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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivode oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem como o simplesteste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Marilynne Robinson

    Alm da razo

    TraduoAdriana Lisboa

  • CIP-Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJRobinson, Marilynne, 1947-Alm da razo / Marilynne Robinson ; traduo Adriana Lisboa. - Rio de Janeiro : NovaFronteira, 2011.128 p. ; 21 cmTraduo de: Absence of mindInclui bibliografia

    ISBN 978-85-209-2681-9

    1. Religio e cincia. 2. Filosofia moderna. 3. Pensamento. I. Ttulo.

    CDD: 215CDU: 2-67R556a

  • Ttulo original: Absence of MindCopyright 2010 by Marilynne Robinson

    Direitos de edio da obra em lngua portuguesa no Brasil adquiridos pela Agir, selo da EditoraNova Fronteira Participaes S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode

    ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer formaou meio, seja eletrnico, de fotocpia, gravao etc., sem a permisso do detentor do copirraite.

    Texto revisto pelo novo Acordo Ortogrfico

    Editora Nova Fronteira Participaes S.A.Rua Nova Jerusalm, 345 Bonsucesso CEP 21042-235

    Rio de Janeiro RJ BrasilTel.: (21) 3882-8200 Fax: (21)3882-8212/8313

    www.novafronteira.com.br

    Verso digital criada pela Singular Digital Ltda.www.singulardigital.com.br

    Diagramao e-bookSGuerra Design

  • Conferncias da Fundao Dwight Harrington Terry sobre religio luz da cincia e dafilosofia

    O instrumento de sua criao declara que o objeto desta fundao no a promoo dainvestigao e da descoberta cientficas, mas a assimilao e interpretao daquilo que foi ouser doravante descoberto e sua aplicao ao bem-estar humano, sobretudo por meio da geraode verdades da cincia e da filosofia na estrutura de uma religio ampla e purificada. O fundadoracredita que uma religio assim estimular imensamente as tentativas inteligentes de melhoria dacondio humana e o progresso da espcie em termos de fora e excelncia de carter. Para talfim, deseja-se uma srie de palestras, ministradas por indivduos eminentes em suas respectivassearas sobre tica, histria da civilizao, pesquisa bblica, todas as cincias e ramos doconhecimento que tenham contribuio importante ao assunto, todas as grandes leis da natureza,principalmente a da evoluo... Tambm interpretaes de literatura e sociologia, que estejamde acordo com os objetivos desta fundao, com a finalidade de que o esprito cristo possa seralimentado luz mais plena do conhecimento mundial, e que a humanidade possa receber ajudapara alcanar seu bem-estar e felicidade absolutos nesta terra. A presente obra constitui ovolume mais recente publicado por esta fundao.

  • Introduo

    Estes ensaios examinam um lado da clebre controvrsia chamada de conflito entre cincia ereligio e questionam a legitimidade da reivindicao de seus expoentes, que afirmam falar coma autoridade da cincia e com o intuito de levantar questes sobre a qualidade do pensamento queest por trs dela. Proponho que esses autores partem do modelo de cincia estabelecido poralguns pensadores influentes no incio da poca moderna, perodo que vai do fim do sculo XIX primeira metade do sculo XX. Embora seja verdade que ao mesmo tempo e na mesma culturaestivessem surgindo uma fsica e uma cosmologia novas e verdadeiramente modernas, ambaschamam a ateno por no figurarem no raciocnio desses autoproclamados defensores dacincia, da razo e da iluminao. Os limitadssimos termos que eles consideram adequados aoque sempre foi o centro da controvrsia as origens e a natureza de nossa espcie inevitavelmente produzem uma concepo de humanidade muito limitada, excluindo, comodeve, praticamente toda observao e especulao sobre o assunto oferecidas ao longo do tempopor aqueles que no se encontram no crculo fechado conhecido como pensamento moderno.

    claro que h um generoso elemento de arbitrariedade na posio assumida por essesautoproclamados racionalistas. Se algum dissesse Ou Deus criou o Universo ou o Universo produto e consequncia das leis da fsica, poderamos alegar que essas duas proposies no soincompatveis, que uma no elimina a outra. No entanto, a segunda convencionalmente tomadacomo impedimento da primeira. Assim, para efeitos de argumentao, digamos que ela seja defato um impedimento e que das origens do Universo possam ser retiradas as suas implicaesteolgicas. Da mesma forma, se a evoluo no h de se reconciliar com a f, como acreditammuitos religiosos e muitos cientistas, ento digamos, mais uma vez para fins de argumentao,que a vida complexa apenas outro exemplo da matria que se transforma atravs daspermutaes disponveis.

    Admitindo-se esses dois pontos, h mais a ser dito do que o fato de que a existncia,despojada de mito, religiosidade e esprito, apenas ela mesma? Haver outras implicaes?Aparentemente, este mundo iluminado pelas estrelas ainda o mundo, e cada uma de suaspartes, incluindo a humanidade, no teve sua natureza alterada, ainda encarnando uma histriaque tambm sua ontogenia. Sem dvida, nenhum racionalista contestaria isso. Alguns poderiamargumentar que a vida o mito ausente seria libertada de certas preocupaes, iluses ehostilidades, mas tais mudanas no tocariam nosso eu essencial, formado como tem sido atravsda adaptao biolgica.

    No h razo alguma para supor que chegar verdade empobreceria a experincia,ainda que isso pudesse mudar as formas pelas quais nossos dons e energias so colocados emprtica. Portanto, no se pode considerar que algo acerca de nossa ancestralidade comum com omacaco seja capaz de alterar o fato de que os seres humanos so os criadores da histria e dacultura. Se mente e alma no so realidades por si s, so pelo menos termos consideradosteis para descrever os aspectos da expresso e da experincia prpria do nosso complexosistema nervoso. Os dados bsicos de nossa natureza o fato de sermos brilhantemente criativose brilhantemente destrutivos, por exemplo continuariam a para serem encarados, ainda que apalavra primata fosse exaustivamente usada para nos descrever. Estou ciente de que alguns

  • autores argumentaram, ou pelo menos afirmaram, que o conflito surge da religio, maisespecificamente da diferena religiosa. Eles fariam bem em consultar Herdoto ou em ler sobrea carreira de Napoleo Bonaparte. Extrapolaes propostas a partir de acontecimentoscontemporneos tm uma base estreita demais para sustentar uma afirmao to global quantoessa. Ademais, essa tese sobre o incio do conflito muito recente na longa histria do debatesobre as origens humanas, o qual geralmente afirma que o conflito to natural para ns como o para os animais e que, se no bom para o senso comum, ao menos necessrio para o nossoaprimoramento biolgico. No entanto, se um desvio da tradio atribuir o conflito religio,eliminando assim a hostilidade e a violncia de um quadro de interpretao darwinista ou mesmofreudiano, essa ao menos uma estratgia familiar, a qual preserva uma concluso favorvelatravs do recrutamento de toda racionalizao que possa parecer apoi-la. A religio sempre foio contraste dessa tradio, sendo ora deplorada como a patrocinadora da compaixo deletria,ora como fomentadora da opresso e da violncia.

    Argumentos modernistas ou racionalistas s esto em harmonia uns com os outros emsua concluso, a qual claramente anterior s suas diferentes justificativas. Esta concluso , demodo bastante resumido, a de que o positivismo est correto ao excluir do modelo de realidadequalquer coisa que a cincia no tenha (ou no tenha tido) competncia para verificar ou refutar.Embora esta viso tenha mritos em certas circunstncias, ela ficou encistada no interior de umapolmica antiga; e, embora tenha uma profunda influncia na definio da postura que chamada de moderna e cientfica, no foi capaz de se desenvolver, transformando-se no gmeoatrofiado da cincia moderna. O positivismo pretendia banir a linguagem da metafsica por serela insignificante, e em seu lugar forneceu um vocabulrio conceitual sistematicamentereducionista, em especial no que diz respeito s diferentes interpretaes da natureza humana queparecia endossar. Simplesmente no h uma forma de conciliar a viso de mundo de Darwincom a de Freud, nem de qualquer um dos dois com as teorias de Marx, Nietzsche ou B.F. Skinner.A nica coisa que elas tm em comum a suposio de que a compreenso ocidental do que oser humano tem se equivocado fundamentalmente. Esse entendimento se baseou em grandeparte na narrativa e na doutrina religiosa, e a religio tem sido o alvo de sua rejeio explcita.Porm, as tradies clssica e humanista, tambm muito influentes no pensamento ocidental, soexcludas de modo igualmente eficiente por esses modelos deterministas e reducionistas demaneiras diversas da natureza e da motivao humana.

    Considere a noo de ser humano como um microcosmo, um pequeno eptome doUniverso. Esta ideia persistiu desde o incio do pensamento filosfico at o incio do perodocientfico moderno. No pensamento de Herclito, somos da mesma substncia do fogo que aessncia do cosmo. Sendo as mnadas, para Leibniz, os constituintes fundamentais do cosmo,somos em seu esquema uma espcie de mnada cuja marca especial ser o espelho doUniverso. Por meio de suas muitas variaes, a ideia do microcosmo afirmou um profundoparentesco entre a humanidade e a totalidade do ser, o qual o bom senso deveria encorajar-nos acrer que realmente existe. Seria mais do que milagroso na verdade, seria um argumento afavor de algo como uma criao especial se de algum modo fssemos postos parte do sercomo um todo. Nossas energias s podem derivar do amplo fenmeno da energia e express-lo. E h essa perturbadora compatibilidade de nossos sentidos com o universo de coisas a seremdescobertas. Contudo, ainda que a nossa capacidade de descrever o tecido da realidade e suas

  • dimenses sofresse surpreendente aprofundamento e expanso, demos as costas antiga intuiode que somos parte de tudo isso. O que tal reconhecimento poderia implicar, se fosseexperimentado com base no conhecimento atual, difcil dizer, mas o comportamento estranhode quarks e ftons poderia ampliar a percepo da natureza misteriosa de nossa prpriaexistncia. A trao do reducionismo poderia ser equilibrada por uma fora compensatria.

    O modelo bastante truncado do ser humano oferecido por autores da tradio quedominou a discusso desde o incio do perodo moderno uma clara consequncia da rejeiopositivista da metafsica. verdade que a especulao filosfica era o nico meio disponvel paraa antiga tradio que ponderava ideias como a da alma-humana-como-microcosmo. No entanto,a percepo de que ns, assim como os macacos, participamos de uma realidade muito maior doque o mundo sublunar da caa e da coleta, do acasalamento, do territorialismo, e assim pordiante, indiscutvel. Aceitando-se a evoluo, sua matria-prima s pode ser inerente a umacomplexidade brilhante desde muito antes da primeira gerao de estrelas, para escolher umadata ao acaso. Seria impossvel imaginar que a natureza da matria no fosse afetarprofundamente as formas em que a nossa realidade surgiu.

    historicamente acidental que a teologia tenha sido, ou tenha parecido ser, a metafsicaque lidou com o nosso ser nesta escala e que a religio tenha sido considerada o adversrio daverdadeira compreenso. Uma tentativa de nos reintegrar em nosso cenrio csmico podeparecer teologia ou misticismo. Se for este o caso, seria em grande parte consequncia do fato deterem permitido a atrofia do tema, e aqueles que o retomam bem poderiam ser conduzidos devolta a um vocabulrio antigo. Isso poderia ser levemente constrangedor, aps a longa cruzada dedesmitificao. Porm, tais consideraes no devem determinar o curso da cincia.

