação Hídricas

Muitos analistas que escrevem sobre políticahídrica, especialmente aqueles que enfocamexplicitamente a questão de conflitos hídricos,partem da premissa que a escassez deste recursocrucial conduz as pessoas a conflitos. Pareceintuitivo: quanto menos água houver, quandomais preciosa for considerada, maiorprobabilidade haverá de que as pessoas a

disputem. Pesquisas recentes sobre osindicadores de conflitos hídricos trans-fronteiriços, todavia, não constataram quaisquerparâmetros físicos estatisticamente significativos– climas áridos não eram mais propensos aconflitos do que climas úmidos e, na realidade,a cooperação internacional aumentava duranteestiagens. Na verdade, nenhuma variável semostrou causal: democracias eram tãosusceptíveis a conflitos quanto autocracias,países ricos quanto pobres, países de altadensidade populacional quanto outros menospopulosos e países grandes quanto pequenos.25

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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

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Quando pesquisadores da Universidade doEstado de Oregon verificaram maisatentamente as práticas de gestão hídrica nospaíses áridos, constataram que a capacidadeinstitucional era a chave para o sucesso. Paísesnaturalmente áridos cooperam sobre a água:para viver em ambiente de escassez hídrica, aspessoas desenvolvem estratégias institucionais– tratados formais, grupos informais detrabalho ou, em geral, boas relações – para seadaptarem à situação. Os pesquisadorestambém constataram que a probabilidade deconflito aumenta significativamente caso doisfatores entrem em jogo. Primeiro, o conflitoé mais provável se o cenário físico ou políticoda bacia sofre uma mudança grande ou súbita,como a construção de uma barragem,esquema de irrigação ou realinhamentoterritorial. Segundo, o conflito é mais provávelcaso as instituições existentes não sejam capazesde absorver e gerir efetivamente aquelamudança.26

Instituições de gestão de recursos hídricosprecisam ser fortes para equilibrar interessescompetitivos e gerir a escassez hídrica (que éfreqüentemente o resultado de má gestãoanterior), e elas próprias podem até se tornarum pomo de discórdia. Em bacias hidro-gráficas internacionais, as instituições de gestãohídrica tipicamente falham na gestão deconflitos quando não existe um tratado queestabeleça os direitos e responsabilidades decada nação, nem acordos ou esquemascooperativo implícitos.27

Igualmente, em nível nacional e municipal,não é a falta de água que conduz a conflitos, esim a forma pela qual é regida e manejada.Muitos países precisam de políticas mais fortespara regulamentar o uso da água e propor-cionar uma gestão eqüitativa e sustentável.Especialmente nos países em desenvol-

vimento, as instituições de gestão hídricafreqüentemente carecem de recursos humanos,técnicos e financeiros para desenvolver pro-gramas de gestão abrangente e assegurar suaimplementação.

Ademais, em muitos países a tomada dedecisão é distribuída entre diferentesinstituições responsáveis pela agricultura, pesca,abastecimento de água, desenvolvimentoregional, turismo, transportes ou conservaçãoe meio ambiente, e assim diferentesabordagens de gestão atendem objetivoscontraditórios. Práticas formais e usuais degestão também podem ser contraditórias,como demonstrado em Cochabamba, ondeas disposições formais da Lei sobre ServiçosHídricos da Bolívia, de 1999, conflitavam como uso costumeiro da água subterrânea porparte das associações de fazendeiros.28

Em países sem um sistema formal delicenças de uso de água ou aplicação emonitoramento adequados, usuários maispoderosos podem neutralizar os direitoscostumeiros de comunidades locais. Seinstituições alocam a água de forma desigualentre grupos sociais, o risco de protestos econflitos aumenta. Na África do Sul, o regimedo apartheid alocou água para favorecer aminoria branca. Esta “marginalização ecológica”acentuou o descontentamento da populaçãonegra e contribuiu para a instabilidade social,culminando com o fim do regime.29

As instituições também podem distribuircustos e benefícios de modo desigual: asreceitas de grandes projetos de infra-estrutura,como barragens ou esquemas de irrigação,geralmente beneficiam apenas uma pequenaelite, relegando às comunidades locais aadministração dos impactos ambientais esociais resultantes, quase sempre com poucacompensação, (Ver Quadro 5-3.)30

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As várias partes envolvidas em conflitoshídricos freqüentemente têm percepçõesdiferentes quanto a direitos legais, naturezatécnica do problema, custo da solução ealocação de custos entre os interessados. Fontesconfiáveis de informação, aceitáveis para todosos interessados, são portanto essenciais paraqualquer esforço conjunto. Isto não só permiteque as partes que compartilham a água tomemdecisões lastreadas num entendimentopartilhado, como também ajuda a criarconfiança.31

Um banco de dados confiável, incluindodados meteorológicos, hidrológicos esocioeconômicos, é um instrumentofundamental para uma gestão hídrica abalizadae perceptiva. Dados hidrológicos e meteo-rológicos coletados a montante são cruciaispara a tomada de decisão a jusante. E ememergências, como enchentes, esta informaçãoé necessária para proteção da saúde humana eambiental. Tensões entre diferentes usuáriospodem surgir quando não há troca deinformação. Disparidades na capacidade dosinteressados gerarem, interpretarem elegitimizarem dados, podem levar àdesconfiança daqueles mais bem informadose com melhores sistemas de apoio. Nas baciasdos rios Incomati e Maputo, o monopólio daÁfrica do Sul sobre a geração de dados crioutamanho desconforto em Moçambique, ajusante, que levou ao colapso do Acordo dePigs’ Peak, e Moçambique utilizou este impassenas negociações para começar a desenvolverseus próprios dados.32

Avançando em Direção àGestão Hídrica Cooperativa

Embora haja muitas ligações entre água econflito, e interesses competitivos sejam

inerentes à gestão hídrica, a maioria dasdisputas são resolvidas de forma pacífica ecooperativa, mesmo quando o processo denegociação é longo. Os mecanismos de umagestão hídrica cooperativa – provavelmente aabordagem mais avançada – podem anteciparconflitos e resolver disputas latentes, contantoque todos os interessados estejam incluídosno processo decisório com meios (infor-mação, pessoal capacitado e apoio financeiro)para agirem como parceiros iguais. Osmecanismos de gestão cooperativa podemreduzir o potencial de conflito ao:

Proporcionar um fórum para nego-ciações conjuntas e, desta forma, assegurar quetodos os interesses existentes e potencialmenteconflitantes sejam levados em conta durante atomada de decisão;

Considerar diferentes perspectivas einteresses a fim de identificar novas opçõesde gestão e oferecer soluções ganha-ganha;

Criar confiança através da colaboração einvestigação conjunta; e

Tomar decisões com maior probabilidadede aceitação por todos os interessados,mesmo que não se chegue a um consenso.33

Em nível local, mecanismos comunitáriostradicionais já estão ajustados às condiçõesespecíficas locais e, assim, são mais facilmenteadotados pela comunidade. Exemplos incluemo comitê chaffa, uma instituição de gestãohídrica tradicional do povo Boran no Chifre

Em bacias hidrográficas internacionais, as

instituições de gestão hídrica tipicamente

falham na gestão de conflitos quando não

existe um tratado que estabeleça os e

direitos responsabilidades de cada nação,

nem acordos implícitos.

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da África, ou o Parlamento Arvari, um órgãoinformal de tomada de decisão e resoluçãode conflitos, baseado nos costumes tradi-cionais do pequeno Rio Arvari, em Rajastan,na Índia. Em nível internacional, comissões debacias hidrográficas com representantes detodas as nações ripárias têm se envolvido comsucesso na gestão conjunta de recursos hídricosripários. Especialmente em bacias trans-fronteiriças, a conquista de cooperação temsido um processo prolongado e custoso.Reconhecendo isto, o Banco Mundial

concordou em facilitar o processo de nego-ciação da Iniciativa da Bacia do Nilo por 20anos.34

A capacitação – para gerar e analisar dados,desenvolver projetos sustentáveis de gestãohídrica, utilizar técnicas de resolução deconflitos ou encorajar a participação dosinteressados – deverá visar instituições degestão hídrica, organizações não-gover-namentais locais, associações de usuários ougrupos religiosos. Em nível internacional, ofortalecimento de técnicas de negociação de

Desde a II Guerra Mundial, cerca de 45.000 grandesbarragens foram construídas, gerandoaproximadamente 20% da eletricidade mundial eproporcionando irrigação a campos que produzemcerca de 10% do alimento mundial.

Todavia, para as 40-80 milhões de pessoas cujasvidas e sustento estavam enraizadas nas margens evales de rios selvagens, a construção de barragensalterou profundamente a saúde, economia e culturade comunidades e nações inteiras. Uma vez que asbarragens geralmente são localizadas próximas anações indígenas, no final são as minorias rurais eétnicas, distantes dos corredores centrais do poder,que são forçadas a arcar com o ônus. Planos dedesenvolvimento insensatos, despejos forçados ereassentamentos com indenizações inadequadasgeram condições para conflitos que ameaçam asegurança de direitos individuais e grupais à cultura,auto-determinação, meios de vida e à própria vida.

Esta dinâmica está ilustrada no caso da BarragemChixoy, na Guatemala, que gera 80% da eletricidadedeste país. Foi projetada e desenvolvida pelo INDE(Instituto Nacional de Eletrificação) e financiada emgrande parte pelo Banco Inter-Americano deDesenvolvimento e Banco Mundial. O projeto foiaprovado e a construção iniciada sem aviso àpopulação local, realização de um levantamentoabrangente dos vilarejos afetados ou consideraçãoquanto a indenizações e reassentamentos para os3.400 habitantes, quase todos Maias. A ditaduramilitar de Lucas Garcia declarou a Barragem Chixoy eseu entorno como zona militarizada em 1978.

Alguns habitantes aceitaram as ofertas dereassentamento mas receberam habitação de piorqualidade, área menor e terra infértil. Outros se

recusaram a sair e tentaram negociar condições maisjustas. As tensões aumentaram quando o governodeclarou os habitantes restantes subversivos,apreendeu registros das promessas dereassentamento e escrituras da terra, e matou líderescomunitários. Em seguida a um segundo golpe militarem março de 1982, o General Rios Montt iniciou umapolítica de “terra arrasada” contra a população Maia.Quando a construção da barragem foi concluída e aságuas começaram a subir, os habitantes foramexpulsos sob a mira de fuzis e as casas e camposqueimados. Massacres se seguiram, inclusive nosvilarejos que deram refúgio aos sobreviventes. Novilarejo de Rio Negro, por exemplo, 487 pessoas –metade da população – foi assassinada em setembrode 1982.

Após os Acordos de Paz de Oslo, em 1994 e otérmino da guerra civil da Guatemala, uma série deinvestigações rompeu o silêncio sobre os massacres.Em 1999, uma comissão patrocinada pelas NaçõesUnidas concluiu que mais de 200.000 civis Maiashaviam sido mortos, que atos de genocídio foramcometidos contra comunidades Maias específicas, eque o Governo da Guatemala era responsável por93% das violações de direitos humanos e atos deviolência contra civis.

Hoje, esta questão está longe de estar resolvida.O fracasso em proporcionar terra cultivável emoradia de tamanho e qualidade equivalente para osreassentados gerou uma pobreza aguda, fomegeneralizada e altas taxas de má-nutrição. Ascomunidades que foram excluídas do programa dereassentamento também enfrentam uma gama deproblemas. Abertura das comportas ocorrem semaviso prévio, e as enchentes decorrentes destroem

QUADRO 5-3. CONTROLANDO RIOS SELVAGENS: QUEM PAGA O PREÇO?

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lavouras, afogam o gado e, às vezes, matam pessoas.A maioria dos habitantes de antigas vilas pesqueiras,com seus meios de vida destruídos, se voltou para otrabalho migrante. Comunidades a montante viramparte de suas terras agrícolas serem submersas e oacesso à terras, estradas e mercados regionaisbloqueado. Não há mecanismos para as pessoasafetadas reclamarem ou negociarem ajuda.

As comunidades afetadas pela Barragem Chixoy sereuniram para discutir problemas e estratégiascomuns, testemunharam perante comissões daverdade e, com ajuda de advogados nacionais einternacionais, estão se empenhando em documentaro impacto da barragem. Em setembro de 2004,cerca de 500 agricultores Maias ocuparam abarragem e ameaçaram cortar a energia caso nãofossem indenizados pela perda das terras e vidas.Numnúmero cada vez maior de casos, os esforços depopulações afetadas por barragens paradocumentarem experiências e reclamarem por danose perdas, obtiveram sucesso em produzir algumaremediação. Na Tailândia, onde a Barragem Pak Mundestruiu pesqueiros e meios de vida de dezenas demilhares de pessoas, uma década de protestos forçouo governo a desativar temporariamente a barragem.

Os aldeões prejudicados realizaram umlevantamento do impacto da barragem sobre suasvidas e o ecossistema do Rio Mun, documentando oretorno de 156 espécies de peixe para o rio após aabertura das comportas e subseqüente revitalizaçãoda economia pesqueira e da comunidade. Estasavaliações desempenharam um papel chave na

decisão de operar a barragem em base sazonal.Numa segunda barragem no Rio Mun, a Rasi Salai,

populações deslocadas implantaram um vilarejo deprotesto em 1999, recusando-se a sair enquanto aságuas do reservatório cobriam seu acampamento. Seuprotesto não violento e disposição de enfrentar aiminência de afogamento sacudiram a nação. Em julhode 2000, as comportas da Rasi Salai foram abertaspara permitir a recuperação do meio ambiente eavaliação de impactos, e continuam abertas até hoje.

Na documentação dos muitos fracassos naobservação adequada de direitos e recursos, ascomunidades afetadas por barragens assumiram aliderança no desafio às premissas que orientamtomadas de decisão desenvolvimentistas e naexigência de responsabilidades institucionais. Suasexigências por “reparações” são muito mais do queclamores por indenização. São exigências pararemediação significativa, o que significa que oconsentimento livre, prévio e informado doshabitantes seja obtido antes da aprovação dofinanciamento e início da construção da barragem,que avaliações científicas e projetos sejamdesenvolvidos com a participação igualitária dosmembros das comunidades afetadas, que governos efinanciadores respeitem os direitos dos povosindígenas à auto-determinação – inclusive o direito dedizer não, e que novos projetos não sejam financiadosaté que todos os problemas pendentes de projetosanteriores tenham sido resolvidos.

- Barbara Rose JohnstonCenter for Political Ecology,Santa Cruz, Califórnia.

Fonte: Vide nota final 30.ripários menos poderosos poderá ajudar aevitar conflitos. Em nível local, ofortalecimento da capacidade de gruposexcluídos, marginalizados ou fracos para aarticulação enegociação de seus interesses,ajudará a envolvê-los numa gestão hídricacooperativa. O Projeto “Cada Rio Tem SeuPovo,” na bacia do Okavango, por exemplo,tem a finalidade de aumentar a participaçãodas comunidades e outros interessados locaisna tomada de decisão e gestão da bacia,através de atividades educacionais e detreinamento.35

A prevenção de conflitos graves requer acomunicação ou consulta explícita a todos osinteressados, como nações ou sociedades a

jusante, antes da tomada de decisão gestora.O processo de identificação de todos osinteressados pertinentes e suas posições écrucial para estimar, e conseqüentementeadministrar, os riscos de conflito. Sem umaparticipação pública extensa e regular, apopulação em geral poderá rejeitar propostasde projetos de infra-estrutura. Por exemplo, adecisão de construir a Barragem Hainburg, noDanúbio, foi anunciada em 1983, após umaparticipação pública limitada. Gruposambientais e outras organizações da sociedadecivil, apoiados pela população, ocuparam ocanteiro da obra e conseguiram paralisar aconstrução. Subseqüentemente, o local foitransformado num parque nacional.36

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A gestão hídrica cooperativa é uma questãodesafiadora que requer tempo e compromisso.A participação extensa de interessados nemsempre é viável; em alguns casos, pode aténem ser recomendável. Em qualquer escalade gestão hídrica, se o nível de disputa formuito alto e as disparidades muito grandes,as partes conflitantes provavelmente nãochegarão a um consenso e podem até recusara participar em atividades de gestãocooperativa. Nestes casos, a confiança e me-didas de obtenção de consenso, comotreinamento conjunto ou investigação conjunta,ajudarão na tomada de decisão cooperativa.

Medidas anticonflito envolvendo terceiros,tais como mediação, facilitação ou arbitragem,ajudam nos casos de disputas abertas sobregestão de recursos hídricos. Partes relacionadas,como conselheiros, mulheres ou especialistashídricos, obtiveram sucesso em iniciar acooperação quando os grupos em conflitonão puderam se reunir. A Iniciativa de PazWajir, liderado por mulheres, por exemplo,ajudou a reduzir o conflito violento entrepastores no Quênia, onde o acesso à água es-tava em disputa. Em alguns casos altamentecontenciosos, como da Bacia do Nilo, um“modelo de elite” que busca consenso entrerepresentantes de alto nível antes de encorajaruma participação mais ampla, obteve algumsucesso no desenvolvimento de uma visãocompartilhada para gestão da bacia. A inte-gração efetiva da participação pública é hojeo desafio básico para implementação a longoprazo de esforços de negociação da elite.37

A gestão hídrica é, por definição, gestão de

conflito. Com toda a parafernália do SéculoXXI – modelação dinâmica, sensoriamentoremoto, sistemas de informação geográfica,dessalinização, biotecnologia ou gestão dedemanda – e a recém-descoberta preo-cupação com globalização e privatização, ocerne das disputas hídricas ainda diz respeitoa pouco mais do que a abertura de comportasde desvio ou lixo flutuando rio abaixo.Entretanto, qualquer um que tentar gerirconflitos relacionados com a água deverá terem mente que, ao invés de ser simplesmenteoutro insumo ambiental, a água é comumentetratada como questão de segurança, dádivada natureza ou ponto focal da sociedade local.As disputas, portanto, são mais do que“simples” lutas por uma quantidade de umrecurso; são argumentos sobre atitudes,significados e contextos conflitantes.

Obviamente, não há garantia que o futuroserá como o passado; os mundos da água edos conflitos estão passando por mudançaslentas porém constantes. Um número semprecedentes de pessoas não tem acesso a umsuprimento seguro e estável de água. Á medidaque cresce a exploração dos mananciais mun-diais, a qualidade se torna um problema maisgrave do que a quantidade, e o consumo daágua está sendo desviado para fontes menostradicionais como aqüíferos fósseis pro-fundos, recuperação de água servida e trans-ferências inter-bacias. Os conflitos, também,estão se tornando menos tradicionais, movidoscada vez mais por pressões internas ou locaisou, mais sutilmente, pela pobreza e insta-bilidade. Estas mudanças indicam que asdisputas hídricas do futuro poderão ser bemdiferentes das de hoje.

Por outro lado, a água é um caminhoprodutivo para criação de confiança, coope-ração e também para prevenção de conflito,

O cerne das disputas hídricas ainda diz

respeito a pouco mais do que a

abertura de uma comporta de desvio

ou lixo flutuando rio abaixo.

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mesmo em bacias particularmente conten-ciosas. Em alguns casos, a água proporcionaum dos poucos caminhos para o diálogonavegar por conflitos bilaterais ásperos. Emregiões politicamente instáveis, a água éfreqüentemente essencial para negociações dedesenvolvimento regional que servem comoestratégias de facto para prevenção de conflito.A cooperação ambiental – especialmente nagestão de recursos hídricos – foi identificadacomo um catalizador potencial parapacificação. (Ver Capítulo 8.)38

Até hoje, as tentativas de traduzir asconclusões dos debates sobre meio ambientee conflitos num arcabouço positivo e práticode políticas para cooperação ambiental e paz

sustentável mostram alguns sinais promissores,mas ainda não foram amplamente discutidasou praticadas. Mais pesquisa poderá elucidarcomo a água – sendo internacional, indis-pensável e emocional – poderá servir comouma pedra angular para criação de confiançae ponto potencial de acesso à paz. Uma vezque as condições que determinam se a águacontribui para conflito ou para cooperaçãoforem melhor entendidas, a integração ecooperação mutuamente benéficas em tornode recursos hídricos poderão ser utilizadasmais eficazmente para obstar conflitos e apoiaruma paz sustentável entre nações e gruposdentro das sociedades.

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Riqueza Natural e ConflitoRecursos naturais abundantes – comopetróleo, minerais, metais, diamantes,madeira e produtos agrícolas, inclusivecultivo de drogas – fomentaram um grandenúmero de conflitos violentos. A exploraçãode recursos desempenhou um papel empraticamente um quarto das cerca de 50guerras e conflitos armados dos últimosanos. Mais de 5 milhões de pessoasmorreram em conflitos relacionados aosrecursos naturais durante os anos 90. Pertode 6 milhões fugiram para países vizinhos, ealgo em torno de 11 a 15 milhões depessoas ficaram desalojadas dentro de seuspróprios países.1

A receita obtida pela exploração,freqüentemente ilícita, de recursos naturaisem zonas de guerra, financiou um amplosuprimento de armas para várias facçõesarmadas e enriqueceu um punhado depessoas – déspotas, autoridadesgovernamentais corruptas e empresáriosinescrupulosos. Porém, para a grandemaioria das populações locais, essesconflitos trouxeram uma torrente deviolações de direitos humanos, desastreshumanitários e destruição ambiental,ajudando a levar esses países ao nível maisbaixo dos índices de desenvolvimentohumano.2

Em lugares como Afeganistão, Angola,Camboja, Colômbia e Sudão, pilhagem derecursos permitiu que a continuação deconflitos violentos que resultaram,originalmente, de injustiça ou lutasseparatistas e ideológicas. A receita oriunda

da exploração de recursos substituiu osuporte dado a governantes e gruposrebeldes por patronos superpotentes quedesapareceram completamente com o fimda guerra fria. Em lugares como Serra Leoaou República Democrática do Congo,grupos predatórios iniciaram violência nãonecessariamente para assumir o controle dogoverno, mas como um modo de controlarum recurso desejado.3

Onde o governo é autoritário e corrupto,a extração de um recurso comercial podetambém se tornar uma fonte de conflito. Osbenefícios econômicos enriquecem somenteuma pequena elite doméstica e ascompanhias multinacionais, enquanto apopulação local é sobrecarregada com umasérie de problemas sociais, de saúde eambientais. Por todo globo, comunidadeslocais confrontam companhias de petróleo,mineradoras e madeireiras. Conflitosviolentos já ocorreram em países comoNigéria (onde mais de 1.000 pessoas foramassassinadas, em 2004), Colômbia, ilha deBougainville em Papua Nova Guiné, e aprovíncia de Aceh, na Indonésia. 4

Finalmente, as tensões e disputas surgemquando os grandes consumidores derecursos disputam o acesso e controle. Ahistória do petróleo, particularmente, é umade intervenções militares e outras formas deinterferência estrangeira, das quais a invasãodo Iraque é somente o último capítulo. Àmedida que a demanda por petróleo setorna maior, um novo grupo de rivalidadesentre grandes poderes está emergindo.5

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Estados Unidos,Rússia e Chinaestão apoiandoplanoscompetitivos deoleodutos para osrecursos doCáspio, e China eJapão estão forçando rotas de exportaçãomutuamente exclusivas na sua disputa peloacesso ao petróleo siberiano. Na África, aFrança e os Estados Unidos estãomanobrando por influência, aprofundandolaços militares com os regimes autoritáriosdo Congo-Brazaville, Gabão e Angola. AChina está procurando ampliar a ingerênciade suas companhias de petróleo,particularmente no Sudão, e trabalhandopara aumentar sua influência política naÁfrica e Oriente Médio. Soldados dosEstados Unidos patrulham o Delta doNiger, rico em petróleo e mergulhado naviolência, juntamente com suascontrapartidas nigerianas e ajudam aproteger um oleoduto colombiano deexportação contra ataques de rebeldes.6

Países ricos em recursos deixam muitasvezes de investir, adequadamente, em áreassociais e infra-estrutura pública vitais. Masos dividendos de recursos ajudam seuslideres a se manter no poder, mesmo semlegitimação popular – pelo financiamentode apadrinhamento e fortalecimento de umaparato de segurança interna para eliminardesafios a seu poder. 7

Finalmente, uma série de conflitos – na

Serra Leoa,Libéria e Angola– terminaram,mas outroscontinuam. NaRepúblicaDemocrática doCongo, as forças

estrangeiras invasoras que invadiram o paísem 1998 se retiraram, no entanto aindacontinua a luta entre várias facçõesdomésticas armadas, sendo estabelecidasredes ilegais complexas e forças de proteçãoque continuam a explorar os recursosnaturais.8

A enorme expansão do comércio e redesfinanceiras mundiais tornou o acesso degrupos beligerantes a mercados chave,relativamente fácil. Eles têm poucadificuldade em estabelecer redesinternacionais de contrabando e de evadirembargos internacionais, dado o grau decumplicidade entre certas companhias emuitas vezes controles alfandegários poucorigorosos nas nações importadoras.9

Nos últimos cinco anos,aproximadamente, a consciência dos laçosestreitos entre extração de recursos,subdesenvolvimento e conflito cresceurapidamente. Movimentos de grupos dasociedade civil e relatórios de investigaçãodos painéis de especialistas das NaçõesUnidas lançaram luz nestas conexões,tornando pelo menos, um pouco maisdifícil para “recursos de conflito,” comodiamantes, serem vendidos nos mercados

Garimpeiros de diamantes, Serra Leoa

RIQUEZA NATURAL E CONFLITO

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mundiais. Para desencorajar operaçõesilícitas, os fluxos de receita proveniente daextração de recursos precisam se tornarmais transparentes, mas governos, empresase instituições financeiras muitas vezes aindanegligenciam suas responsabilidades.10

Sistemas de identificação de mercadoriastambém são igualmente importantes. Naindústria de diamantes foram estabelecidosesquemas de certificação nacional e umesquema de certificação global padronizado.Mas o conjunto de regras resultantes aindasofre da falta de monitoramentoindependente e muito fica na dependênciade medidas espontâneas. Esforços estãosendo envidados pela União Européia paraestabelecer um sistema de certificação parasuas importações de madeira tropical. –metade da qual está ligada a conflitosarmados ou ao crime organizado. 11

Os recursos naturais continuarão aalimentar conflitos mortais, enquanto associedades consumidoras importammercadorias com pouca preocupação comsua origem ou condições em que foramproduzidas.Alguns grupos da sociedade civilprocuraram aumentar a consciência doconsumidor e compelir empresas a negociar

mais eticamente, através de relatóriosinvestigativos e através de “delatar eembaraçar” corporações específicas.Empresas eletrônicas, por exemplo, forampressionadas no sentido de examinaremseus estoques de coltan (columbita-tantalita),um ingrediente chave de placas de circuito, esolicitarem às firmas de processamento queparem de comprar coltan extraídoilegalmente. 12

A promoção da democratização, justiça emaior respeito pelos direitos humanos sãotarefas chave, juntamente com os esforçospara reduzir a impunidade com que algunsgovernos e grupos rebeldes aderem áviolência extrema. Outro objetivo é afacilitação da diversidade econômica,diminuindo uma forte dependência dosprodutos primários em favor de um mixmais abrangente de atividades. Umaeconomia mais diversificada, maioresinvestimentos em desenvolvimento humanoe ajuda para que as comunidades locais setornem guardiãs poderosas da base derecursos naturais diminuirão a probabilidadedas mercadorias se tornarem peões numaluta entre competidores implacáveis porriqueza e poder.

- Michael Renner

RIQUEZA NATURAL E CONFLITO

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SETOR PRIVADO

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Num pronunciamento ao Conselho deSegurança das Nações Unidas, em abril de2004, o Secretário Geral Kofi Annandestacou o importante papel que asempresas privadas podem desempenhar –bom ou ruim – nos países mais propensos aconflitos: “Suas decisões – sobreinvestimento e emprego, sobre relações comcomunidades locais, sobre providênciascom a própria segurança – pode ajudar umpaís a dar as costas ao conflito ou agravar astensões que o alimentaram originalmente.” 1

Nos últimos anos, movimentos popularese painéis das Nações Unidas documentarama alegada cumplicidade das multinacionaisnuma vasta gama de situações de conflito –desde abusos de direitos humanos no Sudãoe Nigéria, ricos em petróleo, passando pelotráfico de diamantes e madeira do Congo eSerra Leoa, até o mau uso de serviçosfinanceiros para compra de armas e atosterroristas. À luz desses relatórios, ascorporações estão cada vez mais conscientesde que, além de alimentar a violência, osinvestimentos em situações de conflitopodem manchar gravemente a reputação deuma empresa, podendo tornar-se atémesmo um ônus legal.2

Num caso notório, sensacional, acompanhia canadense de petróleo TalismanEnergy foi forçada a vender suaparticipação no petróleo do Sudão, apósdenuncias de ter contribuído para a longaguerra civil que durou 20 anos. Iniciandocom o término de um oleoduto deexportação, em 1999, o petróleo bruto

produzido pelo consórcio liderado pelaTalisman chegou a contribuir até $500milhões anuais para a receita do país. Estespagamentos supostamente contribuírampara duplicar o orçamento de defesa dogoverno no mesmo período e assim para acampanha de “terra arrasada” que expulsouas pessoas dos campos de petróleo do país.Em pelo menos um caso registradohelicópteros com metralhadoras e aviõesmilitares usaram a pista de aterrissagem doconsórcio como ponto de partida paraataques a civis. 3

. Em março de 2003, tendo sido acusadanum processo em Nova Iorque, a Talismanvendeu suas ações no consórcio petrolíferopara a companhia de energia indianaONGC Videsh. Ainda assim, mesmo com aelevação do valor das ações, a saída daTalisman do Sudão criou um dilemacomplexo. Por um lado, demonstrou àindústria de petróleo que investimentos ouatividades duvidosas podem afetar areputação de uma companhia e baixar ovalor de suas ações (no caso da Talisman,até 15%). Por outro lado, a retirada deinvestimentos de uma grande multinacionalem países instáveis pode, em última análise,reduzir o escrutínio internacional desteslugares, diminuindo a pressão nascompanhias remanescentes para seguirempadrões sociais e ambientais mínimos. 4

Existem situações, onde o setor privadotem sido instrumental na ajuda para otérmino de hostilidades. No Sri Lanka, umataque ao aeroporto internacional em julho

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Setor Privado

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de 2001, marcoua virada noconflito de 10anos entre amaioria sinhalesae os separatistasTamil. Líderesempresários deambos os lados formaram o movimentoSri Lanka First para organizar apoiopopular contra a guerra.O grupo ajudou acoordenar, em setembro, umademonstração de milhões de pessoas, edurante a eleição subseqüente fez campanhapara legisladores que favorecessem umacordo negociado. Estas ações ajudaram adirecionar os separatistas Tamil e o governopara um cessar-fogo, no início de 2002. 5

O papel a ser desempenhado pelasempresas é na redução de conflito e não emcontribuir para ele. Para que assim seja,entretanto, elas necessitarão desenvolverdiretrizes para administrar os riscos sociais,fortalecendo transparência eresponsabilidade, e sedimentando relaçõescolaborativas – capacitando assim osdiretores para atravessar situações difíceismais responsavelmente.

Antes de tudo, e principalmente, devemser mais bem entendidas as conseqüênciasde projetos comerciais e dedesenvolvimento. Analisando os prováveisimpactos de conflito nas operações daempresa, bem como os impactos deatividades associadas nas comunidades locaise o tecido social abrangente, as empresas

teriam aoportunidade deredirecionar ocentro de suasoperaçõescomerciais,atividades deinvestimento

social, e política de estratégias públicas nosentido de minimizar o dano. Para acelerareste procedimento, governos poderiamexigir que as agências de crédito àexportação (ACEs) e outros financiadoresde áreas propensas a conflito, para fazer detais avaliações uma condição de acessopreferencial ao financiamento. Do mesmomodo, os departamentos de crédito aosetor privado do Banco Mundial, poderiamestabelecer diretrizes para as avaliaçõessemelhantes àquelas que utilizam para omeio ambiente.6

Também seria essencial dar maiortransparência às ações corporativas. Ainiciativa governamental Publish What You Pay[Publiquem o Que Pagam] busca assegurartransparência às royalties de projetosextrativistas e outros pagamentos agovernos. E a estratal Extractive IndustriesTransparency Initiative [Iniciativa deTransparência das Indústrias Extrativistas]do Reino Unido, conclama países anfitriõesa serem mais transparentes quanto àaplicação desses fluxos de receita. Umoutro conjunto de ações necessárias empaíses anfitriões, é o encorajamento dacapacidade da sociedade civil para que

Construção do oleoduto Chade-Camarõpes

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responsabilizem os governos pela prestaçãode contas da aplicação destes recursos.7

São necessárias normas deresponsabilidade legal precisas econcordadas internacionalmente para acumplicidade empresarial em violaçõesmaiores dos direitos humanos, crimes deguerra e violações das sanções das NaçõesUnidas. A responsabilidade civil pode serfortalecida através do Tribunal Internacionalde Crimes, ou através dos tribunais civis,usando mecanismos semelhantes aos doAlien Tort Claims Act [Estatuto de Dano aoEstrangeiro], nos Estados Unidos. Emboracódigos voluntários de conduta, relativosaos direitos humanos e corrupção -semelhantes aos da Global Compact dasNações Unidos – sejam pontos de partidapreciosos, um grau de imposição, baseadoem padrões mínimos concordadointernacionalmente, é vital. 8

Atores do setor privado podem tambémformar parcerias valiosas com governos,agências de desenvolvimento e organizações

da sociedade civil, em áreas já em conflitoou potencialmente conflituosas. Essasparcerias podem enfatizar a sensibilidade elegitimidade da empresa, enquanto reduzriscos, valorizando assim o investimento notodo. Por exemplo, grupos de multi-interessados estabelecidos sob a supervisãodo Banco Mundial, fortaleceram aresponsabilidade dos governos eoperadores de projetos para liberação deprogramas sociais e de mitigação dosimpactos de projetos, no caso dosoleodutos Chade-Camarões e Baku-Tblisi-Ceyhan. 9

O preço dos desacertos de investimentosdo setor privado tem alcançado valoresnunca vistos. Corrupção, protecionismo eenriquecimento ilícito estão desestabilizandopaíses e causando sofrimento humanoinjustificado. Mas se a ética, legislação eincentivos apoiarem a mudança, a empresaresponsável pode se tornar uma forteliderança para a paz.

- Jason Switzer, International Institutefor Sustainable Development

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Mudando a Economia doPetróleo

C A P Í T U L O 6

Thomas Prugh, Christopher Flavin,e Janet L. Sawin

O petróleo se tornou tão crucial para acivilização moderna que a linguagem se esforçapara transmitir sua importância; as metáforascomuns para seu papel – espinha dorsal,sangue vital, preciosidade – parecem forçadase inadequadas. O petróleo satura praticamentecada aspecto da vida moderna e o bem-estarde cada indivíduo, comunidade e nação doplaneta está ligado à nossa cultura energéticabaseada no petróleo. Todavia, mesmo com opetróleo se tornando indispensável, seu usocontínuo já começa a impor custos e riscosinaceitáveis.

Os custos e riscos do uso do petróleopodem ser reunidos em três categorias amplas.Na primeira, o petróleo ameaça a segurançaeconômica global, porque é um recurso finito,para o qual não foi desenvolvido um sucessorefetivo, e porque o fosso entre oferta e procuraparece estar crescendo, tornando o mundovulnerável a graves choques econômicos. Nasegunda, o valor do petróleo como umamercadoria solapa a segurança civil, aocomprometer os esforços de conquista de paz,

ordem civil, direitos humanos e democraciaem muitas regiões. Na terceira, o petróleoameaça a estabilidade climática, porque seu uso,que está acelerando, é responsável por umagrande parcela das emissões globais de gás deestufa e porque seu domínio completo domercado de combustível de transporte o tornadifícil de ser substituído. Em suma, o pontoque fez com que o petróleo outrora tenha nosajudado a garantir a segurança humana, hoje,nos tornou mais vulneráveis.

Uma Mercadoria Estratégica

Para entender como o petróleo deixou deser vantagem para se tornar um ônus, temosque começar com seu lugar na vida moderna.Consideremos um cidadão típico, morandonuma cidade ou subúrbio do mundoindustrializado – chamemo-lo de Sr. Lee –numa atividade rotineira de uma manhã deum sábado qualquer. Ele desperta ao som dorádio-relógio, toma um chuveiro, coloca suaslentes de contato, veste seu moleton e calça

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seu tênis. Na cozinha, Sr. Lee toma um anti-histamínico contra um resfriado e um prato decereal, escova seus dentes, coloca um agasalhode nylon e sai na garoa da manhã para ascompras. Carro ou trem? Hoje prefere o carro.

Primeiramente, ele pára na sua loja de músicafavorita, onde estaciona, abre seu guarda-chuva e corre para a loja. Lá dentro, olha umpouco e escolhe um par de CDs, pagandocom cartão de crédito. Depois, segue pela ruapara uma loja esportiva – parando no caminhopara comer um folhado na padaria local –,onde compra uma nova raquete de tênis e umalata de bolas para o aniversário da Sra. Lee.No caminho de casa, Sr. Lee pára numa lojafotográfica para comprar uma nova câmeradigital, também para a esposa, e um cassetepara a câmera de vídeo. Chama a esposa pelocelular para saber se precisa de algo dafarmácia; ela lhe pede loção para as mãos eseu batom favorito.

Com pequenas modificações, esta vinhetapode se aplicar à vida de centenas de milhõesde pessoas em Cingapura, Berlim, Nova Yorkou qualquer outro lugar no mundoindustrializado. Imagine, porém, como oquadro mudaria se um elemento – o petróleo– fosse apagado da tela.

