entrevista: c&dconstituição & democracia -...

3
Raposa Serra do Sol: demarcação em perigo Nº 24 Julho de 2008 Constituição & Democracia C&D Consulta prévia sobre barragens em terras indígenas Racismo de Estado contra os índios Entrevista: J. J. Gomes Canotilho

Upload: truongxuyen

Post on 30-Nov-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Entrevista: C&DConstituição & Democracia - ANPRanpr.org.br/novo/files/CeD_24_publica.pdf · O Estado brasileiro e o racismo contra ... St eph nG. Bai s - Professor asssociado, DAN/UnB;

RRaappoossaa SSeerrrraa ddoo SSooll::ddeemmaarrccaaççããoo eemm ppeerriiggoo

Nº 24Julho de 2008 Constituição & DemocraciaC&D

Consulta prévia sobre barragens em terras indígenas

Racismo de Estadocontra os índios

Entrevista:J. J. Gomes Canotilho

Page 2: Entrevista: C&DConstituição & Democracia - ANPRanpr.org.br/novo/files/CeD_24_publica.pdf · O Estado brasileiro e o racismo contra ... St eph nG. Bai s - Professor asssociado, DAN/UnB;

EDITORIALOObbsseerrvvaattóórriioo ddaa CCoonnssttiittuuiiççããoo ee ddaa DDeemmooccrraacciiaa

Ultimamente poucos assuntos têm mobilizado tanto debate na sociedade quanto a ques-tão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Com frequência o assunto emerge em edito-riais e reportagens jornalísticas que primam pela parcialidade, preconceito e distorção dos

fatos. A preocupação com os rumos do caso no Supremo Tribunal Federal fez com que a dis-cussão - antes restrita ao indigenismo - passasse a mobilizar outros setores, como a Ordem dosAdvogados do Brasil e estudantes e professores universitários. Seminários e atos públicos sobrea questão têm sido organizados em diversos locais, como a Faculdade de Direito da USP, a Pon-tifícia Universidade Católica de São Paulo, e a Universidade Federal do Maranhão.

O “Observatório C&D”, fiel ao seu compromisso de posicionamento concreto sobre te-mas constitucionais de relevância para uma democracia plural e participativa, foi o primeiro seg-mento entre as universidades brasileiras a pautar o assunto. Assim realizou no auditório “DoisCandangos”, da Universidade de Brasília, em 28 de maio, e em parceria com o Fórum em De-fesa dos Direitos Indígenas (FDDI), o Seminário “Povos Indígenas, Estado e Soberania Nacional”.A realização desse seminário contou desde o início com o inestimável apoio do professor Boa-ventura de Sousa Santos. Assíduo colaborador do “C&D”, não só cedeu gentilmente para divul-gação o seu artigo “Bifurcação na Justiça” - depois publicado no C&D nº 22 - como elaborouum abaixo-assinado virtual em prol da integridade da terra e dos povos da “Raposa”. Lido parao público do seminário, o abaixo-assinado contou com a adesão imediata dos presentes que lo-taram o Auditório Dois Candangos, sendo em seguida lançado na internet, com adesões no Bra-sil e em diversos países.

Nesta edição especial o “Observatório C&D” resgata para os seus leitores a quase totali-dade das contribuições dos participantes do Seminário “Povos Indígenas, Estado e Soberania Na-cional”, assim como os termos do abaixo-assinado acima referido. Tendo como foco os direitosindígenas e, em específico a questão da Raposa Serra do Sol, os artigos aqui publicados guar-dam profunda sintonia com o contexto dos 20 anos da Constituição Federal de 1988, na medidaem que compõem um quadro avaliativo da importância de diversos princípios constitucionais pa-ra os povos indígenas, e do modo como vêm sendo considerados ou não no momento atual.

