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ENIO JOSÉ SERRA DOS SANTOS EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: concepções, políticas e propostas curriculares Niterói 2008

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ENIO JOSÉ SERRA DOS SANTOS

EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DE JOVENS E ADULTOS

TRABALHADORES: concepções, políticas e propostas

curriculares

Niterói 2008

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ENIO JOSÉ SERRA DOS SANTOS

EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DE JOVENS E ADULTOS

TRABALHADORES: concepções, políticas e propostas

curriculares

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, como requisito para obtenção do grau de Doutor em Educação.

Orientador: Professor Doutor Osmar Fávero

Co-orientador: Professora Doutora Tomoko Iyda Paganelli

Niterói 2008

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DEDICATÓRIA

À Maria da Gloria Serra.

À Juliana Rodrigues Pego.

À Vânia Mendonça, in memoriam.

Obrigado por tudo.

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AGRADECIMENTOS

Um trabalho como este não pode ser atribuído somente ao esforço individual,

indivisível. Somos constituídos de sujeitos múltiplos, produzidos nas redes de relações em

que nos embrenhamos e a partir das quais construímos saberes e valores. Por isso

agradecemos, para homenagear aqueles e aquelas que participaram das redes por que

passamos e que nos deixaram marcas, distintivos que levamos para o sempre.

Agradeço à minha mãe, Maria da Gloria Serra, por fazer do esforço de sua vida o meu

bem viver.

Ao meu orientador Professor Osmar Fávero, pelo incentivo e apoio determinantes para

a realização deste trabalho.

À Professora Tomoko Iyda Paganelli, pela atenção e carinho.

Aos professores com quem tive a honra de aprender durante a longa caminhada do

doutorado: Eunice Trein, Sonia Rummert, Lúcia Neves, Cláudia Alves, Giovanni Semeraro,

Ruy Moreira.

Aos amigos da turma de 2004 com quem tive o prazer de compartilhar as descobertas,

reflexões e angústias que um curso de doutorado proporciona: Daniela Motta, Jaqueline

Ventura, Inês Bonfim, Marisa Brandão, Mercês Navarro Vasconcelos, Margarida Gomes,

Mariana Vilela, Clareth Reis.

À Faculdade de Educação da UFRJ, pelo incentivo e compreensão, especialmente à

Ana Maria Monteiro, Cláudia Bokel Reis, Carmen Teresa Gabriel, Macia Serra Ferreira,

Anita Handfas, Jaílson dos Santos, Monique Andries Nogueira, Carlos Frederico Loureiro.

Ao companheiro Emílio Rua, pelo apoio intelectual e emocional, pela compreensão e

cumplicidade.

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5

Aos amigos de sempre Jacqueline Albino, Lana Fonseca, Márcio Marcolino, Marília

Campos, Mário Bertocchi, Mayra Marcolino, Patrícia Salinas, Valéria Medeiros, Virgínia de

Oliveira Silva.

A todos que, de alguma forma, tiveram papel importante para a elaboração e

conclusão deste trabalho, meu muito obrigado.

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Toda educação que faz jus a esse nome envolve a relação de mutualidade, uma dialética, e

nenhum educador que se preze pensa no material a seu dispor como uma turma de passivos

recipientes de educação. Mas, na educação liberal de adultos, nenhum mestre provavelmente

sobreviverá a uma aula – e nenhuma turma provavelmente continuará no curso com ele – se

ele pensar, erradamente, que a turma desempenha um papel passivo. O que é diferente

acerca do estudante adulto é a experiência que ele traz para a relação. A experiência

modifica, às vezes de maneira sutil e às vezes mais radicalmente, todo o processo

educacional; influencia os métodos de ensino, a seleção e o aperfeiçoamento dos mestres e o

currículo, podendo até mesmo revelar pontos fracos ou omissões nas disciplinas acadêmicas

tradicionais e levar à elaboração de novas áreas de estudo.

Edward P. Thompson,

Os Românticos.

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RESUMO SANTOS, Enio José Serra dos. Educação geográfica de jovens e adultos trabalhadores: concepções, políticas e propostas curriculares. Orientador: Osmar Fávero. Niterói-RJ/UFF, 26/09/2008. Tese (Doutorado em Educação), 353 páginas. Campo de Confluência: Diversidade, Desigualdades Sociais e Educação; Linha de Pesquisa: Práticas sociais e educativas de jovens e adultos. O presente trabalho tem como principal objetivo investigar a forma com que a geografia escolar é concebida em diferentes propostas curriculares para o segundo segmento do ensino fundamental da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Tal modalidade da educação básica é abordada como uma questão de classe social por ter como público alvo trabalhadores pouco escolarizados para os quais vêm sendo dirigidas políticas de formação escolar que atendem às novas exigências do mercado pautado pela reestruturação produtiva. Tendo, portanto, como eixo central as políticas públicas de EJA, a base empírica da pesquisa se constitui na análise do conteúdo geográfico presente nos materiais didáticos elaborados a partir das propostas curriculares do Programa Nacional de Inclusão de Jovens, o ProJovem, e da Coleção Cadernos de EJA, ambas produzidas no âmbito do governo federal. Considerando as propostas curriculares como processos de recontextualização de saberes e discursos produzidos em outros contextos políticos (universidades, organismos internacionais, movimentos sociais, secretarias de educação etc.), a investigação é conduzida na direção das questões que envolvem a forma com que esses documentos justificam a especificidade do ensino de geografia voltado para a EJA, bem como as matrizes teóricas características do pensamento pedagógico e geográfico que lhes podem ser consideradas como referências. O exame dos materiais didáticos revela uma contradição nas políticas de currículo para a EJA levadas a cabo pelo governo federal, pois enquanto o ProJovem se caracteriza por um currículo prescritivo cujo conteúdo geográfico se mostra pouco denso e mais próximo da vertente humanista fenomenológica, a Coleção Cadernos de EJA tem como base uma proposta curricular que aposta na autonomia docente e na corrente crítica do pensamento geográfico. A análise realizada indica, portanto, o hibridismo que marca boa parte das políticas educacionais do atual governo, bem como propicia reflexões em torno dos princípios e bases que podem contribuir para a construção de um processo de escolarização que tenha como horizonte a emancipação dos trabalhadores brasileiros. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; Geografia Escolar; Políticas de Currículo.

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ABSTRACT SANTOS, Enio José Serra dos. Geography education for youth and adult workers: concepts, policies and curricular proposals. Advisor: Osmar Fávero. Niterói-RJ/UFF, 09/26/2008. Dissertation (PhD in Education), 353 pages. Confluence field: Diversity, Social and Educational inequalities; Research Area: Social and educational practices of young and adult learners. The present dissertation aims at investigating how school geography is conceived in different curricular proposals in Junior-high school for Youth and Adult Education. Such modality of basic education is approached as an issue related to social classes, once its target public is centered around poorly schooled workers for whom schooling policies have been directed in order to answer new demands from a market driven by productive restructuring. Therefore, the main axis of this research is public policies for Youth and Adult Education; the data for the research is constituted around the analysis geographic content presented in textbooks produced from curricular proposals for the “Programa Nacional de Inclusão de Jovens – ProJovem” (National Program for the Inclusion of Youngsters) and for the Coleção Cadernos de EJA (Collection Youth and Adult Education), both proposals produced by Federal Government policies. Considering these curricular proposals as processes of recontextualization of knowledge and discourses produced in different political contexts (universities, international organizations, social movements, state boards of education, etc), this investigation is conducted towards analyzing issues that involve the way how these documents justify the specificity of the teaching of geography in Youth and Adult Education, as well as different theoretical tenets which characterize pedagogical and geographic thought that would be considered as their own references. The observation of didactic materials reveals a contradiction in curricular policies for Youth and Adult Education produced by the federal government: While “Projovem” is characterized by a prescriptive curriculum, whose geographic content is shallow and closer to a fenomenological humanistic strand, the Coleção Cadernos de EJA, is based on a curricular proposal that considers teaching autonomy and a critical view of geographic thinking. The analysis indicates, thus, hybridism as a central core for a great portion of the educational policies of this present government; it also allows for reflections around principles and basis which can contribute for the construction of a schooling process that aims the emancipation of Brazilian workers. Key-Words: Youth and Adult Education; School Geography; Curricular Policies.

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RESUMEN

SANTOS, Enio José Serra dos. Educación geográfica de jóvenes y adultos trabajadores: conceptos, políticas y propuestas curriculares. Asesor: Osmar Fávero. Niterói-RJ/UFF, 26/09/2008. Tesis (Doctorado en Educación), 353 páginas. Campo de Confluencia: Diversidad, Desigualdad Social y Educacional; Línea de Pesquisa: Prácticas sociales y educacionales de jóvenes y adultos. El presente trabajo tiene como principal objetivo investigar la forma en que la geografia escolar es concebida en diferentes propuestas curriculares para la enseñanza primaria de la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA). Tal modalidad de educación básica es abordada como una cuestión de clase social por tener como público alvo trabajadores con bajo nivel de escolaridad para los cuales vienen siendo dirigidas políticas de formación escolar que atienden las nuevas exigencias de mercado pautado por la reesctructuración productiva. Teniendo por lo tanto, como eje central las políticas públicas de EJA, la base empírica de la pesquisa se constituye en el análisis del contenido geográfico presente en los materiales didácticos elaborados a partir de propuestas curriculares del Programa Nacional de Inclusión de Jóvenes, ProJoven, y de la Colección Cuadernos de EJA, ambas producidas en el ámbito del gobierno federal. Considerando las propuestas curriculares como procesos de recontextualización de saberes y discursos producidos en otros contextos políticos (universidades, organismos internacionales, movimientos sociales, secretarias de educación, etc.), la pesquisa es conducida en dirección a los aspectos que envuelven la forma en que esos documentos justifican la especificidad de la enseñanza de geografia dirigida hacia la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA), así como también las matrices teóricas características del pensamiento pedagógico y geográfico, a los cuales se les pueden considerar como referencias. La investigación del material didáctico revela uma contradicción en las políticas de currículum para EJA llevadas a cabo por el gobierno federal, pues mientras el ProJoven se caracteriza por um currículum prescriptivo cuyo contenido se muestra poco denso y más próximo a la vertiente humanista fenomenalógica, la Colección Cuadernos EJA tiene como base una propuesta curricular que apuesta en la autonomía del docente y en la corriente crítica del pensamiento geográfico. El análisis realizado indica, por lo tanto, el hibridismo que marca buena parte de las políticas educacionales del actual gobierno, así como también propicia reflexiones en torno de los principios y bases que pueden contribuir para la construcción de un proceso de escolarización que tenga como horizonte la emancipación de los trabajadores brasileños. Palabras clave: Educación de Jóvenes y Adultos; Geografia Escolar; Políticas de Curriculum.

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LISTA DE SIGLAS CEFET Centros Federais de Educação Tecnológica

CIEP Centros de Integrados de Educação Pública

CNAEJA Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos

CNBB Confederação Nacional dos Bispos do Brasil

CONSED Conselho Nacional de Secretários de Educação

CONFINTEA Conferência Internacional de Educação de Adultos

ENCCEJA Exame Nacional de Certificação das Competências da Educação de Jovens e Adultos

FASE Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional

FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz

FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação

FUNDEF Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização dos Profissionais da Educação

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INEP Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos

MEB Movimento de Educação de Base

MEC Ministério da Educação

MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização

MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra

PCN Parâmetros Curriculares Nacionais

PNLA Programa Nacional do Livro Didático para Alfabetização de Jovens e Adultos

PNLEM Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio

PNLD Programa Nacional do Livro Didático

PUC – RJ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

SECAD Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UNDIME União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação

UNE União Nacional dos Estudantes

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO: DAS INQUIETAÇÕES E DOS DESAFIOS........................................

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1 – EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: DOS FUNDAMENTOS ÀS POLÍTICAS DE CURRÍCULO................................................... 1.1 CONFIGURAÇÃO DO PÚBLICO DA EJA: MAPEANDO O PONTO DE PARTIDA.............................................................................................................................. 1.1.1 O capitalismo da acumulação flexível e o mercado das ilusões........................... 1.1.2 A configuração da classe trabalhadora no atual cenário socioeconômico de acumulação flexível........................................................................................................................ 1.1.3 A EJA como questão de classe................................................................................... 1.2 O CURRÍCULO ESCOLAR NAS POLÍTICAS DE EJA: CONTROLE, INDUÇÃO

OU DIRETRIZES CONCEITUAIS?........................................................................... 1.2.1 Questões sobre políticas de currículo........................................................................ 1.2.2 Políticas públicas de EJA e concepções de currículo...............................................

22 24 25 34 45 48 49 61

2 – TERRITÓRIOS DO CONHECIMENTO: POLÍTICAS DE CURRÍCULO DE GEOGRAFIA E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS............................................ 2.1 O CONHECIMENTO ESCOLAR DE GEOGRAFIA: ENTRE RUPTURAS E CONTINUIDADES............................................................................................................... 2.1.1 Modernidade, ciência e escola: a gênese da geografia escolar no mundo ocidental................................................................................................................................ 2.1.2 Geografia escolar, pensamento geográfico e processos de recontextualização pedagógica............................................................................................................................. 2.2 TRAJETÓRIAS DO CURRÍCULO ESCOLAR DA GEOGRAFIA BRASILEIRA...... 2.2.1 A geografia é minha pátria: a consolidação da orientação moderna na geografia escolar brasileira................................................................................................. 2.2.2 A renovação crítica e o apelo por uma geografia escolar engajada na luta por justiça social.......................................................................................................................... 2.3 ENSINO DE GEOGRAFIA PARA JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: DO DESPREZO À FORMAÇÃO PARA O TRABALHO FLEXÍVEL............................. 2.3.1 O ensino supletivo de geografia e o desprezo à condição de aluno trabalhador...

82 83 84 91 107 108 121 132 136

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2.3.2 A perspectiva crítica e a geografia do aluno trabalhador....................................... 2.3.3 Quando a educação geográfica contribui para a formação do trabalhador “flexível”................................................................................................................................

141 147

3 - A GEOGRAFIA A SER ENSINADA NO PROJOVEM............................................ 3.1 ESCOLARIZAÇÃO, EMPREGABILIDADE E EMPODERAMENTO: O PROJOVEM NO CONTEXTO DA POLÍTICA DAS ILUSÕES......................................... 3.1.1 A qualificação para o trabalho e a ilusão da empregabilidade............................... 3.1.2 Ação comunitária, protagonismo juvenil e empoderamento: as bases para o alívio da pobreza.................................................................................................................. 3.1.3 Elevação da escolaridade ou certificação da precariedade?................................... 3.2 O CONHECIMENTO ESCOLAR DE GEOGRAFIA NO PROJOVEM....................... 3.2.1 A cidade como tema para discutir a juventude........................................................ 3.2.2 A abordagem geográfica do mundo do trabalho...................................................... 3.2.3 Juventude, globalização, mapas e comunicação....................................................... 3.2.4 A geografia cidadã do ProJovem...............................................................................

155 156 160 165 170 175 177 184 191 199

4 – A GEOGRAFIA NOS CADERNOS DE EJA: APOIO DIDÁTICO OU REFERÊNCIA NACIONAL?............................................................................................. 4.1 AS RECENTES POLÍTICAS CURRICULARES DE EJA NO ÂMBITO FEDERAL.............................................................................................................................. 4.1.1 O governo Lula e o cenário de permanências e mudanças na EJA........................ 4.1.2 Ações curriculares como políticas de Estado para a EJA: contradições e perspectivas do atual governo............................................................................................. 4.1.3 A proposta curricular dos Cadernos de EJA: flexibilidade e intertextualidade no processo ensino-aprendizagem de jovens e adultos trabalhadores............................ 4.2 O QUE DE GEOGRAFIA TEM NOS CADERNOS DE EJA?...................................... 4.2.1 O caderno Emprego e Trabalho e a procura pela abordagem geográfica.............. 4.2.2 Caderno Globalização e Trabalho: quando a geografia contribui para a criticidade do aluno trabalhador........................................................................................ 4.2.3 Sociedade, natureza e meio ambiente sob a ótica do trabalho................................

211 213 213 219 226 234 236 244 252

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4.2.4 Espaço rural e trabalho: uma perspectiva totalizante do campo brasileiro.......... 259 5 – EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: CONCEPÇÕES, PRINCÍPIOS E BASES......................................................................... 5.1 AS MARCAS DA EJA NA GEOGRAFIA ESCOLAR.................................................. 5.1.1 O mundo do trabalho na perspectiva geográfica..................................................... 5.1.2 O saber da experiência e os conceitos geográficos cotidianos................................. 5.2 OS DILEMAS DA GEOGRAFIA NAS PROPOSTAS CURRICULARES DA EJA.... 5.2.1 Sociedade, natureza e produção do espaço............................................................... 5.2.2 Recortes espaciais, escalas de análise e seleção de conhecimentos escolares na EJA........................................................................................................................................ 5.3 BASES E PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DE TRABALHADORES 5.3.1 As bases: por uma perspectiva ético-política da EJA.............................................. 5.3.2 Os princípios: por uma educação geográfica do aluno trabalhador.....................

270 271 273 280 289 292 300 308 309 312

CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOVAS INQUIETAÇÕES, OUTROS DESAFIOS......

316

REFERÊNCIAS...................................................................................................................

322

ANEXOS...............................................................................................................................

337

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14

INTRODUÇÃO: DAS INQUIETAÇÕES E DOS DESAFIOS

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) vem adquirindo considerável relevância no

cenário educacional brasileiro, particularmente após a promulgação da Constituição de 1988.

A forma com que a lei maior do país passou a tratar a escolarização de jovens e adultos

trabalhadores propiciou significativa mudança em seu caráter, em seu conceito. O direito ao

ensino fundamental, obrigatório e gratuito, estendido, a partir de então, àqueles que a ele não

tiveram acesso na infância e adolescência vem resgatar uma velha dívida social do Estado

brasileiro para com boa parcela da população, que por imposições sociais, na maioria das

vezes, deixou de freqüentar os espaços escolares.

Além da trajetória marcada pela indiferença do poder público, a EJA não era

reconhecida como uma modalidade detentora de especificidades dentro da educação básica.

Na legislação prevalecia, até pouco tempo, a concepção de suplência ou o suprimento, a

completação do inacabado. Em função disso, os currículos do então ensino supletivo se

pautavam na reprodução dos conteúdos do ensino regular, sendo poucas as experiências

inovadoras que experimentavam outras formas de organizar os tempos e espaços escolares.

Todo esse panorama gerou uma série de inquietações e indagações na prática

pedagógica por nós vivenciada no ensino fundamental voltado para alunos jovens e adultos.

Tendo atuado como professor de geografia nas redes estadual (1991-1996) e municipal do Rio

de Janeiro (1999-2003), e também na rede municipal de Angra dos Reis (1993-2002), durante

pelo menos sete anos trabalhamos com o ensino noturno. Essa experiência mesclou a sala de

aula e a coordenação do ensino regular noturno em Angra dos Reis (1999-2000), sendo esta

última responsável e ponto de partida para a elaboração da dissertação de mestrado que

analisou as políticas e práticas que possibilitaram a implementação de uma organização

curricular inovadora na Educação de Jovens e Adultos daquele município1.

Nessa análise, defendíamos o pressuposto de que o currículo escolar da EJA deveria

ser pensado à luz das características e necessidades do público jovem e adulto, composto

invariavelmente por trabalhadores para os quais o Estado e a sociedade brasileira contraíram

imensa dívida ao não garantir-lhes condições sociais para que pudessem freqüentar os bancos

escolares no período da infância ou adolescência. A ação política analisada, embora

1 SANTOS, Enio Serra dos. Repensando o ensino regular noturno como escola pública para trabalhadores: o caminho de Angra dos Reis. 2003. 169 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003.

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apresentasse graves contradições e incoerências no processo de implantação e consolidação,

se mostrava inovadora porque alterava não somente a base pela qual se selecionavam os

conhecimentos a serem desenvolvidos em forma de conteúdos escolares,2 como também

transformava a lógica de organização dos tempos disciplinares e reservava um turno para

reuniões semanais da equipe de profissionais (professores, pedagogos, diretores etc.)

envolvidos no processo pedagógico.3

Tal experiência provocou uma série de indagações acerca dos currículos específicos

dos componentes curriculares obrigatórios para o ensino fundamental e sua aplicação na EJA.

Constatamos com mais clareza a necessidade de se pensar um currículo próprio para essa

modalidade que negasse as referências curriculares historicamente pautadas exclusivamente

no trabalho pedagógico desenvolvido no ensino regular diurno, voltado para crianças e

adolescentes. Questionávamos, por exemplo, sobre qual geografia, qual história, qual

matemática deveriam ser ensinadas/aprendidas por essas pessoas. A reflexão sobre a base

conceitual e paradigmática em termos do trabalho pedagógico em geral já havia sido feita,

pelo menos no que se refere às possibilidades que se vislumbravam a partir da experiência

analisada, porém, nos inquietava a falta de um aprofundamento maior nas especificidades de

cada disciplina.

Em nosso caso, a geografia escolar era a preocupação: que conhecimentos geográficos

deveríamos “colocar no lugar” da geografia ensinada/aprendida pelas crianças nas classes

diurnas? Haveria, ou deveria haver, alguma diretriz específica para essa área do conhecimento

no que se refere ao trabalho pedagógico com jovens e adultos? Deveríamos pensar apenas em

termos de metodologia de trabalho – o como – ou teríamos que problematizar o próprio

conhecimento escolar de geografia para essa modalidade? Até que ponto a condição de

trabalhadores influenciaria a seleção e a organização desses conhecimentos? Todas estas

questões nos fizeram amadurecer a idéia de desenvolver uma pesquisa acadêmica na qual

pudéssemos aprofundar as reflexões acerca dos objetivos, conteúdos e métodos da geografia

escolar para o processo de escolarização de jovens e adultos trabalhadores.