Para início de conversa, tanto carros quantosubúrbios espraiados são criações do petróleobarato e seriam muito menos comuns. Mas,mesmo com uma granulagem mais fina, nossaestória mudaria radicalmente. Os itensseguintes que são mencionados ou estãoimplícitos ou são, pelo menos em parte, feitoscom petróleo: rádios, cortinas de chuveiros,xampu, lentes de contato, escovas e pastas dedente, medicamentos e cápsulas de pílulas,tecidos, sapatos, automóveis (tapetes eestofamento, isolamento, correias de venti-ladores, caixas de baterias, vidros e cintos de

segurança, alto-falantes, pneus, painel deinstrumentos, tinta, anticongelante), guarda-chuvas, CDs, raquetes e bolas de tênis (e aslatas), cartões de crédito, esferográficas,câmeras, filmes, celulares e inúmeroscosméticos. O folhado de Sr. Lee é um ator-substituto para o papel imenso que o petróleodesempenha na produção agrícola – desde afabricação e alimentação das máquinasagrícolas ao seu uso como insumo fertilizantee no processamento, embalagem e transporte.Também há as mobílias e os carpetes daresidência de Sr. Lee, o telhado sobre sua cabe-ça e as ruas e estradas sobre as quais dirige –literalmente milhares de itens. Em muitoscasos, não há substitutos do petróleo para afabricação desses itens.1

Claramente, o petróleo é importante comomatéria-prima; nos Estados Unidos, porexemplo, seu uso como matéria-primarepresenta aproximadamente um quinto doconsumo. Porém, o petróleo é ainda maisimportante como fonte energética. A energiaassumiu uma presença gigantesca na economiamundial e nas vidas de bilhões de pessoas.Poucos entendem quão importante ela é – ouque a grande abundância de energia é o quedefine a vida nas nações industrializadas e adistingue das formas tradicionais. Estas formasforam marcadas pela sujeição a um pingo deenergia solar, força física essencialmentehumana ou animal alimentada por vegetais. Aspessoas faziam pouco uso de carvão oupetróleo antes da Revolução Industrial, masesta era transformou literalmente a economiaenergética mundial. O padrão geral pode servisto na história da energia nos EstadosUnidos. (Ver Figura 6-1.)2

A grande abundância de energia é o que

define a vida nas nações industrializadas

e a distingue das formas tradicionais.

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Embora a madeira tenha sido a principalfonte de energia não-musculosa, através da erapré-moderna (e continua assim para bilhõesde pessoas no mundo em desenvolvimento),logo que os combustíveis fósseis se tornaramamplamente disponíveis, no final do séculoXIX – primeiro carvão, depois petróleo e gás

natural –, rapidamente, predominaram nosorçamentos energéticos nas nações compronto acesso a eles. Tanto o consumo percapita quanto o total dispararam, particu-larmente, após a introdução de tecnologiascomo automóveis e usinas geradoras queforam adaptadas para as vantagens dos novoscombustíveis.

Hoje, o consumo global da energia útil porpessoa é cerca de 13 vezes maior do que naépoca pré-industrial – embora a populaçãototal tenha decuplicado desde 1700. (Oconsumo per capita é, naturalmente, muitomaior do que a média global nas naçõesindustrializadas e muito menor nos países emdesenvolvimento.) O petróleo – de fácilextração, flexível e de densidade energética –é a fonte de energia mais valorizada do mundo.É a maior fonte de energia mundial,responsável por aproximadamente 37% daprodução global de energia. E mantém umaposição dominante na economia mundial. (Ver

Quadro 6-1.) O valor e disponibilidade dopetróleo como fonte de combustível detransporte significa que o petróleo representaquase todo consumo energético do setor. Acombustão do petróleo também é responsávelpor 42% de todas as emissões de dióxido decarbono (CO2), o principal gás de estufaproduzido pelo homem.3

Nesta “cultura de consumo de energia,”singular na história da humanidade, a saúde,bem-estar, prosperidade e perspectivas debilhões de pessoas – sua segurança e a dassuas nações – estão diretamente influenciadaspelo preço e disponibilidade do petróleo. O

Figura 6-1. Consumo de Energia nos Estados Unidos, 1635-2000

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petróleo tornou-se a mercadoria estratégicamais importante de todos os tempos. Numaeconomia globalizada, aglutina todas aseconomias e povos mundiais numa matrizcompartilhada. Esta matriz, porém, está sobcrescente tensão. A servidão do mundo aopetróleo cria ameaças que embasamargumentos fortes para o fim do atual regimeenergético.4

O Petróleo e a SegurançaEconômica Global

A dependência do petróleo significavulnerabilidade econômica. Picos do preço dopetróleo podem provocar tanto inflaçãoquanto recessão, com impactos efetivos sobrerendas pessoais e emprego. Nos EstadosUnidos, altamente dependentes do petróleo,os aumentos de preço precederam 9 das 10recessões, desde a II Guerra Mundial.5

Os principais atores no palco petrolífero –nações importadoras e exportadoras –mantêm o mesmo tipo de relacionamento queviciados e traficantes: nenhum pode facilmenteprescindir do outro. Este tema de vício éfamiliar, porém não é só um conceito. Emestudos de dependência química, a definiçãoclássica de vício tem três aspectos: tolerância,a tendência de usar mais de uma substânciapara atingir o efeito desejado; abstinência,experiência de efeitos desagradáveis quandoo uso é interrompido; e uso contínuo de umasubstância, apesar das conseqüências adversas.

Todos os três são visíveis no relacionamentodo mundo moderno com o petróleo. Elerepresenta 36% do orçamento energético daFrança, 39% dos Estados Unidos, 49% doJapão, 51% da Tailândia e 77% do Equador.Mesmo estes índices brutos não dão a medidaexata da dependência, uma vez que em muitos

QUADRO 6-1. ALGUNS INDICADORES DAPOSIÇÃO CENTRAL DO PETRÓLEO NAECONOMIA

Duas entre as 10 maiores corporações nos EstadosUnidos em termos de vendas (ExxonMobil eChevron Texaco) e 3 das 20 maiores (as duasprimeiras e mais ConocoPhillips) são empresaspetrolíferas. As 10 maiores empresas petrolíferasdos Estados Unidos atingiram receitas de quaseUS$ 430 bilhões, em 2002. Em 1999, 6 das 10maiores corporações em todo o mundo (e 9 das20 maiores) eram empresas petrolíferas ou colegasafins – empresas automobilísticas.

As empresas petrolíferas são grandes elucrativas, devido à forte demanda global depetróleo. A maior parte do petróleo é utilizada emtransportes e a maior categoria de veículo é oautomóvel (incluindo, pelo menos nos EstadosUnidos, caminhões leves e veículos utilitáriosesportivos). A frota mundial de automóveis cresceude 53 milhões, em 1950, para 539 milhões, em2003. A produção igualmente disparou de 8milhões, em 1950, para mais de 41 milhões, em2003. Este tendência deverá continuar, à medidaque os países em desenvolvimento se motorizam:na China, por exemplo, foram vendidos mais de 2milhões de veículos, em 2003 (80% a mais do queem 2002), e a frota está projetada a totalizar 28milhões, até 2010.

Embora as viagens aéreas representem umaparcela bem menor do consumo total de petróleo,elas também aumentaram dramaticamente,especialmente após a introdução dos jatoscomerciais, no final dos anos 50. O volume deviagens aumentou mais de 100 vezes, desde 1950,de 28 bilhões para 2,9 bilhões de quilômetros/passageiros em 2002.___________________________________________________________fonte: Vide nota final 3.

países o petróleo fornece praticamente todoo combustível dos transportes. O consumoglobal em geral subiu ao longo do tempo –exceto quando picos de preço provocamsurtos de “abstinência” econômica –, apesardo aumento cada vez mais perturbante depoluição, emissões de gás de estufa e outrosproblemas.6

Embora os países industrializados aindautilizem a maior parte do petróleo mundial,

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Figura 6-2. Preço Mundial do Petróleo, 1990-2004

as nações em desenvolvimento são, em média,mais dependentes do petróleo, como parcelado uso total de energia (excluindo biomassa),e utilizam muito mais petróleo em proporçãoao porte de suas economias. Muitos países emdesenvolvimento importam praticamentetodo seu petróleo, estando assim maisvulneráveis a choques de preço do que muitasnações industrializadas. A Agência Internacionalde Energia (IEA, na sigla em inglês) estimouque, se o aumento de preço de US$ 20 porbarril em 2004 fosse sustentado, reduziria ocrescimento econômico em 2006 em 1,0%nos Estados Unidos e 1,6% na Europa, porém,3,2% na Índia e 5,1% nas nações maisendividadas, principalmente na África. Essesaumentos de preço se traduzem diretamenteem custos humanos nos países pobres, umavez que o aumento no custo dos transportesde alimentos pode afetar as dietas depopulações urbanas pobres e preços mais altosde querosene podem significar a falta decombustível de cozinha.7

Nações exportadoras de petróleo, a suamaneira, são igualmente dependentes. Muitasdependem em alto grau de um fluxo contínuode receita petrolífera pornão terem utilizadoreceitas anteriores dasexportações para diver-sificar suas economias.Em alguns casos, grandeparte da receita dopetróleo foi desviada paraenriquecer elites e pagarpor incrementos militaressofisticados. Na ArábiaSaudita, a dinastia Sa’udsubsidia milhares de“príncipes” com estipên-dios reais de até US$

270.000 mensais. James Woolsey, Ex-diretorda CIA (Agência Central de Inteligência dosEstados Unidos), observa que, nos anos 90,o “Oriente Médio Muçulmano”, com umapopulação de 260 milhões, tinha menosexportações não-petrolíferas do que aFinlândia, que tem 5 milhões de pessoas.8

O mundo foi relembrado de forma agudade sua dependência do petróleo, em 2004,quando duas décadas de calma relativaterminaram com um aumento brutal depreços, de cerca de US$ 33 por barril, no iníciodo ano, para mais de US$ 50, em outubro, –o maior preço, ajustado pela inflação, desdemeados dos anos 80 (ver Figura 6-2). Oaumento enfureceu motoristas, sacudiu asbolsas internacionais e colocou em risco umaincipiente recuperação econômica global.Vários fatores contribuíram para o salto dospreços, inclusive sabotagem de instalações noIraque e Arábia Saudita, inquietação políticanos campos petrolíferos da Nigéria e danoscausados à infra-estrutura petrolífera porfuracões no Golfo do México. Mas uma forçamais fundamental também agia: oferta eprocura.9

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O consumo do petróleo acelerou no finalda recessão de 2001 a 02, aumentando 1,5milhão de barris por dia, em 2003, e outros2,3 milhões de barris por dia, em 2004,atingindo um novo recorde de mais de 82milhões de barris por dia, em outubro de2004. O consumo subiu em dezenas de paísesem desenvolvimento e industrializados. Só osEstados Unidos contribuíram com um quartodo aumento, enquanto o consumo na Chinaaumentou ainda mais rapidamente – 5,2milhões de barris por dia, em 2002, para cercade 6,6 milhões, em 2004, com a maior parteda demanda sendo atendida por aumento dasimportações. (Ver Figura 6-3.)10

Esses aumentos pós-recessão não sãoincomuns. O que foi incomum foi que osprodutores não conseguiram atender àintensificação da demanda. Quando os preçosatingiram níveis bem acima das metas, noinício de 2004, a Organização dos PaísesExportadores de Petróleo (OPEP) elevou ascotas de produção e assegurou repetidamenteao mundo que estava fazendo tudo paraaumentar a produção. Nenhuma das duasações conseguiu impedir o aumento dospreços.11

Desde meados dos anos 80 até 2003, temhavido capacidade adicional de produçãosuficiente para permitir aos países da OPEPmanter os preços dentro da meta de US$ 22– 28 por barril, através do aumento daprodução, quando necessário. Na realidade, oprincipal problema da OPEP durante operíodo foi evitar que os preços caíssemdemais, o que ocorreu em 1998, quandochegaram, por pouco tempo, a US$ 12 porbarril. Durante a maior parte dos anos 80 e90, o aumento da produção fora do GolfoPérsico, como na Noruega, Nigéria e Brasil,foi suficiente para atender à demanda crescente

e a OPEP pôde manter uma capacidade extra-substancial, principalmente no Golfo Pérsicoe especialmente na Arábia Saudita. Mas ocrescimento da produção fora do GolfoPérsico desacelerou substancialmente nosúltimos anos. Parte deste recuo foicompensado com uma maior produção naRússia; o resto veio da Arábia Saudita e outrospaíses do Golfo. Hoje, praticamente toda acapacidade extra desapareceu, deixando omercado sensível a tudo, desde previsõesmeteorológicas no Caribe a uma greve naNigéria.12

Será que este desequilíbrio na oferta eprocura representa um desafio de curto prazo,ou algo mais fundamental? A visãoconvencional, compartilhada por todos, desdea U.S. Geological Survey à IEA, é que ainda hámuito petróleo para ser produzido e quepreços ligeiramente mais altos abrirão ascomportas. Eles atribuem os preços mais altosao aumento da demanda e à falta deinvestimentos por parte das empresaspetrolíferas, mas acreditam que o mercadose corrigirá em breve. A maioria dos analistasacha que as reservas oficiais de petróleo (maisde um trilhão de barris) permitirão o aumentoda produção durante décadas, incrementadapor novas tecnologias que permitirão opetróleo ser extraído de locais inacessíveis ede folhelho betuminoso e areias betuminosas.Essas premissas levam muitos especialistasgovernamentais a prever que a produçãomundial de petróleo continuará a subir. OIEA, por exemplo, projeta que a produçãoglobal atingirá 121 milhões de barris/dia, até2030.13

Estas projeções são pura fantasia, naopinião de um número crescente de analistasdissidentes, que acreditam que o aumentorecente de preços já é um sinal de que os

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produtores simplesmente não estãoconseguindo achar petróleo suficiente paraacompanhar o crescimento da demanda.Liderados pelo ex-geólogo da Amoco, ColinCampbell e outros com afiliações desde a U.S.Geological Survey à Companhia Nacional dePetróleo do Irã, esses geólogos analisaramcuidadosamente as descobertas ao longo doúltimo meio-século e concluíram que, mesmocom aumento da exploração e avançostecnológicos, o petróleo está sendo descobertoem quantidades cada vez menores e em regiõescada vez mais remotas.14

Realmente, Campbell e seus colegasapontam para dados que revelam que asdescobertas mundiais atingiram seu pico noinício dos anos 60, tendo caído a cada décadasubseqüente, com as descobertas anuais hoje amenos de um quinto do seu nível de pico. Aprodução tem superado as descobertas já hátrês décadas, argumentam – e o fosso continuaa aumentar. Embora reconheçam o papel quea melhoria tecnológica desempenhou noaumento da produção, os pessimistasacreditam que ela simplesmente permite queum pouco mais de petróleo seja extraído deum determinado poço, e, ao aumentar a

eficiência, ela na realidadeacelera o ritmo em que umdeterminado poço seráexaurido. A produçãoglobal deverá inevita-velmente começar a cair –em 2007, conforme oúltimo modelo deCampbell e colegas, ou umpouco mais cedo ou maistarde, de acordo comoutras previsões.15

O modelo padrão paraesses analistas é os Estados

Unidos, onde foi descoberto o primeirogrande campo petrolífero do mundo, emSpindletop, Texas, em 1901. A produção dosEstados Unidos atingiu seu pico em 1970,caindo desde então, tendo desacelerado suaqueda apenas temporariamente com os preçosrecordes do final dos anos 70 e início dos anos80. A produção continental dos EstadosUnidos caiu pela metade – de 9,4 milhões debarris/dia, em 1970, para 4,7 milhões, em2004. A produção no Alaska atingiu seu picode 2 milhões de barris/dia, em 1988, estandohoje a menos de 1 milhão de barris/dia (verFigura 6-4). Campbell e seus aliados assinalamque as descobertas de petróleo nos EstadosUnidos atingiram o pico nos anos 30, quatrodécadas antes da virada da produção, e que omundo hoje está passando o 40o aniversáriodo pico global das descobertas de petróleo.16

Muitos outros países estão seguindo omesmo caminho. A produção estabilizou oucaiu em 33 dos 48 maiores produtores,incluindo 6 dos 11 membros da OPEP. Aprodução já está caindo no Reino Unido e naIndonésia, por exemplo, e não está maisaumentando significativamente na Noruega,México ou Venezuela. Ademais, as visões

Figura 6-3. Consumo e Produção de Petróleo na China,1973-2004

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cornucopianas dos otimistas foram abaladas,em março de 2004, quando a Royal DutchShell, segunda maior empresa privada depetróleo do mundo, admitiu que, durante anos,havia inflado artificialmente suas estimativasdas reservas. Isto fomentou mais ceticismoainda sobre os números robustos das reservasdo setor. Outro índice de limitaçõesemergentes é o aumento recente dos preçosfuturos do petróleo; por exemplo, o contratoBP Royalty Trust para 2020 quase dobrou devalor, de US$ 49 por barril, em maio de 2003,para mais de US$ 93, em agosto de 2004.17

As conjecturas anteriores sobre picos depreço foram prematuras. Mas, alguns dosprincipais analistas acham que os pessimistaspodem estar certos agora. A PFC Energy, umaempresa especializada em previsões depetróleo, sediada em Washington e respeitadainternacionalmente, divulgou um estudo, emsetembro de 2004, estimando que a produçãomundial de petróleo atingiria seu pico emtorno de 2015, não mais do que 20% acimados níveis atuais. Com base numa análise paísa país de tendências de reservas e produção,o novo estudo conclui que simplesmente não

há petróleo suficiente parasustentar uma produçãocrescente. O Diretor Sêniorda PFC, Michael Rogers,acredita que as empresas depetróleo não estão aumen-tando seus orçamentos deexploração, mesmo aospreços altos de hoje, porqueos campos ficaram tãopequenos que não valem oesforço.18

Ninguém pode prever adata exata quando aprodução mundial atingirá

seu pico, simplesmente porque há incertezasdemais: taxas de crescimento da demanda,movimentação dos preços, desenvolvimentostecnológicos e a estabilidade política dospaíses produtores. Estes fatores semprecomplicaram as projeções, mas hoje estãoacompanhados de uma incerteza adicionalreferente ao estado real das reservas noGolfo Pérsico, particularmente na ArábiaSaudita.

Matthew Simmons, banqueiro deinvestimentos da indústria petrolífera, deHouston, analisou cuidadosamente trabalhostécnicos publicados por especialistas daempresa nacional de petróleo da ArábiaSaudita e concluiu que seus alardeados camposde classe internacional estão em dificuldades.As gigantescas cifras oficiais das reservassauditas (alegadamente 40% do total mundial)foram elevadas subitamente durante os anos80 – uma medida considerada pelo setorcomo um meio de aumentar a participaçãosaudita nas cotas de produção da OPEP.Simmons constatou que, mesmo hoje, apenasseis campos, todos com mais de 30 anos,representam quase toda a produção do país.

Figura 6-4. Produção de Petróleo nos Estados Unidos,1954-2003

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Os documentos sugerem que os altos níveisde produção estão sendo mantidos pelobombeamento de grandes volumes de águasalgada nos campos. “Eles estão efetivamentevarrendo os reservatórios, até que o petróleode fácil recuperação tenha acabado”, dizSimmons. “Não há um 2º Ato.” Ele acreditaque longe de dobrar, como presume a IEA, aprodução de petróleo da Arábia Sauditapoderá começar a cair dentro de uma década.19

Assim sendo, o futuro poderá ser ainda maiscaótico do que os geólogos mais pessimistasprevêem. Os sauditas rejeitam veementementeessas previsões. Mas, mesmo os otimistasconcordam que o atendimento à demandacrescente contínua implicará um aumentosubstancial da dependência de fornecimentodo Oriente Médio – a região mais instável domundo. Serão necessários dezenas de bilhõesde dólares de investimentos externos paraaumentar a produção do Golfo Pérsico, masestes investimentos só virão quando asempresas petrolíferas se convencerem de quea região está suficientemente estável. A faltade segurança é a razão pela qual, em 2004, aprodução iraquiana ficou bem aquém, atémesmo dos níveis restritos dos anos finaisde Saddam Hussein, contrariamente àsprevisões do Pentágono de que a produçãosubiria no ano após Saddam ter sidodeposto.20

Entre as incertezas, parece provável que aeconomia energética mundial entrou numperíodo de turbulência prolongada. O ritmode crescimento da demanda de petróleo daúltima década não poderá ser atendida por

muito mais tempo, entretanto, esta realidadesurge justamente quando China e Índia – comuma população total de 2,5 bilhões depessoas – e outros países entram num estágiopetrolífero intensivo de desenvolvimentoeconômico, mexendo-se para reivindicar seusdireitos sobre as reservas mundiais. Com aintensificação da competição pelo petróleo,o pico de produção, quando ocorrer,certamente provocará um período de altadisparada de preços. Os efeitos conjuntossobre a economia global – transportes,agricultura e indústria – deverão ser graves.Quão graves, dependerá de muitas coisas,mas especialmente da vontade política degovernos de restringir o consumo e encontrarcaminhos fora do petróleo. Essas medidasprecisão ser estudadas e implantadas dentrode uma geração, provavelmente antes. Seesperarmos até então para agir, serádemasiadamente tarde.

O Petróleo e a SegurançaCivil

A longa história do petróleo é uma trajetóriade competição, corrupção, repressão política,manobras para acesso e conflito aberto. Naescala global de desavenças de grandespotências, esta história começou em 1912,quando a Marinha Real Britânica começou amudar seus navios, do carvão galês para opetróleo, em busca de maior velocidade ealcance. Sem fontes domésticas de petróleo, aGrã-Bretanha enviou sua frota para assegurarsuprimento confiável, dando início assim a umenvolvimento profundo na política do OrienteMédio, que culminou com a crise de Suez, em1956, quando os Estados Unidos finalmentedesalojaram o Reino Unido como o poderdominante no Oriente Médio.21

A produção estabilizou ou caiu em 33

dos 48 maiores produtores, incluindo 6

dos 11 membros da OPEP.

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A I Guerra Mundial deu uma indicação dovalor estratégico do petróleo – umaautoridade francesa o denominou de “sangueda vitória” –, quando se tornou vital para asbelonaves, fábricas de defesa e novas armas,como tanques e aviões de combate. Durantea II Guerra Mundial, as economiasindustrializadas e as forças armadasmecanizadas de todos os principaiscombatentes necessitavam de acesso seguroao petróleo para combustível e lubrificantes,porém apenas os Estados Unidos e UniãoSoviética gozavam de vastas reservasdomésticas. A ausência destas reservasocasionou a invasão japonesa do sudesteasiático e a invasão alemã da União Soviética,cujos fracassos conseqüentes contribuíram paraa derrocada das potências do Eixo.22

Os britânicos foram instrumentais na criaçãodo Iraque, com olho no controle do fluxo depetróleo da região, tendo empresas petrolíferasdos Estados Unidos se unido aos britânicosna exploração de petróleo no Oriente Médio,na década de 1920. Mas a II Guerra Mundialassinalou uma nova fase no envolvimentoprofundo dos Estados Unidos na região,quando a importância geológica das reservaspetrolíferas no Golfo Pérsico se tornou maisclara para os Estados Unidos, em torno de1940. O Presidente Franklin Roosevelt e o Reida Arábia Saudita Ibn Sa’ud reuniram-se abordo de um navio de guerra americano, noinício de 1945, para negociar o começo deum relacionamento oficial que perdura atéhoje. Os sauditas conquistaram um poderosopatrono capaz de protegê-los de seus muitosinimigos regionais e os Estados Unidos

lançaram “a pedra angular da [sua] máquinaindustrial.”23

No final da guerra, os campos de petróleodos Estados Unidos ainda supriam cerca dedois terços do petróleo mundial. Mas, umaexplosão do crescimento econômico pós-guerra disparou a demanda. Os EstadosUnidos se tornaram importadores líquidos em1948 e, desde então, ficaram cada vez maisdependentes de importações – como tambémquase todas nações industrializadas. Asenormes reservas da Arábia Saudita e outrasnações do Golfo Pérsico se tornaram maisvitais do que nunca, devido, em parte, ao fatode sua exploração permitir que os recursospetrolíferos dos Estados Unidos fossempreservados. O resultado, à medida que osEstados Unidos exerciam sua influênciacrescente na região, foi uma rede de relaçõescomerciais ligada aos Estados Unidos, quepermitiu a extração e exportação eficientes depetróleo, através da Arabian American OilCompany (mais conhecida como Aramco) eoutras empresas. A produção da ArábiaSaudita e nações circunvizinhas disparou,enriquecendo a família real e seus aliados.24

Ativos petrolíferos dos Estados Unidos ede outros países ocidentais foramexpropriados nos anos 60 e 70, porém adependência saudita de engenheiros e gerentesamericanos e europeus continuou. A receitado petróleo permitiu que os sauditasadquirissem um grande volume deequipamentos militares do Ocidente, desdebotas até jatos de combate e sistemas de radar.E o governo dos Estados Unidos, ansiosopara proteger o petróleo da região da UniãoSoviética, Irã e qualquer outro provocador –e melhorar seu balanço de pagamentos –estava ávido para vender.

Todavia, o petróleo foi e continua sendo

Os Estados Unidos consomem um quarto

daprodução global de petróleo e o Golfo

Pérsico ainda fornece um quinto das

importações do país.

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importante demais para ser deixado ao sabordo mercado. Sempre provocou umaabordagem realpolitik para as relaçõesinternacionais: medidas duras e até mesmoimpiedosas para assegurar o acesso aopetróleo. Já em 1946, o economista americanoHerbert Féis sustentava que “os interessesamericanos precisam deter controle físicoefetivo, ou pelo menos acesso assegurado, deuma fonte de suprimento adequada e bemlocalizada.” Esta linguagem direta, semrodeios, significa uma disposição de utilizarforça militar – uma disposição originalmenteexpressa nos anos 50, quando os presidentesHarry Truman e Dwight Eisenhowerasseguraram explicitamente ao Rei Ibn Sa’udo compromisso dos Estados Unidos de agircontra qualquer ameaça à soberania saudita.25

Durante pelo menos 30 anos, os EstadosUnidos têm planos contingenciais militarespara apoderar-se de poços estratégicos noOriente Médio, caso necessário, para asseguraro escoamento do petróleo – planosestimulados pelo embargo árabe do petróleode 1973 a 74 quando, ironicamente, foi aprimeira vez em que o próprio petróleo foiutilizado como arma contra interessesocidentais. Após o embargo ter sido levantado,o Secretário de Estado Henry Kissingerdescreveu, para a revista Business Week, ascircunstâncias adequadas para o uso de forçamilitar em defesa do escoamento do petróleo.De forma mais aberta ainda, o PresidenteJimmy Carter, em 1980, anunciou em seupronunciamento State of the Union (prestaçãoanual de contas do presidente ao Congresso eao povo) que qualquer tentativa de controledo Golfo Pérsico seria considerado “umataque aos interesses vitais dos EstadosUnidos,” que seria “repelido por qualquermeio necessário, inclusive força militar.” A

“Doutrina Carter” foi efetivamente invocadaem 1991, quando o exército americanoexpulsou o Iraque dos campos de petróleodo Kuwait, ocupado alguns meses antes.26

A Doutrina Carter ainda faz parte dapolítica americana. Os riscos são maiores doque nunca: os Estados Unidos consomem umquarto da produção global de petróleo e,embora tenha diversificado suas fontes desuprimento nos últimos anos, o Golfo Pérsicoainda fornece um quinto das importações.Ademais, aliados importantes, incluindo Japãoe muitas nações da Europa Ocidental,dependem muito do petróleo da região e aprodução do Golfo tem ajudado a estabilizaros preços internacionais em níveisrelativamente baixos, ao longo dos anos, parao bem econômico dos países importadores.27

Qualquer perda de produção –especialmente a perda da produção da ArábiaSaudita – traria conseqüências devastadoraspara toda economia global. Neste contexto,as guerras recentes na região do Golfo podemser consideradas como mais exercícios deaplicação da Doutrina Carter. Em abril de2001, um relatório de política energéticaenviado ao Vice-presidente dos EstadosUnidos, elaborado por um “think tank”ligado ao Partido Republicano, observou que,numa época de redução da oferta de petróleoe declínio da capacidade de produçãoadicional, o Iraque havia se tornado o “fiel dabalança” e uma influência desestabilizadorasobre o abastecimento. Na medida em quepermitiu o controle sobre as reservas doIraque (10% do total global) e capacidade deprodução, a invasão de 2003 objetivou nãosó evitar que Saddam Hussein pressionasse opreço internacional do petróleo, mas tambémconquistar este poder para os EUA.28

Segundo uma estimativa, o custo direto para

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os contribuintes americanos da manutençãode uma presença militar destinada a asseguraro escoamento do petróleo do Oriente Médio,de 1993 até 2003, foi de US$ 49 bilhões anuais.Estes custos – não compensados nos postosde abastecimento – não incluem alocaçõesadicionais específicas para as duas guerraslideradas pelos Estados Unidos no Iraque. E,sem dúvida, não incluem os custos humanos– soldados mortos e mutilados e a dor dasfamílias – envolvidos em ações militares.29

As ações do Ocidente para assegurarsuprimentos confiáveis também se estenderampara outras partes do mundo ricas empetróleo. Estas medidas incluem não apenasgrandes gastos militares, como tambémalianças de conveniência com países e líderespolíticos cujos valores, objetivos e métodospodem ser antidemocráticos, repressivos ouaté mesmo assassinos. Como o atual e maiorpoder garantidor de estabilidade política edisponibilidade de petróleo no Oriente Médio,os Estados Unidos há muito vêm ajudandoou se aliando a muitos regimes repressivos,inclusive Arábia Saudita, Irã e, numa ocasião,Iraque. Laços deste tipo estão perpetuamentesob revisão, à medida que as circunstânciaspolíticas mudam e a busca por fontes maisdiversificadas de petróleo encoraja odesenvolvimento de novos relacionamentos.30

Nos últimos anos, os Estados Unidoscultivaram ligações (ajuda civil ou militar,incluindo bases para tropas em algumasocasiões) com um número de países da ÁsiaCentral –, incluindo Afeganistão, Azerbaijão,

Casaquistão, Quir jistão, Paquistão,Turcomenistão e Uzbequistão – que, oupossuem reservas inexploradas importantesou cobrem rotas potenciais de oleodutos.Grande parte dessa atividade representainiciativas dos Estados Unidos, num esforçotripartite com Rússia e China para asseguraracesso aos recursos de gás e petróleo da região,uma competição que manterá armas e outrotipo de ajuda fluindo abundantemente para osregimes locais e, sem dúvida, mantendo tensõesem alta. De acordo com Human Rights Watch, osregimes de todos esses países se destacam porabusos significativos de direitos humanos, comoprisões ou assédio a políticos oposicionistas,repressão a jornalistas, corrupção, brutalidadepolicial, violência e fraude eleitoral e ausênciade liberdade religiosa.31

Além de estar associado a manobras dasgrandes potências, intervencionismo militar ealianças de conveniência, o petróleo estáassociado também a uma variedade de outrasações que solapam a segurança civil. Porexemplo, o petróleo demonstra vividamentea “maldição do recurso natural” – a tendênciade a riqueza de recursos sustentar corrupçãoe conflito, ao invés de crescimento edesenvolvimento. Os efeitos são evidentes eminúmeros países, inclusive nos Estados Unidos.Além da Arábia Saudita e outras nações doGolfo Pérsico, a maldição do recurso naturalpode ser sentida em Angola, Camarões,Colômbia, Equador, Guiné Equatorial,Indonésia, Nigéria, República Democrática doCongo, Sudão e Venezuela, dentre outros. A“maldição” é freqüentemente ajudada eencorajada por corporações agindo com oconhecimento (e conluio) de governosnacionais em busca de recursos. As medidasadotadas para assegurar acesso e extraçãorestringem direitos de povos indígenas e

O petróleo demonstra vividamente

a tendência da riqueza de recursos

sustentar corrupção e conflito, ao invés

de crescimento e desenvolvimento.

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pilham ou até envenenam suas terrastradicionais.32

O petróleo e outras riquezas mineraistambém parecem impedir a implantação epreservação da democracia, uma vez que ariqueza permite aos governos reduzirmovimentos por democracia com impostosbaixos e gastos altos. E, quando isto nãofunciona, mobilizam forças de segurança parasuprimir dissensões. Este ponto é de particularimportância, pois é evidente que o terrorismoé uma resposta mais provável à ausência dedireitos políticos e oportunidades do que apobreza. De uma maneira mais geral, os paísesque dependem de receitas do petróleo tendema ser mais autoritários, mais corruptos, maispropensos a conflitos e menos desenvolvidosdo que os países de economias diversificadas.Também gastam mais com forças armadas epossuem maiores parcelas da populaçãoatoladas na pobreza. O petróleo, um líquidotóxico sob vários aspectos, é uma tamanhabênção mista, que até já foi chamado delágrimas do demônio.33

A mais recente ameaça à segurança civilrelacionada ao petróleo é o terrorismo. Oaspecto mais famoso desta história apareceuapós os ataques terroristas de 11 de setembrode 2001. A maioria dos seqüestradores dosaviões era formada por cidadãos sauditas –um dos legados irônicos do apoio dosEstados Unidos e da Arábia Saudita aoscombatentes muçulmanos radicais que lutarame derrotaram os soviéticos no Afeganistão, nadécada de 1980. Este apoio, organizado emparte pela Agência Central de Inteligência dosEstados Unidos e pela família real saudita,criou um quadro de dezenas de milhares deradicais muçulmanos, inclusive Osama binLaden, do qual a al Qaeda recrutou seusmembros. A contribuição saudita incluiu

recursos para uma rede de instituições decaridade que construíram milhares demesquitas e escolas administradas, segundo asdiretrizes do Wahhabism, uma variantefundamentalista do Islã, como tambémcampos de treinamento paramilitares eoperações de recrutamento terrorista. Comos soviéticos fora do Afeganistão, a presençaamericana crescente na Arábia Saudita e outrospaíses do Oriente Médio, após a guerra doIraque de 1991, ajudou a provocar os radicaisa cometerem uma série de ataques a interessesamericanos, inclusive às embaixadas do Quêniae da Tanzânia, ao navio USS Cole e ao WorldTrade Center.34

A apoio saudita às caridades totalizou cercade US$ 70 bilhões, ao longo dos anos. Dadaa escassez de renda saudita de qualquer outrafonte que não de venda de petróleo, essesrecursos na realidade fazem dos consumidoresocidentais cúmplices de atos de terrordirecionados principalmente contra ocidentais.Desta forma, e de outras já mencionadas –aventureirismo militar, alianças com regimesfacínoras, conflitos por recursos –, adependência dos países industrializados,particularmente os Estados Unidos, dopetróleo impõe um pesado ônus de riscogeopolítico e culpabilidade moral.35

O Petróleo e a SegurançaClimática

Cinqüenta páginas adentro, num relatóriode 2004 da Casa Branca, um leitor diligenteencontrará esta declaração: “A comparação detendência de índices em observações esimulações modelares mostra que as mudançasde temperatura norte-americanas, entre 1950e 1999, provavelmente não foram devidasunicamente a variações climáticas naturais.”

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Com esta frase despretensiosa, as autoridadesamericanas finalmente se alinharam aoconsenso global sobre mudança climática: quea Terra está se aquecendo e que as açõeshumanas, principalmente o desmatamento ea queima de combustíveis fósseis (petróleo,carvão e gás natural) são as causas principais.Apenas o petróleo é responsável por mais dedois quintos das emissões totais de dióxidode carbono, o principal gás de estufaproduzido pelo homem.36

O consenso sobre a mudança climática vemaumentando há algum tempo. Já em 1988, oscientistas observaram que o que o homemvem fazendo com o clima é “uma experiêncianão-intencional, descontrolada e de extensãoglobal, cuja conseqüência final só rivalizariacom uma guerra nuclear global.” Cadarelatório sucessivo do Painel Intergo-vernamental sobre Mudança Climática, oórgão mais confiável sintetizador da imensapesquisa neste assunto, vem sustentando ainfluência humana sobre o clima de uma formacada vez mais veemente. A temperaturasuperficial da Terra está 0,6oC mais alta doque um século atrás, e as concentrações degás de estufa estão subindo, à medida que asemissões continuam a aumentar. Um númerocrescente de líderes em todo o mundo hojealerta que a mudança climática é, nas palavrasdo Conselheiro Científico do Reino Unido,David King, “o problema mais grave queenfrentamos hoje – mais grave ainda do quea ameaça do terrorismo.”37

A mudança climática, seja incremental (ocenário mais provável) ou súbita, iráprovavelmente provocar secas regionais, fomee desastres relacionados com o clima, quepoderão ceifar milhares ou milhões de vidas,agravar tensões existentes e contribuir paradisputas diplomáticas ou comerciais. No pior

cenário, maior aquecimento incremental elevarámais ainda o nível do mar e reduzirá ascapacidades dos sistemas naturais da Terra, oque poderá ameaçar a própria sobrevivênciade pequenas ilhas-nações, desestabilizar aeconomia e o equilíbrio geopolítico global eincitar conflitos violentos.38

A própria civilização humana foi viabilizadaapenas porque o clima tem se mantidorelativamente estável ao longo dos últimosmilhares de anos. Mas, essa estabilidadeclimática – incomum em escalas geológicasde tempo – está correndo perigo. Aconcentração de CO2 na atmosfera da Terraestá hoje maior do que em qualquer épocanos últimos 400.000 anos e a taxa decrescimento está acelerando. Em junho de2004, um novo e mais preciso sistema demodelagem supercomputadorizada revelouque as temperaturas globais podem aumentarmais rapidamente do que foi projetadoanteriormente.39

À medida que as concentrações de CO2aumentam e o planeta aquece mais, os efeitosprovavelmente serão tempestades, enchentese secas mais graves e freqüentes; ondas decalor prolongadas e mais freqüentes;disseminação de doenças como malária edengue; e acidificação da água oceânica,branqueamento de corais e aumento do níveldo mar. Isto estressará ainda mais a capacidadede resistência da Terra, que já está no limite,segundo algumas estimativas. As ameaçasexistentes à segurança serão intensificadas, naproporção em que os impactos da mudançaclimática afetem mananciais regionais de águadoce, produtividade agrícola, saúde humanae de ecossistemas, infra-estrutura, fluxosfinanceiros e economias e padrões de migração.As incertezas quanto à disponibilidade futurade recursos essenciais acentuarão essasameaças.40

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A pobreza global provavelmente aumen-tará, de acordo com a alteração do clima,ameaçando lares e meios de vida através detempestades, estiagens, doenças e outrosestresses. Isto, por sua vez, impedirá odesenvolvimento, aumentará instabilidadesnacionais e regionais e intensificará disparidadesde renda entre países ricos e pobres. Taisimpactos, também, levarão a confrontosmilitares sobre distribuição da riqueza mundialou fomentarão o terrorismo ou crimetransnacional.41

Países com grande população, como Chinae Índia, poderão se defrontar com problemasgraves causados por secas e enchentesplurianuais, e o conseqüente aumento deimportações de alimentos poderá aumentardramaticamente os preços em todo o mundo.A redução da oferta de alimentos poderáprovocar inquietações internas e aumentar ouso do alimento como arma por paísesexportadores. Padrões alterados deprecipitação poderão acentuar as tensõessobre o uso de corpos d’água compartilhadose aumentar o potencial de conflito violentopor recursos hídricos. Estas mudanças nosmotivos para confronto e no posicionamentode recursos essenciais poderão alterar oequilíbrio de poder entre nações, causandoinstabilidade política global.42

Se os conflitos resultarão ou não damudança climática vai depender, em grandeparte, da vulnerabilidade da sociedade aoestresse e da sua capacidade de mitigação oude adaptação a impactos. A violênciarelacionada ao meio ambiente tende a ocorrerem nações fracas ou não-democráticas e tendea ser interna e não externa. Assim, é maisprovável que os conflitos tomem a forma deinsurgências domésticas ou guerras civis.Todavia, a mudança climática poderá causar

ondas de migração, à medida que a produ-tividade agrícola cair, a água doce se tornarmais escassa ou o nível do mar subir,ameaçando também a estabilidadeinternacional. Historicamente, a migração paraáreas urbanas estressou serviços e infra-estrutura limitados, incitando o crime oumovimentos insurgentes, enquanto a migraçãotransfronteiriça freqüentemente causouchoques violentos por terras e recursos.43

Os estresses já impostos pela mudançaclimática fazem com que seja vital lidar comas vulnerabilidades atuais. A pobreza precisaser reduzida através do desenvolvimentosustentável, para que as pessoas possam lidarmelhor com as mudanças provocadas peloaquecimento global. A energia renovávelprecisará desempenhar um papel importanteneste particular, porque poderá ajudar a aliviara pobreza e reduzir o risco de conflitos pelaenergia não-renovável e recursos hídricos, etambém porque sistemas de energia distribuídaminoram a susceptibilidade a desastres naturais.Além disso, a gestão ambiental e a conservaçãopodem reduzir a vulnerabilidade aos impactosda mudança climática, ao criar ecossistemasmais resilientes.