GGrruuppoo ddee ppeessqquuiissaa SSoocciieeddaaddee,, TTeemmppoo ee DDiirreeiittooFFaaccuullddaaddee ddee DDiirreeiittoo –– UUnniivveerrssiiddaaddee ddee BBrraassíílliiaa

02 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008

CCoommiittêê NNaacciioonnaall eemm DDeeffeessaa ddaa TTeerrrraa IInnddííggeennaa RRaappoossaa SSeerrrraa ddoo SSoollCCaarroolliinnaa ddee MMaarrttiinnss PPiinnhheeiirroo -- Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília, assessora jurídica doInstituto Sócioambiental – ISA e pesquisadora do grupo O Direito Achado na Rua JJoosséé GGeerraallddoo ddee SSoouussaa JJúúnniioorr -- Professor da Faculdade de Direito da UnB, coordenador dos grupos depesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, da UnB e vice-presidente da ComissãoNacional de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB 0033

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOO JJUUDDIICCIIÁÁRRIIOOOO EEssttaaddoo bbrraassiilleeiirroo ee oo rraacciissmmoo ccoonnttrraa ooss ppoovvooss iinnddííggeennaassEEllaa WWiieecckkoo VV..ddee CCaassttiillhhoo -- Professora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito daUniversidade de Brasília – UnB, Subprocuradora-Geral da República e membro da 6.ª Câmara deCoordenação e Revisão do Ministério Público Federal 0044

IInntteeggrriiddaaddee tteerrrriittoorriiaall ee ddiivveerrssiiddaaddee ssoocciiaallAAnnaa PPaauullaa SSoouuttoo MMaaiioorr -- Advogada, assessora jurídica do Instituto Sócioambiental – ISA. 0066

RRaappoossaa SSeerrrraa ddoo SSooll ee oo ddeebbaattee aattuuaall nnoo SSTTFFDDeebboorraahh DDuupprraatt -- Subprocuradora-Geral da República, Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação eRevisão do Ministério Público Federal 0088

OOss ppoovvooss iinnddííggeennaass ee ooss mmeeccaanniissmmooss iinntteerrnnaacciioonnaaiiss ddee pprrootteeççããoo ddooss DDiirreeiittooss HHuummaannoossCCaarrllooss EEdduuaarrddoo ddaa CCuunnhhaa OOlliivveeiirraa -- Diplomata da Divisão de Direitos Humanos do Ministério das Relações Exteriores – MRE 1100

EENNTTRREEVVIISSTTAA JJ.. JJ.. GGoommeess CCaannoottiillhhoo -- constitucionalista português, autor mais influente do campo em Portugal e no Brasil.Formulador da tese da “constituição dirigente”PPeellaa nneecceessssiiddaaddee ddee oo ssuujjeeiittoo ddee ddiirreeiittoo ssee aapprrooxxiimmaarr ddooss ""ssuujjeeiittooss ddeennssooss"" ddaa vviiddaa rreeaallJJoosséé GGeerraallddoo ddee SSoouussaa JJuunniioorr -- Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, da UnB e da Comissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB 1122

AA TTeerrrraa IInnddííggeennaa RRaappoossaa SSeerrrraa ddoo SSooll ee aa qquueessttããoo ddaa ssoobbeerraanniiaa nnaacciioonnaallSStteepphheenn GG.. BBaaiinneess -- Professor asssociado, DAN/UnB; pesquisador 1B, CNPq 1144

TTeerrrriittóórriiooss IInnddííggeennaass ee SSoobbeerraanniiaa NNaacciioonnaall:: OO ccaassoo RRaappoossaa SSeerrrraa ddoo SSoollPPaauulloo MMaacchhaaddoo GGuuiimmaarrããeess -- Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário - CIMI 1166

NNOOTTAA DDOO CCOORRRREESSPPOONNDDEENNTTEE1100 AAnnooss ddoo TTrriibbuunnaall PPeennaall IInntteerrnnaacciioonnaallGGiioovvaannnnaa FFrriissssoo -- Doutoranda Na Universidade de Nottingham 1188

AA OOIITT ee aa pprrootteeççããoo iinntteerrnnaacciioonnaall ddooss ddiirreeiittooss iinnddííggeennaassRRoossaannee LLaacceerrddaa -- Advogada indigenista, mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante dosgrupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado Na Rua, e professora universitária 1199

