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Entrevista com o maestro João Omar de Carvalho Mello Em entrevista exclusiva ao coqui, o Maestro João Omar de Carvalho Mello fala da sua ligação com a música e das convergências e divergências em relação à “arte sertaneza” Aldy Carvalho* André-Kees de Moraes Schouten** Ely Souza Estrela*** 28/04/2003 Nascido numa família de músicos – é filho de Elomar Figueira Mello e primo de Eugenio Avelino (Xangai) –, o maestro João Omar cresceu entre instrumentos e cantorias. “Via meu pai tocando. Vários artistas passavam por nossa casa e eu assistindo àquilo tudo! Luiz Gonzaga toda vez que passava por Vitória da Conquista ia à nossa casa. Chegava lá com sua sanfona, tocando, era uma festa, e eu ficava lá olhando…” A mãe, Dona Adalmária, percebendo a inclinação do filho para música, matriculou-o no conservatório, junto com os irmãos João Ernesto e Rosa Duprado. O futuro músico não se adaptou aos métodos antiquados que o conservatório musical de Vitória da Conquista praticava naquela época. Ele queria um método vivo, algo que sintetizasse a melhor teoria com a prática inovadora. Não o encontrando João Omar flertou com a arquitetura. Em 1986 definiu-se definitivamente pela música, prestando vestibular para regência na Universidade Federal da Bahia. Na mesma universidade cursou a pós-graduação, recebendo o título de mestre com a defesa da dissertação: “Variações motívicas como princípio formativo: uma análise fraseológica da peça Dança do Ferrão do compositor Elomar Figueira Mello”. O jovem maestro João Omar é bastante cioso do seu trabalho e muito ligado às raízes culturais da vida “sertaneza”. Parece introvertido mas, vencida a cerimônia das apresentações, mostra-se um proseador de mão cheia, como

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Entrevista Com o Maestro João Omar de Carvalho Mello

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Entrevista com o maestro João Omar de Carvalho Mello

Em entrevista exclusiva ao coqui, o Maestro João Omar de Carvalho Mello fala da sua ligação com a música e das convergências e divergências em relação à “arte

sertaneza”

Aldy Carvalho*André-Kees de Moraes Schouten**

Ely Souza Estrela***

28/04/2003

 

Nascido numa família de músicos – é filho de Elomar Figueira Mello e primo de Eugenio Avelino (Xangai) –, o maestro João Omar cresceu entre instrumentos e cantorias. “Via meu pai tocando. Vários artistas passavam por nossa casa e eu assistindo àquilo tudo! Luiz Gonzaga toda vez que passava por Vitória da Conquista ia à nossa casa. Chegava lá com sua sanfona, tocando, era uma festa, e eu ficava lá olhando…”A mãe, Dona Adalmária, percebendo a inclinação do filho para música, matriculou-o no conservatório, junto com os irmãos João Ernesto e Rosa Duprado. O futuro músico não se adaptou aos métodos antiquados que o conservatório musical de Vitória da Conquista praticava naquela época. Ele queria um método vivo, algo que sintetizasse a melhor teoria com a prática inovadora. Não o encontrando João Omar flertou com a arquitetura.Em 1986 definiu-se definitivamente pela música, prestando vestibular para regência na Universidade Federal da Bahia. Na mesma universidade cursou a pós-graduação, recebendo o título de mestre com a defesa da dissertação: “Variações motívicas como princípio formativo: uma análise fraseológica da peça Dança do Ferrão do compositor Elomar Figueira Mello”.O jovem maestro João Omar é bastante cioso do seu trabalho e muito ligado às raízes culturais da vida “sertaneza”. Parece introvertido mas, vencida a cerimônia das apresentações, mostra-se um proseador de mão cheia, como todo bom sertanejo. A entrevista que segue foi tomada em São Paulo, em 28 de abril de 2003, entre um gole e outro de café e muitas risadas…

 

Ely – Você nasceu em Vitória da Conquista?

João Omar – Nasci em Vitória da Conquista. Na minha casa era assim, de vez em quando aparecia Dércio Marques com um monte de instrumentos: charangos, violões de seis, dez cordas e tal. Dorothy tocando tambor… Então, inevitavelmente eu estava cercado de músicos. Em 1981 – eu até estudava música – Arthur Moreira Lima, Heraldo do Monte e Paulo Moura estiveram lá para fazer o ConSertão. Eles estavam afinando um piano e eu e meu irmão lá, dando opinião: Não, esta nota está mais baixa, está mais alta… E o Arthur com um aparelho de freqüência afinando as notas… O Arthur nos apelidou de “os muriçocas”.

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Ely -Quanto anos você tinha?

João Omar -Uns onze anos.

Aldy -Então, você tinha o ouvido absoluto?

João Omar -Que nada rapaz. Um professor meu disse que meu ouvido absoluto não serve para absolutamente nada!

Aldy- Então era intuição?

João Omar – Era. A gente dava palpites. Minha mãe percebendo que a gente tinha tendência musical, botou a gente no conservatório. Os conservatórios do interior são muito ruins. O de Vitória da Conquista realmente era muito deficiente. As aulas de violão não deram certo. Então a gente foi estudar piano com uma prima, mas eu não consegui me adaptar ao sistema de ensino. Fugia da aula. Como eles ensinavam flauta também, comecei a aprender flauta doce. A partir daí, eu saia tocando com meu pai e tal. Fui desenvolvendo na flauta e queria ser flautista. Aos doze anos, achava que eu seria flautista, mas nunca me chegou a flauta dos sonhos, a flauta de ouro, brilhando assim como num sonho. A flauta que eu tinha era limitada em extensão e a transversal eu sabia que tinha mais recursos. Como não chegou a flauta esperada acabei por desinteressar. Nessa época lá em casa tinha um violão caído lá pelos cantos – acho que foi Marcos Pereira que deu para meu pai. Então, comecei a tocar. O violão tem o sistema muito diferente do piano. Eu e meu irmão perguntamos a meu pai: “onde é o dó”. Meu pai nos ensinou, inclusive foi a única coisa que ele nos ensinou. “O dó é aqui”. O som saiu “tó…” Lá vai eu e o João Ernesto para desenhar todas as notas no braço do violão para a gente estudar. A gente queria destrinchar o violão. Em violão eu fui praticamente autodidata. Minha mãe sempre nos incentivou a estudar música, mas os conservatórios de lá não davam certo: ela botava e a gente saia…

Aldy -Vocês não se adaptavam ao método dos conservatórios…

João Omar – O método não me fazia absorver a música. A minha prima, por exemplo, tinha uma caneta que abria assim… esticava, virava uma antena. Ela botava o telefone no ouvido e mexia no dedo da gente falando… E a antena lá se mexendo… Eram aqueles métodos do Mário Mascarenhas… “Noite feliz…” Eu não agüentava. Aquelas notas: tcham tcham, tchim, tchim. Realmente, não conseguia enxergar música naquilo. Depois, optei por estudar apenas teoria musical. Mesmo assim era uma teoria que não tinha muita razão de ser. Eles não ensinavam a teoria essencial.

Ely – Algo vivo…

João Omar – Na Delta Laurousse colhi muito mais informação. Onde eu iria imaginar que na Delta Larousse havia muito mais informações do que nos livros que a gente tinha no conservatório? Na Delta era mais completo. Nós não sabíamos de (ininteligível: de nada talvez?), série harmônica, aliás, tanta coisa… Mesmo assim a gente insistia em estudar!