É inevitável um maior aquecimento doclima. Porém, quanto mais extremo for, maisgrave serão as conseqüências – portanto, écrucial adotar todas as medidas possíveis parareverter o aumento das emissões. Isto significamudar, o mais rápido possível, para umaeconomia energética global pós-carbono –uma economia que não libere mais carbonona atmosfera.

A mudança climática já ceifa mais vidasanualmente do que o terrorismo: um estudoda Organização Mundial de Saúde e da Escolade Higiene e Medicina Tropical, de Londres,

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estimou que, talvez, 160.000 pessoas morrema cada ano, devido aos efeitos secundários damudança climática, como a malária e a má-nutrição. Como o petróleo contribuisobremaneira para este custo, o corte daligação com o petróleo incrementará asegurança global.44

A Encruzilhada

Para as seguranças econômica global,nacional e pessoal, e para a estabilidade dosistema climático mundial, será necessárioacabar com a nossa dependência do petróleo.Mas, será possível? A resposta direta é sim –com tempo. As questões-chave são: quantotempo temos? Que tipo de transição será?

A mudança terá que ser o mais rápidopossível. As estimativas variam sobre quantotempo será razoável: um cenário de 1995 daShell sugeria que fontes de energia renovávelpoderiam suprir metade da energia mundial,em 2050, enquanto o Instituto do MeioAmbiente de Estocolmo argumentava que umesforço conjunto poderia criar um sistemaquase que totalmente dependente derenováveis, até 2100, mesmo considerando ocrescimento constante do uso de energia.45

É importante lembrar que a escala detempo é movida por políticas e que, entre osproblemas de segurança relacionados aopetróleo, nada melhora com o tempo; tudopiora. A segurança econômica global está cadavez mais ameaçada pelas tensões crescentessobre a oferta de petróleo e a dependênciacada vez maior do mundo das reservas doOriente Médio. Questões de segurança civilsimplesmente continuarão a deteriorar,ceifando vidas e minando o desenvolvimento,enquanto o petróleo permanecer como umamercadoria imoderadamente valiosa e

desigualmente distribuída. E a mudançaclimática impõe tensões tanto mais gravesquanto demorarmos a restringir as emissõesde carbono do uso do petróleo e outroscombustíveis fósseis.

Quanto ao tipo de transição que fizermos,isto dependerá muito das escolhas das pessoase, especialmente, dos governos. O papel dosgovernos é de suma importância; as principaisempresas energéticas existentes devem seenvolver na transição; todavia já têm bilhõesde dólares investidos em ativos quesimplesmente não podem abandonar. Só osgovernos podem criar as estruturas deincentivo para encorajar o investimentonecessário.

Escolhas governamentais ponderadasaumentarão as chances de realizar a transiçãopara uma nova era energética que poderáaliviar algumas das maiores tensões do regimeatual, sem maiores perturbações econômicase sociais. Más escolhas – inclusive o “statusquo” ou simplesmente deixar o barco correr– provavelmente nos levarão a uma era ondeos traumas econômicos, civis e climáticos doregime energético atual serão exacerbados.

Ambientalistas têm sido críticos dadependência exagerada do petróleo e deoutros combustíveis fósseis há anos, mas háhoje consenso significativo em muitos setoresquanto à necessidade de reformar a economiaenergética mundial. Está sendo amplamenteafirmado que uma independência energéticarígida para os Estados Unidos e outras

A mudança climática poderá causar

ondas de migrações, à medida que a

produtividade agrícola cair, a água

doce se tornar mais escassa ou o nível

do mar subir.

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importantes nações importadoras de petróleoé impossível, enquanto o petróleo continuarcomo uma parte substancial da economiaenergética global. Isto pode ser verdade,dependendo de como a nova economiaenergética evolua, particularmente no que dizrespeito a estratégias de transportes. Porém, oprovável mix de opções escolhidas comosucessor da economia do petróleo –renováveis, gestão de demanda, eficiência eoutras – encorajará flexibilidade, confiabilidadee vulnerabilidade reduzida mundialmente, aoenvolver sistemas energéticos menoscentralizados, uso de uma maior variedade detecnologias energéticas e combustíveis ediversificação de fontes.46

Esta transição assinala a proeminênciacrescente e penetração mercadológica dastecnologias de energia renovável, analisadasresumidamente nesta seção. Um elementoimportante, todavia, não é a tecnologia e simuma mudança política para a conservaçãointeligente. Longe de “congelar no escuro,” aconservação praticada como gestão dedemanda envolve uma vasta gama deesquemas sociais e econômicos que reduzemou eliminam a necessidade de energia, semperder os benefícios materiais do consumode energia. Pode ser tão simples quanto morarperto das lojas e do trabalho, dispensando oautomóvel ou o metrô para compras ou paratrabalhar.

Em nível institucional, leis de zoneamentocomunitário podem determinar os padrões

de desenvolvimento para facilitar essesesquemas de vida. Entre as concessionárias deeletricidade e gás natural, a gestão de demanda(também chamada de gestão do lado daprocura, ou DSM na sigla em inglês) assumea forma de programas que tornam oconsumidor mais consciente do seu consumoe do desperdício de energia e mostram comoambos podem ser reduzidos; de assistênciafinanceira para aumentar o uso de tecnologiaseficientes em termos energéticos, gestão decarga (incentivos para o uso de energia emhorários fora de pico); e outras opções. Oobjetivo é obter mais da energia consumida,ao invés de simplesmente aumentar oconsumo.47

Programas DSM podem economizar umvolume imenso de energia (e dinheiro). NosEstados Unidos, as concessionárias elétricasevitaram a construção de quase 30.000megawatts de capacidade, em 1996, o ano depico desses programas. Em termoseconômicos, isto significou que asconcessionárias não precisaram financiar econstruir – e os contribuintes pagarem – váriasusinas elétricas grandes, reduzindo o consumode combustível e poluição. Entretanto, essesprogramas foram torpedeados e começarama perder eficácia, no final dos anos 90, quandoa geração de eletricidade nos Estados Unidosfoi desregulada e as concessionárias novamenterecompensadas por gerar e vender eletricidadecomo mercadoria, ao invés de prestaremserviços – um poderoso exemplo de como apolítica governamental pode determinar oregime energético.48

Uma abordagem afim é a eficiênciaenergética, que envolve a disposição detecnologias modernas que utilizam menosenergia para realizar as mesmas tarefas.Lâmpadas fluorescentes compactas, que

Investimentos totais mundiais em

renováveis ultrapassaram US$ 20 bilhões,

em 2003, e o mercado poderá atingir US$

85 bilhões anuais, dentro de poucos anos

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duram mais e produzem luz equivalente commenor corrente do que as lâmpadasincandescentes comuns, são um exemplofamiliar. Milhões de residências foraminformadas tanto sobre DSM quanto sobrefluorescentes compactas pelos programas dasconcessionárias que baratearam e facilitarama aquisição das lâmpadas. Outro exemplo é oavanço nas tecnologias de motores deautomóveis – parte mecânicas (duplocomando no cabeçote, três ou mais válvulaspor cilindro ao invés de duas, tempo variáveldas válvulas) e parte eletrônicas (computadoressofisticados que controlam o combustível,ponto de centelhamento, etc.) – e seu uso maisdifundido em mais e mais veículos. A marchadesses avanços foi determinada por décadasde preço alto da gasolina na Europa e pelascrises do petróleo, nos anos 70 e 80, quedespertou os motoristas americanos para ovalor de uma boa economia de combustível.Políticas governamentais sob a forma depadrões de quilometragem de combustível defrota, ajudaram a manter o avanço – pelomenos por um tempo.

Essas melhorias podem fazer uma imensadiferença no orçamento energético de umanação. Ganhos de eficiência nos transportes eoutros setores ajudaram a economia dosEstados Unidos a elevar sua produtividadeenergética global (volume de produçãoeconômica por unidade de energia consumida)em 64%, entre 1975 e 2000. A produtividadedo petróleo melhorou surpreendentes 93%,embora as políticas governamentais nãotenham favorecido esta meta. Quandoefetivamente promoveram eficiência,especialmente no período de 1977 a 85, asimportações líquidas de petróleo caíram pelametade e as importações do Golfo Pérsicodespencaram 87%.49

Será que todas as melhorias óbvias deeficiência já foram obtidas? Dificilmente.Estima-se que a elevação da economia médiade combustível, em 2000, da frota de veículosleves dos Estados Unidos, de 1,37 quilômetrospor litro, teria economizado tanto petróleoquanto foi importado do Golfo Pérsiconaquele ano. Quando a eficiência decombustível era uma meta valorizada, no iníciodos anos 80, levou menos de três anos paraatingi-la. Um estudo de 2002, da AcademiaNacional de Ciência, estimou que a eficiênciada frota dos Estados Unidos poderia serquase dobrada de uma maneira custo-eficientesem perda de segurança ou desempenho – eeste estudo não levou em conta os ganhos deum uso mais amplo de tecnologias híbridasde gás ou elétricas. Outras tecnologias novas,envolvendo avanços não só em sistemaspowertrain (otimização de desempenho), mastambém na construção de carrocerias e chassis,são muito promissoras.50

Quanto a outros setores, melhorias deeficiência podem ser a forma mais custo-eficiente de reduzir emissões da carbonocomerciais e industriais. Um estudo estimouque a maioria dos prédios e fábricas poderiamreduzir seu consumo de eletricidade em pelomenos um quarto, com a economiacompensando o investimento em menos dequatro anos. Uma vez que os setorescomerciais e industriais consomem grandesvolumes de eletricidade – mais de 60% detoda a eletricidade gerada nos Estados Unidos,por exemplo – e a maior parte destaeletricidade ainda é gerada pela queima decombustíveis fósseis (principalmente carvão),a economia potencial de carbono é significativa- e a baixo custo.51

Consumir menos energia e com maioreficiência é necessário – mas não suficiente

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– para criar um regime energéticosustentável. Um mundo que deseje ficar livredo carbono deverá também planejar gerarsua energia de fontes renováveis,possivelmente com alguma contribuiçãotransicional de sistemas de combustíveisfósseis incorporando tecnologia de capturae armazenagem de carbono (ver Quadro6-2). Felizmente, isto não é mais um sonhofebril de ambientalistas; a era moderna dosrenováveis já chegou. Eletricidade eólica e

solar são as fontes de energia de maiorcrescimento do mundo; investimentosglobais totais em renováveis ultrapassaramUS$ 20 bilhões, em 2003, e o mercadopoderá atingir US$ 85 bilhões ao ano, dentrode poucos anos. O potencial teórico de energiade fontes renováveis é maior do que oconsumo global de energia por um fator de18, mesmo utilizando as tecnologias eólicas,solares, de biomassa e geotérmicas atuais.52

Os transportes poderão ser o setor mais

QUADRO 6-2. CAPTURA DO CARBONO: DESAFOGO DO COMBUSTÍVEL FÓSSIL OU CORTINA

DE FUMAÇA?

O Diretor-presidente da Shell Transport fezrecentemente uma observação surpreendente:“Ninguém pode estar confortável com a perspectivade se continuar lançando no ar o volume de dióxidode carbono como estamos fazendo hoje”, declarouLord Oxburgh, “com conseqüências que nãopodemos realmente prever, mas que provavelmentenão são boas.” Esta declaração, progressista para umexecutivo de uma empresa petrolífera, seriaindicadora de uma virada para renováveis.

Talvez – a não ser que o carbono liberado pelaqueima de combustíveis fósseis possa ser agregado eintroduzido de volta ao solo de onde veio. Estaopção, chamada de captura e armazenagem decarbono (CAC), deixaria um papel para oscombustíveis fósseis desempenharem na economiaenergética do futuro – e retiraria a pressão dasempresas de carvão, petróleo e gás natural e dospaíses com grandes reservas de combustíveis fósseis, eao mesmo tempo reduziria possivelmente a urgênciade conversão para energia renovável.

A captura do carbono está sendo promovidaagressivamente em certos setores: empresas decarvão, particularmente, têm grande interesse no seusucesso, uma vez que, com o petróleo em declínio,grande parte das emissões futuras de carbono adviriada queima do carvão. Mas as perspectivas para aCAC não estão definidas. Já está em uso limitado, porexemplo, a empresa petrolífera norueguesa Statoil,vem injetando CO

2 capturado em aqüíferos off-shore,

desde 1996, e hoje injeta um milhão de toneladas porano para evitar impostos de carbono. O dióxido decarbono também vem sendo reinjetado há temposem poços de petróleo para incrementar suarecuperação. Um estudo japonês conclui quereservatórios superficiais adequados, por si só,

poderiam armazenar 280 anos de emissões globais decarbono às taxas de 1990 e que – pelo menos noJapão – a CAC é tanto prática quanto competitiva,em termos de custo com medidas de conservação deenergia e energia renovável. Outras estimativas indicamque há capacidade de armazenagem subterrâneasuficiente para conter várias décadas de CO

2, às taxas

atuais de emissão.Entretanto, permanecem dúvidas. A maior é o

custo: cerca de US$ 150 por tonelada de carbonocom as tecnologias atuais, o que aumentaria o custo daeletricidade em 2,5 a 4 centavos de dólar por kWh. Astecnologias atuais também são adequadas apenas paragrandes fontes de CO

2, como usinas termelétricas a

carvão, que são responsáveis por menos de um terçodas emissões globais de carbono. São, assim, inúteispara limpar a imensa e crescente frota de veículos queemitem 42% do total global. E o que é mais grave,ninguém sabe por quanto tempo o CO

2 injetado ficará

latente, mesmo imperturbado – quanto mais se forsubmetido a terremotos ou outros abalos. Até hoje,estudos têm monitorado pontos de injeção apenas porpoucos anos, e mesmo taxas muito baixas devazamento poderiam reliberar CO

2 suficiente para

causar grandes problemas dentro de algumas décadas.Caso não haja solução definitiva, essas

preocupações indicam que confiar na CAC para algomais que uma contribuição temporária, transicional, deredução das concentrações atmosférica de carbono,seria arriscado.

Mais pesquisa poderá ajudar a responder algumasdessas questões. O Painel Intergovernamental sobreMudança Climática pretende divulgar um importanterelatório sobre a CAC, em 2005.

___________________________________________________________________________________________fonte: Vide nota final 52.

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Estado do Mundo 2005

desafiador para conversão, uma vez quemáquinas e infra-estrutura são quase queexclusivamente projetadas para combustíveislíquidos, extraídos do petróleo, densos emenergia e de fácil manipulação. Combustíveisde biomassa como etanol e biodiesel,entretanto, estão tecnicamente comprovadose podem ser economicamente competitivoscom a gasolina e o diesel. Estudos indicamque o etanol da biomassa celulósica (resíduosvegetais) poderá deslocar aproximadamentede um quarto a um terço da demanda degasolina dos Estados Unidos, a um preço dematéria-prima de US$ 50 por tonelada. AAgência Internacional de Energia, relati-vamente conservadora, estima que, em termosde potencial técnico, o etanol poderá vir arepresentar a metade ou mais dos combustíveisde transportes globais até 2050.53

O objetivo final é substituir a economiaenergética global do carbono pelo hidrogênio.O hidrogênio não é um gás de estufa e suaqueima não libera carbono algum. Quando épassado por uma célula de combustível, osprodutos são eletricidade, calor e vapord’água. Células de combustível de hidrogêniosão uma tecnologia antiga com a qual aspessoas se entusiasmaram alguns anos atrás.Todavia, parte deste entusiasmo esmoreceu,quando surgiram análises mas profundas dosdesafios transicionais. O potencial de longoprazo do hidrogênio é grande, porém ohidrogênio é mais um portador de energia doque um combustível per se. A capitalização nelepoderá depender de avanços técnicos nageração de eletricidade renovável eficiente paraextrair hidrogênio da água. (A utilização daenergia nuclear como fonte de eletricidade,apesar das esperanças dos seus proponentes,é muito dispendiosa e apresenta gravesproblemas de segurança.) Este sistema de ciclo

fechado seria neutro em carbono e poderiaser sustentando enquanto o sol brilhar – oupor vários bilhões de anos.54

Pessimistas do hidrogênio não contestam adesejabilidade de uma economia energética dehidrogênio, porém acreditam que a transiçãolevará mais tempo do que os otimistas pensame exigirá uma tecnologia-ponte. Uma destastecnologias é a de automóveis e caminhõesleves híbridos a gasolina e diesel-elétricos.Células de combustível ainda não estãotecnicamente prontas ou suficientementebaratas para aplicação veicular, porém oshíbridos podem ser quase tão eficientes quantoas células de combustível (e duas vezes maiseficientes do que os motores de combustãointerna), quando avaliadas numa base “poço-a-rodas.” Ademais, híbridos estão facilitandoa “estréia” de veículos a células de combustível,ao proporcionar um laboratório para odesenvolvimento de controles eletrônicoscruciais e sistemas de gestão de energia.55

Se as tecnologias de energia renovável sãotão atraentes, por que não obtemos maisenergia delas? A presença de mercado dosrenováveis até hoje é pequena, em termosabsolutos, apesar do seu extraordináriocrescimento recente. Entretanto, as razões têmpouco a ver com tecnologia e mais a ver como ambiente normativo e político. A maioriadas sociedades, inclusive os Estados Unidos,há muito está casada com combustíveis não-renováveis e instalações geradoras grandes ecentralizadas – usinas nucleares e a combustívelfóssil, gigantescas barragens hidrelétricas – eas tem sustentado com enormes subsídios aolongo dos anos.

As estimativas desses subsídios variammuito, devido a diferentes premissas edefinições; os subsídios podem incluir de tudo,desde isenções fiscais e créditos de exaustão a

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financiamento de P&D. (E, nos EstadosUnidos, a Lei Price-Anderson limita aresponsabilidade da indústria nuclear poracidentes catastróficos – uma vantagemincalculável, uma vez que nenhuma usinanuclear poderia ser segurada ou construídasem ela.) Não obstante, as estimativas sereminstrutivas: na Europa, subsídios nacionais eda União Européia para usinas nucleares e decombustíveis fósseis foram estimados, em1997, em quase US$ 15 bilhões anuais. Umrelatório de 2004 as estimou em 29 bilhõesde euros (US$ 36 bilhões), em 2001. Doisestudos diferentes de subsídios nos EstadosUnidos mencionam o total em US$ 5 bilhões(só para combustíveis fósseis) e US$ 36 bilhõesanuais. Apenas uma pequena fração desubsídios apoiava renováveis. Imagine-se oavanço que poderia ser alcançado – naelevação da relativamente baixa eficiência decélulas solares, por exemplo – se de US$ 20 aUS$ 30 bilhões anuais fossem direcionadospara pesquisas intensivas em renováveis ou emincentivos e rebates à produção para aumentarsua penetração de mercado.56

Além de remediar o desequilíbrio desubsídios, os governos podem e devem serproativos no aceleramento do crescimento dosrenováveis via reforma reguladora. Oambiente regulatório em muitos países não temsido suficientemente estável ou conducente ainvestimentos em renováveis. A rápida adoçãode renováveis poderá mitigar alguns dos pioresefeitos do aperto da oferta de petróleo emudança climática, porém os riscos eincertezas quanto às novas tecnologias poderãoobstaculizar os investimentos substanciaisnecessários, a não ser que os investidores sejamnão só informados quanto ao potencial dosrenováveis, mas também estejam convencidosde que o ambiente regulatório é estável econvidativo.

A experiência de vários países –especialmente Alemanha e Japão, que emapenas poucos anos se transformaram emlíderes mundiais em energia eólica efotovoltaicos, respectivamente – fornece umadiretriz clara para os governos em quatroprincipais categorias políticas, além dareformulação de políticas de subsídios.57

Em primeiro lugar, os governos devemassegurar que renováveis tenham acesso efetivoaos mercados energéticos. A tática mais eficaz,até hoje, tem sido legislação tarifária, quegarante preços mínimos fixos para eletricidadee obrigam as concessionárias a permitiremacesso a grades. Sistemas de cotas, que exigemuma participação ou capacidade mínima derenováveis, também funcionaram; exemplosincluem padrões de renováveis implantadosem vários estados nos Estados Unidos e cotasde etanol no Brasil.

Em segundo, os investidores e consu-midores, são freqüentemente mal informadossobre a disponibilidade e o potencial dosrecursos renováveis, novos desenvolvimentostecnológicos e incentivos existentes paraconstrução de capacidade renovável ouinstalação de equipamentos. Governos, gruposnão-governamentais e a indústria devemcooperar não apenas para desfazer estaignorância, como também para assegurar adisponibilidade de uma força de trabalhoespecializada para construir, instalar e mantersistemas de energia renovável.

Em terceiro, já está demonstrado que aparticipação pública na determinação depolíticas, desenvolvimento de projetos epropriedade aumenta o apoio político e aschances de sucesso, seja o projeto uma turbinaeólica na Dinamarca ou uma minigrade solarno Nepal.

Finalmente, normas industriais, exigência delicenças e códigos de construção são

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importantes para assegurar que equipamentoinferior não seja colocado no mercado edestrua a confiança de consumidores einvestidores, que temores públicos quanto àlocalização de usinas sejam atendidos e quenovas edificações sejam compatíveis comrenováveis.

Essas medidas, efetivamente, são o cernedo manual de operação para a transição deuma economia de petróleo para umaeconomia de renováveis. Como observadoanteriormente, as melhores estimativas atuaissobre quando a oferta escassa de petróleo eos preços em ascensão irão determinar o fimda era do petróleo indicam um prazo de 30anos a partir de agora. A substituição completada infra-estrutura energética mundial atual(valendo cerca de US$ 10 a 12 trilhões)também levará de 30 a 40 anos e exigirá cercade US$ 16 trilhões. Desviar a fatia do leãodeste investimento – sem falar dos recursosadicionais – para os renováveis dará aomundo uma nova economia energética deuma forma oportuna.58

Sabemos como fazê-lo e sabemos quedeverá ser feito logo. Terão os governos e oscidadãos comuns a vontade de agir? Há muitossinais promissores, como as leis sobre energiarenovável da Europa. E, em 2004, a China

prometeu que, até 2010, irá gerar 10% de suaenergia elétrica de “novas” fontes renováveis(ou seja, não incluindo grandes hidrelétricascomo o Projeto Três Gargantas). Nos paísescom políticas pouco progressistas, algunsgovernos locais estão aceitando o desafio; nosEstados Unidos, por exemplo, muitos estadosoferecem programas de rebates e outrosincentivos para encorajar as pessoas ainstalarem equipamento de energia solar nostelhados de suas residências.59

A consolidação destes e de outros esforçospara transformar o regime energético globaldominado pelo petróleo é hoje premente. Opetróleo foi outrora uma linha de vida para acivilização, mas hoje é um laço. Chegamos auma encruzilhada. Um caminho leva àprobabilidade de perda calamitosa de umafonte primária de energia, antes de o mundoestar preparado e, portanto, para um planetaeconomicamente precário, mais quente e maisperigoso. O outro caminho nos leva para forado petróleo, antes que a crise crie o pânico, eem direção a um mundo de energiaabundante, limpa e estável, mais amplamentedisponível para um número maior do quenunca de pessoas no mundo. Ou, em outraspalavras, nossa opção é ser carente de petróleoou ser livre dele.

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Energia Nuclear

L I G A Ç Ã O D E S E G U R A N Ç A

Existem hoje 438 usinas nucleares comerciaisoperando em 30 países. Estes reatoresfornecem 16% da eletricidade global, umaconsideração importante para um mundoonde a demanda energética está crescendorapidamente. No entanto, elas representamtambém um alvo tentador para terroristas, esua destruição – intencional ou acidental – podeter efeitos catastróficos. Mais ainda, como osmateriais nucleares são retirados das minas eespalhados pelo globo, eles contaminam osolo, ar e a água, prejudicando o meio ambientee a saúde humana. 1

Ataques simulados a usinas nucleares têmdemonstrado que muitos reatores são poucoseguros. Tanto nos Estados Unidos quantona Rússia, agências governamentais realizaramataques simulados em reatores, somente paraprovar que as defesas das usinas nucleares sãomuitas vezes inadequadas para evitarinfiltrações ou instalação de bombas falsas.Vinte sete dos 57 ataques simulados nosEstados Unidos, durante a década de 90,revelaram vulnerabilidades agudas que podiamter causado “estrago no núcleo” e “vazamentoradiativo”. Mesmo grupos ambientalistasforam capazes de simular com sucesso ataquesa usinas nucleares. Em 2003, para demonstrara vulnerabilidade da usina, os ativistas doGreenpeace invadiram a usina nuclear Sizewell,do Reino Unidos, e escalaram o reator semresistência. 2

A sabotagem dos reatores nucleares não éa única ameaça. Como a história temdemonstrado, erros de construção e falhashumanas podem ter efeitos desastrosos, se não

forem corrigidos a tempo. Desde o início daera nuclear, tem havido centenas de acidentesnucleares. Embora alguns tenham sido deimportância relativamente menor, outros têmsido catastróficos – o mais grave ocorreu emChernobil, na Ucrânia, em 1986. O vazamentode um reator causou pelo menos 6.000mortes, bem como índices elevados de câncerda tireóide, dano ambiental significante e oreassentamento de mais de 370.00 pessoas. 3

Por pouco também deixaram de ocorreracidentes graves. Por exemplo, em 2002, nausina Davis-Besse, em Ohio, ácido bóricocorroeu um buraco na chapa de 17centímetros no cabeçote do reator. Se tivesseatravessado o meio centímetro restante de açoque continha o líquido refrigerante, poderiater ocorrido um vazamento. Como advertiuuma análise da Union of Concerned Scientists, de2004, muitas das 103 usinas nucleares dosEstados Unidos estão agora entrando naúltima fase de vida útil, o que aumenta aprobabilidade de falha de reator e de possíveisdesastres. 4

Mesmo sem ataques ou acidentes, materiaisnucleares ameaçam a segurança global maissutilmente. Em 2002, cerca de 65.000toneladas de urânio foram usadas em usinascomerciais do mundo – 36.000 toneladas dasquais foram extraídas de minas de urânio. Estasminas muitas vezes ameaçam as comunidadesvizinhas, criando poeira e resíduos que podemespalhar contaminação radioativa. Porexemplo, no Quirjistão, pelo menos 2 milhõesde toneladas de refugo de urânio estãodepositadas em 23 lagoas de resíduos de

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ENERGIA NUCLEAREstado do Mundo 2005

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M a i l u u - S u u .Restos de mine-ração e de ope-rações de moa-gem do urâniosoviético, estesresíduos estão aponto de vazar norio local e podemf a c i l m e n t econtaminar o vale do rio Fergana e seus 6milhões de habitantes.5

Alguns dos resíduos mais radiativos nãopermanecem perto das velhas minas, mas nolocal de usinas nucleares na forma decombustível usado. Muitas vezes, do mesmomodo que os reatores, são protegidosinadequadamente, representando riscos àsegurança. Embora seja essencial encontrarinstalações de armazenagem de longo prazopara proteger estes resíduos, o desafio seráencontrar locais adequados que permaneçamgeologicamente estáveis por centenas demilhares de anos – que é o tempo que o urâniocontinua nocivo.Atualmente, os Estados

Unidos estão planejando construir umdepósito na montanha Yucca, no estado deNevada. Entretanto, os críticos questionam aadequação deste local: é geograficamenteinstável e a água nos depósitos pode corroeros recipientes de estocagem, contaminandoas reservas de água subterrânea da região.6

Um modo imediato de reduzir a ameaçanuclear seria desativar tantas armas nuclearesquanto fosse possível e convertê-las emcombustível. Existe um benefício duplo na

conversão do urâ-nio enriquecido emcombustível nu-clear: diminui opotencial do urâniopara armas cair emmãos de terroristase reduz a neces-sidade de minerarmais urânio, retar-

dando assim a injeção de novos materiaisnucleares em circulação. Os Estados Unidose a Rússia já estão convertendo ogivas, atravésda Cooperative Threat Reduction Initiative. Nosúltimos 10 anos, cerca de 8.000 ogivasnucleares foram desmontadas e convertidasem combustível nuclear – suprindo assimmetade do urânio necessário para funcionarusinas nucleares nos Estados Unidos. 7

Embora seus defensores sempre aleguemque a energia nuclear ajudará a reduzir a ameaçade mudança climática, eles raramenteincorporam o ciclo total do combustível emsuas considerações. De acordo com o Oeko-Institut, quando as emissões indiretas sãoincluídas, a energia nuclear produz de 1,5 atrês vezes o dióxido de carbono por kW/hque a energia eólica produz. Acrescente-se aisto a poluição, efeitos na saúde e riscos desegurança desta fonte de energia, e a energianuclear torna-se cada vez menos uma opçãorazoável. 8

Para eliminar completamente a ameaça quea energia nuclear representa, as usinas nuclearesprecisariam ser desativadas, completamente.Embora isto possa parecer impossível em

Bastões de combustível usado numa lagoa dearmazenagem de uma usina nuclear britânica

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ENERGIA NUCLEAREstado do Mundo 2005

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alguns países – na França, por exemplo, 78%da eletricidade são gerados por energianuclear –, Bélgica, Alemanha, Suécia eEspanha estão planejando eliminar esta fontede energia nos próximos 20 a 30 anos. Noentanto, esta pode ser mais umacontratendência do que uma tendência: emtodo o mundo, 28 novos reatores estão sendoconstruídos e outros 35 estão em projeto,inclusive em alguns países que não tinhamconstruído novas usinas há décadas. Em 2002,o Parlamento da Finlândia aprovou aconstrução de um novo reator – o primeiroem 20 anos. Os prováveis 8% de aumentoda capacidade nuclear nos próximos cinco

anos aumentarão a circulação de materiaisnucleares, concorrendo conseqüentementecom ameaças à segurança, poluição, e danos àsaúde. 9

Como é sabido, facilitar a desativação daenergia nuclear será um grande desafio, já queé uma das indústrias mais protegidas domundo. Mas, com o término dos subsídiosvolumosos que a indústria recebe, remoçãodo seguro contra catástrofe e isenções deseguro, e inclusão dos custos ambientais esociais da energia nuclear, os legisladorespodem fazer o preço da energia nuclear refletirseus custos verdadeiros.

- -Erik Assadourian

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MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

Estado do Mundo 2005

Desarmando as SociedadesPós-guerra

C A P Í T U L O 7

Michael Renner

Como analisada neste Estado do Mundo 2005, asegurança é influenciada por um conjunto defatores bem mais amplo do que os limitesestreitos que o pensamento tradicional poderiasugerir. Isto não quer dizer, entretanto, quequestões relacionadas a armas e combatentessejam irrelevantes. Gastos militares desviamrecursos escassos de programas sociais eambientais que – adequadamente financiados– formam a base de um mundo mais estável.E os legados de guerras passadas podem serobstáculos poderosos para a criação desociedades mais seguras e pacíficas. Isto é tãoverdadeiro para as repercussões ambientais deconflitos armados – desde florestas pilhadas esistemas de irrigação devastados, até adisseminação de armas de urânio empobrecido– como o é para a vasta gama de armasproduzidas e comercializadas por todo o planeta.

As armas que os orçamentos militarescompram são aparentemente adquiridas paraincrementar a segurança, mas podem bem tero efeito contrário. Por todo o espectro dearmamentos, há uma necessidade urgente de

se promover o desarmamento, a fim dereduzir a probabilidade de as armasalimentarem guerras, provocarem ondas decrimes ou ficarem disponíveis para extremistas.

Embora este capítulo enfoque armasconvencionais de pequeno calibre, outros tiposde armas são, naturalmente, de grandeimportância. Armas nucleares, químicas ebiológicas, minas terrestres e armasconvencionais pesadas – tanques, jatos, mísseise belonaves – são uma ameaça contínua àsegurança econômica e física de todas asnações. Os que têm armas nucleares nãodemonstram nenhuma inclinação paradesarmamento. Enquanto isso, Israel, Índia,Paquistão e, possivelmente, Coréia do Norteentraram no “clube” nuclear e o Irã poderáentrar também, em breve. Na medida em queas nações perseguem programas nucleares“civis,” sempre haverá alguma ambigüidadesobre as verdadeiras intenções e sempre haveráo perigo de que os materiais possam vir a serdesviados para programas de armas ou vir aser roubados por grupos terroristas.

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Estado do Mundo 2005DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

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Há também um temor crescente de quearmas químicas ou materiais precursoresnecessários para sua fabricação possam cairem mãos terroristas. Felizmente, neste caso, hámuito mais avanço em direção aodesarmamento universal, motivado não sópor um tratado como também por umsentimento de que os estoques existentesrepresentam maior perigo para seus donos doque para qualquer inimigo. No caso das armasbiológicas, todavia, a ambigüidade é muitomaior: embora uma convenção internacionalproíba esses arsenais, não há meios de saberse as nações cumprem esse tratado e todos osesforços para criar um mecanismo deverificação fracassaram diante da oposição dosEstados Unidos.

Minas antipessoais causaram pesadas baixasdurante décadas. Continuam a matarindiscriminadamente muito depois de umconflito ter terminado e não distinguemsoldados de civis. Estimativas indicam que ummilhão de pessoas foram mortas ou mutiladaspor minas terrestres, desde 1975; cerca de 80%delas eram civis. Entretanto, desde aaprovação de um tratado internacionalproibindo minas antipessoais, em 1999, foramobtidos avanços significativos nos últimosanos, tendo a produção e exportação caídodrasticamente e estoques foram destruídos emritmo acelerado. Todavia, conforme aCampanha Internacional de Proibição deMinas Terrestres, seis países ainda utilizamminas antipessoais e Rússia e Myanmar asutilizam regularmente. Além disso, forças deoposição armadas continuam a utilizar minasem 11 países. Assim, ainda há um longocaminho a percorrer, antes que as minasterrestres deixem de ser um problema.1

A produção e comércio de grandes armasconvencionais continuam, de certa forma, sem

interrupção. Após o fim da guerra fria, osgovernos efetivamente concluíram um tratadoque regula vários tipos desses armamentos naEuropa e uma quantidade gigantesca foidesmantelada. Porém, muitas outras foramvendidas para outros países, com poucapossibilidade de essas nações concordaremcom os limites sobre armas convencionaispesadas.

Enquanto isso, armas convencionaismenores – o foco deste capítulo – foramresponsáveis pela maioria das mortes, nasúltimas décadas, durante e após conflitosarmados. A ampla disponibilidade dessasarmas leves impede a pacificação, apósconflitos armados terem terminado,facilitando violência criminosa, pessoal epolítica, mesmo em países que não estejamem guerra. Paz e estabilidade verdadeiras emregiões devastadas por guerras continuarãoinatingíveis, a não ser que soldados e outroscombatentes sejam desarmados, desmo-bilizados e reintegrados à sociedade.

Um “Faroeste” Global

Nos países por todo o globo, há centenasde milhões de “armas pequenas e armas leves”de baixa tecnologia, baratas, resistentes e defácil manejo. Esta categoria inclui um amploespectro de armas na posse de militares e civis– como pistolas de mão e rifles de caça, riflesde assalto e metralhadoras.2

Armas pequenas são as preferidas, namaioria dos conflitos modernos – batalhasdisputadas dentro, ao invés de entre países.Estima-se que cerca de 300.000 pessoas sãomortas por armas pequenas anualmente emconflitos armados. Mas, quando as armas sãoendêmicas, também afetam as sociedades queestão formalmente em paz. Assim, outras

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DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

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Estado do Mundo 2005

200.000 pessoas morrem anualmente emviolência relacionada às armas, e 1,5 milhãode pessoas são feridas. Nas mãos de governosrepressivos ou déspotas cruéis, as pequenasarmas podem contribuir para violaçõesmaciças de direitos humanos – expulsando ou“desaparecendo” pessoas, silenciandoopositores políticos e intimidando a sociedadecivil.3

A distribuição de armas entre exércitosprivados e milícias, grupos insurgentes,organizações criminosas, turmas de vigilantese cidadãos privados alimenta um ciclo deviolência que, por sua vez, causa uma demandaainda maior. A violência política lança governoscontra forças insurgentes que lutam paraderrubar o governo ou se separar; a violênciacomunitária envolve grupos étnicos oureligiosos diferentes, ou de outras identidades;e a violência criminosa envolve traficantes,grupos do crime organizado ou pequenoscriminosos. Além de danos pessoais e perdade vida, a ampla disponibilidade de armaspequenas cria um clima de medo e ilegalidadeque pode solapar a estabilidade política,desbaratar a atividade econômica e ameaçardestruir realizações desenvolvimentistas dopassado.