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOO LLEEGGIISSLLAATTIIVVOOOO ddiirreeiittoo àà ccoonnssuullttaa pprréévviiaaLLuucciiaannaa SSoouuzzaa RRaammooss - Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Salvador, apoiadora do Comitê em Defesa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e pesquisadora dos grupos Controle Penal e O Direito Achado na Rua 2200

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOOSS MMOOVVIIMMEENNTTOOSS SSOOCCIIAAIISSPPoovvooss IInnddííggeennaass:: mmaanneeiirraass ddiiffeerreenntteess ddee ssee vveerr oo mmuunnddooJJoosséé CCaarrllooss MMoorreeiirraa ddaa SSiillvvaa FFiillhhoo -- Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR, mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela UFSC, bacharel em Direito pela UnB. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS-RS e Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça 2222

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOO MMIINNIISSTTÉÉRRIIOO PPÚÚBBLLIICCOO““EEssppeettaaccuullaarriizzaaççããoo”” ddee ooppeerraaççõõeess ppoolliicciiaaiiss ee aabbuussoo ddee aauuttoorriiddaaddee:: LLiiççõõeess ddaa OOppeerraaççããoo SSaattiiaaggrraahhaaEEuuggêênniioo JJoosséé GGuuiillhheerrmmee ddee AArraaggããoo - Subprocurador-geral da República, professor da Faculdade de Direitoda UnB, Doutor em Direito Internacional Público, pela Ruhr-Universität Bochum, Alemanha, e mestre emDireito Internacional dos Direitos Humanos pela University of Essex, Inglaterra 2233

AABBAAIIXXOO AASSSSIINNAADDOO -- RRaappoossaa SSeerrrraa ddoo SSooll –– BBrraassiill DDeemmaarrccaaççããoo ddee tteerrrriittóórriioo IInnddííggeennaa eemm ppeerriiggooBBooaavveennttuurraa SSoouussaa SSaannttooss -- Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra 2244

EXPEDIENTE

Caderno mensal concebido, preparado eelaborado pelo Grupo de PesquisaSociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB – Plataforma Lattes do CNPq).

CoordenaçãoAlexandre Bernardino CostaCristiano PaixãoJosé Geraldo de Sousa JuniorMenelick de Carvalho Netto

Comissão executivaJanaina Lima Penalva da SilvaPaulo Rená da Silva SantarémRicardo Machado Lourenço FilhoSilvia Regina Pontes LopesSven Peterke

Integrantes do ObservatórioAdriana Andrade MirandaAline Lisboa Naves GuimarãesBeatriz VargasDamião Alves de AzevedoDaniel Augusto Vila-Nova GomesDaniela DinizDaniele Maranhão CostaDouglas Antônio Rocha Pinheiro

Douglas LocateliEneida Vinhaes Bello DutraFabiana GorensteinFabio Costa Sá e Silva Giovanna Maria FrissoGuilherme ScottiJean Keiji UemaJorge Luiz Ribeiro de MedeirosJudith KarineJuliano Zaiden BenvindoLeonardo Augusto Andrade BarbosaLúcia Maria Brito de OliveiraMariana CirneMariana Siqueira de Carvalho OliveiraMarthius Sávio Cavalcante LobatoPaulo Henrique Blair de OliveiraRamiro Nóbrega Sant´AnaRaphael Augusto PinheiroRenato BigliazziRosane Lacerda

Projeto editorialR&R Consultoria e Comunicação Ltda

Editor responsávelLuiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)

Editor assistenteRozane Oliveira

DiagramaçãoGustavo Di Angellis

IlustraçõesFlávio Macedo Fernandes

[email protected]

Sindicato dos Bancáriosde Brasília

Assine C&[email protected]

PPrreeççoo aavvuullssoo:: RR$$ 22,,0000

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 03

Carolina de Martins Pinheiro e José Geraldo de Sousa Júnior

Asociedade civil organizadasempre é protagonista, sejaqual for a cena social de luta

por reconhecimento de direitos(campo, terra indígena, gênero, op-ção sexual, entre outros). Protagonis-tas diferentes, por vezes, se unem empalcos comuns para reforçar vozeshistoricamente silenciadas. Esse é ocaso do Comitê Nacional em Defesada Terra Indígena Raposa Serra Sol(veja o quadro), criado para apoiar ademarcação da Terra Indígena Rapo-sa Serra do Sol, cujo destino está nasmãos de onze importantes contrace-nantes, a saber, os ministros do Su-premo Tribunal Federal.