Nesse sentido, propomos investigar como se dá o ensino de geografia em diferentes

propostas curriculares para o segundo segmento do ensino fundamental da modalidade EJA. 2 A seleção de conteúdos tinha como base temas geradores extraídos a partir do estudo das características históricas, sociais, econômicas, físicas e ambientais das localidades onde se situavam as escolas. Todo o referencial teórico-metodológico do trabalho educativo era pautado na pedagogia problematizadora de Paulo Freire (1987). 3 O projeto, implementado a partir da adesão inicial de quatro escolas da rede, nos anos 1999 e 2000, previa a distribuição igualitária dos tempos de aula por disciplina. Além disso, uma vez por semana, os professores e a equipe pedagógica se reuniam enquanto os educandos desenvolviam atividades culturais ou relacionadas a alternativas de geração de renda.

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16

Partimos da hipótese de que o conhecimento escolar presente em diferentes propostas

curriculares evidencia concepções de educação e de sociedade, uma vez que sua construção é

fruto de processos de recontextualização de saberes e discursos produzidos em variadas

instâncias políticas como universidades, órgãos de pesquisa, organismos internacionais,

movimentos sociais, secretarias de educação etc. Tal hipótese nos leva, então, às seguintes

questões norteadoras: de que forma esses documentos justificam a especificidade de uma

geografia escolar voltada para a EJA na perspectiva do atendimento aos sentidos

contemporâneos da escolarização de jovens e adultos trabalhadores? Que matrizes teóricas

características do pensamento geográfico podem ser consideradas como referências para tais

propostas? Quais as concepções e visões de mundo e de sociedade podem ser aí encontradas?

Como a seleção, a organização e o tratamento dos conteúdos geográficos escolares podem

contribuir para a veiculação dessas concepções? E ainda, quais contradições e limites,

inerentes a qualquer ação política, podem ser desvelados nas propostas curriculares em

questão?

Optamos por examinar propostas curriculares referentes à educação geográfica de

jovens e adultos trabalhadores porque consideramos de aguda importância as formulações,

isto é, os processos de constituição de políticas de currículo. Compartilhamos da idéia de que

tais iniciativas não chegam às escolas e salas de aula como força executora imediata, pois há

de se considerar as práticas curriculares que, na maioria das vezes, insistem em ressignificar,

burlar e contrariar as propostas curriculares prescritivas. Os currículos praticados e suas

relações com os prescritos oferecem enorme poder de sedução a qualquer pesquisador em

educação que possua sensibilidade e curiosidade acadêmica e as pesquisas que a eles se

voltam se constituem em importante e instigante campo de análise. No entanto, vemos com

certa cautela as investigações do cotidiano escolar que recusam, ou deixam em um plano

bastante inferiorizado, a relação entre as práticas e os processos que as engendram. Por esse

motivo, e, neste caso específico, pela quase ausência de trabalhos que analisem as políticas

curriculares de geografia para a EJA, escolhemos pesquisar as propostas em si e em seus atos

fundadores, seus alicerces e as categorias e conceitos que os explicam. Isso porque,

concordando com Kramer (1999), consideramos que:

Toda proposta [curricular] é situada, traz consigo o lugar de onde fala e a gama de valores que a constitui; traz também as dificuldades que enfrenta, os problemas que precisam ser superados e a direção que a orienta. E essa sua fala é a fala de um desejo, de uma vontade eminentemente política no caso de uma proposta educativa, e sempre humana, vontade que, por ser social e humana, não é nunca uma fala

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17

acabada, não aponta “o” lugar, “a” resposta, pois se traz “a” resposta já não é uma pergunta. Aponta, isso sim, um caminho também a construir (p. 169).

Assim, partimos para o desafio de desvelar e analisar esses desejos, essas vontades

eminentemente políticas presentes nas propostas curriculares. Instiga-nos saber que Educação

de Jovens e Adultos é considerada, isto é, para que sujeitos e com que intencionalidades ela é

pensada, que concepções de currículo embasam as ações propostas e, nesse contexto, qual o

papel do ensino de geografia para a viabilização e consolidação do projeto em questão. Tal

objetivo acaba por configurar esta tese como um trabalho de investigação das políticas

educacionais para a EJA, cujo recorte empírico é formado pela seleção, organização e

tratamento de conteúdos geográficos presentes em propostas curriculares direcionadas para

essa modalidade.

Sabemos que a definição das políticas educacionais em geral vem recebendo, nas

últimas décadas, fortes interferências do ideário neoliberal de globalização, no qual os

organismos internacionais vêm desempenhando funções primordiais, como ações de

financiamento e fomento a projetos que veiculam seu conjunto de idéias e valores. A EJA, por

ter como público alvo trabalhadores pouco escolarizados, é merecedora, nesse contexto, de

uma preocupação especial, pois, segundo Maués (2003), tais políticas vêm “implantando o

‘pensamento único’ que visa a uma homogeneização na formação de um trabalhador pronto a

atender às exigências do mercado” (p. 9), além de se justificarem “como ações dos governos

para realizar ações de ajuste com crescimento e alívio da pobreza, [...] e, com isto, a

prioridade para os projetos de educação básica [...] é incentivada na forma de projetos de

impacto para reduzir [...] ‘a pobreza’ e o ‘número de pessoas pobres’, não as ‘condições de

pobreza’” (MELO, 2004, p. 173).

Nesse sentido, a escolha das propostas curriculares a serem analisadas pautou-se na

tentativa de verificar as concepções que balizam as políticas de currículo dirigidas para a EJA

na atualidade. Mesmo compreendendo que são diversos os atores sociais e implementadores

de iniciativas educacionais, optamos por propostas curriculares engendradas pelo governo

federal no intuito de desvelar as referências e concepções utilizadas pelo nível mais

abrangente de ação política e cujo poder de influência atinge todo o território nacional. Com

caráter regulador e indutor, as iniciativas do governo federal, principalmente a partir dos dois

mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002), têm se caracterizado,

como anunciamos anteriormente, pela influência da hegemônica política neoliberal. O atual

governo, por sua vez, a despeito de pequenas diferenças em termos de políticas sociais focais,

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também não tem alterado a condução da política educacional em uma direção contra-

hegemônica, mantendo em muitos aspectos os documentos utilizados como referenciais

curriculares e pedagógicos para o trabalho educativo.

Nesse sentido, as propostas curriculares de EJA elaboradas no âmbito do governo

federal constituem-se em documentos essenciais no que se refere à análise das idéias e

concepções indicadas como parâmetros para a EJA de todo o país. Além do documento

intitulado Proposta curricular para a Educação de Jovens e Adultos: Segundo Segmento do

Ensino Fundamental: 5ª à 8ª série (BRASIL, 2002d, 2002f), há também o projeto e o material

didático elaborados para o Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e

Adultos (ENCCEJA) (BRASIL, 2002a, 2002b, 2002c), ação criada ainda no governo

Fernando Henrique Cardoso e retomada recentemente pelo governo Lula; o Programa

Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária (ProJovem),

implementado pelo atual governo com o objetivo de promover o término do ensino

fundamental de jovens entre 18 e 24 anos de idade que já completaram o primeiro segmento

deste nível de ensino; e a Coleção Cadernos de EJA, lançada em 2007 com a intenção de

servir como apoio didático aos professores da EJA de toda a nação. Em função da quantidade

e complexidade que envolve o conjunto dessas propostas, optamos por focalizar a análise nas

propostas curriculares e nos materiais didáticos referentes ao ProJovem e à Coleção Cadernos

de EJA por se configurarem, entre as quatro ações anunciadas, as que representam as políticas

de currículo do atual governo. Assim, com esses objetos de pesquisa e investigação, buscamos

captar os sentidos e discursos instituídos no momento atual, potenciais reveladores das

questões contemporâneas que envolvem a educação geográfica de jovens e adultos

trabalhadores.

Também julgamos importante ressaltar que o trabalho investigativo proposto é

encarado como parte de um todo, isto é, concordando com Sanfelice (2005), consideramos o

objeto de estudo como “relação da parte com o todo, não um todo infinito para o pesquisador,

mas um todo tomado tanto quanto necessário para o melhor conhecimento do objeto” (p. 85).

Isso porque “queremos saber sobre o movimento do objeto. Aprofundar no seu conhecimento

é um caminhar do fenômeno à essência e isso nos leva a infinitas possibilidades. Sem

explicitar o movimento e as suas contradições, pouco se faz”, pois “o mundo não pode ser

considerado um complexo de coisas acabadas, mas sim um processo de complexos nos quais

as coisas e o seus reflexos intelectuais em nossos cérebros, os conceitos, estão em mudanças

contínuas e ininterruptas de devir” (ibid., p. 75). Nesse sentido, a identificação e a

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19

explicitação dos conceitos centrais ao tema de investigação se tornam ações fundamentais

para a pesquisa científica.

Se a formulação de conceitos é a chave para a indagação, uma vez que nos possibilita

identificar, tornar cognoscível e inteligível essas relações invisíveis que nos permitem

compreender o real, reconhecemos, no entanto, que mostrar os conceitos e categorias com os

quais trabalhamos significa tomá-los como construtos plenos de historicidade e, por isso

mesmo, constituídos de diferentes interpretações. Por isso a necessidade de dizer de que

ângulo teórico os observamos, pois sabemos que o “pensamento, de um sujeito pesquisador,

sempre será um pensamento situado, terá o seu mirante de onde olha e este lhe dará o seu

alcance e o seu limite” (SANFELICE, 2005, p. 85), sendo:

[...] somente assim que se torna possível uma coerência científica que desde a escolha do objeto de pesquisa até a produção de um novo conhecimento sobre o mesmo resulta de uma opção política-ideológica, no âmbito de uma visão materialista de mundo em contínuo movimento e onde as contradições antagônicas são as chaves para se compreender as alterações quantitativas e qualitativas da história e da educação (ibid., p. 90).

Tomando como base esses pressupostos, identificamos e explicitamos ao longo dos

primeiros capítulos os principais conceitos com os quais trabalhamos e que serviram de

referência para a investigação desenvolvida. Assim, os conceitos de classe trabalhadora, ou

classe-que-vive-do-trabalho, preconizado por Antunes (1999, 2003), recontextualização,

desenvolvido por Basil Bernstein (1996), e de políticas de currículo, analisado de acordo com

Lopes (2005), constituem-se em referenciais essenciais para o desdobramento da pesquisa.

Além disso, as concepções de educação de jovens e adultos e de geografia escolar são

também explicitadas com o intuito de deixar claro o mirante a partir do qual olhamos e

analisamos o objeto deste estudo.

Em termos metodológicos, o trabalho investigativo constitui-se em uma pesquisa

documental cujas principais fontes são os materiais didáticos elaborados em consonância com

as duas propostas curriculares selecionadas. O ProJovem, por se configurar em um programa

que prevê formação escolar no nível fundamental, desenvolve sua intervenção pedagógica

junto aos alunos através de uma coleção didática composta por quatro volumes. Cada volume

possui um tema aglutinador das diferentes áreas do conhecimento, sendo o foco de nossa

investigação os conteúdos geográficos contemplados na área de ciências humanas. Quanto

aos Cadernos de EJA, estes são compostos também por uma coleção didática que contém

vinte e seis volumes, treze voltados para os alunos e treze direcionados para o professor.

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20

Também temáticos, os volumes dedicados ao professor apresentam sugestões de atividades

didáticas para cada disciplina escolar, sendo então o foco principal da análise empreendida

neste trabalho as atividades de geografia presentes em quatro dos treze volumes da coleção.

O principal procedimento de investigação, portanto, é a análise dos discursos e

conteúdos geográficos encontrados nas duas coleções didáticas, tomando-os em sua relação

com os objetivos e pressupostos das propostas curriculares nas quais estão inseridos. Em um

primeiro momento, cada coleção é alvo de um exame atento sobre a seleção, organização e

tratamento do conhecimento escolar de geografia, utilizando-se nesses instantes a

contribuição de reflexões relativas a variados temas do conhecimento geográfico e a

recontextualização destes para o contexto escolar da EJA. Em momento posterior, as análises

empreendidas são sistematizadas de forma a destacar alguns aspectos encontrados nas

coleções e que marcam tanto a EJA enquanto modalidade de ensino da educação básica como

a geografia escolar e seus dilemas contemporâneos.

Enfim, para alcançar as intenções anunciadas, o texto da tese é organizado em cinco

capítulos e nas considerações finais. O primeiro capítulo trata, em geral, das políticas

educacionais referentes à EJA, com enfoque na formulação de propostas e programas

curriculares. Nele explicitamos primeiramente a concepção de EJA com a qual trabalhamos.

Para tanto, analisamos as características do capitalismo contemporâneo, o processo de

reestruturação produtiva e sua influência nas relações de trabalho e na configuração da classe

trabalhadora, além do próprio conceito de classe trabalhadora, que deverá ser revisitado com o

intuito de “atualizá-lo” diante do atual cenário socioeconômico. O segundo item deste

capítulo aborda o papel do currículo escolar nas políticas educacionais, ou seja, lançamos mão

de reflexões acerca do papel regulador e indutor do Estado na elaboração de políticas,

propostas curriculares para os sistemas e programas educativos. Além disso, no que se refere

às especificidades da EJA e a questão do currículo escolar, discutimos o que vem sendo

produzido em termos de propostas curriculares para esta modalidade, considerando projetos

de continuidade e de inovação curricular e as diversas acepções atribuídas a este termo.

O segundo capítulo tem a geografia escolar como centro da discussão. A partir da

perspectiva crítica, é analisada, em um primeiro momento, a relação entre o pensamento

geográfico e o ensino de geografia na educação básica tomando-se como fio condutor o

conceito de recontextualização pedagógica. Em seguida, algumas características da trajetória

histórica do ensino de geografia são consideradas enfatizando-se, nesse contexto, o trato dado

aos conhecimentos geográficos selecionados como legítimos para serem desenvolvidos nas

escolas brasileiras. O último item aborda questões referentes ao ensino de geografia na EJA

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em uma perspectiva também histórica, pretendendo trazer à baila algumas reflexões sobre

currículos oficiais e experiências concretas de educação geográfica para a modalidade de

ensino em foco.

O terceiro e o quarto capítulo são reservados para a análise das coleções didáticas

selecionadas, privilegiando-se o movimento que vai desde as suas concepções de educação,

sociedade, currículo e conhecimento escolar até as políticas e práticas que as engendraram. O

conceito de recontextualização é aqui retomado na intenção de se identificar semelhanças e

diferenças entre as concepções anunciadas. Também os pressupostos relativos à EJA e à

geografia escolar têm destaque ao longo das análises no intuito de se desvelar possibilidades e

limites das propostas, sempre tomando como referência o que consideramos como projeto

contra-hegemônico de educação e sociedade e a contribuição da educação geográfica para tal

intento.

O quinto capítulo traz para si o desafio da sistematização das análises realizadas,

partindo também para algo que chamamos de princípios e bases da educação geográfica de

jovens e adultos trabalhadores. Não se pretende, contudo, desenvolver considerações

prescritivas e sim o anúncio de possibilidades que, a partir das análises empreendidas,

caminhem na direção de uma geografia escolar mais comprometida com a emancipação dos

sujeitos que freqüentam as salas de aula de programas de EJA, trabalhadores a quem têm sido

negadas a cidadania plena e a possibilidade de pensar uma sociedade mais justa e igualitária.

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CAPÍTULO 1

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: DOS FUNDAMENTOS

ÀS POLÍTICAS DE CURRÍCULO

Entendemos como fundamentos um conjunto de elementos cujo conhecimento é

praticamente obrigatório para que se compreenda a formação e a caracterização de um

determinado campo de estudo e/ou de atuação profissional. Trata-se, na verdade, das bases e

alicerces a partir dos quais se engendraram os traços principais do campo em questão, desde

sua gênese, passando pelo processo que o consolidou enquanto tal até sua configuração atual.

No nosso caso, nos referimos à modalidade EJA e dela tomamos como fundamentos a

caracterização de seu público; sua trajetória na história da educação brasileira; seu marco

legal, através do qual verificamos sua contemporaneidade em termos de concepções e formas

de atuar; e as políticas públicas que, em seu processo histórico, fizeram e fazem-na existir e

permanecer como campo de luta pelo direito à educação para todos.

Cabe ressaltar, de início, que a EJA passa a ser analisada a partir de duas vertentes

depois da Declaração de Hamburgo4. Segundo Paiva (2004), a primeira vertente se refere à

escolarização de adultos, situada justamente dentro da luta pelo reconhecimento do direito à

educação básica a todos, independente da idade. A segunda vertente, ainda de acordo com a

autora, diz respeito à educação continuada, baseada no princípio do aprender por toda a vida,

“independente da educação formal, incluíndo-se nessa vertente as ações educativas de gênero,

de etnia, de profissionalização, questões ambientais etc., assim como a formação continuada

de educadores, estes também jovens e adultos em processos de aprendizagem” (ibid., p. 31).

Embora reconhecendo a importância do sentido dado à EJA pela segunda perspectiva,

esclarecemos que este trabalho diz respeito à escolarização de jovens e adultos, uma vez que

seu objeto de investigação e análise se refere às políticas de currículo para a formação escolar

de jovens e adultos trabalhadores e às questões que envolvem a instituição de projetos

educativos que levam em conta as especificidades desse público.

Dessa forma, destacamos a caracterização do público da EJA como fundamento

primordial para a sua compreensão enquanto campo de estudo e como modalidade da

educação básica. Isso porque somente a partir da especificidade de seu público, podemos

4 A Declaração de Hamburgo é o documento-síntese das discussões travadas na V Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA), realizada em Hamburgo (Alemanha), em 1997.

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analisar sua trajetória e perceber a necessidade da constituição de políticas exclusivas que

atendam suas características. Além disso, é nesse ponto que se encontram diferentes

concepções a partir das quais se pensa e se atua politicamente na EJA. A centralidade dessa

análise no sentido ontológico do trabalho5 e na luta de classes é distinta daquela que vê a EJA

e seu público como expressões apenas da diversidade cultural e do multiculturalismo. Por isso

utilizamos a expressão jovens e adultos trabalhadores, para identificar o referencial sobre o

qual nos baseamos e dizer que tratamos, na verdade, da escolarização da classe trabalhadora.

Em função disso, dedicamos a primeira parte deste capítulo para apresentar as concepções

através das quais analisamos o público da EJA: suas características, sua composição e a forma

com que as políticas educacionais vêm atuando no que concerne à escolarização dessas

pessoas.

Tais políticas são aqui analisadas sob o enfoque das propostas curriculares. Em outras

palavras, resgatamos o processo histórico que possibilitou a constituição e a consolidação da

EJA como modalidade da educação básica através das políticas de currículo. Isso porque, de

acordo com Lopes (2004), “toda política curricular é uma política de constituição do

conhecimento escolar, um conhecimento construído para a escola (em ações externas a ela),

mas também pela escola (em suas práticas institucionais cotidianas)” (p. 193). E se é assim, se

nos interessa examinar a constituição do conhecimento escolar para a EJA em iniciativas

externas à escola, o eixo de análise será este conhecimento em sua construção, não nos

referindo, portanto, ao momento em que ele é instituído nas ações escolares.

Essa opção se dá em função do objeto de estudo desta tese, voltado para a análise da

educação geográfica em propostas curriculares da modalidade EJA no ensino fundamental.

São, portanto, as políticas de currículo que nos possibilitam o levantamento e o exame das

concepções, intencionalidades e ações que têm marcado o ensino/aprendizagem de geografia

na EJA, uma vez que tais propostas “veiculam discursos vigentes no país que criam verdades

ao oficializarem saberes e legitimarem posturas”. Além disso, como resultado das políticas de

currículo, “as orientações curriculares oficiais refletem também um ideário que permeia mais

amplamente a sociedade através das suas instituições e das forças sociais que as animam”

(BARRETTO, 1998).

Assim, este capítulo traz os referenciais teóricos com os quais trabalhamos e os

campos com os quais dialogamos, configurando-se então como um panorama da EJA no que

5 “Nesta compreensão, independente da forma histórica que assume, trabalho e relações materiais de produção social da existência são fundantes da especificidade humana à medida que é pelo trabalho que a espécie humana se produz” (FRIGOTTO, 1998).

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se refere ao seu público e às concepções e políticas curriculares voltadas para o processo de

escolarização em seu âmbito.

1.1 CONFIGURAÇÃO DO PÚBLICO DA EJA: MAPEANDO O PONTO DE PARTIDA

Quando nos referimos à Educação de Jovens e Adultos como modalidade da educação

básica, temos claro que o que a caracteriza e a diferencia da educação escolar de crianças e

adolescentes são, obviamente, certas características específicas de seu público. Em geral,

reconhecemos que este é detentor de experiências significativas de vida e possuidor de maior

inserção no mundo do trabalho. É formado por muitos chefes de família que carregam consigo

a responsabilidade, as alegrias e os desafios inerentes a esta condição, além de ser composto

por pessoas que trazem um acúmulo de saberes, costumeiramente chamado de senso comum,

que os distingue entre si e revela suas diferentes identidades, constituídas a partir de formas

diversas de inserção na vida em sociedade. Contudo, junto a estes traços que são próprios da

condição de não crianças, os educandos da EJA, principalmente os que freqüentam o sistema

público de ensino, trazem a marca da sociedade de classes. Jovens, adultos e idosos cursam

esta modalidade de ensino porque, invariavelmente, as condições socioeconômicas nas quais

se encontravam na infância e na adolescência não permitiam ou dificultavam, para muitos, o

próprio acesso à escola e, para outros, a permanência e a conclusão do processo de

escolarização. Ora, essa é uma situação típica da classe trabalhadora, pois para essas pessoas a

inclusão prematura no mundo do trabalho é, na maioria das vezes, um imperativo, uma

exigência da vida.

