omar khayyam - rubaiyat

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Omar Khayyām Rubaiyat

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Page 1: Omar Khayyam - Rubaiyat

Omar Khayyām

Rubaiyat

Page 2: Omar Khayyam - Rubaiyat

1Todos sabem

que meus lábios nuncamurmuraram uma oração.

Não procurei nuncadissimular os meus pecados.Ignoro se existem realmente

uma Justiça e umaMisericórdia.

Mas, se existem, nãodesespero delas: fui sempre

um homem sincero.

2Que vale mais?

Fazer exame de consciênciasentado na taverna,

ou prosternado na mesquita?Não me interessa saber

se tenho um Senhore o destino que me reserva.

3Considera

com indugência os quebebem até à embriaguez.

Lembra-te de que tensdefeitos maiores.

Se queres conhecer a paze a serenidade, pensa

nos miseráveis que padecemos piores infortúnios, e...

acabarás por julgar-te feliz.

Page 3: Omar Khayyam - Rubaiyat

4Que a tua

sabedoria não sejauma humilhação

para o teu próximo.Guarda domínio sobre ti mesmo e nunca te

abandones à cólera.Se aspiras à paz definitiva,sorri ao Destino que te fere;

não firas ninguém.

5Procura ser

feliz ainda hoje,pois não sabes o que te reserva

o dia de amanhã.Toma uma urna cheia de

vinho, senta-te ao clarão doluar e monologa: "Talvezamanhã a lua me procure

em vão."

6Contenta-te

com poucos amigos.Não busques prolongar a

simpatia que alguém teinspirou.

Antes de apertares a mãode um homem, considera seela um dia não se erguera

contra ti.

Page 4: Omar Khayyam - Rubaiyat

7O corão,

chamado o Livro supremo,pode ser lido de vez em

quando; mas ninguém sedeleita na sua leitura,

sempre que o lê.Na taça cheia de vinho está

gravado um texto, de tãoadorável sabedoria, que a

boca, à falta dos olhos,lê sempre com delícia.

8Este vaso

foi, outrora, um amante,como eu, que sofria com a

indiferença de uma mulher...A asa curva do vaso é o

braço que enlaçavao pescoço da bem-amada.

9Como é vil

o coração que,incapaz de amar, não pode

conhecer o delírio dapaixão!...

Se não amas, és um indignodo sol que te ilumina

da lua que te consola.

10Sinto que

a minha mocidade refloresce.Desejo aquele vinho

que me dá calor e alegria...Quero vinho...

Dizes que é amargo?Não importa.

Tem o gosto da vida.

Page 5: Omar Khayyam - Rubaiyat

11Inútil é

que te aflijas: nadapodes acerca do teu destino.

Se és prudente, aproveitao momento atual.

O futuro?Sabes o que ele te

reservará?...

12Além da

Terra, além do Infinito,eu procurava em vão o Céu

e o Inferno.Mas uma voz me disse:

"O Céu e o Inferno estão em ti mesmo."

13Deixemo-nos

de palavras vãs.Levanta-te e dá-meum pouco de vinho.

Esta noite tua boca é a maisbela rosa do mundo e bastapara todos os meus desejos.

Dá-me vinho.Que ele seja corado como astuas faces, e o meu remorso

será leve como as tuas tranças.

Page 6: Omar Khayyam - Rubaiyat

14A brisa da

primavera renovaas rosas e, na sombra azul

do jardim, acariciao rosto de minha amada.

A despeito da ventura quejá gozei, sou tão feliz hoje

que não me lembro de ontem:esqueço o passado...

É tão imperioso o prazerdeste momento...

15Perderei

ainda muito tempo,querendo encher o mar com

pedras?Desprezo igualmente

os libertinos e os devotos.Kháyyám, quem te poderá

assegurar que irás para o Céuou para o Inferno?

Que significam essas duaspalavras?... Conheces alguém

que já tenha visitadoesses países misteriosos?

16Bebo, mas

ignoro quem te fez,ó urna imensa!

Sei apenas que podes contertrês medidas de vinho e queum dia a Morte te destruirá.

Mais tarde, indagarei porquem foste criada, por que

foste feliz, por que não és maisque poeira.

Page 7: Omar Khayyam - Rubaiyat

17Os dias

passam rápidoscomo as águas do rioou o vento do deserto.Dois há, em particular,

que me são indiferentes:o que passou ontem,o que virá amanhã.

18Quando nasci?

Quando morrerei?Nenhum homem pode evocar

o dia do seu nascimentoou prever o de sua morte.

Vem, ó minha deliciosa amada!Quero esquecer, na embriaguez,

a nossa incurávelignorância.

19Kháyyám!

Tecendo a tenda da sabedoriacaíste na fogueira da Dor

e ficaste reduzido a cinzas.O anjo Azrael cortou as

cordas da tenda e a Mortevendeu-a por uma canção.

20Kháyyám!

Não se aflijas por seresum grande pecador!É inútil a tua tristeza.

Depois da morte virá oNada ou a Misericórdia.

Page 8: Omar Khayyam - Rubaiyat

21Nas igrejas,

nas sinagogas e nasmesquitas buscam refúgioos que temem o inferno.

Mas o homem que conheceos segredos de Deus nãocultiva no seu coração assementes do terror e da

súplica.

22Na primavera,

gosto de sentar-meà orla de um campo florido.