Os direitos indígenas foram con-solidados em capítulo especial daConstituição brasileira graças à mo-bilização de lideranças indígenas eentidades indigenistas. Era precisosensibilizar os constituintes e os in-dígenas se fizeram presentes paraque a lei dos “brancos” fosse escritalevando-se em consideração suaparticular visão sobre a história desucessivas violações a seus direitosoriginários. Uma vez escrita, era pre-ciso cumpri-la. A Funai e a União,apegadas ao velho modelo assimila-cionista, foram instigadas por gru-pos organizados a usar as novas refe-rências do direito à diferença. Atual-mente, é o Poder Judiciário o coadju-vante de uma luta, que parece nãoter fim, mas reinícios.

Uma das principais preocupa-ções do Comitê é a reunião de infor-mações e a elaboração de esclareci-mentos que servem de subsídios pa-ra avaliação do caso. Têm sido recor-rentes afirmações errôneas e atémentirosas sobre a relação da terraindígena e o desenvolvimento regio-nal, bem como a limitação e insufici-ência de dados oficiais sobre a vio-lência perpetrada por ocupantes ile-gais contra as comunidades indíge-nas da Terra Raposa Serra do Sol. Pa-

ra subsidiar tanto a opinião públicaquanto os próprios ministros do STF,o Comitê elaborou cartas com dife-rentes perguntas endereçadas a vá-rios órgãos governamentais, entreeles o Ministério Público Federal(MPF), a Advocacia Geral da União(AGU), o Ministério do Meio Ambi-ente (MMA) e o Conselho Nacionalde Justiça (CNJ).

Em carta endereçada ao presi-dente do CNJ, também presidentedo STF, Gilmar Ferreira Mendes, oComitê solicita que o órgão se mani-feste acerca das irregularidades daperícia judicial que contrapôs o rela-tório da Funai de identificação daTerra Indígena. Em mensagens aoProcurador-Geral da República e aoDiretor-Geral do Departamento dePolícia Federal, o Comitê chama aatenção para a histórica impunidadeque acoberta violências e práticas decorrupção por aqueles que se opõem

aos legítimos direitos dos povos indí-genas Wapichana, Ingarikó, Taure-pang e Patamona.

O foco das perguntas dirigidas aoMMA reside na quantificação e qua-lificação das infrações, crimes e da-nos ambientais constatados pelosórgãos ambientais ao ministério su-bordinados. Já da Advocacia Geral daUnião, o Comitê aguarda respostasobre o cruzamento da titularidadedas terras em nome de arrozeiros e aconfirmação da prática de grilagemde terra pública. O Comitê encami-nhou ainda solicitações de pesquisae sistematização de dados ao Institu-

to de Pesquisa Econômica Aplicada(IPEA), ao Instituto Brasileiro de Ge-ografia e Estatística (IBGE) e ao Con-selho Nacional de Pesquisa (CNPq).

O Comitê também é responsávelpelo Acampamento Nossa Terra, Nos-sa Mãe que deverá ser realizadoentre 25 e 27 de agosto de 2008, nasemana do julgamento do caso peloSTF. Além de informações, a propos-ta do acampamento é permitir vi-vências, que estimulem o movimen-to de abrir-se cultural e juridicamen-te ao diferente mundo dos povos daRaposa Serra do Sol. Danças e cantosindígenas se revezarão com debatessobre a Terra de Makunaími e con-versas com outros movimentos soci-ais urbanos e rurais. Numa quadrade novas transformações nas lutaspor direitos, a entrada em cena doComitê Nacional em Defesa da TerraIndígena Raposa Serra Sol deve serrecebida como um fator importantepara a compreensão de que não épossível lutar por igualdade e justiçasem lutar também pelo reconheci-mento das diferenças que determi-nam identidades sociais e históricas.