Para além dos jovens e adultos trabalhadores, sabemos que, atualmente, outro grupo

vem caracterizando os cursos de EJA: o considerável número de adolescentes recém-egressos

do período diurno. Muitos, repetindo a sina dos jovens, adultos e idosos trabalhadores,

recorrem à EJA em função do trabalho precoce. Outros, por serem evadidos, repetentes,

renitentes, expulsos ou convidados a se transferirem dos cursos regulares, vão parar em cursos

noturnos carregando a sensação de que, não havendo mais lugar para eles onde se

encontravam antes, é essa a escola que lhes sobra. No entanto, em todos esses casos está a

marca das desigualdades sociais, pois é a classe trabalhadora a mais vulnerável a essas

situações. E são os cursos de EJA que a recebem e devem, em função de todas essas

características, pensar e construir uma outra escola, a escola pública para adolescentes, jovens

e adultos trabalhadores.

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Em função dessa perspectiva, é imperativo aprofundarmos a configuração do público

da EJA analisando e refletindo sobre as características da classe trabalhadora neste início de

século. As recentes transformações na esfera produtiva e suas conseqüências para as relações

sociais e o mundo do trabalho configuram um quadro extremamente complexo que exige

maior reflexão e a atualização do que entendemos por classe trabalhadora hoje. Nesse sentido,

reservamos esta seção para a análise das características do capitalismo contemporâneo,

marcado pelo processo de reestruturação produtiva e pela expansão do ideário neoliberal e sua

influência na atual configuração da classe trabalhadora.

1.2.1 O capitalismo da acumulação flexível e o mercado das ilusões

Se há algum consenso entre os analistas, pesquisadores e estudiosos do atual cenário

socioeconômico mundial é o fato de o modo de produção capitalista estar, há

aproximadamente três décadas, imprimindo um processo de reestruturação em suas bases

produtivas. Tais transformações se iniciaram nas unidades de produção e nos escritórios de

algumas indústrias e se fizeram acompanhar por um lastro teórico-político – o neoliberalismo

–, por uma suposta nova ordenação na relação entre o capital e os Estados nacionais – a

globalização – e por um aprofundamento agudo das diferenças econômicas e desigualdades

sociais em diversas regiões do planeta – a denominada exclusão social. Para este quadro as

interpretações são muitas e variadas: de setores que o defendem e comemoram sua ascensão,

passando por grupos que, embora reconheçam seus efeitos danosos, o tomam como inevitável

e perene, a segmentos que denunciam suas desastrosas conseqüências para a dignidade

humana e para a própria sobrevivência do planeta, e, sem adotar uma visão fatalista,

vislumbram possibilidades de continuidade das lutas e da construção de outro tipo de

sociedade. Para nós, adotar esta última como a melhor forma de compreensão dos recentes

acontecimentos significa compartilhar a idéia de que a história é um processo e um conjunto

de possibilidades que dependem da práxis social, isto é, da reflexão e da ação transformadora

de homens e mulheres sobre o mundo.

Nesse sentido, passamos a analisar o que Celso Furtado (1998) chama de o novo

capitalismo sob o prisma de uma interpretação contra-hegemônica, encarando o atual estágio

do capitalismo mundial como fruto de um processo iniciado há, pelo menos, cinco séculos e

composto por diversas fases, avanços e crises. Estamos tratando, portanto, como atesta

Harvey (2001), de mais um momento de transição no regime de acumulação do capital e no

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modo de regulamentação social e política a ele associado. Este autor localiza no tempo

recente o início e as condições que possibilitaram tal transição. Diz ele:

Aceito amplamente a visão de que o longo período de expansão de pós-guerra, que se estendeu de 1945 a 1973, teve como base um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico, e de que esse conjunto pode com razão ser chamado de fordista-keynesiano. O colapso desse sistema a partir de 1973 iniciou um período de rápida mudança, de fluidez e de incerteza (2001, p. 119).

Alertando para o perigo de se confundir mudanças transitórias e efêmeras com aquelas

de caráter mais estrutural e permanente, Harvey vê a passagem do fordismo para o que ele

denomina de acumulação flexível do capital como a melhor maneira de caracterizar a história

recente. Para o autor, o fordismo se caracterizava, em linhas gerais, por uma completa

racionalização do processo de trabalho e pela crença de que era preciso dar renda e tempo de

lazer suficientes aos trabalhadores para que pudessem consumir os produtos produzidos em

massa e em quantidades cada vez maiores. Nesse sentido, uma nova maneira de viver, de

pensar e sentir a vida foi sendo constituída ao longo desse período. Gramsci (2001) já

alertava, nos primórdios do fordismo, nos anos 1920 e 1930, que esta forma de acumulação

capitalista empregou um enorme esforço para a criação de um novo sujeito, um novo homem,

um novo tipo de trabalhador que precisava se adequar às suas características.

Para que esse quadro se tornasse viável, era preciso uma base de sustentação política e

um projeto de expansão mundial, já que tal forma de acumulação se iniciara nos Estados

Unidos e não sobreviveria ou pouco possibilitaria um processo cada vez maior de acumulação

e reprodução do capital se não se ampliasse e conquistasse adeptos para além das fronteiras

iniciais. Assim, a partir da crise do capital dos anos 1930 e com maior força no período pós-

guerra (pós-1945), o fordismo se aliou ao keynesianismo, utilizado como base política, e, em

função dos planos de ajuda aos países devastados pela Segunda Guerra Mundial, expandiu-se

para outras regiões de capitalismo avançado. Para Harvey (ibid.), no entanto, o que

proporcionou a consolidação da expansão do fordismo em termos mundiais foi a articulação

do papel dos principais atores do processo de desenvolvimento capitalista:

O Estado teve de assumir novos (keynesianos) papéis e construir novos poderes institucionais; o capital corporativo teve de ajustar as velas em certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha da lucratividade segura; e o trabalho organizado teve de assumir novos papéis e funções relativos ao desempenho nos mercados de trabalho e nos processos de produção. O equilíbrio de poder, tenso mas mesmo assim firme, que prevalecia entre o trabalho organizado, o grande capital

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corporativo e a nação-Estado, e que formou a base de poder da expansão de pós-guerra, não foi alcançado por acaso – resultou de anos de luta (p. 125).

Vale lembrar que tal articulação possibilitou a aceitação do poder sindical por parte

das grandes corporações monopolistas, que se tornavam cada vez mais transnacionais. Isso se

deu porque, em parte, os sindicatos foram sendo acuados e levados a “trocar ganhos reais de

salário pela cooperação da disciplinação dos trabalhadores de acordo com o sistema fordista

de produção” (ibid., p. 129). Esta situação, porém, valia quase exclusivamente para os países

centrais, uma vez que para a classe trabalhadora da periferia do capitalismo mundial o

fordismo, em troca de ganhos irrisórios e pouca ascensão em seus padrões de vida, não passou

de uma promessa de desenvolvimento e acesso aos bens de consumo de massa. Com a sua

expansão, basicamente via corporações transnacionais, o que se viu foram os ganhos se

voltarem apenas para as elites nacionais que decidiram colaborar com o capital internacional e

a consolidação de uma nova cultura de consumo de base ocidental promovendo a

transformação ou mesmo a destruição de muitas culturas locais (ibid.).

A partir dos anos 1970, porém, a instalação de uma grave crise estrutural do capital fez

com que, de acordo com Antunes (2002), se implementasse um vasto processo de

reestruturação com vistas à recuperação do ciclo de reprodução do capital. Neste contexto, a

rigidez fordista, que se expressava nos investimentos de capital fixo, nas regulações do

mercado e dos contratos de trabalho e nos compromissos sociais dos governos (seguridade

social, direitos de pensão, controle fiscal etc.) a partir da adoção do Estado de Bem-Estar

Social, passou a ser questionada e responsabilizada pela crise, o que redundou, segundo

Harvey (op. cit.), na implantação da acumulação de tipo flexível.

Esta crítica ao sistema de acumulação fordista, na verdade, já encontrava eco logo

após o fim da Segunda Guerra, quando então nascia o neoliberalismo, um conjunto de idéias

que combatia justamente o Estado intervencionista e de bem-estar. Para Anderson (1996), a

origem e a expressão maior desse receituário foi a obra O caminho da servidão, de Friedrich

Hayek, cujo conteúdo continha “um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos

mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à

liberdade, não somente econômica, mas também política” (p. 9). No entanto, o período de

ouro do capitalismo mundial que, sob a batuta do fordismo-keynesianismo, comandou

crescimentos econômicos sem precedentes, principalmente no núcleo orgânico do

capitalismo, impossibilitava o avanço e a aceitação desse ideário. Sua prosperidade só se

iniciou exatamente a partir do colapso do fordismo.

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A chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação, mudou tudo. A partir daí as idéias neoliberais passaram a ganhar terreno. As raízes da crise, afirmavam Hayek e seus companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais (ANDERSON, 1996, p. 10).

Como vemos, Anderson e Harvey coincidem em suas análises no que se refere ao

início da ascensão da acumulação flexível e da aceitação das idéias neoliberais. Forma-se,

então, um novo modelo de produção que, pouco a pouco, passará a reger a vida social e, assim

como o fordismo, passará a formatar um novo sujeito, um novo trabalhador que terá de se

adaptar a tempos mais flexíveis, voláteis e fluidos, para utilizar apenas alguns termos que, a

partir desse momento, entrariam no vocabulário de um número cada vez maior de idiomas.

Considerando que ainda vivemos atualmente esse período de transição, Harvey (2001) afirma

que o novo modelo de acumulação:

[...] se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores quanto entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado ‘setor de serviços’, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (p. 140).

Além disso, o autor destaca que a acumulação flexível envolve também um novo

movimento denominado de “compressão do espaço-tempo”, isto é, o surgimento de

processos, possíveis em função da expansão das tecnologias de comunicação e de transporte,

que transformam as relações espaço-temporais entre indivíduos e corporações. Tais processos

“revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem a

alterar, às vezes radicalmente, o modo como representamos o mundo para nós mesmos”,

fazendo com que tenhamos que “aprender a lidar com um avassalador sentido de compressão

dos nossos mundos espacial e temporal” (p. 218). Chamamos a atenção, no entanto, para o

fato de que tal movimento se dá de forma desigual entre os indivíduos das diferentes regiões

do planeta. Isto quer dizer que a compressão espaço-tempo de que nos fala Harvey não é

apropriada da mesma maneira por todos, embora se faça cada vez mais presente e inexorável

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nos processos que engendram e possibilitam a reestruturação produtiva via acumulação

flexível.

De qualquer modo, acreditamos que seja esse movimento um dos motivos através do

qual um outro termo passasse a expressar o processo pelo qual as relações econômicas,

sociais, culturais e políticas vêm atravessando no mundo atual: a chamada globalização,

considerada por muitos como a nova ordenação espacial da economia mundial. Tal relação

com o conceito de compressão espaço-tempo se dá no sentido de que, ao longo da história do

capitalismo, as inovações tecnológicas sempre alteraram as condições da espacialidade no

intuito de favorecer a reprodução e a acumulação do capital. Em texto recente, Harvey

(2004b) explicita melhor essa relação ao dizer que:

[...] o que pode ser derivado teoricamente, e que é compatível com o registro histórico-geográfico do capitalismo, é um incessante impulso de redução, se não de eliminação, de barreiras espaciais, associado a impulsos igualmente incessantes de aceleração da taxa de giro do capital. A redução do custo e do tempo do movimento provou ser uma necessidade vital de um modo de produção capitalista. A tendência à ‘globalização’ capitalista tem sido impelida sem remorsos por etapa após etapa de compressão do espaço-tempo (p. 86, grifo nosso).

Esta afirmativa revela, portanto, que não há novidade alguma neste processo. Wood

(2005), fazendo alusão à constatação de Marx em O manifesto comunista (1848) sobre o

caráter cosmopolita que a burguesia deu à produção e ao consumo de todos os países, atesta

que “a globalização não é uma nova época, mas um processo de longo prazo; não se trata de

um novo tipo de capitalismo, mas da lógica do capitalismo tal como este foi desde o começo”

(p. 101). Seguindo esse mesmo raciocínio, ainda Harvey (2004a), em outro trabalho, afirma

que se “a palavra ‘globalização’ significa alguma coisa relativa à nossa geografia histórica

recente, é bem provável que designe uma nova fase de exatamente esse mesmo processo

intrínseco da produção capitalista de espaço” (p. 81).

Sobre esta produção de espaço, vale lembrar que processos interativos de troca no

espaço redundaram na divisão territorial do trabalho, cuja expressão mundial se dá a partir da

divisão internacional do trabalho. Além disso, capitalistas individuais sempre tenderam a

empregar seu capital excedente em um outro lugar onde as oportunidades de lucro são

maiores, ou seja, a expansão geográfica do capital sempre tentou resolver o problema da

sobreacumulação. É o que Harvey (2004b) afirma ao analisar as características do

imperialismo, pois, para ele:

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[...] a questão efetivamente relevante é o que acontece a capitais excedentes gerados em economias regionais subnacionais quando não podem encontrar um emprego lucrativo em nenhuma parte do Estado. Este é, com efeito, o cerne do problema que gera pressões em favor de práticas imperialistas no sistema interestados (p. 92).

É a partir de processos moleculares de acumulação do capital, isto é, a partir de

economias regionais que tendem a se tornar o interesse e o padrão de toda uma nação, que o

capital lança mão dessas práticas imperialistas. Traduzido na expansão de grandes

corporações transnacionais, que, como nos lembra Wood (2005), não significam empresas

não-nacionais, mas companhias nacionais de alcance transnacional, o imperialismo encontra

seu vigor desde tempos fordistas a partir dos países nucleares, com grande destaque para o

papel de liderança exercido pelos Estados Unidos. Para Harvey (2004b), todo esse processo

vem acarretando “um mundo espaço-temporal entrelaçado de fluxos financeiros de capital

excedente com conglomerados de poder político e econômico em pontos nodais chave (Nova

York, Londres, Tóquio) que buscam [...] livrar o sistema da sobreacumulação [...]” (p. 112).

Tal processo acirra o desenvolvimento desigual característico desse processo de globalização

com práticas imperialistas.

Assim, para muitos, globalização e imperialismo, ou novo imperialismo, são processos

indistinguíveis, são frutos da expansão opressora do capital, principalmente em direção aos

países periféricos e semi-periféricos, aprofundando relações seculares de dependência e

subserviência econômicas.

Jameson (2001), no entanto, ao tentar exprimir o que se entende por globalização,

prefere lançar mão de todas as descrições e fazer um inventário de suas ambigüidades,

explorando, para isso, cinco níveis distintos desse processo: o tecnológico, o político, o

cultural, o econômico e o social. O nível tecnológico diz respeito às novas tecnologias da

comunicação e da informática e seus impactos na produção e comercialização de mercadorias.

Diante da irreversibilidade desta dimensão da globalização, Jameson indaga ainda assim sobre

a inevitabilidade desse processo. Para Santos (2001), autor do termo meio técnico-científico

informacional para designar mais uma faceta do período atual, há interpretações ideológicas

que sustentam que as novas tecnologias são responsáveis pelo que convencionou-se chamar

de aldeia global, o que acarreta a falsa sensação de que a difusão instantânea de notícias

realmente informa as pessoas e de que o mundo pudesse estar, para todos, ao alcance das

mãos.

No nível político, a grande questão que tem se colocado como verdade é o

enfraquecimento, ou mesmo o fim, do Estado-nação enquanto organizador e regulador da vida

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e dos interesses econômicos dos povos. Fazendo alusão ao caráter imperialista da

globalização em curso, Jameson (2001) questiona:

E ao falar do enfraquecimento do estado-nação não estaremos na verdade descrevendo a subordinação de outros estados-nações ao poderio americano, seja através de consentimento e colaboração, seja através do uso de força bruta e de ameaças econômicas? Por trás desses temores está uma nova versão do que antes se chamava de imperialismo, cujas formas compõem agora uma verdadeira dinastia (p. 18).

Ainda sobre o papel do Estado na globalização econômica de acumulação flexível,

vários autores (JAMESON, 2001; SANTOS, 2001; WOOD, 2005) identificam a contradição

central da (pós) moderna doutrina do livre mercado: o desenvolvimento de um mercado

efetivamente livre das “garras” de governos envolve necessariamente enorme intervenção

governamental, já que o mercado livre não cresce naturalmente, precisa de legislações

específicas e de medidas intervencionistas para que o capital obtenha as condições necessárias

de reprodução e acumulação flexível. Ou seja, mais um mito – a morte do Estado – compõe o

que Santos considera a fábula da globalização, aquela que o capital quer nos fazer crer.

Em termos culturais, a globalização também se encontra na esteira do imperialismo,

situando-se na propagação, já histórica, da cultura ocidental em direção a todos os cantos do

planeta. Jameson (op. cit.), na verdade, situa essa questão na esfera dos temores e receios

sobre o grau de mudanças que esta invasão vem imprimindo aos povos e questiona alguns

posicionamentos que subestimam tal processo. Considerando que a produção das mercadorias

é também um fenômeno cultural, já que “se compram os produtos tanto por sua imagem

quanto por seu uso imediato” (p. 22), o autor afirma que as questões culturais tendem a se

propagar para as questões econômicas e sociais. Nesse sentido, por exemplo, a propaganda

torna-se uma mediação essencial entre a cultura e a economia.

Economicamente, os aspectos mais relevantes para Jameson dizem respeito ao papel

devastador que as grandes corporações vêm exercendo nos mercados de trabalho nacionais ao

transferir parte de suas operações a outros países e continentes à procura de mão-de-obra mais

barata. Até agora, diz o autor, “não houve uma globalização comparável do movimento dos

trabalhadores para responder a esta situação” (ibid., p. 25).

O predomínio e a expansão do capital financeiro é outra característica no plano

econômico que marca a globalização, também possível somente em função do uso das novas

tecnologias da informação. Como não se trata de investimentos produtivos e sim de

especulações financeiras, as transações nesse mercado vêm acarretando cada vez maior

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dependência dos países que se situam fora do eixo central do capitalismo mundial, uma vez

que “transferências instantâneas de capital podem empobrecer regiões inteiras, drenando de

um dia para outro o valor acumulado por anos de trabalho nacional” (p. 26).

A aproximação do nível cultural ao nível social se dá com a proliferação, a partir da

cultura ocidental, da cultura do consumo. Em Jameson a utilização deste termo designa o

modo específico de vida gerado pela produção de mercadorias no que ele chama de

capitalismo tardio. Tal cultura integra o tecido social como parte da vida cotidiana produzindo

individualismos e atomizações da sociedade que corroem os grupos sociais.

O lado perverso da globalização em termos sociais é revelado por Santos (2001) ao

elencar uma série de adversidades enfrentadas pela maior parte da humanidade atualmente.

Desemprego, acirramento das desigualdades sociais, queda de salários, fome, abandono,

agravamento de epidemias, desvalorização da educação de qualidade, entre outras

atrocidades, se tornaram rotina na vida de milhões de pessoas. Diante desse quadro, o autor

acredita que “a perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa da

humanidade tem relação com a ação desenfreada aos comportamentos competitivos que

atualmente caracterizam as ações hegemônicas” e conclui dizendo que “todas essas mazelas

são direta ou indiretamente imputáveis ao presente processo de globalização” (p. 20).

Apesar do cenário desumano apontado por essa e por inúmeras outras análises, há de

se perguntar de onde vem a força de verdade e de consentimento em relação à globalização

neoliberal de acumulação flexível. Harvey (2004a) atribui esse poder atrativo à promoção do

termo globalização como uma virtude, sensação causada e divulgada pelo mercado financeiro

a partir da “passagem de um sistema global hierarquicamente organizado e largamente

controlado pelos Estados Unidos a outro sistema global mais descentralizado, coordenado

pelo mercado, sistema que tornou bem mais voláteis as condições financeiras do capitalismo”

(p. 89). O autor chega a insinuar que a imprensa financeira foi a responsável pela indução a

todos do termo globalização como grande novidade com o intuito de utilizá-la como peça

publicitária do ajuste financeiro comemorado pelo capital internacional.

Velhos atores em novas formas permitem o consenso e mantêm a hegemonia dos

interesses do capital a praticamente toda a sociedade humana. Segundo Santos (op. cit.), a

ciência e a técnica a serviço do mercado, os utilitarismos e a exacerbação do eleitoralismo que

leva a democracia de mercado ao consumo de eleições, isto é, ao enfraquecimento do debate

de idéias e da própria política em si, são alguns dos elementos que fazem com que boa parte

da sociedade e dos indivíduos aceite o reino do cálculo econômico e da competitividade. Para

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o autor, “são, todas essas, condições para a difusão de um pensamento e de uma prática

totalitárias” (p. 54).

Seguindo a mesma linha de raciocínio de Santos, Ramonet (1998) é enfático: “O

Estado não é mais totalitário, mas a economia, na era da globalização, tende cada vez mais

para isso”. O autor compara os antigos regimes totalitários – de partido único, que não

permitiam nenhuma oposição sistematizada, violadores dos direitos humanos em nome do

poder político – a um outro tipo de totalitarismo, ou melhor, ao que ele chama de regimes

globalitários, que, “repousando nos dogmas da globalização e do pensamento único, [...] não

admitem nenhuma outra política econômica, descuidam dos direitos do cidadão em nome da

razão competitiva e entregam aos mercados financeiros a direção total das atividades da

sociedade dominada” (p. 60).

Portanto, é através da imposição desses dogmas que aqueles que estão a serviço do

capital atribuem à globalização a inexorável constituição de indivíduos “globais” cada vez

mais competitivos. Para Ramonet (ibid.), essa viscosa doutrina tem conseguido envolver os

cidadãos das principais democracias atuais e expandir a política do pensamento único, que

nada mais é do que:

[...] A tradução, em termos ideológicos com pretensão universal, dos interesses de um conjunto de forças econômicas, especialmente as do capitalismo internacional. [...] Suas principais fontes são as grandes instituições econômicas e monetárias [internacionais] [...] que, por meio de financiamentos, arregimentam a serviço de suas idéias, em todo o planeta, inúmeros centros de pesquisa das universidades, das fundações. Estes, por sua vez, depuram e espalham a boa palavra, que é retomada e reproduzida pelos principais órgãos de informação econômica e, especialmente, pelas “bíblias” dos investidores e dos investidores de bolsas – The Wall Street Journal, The Financial Times, The Economist, Far Eastern Economic Review, a agência Reuter etc. – propriedades, muitas vezes, dos grandes grupos industriais ou financeiros (p. 57).