Bebo o vinho que meoferece uma linda rapariga enão cuido de minha salvação.

Se tal pensamento meocupasse, eu valeria menos

que um pobre cão.

23O imenso

mundo: um grão de areia perdido no espaço.

Toda a ciência dos homens: palavras.

Os povos, os animais e asflores dos sete climas:

sombras.O resultado de tua meditação: nada.

Page 9: Omar Khayyam - Rubaiyat

24Eu cambaleava

de sono, e aSabedoria me disse: "Nunca,no sono, a rosa da felicidade

floriu para ninguém.Por que te abandonares a

esse irmão da Morte?Bebe vinho?Tens muitos

séculos para dormir!"

25Meu coração

diz: "Quero saber!Tenho um desejo ardente de ciência!

Instrui-me, Kháyyám,tu que tanto estudaste!"

Pronunciei a primeira letrado alfabeto, e o meu coração

retrucou: "Agora, sei.Um é o primeiro algarismodo número que não acaba

nunca..."

26Ninguém

desvendaráo que é misterioso.

Ninguém poderá ver o quese oculta debaixo das

aparências.Todas as nossas moradas

são provisórias, salvo a última,no coração da terra.Bebe o vinho amigo!

Basta de palavrassupérfluas.

Page 10: Omar Khayyam - Rubaiyat

27Admito que

tenhas resolvidoo enigma da criação.

E o teu destino?...Convenho que tenhas

despido a Verdadede todas as suas roupagens.

E o teu destino?...Admito que tenhas vividocem anos felizes e ainda

restem outros cem a viver.E o teu destino?...

28Convence-te

bem do seguinte:Um dia tua alma abandonará

o teu corpo e serásarrastado para trás do véuque flutua entre o universo

e o incognoscível.Enquanto esperas,cuida de ser feliz!

Não sabes de onde vens.Não sabes para onde vais.

29Os sábios

e os filósofosmais ilustres caminharamnas trevas da ignorância.

E eram os luzeirosdo seu tempo!...

Em suma, que fizeram eles?Pronunciaram algumas

frases confusase adormeceram fatigados.

Page 11: Omar Khayyam - Rubaiyat

30A vida é um

jogo monótonoem que tens a certezade ganhar dois pontos:

a dor e a morte.Feliz a criança que expirou

no dia do nascimento!...Mais feliz ainda é o quenão veio a este mundo...

31Na feira

que atravessas, nãotentes encontrarnenhum amigo.

Não procures tampoucoum abrigo seguro.

Com alma serena, aceitaa dor sem esperança

de remédio, que não existe.Sorri ao infortúnio e nãopeças a ninguém que te

sorria: seria tempo perdido.

32A rosa

gira descuidosados cálculos dos sábios.Renuncia à vaidade de

contar os astros e meditaantes sobre esta certeza:

deves morrer, não sonharásmais e os vermes da terraou os cães vagabundosdevorarão o teu cadáver.

Page 12: Omar Khayyam - Rubaiyat

33O criador

do universoe das estrelas excedeu-se

quando inventou a dor.Lábios vermelhos como rubi,cabeleiras embalsamadas,

quantos sois neste mundo?...

34Nem sequer

entrevejo o Céu...Meus olhos estão toldados

de lágrimas.O fogo do Inferno é umachama ligeira comparado

às labaredas que medevoram a alma.

O Céu é, para mim,um instante de paz.

35Sono sobre

a terra.Sono debaixo da terra.Sobre a terra, debaixo

da terra, homens deitados.O nada em toda parte.

Deserto do nada.Homens chegam.

Outros partem.

36Velho mundoque atravessa

a galope o cavalo brancoe negro do Dia e da Noite,

és o palácio triste ondecem Djemchids sonharam com

a glória e cem Bahrâmssonharam com o amor,

e todos despertaram chorando.

Page 13: Omar Khayyam - Rubaiyat

37O vento

do Sul crestoua rosa a que o rouxinol

entoava um hino.Devemos chorar o destino

da rosa, ou o nosso?Quando a morte empalidecer

nossas faces, outrasrosas desabrocharão...

38Esquece

que ontemnão lograste a recompensa

que merecias.Sê feliz.

Não lamentes nada.Não esperes nada.

Tudo que deve acontecerestá escrito no Livro

que o vento da Eternidadefolheia ao acaso.

39Sempre que

ouço dissertarsobre os gozos reservados

aos Eleitos, limito-mea dizer: "Só tenho confiança

no vinho.Moeda sonante,

e não promessas!O ruído dos tambores

é belo a grande distância..."

Page 14: Omar Khayyam - Rubaiyat

40Bebe vinho!

Só ele te dará a mocidade,ele é a vida eterna!

Divina estação das rosas,do vinho e dos bons amigos!

Sê feliz um instante,o instante fugitivoque é a tua vida...

41Bebe um

pouco de vinhoporque dormirás muito tempodebaixo da terra, sem amigo.sem camarada, sem mulher.

Confio-te um segredo:as tulipas murchas

não reflorescem mais.

42Baixinho,

a argila segredouao oleiro que a trabalhava:

"Não esqueçasque já fui como tu...Não me maltrates..."

43Oleiro,

se tu és perspicaz,não mortifiques a argila

em que Adão foi modelado!Vejo no torno que moves

a mão de Feridoun,o coração de Khorsrou...