André – Coisas que, de certa forma, vocês já tinham da vivência. Nessa casa tão cheia de músicos e tal…

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João Omar – É muito estranho você estudar música no conservatório, através de revistas… Enquanto que em casa, eu tinha uma música viva…

Aldy – O método de ensino não despertava o interesse…

Ely – Você foi para o conservatório, estudou teoria musical, mas quando João Omar diz: eu quero ser músico?

João Omar – Eu tinha planos de fazer arquitetura. Gostava de geometria. Eu falei, acho que vou fazer arquitetura e tal. Mas estudando violão, violão clássico, eu percebia melhor minha inclinação, estudo esse que me foi muito penoso! Então, eu pedi para meu pai um método. Ele tirou do baú um método que foi de uma namorada. Ele tinha namorado uma empregada da casa de uma senhora que tinha um método muito bom. Era em espanhol. Ela pegou e deu para meu pai três livros. Dois sumiram, ficou só um. O primeiro volume: La Escuela de la guitarra. O livro estava caindo aos pedaços. Eu não podia passar as folhas rapidamente, caso contrário, elas podiam desmanchar em minhas mãos. O pior era que o método era em espanhol. Resolvemos traduzir o método. Eu e meu irmão fomos aos poucos destrinchando. Meu irmão desistiu na metade, mas eu segui até o final lendo todas as músicas. Depois, acabou. Acabaram as lições, cheguei ao final do método. Parece como se tivéssemos chegado ao fim do mundo, um mundo medieval: ali acaba o mar… Então não tem mais nada! Você fica assim: acabou e agora? Eu não tinha disco de violão, não tinha nenhum material a mais. Eu ouvi falar num tal de Segovia. mas era algo distante, inacessível, uma vaga informação.

Aldy – Elomar via vocês tendo essa atividade. O que ele falava?

João Omar – Nada. Pelo menos tinha uma coisa, ele nos ensinou o dó. Aliás, tem uma fotografia minha, do meu irmão e da minha irmã, tocando flauta doce. Estávamos os três, com os olhos “esbutecados”, olhando para ele com medo de errar… Dali eu fui saindo, tocando todas as músicas dele, as músicas de Xangai. Ele me incentivou à medida que me levava para tocar flauta doce. Eu tocava uns cinco números…

André – Com quantos anos?

João Omar – Nove anos. Então, a primeira viagem que eu fiz era para Brasília. Foi a viagem definitiva. Foi a primeira vez que viajei de avião. Foi até na Transbrasil. Cheguei lá no Parque, na época o Marcos Pereira, da gravadora Marcos Pereira, era vivo…

Aldy – Quando foi isso?

João Omar – Por volta de 1979. Então, ele estava lá no teatro. Eu tinha um bom reconhecimento, mas sabia que eu precisava de mais coisas. Eu precisava de uma flauta diferente. Minha flauta era reles e “lascadinha”. Eu tocava, mas não saía…

Ely – Essa foi sua primeira apresentação?

João Omar – Acho que a primeira foi numa rinha de galo com meus irmãos…

André – Em Vitória da Conquista?

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João Omar – Em Vitória da Conquista. Em Brasília me deram uma flauta de presente. Em vez da flauta de ouro, aquela sonhada, ganhei uma flauta de madeira, barroca. Essa flauta não saía o som, não tinha jeito. Eu tentava, e nada. Eu falei: “eu sou muito ruim em flauta”. Eu achava que eu fosse ruim de tocar. Então, deixei de tocar flauta e passei a tocar violão. Depois de muito tempo, eu peguei aquela flauta. Não saía nada mesmo. Era um instrumento de enfeite, não tinha como sair um bom som. Era pela falta de professor, não tinha quem ensinasse flauta. As professoras ensinavam escala, as notinhas e coisa e tal.

Ely – Essa experiência foi em Vitória da Conquista? E como era a relação com a fazenda de seu pai? Vocês passavam as férias lá?

João Omar – As férias eram na fazenda. Era um pouco terrível para gente, porque a fazenda era um ermo… Banho de cuia, candeeiro…

Ely – Vocês não curtiam?

João Omar – Olha, quem curte isso é quem não está lá. Quando a gente está lá não dá valor. Não percebe. Quando sai e volta, você vai perceber melhor o ambiente, no meio da coisa, você não percebe. Naquele tempo quem diz que eu via beleza em carregar balde com água para tomar banho?

Ely – Levando tombo de bode…

Aldy – Marrada de bode!

Aldy – Você concorda que a gente só percebe o sertão, e digo isso porque também sou sertanejo, quando a gente sai dele?

João Omar – Exatamente.

Aldy – Tanto as coisas bonitas, como as coisas mais diferentes, né?

André – Na primeira música do primeiro disco de seu pai, Violeiro, ele começa dizendo isso: “Vô cantá no canturi as coisa lá da minha mudernage/qui me fizero errante e violêro…”.

João Omar – Exatamente.

André – Na obra de seu pai, parece presente essa dicotomia. O sertão na obra dele só surge porque ele se opõe a metrópole tão nefasta. Tem essa tensão que só se percebe saindo…

João Omar – É. Olha só, isso é algo muito primitivo. Primitivo no bom sentido. Todo bicho tem de sair de casa, para constituir sua obra. Fazer seu ninho. Mas, no caso do artista que sai sem referência nenhuma, essa dicotomia aí existe. Ele sai…

André –Ele se constitui em oposição ao outro. E como é isso para você?

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João Omar – No meu caso há uma particularidade. No lar onde nasci a música já era pronta. Então, de certa forma, já tinha se cumprido isso. Meu pai já tinha saído, voltou e constituiu sua obra. Tanto é que eu tendia a ser muito mais instrumentista do que compositor. O instrumentista é intérprete. No caso, esse êxodo já tinha se cumprido. A volta para a caatinga era para reconhecer que o mundo é ali…

Ely – O rito de passagem já tinha se cumprido.

João Omar – Meu rito de passagem, na realidade, é por outro caminho. Eu não posso fazer o que já estava feito. Eu posso divulgar o que já está feito, que é belo. Vou retomar uma linha que ficou lá atrás, quando acabei o método de violão parece que eu tinha chegado ao final do mapa. Mas depois meu pai trouxe um disco do Turíbio Santos tocando umas peças medievais. Eu vi que se abriu uma porta para mim. Portas e janelas, coisa novas! Como não tinha partitura, tirei de ouvido. Então, meu pai viu que eu tocava violão…

André – Com quantos anos?