    H outro sentido em que a conversa moderna se encontra truncada. Se a naturezahumana o assunto que surge quando nossas origens esto em questo, qualquer coisa quesaibamos do nosso passado sem dvida relevante, e generalizaes infundadas so, na melhordas hipteses, uma distrao com a qual preciso tomar cuidado. Se esses dados histricos, oregistro que fizemos do nosso mandato neste planeta, no forem levados em conta, podemosrefletir o cisma na vida intelectual ocidental que alienou a cincia e a aprendizagem humana.Contudo, o cisma em si tem origem na rejeio, pelo positivismo e por vozes influentes dacincia moderna, dos termos em que muito pensamento e muita memria coletiva foraminterpretados e registrados.

    Um fenmeno associado a noo de que sabemos tudo o que precisamos saberquando nos familiarizamos com algumas frmulas simples. Fomos otimizados pela competio epelo meio ambiente, somos formados por foras econmicas e meios de produo, herdeiros deuma culpa primordial, moldados por experincias de frustrao e de condicionamento. Todasessas so afirmaes que do forma ao pensamento moderno. Porm, no podem serconciliadas umas com as outras. O neurastnico freudiano no o primata darwiniano, que porsua vez no o proletrio marxista, que no o organismo dos behavioristas disponvel para sermoldado por um regime de experincias sensoriais positivas e negativas. Reconhecer umelemento de verdade em cada um desses modelos rejeitar as alegaes de embasamentosatisfatrio feitas por todos eles. O que eles tm em comum, alm da alegao de suficincia, uma excluso dos testemunhos da cultura e da histria. Essas afirmaes primrias tornam outrasinformaes irrelevantes ou subordinadas aos tipos de explicao que servem teoria

  • favorecida. O que arte? um meio de atrair parceiros, mesmo que os artistas possam sentirque seja uma explorao da experincia, das possibilidades de comunicao e da colaboraoextraordinria do olho e da mo. Os antigos conquistadores podem ter tido a inteno de searremessar contra as barricadas do destino e da mortalidade, mas, na verdade, com todo osofrimento e todas as perturbaes, estavam apenas tentando atrair parceiras. O eu freudiano necessariamente frustrado em seus desejos, e por isso gera arte e cultura como uma espcie deectoplasma, uma sublimao de impulsos proibidos. Assim, ao que parece, a primeira coisa asaber sobre a arte, qualquer que seja a explicao de seus motivos e origens, que seu criadorengana a si mesmo. Leonardo da Vinci e Rembrandt podem ter pensado que eramquestionadores competentes graas s prprias habilidades, mas ns, modernos, sabemos que nofoi bem assim.

    Recentemente, li para uma turma de jovens escritores uma passagem de TheAmerican Scholar, de Emerson, na qual ele diz: Em silncio, com perseverana, com severaabstrao, que ele se mantenha s; que acrescente observao observao, resignado diante dodesdm, resignado diante da reprovao, e espere pelo momento oportuno feliz o bastante, seele puder se satisfazer com o fato de ter visto algo verdadeiramente neste dia. (...) Pois certo oinstinto que o impele a dizer ao irmo o que pensa. Ele ento descobre que, ao penetrar o interiordos segredos de sua prpria mente, penetrou o interior dos segredos de todas as mentes. Estaspalavras causaram uma certa perturbao. No se considera mais o eu como algo a serabordado com otimismo, ou em que se possa confiar que v enxergar algo verdadeiramente.Emerson est descrevendo o grande paradoxo e privilgio da individualidade humana, umprivilgio vedado quando a mente banalizada ou desacreditada. O punhado de certezas que,juntas, banalizam e desacreditam precisa mesmo ser analisado novamente.

  • UM

    Da natureza humana

    A mente, ou o que quer que seja alm disso, uma constante na experincia de cada um e, deoutras maneiras que no sabemos, a criadora da realidade em que vivemos pela qual, para aqual e apesar da qual vivemos, e devido qual muitas vezes morremos. Nada mais essencialpara ns. Neste captulo, eu gostaria de chamar a ateno tanto para o carter do pensamentodedicado por autores contemporneos ao tema quanto a uma primeira premissa do pensamentomoderno e contemporneo: a noo de que ns, como cultura, atravessamos um ou outro limitedo conhecimento ou da percepo que d ao pensamento subsequente uma condio especial deverdade. Os exemplos que optei por apresentar neste caso so poucos; porm, nessa literaturaque prima pela reiterao, eles podem muito bem ser considerados tpicos.

    Existe atualmente uma literatura assertiva popular que descreve a mente como se fossea partir da postura da cincia. Para esses autores, como se, casta e racional, a objetividadecientfica comprovasse o valor de seus mtodos e a verdade de suas concluses. O que frustra oseu raciocnio, s vezes de forma implcita, mas geralmente de forma explcita, aquele velhomito romntico do eu ainda encorajado pela religio ou deixado em seu rastro como umaespcie de resduo cultural que precisa ser varrido. Eu no tenho opinio formada sobre aprobabilidade de a cincia, em seu pice, acabar por chegar a explicaes da conscincia, daidentidade, da memria e da imaginao que sejam suficientes em termos de investigaocientfica. Tambm no tenho objees, no nosso limitadssimo estado de conhecimento atual, shipteses oferecidas, tendo conscincia de que, na honrosa tradio da cincia, elas podero semostrar grosseiramente erradas. O que desejo questionar no so os mtodos da cincia, mas osmtodos de um tipo de argumento que reivindica a autoridade da cincia ou um conhecimentoaltamente especializado, que assume um carter protetor que lhe permite passar por cincia e,contudo, no pratica a autodisciplina ou a autocrtica que a distingue.

    Estes socilogos e psiclogos evolucionistas, tal como os filsofos, do prosseguimento auma tradio honrosa, embora de forma radicalmente decadente. De fato, uma grande parte daexcitao da vida no perodo ps-iluminista surgiu com a ideia de que a realidade poderia serremodelada, de que o conhecimento emanciparia a humanidade se apenas pudesse se tornaracessvel a ela. Essas grandiosas questes da origem e da natureza humana veem no pblico umteatro adequado, pois a mudana que propem cultural. Sendo este o caso, no entanto, resistir tentao de se popularizar, no sentido negativo da palavra, fica certamente a cargo dos autoresque se comprometem a formar opinio. Literaturas vastas e duvidosas esto por trs dapsicologia, da antropologia e da sociologia. Mas os popularizadores nesses campos so agoraindivduos muito respeitados, aos quais um no especialista poderia confiar, de modo razovel, aabordagem competente dos grandes temas a que seus livros se dedicam, entre os quais a naturezae a conscincia humanas e, com frequncia impressionante, a religio. O grau de consensofundamental entre esses autores importante para a sua influncia.

    Um modelo que d forma escrita contempornea em muitos campos o cruzamentodo limiar. Ele afirma que o mundo do pensamento, recentemente ou em um momento

  • identificvel do passado prximo, sofreu uma mudana significativa. Alguma tomada deconscincia interveio na histria de forma milagrosamente ab-rupta e eficaz, e tudo setransformou. Este um padro que se repete amplamente no mundo contemporneo das ideias.Pego um volume fino de filosofia e leio o seguinte: Nesta condio ps-moderna, a f, j nomais modelada na imagem platnica do Deus imvel, absorve esses dualismos [tesmo eatesmo] sem reconhecer neles qualquer motivo de conflito.1 Aqui recebemos a notcia daexploso de uma suposio: a religio ocidental foi moldada na concepo pag de um Deusimvel at a interveno da hermenutica ps-moderna.

    O que , ento, a religio do ocidente? Aparentemente, nada que eu tenha visto nasminhas leituras no especializadas da teologia dos ltimos quinhentos anos. Se o Ser imvel quefaz as coisas se moverem, e que suponho ser o assunto aqui, concedeu movimento ordemcriada, significativo cham-lo imvel, algo que soa como esttico ou inerte e que no consistente com a grande e antiga intuio brilhantemente entendida como a transmisso demovimento? Um antigo autor cristo, Gregrio de Nissa, disse a respeito de Deus: Aquilo queno tem qualidade no pode ser medido, o invisvel no pode ser examinado, o incorpreo nopode ser pesado, o ilimitado no pode ser comparado, o incompreensvel no admite mais oumenos.2 Desde a Antiguidade, a insistncia na distino ontolgica entre Deus e as categorias aque a mente humana recorre est no centro da reflexo teolgica. O que no pode ser medido oucomparado claramente no pode ser imvel em qualquer dos sentidos comuns da palavra. Este exatamente o tipo de linguagem que o positivismo considera sem sentido, embora, ao estender-separa alm das categorias costumeiras incorporadas na linguagem, ele se assemelhe sobretudo fsica contempornea. Seja como for, ser que essa ideia de um Deus imvel, compreendidosimples ou complexamente, continuou a influenciar a f at a chegada muito recente dacondio ps-moderna? O que alguns acreditam ter sido pressupostos poderosos o suficientepara moldar a cultura de uma civilizao e para remodel-la atravs de sua morte no foi, paramuitos outros, pressuposto algum.

    O paradigma deste tipo de narrativa se baseia na ideia do limiar histrico antespensvamos assim e, agora, nesta nova era de compreenso, ns, ou os iluminados entre ns,pensamos de outro modo. H inmeros limiares, os quais, por sua vez, iniciam inmeras erasconceituais. E em cada caso h uma declarao sobre o passado, tal como visto a partir daperspectiva de um presente fundamentalmente alterado. Nos livros de filosofia, encontro frasescomo a seguinte: Esta hermeneuticizao da filosofia libertou a religio da metafsica nomomento em que ela havia identificado a morte de Deus, anunciada por Nietzsche, com a mortede Cristo na cruz narrada pelos Evangelhos.3 Nietzsche, assim como algumas frases que lhe soassociadas especialmente esta e No h fatos, s interpretaes , muitas vezes figuramcomo marcos nessas metanarrativas, como parece ser este caso.

    Seria til para o leitor comum se tais livros fornecessem definies de termosimportantes. Definir o cristianismo ocidental certamente no tarefa fcil, dado oprolongadssimo histrico de conflitos e divises no seio do cristianismo. Citei um trecho doprefcio de O futuro da religio, de Richard Rorty e Gianni Vattimo. um livro bem-intencionado, at mesmo bem-humorado, que anuncia como, por meio de seu momentonietzschiano, o cristianismo ocidental passou de uma lei de poder adoo da lei do amor. Estou

  • ansiosa para receber o primeiro sinal da realidade dessa transformao. Ainda assim, suspeitoque nenhuma tentativa de definio do cristianismo ocidental possa chegar a uma generalizaopossvel, e assim suspeito que essa definio possa ser evitada aqui e alhures, a fim de permitiruma generalizao.