Que fizeste?...

Page 15: Omar Khayyam - Rubaiyat

44A tulipa

rubra nasceno campo regado outrorapelo sangue de um rei.A violeta brota do sinalde beleza que palpitava

no rosto de um adolescente.

45Há miríades

de séculos as aurorase os crepúsculos sucedem.

Há séculos e séculosos astros fazem

a sua ronda de sempre.Pisa a terra com cautela...

talvez o torrão que vaisesmagar tenha sido o olho

terno de um belo adolescente.

46As raízes do

narciso, que balança àbeira do riacho, brotaramdos lábios de uma mulher.

Pisa muito de levea relva macia!

Quem sabe se ela nãogerminou nas cinzas

de rostos que eram belose brilhantes comotulipas vermelhas?

Page 16: Omar Khayyam - Rubaiyat

47Vi ontem

um oleiro sentadodiante do seu torno,

modelando as alças e oscontornos de uma urna.

O barro que ele amassavaera feito de crânios

de sultõese de mãos de mendigos.

48O bem e o mal disputama primazia neste mundo.O Céu não é responsável

pela felicidade ou peladesventura que o destino

nos reserva.Não agradeças, pois, ao

Céu, não o acuses também.Ele é indiferente às tuas

alegrias, indiferenteaos teus pesares.

49Se enxertasteno teu coraçãoa rosa do Amor,

tua vida não foi inútil,quer tenhas buscado ouvira voz de Deus, quer tenhas

sorridente empunhadoa taça do prazer.

50Sê prudente, ó viajante!Perigoso é o caminho

que palmilhas!A espada do destino

é acerada.Não colhas as amêndoasdoces que encontrares:

têm veneno.

Page 17: Omar Khayyam - Rubaiyat

51Um jardim,

uma rapariga ondulosa,uma ânfora de vinho, o meu desejo e minha amargura: eis o meu

Paraíso e o meu Inferno!...Quem sabe, porém, o queé o Céu, que é o Inferno!?

52Tu, cujas

faces tiverampor modelos as flores

do campo, cujo rosto pareceo de um ídolo chinês,

saberás acaso que o teuolhar de veludo fez o rei

da Babilônia igual aobispo do jogo de xadrezque foge da rainha?...

53A vida passa.

Que restade Bagdad e de Balk?O choque mais ligeiro

é fatal à rosa completamentedesabrochada...

Bebe vinho e contemplaa lua, evocando as civilizações

que ela já viu morrer

54Escuta a voz da

Sabedoria, que te repeteo dia inteiro: "A vida

é breve e tu não és comoas plantas que reverdecem

depois de podadas."

Page 18: Omar Khayyam - Rubaiyat

55Os professores

e os sábios silenciososmorreram sem se entenderemno tocante ao ser e ao não-ser.

Meus irmãos!Ignorantes, continuemosa saborear o suco dos

bons cachos e deixemosque os grandes homens se

regalem com as passas.

56Meu nascimento não trouxe

nenhum proveito ao universo.MInha morte não lhe

diminuirá a imensidade,nem a beleza.

Ninguém pode explicar-mepor que vim, por que me vou

embora.

57No caminho do Amor

nos perderemos e o Destinonos esmagará com o seu tacão.

Ó rapariga, ó minha taçaencantada, ergue-te e dá-me

de beber em teus lábios,antes que eu me transforme

em poeira.

58Só de nome conhecemos

a felicidade...Nosso amigo mais velho

é o vinho novo.Acaricia com o olhar

e com a mão o único bemque não falha: a urna

cheia do sangue da vinha.

Page 19: Omar Khayyam - Rubaiyat

59Não busques a felicidade

A vida é breve como um suspiro.As cinzas de Djemchide de Kai-Kobao giram

na poeira vermelhaque tolda o ar.

O universo é uma miragem.A vida é um sonho.

60Senta-te e bebe, que serás

mais feliz que Mahmud.Escuta as melodias que

exalam as harpas dos amantes:são os verdadeiros salmos

de David.Não mergulhes no passado,

não sondes o futuro.Que o teu pensamento não váalém do momento presente:

eis o segredo da paz!...

61Os homens

estreitos e orgulhososcriaram diferençasentre alma e corpo.

De mim, so afirmo uma coisa:o vinho destrói os cuidados

que nos atormentam e nos dá a quietude perfeita.

62Que enigma,

os astrosque saltam no espaço!

Kháyyám, agarra-tefirmemente

à corda da Sabedoria.Presta atenção à vertigem,

que faz cair, perto de ti,os teus companheiros!

Page 20: Omar Khayyam - Rubaiyat

63Não temo a Morte:

prefiro esse fato inelutávelao outro que me foi impostono dia do meu nascimento.

Que é a vida?Um bem que me confiaram

sem me consultar e querestituirei com indiferença.

64A vida passa,

qual rápida caravana!Toma as rédeas ao teu

corcel, pára e surpreendeo minuto de alegria...

Linda rapariga,por que te afliges?

Dá-me um pouco de vinho.A noite já vai acabar...

65Ouço dizer

que os amantes do vinhoserão danados no Inferno.Não há verdades, mas há

mentiras evidentes.Se os que amam o vinho

e o amor vão para o infernoo Paraíso deve estar vazio.