Embora altos níveis de posse de armas nãoredundem automaticamente em violência, afácil disponibilidade de armas faz a diferença.Isto ocorre particularmente em sociedadesonde as desigualdades sociais e econômicassão acentuadas, a pobreza é endêmica, odesemprego leva os jovens de futuro incertoa se unirem a gangues ou milícias, o tecidosocial está sob tensão aguda, onde persistemfortes animosidades étnicas intergrupais ououtras, ou a legitimidade das instituiçõespolíticas está em dúvida.

Sociedades que emergiram de um longoperíodo de guerra freqüentemente continuama sofrer tensões e violência consideráveis,alimentadas por insatisfações não resolvidas,uma cultura de violência e grandes estoquesde sobras de armas. Combatentes recém-desmobilizados, quase sempre mal-equipadospara a vida civil, podem se voltar para obanditismo. Países do sul da África e váriosda América Central, por exemplo, sofreramuma transição inconsútil da violênciapoliticamente motivada para a criminosa, noinício dos anos 90, sofrendo mortes que seequipararam ao número de pessoas quesucumbiram durante os conflitos armados.Mais recentemente, países como Sri Lankaenfrentam problemas semelhantes; como aguerra civil aparentava estar prestes a terminar,armas disponíveis abertamente provocaramuma onda de crimes.4

A América Latina se destaca neste quadroglobal, devido à sua alta taxa de mortes porarmas de fogo. Na Venezuela, a relação é de21 homicídios com armas por 100.000habitantes, na Jamaica 17, Brasil 14 e naColômbia devastada por conflitos, 50, emcomparação a 30 por 100.000 habitantes naÁfrica do Sul, porém 3,5 nos Estados Unidose 0,2 na Alemanha. Crianças estão cada vezmais envolvidas com sindicatos de traficantesde drogas e violência urbana. No Rio deJaneiro, por exemplo, cerca de 12.000 criançase adolescentes estão envolvidos com o tráficode narcóticos e, em El Salvador, pelo menos25.000 crianças pertencem a gangues.5

A violência com armas pequenas pode ter

conseqüências fatais para o desenvolvimento

humano, conturbando sistemas de saúde e

educacionais já estressados.

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Violência com armas pequenas pode terconseqüências fatais para o desenvolvimentohumano, conturbando sistemas de saúde eeducacionais já estressados. Por toda a Áfricasubsaariana, por exemplo, esforços devacinação têm sido impedidos. Na RepúblicaDemocrática do Congo, um terço de todasas crianças entre 5 e 14 anos ficaram fora dasescolas, entre 1999 e 2000, com maiorproporção nas áreas mais afetadas palaviolência contínua. Na Jamaica, 30% dasmeninas pesquisadas declararam que tinhammedo de ir à escola, devido ao perigo ligadoàs armas de fogo.6

Armas pequenas podem contribuir para umdeclínio vertiginoso e até mesmo para ocolapso da atividade econômica, sem falar dadestruição direta ou deterioração da infra-estrutura física. Guerras civis, banditismo eoutras formas de violência armada podemcausar um colapso da confiança básica,essencial para o comércio e outras transaçõeseconômicas. Investidores tendem a se afastarde países onde a segurança pessoal e a garantiada propriedade estejam em risco. E, nas áreasrurais, a violência endêmica pode forçar osagricultores a abandonarem suas plantações.Em Angola, por exemplo, a participação daagricultura no Produto Interno Bruto (PIB)caiu de 23%, em 1991, para 6%, em 2000.Entre os grupos pastores no leste da África, oinfluxo de armas de alto calibre tornou aspráticas tradicionais de roubo de gado muitomais violentas.7

Lidar com crime e violência desvia umaparcela crescente de investimentos, ajudaexterna e orçamentos domésticos para finsimprodutivos. Precisa-se gastar tanto compolícia, aplicação da lei, segurança particular eoutras formas de “segurança,” que pouco restapara os serviços sociais. Este é o caso da África

do Sul, onde o orçamento policial para 2000e 2001 foi 26% superior ao da saúde. NaAmérica Latina, despesas de segurança públicae privada absorveram aproximadamente de13 a 15% do PIB conjunto da região, emmeados dos anos 90 – superando as despesasassistenciais e previdenciárias.8

Vender, Saquear,Contrabandear

Por terem sido sempre consideradasessenciais para proteção nacional e pessoal,armas pequenas são produzidas, comercia-lizadas e armazenadas por muitas décadas,com pouca atenção para as repercussões nasegurança pública, desenvolvimento e meiosde vida. Não se sabe quantas dessas armasexistem, e a maioria dos governos e empresascontinuam sendo extremamente reticentesquanto a disponibilizar esta informação. Combase em premissas conservadoras, a SmallArms Survey, de Genebra – a mais confiávelfonte de informação pública –, estima osestoques globais de armas militares e civis em639 milhões. Para grande parte das regiões epaíses mundiais, só existem estimativasaproximadas e freqüentemente parciais parao número de armas pequenas em poder dapopulação civil, polícia, forças armadas egrupos insurgentes. (Ver Tabela 7-1.)9

A utilidade de números agregados, por sisó, é naturalmente limitada, uma vez queincluem uma variedade imensa de tiposdiferentes de armas. Armas militares,calculadas em mais de 240 milhões, têm maiorpoder de fogo. O que mais predomina entreestas são os rifles de assalto, dos quais cercade 90 a 122 milhões foram produzidosmundialmente. Mas armas de fogo civis – bemmais numerosas – podem na realidade

e ter

vimento

úde e

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representar um desafio ainda maior em relaçãoao crime e violência urbana. Entretanto,números apenas não são bons previsores dasconseqüências prováveis. Contexto social eintencionalidade são cruciais. Alguns países quenão estão em guerra possuem arsenais muitomaiores de armas de fogo do que outros,assolados pela violência organizada. Umaarma nas mãos de um indivíduo impiedosoou de grupos como déspotas, rebeldes ousindicatos de crime tem muito mais chancede ser utilizada. Mesmo quantidades limitadasde armas pequenas podem causar morte,dano e devastação em larga escala.10

A produção global de armaspequenas está estimada em 7,5 e 8 milhões deunidades anuais, das quais 7 milhões são dotipo civil e o restante militar. Estima-se que aprodução anual de munição para armaspequenas de calibre militar esteja na faixa de10 a 14 bilhões de pentes – ou cerca de 1,5 a2 balas para cada pessoa viva no mundo. Aprodução de armas militares pode estaraumentando no rastro das invasões doAfeganistão e Iraque e dos programas derearmamento nos Estados Unidos, Rússia,China e partes da Europa. Se assim for, istoseria uma reversão das tendências dos últimosanos.11

Os Estados Unidos, Rússia e China são osmaiores produtores, mas existem pelo menosoutros 27 países produtores médios – 15 naEuropa, 6 na Ásia, 3 no Oriente Médio, maisCanadá, Brasil e África do Sul. No total, pelomenos 1.249 empresas em 92 países estãoenvolvidas na fabricação de armas. Nãoconstam desta estatística grupos de insurgentese de oposição em vários países, com condiçõesde produzir armas simples, de pequenocalibre. Também a produção ilegal, empequena escala, parece estar relativamente

generalizada, ocorrendo em pelo menos 25países, inclusive Chile, Gana, África do Sul,Turquia, Paquistão e Filipinas.12

Apesar dos esforços crescentes na coletade dados e transparência, o mundo ainda estálonge de ter um quadro claro e consistente,até mesmo do comércio autorizado de armaspequenas, sem falar dos negócios do mercadonegro ou cinza. Estados Unidos, Itália, Bélgica,Alemanha, Rússia, Brasil e China são osmaiores exportadores, enquanto EstadosUnidos, Arábia Saudita, Chipre, Japão, Coréiado Sul, Alemanha e Canadá são os principaisimportadores. A Small Arms Survey estima ocomércio internacional legal em US$ 4 bilhõesanuais, ou cerca da metade do valor estimadoda produção total; calcula-se que o comércioilícito se situe em torno de US$ 1 bilhão.13

Em última análise, entretanto, épraticamente impossível traçar uma linhadivisória entre essas categorias, pois uma arma“legal” pode facilmente se tornar ilícita. Umaparcela significativa até mesmo do comérciointernacional legal é realizada em segredo. Einúmeras redes comerciais permitemfornecimentos clandestinos por agênciasgovernamentais, vendas no mercado negropor comerciantes privados e transferências nãoautorizadas de recipientes originais parasecundários. Acrescentando-se outros fatorescomo roubo ou perda de muitas armaspequenas, após sua fabricação, não há meiospossíveis de se saber em que mãos as armasirão acabar.14

O comércio de segunda mão começou aflorescer após a guerra fria, quando osexércitos da América do Norte, Europa e Ex-União Soviética doaram grande parte de seusequipamentos excedentes ou venderam apreços baixos. Desfazer-se de estoquesexcedentes pode fazer sentido sob um ponto

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TTTTTabela 7-1. Estimativas Aproximadas dos Estoques de Armas Pabela 7-1. Estimativas Aproximadas dos Estoques de Armas Pabela 7-1. Estimativas Aproximadas dos Estoques de Armas Pabela 7-1. Estimativas Aproximadas dos Estoques de Armas Pabela 7-1. Estimativas Aproximadas dos Estoques de Armas Pequenas,equenas,equenas,equenas,equenas,Países e Regiões SelecionadasPaíses e Regiões SelecionadasPaíses e Regiões SelecionadasPaíses e Regiões SelecionadasPaíses e Regiões Selecionadas

País ouRegião

América Latina

Estados Unidos

União Européia (UE)

Europa não-EU (incluindo Rússia)

África subsaariana

África do Sul

Iraque

Iêmen

Índia

Paquistão

China

Estoques Estimados

De 45 a 80 milhões (de 37 a 72 milhões civis, 1,8 milhão policiais, 7 milhõesmilitares)

De 238 a 276 milhões (civis, policiais e militares)

67 milhões (de 15 a 16 milhões militares e policiais)

Pelo menos de 13 a 14 milhões de armas de fogo (civis apenas)

29 milhões (23 milhões civis; 600 mil grupos insurgentes; o restante é demilitares e policiais)

4,5 milhões (civis apenas)

Pelo menos de 7 a 8 milhões (armas militares e civis), possivelmente muito mais

De 5 a 8 milhões (militares e civis)

48 milhões (40 milhões civis; 7 milhões militares; 600.000 policiais; 100.000insurgentes)

23 milhões (20 milhões civis; 3 milhões militares; 400.000 policiais)

30 milhões (pelo menos 27 milhões militares; 3 milhões policiais); informaçõesinsuficientes sobre posse civil

Obs.: Estes números, na maioria dos casos, representam estimativas muito primárias.

FONTE: Vide nota final 9.

de vista estreito de custo-benefício, comeconomia de recursos e esforço necessáriospara desmantelar e destruir as armas obtendo,ao mesmo tempo, uma fonte de receita. Masse essas armas forem para clientes indesejáveisou irresponsáveis, o custo a longo prazopoderá ser substancialmente maior do que oprevisto.15

Embora Noruega e Alemanha tenhampraticamente cessado as exportações de armasou munições excedentes, o Reino Unido,Rússia e Estados Unidos ainda seguem a velhaprática. No final dos anos 90, por exemplo,Washington vendeu cerca de 320.000 armas

excedentes para governos “amigos.” (NosEstados Unidos, armas excedentes sãotambém rotineiramente transferidas paraórgãos domésticos de segurança ou vendidaspara o público.)16

Em vários países em desenvolvimento, ascompras de armas são financiadas através davenda de mercadorias ou escambo direto porrecursos naturais, produtos animais ou drogas.Na Libéria, Serra Leoa e Angola, por exem-plo, a receita de diamantes, petróleo, madeirae produtos da vida silvestre ajudou tanto ogoverno quanto as forças rebeldes aadquirirem armas. Rebeldes cambojanos

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pagaram por suas atividades através da vendade madeira e pedras preciosas. E, noAfeganistão, mujahideen anti-soviéticos, eposteriormente o Talibã, se sustentaramatravés do comércio de ópio.17

Outras fontes importantes de escoamentode armas são a captura delas por forçasinsurgentes, o saque generalizado de depósitosmilitares e policiais e os “vazamentos”contínuos de arsenais governamentais, comsoldados roubando e vendendo as armas.Houve casos, por exemplo, de armas dearsenais militares e policiais da Argentinaalugadas para gangues domésticas econtrabandeadas para o Rio de Janeiro,assolado pelo crime. Há também evidênciasde que armas pequenas estão sendo desviadasdos estoques do governo da Arábia Sauditapara uma variedade de organizaçõesterroristas, inclusive a al Qaeda. Nas Filipinas,a grande maioria das armas nas mãos deinsurgentes veio de depósitos policiais emilitares.18

Alguns casos envolvem quantidadesimensas de armas. Após a queda da ditadurade Siad Barre, na Somália, centenas demilhares de armas foram pilhadas de arsenaismilitares em 1991 e 92, fomentando aascensão de déspotas. Em 1997, uma revoltapopular na Albânia provocou o saque dedepósitos militares e policiais. Cerca de643.000 armas pequenas foram roubadas emuitas contrabandeadas para albanesesétnicos nas regiões vizinhas de Kosovo eMacedônia, onde conflitos se desencadearamposteriormente. Armas pequenas sãofreqüentemente transportadas ilicitamente deum ponto crítico do mundo para outro (verTabela 7-2). Quando um conflito em umdeterminado país chega ao fim, conflitos emandamento em outros países proporcionam

um mercado tentador e lucrativo para sobrasde armas.19

Uma das transferências de armas pequenasmais extraordinárias e rápidas ocorreu após ocolapso do regime de Saddam Hussein, noIraque, quando os arsenais do governo foramsaqueados. Quando o comandante das forçasde ocupação, Paul Bremer, debandou oexército iraquiano, em maio de 2003, nãoapenas acelerou o fluxo de armas para asociedade civil, como também criou uma classede pessoas que, embora houvessem perdidorepentinamente seu meio de vida, estava bemarmada. Cerca de 4,2 milhões de armasdesapareceram dos arsenais e se somaram apelo menos outras 3 milhões, já em mãos doscivis. Esta enxurrada de armas ajudou a armaras milícias mantidas por líderes rivais regionais,religiosos e faccionais, provocando o aumentodo crime e de mortes entre uma populaçãoempobrecida e desesperada. Poderá ainda vira solapar a estabilidade de países vizinhos, casouma parcela significativa cruze fronteirasdifíceis de controlar. Já há informações dearmas AK-47 e lançadores de granadasiraquianos surgindo na Arábia Saudita.20

Além dessas perdas impressionantes, háinúmeros incidentes de pequenos volumes dearmas sendo perdidos ou desviados. Oimpacto cumulativo não é menos insidioso.No mínimo, 1 milhão de armas de fogo sãoperdidas ou roubadas, mundialmente, a cadaano, principalmente de particulares, emborao total provavelmente seja muito maior.21

Até Agora, uma ReaçãoMedíocre

Lidar com a proliferação de armaspequenas requer uma profusão de abordagens.A experiência da Colômbia, ao longo das

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últimas quatro décadas, ilustra os problemasenfrentados por governos e sociedadesatolados em armas pequenas (ver Quadro 7-1). Entre as novas abordagens necessárias estãomaior transparência; controles mais rígidos deexportação para evitar embarques ilícitos; maior

cooperação entre alfândegas; códigos deconduta e embargos para evitar transferênciasa usuários questionáveis; redução do númerode armas em circulação, através de programasde recompra de armas e outros métodos decoleta; e destruição de estoques excedentes.22

TTTTTabela 7-2. Exemplos Selecionados de Tabela 7-2. Exemplos Selecionados de Tabela 7-2. Exemplos Selecionados de Tabela 7-2. Exemplos Selecionados de Tabela 7-2. Exemplos Selecionados de Transferências de Armas Pransferências de Armas Pransferências de Armas Pransferências de Armas Pransferências de Armas Pequenas deequenas deequenas deequenas deequenas deum Ponto Crítico a Outro, Década de 70 até 2002um Ponto Crítico a Outro, Década de 70 até 2002um Ponto Crítico a Outro, Década de 70 até 2002um Ponto Crítico a Outro, Década de 70 até 2002um Ponto Crítico a Outro, Década de 70 até 2002

Origem

Vietnã

Organização para Libertação daPalestina

Nicarágua e El Salvador

Afeganistão

Líbano

Moçambique e Angola

Camboja

Sudeste da Ásia

Sudão e Somália

Grécia e Turquia

Libéria

Recebedores

Após o fim da guerra do Vietnã, sobras de armas e munições americanas foramadquiridas por Cuba e, posteriormente, pelo governo sandinista da Nicarágua einsurgentes salvadorenhos.

Munições soviéticas confiscadas pelas forças israelenses foram transferidas pelaCIA para os rebeldes Contra da Nicarágua, nos anos 80.

Armamentos dos Estados Unidos despejados nas guerras civis da AméricaCentral nos anos 80 formaram, posteriormente, parte de um mercado negroregional, com armas indo para México, Colômbia, Peru e ganguessalvadorenhas nos Estados Unidos.

Dois terços de armas valendo US$ 6 – 9 bilhões, destinadas aos combatentesanti-soviéticos durante os anos 80, acabaram no Paquistão, região do Punjab naÍndia, Caxemira, Tajiquistão, Sri Lanka, Myanmar e Argélia.

Sobras de armas da guerra civil dos anos 70 e 80 foram transferidas para aBósnia, no início dos anos 90.

Armas originalmente fornecidas para forças antigovernamentais emMoçambique e Angola pelo regime apartheid, da África do Sul, foramposteriormente contrabandeadas de volta à África do Sul, alimentando umaextraordinária onda de crimes.

Fluxos de armas foram rastreados para as Filipinas, Aceh (Indonésia), Sri Lanka,Índia e Caxemira.

Rebeldes da região de Assam, na Índia, receberam armas de outros insurgentes,inclusive dos rebeldes Tamil de Sri Lanka, Kachins de Myanmar, Khmer Rougedo Camboja e grupos Kashimiri.

Um influxo de armas de zonas de guerra para o Quênia transformou conflitosmenores entre pecuaristas em confrontos cada vez mais violentos.

Rebeldes PKK curdos transferiram mísseis Stinger para os rebeldes Tamil de SriLanka. Os mísseis foram fabricados na Grécia, sob licença dos Estados Unidos.

Ex-combatentes estão supostamente contrabandeando AK-47s e outras armaspara países vizinhos, em troca de bens de consumo.

FONTE: Vide nota final 19

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As nações européias ampliaram seucompartilhamento de dados, dentro doâmbito da Organização para Segurança eCooperação na Europa (OSCE, na sigla eminglês). E, em dezembro de 2003, os membrosdo Tratado de Wassenaar sobre Controle deExportações de Armas Convencionais eTecnologias e Objetos de Uso Duplo – narealidade, um clube de fornecedores de armas– decidiram trocar informações regularmente.Entretanto, uma maior transparência entreagências governamentais não é o mesmo quea disposição de levar este tipo de informaçãoao conhecimento público.23

Durante a última década, controles deexportação se tornaram mais rígidos e osgovernos começaram a exercer maior cautelaem suas vendas a países envolvidos emconflitos armados ou violações de direitoshumanos. Uma variedade de acordos regionaise mecanismos que tratam da fabricação,transferência e gestão de armazenagem dearmas estão em vigor:

Em 1993, a OSCE assinou os Princípiosque Regem as Transferências de ArmasConvencionais e, em seguida, um Documentosobre Armas Pequenas e Leves, estabelecendoos critérios sobre a fabricação e exportação,intermediação, e gestão de armazenagem esobras de armas. Para encorajar padrões maiselevados, a OSCE publicou um Manual deMelhores Práticas (Handbook of Best Practices),em 2003.

Em novembro de 1997, os membros daOrganização dos Estados Americanosassinaram a Convenção Interamericana contraa Fabricação Ilícita e Tráfico de Armas deFogo, Munição, Explosivos e Outros MateriaisAfins, primeiro acordo vinculante.

Em 1998, a União Européia aprovouum Código de Conduta sobre Exportações

de Armas, estipulando que armas não deverãoser enviadas a países onde haja risco claro deserem utilizadas para agressão externa ourepressão interna.

Em outubro de 1998, chefes de Estadoda África ocidental declararam uma moratóriasobre importação, exportação e produção dearmas pequenas dentro da região. Todavia,violações repetidas representam um grandedesafio.

Em 2001, a Comunidade de Desenvol-vimento da África Austral assinou umProtocolo sobre Armas de Fogo, Munição eMateriais Afins, objetivando a criação decontroles regionais sobre a posse e contra otráfico.

Em 2002, o Centro do Sudeste Europeupara o Controle de Armas Pequenas e Levesfoi criado, em cooperação com o Programadas Nações Unidas para o Desenvolvimento(PNUD).

Em abril de 2004, representantes de 11nações africanas das regiões dos GrandesLagos e Chifre da África assinaram oProtocolo de Nairobi para Prevenção,Controle e Redução de Armas Pequenas eLeves, obrigando-as a adotarem medidasconcretas para restringir a fabricação, tráficoe posse ilegal de armas pequenas.24

Infelizmente, a eficácia desses esforçoscontinua relativamente limitada, uma vez quequase todas são politicamente (mas nãolegalmente) obrigatórias e, assim, difíceis deserem impostas, já que o foco está em armasilícitas (a maioria desconsiderando transfe-rências sancionadas por nações), e tambémnão há exigência expressa para que naçõesexportadoras respeitem leis humanitárias oude direitos humanos internacionais. Mesmoassim, esses acordos sinalizam compromissoscrescentes por parte dos governos e fazem

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QUADRO 7-1. COLÔMBIA: OBSTÁCULOS PARA A PAZ

A julgar pelo impacto humano maciço, gigantescocusto econômico e ligações entre a violênciageneralizada, economias de mercado negro,desigualdade social e violações de direitos humanos, opior conflito da América Latina é, sem dúvida, o daColômbia. Causou uma crise humanitária grave e temo potencial de disseminar a violência e instabilidadepor todas a região andina e amazônica.

Este conflito está enraizado em desigualdades,exclusão social e violência endêmica extensas,remontando a várias décadas. Repressão econcentração crescente de riqueza e poderdesencadearam o surgimento de grupos guerrilheirosde esquerda, nos anos 60. Em resposta, os militaresajudaram a criar grupos paramilitares que se tornaramnotórios por massacres de civis.

Negociações atualmente em curso entre aAutodefensas Unidas de Colômbia (AUC, a maiororganização “guarda-chuva” dos grupos paramilitares)e o governo de Álvaro Uribe poderão levar àdesmobilização de alguns grupos armados. Mas, aanistia proposta para os membros da AUC é umretrocesso em termos de impunidade por atos vis. Eas negociações podem acabar legalizando apropriedade da terra e outros bens obtidosilicitamente.

Os esforços de paz durante as duas últimasdécadas demonstram que apenas a desmobilização ea reintegração de combatentes não são suficientes. Ociclo de violência não será rompido, caso osproblemas estruturais que são tanto causa comoconseqüência do conflito permaneçam insolúveis.Aspectos-chave de uma estratégia de paz erestabelecimento de legitimidade política incluemrespeito ao regime das leis e direitos humanos,acabando com a impunidade dos atos de violênciacometidos por grupos armados e estabelecendo umpoder judiciário independente e eficaz. Ataques a civistêm sido parte integrante das estratégias praticadaspor vários grupos armados – incluindo assassinatos,desaparecimentos, tortura e seqüestros, abuso sexualde mulheres, ataques a pessoal protegido comomédicos militares e deslocamento forçado depessoas. A Colômbia possui um dos maiores númerosde pessoas deslocadas internamente do mundo.

A militarização em curso da sociedade colombianarepresenta um imenso obstáculo à paz. O PlanoColômbia, adotado pelo governo e apoiado pelosEstados Unidos, busca mobilizar toda população, sejacomo informantes ou como membros de gruposparamilitares locais. O estado democrático está setornando cada vez mais subordinado à lógica daguerra e a distinção entre combatentes e civis é difusa,senão inexistente. Líderes sindicais, grupos femininos eorganizações de direitos humanos são freqüentementealvos de perseguição.

A Colômbia tem um dos níveis mundiais mais altosde desigualdade da posse da terra, o que é agravadopelos deslocamentos forçados. A ausência deoportunidades de emprego para a população urbanapobre, aumenta a pressão sobre este problema. Deacordo com as Nações Unidas, 55% doscolombianos vivem na pobreza; 27% estão sobpobreza extrema. Assim, é essencial promoverreformas estruturais que assegurem maior acesso àterra e a outras atividades produtivas, e adotar umapolítica econômica direcionada à criação de emprego,inclusive para aqueles que foram desmobilizados.Políticas fortalecidas de saúde e educaçãocontribuirão para reduzir a pobreza e melhorar adistribuição da riqueza, Isto exige uma nação commais recursos. Todavia, o sistema fiscal atual arrecadapouco e favorece os ricos –apenas pouco mais de400.000 pessoas numa população de cerca de 44milhões pagam imposto de renda.

Embora o tráfico de drogas não tenha sido oestopim do conflito, tornou-se sua força motriz. Oconflito se tornou mais complexo, devido aocrescimento de grupos paramilitares que seautofinanciam através da extorsão e tráfico dedrogas. Sua responsabilidade pela expulsão forçada decamponeses e suas ligações com algumas unidades dasforças armadas ficaram claramente demonstradas.

A política dos Estados Unidos quanto a drogasilícitas, como expresso no Plano Colômbia, tem setornado cada vez mais militarizada. Os principaiscomponentes incluem ajuda militar, conselheirosmilitares uniformizados e do setor privado, efumigação aérea maciça de culturas ilegais. Mais de350.000 hectares foram fumigados, desde 2000. Osefeitos negativos da fumigação aérea sobre o meioambiente e a saúde humana têm sido alvo deprotestos generalizados. Os camponeses são os quemais sofrem com o Plano Colômbia, enquanto otráfico internacional e as redes de lavagem de dinheirocontinuam praticamente intocáveis. Anos detentativas para acabar com a produção de coca naColômbia parecem ter conseguido apenas umamudança geográfica da área de cultivo. Não háredução visível na disponibilidade de drogas nosmercados ocidentais.

Uma política alternativa seria não criminalizar oscamponeses produtores de coca, substituir afumigação aérea por projetos de erradicação manual,promover projetos de desenvolvimento alternativosque levem em conta as causas sociais e econômicasque forçam camponeses ao cultivo ilícito e tentarassegurar para outras culturas melhor acesso aomercado.

Manuela Mesa, Centro de Investigación para la Paz,Madri

fonte: Vide nota final 22.

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parte de um processo de criação de normas eregulamentos novos.25

Todavia, práticas questionáveis continuama ocorrer. Em 2003, por exemplo, o ReinoUnido decidiu continuar com as exportaçõespara Indonésia, apesar do Código de Condutada UE. Embora a preocupação crescentecom segurança nesta era de terrorismopresumivelmente recomendasse maior cautelacom as transferências, a “guerra ao terror” estátendo, de certa forma, o efeito oposto. Adisposição de um governo recipiente juntar-se à coalizão “antiterror”, freqüentemente,relega seus abusos aos direitos humanos e aoutras considerações.26

Em nível global, o controle de armaspequenas recebeu um novo impulso a partirde uma conferência das Nações Unidas, em2001, que levou a um Programa de Ação.Embora tenha ficado aquém das expectativasde grupos engajados da sociedade civil, oprograma efetivamente encoraja governos aadotarem leis e regulamentos adequados e ainformar as medidas que estão tomando emvárias áreas: melhoria de gestão de estocagem,controle de transferência e regulação deintermediação, melhorias na marcação erastreamento de armas e também registro,estabelecimento de penalidades criminais parao tráfico, recolhimento e disposição de armasexcedentes e aumento da conscientizaçãopública.27

Uma coalizão global da sociedade civil, aRede de Ação Internacional sobre ArmasPequenas, está pressionando os governos acumprirem seus compromissos e a fecharemo fosso entre retórica e ação. Enquanto isso,vários governos, organizações internacionaise não-governamentais (ONGs) se reuniramno que foi denominado “Processo deGenebra” para consultas informais regulares

sobre esta questão. Avanços na implementaçãodo Programa de Ação estão particularmentelentos na África do Norte, Oriente Médio epartes da Ásia. A fim de estimular as ações, oCentro Regional de Segurança Humana, naJordânia, organizou um workshop sobremedidas nacionais e regionais e uma ONGfoi fundada em novembro de 2002.28

Outro esforço em nível global é oProtocolo de Armas de Fogo à atualConvenção contra o Crime TransnacionalOrganizado, que a Assembléia Geral da ONUadotou, em maio de 2001. O protocolo visapromover a cooperação entre governos paraa prevenção e combate à fabricação ilícita eao tráfico de armas de fogo, componentes emunição, através do desenvolvimento denormas internacionais harmônicas. Todavia,até setembro de 2004, apenas 52 naçõeshaviam assinado (Estados Unidos, França eRússia, especialmente, não o fizeram); as 26ratificações até hoje ainda estão muito aquémdas 40 necessárias para que o protocolo entreem vigor.29

Vários governos intensificaram seusesforços, aplicando maior rigor no controleinterno. Os esforços enfocaram parti-cularmente a posse de armas automáticas esemi-automáticas. Uma das iniciativas maisambiciosas ocorreu no Canadá, quepromulgou uma nova lei, em janeiro de 2003.E o Brasil, assolado pelo crime – onde 300.000pessoas foram mortas em violência urbana naúltima década –, promulgou o Estatuto do

O Brasil, assolado pelo crime,

promulgou o Estatuto do

Desarmamento, em dezembro de 2003,

que estabelece, entre outros objetivos,

a proibição do porte de armas de fogo.

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Estado do Mundo 2005

Desarmamento, em dezembro de 2003, queestabelece, entre outros objetivos, a proibiçãodo porte de armas de fogo, elevação da idademínima para a posse legal para 25 anos e arealização de um referendo nacional, em 2005,sobre a proibição de todas as vendas de armase munição. Na Tailândia, o Primeiro-ministroThaksin Shinawatra deseja tornar o país livrede armas dentro de cinco a seis anos, a partirde uma proibição de novas vendas. NosEstados Unidos, por outro lado, a influênciapolítica do lobby das armas impede qualquermedida mais ousada. O poder da National RifleAssociation foi novamente demonstrado emsetembro de 2004, quando o Governo Bushe o Congresso deixaram de prorrogar umaproibição de 1994 sobre armas de assalto,numa afronta ao grande apoio popular àproibição.30

Finalmente, embargos internacionais dearmas – embora caracteristicamente nãolimitados a (ou focados em) armas pequenas– são outra iniciativa de controle do fluxoilícito de armas. Vários governos e gruposrebeldes têm sido objeto de embargos dearmas pelas Nações Unidas, desde 1990 (verTabela 7-3). Além disso, a União Européiaaplicou embargos à Líbia, China, Myanmar,vários países sucessores iugoslavos, RepúblicaDemocrática do Congo, Sudão, Nigéria,Indonésia e Zimbábue. Estes esforços, porém,são freqüentemente violados, necessitando demaiores recursos para monitoração eimplementação.31

Os esforços para limitar e controlar o fluxode armas pequenas são apenas uma face damoeda; a outra face é a redução do númerode armas em circulação. Uma das tarefas maisurgentes é o recolhimento de armas quesobram após o fim das guerras civis. Desde1990, houve pelo menos 17 grandes operações

de manutenção da paz, não só das NaçõesUnidas – na América Central, Bálcãs, diferentesregiões da África subsaariana, Afeganistão eCamboja –, cujos mandatos incluíam odesarmamento de ex-soldados e combatentesrebeldes.32

Caracteristicamente, no final de um conflitonão existe um inventário seguro ou confiáveldas armas em poder dos combatentes, e assimtorna-se difícil estabelecer uma base e avaliarquando o desarmamento está, de fato,ocorrendo. Durante as negociações de paz,cada lado tem interesse em inflar o númerode armas sob seu controle, a fim de ganharconcessões dos oponentes. Quando se chegaao desarmamento efetivo, todavia, os prota-gonistas tendem a minimizar seus estoques,entregando apenas uma parcela das armas eretendo as melhores. Duas perguntasimportantes, não respondidas, são se medidascoercitivas devem ser tomadas, caso algunsdos atores descumpram compromissos e seos civis, além dos ex-combatentes, tambémdevem ser desarmados.33

A escolha do momento é crucial.Idealmente, o desarmamento deve serrealizado logo que a situação política sejafavorável e os recursos adequados e as forçasde paz em número suficiente de efetivosestejam posicionadas. Freqüentemente, porém,há muita demora na criação de condiçõesfavoráveis e a experiência revela que adisposição dos protagonistas de seremdesarmados tende a diminuir, ao longo dotempo, independentemente dos compro-missos no papel. E, uma vez que as armassão recolhidas, alguém deverá decidir o quefazer com elas. Mantenedores da pazfreqüentemente as repassam para um exércitonacional reconstituído (que integre soldadosgovernamentais e rebeldes), ao invés de

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TTTTTabela 7-3. Embargos Internacionais de Armas, 1990 até o presenteabela 7-3. Embargos Internacionais de Armas, 1990 até o presenteabela 7-3. Embargos Internacionais de Armas, 1990 até o presenteabela 7-3. Embargos Internacionais de Armas, 1990 até o presenteabela 7-3. Embargos Internacionais de Armas, 1990 até o presente

destruí-las. Entretanto, controles fracos sobreelas e o fato de muitos soldados ganharempouco são um convite para o roubo e vendade armas, causando problemas adicionais.34

Além dos esforços de coleta dearmas no contexto de operações demanutenção da paz, foi lançada uma variedadede programas de recompra, encorajando aspessoas a entregarem suas armas,voluntariamente, em troca de compensaçãomonetária. Freqüentemente, os governosestabelecem um período de “anistia”, duranteo qual armas sem licença ou ilícitas podem

País-alvo

Iraque

Antiga Iugoslávia

Somália

Líbia

Libéria

Haiti

Angola (rebeldes UNITA)

Ruanda (rebeldes)

Afeganistão

Antiga Iugoslávia, Kosovo

Serra Leoa (rebeldes RUF)

Eritréa e Etiópia

ser entregues sem receio de processo. Após aguerra civil de El Salvador, por exemplo, umprograma de mercadorias-por-armas,conduzido pelo Movimento Patriótico contrao Crime, recolheu quase 5.000 armas de 1996a 1997, e a empresa de Nova York Guns forGoods patrocinou a troca de alimentos eroupas por armas em três cidades. Em ambosos casos, a falta de recursos limitou suaeficácia. Na vizinha Nicarágua, incentivos emespécie e em alimentos e um programa demicroempreendimento, patrocinado pelaItália, renderam 64.000 armas de 1992 a 1993

Entrada em Vigor

Agosto de 1990

Setembro de 1991

Janeiro de 1992

Março de 1992

Novembro de 1992

Junho de 1993

Setembro de 1993

Maio de 1994

Dezembro de 1996

Março de 1998

Outubro de 1997

Fevereiro de 1999

Duração

Em curso

Junho de 1996

Em curso

Abril de 1999

Em curso

1994

Em curso

Em curso

Janeiro de 2002

Setembro de 2001

Em curso

Maio de 2001

Observações

O embargo original terminou emmarço de 2001, porém foisubstituído por outro, impostopor outros motivos.

Aplicado apenas para gruposrebeldes, após agosto de 1995

Iniciado como embargovoluntário; tornou-se obrigatórioem dezembro de 2000. Apósjaneiro de 2002, restrito aOsama bin Laden e membros daal Qaeda e Talibã.

Aplicado apenas para rebeldesRUF, após junho de 1998.

Iniciado como embargovoluntário; tornou-se obrigatório,em maio de 2000.

FONTE: Vide nota final 31.

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Estado do Mundo 2005

(com outras 78.000 confiscadas). EmMoçambique, após os conflitos, o ConselhoCristão iniciou o projeto Transformação deArmas em Charruas, em 1995 (garantido, emparte, pela Alemanha e Japão), que permitiuàs pessoas trocarem armas por vacas, arados,máquinas de costura e bicicletas.35

Lições importantes foram extraídas destesesforços. A compensação monetária pelasarmas é uma forma, mas pode incentivar oroubo de armas para trocá-las por dinheiro,fomentando assim atividades ilícitas. O preçopode ser um fator crucial: se muito abaixo dovalor do mercado negro, poucas armas serãoentregues; se muito acima, por outro lado,estimulará o mercado negro. Mas,especialmente nos países em desenvolvimento,onde se pode esperar que muitos ex-combatentes retornem a áreas rurais, osprogramas que fornecem alimentos ouimplementos agrícolas são mais apropriadosdo que a oferta de dinheiro. Em termos gerais,esquemas de recompra tendem a ser maisbem-sucedidos quando são incorporados emprogramas comunitários mais amplos.36

O PNUD está promovendoprogramas “armas para o desenvolvimento”em mais de 15 países nos Bálcãs, Áfricasubsaariana e América Central. Na Albânia,onde cerca de 200.000 armas saqueadas dedepósitos do governo ainda estavam emcirculação, um projeto do PNUD, de 2002 a2004, fez comunidades competirem porrecursos para projetos desenvolvimentistas,através da entrega de armas. No Camboja,

esforços de “armas-para-desenvolvimento”atraíram apoio financeiro da UE. Outrora,uma reserva praticamente exclusiva deministérios de defesa e de relações exteriores,os programas de recolhimento de armasapoiados por doadores internacionais estãocada vez mais integrando as análises dedesarmamento e desenvolvimento. A partirdo final dos anos 90, os governos britânicos,canadenses, alemães e japoneses desenvol-veram respostas transetoriais que congregamdiferentes tipos de especialização.37

Em geral, números significativos de armasforam recolhidos nos últimos anos, através deuma variedade de métodos (ver Tabela 7-4).Há hoje um reconhecimento crescente de queé melhor destruir as armas para evitar quesejam roubadas. As Nações Unidas, porexemplo, patrocinou o Dia Global daDestruição de Armas, em julho de 2002, comeventos destinados a causarem impactopúblico na Argentina, Brasil, Bósnia, Sérvia,África do Sul, Indonésia, Filipinas e outrospaíses. No Brasil, a ONG Viva Rio foiinstrumental na destruição de 100.000 armas,em 2001 – o maior número destruído numúnico dia, em qualquer lugar do mundo.38

Todavia, as maiores quantidades de armasdestruídas envolveram excedentes de estoquespoliciais ou militares, eliminando mais de 8milhões de armas pequenas, desde 1990 (verTabela 7-5). Rússia, Ucrânia e Bulgária poderãoem breve destruir outras 3,2 milhões de armasindesejadas. (A Rússia planejava desativar 1milhão de armas pequenas, juntamente com140 milhões de pentes de munição, entre 2002e 2005, porém ainda está considerandoexportar ao invés de destruir.)39

Muito do que ocorreu em prol de umamaior coleta e destruição de armas, ao longoda última década, foi encorajador. Porém, é

Além dos esforços de coleta de armas no

contexto das operações de manutenção

da paz, foi lançada uma variedade de

programas de recompra.