    O futuro da religio se afasta de outros livros que eu vou mencionar por considerar quea religio possa ter algum tipo de futuro e que o mundo venha a ser melhor por isso. Atransformao de Deus, que de ser respeitado e temido passa a uma fora de amor imanente humanidade, lhe concede existncia, a qual percebida pelo consenso da crena. Isso me pareceo tipo de coisa que William Tames poderia chamar de monismo, de hegelismo.4 Comoexatamente se alcana tal consenso? Digamos que a mudana histrica ocorra de fato naquelaatmosfera superior e pouco povoada em que uma expresso de Nietzsche importa, onde adesconstruo da metafsica tem consequncia. Como ela vivida nas centenas de milhes dementes que poderiam efetivar esse consenso? Estas perguntas no so destinadas a invocarqualquer tipo de padro populista, como se eu estivesse dizendo: O homem na rua pode estartotalmente inconsciente de que a metafsica foi desconstruda, e poderia no aprovar o projeto seestivesse ciente disso. No, muito pelo contrrio. Elas se destinam a chamar a ateno para avoz do salmista, a voz de qualquer poeta, santo ou visionrio antigo que, no outro lado do limiar,deu testemunho do seu prprio senso de sagrado, assim como para a voz de todos aqueles que somovidos por essas vozes e atestam a sua veracidade.

    Isso alcana a prpria natureza da religio. James definiu a religio como ossentimentos, atos e experincias dos homens individuais em sua solido, na medida em queveem a si prprios em relao com aquilo que consideram divino.5 As palavras solido eindividuais so cruciais aqui, uma vez que esta a condio invarivel da mente, sem importara teia cultural e lingustica que a habilita, sustenta e limita. O que se perde nesse tipo depensamento, o tipo que prope um momento em que a religio libertada por umahermeneuticizao, o eu, o lcus solitrio que percebe e interpreta qualquer coisa que possaser chamada de experincia. Pode ter sido perverso por parte do destino dispor a percepo aolongo de bilhes de subjetividades, mas isso fundamental para a vida, linguagem e culturahumanas, e nenhuma filosofia ou cincia cognitiva deveria ser autorizada a fugir dela.

    Quando essa literatura tenta definir a religio, sua definio tende a ser a do tipoexperimental proposto por Daniel Dennett, que descreve as religies como sistemas sociaiscujos participantes confessam a crena em um agente ou agentes sobrenaturais cuja aprovaoeles buscam. O livro que tenho em mos Quebrando o encanto: a religi o como fenmenonatural, de Dennett. Ele diz que sua definio de religio fundamentalmente oposta deWilliam James, que citei antes. Dennett rejeita a definio alegando que ela descreveindivduos que, com grande sinceridade e devoo, se consideram os comungantes solitriosdaquilo que podemos chamar de religies particulares, e por esse motivo eu as chamarei depessoas espirituais, mas no religiosas. Note que religio singular na definio de James eplural na de Dennett. James descreve uma experincia que considera comum a religies de todosos tipos, enquanto Dennett v as religies como sistemas sociais distintos. A nfase dada, naescrita de Dennett, demografia da religio o que, de acordo com ele, observvel e,portanto, acessvel cincia tal como ele a entende lembra a observao de Bertrand Russell,

  • para quem a privacidade dos dados introspectivos que cria grande parte da oposio dosbehavioristas a eles. Bertrand Russell escrevia como um crtico do behaviorismo em 1921, maso behaviorismo um ramo da psicologia que parece ter sado de moda sem levar consigo seusprincipais pressupostos, de modo que seu comentrio ainda acurado.6

    Dennett se desvia do lado contemplativo da f, de sua subjetividade, como se asexpresses coletivas da religio e sua experincia interna fossem magistrios no sobrepostos,como se a religio fosse apenas o que pode ser observado atravs dos mtodos da antropologia ouda sociologia, sem referncia solido profundamente melanclica que leva os indivduos acongregaes e comunidades para serem nutridos pelo pensamento e pela cultura que l seencontram. Assim, ele est livre para se desviar de John Donne e dos poetas sufistas e seguir emfrente, passando a uma descrio dos que se entregam ao culto carga os quais, infelizmente justo supor, a antropologia tambm no tem sob alta estima. Por ora, basta ressaltar que asexperincias religiosas que James descreve em As variedades da experincia religiosa soexpostas como a observao subjetiva de indivduos realmente associados a denominaes. Suasexperincias so de um tipo descrito, sobretudo nos Estados Unidos, durante ambos os episdiosdo Grande Despertar e muito tempo depois deles. Estes indivduos dificilmente podem serconsiderados comunicantes solitrios de religies particulares.

    Que problema interessante est sendo evitado aqui! Dizem que a grande contenda davida ocidental moderna entre religio e cincia. Elas tendem a ser tratadas como seapresentassem uma espcie de simetria, possivelmente por causa da suposta oposiomaniquesta. Mas a cincia um fenmeno relativamente recente, durante vrios sculosfortemente identificada com a cultura do Ocidente, a qual influenciou profundamente e pela qualfoi formada e canalizada. Por ser recente e culturalmente localizada, difcil distingui-la de seuambiente. A guerra moderna, tanto a quente quanto a fria, certamente teve um profundo impactosobre o desenvolvimento da cincia no mesmo perodo em que a cincia teve o seu impacto maisprofundo sobre a vida humana. A energia nuclear e a internet so dois casos relevantes.

    A religio, ao contrrio, antiga e global. Como no tem limites geogrficos outemporais claros, persistindo como hbito cultural mesmo quando parece ter sido suprimida ouabandonada, muito difcil defini-la, sendo definio uma palavra que significa etimolgica everdadeiramente uma fixao de limites. O cristianismo, como um subconjunto da religio,est associado em suas origens e sua disseminao a um perodo histrico e a regies epopulaes especficas. Ainda assim, como um fractal, ele parece reproduzir a complexidade dofenmeno mais amplo. Bertrand Russell, matemtico e filsofo distinto que desprezava a religioe o cristianismo, disse: Em todos os momentos, desde a poca de Constantino at o final dosculo XVII, os cristos foram muito mais ferozmente perseguidos por outros cristos do quepelos imperadores romanos.7 Nenhum cristo com um senso de histria, ainda que sectrio,contestaria isso, j que cada seita tem sua prpria histria de perseguio. Alm disso, a maioriareconhece que a tradio com a qual se identificam em algum momento a exerceu.Porm, se os imperadores romanos martirizaram menos cristos do que os prprios cristos, seusnmeros relativos na populao so certamente relevantes aqui os imperadores presidiamuma sociedade extraordinariamente brutal, por mais brilhante que fosse. Como de costume,Russell culpa as tradies do monotesmo judaico pela violncia crist, e no as normas da

  • civilizao pag em que a f criou raiz.Ainda assim, verdade que as religies diferem menos do mundo em geral do que se

    poderia esperar. Do mesmo modo, no se pode pressupor que os conflitos ocorridos emfronteiras nacionais e demogrficas, que algumas vezes so tambm fronteiras religiosas,signifiquem que a divergncia ou a motivao do conflito a religio. No muito antes deRussell, a Europa crist tinha sido envolvida em uma guerra terrvel, cujas causas parecem tersido seculares: os medos e ambies de estados e imprios rivais. raro, se que realmenteacontece, o caso de consideraes religiosas serem determinantes em tais questes. Issoacrescenta outra dimenso dificuldade de definir a religio.

    --

    Russell pretende refutar o argumento de que a religio eleva o nvel moral da civilizao, umadefesa que os religiosos de fato oferecem. Os regimes ateus da Revoluo Francesa e do sculoXX chegam perto de fornecer um ponto de comparao indito, e eles dificilmente argumentama favor dessa viso dos fatos. Mas no h motivo para artimanhas. Se o cristianismo que Russellabomina o cristianismo que ele encontrou, ento essa uma das formas que a religio assumiuno mundo. Outros tm encontrado outros cristianismos. Este mais um exemplo do universo dedificuldades que envolve a definio de uma religio, para no mencionar a religio como umtodo. No entanto, estranho ver uma controvrsia se alastrar durante sculos no interior dacivilizao, sendo pelo menos metade dela fruto do trabalho apaixonado de autointituladosracionalistas, e encontrar to poucas tentativas de definir termos mais abrangentes, para alm dotipo de definio polmica que garante a uma posio a satisfao de se saber correta everdadeira.

    Eu me demoro nisso porque a religio , indiscutivelmente, um fator central emqualquer explicao da qualidade e do funcionamento da mente humana. Ser que a religiomanifesta uma capacidade profunda de discernimento ou uma propenso extraordinria para ailuso? Ambos, talvez, assim como a prpria mente. Em 1927, enquanto refutava os argumentosclssicos para a existncia de Deus, Russell lidou com a crena em um Criador nos seguintestermos: No h razo alguma para supor que o mundo teve um comeo. A ideia de que ascoisas devem ter um comeo se deve realmente pobreza da nossa imaginao. Por isso, talvezeu no precise perder mais tempo com o debate acerca da Causa Primeira.8 De um ponto devista cientfico, essa era uma afirmao perfeitamente respeitvel no momento em que ele apronunciou. Ento, dois anos mais tarde, Edwin Hubble fez observaes que foramcompreendidas como indicativas de que o Universo est se expandindo, e a narrativa moderna decomeos emergiu, essa mais-do-que-explosiva concesso de movimento. Ningum precisa serlevado a uma crena pelo fato de que as coisas realmente vieram a existir ou de que sua gnese,por assim dizer, parece ter sido to ab-rupta como o Gnesis diz que foi. Ainda assim, a cinciade Russell estava errada. Na grande questo das origens, to pertinente natureza do ser, muitasreligies primitivas ou clssicas tiveram uma intuio mais slida. Se este fato no tem foracomo prova do discernimento humano, ele continua a ser impressionante por legtimo eininterpretvel direito. O fato de mentes antigas terem ponderado acerca das origens csmicas

  • devia inspirar um pouco de reverncia pelo que os seres humanos so, pelo que a mente .No planejei dar particular ateno religio aqui. Pretendia citar Bertrand Russell e

    John Searle, ambos no religiosos, para apoiar minha tese de que a mente como experinciasentida tinha sido excluda de reas importantes do pensamento moderno. Eu queria me limitar,mais ou menos, a olhar para a morfologia caracterstica das escolas do pensamento moderno queveem a mente/crebro como um objeto e que, fora isso, so muito diversas. Porm, acho queessas prprias escolas esto to absortas na religio como problema, anomalia, ou adversrio que o assunto se torna inevitvel. Quando a f descrita como um elemento da cultura e dahistria, sua natureza tende a ser grosseiramente simplificada, apesar da literatura vasta e noconsultada do pensamento e do testemunho religioso. com certeza difcil ceder religioquando ela articulada em termos que so acessveis ao entendimento ocidental. Algum quefizesse indagaes honestas sobre sua natureza poderia passar uma tarde ouvindo Bach ouPalestrina, lendo Sfocles ou o livro de J.

