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#137 EDIÇÃO OÁSIS POR QUE O MUNDO PRECISA DO WIKILEAKS ENTREVISTA: JULIAN ASSANGE SENHORA APARECIDA A madona negra brasileira CARA DE PEIXE A face mais antiga da história LER BONS LIVROS Melhor forma para manter a mente ativa

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#137

Edição Oásis

Por quE o mundo PrEcisa do WikiLEaks

ENTREVISTA: JULIAN ASSANGE

SENHORA APARECIDA a madona negra brasileiraCARA DE PEIXE a face mais antiga da históriaLER BONS LIVROS melhor forma para manter a mente ativa

2/36OáSIS . Editorial

por

Editor

PEllEgriniLuis

J ulian assange, o criador do site Wikileaks, é nosso perso-nagem de capa neste número, em entrevista/conferência realizada no tEd. Ele faz importantes revelações sobre o

método de trabalho e os propósitos de sua organização, res-ponsável por um enorme número de revelações a respeito de negócios e ações escusas de governos e de grandes corpora-ções. Considerado inimigo pelos governos de países como os Estados Unidos e a inglaterra, pelo fato de ter tornado públi-cas informações reputadas como segredos de Estado, o austra-liano assange se defende. Para ele, não pode haver democra-cia sem total liberdade de informação. Confira.Sempre neste número, duas importantes pesquisas científicas norte-americanas na área da neurociência ressaltam a impor-tância de se viver no seio de uma comunidade que promova a leitura. ler, sem dúvida, melhora as capacidades empáticas da pessoa. Mas confirmou-se agora que a leitura e a escritura mantêm à distância o espectro da deterioração cognitiva.

O hábitO de desafiar O cérebrO cOm atividades estimulantes afasta e retarda

O surgimentO dOs prOcessOs de declíniO cOgnitivO

OáSIS . Editorial

por

Editor

PEllEgriniLuis

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Mais uma vez, confirma-se que no mundo natural, que é o mundo em que vivemos, tudo aquilo que não é usado apodre-ce ou se deteriora. no plano humano, essa verdade vale para todos os níveis da nossa existência: físico, sexual, emocional, mental, etc. Se para evitar a deterioração do corpo físico exis-tem as longas caminhadas, as piscinas, a ioga e a ginástica, para manter o cérebro em ação e bem treinado nada é melhor do que a prática diária da leitura e da escritura.

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OENTREVISTA: JULIAN ASSANGEPor que o mundo precisa do WikiLeaks

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ativista da internet Julian As-sange é o porta-voz do WikiLe-aks, um controvertido website controlado por voluntários, que publica e comenta documentos secretos vazados que informam sobre alegados desvios e crimes perpetrados por governos e por corporações.

Nascido na Austrália, Julian Assange desde muito jovem mostrou interesse pelos problemas de segurança na rede. Nos últimos anos, passou a se dedicar a tarefas mais amplas e arriscadas rela-cionadas a negócios sujos de governos e corporações.

Assange estudou física e matemática na Universidade de Melbourne. Ele é o au-tor do Strobe, o primeiro port-scanner aberto e open-source, e contribuiu na redação do livro Underground: Tales of Hacking, Madness and Obsession on the Electronic Frontier (Subterrâneo: Con-tos de hacking, loucura e obsessão na fronteira eletrônica).

O

O site Wikileaks coleta e publica vídeos e documentos altamente sigilosos. seu fundador, Julian assange, que já foi chamado para interrogatório pelas autoridades dos eua, conversa com chris anderson do ted, sobre como o site funciona, o que ele já realizou e o que o motiva. a entrevista inclui uma filmagem explícita de um recente ataque aéreo norte-americano em bagdá

Vídeo: Ted-Ideas WorTh spreadIngTradução: danIel sollero. reVIsão: durVal CasTro

JulIan assange

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Tradução integral da conferência de Julian Assange ao TED

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Chris Anderson: Bem vindo, Julian. Foi divulgado que o WikiLe-aks, seu bebê, nos últimos dois anos divulgou mais documentos sigilosos do que o resto de toda a mídia do mundo junta. Isso pode ser verdade?Julian Assange: É, isso pode ser verdade? É uma preocupação - não é? - Que o resto da mídia do mundo esteja fazendo um traba-lho tão ruim que um grupinho de ativistas consegue publicar mais informações desse tipo do que o resto da imprensa mundial junta.CA: Como isso funciona? Como as pessoas divulgam os documen-tos? E como você garante a privacidade delas?JA: Acontece que eles são - ao que sabemos - informantes clás-sicos. Temos uma variedade de maneiras para que eles possam fornecer informações para nós. Então usamos criptografia de última geração para fazer as coisas pularem pela internet, para esconder as trilhas, fazer que elas atravessem as jurisdições legais como a Suécia e a Bélgica para legalizar essas proteções legais. Recebemos informações por correio, o correio normal, codificado ou não, analisamos como uma organização de notícias normal, formatamos - o que as vezes é muito difícil de fazer quando se fala sobre gigantescos bancos de dados de informações - divulgamos isso para o público e então nos defendemos contra os inevitáveis ataques políticos e legais.CA: Então vocês se esforçam para garantir que os documentos são legítimos. Mas vocês realmente quase nunca sabem qual é a iden-tidade da fonte.JA: É isso, sim. É muito raro sabermos. E se descobrirmos em algum momento então nós destruímos essa informação o quanto antes (telefone toca) Que droga!CA: Acho que é a CIA perguntando qual é o código para ser um membro do TED.Vamos ver um exemplo, de fato. Isso é algo que foi vazado alguns anos atrás. Se nós pudermos mostrar esse documento... Essa é uma história no Quênia há alguns anos. Você pode nos contar o

que você vazou e o que aconteceu?JA: Esse é o Relatório Kroll. Era um relatório de inteligên-cia secreta encomendado pelo governo do Quênia após a sua eleição em 2004. Antes de 2004, o Quênia foi governa-do por Daniel Arap Moi por uns 18 anos. Ele era um dita-dor moderado do Quênia. Quando Kibaki chegou ao poder - através de uma coligação de forças que tentavam acabar com a corrupção no Quênia - eles pagaram esse relatório, gastaram mais ou menos 2 milhões de libras nisso e em um outro relatório. E então o governo o engavetou e usou isso para a negociação política com Moi, que era o homem mais rico - e ainda é o homem mais rico - do Quênia. Esse é o Santo Graal do jornalismo queniano. Então eu fui até lá em 2007, e consegui ter acesso a isso pouco antes da eleição - a eleição nacional em 28 de dezembro. Quando lançamos esse relatório, o fizemos 3 dias depois que o novo presiden

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te, Kibaki, tinha decidido se unir com o homem que ele deveria ti-rar do poder, Daniel Arap Moi. Esse relatório então se tornou um albatroz morto no pescoço do presidente Kibaki.CA: E - quero dizer, para encurtar uma longa história - a notícia de que o relatório vazou chegou no Quênia não pela mídia oficial, mas indiretamente. E, na sua opinião, isso mudou os rumos da eleição. JA: Sim. Isso foi a primeira página do Guardian e foi impresso em todos os países ao redor do Quênia na imprensa da Tanzânia e da África do Sul. E aí, entrou no país vindo de fora. E isso, depois de alguns dias, fez com que a mídia do Quênia se sentisse livre para comentar a respeito. E passou por 20 noites direto na TV quenia-na, mudou as intenções de voto em 10 por cento, de acordo com um relatório de inteligência do Quênia, isso mudou o resultado da eleição.CA: Puxa, então o seu vazamento mudou substancialmente o mundo?