Pode-se dizer, então, que o pensamento único expressa o poder hegemônico que

conta, por sua vez, com diversos meios para a sua legitimação perante a sociedade. Além das

instituições científicas e imprensa especializada, a idéia de um mercado global cada vez mais

competitivo que atinge a tudo e a todos e promete a felicidade fetichizada através do consumo

exacerbado é veiculada também pelo Estado e pelos meios de comunicação de massa em

geral. O mercado das ilusões, arauto da atual hegemonia capitalista, é, pois, garantido por

políticas estatais explícitas e vangloriado a todo o momento pelo discurso midiático

incessante e insistente. Isto se dá porque, como afirma Gramsci (2002b, p. 99), hegemonia é

direção política, cultural, intelectual e moral e uma de suas características é possuir um centro

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diretivo sobre os intelectuais que se afirma através de duas direções: uma concepção geral de

vida, uma filosofia – o mercado das ilusões comercializado pela grande mídia –; e um

programa escolar, um princípio educativo e pedagógico original – a nova pedagogia da

hegemonia levada a cabo por governos neoliberais e por aparelhos privados de hegemonia.

Todo esse movimento exerce profundos impactos no mundo do trabalho e

conseqüentemente complexifica o conceito de classe trabalhadora. Por isso, somos levados a

aceitar o desafio de aprofundarmos tal conceito nos debruçando sobre os efeitos desse novo

mundo do trabalho e dessa nova pedagogia da hegemonia sobre a classe trabalhadora, com

destaque para alguns aspectos do processo de escolarização dos estudantes da EJA. A seguir,

cumpriremos tal tarefa à luz das principais características do capitalismo contemporâneo.

1.1.2 A configuração da classe trabalhadora no atual cenário socioeconômico de acumulação

flexível

Podemos dizer que, no geral, os trabalhadores de todos os cantos do planeta vêm

sentindo os efeitos do processo de transição do sistema de acumulação capitalista, que muitos

denominam também de terceira revolução industrial ou revolução técnico-científica. Desde os

países centrais à periferia do capitalismo mundial, embora os impactos exerçam graus

diferenciados de acordo com a realidade socioeconômica de cada país, a classe trabalhadora

tem presenciado uma série de alterações nas relações de trabalho, na forma de inserção de sua

força de trabalho na cadeia produtiva, na maneira de se conduzir a gerência empresarial e no

desaparecimento de postos de trabalho.

Em função desse conjunto de fatores, ser trabalhador no capitalismo contemporâneo

tem significado, para muitos, a distância cada vez maior dos direitos conquistados em séculos

por diferentes movimentos sociais e a aproximação a uma realidade na qual imperam a

incerteza, a vulnerabilidade, a falta de escolha e de perspectivas, além do massacre ideológico

que tem levado muitos à crença de que a competitividade exacerbada, a ética capitalista e as

desigualdades sociais são próprias de uma suposta natureza humana e contra ela nada

podemos fazer. Aliás, como dito anteriormente, a expansão do pensamento único, ideário

hegemônico da burguesia contemporânea, e que tem sido incorporado por muitas tendências

político-partidárias e intelectuais que se dizem críticos e progressistas, tem tido papel

preponderante na conformação da sociedade como um todo e na produção do consenso em

torno do projeto de sociedade levado a cabo pelo capital. A maior compreensão destas e de

outras questões que influenciam a configuração da classe trabalhadora deste início de século

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só pode se dar a partir da análise de alguns pontos essenciais que marcam o atual cenário

socioeconômico, o que faremos a seguir.

Diversas são as formas de procedermos na análise das recentes transformações na

relação capital e trabalho. Aqui, optamos por levantar e analisar as principais conseqüências

desse processo sob o ponto de vista do trabalho, isto é, a partir das alterações materiais e

simbólicas e seus impactos nos trabalhadores. Para tal intento, utilizamos como referência a

obra do Professor Ricardo Antunes (1999, 2002, 2003, 2004), que no Brasil tem sido um dos

estudiosos sobre o tema em pauta. Dentre os variados efeitos da forma flexibilizada de

acumulação capitalista, Antunes (2002) destaca aqueles que, segundo ele, se mostram como

os mais importantes para a compreensão da reconfiguração da classe trabalhadora. O autor

aponta sete características, para as quais, a seguir, reservamos algumas considerações.

Em primeiro lugar, Antunes indica como relevante a crescente redução do proletariado

fabril, cujo contrato de trabalho se caracteriza pela estabilidade. Próprio do período fordista, o

trabalhador produtivo, operário do chão da fábrica, vem diminuindo em quantidade. As causas

dessa redução vão desde a implantação cada vez mais acelerada de novas tecnologias na

produção (automação, robotização) até a desconcentração espacial das unidades fabris,

principalmente no que se refere ao grande capital com atuação transnacional. Nos países

industrializados da Europa Ocidental, por exemplo, a proporção de trabalhadores da indústria

passou de 40% da população economicamente ativa (PEA), no início dos anos 1940, para

aproximadamente de 30% na primeira metade da década de 1990 (idem, 2003). No Brasil, os

anos 1970, auge da expansão industrial no país, presenciaram a absorção de cerca de 20% da

mão-de-obra nas unidades fabris, quadro que, vinte anos depois, se alterava para a

participação de 13% de operários da indústria no total da ocupação nacional (idem, 2004).

Nas regiões mais industrializadas do país, as conseqüências do movimento de

mudanças geográficas das unidades industriais se fizeram sentir fortemente e a redução do

operariado clássico, oriundo ainda dos grandes surtos de industrialização dos anos 1950, 60 e

70, se tornou realidade. Antunes (ibid.) exemplifica tal situação nos lembrando que diversas

indústrias consideradas modernas, do ramo metal-mecânico vêm se transferindo da região da

Grande São Paulo, por exemplo, para áreas do interior paulista ou para outras regiões do país.

Esse processo de deslocamento se explica, entre outras razões, pelo custo de produção em

regiões tradicionalmente fabris (valorização do solo urbano, mão-de-obra mais cara,

problemas com o transporte de cargas em áreas densamente povoadas etc.) e, principalmente,

a nosso ver, pela tradição da organização sindical dos trabalhadores dessas regiões, que,

mesmo tendo sido obrigada a atenuar os embates mais diretos com o capital, se mantém, por

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enquanto, com considerável penetração entre o proletariado e razoável poder de luta. Vale

lembrar ainda que, com a introdução da automação, o número de vagas instituídas nas novas

unidades se mostra aquém daqueles extintos nas unidades anteriores, o que contribui para a

redução do proletariado brasileiro em termos gerais.

Ainda em relação ao trabalhador produtivo, é verdade que a automação tornou mais

qualificada a mão-de-obra em diversos setores das indústrias, mas os efeitos mais perversos se

encontram justamente no processo contrário: na desqualificação e precarização do trabalhador

em diversos ramos, nos quais vários postos de trabalho foram extintos (ANTUNES, 2002).

Além disso, a conseqüência mais devastadora desse processo é, obviamente, a geração de uma

monumental taxa de desemprego estrutural.

A formação de um novo proletariado, ou de um subproletariado, é, para Antunes

(ibid.), a segunda característica desses “novos tempos”. Um proletariado precarizado,

terceirizado, subcontratado, informal, ilegal, ou seja, submetido às mais diversas formas de

relações precárias de trabalho. Nas sociedades do núcleo central do capitalismo, esse tipo de

inserção laboral, até então característica dos imigrantes terceiromundistas, se expande para os

antigos especialistas remanescentes da era fordista. Na periferia e semiperiferia, aonde o

pleno emprego e as benesses do fordismo-keynesianismo nunca chegaram por completo, tais

formas de trabalho só vieram agravar o quadro já desolador de desigualdades sociais

históricas.

Julgamos necessário ainda acrescentar a essa característica indicada por Antunes o

fato de que, para os que mantiveram, ou para os poucos que ingressaram, em postos

assalariados, a reestruturação empresarial e produtiva reservaria mudanças significativas nas

relações e nas funções exercidas, estabelecendo, assim, um trabalhador de novo tipo. O

próprio Antunes (2004) nos explica tais transformações:

Observou-se a ampliação da informatização produtiva, [...] da produção baseada em team work, nos programas de qualidade total, ampliando também o processo de difusão da microeletrônica. Deu-se o início, ainda também preliminar, dos métodos denominados participativos, mecanismos que procuram o envolvimento dos trabalhadores nos planos das empresas. [...] De modo sintético pode-se dizer que a necessidade de elevação da produtividade ocorreu através da reorganização da produção, redução do número de trabalhadores, intensificação da jornada de trabalho dos empregados, surgimento dos CCQ’s (Círculos de Controle da Qualidade) e dos sistemas de produção just-in-time e kanban, dentre os principais elementos (p. 16-17).

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Essa intensificação da jornada e da carga de trabalho é outra característica das novas

formas de gerenciamento da produção e das novas tecnologias. O desenvolvimento de

mecanismos que incorporam o trabalhador por inteiro na produção leva ao aumento da

exploração da classe trabalhadora (DEL PINO, 2002). Tal exploração se agrava, como afirma

Paiva (2002), em função da crise do trabalho assalariado e do emprego como construções

sociais ligadas ao industrialismo e apoiados sobre contratos de trabalho e com proteção social.

Para a autora, “flexibilidade e precarização são conceitos contemporâneos que estão ligados à

retração dos direitos e da proteção social dos trabalhadores, e que tendem a se consolidar na

medida em que o trabalho perdeu força política ante o capital” (p. 52). Ou seja, mesmo ao

trabalho formal e assalariado não têm sido garantidos muitos dos direitos conquistados pela

classe trabalhadora ao longo do século XX.

A terceira característica da atual fase, para Antunes (2002), é o aumento significativo

do trabalho feminino. Essa maior inserção da mulher no mundo do trabalho, porém, se dá via

precarização e desregulamentação. O autor alerta para o fato de que o trabalho feminino tem

sido menos valorizado que o masculino em várias situações, dentre as quais destaca: a

remuneração mais baixa e a maior vulnerabilidade no que concerne à concessão de direitos e

mínimas condições de trabalho; o predomínio masculino nas atividades de concepção,

restando para as mulheres a maior parte das funções menos qualificadas e elementares; e a

pouca participação feminina nos mecanismos da chamada gestão participativa, como os

CCQ’s e as ilhas ou módulos de gestão / produção. Além disso, a dupla jornada de trabalho –

dentro e fora de casa – torna a trabalhadora também duplamente explorada pelo capital, uma

vez que é no trabalho doméstico “que se criam as condições indispensáveis para a

reprodução da força de trabalho de seus maridos, filhos / as e de si própria. Sem essa esfera

da reprodução não-diretamente mercantil, as condições de reprodução do sistema de

metabolismo social do capital estariam bastante comprometidas, senão inviabilizadas”

(ANTUNES, 1999, p. 108-9). Nesse sentido, Antunes (2003) revela a perversidade da relação

de gênero no mundo do trabalho e contribui para a reflexão extremamente necessária sobre a

articulação entre as questões de classe e de gênero no âmbito da luta de classes:

A presença feminina no mundo do trabalho nos permite acrescentar que, se a consciência de classe é uma articulação complexa, comportando identidades e heterogeneidades, entre singularidades que vivem uma situação particular no processo produtivo e na vida social, na esfera da materialidade e da subjetividade, tanto a contradição entre o indivíduo e sua classe, quanto aquela que advém da relação entre classe e gênero, tornaram-se ainda mais agudas na era contemporânea. [...] uma crítica do capital, enquanto relação social, deve necessariamente apreender a dimensão de exploração presente nas relações

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capital/trabalho e também aquelas opressivas presentes na relação homem/mulher, de modo que a luta pela constituição do gênero-para-si-mesmo possibilite também a emancipação do gênero mulher. (p. 54).

O quarto ponto diz respeito à expansão do setor de serviços. No Brasil, por exemplo,

paralelamente à retração do trabalho na indústria, os serviços tiveram um incremento na

ordem de 50% entre os anos 1970 e 1990. Boa parte desse aumento, no entanto, carrega as

marcas da precarização, pois foi a informalidade que incorporou parcelas expressivas de

trabalhadores, principalmente no comércio, comunicações e transportes. A expansão dos

serviços não significa o início de uma suposta sociedade pós-industrial, pois, como alerta

Antunes (2003), o setor é vinculado e dependente da atividade industrial, o que, aliás, reforça

a idéia de que não faz mais sentido ainda utilizarmos a teoria dos três setores6 em função da

extrema interpenetração das atividades agrícolas, industriais e de serviços da qual são

expressões a agroindústria, a indústria de serviços e os serviços produtivos. Além disso, o

autor revela que “o assalariamento dos trabalhadores do setor de serviços aproxima-se cada

vez mais da lógica e da racionalidade do mundo produtivo, gerando uma interpenetração

recíproca entre eles, entre trabalho produtivo e improdutivo” (id., 1999, p. 112).

A cada vez mais difícil inserção de jovens e idosos no mercado de trabalho formal é a

quinta característica do emergente modelo de acumulação flexível que Antunes traz para a

análise. Bastante presente nos países centrais, tal situação tem também sido verificada com

freqüência nos países de industrialização tardia, provocando, porém, conseqüências

diferenciadas de acordo com a faixa etária. Entre os idosos e os adultos com mais de 40 anos

de idade a perversidade da falta de ocupação com garantias mínimas de segurança e

benefícios trabalhistas tem levado muitos trabalhadores, em geral herdeiros de uma “cultura

fordista”, à informalidade e ao desemprego. Para o autor, esta cultura, “de uma especialização

que, por sua unilateralidade, contrasta com o operário polivalente e multifuncional (muitas

vezes no sentido ideológico do termo) requerido pela era toyotista”, hostiliza esses

trabalhadores de maior idade (ibid., p. 112).

Em relação aos jovens, é mister constatar que o maior índice de desemprego

verificado em nosso país, por exemplo, desde o final do século XIX, os atinge com maior

vigor. Pochmann (2000) informa que a taxa de desemprego juvenil7 tem se mantido em torno

6 Bastante difundida, a teoria dos três setores divide as atividades econômicas em setor primário (atividades agropecuárias, pesca e extrativismo), setor secundário (indústria, manufatura) e setor terciário (comércio e serviços em geral). 7 O autor explica que por desemprego juvenil, considera-se a relação entre o contingente de desempregados na faixa de 10 a 24 anos e a população economicamente ativa com a mesma faixa etária. No Brasil, em função da precocidade do ingresso da maior parte da população no mercado de trabalho, optou-se pela referência à

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de 1,5 vezes acima da taxa de desemprego total. Nos anos 1980, a taxa teria girado em torno

de 4 a 8% da população economicamente ativa com idade entre 10 e 24 anos de idade (PEA

juvenil), chegando, na década de 1990, a alcançar o nível de 14%, em 1997 (p. 55). Assim,

trabalhar a idéia de futuro com os jovens e adolescentes que já se vêem na situação de

desemprego é um desafio cada vez mais cruel para as escolas noturnas. É nesse cenário, em

meio a relações voláteis e mutantes, que a maior parte dos alunos da EJA tenta achar algo de

concreto para suas vidas, algo a partir do qual possam construir a idéia de futuro.

O crescimento do trabalho infantil se configura no sexto ponto do quadro que, para

Antunes, configura o momento atual. O autor afirma que essa inclusão precoce de crianças no

mercado de trabalho, embora apareça com mais destaque na semiperiferia e na periferia do

capitalismo mundial, tem se ampliado consideravelmente em países do centro (ANTUNES,

1999, p. 112).

A transnacionalização do capital e a configuração de um capitalismo cada vez mais

organizado a partir de um sistema global de ações têm levado o mundo do trabalho também a

um processo de internacionalização. Esta sétima característica está relacionada, segundo o

autor (2002), à expansão do que Marx denominou de trabalho social combinado, em que

trabalhadores de diferentes regiões do planeta participam do processo de produção e de

serviços. No entanto, Antunes (1999) alerta para o fato de que essa transnacionalização da

cadeia produtiva não tem, até o presente, “gerado uma resposta internacional por parte da

classe trabalhadora, o que é um limite enorme para ação dos trabalhadores” (p. 115). Ao

mesmo tempo, o autor considera que a produção transnacional de mercadorias, com destaque

para as indústrias automotivas, pode recolocar a luta de classes num patamar cada vez mais

internacionalizado. Isso confirmaria a centralidade do trabalho nas interpretações das

características socioeconômicas do mundo atual, pois, para o autor, ao contrário daqueles que

defendem o fim do papel central da classe trabalhadora, esta deve se impor como desafio

maior “soldar os laços de pertencimento de classe existentes entre os diversos segmentos que

compreendem o mundo do trabalho”. Isso porque não é possível prever nenhuma

possibilidade de eliminação da classe trabalhadora “enquanto forem vigentes os pilares

constitutivos do modo de produção do capital” (idem, 2002, p. 44-5).

Como alertamos anteriormente, os impactos da reestruturação produtiva e gerencial

do capital na classe trabalhadora obrigaram a teoria social crítica a uma revisão no conceito

de classes sociais em geral e, mais especificamente, no de classe trabalhadora. Nesse sentido,

população ativa com idade entre 10 e 24 anos, envolvendo, assim, a população adolescente (10 a 12 anos de idade), o adolescente-jovem (13 a 18 anos) e o jovem-adulto (19 a 24 anos) (POCHMANN, 2000, p. 55).

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é urgente uma reflexão que venha recuperar, ou, nas palavras de Antunes (ibid.), conferir

validade contemporânea ao conceito marxiano de classe trabalhadora. Para isso, é inevitável

o reporte a Marx.

Theotônio dos Santos (1987) alerta para a redução que pode ser feita sobre a

construção conceitual de Marx, chamando a atenção para a necessidade de tomarmos a

dialética materialista como foco de análise para que possamos de fato compreender as

nuances de seu pensamento. O autor lembra que Marx pretendia tratar o conceito de classes

sociais em vários níveis de análise dependentes entre si, e que a diferenciação e

interdependência desses níveis de abstração são manifestações claras do método dialético,

que o distingue profundamente do método analítico formal (p. 17). Como níveis de abstração,

o autor apresenta: o modo de produção, onde “o conceito de classes aparece como resultado

da análise das forças produtivas (nível tecnológico dos meios de produção e organização da

força de trabalho) e das relações de produção (relações que os homens estabelecem entre si

no processo da produção social)” (p. 19); a estrutura social, onde a análise deve se

concretizar sob a descrição ainda teórica dos modos de relação possíveis numa estrutura

social determinada (p. 25); a situação social, quando a análise se aproxima da descrição de

uma sociedade concreta, tomando o cuidado de não confundir a estrutura das classes com a

estratificação social de determinada sociedade (p. 25); e, por fim, a conjuntura, já que a

estrutura de classes sofre modificações de acordo com a conjuntura em que se desenvolvem

suas contradições (p. 27).

Então, numa tentativa de conceitualização das classes sociais, baseada na análise de

obras de Marx8, Santos afirma que “por classes sociais se entenderão os agregados básicos de

indivíduos numa sociedade, os quais se opõem entre si pelo papel que desempenham no

processo produtivo, do ponto de vista das relações que estabelecem entre si na organização

do trabalho e quanto à propriedade” (p. 41). O conflito de interesses, produzidos a partir

dessas relações, seria o eixo central de diferenciação dos agregados básicos.

Ao dispor dos elementos das relações internas destes agregados (relações de exploração, de dependência, de função etc.) como forças materiais, podemos começar a análise dos interesses que lhes corresponde no modo de produção ou na estrutura social. Ao diferenciar os interesses, colocamo-los em relação uns com os outros como opostos e interdependentes, pois só desta forma podemos alcançar a efetiva compreensão de seu significado. Por outro lado, só podemos compreender tais interesses do ponto de vista dinâmico em que o conflito e as contradições entre eles provocam uma dinâmica da sociedade, uma luta de classes (SANTOS, 1987, p. 46).

8 Basicamente, o autor cita O Capital, A Ideologia alemã e Contribuição à Crítica da Economia Política.

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Isso posto, vemos que Marx, segundo Ridenti (2001), estabelece três grandes classes:

a classe dos capitalistas, a dos proprietários fundiários e a dos trabalhadores assalariados,

sendo que o que lhes confere essa classificação é a condição de possuidores dos agentes da

produção, isto é, o lucro, a renda da terra e o salário, respectivamente (p. 17). Na classe dos

capitalistas, definida pela posse do capital e não pela função de capitalista, estariam

compreendidos o capitalista industrial, o capitalista comercial e o capitalista “a juro”. A

classe dos proprietários fundiários seria aquela formada pelos proprietários da terra que

obtêm uma porção de mais-valia a partir da renda da terra. Como classe dos trabalhadores

assalariados seriam considerados tanto os assalariados produtivos (atuantes no processo

produtivo industrial principalmente) quanto os assalariados improdutivos (assalariados pelos

capitalistas comerciais, por exemplo), contando apenas com aqueles que vendem sua força de

trabalho ao capital (p. 16).

Com relação ao conceito de classe trabalhadora, Antunes (1999) considera que Marx

muitas vezes utilizou como sinônimos a noção de proletariado, classe trabalhadora e

assalariados, mas que em outras ocasiões, em O Capital principalmente, teria enfatizado que

o proletariado seria essencialmente constituído pelos “produtores de mais-valia”, isto é,

aqueles que participam diretamente do processo de valorização do capital, os assalariados

produtivos. Com o intuito de localizar a análise das classes no capitalismo contemporâneo, o

autor engloba tanto o proletariado industrial como os outros trabalhadores assalariados no que

ele denomina de classe-que-vive-do-trabalho.