    Em vez disso, a religio um ponto de entrada para certos mtodos e premissasantropolgicos cujas tendncias so claramente hostis. Ela tratada como uma prova deprimitividade persistente entre os seres humanos, a qual legitima tanto a associao de todas asreligies baixssima estimativa que os europeus fizeram das prticas aborgenes, quanto asuposio de que a humanidade em si terrvel, irracional, iludida e autoludibrivel comexceo, claro, desses missionrios da iluminao. Se existe uma agenda por trs da polmicaimplcita e explcita contra a religio que ora tratada como corajosa e nova, ora justificadapelo wahhabismo e por erupes ocasionais de zelo criacionista, mas que est totalmentepresente no racionalismo do sculo XVIII , pode muito bem ser a criao de oportunidadesretricas para a afirmao de uma antropologia da humanidade moderna, uma hermenutica dacondescendncia.

    Para condescender de forma eficaz, obviamente necessrio aderir a uma definiomais restrita de dados relevantes. A existncia de Deus e as maneiras pelas quais sua existnciapode ser apreendida produziram uma conversa antiga e muito rica entre as seitas e as naes.Que Deus ou os deuses possam estar escondidos ou ausentes um tropo recorrente nas literaturasreligiosas. Os devotos viram o mundo como se estivesse vazio de uma presena divina eponderaram de forma extensiva sobre a experincia. Os santos tiveram suas noites escuras ederam testemunho delas. Foi Lutero quem escreveu sobre o Deus absconditus e a morte de Deus,assim como foi Bonhoeffer quem deu uma nova aplicao teolgica ao etsi Deus non daretur de

    Grcio.9 A caracterizao da religio por aqueles que a rejeitam tende a reduzi-la a uma questode ossos, penas e pensamento positivo, uma questo de rituais, de relaes sociais, etiologiasfalsas e medo da morte, o que torna a sua persistncia muito incmoda entre eles. Depois, h ofato de que ela perdura e isso aqui na Amrica, um pas to moderno quanto qualquer outro,exceto neste contexto crucial. Mais motivos para aborrecimento.

    Bertrand Russell diz: A lngua por vezes esconde a complexidade de uma crena.Dizemos que uma pessoa cr em Deus, e isso pode soar como se Deus formasse todo o contedoda crena. Mas aquilo em que de fato se acredita que Deus existe, o que est longe de sersimples. (...) Da mesma maneira, todos os casos em que o contedo de uma crena parecesimples primeira vista vo, ao ser examinados, confirmar a viso de que o contedo sempre

  • complexo.10 Como meio de compreender a mente humana, este bom ateu, apesar de seudesprezo pela religio, age por meio da introspeco, da observao dos processos de sua prpriamente, demonstrando um prazer no funcionamento da lngua que ele pressupe que seus leitoresso brilhantes o suficiente para compartilhar. Sua rejeio da religio verdadeira e profunda,mas ele no a justifica ao custo de deixar de reconhecer a complexidade intrnseca dasubjetividade humana, seja qual for o seu contedo especfico. Reconhecer isso abrir osarquivos de tudo o que a humanidade pensou e fez, ver como a mente descreve a si mesma,pesar o tipo de prova que a suposta cincia tacitamente rejeita.

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    O uso acidental da ideia do primitivo parece sempre envolver a utilizao questionvel deinformaes questionveis. Em The Blank Slate: The Modern Denial of Human Nature, StevenPinker desmascara a crena na alma isto , no Fantasma na Mquina , no Bom Selvagem enaquilo que, em sua opinio, a mais persistente das concepes errneas do ego: a Tabula Rasa.Ele considera todos esses termos simples e ingnuos de uma maneira que dificilmente compatvel com a seriedade das tradies filosficas das quais emergiram. Para Pinker, pornatureza humana entendem-se os fatores geneticamente determinados do comportamento, osquais ele considera bastante significativos e amplamente incompreendidos. Em sua discussosobre a noo do Bom Selvagem, ele oferece um grfico que compara as mortes masculinascausadas pelas guerras do sculo XX. O grfico apresentado como prova de que essa taxa demortalidade entre europeus e americanos, como uma porcentagem de mortes, minscula aolado das relatadas em vrias sociedades pr-estatais contemporneas, as quais teriam sido osprimitivos de estudos anteriores. Na pgina oposta, Pinker observou os erros de Margaret Meadem Samoa e da ostentosa descoberta dos delicados tasaday. Isto digno de nota porque duasbarras em seu grfico representam dois subgrupos de ianommis, uma sociedade cujastendncias violentas foram descobertas a partir de uma aventura antropolgica cujos relatriostambm foram considerados suspeitos. J que seu raciocnio uma rejeio da imagem dendios pacficos, igualitrios e amantes da ecologia, um argumento que com certeza haveria detorn-lo receptivo a informaes que mostram que esses pr-estatais so de fato violentos, seriareconfortante ver um uso um pouco mais imparcial das provas. Seria reconfortante, tambm, veralguma meno susceptibilidade de tais observaes ao boato e manipulao que foi feita deforma clara na questo dos tasaday, dos samoanos e muito possivelmente dos ianommis, juntocom um reconhecimento de que os que usam tais observaes so suscetveis, por sua vez, asupervalorizar dados que tendem a confirmar seus pontos de vista.11

    Outras questes surgem. O que entendido como guerra? Ser que suas vtimasincluiriam os milhes de mortos nas regies africanas das quais se extraiu a borracha utilizadapelos exrcitos da Primeira Guerra Mundial? Ou s so computadas as vtimas europeias eamericanas? Ser que o colonialismo no se enquadra na definio de guerra, presumivelmentedevido ao fato de apenas um lado ter armas eficazes? Deveria este clculo excluir as mortes nomasculinas no cerco de Stalingrado ou na queda de Berlim? Se o ponto em questo aqui comoas sociedades so propensas a se envolver em violncia letal, ento a mortalidade masculina

  • causada pela guerra claramente uma categoria restrita demais para ser significativa. Isso verdade mesmo se deixarmos de lado o fato de que esses povos pr-estatais no possuemregistros escritos e de que as narrativas tradicionais de guerra tendem a exagerar grosseiramenteos nmeros envolvidos.

    E no um pouco absurdo fazer comparaes como esta, com base em percentuais,quando existem diferenas to radicais no tamanho dessas populaes? Pinker nota que duasmortes em um grupo de cinquenta pessoas o equivalente a dez milhes de mortes em um pasdo tamanho dos Estados Unidos.12 Seria esta uma afirmao significativa? Qualquer famliagrande, com 25 membros, sofre uma morte de vez em quando. Seria isto de alguma maneiraequivalente perda de cinco milhes de pessoas de toda a populao? A destruio de dezmilhes de pessoas exigiria uma campanha de violncia prolongada e determinada, montada porsociedades que foram equipadas para lev-la a cabo o que no impensvel, dada a histriado mundo ocidental. Isso significaria que os mtodos necessrios para o desencadeamento deuma violncia em tal escala teriam que estar disponveis, como todos ns sabemos que esto.Ser que isso se reflete de algum modo em nossas predisposies? Para ir mais diretamente aoassunto, mortes em um grupo de cinquenta pessoas nunca poderiam estar abaixo de 2%, ao passoque os Estados Unidos poderiam perder dois milhes e meio de pessoas sem ultrapassar o ndicede 1%. Atravs desse tipo de clculo, isso nos tornaria a sociedade com menor nmero deviolncia. E por que, alis, estamos comparando um grupo de guerreiros do sexo masculino comtoda a populao dos Estados Unidos?

    Por fim, seria razovel desmascarar o mito do Bom Selvagem atravs da avaliao dequalquer sociedade do sculo XX, por mais remota e extica que seja? No temos como disporde qualquer conhecimento de sua histria, e portanto no podemos saber se o que nos pareceprimitivismo no expropriao e marginalizao. O prprio Pinker observa que algum tipo deempobrecimento cultural aconteceu entre os tasmanianos depois que migraram da Austrlia.13No disponho de quaisquer provas particulares da noo de inocncia primordial, mas tambmno estou disposta a ver uma acusao to falha ser feita contra ela. Contudo, o propsito dogrfico que Pinker usa para ilustrar seu argumento declarar algo sobre a natureza humanaessencial, dizer-nos o que somos, propor uma resposta interrogao mais difcil que podemosfazer de ns mesmos uma resposta alavancada sobre dados altamente questionveis eapresentados como se tivessem a autoridade da objetividade cientfica como respaldo.

    H uma negligncia que muito caracterstica desta conversa importante. Sinto-meinclinada a atribu-la ao mito do limiar que mencionei antes, noo de que, depois de Darwin,depois de Nietzsche, depois de Freud, depois do estruturalismo e do ps-estruturalismo, depois deCrick e Watson e da morte de Deus, algumas hipteses devessem ser consideradas fixas einevitveis e outras, como expostas para sempre e para todos os efeitos, ingnuas e insustentveis,suplantadas por uma melhor compreenso. Galileu evocado com frequncia. Ao denominarqualquer momento da histria, real ou imaginada, como o momento limiar, o autor ou escola estafirmando uma prerrogativa, o direito de caracterizar o passado e estabelecer os termos em queo discurso ser conduzido daqui por diante. Algum conceito transformativo nos obrigou arepensar o mundo sob sua nova luz, supondo um erro universal no pensamento anterior e nos seusvestgios. A enxurrada de neologismos em certas disciplinas parece destinada a sinalizar um

  • afastamento radical. J que o darwinismo um modelo importante para muitos autores nesteestilo, pode-se esperar que a evoluo da cultura tenha um lugar em sua viso de mundo. Porm,essa transformao que descrevem como uma mutao to completa que parece ter selibertado da herana gentica. Na cultura, assim como na natureza, no h como deixar opassado para trs; ainda assim, ter feito isso, ter cruzado um limiar que separa o velho erro deuma nova viso, o pressuposto de que partem essas escolas de pensamento, usando-o comopostura e como mtodo. O triunfalismo nunca foi amigo da razo. Ademais, o tom de muitosdestes livros condescendente. Ainda assim, independentemente do que pensem de seus leitores,como portadores da verdade para aqueles que jazem nas trevas esses autores deveriam agir deacordo com sua declarada devoo ao rigor intelectual.

    Fui educada para acreditar que um limiar de fato fora atravessado na experinciaintelectual coletiva, que havamos entrado em um reino chamado pensamento moderno e quetnhamos que nos adaptar a ele. Havamos passado por uma porta que s se abria para um lado.Grandes iluses tinham se dissipado para todo o sempre. Com Darwin, Marx, Freud e outroshavamos assimilado constataes sobre a realidade que eram to profundas quanto a-histricas.Crtica era nostalgia, e o ceticismo indicava que a mente daquele que duvidava estava fechada ecom medo. Numa era de dvidas, isso deve ter parecido uma resposta ingnua a qualquerconjunto de pensamento. Porm, essas ideias se apresentaram como a ltima palavra em termosde dvida, o nec plus ultra do ceticismo intelectual. E assim foram consideradas por geraes,alcanando uma notvel pertincia atravs da sua associao a mudanas memorveis eestranhamente imutveis. Novas interpretaes sempre brotaram destas obras seminais, e estasmesmas, vez ou outra, com revises de vrios tipos reivindicando, por meio do prefixo neo,tanto a ateno do mundo quanto sua lealdade intacta escola da qual poderiam parecer seafastar. O prefixo ps significa, claro, que atravessaram uma espcie de limiar, podendoento reivindicar de maneira indita a ateno do mundo.