JA: Sim.CA: Agora - nós vamos mostrar um pequeno trecho de um vídeo de um ataque aéreo a Bagdá. O vídeo é mais longo. Mas aqui vai um pequeno trecho. Esse é - esse é um mate-rial intenso, devo avisá-los.Radio: ... de sacanagem, quando você os pegar apenas abra--os. Eu vejo seu elemento, uh, tem uns 4 Humvees, uh jun-to... Você está liberado. Certo. Atirando. Me avise quando você os pegar. Vamos atirar. Explodam eles. Vamos, fogo! (metralhadoras atirando) Continue atirando, continue ati-rando. (metralhadoras atirando) Continue atirando. Hotel ...Bushmaster 2-6, Bushmaster 2-6, temos que sair, comece a contar! Certo, nós confrontamos todos os oito indivíduos. Sim, nós vemos dois passaros [helicópteros], e ainda esta-mos atirando. Entendido. Eu peguei eles. 2-6, aqui é o 2-6, estamos móveis. Ops, desculpe, o que está havendo? Droga, Kyle. Certo, hahahaha. Eu acertei eles.CA: E qual foi o impacto disso?JA: O impacto sobre as pessoas que trabalharam nisso foi severo. Acabamos mandando duas pessoas a Bagdá para pesquisar mais essa história. Esse é apenas o primeiro de três ataques que aconteceram naquela cena.CA: Então, quer dizer, 11 pessoas morreram nesse ataque, certo, incluindo dois funcionários da Reuters?JA. Isso. Dois funcionários da Reuters, duas crianças foram feridas. Houve algo entre 18 e 26 pessoas mortas no total.CA: E divulgar isso causou revolta generalizada. Qual foi o elemento chave disso que causou a revolta, o que você acha?JA: Eu não sei. Acho que as pessoas puderam ver a enorme disparidade de forças. Você vê homens andando nas ruas relaxados, e então um helicóptero Apache aparece em uma esquina disparando balas de canhão de 30 milímetros em

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todo mundo - procurando qualquer desculpa para fazer isso - e matando as pessoas que estão resgatando os feridos. E esses dois jornalistas envolvidos, que claramente não eram insurgentes, por-que esse era o trabalho deles em tempo integral.CA: Quero dizer, um analista de inteligência americano, Bradley Manning, foi preso. E supostamente ele confessou numa sala de chat que enviou esse video para você, junto com 280.000 telegra-mas sigilosos da embaixada americana. Quer dizer, será que ele mandou?JA: Bem, nós negamos ter recebido esses telegramas. Ele foi in-diciado, uns cinco dias atrás, por ter obtido 150.000 telegramas e divulgar 50. Agora, nós publicamos no início do ano um telegra-ma da embaixada americana em Reykjavik. Mas que não era ne-cessariamente conectado a esses. Quero dizer, eu era um visitante conhecido daquela embaixada.CA: Bem, se você recebeu milhares de telegramas diplomáticos da embaixada americana...JÁ: Nós os teríamos liberado.CA: Teriam? JÁ: Sim.CA: Por que?JA: Bem, porque esse tipo de coisa revela o estado real de, diga-mos, como são os governos árabes, os reais abusos de direitos humanos nesses governos. Se você olhar os telegramas não confi-denciais, é o tipo de material que está lá.CA: Então vamos falar um pouco mais sobre isso. Em geral, qual é a sua filosofia? Por que é correto encorajar o vazamento de infor-mações secretas?JA: Bem, há a questão sobre que tipo de informação é importante para o mundo, que tipo de informação pode gerar uma reforma. E há muita informação. Então as informações que organizações es-tão fazendo um esforço econômico para esconder, isso é um bom sinal de que quando essa informação estiver disponível há uma

esperança dela fazer algo bom. Porque as organizações que sabem das coisas, que conhecem tudo de dentro para fora, estão tendo trabalho para esconder. E isso é o que descobri-mos com a prática. E essa é a história do jornalismo.CA: Mas há riscos nisso, tanto para os indivíduos envolvi-dos e até para a sociedade toda, em que vazar pode ter uma consequência não intencional?JA: Não observamos isso com coisa alguma que tenhamos divulgado. Nós temos uma política de imunização a danos. Nós temos uma maneira de lidar com informações que te-nham alguma coisa de pessoal - identificando pessoalmen-te a informação ali. Mas há segredos legítimos - você sabe, seus registros com seu médico, esse é um segredo legítimo. Mas nós lidamos com informantes que estão se apresentan-do realmente bem motivados.CA: Então eles estão bem motivados. E o que você falaria,

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por exemplo, aos pais de alguém cujo filho está servindo o exér-cito americano no exterior, e ele diz, “Sabe de uma coisa, você publicou algo que alguém tinha um incentivo para liberar. E mos-tra um soldado americano rindo de pessoas morrendo. Isso dá a impressão,- deu a impressão a milhões de pessoas no mundo todo de que os soldados americanos são desumanos. Na verdade, eles não são. Meu filho não é. Como você ousa insinuar isso? O que você falaria para isso?JA: É, nós recebemos um monte disso. Mas lembre-se, as pessoas em Bagdá, as pessoas no Iraque, as pessoas no Afeganistão - eles não precisam ver o vídeo; eles veem isso todos os dias. Então isso não vai mudar a opinião deles. Não vai mudar a percepção deles. É isso que eles veem todos os dias. Isso vai mudar a percepção e opinião daqueles que estão pagando por tudo isso. E essa é a nos-sa esperança.CA: Então você achou uma maneira de jogar uma luz no que você vê como sendo esse tipo de segredos macabros das empresas e