João Omar – 13. Com 14 eu já tocava em algumas festas. Daí, ele disse que qualquer dia ia me levar para conhecer Turíbio. Fiquei numa expectativa grande! Então, falei: “preciso estudar, descobrir técnicas que faltavam, técnicas mais apuradas”. Então, comecei a buscar informações sobre Andrés Segovia. Até que Xangai foi gravar um disco no Rio de Janeiro, eu fui também… Acabou que eu toquei na gravação do disco, tive participação em umas duas músicas. Depois fui conhecer Turíbio Santos. Fui morrendo de medo, com expectativa… Fui na casa dele! Ele me passou instruções técnicas. Eu peguei e fui ver como era a posição de mão, posição de dedo. Eu fui descobrindo leituras, outra coisas sobre leituras e tal, uma visão diferente. Por bem, já com partitura. Descobri que não era “Vira Lobos”, como falávamos, mas Villa-Lobos e que ele era brasileiro. Descobri uma série de coisas nesse meio de campo. Interessante: eu achava que somente na Europa tinha esses compositores, que não tínhamos sido agraciados com a grande arte… Então comecei a desenvolver. Conheci um primo – o Betuca – que me passou uns exercícios excelentes de violão de Mauro Giuliani. Depois, quando fui para a faculdade, não fui para estudar violão porque eu já sabia tocar violão, já tocava Villa Lobos…

Ely -Você foi para a Faculdade de Música da UFBa?

João Omar – É. Em final de 1985, a gente tinha marcado uma viagem para a Martinica num encontro mundial de violão. Eu fui, toquei lá com meu pai, apresentei umas músicas de Villa-Lobos. Daí, quando eu voltei – aliás, quase perdi o ano porque a viagem foi bem na época das provas. Quando eu voltei, o professor disse: “olha… vou deixar você fazer a prova, mas…” Quase perco o ano. Depois desse evento fui fazer faculdade. Meu pai até me falou: “seria bom que você fizesse de regência”. Regência para mim era um mistério, eu não tinha nenhum referencial. Pegava informações em livros. Fui para a universidade. Na universidade fui fazer regência. Na época ele falou: “lá tem bons professores”. Tinha Ernst Widmer e Lindembergue Cardoso. Eles foram meus dois pilares. Fiz a prova e não sabia que tinha que fazer uma composição… Eu tive que fazer às pressas uma peça para violão e flauta. Acabei no ônibus, perto de chegar no local da prova. Então, fui aprovado no teste de aptidão. Daí entrei lá: sonhava bastante… Lá conheci a música contemporânea, conheci todas as dissonâncias – os

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choques –, conheci todas as exceções musicais… Também todas as decepções musicais, digamos assim. Tive grandes frustrações…

André – Tal qual o pai…

João Omar – Tal qual meu pai.

Aldy – Isso é bom porque dá bagagem.

João Omar – É. Dá uma bagagem em relação às coisas que não se deve fazer.

Aldy – Exatamente. Isso acontece, principalmente, quando a gente quer fazer algo nosso.

João Omar – Fazer arte não é a mesma coisa que a arte de fazer. Em certos lugares a gente aprende a arte de fazer, como fazer, de uma forma um tanto cientificista. Assim qualquer um pode fazer, mas nem todos fazem bem feito. Nem todos vão brilhar naquela coisa. Tem que se levar em conta as tendências naturais. Existem exceções, relacionadas à história de vida, a um somatório de fatores… Na universidade foi difícil. Você praticamente é dissecado. Eu saí de um lugar que não tinha nada, chego num lugar que tem notícia do mundo todo, de toda história da música…Vem um turbilhão, embora a faculdade tenha durado seis anos com o curso de regência. É muita bagagem.

Ely – Você fez pós-graduação no exterior?

João Omar – Não. Fiz na UFBa.

Aldy – Você acha que a academia enquadra?

João Omar – As pessoas que mais se adaptaram à academia na história da música foram os compositores mais burocráticos, os regentes orquestradores… Porque a orquestração é diferente da composição inspirada. Ela já estava caindo de moda. Essa democratização, esse tipo de ascensão do “qualquer um”. A ascensão do “qualquer um” fez com que o compositor… havia um ideal de compositor romântico – aquela figura maluca e cabeluda… então, isso foi glamourizado e partiu-se para o outro extremo, para uma espécie assim de ateu musical. Que acredita no som em si, na matéria. Uma espécie de materialismo musical… Até tem a música concreta! Agora, tem uma variação… Por exemplo, em Belo Horizonte, estava discutindo com uma pessoa sobre o advento do modernismo e desses ismos todos que surgiram depois do pós-guerra… a música perdeu o discurso. A música antes era uma linguagem que tinha um discurso. Com o modernismo esse discurso morreu. O discurso é o próprio som. O som não faz o discurso. Daí, o mergulho dentro do efeito, dentro dos batimentos sonoros, dentro da microfrequência, dos microtons. Embora microtons já aconteçam dentro da música folclórica… Tudo quanto é passarinho está “tocando” microtons! Mas depois que acabou esse discurso, não se tem mais nada. Parece que veio o day after. Tudo tem radiação, uma poeira atômica, uma destruição… É claro que no pós-guerra dificilmente você vai ouvir Chopin ou Wagner…

Aldy – Você acha que tudo nos trouxe para a música new age?

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João Omar – Olha… Não! No caso do Brasil eu acho que a história da música rompeu, de fato, com o público, com a massa, com o processo histórico. Ela foi para a academia. É a academia que faz a ciência musical. É o lugar, onde tem de fato uma ciência. Ela está se aproximando da física, da computação, para ver se acompanha as últimas novidades, os últimos avanços e a música está avançando para isso. Esquecendo-se que o discurso não acompanhou, o discurso ficou lá atrás. O discurso e essa estrutura não avançaram. Essa geometria parou no tempo… Então, o que eu ouço de muitas músicas contemporâneas é uma espécie de trilha de filme de terror. Tem efeitos interessantes… Eu, por exemplo, procuro adotar uma linha de um fazer musical dentro de uma série de princípios, vamos dizer assim, um tanto nacionalistas. Um reconhecimento que o local onde eu vivo é específico, fantástico, bonito… O povo é original… Têm personalidades muito originais… Existe uma história fantástica. Eu preciso reconhecer isso e também dar a minha visão, uma visão de autor mesmo. Você tem de separar o artista do estudioso, do pesquisador. O pesquisador tem compromisso em passar informações, com critérios rigorosos, científicos. O artista não! Ele passa a visão dele. Ele cria. Você percebe o folclore, você percebe que existem muitas coisas, mas ali você está dando uma visão sua. Em relação a isso, eu acho que a música que meu pai faz é um grande exemplo, é um exemplo perfeito. Na realidade, ele transita entre essas duas coisas, sem que, digamos assim, seja uma coisa ou outra. Eu considero música de autor. Tanto é que quando fui escrever minha dissertação encontrei problema no sentido de dar um enfoque assim etnomusicológico, porque a etnomusicologia não estuda os autores, não é? Eu até tentei encontrar um livro do Renato de Almeida – um sociólogo, onde ele comenta que o anônimo, a música folclórica, não é aquela que não tem autor: é a obra cujo autor se desconhece. Ela foi feita por alguém! Não vem me dizer que dez cabeças fazem uma coisa! Dez cabeças montam um time, querem um gol, mas um jogador faz o gol. A jogada foi montada pela equipe, mas só um faz o gol. Tem isso. Claro…é louvável você pegar a música desses… grupos étnicos e tudo mais, mas, coitados, ficam na mesma miséria de sempre! Pelo menos a gente guardou isso. Eu percebo que as coisas estão, assim, se tornando virtuais. Eu vejo filmes fantásticos, tudo virtual. Por que eu sentiria mais prazer olhando um quadro do que vendo a floresta de fato? Me parece que existe uma substituição do mundo, ou seja, quando a representação substitui a coisa em si, ela já não é mais um signo. Na semiótica, quando um signo que representa, é a coisa em si, a coisa não existe mais. É um processo de destruição, alguma coisa está errada aí no meio, acontecendo…