    As escolas de pensamento que apoiam o consenso modernista so profundamenteincompatveis entre si, to incompatveis que no podem ser tomadas de modo coletivo a fim dedar sustento a uma grande concluso. O fato de se supor que fizeram isso pode ser razoavelmenteconsiderado uma sugesto de que esta concluso irresistvel veio antes e talvez inspirou osargumentos que foram e ainda so elaborados para apoi-la. Proponho que o pressuposto centralque permanece incontestado e inquestionvel em todas as variaes apresentadas pelas tradiesdo pensamento moderno o de que a experincia e o testemunho da mente individual devemser elucidados e excludos de qualquer explicao racional da natureza do ser humano e do ser demodo geral. Em seu lugar temos os grandes projetos de generalizao os esforos solenespara dizer nossa espcie o que somos e o que no somos que foram proeminentes no inciodo pensamento moderno. A sociologia e a antropologia so dois exemplos.

    A grande e nova verdade que a modernidade nos deu tida, em geral, como a de que omundo que nos apresentado obra do acaso, que ao longo do tempo ele escalou o MonteImprovvel atravs de uma lgica interna de desenvolvimento, refinamento e elaborao, a qual suficiente para explicar exaustivamente toda a complexidade e variedade de que a realidade ea experincia so compostas. Outrora foi afirmado (e agora tido como comprovado) que oDeus da religio ocidental tradicional no existe, ou ento que Ele existe nas mais remotas

  • margens do tempo e da causalidade. Nos dois casos, considera-se que um vazio penetrou naexperincia humana com o reconhecimento de que uma compreenso do mundo fsico pode serdesenvolvida e agilizada atravs de disciplinas de raciocnio que no veem Deus como umpressuposto.

    comum culpar Descartes pelo erro que foi superado. Esse o mesmo Descartes queprops a glndula pineal como sede da alma e que ainda assim acusado de criar uma dicotomiaentre a mente/alma e o corpo fsico, uma dicotomia que, se os relatos merecerem crdito, tematormentado o pensamento ocidental. Um no especialista poderia se perguntar como essalocalizao da alma no interior profundo do crebro difere em princpio da localizao do sensomoral no crtex pr-frontal, tal como afirmam os autores contemporneos para demonstrarcomo esto livres dos erros de Descartes.14 Descartes outro personagem do limiar, mas ele um marco de conceitos que foram e devem ser deixados para trs. dado como certo que amarcha do moderno tem muitos retardatrios na verdade, qualquer um de ns, at mesmo aprpria vanguarda, pode reincidir no cartesianismo em algum momento de descuido.

    O prestgio do estilo de pensamento e argumentao que se associou cincia temtrazido consequncias para ramos do conhecimento que poderiam parecer imunes suainfluncia. A cincia da religio, profundamente afetada pela imposio de modelosantropolgicos da primitividade sobre este texto seminal, teve enormes consequncias para osestudos do Velho Testamento. Estou lendo um livro bastante estranho intitulado How to Read theBible: A Guide to Scripture, Then and Now, de James L. Kugel. A tese de Kugel de que a Bbliano era, em suas origens, uma literatura religiosa, s vindo a ser assim concebida no final doperodo que antecede a Era Comum. Seja como for. Ele tem o seguinte a dizer sobre assemelhanas entre as narrativas do dilvio na Epopeia de Gilgamesh e no Gnesis: Algum quel a histria do dilvio babilnico provavelmente vai ach-la interessante, ou talvez perturbadora(por causa de sua clara ligao com o relato do Gnesis). Mas qualquer pergunta no estilo Comodevemos aplicar as suas lies em nossas vidas? seria recebida por este leitor comincompreenso ou com escrnio. Lies? Ora, isto foi escrito por um bando de mesopotmios hquatro mil anos! Se essa mesma pessoa l, no livro do Gnesis, o que essencialmente a mesmahistria, considerando-a cheia de todo tipo de doutrinas edificantes, bem, ou ela est sendodesonesta ou simplesmente no conseguiu reconhecer um fato fundamental.15

    A elegante Babilnia, Grcia para a Roma da Assria antiga, sim, e muito longe deser primitiva. No h motivos para supor que um bando de mesopotmios no teria nada a nosdizer, ou ento que no pudesse ter dito algo que fosse do interesse dos escritores bblicos. Temossempre o hbito de encontrar significado nos escritos da ndia, da China ou da Grcia antigas.Tambm estamos familiarizados com o fenmeno da aluso literria. As histrias sobre asenchentes sumrias, babilnicas e assrias so teodiceias, certamente entre os primeirosexemplos desse gnero to interessante. Por que a catstrofe ocorre? O que significa? Nessasnarrativas, a natureza dos deuses e suas expectativas e sentimentos para com os seres humanosso explorados.

    O dilvio bblico narra a histria de novo, com alteraes que a tornam monotesta, quetornam a grande destruio a resposta de Deus para a violncia humana e no, como nas versesbabilnicas, ao barulho insuportvel que fazemos. E assim por diante. Deus fiel a ns, mas no

  • porque seja dependente de ns, como os outros deuses so dependentes de seres humanos que osalimentem. Em outras palavras, reavaliar a histria aceitar sua certeza a de que ahumanidade pode experimentar a devastao e ento interpret-la de uma maneira quereafirma radicalmente a concepo de Deus e da humanidade a subentendida. A culturababilnica era poderosa e influente. A epopeia de Gilgamesh foi encontrada sob vrias formas noantigo Oriente Prximo. absurdo imaginar que sua parte mais dramtica poderia sersimplesmente costurada no Gnesis hebraico sem que ningum notasse o plgio. Recontar suahistria com mudanas seria defender-se contra suas implicaes teolgicas pags e, ao mesmotempo, abordar o que, afinal, so questes de grande interesse.

    Tudo isso parte do pressuposto de que esses antigos tinham uma vida intelectual, de queeles tinham uma significativa conscincia das culturas que os circundavam. Provas arqueolgicasde um contato contnuo esto mais do que consolidadas. Kugel um estudioso do AntigoTestamento, certamente mais bem informado do que eu sobre o brilho da Babilnia. Porm, apassagem citada acima implica que as origens da narrativa do dilvio a excluem do tipo deleitura para Kugel, a descoberta de todo tipo de doutrinas edificantes que as Escriturashabitualmente recebem. O pouco valor que se d Babilnia fundamenta o baixo valor dado Bblia hebraica a deteriorao modernista. Pressupondo-se que uma narrativa no temsentido, podemos ou devemos presumir que a outra tambm no tem. Esta concluso , do incioao fim, perfeitamente arbitrria.

    Grande parte da fora de um raciocnio como o de Kugel vem da noo de que asinformaes em que ele se baseia so novas, de que formam outro desses limiares capazes detransformar o mundo, uma daquelas remadas ousadas do intelecto que queimam as frotas dopassado. Essa ideia da novidade chocante que deve nos alarmar e, com isso, nos levar a umreconhecimento doloroso uma verdadeira assinatura do moderno. Ela retoricamentepotente, ainda mais por estarmos condicionados a aceitar esse tipo de afirmao como plausvel.No entanto, muitas vezes seus efeitos so alcanados pela desvirtuao de um estado deconhecimento anterior, ou ento pela simples incapacidade de investig-lo. Em 1622, HugoGrcio, renomado acadmico e terico do direito primitivo, escreveu um tratado intitulado Daverdade da religio crist. Ele foi traduzido para o ingls muitas vezes a partir do sculo XVII.Nas sees XVI e XVII, Grcio defende a verdade do Gnesis, precisamente com base no fatode que outras culturas antigas tinham suas prprias verses das mesmas histrias. Essestestemunhos de estrangeiros mostram que o mais antigo relato estava presente em todas asnaes, como os escritos de Moiss anunciam. Pois os escritos sobre a Origem do mundo queele deixou para trs eram, em sua maioria, os mesmos tambm nas histrias mais antigas dosfencios, (...) em parte tambm encontrados entre os indianos e os egpcios, (...) ganhandomeno a formao dos animais e, por fim, do homem, esta tambm de acordo com a ImagemDivina: o domnio concedido ao homem sobre as outras criaturas vivas, o que se poderencontrar em muitos outros autores.16

    No posso afirmar ter encontrado tantas semelhanas quanto ele encontra entre oGnesis e as literaturas antigas em geral. O que quero dizer aqui apenas que, quando ocorrem,as semelhanas no precisam comprometer a autoridade do texto bblico, mesmo que noconcordemos com Grcio quanto ao fato de elas a afirmarem. Para abordar, de maneira

  • particular, a afirmativa de Kugel, Grcio tem plena conscincia de outras verses da histria dodilvio elaboradas no Oriente Prximo. Ele diz: Essas coisas sobre as quais lemos, envolvidaspelos poetas na permissividade das fbulas, foram comunicadas pelos autores mais antigos deacordo com a verdade, isto , de acordo com Moiss, a saber: Beroso, em sua histria doscaldeus; Abideno, em sua histria dos assrios, que at menciona a pomba enviada, comotambm faz Plutarco, um dos gregos.17 Beroso foi um historiador babilnico que floresceu nossculos IV e III antes da Era Comum. Abideno foi um historiador grego da Assria que escreveuno sculo III a.C. Fragmentos de suas obras sobrevivem em outros textos antigos.

    Assim, no incio do sculo XVII, havia fontes antigas disponveis a Grcio quedeixavam claro que os babilnios e os assrios tinham narrativas do dilvio que correspondem, demaneira um tanto detalhada, ao dilvio do Gnesis. Mais uma vez, o fato de ser esta uma provada veracidade do relato de Moiss, como Grcio argumenta que seja, de que ela possa realmenteser citada em defesa de Moiss, claramente uma questo em aberto. Porm, a ideia bastante comum nos estudos bblicos desde o sculo XIX e reiterada por James Kugel de quea existncia dessas antigas narrativas mesopotmias foi uma surpreendente descoberta moderna,devendo assim levantar inevitveis dvidas sobre o significado do dilvio bblico e sobre aintegridade das Escrituras, de modo geral claramente falsa. O declnio da erudio clssica e adescaracterizao da natureza da crena tradicional so agentes em contextos como este. Outrofator que me parece igualmente importante o grande mito e os fundamentos lgicos domoderno, pois ele coloca dinamite na base de um antigo erro e derruba seus santurios emonumentos. O desprezo pelo passado sem dvida responsvel por uma consistenteincapacidade de consult-lo.