CCoommppoossiiççããoo ee aappooiiaaddoorreess ddoo CCoommiittêê::

Fórum de Defesa das Organizações Indígenas (FDDI)Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)Conselho Indígena de Roraima (CIR)Instituto Socioambiental (ISA)Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI)Grito dos ExcluídosConselho Indigenista Missionário (CIMI) Central Única dos Trabalhadoras (CUT) Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil (MMC) Movimento dos Sem-Terra (MST)

Comitê Nacional em Defesa daTerra Indígena Raposa Serra do Sol

A sociedade civil orA sociedade civil organizada semprganizada sempre ée éprotagonista,protagonista, seja qual for a cena socialseja qual for a cena socialde luta por rde luta por reconhecimento de direconhecimento de direitos eitos

Page 3: Entrevista: C&DConstituição & Democracia - ANPRanpr.org.br/novo/files/CeD_24_publica.pdf · O Estado brasileiro e o racismo contra ... St eph nG. Bai s - Professor asssociado, DAN/UnB;

José Carlos Moreira da Silva Filho

Estamos sempre tão mergulha-dos em nossa própria manei-ra de ver o mundo que acaba-

mos por nos esquecer de quem so-mos: seres humanos finitos, tempo-rários, condicionados ao seu tem-po, contextualizados historicamen-te e, ao mesmo tempo, sequiosos douniversal, do ponto neutro, do lugaronde todos são os mesmos, do eter-no e do divino. Quando notamosque o humano é temperado por es-ses dois tons, conseguimos nos tor-nar capazes não de sermos toleran-tes com as diferenças, mas de ser-mos com elas hospitaleiros.

O padrão laico, racional, oci-dental, em sua formação clássica eestruturante de nossa sociedadepresente não é o ponto de vistauniversal. É apenas mais uma ma-neira particular de ver o mundo: aocidental.

Por que nos é tão custoso perce-ber que é possível, por exemplo,uma outra forma de se relacionarcom a terra, diferente daquela queJohn Locke sacramentou em seus“Dois tratados sobre o governo”?Por que a utilidade da terra só podeser medida com a régua rígida dolucro capitalista? Será que é útil aterra que ostenta um modelo de vi-da pautado na solidariedade comu-nitária, na surpreendente sobrevi-vência das nossas raízes étnicas e napreservação do meio-ambiente?

Estamos tão acostumados apensar pela lógica única do racio-nalismo ocidental, que não perce-bemos que ela, invariavelmente e,em que pese sua importância, nosconduz à destruição da natureza, àsegregação de parcelas inteiras dahumanidade e à tristeza egoísta daauto-satisfação.

Por que não podemos ser maisplurais e dar uma chance a outromodelo de vida, constantementeabalrroado pela truculência da uni-formidade de ganas desérticas?

A divisão compassiva, de ângu-

los retos (demarcação em “ilhas”), àqual se quer submeter a Terra Indí-gena Raposa Serra do Sol é uma ex-crescência jurídica, forjada na maisolímpica insensibilidade à alterida-de que nos é fundadora. Defenderesse modelo para a demarcação daterra indígena é ignorar o que diz aConstituição no seu art. 231: “o di-reito originário às terras que ocu-pam segundo os seus usos, costu-mes e tradições”.

As etnias que vivem na RaposaSerra do Sol se relacionam entre si,cultivam um modo de viver livre, sedeslocam pelas terras comuns,preservam seus recursos, trazem

um modelo diverso no trato com aterra, produzem toneladas de ali-mentos, priorizam o consumo desua gente e do próprio Estado deRoraima.

Na Raposa Serra do Sol a expor-tação não é prioridade, os agrotóxi-cos não são utilizados, as decisõessão debatidas e formadas comuni-

tariamente, a floresta é preservada,o conhecimento é cultivado e aca-lentado em sua tradição.

Ali a soberania não é ameaçada,ela é protegida. Historicamente osíndios brasileiros que vivem nasfronteiras contribuíram para prote-gê-las. Nunca se teve notícia de umcaso sequer de imperialismo indí-gena ou estrangeiro através dos in-dígenas no Brasil. Cerca de oitentapor cento do contingente militarque está na fronteira amazônica éformado por indígenas.