Uma noção ampliada de classe trabalhadora inclui, então, todos aqueles e aquelas que vendem sua força de trabalho em troca de salário, incorporando, além do proletariado industrial, dos assalariados do setor de serviços, também o proletariado rural, que vende sua força de trabalho para o capital. Essa noção incorpora o proletariado precarizado, o subproletariado moderno, part time, o novo proletariado dos McDonald’s, (...) os trabalhadores terceirizados e precarizados (...), os trabalhadores assalariados da chamada “economia informal”, que muitas vezes são indiretamente subordinados ao capital, além dos trabalhadores desempregados, expulsos do processo produtivo e do mercado de trabalho pela reestruturação do capital e que hipertrofiam o exército industrial de reserva, na fase de expansão do desemprego estrutural (103-4).

Com essas considerações, Antunes nos alerta para a complexidade cada vez maior do

conceito de classe, especialmente de classe trabalhadora. Com a recente e cada vez mais

acentuada redução do proletariado industrial, novas formas e relações de trabalho passam a se

estabelecer. Como registrado em linhas anteriores deste trabalho, a freqüente introdução de

tecnologias poupadoras de mão-de-obra nas unidades fabris, a expansão do toyotismo, da

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“flexibilização” das leis trabalhistas e da desconcentração do espaço físico da produção

extinguem postos de trabalho e fazem surgir um novo proletariado, marcado pelo trabalho

precarizado, no qual terceirizados, subcontratados e subempregados já não mais desfrutam de

direitos trabalhistas há muito conquistados. Vale lembrar ainda que a inserção crescente da

mulher nesse mercado precário e a expansão do setor de serviços, apesar de também atingido

pelas novas tecnologias e formas de gestão, constroem outros significados e complexificam

as relações entre capital e trabalho.

Trabalhando com a idéia de inclusão precarizada no sistema capitalista global e não

de uma exclusão total desse sistema, como se costuma preconizar, Forrester (1997) mostra o

quadro de horror pintado pela doutrina neoliberal a serviço das novas formas de reprodução

do capital:

Tantas vidas encurraladas, manietadas, torturadas, que se desfazem, tangentes a uma sociedade que se retrai. Entre esses despossuídos e seus contemporâneos, ergue-se uma espécie de vidraça cada vez menos transparente. E como são cada vez menos vistos, como alguns os querem ainda mais apagados, riscados, escamoteados dessa sociedade, eles são chamados de excluídos. Mas, ao contrário, eles estão lá, apertados, encarcerados, incluídos até a medula! Eles são absorvidos, devorados, relegados para sempre, deportados, repudiados, banidos, submissos e decaídos, mas tão incômodos: uns chatos! Jamais completamente, não, jamais suficientemente expulsos! Incluídos, demasiado incluídos, e em descrédito (p. 15).

A associação entre o termo exclusão social e a situação atual da classe trabalhadora,

ou de boa parte dela, é um discurso presente em diferentes instâncias políticas. Aparece na

plataforma política de partidos conservadores, de centro e progressistas (ou, em muitos casos

mundo afora, do que ainda lhes resta desse adjetivo), em aparelhos privados de hegemonia do

capital (como exemplo brasileiro: FIESP, FIRJAN, Sistema “S”), em centrais sindicais e

movimentos sociais representativos dos trabalhadores urbanos ou rurais (CUT, Força

Sindical, MST, MTST etc.), em organizações não governamentais de diversos matizes e ainda

em ações e políticas governamentais de todos os âmbitos, de políticas sociais a econômicas. O

uso indiscriminado dessa associação, no entanto, deve ser melhor analisado em função de sua

pouca precisão e propensão a uma interpretação limitada da realidade social.

Não são poucos os autores que contribuem com uma postura crítica e questionadora do

termo exclusão social. Neste trabalho trazemos as considerações de alguns deles (CASTEL,

1997; FORRESTER, 1997; MARTINS, 2002; FONTES, 2005) para que possamos melhor

compreender os processos pelos quais passa a sociedade contemporânea sem que caiamos em

certas armadilhas analíticas. Para Castel (1997), a exclusão vem se impondo como expressão

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para designar todo o tipo de miséria do mundo desde o início dos anos 1990. Para o autor, de

maneira indiscriminada, o desempregado de longa duração, o jovem da periferia, os sem-teto,

todos são associados ao termo “excluídos”. Análise semelhante faz Fontes (2005) ao

considerar que essa expansão e explosão do termo se deu tanto em pesquisas acadêmicas

quanto na mídia, limitando-se, porém, aos fenômenos de ruptura e de crise identitária, isto é, a

perda de identidade profissional, angústia, isolamento social, recuo da influências dos

sindicatos e da atuação política. Tal dimensão não assumia o crescimento das desigualdades

econômicas como centro do debate, levando a designação do termo menos para uma

dimensão de oposição e luta e mais para a ausência de reivindicações organizadas e de coesão

identitária. Para a autora:

O termo torna-se assim uma espécie de paradigma do final do milênio, aplicado a situações e conjunturas diversas. Nos países centrais, designa tanto grupos sociais amparados, ainda que precariamente, por políticas públicas (renda mínima, salário-desemprego, assistência médica e social), como os portadores de deficiências físicas, os encarcerados, doentes ou vítimas do fracasso escolar, quanto categorias relativa ou inteiramente à margem dos direitos sociais, como é o caso dos imigrantes ilegais. Assim, o termo enquadra tanto situações de extrema fragilidade quanto crises ligadas à perda de rendimentos, como ainda o sentimento de precariedade e abandono de grupos que permanecem ligados ao mundo do trabalho. [...] referido a outros países, o termo pode remeter a grande parte (ou à maioria) da população, que jamais contou com tais direitos, como o caso de países africanos ou mesmo sul-americanos. Também no caso brasileiro, o termo tende a englobar uma grande variedade de situações (p. 41-2).

O sentido de ausência presente na expressão é destacado por Castel (1997), que chama

a atenção para o fato de que a qualificação puramente negativa que designa a falta de qualquer

coisa não diz no que consiste esta falta e nem de onde ela provém. Ou seja, “de tanto repetir a

ladainha da ausência, oculta-se a necessidade de analisar positivamente no que consiste a

ausência. Isto por uma razão de fundo: os traços constitutivos essenciais das situações de

‘exclusão’ não se encontram nas situações em si mesmas” (p. 19). Para ao autor, só faz

sentido a referência a situações-limite quando estas são colocadas em um processo e não

autonomizadas.

Nesse sentido, Martins (2002) indaga sobre os motivos que têm levado os que falam

em exclusão social a encaixar a realidade dos pobres nesse conceito e por que não utilizam

mais o conceito de pobre, ou de trabalhador ou mesmo de marginalizado. Para este autor:

Na verdade, a categoria exclusão é resultado de uma metamorfose nos conceitos que procuravam explicar a ordenação social que resultou do desenvolvimento capitalista. Mais do que uma definição precisa de problemas, ela expressa uma

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incerteza e uma grande insegurança teórica na compreensão dos problemas sociais da sociedade contemporânea (p. 27).

Relacionando o conceito de classe social ao de excluído, Martins revela nuances que

precisam ser levadas em conta se quisermos encarar com rigor crítico a interpretação da

realidade social. Operário é classe social, diz ele, excluído não o é. Operário é sujeito social e

histórico, que personifica possibilidades históricas. Excluído é rótulo abstrato, não há

possibilidade histórica nas pessoas e nos grupos sociais submetidos a essa rotulação. Discurso

dos integrados, dos que aderiram ao sistema, o que se chama de exclusão é a própria situação

de classe do operário. Para Martins, a diluição da identidade do trabalhador na figura do

excluído produz uma mudança social que sobrepõe o excluído ao trabalhador, uma vez que

este não se encontra “mais majoritariamente nas fábricas – [está] nas ruas, nas favelas e

cortiços, nas invasões, nos bairros miseráveis da urbanização patológica que o novo

desenvolvimento econômico produziu” (p. 34). Assim, as categorias de excluído e exclusão

são categorias de cunho conservador, pois, como diz o autor, não tocam nas contradições,

apenas as lamentam.

Para Fontes (2005), o fenômeno que o termo exclusão pretende designar só pode ser

compreendido a partir de uma dupla dinâmica, já que “decorre de processos includentes, ainda

que desigualitários, segregadores e hierarquizantes: inclusão forçada e exclusão interna” (p.

43). Por inclusão forçada, a autora denomina o processo de mercantilização da força de

trabalho, conseqüência da expansão das forças produtivas capitalistas e da sociedade

mercantil ao longo dos últimos duzentos anos aproximadamente. A expropriação da

capacidade autônoma de sobrevivência fora dos marcos da sociedade de classes resultou na

inclusão forçada de uma massa de trabalhadores impossibilitada de escapar a esse processo.

Essa inclusão forçada, segundo Fontes, “assegurava a própria sobrevivência do sistema, ao

submeter e disciplinar a força de trabalho necessária à sua existência” (p. 23). Uma vez

incluídos nas relações sociais mercantilizadas, ninguém pode ser excluído do mercado. Por

isso a impossibilidade em se relacionar a exclusão como algo que se passa fora da sociedade

capitalista. Podemos falar de exclusão de parcela considerável dos trabalhadores em relação

às formas assalariadas de inserção no mundo do trabalho, mas este é um processo interno ao

sistema, é propiciador de uma exclusão interna. Essa exclusão interna pode ser representada

pelo conceito de exército industrial de reserva, contingente populacional cada vez mais

numeroso em tempos de acumulação flexível e desemprego estrutural, tão inerente ao modo

de produção capitalista.

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45

1.1.3 A EJA como questão de classe

A partir da atualização e da validade contemporânea, nos dizeres de Antunes, do

conceito de classe trabalhadora, bem como da análise crítica de termos e expressões que vêm

tentando exprimir teoricamente o que se passa com os trabalhadores na atualidade, nos

voltamos para a caracterização do público da EJA. Ou seja, feitas todas essas ressalvas,

voltamos a nos perguntar: afinal, quem é hoje, majoritariamente, o público da EJA?

Obviamente, essa indagação nos remete a um sem fim de possibilidades se levarmos em conta

algumas especificidades nacionais e regionais, mas, partindo do pressuposto de que

praticamente todas as pessoas que freqüentam as salas de aula da EJA têm suas histórias de

vida marcadas pela sua forma de inserção no mundo do trabalho e, portanto, na forma de

produção de sua existência, podemos chegar à conclusão de que este público é formado

essencialmente pela classe trabalhadora.

Encontramos essa definição em autores que, mesmo ainda utilizando termos

controversos, denunciam a situação de opressão em que vive a maioria dos que se matriculam

em programas educativos de EJA, sejam oficiais, oferecidos por ONGs ou por movimentos

sociais. Arroyo (2001), um desses autores, revela a relação existente entre essa condição de

classe do público da EJA e o lugar ocupado por essa modalidade na história da educação

brasileira ao considerar que:

Os olhares tão conflitivos sobre a condição social, política, cultural desses sujeitos têm condicionado as concepções diversas da educação que lhes é oferecida. Os lugares sociais a eles reservados – marginais, oprimidos, excluídos, empregáveis, miseráveis... – têm condicionado o lugar reservado à sua educação no conjunto das políticas oficiais. A história oficial da EJA se confunde com a história do lugar social reservado aos setores populares. É uma modalidade do trato dado pelas elites aos adultos populares (p. 10).

Quando afirmamos que o público da EJA é formado essencialmente por trabalhadores

consideramos que o corte de classe é fundamental para compreendermos a própria existência

da EJA enquanto modalidade de ensino. Em países como o Brasil, onde os benefícios do

Estado de Bem-Estar Social não alcançaram a totalidade da classe trabalhadora, não podemos

confundir a EJA com a educação de adultos, com qualquer adulto, com qualquer educação.

Estamos aqui nos referindo ao processo de escolarização da classe trabalhadora, utilizando o

conceito ampliado e atualizado de classe trabalhadora, porque a ela foi negada a possibilidade

da educação escolar na infância e na adolescência. E esta é uma situação provocada pela

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sociedade de classes, uma vez que, sabemos, a estrutura desigual tem condicionado as

políticas oficiais a sempre beneficiarem aqueles setores mais privilegiados da sociedade,

aqueles que não precisam se lançar ao mundo do trabalho desde cedo para assegurar sua

própria sobrevivência e a de sua família.

Com isso, não negamos o fato de que, entre os trabalhadores, encontramos a

diversidade. São homens e mulheres negros, mestiços, indígenas, brancos, hetero ou

homossexuais que adotam variadas crenças religiosas, egressos de diferentes culturas

regionais, mas, ao mesmo tempo, e cada vez mais, imersos na cultura de massa. São pessoas

que sofrem não apenas as opressões pelo lugar que ocupam na sociedade de classes, mas junto

a estas, e potencializadas por estas, também sofrem discriminação por sua origem étnica, por

serem mulheres, por sua orientação sexual, por sua religião, por seu sotaque regional. No

entanto, é a condição de classe que as leva aos cursos de EJA e não a condição de negros,

mulheres, nordestinos ou homossexuais, por exemplo. Nesse sentido, concordamos com

Ahmad (1999), que quando indagado sobre porque acredita que a maioria das coisas é uma

questão de classe, respondeu:

Sabe-se que a Índia tem uma população entre 900 milhões e 1 bilhão de pessoas. Aproximadamente metade dessa gente é analfabeta. Nenhum burguês, porém, é analfabeto em parte alguma do mundo, e os que falam constantemente nos ‘prazeres do texto’ jamais são pobres. Cerca de metade dos cegos do mundo vive na Índia. A cegueira, porém, é uma questão de classe, no sentido em que constitui quase que exclusivamente uma doença de pobres, e também no sentido de que uma incidência tão alta assim de cegueira tem muito a ver com o fato de eles viverem em condições que a causam, com o número e a qualidade dos hospitais, com a capacidade de financiar a cura e o tratamento. O que precisa ser justificado é outro tipo de cegueira, que se recusa a ver que a maioria das coisas é uma questão de classe. Essa recusa em si mesma é, bem no fundo, também uma questão de classe (p. 114).

A idéia de que o que vale hoje como base explicativa da sociedade contemporânea é

apenas a diversidade cultural e a multiplicidade de identidades a que todas as pessoas estão

submetidas não encontra validade conceitual plena em nossas premissas. O perigo em

considerar a questão de classe como uma entre tantas identidades que devem ser respeitadas e

valorizadas – como a origem étnica, o sexo, a orientação sexual, a cultura, o gosto musical

etc. – é o de naturalizar a desigualdade social, já que, se somos diferentes e devemos respeitar

essas diferenças, deveríamos então respeitar e valorizar as desigualdades sociais, isto é, a

diferença entre ricos e pobres. A confusão entre diversidade cultural e desigualdade social

precisa ser combatida, caso contrário estaremos caminhando pela via do pensamento único e

indo ao encontro daqueles interessados em manter as relações sociais que possibilitam a

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reprodução e a acumulação privada do capital. Como contribuição a essa argumentação

trazemos as considerações de Malik (1999) a respeito da centralidade do fenômeno de

identidades múltiplas, atribuída à análise social pós-estruturalista:

O reconhecimento de que seres humanos estão sujeitos a reivindicações e identidades conflitantes é de evidente importância. O problema surge, contudo, quando todas as ‘identidades’, quaisquer que sejam suas formas, são tratadas como equivalentes, de modo tal que preferências pessoais em estilo de vida, como os ‘estilos musicais’, recebem o mesmo peso e importância que atributos físicos [...] enquanto, ao mesmo tempo, cada identidade é concebida à parte de relações sociais específicas. Na verdade, para começar, já há um problema quando se concebe raça ou classe como uma ‘identidade’. Reações sociais, tais como opressão racial, não se transformam absolutamente em relações sociais, mas em atributos pessoais ou mesmo em opções de estilo de vida. Quando raça é considerada equivalente a ‘estilos musicais’ ou a ‘códigos de vestuário’, aparentemente o ‘social’ não significa nada mais que uma decisão particular que qualquer indivíduo pode tomar, e a ‘sociedade’ é reduzida ao agregado de identidades individuais (p. 127).

Como exemplo, pensemos na questão de gênero. A identidade feminina não é

vivenciada da mesma forma por todas as mulheres, embora a opressão da sociedade machista

atinja a maioria. Stabile (1999) nos lembra que “a experiência de sexismo de uma intelectual,

por exemplo, por mais visceralmente que tenha sido vivida, é aliviada [...] em virtude de sua

posição de classe, e é muito diferente da experimentada pela mulher da classe operária ou pela

que vive de esmolas” (p. 149). Além disso, continua a autora, devemos ter em mente que

certos grupos de mulheres se beneficiam com a opressão social de outras e que, assim como

muitos homens, compartilham de práticas racistas, sexistas e homofóbicas.

Assim, a referência aos educandos da EJA como trabalhadores é a mola mestra desta

tese. É esse pressuposto que guia toda a discussão no que concerne às políticas educacionais,

aos programas em análise e às suas propostas curriculares. É com essa perspectiva que

analisamos o campo do currículo escolar e sua relação com as políticas, oficias e não oficiais,

relativas à EJA, bem como examinamos a educação geográfica e o seu papel nos cursos de

EJA.

1.2 O CURRÍCULO ESCOLAR NAS POLÍTICAS DE EJA: CONTROLE, INDUÇÃO OU

DIRETRIZES CONCEITUAIS?

As políticas educacionais são analisadas, em boa parte dos estudos e pesquisas, no que

concerne à formulação do conjunto de leis, normas e regulamentações que sustentam o

sistema nacional de educação escolar. Dentre os elementos constitutivos desta legislação,

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encontramos as políticas de currículo, isto é, o lastro legal e regulador das práticas

curriculares em curso no sistema educacional em geral. Nos últimos dez anos, temos

presenciado iniciativas do poder público que têm como intuito o controle e a indução das

propostas curriculares a serem colocadas em ação nas instituições educativas brasileiras. Tais

iniciativas, levadas a cabo pelo governo federal, em um movimento que ficou caracterizado

como centralizador nas decisões e elaboração das políticas e descentralizador na execução das

ações, se constituíram em clara tentativa de mudança considerável do papel do currículo

escolar no sistema de ensino do país. Dessa forma, o MEC organizava e distribuía para as

escolas brasileiras referenciais curriculares que teriam como função servir de base para a

formulação das propostas pedagógicas das unidades escolares. A partir desse momento, os

PCN, denominação dada a esse conjunto de documentos, passaram a ser examinados pela

produção acadêmica no que se refere às questões que envolveram a sua elaboração, ao jogo de

interesses a que atendem, bem como aos referenciais teóricos e político-filosóficos que

fundamentam o conjunto de suas proposições.

Além dos PCN, fizeram parte desta gama de leis as Diretrizes Curriculares Nacionais

para o Ensino Fundamental9, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio10, as

Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica11, as Diretrizes

Curriculares para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica em Cursos de Nível

Superior12 e as Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos13. Como vemos,

praticamente todos os níveis e modalidades de ensino tiveram regulamentados seus principais

pressupostos básicos.

No caso da EJA, é importante frisar que as suas Diretrizes (DCNEJA) estabeleceram

um novo marco conceitual para a escolarização de jovens e adultos trabalhadores, rompendo

com a idéia de um processo educativo pouco afeito às características do público alvo,

predominante até então. Nesse sentido, é fundamental, para os objetivos deste trabalho, uma

breve análise dos princípios balizadores, presentes neste documento, para a organização

curricular dos Cursos de EJA, denominação dada a partir de então para a escolarização de

Ensino Fundamental e de Ensino Médio voltada para o público trabalhador. Realizar tal tarefa

significa, porém, examinar ao mesmo tempo a trajetória das políticas públicas de EJA com

enfoque nas concepções de currículo que, ao longo do tempo, vêm caracterizando-as. Este

9 Parecer CNE/CEB Nº 4/98 e Resolução CNE/CEB Nº 2/98. 10 Parecer CNE/CEB Nº 15/98 e Resolução CNE/CEB Nº 3/98. 11 Parecer CNE/CEB Nº 17/2001. 12 Parecer CNE/CEB Nº 9/2001. 13 Parecer CNE/CEB Nº 11/2000e Resolução CNE/CEB Nº 1/2000.

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esforço tem como intuito trazer à tona a relação entre a especificidade da EJA e a questão

curricular, isto é, revelar como as políticas de currículo vêm considerando o projeto educativo

para esta modalidade de ensino.

Antes, porém, faz-se necessário um mergulho analítico nas questões relativas às

políticas de currículo em geral. A relação entre política educacional e currículo, a tensão entre

regulação e prática curricular, a implementação de propostas curriculares inovadoras em

sistemas locais de ensino, as diferentes concepções de currículo e a vinculação entre currículo

escolar e projeto de sociedade são também pontos essenciais a serem examinados para a

compreensão do papel do currículo escolar na educação básica. Assim, de uma análise mais

geral, de fundo, das particularidades que envolvem as políticas curriculares passamos ao trato

dado ao currículo da EJA nas políticas educacionais brasileiras.

1.2.1 Questões sobre políticas de currículo

Abordar questões que envolvem as políticas de currículo significa necessariamente

considerar o campo do currículo como esfera de produção de conhecimentos acerca das

concepções, mediações e práticas curriculares que se fazem presentes nas universidades, nos

órgãos públicos e privados de gestão educacional e nas atividades que cotidianamente

exercem professores e alunos nas instituições educativas. Desse modo, cabem aqui algumas

considerações sobre o campo, principalmente no que se refere à concepção de currículo com a

qual pensamos e nos apoiamos para o exame das políticas.