    O tipo de erudio falha que se faz necessrio para chamar a ateno para a adaptaobblica da narrativa do dilvio na Epopeia de Gilgamesh um exemplo clssico do que WilliamJames chamou de fora de superficializao do intelecto.18 Menciono Kugel mais uma vezporque tenho seu livro mo. Este tipo de erudio, tendendo sempre s mesmas concluses,dominou os estudos do Velho Testamento desde meados do sculo XIX. A declarao bastanteinspida de Kugel, para quem aquele que tem uma opinio diferente ou est sendo desonesto ousimplesmente no conseguiu reconhecer um fato fundamental, o tipo de atestado desuperioridade intelectual que talvez seja a caracterstica mais consistente do tipo de pensamentoque se designa moderno.

    O grau em que tem sido buscado o desmascaramento como se esta fosse umacruzada urgente, realizada independentemente da riqueza de descobertas sobre a naturezahumana que poderia surgir do contato com o histrico da humanidade, assim como semconsiderar os padres probatrios a que tanto a erudio quanto a cincia deveriam responder pode muito bem ser a caracterstica mais notvel do perodo moderno da histria intelectual.

    1 Santiago Zabala, introduo a Rorty e Vattimo, Future of Religion.2 Balthasar, Presence and Thought, p.1.3 Rorty e Vattimo, Future of Religion, p.17.

  • 4 James, On Some Hegelisms, em Will to Believe.5 James, Varieties of Religious Experience, p.42 (grifo do original)6 Dennett, Breaking the Spell, pp.9, 11; Russell, Analy sis of Mind, p.230.7 Russell, Why I Am Not a Christian, p.27.8 Ibid., p.7.9 Bonhoeffer, Letters and Papers from Prision, p.359.10 Russell, Analy sis of Mind, p.236.11 Pinker, Blank Slate, pp.56-57. Ver Patrick Tierney , Darkness in El Dorado: How Scientists andJournalists Devastated the Amazon (Nova York: W.W, Norton, 2000), e Robert Borofsky ,Yanomami: The Fierce Controversy and What We Can Learn From It (Los Angeles: Universityof California Press, 2005).12 Pinker, Blank Slate, p.56.13 Ibid., p.69.14 Pinker, Blank Slate, p.42.15 Kugel, How to Read the Bible, p.8016 Grcio, On the Truth of the Christian Religion, p.11.17 Ibid., p.13.18 Ver James, Varieties of Religious Experience, p.389, nota 10.

  • DOIS

    A estranha histria do altrusmo

    A grande brecha que separa o mundo ocidental moderno de suas tradies religiosas emetafsicas dominantes o prestgio da opinio que pe em questo a escala da realidade em quea mente participa. Ser que ela se abre para a verdade final, ainda que potencialmente ou emrelances momentneos? Ou seria uma extravagncia da natureza, brilhantemente complexa mascriada e radicalmente limitada pela sua biologia e pelas influncias culturais? Antes de qualquerafirmao sobre a mente, h uma suposio sobre a natureza da realidade da qual ela faz parte eque lhe at certo ponto acessvel como experincia ou conhecimento.

    Quem controla a definio de mente controla a definio da prpria humanidade, dacultura e da histria. H algo de peculiarmente humano no fato de podermos nos questionar sobrens mesmos, formulando perguntas que de fato importam, que realmente mudam a realidade. Oque somos, o que os seres humanos so como indivduos e nas categorias que lhes atribumos:nossos pressupostos e concluses sobre esses temas tiveram enormes consequncias, as quaisestiveram longe de ser seguramente boas.

    Devo declarar de sada minhas prprias tendncias. Acredito que seja prudente fazeruma estimativa muito elevada da natureza do homem, em primeiro lugar a fim de conter ospiores impulsos da natureza humana; em seguida, a fim de liberar os seus melhores impulsos.No quero dar a entender que haja malcia ou clculo por parte daqueles que insistem em umadefinio da mente (e, assim, da pessoa humana) que tende a nos reduzir em nossa prpriaestima. Deve ser bvio, porm, que considero essa tendncia do pensamento moderno econtemporneo significativa e tambm lamentvel.

    H uma certeza caracterstica que est estruturalmente presente de modo estrutural notipo de pensamento e de escrita para o qual eu gostaria de chamar a ateno, uma ousadia quediminui o tema. Vou me referir a essa literatura como paracientfica. Com essa expresso refiro-me a um gnero robusto e surpreendentemente convencional de teoria social, poltica ouantropolgica, o qual, usando a cincia do momento, parte de uma gnese da natureza humanaprimordial e chega a um conjunto de concluses gerais sobre o que a nossa natureza e deve ser,juntamente com as implicaes ticas, polticas, econmicas e/ou filosficas dessas concluses.Seu autor pode ser ou no um cientista. Um dos traos que caracterizam essa literatura ampla eem rpido desenvolvimento a certeza de que a cincia nos deu conhecimento suficiente paranos permitir responder a algumas questes essenciais acerca da natureza da realidade, mesmoque faamos isso atravs de sua rejeio. Esta confiana j foi afirmada por Auguste Comte, opai do positivismo, em 1848. Ele viu sua poca preparada para a regenerao social dahumanidade: Durante trs sculos os homens da cincia colaboraram, inconscientemente, naobra. No deixaram nenhuma lacuna importante, exceto na regio dos fenmenos Morais eSociais. Ento, agora que a histria do homem tem sido, pela primeira vez, consideradasistematicamente e como um todo, sujeita, como todos os outros fenmenos, a leis invariveis, ostrabalhos preparatrios da cincia moderna terminaram.19 Duvido sinceramente que qualquer

  • cientista ativo hoje, se pressionado, falaria com a mesma certeza da suficincia do nosso estadoatual de conhecimento. No entanto, na literatura desse gnero, do qual Comte tambm umantepassado, esse tom de certeza persiste, sendo uma caracterstica atvica que desafia aevoluo do seu objeto terico.

    prematuro, e talvez sempre seja, tentar, quanto mais afirmar, uma ontologia fechada,dizer que sabemos tudo o que precisamos saber a fim de avaliar e definir a natureza e ascircunstncias humanas. As vozes que disseram h algo mais, h um conhecimento outro ediferente a ser adquirido sempre estiveram certas. Se h uma grande verdade contida naepopeia de Gilgamesh e em todos os outros empreendimentos picos do pensamento humano,seja ele cientfico, filosfico ou religioso, a de que est na prpria mente humana a nica provaacessvel da dimenso de nossa realidade. Asseguramos nosso lugar no Universo desde queocorreu primeira de nossas espcies perguntar qual poderia ser o nosso lugar. Se a resposta que somos o interessante resultado acidental de leis fsicas que tambm so acidentais, isto diztanto sobre a realidade suprema quanto a descoberta de que estamos de fato um pouco abaixodos anjos. Dizer que no h nenhum aspecto do ser que a metafsica possa significativamenteabordar uma afirmao metafsica. Dizer que a metafsica uma fase cultural ou um equvocoque pode ser posto de lado tambm uma afirmao metafsica. A noo de acidente nada fazpara dissipar o mistrio, nada faz para diminuir a escala.

    Considero errnea a explicao comum dada ao sentimento de vazio do mundomoderno. Se h de fato um vazio caracterstico da nossa poca, no por causa da morte deDeus no sentido no luterano em que ela geralmente entendida. No porque o retrocesso daf que antecedeu o avano da cincia empobreceu a experincia moderna. Supondo que haja defato um mal-estar moderno, uma de suas causas poderia ser a excluso da vida mental queexperimentamos das explicaes da realidade propostas pela literatura paracientfica (literaturaestranhamente autoritria e profundamente influente, que h muito tempo se associou aoprogresso intelectual), assim como a excluso da vida que experimentamos das variedades depensamento e arte que refletem a influncia dessa explicao. At certo ponto, a prpria teologiaaceitou o empobrecimento, muitas vezes sob o nome do laicismo, para se mesclar de modo maisprofundo com uma desanimada paisagem cultural. No grau elevado em que a teologia acomodaa viso paracientfica do mundo, ela tambm tende a esquecer a beleza e a estranheza da almaindividual, ou seja, do mundo percebido no curso da vida humana, da mente como ela existe notempo. No entanto, a beleza e a estranheza persistem da mesma forma. A prpria teologiapersiste, mesmo tendo absorvido como verdade as teorias e interpretaes que razoavelmentejulgaramos capazes de mat-la. Isso sugere que a vida real est em outro lugar, um lugar noalcanado por essas dvidas e assaltos. A subjetividade o antigo refgio da piedade, dareverncia e dos longos pensamentos. As literaturas que refutariam essas coisas se recusam areconhecer a subjetividade, talvez porque a inabilidade se transformou em princpio e mtodo.

    O avano da cincia como tal no precisa e no deveria impedir o reconhecimento deuma caracterstica to indubitvel da realidade quanto a subjetividade humana. A fsica qunticatem levantado questes bastante radicais sobre a legitimidade da distino entre subjetividade eobjetividade. Na verdade, insinua-se hoje a penetrante importncia de algo semelhante conscincia para as estruturas profundas da realidade. O carter evasivo da mente umaconsequncia da sua centralidade, que tanto sua potncia quanto sua limitao. A dificuldade

  • que temos para alcanar a objetividade considerando que ela sempre pode ser alcanada s demonstra a penetrante importncia da subjetividade. Eu diria que a ausncia da mente e dasubjetividade na literatura paracientfica consequncia parcial do fato de a literatura ter surgidoe se formado tambm como um ataque religio. Alm disso, ela tem persistido,conscientemente ou no, numa estratgia para retirar, do pensamento simptico religio, apossibilidade de falar em seus prprios termos, argumentando a seu prprio favor. Em geral, ametafsica tem sido excluda at da filosofia, que desde Comte vem associada a esse mesmoprojeto de excluso. As artes foram radicalmente marginalizadas. Em seu tratamento danatureza humana, a diversidade de culturas deixada de fora, talvez para facilitar as analogiasentre o nosso eu vivo e aqueles hipotticos antepassados primitivos to centrais para o seuraciocnio, os quais s podem ter sido, de fato, culturalmente muito distantes de ns. Quando ahistria mencionada, em geral para apontar seus desatinos e erros, que s persistem enquantoa luz da cincia no cair sobre todos os assuntos humanos.

    H um poder estranho e inegvel na definio da humanidade pela excluso daquiloque de fato nos distingue como espcie. Dessa excluso Comte no tem culpa. Ele propscelebremente uma religio elaborada e ritualizada da Humanidade o Grande Ser, em seujargo. Sua teoria do homem e da sociedade no tem herdeiros, sendo banida de modo toimediato e completo do pensamento moderno que nenhum vestgio seu pode ser visto. Comtedisse que, em sua nova ordem social, a cooperao entre as pessoas deve ser procurada em suatendncia inerente ao amor universal. Nenhum clculo voltado ao interesse prprio pode rivalizarcom esse instinto social, seja na presteza e amplitude da intuio, seja na ousadia e tenacidade dopropsito. Verdade que as emoes benevolentes tm, na maioria dos casos, menos energiaintrnseca do que as egostas. Contudo, elas tm essa bela qualidade: a vida social no s permiteo seu crescimento como tambm o estimula a uma extenso quase ilimitada, ao mesmo tempoem que mantm seus antagonistas em constante verificao.20 Construir um humanismograndioso sobre a base das cincias era o sonho e a finalidade de sua filosofia.