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TTTTTabela 7-4. Programas Selecionados de Recolhimento de Armas Pabela 7-4. Programas Selecionados de Recolhimento de Armas Pabela 7-4. Programas Selecionados de Recolhimento de Armas Pabela 7-4. Programas Selecionados de Recolhimento de Armas Pabela 7-4. Programas Selecionados de Recolhimento de Armas Pequenas,equenas,equenas,equenas,equenas,de 1989 a 2003de 1989 a 2003de 1989 a 2003de 1989 a 2003de 1989 a 2003

necessário um maior avanço, a fim deverdadeiramente enfrentar a praga das armaspequenas. Considerando que surgem cerca de8 milhões de novas armas a cada ano, aprodução ainda supera a destruição, nomínimo, por um fator de 10.

Do Combate à Vida Civil

Nos países que se recuperam de conflitosarmados, o processo de desmobilização desoldados e outros combatentes é um desafiogigantesco. Assegurar que as armas não sedisseminem para novos conflitos é apenas uma

das dimensões do problema; um outro é evitarque ex-combatentes se tornem agentes dedescontentamento e instabilidade. A reinte-gração destes à vida civil é uma tarefamonumental, numa ocasião quando a guerradestruiu grande parte da infra-estrutura pública,a atividade econômica continua debilitada eos tesouros nacionais estão exauridos. Emboranão haja violência política, a violência social ecriminal estão, freqüentemente, em ascensão.

A desmobilização envolve, caracteris-ticamente, o alojamento temporário de ex-combatentes em áreas onde podem serdesarmados, receber alimentação e cuidadosmédicos, e algum treinamento básico e

Região/País

África

MáliMoçambiqueLibériaSerra LeoaAngolaÁfrica do Sul

AméricasNicaráguaEl SalvadorBrasilArgentina

Ásia-PacíficoAustráliaCambojaPaquistãoTailândia

EuropaCroáciaGrã-BretanhaKosovoAlbâniaBósnia

Período

de 1995 a 96de 1995 a 2003

de 1996 a 97de 1999 a 2002

2002desde 1995

de 1989 a 93de 1992 a 93, de 1996 a 99

de 2001 a 02de 2001 a 02

de 1996 a 98de 1998 a 2002

de 2001 a 022003

de 1996 a 97de 1996 a 97

1999de 1997 a 2002de 1999 a 2002

Organização ouImplementação

PNUDMoçambique, governos sul-africanos

Força de Paz da ONU/África OcidentalForça de Paz da ONU/África Ocidental

Grupo rebelde UNITAGoverno

Força de Paz da ONUForça de Paz da ONU, ONGs Antiarmas

Governo, ONGsGoverno, ONGs, ONU

GovernoGovernoGovernoGoverno

Força de Paz da ONUGoverno

Força de Paz da OTANAgências da ONU

Força de Paz da OTAN

1Algumas destas armas foram posteriormente destruídasFONTE: Vide nota final 38.

Armas Pequenas Recolhidas1

Armas

3.00034.90317.28726.00025.000260.000

159.83328.927110.00012.766

643.726119.000141.180100.000+

21.929185.00038.200200.37796.230

Pentes de Munição

—11,4 milhões

1,4milhão935.495

——

250.0004,1 milhões

—7.200

——

848.407—

1,8 milhão—

5 milhões—

6,6 milhões

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TTTTTabela 7-5. Principais Esforços deabela 7-5. Principais Esforços deabela 7-5. Principais Esforços deabela 7-5. Principais Esforços deabela 7-5. Principais Esforços deDestruição de Destruição de Destruição de Destruição de Destruição de Armas Pequenas,Armas Pequenas,Armas Pequenas,Armas Pequenas,Armas Pequenas,

1990-20031990-20031990-20031990-20031990-2003

País

AlemanhaChinaRússiaEstadosUnidosAustráliaÁfrica do Sul

Período

de 1990 a 2003de 1999 a 2001de 1998 a 2002de 1993 a 96

de 1997 a 98de 1998 a 2001

Nº de ArmasDestruídas2,2 milhões1,3 milhão890.000830.000

644.000315.000

FONTE: Vide nota final 39.

orientação para ajudá-los a lidar com a vidacivil. Nos países pobres, os recursosdisponíveis são, quase sempre, insuficientes, eassim, estes locais são inadequados – semsaneamento e acomodações apropriadas ecomida suficiente. Atrasos devidos à carênciade recursos ou obstáculos políticos eburocráticos podem, às vezes, desfazer todosos esforços de desmobilização. Posterior-mente ao estágio de alojamento, a capacidadee disposição de as comunidades absorveremex-combatentes e suas famílias é crucial parao sucesso dos esforços de reintegração. Umobstáculo é que, em guerras civis, a populaçãocivil sofre o impacto maior da violência e ficaindignada com aqueles que julga responsáveispelo seu sofrimento.40

Encontrar novos meios de vida éfreqüentemente difícil. Mesmo quando surgemtrabalho e benefícios de curto prazo, não hágarantia de um emprego de mais longo prazo.Muitos ex-combatentes enfrentam dificul-dades tremendas, devido não só a sua baixainstrução e qualificação, como também a suapouca experiência com o ambiente do mundocivil. O treinamento em especializações civisou não existe ou é inadequado. Oportunidadesde emprego são raras. Conseqüentemente, atentação de se engajar no banditismo, tráficode drogas ou outras atividades criminosas para

sobreviver pode ser difícil de resistir – parti-cularmente quando tende a ser mais lucrativado que a vida precária de um agricultor desubsistência ou trabalhador diarista. Outrospodem decidir vender armas que porventuraguardaram a fim de suplementar suas baixasrendas, alimentando um desmedido mercadonegro de armas excedentes.41

A reintegração de ex-combatentes precisaráacompanhar a reconstrução geral dasociedade, inclusive reconciliação econsolidação de processos políticos einstituições que possam evitar novainstabilidade e violência. A experiência recentede Angola é um exemplo das dificuldadesenvolvidas. (Ver Quadro 7-2).42

Em alguns casos, a instabilidade contínuaagrava o desafio, como demonstra a situaçãodo Afeganistão. Estagnação econômica,desemprego, faccionalismo político e ocontínuo poder de déspotas regionaisrepresentam uma situação espinhosa. O queagrava mais este problema é o lento einadequado desembolso da ajuda internacionale o retorno mais rápido do que esperado derefugiados, o que estressa os recursos e geraanimosidade crescente. A continuada operaçãomilitar dos Estados Unidos na realidadeajudou os déspotas a consolidarem o poder,alienando grande parte da população.43

A experiência com desmobilização emdiferentes partes do mundo, ao longo dosúltimos 10 a 15 anos é, definitivamente, variada(ver Tabela 7-6). Mas, sem dúvida, oentendimento prático do que é necessário paraviabilizar os processos de desmobilização ereintegração pós-conflito aumentou consi-deravelmente.44

Vários fatores são cruciais para umresultado bem-sucedido. A capacidade gover-namental e vontade política são os mais

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QUADRO 7-2. ANGOLA: O DESAFIO DA RECONSTRUÇÃO

Angola é um laboratório para os complexos desafiosde reconstrução de países emergindo de muitos anosde guerra. De uma população total de 13 milhões, aguerra matou ou mutilou cerca de 1 milhão depessoas; há aproximadamente 4 milhões de pessoasdeslocadas internamente e 500.000 refugiados nospaíses vizinhos. A guerra civil devastadora que duroude 1975 até 2002 lançou o Movimento Popular paraa Libertação de Angola (MPLA) contra a UniãoNacional para a Independência Total de Angola(UNITA).

Angola é rica em recursos minerais e agrícolas. É osegundo maior produtor de petróleo da Áfricasubsaariana – com uma produção de 900.000 barris/dia, devendo superar a Nigéria, até 2008 – e possui aquarta maior reserva de diamantes do mundo. Mas,com petróleo e diamantes alimentando a guerra, aagricultura e a indústria ou foram destruídas oudesprezadas. Durante a guerra, empréstimos debancos internacionais foram garantidos contra aprodução futura de petróleo, hipotecando o futurodo país. O país atualmente ocupa a 166a posiçãoentre 175 países no Índice de DesenvolvimentoHumano do PNUD: 70% da população vive napobreza; a expectativa de vida, de aproximadamente40 anos, está um terço abaixo da média dos paísesem desenvolvimento; uma em cada quatro criançasmorre antes de completar cinco anos; 60% da

população não dispõe de acesso à água potável; emais da metade das crianças não freqüenta escolas.Cerca de 1,5 milhão de pessoas dependem daassistência internacional para comer.

A morte do Comandante da UNITA JonasSavimbi, em fevereiro de 2002, abriu caminho para aassinatura dos Acordos de Luena e a desmobilizaçãoda UNITA. Mas, Cabinda, onde a Frente de Liberaçãodo Enclave de Cabinda luta pela secessão, ainda estáem guerra. Esta província produz 60% do petróleode Angola, porém sofre de uma pobreza ainda maiordo que o país como um todo. Partes da região estãohoje com acesso negado para grupos de direitoshumanos e observadores estrangeiros.

O Banco Mundial e agências das Nações Unidasestão hoje fornecendo apoio a mais de 400.000 ex-combatentes e suas famílias. Os esforços focamagricultura, treinamento vocacional, criação deemprego e colocação, e apoio ao micro-crédito. Areintegração deverá ser concluída até dezembro de2006. Porém este apoio não é suficiente. A situaçãodas mulheres é particularmente crítica, uma vez queseu “status” como ex-combatentes nunca foireconhecido. Da mesma forma, a maioria dosrefugiados e pessoas deslocadas retornou semqualquer assistência e continua altamente vulnerável. Odesarmamento teve pouco impacto na redução donúmero de armas pequenas (a maior parte em poder

decisivos. Porém, outros fatores importantesincluem a influência exercida por fatoresexternos; coordenação entre agênciasdoadoras nacionais, ajuda internacional eorganizações desenvolvimentistas e grupos dasociedade civil; percepções políticas de custo-benefício entre combatentes, comunidadeslocais e outros agentes; e oportunidades eco-nômicas para aqueles que buscam rein-tegração.45

Crianças-soldados têm necessidadesespecíficas. Muitas delas nunca tiveram umainfância “normal” e algumas só conhecem aviolência organizada. Família, amigos ecomunidade foram assoladas pela guerra;escolas freqüentemente são destruídas ouabandonadas, o que quer dizer que muitas

crianças-soldados são analfabetas e semqualquer qualificação para a vida civil. Em geral,mais de meio milhão de crianças – a maioriaentre 15 e 18 anos, mas algumas muito maisjovens – foram recrutadas para as forçasarmadas e uma variedade de grupos armadosnão-governamentais, em mais de 85 países emtodo o mundo. Acredita-se que mais de300.000 destes menores estejam ativamenteenvolvidos em lutas em cerca de 33 conflitosrecentes ou em andamento. Enquanto algumasforam recrutadas à força, outras forammotivadas a se alistar pela pobreza – particu-larmente falta de instrução, ausência deemprego, exclusão e discriminação. Uma vezque as armas pequenas são simples de operare leves, sua proliferação facilitou o crescimento

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QUADRO 7-2. ANGOLA: O DESAFIO DA RECONSTRUÇÃO

de civis), calculado em torno de 4 milhões. Imensasáreas ainda estão inacessíveis devido a minas terrestres(estimadas a grosso modo entre 2 e 6 milhões), queimpedem o retorno e retomada da agricultura. Adesativação provavelmente levará cerca de 10 anos.

Uma rede clientelista se estende por todos ossetores da sociedade angolana. Acesso a emprego,bens, serviços e recursos depende dessas relações e émarcado por divisões classistas, étnicas e regionais. Emmuitas municipalidades, comunas e aldeias, o Estado épraticamente ausente, não há vontade política e meiospara prestar serviços sociais. O controle da máquinaestatal pelo MPLA permite-lhe se apropriar dosrecursos, controlar a riqueza e criar uma autocraciapredatória, turvando a distinção entre partido egoverno. Entretanto, isto é um sintoma geral dacultura política angolana: outros partidosprovavelmente fariam o mesmo se estivessem nopoder.

A UNITA se transformou num partido político,porém, a reconciliação – tão necessária – não é partedo debate público. A situação continua volátil e atosde violência política têm ocorrido. Há um clima deterror, especialmente nas áreas rurais. Tensões podemse agravar próximo às eleições gerais, que devem serrealizadas em 2006. O medo continua a limitar aparticipação de amplos setores da população nosassuntos públicos, alimentado por uma cultura políticaque confunde crítica com subversão e por autoridades

públicas que utilizam o argumento de patriotismo esoberania para silenciar vozes opositoras.

As eleições poderão ser um divisor de águas. Massó se as necessidades básicas da população forematendidas, para que as preocupações quanto àsobrevivência diária não eclipsem o debate político,caso o cadastramento de eleitores avance,suficientemente, e caso maior liberdade de informaçãoseja criada, acabando com o quase monopólio totalda mídia pelo Estado. Só assim poderá a incipiente,mas ainda fraca, sociedade civil se fazer ouvir. Deoutra forma, as eleições servirão apenas para legitimaro sistema autoritário do MPLA.

Angola praticamente desapareceu da agendainternacional, já que a guerra acabou. Há perigo de acomunidade internacional apoiar o governo, enquantooutros países têm assegurado um suprimento contínuode petróleo. Porém, o apoio de doadores deveráestar condicionado a avanços em direção àtransparência, boa governança e condutademocrática. Além disso, as empresas petrolíferas eoutros investidores estrangeiros deverão prestarcontas de suas atividades. Estas são tarefas cruciaispara a sociedade civil, dentro e fora de Angola.

- Mabel González Bustelo, Centro de Investigaciónpara la Paz, Madri

fonte: Vide nota final 42.

das fileiras de crianças-soldados.46

O Unicef desempenhou um papel-chaveno desenvolvimento de programas deassessoramento, alfabetização e vocacionais,buscando reunificar as crianças com suasfamílias em Serra Leoa, Burundi, Libéria,Angola, Sri Lanka e Filipinas. Há esforços emcurso para proibir o recrutamento de menores.Em maio de 2000, o Protocolo Opcional àConvenção dos Direitos da Criança, que tratado envolvimento de crianças em conflitosarmados, foi submetido à assinatura. Entrouem vigor em fevereiro de 2002, e 78 naçõesjá o ratificaram. O protocolo eleva a idademínima para participação direta em hosti-lidades, recrutamento obrigatório e qualquer

recrutamento por grupos armados não-governamentais, de 15 para 18 anos.47

Programas de desmobilização e reinte-gração sofrem freqüentemente de uma faltade apoio financeiro, carecendo de umcompromisso dedicado dos países doadores.Em geral, tem sido mais fácil obter finan-ciamento para desarmamento do que paradesmobilização; o componente dereintegração – que tende a ter menosvisibilidade e exigir compromissos de longoprazo – tem sido particularmente burlado.48

Tão importante como assegurar que ex-combatentes não sejam uma ameaça contínuapara a sociedade é não prestar assistência aeles às custas de outros grupos que sofreram

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com os conflitos (como refugiados e pessoasdeslocadas internamente), quase sempre porculpa daqueles que estão sendo desmo-bilizados. Faz sentido, portanto, desenvolverprogramas integrados que beneficiemamplamente as comunidades. Afinal, só as

TTTTTabela 7-6. Experiências Selecionadas de Desmobilização em Pabela 7-6. Experiências Selecionadas de Desmobilização em Pabela 7-6. Experiências Selecionadas de Desmobilização em Pabela 7-6. Experiências Selecionadas de Desmobilização em Pabela 7-6. Experiências Selecionadas de Desmobilização em PaísesaísesaísesaísesaísesEmergentes de Guerras, Emergentes de Guerras, Emergentes de Guerras, Emergentes de Guerras, Emergentes de Guerras, de 1992 ao Presentede 1992 ao Presentede 1992 ao Presentede 1992 ao Presentede 1992 ao Presente

País

El Salvador

Nicarágua

Moçambique

Serra Leoa

Libéria

Afeganistão

Sri Lanka

Observações

Uma taxa de desemprego atingindo 50% tornou a reintegração extremamente difícilpara muitos dos 40.000 soldados e guerrilheiros desmobilizados em 1992. Ganguesfortemente armadas, formadas por alguns ex-soldados e jovens insatisfeitos, sãoresponsáveis por assassinatos, seqüestros, roubos e tráfico de armas e de drogas.

A promessa de grande parte das terras, tratamento de saúde e ajuda econômica para88.000 combatentes sandinistas e contras desmobilizados, e suas famílias, não sematerializou. A penúria aguda levou ex-combatentes a se voltarem para o banditismoe o tráfico de armas. Levaram anos para se chegar a um acordo com todos osgrupos.

O financiamento internacional insuficiente e atrasado limitou programas dereintegração, como treinamento vocacional, esquemas de obras públicas efornecimento de sementes e implementos agrícolas. A falta de emprego levou a umaumento do crime e da violência.

Em janeiro de 2002, um total de 72.490 combatentes havia concluído o processo dedesarmamento. A reintegração de longo prazo depende da revitalização daeconomia, empregos e projetos comunitários bem planejados. Não está claroquantos ex-combatentes encontraram um novo meio de vida.

Um acordo de paz acabou com a guerra civil, em agosto de 2003. No verão de2004, 49.000, dos 60.000 antigos combatentes governamentais e rebeldes haviamsido desarmados, e cerca de 7.000 receberam treinamento vocacional. Porém, aajuda insuficiente ameaça a reintegração, o reassentamento de refugiados e depessoas deslocadas internamente e a reconstrução.

Condições econômicas precárias impedem a reintegração de ex-combatentes. Umprojeto-piloto da ONU ajuda 20.000 ex-combatentes e suas comunidades, atravésde treinamento vocacional e profissional, esquemas geradores de renda através demicrocrédito e formação de microempresas, e parcerias público-privadas deinvestimento. A Organização Internacional do Comércio está oferecendo treinamentonecessário para o setor de construção.

Considerando os graves problemas de desemprego, a reintegração de um grandenúmero de ex-combatentes poderá exacerbar as tensões sociais. Desertores dasforças armadas de Sri Lanka são responsáveis pelo aumento do crime no sul do país.

FONTE: Vide nota final 44.

comunidades progressistas poderão assegurarque ex-combatentes, ou outros, não recorramàs armas para acerto de contas. Neste contexto,nunca será demasiado realçar a importânciade proporcionar justiça pós-conflito, apoiar areconstrução e promover a reconciliação.49

Teóricos e praticantes tradicionais desegurança tendem a supor que o importanteé lidar com os armamentos. Aqueles quepromovem uma visão alternativa da

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DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

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Estado do Mundo 2005

L I G A Ç Ã O D E S E G U R A N Ç A

Proliferação NuclearExistem muitos perigos graves decorrentesdas cerca de 28.000 armas nuclearesmantidas por oito nações em todo omundo. O mais perigoso é a ampladisponibilidade de urânio e plutônioaltamente enriquecidos, os materiais físseisno núcleo das armas nucleares. Essesmateriais se tornaram mais accessíveis aterroristas, devido ao colapso da UniãoSoviética e à segurança precária dosestoques nucleares nas antigas repúblicassoviéticas e em dezenas de outros paísespossuidores de energia nuclear.1

Existe também o perigo de algumasnações adquirirem armas nuclearesexplorando as brechas do Tratado de Não-proliferação Nuclear (TNP). Da forma queestá redigido, os países podem adquirirtecnologias que os conduzam à beira dacapacidade de armas nucleares, semnecessariamente violar os termos doacordo; poderão então abandonar o tratadosem sofrer penalidades.

Finalmente, há dúvidas crescentes sobre asustentabilidade do regime de não-proliferação. Isto é mais perturbador nasnações com capacidade tecnológica dedesenvolver armas nucleares e que tomaramuma decisão política de não fazê-lo. Algunslíderes brasileiros e japoneses, por exemplo,têm sugerido abertamente que seusrespectivos países reconsiderem as opçõesde armas nucleares. Revelações recentes,dando conta de que cientistas da Coréia doSul produziram uma pequena quantidade deurânio altamente enriquecido, também

suscitam temores. Alguns dos insucessos nacontenção da não-proliferação resultaramde falhas do próprio regime de não-proliferação; muitos outros derivam da mávontade de cobrar compromissosassumidos e exigir cumprimento dasresoluções tão determinantementeaprovadas.2

Existem entretanto tendênciaspositivas a serem consolidadas. Desde aassinatura do TNP, em 1968, mais paísesdesistiram de programas de arma nucleardo que iniciaram. Existem menos armasnucleares no mundo, e menos nações comestes programas, do que existiam 20 anosatrás. Os Estados Unidos e a UniãoSoviética continuam a cooperar nadesmontagem e segurança das armasnucleares e materiais da guerra fria. Noentanto, o Tratado bilateral de Moscou éomisso em medidas de verificação equalquer um dos participantes pode desistirao final de seu termo; assim ele deixa defortalecer tratados anteriores de controle dearmas, o START I e II. 3

A decisão da Líbia de desistir ecomprovadamente desmontar suacapacidade clandestina de armas nucleares éum sucesso importante. A Líbia seguiu oexemplo da África do Sul – o primeiro paísa construir armas nucleares e a então desistirdelas, em 1993 – e deveria servir de modelopara outras nações delinqüentes. 4

Por outro lado, Índia, Paquistão epresumivelmente Israel se filiaram ao“clube” nuclear. A crise do Iraque,

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PROLIFERAÇÃO NUCLEAR

Estado do Mundo 2005

disseminação detecnologias nuclearespelo Paquistão, asartimanhas da Coréia doNorte e preocupaçõessobre o Iraqueaumentaram a vigilânciainternacional sobre osperigos representadospela proliferação. Diantedestes perigos, a UniãoEuropéia tomou umanova decisão para aproliferação, seesforçando para frustrar os programas daLíbia e Iraque e adotando uma estratégiaunificada que requer concordância plenacom as normas de não-proliferação emtodos os acordos futuros de comércio ecooperação.5

Para consolidar esses sucessos e prevenirnovas ameaças, o mundo necessita de umanova estratégia. A meta desta estratégiaagora deve ser a concordância universalcom as normas e termos de um regimerestrito de não-proliferação nuclear. OsEstados Unidos devem assumir a liderançano desenvolvimento deste plano global.Para que isto aconteça, a próximaadministração terá de trabalhar com afincopara recompor a perda de credibilidade de

Washington, depois das acusações falsasao Iraque da posse de armas de destruiçãoem massa. Deve também reverter o cursoda atual política nuclear dos EstadosUnidos, com um compromisso ao Tratado

Abrangente de Proibiçãode Testes Nucleares e aum Tratado verificávelde Proibição daProdução de MateriaisFísseis, bem comocessando toda pesquisa edesenvolvimento denovas armas nucleares.Concordância significamais do que assinaturade tratados oudeclarações de boasintenções – significa

atuação. E “universal” significa que todas aspartes implicadas devem concordar com asnormas e condições aplicáveis. Isto incluiatores que se filiaram ao TNP e os que nãose filiaram. Também inclui corporações eindivíduos. O peso do compromissoabrange não somente as nações procurandose capacitar às armas nucleares através deprogramas de ciclo de uso duplo decombustível ou aqueles incentivando aproliferação, através de transferência detecnologia, mas também nações com armasnucleares que não estão honrando seuscompromissos.

Cinco obrigações compõem a estratégia deconsentimento mundial. O pleno atendimentoatenderá aos problemas mais urgentes. Cadaum destes objetivos gerais requer políticassubsidiárias nacionais e intencionais, recursose reformas institucionais. Algumas destasmedidas requerem novos códigos de condutavoluntários e novas leis; outras necessitam

O míssil balístico intercontinental Peacekeeper

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Estado do Mundo 2005CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

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somente da vontade de atender aoscompromissos existentes. 6

Primeiramente, países sem armas nuclearesdevem reafirmar seu compromisso de nuncaadquirir estas armas. Este compromisso devese desenvolver para a proibição de aquisiçãoadicional nacional de instalações que possamproduzir materiais usados diretamente emarmas nucleares (plutônio separado e urânioaltamente enriquecido).

Em segundo, os países devem protegertodos materiais nucleares, mantendo normase mecanismos de segurança e monitoramento,e responder por todos os materiais físseis sobqualquer forma. Tais mecanismos se fazemnecessários para prevenir o terrorismo nucleare concomitantemente criar a possibilidade deum desarmamento nuclear seguro. Devem serdesenvolvidas opções para o descarte seguro,a longo prazo, de materiais físseis.

Em terceiro lugar, os países devemestabelecer proibições aplicáveis a corporaçõese países que ajudem secretamente a aquisiçãode tecnologia, material, e know-how necessáriospara armas nucleares.

Em quarto, medidas devem ser tomadaspara desvalorizar o valor político e militar dasarmas nucleares. Todos os países devem

honrar seus compromissos de banir testesexplosivos nucleares e minimizar o papel dasarmas nucleares nas medidas de segurança epolítica internacional. Devem tambémidentificar e esforçar-se para criar condiçõesnecessárias para a eliminação inspecionada detodos os arsenais nucleares.

Em quinto lugar, os países devem secomprometer a desenvolver estratégiasdiplomáticas baseadas em resolução deconflitos. Aqueles que possuem armasnucleares devem usar sua liderança pararesolver conflitos regionais que levem oujustifiquem a procura de segurança por partede alguns países, através de armas nucleares,biológicas ou químicas.

Líderes políticos devem forjar uma nova ecorajosa estratégia de segurança nuclear – umaque proteja e elimine materiais nucleares antesque terroristas possam roubá-los, e que reforceum regime de não-proliferação gravementeatingido, antes que surjam novos paísesnucleares. Com envolvimento ativo decidadãos conscientes, com colaboraçãointernacional e com real liderança esta é umameta exeqüível.

- Joseph Cirincione, Carnegie Endowmentfor International Peace

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CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

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Os ataques de 11 de setembro aos EstadosUnidos e a subseqüente “guerra aoterrorismo” chamaram a atenção do públicoe do governo quanto à importância daaceleração dos programas antiterrorismo e denão-proliferação de armas. Felizmente, todasas grandes potências concordaram em aboliruma das principais classes de armas dedestruição em massa: as armas químicas. Ouso pelo Iraque de tais armas contra seuscidadãos curdos em Halabja, em março de1988, e o uso do gás sarin pelo grupoterrorista japonês Aum Shinrikyo, no metrôde Tóquio, em março de 1995, ilustram oterrível potencial dessas armas mortais.1

Atualmente, apenas seis países no mundopossuem estoques declarados de armasquímicas - Albânia, Índia, Líbia, Rússia,Coréia do Sul e Estados Unidos. Rússia eEstados Unidos possuem acima de 98%destes estoques. Um dos maiores perigos éa possibilidade de desvio e ameaçaterrorista. Ao longo da década passada,inspeções bilaterais e multilaterais dearsenais, in loco, demonstraram quãovulnerável são alguns, se não todos, àinfiltração, roubo e possível desvio paragrupos nacionais ou subnacionais. 2

Duas décadas atrás, os Estados Unidos ea União Soviética concordaram unilateral ereciprocamente em abolir seus grandes eobsoletos arsenais. Este compromisso foifortalecido em 1993, quando estes doisjuntaram-se a 128 outros países na Convençãode Armas Químicas, internacionalmentemandatória. A convenção entrou em vigor,

L I G A Ç Ã O D E S E G U R A N Ç A

Armas Químicasem abril de 1997, obrigando os quatrossignatários, possuidores, na época, deestoques declarados – Estados Unidos,Rússia, Índia e Coréia do Sul –, a abolir seusarsenais, até 2007, com opção de dilataçãoaté 2012. Até setembro de 2004, 165 paísesjá tinham ratificado ou assinado o tratado, secomprometendo em parar toda a pesquisa,desenvolvimento, produção, uso etransferência de armas químicas e emdestruir todas as suas reservas. Entre ospaíses que ainda não ratificaram ouassinaram a convenção estão Egito, Iraque,Israel, Líbano, Coréia do Norte, Somália eSíria.3

A destruição de reservas de armasquímicas está acontecendo, emboralentamente. Os Estados Unidos começaramum programa de destruição ativa no inícioda década de 90 e até agora destruíram maisde 8.000 toneladas – 26% do seu arsenaldeclarado de aproximadamente 31.500toneladas. A Rússia ficou atrás, tendodestruído somente cerca de 800 toneladas,ou 2% do seu arsenal declarado deaproximadamente 40.000 toneladas. Oritmo, entretanto, deve acelerar nospróximos cinco anos, com duas novasinstalações para administrar a destruiçãoentrando em operação. Tanto Índia quantoCoréia do Sul estão fazendo grandeprogresso na eliminação de seus pequenosarsenais; também Albânia e Líbia logo darãoinício a seus programas. 4

A chave para o sucesso se tornou visível.

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ARMAS QUÍMICAS

Primeiramente, eacima de tudo,tornou-se claroque todosproprietários –incluindogovernos locais eregionais ecomunidades vizinhas – devem serenvolvidos no processo completo dedestruição de armas. A Rússia aprendeu estadura lição, em 1989, após uma comunidadelocal ter voltado atrás e suspendido seuplano inicial (secreto) de destruição de suasarmas químicas, numa instalação centralizadaem Chapeyevsk. Embora os EstadosUnidos tenham tido um processo maisinclusivo, com escritórios de amplo alcancee Comissões de Aconselhamento aosCidadãos, ainda surgem oposições decidadãos, reguladores oficiais e governosestaduais, sobre planejamento e discussõesinsuficientes. O que se faz necessário é oreconhecimento de que o desenvolvimentosocial e econômico, a assistência técnica e adesmilitarização devem trabalharconjuntamente, para que um projeto sejabem sucedido. 5

É também importante que os riscos eimpactos potenciais para a saúde pública emeio ambiente sejam exaustivamenteanalisados e publicamente discutidos. Todasas tecnologias de destruição produzemresíduos, alguns mais tóxicos do que outros.Avaliações confiáveis e independentes deriscos e da saúde devem ser realizadas para

ajudarfuncionários e opúblico adecidirem sobresuas escolhas. Porexemplo, aliberaçãoproposta de

efluentes de agente de nervo neutralizado norio Delaware, nos Estados Unidos, levantoumuitos questionamentos não abordados, domesmo modo que o armazenamento delongo prazo de refugo tóxico de betume, naregião Kurga, na Rússia. 6

É também essencial uma maiortransparência para promover consenso eprogresso. Por razões óbvias, o segrego temdominado por muito tempo as áreasnuclear, química e de armas biológicas. Como aumento do terrorismo e a ameaça deroubo de armas e ataque a reservas,representantes oficiais estão outra veztentando limitar o conhecimento e adiscussão pública. Na maioria dos casos,isto é um erro. Interessados locais, regionais,nacionais e internacionais precisam tercerteza de que seus interesses estão sendoprotegidos, uma meta que só pode seralcançada através de transparência einspeção. 7

Concomitantemente com um maiorcompromisso com a sociedade civil, existeuma necessidade de ampliar as opçõestecnológicas disponíveis de desmonte dearmas químicas. A destruição física destasarmas não é nem simples nem barata.

Cápsulas de artilharia com agente VX aguardando

destruição, Rússia

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Estado do Mundo 2005ARMAS QUÍMICAS

Abrange uma grande variedade de materiaise processos perigosos, com riscosamplamente diversos para o meio ambientee para a saúde pública. A tecnologia dedestruição preferida do exército dosEstados Unidos tem sido, há muito, aincineração das armas químicas; no entanto,foi o desenvolvimento e a comprovação dealternativas não-incineradoras, tais como aneutralização, que permitiram aos EstadosUnidos implantar instalações em cada localde estoques de armas químicas. Uma vezque o desarmamento de armas é dointeresse de todos os países, não somentedos proprietários de armas, a comunidadeinternacional deve compartilhar aresponsabilidade e custo do desarmamento,particularmente nos países mais pobres. Emvirtude de sua economia em transição, aRússia deixou isto claro quando assinou eratificou a Convenção de Armas Químicas.A destruição das armas químicas da Rússiacustará pelo menos de US$ 5 a US$ 10

bilhões; o custo do programa dos EstadosUnidos hoje ultrapassa US$ 25 bilhões econtinua subindo. Os compromissos doprograma Redução Cooperativa deAmeaças, dos Estados Unidos, juntamentecom a Parceria Global do G-8, de 2002, decerca de US$ 20 bilhões para destruir asarmas de destruição em massa na Rússia,são elementos vitais para a proteção edestruição oportunas destes estoquesperigosos. 8

Porém, os países doadores devemreconhecer que a provisão de fundos eapoio técnico não lhes dá o direito de ditarprioridades. E uma associação de fato exigeque nações beneficiadas, como a Rússia,ajudem a facilitar o processo dedesarmamento com acesso local,transparência, vistos, questões deresponsabilidade, como é exigido namaioria dos acordos bilaterais. Comcooperação de todos os lados, a era dasarmas químicas pode ser encerrada.

- Paul F. Walker, Global Green USA

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Estado do Mundo 2005PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

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Construindo a Paz através daCooperação Ambiental

Ken Conca, Alexander Carius,e Geoffrey D. Dabelko

Ao longo da fronteira que separa o Peru doEquador, as espetaculares florestas úmidas daCordillera del Condor abrigam umaabundância de espécies raras e ameaçadas.Esparsamente habitada e minimamentedesenvolvida, a cordilheira ostenta umaopulência de biodiversidade só rivalizada pelariqueza de seu ouro, urânio e depósitospetrolíferos. Ao invés de se beneficiar deles,todavia, a população da Cordillera del Condorpassou por décadas de hostilidade, conflitosfronteiriços e descaso governamental.Durante os meses de verão, quando o climafacilita seu acesso à região remota, forçasmilitares de ambos os países trocam fogo deartilharia, num conflito de baixo nível, quecolocou seus habitantes em perigo edesestabilizou a região fronteiriça. Finalmente,após décadas de ebulição e disputasfronteiriças acirradas, Peru e Equador cessaram

as hostilidades, em 1998, nos termos de umacordo de paz facilitado pelo Brasil, Argentina,Chile e Estados Unidos.1

Retraçar a fronteira exigiu uma negociaçãoinovadora. Os governos de Peru e Equadorconcordaram em estabelecer zonas deconservação, ao longo da divisa, que seriamadministradas por suas agências nacionais,chefiadas, porém, por um Comitê Diretorbinacional. Esta gestão conjunta segue umalógica tanto ecológica quanto política. Osecossistemas dos países são fundamentalmenteinterdependentes; a zona de conservação daCordillera del Condor (ou “parque da paz”)utiliza esta interdependência para remover umobstáculo particularmente espinhoso paraa paz.

Entretanto, os habitantes da cordilheiraainda enfrentam certos desafios perenes:pobreza aguda, tensões sociais e até mesmo

C A P Í T U L O 8

Ken Conca é Professor Adjunto de Governo e Política e Diretor do Programa Harrison da Agenda Global Futura daUniversidade de Maryland. Alexander Carius é Diretor da Adelphi Research, Berlim. Geoffrey D. Dabelko é Diretor doProjeto de Mudança Ambiental e Segurança do Woodrow Wilson International Center for Scholars, Washington DC.

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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

Estado do Mundo 2005

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violência, parte do que é provocado pelopróprio parque da paz. Na floresta protegidaem torno de Canton Nagaritza, os relatos deviolência entre colonos e agências deconservação indicam que, embora osgovernos estejam em paz, algumas pessoascontinuam em luta – mas, agora, contra osarquitetos do parque. A iniciativa do parqueda paz pode fortalecer a transformação deconflitos entre os dois países, porém o esforçohumano por paz e desenvolvimento susten-tável continua sendo uma batalha diária.2

A onze mil quilômetros e um oceano dedistância, a cooperação ambiental também estáajudando o sul da África a se recuperar deconflitos devastadores e a evitar o surgimentode novos conflitos. Após quase três décadasde guerra civil em Angola, hoje é a paz queameaça a tranqüilidade do Rio Okavango, quecai de sua cabeceira em Angola e corre para oamplo delta em Botsuana, atravessando aNamíbia, num trajeto de 1.100 quilômetrosao sul para o Deserto de Kalahari. Esteambiente prístino em uma das poucas baciasnão-industrializadas que restam no mundo,abriga uma miríade de espécies de flora e faunaque escapou do impacto do desenvolvimentomoderno.3

As prementes necessidades ambientais dastrês nações da bacia estão pressionando o frágilmeio ambiente fluvial, levantando o espectrode um tipo diferente de conflito. Angola desejareassentar seus cidadãos deslocados pelaguerra, que precisarão mais da água do rio. E,como nação a montante, Angola tem o poderde perturbar acordos que, hoje, favorecemseus vizinhos a jusante. A recém-independenteNamíbia também tem planos para a água doOkavango: quer construir uma adutora paraseu interior árido e, vez por outra, ameaçareativar seu antigo projeto de construir uma

barragem na seção curta do rio que atravessao país na Faixa Caprivi. Botsuana, por outrolado, defende o status quo, que atrai um fluxoturístico lucrativo para explorar o singularecossistema do maior delta interiorano daÁfrica subsaariana e uma área de pantanalinternacionalmente reconhecida como degrande significação ecológica.4

Embora estes objetivos mistos econtraditórios possam levar ao conflito, pelaobtenção de maior controle sobre os recursospartilhados, há esperança de que as instituiçõescolaboradoras – se fortes e vitais – possamgerir demandas competitivas sem violência.Em 1994, os três países criaram a ComissãoPermanente da Bacia Hidrográfica doOkavango (conhecida como OKACOM)para gerir a bacia. Há um bom relacionamentoentre os comissários da OKACOM e umreconhecimento crescente de que a cooperaçãopoderá trazer benefícios maiores para todosdo que as disputas pela água.5

Infelizmente, a comissão tem se empenhadopara obter recursos financeiros e uma formapolítica de catalisar uma cooperação proativa.Recentemente, a OKACOM convocouorganizações não-governamentais (ONGs) ea sociedade civil a desempenharem um papelmais ativo do que comumente ocorre emoutras bacias hidrográficas compartilhadas,reconhecendo que os três países não poderão,isoladamente, implementar estratégias eficazesde gestão. Também buscaram oportunidadesde colaboração com doadores e gruposconservacionistas internacionais que

A cooperação ambiental está ajudando

o sul da África a se recuperar de

conflitos devastadores e a evitar o

surgimento de nova violência.