Apple (1999), em sua clássica obra14, associa a problemática do currículo escolar a

intencionalidades que se situam muito além dos aspectos meramente didático-pedagógicos, se

é que podemos falar nestes aspectos sem nos remetermos a questões de âmbito político, social

e econômico. Tais intencionalidades demonstram que o currículo não pode ser produzido a

partir de ações neutras e acima de conflitos e disputas políticas e ideológicas que envolvem

visões de mundo, hegemonia e projetos societários em confronto no seio da sociedade. Assim,

as teorias e os estudos sobre o currículo teriam como propósito fundamental a revelação

dessas relações, constituindo-se em um movimento dialético entre a teoria educacional e

sociológica e a prática pedagógica cotidiana diretamente ligada à seleção e organização dos

conhecimentos que fazem parte do conjunto de saberes escolares. Para o autor:

14 Ideologia e currículo. Porto: Porto Editora, 1999.

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50

Dado que tal selecção e organização envolvem opções sociais e ideológicas conscientes e inconscientes, uma das tarefas essenciais do estudo do currículo será relacionar tais princípios de selecção e organização do conhecimento com a sua estrutura institucional e interactiva nas escolas e, seguidamente, com uma área mais abrangente das estruturas institucionais que rodeiam a sala de aula. Estes pontos em análise transportam múltiplos significados, quando aplicados ao que cada vez mais se denomina por sociologia do conhecimento escolar. Significa que, por razões de ordem metodológica, não se parte do princípio que o conhecimento curricular seja neutro. Pelo contrário, procuram-se interesses sociais que se encontram incorporados na própria forma de conhecimento. Tais pontos implicam ainda que se deva estudar o currículo veiculado nas escolas (p. 43).

Os interesses a que Apple se refere não se relacionam somente aos saberes que devem

ou não ser trabalhados nas escolas em forma de conhecimento oficial. Embora seja este o

principal enfoque dos estudos do autor, consideramos também como currículo o conjunto de

procedimentos que permeiam a organização das instituições educativas e que vão desde a

divisão do tempo em disciplinas escolares, passando pela temporalidade do fluxo escolar

(séries, ciclos, fases, módulos etc.), até a forma de gestão institucional implementada. Essa

concepção de currículo permite que encaremos as políticas a ele relacionadas de forma mais

ampla, isto é, as políticas de currículo devem ser tomadas em sua estreita ligação com as

políticas educacionais mais gerais, aquelas que definem não apenas o que deve ou não ser

estudado nas escolas, mas também a sua estrutura e forma de funcionamento, bem como o

ideário político-filosófico que serve de lastro às suas ações.

Corrobora essa idéia a constatação de que, em tempos de reformas educativas

associadas às transformações na esfera produtiva, as políticas educacionais tendem a ser

planejadas e executadas a partir de dois conjuntos: [i] as propostas de mudanças

administrativas mais gerais e de gestão nas escolas e nas redes de ensino; [ii] e os processos

de reestruturação curricular (VIEIRA, 2002), que têm como resultado a elaboração de guias e

propostas curriculares. As implicações dos interesses do capital produtivo nessas reformas são

exploradas mais à frente, mas vale aqui ressaltar o quanto a educação escolar, e o currículo

em particular, tem sido palco e elenco no confronto e na disputa pela direção do projeto de

sociedade e, conseqüentemente, de educação que se quer para as nações.

Cabe salientar, no entanto, que não vemos as políticas de currículo apenas como ações

diretas do Estado sobre as escolas que, nessa visão, não passam de instâncias subordinadas de

implementação dessas ações. Com base no conceito ampliado de Estado, que para Gramsci

(2002a) se integra à sociedade civil e redefine sua politização na direção do capital, o que faz

com que o Estado não defina mais sozinho, ou apenas com a burguesia, as políticas públicas,

entendemos as políticas de currículo, assim como Lopes (2006), como imersas no campo da

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política cultural e “tanto sua análise a partir da derivação dos processos econômicos e de

classe, nos quais o Estado está inegavelmente engendrado, quanto seu deslocamento

fetichizado dessas relações exclui dimensões importantes das lutas sociais para dar sentido a

algumas dinâmicas da cultura e, particularmente, do conhecimento” (p. 37).

No que se refere ao conhecimento, o currículo escolar, problematizado pelas relações

entre saberes e situando-se na confluência de questões políticas e epistemológicas, pode ser

visto também como o processo em que os conhecimentos científicos sofrem um movimento

para se constituírem em conhecimentos escolares. É o que Chevallard (1991) chama de

transposição didática, isto é, a passagem do saber sábio, produzido na esfera acadêmica, para

o saber a ser ensinado e deste para o saber escolar ou saber ensinado, produzido no âmbito

das escolas. A noosfera (esfera do pensamento), para o autor, é composta pelos que decidem

sobre o que e como os conhecimentos científicos serão transformados em saberes a serem

ensinados/aprendidos nas escolas. Ministérios e secretarias de educação, universidades,

autores de livros didáticos seriam os responsáveis tradicionais por esse caminho de um

conhecimento para o outro. É, portanto, na noosfera que as políticas de currículo mais atuam,

pois é nesse momento que a tradição seletiva de que nos fala Apple (2000) se apresenta.

Ao alertar para o caráter não linear desse processo, Lopes (2005) o denomina de

mediação didática, uma vez que para a autora esse termo melhor designa o sentido dialético

do “processo de constituição de uma realidade através de mediações contraditórias, de

relações complexas, não imediatas” (p. 7). Tomando então a mediação didática como

processo de “seleção feita por alguém, da visão que algum grupo tem do que seja

conhecimento legítimo”, devemos considerar que esta nos revela “conflitos, tensões e

compromissos culturais, políticos e econômicos que organizam e desorganizam um povo” (p.

53). Estes elementos, porém, não costumam estar evidentes nos produtos desse processo, ou

seja, nos guias e propostas curriculares, bem como nos livros e manuais didáticos. Para a

autora, esta situação se configura em algo grave, pois a idéia de neutralidade e naturalização

da seleção curricular acaba por prevalecer, já que:

O maior problema em questão é o processo de apropriação do conhecimento pela escola, a retirada dos conceitos de sua historicidade e problemática. Os saberes ensinados aparecem como saberes sem produtores, sem origem, sem lugar, transcendentes ao tempo. Não é sem motivo que os livros didáticos omitem referências bibliográficas e históricas e mesmo referências sobre seus próprios autores. Ensinamos apenas o resultado, isolando-o da história de construção do conceito. Portanto, retiramo-lo do conjunto de problemas e questões que o originaram (p. 7).

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52

Entretanto, é o conceito de recontextualização, formulado por Bernstein (1996), que, a

nosso ver, mais ajuda na compreensão de outras dimensões da produção do saber a ser

ensinado, isto é, do processo que as políticas curriculares engendram e percorrem. Para além

desse primeiro movimento de mediação didática, a recontextualização auxilia também na

análise do segundo processo de mediação: aquele situado entre o saber a ser ensinado e o

saber escolar praticado, em ação. Isto porque, segundo Lopes (2005), esse conceito contribui

justamente para o entendimento das reinterpretações dadas a diferentes textos e documentos

quando de sua circulação pelo meio educacional:

São orientações de agências multilaterais que se modificam ao serem inseridas nos contextos dos Estados-nação; são orientações curriculares nacionais que são modificadas pela mediação de esferas governamentais intermediárias e das escolas; são políticas dirigidas pelo poder central de um país que influenciam políticas de outros países; são ainda os múltiplos textos de apoio ao trabalho de ensino que se modificam nos contextos disciplinares (p. 53).

Bernstein (1996) afirma que, ao circular pelo corpo social da educação, tais

documentos – oficiais ou não – se fragmentam, criando diferentes situações em que alguns

fragmentos podem ser mais valorizados que outros, ou ainda associados a outros textos. Neste

processo, a ressignificação de seus conteúdos é inevitável. O princípio recontextualizador,

para Bernstein, produz agentes e campos recontextualizadores, sendo estes últimos

diferenciados em campo oficial, criado e dominado pelo Estado, e campo pedagógico,

“composto por educadores nas escolas e universidades, bem como por produtores de literatura

especializada e fundações privadas de pesquisa”. Neste complexo quadro, haveria ainda o

campo internacional, “as relações deste com o Estado, os campos de produção material e

controle simbólico e o campo recontextualizador nas escolas (LOPES, op. cit., p. 54).

A opção pelo conceito de recontextualização procede em função de alguns traços

marcantes do modelo teórico desenvolvido por Bernstein. Em primeiro lugar, a sua

preocupação em “desvelar a complexidade das práticas escolares, percebidas em permanente

articulação com os contextos sociais mais amplos” (LEITE, 2007, p. 22), se aproxima de uma

das intenções presentes neste trabalho que consiste em evidenciar possíveis relações das

propostas curriculares analisadas com os diferentes projetos societários em disputa. Além

disso, a questão crucial para Bersntein, segundo Silva (2002), se refere à relação entre

aprendizagem e posições de classe, entre estruturas de classe e estruturas de consciência. Para

tanto, desenvolve o conceito de código, “conjunto de princípios, de aquisição tácita e social,

que regulam as interações comunicativas [...] conferindo diferencialmente legitimidade e

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53

relevância para os significados propostos pelos sujeitos envolvidos nesse processo” (LEITE,

2007, p. 25). Para Bernstein, é esse “conjunto de regras implícitas [...] que faz a ligação entre

as estruturas macrossociológicas da classe social, a consciência individual e as interações

sociais do nível microssociológico” (SILVA, 2002, p. 74). No contexto da EJA, tais reflexões

do autor têm muito a contribuir para a compreensão da complexa relação pedagógica que se

estabelece entre currículo escolar, alunos trabalhadores e professores da escola básica.

É importante salientar ainda que Bersntein trata, na verdade, do “processo de

recontextualização pedagógica dos discursos produzidos em outros contextos que não os

escolares” (LEITE, op. cit., p. 25), o que pode nos auxiliar na compreensão do movimento de

constituição do conhecimento escolar de geografia em programas voltados para o público

jovem e adulto trabalhador uma vez que:

Qualquer disciplina escolar é recontextualizada ao ser deslocada de seu campo de produção. Há uma seleção de conteúdos, da seqüência e do ritmo em que serão trabalhados na escola. O processo não é derivado da lógica existente no campo da produção desses conhecimentos. O processo de ensino-aprendizagem é um fato social e nele o discurso regulativo fornece as regras da ordem interna do discurso instrucional (SANTOS, 2003, p. 32).

Discurso instrucional, para Bernstein (1996), “diz respeito à transmissão/aquisição de

competências específicas e o discurso regulativo à transmissão de princípios de ordem,

relação e identidade” (p. 297), isto é, instrucional é o discurso específico das disciplinas ou

áreas do conhecimento enquanto são regulativos os discursos que produzem, mantêm ou

legitimam as relações sociais que permitem a transmissão e a aquisição de conhecimentos. De

acordo com o pensamento do autor, o discurso instrucional é fruto do movimento entre o

contexto de produção do discurso, o contexto primário, e o contexto de reprodução do

discurso, o contexto secundário. Tal movimento, a relocação do discurso, é dado pelo que o

autor chama de contexto recontextualizador, isto é, o contexto “que estrutura um campo ou

sub-conjunto de campos, cujas posições, agentes e práticas estão preocupados com os

movimentos de texto/práticas do contexto primário da produção discursiva para o contexto

secundário da reprodução discursiva” (ibid., p. 90-91). Esses campos recontextualizadores,

como dito anteriormente, são formados por departamentos especializados do Estado,

autoridades educacionais locais, departamentos de universidades e faculdades de educação,

publicações especializadas em educação, bem como campos não especializados em educação,

mas que exercem influência tanto sobre o Estado quanto nas práticas educativas.

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Como vemos, a produção do que podemos chamar de conhecimento oficial, mediado

por questões culturais, políticas e econômicas em sua constituição enquanto currículo escolar

e veiculado pelas escolas, passa por complexos processos que, ao fim e ao cabo, revelam as

relações de poder presentes nas políticas de currículo. É nesse sentido que Apple (1997)

afirma que:

As políticas do conhecimento oficial são o resultado de acordos ou compromissos. Elas não são usualmente impostas, mas representam os modos pelos quais os grupos dominantes tentam criar situações nas quais os compromissos que são estabelecidos os favorecem. Os compromissos ocorrem em diferentes níveis: ao nível do discurso político e ideológico, ao nível das políticas de Estado e ao nível do conhecimento que é ensinado nas escolas, ao nível das atividades diárias de professores e estudantes nas salas de aula e ao nível de como entendemos isso tudo (p. 24).

As políticas de currículo produzem uma série de artefatos que têm como intuito

orientar a programação das escolas, o projeto político-pedagógico e o trabalho educativo em

geral. Entre documentos que se auto-intitulam parâmetros, guias, propostas e mesmo livros e

manuais didáticos, o currículo escolar oficial estabelece princípios, diretrizes, e, dependendo

da intenção do artefato, indica os assuntos e temas que devem ser ensinados, prescrevendo

ainda a distribuição, organização e hierarquização destes no tempo escolar. Os mais

inovadores também propõem novas divisões dos tempos e dos espaços escolares, alteram a

configuração e formação das turmas de estudantes, havendo casos, inclusive, de ruptura com a

própria estrutura disciplinar, algo extremamente complexo para tradições fragmentárias do

conhecimento escolar.

Assistimos, no Brasil, nos últimos vinte anos, a diversas reformas educacionais cujas

políticas de currículo estabeleceram diferentes projetos político-pedgágicos, desde

conservadores a (neo)liberais e progressistas. Antes mesmo da elaboração dos PCN, alguns

governos estaduais e municipais implementaram propostas que, pode-se dizer, iam em vários

momentos na contra-mão das políticas oficiais e que questionavam claramente a concepção

do conhecimento oficial produzido na esfera federal. Apple (ibid.) argumenta que, como os

currículos são sempre resultado de acordos, os grupos dominantes precisam levar em conta

algumas preocupações dos menos poderosos. Assim, tais acordos estão sempre sujeitos a

ameaças, possibilitando brechas para a atividade contra-hegemônica (p. 25). Além disso, no

caso brasileiro, a luta dos profissionais da educação por um projeto educativo mais

democrático para o país proporcionou uma legislação mais aberta e inovadora nesse sentido.

A LDB (Lei nª 9394/96), por exemplo, faculta aos sistemas de ensino a discussão e

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elaboração de propostas curriculares próprias, a despeito da indução pretendida pelo MEC de

FHC quando da instauração dos PCN de Ensino Fundamental e de Ensino Médio.

As reestruturações curriculares então colocadas em prática envolveram diversos

municípios e estados brasileiros e trouxeram à tona o conceito de inovação pedagógica, ou

inovação curricular. Várias delas se diziam alternativas ao modelo até então vigente e

considerado de forte vínculo com os pressupostos teórico-metodológicos da chamada escola

tradicional. No entanto, o conceito de inovação deve ser aqui problematizado, já que, desde o

processo de elaboração até a implementação nas unidades escolares, essas propostas em

muitos aspectos se diferenciavam, embora em muitos outros se percebiam consubstanciais

aproximações. Para Arroyo (2003):

[...] apesar de conceitos como inovação pedagógica, mudança curricular e nova escola parecerem coincidentes, nem sempre há acordo quanto à concepção de inovação e às estratégias de mudança entre aqueles que formulam políticas e decidem para a escola e para seus mestres, entre aqueles que pesquisam e teorizam sobre a escola, e aqueles, os professores, que pensam e fazem a escola. Que diferenças e coincidências podemos encontrar? Que têm feito os professores empenhados em renovar a escola? Têm seguido os modelos propostos pelos que decidem? Têm seguido o pensamento crítico dos que pesquisam e escrevem? Em que grau esses modelos e essa produção teórica têm orientado a inovação da prática escolar? (p. 132).

É importante destacar que as propostas consideradas inovadoras assim se auto-

proclamam no que se refere, geralmente, à concepção de currículo e, em alguns casos, à

instauração de instâncias participativas de discussão para a elaboração e para a

implementação das propostas. Com raras exceções, não há, junto ao conjunto de reorientações

pedagógicas, a reestruturação das relações trabalhistas que regem a atividade dos profissionais

da educação. A implantação de um plano de carreira, as negociações em torno das questões

salariais e do melhor sistema de carga horária pensado a partir de cada contexto são pontos

essenciais em qualquer projeto de educação sério e de fato comprometido com profundas

alterações no quadro educacional do país. Como exposto anteriormente, nossa concepção de

currículo não contempla o isolamento das questões pedagógicas em relação às condições de

trabalho e de remuneração dos professores e demais profissionais da educação. Nesse sentido,

ao analisar uma proposta curricular que se diz inovadora, é preciso examinar em que aspectos

ela se considera como tal. Este cuidado nos permite, de antemão, alcançar as prováveis

conseqüências da implantação de suas premissas na prática dos professores.

Em estudo sobre os limites e avanços de propostas curriculares alternativas, Moreira

(2000) localiza dois momentos distintos no que tange à implementação de inovações

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curriculares nas duas últimas décadas. Um primeiro momento diz respeito às propostas que o

autor considerou alternativas desenvolvidas nos anos 1980, marcado pela democratização do

espaço escolar. Aqui, o destaque é dado às propostas dos estados Minas Gerais e do Rio de

Janeiro e do município de São Paulo. O segundo momento teria acontecido ao longo dos anos

1990 e traria como novidade os currículos centrados nas escolas. Moreira se refere, então, aos

projetos de renovação desenvolvidos pelos municípios de São Paulo, Porto Alegre, Belo

Horizonte e Rio de Janeiro.

As reformas educacionais dos anos 1980 foram levadas a cabo por governos de

oposição ao regime militar eleitos em 1982. Nestes governos, muitos intelectuais passaram a

ocupar cargos de gestão nas redes de ensino, com destaque para Guiomar Namo de Mello no

município de São Paulo, Neidson Rodrigues no estado de Minas Gerais e Darcy Ribeiro no

estado do Rio de Janeiro (BARRETTO, 1998; MOREIRA, 1997).

As principais preocupações dessas reformas envolviam o fracasso escolar encontrado

no ensino fundamental e o ensino das crianças das classes populares. Nesse sentido, o

currículo escolar, traduzido na relevância social dos conteúdos, tornou-se alvo da atenção

dessas administrações em contraposição às orientações tecnicistas que prevaleciam nos anos

1970. De acordo com Barretto (1998), vale dizer, portanto, que:

Mais do que em qualquer outro período da história brasileira, o discurso a favor das classes populares passa a fazer parte dos pronunciamentos oficiais das administrações do ensino, dentro do clima segundo o qual a nova ordem social que se queria instalar no país tinha como compromisso resgatar a imensa dívida social com os milhões de excluídos dos benefícios sociais pelo regime autoritário (p. 9).

Para a autora, a ênfase na formação para a cidadania era característica dessas reformas.

O tratamento desse tema nas disciplinas escolares se constituía em forte preocupação de

muitas redes, bem como a criação de canais institucionais de participação como os conselhos

de escola e a eleição para diretores. No entanto, para ela, algumas ressalvas aos reais

resultados desse processo devem ser destacadas, pois:

O discurso a favor das camadas populares na escola acabou entretanto se revestindo de um tom reformista mais do que popular, em face da fragilidade da atuação da sociedade civil frente à prevalência da atuação do Estado, a despeito de toda a mobilização que ocorreu no período. Enquanto proposta de governo, a participação mais ampla da população na formulação das políticas públicas, incitada de cima para baixo a partir da própria administração, foi reduzida e fragmentada, refletindo postulações partidárias antes que interesses populares propriamente ditos e servindo, não raro, a propósitos restritos de recomposição dos grupos dominantes no poder (ibid.., p. 15).

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As propostas desenvolvidas a partir dos anos 1990 e apontadas por Moreira (2000)

como inovadoras foram marcadas pela gestão municipal do Partido dos Trabalhadores (PT),

com exceção do município do Rio de Janeiro15. Nestas experiências não se encontravam mais

seleções de conteúdos disciplinares pelo viés crítico, marca das propostas do município de

São Paulo e de Minas Gerais nos anos 1980. Em vez de currículos prescritos, as quatro

propostas entenderam que a definição dos conteúdos deveria ocorrer no âmbito dos projetos

político-pedagógicos das escolas e às Secretarias de Educação caberia o estabelecimento de

princípios gerais orientadores do processo. São Paulo16 e Porto Alegre17 apostaram na

interdisciplinaridade tomando como base a concepção pedagógica de Paulo Freire. Em linhas

gerais, as propostas anunciavam a necessidade de cada unidade escolar realizar estudos da

realidade local para que a partir desta investigação se extraíssem os temas geradores. Tais

temas desafiariam as disciplinas escolares a contribuir para a compreensão de determinada

problemática e a superação dialética dos saberes de senso comum trazidos pelos estudantes.

Porto Alegre, em função da continuidade das gestões que implementaram essa perspectiva de

trabalho, aprofundou a proposta chegando a trabalhar com os complexos temáticos, na

verdade um aperfeiçoamento do trabalho com temas geradores preconizados pela obra de

Paulo Freire.

Belo Horizonte18 e Rio de Janeiro apresentaram iniciativas diferenciadas. Naquele

município, a Escola Plural, denominação dada ao conjunto de propostas implantadas, preferiu

adotar a transversalidade de conhecimentos como pilar básico do projeto. Os saberes

transversais, segundo a proposta, atravessariam diferentes campos do conhecimento, não se

identificando com apenas um deles. No Rio de Janeiro, a Multieducação, como ficou

conhecida a proposta curricular, se constituiu em um complexo jogo articulador de princípios

educativos (meio ambiente, trabalho, cultura e linguagem) e núcleos conceituais (identidade,

tempo, espaço e transformação). O resultado prático, pode-se dizer, foi desastroso, já que as

condições mínimas necessárias ao menos para que a proposta fosse discutida não foram

disponibilizadas a contento para as escolas, o que praticamente inviabilizou sua real adoção.