    Nenhuma teoria que nos seja contempornea ou que tenha influncia entre nssugeriria que a humanidade caracterizada por uma tendncia inerente ao amor universal.Comte escreveu no sangrento perodo das revolues e contrarrevolues europeias, mas aindaacreditava no poder inigualvel das emoes benevolentes. Nossos autores positivistas, aoabordarem a natureza humana, supem que apenas o interesse prprio pode explicar ocomportamento individual. O comportamento egosta tido como algo meramente reflexivo,embora possa assumir formas enganadoras: por exemplo, quando a recompensa para a qual estvoltado a aprovao social. Assim, a aceitao profunda e persistente dessa viso comoverdade indiscutvel teve uma enorme importncia para a nossa maneira de pensar. Comtevingou-se da decapitao de seu sistema filosfico deixando para trs uma palavra e um conceito altrusmo, devoo abnegada ao bem dos outros que vm atormentando o pensamentoparacientfico desde ento.

    H problemas inevitveis no raciocnio paracientfico. Na melhor das hipteses,argumentos baseados na cincia, no importa sua origem, tornam-se vulnerveis a mdio prazo,uma vez que a cincia possui a laudabilssima tendncia mudana e ao aprimoramento. Nesteponto, o gnero paracientfico parece uma ao de retaguarda, uma nostalgia das certezas

  • perdidas do positivismo. O Universo fsico que hoje conhecemos no acessvel s estratgias decompreenso que antes nos pareciam to exaustivamente teis. No entanto, a crena central emque ele acessvel a essas estratgias o que continua a animar os autores da tradioparacientfica.

    Comte, nas palavras da dcima primeira edio da Enciclopdia Britannica, previu aevoluo da conscincia humana para alm das suas etapas teolgica e metafsica, chegando aopositivismo. O artigo diz: Quando esse estgio tiver sido atingido, no apenas a maior parte, masa totalidade do nosso conhecimento ser marcada com uma caracterstica, a saber, a positividadeou cientificidade. Ento, todas as nossas concepes, em todas as partes do conhecimento, serocompletamente homogneas. O impulso para imprimir em todo o pensamento uma nicacaracterstica poderoso na literatura da paracincia, talvez porque ela tenha compartilhado seubero com monismos filosficos como o positivismo. Isto verdadeiro ainda que as tradies dopensamento moderno, embora rigorosamente autoconsistentes, no sejam consistentes entre si exceto em seu impulso compartilhado para anular a experincia individual, o que talvez sejatanto um motivo quanto uma consequncia do seu rigor. William James, em um ensaio sobreHegel, afirma temer que o monismo do filsofo, como todas as religies adeptas da nica coisanecessria, acabe por esterilizar e fechar a mente de seus fiis. Talvez haja, na mente fechadae esterilizada, algo fortemente associado ao zelo missionrio, uma necessidade impaciente dealistar crentes, de trazer outros para o rebanho. Este zelo outra caracterstica da literatura quetenho chamado de paracientfica. Ela tem no altrusmo, propsito e glria do sistema de Comte,uma anomalia irresolvel e uma fonte de irritao.21

    Se eu praticasse a hermenutica da suspeita, observaria aqui que, apesar de seu tompedaggico, essas pregaes so muitas vezes destinadas queles que j fazem parte do rebanho,pretendendo tranquiliz-los quanto sabedoria e verdadeira virtude de estarem ali. A Teoria dapopulao de Malthus ganhou autoridade com uma frmula que expressa a suposta relao entreo crescimento da populao e o aumento das terras arveis. Seus contemporneos viram combastante clareza quais deveriam ser as implicaes disso para a poltica social; eles perceberamque o impulso para intervir no sofrimento dos pobres, um impulso que de todo modo estava sobformidvel controle entre eles, poderia, se posto em prtica, ocasionar apenas maior sofrimento,dados os inevitveis limites populacionais que Malthus parecia expressar com tanta objetividade.Darwin, notoriamente influenciado por Malthus, fez da competio por recursos limitados umprincpio elementar e universal da vida, e em A descendncia do homem misturou as guerrastribais aos processos de evoluo uma noo que se mesclou habilmente ao colonialismo e alta estima que os europeus do perodo nutriam por si mesmos. Partir das observaes de PeterTownsend sobre a superpopulao e a fome entre os ces isolados de uma ilha repleta de ovelhaspara a constatao da fome entre as classes mais baixas na Gr-Bretanha e, depois, para umafrmula que faz com que a fome parea inevitvel, como Malthus fez deixando de ladoquestes muito prticas acerca da distribuio dos recursos, levantadas por Adam Smith e outros, um exemplo de raciocnio paracientfico. Partir de informaes biolgicas sobre nossasorigens entre os primatas e primitivos para argumentar a favor da supremacia europeia tambm. Depois, temos os escritos de Sigmund Freud, de longe a maior e mais interessante contribuioj feita ao pensamento e literatura paracientficos. Freud ser o tema do prximo captulo.

  • Contribuintes recentes incluem Richard Dawkins e Daniel Dennett, que deram s suas ideias aeficaz autoridade que est atrelada popularizao bem-sucedida.

    Por mais idealista que tenha sido a viso comtiana da humanidade, h algo naexperincia que se relaciona, ainda que de modo inexato, com a benevolncia e com o altrusmo.H algo na natureza da maioria de ns que sente prazer com a ideia de uma ordem socialhumanitria e benigna. A tendncia de Malthus, tal como a do Darwin de A descendncia dohomem, para objees humanitrias e religiosas levantadas contra a guerra e a pobreza absolutatira a compaixo e a conscincia de cena duas das experincias individuais mais potentes ecativantes, dois elementos que integram o senso de certo ou errado de cada um. Trata-se dasupresso de um aspecto da mente (e de um ataque sua legitimidade) sem o qual o mundo fica,de fato, mais pobre. Isso feito quando proposta uma fora amoral e objetiva qual cadaescolha e ato esto sujeitos. luz deste fato, nossa prpria percepo das coisas se reveladelirante, na medida em que pode nos convencer de que o nosso comportamento no essencialmente egosta. Pela palavra altrusmo, altruisme em francs, Comte pretende mostraruma devoo abnegada ao bem-estar dos outros, a qual deveria preencher o lugar da crenanaquele Deus que fora esvaziado pelo triunfo do positivismo cientfico. Na literaturaparacientfica, a palavra sempre aparece em um contexto que questiona se o altrusmo possvelou desejvel, se os supostos exemplos so reais, ou qual benefcio por ele concedido seria capazde explicar sua persistncia inegvel entre certas colnias de insetos.

    Herbert Spencer, importante nome da literatura paracientfica primitiva, em certograu uma exceo. Em seu Data of Ethics, publicado em 1879, ele retoma a questo traada porComte, defendendo o egosmo em um captulo e o altrusmo no seguinte. Seu argumento emdefesa do egosmo darwiniano: A lei de acordo com a qual cada criatura deve receber osbenefcios e os males de sua prpria natureza, quer sejam derivados de ancestrais ou decorrentesde alteraes autoproduzidas, tem sido a lei sob a qual a vida evoluiu at hoje, e deve continuar as-lo enquanto a vida continuar evoluindo. Sejam quais forem as qualificaes pelas quais estecurso natural de ao venha a passar agora ou no futuro, trata-se de qualificaes que no podemmudar sua essncia sem que haja consequncias fatais. Qualquer mecanismo que impeaconsideravelmente a superioridade de obter vantagens com suas recompensas, ou que proteja ainferioridade dos males que ela abarca quaisquer providncias que tendam a tornar toconveniente ser inferior quanto superior so providncias diametralmente opostas ao progressoda organizao e obteno de uma vida superior. Ele passa ento para uma defesa doaltrusmo com base no que entende ser a reproduo entre seres mais simples, os quais, emsua opinio, habitualmente se multiplicam por fisso espontnea. Ele observa que embora aindividualidade do infusrio pai ou de outro protozorio se perca ao deixar de ser nica, o antigoindivduo continua a existir em cada um dos novos indivduos. Quando, porm, como em geralacontece com esses animais menores, um intervalo de quietude termina no rompimento de todoo corpo em partes minsculas, com cada qual sendo o germe de um mais jovem, vemos o paiinteiramente sacrificado na formao de prognie.22

    Spencer est usando dois modos de pensamento cientfico disponveis no final do sculoXIX a evoluo darwiniana e a diviso observada de animais unicelulares para explicar asorigens de dois impulsos ou valores ticos aparentemente contraditrios. Tendo-os legitimado, em

  • certo sentido, por meio dessas etiologias, ele expe os benefcios ticos, sociais e intelectuais e asdificuldades associadas a cada uma, procedendo da forma como a argumentao paracientficaem geral procede. Alguma aluso cincia do momento usada como base para extrapolaese concluses que em muito ultrapassam as mais amplas definies da cincia. Spencer tem omrito, porm, de reconhecer a complexidade desse caso. O altrusmo um problema clssicona tradio do pensamento darwinista, e Spencer foge regra ao conceder-lhe realidade e umlugar legtimo no comportamento humano. digno de nota, contudo, que, em suas consideraessobre o egosmo e sobre o altrusmo, a questo poderia ser reformulada em termos de justia oude humanidade e, de tempos em tempos, tanto uma quanto outra acarretam algum custo parao indivduo. A justia digna desse nome tende a extorquir vantagens de quem poderia muito bemdesfrutar dos benefcios do poder relativo. Este um custo que a maioria das pessoas teriavergonha de notar e pelo qual poderia se sentir recompensada, certa de que a equidade umprincpio ativo. No entanto, a paracincia exclui esses tipos de consideraes subjetivas.