governos. A luz é boa. Mas você nota a ironia no fato de que para você jogar essa luz, você mesmo tem que criar um se-gredo ao redor das suas fontes?JA: Não. Quero dizer, nós não temos nenhum dissidente da WikiLeaks ainda. Nós não temos fontes que são dissidentes de outras fontes. Caso eles apareçam, isso seria uma situa-ção difícil para nós. Mas presumimos que agindo dessa ma-neira as pessoas sentem-se moralmente obrigadas a conti-nuar a nossa missão, a não ferrar com tudo.CA: Eu estaria interessado, apenas pelo que ouvi até ago-ra - queria saber a opinião da audiência do TED. Você sabe, deve haver alguns pontos de vista sobre o Wikileaks e sobre o Julian. Vocês sabem, o herói - o herói do povo - trazendo essa luz importante. O encrenqueiro perigoso. Quem tem a visão do herói? E quem tem a visão do encrenqueiro perigo-so?JA: Ah, por favor. Deve ter algum.É um público moderado, Julian, um público moderado. Te-mos que tentar melhorar. Vamos dar a eles um outro exem-plo. Aqui está uma coisa que vocês ainda não vazaram, mas eu acho que no TED poderíamos considerar que o fariam. É uma história intrigante que acabou de acontecer, certo? O que é?Então essa é uma amostra do que fazemos todos os dias No final do ano passado - em novembro do ano passado - hou-ve uma série de explosões de poços na Albânia como o poço que explodiu no Golfo do México, mas não tão grande. E nós recebemos um relatório - um tipo de análise de enge-nharia do que havia acontecido - afirmando que, de fato, os seguranças de algum concorrente, várias empresas de pe-tróleo competindo haviam, de fato, estacionado caminho-netes lá e as explodido. E parte do governo da Albânia esta-va envolvido, etc, etc. E no relatório de engenharia não

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tinha nada sobre isso. Então foi um documento extremamente difícil para nós. Nós não conseguíamos verificar porque nós não sabíamos quem escreveu isso e sabíamos qual era o propósito disso. Então ficamos meio céticos que talvez fosse uma empresa de petróleo concorrente que estava trazendo isso a tona. Baseados nisso, nós publicamos e dissemos, “Olhem, nós estamos céticos a respeito disso. Nós não sabemos, mas o que podemos fazer? O material parece bom, parece certo, mas nós não conseguimos verificá-lo” E recebemos uma carta essa semana da empresa que o escreveu, querendo rastrear a fonte - (risos) dizendo, “Ei, nós que-remos rastrear a fonte.” E nós respondemos, “Conte-nos mais. A que documento, precisamente, você está se referindo? Você pode nos provar que tem alguma autoridade legal sobre esse documen-to? É realmente seu?” Então eles enviaram uma captura de tela com o autor na identificação do Microsoft Word. É. (Aplausos) Isso acontece bastante. Esse é um dos nossos métodos de identi-ficar - ou verificar o que é aquele material, é tentar fazer com que esses caras escrevam cartas.CA: Você teve informação de dentro da BP?JA: Sim, nós temos muitas, mas quero dizer, no momento, nós es-tamos fazendo uma captação de recursos e esforços de engenha-ria. E a nossa taxa de publicação nos últimos meses foi reduzida enquanto nós reconstruímos os nossos sistemas para o interesse público fenomenal que nós temos. Isso é um problema. Quero dizer, como qualquer tipo de organização nova em crescimento, nós estamos surpresos com o nosso crescimento. E isso significa que estamos recebendo uma quantidade enorme de revelações de informantes de calibre bem alto, mas nós não temos pessoal sufi-ciente para processar e cuidar dessa informaçãoCA: Então esse é o principal gargalo, jornalistas voluntários e/ou o financiamento de salários dos jornalistas?JA: Sim, e pessoas confiáveis. Nós somos uma organização que dificilmente vai crescer rapidamente por causa do tipo de material

que lidamos. Então temos que reestruturar para ter pessoas que vão lidar com questões da mais alta segurança nacional, e também casos de segurança mais baixa.CA: Então ajude-nos a entender sobre você, pessoalmente, e como chegou a fazer isso. E acho que li que quando era criança você estudou em 37 escolas diferentes. Será que isso está certo?JA: Bem, meus pais trabalhavam no negócio de cinema e depois em um culto, então juntando os dois...CA: Um psicólogo poderia dizer que essa é a receita para criar a paranóia.JA: O que, o negócio de cinema?CA: Você era também - quero dizer, você era um hacker desde jovem e teve problemas com as autoridades logo cedo. JA: Bem, eu era um jornalista. Sabe como é, eu era um jor

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nalista ativista bem jovem. E escrevi uma revista, que foi proces-sada por isso quando eu era um adolescente. Então você tem que tomar cuidado com hacker. Quero dizer, há um método que pode ser feito para várias coisas. Infelizmente, naquele momento, era mais usado pela máfia russa para roubar a conta do banco da sua avó. Então essa frase não é tão legal quanto era antigamente.CA: Bem, eu realmente não acho que você estava roubando a con-ta de banco da avó de ninguém. Mas e sobre os seus valores? Você pode nos dar uma ideia do que eles são e talvez algum aconteci-mento na sua vida que ajudou a determinar esses valores?JA: Não tenho certeza sobre o acontecimento Mas os valores prin-cipais são: homens capazes e generosos não criam vítimas, eles cuidam das vítimas. E isso era algo do meu pai e de outros ho-mens capazes e generosos que participaram da minha vida.CA: Homens capazes e generosos não criam vítimas; eles cuidam delas?JA: É, e você sabe, eu sou uma pessoa combativa, então eu não sou muito bom com essa parte de cuidar. Mas de alguma forma há outra maneira de cuidar das vítimas, que é vigiar os autores do crime. Então isso é algo que está no meu caráter há bastante tem-po.CA: Então conte-nos, rapidamente nesse último minuto, a sua história: O que houve na Islândia? Você publicou algo lá, teve problemas com um banco, depois uma empresa de notícias de lá recebeu uma punição por ter publicado a história. Ao invés dis-so, eles divulgaram o seu lado da história. Isso fez você ser muito conhecido na Islândia. O que aconteceu depois?JA: Esse é um grande caso. A Islândia passou por essa grande crise financeira. Foi o país mais afetado de todo o mundo. Seu setor financeiro correspondia a 10 vezes o PIB do resto da econo-mia. Então, nós lançamos esse relatório em julho do ano passado. E a TV nacional foi proibida de veicular cinco minutos antes de ir ao ar. Como se tivesse saído de um filme, a ordem foi coloca-