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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

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167

promovem desenvolvimento ambientalmentesustentável. Até agora, estes mecanismosinstitucionais têm sido suficientemente eficazes,eqüitativos e participativos em pender a balançamais para criação de confiança e cooperaçãodo que para tensão e violência.6

Congregando ecologia e política a serviçoda paz, a Cordillera del Condor e asinstituições da bacia do Okavango são doisexemplos de uma variedade crescente deiniciativas – incluindo parques de paz, projetosde gestão de bacias hidrográficas compar-tilhadas, acordos de mares regionais eprogramas de monitoração ambientalconjunta –, que buscam promover amanutenção da paz, através da cooperaçãoambiental. Isto envolve esforços cooperativospara gerir recursos ambientais como formade transformar inseguranças e criar relaçõesmais pacíficas entre as partes em disputa. Àmedida que estas iniciativas se tornarem maisfreqüentes e ganhem ímpeto, poderãoproporcionar meios de transformar o modocomo as pessoas abordam conflitos e vêemo meio ambiente. Surpreendentemente,entretanto, relativamente pouco se sabe sobreos melhores projetos para essas iniciativas ouas condições sob as quais podem ter sucesso.Embora um grande número de pesquisasexamine a contribuição da degradaçãoambiental para conflitos violentos, existempoucas avaliações, em termos de conhe-cimento sistemático, sobre uma possibilidadeigualmente importante: a cooperaçãoambiental pode conduzir à paz.

Meio Ambiente e Conflito:Um Histórico

Ao longo dos últimos 15 anos, muitosacadêmicos consideraram se problemas

ambientais causam ou exacerbam conflitosviolentos. Embora recursos escassos e não-renováveis, como o petróleo, venham, hámuito, sendo considerados como fontepotencial de conflito, esta nova pesquisadeslocou o foco para recursos renováveis,como florestas, pesqueiros, água doce e terrascultiváveis. Grande parte desse trabalho,inclusive projetos por pesquisadorescanadenses e suíços, em meados dos anos 90,constatou pouca evidência de que adegradação ambiental houvesse contribuídosignificativamente para a guerra entre nações.Todavia, os estudos constataram algumaevidência de que problemas ambientaispodem provocar ou agravar conflitos locaisoriundos de divisões sociais como etnia, classeou religião. (Ver Tabela 8-1.)7

À medida que o debate meio ambiente-conflito avançava dentro da comunidadeacadêmica, o conceito de “segurançaambiental” começou a atrair a atenção dasinstituições de segurança e legisladores emtodo o mundo industrializado. (Da forma quea expressão é comumente utilizada, a segurançaambiental engloba um conjunto diversificadode preocupações, além da questão maisestreita das ligações meio ambiente-conflito,que incluem a compreensão dos impactosambientais dos preparativos e condutas deguerra, redefinição da segurança para focar asameaças ambientais e à saúde dos sereshumanos, e utilização das instituições desegurança na ajuda ao estudo e gestão do meioambiente.) Recentemente, o Secretário-Geralda ONU, Kofi Annan, solicitou a integraçãodas contribuições ambientais a conflitos einstabilidades na estratégia das Nações Unidaspara prevenção de conflitos, e nas deliberaçõesdo seu Painel de Alto Nível sobre Ameaças,Desafios e Mudança.8

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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

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Nos últimos anos, governos nacionais eorganizações intergovernamentais encomen-daram análises especializadas sobre o conceitode segurança ambiental, visando aodesenvolvimento de diretrizes políticas eprocedimentos implementadores. A UniãoEuropéia discutiu formas de integrar oconceito em sua emergente política externa ede segurança e promoveu a segurançaambiental como um dos temas da CúpulaMundial sobre Desenvolvimento Sustentável,realizada em Joanesburgo, em 2002. NosEstados Unidos, várias agências gover-namentais – inclusive o Departamento deEstado, Departamento da Defesa, Agência deProteção Ambiental, Agência deDesenvolvimento Internacional e vários órgãosde inteligência – elaboraram mandatos epolíticas, nos anos 90, para lidar com o meioambiente, conflitos e ligações de segurança.Embora os eventos de 11 de setembro de2001 tenham colocado essas idéias em segundoplano, muitas agências federais e ONGscontinuam buscando meios para transformaressas idéias em programas concretos.9

Alegações de que a degradação ambientalinduz a conflitos violentos continuampolêmicas. Céticos assinalam que a cadeia causalna maioria dos modelos de conflito ambientalé longa e tênue, com uma miríade de fatoressociais, econômicos e políticos posicionadosentre mudança ambiental e conflito. Outrosquestionam as implicações desse conceito,temendo que definir problemas ambientaiscomo conflito “securitizará” a políticaambiental, injetando pensamentos milita-rizados do tipo “nós-versus-eles” num âmbitoque exija respostas interdependentes ecooperativas.10

Essas reações não são surpreendentes à luzda estrutura de segurança nacional que está

freqüentemente presente em debates desegurança ambiental. Vejamos esta declaraçãode John Deutsch, da Agência Central deInteligência dos Estados Unidos: “Sistemasnacionais de reconhecimento que rastreiam omovimento de tanques pelo deserto podem,ao mesmo tempo, rastrear o movimento dopróprio deserto... A inclusão desta dimensãoambiental na análise política, econômica emilitar tradicional acentua nossa capacidade dealertar legisladores quanto a instabilidades,conflitos ou desastres humanos potenciais ede identificar situações que possam atrairenvolvimento americano.”11

Muitos observadores interpretaram este tipode declaração como evidência de motivosinconfessáveis. Suspeita-se que a atenção àsligações meio ambiente-conflito refletem nãoapenas uma preocupação genuína, mas simum desejo de prever e isolar pontos críticospreocupantes. Preocupações ambientaispodem até ser utilizadas como um raciocíniológico para intervenções – como o interessesúbito do governo americano no longosofrimento dos “árabes do pântano noIraque”, que surgiu em paralelo à intervençãomilitar contra o regime de Saddam Hussein.Visto sob este prisma, o interesse militar dosEstados Unidos, digamos, nos camposdevastadoramente desnudos do Haiti, poderiaestar fundamentado num desejo de barrarondas de refugiados haitianos, ao invés debuscar formas de lidar com a pobrezasistêmica ou de reverter a degradação derecursos naturais vitais.

Apesar do seu ímpeto em muitas partesdo mundo industrializado, a idéia de segurançaambiental não tem desempenhado bem seupapel nos palcos globais. Os governos do Sulglobal vêm, há muito, suspeitando de que ointeresse cada vez maior do Norte na proteção

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TTTTTabela 8-1. Iniciativas Nacionais e Internacionais Selecionadas sobre o Meioabela 8-1. Iniciativas Nacionais e Internacionais Selecionadas sobre o Meioabela 8-1. Iniciativas Nacionais e Internacionais Selecionadas sobre o Meioabela 8-1. Iniciativas Nacionais e Internacionais Selecionadas sobre o Meioabela 8-1. Iniciativas Nacionais e Internacionais Selecionadas sobre o MeioAmbiente, Ambiente, Ambiente, Ambiente, Ambiente, Conflito, Paz e SegurançaConflito, Paz e SegurançaConflito, Paz e SegurançaConflito, Paz e SegurançaConflito, Paz e Segurança

Grupo ou País

Clube de Roma / Dep. deEstado dos EUA

Comissão Independente sobreDesarmamento e Questões de Segurança

Comissão Mundial sobre Meio Ambiente eDesenvolvimento

Programa das Nações Unidas para o MeioAmbiente (PNUMA) / Instituto de Pesquisada Paz, Oslo (PRIO)

União Soviética

Governo da Noruega

Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento (PNUD)

Governo da Alemanha

Ano

19721981

1982

1987

1988

1989

1989

1994

1996

Iniciativa

Os Limites do Crescimento, do Clube de Roma e o RelatórioGlobal de 2002 ao Presidente, do Governo dos Estados Unidos,chamaram atenção para os riscos ambientais e para uma gamade mudanças socioeconômicas associadas (crescimentopopulacional, urbanização e migração) que poderiam levar aconflitos sociais.

Em seu primeiro relatório, Segurança Comum, a Comissãoenfatizou a ligação entre segurança e meio ambiente.

A Comissão ampliou o conceito de segurança em Nosso FuturoComum: “Toda a noção de segurança como entendidatradicionalmente – em termos de ameaças políticas e militares àsoberania nacional – deverá ser ampliada para incluir osimpactos crescentes do estresse ambiental – local, nacional,regional e global.” A Comissão concluiu que “o estresseambiental poderá desta forma ser parte importante da rede decausalidade associada a qualquer conflito podendo, em algunscasos, ser catalítico.”

Um programa conjunto entre o PNUMA e o Instituto dePesquisa da Paz, Oslo, sobre “Atividades Militares e MeioAmbiente Humano” incluiu projetos empíricos de pesquisa emgrande parte concebidos e implementados pelo PRIO. A partirdesta iniciativa, o PRIO desenvolveu um foco de pesquisa sobremeio ambiente e segurança.

Propostas para a criação de um Conselho de SegurançaEcológica nas Nações Unidas têm surgido repetidamente, aolongo dos últimos 15 anos, desde quando o Ministro do Exteriorsoviético, Eduard Shevardnadze, e o Presidente MikhailGorbachev, sugeriram à 46ª Assembléia Geral que as questõesambientais fossem elevadas a este alto status.

Em 1989, o Ministro da Defesa Johan Jørgen Holst observouque os problemas ambientais podem se tornar fatoresimportantes no desenvolvimento de conflitos violentos.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento incluiuexplicitamente a segurança ambiental como um doscomponentes de “segurança humana,” uma estrutura quecontinua a encontrar apoio entre o PNUD e alguns governosnacionais proeminentes, como o Canadá.

O Ministro Federal do Meio Ambiente encomendou umrelatório especializado sobre meio ambiente e conflito, paraexplorar as oportunidades de reforço de políticas e leisambientais internacionais.

FONTE: Vide nota final 7

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ambiental internacional pode prejudicar suaprópria busca pelo desenvolvimentoeconômico. Num contexto de um diálogoambiental Norte-Sul já contencioso, os paísespobres freqüentemente vêem o conceito desegurança ambiental como uma agenda de país

Grupo ou País

Organização para o Desenvolvimento eCooperação Econômica

Organização do Tratado do AtlânticoNorte

União Européia

Agência Suíça de Cooperação para oDesenvolvimento

Nações Unidas

Governo da Alemanha

Ano

1998

1999

2001

2002

2002

2002

2004

Iniciativa

O Comitê de Assistência ao Desenvolvimento da Organizaçãopara o Desenvolvimento e Cooperação Econômica encomendouum relatório especializado sobre meio ambiente e conflito.

Em março de 1999, o Comitê da Organização do Tratado doAtlântico Norte sobre os Desafios da Sociedade Modernapublicou um relatório abrangente, Meio Ambiente e Segurançadentro de um Contexto Internacional, após uma consultoria detrês anos com legisladores e especialistas em segurança, meioambiente e estrangeiros.

Em abril de 2001, o Conselho de Assuntos Gerais da UEapresentou sua estratégia de integração ambiental sobre aquestão de meio ambiente e segurança e a contribuição dodesenvolvimento sustentável à segurança regional (adotada emmarço de 2002).A UE discutiu como integrar segurança ambiental em suaemergente política externa e de segurança e a promoveu comotema para a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável,em 2002.

A Agência Suíça de Cooperação para o Desenvolvimentoexplorou formas de adaptar avaliações de paz e impactos deconflito a projetos selecionados do seu programa ambiental.

O Secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, solicitouuma melhor integração das contribuições ambientais a conflitose instabilidades, na estratégia da organização sobre prevençãode conflitos e nas deliberações do seu Painel de Alto Nível sobreAmeaças, Desafios e Mudanças.

O Plano de Ação Federal sobre Prevenção de Crise Civil,Resolução de Conflito e Consolidação da Paz Pós-conflito(publicado em maio de 2004, após aprovação parlamentar)identificou o desenvolvimento sustentável e a cooperaçãoambiental transfronteiriça como fatores decisivos para apromoção da paz e da estabilidade.

FONTE: Vide nota final 7

Tabela 8-1. (continuação) (continuação) (continuação) (continuação) (continuação)

rico servindo aos interesses de países ricos paracontrole de recursos naturais e de estratégiasdesenvolvimentistas. Vista sob este ponto devista, a ênfase do Norte sobre ameaças àsegurança do Sul desloca o ônus daresponsabilidade dos males globais, sugere

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identidades regionais em torno de recursoscompartilhados e estabelecer direitos eexpectativas mutuamente reconhecidos.13

A interdependência de ecossistemas ofereceoportunidades de mútuo benefício. Quandovistos isoladamente, os problemas ambientaisfreqüentemente criam graves dicotomias amontante e jusante, complicando a cooperação.Por exemplo, a maioria das leis hídricasinternacionais parte da premissa de que naçõesa montante e jusante têm interessesfundamentalmente diferentes quanto ao usoda água e da proteção ambiental. Mas, ascomunidades caracteristicamente possuemmuitas interdependências ecológicassimultaneamente sobrepostas; locais amontante de um vizinho numa relaçãoecológica podem estar a jusante em relação àoutra (ver Capítulo 5). Por exemplo, o Japãoestá “a jusante” das chaminés industriais daChina, porém os dois países compartilham umecossistema marinho regional. Os EstadosUnidos estão a montante do México, no RioColorado, porém, a jusante (pelo menos nosentido físico) das indústrias tóxicas que sedesenvolvem na fronteira EUA-México. Estasinterdependências complexas criamoportunidades para reunir os diferentesproblemas ambientais em formas maisestruturadas de cooperação ambiental.

Por sua própria natureza, os problemasambientais exigem ação preventiva, implicamhorizontes de mais longo prazo e requeremum reconhecimento de mudanças súbitas,surpreendentes e dramáticas. Dadas estascaracterísticas, a cooperação ambiental podeinfluenciar tomadores de decisão a abraçaremhorizontes de mais longo prazo, para que osganhos futuros tenham peso maior noscálculos atuais. Por exemplo, tem se tornadomais comum nos últimos anos as nações queassinam acordos sobre bacias hidrográficas

uma lógica para intervenção no uso dosrecursos do Sul e sublinha a tênue soberaniados países pobres, em face de um podereconômico, militar e institucional,desigualmente distribuído. Muitos brasileiros,há muito, vêem com suspeita a caracterizaçãoda Amazônia pelo Norte como “pulmão daTerra,” considerando-a como parte de umacampanha de “internacionalização” da florestae obstrução do desenvolvimento.12

Dadas essas preocupações, a reformulaçãode debates ambientais em termos de segurançanão tem sido um catalisador eficaz para acooperação ambiental global. Eis aí umparadoxo: a apresentação de um problemacomo de “segurança ambiental” poderá inibira cooperação, justamente nos locais onde asinseguranças ecológicas das pessoas ecomunidades são mais flagrantes.

Por Que o MeioAmbiente?

Um número crescente de vozes temsugerido que focar a paz – e não a segurança– poderá proporcionar um meio de rompero impasse. Como instrumento de paz, o meioambiente oferece algumas qualidades úteis,talvez até singulares, que se prestam à criaçãode paz e transformação de conflito: desafiosambientais ignoram fronteiras políticas, exigemuma perspectiva de longo prazo, encorajamparticipação local e não-governamental eestendem a criação de comunidades, além dasligações econômicas polarizadoras. Estespredicados, às vezes, tornam a cooperaçãoambiental transfronteiriça difícil de seralcançada. Porém, onde a cooperaçãoefetivamente se enraíza é que é importanteincrementar confiança, implantar hábitoscooperativos, criar o compartilhamento de

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compartilhadas criarem uma comissãopermanente da bacia como plataforma paratroca de informações, iniciativas de conhe-cimento comum e uma perspectiva de maislongo prazo sobre a gestão da baciacompartilhada.14

Questões ambientais encorajam as pessoasa trabalharem em nível de sociedade-a-sociedade, como também no nível entrenação. Comunidades nacionais podem se uniratravés de fronteiras em torno de interdepen-dências ecológicas, dando, às vezes, osprimeiros passos para um diálogo que seriadifícil através de canais oficiais. A longo prazo,a interação regular entre cientistas e ONGspoderá ajudar a alicerçar a confiança e acooperação implícita. Apesar das batalhasdiárias nas ruas da Margem Ocidental e naFaixa de Gaza, para citar apenas um exemplo,os palestinos e israelenses continuam a se reunirinformalmente para administrar aspectos deseus recursos hídricos compartilhados.

É quase um artigo de fé entre internacio-nalistas liberais que a interdependência crescenteé uma força para a paz na política mundial.Todavia, a interdependência baseada predomi-nantemente em ligações comerciais e deinvestimento pode ter efeitos profundamentepolarizadores, como visto na reação contra aglobalização econômica. A cooperaçãoambiental oferece uma oportunidade impor-tante para estender a construção comunitáriatransfronteiriça, além da esfera estreita efreqüentemente polarizadora das ligaçõeseconômicas. Por exemplo, muitas organizaçõescivis e grupos locais no México e EstadosUnidos, que se opõem ao Acordo de LivreComércio da América do Norte (ALCA),estão envolvidos em esforços conjuntos deproteção ambiental ao longo e através dafronteira.15

De forma mais ambiciosa, e também maisespeculativa, pode ser que a cooperaçãoambiental transfronteiriça possa tambémajudar a criar um conceito mais amplamentecompartilhado de lugar e de comunidade.Uma conseqüência poderá ser a soltura dasamarras tradicionais de identidades políticas“exclusionárias” a favor de um sentido maisamplo de comunidade ecológica.

Utilizando CooperaçãoAmbiental para Construir

a Paz

A maioria das iniciativas de paz através dacooperação ambiental se enquadra em umade três categorias parcialmente justapostas:esforços de prevenção de conflitos relacio-nados diretamente ao meio ambiente, ten-tativas de iniciar e manter diálogo entre aspartes em conflito e iniciativas para criar umabase sustentável para a paz. Se a exigênciamínima para paz é a ausência de conflito vio-lento, então, a cooperação ambiental podedesempenhar um papel na prevenção do tipode violência, que pode ser provocada pelaexploração predatória de recursos, degradaçãode ecossistemas ou destruição de meios devida lastreados em recursos naturais. Não éde se estranhar que estudos ligando a degra-dação ambiental a conseqüências violentastenham apontado para a necessidade de aliviaras pressões sobre meios de vida e realçar acapacidade das instituições de responderemaos desafios ambientais. Em outras palavras,a forma mais direta de se fazer a paz atravésda cooperação ambiental poderá ser a açãopreventiva de conflitos ambientalmenteinduzidos.16

A cooperação ambiental pode tambémaliviar descontentamentos grupais que se

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formam em torno de injustiças ecológicas ousão exacerbados por elas. Problemas am-bientais que se agravam podem criar umaligação perigosa entre insegurança material eidentificação das pessoas como um grupomarginalizado. Em cenários onde a etnia afetaas oportunidades políticas e econômicas, osefeitos ambientais freqüentemente sedesenvolvem de forma desigual também aolongo de linhas étnicas. Assim, muitas das áreasde maior poluição industrial nas nações bálticaspós-União Soviética abrigam, basicamenterussos étnicos – criando um mix potencial-mente explosivo de identidades etno-nacionais,acentuando a desigualdade social e insa-tisfações ambientais. Uma cooperação am-biental proativa poderia ajudar a aliviar umafonte importante de descontentamento queestá exacerbando esses tipos de divisões sociais.

Uma segunda abordagem à paz através dacolaboração ambiental vai além de conflitoscom componente ambiental específico,buscando construir a paz através de respostascooperativas a desafios ambientais compar-tilhados. Iniciativas que visem problemasambientais compartilhados podem serutilizadas para estabelecer uma linha direta dediálogo, quando outras tentativas diplomáticasfalharam. Em muitas ocasiões, governospresos a relacionamentos marcados porsuspeita e hostilidade – quando não violênciadeclarada – constataram que questõesambientais são um dos poucos temas emtorno dos quais um diálogo contínuo podeser mantido.

Um dos conflitos não-solucionados maisgraves na região politicamente instável doCáucaso é a disputa entre Armênia e Azer-baijão pelo controle de Nagorno-Karabakh.No outono de 2000, a Geórgia, que vemmediando um diálogo sobre questões

conservacionistas, persuadiu os dois aestabelecerem uma reserva trilateral da biosferana região sul do Cáucaso. Os organizadoresesperam que a cooperação ambiental regionalirá acentuar a preservação natural, odesenvolvimento sustentável e, acima de tudo,a estabilidade política. Este projeto de longoprazo fará primeiramente coleta de dados,capacitação e conscientização. EmboraArmênia e Azerbaijão não estejam, nomomento, dispostos a cooperar diretamente,o acordo prevê que reservas naturais dabiosfera serão implantadas e finalmentefundidas. Os dois governos também solici-taram uma avaliação ambiental internacionalindependentemente de Nagorno-Karabakh;dados objetivos, aceitáveis por ambas aspartes, poderiam pelo menos lançar as basespara cooperação.17

Uma tentativa semelhante está sendo feitana Cashemira, alvo de uma disputa acirradaentre Índia e Paquistão, desde a descolonizaçãobritânica e o fim da II Guerra Mundial. Algunsconservacionistas internacionais argumentamque a implantação de um parque da paz nasmontanhas Karakoram, entre Índia ePaquistão, que marcam a extremidadeocidental do Himalaia, ajudaria na adminis-tração do conflito fronteiriço, promovendouma gestão conjunta deste singular ambienteglacial, onde muitas baixas militares sãocausadas mais pelos elementos do que pelofogo inimigo. A idéia de gestão conjunta está

Apesar das batalhas diárias nas ruas

da Margem Ocidental, palestinos e

israelenses continuam a se reunir

informalmente para administrar aspectos

de seus recursos hídricos compartilhados.

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também enraizada no reconhecimento de quea poluição é a maior ameaça a este ambientesingular. Sem dúvida, um programa deconservação conjunta numa área remota,despopulada, onde o custo de montaroperações militares sustentadas é proibitivo,parece inadequado para transformar adinâmica estrutural do conflito Índia-Paquistão.Todavia, considerando o atual cessar-fogo eo recente esfriamento das tensões, há umsentimento crescente que engajamentostransfronteiriços deste tipo têm um papelimportante a desempenhar na transformaçãode conflitos.18

Desafios ambientais compartilhadospodem ser úteis, não só para iniciar diálogos,mas também para efetivamente transformar,através do rompimento das barreiras àcooperação, relações de conflito – transfor-mando desconfiança, suspeita e interessesdivergentes numa base de conhecimento eobjetivos compartilhados. Questões tecni-camente complexas, onde as partes trabalhama partir de bases rivais de conhecimentofragmentado, podem acentuar desconfianças.Para superar isto, a complexidade técnica emtorno de muitas questões ambientais poderiaser utilizada para criação de conhecimentocooperativo conjunto. Por exemplo, aOKACOM identificou avaliações conjuntas davazão do rio Okavango e dos impactospotenciais da hidroenergia e desvios parairrigação como um passo decisivo para odesenvolvimento de bases acordadas para umagestão exitosa e pacífica dos recursos hídricos.19

Os céticos poderão ser tentados a descartaressas iniciativas como questões marginais, nãorelacionadas à essência de conflitos arraigados– do mesmo modo, talvez, que a cooperaçãodas superpotências no espaço sideral durantea guerra fria. Porém, a importância política eeconômica da cooperação ambiental é alta:nos exemplos fornecidos neste capítulo, istoestá claro para as partes envolvidas. Problemasem torno de bacias hidrográficas compar-tilhadas, biodiversidade regional, ecossistemasflorestais ou padrões de uso do solo e da águasão questões polêmicas e de alto valor, queenvolvem a nação em seus níveis mais altos.

Uma terceira linha de paz através dacooperação ambiental reconhece que umapaz duradoura exigirá um alicerce de susten-tabilidade. Um foco acanhado sobre o fatode a carência hídrica “causar” ou nãoviolência entre israelenses e palestinos, porexemplo, não percebe o ponto principal:como uma questão de a l to valor , aresolução dos problemas hídr icoscompartilhados se torna uma condiçãonecessária para uma paz mais ampla.Embora as tensões relacionadas à água entreisraelenses e palestinos possam não ter preci-pitado o conflito maior, a gestão dos recursoshídricos não é só uma linha potencial desalvação para a continuação de diálogodurante o conflito, mas também umaquestão-chave das negociações para otérmino do conflito. Nos Acordos de Pazde Oslo, entre palestinos e israelenses, a águaassegurou seu próprio grupo negociador, damesma forma que faz nas negociações entreÍndia e Paquistão, iniciadas em 2004. Seja aágua a causa fundamental de conflito ouapenas exacerbadora das diferençasexistentes, não haverá paz duradoura semuma base hídrica sustentável para a região.20

Iniciativas acanhadas governo-a-governo

correm o risco de criar condições mais

eficientes para pilhagens de recursos,

sem promover paz ou sustentabilidade.

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Desafios Remanescentes

Apesar do potencial ambiental para oestabelecimento da paz, um olho cético énecessário quando essas iniciativas continuamrestritas à jurisdição de governos e elitespolítico-econômicas. Iniciativas que melhorema confiança e a reciprocidade entre governossem promover uma base mais ampla desociedade a sociedade para a paz correm orisco de reforçar uma lógica estatal desegurança nacional de “soma zero”. Sãotambém propensas a esforços mitigatórios decurto prazo que não consideram o alcancepleno do problema. Um acordo marginal àALCA criou um mecanismo inovador parafinanciar projetos comunitários na fronteiraEUA-México, por exemplo. Porém, inves-timentos em iniciativas cooperativas durante osprimeiros anos de operação foram apenas umafração do que havia sido projetado e muitosgrupos civis em ambos os lados da fronteirareclamaram por ter ficado fora do processo.21

Iniciativas acanhadas de governo-a-governotambém correm o risco de criar condiçõesmais eficientes para pilhagens de recursos, sempromover paz ou sustentabilidade. Muitosacordos fluviais internacionais são insincerosnos princípios de gestão cooperativa de baciashidrográficas, concentrando-se principalmenteem esquemas de capital intensivo para desen-volvimento de recursos hídricos e trans-ferências entre bacias.

Igualmente, parques da paz no sul da Áfricaservem como meio de reconciliação entreinimigos da era do apartheid, conseguindoganhos conservacionistas, ao derrubar cercaspolíticas que arbitrariamente destroem habitats.Mas há o perigo de governos estaremsimplesmente tomando decisões sem levar emconta os interesses daqueles mais afetados pelos

projetos. O ecoturismo pode beneficiar bemmais ricos hoteleiros e investidores estrangeirosdo que as populações locais vivendo à sombrade parques da paz e áreas de preservaçãotransfronteiriças. Dentro da Comunidade deDesenvolvimento do Sul da África, a implan-tação de áreas de preservação transfronteiriçasproporcionou um forte impulso à cooperaçãoregional. Todavia, os projetos foram maisbem-sucedidos quando, após um processoapressado e basicamente verticalizado deimplantação dos primeiros parques da paz,foi outorgado às comunidades locais maiorcontrole sobre a terra e recursos.22

A preservação natural transfronteiriça possuium potencial significativo de contribuir paraa prevenção de conflito, principalmente aofacilitar a comunicação, melhorar os meios devida locais e promover benefícios ecológicos,sociais, econômicos e políticos das áreas sobproteção. Não obstante, as tensões continuamentre, de um lado, os imperativos dapreservação natural gerida pelo Estado e, dooutro, as atividades econômicas das popu-lações indígenas.

Uma dose saudável de realismo também énecessária, com relação à questão crucial decompromisso. Mesmo onde as iniciativasforam desenvolvidas visando à paz e à criaçãode confiança, freqüentemente, tem havidopouco avanço. O Mar de Aral é um exemploadmonitório dos desafios de paz efetiva,através de cooperação ambiental. Quando aUnião Soviética entrou em colapso, em 1991,o que havia sido o quarto maior corpo d’águainteriorano, em 1960, era apenas uma sombrado seu passado. Com seus rios tributáriosrepresados e desviados para programas deirrigação, o nível do mar caiu cerca de 15metros, sua superfície foi cortada ao meio, seunível de salinidade triplicou e seu volume

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diminuiu em dois terços. Os novos Estadosindependentes da Ásia Central enfrentaramuma crescente crise socioeconômica, criandocondições de irrupção de conflitos hídricosao longo das linhas etno-nacionais.23

Com ajuda do Banco Mundial e outrasagências ocidentais, os países ripários dostributários do Mar de Aral, o Amu e Syr Darya,esquematizaram uma estrutura cooperativapara responder à crise. Ao fazê-lo, estabi-lizaram as relações entre nações durante umaépoca de turbulência política regional. Deacordo com a pesquisadora Érika Weinthal, ainiciação da cooperação hídrica pelos recém-formados Estados independentes pós-UniãoSoviética pode ter ajudado a evitar a violênciahídrica.24

A interdependência compartilhada duranteo tumulto pós-soviético foi suficiente para levarUzbequistão, Casaquistão, Turcomenistão,Tajiquistão e Quirjistão à mesa de negociações,porém, não alterou o problema fundamental:a morte lenta do Mar de Aral, acentuando asinseguranças da população regional. Oproblema básico – práticas agrícolasinsustentáveis – mal foi considerado e a novaestrutura cooperativa criou pouco, ounenhum, espaço democrático para osinteressados ou para a sociedade civil. OBanco Mundial e as agências bilaterais de ajudapodem ter desempenhado um papelcatalisador mediando o acordo entre naçõesdurante a crise, porém, falharam, não criandoformas mais robustas de governança ambientalregional. Na realidade, irrompeu a síndromecomum do compromisso frouxo, conhecidacomo “fadiga de doador”, e o cinismo quantoaos motivos dos governos da região e osatores internacionais é profundo. Atransformação desta situação exigirá umcompromisso de recursos a longo prazo, a

fim de colocar a economia da região em basessustentáveis e de iniciativas novas paraaumentar o engajamento da sociedade civilneste processo.25

Tornando a Paz através daCooperação Ambiental

uma Realidade

Há muito, está evidente, mesmo que nãotenha inspirado ação, que a cooperaçãoambiental transfronteiriça pode gerar vanta-gens ambientais, econômicas e políticastangíveis. Adequadamente planejadas, inicia-tivas ambientais também podem reduzirtensões e probabilidade de conflito violentoentre países e comunidades. Estratégias de pazatravés da cooperação ambiental oferecemuma oportunidade para formar um arcabouçopolítico prático e positivo de cooperação quepode engajar uma ampla comunidade deinteressados, ao reunir questões relacionadasao meio ambiente, desenvolvimento e paz.

Obviamente, a cooperação ambiental nãosurge de forma automática ou fácil, nem iráautomaticamente incrementar a paz. Tudodepende da forma institucional específica decooperação. Todavia, o conhecimento sobreiniciativas destinadas especificamente a lidarcom violência e insegurança é limitado. Emtermos simples, governos e outros atores nãotêm se dedicado suficientemente a atividadescooperativas sobre problemas ambientais,voltadas para a paz, que permitam conclusões

Estratégias de paz, através da cooperação

Ambiental, oferecem a oportunidade de

formar um arcabouço político prático

e positivo para cooperação.

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seguras. Onde já iniciaram programas, apenascomeçaram a compartilhar experiências econhecimento sobre o assunto, através deavaliações de paz-e-conflito de projetos eprogramas ambientais. Sem este conhecimento,a comunidade internacional poderá estarperdendo grandes oportunidades de paz noâmbito do meio ambiente.

O desafio, então, é reunir evidências – nãoimporta quão parcial ou indiretas – de queestratégias mais agressivas de paz através dacooperação ambiental podem criaroportunidades. Estas evidências poderão serutilizadas para instar governos, organizaçõesnão-governamentais, movimentos sociais eoutros fatores a serem mais agressivos nacooperação ambiental. A identificação dederivantes confiáveis de meios para a pazpoderá tornar as pessoas mais dispostas ainvestirem nesses projetos.

A ENVSEC (sigla em inglês da Iniciativapara o Meio Ambiente e Segurança), umaparceria entre a Organização para Segurançae Cooperação na Europa (OSCE), Programadas Nações Unidas para o Meio Ambiente eo Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento, lançada no outono de 2002,é uma tentativa importante para testar osargumentos da paz através da cooperaçãoambiental. Seu objetivo é identificar, mapeare responder a situações onde problemasambientais ameacem gerar tensões ouofereçam oportunidades para sinergiascooperativas entre comunidades, países ouregiões.26

O esforço é notável não só pela suaaplicação de uma abordagem de paz atravésda cooperação ambiental. É também aprimeira cooperação formal entre essas trêsorganizações que se especializam indivi-dualmente em segurança, meio ambiente e

desenvolvimento. Assim, a ENVSEC sebeneficia não apenas em muito dessasespecializações distintas, mas complementares,como também de uma rede de presenças decampo em suas regiões de operação: sudesteeuropeu, Ásia central e países ao sul doCáucaso. (Ver Quadro 8-1.)27

Na divisão do trabalho, a OSCE assume aliderança em desenvolvimento de programase questões políticas, o PNUMA contribui comsua experiência em avaliação, comunicaçãovisual e apresentação, e o PNUD está maisintimamente envolvido com desenvolvimentoinstitucional e implementação de projetos. Osdesafios, naturalmente, continuam: os trêsparceiros têm culturas organizacionais e modosoperacionais muito diferentes, que não foramprojetados para cooperação formal comoutras organizações internacional ou gestãoconjunta de projetos.

A ENVSEC ilustra os obstáculos comu-mente enfrentados pelas tentativas de colocaras idéias de paz através de cooperaçãoambiental em operação. O conceito deligações meio ambiente/segurança é, às vezes,contestado por governos anfitriões ou, pelomenos, considerados menos significativos doque outros problemas regionais. Ao mesmotempo, a iniciativa enfrenta expectativasfinanceiras, políticas ou outras de apoio desen-volvimentista, que estão além do seu alcance.Vários interessados têm expectativas diferentese as sensibilidades políticas devem ser sempreconsideradas. Apesar destes problemas, o valorda ENVSEC está exatamente na aplicaçãoprática, que serve para revelar a complexidadecotidiana da paz através da cooperaçãoambiental. Regiões mundiais, tão diversificadascomo a Europa oriental pós-soviética, o sulda África pós-apartheid, o nordeste da Ásiapós-guerra fria e a América do Norte sob a

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QUADRO 8-1. ENFOCANDO RISCOS AMBIENTAIS E À SEGURANÇA E OPORTUNIDADES NO SUL

DO CÁUCASO

O sul do Cáucaso – formado pela Armênia,Geórgia e Azerbaijão – vem sendo, há muito, umfoco de mudança, uma ponte entre Ásia e Europa.Hoje, transformações sociais, políticas eeconômicas estão alterando relações centenáriasentre países e comunidades e afetando o meioambiente natural. A região é marcada porinstabilidades que podem ser divididas em duascategorias gerais. Primeiro, há um perigo constantede violência relacionada a conflitos de identidadeherdados do colapso da União Soviética, incluindoo conflito Armênia-Azerbaijão sobre a regiãoNagorno-Karabakh, o conflito Geórgia-Ossetia e oconflito Geórgia-Abkhazia, com possíveis efeitos donorte do Cáucaso. Segundo, outros conflitos(geralmente menos violentos) podem surgir dodeclínio de padrões de vida e mudanças no cenáriopolítico, que ocorreram devido a choques entregrupos dominantes e elites rivais, ou entre os“ganhadores” e “perdedores” do desenvolvimentosocioeconômico pós-soviético.

Os países do sul do Cáucaso tambémenfrentam imensos problemas ambientais comolegado do período soviético. Alguns dos principais,pressionando as relações entre nações e a segurançahumana, incluem a falta de dados atualizadosprecisos; a qualidade da água e o tratamento deesgoto; a irrigação e a degradação de sistemas dedrenagem; o desmatamento; e a degradação daterra e do solo, incluindo deslizamentos edesertificação. A poluição do petróleo, osterremotos, a condição do Mar Negro e do MarCáspio e a contaminação radiativa não afetam,igualmente, todos os três países, porém aindaconcorrem para o risco dos efeitos ambientaisnegativos transfronteiriços.

Em maio de 2004, uma avaliação da Iniciativade Meio Ambiente e Segurança foi realizada naArmênia, Azerbaijão e Geórgia, envolvendorepresentantes dos ministérios do meio ambiente,relações exteriores, agricultura, defesa e saúde,como também da sociedade civil e comunidadecientífica. Uma questão central para a Iniciativa foicomo a cooperação ambiental pode ser incentivadaem áreas prioritárias transfronteiriças, onde

questões de segurança e ambientais ou pressõessobre recursos naturais coincidem.

Foram identificados três conjuntos de ligaçõesmeio-ambiente/segurança. Degradação ambientalem zonas de conflito e falta de informação sobre oestado do meio ambiente são pontos de discórdiaem relação a Nagorno-Karabakh e Abkhazia. Alémdisso, a crescente produtividade econômica podeaumentar as tensões sobre o acesso a recursosnaturais, como água limpa, solo e espaço parahabitação, podendo agravar a poluição. Finalmente,o fracasso de um governo no manejo apropriadodos recursos naturais e condições do meioambiente, poderá aumentar a frustração pública elevar governos a perderem legitimidade durante estefrágil período pós-soviético.