66Estou velho,

e a paixão que me inspirastearrastar-me-á ao túmulo,pois não cesso de encherde vinho a grande taça.Minha paixão por ti tem

razão contra mim mesmo...E o tempo desfolhaa minha bela rosa...

Page 21: Omar Khayyam - Rubaiyat

67Podes obcecar-me,

ó miragemde uma outra ventura!

Podeis modular vossasencantações, ó vozes amorosas!

Contemplo a que já escolhie só quero ouvir a voz

que me seduziu.Alguém me dirá:

"Deus te perdoará."Recuso o perdão

que não pedi.

68Um pouco de pão,

um pouco de água fresca,a sombra de uma árvore

e os teus olhos!Nenhum sultão

é mais feliz do que eu...Nenhum mendigo

é mais triste....

69Por que

tanta suavidade, tantaternura, no começo

do nosso amor?Por que tantos carinhos,tantas delícias, depois?E...por que, hoje, o teuúnico prazer é dilacerar

o meu coração?Por quê?

Page 22: Omar Khayyam - Rubaiyat

70Vinho!

Eis o remédio de que careceo meu coração doente!

Vinho com perfumealmiscarado!

Vinho cor de rosa!Dá-me vinho para apagar

o incêndio da minha tristeza!Vinho e o teu alaúdede cordas de seda,

ó minha bem-amada!

71Falas-me deum Criador...

Pois ele só formouas criaturas

para destruí-las?...Por que são feias?Por que são belas?

A quem cabea responsabilidade?

Não compreendo nada.

72Todos os

homens pretendemcaminhar na estradado Conhecimento.

Essa estrada, uns a procuram, outros

afirmam tê-la encontrado.Um dia, porém, uma voz

proclamará: "Não hácaminho, nem atalho!"

Page 23: Omar Khayyam - Rubaiyat

73Oferece às

luzes da aurorao vinho de tua taça,

semelhante à tulipa primaveril!Dedica ao sorriso de um

adolescente o vinho de tuataça, que é vermelho

como a tua boca!Bebe e esquece que opunho da dor breve te

derribará.

74Vinho!

Vinho em torrentes!Que ele palpite

nas minhas veias!Que ele borbulhena minha cabeça!

Taças!...Silêncio!

Tudo é mentira...Taças...

Depressa!Envelheci muito...

75Um tal

odor de vinhoemanará do meu túmulo, que

embriagará os viandantes.Uma serenidade tal

pairará sobre a minhasepultura, que os amantes não

poderão afastar-se dela.

Page 24: Omar Khayyam - Rubaiyat

76No turbilhão

da vida só sãofelizes os homens que,presumindo saber tudo,não buscam instruir-se.

Inclinei-me naperscrutação de todos

os segredos do Universo,e voltei à minha solidão,

invejando os cegosque encontrei pelo caminho.

77Dizem-me:

"Não bebas mais,Kháyyám!"

E eu respondo:"Quandobebo, ouço o que dizem as

rosas, tulipase os jasmins. Ouço mesmoo que não me podem dizer

a minha bem-amada!"

78Em que

pensas, amigo meu?Em teus antepassados?

São o pó no pó.Pensas nas virtudes

que tiveram?Deixa-me sorrir...

Toma esta urna e bebamos,escutando sem inquietação ogrande silêncio do Universo.

Page 25: Omar Khayyam - Rubaiyat

79Amigo:

não faças projetoalgum para amanhã.

Sabes acaso se poderásconcluir a frase

que vais começar?Amanhã, estaremos talvez

muito longe destahospedaria, como os que jáse foram há sete mil anos.

80Ó gladiador

de corações,toma uma urna e uma taça!

Sentemos-nos à beirada corrente cristalina.

Esbelto adolescente desemblante luminoso, eu te

contemplo e imaginoa urna e a taça

que serás mais tarde!...

81Há muito

tempo a minha mocidade jazentre as coisas mortas.

Primavera da minha vida,estás hoje onde estão as

primaveras que passaram.Mocidade minha! passaste

sem que eu me apercebesse!Partiste, como aos poucos

se vão os melhoresdias da primavera.

Page 26: Omar Khayyam - Rubaiyat

82Delicia-te, ó

meu irmão, comtodos os perfumes, todas

as cores, todas as músicas.Envolve de caríciastodas as mulheres.

Lembra-te de que a vidaé fugaz e que breve

voltará ao pó.

83É loucuraaspirares

à paz neste mundo.Loucura é creres num

repouso eterno: - depoisde tua morte, teu sono serábreve e renascerás num tufode ervas, que será pisado, ounuma flor que o sol crestará.

84Pergunto a mim mesmo

o que em verdade possuo.Considero o que subsistirá

de mim depoisde minha morte.

Nossa vida é brevecomo um incêndio.

Chama, que um leve soproapaga; cinzas, que o ventodispersa: eis a existência

de um homem.

85Convicção

e dúvida, erro e verdade - são palavras tão vaziascomo uma bolha de ar.Irisada ou opaca, essa

bolha é a imagemde tua vida.

Page 27: Omar Khayyam - Rubaiyat

86Mais vale

uma urna de vinhoque o poder,

a glória e as riquezas.Respeito o amante que

geme de felicidade; detestoo hipócrita

que murmura orações.