Essa situação nos remete ao alerta de Arroyo (2003) em relação ao real caráter inovador das

de algumas propostas. A inovação se dá em que sentido? Que pressupostos básicos podem ser 15 O primeiro governo de César Maia foi o responsável pela proposta curricular em questão. O prefeito foi eleito pelo PDT, tendo se transferido para o PFL e para o PTB posteriormente. Hoje, em seu terceiro mandato, o prefeito se encontra novamente nos quadros do PFL, atualmente sob a alcunha de Partido Democratas (DEM). 16 Tratamos aqui somente do governo de Luíza Erundina (1989-1992). 17 Este município vivenciou durante quatro gestões seguidas do PT na Prefeitura. Embora haja algumas diferenças entre cada uma delas, tomamos aqui o todo dessas administrações. 18 Desde 1993, Belo Horizonte é governada pela coligação PT-PSB.

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considerados como inovadores? Obviamente, as respostas podem ser muitas e variam de

acordo com os referenciais de cada um dos que as analisam. Porém, se a inovação se encontra

somente no documento, nos textos dos quais nos fala Bernstein, já encontramos grandes

chances de algo pouco sério e que se localiza não mais que no conjunto de intenções não

concretizáveis.

Para Moreira (2000), no entanto, as quatro propostas merecem destaque em função do

deslocamento verificado das prescrições centralmente elaboradas para a adoção de princípios

gerais a partir dos quais docentes e comunidade escolar, em geral, passariam a elaborar o

currículo em cada escola (p. 124). O autor também destaca a relevância das teorias críticas

como lastro para as propostas apresentadas. A pedagogia dos conteúdos, ou pedagogia

histórico-crítica, e a pedagogia libertadora de Paulo Freire se constituíram nos fundamentos

principais para essas reformulações curriculares, tendo sido os pressupostos freireanos aqueles

mais utilizados quando se enfatizava a necessidade da integração curricular. Vale registrar

aqui que iniciativas como essas se espalharam por diversos municípios médios onde partidos

ditos populares passaram a governar. Utilizando-se, a exemplo de Porto Alegre e São Paulo, a

perspectiva freireana, destacamos Angra dos Reis (RJ)19, Caxias do Sul (RS), Chapecó (SC),

Vitória da Conquista (BA), dentre tantos outros que os limites e objetivos deste texto não

permitem elencar.

Embora essas experiências tenham relevante significado para a história das políticas

educacionais brasileiras, é certo que temos vivenciado uma forte evidência da relação entre os

interesses dos grupos sociais dominantes e a política nacional de currículo. Estamos nos

referindo à elaboração e divulgação dos PCN para o Ensino Fundamental e para o Ensino

Médio a partir de 1997. Essa iniciativa do governo federal de então demonstrou a sua opção

pelos preceitos do neoliberalismo. Era a nova pedagogia da hegemonia tomando corpo na

educação brasileira, cujos efeitos vêm sendo denunciados já faz tempo (APPLE, 2003;

FRIGOTTO, 1998; GENTILI, 1995; NEVES, 2005), o mesmo acontecendo com as

influências desse ideário político nos PCN (SPÓSITO, 1999; FALLEIROS, 2005;

OLIVEIRA, 1999).

Em um processo que pode parecer paradoxal, já que a intenção de se homogeneizar o

que se ensina nas escolas tenha sido desafiada “pela liberdade de que desfrutam estados e

municípios em uma república federativa, liberdade explorada ao máximo por governadores,

19 Vale lembrar que nossa dissertação de mestrado analisa a proposta curricular de base freireana utilizada no Ensino Regular Noturno de algumas escolas da rede de ensino de Angra dos Reis nos anos de 1999 e 2000 (SANTOS, 2003).

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prefeitos e secretários de educação que se opõem ao governo federal”20 (MOREIRA, 2000,

p.125), a força e influência dos PCN no currículo escolar brasileiro não deve ser

negligenciada. Primeiramente em função de ser um documento produzido no âmbito do órgão

máximo da educação no país, o que por si só o investe de extrema autoridade no que concerne

à questão curricular. Além disso, como denunciou o corpo de professores da Faculdade de

Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996), o detalhamento e o

desdobramento efetuados no documento não deixam dúvidas:

Está claro que se trata verdadeiramente do estabelecimento de um Currículo Nacional. Ora, torna-se inaceitável, no presente contexto da discussão educacional brasileira, a imposição de um Currículo Nacional, o qual, por sua própria natureza, tenderá a ser uniformizador, hegemonizador e burocratizante. No presente caso, essas características ficam agravadas pela ausência de uma discussão ampla envolvendo todos os segmentos sociais interessados, discussão que esteve evidentemente ausente do processo que resultou nos presentes PCN (p. 113).

Exercendo papel fundamental na conformação do novo sujeito coletivo do

neoliberalismo da Terceira Via21, em consonância com as necessidades e interesses do capital

de acumulação flexível, o aparelho educacional, através das reformas levadas a cabo a partir

de meados dos anos 1990, tem sido levado a contribuir para a criação e difusão de uma nova

cidadania política, baseada na colaboração de classes (NEVES, 2005). Dentre essas políticas

educacionais neoliberais, os PCN podem ser considerados, segundo Neves (ibid.), como das

expressões mais emblemáticas. Falleiros (2005) esclarece que novo cidadão é esse e ajuda a

compreender a tarefa da educação escolar nesse processo:

O “novo homem”, nessa visão de mundo, deve: sentir-se responsável individualmente pela amenização de uma parte da miséria do planeta e pela preservação do meio ambiente; estar preparado para doar uma parcela do seu tempo livre para atividades voluntárias nessa direção; exigir do Estado em senso estrito transparência e comprometimento com as questões sociais, mas não deve jamais questionar a essência do capitalismo. À escola, portanto, é transmitida a tarefa de ensinar as futuras gerações a exercer uma cidadania “de qualidade nova”, a partir da qual o espírito de competitividade seja desenvolvido em paralelo ao espírito de solidariedade, por intermédio do abandono da perspectiva de classe e da execução de tarefas de caráter tópico na amenização da miséria em nível local (p. 211).

20 Obviamente, nos referimos aqui ao governo FHC, embora possamos dar o mesmo tratamento ao governo Lula, que, até o último ano de seu mandato (2006) não havia alterado o documento nem indicado referenciais alternativos a ele. 21 Para Lima e Martins (2005), a Terceira Via se constitui em um projeto que “parte das questões centrais do neoliberalismo para refiná-lo e torná-lo mais compatível com sua própria base e princípios constitutivos, valendo-se de algumas experiências concretas desenvolvidas por governos de países europeus” (p. 43). Segundo os autores, a Terceira Via, sistematizada por Anthony Giddens, tem como objetivo a reforma do capitalismo, defendendo, porém, com vigor, a idéia de mercado, “pois uma economia forte se faria com um mercado forte e não pelo dirigismo estatal” (p. 45). Por isso o termo neoliberalismo da Terceira Via.

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A autora justifica as estreitas relações dos PCN com o projeto neoliberal em, pelo

menos três aspectos. Em primeiro lugar, em função de serem eles baseados em propostas

semelhantes realizadas sob governos neoliberais22 e financiado por organismos internacionais,

verdadeiros vetores de expansão dos pressupostos do neoliberalismo: o Banco Mundial e o

PNUD/Unesco. Além disso, no caso do Ensino Fundamental, Falleiros destaca a escolha

pelos temas transversais como exemplo da associação à visão de mundo hegemônica. Não em

função da transversalidade em si, mas sim no sentido de que as indicações para se trabalhar

tais temas transversais23 “não contemplam as múltiplas determinações históricas, sociais e

culturais; ao contrário, pautam-se em um ‘como fazer?’ visando à promoção dos valores da

conservação das relações sociais vigentes e à amenização dos danos por elas provocados” (p.

232). Por fim, observando o documento do Ensino Médio, a autora atribui ao currículo por

competências, orientação dada pela proposta para a seleção dos conteúdos das áreas do

conhecimento, a dívida para com o projeto hegemônico. “O enfoque nas competências é

proposto objetivando a adaptação dos novos homens às instáveis condições sociais e

profissionais que marcam o início deste milênio” (p. 223) e que devem ser formados

socioafetivamente por competências muito menos de ordem técnica e mais de ordem

psicológica. Isso porque:

Não se trata de considerar “competências” como tendo um sentido mais restrito que qualificação; mas certamente trata-sede um atendimento mais estrito (incluindo elementos atitudinais, características da personalidade, elementos menos mensuráveis objetivamente) das necessidades do capital, por um lado, e a um preparo adequado aos novos tempos em que é preciso encontrar alternativas ao desemprego, por outro (PAIVA, 2002, p. 60).

Em outro momento deste trabalho abordaremos as contribuições específicas da

disciplina geografia para o projeto em pauta. Apenas adiantamos, a título de exemplo da

completude com que foi abarcado tal empreendimento, que o ecletismo teórico no que se

refere às correntes do pensamento geográfico e a opção por uma geografia de fundamentação

fenomenológica, na qual se supervaloriza o comportamento e a percepção do indivíduo em

relação ao espaço vivido sem se reconhecer a sua condição de classe (OLIVEIRA, 1999;

ROCHA, 2003), demonstram mais um aspecto revelador dos compromissos ideológicos dos

PCN.

22 Para a elaboração do documento a Secretaria de Ensino Fundamental (SEF) contou com a colaboração direta de César Coll, um dos principais mentores da reforma curricular, também neoliberal, da Espanha. 23 São eles: ética, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual, trabalho e consumo.

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As políticas de currículo na modalidade EJA, obviamente, não escapam a esse mesmo

jogo de disputa e confronto entre distintos projetos societários. A trajetória das políticas

educacionais para a escolarização dos trabalhadores revela o quanto é conturbada a

compreensão desse direito, só recentemente reconhecido por lei e garantido de fato. O

crescimento dos Cursos de EJA e o conseqüente recrudescimento da elaboração de propostas

curriculares de diferentes matizes comprovam não só o resultado legal da luta de muitos

militantes que há tempos clamam pela instauração de ações mais efetivas do poder público em

relação à oficialização da EJA, mas podem atestar também o crescente interesse do capital na

escolarização dos trabalhadores jovens e adultos a partir do seu projeto hegemônico de

educação e de sociedade. A seguir, examinaremos mais detidamente as especificidades das

políticas curriculares na EJA.

1.2.2 Políticas públicas de EJA e concepções de currículo

A trajetória das políticas públicas da EJA revela a luta pelo reconhecimento do direito

à escolarização dos trabalhadores em uma perspectiva própria no que se refere à oferta,

organização e referenciais curriculares e didáticos. Importantes referências bibliográficas

contribuem para a compreensão desse processo histórico24 em sentido amplo, o que nos

permite, neste trabalho, olhar para essa trajetória focalizando seus aspectos curriculares.

Assim, a breve análise que se segue pretende identificar como a questão curricular vem sendo

tratada nas iniciativas propostas para a EJA.

Embora compreendamos o currículo, conforme dito anteriormente, como um campo

mais vasto que a seleção e produção de assuntos e temas a serem ensinados / aprendidos em

atividades educativas, abarcando também, dentre outros aspectos, a organização dos tempos e

espaços escolares e a prática curricular em ação efetuada no interior das instituições,

priorizamos aqui sua dimensão cognitiva. Cabe-nos identificar como, ao longo do tempo, o

conhecimento escolar tem sido encarado e organizado, a partir de que concepções tem se

elaborado propostas curriculares para essa modalidade e que relações podemos estabelecer

entre estas e outros aspectos de ordem cultural, social, política e econômica que envolvem a

sociedade como um todo. Alertamos também para o fato de que este trabalho concentra seus

esforços no Segundo Segmento do Ensino Fundamental, nível de ensino nem sempre objeto

das políticas educacionais de EJA. Por isso, o enfoque dado para além do processo de

24 Destacamos aqui as obras de Paiva (1983) e Beisiegel (2004).

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alfabetização inicial, mesmo quando este se configurava como único objetivo das ações

educativas voltadas para os trabalhadores. Vale lembrar ainda que não se pretende

desenvolver análises exaustivas e sim apenas apresentar um esboço do quadro das políticas de

currículo na EJA.

A EJA se caracteriza por iniciativas nem sempre restritas às instituições oficiais de

ensino. Na tentativa de ultrapassar os limites impostos pelas políticas oficiais e atender a

demanda reprimida pelo acesso à alfabetização e ao conhecimento sistematizado, várias têm

sido as experiências que se desenvolvem em instâncias não escolares. Essa é a marca da

educação de adultos ao longo da história da educação brasileira, inclusive nos dias atuais,

quando vemos ações mais efetivas por parte do Estado. Além disso, outros espaços de

produção de saber, que perseguem outros objetivos, se constituem, complexificando, assim, o

universo de situações que envolvem o processo de ensino / aprendizagem de jovens e adultos

trabalhadores. Em outras palavras:

A educação de jovens e adultos é um campo de práticas e reflexão que inevitavelmente transborda os limites da escolarização em sentido estrito. Primeiramente, porque abarca processos formativos diversos, onde podem ser incluídas iniciativas visando a qualificação profissional, o desenvolvimento comunitário, a formação política e um sem número de questões culturais pautadas em outros espaços que não o escolar (DI PIERRO et al., 2001, p. 58).

Isso quer dizer que, ao nos referimos à EJA, devemos levar em conta uma série de

complexas relações que envolvem a aquisição de saberes por parte de seu público. Mesmo em

programas oficiais de ensino essa dimensão deve ser observada, sem a qual corremos o risco

de abandonar toda trajetória histórica percorrida pela tentativa de possibilitar o acesso da

classe trabalhadora a outras interpretações e visões de mundo para além daquelas construídas

na luta pela sua sobrevivência.

Essa trajetória a qual nos referimos se inicia ainda em tempos coloniais, já que, de

acordo com Beisiegel (2004), a atividade catequética dos jesuítas se voltava sobretudo para

adolescentes e adultos. Porém, se pensarmos nas preocupações efetivas em relação “às

necessidades de proporcionar instrução aos adultos iletrados, as disposições legais sobre a

questão e mesmo as primeiras classes noturnas de adultos datam já dos tempos do Império”

(ibid., p. 71). Essas, preocupações, no entanto, só se transformaram em políticas oficiais a

partir da década de 1930, já no período republicano, pois, para o autor:

[...] durante essa primeira fase, o ensino de adultos não chegava efetivamente a aparecer como uma educação que se procurava levar a toda a coletividade. As

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disposições legais a propósito dos cursos, além de fragmentárias, eram vagas, raramente chegavam a configurar com compromisso das administrações regionais quanto à criação e à expansão dos serviços. Os cursos instalados por iniciativa de particulares, por sua vez, só atendiam àquelas regiões onde a existência de uma procura comportava a sobrevivência dos empreendimentos. Por isso mesmo, as poucas escolas existentes concentravam-se nas áreas urbanas (ibid., p. 78).

Quando Beisiegel considera os anos 1930 como marco inicial das políticas concretas

para a educação de adultos talvez se refira à Constituição de 1934, que a fixou na idéia de um

plano nacional de educação. No entanto, o próprio autor, além de outras interpretações

(AÇÃO EDUCATIVA, 1999), atribui ao período final do Estado Novo – meados dos anos

1940 – a visão do analfabetismo das grandes massas de adultos como um problema nacional

por parte dos dirigentes da nação. É a partir de dados levantados pelo INEP, criado em 1938,

que foi estabelecido o Fundo Nacional de Ensino Primário, em 1942, prevendo o alargamento

da rede de educação popular, incluindo o ensino supletivo para adolescentes e adultos

analfabetos. Com os recursos deste fundo, o então Ministério da Educação e Saúde deveria,

através de um conjunto de iniciativas que ficou conhecido pela denominação geral de

Campanha de Educação de Adultos, instalar classes de ensino supletivo por todo o país. Tal

campanha se inicia em 1947 e prevê a sua atuação até 1954 (ibid.). Comandada, em sua

primeira fase (1947-1950), por Lourenço Filho, trazia os marcos da perspectiva de uma

educação fundamental para todos25, incluindo aí mais que a simples transmissão de técnicas

elementares da leitura e da escrita.

[...] tratava-se de uma educação de base, ou educação fundamental, entendidas como o processo educativo capaz de proporcionar a cada indivíduo os instrumentos indispensáveis da cultura de seu tempo, em técnicas que facilitassem o acesso a essa cultura – como a leitura, a escrita, a aritmética elementar, noções de ciências, de vida social, de civismo e de higiene – e com as quais, segundo suas capacidades, cada homem pudesse desenvolver-se e procurar melhor ajustamento social. Esse processo educativo não poderia limitar-se à simples alfabetização (BEISIEGEL, 1997, p. 31).

Vemos, portanto, uma preocupação com os aspectos curriculares dessa primeira

iniciativa oficial de educação de jovens e adultos, ainda que em forma de campanha, o que a

marcava por seu caráter efêmero, responsável pela falta de continuidade das ações, a despeito

de seus relativos bons resultados. Paradoxalmente, de acordo com Di Pierro, Joia e Ribeiro

25 Essa perspectiva é atribuída por Beisiegel (1997), à influência da UNESCO, que, desde a sua criação, em 1945, vinha incentivando a realização de programas nacionais de educação de adultos analfabetos com a perspectiva da educação fundamental, “voltada a constituir-se em um fundo comum integrador de toda a humanidade, [e que] por isso mesmo implicava conteúdos amplos e flexíveis, de realização variável segundo as características peculiares dos diferentes agrupamentos” (p. 91).

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(2001), tal campanha não chegou a produzir nenhuma proposta metodológica própria para as

características do público adulto, nem um paradigma pedagógico específico para a

modalidade em questão. Segundo os autores, isso só viria a ocorrer no início dos anos 1960,

quando um conjunto de iniciativas oficiais e não oficiais26, em sua maioria concentradas na

região Nordeste, se destacaria no cenário da educação de adultos no Brasil, até este momento

entendida como processo inicial de alfabetização, contendo alguns poucos elementos de pós-

alfabetização.

Tais iniciativas configuraram a instauração de um paradigma educativo voltado para

as características socioculturais das massas trabalhadoras. Dentre elas, destacou-se o

Movimento de Cultura Popular (MCP), estabelecido a partir da elaboração de um plano de

escolarização para crianças e adolescentes carentes pela Prefeitura da Cidade de Recife (PE),

então governada por Miguel Arraes, em 1960. Indicada para preparar uma proposta concreta,

uma equipe liderada por Germano Coelho27 (2002) formula o MCP, um verdadeiro

“movimento em marcha”, já que não foi pensado somente para crianças e adolescentes, mas

igualmente para adultos. Sua meta previa elevar o nível cultural do povo, “preparando-o para

a vida e para o trabalho. E [nas palavras do próprio idealizador] com um grande nome, que

[ouviu], pela primeira vez, na Communauté de Travail Boimondau, herdado de Peuple et

Culture: Movimento de Cultura Popular” (ibid., p. 47). Segundo o autor, é no interior desse

movimento que nasce o chamado “método” Paulo Freire, pois o MCP instituía os círculos de

cultura, grupos populares que se reuniam com educadores nos Centros de Cultura, e em um

desses círculos teria surgido o paradigma que mais tarde influenciaria inúmeros projetos

educativos para a classe trabalhadora. A programação curricular dos círculos vinha de uma

consulta aos grupos que estabeleciam os temas a serem debatidos, cabendo aos educadores

tratar a temática que o grupo propunha (ibid., p. 59). De acordo com Gadotti (1996 apud

COELHO, ibid.):

[...] os resultados obtidos nesse trabalho com grupos populares no MCP levaram Paulo Freire a propor a mesma metodologia para a alfabetização. Se é possível fazer isso, alcançar esse nível de discussão com grupos populares, independentemente de eles serem ou não alfabetizados, por que não fazer o mesmo

26 Tradicionalmente, a literatura da área inclui nesse rol de iniciativas a Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler, realizada no âmbito da prefeitura de Natal (RN), entre 1961 e 1964; o Movimento de Educação de Base (MEB), desenvolvido através da CNBB, de 1961 a 1966; e os Centros Populares de Cultura (CPC), levados a cabo pela União Nacional dos Estudantes (UNE). Articuladas a grupos populares organizados e movimentos sociais da época, essas experiências tinham como intenção a alfabetização e a produção cultural em uma perspectiva popular. 27 Germano Coelho havia sido nomeado por Arraes, em 1960, diretor executivo do Departamento de Documentação e Cultura (DDC) da Prefeitura de Recife (COELHO, 2002).

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numa experiência de alfabetização? Perguntava-se Paulo Freire. Por que não engajar criticamente os alfabetizandos na montagem de seu sistema de sinais gráficos enquanto sujeitos dessa montagem e não enquanto objetos dela? (p. 59).

A partir dessa premissa, uma série de materiais didáticos, como cartilhas de

alfabetização e livros de leitura, foram produzidos levando-se em conta o mundo adulto e

associando a aquisição de saberes escolares à emancipação e conscientização política,

(FÁVERO, 1986, 2004). O Livro de Leituras para Adultos, elaborado pelo MCP, em 1962, e

suas diferentes adaptações para outros projetos de alfabetização de adultos – como a

Campanha de Pé no Chão também se Aprende a Ler (1963), a Campanha de Alfabetização de

Adultos da UNE (1962), e o também livro de leituras Viver é lutar, do MEB – são alguns

exemplos de materiais didáticos que se sobrepunham tanto à produção estatal quanto à

produção comercial, esta praticamente inexistente à época, principalmente nos moldes

propostos por esses movimentos. Em uma apurada análise desses materiais, Fávero (1986)

considera que:

Além dos aspectos inovadores – no que diz respeito ao método e ao conteúdo sócio-político que está presente em todos esses livros de leitura e cartilhas – há uma característica comum a todos eles: destinam-se a adultos de zonas urbanas, residindo em favelas ou mocambos, em geral áreas pobres de cidades [com exceção do MEB, mais voltado para o espaço rural]. As cartilhas e os livros eram veículos de alfabetização e de fixação dos mecanismos de leitura; mas eram também instrumentos de doutrinação e conscientização. Não supunham um falso mundo de igualdade e bem-estar; revelavam as desigualdades e os problemas básicos, de forma que a educação não fosse uma superposição à vida e ao trabalho; estabeleciam íntimo relacionamento entre o ensino e as condições de vida do adulto analfabeto e, nesse sentido, iniciavam efetivamente um processo de ‘emancipação do homem’ (p. 287).