André – Eu queria te provocar: quando Elomar constrói as paisagens, não se corre o risco de trocar também? No canto eu ouço os bodes, as galinhas d’angola…Eu estou pensando no canto do Auto da Catingueira, quando Dassanta começa a cantar. Um pouco antes disso, tem uma flauta… Ernani Maurílio Figueiredo diz que isso remonta às serras. Eu sinto, eu nunca estive lá, mas eu sinto toda a amplidão, toda a ambiência…

João Omar – Eu posso dar uma explicação até semiótica desse relevo com a própria partitura. Até inferir certas colocações em trechos em que a flauta faz mais ou menos assim e é respondida pelo clarinete… ouço o “respostar”. Então… No eco você já constrói um relevo… esse eco fazendo a dimensão, por exemplo, dos vales… No início lá, é a parte mais alta que a flauta entra, é uma espécie de aboio. Tem uma linha de aboio, um aboio um tanto estilizado… Não sei se eu posso falar de uma transfiguração… do que é um canto natural do vaqueiro. O que é próprio dele que vem para a música…

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Ely – Há uma estilização, uma espécie de transfiguração. Mas ele existe, não tem a pretensão de substituir a realidade…

João Omar – Ela não substitui enquanto dá margem para sua imaginação. Não é uma coisa pronta, não vem pronta. A beleza que tem uma fotografia em preto e branco. Ainda mais a fotografia em relação ao cinema, ela está parada, estática, mas você tem…olha, dá um certo desejo de movimento… Dá um desejo de conhecer mais os cantos. Existe uma poética. Existe poesia. E o cinema que trata o movimento como fotografia é um cinema de arte. Já o cinema que privilegia a coisa, a descrição, a coisa pronta e acabada, ela congestiona toda poética. Então, não se vê arte, não se vê poesia. Bate de frente, bate de trás e o que você está vendo é… sei lá, você vê ou não vê, tanto faz…

Ely – Nesse sentido, a arte “sertaneza” não pode, de modo algum, remeter à idéia de virtualidade?

João Omar – De jeito nenhum! O virtual, o que é pouco artístico, a arte de fazer que é diferente de fazer arte, eles vêm como um jogo. Eu ia até discutir que eu ia usar o conceito de homo ludens, como fazer a música e tal. Existe assim… Não é exatamente uma brincadeira, um divertimento, uma técnica, uma construção da coisa… É algo que parece ter uma identidade própria, alguém já comentou em uma entrevista, ela tem uma genética, um código de genética, como Schoenberg diria: o motivo, a própria construção temática. Você começa… e lança uma idéia. Quando você lançou a idéia, gente, você imagina que história não vou ter naquilo ali, né? Quando o tema é bom, quando tem um contorno, quando ele promete, então, a obra parece que vai ser boa. Triste do compositor que pega um tema bom e “acaba” com ele… não faz…

Ely – Ele deve refletir uma identidade…

João Omar – Ele reflete a necessidade dessa identidade. Tanto que… Não é algo artificial. Não existe um artifício. A arte dessa construção é mais busca, uma busca intuitiva, que parece que já está pronta e é só pegar dos sons. Nesse sentido, eu acho que ela… em tese ela já deve vir pronta, mas para você dar um polimento é penoso… Eu sempre ouvia… por exemplo, em menino, eu estava lá na gameleira, num final de tarde, o sol se pondo, tinha um banquinho virado para o pôr do sol, meu pai sentava lá e ficava horas e horas tirando um trechinho musical, uma melodiazinha, buscando alguma coisa que estava ali. E aquilo parecia meio manca e a gente fazendo as coisas, os afazeres, “limpa ali, ascende o fogão, pega a lenha”. Isso por volta de seis horas porque mais tarde começa a dar cobra… Então, você pega a lenha divide e com as lasquinhas acende o fogo. Enquanto a gente está ali nesse ínterim, ele pega o violão… A música pairando… mas sempre tentando tirar aquele mesmo trecho, aquela idéia. Na realidade, quando a música vai aparecendo, despontando aquela idéia… desponta aquela idéia e a gente percebe! Quando você percebe que ela está ali e vai atrás, vai atrás e não pára até acabar aquele negócio que fica “incomodando”. É um garimpo muito difícil porque exige do compositor uma escolha, uma responsabilidade na escolha… dos acordes, que saídas ele vai ter…Você tem que cuidar muito bem da “pérola”.

Aldy – É uma coisa que vem de dentro que você só faz exprimir…

João Omar – Exato!

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Ely – Você aqui se colocou como intérprete. A pergunta é a seguinte: esses insights que dão à sua interpretação característica própria, você percebe que isso acontece mais quando, digamos assim, você respira o “ar” da metrópole ou o “ar” do sertão?

João Omar – Quando respiro ar das paisagens “sertanezas” ou qualquer outra paisagem que contenha beleza. Até mesmo uma paisagem urbana que seja harmônica. Isso me inspira.

Ely – Que lembre a estética?

João Omar – De fato. Não tem que estar necessariamente lá no sertão, mas que inspire o belo, a harmonia. O que é belo? É algo que é capaz de nos deixar meio hipnotizados. Meu pai costuma dizer que quando ele ouve uma música bonita, ele se pergunta: “por que eu não fiz isso?” Quanto à questão da interpretação, quando eu toco as músicas do meu pai, principalmente, eu sou intérprete, eu me coloco como intérprete, embora eu tenha cá comigo minhas composições. Mais atrás eu me coloquei como intérprete porque o regente tem que dar muito mergulho em vários lugares; precisa conhecer o repertório universal; precisa ser coerente. Você faz parte do mundo de lá e não do mundo de cá. A regência exige uma série de critérios, respeito aos artistas. Se eu for reger uma obra eletroacústica, embora dificilmente isso vá acontecer, corrijo, pode acontecer porque a música contemporânea é uma arte indômita: poucos são os bem sucedidos. Não é porque há nela essa “tronchura” toda, essas dissonâncias, essas arritmias que ela seja uma arte menor, de jeito nenhum! Pelo contrário, é muito difícil, é tão difícil quanto fazer uma música bela, dentro dos padrões, tonais, etc.

Ely – Como você caracterizaria sua produção?

João Omar – Olha. Eu digo que está num estágio assim… Eu estou na busca, tentando destruir, derrubar uma série de conceitos que não são meus, que não foram meus, que na realidade não fazem parte daquilo que todo mundo deve buscar, independentemente, se ela faz arte ou não. Ela tem que buscar sua própria essência. Se você descobre sua própria essência, sua própria espontaneidade, você vai conseguir se haver bem naquilo que faz. Eu acho que eu faço composições muito rítmicas, minhas experiências são de tocar ritmos nordestinos… Gosto muito desses ritmos! As minhas melodias, quando vou trabalhar algumas melodias, dou mergulhos um pouco tensos demais, digamos assim, pós-wagnerianas, mas é difícil falar de uma coisa que só vai dar para ter idéia depois de executada. Eu faço música assim: se ela me agrada, pronto! Não precisa agradar mais ninguém. Se você faz para agradar o público fica complicado, porque você se perde. O público tem que se identificar mais com sua ótica do que você fazer algo que já está aí estabelecido, algo para se enquadrar dentro do que já está estabelecido.