da na mesa, e o apresentador falava “Isso nunca aconteceu antes. O que faremos?” Bem, vamos apenas mostrar o site então para preencher todo aquele tempo. E nós nos torna-mos muito famosos na Islândia, fomos à Islândia e falamos sobre o assunto. E havia um sentimento na comunidade que isso nunca deveria acontecer novamente. E como re-sultado disso, trabalhando com alguns políticos islandeses e alguns especialistas em direito internacional, nós criamos um tipo de pacote legal para a Islândia se tornar um paraíso para a imprensa livre, com as maiores proteções jornalísti-cas do mundo, com um novo prêmio Nobel para liberdade de expressão. A Islândia é um país nórdico. Então, como a Noruega, é capaz de mexer no sistema. Há apenas um mês, isso foi aprovado por unanimidade pelo parlamento islan-dês.CA: Uau! Última pergunta, Julian. Quando você pensa so-bre o futuro, você acha que será mais como o “Big Brother” exercendo mais controle, com mais segredos ou nós obser-vando o “Big Brother”, ou tudo isso acontecerá, nos dois sentidos?JA: Eu não estou certo de como será. Há pressões enormes para harmonizar a legislação da liberdade de expressão e a legislação da transparência ao redor do mundo - dentro da comunidade europeia, entre a China e os Estados Unidos. Qual caminho vai tomar? É difícil ver. É por isso que hoje é um bom momento para se viver. Porque com apenas um pouco de esforço nós podemos mudar de um jeito ou de outro.CA: Bem, parece que eu estou refletindo a opinião do públi-co ao dizer, Julian, tenha cuidado e desejo todo poder para você.JA: Obrigado, Chris (CA: Obrigado.)

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BR

AS

ILSENHORA APARECIDAA madona negra brasileira

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Como uma pequena imagem quebrada, encardida, pescada no rio, tornou-se a santa padro-eira do País e tem sido capaz de atravessar séculos inspirando uma devoção que atrai anual-mente 7 milhões de romeiros ao maior centro de peregrinação da América Latina? Em busca de respostas que ultrapassam as

fronteiras da religiosidade, a psicoterapeuta jun-guiana se entregou de corpo e alma à pesquisa do

que ela considera um dos grandes mitos brasi-leiros: Nossa Senhora da Conceição Aparecida.Sua busca resultou no livro Aparecida do Bra-sil, a Madona Negra da Abundância, lançado pela Editora Paulus.

Com a emoção que move os buscadores, o olhar perspicaz da mestra e doutora em psico-logia clínica, a experiência de mais de 30 anos de consultório e os conhecimentos reunidos em inúmeros estudos sobre os símbolos sagrados do feminino, Lucy seguiu os passos de Apare-cida. Viajou no tempo, recompondo o cenário político, social e econômico no qual emergiu a padroeira. Seguiu o rastro da Madona Negra indo em busca de diversas manifestações do seu arquétipo. No Havaí, fez contato com Pele, a deusa dos vulcões. Na Suíça, se emocionou com a Madona de Einsiedeln, e do mesmo modo com a Madona de Czestochowa, na Polô-nia, e Nossa Senhora de Guadalupe, no México.

Em seu consultório em Goiânia (GO), onde viveu até falecer a 26 de agosto de 2011, Lucy se empolgava ao revelar os muitos significados do mito de Aparecida. Os olhos de um verde pro-fundo, normalmente tranquilos, se agitavam. Os cabelos e a pele acobreados ganhavam ainda mais vida. Os braços da autora de Dance e Re-crie o Mundo assumem gestos largos. Apareci-da, ensina Lucy, nos adverte sobre a necessida-de de cuidar melhor dos nossos recursos

C

lucy penna, autora de aparecida do brasil, a madona negra da abundância, explica os significados do mito de nossa senhora e conta como ele está ligado ao sagrado feminino. lucy penna infelizmente faleceu em goiânia, poucos meses depois desta entrevista. psicoterapeuta de linha junguiana, foi uma grande pesquisadora de mitos brasileiros e seus significados

enTreVIsTa a: andIara MarIa

hídricos e nos indica como curar as feridas da alma coletiva brasileira e tornar mais íntegro o caráter nacional, pondo fim à corrupção e às desigualdades sociais para que tenhamos, enfim, abundância.

Você estuda o feminino sagrado há mais de 3 déca-das e, em 1996, já havia abordado o milagre e Apa-recida em uma pesquisa sobre as divindades femi-ninas do Brasil. Seu interesse pelo tema nasceu ali?

Sim, na época eu me debrucei sobre Aparecida e a questão do sagrado feminino, mas essa fase teve uma intermitência, logo eu já estava estudando outros temas. Conscientemente não estava ligada em Aparecida. O que me levou de volta a ela foram algumas viagens. No Havaí, por exemplo, tomei contato com Pele, a deusa dos vulcões. Era uma completa novidade para mim. Foi algo que ficou no meu inconsciente fazendo uma teia. Mais tarde, na Inglaterra, comprei vários livros, entre eles A Madona Negra, de Ean Begg. Ele teve to-das as profissões do mundo e, já no fim da vida, foi fazer um curso de formação junguiana e se interessou pelo assunto.

Ele levantou 450 Madonas Negras cristãs, no eixo da Euro-pa e dos países de língua inglesa. No livro dele há um trecho sobre Aparecida e, quando percebi, estava profundamente atraída pela figura da Nossa Senhora Aparecida do Brasil, sendo que eu não era devota.

Isso motivou sua pesquisa?

Não. Eu já morava em Goiânia e, quatro anos atrás, de re-pente, acordei pensando em Aparecida, me senti motivada a me debruçar sobre ela e comecei a pesquisa.Você trata Aparecida como um mito brasileiro. O que confe-re a ela esse caráter?O mito é um sonho coletivo e o Brasil sonhou com a Madona Negra, que apareceu e foi chamada Aparecida.

Sonhou como? Ela é uma cocriação nossa, porque os outros fatores são mis-tério, fazem parte do mistério. Por que ela é um sonho nos-so? Tentei entender isso levando em conta as condições so

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BasílICa de nossa senhora apareCIda, apareCIda sp

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rIo paraíBa do sul

ciais, históricas e antropológicas que faziam parte da psique das pessoas naquela hora. Qual era o estresse, o anseio e o sofrimento delas, qual era aquela condição que daria, em ter-mos da psique, a descoberta de uma fonte de misericórdia, de uma fonte de alívio e de proteção. Elas eram totalmente deserdadas ali, e não só os escravos. Todos estavam abando-nados pelos órgãos públicos.

Todos sabem que a imagem de Aparecida foi pes-

cada aos pedaços no rio Paraíba, mas pouca gente conhece os detalhes da história.