Afinal, se empresas multinacio-nais podem ser proprietárias de ter-ras na fronteira brasileira, por queos índios não podem ter a posse e ousufruto dessas terras? Não sãotambém humanos?

Faço votos que nossa jovem de-mocracia e nosso Judiciário, na bus-ca constante de superação de suasraízes estamentais e elitizantes pos-sa fazer jus à lucidez tão esperadade um país que, como o nosso, é tãoplural em suas fontes mas tão retra-ído em reconhecê-las.

Está nas mãos e nas mentes denossos magistrados do SupremoTribunal Federal a oportunidade denão deflagrar um retrocesso dos Di-reitos Humanos no ano em que suadeclaração completa 60 anos.

Em respeito à diversidade étnicado Brasil e ao anseio de uma demo-cracia forte e consolidada, cultivo aesperança de que nossa SupremaCorte não ceda a receios preconcei-tuosos e falsamente racionais oucomedidos.

Que o Supremo e garanta o direi-to dos indígenas brasileiros da Ra-posa Serra do Sol às suas terras tra-dicionais, segundo seus usos, costu-mes e tradições.

22 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Povos indígenas: maneirasdiferentes de se ver o mundo

Por que a utilidade da terrPor que a utilidade da terra só pode a só pode ser medida com a régua rígida ser medida com a régua rígida

do lucro capitalista?do lucro capitalista?

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 23

Eugênio José Guilherme de Aragão

Há palavras que entram novernáculo a partir de opi-niões expressas por autori-

dades, periódicos e comentaristastelevisivos. Uma destas é “espetacu-larização”, para significar a busca deapelo mediático na atuação da re-pressão penal, que desde o iluminis-mo prefere ser discreta, quase enver-gonhada. Repetem-se, entretanto,no Brasil, as operações policiais ar-madas sob os holofotes da mídia, co-mo o foi a Operação Satiagraha, rea-lizada para “desbaratar” suposta ati-vidade criminosa atribuída a DanielDantas e a pessoas de sua relação.

Os críticos desse tipo de ação re-pressiva atribuem à polícia, ao Mi-nistério Público e ao Judiciário - in-distintamente - abuso de autorida-de, apontando para o uso indevidode algemas, a decretação desneces-sária da prisão preventiva, a escutatelefônica sem critérios e a exposi-ção ilegal de investigados e de infor-mações sigilosas da investigação àcuriosidade pública. Passam a exigiro afastamento de delegados, de pro-motores ou de juízes que atuaramsem discrição, supostamente embe-vecidos pela fama. De outra parte, osdefensores da postura mais “proati-va” do Estado na repressão da “crimi-nalidade dos ricos” desqualificam acrítica como interesseira e parcial,porque se limita a defender os abas-tados, que têm meios de contratarbons advogados e de atrair a empa-tia dos tribunais superiores.

Parece que o meio jurídico estádividido. Há vozes que são implacá-veis na crítica à operação e há outrasque a defendem arduamente. Ondeestá a verdade?

Há uma legítima preocupaçãocom o abuso de autoridade. É, de fa-to, intolerável que a polícia chame amídia para acompanhar suas opera-ções, expondo a imagem de pessoasque gozam ainda da presunção deinocência; que autoridades entre-guem a jornalistas peças processuaisprotegidas pelo sigilo, tais como re-latórios de escuta telefônica que,

muitas vezes, envolvem a privacida-de de terceiros inocentes que sequersão destinatários do esforço investi-gatório. No entanto, o apelo mediáti-co dessas operações espelha a frus-tração pública com a cultura de im-punidade que viceja no Brasil e quebeneficia sempre os mesmos, aque-les acusados de manipularem gran-des somas de dinheiro público, decorromperem o aparato estatal e defraudarem instituições financeirasem detrimento de grandes e peque-nos investidores.

A sociedade se vê como vítima depessoas e de grupos sem escrúpulosem sua ganância criminosa e de-manda ação do Estado. Há, pois,uma legítima expectativa de atuaçãorepressiva e o Poder Público, queren-do ou não, passa a se ver obrigado ase justificar, a demonstrar capacida-de de reação e a afastar a fama de serleniente com os ricos e poderosos.