Aldy – Dentro dos padrões atuais, com a força dessa indústria cultural, isso é mais fácil ou mais difícil?

João Omar – É dificílimo passar para um grande público uma arte bem feita, vamos dizer assim, um trabalho mais elaborado, uma arte autêntica, que não tenha compromissos mercadológicos ou numéricos: “Eu quero fazer tanto”… “ganhar tanto”. É muito difícil você levar uma arte boa. Conheço vários artistas, vários cantores que fazem músicas excelentes, mas para ter acesso ao grande público é duro, é duro… É uma arte que tem um nível de elaboração e de sutilezas que faz despertar em você

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muitas coisas. Mas tem um grande público que prefere ficar dormindo. Então, tem uma força, existe também uma cumplicidade, melhor, um guia, uma direção das indústrias culturais para manter a massa burra. Você já pensou uma massa pensante num país do nosso tamanho? É perigoso demais!

Aldy – Seria muito bom, não?

João Omar – Você está louco?

Aldy– Seria muito bom que o público fosse um pouco mais atento para a música mais refinada…

André- Há pouco você falava que tanto você como seu pai não têm uma mesma concepção de forma. Todos nós sabemos da sua proximidade em relação ao trabalho dele. Enquanto compositores, onde vocês se aproximam e onde se afastam?

João Omar – Interessante. O sonho do meu pai era ter estudado música. Ele não se enquadrou na escola de música. Na minha dissertação tem lá uma entrevista que fiz com ele. Eu queria saber o que aconteceu lá na escola. Na verdade, ele não conseguiu se enquadrar, embora Joachim Koellreuter reconheceu que ele era um talento musical, que tinha talento para a composição e para a música. Mas ele não se enquadrou, pois a escola estava marchando para a ascensão desse sujeito comum. Eu estou na mesma sala… Eu que ouço acordes, notas harmônicas e tudo mais, estou na mesma sala de uma pessoa que não ouve quase nada. Eu sei que a outra pessoa tem direito, certo? Ela tem direito, mas isso é um processo burocrático, melhor, “burrocrático”. Por quê? O nível que se dá a mim tem que ser diferente daquele outro. Por quê? Porque eu posso ouvir mais! Então, vamos embora, mete bronca… O que ouve mais tem que ouvir mais mesmo! Quem tem dificuldade tem que estudar mais. Não pode uniformizar! Vejamos o caso dele: ele estava numa turma especial. Então, seria muito caro para a universidade disponibilizar um professor para dar aula para ele. Seria uma aula particular. Mas ele poderia ter participado da turma, ele poderia ter aprendido e tal.

Aldy – Pela bagagem que ele tinha ou pela que ele não tinha?

João Omar -O que aconteceu? Ele não fez vestibular, pois já tinha feito para arquitetura. Então, só fez o teste de aptidão. Fizeram uma banca com oito professores, inclusive Koellreuter. Ele tocou cinco composições dele. Então, ele entrou; cursou, assim um período curto, uns poucos meses e desistiu. Mas mesmo assim ele fez uma obra de raiz. Ele tem uma veia erudita muito forte. Comigo foi diferente. Eu entrei e cursei a escola de música.

André– Você foi mais manso que ele.

João Omar – Pensei em sair no terceiro ano. Falei: “não agüento mais”. Mas o diploma era importante. Fiquei só por causa do diploma. Eu não estava agüentando mais.

Ely – Foi uma forma dele se realizar também, não?

João Omar – Talvez. Mas quando você vê que não é a coisa… Mas mesmo assim foi bom que eu estudei. Na escola, conheci muitos bons professores. É o que vale.

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Infelizmente, só tive um ano lá com o Lindembergue (Cardoso). Logo ele morreu. Continuando…

Ely -A pergunta era sobre as convergências e divergências, em relação à obra de seu pai.

João Omar – Ambos acreditamos numa música inspirada. Na idéia musical. Para fazer uma arte de peso, é preciso inspiração, tem que entrar em contato com deuses. Para você ouvir aquele sopro no seu ouvido e falar… Não… Expressar admiração. Eu acredito nessa coisa especial…

Aldy – Essa é a convergência?

João Omar – Exatamente. Essa é a convergência. Na verdade, nós temos mais convergência do que divergência. As divergências estão relacionadas a um ou outro aspecto técnico: sustenido e bemol… Por exemplo, quando ele vai escrever, às vezes, eu noto, eu faria aquilo de uma forma diferente. Isso gera controvérsias, como a pontuação de um texto. Você faz uma pontuação e o outro não concorda. Às vezes eu ouço alguma coisa diferente do que está escrito; um efeito diferente do que estava escrito… Falo: “não tem as pausas…” Ele tem, às vezes, uma relação… quando, ultimamente, ele vai escrever uma música operística. Às vezes, eu conto e parece que tem muita pausa. Eu falo com ele: “será que não tem muita pausa? Será que não precisa cortar isso?” Ele fala: “não, tem essa pausa mesmo!” Dá uma briga doida. Uma outra coisa: às vezes ele tem algo de Maktub. Eu digo: “Meu pai, Tchaikovsky rescreveu não sei quantas vezes a abertura não sei o que, Brahms queimou não sei quantas partituras até chegar naquele ponto”. Esse apagar e escrever para ele… Talvez o processo de escolha dele já seja outro. Eu brigo com ele. Eu estou para gravar onze peças para violão solo e tem algumas lá, por exemplo, a das cabras, que quando li, estranhei. Acho que eu lia diferente. Foi um “pipoco”. Eu estou tirando algumas do disco Cartas Catingueiras para editar a partitura, e esse processo de tirar e transcrever, às vezes, é um pouco problemático. Qual é a forma? Aquilo é uma divisão de sete, portanto, pode isso ou aquilo. Ela pode ser uma coisa ou pode ser outra; mas, que melhor represente a idéia do artista, porque o forte é oculto … na hora que você vai ouvir. Talvez o forte esteja em outro ponto, num ponto que se deslocou. Isso é terrível! As divergências são pontuais: sustenido, bemol, a escrita de alguma coisa… A composição em si, não! No mais, meu pai dá uns toques que eu considero muito relevantes. Quando eu acabo de fazer uma composição, mostro para ele. Ele fala: “está muito isso… ou aquilo…” Outro dia, tivemos com Henrique Morelembaum, que é um mestre de contraponto e de fuga. Ele estava explicando para a gente como era a fuga. Meu pai tem uma curiosidade louca: “como é a fuga?” “por que a fuga?” “por que foge?” Ele estava explicando para a gente. Na escala tem vários graus e a fuga parece que percorre… Ela tem que passar, como se fossem breves modulações que passam por cada grau desses para completar aquele arco. Ela tem que completar. Depois o sujeito responde e vai para ali… Depois cai o tom. Ele tem que passar por todos os graus para fechar o arco. A fuga se finda por si própria. Quando ela é mal feita sai alguma coisa truncada. Você deixou…Volta e meia, meu pai pergunta: “por que você não foi para ali?” Na realidade, ele tem um caminho, uma posição. Noto, às vezes, que o professor de música antigo dava aula com expressões do tipo: “essa melodia está um tanto tímida.” Numa aula de composição se você falar isso… Gente… Você tem de falar: “aqui você tem que fazer uma aumentação temática…”

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Ely – Vocês têm uma linguagem específica.