Os pescadores estavam angustiados, porque eram conside-rados bons a ponto de receber a encomenda de pescar parte do banquete em homenagem ao conde de Assumar, o novo governador da província de São Paulo e Minas Gerais, que passava pela Vila de Guaratinguetá, com uma comitiva de quase 500 pessoas. Você imagina, tinha de ter muito pei-xe. Eles passaram a noite pescando. Navegaram pelo rio e não pescaram nada. Mas João Alves, seu pai, Domingos, e seu tio Felipe não desistiram, apesar do cansaço. O rapaz foi quem apanhou primeiro o pedaço do corpo e, depois, a cabeça. Isso sempre me intrigou. Como é que a água do rio está passando e vem um pedacinho da cabeça da santa? O que é isso? De onde vem? Isso é um mistério. E esse é o lado do mistério que acho apaixonante.

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sanTuárIo de apareCIda

luCy penna, auTora de apareCIda do BrasIl, a Madona negra da aBundânCIa, explICa os sIgnIfICados do MITo de nossa senhora e ConTa CoMo ele esTá lIgado ao sagrado feMInIno

Existe ainda o detalhe de que, depois que ele encon-trou a santa, a pesca foi abundante.

Esse é o milagre.

Qual é o simbolismo dessa história: um pescador joga a rede e pesca o corpo e, depois, a cabeça de uma imagem, num rio caudaloso. Ao unir as duas partes, percebe que é uma Nossa Senhora negra...

O simbolismo pode ser visto em vários níveis. Naquela hora, ela foi identificada como uma santa católica. Eles não sabiam qual era a Nossa Senhora e a chamaram Aparecida. Apare-ce, Aparecida! Não havia esse nome no Brasil nem registro civil de alguma mulher batizada com esse nome. Também não era nenhuma santa de igreja até aquele momento. En-

tão ocorreu a circunstância, a ânsia de eles acreditarem no milagre para salvar sua sobrevivência. Foi nessa condição que nasceu o mito. O mito se torna um sonho coletivo, mas na sua origem pode ter ocorrido com um grupo pequeno de pessoas ou, às vezes, uma pessoa que teve uma experiência que a gente conhece como sendo o encontro com o mistério, uma experiência luminosa, como quem pensa: “Hum, en-tendi! Pesquei uma santa quebrada, mas é uma santa e ela vai nos ajudar.” Aí vem o mistério, a rede cheia de peixes. E a conjuntura começa a sair do controle racional, porque várias pessoas se aproximam daquele evento e dizem: “Aqui tem um toque de mistério. Vamos rezar, vamos pedir.”

Surge uma santa negra, num país onde reinava a escravidão, e, de repente, todos começam a cultuar a imagem.

Mas eram os negros, os mamelucos, os indígenas e os mu-latos que estavam com ela. Demorou dez anos para que o pároco da cidade se interessasse. E temos de perguntar: por que essa história não acabou? Por que não foi sufocada e, apesar dos ataques que ainda sofre, por que a crença se espalhou pelo Brasil inteiro? Diante de um mito, é preciso avaliar o contexto histórico. Ele pega uma amplitude da psi-que coletiva, portanto, da cultura daquele momento, e não só daquele local, mas da cultura do país. A partir disso, passa a ser vivido pelas pessoas como se fosse um ser vivo que res-pira com elas. Assim, Aparecida vai se tornando padroeira daquele lugar, padroeira do Brasil. Ela está dentro de nós e, ao mesmo tempo, é um ser psíquico que extrapola as nossas mentes, porque senão teria morrido quando acabou aquela geração que viveu a escravidão. Nós estamos a três séculos disso!

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papa franCIsCo, deVoTo de apareCIda, BeIJa a IMageM da sanTa

Você defende a tese de que Aparecida é uma mani-festação do arquétipo da Madona Negra. Como fun-ciona esse arquétipo que se manifesta tanto em um país mestiço, como o Brasil, quanto em países de raça caucasiana?

É assim mesmo, estranho. O impacto que tive na Suíça ao conhecer a Abadia da Madona Negra de Einsiedeln foi enor-

me. O local é um centro de peregrinação que inspira a devo-ção de católicos e até mesmo de protestantes. Lá, você mer-gulha num simbolismo mais profundo que ultrapassa a cor da pele, aqui no Brasil bastante vinculada à escravidão. Per-cebe que esse negro é também a noite de onde emerge tudo o que é criado. Dentro de uma amplificação possível nessas condições, esse é o negro do útero da terra. As Madonas Negras têm uma relação muito interessante com Gaia, com a própria Terra, com o próprio planeta. Essa imagem do femi-nino parindo tudo. A Madona Negra é uma formulação da Grande Mãe Terra.

O que as Madonas Negras têm em comum, além da cor?

A Madona Negra traz uma espécie de conteúdo encontrado inclusive em madonas anteriores ao cristianismo, no sentido da relação com nossos instintos básicos; portanto, da relação com a sobrevivência, da relação com a criação, com a ferti-lidade do planeta e da mulher. E, numa forma mais ampla, com a criatividade, com a capacidade de inventar, de se criar maneiras não apenas de sobreviver, mas também de evoluir. Há uma circunstância muito interessante nos lugares mais pesquisados por mim, como a Polônia, a Suíça, o México e o Havaí: a crise social de identidade daqueles povos. Nes-ses momentos de crise social, se ela não emergiu, emerge. E, quando emerge com essa força telúrica, ela representa a capacidade do povo de se reorganizar e lutar pela própria identidade. Há uma crise de identidade ameaçando a consti-tuição do povo.

Qual era a crise que o Brasil atravessava quando a santa foi encontrada?

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A nossa mestiçagem. Há um dado que acho importante: ela não caiu negra no rio, mas colorida. Era policromada e teria ficado tanto tempo dentro do rio a ponto de embeber-se de uma mistura de lodo. Maria Helena Chartuni (a artista plás-tica que restaurou a imagem da santa depois que ela foi rou-bada e quebrada, em 1978) me disse: “Lucy, os resquícios de cor estavam dentro de alguns dos fragmentos que me trou-xeram.” Antes se imaginava que alguém a tivesse esculpido negra para significar que era a Nossa Senhora dos escravos. Aí entra mais uma dose de mistério, porque foi a água do rio que a deixou negra.

Está claro que Aparecida é uma metáfora da alma negra do Brasil. Mas, além disso, existe o fato de que ela emerge das águas, assim como outras divin-dades femininas brasileiras.

Em Aparecida, o que me chama a atenção é que ela emerge do rio e, aos poucos, descubro que ela foi cocriada pelo rio. Aqui já se tem uma condição que surge com a água, a água criando a imagem de Aparecida como nós a conhecemos. E isso dentro de um rio que se tornou de grande importância econômica e social para aquela região. Pela nossa grande abundância de água, temos madonas brasileiras envolvidas com os rios e com o mar, de norte a sul. A qualidade da inte-ração que nós temos com as águas é que precisa agora rece-ber uma atenção mais cuidadosa. As águas falam para a nos-sa psique, se comunicam conosco no nível subliminar. São poderosas. Aparecida emerge do rio para nos mostrar que a água não é silenciosa e, como a nossa psicologia está voltada para esse feminino das águas, ela representa a maternidade das águas. As águas vivas nos têm e vão nos parindo o tempo

inteiro. Uma das fontes para essa minha compreensão da parição das águas (parição, não aparição!) é o mito dissemi-nado na Amazônia inteira de que o povo das águas, como são chamados os indígenas, veio de uma transformação de seres que habitavam dentro dos rios.

Os índios Carajás, do rio Araguaia, têm o mesmo mito. Antes de serem homens eram peixe, o arua-nã.

É isso!

De certa forma, essa é a teoria científica, a vida co-meçou nas águas.

Sim. Então, você vê um dado do inconsciente coletivo uni-versal com a vestimenta que ele tem para nós. As águas sig

21/36OáSIS . braSil floresTa VIrgeM às Margens do rIo paraíBa do sul, graVura de deBreT

nificam símbolos de uma natureza profundíssima enquanto origem, transformação e regeneração. E Aparecida resume tudo isso numa figura humanizada.

Qual seria a mensagem de Aparecida emergindo das águas?

Considerar a água um ser vivo. Cuidar com sabedoria dos nossos recursos hídricos.

É uma mensagem bem atual, mas e naquele mo-mento histórico?

Naquela hora, o que ficou mais evidente em Aparecida foi a identidade pela cor. A paixão por uma Nossa Senhora que parece a mãe negra da gente. Nessa fase ela é o ouro negro, que virou ouro preto, a grande protetora de quem buscava o

ouro. Ele movia a economia na época, e, por conseguinte, o peixe, a sobrevivência. Hoje, nós não a vemos mais só assim. Vamos dando conotações diferentes para a mesma imagem.A questão de ela ter vindo sem cabeça, por exemplo, até ago-ra nunca foi levantada. Mas não é ao acaso que Aparecida vem com a cabeça quebrada. Eu, que trabalho em psicologia com o corpo, dentro da noção junguiana do que é uma inte-gridade, digo: corpo e cabeça são pares de opostos.

E você dá vários significados para esses pares de opostos.

Faço uma listinha, porque isso é muito complexo. Hoje, estamos dando uma conotação bem profunda da busca da integridade, isso quer dizer caráter, caráter íntegro.

No mito de Aparecida, cabeça e corpo cortados re-presentam uma fragmentação da alma brasileira?

Em primeiro lugar, não entendi isso sozinha. Entendi estu-dando outros autores brasileiros que, de certa forma, estão aí mencionados, como o Sérgio Buarque de Holanda, o Ro-berto Gambini e o diplomata Meira Pena, que se debruçou sobre o povo brasileiro. Aparecida representa a divisão que nós temos entre uma herança materialmente trazida pelos europeus, no sentido de uma civilização racional e baseada na ordem e no progresso, e uma herança indígena em que a lógica era outra, a organização era outra. Os povos indíge-nas acreditam que tudo no universo tem alma – as pedras, as plantas, os animais, não só as pessoas – e procuram viver em consonância com esses elementos. O mundo europeu tinha perdido essa visão animista e adquirido outra, que nós caracterizamos como cristã e também científica. Não se vê a

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Madona do pIlar, Madona negra de CharTres

nossa senhora de MonTserraT, Madona negra da CaTalunha

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alma das coisas dentro da ciência. É essa característica que hoje parece estar como uma espécie de grande desafio, “me decifra ou eu te devoro”, dentro da nossa personalidade en-quanto povo. Ou seja, nós vamos ter progresso e ordem neste país sacrificando totalmente o outro lado, o lado que reve-rencia e respeita a natureza, curte essa natureza exuberante do País, o lado que gosta da sexualidade, gosta de festa?

Mas você também analisa a divisão entre cabeça e corpo em um contexto bem político.

Cabeça enquanto governo, corpo enquanto nação. Realmen-te, a nação é como o corpo de um ser e o governo deveria ser a cabeça, capaz de organizar. Mas no Brasil, no momento, eu vejo uma separação impressionante. A abundância só vai acontecer quando o corpo e a cabeça estiverem unidos.

Cabeça e corpo continuam separados como há 300 anos?

Sim! Digo que o Imposto de Renda hoje é uma continuação piorada do quinto que o conde de Assumar veio cobrar aqui. Aliás, é até maior, não é nem um quinto, é um terço, se não for mais. E a gente não sabe para onde vai o dinheiro. Então, o corpo e a nação de um lado e o governo e a cabeça de outro continuam tão afastados quanto no tempo do Brasil Colônia. É preciso assumir: “Tenho cabeça e corpo, então eu vou me administrar.” No plano da democracia, não é mais admissí-vel dúvida, nós temos de nos governar. Cada um de nós. Essa associação provoca dois tipos de comportamento que ten-to caracterizar: 1º) “Não confio no governo.” 2º) “Digo que não confio, mas, se puder, quero estar lá e, quando estiver, esqueço tudo o que ficou lá trás.” As dificuldades que enfren-

tamos como povo, como nação, de dar às coisas começo, meio e fim, fazer projetos e terminá-los são tão grandes que me levam a dizer: “Puxa vida, Aparecida daqui a pouco vai sofrer outro ataque, vai se despedaçar toda.” Porque ela está representando o despedaçamento dentro de nós.

Você tocou em um ponto interessante: essa ima-gem já foi vítima de vandalismo duas vezes. Por quê?

Muito mais. Só se fala de dois ataques porque foram mais bem documentados. É a mesma coisa que acontece quando, por exemplo, eu estou vivendo uma crise, passando uma si-tuação difícil e aí tropeço na rua e torço o tornozelo, quebro uma perna. Seria um momento para eu parar e refletir um pouco. Como é que estou andando? Para onde estou indo? Como pessoa, isso é possível, mas, como povo, precisamos nos educar, falar e discutir muito e encontrar maneiras co

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deusa pele, dIVIndade do VulCão, haVaí

muns de compreensão. Isso, enquanto o corpo de uma nação precisa de educação, e muita educação. Conhecimento.

De acordo com o mitólogo norte-americano Joseph Campbell, que você cita no livro, o mito tem quatro funções: espiritual, filosófica, sociológica e pedagó-gica. Quais seriam elas no caso de Aparecida?

A função pedagógica do mito diz o seguinte: enquanto você tiver a cabeça separada do corpo, você não tem fartura na vida. Cabeça significando capacidade de organização, pre-visão de recursos, planejamento, direção de vida. O corpo significando a força de trabalho, a alegria de viver e o gosto de saber que eu estou fazendo porque gosto de estar com as pessoas na fartura, na abundância. Alegria! Principalmente alegria de viver, e a sexualidade está dentro disso.

Já a função sociológica, mais ligada à cor de Aparecida, significa: precisamos aceitar de verdade a nossa morenice. Aparecida aponta para o perigo da dissociação coletiva por conta da discriminação. Nós temos sim, dentro de nós, uma inaceitação da nossa morenice. Somos um povo marrom! De várias tonalidades, do escuro ao ocre dourado. Então, essa já é uma questão ligada com a nossa sociologia e, portan-to, com a evolução de indígenas e de descendentes afros na sociedade galgando postos, como Marina Silva, descendente negra dentro de uma candidatura à Presidência.

E a função espiritual?

Para mim, ela significa um alcance metafísico no seguinte sentido: a relação do feminino é a relação da escuta do mis-tério, da escuta mais atenta de poderes transcendentes que atuam nesse planeta, atuam no Sistema Solar e em outras esferas maiores que nós, seres humanos; comunicam com ondas magnéticas, e outras ondas que ainda não desco-brimos, informações importantíssimas para que saibamos quem somos, de onde viemos e para onde vamos.O feminino é capaz de abrir, acolher esse tipo de informa-ção ainda não decifrado. Ele se traduz por essa qualidade da alma humana de poder, sejamos homens ou mulheres, rece-ber uma informação que não decodificamos imediatamente no racional, mas sentimos que ela nos transforma. O feminino no mundo, como abordagem do real, é essa abordagem que torna o visível e o invisível comunicantes. Primeiro, aceita o invisível como real também. Por que real? Porque me atinge, me modifica, me comove e me estimula. A função espiritual do mito Aparecida é a aceitação de um feminino sagrado que, neste país, fala em todos os recantos, simbolizando a integração necessária para a evolução da

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consciência coletiva do Brasil, no sentido de maior igualda-de, solidariedade e criatividade.

O mito atua na psique coletiva independentemente da compreensão que se tem dele?

Ele atua tão forte na psique inconsciente da maior parte das pessoas que o mito Aparecida permanece vivo até hoje. Agora, cutucando meus colegas psicólogos, nós estamos no Brasil tentando formar a nossa cabeça, estudando mitos que foram vivos para povos do outro lado do mundo. Formidá-vel! Fantástico! Já fiz esse caminho. Mas é preciso outro es-quema para entender quem somos nós aqui, onde estamos. A gente deve parar de estudar deusas gregas, romanas e não sei mais das quantas e passar a estudar os nossos mitos, que são extremamente valiosos.Prestaríamos um serviço de utilidade pública. Porque isso representa uma terapia socializada, vamos dizer assim. Te-mos de nos apoiar nos mitos da nossa gente. Eu cito o Macu-naíma, mas há muitos outros que representam essa criação das questões da nossa psique, como os sonhos coletivos de grupos. E o que são sonhos coletivos? Estão representando o quê? Os nossos anseios frustrados, a nossa sombra, que são nossas dificuldades, como encostar o corpo, ser meio malan-drinho, preguiçoso e assim por diante. É preciso que a gente se valorize. Nós criamos esses mitos.

Por fim, como uma imagem tão pequenina tem ta-manha força? Você já encontrou uma resposta?

Tem um mistério. Nós nos debruçamos sobre o mistério não para obter respostas, mas para fazer outras perguntas.

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CARA DE PEIXEA face mais antiga da história

OáSIS . aniMal

lhe bem a imagem ilustrativa que abre esta matéria. Depois, olhe-se no espelho. Não existe uma certa semelhança? Para os biólogos evo-lucionistas, nós humanos e o Ente-lognathus primordialis - um peixe primitivo que viveu no período Paleozoico - compartilhamos uma característica somática fundamen-tal: a forma da mandíbula.

Essa criatura aquática viveu numa área pró-

xima à China atual entre 450 e 415 milhões de anos. Ela é o mais antigo animal a possuir um aparelho bucal semelhante ao dos mo-dernos vertebrados, entre eles o homem.

Ele tem a nossa mesma boca

Um fóssil perfeitamente conservado desse proto peixe que remonta a 419 milhões de anos foi descrito pelo paleontólogo Min Zhu, membro do Instituto de Paleontologia e Pa-leoantropologia dos Vertebrados, órgão da Academia Chinesa de Ciências, em Pequim, em artigo publicado na revista Nature.

O fóssil apresenta o característico sistema ósseo composto de três elementos ainda hoje O

O que existe em comum no nosso sorriso e no de um antepassado dos peixes, hoje extinto? muito mais do que se possa imaginar à primeira vista. um fóssil de animal aquático encontrado na china remete para trás a origem do aparelho mastigador dos vertebrados

por: equIpe oásIs

uM deTalhe do fóssIl MosTra a parTe superIor “enCouraçada” da CaBeça, a BoCa e a MandíBula. foTo: MIn Zhu / naTure

IlusTração do enTelognaThus prIMordIalIs

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usado pelos vertebrados para mastigar: um osso maxilar inferior (a mandíbula) no qual se assenta a arcada dentá-ria, e dois ossos superiores: o pré-maxilar, no qual estão inseridos os dentes incisivos, e o maxilar, que contem os dentes caninos e os molares. Nos mamíferos (homem in-cluído) os dois ossos superiores encontram-se fundidos.

A disposição desses ossos é substancialmente a mesma dos modernos vertebrados: a do Entelognatus seria, por-tanto, a primeira “cara” com as características que esta-mos habituados a associar a ela. O desenvolvimento de uma mandíbula poderosa representou um passo funda-mental na evolução dos vertebrados. Os primeiros peixes ósseos a desenvolveram, provavelmente, para melhor capturar presas maiores e mais rápidas.

Uma árvore genealógica complicada

O Entelognathus primordialis pode ter sido um mem-bro atípico da classe dos placodermos, antepassados dos peixes que rondavam nos oceanos entre 430 e 360 mi-lhões de anos, quando na Terra ainda existia um único continente chamado Gondwana. Esses animais, caracte-rizados por uma verdadeira armadura óssea ao redor da cabeça e do tórax, possuíam uma mandíbula de estrutura primordial composta de poucas e amplas placas ósseas (e não de uma complexa estrutura de ossos menores como acontece no caso dos modernos peixes ósseos.

Dos placodermos se originaram os peixes cartilagino-sos (como os tubarões) e os demais peixes que possuem esqueleto ósseo. Até agora acreditava-se que as caracte-rísticas faciais dos placodermos tivessem se perdido no decorrer da evolução, e que o último antepassado comum aos vertebrados de hoje fosse mais parecido com um tu-barão primitivo, com um esqueleto cartilaginoso coberto, no máximo, de pequenas placas ósseas.