    Seria possvel pensar que a insuficincia de qualquer modelo explanatrio na descriodos elementos essenciais da experincia poderia suscitar dvidas sobre o modelo em si; porm,quando o problema do altrusmo reconhecido, ele geralmente abordado por meio de umaredefinio de altrusmo que o torna muito mais adaptvel teoria neodarwinista. No entanto, oaltrusmo como ideia no tem sido passivo em tudo isso. Tomando emprestada a linguagem dessegnero, ele tem, em alguns casos, parasitado outros conceitos. Pelos padres extremamenteparcimoniosos do neodarwinismo, ele como um curinga, passvel de aparecer em qualquerlugar. Michael Gazzaniga relata uma questo levantada por Geoffrey Miller, outro psiclogoevolucionista. A maior parte da fala parece transferir informaes teis do falante para oouvinte, e isso exige tempo e energia. Parece ser altrusta. Que benefcio adaptativo pode seralcanado ao se dar a outro indivduo boa informao? Revendo o argumento original de RichardDawkins e John Krebs, Miller afirma: A evoluo no pode favorecer um compartilhamentoaltrusta de informao, assim como no pode favorecer um compartilhamento altrusta dealimentos. Portanto, a maioria dos sinais dos animais deve ter evoludo para manipular ocomportamento de outro animal em benefcio do prprio sinalizador. Do mesmo modo, outrosanimais evoluram ao ponto de ignor-los, uma vez que no recompensava dar ouvidos amanipuladores. Ao que parece, somente ns, entre todos os animais, temos a lngua. Por que acomplexidade da lngua e a nossa proficincia em sua utilizao? Gazzaniga diz: Diante desseenigma, Miller prope que as complexidades da lngua evoluram em funo do cortejo verbal.Isso resolve o problema do altrusmo, proporcionando uma recompensa sexual para a falaeloquente do homem e da mulher. Portanto, o discurso informativo corre o risco de apresentarao terico uma instncia na qual um falante confere benefcio a outro e arca com o custo. Masespere! H manipulao! H recompensa sexual! Ser que isso responde pergunta sobre ocusto do compartilhamento de informao? No. Porm, nossa natureza definida como sedeterminada pela natureza dos primitivos hipotticos, humanoides em sua capacidade de ter e darinformaes, mas sem encontrar nenhuma utilidade ou prazer nisso.23

    Este um exemplo de que um possvel altrusmo pode ser detectado em muitos tipos decomportamento humano e de que, mesmo quando aparentemente detectado, ele suprimidopor elaboraes tericas que teriam consequncias para a compreenso de problemas

  • evolucionrios importantes a formao de casais, por exemplo, ou a histria primitiva docrebro animal , uma vez que os animais supostamente apresentavam capacidade demanipulao at a seleo extingui-la. Por mais encantadora que possa ser a noo de que nossosancestrais protoverbais encontravam companheiros por meio da protofala eloquente ah, comoeu queria ser uma mosca para saber! , era muito raro as pessoas terem um acervo de outraspessoas elegveis por meio de algum trao agradvel. A endogamia ou a exogamia restrita apequenos grupos, o escambo de filhas e consideraes de status, tudo isso tem influncia. svezes parece que os antroplogos americanos esquecem o quo fluida nossa cultura e o quoexcepcionais so nossos costumes com relao ao casamento, tanto global quanto historicamente.Pramo e Tisbe, Helosa e Abelardo, Romeu e Julieta: mesmo que eles tivessem vivido e fossemcapazes de se reproduzir, teriam sido excepcionais demais para influenciar o pool gentico.Considere ainda os animais que eram capazes de manipular e, depois, de ficar indiferentes a isso,eliminando assim a capacidade de manipulao. Como essa complexidade inicial surgiu? Osanimais agora tm alguma percepo comparvel das motivaes dos outros? Essesneurocientistas tendem a dizer que no, embora tal discernimento parea ter conferido umadistinta vantagem de sobrevivncia. H mais do que um pouco de falcia nesse remendo tericosobre o problema do custo-benefcio supostamente levantado pelo fenmeno da fala humana.Desta forma, o espectro do altrusmo, como uma fascola no crebro de uma formiga, distorce oargumento darwiniano e o leva muito alm da simplicidade conceitual pela qual se tornoujustamente famoso.

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    Devo a Daniel Dennett pela formiga e a fascola, uma metfora que me vem mente sempreque leio obras de seu gnero. Por exemplo, considere o pobre Phineas Gage, trabalhadorferrovirio famoso pelo acidente que sofreu e ao qual sobreviveu h mais de 150 anos: umaexploso que levou uma grande barra de ferro a atravessar seu crnio. Wilson, Pinker, Gazzanigae Antonio Damsio contam essa histria para mostrar que os aspectos do comportamento quepoderamos atribuir ao carter ou personalidade esto localizados em uma regio especfica docrebro fato que, de acordo com eles, compromete de alguma forma a ideia de carterindividual e enfraquece a noo de que nossos traos amveis so intrnsecos nossa natureza.

    Sabe-se muito pouco sobre Phineas Gage. A lenda que o cerca nos contextosparacientficos se baseia em algumas historietas de procedncia incerta, segundo as quais ele serecuperou sem danos significativos, exceto s suas habilidades sociais. Gazzaniga diz: Um jornallocal relatou no dia seguinte que ele no sentia dor. Ora, considerando-se que sua mandbulasuperior foi despedaada, que ele perdeu um olho e vivia no ano de 1848, o fato de ele no sentirdor certamente deveria sugerir danos cerebrais. Porm, junto com o seu discurso racional ecoerente minutos aps o acidente, isso tomado como um indcio de que seu crebro de algummodo escapou ileso, exceto pelas partes do crtex cerebral que, at ento, o impediam de sertemperamental, irreverente e grosseiramente profano. Ele tinha 25 anos na ocasio doacidente. Ser que tinha dependentes? Ser que tinha esperanas? Estas questes me parecemultrapassar um mero interesse romanesco na compreenso da raiva e da confuso que surgiram

  • dentro dele quando de sua recuperao.24Como esta narrativa se torna estranhamente estereotipada em outros relatos! como se

    houvesse um Mr. Hyde em todos ns, o qual emergiria cuspindo palavres se nossos lobosfrontais no estivessem l para segur-lo. Se qualquer tipo de linguagem humana e cultural, certamente a profanao grosseira, e depois disso a irreverncia, que deve ver na reverncia umcontraste que lhe conceda significado. bastante compreensvel que para os vitorianos essecomportamento pudesse parecer o surgimento do selvagem interior. Porm, do nosso ponto devista, o fato de Gage estar subitamente desfigurado e parcialmente cego, de sofrer uma infecoprolongada no crebro e de, segundo Gazzaniga, ter demorado muito mais tempo pararecuperar seu vigor pode explicar algumas das blasfmias que, afinal, a cultura e a lnguaprepararam para tais ocasies. Contudo, a parte do crebro de Gage que os autores modernossupem abarcar o dano , acredita-se, a sede das emoes. Portanto a lgica aqui no estclara para mim , seus xingamentos e suas profanaes no poderiam ter o mesmo significadoque os nossos. Damsio d ampla ateno a Gage, oferecendo a interpretao padro da relatadamudana de seu carter. Ele cita com algum pormenor o caso de um Phineas Gage moderno,um paciente que, embora intelectualmente intacto, perdeu sua capacidade de escolher oprocedimento mais vantajoso. O prprio Gage agia com tristeza em sua comprometidacapacidade de fazer planos para o futuro, de comportar-se de acordo com as regras sociais queele j havia aprendido e de decidir sobre a atitude que seria, ao fim, mais vantajosa para a suasobrevivncia. Certamente o mesmo pode ser dito sobre o capito Ahab. Assim, talvez Melvillequisesse propor que o rgo de venerao estava localizado na perna. O que estou tentando dizer que outro contexto apropriado para a interpretao de Phineas Gage poderia ser o de pessoasque sofreram graves ferimentos no corpo, em especial aquelas que foram por eles desfiguradas.E, para fazer justia a Gage, o que comove o fato de que ele esteve empregado continuamenteat a sua doena final. Quando uma douta reprovao lanada sua constante mudana deemprego seu nico pecado alm dos palavres e da irritabilidade , ningum considera quaispoderiam ter sido as reaes das pessoas sua presena.25

    Perturbo a memria do pobre Phineas Gage s para salientar que nos relatos de suasaflies no existe a noo de que ele era um ser humano que pensava e sentia, um homem comum destino singular e terrvel. Sem o reconhecimento de sua subjetividade, sua reao a essedesastre tratada como indicativa de danos maquinaria cerebral, no s suas perspectivas, suaf, ou seu amor-prprio. como se, ao contar a histria, os escritores partilhassem da ausnciade imaginao compassiva e de benevolncia que postulam para a sua espcie. Alm disso, houtra questo. Essa anedota importante demais para essas afirmaes sobre a mente e sobre anatureza humana. Ela no deveria ser o centro de discusso alguma sobre uma questo toimportante quanto a base da natureza do homem. Ela est distante demais no tempo, frenolgica demais em suas descries iniciais, suscetvel demais contaminao pelosensacionalismo para ter algum peso como prova. Ser que devemos realmente acreditar queGage no sentiu dor durante esses treze anos que precederam sua morte? Como foi que aquelaterrvel ferida no crnio foi curada? Nenhuma concluso pode ser tirada, exceto a de que, em1848, um homem reagiu a um grave trauma fsico mais ou menos da mesma forma como umhomem vivendo em 2009 talvez fizesse. A aparncia estereotipada desta narrativa, as

  • particularidades que inclui e aquelas cuja ausncia ignora, tal como a concluso que dela se tira,so uma demonstrao perfeita da diferena entre o pensamento paracientfico e a verdadeiracincia.

    O completo triunfo de um nico modo de pensamento, como vislumbram osneodarwinistas, tem a aparncia de desolao para alguns autores da rea a mesma desolaoque Comte previa. Ele temia que uma compreenso totalmente racional e cientfica viesse aexcluir do mundo grande parte do que ele tem de melhor e grande parte do que essencial paraque os homens o compreendam. Como fez Comte antes dele, E.O. Wilson, respeitado exemplardeste gnero, props uma consilincia nova e capaz de enriquecer, por meio de sua integrao,tanto a cincia quanto as artes e humanidades um tratado que prope enquanto expressa umateoria da mente humana que notavelmente hostil ao seu projeto. Ele diz: Tudo o que foiassimilado empiricamente sobre a evoluo em geral e sobre os processos mentais em particularsugere que o crebro uma mquina montada no para entender a si mesma, mas parasobreviver. Uma vez que esses dois fins so basicamente diferentes, a mente, sem a ajuda doconhecimento factual da cincia, v o mundo apenas em pequenos pedaos. Ela joga um fachode luz sobre as partes do mundo que deve conhecer a fim de viver at o dia seguinte, entregandoo resto escurido. Por milhares de geraes, as pessoas viveram e se reproduziram sem anecessidade de saber como funciona a maquinaria do crebro. Mais do que a verdade objetiva,foram o mito e o autoengano, a identidade tribal e ritual, que lhes deram a vantagemadaptativa.26

    Quando de fato a mente comeou a ser ajudada pelo conhecimento factual dacincia? Onde est a prova de que os homens pr-cientficos viam o mundo apenas empedacinhos? Ser que ele se refere a Herdoto? Dante? Michelangelo? Shakespeare? Ser quesaber como funciona a maquinaria do crebro e, na verdade, ns ainda no sabemos tem qualquer influncia no uso eficaz da mente? Ao contrrio das cincias, as artes ehumanidades tm uma raiz profunda e forte na cultura humana, e isso h milnios. Admitindo obrilho da cincia, no h nada que fundamente a ideia de que, em sua breve histria, ela tenhatransformado a conscincia humana da forma como Wilson descreve. A limitada viso queWilson tem da histria humana parece sugerir um provincianismo que resulta de uma crena nacincia como espcie de magia, como se ela existisse isolada da histria e da cultura, em vez deser um produto inevitvel delas.

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    Por esta razo, h em sua proposta a suposio implcita de que, hoje, a cincia sofre menosinfluncias culturais desconhecidas do que antes, como se, por trs de sua viso de mundo, nohouvesse uma histria que informa sua escrita de maneira profunda. Admitindo que asqualificaes de Wilson excedem amplamente as de Spencer e as de muitos autores destegnero, a d