João Omar – É.

Ely – Mudando um pouco. Em toda entrevista percebemos que você mostra uma tensão em relação à academia. A pergunta é a seguinte: você não se sentiu constrangido em desenvolver pesquisa justamente sobre a obra do seu pai?

João Omar – Eu me senti um pouco inadequado. Era como se as linhas migrassem para uma direção e eu fosse para outra. Por alguma coincidência, melhor dizendo, descobertas, eu vi que na realidade alguns etnomusicólogos já pretenderam fazer isso. Eles sonhavam com algo parecido. Eu me perguntava por que não seguir nessa direção?

André – Que direção?

João Omar – Certo! Estudar um autor que não é acadêmico. Na academia existe uma certa rejeição ao autodidata. Aliás grandes compositores foram rejeitados pela academia. Eles não se enquadravam. Por exemplo, Debussy já cansou de perder em harmonia. Então, eu cheguei e falei: “espera aí”. Eu acho que a academia, na situação atual, pelo menos na área da música luta por se afirmar como algo necessário. Ela precisa ser complexa para se afirmar como algo necessário…

André – Ela quer se afirmar como produtora de ciência?

João Omar – Sim. Na escola de música isso acontece.

Ely – O que você quer dizer é que a escola de música vive uma crise de identidade. Então, precisa se ancorar nos eruditos.

João Omar – Exato. Precisa se ancorar nos eruditos; precisa mostrar um porte; um porte erudito. Aliás, isso vem com uma certa obrigatoriedade. Agora, tem uns professores que ensinam de uma forma bastante complexa, mas quando vão fazer seus trabalhos procuram ser simples. Eu fico sem entender. Eu entro em choque com uma série de normas. Por exemplo, porque a ABNT não serve para a nossa escola? Eu tenho que pegar o turab… (não sei escrever. Eu também não!!!). Eu não entendo. Essas discussões são estressantes…

Aldy – Você acha que essa conduta tolhe a criatividade? tolhe o prazer de se desenvolver um trabalho?

João Omar – Tolhe. Gasta-se muito tempo com tolice. Tolice só pode ser algo que é irrelevante para o conteúdo, mas é uma exigência. No entanto, essa exigência não tem um padrão.

Aldy – De onde vem a normatização?

João Omar – Ela vem de 1964 e é uma herança nefasta. Privilegiou-se a normatização em detrimento da integração. Para fazer música eu preciso de outras disciplinas: física, história, teatro. Não tem integração entre esses saberes…

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Ely – Voltando ao trabalho de Elomar, há esse estranhamento porque ele não se encaixa?

João Omar – Na realidade, porque ele não se encaixa. Ele é um autor de música popular. Eles não vêem que o autor de música popular não precisa desse rigor todo da academia. O que é o termo erudito? Ele expressa conhecimento vasto. Não acredito que essa vastidão exclua os autores populares.

André – Pelo menos não deveria.

João Omar – Certo. Não deveria. Por exemplo, a etnomusicologia seria adequada para estudar os autores populares. Ela é muito interessante e poderia dar seus mergulhos no estudo da música popular, da música de autor.

Ely – Você rejeita a dicotomia que, em geral, a mídia e alguns críticos apontam entre o erudito e o popular?

João Omar – Rejeito. Eu sou muito mais o erudito que inclui do que o erudito que exclui. A especialidade é perigosa. Eu fui ver uma mostra do Palacci (não sei se é assim que escreve) no Itaú Cultural. Ele falou um negócio muito interessante. Aliás, nem sei se a frase é dele. Mas, vamos lá: “cada vez mais pessoas estudam sobre menos coisa até que vai chegar um tempo que saberemos muita coisa sobre nada”.

Ely – Isso me fez lembrar um artigo do Claude Lefort no qual ele faz referência ao “oco do vazio”.

João Omar – É um paradoxo.

Aldy – É a cultura das especialidades.

João Omar – A cultura das especialidades, mas não é uma especialidade cega e surda. Ela tem um encaminhamento, ela quer é excluir. Valorizo o todo.

André – É o dilema do nosso mundo…

João Omar – Isso está em todos os campos. Por exemplo, a ordem dos músicos! Odeio isso. Essa ordem tem um mesmo presidente há mais de 30 anos. Não conheço associações, ONGs ou nenhuma outra entidade que tenha um presidente que está no comando há mais de 30 anos. A não ser na ditadura. A ordem dos músicos foi criada em 1964. Ela guarda os ranços da ditadura. Ela deveria beneficiar os músicos, mas não os beneficia. Mas, vamos fugir desse assunto…

Aldy – Não, não… Vamos continuar! Isso é interessante também, mesmo por que tem um movimento aqui em São Paulo que faz muitos questionamentos em relação a isso. Você já falou algumas coisas, mas eu gostaria de saber qual é seu maior questionamento?

João Omar – É essa: “por que uma pessoa tem que exercer um mesmo cargo por tanto tempo?”

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Aldy – Por que isso é ruim?

João Omar – Porque não há renovação. Em qualquer sindicato ou associação, os dirigentes ficam por um certo tempo. Depois, têm que se reciclar. Na ordem dos músicos, não! A ordem dos músicos deveria beneficiar os músicos formados pela universidade. Por exemplo, eu tenho um diploma, eu posso reger as orquestras públicas. Quem não tem diploma não pode reger, a não ser num caso especial ou que a pessoa receba um diploma de notório saber. Vou até aproveitar o ministro Gilberto Gil, que é músico, para ver essa questão…

Ely – Falando nisso, como você recebeu a nomeação de Gilberto Gil?

João Omar – Eu levei um susto. Um político tem uma agenda ocupadíssima, além do mais, tem a gravata, tem não sei o quê. Eu me pergunto: “será que o Gil vai agüentar essa coisa toda?” Acredito muito na índole, nos princípios e também na inteligência dele. Mas, não sei se a inteligência dele é a mesma inteligência que o ministério exige. Gil: nós sabemos de quem se trata. Ele tem um passaporte branco para a gente, mas não creio… Primeiro, eu achei problemático. Vejamos: Gil é autor, cantor, é músico ativo, é produtor. Aliás, eu fico me perguntando: “como será que Caetano recebeu sua nomeação?” Uma outra pergunta: “será que ele vai se adaptar à rotina do ministério” Mas com certeza… a visão que ele tem, a sensibilidade vai ajudar. O maior benefício que nós temos é no sentido dessa visão que ele tem, da sensibilidade que ele tem das coisas. Mas para ele se sair bem tem que ter uma boa assessoria, alguém que entenda bem do trâmite, do jogo político. Isso também se aprende com anos de prática. Lula já cansou de falar que viveu muito. Ele é um político formado pela vida. A prática só se adquire fazendo. A prática de Gil é de outra natureza, mas isso não o impede de fazer um bom trabalho. Talvez, ele vá se sentir meio aprisionado, mas todo pássaro na gaiola canta. Quem sabe? Um professor falou que a gente só produz quando não tem tempo. Quem sabe ele até vai dobrar a produção. Quem sabe? Mas, eu fico pensando… Gil também é um empresário. Como vai ser aprovado um projeto dele? Esquisito, não é!?