87Escuta um

grande segredo:quando a primeira aurora

iluminou o mundo, Adão jáera uma criatura dolorosa,

que pedia a noite,que ansiava pela morte.

88A Lua do Ramazam

apareceu.Amanhã o sol banhará deluz uma cidade silenciosa.E os vinhos dormirão nassuas urnas e as raparigas

à sombra dos bosques.

89Não pedi

a vida a ninguém.Esforço-me por acolher

sem espanto e sem cóleratudo o que a vida me oferece.

Partirei sem indagaro motivo da minha misteriosa

estada neste mundo.

Page 28: Omar Khayyam - Rubaiyat

90Colhe todos

os frutos da vida.Busca todas as alegrias eescolhe as taças maiores.Não creias que Deus faça

a conta dos teus víciosou das tuas virtudes.Não deixes escapar

o que te pode dar felicidade.

91Não me preocupa saber

onde poderei comprar o mantoda Mentira e do Ardil.

Mas ando sempre à procurado bom vinho.

Meus cabelos estão brancos.Tenho setenta anos de idade.

Agarro hoje o momento dafelicidade, pois, amanhã,

talvez não me restem forças.

92Que é feitode todos

os nossos amigos?Será que a morte os

derribou e pisou?Que é feito

dos nossos amigos?Ouço ainda suas cantigas

na taverna...Morreram?

Estão embriagados?

Page 29: Omar Khayyam - Rubaiyat

93Quando eu não viver mais, não

haverá mais rosas, nemciprestes, nem lábios vermelhos,

nem vinhos perfumados.Não haverá mais auroras,

nem crepúsculos, nem alegrias, nem penas.

O universo não existirámais, pois tudo existe em

função do meu pensamento.

94Eis a verdade

única: - somos os peões da misteriosa

partida de xadrez, jogadapor Deus, que nos desloca,

nos pára, nos põe maisadiante, e depois nos recolhe

um a um à caixa do Nada.

95A abóbada celeste parece uma

taça emborcada, debaixoda qual se agitamem vão os sábios.

Que o teu amor à bem-amadaseja igual

ao da urna pela taça.Olha bem: lábio colado a

lábio, elas se dãoo próprio sangue.

Page 30: Omar Khayyam - Rubaiyat

96Os sábios não te ensinaramcoisa alguma, mas a carícia

dos longos cílios de uma mulherpoderá revelar-te a felicidade.

Não esqueças que os teusdias estão contados e que

serás em brevea presa da terra.

Compra vinho e, recolhidoao teu canto, busca

nele o consolo.

97O vinho

dar-te-á o calorque não possuis.

Libertar-te-ás das névoasdo passado

e das brumas do futuro.Inundar-te-á de luz,

livrando-te dos grilhõesde prisioneiro.

98Outrora,

quando eu freqüentavaas mesquitas, não fazia

orações, mas voltava à casarico de esperanças.Ainda hoje, gosto

de sentar-me nas mesquitas.Nelas, a sombra

é propícia ao sono.

Page 31: Omar Khayyam - Rubaiyat

99Na terra

multicor, caminhaum mortal, que não é

muçulmano, nem infiel, nãoé rico, nem pobre.

Esse homem não veneraDeus, nem acata as leis;não acredita na verdade,

nunca afirma coisa alguma...Na terra sarapintada,quem é esse homemintrépido e triste?...

100Antes que

possas afagarum rosto macio como rosa,quantos espinhos tens queretirar de tua própria carne!

Olha este pente!Era um pedaço de madeira.

Quando o cortaram, que suplícios sofreu!

Mas depois, mergulhounuma cabeleira profunda...

101Quando a

brisa da manhãentreabre as rosas e lhessegreda que as violetas jáostentam as suas vestes,só é digno da vida o quecontempla ao seu lado,

adormecida, uma esbeltarapariga, e toma da taça

e a esvazia,e depois a atira ao chão.

Page 32: Omar Khayyam - Rubaiyat

102Queres saber

o que teacontecerá amanhã?...

Erro!Sê confiante, senão

o infortúnio não deixaráde justificar

as tuas apreensões.Não te apegues a nada, não

interrogues nem os livros,nem as pessoas: o nosso

destino é insondável.

103Um dia,

numa taverna, pedia um velho notíciasdos que partiram.

e ele me respondeu:"Não voltarão.

Eis tudo o que sei.Bebe vinho!"

104Olha!

Escuta!Uma rosa treme

ao sopro da brisa.E um rouxinol lhe entoaum canto apaixonado.

Uma nuvem parou.Bebamos vinho.

Esqueçamos que a brisadesfolhou a rosa, e levará ocanto do rouxinol e a nuvemque nos dá neste momentouma sombra tão preciosa.

Page 33: Omar Khayyam - Rubaiyat

105A abóbada

celeste sob a qualvivemos é comparável a uma

lanterna mágica,de que o sol é a lâmpada.E nós somos as figurinhas

que se movem.

106Uma rosa dizia:

"Sou a maravilha do universo.Será possível que um

perfumista tenha coragemde fazer-me sofrer?"Um rouxinol cantou:"Um dia de felicidade

prepara um ano de lágrimas."

107Logo à noite,ou amanhã,

não existirás mais.É tempo de pedires

um vinho cor de rosa.Louco!

Cuidas por acaso que és umtesouro e que os ladrões já

premeditam violar o teusepulcro

e roubar o teu cadáver?