Apesar dos interesses conflitantes, os governosdo sul do Cáucaso reconhecem que alguns desafiosambientais exigem ação conjunta, comodemonstram um número de projetos de gestão dabacia do Rio Kura-Araks. Mesmo enquanto gravesdisputas entre as partes continuam a prejudicar osesforços de cooperação, diferentes gruposdeclararam claramente durante a avaliação quedesejavam cooperar com órgãos internacionais paraaumentar o volume de informações e dadosambientais sobre poluição, a fim de tratar dasquestões comuns e reduzir as tensões sobre osrecursos naturais.

A fim de lidar com as prioridades ambientais ede segurança, a ENVSEC compilou um ProgramaPreliminar de Trabalho das atividades que asorganizações parceiras sugerem que sejamimplementadas dentro do contexto da iniciativa. Asatividades serão desenvolvidas em estreitacolaboração com os interessados nas regiões e serãoparte de uma abordagem “tríplice”: avaliaçãoprofunda de vulnerabilidade, alerta prévio emonitoramento de áreas “de risco”;desenvolvimento e implementação de políticas;desenvolvimento institucional, capacitação eproteção.

- Gianluca Rampolla, Organização para Segurança eCooperação na Europa, e Moira Feil, Adelphi Research

fonte: Vide nota final 27.

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ALCA, estão estabelecendo novas relações desegurança no rastro de um períodoparticularmente turbulento de mudançasinternacionais. Em cada região, astransformações da última década criaramespaço político entre nações e sociedades parabuscar um futuro mais pacífico e cooperativo,mesmo quando emergem novos eintimidantes desafios para paz e segurança.

Outra dificuldade nova é a globalização.Seus efeitos são complexos e de formaalguma inteiramente saudáveis para asustentabilidade ecológica. Porém, a capa-

cidade de a globalização colocar a dinâmicapolítica fora de um quadro entre naçõesestreito e dentro de um contexto mais amplode sociedade para sociedade é um sinalimportante e seguro. Este novo espaço socialcontém muito do potencial de paz atravésdo meio ambiente. Valerá bem a penadescobrir se essas mudanças criarãooportunidades para consolidar a paz, aliviarãoa insegurança ambiental e quebrarão a lógicade soma zero que tanto aflige as relaçõesinternacionais.28

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L I G A Ç Ã O D E S E G U R A N Ç A

Impactos Ambientaisdas Guerras

Conflitos militares sempre causamsofrimento humano. Trazem tambémameaças de mais longo prazo à segurança,como degradação ambiental e novos riscosà saúde humana. Já há sete anos o Programadas Nações Unidas para o Meio Ambiente(PNUMA) vem trabalhando em áreas domundo onde o meio ambiente natural ehumano foi comprometido, comoconseqüência de conflitos. Em 1999,enquanto as instalações industriais alvejadasde Kosovo, Sérvia e Montenegro aindaardiam, as equipes do PNUMA realizaram aprimeira “avaliação ambiental pós-conflito”.1

O trabalho nos Bálcãs concluiu que haviavários hotspots ambientais onde uma açãoimediata de limpeza se fazia necessária, paraevitar ameaças adicionais à saúde humana,tais como as refinarias de petróleo emPancevo e Novi Sad atingidas, e asinstalações industriais em Kragujevac e Bor.O rio Danúbio estava ameaçado, devido aovazamento de Pancebo de mais de 60produtos químicos diferentes, incluindomercúrio. Estas descobertas levaram, pelaprimeira vez, a comunidade internacional aincluir a limpeza do meio ambiente na suaajuda humanitária pós-conflito. 2

Depois dos Bálcãs, este novo instrumentoambiental foi usado na Libéria, emterritórios palestinos ocupados, noAfeganistão e mais recente no Iraque. Cada

situação é única, devido à natureza particulardo conflito, a sociedade e a ecologia.

No Afeganistão, duas décadas de conflitoarmado degradaram o meio ambiente a talponto que isso agora representa umabarreira aos esforços de reconstrução dopaís. A guerra paralisou a gestão ambiental eas estratégias de conservação anteriores,causou um colapso da governabilidade locale nacional, destruiu infra-estruturas,prejudicou a atividade agrícola e levou aspessoas para as cidades já carentes das maisbásicas amenidades públicas. 3

Mais de 80% dos afegãos vivem em áreasrurais, onde viram muito de seus recursosbásicos – água para irrigação, árvores paraalimento e energia – desaparecerem emapenas uma geração. Nas áreas urbanas, aágua potável – a maior das necessidadesbásicas para o bem-estar humano – podeestar disponível para apenas 12% dapopulação. Lixões mal-administradoscontaminaram a água subterrânea edisseminaram a poluição aérea, e a atividademadeireira ilegal causou perda generalizadada cobertura florestal.4

No Iraque, um quadro similar pode serdesenhado. Lá, a avaliação do PNUMAconcluiu que o conflito de 2003 e apilhagem pós-guerra concorreram para oestresse ambiental crônico, já presente desdea guerra Irã-Iraque, de 1980, a guerra doGolfo, em 1991, a má administração

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ambiental do regimeiraquiano anterior e osefeitos involuntáriosdas sanções. 5

A maior ameaçapara o povo do Iraqueé o acúmulo dadestruição física dainfra-estruturaambiental do país.Particularmente, adestruição e a falta deinvestimento dossistemas hídricos e sanitários aumentaram osníveis de risco de poluição e da saúde.Quando os cortes de energia pararam asusinas geradoras, tanto o suprimento deágua potável quanto o tratamento de águaservida foram ameaçados. 6

A destruição da infra-estrutura militar eindustrial, durante os vários conflitos noIraque, liberou metais pesados e outrassubstâncias perigosas no ar, solo e água. Afumaça dos incêndios dos poços depetróleo, a queima das valas de petróleodurante a guerra, a pilhagem e a sabotagemcausaram poluição e contaminação do ar esolo locais. A falta de investimento naindústria de petróleo reduziu a manutenção,aumentando o risco de vazamentos. 7

Um dos principais projetos do regime deSaddam Hussein – drenagem dos Pântanosda Mesopotâmia e a construção de canaisartificiais – arruinaram algumas das maisricas áreas de biodiversidade do Iraque. Apoluição hídrica está afetando não somente

os rios Eufrates e Tigre,mas também a região doGolfo Pérsico no todo. 8

No Iraque, como emmuitas situações pós-conflito, as questõesambientais estãointimamente ligadas àsnecessidades humanitáriase de reconstrução. Asprioridades incluem arecuperação dofornecimento de água e

sistemas sanitários, limpeza de hotspotspoluídos e limpeza de lixões, para reduzir orisco de doenças causadas pelo lixomunicipal e hospitalar. Durante a Guerra doGolfo, em 1991, e a Guerra do Iraque, em2003, armas de urânio enfraquecido foramutilizadas em vários locais do Iraque. Paraproteção da população local, os locais comestes resíduos de guerra precisam seravaliados e limpos. 9

Em todas as áreas de conflito existemproblemas ambientais de longo prazo eproblemas diretamente relacionados com aação militar. Além disso, as avaliaçõesambientais pós-conflito do PNUMAdemonstram claramente que as crisesmilitares são quase sempre acompanhadaspor crise ambiental.

Conseqüentemente, uma lição-chave é anecessidade de minimizar os riscos para asaúde humana ambiental durante o conflito,através de prontidão e proteção civil.Imediatamente após o fim do conflito, deve

Artefatos não explodidos, Bósnia

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acontecer uma avaliação e uma limpezaadequadas. Apoio e fortalecimento dacapacidade administrativa ambientalexistente ou recém-estabelecida é crucialpara a sustentabilidade de longo prazo. Naanálise de como restaurar o meio ambiente,após o silenciar dos canhões, toda a históriaambiental da região deve ser levada emconsideração.

Mais ainda, após o término do conflito,esforços devem ser feitos para reengajar opaís na cooperação ambientação regional einternacional – especialmente quando estãoem pauta recursos compartilhados, como aágua. Na primavera de 2004, pela primeiravez em 29 anos, autoridades ambientais ehídricas discutiram conjuntamente ocompartilhamento dos pântanos daMesopotâmia. Velhos inimigos negociandomais uma vez assuntos ambientais.Juntamente com a melhoria do estadodestes recursos, a gestão de recursospartilhados pode servir como uma maneira

válida de desenvolver confiança entre paísesanteriormente hostis. 10

Um modo importante de se minimizaros riscos ao meio ambiente e à saúde éatravés de regulamentos de guerra quelimitem alvos possíveis e armas. Um bomexemplo dos instrumentos legais quepodem ser usados é a convenção ENMOD[Técnicas de Modificação Ambiental], queevita o uso de mudanças artificiais no meioambiente – como enchentes causadas pelohomem – como uma arma de guerra. Umavez que os impactos negativos dosdiferentes tipos de armas são conhecidos, edesde que exista bastante evidência dosriscos para a população, uma nova legislaçãose faz necessária. 11

O adicionamento dos custos ambientais àlonga lista de conseqüências negativas doconflito – perda humana, refugiados, perdaseconômicas – deve fazer as soluções não-violentas ainda mais atraentes.

- Pekka Haavisto,UNEP Post-Conflict Asssessment Unit

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Estabelecendo os Fundamentospara a Paz - Metas do Milênio

C A P Í T U L O 9

Hilary French, Gary Gardner e Erik Assadourian

Enquanto as pessoas observavam horrorizadasas torres gêmeas do World Trade Center sedesintegrando, em 11 de setembro de 2001,o que dominava suas mentes era a perdaimediata de vidas. Contudo, logo ficou claroque os eventos daquele dia tinham umsignificado maior, inaugurando uma nova erana história mundial. Da mesma forma que oataque japonês a Pearl Harbor, em 7 dedezembro de 1941, levou os Estados Unidosa declararem guerra ao Japão no dia seguinte,os eventos de 11 de setembro levaram oPresidente George W. Bush a declarar guerraao terrorismo, antes de aquele dia terminar.E, da mesma forma que o período pós-guerraveio a definir uma época histórica, os anospós-11/9 serão, por muito tempo,considerados como fundamentalmentediferentes dos anteriores.1

Todavia, os problemas de segurança globaldiferem significativamente daqueles da era daII Guerra Mundial. Contrariamente aoexpansionismo territorial daquela época, ospontos de ignição contemporâneos envolvem

outros tipos de desafios, como conflitos civisinternos e terrorismo internacional. Estesproblemas estão enraizados em instabilidadessociais, paralelamente a uma gama complexade fenômenos – da pobreza e doença,passando pelo crescimento populacional edegradação ambiental, até o fundamentalismoreligioso e o ódio étnico (ver Capítulo 1). Astécnicas militares tradicionais são de usolimitado na resposta a essas forças subjacentes.2

A postura adotada pelos Estados Unidosperante a comunidade global também foisignificativamente diferente, após 11 desetembro, do que havia sido durante a IIGuerra Mundial. O Presidente Bush falouinicialmente da importância da cooperaçãointernacional no combate ao terrorismo global.Porém, sua decisão subseqüente de invadir oIraque, no início de 2003, sem obter o apoiodo Conselho de Segurança da ONU, destruiuas esperanças iniciais de que a luta contra oterrorismo seria um esforço unificador e nãodivisório. Durante a II Guerra Mundial, poroutro lado, os Estados Unidos trabalharam

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com os aliados, antes mesmo de entrarem naguerra, começando a estabelecer osfundamentos para uma paz pós-guerraduradoura, através de um projeto para acriação das Nações Unidas. Isto culminou naassinatura da Carta das Nações Unidas, emSão Francisco, em junho de 1945, nos últimosmeses da guerra.3

Uma outra forma pela qual o ambienteatual de segurança difere daquele após a IIGuerra Mundial é a influência crescente dasociedade civil global. Organizações civis hámuito vinham advogando um mundo maispacífico, inclusive pressionando para a criaçãodas Nações Unidas. E as últimas décadastestemunharam um ímpeto significativo nodesempenho, força e alcance global dasociedade civil.4

Apesar das muitas diferenças entre 1945 ehoje, uma percepção fundamental daquelaépoca ainda se mantém: o estabelecimento dasbases para uma paz duradoura exigirácooperação internacional, numa amplavariedade de frentes - da resistência à agressãoao combate ao terrorismo, mediando acordosde paz e enfocando as causas subjacentes deconflitos e instabilidade. Ao mesmo tempo, aexperiência das últimas décadas tornou claroque a construção de um mundo seguro exigiráinterações extensas entre uma vasta gama deatores, incluindo autoridades governamentaise políticos idealistas e engajados, tantoregionais quanto nacionais, e cidadãosdedicados de visão global.

Reinventando a GovernançaGlobal

A divisão de opinião internacional quantoà decisão da guerra ao Iraque causou uma crisede identidade nas Nações Unidas. Como

declarou o Secretário-geral Kofi Annan, nooutono de 2003, quando falou aos líderesmundiais na Assembléia Geral: “Três anosatrás, quando estivemos aqui na Cúpula doMilênio, compartilhávamos de uma visão desolidariedade global e segurança coletiva... Oseventos recentes põem aquele consenso emdúvida... Chegamos a uma encruzilhada. Estepode ser um momento tão decisivo quanto1945, quando a ONU foi fundada... Hoje,precisamos decidir se é possível continuar nasbases acordadas então, ou se são necessáriasmudanças radicais.” A crise provocada pelapolêmica sobre a guerra do Iraque teve olenitivo de criar um momento deoportunidade para estabelecer as bases para apaz, através da reformulação das NaçõesUnidas para os desafios de segurança de hojee do futuro.5

Enquanto o mundo se prepara para estatarefa, é importante considerar quão bem asestruturas de 1945 suportaram o teste dotempo. O primeiro propósito das NaçõesUnidas, conforme definido em sua carta, é“manter a paz e a segurança internacional.”Para tal, a Carta das Nações Unidas estipulaum conjunto de mecanismos para o Conselhode Segurança destinado a galvanizar umaresposta coletiva dos membros, quandoconfrontados com uma ameaça crucial à paze à estabilidade globais.6

Contrariamente às expectativas, incursõesmilitares transfronteiriças têm sidorelativamente raras desde que a ONU foicriada. Porém, não têm faltado distúrbios civise a organização freqüentemente desempenhouum papel importante nas negociações emanutenção da paz. A ONU ajudou a efetivarmais de 170 acordos de paz, inclusive aquelesque levaram ao término da guerra Irã-Iraque,em 1988, à retirada das tropas soviéticas do

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Afeganistão, em 1988, e ao fim da guerra civilem El Salvador, em 1992. As 59 missões depaz da ONU, desde 1948, ajudaram países amanter cessar-fogos, realizar eleições livres ejustas, e monitorar retirada de tropas em paísestão diversificados quanto Camboja, Chipre eTimor Leste.7

Mas, desde seu início, a Organização dasNações Unidas era para ter um envolvimentomuito mais abrangente do que lidar unicamentecom questões militares. A Carta das NaçõesUnidas declara que um dos objetivos centraisda organização é “obter cooperação inter-nacional na resolução de problemasinternacionais de natureza econômica, social,cultural ou humanitária.” Estas disposiçõesforam estabelecidas em resposta a uma crençageneralizada de que as desastrosas condiçõeseconômicas mundiais dos anos 30 haviam,indiretamente, ajudado a precipitar a II GuerraMundial, ao criar um clima propício para osurgimento do Nazismo.8

Esta mesma convicção fundamentou umaimportante conferência internacional realizadaem Bretton Woods, New Hampshire, em1944, que levou à criação do Banco Mundial,Fundo Monetário Internacional (FMI) e doAcordo Geral de Tarifas e Comércio(posteriormente transformado na OMC –Organização Mundial do Comércio).Tecnicamente, o Banco Mundial e o FMI sãoagências especializadas das Nações Unidas,mas desde o começo mostraram poucainclinação a se associarem intimamente como resto da organização. Na realidade, umacordo de 1947, entre o Banco Mundial e asNações Unidas foi descrito como sendo “maisuma declaração de independência da ONUdo que um acordo de ação conjunta.”Problemas semelhantes afetaram as relaçõescom a OMC, com agências da ONU como a

Organização Internacional do Trabalho e oPrograma das Nações Unidas para o MeioAmbiente (PNUMA) sendo forçadas a lutarpelo direito de, até mesmo, cumprir asdeliberações da OMC.9

No meio-século, desde a criação dasNações Unidas e de instituições de BrettonWoods, a miséria e a pobreza em todo o mun-do têm se revelado adversários gigantescos.Não obstante, o sistema das Nações Unidastem obtido alguns sucessos numa variedadede questões sociais. No campo da saúdeglobal, por exemplo, a Organização Mundialde Saúde (OMS), uma agência especializadada ONU, iniciou uma campanha global deerradicação da varíola, em 1967. Naquelaocasião, a doença afligia cerca de 15 milhõesde pessoas, anualmente, causandoaproximadamente 2 milhões de mortes. Em1980, a OMS declarou que a doença haviasido erradicada globalmente (ver Capítulo 3).Hoje está chegando perto a sucessos seme-lhantes com a Hanseníase, verme da Guiné,pólio e doença de Chagas. A erradicação,infelizmente, está longe se ser alcançada parauma variedade de outras doenças mortais,inclusive o HIV/AIDS, tuberculose e malária,porém a OMS está agindo junto a outrasinstituições e parceiros internacionais parareduzir o número de pessoas atacadas poressas doenças e ampliar o acesso ao tratamentopara os que precisam.10

A ONU também se mostrou flexível, frentea novos problemas e desafios. Nem ocrescimento populacional acelerado ou adegradação ambiental, por exemplo, foramreconhecidos como problema globalsignificativo em 1945. Conseqüentemente,nenhum deles é ao menos mencionado naCarta da ONU. Mas, à medida que a gravidadede ambos se tornou aparente, novas instituições

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foram implantadas para lidar com eles: oFundo das Nações Unidas para Populações,em 1962; o PNUMA, em 1972; e, no iníciodos anos 90, a Global Environment Facility (FundoGlobal para o Meio Ambiente), um empre-endimento conjunto do Banco Mundial,Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento e o PNUMA, que financiaprojetos nos países em desenvolvimento queenfocam ameaças ambientais globais comomudança climática e perda de diversidadebiológica.11

Igualmente, a disseminação do terrorismoe armas de destruição em massa sãopreocupações relativamente novas para acomunidade mundial, e a ONU está sendoconvocada para desempenhar um papel cadavez mais destacado no seu combate. Como oSecretário-geral Kofi Annan argumentouperante a Assembléia Geral, semanas após osataques de 11 de setembro: “A legitimidadeque as Nações Unidas transmitem assegura queum maior número de nações sejam capazes eestejam determinadas a adotar as medidasnecessárias e difíceis – diplomáticas, legais epolíticas – que são exigidas para derrotar oterrorismo.” Ele seguiu analisando aimportância de os governos avançarem naadoção e ratificação das 12 convenções eprotocolos internacionais já existentes sobreterrorismo internacional, e implementaremimportantes tratados internacionais que visamminimizar a disseminação de armas dedestruição em massa, como aqueles queproíbem armas químicas e biológicas e aproliferação nuclear.12

Através de uma série de conferênciasinternacionais de alto nível nas últimas décadas,as Nações Unidas têm focado questõesemergentes globais e ajudado a induzir açõespara resolvê-las global e nacionalmente. A

Conferência das Nações Unidas sobrePopulação e Desenvolvimento, realizada em1994 no Cairo, por exemplo, forjou um novoconsenso global sobre a relação entreestabilização populacional, tratamento desaúde reprodutiva e do crescimento do poderdas mulheres, incluindo acordo numa série demetas sobre acesso à educação universal eserviços de saúde reprodutiva.13

A nova compreensão sobre a variedade dequestões tratadas pelas conferências globais dosanos 90, finalmente, encontrou expressão nosObjetivos de Desenvolvimento do Milênio(ODM), aprovados por unanimidadepreliminarmente na Assembléia do Milênio,em 2000 (ver Quadro 9-1). E a CúpulaMundial sobre Desenvolvimento Sustentável,realizada em 2002 em Joanesburgo, África doSul, chamou uma nova atenção política paraos desafios do desenvolvimento sustentável,inclusive a adoção ou reafirmação pelosgovernos de uma vasta gama de metas paraágua, energia, saúde, agricultura e diversidadebiológica (ver Quadro 9-2). A ONU estáatualmente encontrando um novo papel parasi mesma, encorajando governos aimplementarem as reformas políticasnecessárias para atingir esses objetivos e metas,monitorando seu progresso ao longo docaminho.14

Apesar de todas as conquistas até hoje, nãohá dúvida de que serão necessárias reformasousadas para estabelecer os fundamentos paraa paz, equipando melhor as Nações Unidaspara os desafios à segurança atuais e futuros.A necessidade de renovações periódicas àsestruturas da ONU foi, na realidade, previstadesde o começo, quando o Presidente dosEstados Unidos Harry Truman observou emseu discurso à conferência de São Francisco,em 1945, que “esta carta, como nossa própria

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Constituição, será ampliada e melhorada aolongo do tempo. Ninguém pode achar queela hoje seja um instrumento final ou perfeito...As mudanças das condições mundiais exigirãoestes reajustes.” Para este fim, em setembrode 2003, o Secretário-geral Annan anunciou anomeação de um painel de eminentes líderesmundiais, encarregado de analisar as atuaisameaças e desafios à paz e segurança globaise considerar as amplas mudanças necessáriaspara enfrentá-los. O relatório do painelembasará as recomendações de Annan àAssembléia Geral da ONU, no outono de2005.15

Uma das altas prioridades na preparaçãodas Nações Unidas para o futuro é repensar acomposição do Conselho de Segurança. Em1945, China, França, União Soviética, EstadosUnidos e Reino Unido receberam um statusespecial como membros permanentes, comdireito a vetar resoluções. Sem estas dispo-sições, seria improvável que os Estados Unidosou a União Soviética fossem membros danova organização. Porém estas condiçõestiveram um preço: recursos constantes ao vetotêm prejudicado a eficácia do Conselho deSegurança, particularmente durante a guerrafria, e a participação limitada de membrospermanentes é hoje largamente consideradacomo anacrônica e não-democrática.16

Embora as propostas para alteração dostatus quo sempre encontrem forte oposição,já existe, todavia, um consenso de quemudanças são necessárias para tornar o

Conselho de Segurança mais representativo domundo moderno. Em setembro de 2004, osgovernos do Brasil, Alemanha, Japão e Índiadivulgaram uma declaração conjunta,observando que “o Conselho de Segurançadeve refletir a realidade da comunidadeinternacional do século XXI.” Além dereivindicar suas próprias causas como fortescandidatos para membros permanentes, osquatro países acentuaram que status semelhantetambém deve ser concedido a uma naçãoafricana.17

Também é importante incrementar acapacidade das Nações Unidas de lidar comas ameaças subjacentes à paz e à segurançainternacional, incluindo pobreza, doenças,declínio ambiental e crescimento populacionalacelerado. O Conselho de Segurança poderiareceber um mandato mais amplo para tratardas questões não-tradicionais de segurança,como ocorreu em 2000 com o HIV/AIDS.Contrariamente a outros órgãos da ONU, oConselho de Segurança possui capacidadesexecutivas significativas e, assim, lidar com asnovas ameaças à segurança proporcionabenefícios importantes tanto práticos quantosimbólicos. Outras abordagens possíveisincluem o fortalecimento e a modernizaçãodos atuais órgãos econômicos e sociais, comoo Conselho Econômico e Social, ou a criaçãode um novo Conselho de SegurançaEconômica ou entidade semelhante de altonível, dedicada à prevenção de conflitosatravés da redução da pobreza eenfrentamento de outras causas subjacentes deinsegurança.18

Ao longo dos anos, também temhavido apelos para que seja dada mais atençãoàs questões ambientais dentro do sistema daONU. Entre as idéias apresentadas, existempropostas para criação de um Conselho de

Apesar das conquistas até hoje, serão

necessárias reformas ousadas para

estabelecer os fundamentos para a paz,

equipando melhor as Nações Unidas para

os desafios à segurança atuais e futuros.

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QUADRO 9-1. OBJETIVOS E METAS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO

Erradicar a pobreza extrema e a fomeAté 2015, reduzir pela metade tanto a proporção de pessoas vivendo com menos de US$ 1 ao dia, quanto

a parcela que passa fome.

Conquistar educação fundamental universalAssegurar que, até 2015, todos os meninos e meninas tenham concluído todo o ensino fundamental.

Promover igualdade de gênero e dar poder as mulheresEliminar disparidade de gênero no ensino fundamental e secundário, preferivelmente até 2005, e em todos

os níveis até 2015.

Reduzir a mortalidade infantilAté 2015, reduzir em dois terços a taxa de mortalidade de crianças abaixo de 5 anos.

Melhorar a saúde maternaAté 2015, reduzir em três quartos a taxa de mortalidade materna.

Combater HIV/AIDS, malária e outras doençasParar e começar a reverter a disseminação do HIV/AIDS, malária e outras doenças graves, até 2015.

Assegurar sustentabilidade ambientalIncorporar os princípios de desenvolvimento sustentável nas políticas e programas nacionais e reverter a

perda de recursos ambientais. Até 2015, reduzir pela metade a proporção de pessoas sem acesso sustentável àágua potável e saneamento. Até 2020, melhorar significativamente as vidas de 100 milhões de favelados.

Desenvolver uma parceria global para o desenvolvimentoDesenvolver um sistema comercial e financeiro aberto que seja regulamentado, não-discriminatório, e inclua

um compromisso à boa governança, desenvolvimento e redução da pobreza. Tratar das necessidades especiaisdos países menos desenvolvidos, pequenas ilhas-nações em desenvolvimento e países interioranos. Tornar asdívidas sustentáveis, aumentar a oferta de emprego para a juventude e proporcionar acesso a medicamentosessenciais e novas tecnologias.

___________________________________________________________________________________________fonte: Vide nota final 14.

Segurança Ambiental, utilização do extintoConselho de Tutela para este fim, criação deum Alto Comissariado para o Meio Ambienteou Desenvolvimento Sustentável ou a criaçãode uma nova Organização Ambiental Global.A proposta de maior destaque político é umavariação da última idéia: sob a liderança doPresidente Jacques Chirac, o Governo daFrança está promovendo a transformação doPNUMA, sediada em Nairobi, numa agênciaindependente e especializada da ONU, comoa OMS e a UNESCO. Esta proposta estásendo hoje alvo de uma análise séria em váriasreuniões internacionais, embora ainda não estejaclaro se obterá apoio suficiente para serviabilizada no curto prazo.19

Além de melhorar a máquina socialeconômica e ambiental das Nações Unidas,

também será importante reformar o BancoMundial, o FMI e a OMC, cada um dos quaisse tornou cada vez mais poderoso e cada vezmais polêmico ao longo dos anos. Estasinstituições são comumente consideradasrepresentantes dos interesses dos principaispaíses industrializados, seja como resultado dosseus procedimentos formais de votação ouatravés de meios menos formais mas nãomenos irredutíveis de fazer negócio. Cadaorganização tem sido também criticada nosúltimos anos por promover estratégiasortodoxas de globalização econômica que, emalguns casos, mais prejudicam do quebeneficiam os pobres ou o meio ambiente.20

Uma forma de lidar com essas deficiênciasseria as instituições econômicas globaistrabalharem mais intimamente com as Nações

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ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZEstado do Mundo 2005

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QUADRO 9-2. METAS SELECIONADASADOTADAS NA CÚPULA MUNDIAL SOBREDESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Reduzir à metade a proporção de pessoas semacesso a saneamento básico, até 2015. Recuperar pesqueiros para sua produção

máxima sustentável até 2015 e evitar, obstar eeliminar pesca ilegal, não divulgada e não regulada,até 2004. Reduzir significativamente a taxa de perda de

biodiversidade, até 2010. Reverter a tendência atual de degradação de

recursos naturais. Acabar com a extração ilegal de madeira, que

contribui para o desmatamento. Assegurar que, até 2020, não sejam

produzidos ou utilizados produtos químicos deforma que prejudiquem a saúde humana e o meioambiente. Assegurar acesso à energia para pelo menos

35% dos africanos, dentro de 20 anos. Utilizar energia renovável para atender a 10%

das necessidades energéticas da América Latina eCaribe, até 2010, reafirmando um compromissodestes países._____________________________________________________fonte: Vide nota final 14.

inclusive organizações da sociedade civil e setorprivado. Instadas em parte por pressões domovimento de protesto à globalização, tantoas Nações Unidas quanto as instituiçõeseconômicas internacionais adotaram,recentemente, medidas para tornar suasoperações mais transparentes para a sociedadecivil. Porém, há ainda muitos obstáculos paraconquistar uma participação pública maiscompleta e significativa.22

Mudando as PrioridadesGovernamentais

A reformulação das instituições inter-nacionais é apenas o primeiro passo. AsNações Unidas e organizações afiliadas, agindoatravés de seus países-membros, estabelecemvisões, enumeram metas para a comunidadeglobal e ajudam a orientar os esforços deimplementação. Porém, os governos nacionaistêm as tarefas duras de reunir a vontade políticadoméstica e os recursos necessários para tornaraquela visão uma realidade e assegurar que suasprioridades estejam em linha com as novas eemergentes ameaças globais à segurança.

Uma das primeiras coisas que os governospodem fazer é reconhecer como os gastosem segurança hoje são mal dirigidos. QuaseUS$ 1 trilhão é gasto anualmente com as forçasarmadas mundiais, a maioria destinada àsameaças tradicionais à segurança. Como oslíderes políticos reconhecem que a pobreza,populações em crescimento acelerado, doençase degradação do meio ambiente são questõeslegítimas de segurança, estas questõespoderiam adquirir maior importância nosorçamentos governamentais. Ao mesmotempo, uma tabulação de programas militaresultrapassados, ineficientes ou esbanjadores irá,

Unidas. Esta colaboração ajudaria a assegurarque o novo consenso desenvolvimentistaexpresso nos Objetivos de Desenvolvimentodo Milênio (ODM) e na ampla variedade deacordos ambientais, sociais e de direitoshumanos da ONU, esteja mais claramenterefletido in loco, inclusive nas situações pós-conflito. A criação de um novo conselhosuper visor de alto nível, com algumaautoridade tanto sobre as Nações Unidasquanto sobre as instituições econômicasglobais, seria uma estratégia para a promoçãoda colaboração necessária.21

Uma outra alta prioridade para um futuropacífico e seguro é a reformulação dasestruturas de governança global, para que seesforcem mais em dominar a eficácia econhecimento de uma vasta gama de atores,

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Estado do Mundo 2005ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

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provavelmente, acentuar ricas fontes derecursos que poderiam ser redirecionados parao enfrentamento das ameaças sociais eambientais. Neste novo arcabouço, programassociais e ambientais anteriormente consi-derados dispendiosos poderiam, subitamente,ser vistos como realizáveis – ou mesmoindispensáveis.23

Felizmente, a estrutura internacional paralidar com esta variedade complexa de ameaçasjá existe – as metas dos Objetivos deDesenvolvimento do Milênio e da CúpulaMundial sobre Desenvolvimento Sustentável.Na Assembléia do Milênio, em 2000, osmembros das Nações Unidas concordaramem reduzir a pobreza, doenças e desigualdadessociais globais de forma significativa, até 2015.As metas da Cúpula Mundial, adotadas doisanos antes, completaram o quadro, aoestabelecer como os países poderão melhoraras condições sociais com a proteção desistemas naturais vitais. Estes objetivos foramadotados primeiramente a fim de lidar com

as desigualdades globais crescentes de formasustentável. No mundo após 11/9, todavia,onde ameaças à segurança se tornaram apreocupação dominante, os ODMs poderãoigualmente ser vistos como meios defortalecimento da segurança nacional eglobal.24

Embora, no papel, o compromisso deatingir estes objetivos seja firme, seu avançotem sido, em grande parte, dolorosamentelento. Em 2004, o Fórum Econômico Mundialsolicitou a alguns dos principais especialistasem desenvolvimento do mundo queanalisassem o avanço obtido durante os trêsprimeiros anos. Os resultados foramdesencorajadores: o mundo havia dedicadoapenas um terço dos esforços necessários paraatingir aqueles objetivos.25

Embora alguns países tenham realizadonotáveis progressos em alcançar um númerode metas (ver Tabela 9-1), poucas nações estãoem condições de atingir a maioria dosobjetivos (ver Tabela 9-2). De acordo com o

Tabela 9-1. Avanço na Ampliação do Acesso à Água e Alimentação em PaísesSelecionados

Meta ODM: Reduzir a Fome pela Metade

País

BangladeshBrasilChinaEgitoÍndiaMéxicoPeruQuêniaTailândiaUganda

1990a 92

3512175

255

40442823

(percentual da população subnutrida)

1999A 2001

329

113

215

11371919

Objetivo2015

18693

133

20221412

EmCondições?

SimSimSim

SimSimSim

Meta ODM: Reduzir pela Metade Aqueles semAcesso à Água

1990

617296

322026552055

(percentual da população sem acesso à fonte deágua tratada)

2000

313253

161220431648

Objetivo2015

38

143

161013271027

EmCondições?

SimSim

SimSimSimSimSimSim

FONTE: Vide nota final 26.

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ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZEstado do Mundo 2005

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Banco Mundial, menos de um quinto de todosos países estão atualmente em condições dereduzir a mortalidade infantil e materna eoferecer acesso à água e saneamento, porexemplo, enquanto uma parcela menor aindatem condição de conter HIV, malária e outrasdoenças graves. A análise do FórumEconômico Mundial torna claro que a razãoprincipal do fracasso é a ausência de focosobre as prioridades básicas de desen-volvimento.26

Todavia, quando governos efetivamenteestabelecem a conquista de certos objetivoscomo prioridade, podem rapidamente obtergrande sucesso – um sucesso que éfreqüentemente multiplicado em função daforte ligação entre diferences problemas sociais.Ao investirem na prevenção da AIDS, porexemplo, os governos não só contêm adisseminação da doença, mas tambémreduzem custos de saúde, número de criançasórfãs, perda de produtividade econômica ede muitos profissionais necessários comoprofessores e médicos.