O direito penal moderno é aves-so ao apelo social por solidarieda-de para com a vítima (sozialisiertesOpferinteresse, como diria o pro-fessor alemão Winfried Hassemer).Sua neutralização é um pressupos-to de justiça e de eficiência da ju-risdição penal. Do contrário, esta-ria, o Estado, a legitimar demandaspor linchamento e por penas cru-éis. Mas, também na contempora-neidade, há posições entre doutri-nadores que, em atitude aparente-mente oposta, demandam o inte-resse estatal pela vítima (victimoriented approach, na linha de Na-omi Roth-Arriaza), já que, paraneutralizá-la, o Estado deve fazê-lasentir que a leva a sério, pois, docontrário, estaria a estimular açõesde lustration - perseguição politi-zada de pessoas supostamente vin-culadas a crimes, em detrimentodo devido processo legal. Em resu-mo: o Estado tem o dever e a prer-rogativa de “desapropriar” a dor devítimas e de excluí-las da iniciativade aplicação da lei penal, con-quanto leve o crime a sério e lhesgaranta satisfação. Só assim pode-rá legitimar seu monopólio de usoda força.

No Brasil, há claro déficit de im-plementação da lei penal para aque-les que dispõem de meios para sedefenderem bem. Como se costumadizer, quem tem bom advogado difi-cilmente vai para a cadeia. As estatís-ticas confirmam a assertiva. Mas,aceitá-la como verdadeira implica,também, admitir que o Estado for-ma mal seus agentes persecutórios eque o trabalho destes não resiste aum bom argumento nos tribunais.

Casos como o da Operação Satia-graha devem servir de lição. A discri-ção de agentes da repressão é umaexigência de profissionalismo. Atuarcom “espetáculo” compromete aqualidade do trabalho e expõe o Es-tado à crítica pública. Por outro lado,não se deve esperar das autoridadesleniência no trato com os poderosos.A vis compulsiva, porém, pressupõeponderação, parcimônia, atenta aosdireitos do argüido e de terceiros, in-dependente de sua condição social.Nada há de ilegal no uso de algemasna execução de ordem de prisão ouna coleta de prova por escuta telefô-nica, desde que os atos sejam produ-zidos no silêncio obsequioso da in-vestigação. Nada há de abusivo nadecretação da prisão preventiva dequem ostensivamente atenta contraa atuação persecutória do Estado,buscando corromper agentes da re-pressão e, assim, manipular a provaem seu favor, desde que a execuçãoda ordem se faça com respeito à dig-nidade e à imagem do investigado.Uma vez iniciada a ação penal, que épública, - e não antes - tem a popu-lação o direito de ver o poder públi-

co atuando, levando a sério sua mis-são de realização de processo con-traditório, como mister educativoaté o instante do julgamento, que,sendo justo, produzirá juízo definiti-vo da culpabilidade.

Nessa mesma linha, não é im-próprio afastar um delegado de po-lícia que “espetacularizou” sua mis-são legal - delegados não são ina-movíveis e nem o devem ser, por-que não lhes deve assistir o direito àindependência. Órgão armado in-dependente é e sempre será um ris-co para a democracia e para o Esta-do de Direito. Polícia deve ser con-troladíssima - quanto mais controlemelhor. Mas, como ato administra-tivo que é, o afastamento de um de-legado deve estar motivado, paraque não se desvie de sua finalidade.A transparência é necessária paraevitar os rumores do favorecimento.Ninguém melhor do que o Ministé-rio Público e o juízo para assumi-rem o controle dos atos da polícia,para garantir a intangibilidade polí-tica da persecução penal.

A lição é esta: pode-se compatibi-lizar a persecução penal de podero-sos com as demandas do Estado deDireito. Respeitados os limites doprofissionalismo discreto e transpa-rente, a repressão penal dos ricos se-rá mais eficiente e menos sujeita acríticas interessadas. Ao mesmotempo, poderá, o Estado, demons-trar seriedade no trato persecutório,aplacando a demanda social por pu-nição dos envolvidos na prática cri-minal de grande impacto econômi-co e político.

“Espetacularização” de operações policiais e abuso de autoridade:

Lições da Operação Satiagraha

OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO