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Metodologia de projeto de arquitetura.

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  • ENSAIO SOBRE A RAZO COMPOSITIVA___________________

    Uma investigao sobre a natureza das relaes entre as partes e o todo na composio arquitetnica.

    Edson da Cunha Mahfuz

    Verso para livre distribuio - Editorao: Gabriel Johansson - Capa: Sylvio de Podest e Jomar Bragana

  • Indice

    Agradecimentos..............................................................................................................................5

    Prefcio.........................................................................................................................................6

    Introduo...................................................................................................................................11

    Captulo I

    Uma viso geral do processo de projeto arquitetnico.....................................................................16

    Captulo II

    Todos, partes e o conceito de totalidade.........................................................................................24

    Captulo III

    Como as partes so geradas.........................................................................................................45

    Captulo IV

    Como as partes so organizadas...................................................................................................64

    Bibliografia..................................................................................................................................86

  • Agradecimentos

    Para qualquer pessoa no diretamente conectada ao autor de

    um livro, muitas vezes tedioso ler a dedicatria e os agradecimentos.

    Contudo, nada se consegue na vida sem a ajuda de outras pessoas,

    no im porta quo pequena, indireta ou perifrica essa ajuda possa

    ser.

    Para mim um grande prazer, alm de um dever de gratido,

    poder expressar minha gratido s pessoas e instituies que me

    ajudaram a chegar at o fim das pesquisas que resultaram, primeiro,

    em minha tese doutoral, e, mais recentemente, neste livro.

    Meu maior dbito, assim como minha maior gratido,

    para com meus pais, Antonio e Lia Mahfuz, por me apoiarem, sem

    hesitao, durante os cinco longos anos de minha permanncia no

    exterior. Sem o apoio deles eu no teria chegado at aqui. A eles eu

    dedico este livro.

    Sou tambm agradecido Coordenao de Aperfeioamento

    de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), rgo do Ministrio da

    Educao, que finan ciou meus estudos de ps-graduao por trs

    anos.

    No campo intelectual os agradecimentos vo para Marco

    Frascari, inspirador e amigo quem, como orientador de tese, auxiliou-

    me enorme mente a refinar e focalizar minhas idias. Agradeo

    tambm a meu amigo Enrique Vivoni-Farage por me proporcionar

    constante estmulo intelectual e por sua amizade.

    Devo tambm agradecer a Sylvio de Podest e Gaby de

    Arago pela oportunidade de publicar este material, assim como

    pelo incentivo durante o penoso trabalho de traduo.

    Por fim, dedico este livro minha esposa Ana Paula, e a meus

    filhos Francisco, Pedro, Marcelo e Rodrigo.

    O texto que segue basicamente o mesmo apresentado

    University of Pennsylvania em 1983. Iniciamente, pensei em publicar

    a tese exatamente como foi apresentada e aceita. Entretanto, como

    nesses anos transcorridos desde ento publiquei alguns artigos que

    desenvolveram algumas questes tratadas na tese, resolvi incluir este

    material novo. As alteraes feitas no alteram o contedo original,

    apenas aprofundam algumas questes e ilustram melhor algumas

    outras.

  • Prefcio

    Este livro prope, desde sua abertura, entender de um certo

    modo o processo de projeto. Ele prope aceitar que no existe na

    mente do projetista um todo pr-formado cujas partes seriam apenas

    acessrias, dedues dessa Idia.

    Seria excessivo dizer que o tema do todo e das partes no

    tenha sido tratado a respeito da Composio arquitetnica; por outro

    lado, justo dizer que as referncias que nos chegam so opacas.

    s vezes o so porque o tema no central para o interesse dos

    seus autores e as passagens relevantes so s observaes, mais ou

    menos circunstanciais. Outras vezes a opacidade das referncias se

    encontra em textos de artistas os quais - voluntariamente ou no -

    ocultam os atos e procedimentos compositivos de suas obras, essas

    aes nas quais as partes acabam dissimulando-se at parecerem

    deduzidas de um todo prvio. Esse todo o que Mahfuz declara

    inexistente, ao menos para a Arquitetura.

    medida em que o autor se faz porta-voz de uma revolta

    das partes frente ao todo, parece indicar-nos seu ceticismo perante o

    conceito habitual de Unidade. Entretanto, este ataque no frontal:

    Mahfuz distingue cuidadosamente entre um momento em que a obra

    unitria, quando est realizada, e outro momento, o da obra ao

    ser feita, em que somente uma coleo de partes que devero ser

    conciliadas. O tema do texto, ento, o fazer da arquitetura e no

    o seu resultado, os edifcios; o mecanismo do projeto e as condies

    de sua produo. Mahfuz nos prope crer que a obra de arquitetura

    uma organizao de partes, e que estas pr-existem ao todo. Se

    inclina assim pela continuidade de uma tradio projetual, a da Ecole

    des Beaux-Arts, e contra a viso romntica da obra de arte surgida

    de uma idia intuitiva que contm de algum modo todos os seus

    detalhes, os aceitveis e os que podero integrar o objeto final. O

    todo indivisvel permanece porm como ideal da criao, integral e

    presumivelmente instantnea prpria do artista romntico. Assim a

    apresenta uma passagem de Hartmann:

    Assim como trabalha o talento ordinrio:

    produz artisticamente por meio da seleo racional

    e da combinao, guiando-se por seu juizo esttico.

    Neste ponto se situam o diletante comum e a maioria

    dos artistas profissionais. Uns e outros so incapazes

    de compreender que estes meios, apoiados na rotina

  • tecnolgica, podem talvez lograr algo excelente,

    mas nunca podem chegar a fazer algo grande. A

    combinao procura a unidade do todo por uma

    laboriosa adaptao e experimentao nos detalhes.

    Apesar de toda sua dedicao, sua origem transparece

    no conglomerado dos detalhes. O Gnio em virtude

    de que sua concepo surge do Inconsciente, tem

    uma unidade to perfeita em suas mtuas relaes

    e o necessrio carter apropriado das partes, que s

    pode ser comparado com a unidade dos organismos

    naturais, que igualmente surge do Inconsciente.

    Esta a exposio paradigmtica do que, no contexto do livro

    de Mahfuz, poderia ser chamado de o mito da criao integral. Com

    o nico apoio de recursos tericos, tenta persuadir-nos acerca da

    existncia de uma forma de criao na qual no existe nem trabalho

    nem tempo, somente inspirao.

    este o ponto no qual as semelhanas entre a arquitetura e

    a pintura, muitas vezes declaradas, devem ceder. A viso romntica

    muito mais apta para dar conta de uma certa arte abstrata do

    que da criao arquitetnica. Nesta, a presena da utilidade, e seu

    correlato na especializao de partes, desacredita a possibilidade

    dessa criao integral que idealizam os crticos e comentaristas. Estes,

    finalmente, empregam a hiptese dessa criao integral para declarar

    a superioridade do artista a quem se dedicam a comentar, em relao

    aos dedicados operadores da conciliao entre as partes.

    Esta questo do todo e da parte subjacente muitas das

    crises sofridas pela Composio nos ltimos dois sculos, os que

    transcorreram desde a crise do Classicismo, e que coincidem com o

    lapso de tempo em que se tem ensinado formalmente a projetar.

    interessante pensar que a todas as circunstncias que habitualmente

    se invocam para justificar as confuses da arquitetura ocidental -

    Revoluo Industrial e novas tcnicas, exploso demogrfica e

    transformao da cidade, movimentos artisticos, etc. - se deva

    adicionar a escolaridade, o fato de se ter tido de objetivar o

    processo de projeto para poder transmiti-lo, precisamente nesse

    entorno turbulento. O todo como soma de partes de certo modo

    didtico, no contexto desse ensino; assim foi exposto com clareza por

    Durand no princpio do sculo passado dando-lhe uma conotao

    de funcionalidade, mesmo que o termo seja estranho sua

    linguagem. Mas o todo como soma de partes a forma tradicional de

    organicidade do objeto arquitetnico desde o Renascimento. Se trata

  • aqui de outras partes, as que intervm na estruturao formal do

    edifcio. Neste caso no h, conceitualmente, uma soma de partes,

    mas sim deduo daquelas necessrias para materializar um modelo

    ideal. Este, por sua vez, ter sido adaptado dos tipos da arquitetura

    antiga. So estas partes necessrias para que a forma tenha Unidade,

    enquanto que as partes de Durand so, de certo modo, aleatrias.

    Dependem de necessidades especializadas para servir de partes do

    programa, os distintos servios de que falaria logo Viollet-le-Duc.

    Levada a cargo essa organizao de partes utilitrias, ser necessrio

    impor sobre esta desordem (formal) que a ordem (funcional) do

    conjunto, um sistema formal que subordine as partes, que as reprojete

    para dotar o conjunto de unidade. Este sistema, a posteriori da

    primeira organizao (que logo se chamar partido) ser a tcnica

    da composio como a descreve um acadmico do nosso sculo,

    Georges Gromort:

    Na genesis de uma planta, a escolha do

    partido da maior importncia - especialmente no

    comeo - maior do que a importncia do que chamo

    composio pura. Esta sobretudo um reajuste dos

    elementos, enquanto o parti desempenha o papel

    da inspirao na composio musical e se aplica

    principalmente disposio e importncia relativa dos

    elementos...O papel da composio pura o de unir

    e tornar efetiva a unio das partes no todo.

    Digamos uma vez mais que as partes da forma artistica

    necessrias entre si so partes de um todo ideal e s se relacionam

    para produzir a impresso de um todo orgnico. As partes do

    funcionalismo so necessrias para um conjunto de atividades, que

    so externas forma pensada como tal. Desde o ponto de vista das

    funes, a forma subsidiria; s algo que permite cumpri-las.

    As partes so mais ou menos necessrias para a realizao das

    atividades, sejam estas um simples abrigo ou uma sala de acstica

    perfeita. As partes do funcionalismo se agregam at que o servio

    esteja completo; deixar algumas de lado pode simplificar a tarefa do

    projetista, mas o edifcio resultante pode ser incmodo e inclusive

    inabitvel. Por isso Robert Venturi fala do difficult whole - o todo

    difcil - contrapondo-o a um todo fcil, produto desse descarte de

    funes para simplificar as formas.

    No se deve imaginar que o trabalho de Edson Mahfuz se

    limite a expor esta convico, a tomar partido pela coordenao de

  • partes como caminho para chegar ao todo. H no livro um longo

    percurso pelos conceitos adequados para descrever o projeto, uma

    avaliao equilibrada dos antecedentes e dos significados dos

    termos que tantas vezes so empregados de maneira aproximada

    e descuidada, antes de dar por provada sua hiptese original. Esse

    percurso fundamental - simtricamente, se trata de um estudo, parte

    por parte, do problema terico abordado - para poder concluir:

    A noo de que a arquitetura procede do

    todo para as partes deriva da iluso de que o todo

    existe prviamente s partes. S pode existir um todo

    aps as operaes de projeto e construo estarem

    concludas.

    Em razo desse mesmo processo, dessa paciente explorao,

    o texto contm estudos parciais de interesse. Me limito a enumerar

    alguns: a classificao em tipos de processos projetuais que separa

    projetos inovativos, tipolgicos, mimticos e normativos. Se chama

    inovativos aos que empregam analogias no-arquitetnicas,

    surgidas do cruzamento de contextos ou de analogias negativas.

    Estas me parecem contribuies interessantes para um estudo do

    surgimento das idias arquitetnicas, consequentes com a posio

    expressa por Mahfuz em escritos anteriores e que se resume ao que,

    imagino, seja sua citao predileta: Nada provm do nada.

    Em outras seces o autor examina conceitos, como o de

    totalidade e o de ordem, j gastos em demasia pela prosa dos

    arquitetos. O texto pode inclusive ser visto como uma tentativa de

    clarificar a terminologia ambgua da arquitetura, rastreando o sentido

    dos termos e anotando suas mutaes. S isto j bastaria para outorgar

    interesse ao texto de Mahfuz. Mas sua inteno no se esgota nem

    na tomada de partido por um modo de entender a sequncia de

    projeto, nem nessa busca de clarificao de conceitos. H no livro

    uma explorao metdica do campo, talvez excessivamente extenso

    e ramificado, do projetar. No fundo provavelmente inevitvel que

    um texto que se prope a percorrer esse territrio deva baliz-lo todo,

    mesmo correndo o risco de perder a concentrao. O livro de Mahfuz

    se inscreve em um conjunto, no muito extenso, de ensaios e estudos

    que, nesta segunda metade do sculo, tem tratado de iluminar o

    tema do projeto durante a sua realizao, mostrando os verdadeiros

    processos que o regem. Uma viso prtica, nem idealizada nem

    mitificadora. No se trata de um texto asctico; promove certas

    arquiteturas e no outras, as prope como objeto de admirao: se

  • trata de Aalto, Scarpa, Kahn. Talvez no nos convide admirao,

    mas aprendizagem. H em todo o livro uma atitude didtica que

    o desempenho de Edson Mahfuz como professor confirma. E para

    aqueles que ensinam arquitetura que este texto resultar, creio eu,

    indispensvel.

    Alfonso Corona Martnez.

    Buenos Aires, agosto de 1992.

  • Introduo

    Praticamente todo livro sobre arquitetura faz algum tipo

    de aluso relao entre as partes e o todo no que se refere a

    artefatos arquitetnicos. Historiadores se empenham em encontrar

    determinados tipos de relaes a fim de traar a evoluo da

    arquitetura e esclarecer diferenas entre mtodos de composio

    arquitetnica.

    As interrelaes entre as partes, e entre elas e o todo,

    so o que mostra as mudanas de uma arquitetura para outra,

    no o estilo em si.1

    Tericos explicam a arquitetura e propem novos enfoques

    criativos em tratados nos quais uma parte considervel dedicada

    discusso do conceito de parte, sua definio, e sua combinao

    outras partes com o objetivo de criar um todo arquitetnico.2

    mesmo bastante difcil encontrar qualquer livro ou ensaio escrito

    sobre qualquer atividade criativa que no mencione o tema das partes

    e sua combinao em algum tipo de totalidade. Essa preocupao

    com partes, e como elas so constitudas, no se restringe s artes. A

    filosofia tambm se preocupa com o assunto:

    O universo tem a ver com a criao de totalidades.

    Elas variam desde as mais simples - as totalidades fsicas - at

    as mais elevadas - as totalidades espirituais. Elas so parte de

    um sistema de interaes e interconexes cuja culminao a

    totalidade e perfeio da Personalidade.3

    No campo da psicologia da percepo, uma teoria completa

    - a chamada teoria da Gestalt - se baseia na suposio de que o

    mundo visual composto por objetos que possuem a caracterstica

    de totalidades, e de que a percepo do mundo visual, pelo homem,

    organizada de tal maneira que essas totalidades so percebidas

    mesmo em situaes ambguas e/ou caticas.4

    Em todos os campos de conhecimento onde o conceito de

    totalidade aparece, ele entendido como algo composto por partes,

    e o campo da arquitetura no uma exceo nesse respeito. O que

    quase nunca examinado a natureza das relaes entre as partes

    e o todo, especialmente no campo da arquitetura. Estudantes sempre

    ouvem menes importncia das relaes entre as partes e o todo

    em arquitetura, mas essa declarao invariavelmente baseada na

    1. Kaufmann, E., Architecture in the Age of Reason, Hampden, Conn: Archon Books, 1966, p. 76.2. Como, por exemplo, a obra escrita de J. N. L. Durand e Le Corbusier.3. Smuts, J., Holism and Evolution, Nova York: Macmillan, 1926, p.329.4. Ver Gibson, J. J., The Perception of the Visual World, Westport, Conn: Greenwood Press, 1974, e Piaget, J., The Child and Reality.

  • suposio de que o estudante no tem conhecimento suficiente para

    question-la. O ensino de projeto raramente se preocupa com o

    esclarecimento de questes tais como: o que uma parte; como ela

    se relaciona com o todo; ou, o que vem primeiro, a parte ou o todo?

    Crticos e historiadores tem abordado a relao parte/todo somente

    em relao ao objeto terminado. Assim, essa relao geralmente

    caracterizada como a dominao das partes pelo todo, o que no

    necessariamente uma concluso errnea mas certamente parcial,

    j que no considera o processo que gerou o objeto analisado.

    O objetivo deste estudo investigar a natureza das relaes

    existentes e possveis entre partes e todos no mbito da composio

    arquitetnica. Uma de suas premissas bsicas a considerao dessas

    relaes como de fundamental importncia no processo de projeto

    ou, dito de outra maneira, como a essncia do prprio processo.

    A investigao conduzida desde o ponto de vista de quem

    projeta, o que significa dizer que a nfase colocada sobre o que

    acontece com as relaes entre partes e todo durante o processo

    projetual, ao contrrio de discut-las em relao ao produto

    terminado. Para os propsitos deste estudo, o objeto terminado s

    interessa no sentido em que o resultado de processos de composio

    e construo. Para que seja possvel determinar a natureza das

    relaes entre partes e todo na composio arquitetnica, no ser

    suficiente analisar o objeto concludo, por mais importante que possa

    ser; ser absolutamente fundamental discutir em detalhe o processo

    projetual.

    O resultado final do trabalho de um arquiteto uma entidade

    fsicamente identificvel. Como ser visto nas pginas seguintes,

    existem algumas caractersticas que distinguem uma totalidade de

    uma aglomerao. Contudo, ambos compartilham o fato de que

    so compostos por partes. possvel dizer com segurana que a

    composio de um objeto consiste na criao de um todo atravs de

    suas partes.5

    Muito tem sido escrito sobre o processo compositivo em

    arquitetura desde o Renascimento, em tratados que o descrevem

    de vrias maneiras diferentes entre si. Tambm o conceito de parte

    arquitetnica tem sido definido de vrias maneiras, acompanhadas

    de regras que visam o controle da operao de combinao entre

    elas. Algumas teorias oferecem algumas indicaes a respeito das

    formas finais dos edifcios. Outras estabelecem at mesmo como

    as partes devem se relacionar entre si e com o todo, como por

    exemplo, por meio de propores. Porm, embora reconhecendo a

    importncia daquelas contribuies, preciso reconhecer que muitas

    5. Van Zanten, D., Architectural Composition at the Ecole des Beaux-Arts from Charles Percier to Charles Garnier, em Drexler, A., The Architecture of the Ecole des Beaux-Arts, Londres: Secker and Warburg, 1977, p. 112.

  • questes no foram exploradas com profundidade, e outras nem

    sequer tocadas. Entre essas questes, h uma de importncia crucial,

    a da subordinao: as partes so subordinadas ao todo ou o todo

    dependente das partes?

    A resposta a essa questo o objetivo principal deste ensaio.

    Contudo, para atingir aquele objetivo muitas outras questes tero

    de ser formuladas e respondidas. Ou, de outra forma, muitas outras

    questes se imporo cujas respostas sero condio indispensvel

    para a realizao do objetivo deste estudo.

    O que segue no um sumrio das idias existentes sobre

    as relaes entre partes e todo em arquitetura. De qualquer forma,

    isso no seria possvel pois o assunto no foi ainda estudado

    sistematicamente. Seria mais preciso definir este estudo como

    uma pesquisa terica a qual formula uma teoria da composio

    arquitetnica e usa a fragmentada informao disponvel para testar

    suas hipteses bsicas. A originalidade do trabalho reside no tanto

    no seu ineditismo mas em sua adoo de uma postura polmica

    em relao noo geralmente aceita de que o todo controla as

    partes.

    Alm de atingir o objetivo a que se prope, o de determinar

    a natureza da relao partes/todo em arquitetura, este estudo

    espera poder sugerir que noes opostas como ideal/circunstancial,

    arquetpico/contingente, geral/particular, etc., podem ter sua

    contrapartida no proceso projetual e, o que mais importante,

    podem ser reconciliadas no seu interior.

    A hiptese de trabalho deste estudo que, na composio

    arquitetnica, o sentido de progresso das partes para o todo, e

    no do todo para as partes. Em cada uma das sees do livro h

    algumas questes bsicas que orientaram a pesquisa. A maioria das

    pessoas aceitar a afirmao de que o todo mais importante que

    suas partes, quando se trata de um artefato existente. Mas, e em

    relao ao processo de composio em arquitetura, pode-se dizer o

    mesmo? E , se for possvel, que tipo de todo seria esse?

    Outra questo complexa se refere natureza da parte em

    arquitetura. Qual o seu tamanho? Pode-se defini-la de uma

    forma absoluta? Pode-se dizer que os termos parte e fragmento

    so sinnimos em seus sentidos arquitetnicos? E quais seriam as

    caractersticas de um todo: uma soma de partes ou algo mais?

    Para definir a relao partes/todo com mais certeza no

    suficiente definir o que uma parte arquitetnica. tambm necessrio

    saber como so criadas, pois isso nos informar a respeito do seu

    grau de independncia em relao ao todo. ainda relevante saber

  • as diferentes maneiras em que as partes podem ser organizadas; isso

    nos dar uma idia de como as partes e o todo se relacionam entre

    si.

    muito importante que, desde logo, se faa a advertncia de

    que o objetivo deste estudo no determinar qual mais importante,

    as partes ou o todo. Assume-se, desde o princpio, que ambos so

    igualmente importantes para o artefato construdo. O foco do estudo

    determinar qual a natureza da relao que existe entre as partes e

    o todo durante o processo de composio ou criao.

    No ser suprfluo enfatizar que, sendo terico, este estudo

    um instrumento atravs do qual o mundo da arquitetura pode ser

    visto e entendido. No h qualquer pretenso de chegar verdade

    absoluta sobre o assunto. Trata-se, isso sim, de uma forma de insight

    arquitetnico que introduz seus prprios parmetros essenciais de

    julgamento.

    Composio

    Como o uso do termo composio no goza de unanimidade

    nos meios arquitetnicos, me vejo na obrigao de tecer algumas

    consideraes sobre o seu uso neste ensaio.

    Durante a maior parte deste sculo, o termo composio teve

    uma conotao negativa, pois estava associado tradio acadmica

    de imitao estilstica, qual o Movimento Moderno se opunha e

    tentava superar. Essa averso ao termo e disciplina ao qual se

    refere deve bastante ao romantismo e sua defesa do organicismo da

    arte. At hoje alguns autores se negam a considerar o termo de outra

    forma que no ligado arquitetura ensinada na Escola de Belas-

    Artes, e praticada pelos seus egressos.

    A prpria noo de composio estava, e est, baseada

    no entendimento de qualquer artefato arquitetnico como um

    todo constituido por partes. Composio seria, na sua acepo

    acadmica, o arranjo das partes da arquitetura como elementos de

    uma sintaxe, de acordo com certas regras a priori, para formar um

    todo.6 interessante notar que, dentro do prprio romantismo h

    uma conotao progressista da composio como liberdade artstica,

    especialmente na msica. De acordo com essa idia a composio

    seria um procedimento segundo o qual o artista cria a partir do

    nada, de acordo com leis geradas no seio da prpria obra. Esta

    noo foi fundamental na formao das vanguardas modernas, tanto

    artsticas quanto arquitetnicas, cuja produo se apoiava no uso da

    composio, agora como arranjo livre de partes em que a funo

    servia como pretexto para experimentaes formais.

    6. Colquhoun, A., Composition versus the Proj-ect, em Modernity and the Classical Tradition, Cambridge: MIT Press, 1989, pp. 33-56.

  • Temos ento, o mesmo instrumento tanto na tradio

    acadmica como no modernismo.7 Nos dois casos no havia

    qualquer regra de estilo imposta culturalmente, como tinha sido o

    caso at o sculo XVIII. Na composio acadmica, partes dadas

    eram organizadas segundo regras fixas de combinao, e o todo

    era vestido com algum estilo escolhido. No modernismo, partes

    dadas, ou seja, criadas individualmente, so organizadas livremente,

    de acordo com a inveno do arquiteto.

    Neste ensaio, o termo composio usado no sentido genrico

    de arranjo de partes para obteno de um todo, no importando que

    esse arranjo seja livre ou baseado em alguma regra de combinao

    codificada.

    7. Como se sabe, a idia de composio foi herdada pela vanguarda diretamente da tradio acadmica. Ver Banham, R., Theory and Design in the First Machine Age, Nova York: Praeger, 1967.

  • Uma Viso Geral do Processo de Projeto Arquitetnico

    1.1 O mtodo Beaux-Arts Em arquitetura, uma das idias mais amplamente aceitas, e tambm uma das menos contestadas, a de que o processo de com-posio evolui do todo para as partes. Essa idia parte importante da interpretao tradicional das teorias arquitetnicas do Renasci-mento, de acordo com as quais as partes de um edifcio deveriam ser subordinadas a um aspecto principal, algumas vezes chamado principe, devendo amoldar-se ou adaptar-se a ele.1 Essa idia mais tarde se tornou um dos fundamentos da doutrina Beaux-Arts, a qual exerceu por um longo tempo uma forte influncia sobre a formao dos arquitetos ocidentais, e em qualquer lugar onde a influncia fran-cesa pudesse ser sentida. Hoje, o mtodo ensinado na Ecole no mais tido como a nica maneira apropriada de projetar, mas a cren-a de que o todo vem antes das partes persiste. Talvez isso se deva ao fato de que o mtodo Beaux-Arts era bastante claro e ensinava a estudantes e arquitetos, em termos muito precisos, quais passos de-veriam ser tomados para atingir o objetivo final. Essa clareza, e o fato de que foi, por muito tempo, o nico mtodo de projeto disponvel foram responsveis por sua aceitao contnua inclusive no sculo vinte. A discusso que segue, sobre o mtodo Beaux-Arts, se deve a uma simples razo: ele foi a mais direta e poderosa corporificao da crena de que, no curso de um projeto, primeiro gera-se o todo e depois projeta-se as partes de acordo com aquele pr-conceito. O primeiro passo no mtodo Beaux-Arts o desenvolvimento de um parti, ou partido, que vem a ser a concepo mais bsica de um edifcio. Uma srie de aspectos referentes etimologia do termo parti so relevantes esta discusso. Na herldica, parti um em-blema2, uma figura de um objeto simbolizando outro. Este sentido relaciona-se ao parti arquitetnico, o qual tambm um simbolo, a pegada de um edifcio. Ao mesmo tempo que o termo parti sinnimo de grupo, agrupamento, formao, implicando o ato de reunir, sua origem, o verbo partage - que significa parcelar, dividir - implica diviso em partes, como em miparti (dividir em dois) e tri-parti (dividir em trs). Uma conexo adicional, de interesse para esta discusso, o fato de que parti e partie (uma poro de um todo) provm da mesma raiz. Para a tradio acadmica, o partido um esquema diagramtico de um edifcio, uma idia conceitual genrica, car-regando consigo, ao mesmo tempo, as noes de reunio e di-viso. Depois da gerao do partido, segue-se seu desenvolvimento, o esquisse, um estudo no qual ficam definidas suas caractersticas principais. O esquisse geralmente considerado o todo ao qual as partes so subordinadas. Nos concursos realizados na Ecole des Beaux-Arts para definir os ganhadores do Gran Prix de Rome, todos os estudantes tinham que manter-se fiis ao esquisse original no de-senvolvimento dos desenhos finais, sob pena de serem desclassifica-dos caso agissem de outra forma. No contexto desses concursos internos, se considerarmos o esquisse como sendo o todo, ento claro que as partes so con-

    1. Kaufmann, E., Architecture in the Age of Rea-son, Hampden, Conn: Archon Books, 1966, p. 99 ff. Esse aspecto principal poderia ser um espao central ao qual os demais fossem subordinados, e as propores desse espao determinariam as propores dos demais. Um exemplo disso so os princpios proporcionais propostos por Palladio para a concatenao das partes e sua integrao ao todo.2. Um dos significados da palavra francesa parti, no uso comum, a resoluo que algum toma a respeito da melhor maneira de abordar um prob-lema. Nesse sentido parti sinnimo de escolha, deciso, soluo. Em arquitetura podemos nos referir a um parti pris,o qual uma execuo de uma obra arquitetnica a qual deixa clara uma inteno deliberada a respeito de como lidar com o problema arquitetnico em questo.

  • troladas por ele. No entanto, interessante constatar que somente na escola o produto final correspondia ao esquisse. Um provrbio comum na poca dizia: lesquisse, cest leleve, le rendu, cest le patron3, significando que, na prtica da Ecole, raramente o desen-volvimento do projeto ia alm do nvel de representao grfica do esquisse. Na prtica real, frente a frente com circunstncias reais, o arquiteto elaborava completamente sua idia original, dessa vez por conta prpria

    espantoso comparar as diferenas reais entre projetos para edifcios submetidos s autoridades e como foram posteriormente executados...No caso da Bibliothque Sainte-Genevive, no existe um detalhe, um pedao de pedra entalhada ou ferro fundido que corresponda ao projeto original apresentado em dezembro de 1839...Considerada desde o ponto de vista da construo real, a distino entre a abstrao da concepo e o material-ismo da realizao se torna ainda mais evidente e signifi-cativa. 4

    Essa passagem sugere uma srie de pensamentos. Primeiro, que o esquisse desenvolvido na Ecole um produto quase final cujas partes j foram elaboradas em detalhe, e que qualquer alterao que se possa introduzir na apresentao final ser de pouca ou nenhuma consequncia. Segundo, que na prtica, que a preocupao real deste estudo, mesmo pequenas mudanas em relao ao que foi estabelecido pelo esquisse acarretam consequncias para o produto final. Terceiro, que no fica nada claro o que seria esse todo que tanto domina a composio arquitetnica. No se sabe se ele con-creto ou conceitual, nem se seria possvel visualizar o produto final de um processo antes de passar por aquele processo. E, quarto, que durante o processo de composio arquitetnica o todo talvez no seja to dominante quanto se pensa que .

    1.2 Uma viso contempornea da composio Para que que se possa tentar esclarecer essas dvidas ser til arriscar um entendimento contemporneo daquilo que constitui o processo projetual em arquitetura. Ela organiza o espao que circun-da o homem, levando em conta todas as atividades fsicas e psquicas de que ele capaz.5 A arquitetura ordena o ambiente humano, con-trola e regula as relaes entre o homem e seu habitat. Ao fazer isso, a arquitetura serve vrias funes alm das funes prticas. Antes de se comear um projeto, h uma fase preliminar em que se busca uma definio do problema, a qual decorre da anlise da informao relativa quatro imperativos de projeto, necessrios e suficientes para essa definio. Esses quatro imperativos so: as ne-cessidades pragmticas, a herana cultural, as caractersticas climti-cas e do stio e, por ltimo, os recursos materiais disponveis. Essa fase analtica do processo de projeto lida com os aspectos objetivos do problema, podendo at ser realizada por algum que no esteja diretamente envolvida no processo de composio de um objeto ar-quitetnico. Essa fase no oferece nenhuma indicao quanto ao

    3. O esquisse [o estudo preliminar] do aluno, enquanto o projeto finalizado do professor, Levine, N., Architectural Reasoning in the Age of Positivism, New Haven: Yale University Press, 1975, 1975, p. 50.4. Idem.5. Mukarovsky, J., Structure, Sign, and Function, New Haven: Yale University Press, 1978, p. 240.

  • rumo a ser tomado, nem quanto ao peso a ser atribudo a cada as-pecto do problema. O processo de projeto inicia realmente quando a informao obtida na fase preliminar interpretada e organizada de acordo com uma escala de prioridades que o arquiteto define em relao ao problema. A interpretao dos dados de um problema um processo seletivo que hierarquiza os vrios aspectos envolvidos, visando criar uma estrutura capaz de relacion-los entre si, e implica uma mudana de uma atitude analtica e objetiva, para uma atitude de seletividade subjetiva, na qual a prpria personalidade e baga-gem cultural do arquiteto desempenham um papel central. A interpretao e a definio do problema podem se relacio-nar de duas maneiras: na relao mais simples, a interpretao composta dos mesmos elementos da definio, combinados, trans-formados e estruturados, sem recorrer a nenhum elemento externo. Esse procedimento exatamente o mesmo preconizado pelo funcio-nalismo europeu do incio deste sculo, segundo o qual a soluo para qualquer problema arquitetnico seria uma resposta direta aos dados objetivos do mesmo. Os produtos deste tipo de procedimento tem sido, invariavelmente, objetos arquitetnicos que servem somente para a satisfao banal de necessidades imediatas, negando toda possibilidade da obra transcender o seu valor pragmtico e utilitrio. Na relao mais complexa entre definio e interpretao, o pro-grama interpretado contm mais aspectos do que os inicialmente constantes da definio: durante o processo, um fator extra entra em cena e modifica alguns aspectos da definio e, agindo como catalizador, auxilia na personalizao e interpretao do programa. Este fator modificador pode sair do domnio da conveno ou do do domnio da inveno. Qualquer que seja sua origem, ele tem profundas razes na vida interior de quem projeta, assim como na constituio de sua personalidade. Ele pode estar relacionado com suas aspiraes, sonhos e experincias privadas. Pode tambm se apoiar em imagens e metforas que so significativas para o arquit-eto, ou pode at derivar de uma necessidade, interesse ou smbolo universal. Aqui chegamos a um ponto importante, pois nos damos conta de que toda obra de arquitetura deve possuir um conceito central ao qual todos os outros elementos permanecem subordinados. Assim como o significado de uma frase completa diferente do significado de um grupo de palavras ou, como uma palavra mais significativa do que uma linha de letras desconexas, a idia criativa, ou imagem, um meio de expresso que permite a percepo de coisas e eventos diferentes como um todo, como algo coerente. Se o projeto conce-bido como um processo puramente tecnolgico ou cientfico, ento o resultado estar fadado a um formalismo pragmtico. Se, por outro lado, o projeto exclusivamente a expresso de uma experincia pes-soal, facilmente se pode cair em aberraes formais desenfreadas. Se, ao invs dessas duas opes, o processo de projeto inicia com uma imagem conceitual, que forma o princpio bsico em torno do qual o todo organizado, ento possvel desenvolver, dentro dessa imagem, a extenso total da imaginao. 6

    A paixo intuitiva se une ao esprito intelectual quando

    6. O uso de imagens est presente tanto na lin-guagem diria - se fala no p da montanha, no brao da lei, no corao da cidade, etc. - as-sim como na arquitetura. Le Corbusier se referia Unidade de Habitao de Marselha como uma mquina, e a forma das catedrais medievais era descrita - e provavelmente concebida - em rela-o imagem do corpo de Cristo. O mundo , portanto, como disse Schopenhauer, o que imag-inamos que ele seja.

  • um objeto arquitetnico mais do que um agregado de partes. 7

    Projetar com imagens conceituais torna possvel a passagem do pensamento pragmtico para o criativo, do espao mtrico dos nmeros para um espao visionrio de sistemas coerentes. Este um processo que se baseia em valores qualitativos mais do que em valores quantitativos, e que concentra-se mais na sntese do que na anlise. Essas imagens permitem ao arquiteto lidar com as complexi-dades do problema, decompondo a sua estrutura em um nmero de partes componentes para que possam ser abordadas separada-mente. Esse passo do processo projetual pode ser ilustrado com uma citao extrada do texto no qual Louis Kahn explica sua idia bsica para a Igreja Unitria de Rochester.

    Primeiro temos o santurio e o santurio para aque-les que querem ajoelhar-se. Em volta do santurio est o deambulatrio, e o deambulatrio para os que no tem certeza mas querem estar por perto. Fora h um ptio para os que querem sentir a presena da capela. E o ptio possui uma parede. Os que passam por ela podem at piscar-lhe um olho.8

    Raciocinando dessa forma, Kahn tentava descobrir a natureza do ed-ifcio da igreja antes de lidar com sua realidade fsica. Fica muito claro que o que ele faz criar algumas partes conceituais a partir dos aspectos que ele considerou os mais importantes do problema. Partes conceituais no tm forma. Pode-se descrev-las melhor como noes gerais a respeito dos componentes de cer-tas relaes bsicas. Para ilustrar sua primeira idia para a Igreja Unitria de Rochester, Kahn fez um diagrama (fig. 1), que mostra o deambulatrio como um anel que circunda o espao principal. Sob o diagrama est escrito desenho Forma, no um projeto, para enfatizar que sua inteno era sugerir a presena de um espao do tipo deambulatrio que mediasse entre o santurio e o exterior, ao contrrio de sugerir uma configurao especfica.9 O que a passagem citada sugere que, em algum ponto do processo, uma sntese ocorre que possibilita a gerao de um todo conceitual, uma idia forte, um fio condutor em volta do qual a realidade do edifcio tomar forma. Esse todo conceitual mais do que a soma das partes conceituais j que elas so qualificadas e focalizadas pela intencionalidade da operao sintetizadora. A dis-cusso acima sugere uma relao entre as noes de todo conceitual e partido, no sentido em que o primeiro o embrio do segundo. O que vimos at aqui se refere ao primeiro estgio do processo pro-jetual, que acontece no plano conceitual e suscita duas questes im-portantes: (i) qual a natureza do todo conceitual; (ii) como se rela-cionam o todo conceitual e o todo construdo. A natureza desse todo conceitual est implcita no mesmo dia-grama de Kahn, recm discutido. As palavras sob o desenho avisam que o diagrama no deve ser tomado por um projeto, pois entre o

    1. Louis Kahn, diagrama conceitual para a Primeira Igreja Unitria, Rochester, N.Y.

    7. Ungers, O. M., Architecture as Theme, Electa: Milo, 1982, p. 7.8. Ibid.9. A transposio de termos de uma linguagem para outra muitas vzes nos cria problemas. Neste caso, Kahn se refere Forma (form) como sendo algo imaterial diferenciado de shape (configu-rao ou figura, em portugues), termo que, em ingls, remete noo concreta da forma de um espao ou objeto. Essa oposio form/abstrato e shape/concreto mais difcil de entender em portugus. Para efeitos deste trabalho, a form de Kahn ser traduzida e referida como Forma, com letra maiscula.

  • conceito e o todo construdo existem passos necessrios que impos-sibilitam uma conexo formal direta entre os dois. O prprio Kahn escreveu sobre os dois estgios da criao arquitetnica - o conceitual e o material - em um ensaio chamado Form and Design:

    A Forma (Form) abrange a harmonia dos sistemas, o sen-tido de Ordem, e aquilo que distingue uma existncia de outra. A Forma a realizao de uma natureza, feita de inseparveis elementos. A Forma no tem configurao (shape) nem dimenso. completamente inaudvel e invi-svel. No tem presena; sua existncia mental. Quan-do recorremos natureza podemos torn-la presente. A Forma precede o Projeto. A Forma o que. O Projeto como. A Forma impessoal; o Projeto pertence a quem projeta. O projeto confere aos elementos sua forma, tiran-do-os de sua existncia na mente e dando-lhes presena tangvel. O Projeto um ato circunstancial. 10

    Esse entendimento do todo conceitual -Forma- como algo que no tem dimenso nem forma, no tem presena, impessoal e existe somente na imaginao, afim ao conceito aristotlico de forma. Para Aristteles, forma uma idia central que est presente tanto na criao quanto na apreciao da arte. Essa lei governadora, abstrata e universal, o que proporciona o essencial, aquilo que fundamental e invariante, oposto ao que eventual, o que pode ser diferente. O todo conceitual uma aproximao; ele deixa de fora muitos aspectos de um problema arquitetnico em benefcio da clareza da idia.

    Nenhum ideal pode capturar totalmente uma entidade, j que um ideal uma simplificao do rico multipoten-cial da existncia, a qual puxa em direes divergentes; cada ideal esclarece, mas nenhum ideal abrange a totali-dade do ser... 11

    Sendo essencial, o todo conceitual no pode ser articulado ou detalhado.

    ...se uma crena sempre carrega consigo uma grande sofisticao, temo que seja uma interpretao limitada do problema. 12

    Quanto relao entre o todo conceitual e o todo construdo, existem duas abordagens opostas. A diferena entre as duas ser melhor entendida se a discusso se basear no par forma/matria. A viso Platnica dessa relao subordina a matria forma, logo, partes materiais ao todo conceitual. Plato considerava as formas realidades eternas que esto na raiz de tudo o que existe. O papel do artista seria o de capturar o essencial, o que imutvel, custa do eventual e transitrio. Se a verdade imutvel, ento ser encontrada

    10. Kahn, L., em Lobell, J., Between Silence and Light, Boulder: Shambala, 1979, p. 28.11. Edel, A., e Francksen, J., Form: The Philo-sophical Idea, em VIA 5, 1982, p. 12.12. Kahn, L., Form and Design, em Architectural Design, Abril, 1961, p. 305.

  • naquelas formas que refletem essa imutabilidade. Em arte e arquit-etura, esse enfoque significa a imposio de uma idia prconcebida sobre uma situao real. Em termos platnicos, o todo conceitual completo, perfeito. Nada pode melhor-lo ou modific-lo. Projetar torna-se um esforo no sentido de encontrar uma maneira de traduzir aquele ideal em forma fsica. As partes so totalmente subordinadas ao todo conceitual e o objetivo do seu desenvolvimento torn-lo concreto. O segundo enfoque deriva da filosofia aristotlica. No seu n-cleo est a noo de que a forma no pode ser separada da matria. O platonismo sustenta que existe algo como a Idia de um objeto, a qual completa em si mesma e cuja perfeio nunca pode ser igualada pelo objeto real. Aristteles, ao contrrio, acreditava que, em qualquer objeto real, forma e matria so mutuamente depen-dentes13 e que qualquer descrio desse objeto no pode se limitar forma ou matria, mas deve incluir ambas14. Alm disso, matria e forma so conceitos co-relativos: o que em um contexto consid-erado forma, em outro pode ser visto como matria, e vice-versa. To-ras so matria para a madeira como forma15, a madeira matria para a casa como forma, e a casa parte da matria para a cidade como forma16. o contexto, com seus interesses e condies, que determina o locus da forma, ou seja, onde buscaremos a forma17. Mas a passagem para o plano material no direta. Este es-tgio intermedirio, que um desenvolvimento do todo conceitual, coincide com o conceito acadmico de partido - parti. O partido fixa a concepo bsica de um projeto, a sua essncia, em termos de organizao planimtrica e volumtrica, assim como suas possibili-dades estruturais e de relao com o contexto. Sendo uma tomada de posio, o partido possui uma forte componente subjetiva. No entanto, para que possa gerar um partido, a imagem precisa obriga-toriamente, se apoiar no repertrio que configura o aspecto objetivo e transmissvel do conhecimento arquitetnico. atravs de sua ma-terializao por meio do repertrio formal/ compositivo/ construtivo da arquitetura que uma imagem pode vir a ser, primeiro um todo conceitual, depois um partido e, ao ser desenvolvido, um projeto. O partido uma aproximao, uma sntese dos aspectos mais importantes de um problema arquitetnico. Em benefcio da clareza conceitual, ao partido faltam articulao e detalhamento, qualidades que lhe sero adicionadas ao longo do seu desenvolvimento, ao mes-mo tempo em que aspectos secundrios do problema sero aborda-dos. O desenvolvimento do partido at seu estgio final, o projeto, envolve graus de definio cada vez maiores, que possibilitaro, ao fim dessa sequncia, a construo de um artefato arquitetnico (fig. 2). O partido constitui, pois, a essncia de um projeto, e nele se encontram quase todos os aspectos importantes do processo de projeto, exceto sua materializao. No partido esto presentes os im-perativos de projeto, interpretados e hierarquizados pelo arquiteto, assim como o repertrio arquitetnico, representando o conceito de tradio, e a imagem criativa, representando o conceito de inveno. Estes dois conceitos tem uma importncia fundamental para a prtica e o ensino da disciplina, j que a tradio o valor responsvel

    2. Edson Mahfuz, Tate Gallery, Londres, 1980, projeto para concurso. Croquis do partido geral.

    13. Neste caso forma no tem o mesmo signifi-cado que a Forma de Kahn. O significado aqui de aparncia, do que visto. Ver Tatarkiewicz, W., Form in the History of Aesthetics, em Dictionary of the History of Ideas, vol. II, pp. 216-25.14. Dizer quais so as substncias essenciais das quais um animal formado; dizer, por exemplo, que feito de fogo e terra, no mais suficiente do que seria uma descrio similar de um sof ou coisa parecida. No devemos ficar contentes com a afirmao de que o sof feito de bronze para descrever seu projeto ou modo de composio; se mencionarmos o material, ter que ser em relao aos fatos concretos de matria e forma. Porque um sof tal e qual forma corporificada nesta ou naquela matria, ou tal qual matria com esta ou aquela forma, Aristteles, Parts of Animals, livro I, cap. 1.15. Frascari, M., The True and the Appearance. The Italian Facadism and Carlo Scarpa, em Daid-alos, dezembro 1982, p. 40.16. Edel e Francksen, op. cit., p. 13.17. Ibid.

  • pela continuidade de conexes culturais, enquanto a inveno con-fere intensidade e vitalidade arquitetura, no sentido em que pos-sibilita uma relativizao e personalizao do objeto arquitetnico. A tradio consiste no que arquetpico e ideal, enquanto a inveno se refere aos valores conceituais e aos aspectos circunstanciais de um projeto. Comeando por dar substncia s partes, com a orientao do partido as potencialidades de certos materiais so entendidas. Ao trabalhar com as partes, o arquiteto se v obrigado a ir alm do partido pois, em virtude de sua abstrao e ambiguidade, ele no inclui todas as partes necessrias, e aquelas includas no so detalhadas (fig. 3). O produto final do processo de projeto ser um todo con-strudo, um artefato constitudo por partes organizadas com base em um partido, ele mesmo uma combinao de partes conceituais e um princpio de organizao. O fato de que o partido genrico e abstrato, e que as partes materiais so ricamente detalhadas sug-ere a possibilidade de existir uma multiplicidade de conexes entre as partes e a idia principal. Essas conexes variam no somente em termos formais mas tambm em gnero: elas podem ser lgicas, psicolgicas, intelectuais, sensoriais, afetivas, culturais, histricas e mesmo simblicas18. O que importante aqui salientar que as diferentes conexes entre partido e partes materiais geram diferentes todos construdos19. A maneira como as partes so desenvolvidas de fundamental consequncia para o produto final de qualquer pro-jeto, que o artefato construdo. A isso que Kahn se referia quando falava da diferena existente entre a noo de colher e uma colher especfica. A noo de colher caracteriza um objeto genrico forma-do por duas partes inseparveis, o cabo e a concha. J uma colher implica um design especfico feito de madeira ou prata, pequeno ou grande, raso ou fundo. Uma colher de prata, pequena e funda, muito diferente de outra que seja de madeira, grande e rasa, embora as duas tenham sido criadas com base em um mesmo conceito for-mal. Ao tentar mostrar que o partido no controla totalmente as partes, possvel que tenhamos deixado a impresso de que ele um conceito fixo e imutvel que pode estar relacionado a muitos tipos de partes. Desde j importante desmanchar essa impresso.

    Qualquer norma que se tenha est sempre sob julga-mento. O maior momento de uma norma sua mudan-a: quando ela sobe a um nvel mais alto de realizao, o que leva a uma nova norma.20

    O partido e as partes, de maneira anloga ao par forma/ma-tria de Aristteles, so co-relativos e se influenciam mutuamente. O que significa dizer que, no processo de materializao de um partido, o prprio ato de conferir presena fsica s partes pode causar a transformao do partido.

    Podemos concluir que o problema importante, se tra-balhamos com a noo de forma como idia condutora, o dos tipos de conexo entre a forma e o detalhe, e

    3. Louis Kahn, Diagrama mostrando a evoluo do projeto para a primeira Igreja Unitria, Rochester, N.Y.

    18. Edel e Francksen, op. cit., p.11.19. Ver o captulo final, onde existe um estudo de caso que ilustra essa afirmao.20. Kahn, L., em Lobell, op. cit., p. 26

  • que essa uma relao transacional, que se expande em muitos tipos de relaes, o resultado sendo uma consid-ervel flexibilizao da prpria noo de forma.21

    Alm de o partido e as partes materiais poderem se transfor-mar durante sua interao, preciso tambm enfatizar que o partido no precisa necessriamente existir antes das partes. perfeitamente possvel que ele seja gerado como resultado das tentativas de orga-nizao de partes materiais j existentes.22

    O que eu disse no implica um sistema de pensamento e trabalho levando da Forma ao Projeto. Projetos tambm podem levar realizaes de Forma. Esse interrelaciona-mento o que torna a Arquitetura to excitante.23

    A noo dominante de que o todo controla as partes se apia na crena de que se tem um conhecimento detalhado desse todo desde o comeo do processo projetual. A viso desse mesmo pro-cesso apresentada neste captulo contradiz decididamente aquela crena. Muito pelo contrrio, a progresso se d por aproximao, comeando com os dados objetivos, modificados por uma imagem, o que leva a um todo conceitual, da a um partido, e trabalhando-se alternadamente nos planos material e conceitual, atravs de con-stantes snteses do essencial com o circunstancial, chega-se a um produto final, um artefato construdo, que no pode nunca ser con-hecido na origem do processo (fig. 4).

    4. O processo de projeto arquitetnico.

    21. Edel e Francksen, op. cit., p. 1122. A arquitetura de Aldo Rossi um perfeito ex-emplo disso. Tal qual um bricoleur, Rossi trabalha com um universo de ferramentas bastante limi-tado -em seu caso partes- as quais so emprega-das repetidas vezes, a cada projeto diferente. Seu ponto de partida esse kit de partes. A idia central, o principe, vem do problema especfico e materializada pelas partes. (A rigor poderamos usar muitos outros arquitetos para ilustrar essa idia, j que tpico dos arquitetos de bom nvel desenvolverem sistemas de trabalho que so apli-cados a todos encargos)23. Kahn, L., Form and Design, em Architectural Design, abril, 1961, p. 361.

  • 1. Smuts, J., Holism and Evolution, p. 98.2. 2. Ibid.3. Nagel, E., Wholes, Sums and Entities, em Philosophical Studies, fevereiro, 1952.4. Ver Alberti, L. B., De Re Aedificatoria, Londres: Tiranti, 1955, p. xxi, e Labatut, J., An Approach to Architectural Composition, em Modulus 9, p.57.5. Mukarovsky, J., Structure, Sign and Function, 1978, p. 240.

    Todos, Partes e Totalidades

    2.1 Todos

    O objetivo desta seo definir o conceito de totalidade

    arquitetnica. O passo inicial nessa direo ser o exame de algumas

    definies gerais do termo todo, assim como definies vindas de

    outras disciplinas, tais como o holismo e o pensamento es truturalista,

    pois o todo arquitetnico deve ser visto como um caso particular

    entre todos os tipos de todos encontrveis na natureza e no universo

    feito pelo homem.1

    O dicionrio Webster d as seguintes definies para o termo

    todo:

    1. Um objeto feito de partes das quais nenhuma falta; tambm,

    um objeto feito de partes as quais esto todas presentes e reunidas

    como um agregado.

    2. Uma completa organizao de partes ou elementos; uma

    combinao de partes.

    3. Uma soma ou agregado de partes.

    4. Um resultado obtido por adio ou aglutinao de todas

    todas as partes ou elementos de um grupo ou massa particular.

    Estas quatro definies, embora no se refiram diretamente

    arquitetura, mencionam aquilo que a caracterstica bsica dos

    todos, inclusive os arquitetnicos:

    Um todo no simples, complexo e consiste de partes.

    Ele no pode ser como a Alma de Plato, um todo nico

    que ab soluto, indestrutvel e imutvel.2

    Um outro aspecto muito importante dos todos arquitetnicos

    foi apontado por Ernest Nagel ao definir um todo como algo que

    possui extenso espacial.3 Um todo arquitetnico um tipo de todo

    que s pode existir como um objeto material, como um fenmeno. A

    prpria definio de arquitetura, que abrange o projeto e construo,4

    e in dica sua capacidade organizadora do ambiente humano5, faz

    da existncia material uma caracterstica indispensvel dos todos

    arquitetnicos.

    Outra questo importantssima definir se um todo uma

    mera soma de partes ou transcende suas partes de alguma maneira.

    Laugier, referindo-se relao entre partes e todo, disse:

  • Eu creio absolutamente...que as partes de uma Ordem

    ar quitetnica so as partes do prprio edifcio. A existncia

    do edifcio depende to completamente da unio dessas

    partes que nem uma nica delas pode ser retirada sem

    que o edifcio todo desmorone.6

    A idia de que os todos so compostos por partes est claramente

    presente na citao, mas Laugier pe mais nfase no fato de que

    cada parte deveria ter uma funo justifi cada pela razo, no dando

    muita importncia para o modo de unio entre as partes. Ainda

    fica-se com a impresso de que um todo no mais do que soma

    de suas partes. Edward de Zurko esclarece a questo ao dizer que

    um todo no uma mera massa ou soma de partes que possa ser

    modificada vontade, em que a omisso de uma parte no afete

    perceptivelmente o resto. Ao contrrio, as partes que constituem um

    todo de vem ser conectadas internamente, arranjadas de uma certa

    forma e relacionadas estrutu ralmente.7

    Essa afirmao encontra um eco no pensamento holstico.

    De acordo com J. C. Smuts, um todo no algo alm das partes,

    ele as partes em um arranjo estrutural bem definido..., com suas

    atividades e funes.8 O que parece definir um todo como algo

    mais do que uma soma de partes a presena de um princpio de

    organizao, com seu efeito sobre as partes. O aspecto principal e

    mais importante de um todo a unidade sinttica da estrutura e de

    suas funes, a qual afeta as partes, suas funes e atividades, sem

    acarretar sua perda ou destruio.9

    A mesma idia est subjacente declarao de Viollet-le-

    Duc de que deve existir uma conexo entre as diferentes partes de

    um edifcio - deve existir uma idia domi nante no agrupamento das

    partes10 - assim como a afirmao de Norberg-Schulz no sentido

    de que a anlise da forma arquitetnica deve se concentrar nas

    partes que constituem um todo e nas interrelaes entre elas.11 E h

    tambm a observao feita por Lionello Venturi sobre o fato de que

    a diferena entre a arte e a no-arte reside na estrutura da primeira,

    pois seus elementos tambm esto presentes no trabalho dos que

    no so artistas, mas sem uma estrutura que os una.12

    Para o pensamento estruturalista existem trs tipos possveis

    de todos em arte13: (i) padres, que so todos fechados os quais

    em adio s propriedades de suas partes tem uma Gestaltqualitat

    total que os caracteriza precisamente como to dos; (ii) contexturas,

    sequncias de unidades semnticas cuja alterao necessariamente

    mudaria o todo. A implicao arquitetnica dessa noo que a

    6. Laugier, M., Essay sur lArchitecture, trad. W. Herrmann, Los Angeles: Hennessey and Ingalls, 1977, p. XVII, tambm citada em Herrman, W., Laugier and Eighteenth Century French Theory, Londres: A. Zwemmer, 1962, p. 20.7. de Zurko, E., Origins of Functionalist Theory, Nova York: Columbia University Press, 1957, p. 23.8. Smuts op cit., p.1049. Smuts op cit., p.12310. Viollet-le-Duc, E. E., Discourses in Architec-ture, Nova York: Grove Press, 1959, p.462.11. Norberg-Schulz, C., Intentions in Architecture, Cambridge: MIT Press, 1965, p. 105.12. Venturi, L., History of Art Criticism, Nova York: E. P. Dutton, 1964, p. 21.13. Mukarovsky, op. cit., p. 72

  • maneira como as partes so constitudas e organizadas o que

    determina o carter de um todo arquitetnico; (iii) estruturas, nas

    quais a condio de totalidade no caracterizada como inteireza,

    como nos dois tipos anteriores, mas como uma certa cor relao de

    componentes que vincula as partes entre s. O que pode ser inferido

    dessa definio que as vezes a interrelao entre as partes pode ser

    mais importante do que a configurao total.

    Uma importante caracterstica dos todos, naturais ou

    arquitetnicos, que no podem ser concebidos estritamente em si

    mesmos, aparte de seus contextos. De fato, a definio holstica de

    todo enfatiza exatamente esse aspecto: ...por todo quero dizer esse

    todo mais seu campo, mas seu campo no como algo diferente e

    adicional a ele, e sim como sua continuao para alm dos contornos

    sensveis da experincia.14 Um todo influenciado pelo seu contexto

    assim como tambm o influencia, pois ele se torna mais um centro

    de energia nesse contexto (fig. 5). Um dos fatores que distingue a

    ar quitetura da mera construo que em uma obra de arquitetura

    sempre existe algum tipo de atitude em relao ao entorno imediato,

    e essa atitude se reflete na forma do artefato.

    O todo arquitetnico tem algumas caractersticas que o

    caracterizam como um todo orgnico, conceito que geralmente

    aplicado objetos naturais mas tambm usado na teoria da arte.15 Um

    todo arquitetnico um fenmeno complexo composto de elementos

    heterogneos,16 que unificado por um princpio estruturante. Seus

    elemen tos constituintes so organizados hierarquicamente de tal

    forma que uns so essenci ais unidade do todo enquanto outros

    no o so. Por fim, uma mudana em uma das partes principais17

    equivalente uma alterao no todo.18

    Neste ponto deve ser dito que, embora hajam pontos em

    comum entre objetos arquitetnicos e organismos naturais, a analogia

    traada entre eles no deve ser levada muito longe. A noo de

    funo permite ilustrar as diferenas entre eles. Na biologia, o conceito

    de funo se refere atividade dos rgos individuais em relao

    ao organismo total. Em arquitetura, essa afirmao tambm seria

    vlida, porm incom pleta, j que as funes so o que estabelece

    as relaes entre a arquitetura e a so ciedade ou, mais precisamente,

    entre a arquitetura e os requerimentos que a so ciedade impe a ela.

    Por um lado, as funes influenciam a organizao

    de uma obra de arte e assim so objetivadas por sua

    estrutura; por outro lado, essas mesmas funes so o que

    possibilitam que a arte tenha razes na vida social.19

    14. Smuts, op. cit., p. 123.15. Ver Steiner, P., Russian Formalism, em Poetics Today, vol. 2, n 16, Winter 1980-81; Frascari, M., Sortes Architectii in 18th Century Veneto Archi-tecture, tese doutoral, Un. of Pennsylvania, 1981; Wright, F. L., In the Cause of Architecture, em Architectural Record, May 1914.16. Steiner, op. cit., p.12.17. A noo de partes principais e secundrias discutida na prxima seo.18. Nagel, op. cit., p. 32.19. Mukarovsky, op. cit., p.80.

    5. Mario Botta, Banco do Estado, Friburgo, Sua, 1978-82. O novo edifcio proposto como uma reconstituio, em linguagem contempornea, do tecido urbano do sculo XIX, enfatizando a marcao da esquina e o tratamento ds corpos laterais que dialogam com as pr-existncas de cada rua.

  • Assim, fica claro que a noo de funo mais complexa e mais

    abrangente no seu uso arquitetnico do que no seu uso biolgico.

    O outro conceito relevante para o estabelecimento da

    distino entre totalidades arquitetnicas e biolgicas o de norma.

    O que esse conceito implica que qualquer obra de arquitetura a

    materializao de um momento particular de uma tradio arts tica

    viva. Essa estrutura artstica excede a obra individual em durao,

    muda com o passar do tempo, e existe na conscincia coletiva 20

    Embora tambm exista con tinuidade de desenvolvimento em biologia,

    no existe nada parecido com uma tradio artstica viva, a qual

    uma realidade social imaterial (fig. 6).

    Resumindo, as caractersticas bsicas de um todo arquitetnico

    seriam:

    (1) Extenso espacial; isso significa que um todo

    arquitetnico deve ser um objeto construdo.

    (2) Composio por partes; essa caracterstica os distingue

    de massas homogneas.

    (3) As partes so organizadas de acordo com algum

    princpio estrutural. Essa propriedade os diferencia de agrupamentos

    caticos.

    (4) Todos arquitetnicos sempre se relacionam

    positivamente com seus con textos, e sua explicao deve incluir

    referncias esses contextos.

    (5) O significado de um todo arquitetnico depende de

    sua percepo em re lao uma tradio artstica maior, da qual faz

    parte.

    (6) Um todo arquitetnico sempre pode ser explicado

    teleolgicamente, j que um artefato subordinado funcionalmente

    sociedade na qual criado.

    2.2 Partes

    Assim como paredes, colunas, etc., so os elementos

    que compem os edif cios, os edifcios so os elementos

    que compem a cidade. 21

    O Webster English Dictionary define o termo parte como uma

    poro de um todo. A fim de defin-lo com mais clareza, estabelece

    a distino entre parte e diviso. Pode-se definir algo como sendo

    composto por partes sem qualquer meno uma separao entre

    elas, j que a separao de um objeto em partes de natureza

    20. Mukarovsky, op. cit., p. 7821. Durand, J. N. L., Precis des leons donns a lEcole Polytechnique, 2 vols., Paris, 1809, vol. II, p. 21; tambm citado em Rossi, A., The Archi-tecture of The City, Cambridge: MIT Press, 1982, p. 35.

    6. Jean-Louis-Charles Garnier, pera de Paris, 1862-75.

  • subjetiva e no existe necessariamente. J uma diviso, por outro

    lado, regulada por certos princpios e implica o desligamento de

    uma pea em relao a um corpo principal.

    Embora se fale frequentemente da parte em oposio ao todo,

    todas as definies disponveis enfatizam que algo s pode ser uma

    parte se estiver relacionada a um todo. Uma parte pode ser desligada

    conceitualmente de um todo, mas sempre tomada em conexo com

    esse todo. O todo que confere significado parte.

    O Dicionrio Webster tambm alude uma provvel relao

    entre o substantivo parte e o verbo latino parere, o qual significa

    produzir, causar, dar luz. Isso sugere a noo de que a parte pode ser

    vista como a unidade de produo arquitetnica, e im plica importantes

    consequncias para a composio arquitetnica e para a anlise de

    objetos arquitetnicos. Embora o todo seja mais importante do que

    as partes quando se discute um objeto concreto, 22 para entender

    um objeto real em sua totalidade temos que trabalhar sempre a partir

    de suas partes. 23 Um todo arquitetnico passa a existir atravs de

    suas partes; de fato, ele suas partes em suas relaes estruturais.

    Isso tudo significa dizer que um todo arquitetnico criado por meio

    de um processo no qual a parte a unidade bsica de produo.

    Para que se possa definir o que a parte arquitetnica com

    mais preciso, necessrio ir alm das definies fornecidas pelos

    dicionrios. Dos muitos tratados ar quitetnicos escritos no perodo

    moderno, o qual comea no sculo quinze com o surgimento do

    humanismo, 24 poucos incluem aluses explcitas essa questo,

    embora todos mencionem os elementos que compem a arquitetura.

    Muitos desses tratados simplesmente adotam as definies dos

    anteriores; por exemplo, muitas teo rias escritas aps o trabalho

    pioneiro de Leone Battista Alberti no apresentam novas definies

    ou classificaes das partes arquitetnicas. As teorias discutidas a

    seguir foram escolhidas por serem aquelas que apresentam as

    definies mais claras, alm de permitirem interpretaes diferentes.

    25 Outra razo para escolhe-las o fato de que tiveram e continuam

    tendo grande influncia sobre a prtica da arquitetura. As teorias de

    Aldo Rossi e Norberg-Schulz foram escolhida no apenas por sua

    relevncia para este estudo, mas tambm por serem as nicas teorias

    contemporneas que lidam com a questo da parte arquitetnica.

    O De Re Aedificatoria, de Leone Battista Alberti, publicado em

    1480, um ponto de partida lgico para esta investigao j que a

    primeira teoria moderna de arquite tura, 26 e muito do que veio depois

    a seguia fielmente ou apenas diferia dela parcialmente.

    No livro I, captulo II, Alberti estabelece uma lista do que consiste

    22. Norberg-Schulz, op. cit., p. 146.23. Levi-Strauss, C., The Savage Mind, Londres: Weidenfield and Nicolson, 1962, p. 146.24. Stern, R., The Doubles of Post-Modernism, em The Harvard Architectural Review, n1, Spring 1980, p. 77.25. Alm disso, no haveria sentido em discutir outras teorias renascentistas derivadas do trabalho de Alberti. O mesmo vale para outros perodos: Quatremre de Quincy adota em grande medi-da as definies de Laugier no que concerne s partes componentes da arquitetura.26. Stern, op. cit.

  • a arte da construo: a Regio, a Plataforma, o Compartimento, as

    Paredes, a Cobertura, e as Aberturas. Mais adiante ele estabelece a

    famosa analogia entre a casa e a cidade, de acordo com a qual a

    cidade no mais do que uma grande casa e, inversamente, uma casa

    no menos do que uma pequena cidade.27 Essas duas afirmaes

    trazem tona duas importantes questes, que devem ser esclarecidas

    para que o conceito de parte em arquitetura possa ser definido.

    Primeiro, existe a questo da escala, que envolve a relatividade do

    conceito de parte. Segundo, a questo relativa ao limite, ou seja, quo

    grande ou pequena pode ser uma parte antes que perca qualquer

    significado ar quitetnico? O prprio Alberti sugere a importncia da

    escala quando se refere s partes da cidade, listando elementos de

    escalas diferentes tais como muralhas, pontes, canais, docas, etc., 28

    mas quanto questo dos limites ele bem mais ambiguo. Enquanto

    a cidade parece ser para ele o limite superior, em relao ao limite

    inferior h s vezes meno das aberturas, outras vezes das colunas.

    medida que se progride na leitura de De Re Aedificatoria,

    se torna claro que o Compartimento, as Paredes e a Cobertura so

    partes muito importantes de uma obra de arquitetura. Contudo, essas

    no parecem ser as mais importantes para Alberti. Na sua descrio

    de uma casa de campo para um cavalheiro, 29 ele se refere aos

    recintos como as partes que so reunidas para formar aquele tipo de

    edifcio. No livro VII, captulo IV, Alberti analisa o templo clssico e

    suas partes principais: o prtico e o interior. 30 Esse tipo de anlise

    empregado muitas vezes ao longo do livro e esse fato refora a im-

    presso de que, para Alberti, uma parte arquitetnica deve possuir

    algum contedo es pacial, deve transcender o seu papel como um

    elemento construtivo.

    A leitura do tratado de Alberti tambm sugere que ele poderia

    ter definido as partes da arquitetura da seguinte forma:

    - Partes principais: os espaos interiores e exteriores

    de um edifcio. Se esses espaos no so totalmente delimitados,

    haver alguma demarcao ou no mnimo a separao de uma rea

    para algum propsito. Discutindo edifcios construdos para pessoas

    especficas, no caso reis e tiranos, Alberti se refere s partes como

    es paos especficos, tais como prticos, vestbulos, ptios, sales,

    torres, etc. 31

    - Partes secundrias: aquelas que conferem carter s

    partes primrias, os espaos. Essas seriam os detalhes arquitetnicos:

    as Ordens, janelas, portais, etc.

    A teoria arquitetnica de Alberti foi dominante por pelo menos

    dois sculos. Com efeito, se poderia dizer que , em grande medida,

    27. Alberti, op. cit., livro I, cap. IX.28. Alberti, op. cit., livro IV, cap. IV.29. Alberti, op. cit., livro V, cap. XVII.30. Analogamente, as baslicas so descritas como objetos compostos basicamente de naves e prticos.31. Alberti, op. cit., livro V, cap. II.

  • ainda vlida hoje. Mas, na segunda metade do sculo dezessete,

    outras teorias comeam a aparecer. O caminho para o surgimento

    dessas novas teorias foi aberto quando Claude Perrault deu voz s

    opinies emergentes no sentido de que copiar os antigos era o nico

    caminho apropriado para um artista. 32

    O ataque efetuado por Perrault sobre a autoridade da

    arquitetura clssica foi seguido por uma srie de tentativas de formular

    uma nova teoria. A primeira teoria a di vergir radicalmente dos

    princpios clssicos foi escrita por Marc-Antoine Laugier e publicada

    em 1753, em um livro entitulado Essai sur lArchitecture. Laugier

    desejava depurar e revigorar a tradio da arquitetura retornando

    s suas origens.33 Ele cria que a arquitetura representava valores

    absolutos e que o conhecimento de suas leis fixas e imutveis era

    a nica salvao contra a extravagncia da opinio e o capricho

    do artista. Em seu livro, Laugier apresenta a cabana primitiva como

    a materializao daqueles valores e leis: a cabana o grande

    princpio a partir do qual se pode agora deduzir leis imutveis.34

    Essa cabana (fig.7), que era apenas conceitualmente primitiva, era

    a pura destilao da natureza atravs da razo no adulterada,

    impelida pela necessi dade.35

    A partir da cabana primitiva, Laugier desenvolveu a noo de

    partes essenci ais de um edifcio: ...em uma Ordem arquitetnica

    somente a coluna, o entablamento e o fronto podem formar uma

    parte essencial de sua composio. Se cada uma dessas partes for

    adequadamente formada e posicionada, nada mais precisa ser

    adicionado para fazer o trabalho perfeito.36 Junto com as partes

    essenciais, as quais so a causa da beleza, Laugier admitia a

    existncia de partes introduzidas por necessidade - paredes, portas e

    janelas - e as chamava de licenas. Um terceiro tipo de partes con-

    siste naquelas devidas ao capricho, e que so a causa de todas as

    falhas em um edif cio.37 Esses so elementos no baseados na razo

    ou na natureza.

    Para Laugier a arquitetura continuava sendo uma arte de

    imitao, assim como tinha sido para os arquitetos renascentistas e

    barrocos.38 Mas na sua teoria a arquite tura deveria imitar no mais

    os antigos, e sim a natureza - materializada na cabana primitiva. Essa

    imitao tem muito mais a ver com leis gerais e princpios do que com

    a imitao literal de formas naturais. A influncia clssica era aceita

    conquanto pudesse ser explicada atravs da razo. O significado

    da perfeio perdeu sua conexo com a harmonia proporcional e

    passou a significar a aplicao rigorosa dos princpios encar nados

    pela cabana primitiva.

    32. Ver Rykwert, J., The First Moderns, Cambridge: MIT Press, 1980, p. 42.33. Middleton, R., e Watkin, D., Neo-Classical and 19th Century Architecture, Nova York: Abrams, 1977, p. 21.34. Rykwert, J., On Adams House in Paradise, Nova York: Museum of Modern Art, 1972, p. 48.35. Ibid., p. 49. 36. Laugier, M., Essai sur lArchitecture, p. 12.37. Ibid., -p. 15.38. A arquitetura do Renascimento se baseia na noo de que a arquitetura antiga imitava a na-tureza. Ver Argan, G. C., El concepto de espacio desde el Barroco hasta nuestros dias, Buenos Ai-res: Ediciones Nueva Vision, 1977, pp. 13-17.

    7. Charles Eisen, Alegoria da Arquitetura retor-nando ao seu modelo natural, fronspcio do livro Essai sur lrchitecture, de M.-A. Laugier, segunda edio, 1755.

  • Laugier definiu as partes da arquitetura em um sentido bastante

    diferente de Al berti. Enquanto este conferia um valor espacial s partes

    de um artefato arquitetnico, j que via as partes principais como

    recintos ou espaos definidos, Laugier definiu suas partes essenciais

    em termos de construo, apontando como partes primrias elemen-

    tos como colunas, frontes, e paredes.

    Jean-Nicholas-Louis Durand escreveu suas Precis des Leons

    dArchitecture com o objetivo de prover de informaes os engenheiros

    trabalhando nas colnias francesas no estrangeiro. Para que pudesse

    ser realmente til, seu mtodo no poderia ser ambguo e deveria

    ser relativamente fcil de aplicar em circunstncias as mais di-

    versas. Para isso Durand delineou uma teoria cuja idia fundamenta

    consistia na com binao de elementos precisamente definidos. Esses

    elementos, apresentados por ele tanto nas Leons quanto em outro

    livro entitulado Recueil et Parallle des Edifices An ciens et Modernes,

    eram classificados a partir da histria da arquitetura com base em sua

    adaptabilidade permutaes e combinaes variadas. Nas Leons,

    Durand estabelece uma distino entre os elementos construtivos -

    fundaes, paredes, tetos, etc. - e as partes dos edifcios. Estas eram

    subdivididas em duas caractersticas: partes principais - prticos,

    vestbulos, escadarias, ptios e recintos de todos os tipos - e partes

    acessrias - escadas externas, fontes, grottos, prgolas, etc., (fig. 8).

    Durand foi mais longe do que meramente definir suas partes.

    Ele criou uma es pcie de livro de receitas do qual qualquer

    projetista podia, e ainda pode, escolher as partes mais apropriadas

    para o trabalho que estiver realizando, assim como a estrat gia mais

    conveniente para agrup-las (fig. 9). Em comparao com a teoria

    de Durand, as partes de Laugier ganham uma certa flexibilidade de

    aplicao, j que so bem menos prescritivas. Enquanto Alberti

    vago no que se refere forma que as partes deveriam tomar, Durand

    oferece um catlogo de partes prontas, acompanhado pelas

    instrues sobre como reun-las.

    Julien Guadet, professor na Ecole des Beaux-Arts no fim do sculo

    XIX, escreveu um livro chamado Elements et theorie de larchitecture o

    qual, de acordo com Reyner Banham39, extendeu sua influncia at o

    desenvolvimento da arquitetura moderna, es pecialmente no que diz

    respeito a Le Corbusier. Em sua exposio sobre a arte de construir,

    Guadet se refere duas classes de elementos, os quais chamou de

    Elementos de Ar quitetura e Elementos de Composio.40 A partir

    de sua nfase na composio como o principal meio de expresso

    em arquitetura, podemos concluir que, para Guadet, os Elementos

    de Composio eram os principais ou, pelo menos, aqueles que

    39. Banham, R., Theory and Design in the First Machine Age, Nova York: Praeger, 1967, pp. 14-22.40. Os Elementos de Arquitetura so discutidos no Tomo I, livros 1-3. Os Elementos de Composio so discutidos no Tomo II, livros 1-5, e no Tomo IV, livros 1-3.

    8. J.N.L. Durand, elementos de arquitetura.

    9. J.N.L. Durand, mtodo compositivo.

  • determinam as principais caractersticas de um projeto. Os elementos

    principais de composio so os recintos habitveis,41 comparados

    por Guadet aos rgos do corpo humano. Os elementos secundrios

    de composio so aqueles espaos considerados neutros ou banais,

    espaos auxiliares anlogos artrias e assim por diante, tais como

    vestbu los, peristilos, trios, galerias, corredores, escadarias, ptios

    para iluminao e venti lao, etc. Os Elementos de Arquitetura so

    aqueles responsveis pela construo e pelo carter dos Elementos

    de Composio.42

    No comeo do sculo XX, o entendimento do conceito de parte

    arquitetnica era tanto um desenvolvimento das idias geradas desde

    meados do sculo dezessete como uma revolta contra a tradio,

    quanto uma continuao das mesmas idias sob ataque. Alm de

    manter sua caracterstica espacial, a parte no sculo XX adquire um

    papel estrutural e construtivo.43 Na arquitetura de Frank Lloyd Wright,

    os espaos so claramente as partes principais, e isso evidenciado

    pelo seu mtodo de articular o exterior de modo a mostrar o interior.

    Mas a maneira como a estrutura empregada para definir espaos

    e agrup-los confere aos elementos estruturais um novo grau de

    importncia como verdadeiras partes arquitetnicas, (fig. 10).

    J no caso Le Corbusier, existe uma relao diferente entre

    espaos e estrutura. Enquanto para Wright a estrutura secundria

    em relao aos espaos, nos edifcios de Le Corbusier pode-se

    encontrar uma situao de quase igualdade entre espaos e elementos

    construtivo/ funcionais, cada um podendo ser dominante conforme o

    caso, (fig. 11).

    As arquiteturas realizadas por Wright e Le Corbusier, embora

    muito diferentes, compartilham uma adeso noo de funcionalismo,

    no sentido em que a forma de um edifcio pode ser parcialmente

    explicada por referncia ao propsito a que se destina.

    No comeo da dcada de 60, Aldo Rossi formulou uma teoria

    que privilegia a noo de tipologia como a base essencial do trabalho

    de projeto e d forma um papel preponderante sobre as questes

    de organizao funcional.44 Acreditando que uma mesma forma pode

    ser o cenrio de muitas atividades diferentes ao longo do tempo - por

    isso um edifcio no deve ser feito sob medida para uma funo

    especfica - Rossi props uma teoria do projeto arquitetnico na qual

    elementos derivados da histria da arquitetura45 so pr-estabelecidos

    e definidos formalmente; no entanto, o significado que surge ao fim

    da operao compositiva autntico, imprevisto e origi nal.46

    A partir de uma decomposio analtica da cidade, Rossi criou

    uma srie de partes as quais ele utiliza na maioria dos seus projetos.

    41. O termo recinto empregado no apenas no sentido de espaos cobertos ou enclausurados, mas tambm em referncia a reas definidas de outros modos na paisagem.42. Os Elementos de Composio e de Arquitetu-ra de Guadet correspondem, em grande medida, s partes primrias e secundrias de Alberti.43. Isso parece se dever influncia de idias de-senvolvidas por entre outros, Cordemoy, Laugier e Viollet-le-Duc.44. Rossi, A., The Architecture of the City.45. A histria da arquitetura o material da ar-quitetura, Rossi, op. cit., p. 170.46. Idem.

    10. Frank Lloyd Wright, casa Fricke, Oak Park, IL, EUA, 1902.

    11. Le Corbusier, Ville Savoie, Poissy, Frana, 1929-31. Vista.

  • Essas partes variam desde elementos que no podem ser mais

    reduzidos do que j so elementos mais com plexos que podem

    ser at um edifcio inteiro.47 As partes irredutveis, caracterizadas por

    variaes dimensionais e proporcionais, so: a coluna cilndrica; a

    pilastra; a parede plana; o segmento fino de parede - setto sottile;

    aberturas de tamanho e medida limitados, tais como a onipresente

    janela quadrada; a escadaria externa; vigas de seo retangular e

    triangular; e coberturas planas, semiesfricas e cnicas. As partes

    mais complexas, que aparecem em vrias escalas, so: o prisma de

    seo triangular; o paraleleppedo; o tambor cilndrico ou elptico;

    o edifcio linear; a fonte-monumento; e o prtico, que uma espcie

    de colunata encimada por uma cobertura triangular48 (fig. 12).

    Estranhamente, as partes de Aldo Rossi no se relacionam de

    forma hierrquica; todas parecem ter o mesmo valor. Isso se deve

    provavelmente ao fato de que, para ele, o significado da arquitetura

    no definido pelas partes constituintes de um edifcio; esse significado

    reside na operao, no uso, e no carter do conjunto.49 O que

    isso significa que as partes, que so sempre as mesmas, adquirem

    novos significados cada vez que so recombinadas. A teoria de Rossi

    reverte a mxima de Louis Sullivan, segundo a qual a forma segue

    a funo; para Rossi, a funo segue a forma, ou seja, todas as

    funes so atendidas pelas mesmas formas/ partes, cuja existncia

    ante rior ao projeto.

    A discusso levada a efeito at aqui, a qual procurou identificar

    o que so as partes nas teorias de Alberti, Laugier, Durand, Guadet

    e Rossi, serviu para trazer tona um aspecto importantssimo: o de

    que a definio do que uma parte em arquitetura varia com cada

    teoria. Dependendo da teoria, a definio de parte pode ser mais ou

    menos restritiva, pode ou no estabelecer uma hierarquia, etc.

    Christian Norberg-Schulz, em Intentions in Architecture, no

    fornece uma nova definio do conceito de parte em arquitetura, mas

    desenvolve uma classificao bas tante til dessas partes, baseado nos

    conceitos de massa, espao e superfcie.50 O termo massa denota

    qualquer corpo tridimensional, enquanto o termo espao denota

    um volume definido pelas superfcies limitantes das massas que os

    circundam. Isso implica que uma superfcie pode atuar como limite

    para massas e espaos. Outra maneira de estabelecer a diferena

    entre massa e espao seria por referncia a posio do obser vador

    em relao a ambos: sempre se est fora de um elemento-massa,51

    enquanto se est sempre dentro de um elemento-espao. Talvez se

    possa at afirmar que um espao se torna arquitetnico quando

    grande o suficiente para qua uma pessoa possa entrar nele. Um

    47. Ver Bonfati, E., Elementi e construzioni, em Controspazio, outubro, 1970, p. 21.48. Ibid, p. 21.49. Idem.50. Norberg-Schulz, op. cit., p. 133.51. Algumas vezes conveniente utilizar o termo elemento ao invs de parte. Embora sejam equiv-alentes, j que ambos denotam uma unidade caracterstica que faz parte de um todo arquit-etnico, sua diferena reside no duplo significado do termo elemento, j que ele pode denotar tanto um todo independente (uma Gestalt) quanto uma parte pertencente a um todo mais extenso.

    12. Aldo Rossi, Cemitrio, Modena, 1971-78.

  • elemento-massa, por outro lado, pode ser qualquer coisa desde um

    edifcio at uma maaneta.

    Em geral, o carter de um elemento-massa52 determinado

    pelo seu grau de concentrao.53 A concentrao de uma massa

    tambm chamada de carter figural, isto , sua capacidade de ser

    percebida como algo separado - como figura - em relao a um

    fundo contnuo e sereno54. O critrio bsico para se julgar o grau

    de concentrao de um elemento sua capacidade de se unir a

    outros elementos. Como uma linha reta e um plano definem direes

    que apontam para fora de suas origens, o paraleleppedo a mais

    receptiva de todas as formas estereomtricas elementares. Seu grau de

    concen trao , portanto, baixo. J a esfera a forma estereomtrica

    que apresenta o mais alto grau de concentrao porque no pode se

    unir a nenhum corpo adjacente.

    A configurao de um elemento-massa determinada pelo

    tratamento que dado s superfcies que o limitam. Entretanto, essas

    superfcies devem ser entendidas como elementos subordinados que

    formam elementos-massa cujo carter bsica mente funo de seu

    grau de concentrao.

    Um elemento-espao passa a existir quando os intervalos entre

    as superfcies limitantes ou massas circundantes adquirem carter de

    figuras. Tambm se pode definir um elemento-espao em funo do

    seu grau de fechamento. Uma massa mais ou menos concentrada,

    um espao mais ou menos fechado. O grau de fechamento de um

    espao determinado pelo nmero, tamanho e posio das aberturas

    nas superfcies limitantes.55 A propriedade de concentrao tambm

    relevante aqui, j que ele deter mina o grau de isolamento de um

    elemento-espao em relao ao seu entorno. Central izao enfatiza

    o carter figural isolado de um espao. Isso geralmente obtido

    pela criao de espaos que so figuras geomtricas organizadas

    em planta ao redor de um ponto ou espao central. Quanto mais a

    figura se aproxima do crculo - um do decgono est mais prximo do

    que um pentgono - mais difcil se torna sua combi nao com out-

    ros espaos sua volta.56 Espaos quadrados e retangulares podem

    ser fcilmente combinados entre si, enquanto um espao com bordas

    livres pode, em princpio, se adaptar a qualquer situao.57 O carter

    de um espao tambm depende do tratamento de sua superfcies

    limitantes, ou seja, de sua articulao, cor, textura, material, textura,

    etc.

    Um elemento-superfcie pode ser definido como uma

    superfcie limitada sem espessura mas talvez com propriedades

    de relevo58. Elementos-superfcie no so somente as paredes,

    52. Termo adotado de Norberg-Schulz, op. cit., p. 133.53. O carter figural (qualidade como Gestalt) de um elemento geralmente reforada atravs da geometrizao, ibid.54. Ibid.55. Paredes que se unem formando cantos for-mam uma borda contnua e envolvente. Aberturas nos cantos de um espao tem o poder de abri-lo mais do que aberturas colocadas no centro das paredes. Aberturas colocadas diretamente sob o teto tem o efeito de expandir o espao interior (uma caracterstica marcante da obra de Frank Lloyd Wright), especialmente se vo do cho ao teto.56. O problema maior se o nmero de abertu-ras reduzido. Na arquitetura renascentista esse problema era resolvido atravs do recurso de apoiar as cpulas hemiesfricas - a forma mais centralizada - em colunas ou pilares, o que pos-sibilitava uma relao direta entre esse espao e os circundantes, pela permeabilidade das suas bordas.57. Norberg-Schulz, op. cit., p. 136.58. Norberg-Schulz, op. cit., p. 137.

  • mas tambm tetos e pisos. Uma rpida anlise do Campidoglio

    de Michelangelo ou de qualquer das Casas da Plancie de Wright

    seria bastante para mostrar qua manipulao do plano horizontal

    tambm de grande importncia na ar quitetura, (fig. 13). Superfcies

    limitantes so usualmente compostas de elementos subordinados que

    podem ser de natureza plstica, como uma pilastra, ou de natureza

    perfurativa, como as portas e janelas.59 Qualquer um desses dois

    tipos de elementos subordinados pode tambm assumir um carter

    de figura.

    Uma observao final sobre as caractersticas gerais dos

    elementos arquitetni cos - partes - deve ser feita a respeito do fato de

    que eles podem ser definidos topolgi camente ou geomtricamente.

    A topologia uma rea do conhec