Page 34: Omar Khayyam - Rubaiyat

108Sultão,

o teu destinoglorioso estava escrito

nas constelações onde brilhao nome de Khosrou!

Desde o começo dos tempos,o teu cavalo de ferraduras

de ouro galopava nos astros.Quando passas,

um turbilhão de centelhaste oculta de nossas vistas.

109O amor quenão devastanão é amor.

Um tição espalhaacaso o mesmo calor

que uma fogueira?Noite e dia, durante

a vida inteira, o verdadeiroamante se consomena dor e no prazer.

110Podes sondar

a noite que nos cerca.Podes afundar

pelo mistério adentro.Em vão!

Ó Adão e Eva!Como deve ter sido amargo

o vosso primeiro beijo,para que nos gerásseis

tão desesperados!...

Page 35: Omar Khayyam - Rubaiyat

111As flores

do céu deixam cairas suas pétalas de ouro,e não sei por que o meu

jardim aindanão está todo atapetado.Como o céu espalha as

flores sobre a terra,eu encho a minha taça

de um vinho cor de rosa!...

112Bebo o vinhocomo a raiz

do salgueiro bebea água da corrente.

Deus só é Deus,só Deus sabe tudo - dizes.

Pois bem: quando eleme criou, sabia que eubeberia vinho. Se me

tornasse abstêmio, a ciênciade Deus estaria errada.

113Só o vinho

te libertará decuidados, só ele te impedirá

de ficar hesitante entreas setenta e duas seitas.Não abandones nunca

o mágico que temo condão de conduzir-te aodoce país do esquecimento.

Page 36: Omar Khayyam - Rubaiyat

114Todas as

manhãs, o orvalhopesa sobre as tulipas, osjacintos e as violetas, atéque o sol venha aliviá-los

desse belo fardo.Todas as manhãs, sinto o

coração mais pesado no meupeito, mas logo o teu olhardissipa a minha tristeza.

115Se queres

gozar a solidãomagnifica das estrelas e dasflores, rompe com todos os

homens, desliga-tede todas as mulheres.

Não busquesa companhia de ninguém.

Não te inclinessobre dor alguma.

Não participesde alegria alheia.

116O vinho tem

a cor das rosas.O vinho não é talvezo sangue das vinhas,

mas dos rosais.Esta taça talvez não sejade cristal, mas do próprioazul do céu coagulado.

A noite é talveza pálpebra do dia.

Page 37: Omar Khayyam - Rubaiyat

117O vinho

proporciona aossábios uma embriaguez

semelhante à dos Eleitos;dá-nos a mocidade,

restitui-nos o que perdêramos,põe ao nosso alcance tudo

quanto desejamos.

118Fecha o teu

Corão.Pensa livremente

e livremente encarao Céu e a Terra.

Ao pobre que passa,dá a metade do que possuis.Perdoa a todos os culpados.

Não entristeças ninguém.E esconde-te para sorrir...

119Como o

homem é fracoe o destino inelutável!

Fazemos juramentos quenão cumprimos e nossa

própria humilhação nos éindiferente.

Eu mesmo procedofreqüentemente

como um desassisado.Mas tenho uma escusa:

estou embriagado de amor.

Page 38: Omar Khayyam - Rubaiyat

120Homem, se

este mundo é uma miragem,por que te desespera,

por que pensas sem tréguasna tua miserável condição?

Abandona tua almaà fantasia das horas.

Teu destino está escrito.Nenhuma emenda

adiantará.

121Aurora!

Felicidade e pureza!Um imenso rubi cintila

em cada taça.Toma estes dois

ramos de sândalo.Transforma o maior numacítara e beija o outro, para

que o seu perfumete embalsame.

122Cansado

de interrogarem vão os homens e os livros,

interroguei a taça.Colei os meus lábios aosseus lábios e murmurei:

"Para onde irei,depois de morto?"

E a taça me respondeu:"Bebe na minha boca.

Bebe longamente.Não volverás

jamais a este mundo."

Page 39: Omar Khayyam - Rubaiyat

123Se bebes

um bom vinho,Kháyyám, és feliz.

Se contemplas a tuafresca namorada, és feliz...Se sonhas que não existes

mais, és feliz,pois a morte...é o nada.

124Atravessavaeu um dia

a oficina de um oleiroe havia duas mil urnasque falavam baixinho.

De repente, uma delas gritou: "Silêncio!

Permiti que esse homemevoque os oleirose os compradores

de urnas que já fomos..."

125Dizes que

o vinhoé o bálsamo único?

Traze-me todo o vinhodo universo! Meu coração

tem tantas feridas!...Todo o vinho do universo,

e que meu coraçãoconserve as suas mágoas!

Page 40: Omar Khayyam - Rubaiyat

126É uma calma

delicada,a do vinho!

Oleiro, para esta almatão fina, fazei urnasde paredes macias.

Cinzeladores de taças,arredondai-as com amorpara que o vinho se sinta

docemente acariciadona sua alma voluptuosa.

127Ignaro, que

cuidas ser sábio,vejo-te sufocado entreo infinito do passadoe o infinito do futuro.

Bem quiseras pôr um limiteentre esses infinitos

e parar...Vai antes sentar-te

à sombra de uma árvore,perto de uma ânfora de vinho,

que esquecerás a tuaimpotência.