O fóssil encontrado na China, no entanto, é uma espé-cie de híbrido que reúne muitas características dos pla-codermos (como o corpo encouraçado, que os tubarões não possuem) e também alguns traços somáticos dos vertebrados modernos, como a existência de mandíbula. A origem da forma do nosso rosto terá de ser, portanto, remetida para trás no tempo, à época desse animal pré--histórico possuidor de uma mandíbula gigante.

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MIn Zhu CIenTIsTa ChInês

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reConsTrução do enTelognaThus prIMordIalIs

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IALER BONS LIVROSMelhor forma para manter a mente ativa

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habilidade de se conectar com as emoções dos outros, in-tuindo as suas convicções e antecipando os seus desejos, é conhecida como importante teoria da mente. Alguns pes-

quisadores da New School for Social Re-search em Nova York quiseram verificar se a experiência de leitura de situações literárias desenvolvidas em romances com

personagens complexos e de personalida-de multifacetada efetivamente melhora a nossa capacidade de entrar na pele do próximo.

Os cientistas recrutaram três grupos de voluntários que se dedicaram a três tare-fas diversas: o primeiro grupo teve de ler textos narrativos de alta qualidade, todos eles agraciados com o prestigioso prê-mio literário norte-americano National Book Award; o segundo teve de ler tre-chos de bestsellers vendidos online (his-tórias com personagens bastante “rasos” inseridos em situações de sabor popular e mundano); ao terceiro grupo nada foi dado para ler.

A todos, depois, foi solicitado identificar as emoções escondidas atrás de algumas expressões faciais: um teste de empa-tia no qual os que tinham lido romances mais “empenhados” obtiveram claramen-te os melhores resultados.

Os livros são necessários

O estudo dos resultados estimulantes deixou, no entanto, algumas dúvidas em suspenso: quais são, por exemplo, as si-tuações contidas no fio narrativo que fa

A

se você for um leitor voraz, sua mente não será a única beneficiária. Os efeitos positivos do hábito da leitura provavelmente recairão também sobre os seus amigos e seus familiares. ler, particularmente livros de narrativa, pode melhorar nossa capacidade empática, como demonstra recente estudo norte-americano.

por: equIpe oásIs

zem – realmente – a diferença? Pode ser, perguntam alguns pesquisadores, que se trate simplesmente do maior esforço cognitivo empregado para enfrentar uma leitura “culta” o fator que incrementa também as capacidades relacionais.

A pesquisa, de qualquer modo, ressalta a importân-cia de se viver no seio de uma comunidade que pro-mova a leitura. Ler, sem dúvida, melhora as capaci-

dades empáticas da pessoa.

Os “ratos de biblioteca” permanecem jovens Outra importante pesquisa, também norte-america-na, soma-se à que foi comentada acima e demonstra que a leitura e a escritura mantêm à distância o es-pectro da deterioração cognitiva.

Confirma-se pela enésima vez que a natureza não perdoa: no mundo natural, que é o mundo em que

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vivemos, tudo aquilo que não é usado apodrece ou se deteriora. No plano humano, essa verdade vale para todos os níveis da nossa existência: físico, sexual, emocional, mental, etc.

Se para evitar a deterioração do corpo físico existem as longas caminhadas, as piscinas, a ioga e a ginás-tica, para manter o cérebro em ação e bem treinado nada é melhor do que a prática diária da leitura e da escritura. O hábito de desafiar o cérebro com ativi-dades estimulantes afasta e retarda o surgimento dos

processos de declínio cogni-tivo. Isto é o que revela um amplo estudo norte-america-no publicado na revista Neu-rology. Esses resultados con-firmam aquilo que o senso comum já conhece há muito tempo.

Pensamento e memória

O estudo foi desenvolvido por um grupo de pesquisadores do Rush University Medi-cal Center de Chicago. Esses neurocientistas monitoraram, através de uma bateria de testes, as atividades de pen-samento e memória de 294 indivíduos de idade avança-da. Os voluntários, que foram seguidos durante cerca de 6

anos, tiveram de responder um questionário a res-peito dos seus hábitos de leitura e de escritura du-rante a juventude, a idade adulta e a velhice.

Depois da morte dos voluntários, acontecida a uma idade média de 89 anos, os cientistas examinaram através de uma autopsia os seus cérebros para iden-tificar sinais fisiológicos de demência, como lesões, placas e aglomerados neurofibrilares (depósitos pro-teicos que se acumulam sobre as fibras nervosas). Tais anomalias são muito comuns em pessoas de

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idade avançada e podem causar importantes défi-cits de memória e de cognição. Nos pacientes que sofrem de Mal de Alzheimer essas placas, devido a uma proteína chamada betamiloide, se depositam progressivamente sobre os neurônios tornando-os incapazes de transmitir impulsos. Alguns pesqui-sadores creem que esse mesmo processo pode ser uma das causas prováveis de doenças escleróticas e autoimunes como a esclerose múltipla.

Diferenças impressionantes

Os pacientes acostumados às atividades intelectivas mostraram uma taxa de declínio cognitivo 15% mais lenta em relação a quem cultivou menos os hábitos de ler e escrever.

Em particular, ficou evidente que manter um alto rit-mo de leitura até mesmo em idades avançadas reduz o declínio da memória de 32% em relação à norma. Quem, ao contrário, abandona (ou quase abandona) o hábito de ler e escrever com o passar dos anos, cor-re o risco de uma piora da memória 48% mais rápida do que os que se mantêm ativos e em treinamento. Os dados foram ajustados também com base nas di-versas quantidades de placas e aglomerados encon-trados durante as autopsias. Em outras palavras, ao lado dos fatores físicos que causam demência senil, calculou-se também o peso da atividade cognitiva na prevenção e deterioração das faculdades cerebrais.

“A pesquisa confirma que tudo aquilo que, instinti-vamente, os muitos familiares proporcionam a seus

doentes de Alzheimer funciona realmente para im-pedir ou retardar o avanço da doença”, comenta a médica Patrizia Spadin, presidente da Associação Italiana para a Doença de Alzheimer. “Claro – con-tinua Patrizia Spadin – a atividade ‘formal’ de re-abilitação cognitiva conduz a resultados mensurá-veis e comprovados. Mas também encontrar-se com amigos, dar um passeio, viajar, praticar um esporte, ler um bom livro, fazer palavras cruzadas e comer de modo sadio, além de influenciar positivamente o estado de humor, beneficia as células cerebrais e, portanto, a mente. Para quem se sente impotente em face de uma doença tão devastadora como a demên-cia, é fundamental saber que essas armas existem, funcionam e devem ser usadas na batalha contra a deterioração cognitiva.

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