A Tailândia logo cedo percebeu a sabedoriade investimentos preventivos. Em 1990, apósreceber um estudo declarando que, se o HIVpermanecesse descontrolado, contaminaria 4milhões de tailandeses até 2000 e custaria 20%do PIB, anualmente, o Ministro do Gabinetedo Primeiro-ministro, Mechai Viravaidya,reconheceu que a AIDS não era apenas umaquestão médica, mas sim “uma grave ameaçaà segurança nacional”. Após o encorajamentode Mechai, como ele é conhecido em todo opaís, o Primeiro-ministro Anand Panyarachunliderou pessoalmente uma campanha deprevenção à AIDS. Com este grau decompromisso, todos os ministérios dogoverno foram autorizados a combater aAIDS. Os recursos dispararam, de US$

684.000, em 1988, para US$ 82 milhões, em1997, e a Tailândia foi capaz de reduzir novasinfecções de um pico de 143.000, em 1991,para 19.000, em 2003.27

Outros países desenvolveram formascriativas de lidar com muitos objetivossimultaneamente. No México, por exemplo,quase 20 milhões de pessoas, em 1995, nãotinham condições de adquirir alimentossuficientes para atender a suas necessidadesnutricionais diárias, 10 milhlões não tinhamacesso a tratamento de saúde e pelo menos1,5 milhão de crianças estava fora da escola.O governo criou um programa assistencial de“transferência condicional de fundos” querealizava pagamentos com base numcompromisso familiar quanto às necessidadesespecíficas de saúde e educação. Os recipientesprecisavam provar que seus filhos estavammatriculados, que as mães recebiam liçõesmensais de nutrição e higiene e que as famíliasrealizavam exames rotineiros de saúde. Osresultados foram extraordinários. Doençasentre bebês caíram 25%, e 20% entre criançascom menos de 5 anos. A altura e peso dascrianças aumentaram significativamente,enquanto as taxas de anemia caíram 19%. Asmatrículas também aumentaram, uma vez queas famílias sofriam menos pressão financeirapara fazerem seus filhos trabalhar. Em 2004,o programa estava proporcionandobenefícios a mais de 25 milhões de pessoas, aum custo de apenas 0,3% do PIB mexicano.28

Embora governos nacionais sejam líderesnaturais para perseguir os ODMs, muito podeser feito também em nível regional e local,quando legisladores estão determinados aenfrentar problemas sociais. Um dos exemplosmais famosos é o estado de Kerala, na Índia.Comparadas com o resto do país, asestatísticas de desenvolvimento de Kerala são

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Estado do Mundo 2005ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

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Tabela 9-2. Avanço Regional para Alcançar Objetivos de Desenvolvimento doMilênio Selecionados

Região

Nações Árabes

Europa Central/ Leste e CEI

Leste da Ásia/ Pacífico

América Latina/ Caribe

Sul da Ásia

África subsaariana

MUNDO

Pobreza

alcançados

retrocesso

alcançados

Lento

em curso

retrocesso

em curso

Fome

retrocesso

n.d.

em curso

em curso

lento

retrocesso

lento

Ensino

Fundamental

em curso

alcançados

alcançados

alcançados

lento

lento

lento

Mortalidade

Infantil

lento

lento

lento

em curso

lento

lento

lento

Acesso à Água

n.d.

alcançados

lento

em curso

em curso

lento

em curso

Acesso àSaneamento

n.d.

n.d.

lento

lento

lento

retrocesso

lento

FONTE: Vide nota final 26

impressionantes: a mortalidade infantil é umquarto da taxa nacional, a vacinação, quase odobro e a taxa de fertilidade dois terços. (Narealidade, com 1,96 nascimento por mulher,Kerala possui taxa de fertilidade mais baixado que os Estados Unidos.) Juntamente comum forte engajamento cívico, uma grandemedida do sucesso de Kerala advém dadedicação das autoridades que priorizaram aprovisão de tratamento de saúde, educação eoutros serviços básicos.29

A cidade de Porto Alegre, no Brasil,também obteve ganhos expressivos namelhoria das condições de saúde e sociais. Emapenas uma década, a porcentagem dapopulação com acesso à água e saneamentosaltou de 75 para 98% e o número de escolasquadruplicou. Isto ocorreu, porque a prefeituradeu poderes à população para determinar asprioridades nas alocações das verbasmunicipais. As pessoas decidiram aplicarrecursos para garantir suas necessidadesbásicas, o que significou aumentar o orçamentode saúde e educação de 13%, em 1985, paraquase 40%, em 1996.30

Todavia, mesmo quando governos seempenham para alcançar os objetivos básicosde desenvolvimento, terão que persegui-los de

forma ecologicamente sustentável, para evitarganhos de curto prazo às custas do bem-estare segurança futuros. Um exemplo de comonão desenvolver isto é o caso da bacia doMar de Aral, na Ásia Central. Em 1960,planejadores do governo iniciaram umprograma de desenvolvimento econômicoagressivo para transformar uma região áridano cinturão de algodão da União Soviética.Por um tempo, foram bem sucedidos: terrasirrigadas aumentaram para 7 milhões dehectares (duas vezes a área irrigada daCalifórnia), agricultores constantementesuperaram suas cotas de produção, e a área setornou a principal fornecedora de algodão eprodutos agrícolas da União Soviética.Contudo, a água foi drenada muitorapidamente dos rios que alimentam o Marde Aral e eles começaram a secar.31

Hoje, o Mar de Aral tem metade da áreade outrora, com menos de um quinto dovolume de água. Os pesqueiros queanteriormente supriam 45.000 toneladas depeixes anualmente estão mortos. E o sal doleito seco, levado pelo vento por toda a região,hoje contamina a área e envenena as terrasagrícolas restantes. E o que é pior, sem o marpara regular o clima, a estação de cultivo

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encurtou e há menos chuvas, prejudicando aagricultura ainda mais. No todo, este desastreambiental afetou de 3,5 a 7 milhões depessoas.32

Embora nem sempre tão dramáticas,tragédias semelhantes devido a iniciativasinsustentáveis de desenvolvimento ocorremem todo o mundo. Os manguezais do sudesteda Ásia foram dizimados pelo cultivo docamarão que, por si só, tem vida produtivacurta; florestas tropicais têm sido desmatadasna Amazônia, eliminando estilos tradicionaisde vida e inúmeras espécies não descobertas;e 15.000 km2 do Golfo do México – umaárea quase do tamanho do Kuwait – estãohoje mortos, devido ao escoamento deresíduos agrícolas no Rio Mississipi.33

A sobrecarga de sistemas ecológicos dosquais as pessoas dependem está criando novasameaças graves. Algumas das estratégiasnecessárias para os ODMs naturalmenteajudarão a contê-las – por exemplo,proporcionar educação básica às mulherestende a reduzir as taxas de fertilidade e,subseqüentemente, pressões populacionais.Porém, podem também agravar as ameaças– a educação poderá fornecer os meios ouincentivos para adesão à classe consumistaglobal, o que aumentaria em muito o uso dosrecursos. A incorporação dos princípios desustentabilidade diretamente nas estratégias dedesenvolvimento ajudaria os governos a evitarmaiores estresses ecológicos.34

A China está se empenhando para,simultaneamente, reduzir a pobreza e aliviaros problemas ambientais, através de seuambicioso programa de eletrificação rural.Noventa por cento das pessoas mais pobresda China vivem em áreas rurais. O governoreconheceu que a eletricidade é um meio eficazde aliviar a pobreza, pois reduz a dependência

do combustível de biomassa (cuja queimafreqüentemente contribui para doençasrespiratórias), sobrando mais tempo paraeducação, ao reduzir as horas gastasrecolhendo água e combustível. A partir dofim de 2001 e ao longo de 20 meses, ogoverno instalou turbinas eólicas, sistemasfotovoltaicos solares e pequenos conjuntoshidrelétricos em mais de mil cidades,fornecendo eletricidade a quase um milhão depessoas. Ao utilizar recursos energéticosrenováveis, o governo não só ajudou a elevaros padrões de vida nas áreas rurais, mastambém reduziu problemas ambientais locaiscomo desmatamento e desertificação, dimi-nuindo a contribuição geral da China para amudança climática.35

Entretanto, tão importante como são osprojetos de desenvolvimento nacional e asmudanças de políticas, uma nova definição desucesso econômico também é necessária paraque as nações implantem suas economias embases sustentáveis. O entendimento atual desucesso, medido freqüentemente em termosde Produto Interno Bruto, enfocaprincipalmente o crescimento ou diminuiçãoda economia nacional. Todavia, o PIB escondeo fato de que certo tipo de crescimento édestrutivo; é necessário uma alternativa queforneça uma melhor medida de sucesso.

Embora muitas organizações não-governamentais (ONGs) tenham criadoalternativas ao longo das três últimas décadasque incorporavam custos ambientais e sociaisna medida do PIB, 2004 se tornar um divisorde águas nesta abordagem. A China anunciouque, dentro dos próximos três a cinco anos,adotará uma medida PIB Verde que subtrairiaa exaustão de recursos e custos de poluiçãodo PIB. Isto já está sendo testado na cidadede Chongqing e na província de Hainan. Os

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primeiros resultados indicam que ocrescimento médio do PIB chinês seria 1,2%menor, entre 1985 e 2000, caso os custosambientais houvessem sido subtraídos docálculo. Se for implementado, isto não sólevaria a China a seguir um caminho dedesenvolvimento mais sustentável, mastambém poderá incentivar outras grandeseconomias mundiais a seguirem o exemplo –o que daria início a uma poderosatransformação nos tipos de desenvolvimentoeconômico que o mundo valoriza.36

Alcançar os Objetivos de Desenvolvimentodo Milênio exigirá maior investimentos. Algunspaíses já reconhecem isto e estão agindo. Em2003, por exemplo, o Brasil postergou acompra de jatos de combate no valor de US$760 milhões e reduziu seu orçamento militarem 4%, a fim de financiar um ambiciosoprograma contra a fome. A Costa Rica, pornão possuir forças armadas por 50 anos, pôdededicar uma parcela bem maior de seuorçamento a gastos sociais – com resultadosimpressionantes. Com um PIB per capitasemelhante à América Latina como um todo,a Costa Rica tem a maior taxa de expectativade vida e um dos maiores níveis dealfabetização de toda a região. Mesmo que ospaíses em desenvolvimento redirecionemapenas uma pequena parcela de seus gastosmilitares, estimados em mais de US$ 220bilhões, para alcançar os ODMs, isto dispo-nibilizaria recursos adicionais significativos.37

Mas, a maioria desses países necessitará demais recursos do que pode suprir por si só.Realmente, para os países mais pobres serápraticamente impossível obter recursossuficientes dentro de seus orçamentos paraoferecer serviços básicos. A OMS calcula, porexemplo, que, para sustentar um sistema desaúde pública, é necessário um mínimo de

US$ 35 a US$ 40 por pessoa, anualmente. Paraos países mais pobres, onde o PIB per capitase situa em poucas centenas, isto será impossívelsem ajuda externa. Como o oitavo ODMtorna claro, será essencial um esforçoconcentrado dos países industrializados einstituições globais – tanto na oferta de ajudaadicional, quanto em iniciativas comoaumento do alívio da dívida externa ecomércio justo.38

Muito pouca ajuda está sendo atualmenteproporcionada para alcançar as ODMs. Em2003, países doadores ofereceram US$ 68bilhões em assistência oficial aodesenvolvimento (ODA na sigla em inglês),ou apenas 0,25% de suas Rendas InternasBrutas (RIB). Na cúpula de Joanesburgo, osgovernos reafirmaram a necessidade deprestar 0,7% da RIB em ajuda. Porém, apenascinco países o fizeram – Dinamarca,Luxemburgo, Holanda, Noruega e Suécia. Setodos os doadores efetivamente atendessema este objetivo plenamente alcançável, a ajudaanual ao desenvolvimento aumentaria em maisde US$ 110 bilhões – mais do dobro dosUS$ 50 bilhões estimados como necessáriosem termos de recursos adicionais paraalcançar os ODMs. Até agora, só Bélgica eIrlanda anunciaram planos para aumentar suaODA para 0,7%.39

Além disso, países doadores terão quemelhorar a destinação da ajuda que prestam.Em 2001, mais de um quinto da ajuda foicondicionada à compra de bens e serviços dopaís doador, enquanto menos de um terçodestinou-se a melhorias em saúde, saneamentoe serviços educacionais. A fim de encarar comsucesso as ameaças não-tradicionais àsegurança, maior ajuda terá que ser destinadadiretamente para atingir os ODMs.40

Países doadores também precisam fazer

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mais para reduzir os ônus insuportáveis dospaíses altamente endividados, muitos dos quaisgastam uma parcela significativa de seus PIBsanuais para o serviço de suas dívidas em aberto– freqüentemente em detrimento de serviçossociais básicos. Após uma longa campanhapara alívio da dívida nos anos 90, os benefíciosestão começando a surgir. Os 26 países quereceberam algum alívio reduziram seusserviços da dívida em 42%, de US$ 3,8 bilhões,em 1998, para US$ 2,2 bilhões, em 2001. Cercade 65% dessas economias foram redire-cionadas para programas de saúde e educação.Isto ajudou Uganda, por exemplo, a alcançarum nível de matrículas quase universal noensino fundamental. Todavia, a Áfricasubsaariana – a região mais atrasada naconquista dos ODMs – continua a pagar asnações credoras US$ 13 bilhões ao ano, noserviço da dívida.41

Embora ajuda e alívio da dívida sejamimportantes, estes ganhos são freqüentementeeclipsados pelas disparidades criadas porsubsídios comerciais e tarifas dos paísesindustrializados. Por exemplo, enquanto aUnião Européia dá uma ajuda de cerca deUS$ 8 por pessoa na África subsaariana,anualmente, oferece US$ 913 em subsídios porvaca, na Europa. No total, mais de US$ 300bilhões em subsídios anuais e tarifas agrícolasenfraquecem a capacidade dos agricultores nospaíses em desenvolvimento de competiremcom outros agricultores. De acordo com umestudo feito, em 2004, pelo Instituto deEconomia Internacional e o Centro paraDesenvolvimento Global, a remoção dessastarifas e subsídios poderia retirar 200 milhõesde pessoas da pobreza, até 2020.42

Outra fonte potencial de ajuda assistencialde desenvolvimento seria recursos definanciamento militar redirecionados (ver

Figura 9-1). Na realidade, redirecionandoapenas 7,4% dos orçamentos militares dospaíses doadores para ajuda ao desen-volvimento, proporcionaria todos os recursosadicionais – US$ 50 bilhões anuais –necessários para pagar pelos ODMs. Deacordo com um relatório de 2004, do Centrode Informação de Defesa e Política Externaem Foco, US$ 51 bilhões – ou 13% -poderiam ser cortados do orçamento militardos Estados Unidos, apenas com a remoçãode programas ultrapassados e desnecessários.Apenas isto proporcionaria os recursosadicionais necessários para atingir as ODMs.43

Um dos compromissos mais promissorese abrangentes com o desenvolvimento vemda Suécia. No final de 2003, o governo suecopromulgou uma lei intitulada ResponsabilidadeCompartilhada – Política Sueca para oDesenvolvimento Global. Ela obriga ogoverno a facilitar o desenvolvimento nãoapenas através de ajuda (que também planejaaumentar para 1,0% do PIB), mas alinhandotodas as políticas governamentais – comerciais,agrícolas, ambientais e de defesa – em tornode um princípio orientador de desen-volvimento global eqüitativo e sustentável. Emsetembro de 2004, o governo sueco divulgouseu primeiro relatório anual. Utilizado comoforma de fornecer uma visão geral doambiente político atual, o relatóriodocumentou as muitas inconsistências dasatuais políticas e forneceu um ponto de partidapara engajar ministérios e a sociedade civil na

Em 2003, o Brasil postergou a compra

de jatos de combate no valor de US$

760 milhões e reduziu seu orçamento

militar em 4%, a fim de financiar um

ambicioso programa contra a fome.

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Estado do Mundo 2005ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

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reorientação da política sueca em torno de umprograma de desenvolvimento sustentávelglobal.44

Entretanto, mesmo se os Objetivos deDesenvolvimento do Milênio forem alcançados

Figura 9-1. Gastos Militares versus Assistência Desenvolvimentista,

até 2015, ainda assim restariam 400 milhões depessoas subnutridas, 600 milhões vivendo commenos de US$ 1 por dia, e 1,2 bilhão sem acessoa saneamento básico. E o mundo não está nemperto de atingir esses modestos objetivos. Paratal, os governos terão que assumir compro-missos sérios – e mantê-los.45

Engajando a SociedadeCivil

O sucesso na criação de um mundo maisseguro e mais pacífico será mais provável se a

sociedade civil estiver envolvida no esforço.Felizmente, o registro dos últimos 15 anosindica que atores do setor civil – especialmenteONGs, um subconjunto das organizações dasociedade civil – emergiram como intérpretes

hábeis em política globale até mesmo comolíderes numa grandevariedade de questõespertinentes à segurança(ver Quadro 9-3). Aescolha de WangariMaathai, líder domovimento CinturãoVerde, do Quênia, parareceber o Prêmio Nobelda Paz de 2004 é umexemplo encorajador daaceitação desses líderesno palco internacional eda ligação do meioambiente a questões depaz e segurança. Aeficácia crescente dasociedade civil pode sercreditada a umavariedade de valores quefortalecem a capacidade

de grupos de “trabalhar em rede” – talvez aexpressão emblemática desta era globalizante.A sociedade civil poderá ajudar melhor aestabelecer os fundamentos da paz,desenvolvendo mais esta capacidade de serum parceiro eficaz, aplicando essasqualificações a questões de segurança.46

Uma ilustração poderosa da capacidade dosetor civil em atravessar fronteiras nacionaisnuma questão de segurança surgiu quandoestava prestes a irromper a guerra do Iraquede 2003, quando emergiu um movimentoglobal antiguerra que gerou as maiores

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ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZEstado do Mundo 2005

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manifestações da história: milhões de pessoasse reuniram em centenas de cidades em todoo mundo, durante o fim de semana de 15 defevereiro de 2003, para protestar contra ashostilidades a serem dirigidas ao Iraque.Embora o movimento não tenha evitado aguerra, registrou alguns sucessos notáveis. Amobilização de um público global a ummesmo momento sobre uma questão crucialfoi, em si, um avanço considerável para asociedade civil. E, pela primeira vez desde afundação das Nações Unidas, a opiniãopública ajudou a evitar que os Estados Unidosobtivessem a maioria dos votos no Conselho

de Segurança numa questão que consideravade importância vital – aliado à preocupaçãoentre os países-membros de que os inspetoresde armas não tiveram permissão de concluirseu trabalho. Estimulados pelas manifestaçõespúblicas e pesquisas revelando que a maioriase opunha à guerra, em quase todos os paísesconsultados, o Conselho de Segurança resistiuà pressão dos Estados Unidos por umaautorização para a guerra. A relutância doConselho em aprovar fortaleceu, por sua vez,os organizadores antiguerra a continuaremcom seus esforços.47

As manifestações se diferenciaram das

QUADRO 9-3. A ASCENSÃO DA SOCIEDADE CIVIL

A estatura proeminente da sociedade civil éresultado de várias tendências sociais que emergiramnas duas últimas décadas. O que abriu caminho foi oavanço da democracia em dezenas de países, que crioumaior espaço para os cidadãos e organizações civis.Desde os anos 80, e particularmente desde o colapsodo Muro de Berlim, dezenas de países da EuropaOriental, Ásia e América Latina abandonaram governostotalitários ou autoritários em favor de sistemaspolíticos que ofereciam maior grau de liberdade depensamento e de imprensa – o sangue vital de um setorcivil vibrante. Enquanto isso, algumas democraciasconsolidadas da Europa e das Américas começaram ase voltar a organizações civis para assumirem asresponsabilidades indesejadas por governos ecorporações, desde sopas para pobres àimplementação de projetos de desenvolvimento noexterior.

À medida que a latitude dos grupos civis seampliava, tecnologias de comunicação poderosas eacessíveis os ajudaram a organizar e compartilharinformações, acentuando seu status como atorespolíticos. Nos anos 80, os computadores haviam setornado relativamente baratos, portáteis,descentralizados e interligados – uma combinação deatributos que multiplicou as oportunidades de trabalhoem rede para organizações e indivíduos.Particularmente, o avanço acelerado da Internetaumentou em muito as oportunidades de democraciaparticipativa e apelos diretos a tomadores de decisão.

Ao mesmo tempo, questões internacionais como

mudança climática e competição por água e outrosrecursos foram sendo gradativamente reconhecidascomo muito complexas para um único governo - ou atémesmo grupos de governos - lidar. Governos ecorporações começaram a perceber que parcerias comuma sociedade civil liberada e poderosa poderiam seruma forma eficaz de lidar com algumas das questõesmais intratáveis da época moderna.

Dentro deste espaço político energizado entraram osvários conjuntos de entidades civis conhecidos comoONGs. Estas geralmente operam com objetivospúblicos, caracteristicamente em questões como direitoshumanos, proteção ambiental, questões de gênero etratamento de saúde – e freqüentemente sob umavariada gama de perspectivas políticas. ONGs sãocomumente consideradas como flexíveis, eficientes,pequenas, intimamente ligadas a cidadãos, e capazes deunir a eficiência operacional de um negócio com oobjetivo público de um governo. Seu crescimento temsido notável, mesmo em nível internacional: entre 1975 e2000, o número de ONGs internacionais cresceu demenos de 5.000 para aproximadamente 25.000.

O novo setor civil pleno de poder, gerado por estacombinação de tendências históricas, levou um repórterdo New York Times, em 2003, a classificar a opiniãopública global como uma “segunda superpotência” – umpoder cujas atividades de líderes políticos não podemignorar sem correr considerável risco político.

___________________________________________________________________________________________fonte: Vide nota final 46.

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marchas pela paz do século XX em formasque acentuam a linha de colaboração que passahoje pelas iniciativas da sociedade civil. Maisobviamente, as novas manifestações foramglobalmente coordenadas por ONGs,embora houvessem sido organizadasprimeiramente em nível local. Nos EstadosUnidos, por exemplo, uma nova ONGchamada Unida para a Paz e Justiça surgiu paraajudar a coordenar mais de 70 manifestaçõespor todo o país – e dar publicidade àsmanifestações realizadas em outros países.Nenhuma manifestação de paz transfronteiriça– nem aquelas contra a Guerra do Vietnã nosanos 60, ou as de oposição a armas nuclearesnos anos 80 – teve tamanha coordenaçãointernacional.48

Além disso, as manifestações de fevereirode 2003 foram distintas por estaremincorporadas numa rede maior de atividadeda sociedade civil sobre questões que seestendem além da guerra. A gênese dasmanifestações naquele dia, de fato, foi umchamamento feito numa reunião do FórumSocial Europeu, em novembro de 2002, eapoiado no Fórum Social Mundial (FSM), emjaneiro de 2003 – reuniões de organizaçõesda sociedade civil e de outros atores cívicosque enfocam basicamente questões sociais eeconômicas. E alguns dos gruposorganizadores das marchas de 15 de fevereiroeram veteranos das manifestações de 1999 queimpediram a reunião da Organização Mundialdo Comércio em Seattle. As ligações com ummovimento de uma sociedade civil maisampla e globalmente ativa indicam que amobilização de 15 de fevereiro não foi umextravasamento isolado de indignaçãopública.49

Realmente, há evidências de que acapacidade da sociedade civil formar as redes

que geram eventos como Fóruns Sociaisregionais e globais estão se desenvolvendoregularmente ao longo de mais de umadécada. O Centro para Estudo da Gover-nança Global (CSGG na sigla em inglês), deLondres, informa que organizações dasociedade civil incrementaram suas atividadesde reuniões significativamente nos últimosanos: quase um terço das principais reuniõesinternacionais sobre questões de paz, meioambiente e desenvolvimento organizadas porestes grupos desde 1988 foram realizadas numperíodo de apenas 15 meses, em 2002 e 2003.E essas reuniões são cada vez mais sofisticadas.Muitas são grandes – cerca de 55% com maisde 10.000 participantes – e são cada vez maiseventos independentes, ao invés de eventos“paralelos” a reuniões oficiais. Além deoferecer uma plataforma de comunicaçãoglobal, as reuniões são uma excelenteoportunidade para um trabalho em rede“cara-a-cara”: organizações civis pesquisadaspara o relatório do CSGG listaram o trabalhoem rede e parceria como os principaisobjetivos para a participação.50

Ao mesmo tempo, algumas das vantagensassociadas às mobilizações e reuniões dasorganizações civis são uma faca de dois gumes,sugerindo necessidade de cautela, à medidaque esses grupos capitalizam seus sucessos. Deinício, as energias de uma cidadaniaamplamente mobilizada podem ter poucadurabilidade e deverão ser utilizadas comparcimônia. Uma evidência disto foi ochamado para as manifestações globaisantiguerra em março de 2004, no primeiroaniversário do início da guerra do Iraque,quando apenas uma fração da participação doano anterior compareceu, tendo pouco, ounenhum, impacto sobre a ocupação do Iraquepelos Estados Unidos. Mobilizações em larga

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escala podem ser difíceis de organizar commuita freqüência e deverão ser usadasestrategicamente para obtenção de máximoefeito. Esta realidade desafiará os líderes dasociedade civil, globalmente, a trabalharemjuntos para determinar o melhor momentopara mobilizações globais.51

Além disso, o sucesso das organizações civisna organização de grandes reuniões poderá,ironicamente, criar seus próprios desafios. OFórum Social Mundial cresceu de formaimpressionante – de 10.000 participantes, naprimeira reunião em 2001, para 100.000 oumais, em 2004, números que podemfacilmente estressar a capacidade departicipação efetiva e levar as reuniões a setransformarem em pouco mais do quefestivais. Este é o perigo específico do fórum,que não foi planejado para pressionar poruma agenda de ação particular e sim paraproporcionar um espaço onde pontos devista diferentes possam ser articulados sob arubrica “outro mundo é possível”. Veteranosdo fórum, como Arundhati Roy, hojesugerem que as oportunidades para açãodevem formar parte rotineira das reuniões.52

Finalmente, à medida que as mobilizaçõespúblicas obtêm maior sucesso, a sociedadecivil precisará estar alerta para medidasdefensivas que diluam sua eficácia. Alegandoquestões de segurança, a cidade de NovaYork, por exemplo, esforçou-se paraminimizar o impacto das marchas de 15 defevereiro desviando os manifestantes das rotastraçadas e impedindo a passagem pela frentedas Nações Unidas. Esforços semelhantesocorreram 18 meses depois, quando a cidaderedirecionou as manifestações programadaspara a Convenção do Partido Republicano,no verão de 2004, e prendeu milhares demanifestantes, com pouca base legal. Desafios

como estes, num país com uma longa históriade proteção legal a manifestações públicas,indicam que os atores civis não devem acharque seu espaço operacional – que em muitospaíses é território recém-conquistado – sejaalgo líquido e certo.53

O trabalho em rede das organizações civistambém está sendo facilitado pelo uso dasnovas tecnologias de comunicação. ACampanha Internacional de Proibição deMinas Terrestres (ICBL, na sigla em inglês),por exemplo, foi um esforço coordenado nosanos 90, de centenas de organizações civisreunidas através de e-mails e da internet. Acampanha concebeu, elaborou e obteve apoiogovernamental para um Tratado de Proibiçãode Minas Terrestres que, em outubro de 2004,possuía 143 signatários – a primeira vez queum tratado foi elaborado e levado a viger comuma liderança básica da sociedade civil. Estarealização deu ao ICBL o Prêmio Nobel daPaz em 1997. O grupo evidentemente foiduplamente merecedor do prêmio: pelotratado propriamente dito, que demonstrauma promessa real de eliminação de uma dasmaiores pragas que afligem populações civispós-guerra, e pela forma inovadora com queo grupo trabalhou, fortalecendo a sociedadecivil como força de paz.54

Outras organizações civis podem aprendercom a experiência do trabalho em rede daICBL. Pesquisas sobre armas biológicas, porexemplo, eram, até pouco tempo atrás,lideradas em grande parte por bolsões deespecialistas no Ocidente, incluindo pequenosgrupos de acadêmicos e cientistas que visavama legisladores, ao invés do público, cominformações. Mas, a partir de 2001, algumasONGs como Sunshine Project, da Alemanha edos Estados Unidos, se empenharam paraampliar o interesse reformulando o tema para

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incluir questões com as quais as organizaçõescivis já estavam ativas, como biodiversidade ebiossegurança. Outro grupo, o BioWeaponsPrevention Project [Projeto de Prevenção aBioarmas], utilizou os mecanismos deatividades locais para levar adiante ações sobrequestões de guerra biológica. Estabeleceu redesde grupos civis na Europa, América do Nortee África, juntamente com uma publicaçãoanual, BioWeapons Monitor, para ajudar o públicoa acompanhar o cumprimento à Convençãosobre Armas Biológicas. Através das páginasda internet, e-mails e outras tecnologias decomunicação moderna, estes dois grupos estãoampliando a público interessado em questõesbiológicas e químicas além de cientistas, alémdos países industrializados e além dacomunidade tradicional de segurança.55

Outro exemplo marcante do uso datecnologia é a mobilização cidadã que forçouo Presidente das Filipinas Joseph Estrada arenunciar, em janeiro de 2001. Alertados queseu julgamento de impeachment por corrupçãohavia sido suspenso indefinidamente, cidadãosindignados utilizaram mensagens de texto emcelulares e computadores para organizar umprotesto que reuniu 150.000 pessoas no centrode Manila, em duas horas. Os manifestantesficaram em vigília durante quatro dias, emnúmero tão expressivo que o Presidente seviu forçado a renunciar.56

Estes sucessos são possíveis, naturalmente,só onde a tecnologia está disponível.

Organizações civis em países mais ricospoderão ajudar a assegurar que organizaçõesmenos prósperas sejam tão eficazes quantopossível, fornecendo as tecnologias quenecessitam. Um exemplo inspirador destacolaboração é o trabalho da Witness, umaorganização sem fins lucrativos nos EstadosUnidos, estabelecida em 1992, que fornececamcorders, treinamento técnico e emdesenvolvimento de mensagem paraorganizações civis em todo o mundo.Capitalizando o maior poder e preço baixode câmeras portáteis e equipamento de ediçãode vídeos nas duas últimas décadas, Witness sedispôs a ajudar atores civis a documentaremabusos a pessoas e ao meio ambiente. Em2004, o grupo havia colaborado com maisde 200 parceiros em projetos em 50 países,tendo obtido vários sucessos significativos,inclusive o fechamento de um notório hospitalde doenças mentais no México, após umatransmissão pública de uma filmagemrealizada por uma organização apoiada pelaWitness. Os vídeos da Witness também foramresponsáveis por ter instigado o Governo dasFilipinas a investigar os assassinatos de ativistasindígenas que reclamaram direitos ancestrais àterra.57

Além do seu trabalho com outros atoresda sociedade civil, as organizações civistambém estão adquirindo experiência valiosana colaboração com governo e indústria noenfrentamento dos problemas mais intratáveisda sociedade. O padrão tradicional dadiplomacia internacional, onde iniciativas de

A Campanha Internacional de Proibição

de Minas Terrestres foi um esforço

coordenado, nos anos 90, de centenas de

organizações civis reunidas através de e-

mail e internet.

A sociedade civil, governos e corporações

estão formando parcerias para lidar com

questões de interesse comum, inclusive

problemas de paz e segurança.

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políticas transfronteiriças foram, em grandeparte, empreendidas por governos eorganizações internacionais (com pressões, àsvezes, das corporações e ocasionalmente dasociedade civil) está cedendo lugar a uma novadinâmica. A sociedade civil, governo ecorporações estão formando parcerias –freqüentemente temporárias e de natureza nãohierárquica – para lidar com questões deinteresse comum, inclusive problemas de paze segurança. Estas “redes de políticas públicasglobais” oferecem um lugar à mesa delegisladores para ONGs e outras organizaçõesda sociedade civil de maneira sem precedentes.(Ver Tabela 9-3.)58

Um exemplo da nova colaboração é oKPCS (sigla em inglês do Esquema Kimberleyde Certificação de Processo), um acordocooperativo entre empresas de diamante,governos e organizações civis, que atesta queos diamantes exportados não são “diamantesde conflitos” – pedras brutas cuja venda gerareceita utilizada para financiar conflitos civisem Angola, Serra Leoa, Libéria e outrospaíses. Iniciado no início de 2003, após umasolicitação da Assembléia Geral da ONU paraa certificação de diamantes em 2000, oprocesso de certificação Kimberley hoje cobrecerca de 98% das exportações mundiais dediamante. A indústria, organizações civis egovernos se reúnem em grupos de trabalhopara administrar o esquema e monitorar seufuncionamento.59

O sucesso do Processo Kimberley aindaestá em dúvida. Críticos alegam que osvarejistas de diamantes têm sido lentos emapoiar o processo, assegurando que osdiamantes são livres de conflitos. Por outrolado, o KPCS se mostrou disposto a ser durocom os governos, como na decisão de julhode 2004, que expulsou o governo da República

Democrática do Congo da organização, apóseste não ter conseguido comprovar a origemde diamantes congoleses e garantir que eram“limpos”. A ação impede o Congo deexportar diamantes para qualquer um dos 43membros do KPCS que exercem ocomércio.60

Redes de ONGs colaboradoras, governose corporações demonstram grande capacidadepara lidar com uma variedade de questões desegurança e merecem o apoio de governos einstituições internacionais. A promoção pelaONU deste tipo de parceria, na CúpulaMundial sobre Desenvolvimento Sustentável,em 2002, é um exemplo do tipo de apoioinstitucional que essas iniciativas necessitam. Nareunião em Joanesburgo, mais de 100 grandesparcerias entre governos, corporações eONGs foram estabelecidas, para lidar comvárias questões, desde gestão hídrica àpromoção de energia renovável.61

As instituições internacionais tambémpodem apoiar redes transetoriaisindiretamente, trabalhando com asorganizações civis e legitimando-as comoparceiros potenciais para governos ecorporações. O Banco Mundial consultaconstantemente as organizações civis em seutrabalho ao longo da última década – alegaque cerca de 70% de seus projetos envolveramcolaboração com organizações civis, em 2002,contra 50% cinco anos antes, umdesenvolvimento promissor que eleva aestatura da sociedade civil.62

Enquanto isso, as Nações Unidas tambémestão tomando medidas para promover maiorinclusão de ONGs. A sociedade civil tem sidomuito ativa no trabalho econômico e socialda ONU, particularmente nas principaisconferências e após a Cúpula da Terra no Riode Janeiro, através da Comissão sobre

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Desenvolvimento Sustentável. Porém, oConselho de Segurança tem estadotradicionalmente inacessível a qualquer um,exceto delegações oficiais da ONU. Isto,entretanto, está começando a mudarlentamente, com o Conselho hoje permitindotroca de idéias a portas fechadas, oficiosas,entre ONGs e delegados governamentais.Ademais, o Secretário-geral Kofi Annan está

considerando reformas que poderão levar amais diálogos ainda entre a sociedade civil e oConselho de Segurança, além de envolvergrupos civis mais intimamente nos trabalhosde campo da ONU, e estabelecer um fundoespecial de ajuda às organizações civis nospaíses em desenvolvimento para aumentar suacapacidade de trabalho eficaz com as NaçõesUnidas.63

Tabela 9-3. Redes Selecionadas de Políticas Públicas Globais

Nome da Rede

Roll Back Malaria(Fazer Recuar a Malária)

World Commission on Dams(Comissão Mundial de Barragens)

Global Water Partnership(Parceria Mundial da Água)

Africa StockpilesProgramme

(Programa Africanode Armazenamento)

Global Village EnergyParnership(Aliança Globalpara Universalizaçãode Energia)

Parceiros Selecionados

Bayer Environmental Science,CORE, PNUD, UNICEF, BancoMundial, OMS, Governos deGana, Índia e Itália

FAO, Agência Internacional deEnergia, IUCN, TransparencyInternational, PNUMA, BancoMundial, OMS

União Européia, IFPRI,Universidade de Pequim, AgênciaInternacional de Desenvolvimentoda Suécia, PNUD, Banco Mundial

União Africana, CropLifeInternational, GEF,

Pesticide Action Network-Africa,PNUMA, OMS, WWF

BP Solar, USAID, PNUD,Winrock International, BancoMundial

Detalhes

Lançado em 1998, com o objetivo dereduzir pela metade o ônus da malária, até2010, através de uma abordageminternacional coordenada

Em 1998, a comissão realizou dois anosde consultas e estudos de caso sobre opapel das grandes barragens nodesenvolvimento. O relatório final foidivulgado em 2000 e, em 2001, o Projetodo PNUMA de Barragens eDesenvolvimento foi criado paradisseminar as conclusões do relatório.

A parceria foi estabelecida após asconferências de Dublin e Rio de Janeiro,em 1992, para apoiar países no manejosustentável de seus recursos hídricos

Este programa teve início em 2000 comoum esforço entre múltiplos interessados,para eliminar armazenagem de pesticidasobsoletos na África, dar destinação final aprodutos químicos orgânicos persistentesconforme diretrizes internacionais eimpedir acumulação futura de pesticidas.

Lançado em 2002 na Cúpula Mundialsobre Desenvolvimento Sustentável, estaparceria visa aumentar a comunicaçãoentre investidores de energia, empresáriose usuários; desenvolver políticasenergéticas em vilarejos; e proporcionar a400 milhões de pessoas acesso a serviçosenergéticos modernos como aquecimento,resfriamento e cozimento.

FONTE: Vide nota final 58.

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Muitas questões ainda precisam ser tratadascom relação ao lugar da sociedade civil nessasredes de políticas. Dentre os diversos atoresdo setor civil, qual teria acesso à rede depolíticas e quem decidiria? Quão represen-tativas são as organizações civis, cuja liderançararamente é eleita pelo público e não prestacontas a este público? Que tipos de verificaçõessão necessárias para assegurar que asorganizações civis não sejam instrumentos deseus governos ou parceiros comerciais? Estase outras questões complexas ainda precisamser resolvidas enquanto o movimento seconsolida. Contudo, o mesmo espírito decolaboração que caracteriza a operação dessasredes poderá, presumivelmente, ajudar aresolver também estas questões.

Os esforços de redes relativamente novase instáveis – sejam colaborações transitóriasentre ONGs ou esforços mais institu-cionalizados de redes de políticas – podemser sustentadas pelo trabalho de valorizaçãode centros consolidados de influência dasociedade civil. Particularmente a educação,mídia e religião estão posicionadas paraestabelecer um entendimento público dosprocessos políticos globais e de como tornaras sociedades mais pacíficas e justas. Cada umadessas instituições possui uma históriadiversificada, naturalmente, no exercício dopoder. Escolas, mídia e igrejas são, às vezes,tão eficazes em conclamar os cidadãos àsarmas como liderá-los na manutenção da paz.

A educação do século XX, por exemplo –apesar de seu sucesso –, tem sido criticada

por produzir cidadãos e líderes que engen-draram o século mais violento e maisambientalmente destrutivo da história dahumanidade. Vale notar, também, que algumasdas civilizações mais duradouras da históriaforam lideradas por pessoas sem a instruçãoformal que conhecemos hoje. Todavia, asescolas poderiam ser instituições que geram“cidadãos globais”: aqueles que entendem suasligações com as pessoas e problemas de outrasterras, que se vêem às voltas com questõesfundamentais de justiça global, e que sentemprofundamente que o meio ambiente naturalé parte integrante de seu bem-estar e, portanto,merecedor de proteção. A criação destesistema educacional é o grande desafio para oséculo XXI.

Enquanto isso, a mídia mundial – televisão,rádio, jornais, livros, música e a internet, entreoutros meios – pode ser pensada como umsistema educacional paralelo, tão generalizadoé seu alcance e tão poderosa é sua capacidadede formar visões de mundo. Uma pesquisada Pew Research Center, realizada em março de2003, constatou que 41% dos americanosidentificaram a mídia como a influência básicana formação de suas opiniões sobre a guerrado Iraque. Uma mídia que alarga as visõesdos cidadãos, que oferece uma diversidadede perspectivas sobre grandes questões sociaise que é reformulada para depender muitomenos da publicidade para seu sustentoinfluenciaria fortemente os valores sociais numadireção mais consistente com as necessidadesde um mundo globalizado e ambientalmentee socialmente estressado.64

Finalmente, a influência religiosa sobrevisões de mundo é considerável, agindofreqüentemente nos níveis mais profundos dapsique humana e expressa através de rituais,ensinamentos bíblicos e exortação moral.

Educação, mídia e religião estão

posicionadas para estabelecer um

entendimento público sobre como tornar

as sociedades mais pacíficas e justas.

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Exercido, às vezes, violentamente e com finsrepressivos, este poder, não obstante, tem sidoutilizado também de forma construtiva. Omovimento de Gandhi pela independência daÍndia, a luta pelos direitos civis nos EstadosUnidos, o boicote internacional de fórmulasinfantis nos anos 70, o movimento antinucleardos anos 80 e a campanha de reestruturaçãoda dívida dos países em desenvolvimento nosanos 90, foram todos liderados ou influenciadospor pessoas e organizações religiosas. E osesforços colaborativos para acabar comconflitos, como as iniciativas da Fundação Inter-religiosa de Paz de Sri Lanka – um grupo debudistas, cristãos, muçulmanos, hindus e Baha’istrabalhando pela paz na ilha-nação oferecemesperanças de que grupos religiosos possamcombinar sua influência em prol da paz.65

Explorar o poder das várias tradiçõesreligiosas mundiais para formar perspectivas

sobre a gama de crises que a comunidadeglobal enfrenta hoje – especialmente guerra,desigualdade e degradação ambiental –poderá afetar profundamente o curso dosacontecimentos do novo século.

Este novo foco desses três centros deinfluência muito contribuirá para fortalecer umsetor civil cheio de vigor e poder. Facilitarátambém a reforma das instituições inter-nacionais e a realização das visões sociais,econômicas e ambientais endossadas pelaAssembléia do Milênio e pela Cúpula Mundialsobre Desenvolvimento Sustentável. Umacidadania globalmente orientada que abraceum senso de solidariedade com os maispobres do mundo e de responsabilidade peloplaneta que nos sustenta, provavelmente, nãosó apoiaria novas iniciativas de políticas, comotambém insistiria nelas.

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