128Contenta-te em saber que tudo

é mistério: a criaçãodo mundo e a tua, o destino

do mundo e o teu.Sorri a esses mistérios

como a um perigoque desprezasses.

Não cuides que saberásalguma coisa mais quando

tiveres transpostoa porta da Morte.Paz ao homem

no negro silêncio do Além!

Page 41: Omar Khayyam - Rubaiyat

129No meio do campo verde,

a sombra desta árvoreparece uma ilha.

Viandante, fica onde estás!Entre o caminho que seguese esta sombra que baloiça

lentamente há talvezum abismo intransponível.

130Que devo fazer hoje?

Irei à taverna?Irei sentar-me num jardim,ou passarei o dia curvado

sobre um livro?Um pássaro voa. Aonde irá?

Perdi-o já de vista.Ó embriaguez de um pássaro

no azul morno do céu!Ó melancolia de um

homem na sombra frescade uma mesquita!...

131Um pouco

mais de vinho,ó minha amada.

Tuas faces não têm aindao brilho das rosas.

Um pouco mais de tristeza,Kháyyám!...

Tua amada vai olhar-te...vai sorrir...

Page 42: Omar Khayyam - Rubaiyat

132Nosso universo

é um caminho de rosas.Nossos visitantessão as borboletas.Nossos músicossão os rouxinóis.

Quando não há mais rosas,nem folhas, as estrelas são

as minhas rosas e a tuacabeleira é a minha floresta.

133Servidores, não é mister

trazerder as lâmpadas, queos meus convivas, extenuados,

adormeceram.Vejo ainda claro paranotar-lhes a palidez.

Hirtos e frios, assim serãoeles na noite do túmulo.Não é mister trazerdes

as lâmpadas, ó servidores:os mortos não despertam.

134Quando cambaleares ao peso

da dor, quando os teusnão tiverem mais lágrimas,

pensa nos campos de verduraque brilham depois das chuvas.

Quando o esplendor do diate exasperar, quando desejares

que uma noite eterna desçasobre o mundo,

pensa no despertarde uma criança.

Page 43: Omar Khayyam - Rubaiyat

135Dissimulo as minhas tristezas,

como os pássaros feridosse encondem para morrer.

Dá-me vinho!Escuta os meus gracejos.

Quero vinho e rosase canto ao som da cítara,

a tua indiferença pelaminha dor, ó bem-amada!

136Senhor!

Armaste mil ciladas invisíveis no caminho que seguimos,

e disseste: "Desgraçadoo que não as evitar."

Tu vês tudo. Tu sabes tudo.Nada acontece sem a tuapermissão. Seremos, pois,responsáveis por nossos

pecados?Farás um crime

da minha revolta?

137Tive mestres eminentes.Alegrei-me com os meus

progressos e triunfos.Hoje, evocando o sábio

que era, comparo-me naqueletempo à água que toma

a forma do vaso e à fumaçaque o vento dissipa.

Page 44: Omar Khayyam - Rubaiyat

138Para o sábio, a tristeza

e a alegria, o bem e o malvalem a mesma coisa.Para o sábio, tudo quecomeçou deve acabar.

Vê, pois, se convém ficaresalegre com a felicidade

que chega ou lamentaresa desgraça

que não esperavas.

139Dervixe,

despe-te dessasvestes coloridas de que tantote orgulhas e que não tinhas

ao nasceres.Enverga o manto da pobreza.

Os viandantes não tecumprimentarão mais,mas todos os serafins

do céu cantarão em teu peito.

140Bêbado ou sedento,

só quero dormir.Renunciei saber o queé o bem, o que é o mal.

Para mim, o prazer e a dorsão parecidos.

Quando me chega umafelicidade, dou-lhe lugar

modesto, porque sei que umadesgraça vem no seu encalço.

Page 45: Omar Khayyam - Rubaiyat

141Não é possível incendiaro mar, nem convencer

o homem de que a venturaé frágil

E o homem sabe que omais leve choque é fatal à

urna cheia e não causadano à urna vazia...

142Olha em torno de ti.

Não verás senão aflições,angústias e desesperos.

Morreram os teusmelhores amigos.A tristeza é a tua

companheira única.Ergue, porém, a cabeça,

abre as mãos e agarra o quedesejas e podes atingir.

O passado é um cadáverque deves enterrar.

143Vejo um cavalheiro

que se afasta na bruma da tarde.Irá ele atravessar florestas,

ou planícies áridas?Aonde vai?

Não sei.Amanhã estarei deitado

sobre a terraou debaixo dela?

Não sei.

Page 46: Omar Khayyam - Rubaiyat

144Só vês

as aparênciasdas coisas e dos seres.

Sabes que é ignorante, masnão queres renunciar ao amor.

Lembra-te de que Deus fezo amor como fez

certas plantas venenosas.

145Homem miserável,

nunca saberás coisa alguma.Não elucidarás um só

dos mistérios que te cercam.Posto que as religiões

te prometam o Paraíso, cuidade criar um neste mundo,que o outro é duvidoso.

146Lâmpadas que se apagam,

esperançasque se acendem: Aurora.

Lâmpadas que se acendem,esperanças

que se apagam: Noite.

147Todos os reinos por uma taça de vinho precioso.Todos os livros e toda

a ciência dos homens porum perfume suave de vinho!