Ely – Você falou de pássaro preso e isso me lembrou o sertão. Então, vamos voltar ao assunto. No ano passado, comemorou-se cem anos de publicação do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. Naquele momento você e o radialista Elton Becker montaram um espetáculo com o mesmo título da obra. Qual tem sido a receptividade?

João Omar – Ela tem nos surpreendido. A idéia era fazer um concerto para violão. Por coincidência, em Salvador iria acontecer uma homenagem ao Euclides da Cunha e eu iria junto como músico, ou talvez como regente. Apresentaríamos um trecho da Fantasia leiga para um rio seco, que foi feita para lembrar a seca de “noventinha”, como ficou conhecida a seca de 1899. Essa seca aconteceu pouco depois do Movimento de Canudos e era bastante adequada à temática d’Os Sertões. Iríamos contar também com a presença de alguns cantores líricos de Salvador, da Orquestra Sinfônica da UFBa. O pessoal de letras batalhou, batalhou, mas não conseguiu os 8 mil reais necessários para fazer o evento. Não pudemos fazer a apresentação. É mais fácil conseguirem 50 mil reais, 300 mil reais para uma batucada do que uma homenagem ao Euclides da Cunha. Fiquei revoltado! Aquilo para mim foi um desaforo! Falei com o Elton: “vamos fazer, é importante a gente fazer essa homenagem”. Vamos fazer de qualquer jeito. Vamos tocar uma peça e você podia falar alguma coisa do livro. “Os Sertões” tem textos belíssimos. Depois, a coisa aconteceu de tal forma que colocamos uma música, um texto; uma

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música, um texto; uma música, um texto… Saiu o espetáculo Os Sertões. Fizemos duas apresentação em Conquista, uma terceira para alguns produtores, para o pessoal da televisão. Na verdade, é somente agora que estamos fechando as apresentações. Temos duas apresentações marcadas: uma no Rio de Janeiro – em agosto – e uma na Casa Euclidiana. Estamos também em conversação com o SESC, aqui em São Paulo.

André – O que Elomar disse quando viu?

João Omar – Gostou. Ele é crítico pra burro, mas gostou.

Ely – Alguns críticos remetem a obra de Elomar ora à poética de Euclides da Cunha, ora à de João Guimarães Rosa. Qual sua opinião? E onde você se situa?

João Omar – Literariamente, Euclides é vernacular. Guimarães Rosa é um criador, inventor de palavras. Além de camaleão, digamos assim, ele é metamorfo, consegue absorver coisas e transformá-las. Ele reporta ao mundo musical. Literariamente, o que meu pai faz….ele não recria palavras, ele absorve as palavras. Ele usa, às vezes, expressões poéticas… Vamos dizer assim, ele consegue imprimir a algumas sonoridades uma conotação diferente, a partir de um campo, de modo que a letra se acomodou dentro daquele canto, trazendo outra sonoridade. Por exemplo, “Inda gaia silenciosa”. Indagai à silenciosa. Mas ele não muda o dialeto, mas constrói sonoridade. Outro exemplo: “nós tivemo de um tudo”. Sempre vai variar a métrica musical. Uma série de coisas…Mais um exemplo: “já qui tu vai lá pra fêra, traga de lá para mim…” Não é pra mim, não? O catingueiro não fala pra mim, não? Mas se você colocar pra mim, tropeça no verbo. A música exige a licenciosidade. A música, às vezes, determina o que tem que ser o verso. Às vezes, o dialeto resolve bem, às vezes, não, então, volta-se ao vernáculo.

André – Tenho a impressão que isso está mais próximo do Guimarães.

João Omar – Ele está mais, é claro, para o Guimarães que para o Euclides. Na realidade, o que o Euclides faz é mais de um visitante. O Guimarães não parece visitante, não. Parece que saiu lá de dentro. Guimarães é de lá para cá, Euclides é de cá para lá. E meu pai, como Guimarães, está de lá para cá. Mas, meu pai tem canções que estão dentro do vernáculo. De cá para lá.

Ely – Ele transita bem.

João Omar – Exatamente. Inclusive, uma coisa que ele faz na ópera. Na ópera A carta, a personagem … quando ela é a catingueirinha que está lá, ela canta em dialeto. Quando ela vem para a cidade, ela muda. Ela não canta mais em dialeto, ela canta dentro do vernáculo.

André – Na Quadrada das Águas Perdidas já tem isso… Tem umas músicas que são em dialeto e outras que são… têm a marca vernacular.

João Omar – Vamos ver se eu posso explicar. Uma coisa é você cantar como se fosse um personagem. Quando ele canta: “Josefina sai cá fora e vem vê/ óia os fôrro ramiado vai chuvê” … é alguém de lá cantando, um personagem que está cantando. “Derna que deixemo o Riacho do Gado Bravo”. É alguém de lá que está cantando. Quanto entra o

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narrador é diferente. O narrador parece um personagem, como no Auto da Catinguera: “Ela nasceu na laje do Gavião numa quadra iscura de janêro”. O narrador, nesse caso, é um personagem de lá. Às vezes, ele fala como alguém estudado, como alguém de fora, na verdade, como ninguém, não tem um eu.

Ely – Não há um único eu.

João Omar – Exatamente. Não tem um personagem que narra. São vários personagens… No Auto da Catinguera são vários personagens, mas no caso de Cantiga de amigo, não tem dialeto. Gabriela, não tem dialeto, mas tem elementos sertanezos. Cantada toda em vernáculo tem Rebuscada, Seresta Serntaneza é também em vernáculo. Já, por exemplo, a Fantasia Leiga tem personagens, o último personagem que está fugindo da seca, é ele quem canta. O trabalho de meu pai é muito operístico. Eu comentei o seguinte: “tudo parece que culminava para um personagem cantando, dentro de uma cena, vem logo um personagem”. Todas as canções dele têm um personagem. Na realidade, quando tem o dialeto tem um personagem que está cantando. Engraçado, eu não tinha dado conta disso até então. O Peão na Amarração é um personagem, O Canto de guerreiro mongoió já é diferente. O guerreiro não saberia nem o português. Ele começa em tupi: “Uiúre iquê uatapí qui apecatú piaçaciara…”

André – Você sabe o que significa isso?

João Omar – Uma vez ele traduziu para mim, mas não me lembro. O canto é de um guerreiro indignado por causa da invasão de suas terras.

Ely – Você tem algum CD gravado?

João Omar – Estive na Bahia justamente para isso, para pegar algumas peças, pegar umas coisas escritas e, depois, entrar em estúdio. Acredito que em pouco tempo saia, só faltam três músicas. Já estou tocando, só falta lapidá-las.

André – Tem composições de sua autoria?

João Omar – Nesse não. Nesse eu estou interpretando a obra dele (Elomar). O próximo terá composições minhas. Tanto é que eu já estou acumulando uma quantidade de músicas para violão, embora possa também fazer alguns arranjos ou usar não só músicas com o violão, música com orquestra. Eu não queria misturar muito…

André – O quê?

João Omar – Composições para orquestra, de cordas, coral. O processo é esse mesmo. Já poderia ter gravado, mas antes eu não teria maturidade. É horrível uma pessoa tocar Villa-Lobos quando ela é nova. Ela toca, mão não entende nada.

Ely – Você fala muito em Villa-Lobos, há uma identificação com a obra dele?