Todos os hinos de amorpela canção do vinho que corre!

Toda a glória de Feridounpelos reflexos do vinho

na urna!

Page 47: Omar Khayyam - Rubaiyat

148Recebi o

golpe que esperava.Abandonou-me a bem-amada.

Quando eu a possuía,era-me tão fácil desprezar o

amor e exaltar todasas renúncias!...

Junto de tua amada,Kháyyám, como estavas só!

Sabes?Ela se foi para que tu

possas refugiar-te nela...

149Senhor!

Despedaçaste a minha alegria!Senhor, ergueste uma

muralha entre o coraçãoda minha amada e o meu!

Minha bela colheita,tu a destruíste...

Vou morrer...Tu cambaleias!...embriagado.

150Silêncio, ó dor da minha alma!

Deixa-me procurar um remédio.É preciso que eu viva.

Os mortos não têm memória.E eu quero rever

a minha bem-amada...

151Cítaras, perfumes e taças,lábios, cabeleiras e olhosalongados - brinquedos

que o tempo destrói,brinquedos!

Austeridade, solidão e labor,meditação, súplicas e renúncias- cinzas que o tempo espalha,

cinzas!

Page 48: Omar Khayyam - Rubaiyat

152A aurora encheu de rosas

a taça do Céu.No ar de cristal ecoa o canto

do último rouxinol.O perfume do vinho é mais

suave... Ó delícia!...E dizer-se que

em momentos tais há insensatos que sonham

com a glória e cuidamde honrarias!

Tua cabeleira, ó minha bem-amada,

é macia como a seda.

153Noite. Silêncio. Imóveisas folhas das árvores,

imóvel o meu pensamento.Uma rosa, ao meu lado,

deixou cair a primeira pétala...Onde estás, tu que me

ofereceste a taça e por quemainda suspiro?!

Certo, uma rosa não se desfolha perto daquele

a quem tu, neste momento, sacias a sede: mas sentes certamente a falta

do prazer amargoque sei proporcionar-te

e que faz delirar.

Page 49: Omar Khayyam - Rubaiyat

154Se soubesses

como me interessampouco os quatro elementos

da natureza e as cincofaculdades do homem!...Dizes que certos filósofos

gregos podiam propor aos seusauditores cem enigmas?

Tudo isso me é indiferente.Traze-me um pouco de vinho,

e dedilha a cítara para queas suas modulações me

sugiram a brisa, que passaligeira como nós todos!...

155Quando a sombra da Morte

se alongar sobre mim, quandoo feixe dos meus dias estiver

atado, eu vos chamarei,ó meus amigos, e vós metransportareis para o meu

túmulo.Tornado em pó, fareis uma urna

com as minhas cinzas ea enchereis de vinho.

Talvez, então, assistais aomilagre da minha ressureição.

Page 50: Omar Khayyam - Rubaiyat

156Senhor, ó Senhor,

responde-nos!Deste-nos olhos e permitiste

que a beleza das tuascriaturas nos deslumbrasse!...

Deste-nos a faculdade desermos felizes e queres que

renunciemos ao gozodos bens deste mundo!

Impossível!Tão impossível como viraruma taça sem derramar

o vinho que nela se contém!

157Toma a resolução

de não mais contemplar o céu.Cerca-te de belas raparigas

e deixa que elas te acariciem.Hesitas ainda?

Tens ainda a tentaçãode orar a Deus?

Antes de ti, outros homensfizeram súplicas ardentes.

É certo que eles jápartiram deste mundo, mas tuignoras se Deus as escutou.

158Mais uma aurora!

Como todas as manhãs,descubro hoje o esplendor

do mundo e me aflijo por nãopoder render graças

ao Criador dele...Mas, há tantas rosas, que

me consolo, e tantos lábiosque se oferecem aos meus!...

Deixa tua cítara,ó minha bem-amada:

os pássaros estão cantando...

Page 51: Omar Khayyam - Rubaiyat

159Aprendi muito

e esqueci muito,voluntariamente.

Na minha memória, cadacoisa estava no seu lugar.Por exemplo: o que estavaà direita não podia passar

para a esquerda.Só conheci a paz no diaem que rejeitei tudo comdesprezo: compreenderaafinal que é impossível

afirmar ou negar.

160Visto que a

nossa sorte neste mundoé sofrer e depois morrer,devemos desejar que

o nosso corpo miserávelvolte depressa à terra?

"E nossa alma?" - perguntais."Deus a espera para julgá-la

segundo seus méritos?..."Dar-vos-ei a resposta

quando tiver notícias dealguém de volta do

outro mundo.

Page 52: Omar Khayyam - Rubaiyat

161"Deus é grande!"

Este grito do moueddinparece uma imensa queixa.

Cinco vezes por dia a Terra geme inclinada para o

seu Criador indiferente.Olha o riacho que brilha

no teu jardim.Segue o meu exemplo,

cuida que vês o Kaouthar eque estás no Paraíso.Vai buscar tua amiga,fresca como uma rosa.

162És infeliz?

Não penses em tua dor,e não sofrerás.

Se o teu sofrimento é muitoviolento, lembra-te de que

todos os homenstêm sofrido inutilmente

desde a criação do mundo.Escolhe uma mulher de

seios de neve, mas...cautela!não ames essa mulher!...

E que ela tambémseja incapaz de amar-te.