João Omar – Primeiro, eu falava “Vira-Lobos”. Meu Deus: “será que era um lobisomem?” Eu não lia direito… Pegava aqueles bolachões, mas não lia direito. Achava que era europeu. Você viu escrever nome de brasileiros com dois “eles”?

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André – Mas o sobrenome Mello é com dois “eles”…

João Omar- Mas eu estava sabendo? Melo ou Mello eu não sei o que significa, mas vila é fácil de entender, agora Villa, parece mais chique, mais nobre, europeu! Seria mais fácil de entender o Heitor, embora esse nome não seja bem comum no Brasil, pois não conheci ninguém com esse nome. Talvez nomes de ruas, etc.

Ely – Nunca olhou a certidão.

João Omar – Havia um mistério… Quando descobri que ele era brasileiro fiquei muito surpreso. Quando conheci as músicas dele, as gravações, foi uma revolução. Enxergo tanta coisa na obra dele. Tantas paisagens… Enfim, eu costumo dizer: música parece com palavras de um sonho que você não se lembra.”

Aldy – A música nos transporta….

João Omar – Eu estava fazendo um trabalho de orquestração sobre uma peça do Debussy, alguma coisa assim… Eu fui lá para a reitoria da universidade, estava lá o professor ensaiando um adágio da Sinfonia de Mahle, que foi tema do filme Morte em Veneza (adaptação do romance de Thomas Mann), que conta um pouco da história do próprio Mahle. Então, Mahle para mim é uma figura especial da história da música.

Aldy – Você o acha complexo?

João Omar- Ao contrário, ele é muito popular em muitos temas, muito profundo, é muito requintado, é rico em detalhes, faz brincadeiras… Bem, eu estava na reitoria, de repente, começo a ser tomado por uma forte emoção. Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu fiquei abaixado na cadeira para ninguém ver. Eu tive que sair com uma vontade de ficar. Desde criança já ouvia Mahle. Já era afetado por esse mal da sinfonia. Adoro Verdi, música italiana. Todo domingo, quando minha mãe fazia uma lasanha, uma macarronada, eu botava músicas italianas…

Aldy – Sua mãe também é artista?

João Omar – Não. Rapaz, se você quiser uma crítica algum dia na sua vida, leve lá para ela. Ela tem um ouvido…

Ely – Ela é de Vitória da Conquista?

João Omar – Não, ela é de Salvador. Ela tem uma voz belíssima, de contralto. Sorte nossa.

Aldy – Existe dom?

João Omar – Rapaz, Mozart escreveu uma obra entre os doze e quatorze anos. Ele escreveu uma ópera! O cara era um gênio. Gênios são raríssimos. Agora, se pega uma sonata que Beethoven fez com doze anos… Realmente, ele era muito bom. O sujeito parece um velho com doze anos! Castro Alves escreveu o Navio Negreiro com dezessete. Rapaz! Acho que acredito! Mas precisa de algo mais. Por exemplo, a técnica é essencial. A beleza é algo que transcende, mas é também necessidade do ser humano.

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A música expressa a verdade do que a pessoa faz. Por exemplo, autores como meu pai, mesmo sendo autodidatas, desenvolveram uma técnica própria, um jeito próprio de fazer, de forma que ele só não usa o vocabulário léxico-conceitual.

André – Talvez, a genialidade do artista, lembrando aquilo que você colocou no princípio “fazer arte e a arte do fazer”, talvez esteja em você colocar… não ficar prisioneiro à técnica, mas transcendê-la, se libertar dela.

João Omar – Corretíssimo. A técnica vem antes. A técnica é a escrava, digamos assim, ela serve à deusa da beleza. No caso, à música. Música é poesia.

Ely – Levando para este lado, tomamos conhecimento que você tenta levar um projeto de resgate da obra de Camilo de Jesus Lima. Como você teve contato com o poeta? Você poderia adiantar em que consistirá o trabalho?

João Omar – Eu e o Elton Becker, nós observamos que esse formato que imprimimos em Os sertões é algo mais parecido com um espetáculo. Ele não é concerto, não é teatro, não é cinema. Gostamos muito da experiência. Ficamos sabendo que depois do espetáculo, o livro Os sertões foi muito bem vendido, esgotou o estoque da livraria de Vitória da Conquista. Então, pensamos em resgatar a obra de alguns poetas da região. Então, surgiram os nomes de Camilo e Laudionor Brasil. Ambos são muito interessantes. O trabalho será um pouco localizado, mas voltado para apresentações em Vitória da Conquista e região.

Ely – O Camilo tem alguns poemas de cunho bastante popular, que nos faz lembrar o Olegário Mariano.

João Omar – Tem. Inclusive, meu pai já fez parceria com o Camilo. Eles compuseram juntos uma rumba. Além disso, temos um outro projeto. Queremos trabalhar aspectos da obra de Villa-Lobos. Pensamos em fazer o seguinte: ler o texto crítico, principalmente os que depreciam a obra, falar quem escreveu e depois tocar uma música de Villa-Lobos bem bonita. É chocante.

Ely – Você mora em São Paulo, mas se sente ligado à Vitória da Conquista.

João Omar – Tenho uma ligação muito forte com Vitória da Conquista. A cidade não tem um lago, não tem floresta, mas tem um certo mistério. Faz um frio…, tem uma ventania! Quando eu ouvia música russa lembrava de Vitória da Conquista. Ela tem mesmo um mistério. Acho que essas cidades do mundo são ligadas de alguma forma. Portanto, tenho uma relação afetiva com ela. Gosto muito dos eucaliptos. Se alguém pensar em cortá-los vai comprar briga comigo! Eu vou sentir uma dor… Teve um sujeito que pensou em cortar os eucaliptos para construir uma pista de kart!

Ely – Vocês pensaram em montar uma Universidade de Música em Vitória da Conquista?

João Omar – Universidade Leiga Sertaneza. Pela proposta a pessoa entraria na universidade sem vestibular e sairia sem o diploma. Seria uma universidade voltada para a atividade prática, aberta a todos que quisessem estudar. O propósito era passar conhecimento essencial. A idéia era abrir portas. A gente pensava em ensinar história,

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filosofia, literatura, música, pintura. Tudo com aulas práticas, sem burocracia. Era uma espécie de teatro, as aulas seriam dadas através de seminários. O Ruy Bacelar (geofísico e historiador) fez um discurso no qual explana os objetivos da universidade. É muito bonito. Mas, não tem apoio, não tem financiamento. O orçamento ficou caro, mas não conseguimos. Não há interesse em desenvolver propostas dessa natureza.

André – Vendo você falar, eu fico pensando na Grécia…

João Omar – Eu penso que o ensino tem que retornar aos seus princípios. Ele tem que se democratizar.

Aldy – Você já se sentiu o Dom Quixote?

João Omar – Não. Mas já me senti o Sancho Pança…

* Aldy Carvalho é músico. Recentemente lançou o CD Redemoinho.

** André-Kees de Moraes Schouten é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/FFLCH/USP. É também membro do Núcleo de Antropologia,Performance e Drama (NAPEDRA-USP), desenvolvendo atualmente pesquisa sobre a obra de Elomar Figueira Mello.

*** Ely Souza Estrela é professora de História da Universidade do Estado da Bahia – Campus de Caetité.

[Revisão de André-Kees e Marco Aurélio Farias]