A questão curricular, portanto, estava posta nas propostas e nos seus respectivos

materiais didáticos, tendo Freire, por exemplo, aprimorado sua concepção ao longo dos anos

seguintes, principalmente no período de exílio do país em função do golpe militar de 1964,

que não só destituiu o MCP como a maior parte dessas iniciativas que marcaram os primeiros

anos daquela década.

Mesmo com a adesão a algumas categorias marxistas a partir desse momento, Freire

(1987) recomenda o diálogo como princípio educativo para o que ele chama de prática da

liberdade. Diz ele que “nosso papel [de educador] não é falar ao povo sobre a nossa visão do

mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa [pois] Temos de

estar convencidos de que a sua própria visão do mundo, que se manifesta nas várias formas

de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui” (p. 87). Diálogo entre

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66

educador e educandos, entre saber popular e saber científico, sistematizado, organizado,

próprio da instituição escolar. “Esta inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a

inquietação em torno do conteúdo programático da educação”, reforça Freire (p. 83). Nessa

busca sobre o que dialogar, o trabalho educativo deve mergulhar num processo de

investigação da realidade, cujo objetivo maior é chegar ao que Freire chama de “universo

temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores” (p. 87). Esses temas deveriam ser

então problematizados, num movimento de revelação do conflito surgido a partir do

confronto entre os saberes que os interpretam. A seleção do conteúdo programático,

dimensão do currículo escolar destacada nessa seção, teria como base, portanto, os assuntos

necessários para a superação do problema e para a construção da práxis.

Em uma contundente crítica à concepção freireana, Paiva (1986) associa essa

perspectiva ao que ela chama de tradução pedagógica do populismo católico nos anos 1960,

relaciona-a aos pressupostos de Álvaro Vieira Pinto e questiona as premissas do que ficou

conhecido, a partir do pensamento de Freire, por educação libertadora. Para a autora:

A elevação do vivido à condição de fundamento da verdade e a idealização das camadas populares e do seu saber são duas faces da mesma moeda. À autoridade do intelectual, apoiado na ciência, se oporia a autoridade do povo, apoiado na vivência, no saber que ela lhe proporciona. [...] Como se vê, trata-se de uma concepção irracionalista de ciência, firmemente ancorado sobre um pensamento indutivo, colada na experiência concreta, atada ao empírico, que não pode deixar de trazer à mente do leitor as posições características do romantismo do século passado [século XIX]. Ela traz consigo uma relativização do conhecimento que implica a negação da possibilidade de uma abordagem científica da realidade social (p. 256).

Com a abordagem pedagógica e curricular freireana se expandindo, mesmo na

clandestinidade em função da ditadura militar, e indo além das fronteiras da alfabetização de

adultos, embates como esse eram comuns entre educadores progressistas. No entanto, é

somente nos anos 1980, como conseqüência da maior liberdade de expressão que resultara da

abertura política pós-ditadura, que o meio educacional brasileiro assistiria à retomada de

importantes debates teóricos congelados durante as décadas de repressão. Assim, duas dessas

tendências da corrente do pensamento educacional crítico passaram a polarizar as discussões:

a pedagogia crítico-social dos conteúdos, mais tarde denominada por Dermeval Saviani de

pedagogia histórico-crítica; e a educação libertadora, originária da obra de Paulo Freire e

também chamada por seus seguidores de educação popular.

A pedagogia histórico-crítica, tendência curricular na qual Paiva (ibid.) se filia, tem

como premissa básica a idéia de que deve ser garantido pelo Estado o acesso total da classe

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67

trabalhadora à escola pública para que esta possa ter condições de se libertar das amarras da

ignorância intelectual e se tornar consciente de sua condição social. Assim, poderia lutar com

mais clareza e convicção contra a opressão a qual é submetida. O caráter emancipatório é

evidente e para tal intento, a função da escola deveria ser exclusivamente possibilitar o

domínio por todos do conhecimento elaborado, universal e sistematizado:

[...] Essa transformação é o processo por meio do qual se selecionam, do conjunto do saber sistematizado, os elementos relevantes para o crescimento intelectual dos alunos e organizam-se esses elementos numa forma, numa seqüência tal que possibilite a sua assimilação. Assim, a questão central da pedagogia é o problema das formas, dos processos, dos métodos; certamente, não considerados em si mesmos, pois as formas só fazem sentido quando viabilizam o domínio de determinados conteúdos (SAVIANI, 2003, p. 75).

Vê-se, portanto, que não há preocupação sobre qual saber pode ser considerado mais

legítimo e próprio para a emancipação das classes populares. Essa tendência não vê separação

entre o saber erudito, próprio da classe dominante, e o saber popular, pois, segundo Saviani

(ibid.) “nem o saber erudito é puramente burguês, dominante, nem a cultura popular é

puramente popular. A cultura popular incorpora elementos da ideologia e da cultura

dominantes que, ao se converterem em senso comum, penetram nas massas” (p. 79).

Moreira (1997) resume o embate travado entre as duas tendências ao dizer que os

conteudistas, como também eram chamados os seguidores da pedagogia histórico-crítica,

acusam os educadores populares de se restringirem à cultura original dos educandos, além de

desvalorizarem a escola e privilegiarem em seus discursos a educação não formal. Já os

educadores populares afirmariam que os conteudistas atribuiriam um peso muito grande ao

saber elaborado e à cultura dominante, enfatizando muito mais a transmissão do saber que a

sua construção e não questionando o papel da escola burguesa na emancipação da classe

trabalhadora. Para o autor, “a conseqüência é que a discussão estacionou, o que [dificultou] a

superação das limitações e das falhas tanto da pedagogia dos conteúdos como da educação

popular” (p. 180).

Não podemos, porém, deixar de ressaltar a importância que a corrente crítica do

pensamento educacional, expressa principalmente através dessas duas tendências, teve no

desenvolvimento teórico-metodológico da educação em geral. Sua maior contribuição se deve

à recusa de um discurso pedagógico técnico e supostamente neutro, predominante no período

militar, e à ênfase no papel da escola enquanto espaço político essencial na formação de

sujeitos mais críticos e conscientes da sua realidade social.

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Podemos dizer, contudo, que esse debate se encontrava muito distante de boa parte dos

programas educativos que atendiam o público trabalhador, que se realizavam através do

MOBRAL, até meados dos anos 1980, e na forma de ensino supletivo, ambos frutos da

política educacional dos militares para a escolarização de adultos. Durante esse período, a

EJA passa por transformações significativas no que tange à sua oferta por parte do poder

público. Em 1969, o governo federal organizou o MOBRAL, programa de proporções

nacionais, herdeiro das velhas campanhas de alfabetização e, por isso mesmo, com pouca

articulação com o sistema oficial de ensino básico28. A partir de 1971, com a aprovação da

Lei 5.692/71, foi instaurado o ensino supletivo, que:

Pelas suas características, representou uma inflexão na educação de jovens e adultos no Brasil. Diferentemente das concepções das campanhas e de outros programas anteriores, essa proposta educativa aproximava-se da concepção de educação básica, que foi substituindo a de educação primária até então predominante. A “novidade” estava na ampliação do escopo de habilidades a serem desenvolvidas: na sua formulação legal, o ensino supletivo englobava e ultrapassava as funções de alfabetização e pós-alfabetização, tomando como referência a nova formulação da escola regular, com ensino fundamental de oito anos e médio de três (AÇÃO EDUCATIVA, 1999, p. 14).

O ensino fundamental (então Ensino de 1º Grau) passou a ser dividido em Suplência I,

equivalente aos quatro primeiros anos, e Suplência II, correspondente aos quatro últimos anos

ou segundo segmento desse nível de ensino. A partir desse momento, portanto, era garantida a

oferta da escolarização pública aos trabalhadores para além da alfabetização inicial. Nos

termos da lei, os cursos de Ensino Supletivo já traziam a perspectiva de uma educação voltada

aos interesses dos estudantes trabalhadores, sendo expressa, contudo, apenas no que diz

respeito à flexibilidade em relação à sua duração e à sua oferta em diferentes modalidades, a

saber: os cursos supletivos, os centros de estudos supletivos (CES) e o ensino à distância.

Os CES, que vigoram até hoje, são estreitamente relacionados aos exames supletivos,

uma vez que se constituem em ensino não presencial, baseado na divisão disciplinar e tendo

sua certificação mediante a realização de exames oferecidos geralmente pelos sistemas

estaduais de ensino, em geral semestralmente. Os exames são organizados por módulos

disciplinares, podendo o aluno “eliminar” as disciplinas conforme sua aprovação nos

respectivos exames. A Suplência II à distância se dá, grosso modo, por meio de programas de

rádio e televisão e podem ser oferecidos através de telepostos orientados por monitores, em 28 Tal programa, com o governo civil instaurado em 1985, se extingue, tendo origem, em seu lugar, a Fundação Educar, que traz outra proposta de trabalho, pautada mais no apoio financeiro e pedagógico para programas de alfabetização realizados por níveis de poderes locais, além de movimentos sociais e organizações não governamentais.

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geral educadores não especialistas. A certificação desses cursos também se dá com os exames

supletivos.

Os cursos supletivos presenciais, no entanto, foram os que levaram a EJA para dentro

das escolas. Em geral, passaram a funcionar tendo como referência o ensino regular diurno

para crianças e adolescentes, diferenciando-se, porém, no que se refere à duração do processo,

já que eram oferecidos, em geral, na metade do tempo de seus equivalentes diurnos (dois anos

para a Suplência I e dois anos para a Suplência II). Além disso, o currículo disciplinar e a

abordagem pedagógica praticamente igual à exercida com o público infanto-juvenil o

caracterizavam como uma verdadeira aceleração de estudos. Tal perspectiva embasava, na

verdade, todas as modalidades supletivas, já que suas funções legais pouco as diferenciavam

da concepção do ensino regular. O Ensino Supletivo, nos termos da lei, tinha como funções a

suplência, garantidora da escolarização regular aos jovens e adultos que a ela não tiveram

acesso ou concluído na “idade apropriada” (Art. 22, Lei 5.692/71); o suprimento, para aqueles

que voltavam à escola para completar os estudos ou para aperfeiçoá-los; a aprendizagem,

encarada como formação metódica no trabalho; e a qualificação, encarregada da

profissionalização (AÇÃO EDUCATIVA, 1999, p. 17).

No que se refere à produção de materiais didáticos, a instauração desses cursos

alimentou, de certo modo, o mercado editorial na produção de livros didáticos específicos que

seguiam, porém, a lógica de redução dos conteúdos pré-estabelecidos para o ensino regular

diurno. Poucas edições, no entanto, foram disponibilizadas, fazendo com que os professores

das diferentes disciplinas continuassem, em sua maior parte, a enfrentar enorme desafio em

relação à seleção de conhecimentos e à melhor forma de abordá-los, restando-lhes apenas a

utilização do material para crianças como suporte para a preparação de suas aulas.

Estudo realizado pela Ação Educativa29 (1999) sobre propostas curriculares de

Suplência II30 no Brasil revela um quadro em que, apesar de vários destes documentos

reconhecerem e indicarem um trabalho pedagógico voltado para o público trabalhador, no

geral, suas ações não rompem com a tradição curricular presente na escolarização de crianças.

A pesquisa identificou, inclusive, a inexistência de propostas definidoras de diretrizes

curriculares em boa parte dos cursos oferecidos tanto por sistemas estaduais quanto

29 A Ação Educativa é uma organização não governamental com tradição na pesquisa e no apoio a programas de EJA no Brasil com um todo, sendo sua sede localizada na cidade de São Paulo. Como exemplo da forte presença dessa ONG nas políticas de EJA em tempos recentes, citamos a indução pelo MEC (governo FHC) para a adoção, por parte dos cursos de EJA de Primeiro Segmento do Ensino Fundamental, de uma coleção didática elaborada pela instituição – a coleção Viver, Aprender. 30 O estudo foi realizado em 1999, antes, portanto, da promulgação das DCNEJA, em 2000. A partir desse documento, os Cursos Supletivos passam a ser chamados de Cursos de Educação de Jovens e Adultos.

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municipais de ensino. Vale dizer que o estudo abarcou também experiências a distância

(Telecurso 2000, da Fundação Roberto Marinho) e cursos desenvolvidos por entidades

empresariais representantes dos interesses do capital (Sesi). Como conclusão, a investigação

revela:

As observações [...] destacaram alguns traços da Suplência II no plano curricular. Assim, ao mesmo tempo que evidenciam-se tentativas de avançar em direção a concepções curriculares que dêem forma e identidade a esse segmento de ensino, a leitura das propostas mostra que o segmento se constitui em grande medida uma adaptação do ensino regular para crianças e adolescentes. Os traços de identidade própria parecem estar se construindo muito mais sobre os componentes do tempo (aceleração de estudos) e sobre a flexibilidade (ainda que bastante limitada) de organização das grades curriculares (AÇÃO EDUCATIVA, 1999, p. 54).

Lembramos ainda que um outro segmento foi, e o é até hoje, voltado para o aluno

trabalhador: o ensino regular noturno (ERN). Oferecido com a mesma duração e

características do ensino diurno para crianças (oito anos para o Ensino Fundamental), o ERN

era justificado, em muitos casos, pelo atendimento a adolescentes e jovens ingressos no

mundo do trabalho e que não poderiam mais freqüentar a escola do dia. Além disso, para os

estudantes que se encontravam com defasagem série-idade em patamar elevado o ERN seria

considerado solução viável, já que, segundo essa visão, esse grupo não se adaptaria mais à

convivência com crianças e ao mesmo tempo não teria ainda perfil para freqüentar uma escola

de adultos. Na prática, porém, o que se vê é a mesclagem de adolescentes, jovens e adultos

tanto em escolas de ERN quanto de Suplência II. Supomos que essa situação tenha se

agravado após a promulgação da LDB (Lei 9.394/96), que instituiu a diminuição da idade

mínima de matrícula em cursos noturnos de 18 para 15 anos no Ensino Fundamental, e de 21

para 18 anos no Ensino Médio.

Até aqui percebemos que as políticas de currículo da EJA não se diferenciaram muito

das características daquelas voltadas os outros níveis e modalidades de ensino. No caso do

Segundo Segmento do Ensino Fundamental, as perspectivas de elaboração das propostas se

enquadravam nas mesmas fileiras, havendo pouca ou nenhuma interferência de entidades

representativas dos educadores e mesmo do corpo docente dos sistemas de ensino no que se

refere ao estudo e na elaboração de propostas. Prevalece, na grande maioria dos casos, o

currículo prescritivo, pautado em uma listagem de conteúdos escolares com abordagem

disciplinar, além de seriado e com padrões de avaliação classificatórios, revelando concepções

de currículo estreitamente vinculadas à educação bancária e, muitas vezes, acrítica.

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No entanto, algumas experiências inovadoras tiveram lugar a partir dos anos 1980. Já

nos referimos a algumas delas na seção anterior deste capítulo quando anunciamos diferentes

políticas curriculares que se realizaram com a redemocratização do país. No tocante à EJA,

muitas das propostas então apresentadas também traziam novas concepções, sendo boa parte

delas tomando como referência o pensamento de Paulo Freire em sua pedagogia libertadora.

No estado do Rio de Janeiro, é o caso do então chamado Programa de Educação

Juvenil (PEJ), que trazia como princípios político-pedagógicos justamente alguns preceitos da

chamada educação popular. Como o ensino supletivo apresentava, como dito anteriormente, a

mesma organização seriada do ensino regular, embora de maneira compacta, e a educação de

adultos se referia a alunos maiores de 18 anos, o governo estadual de Leonel Brizola (1983-

1986) resolveu implantar um programa de alfabetização no interior dos CIEPs, instituição

escolar também criada por esse governo, que atendesse à faixa etária de 14 a 20 anos, no

horário noturno, cuja meta prioritária era levar à escola esses jovens que não a freqüentaram

ou que se afastaram dela. A partir dos princípios anunciados, optou-se, então, por uma forma

de trabalho própria para atender a população jovem, tendo como base o processo de

amadurecimento físico e psíquico, o conteúdo educativo a partir da realidade concreta do

jovem e a inclusão do prazer nas atividades da escola. Em seção posterior deste trabalho

detalharemos melhor a origem e as características desse Programa, uma vez que sua proposta

curricular faz parte do objeto de estudo desta tese.

Destacamos também outra experiência pública considerada por nós inovadora e

contra-hegemônica no que concerne à concepção curricular para a modalidade EJA. Trata-se

do Serviço de Educação de Jovens e Adultos (SEJA), implementado no âmbito da Prefeitura

Municipal de Porto Alegre (RS). Tendo início em 1989, como proposta para viabilizar a

alfabetização de jovens e adultos trabalhadores, o SEJA estabeleceu algumas rupturas

fundamentais para esse processo que vão desde a concepção de alfabetização como um direito

e ampliação de seu conceito até a fundação de uma escola para trabalhadores com currículo

interdisciplinar e investimento maciço na formação de professores (SMED, 1999). Seu

referencial teórico considera a cotidianidade do aluno e do seu mundo do trabalho, encarando-

o como trabalhador que busca um complemento à reflexão de sua prática social. O objetivo de

sua metodologia é favorecer, na relação dialógica, uma análise mais profunda sobre o saber

produzido na experiência de vida do jovem e do adulto, além do acesso a outras informações e

a reelaboração desses saberes. O SEJA apóia seu fazer nas bases do construtivismo

interacionista e da educação popular. Construtivismo porque acredita que é o sujeito, a partir

de sua ação no mundo, que constrói o seu conhecimento, construção individual e também

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72

coletiva realizada a partir da necessidade de compreender e ser compreendido. Educação

Popular porque crê que a sociedade deve ser transformada, daí sua proposta pedagógica ser

pautada no diálogo, no questionamento, na compreensão da realidade e na busca de propostas

coletivas de mudança, pois o conhecimento é visto sempre como construção social

(BORGES, 2001).

Nesse contexto, o esquema da seriação desaparece, cedendo lugar às totalidades de

conhecimento. A relação de conteúdos, nessa perspectiva, é substituída à construção de

conceitos a partir de campos de saber, ou seja, se libertando da seriação, da fragmentação, da

hierarquização e da descontextualização, os conteúdos escolares ganham uma conotação

interdisciplinar. A importância da categoria totalidade se dá na compreensão de que nenhum

fenômeno da natureza pode ser tratado isoladamente, já que o mundo material é dialético e

está em constante movimento (SMED, 1997). Assim, as totalidades de conhecimento não

devem apresentar etapas estanques de tal forma que não necessariamente se precise partir de

uma para se chegar a outra. As seis totalidades que organizam o currículo do SEJA,

abarcando o equivalente aos dois segmentos do ensino fundamental, buscam a unidade

perdida, constituindo-se, então, a visão totalizante de toda a práxis docente e das

aprendizagens dos alunos (idem, 1999).

Ainda que apresente uma proposta de currículo pautada na interdisciplinaridade tendo

como base a categoria totalidade, o SEJA manteve a estrutura disciplinar, isto é, o currículo é

disciplinar, mas o trabalho pedagógico pressupõe a contribuição de cada área do

conhecimento para a compreensão totalizante de determinadas problemáticas. Assim, o

projeto de trabalho do SEJA pode comprovar a viabilidade de um currículo integrado sem

comprometer a divisão disciplinar clássica, conforme abordamos no segundo capítulo deste

trabalho. Para Lopes e Macedo (2002), essa tem sido a forma mais utilizada em propostas

interdisciplinares, já que a estrutura disciplinar se mantém como uma tecnologia de

organização curricular de forte tradição na cultura escolar. Obviamente, outros componentes

estruturais interferem na prática efetiva de tal perspectiva, uma vez que é imprescindível o

estabelecimento de um projeto coletivo de trabalho, e isso pressupõe encontros entre

educadores, equipe pedagógica e comunidade escolar em geral, além de condições mais

dignas de trabalho para os profissionais envolvidos.

Essas poucas experiências fizeram do Ensino Supletivo em geral, e mais

especificamente da Suplência II, uma modalidade na qual a flexibilidade curricular pudesse

ser entendida de diferentes formas. Porém, amarrado ainda a uma concepção de EJA que

pressupunha a suplência e o suprimento como funções determinantes, em uma clara alusão à

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substituição compensatória do ensino regular à completação do inacabado, a Suplência II se

via engessada e sem estímulos para alçar vôos com trajetórias diferentes, dependendo, para

isso, da visão de mundo e de educação prevalecente nas forças políticas locais.

Vale dizer, porém, que no âmbito da educação popular, movimento paralelo à

oficialização do Ensino Supletivo, as diversas propostas curriculares, em função de seu

caráter mais flexível, passaram a utilizar, a partir dos anos 1980, uma grande variedade de

materiais didáticos e informativos de finalidades diversas como referências didáticas

(FÁVERO, 1986). Materiais impressos, como folhetos, histórias em quadrinhos, pequenos

jornais, panfletos etc., e audiovisuais, como fotografias, coleções de slides, filmes de curta

metragem e documentários, passaram a ser bastante utilizados na alfabetização e na pós-

alfabetização crítica de adultos, tendo como destaque, segundo Fávero (ibid.), a produção da

Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional (FASE), voltada basicamente

para audiovisuais temáticos.

Nesse universo de materiais didáticos específicos para jovens e adultos, vê-se,

portanto, que o que se destaca até a década de 1980 são aqueles produzidos por instituições

não governamentais, voltados para a alfabetização e, de forma mais escassa, para os anos

iniciais do ensino fundamental. A partir dos anos 1990, no entanto, com o reconhecimento da

EJA alcançando o segundo segmento do ensino fundamental, novos materiais são produzidos,

porém em pequena escala e vinculados a programas e projetos específicos de escolarização de

adultos desenvolvidos por movimentos sociais ou por algumas poucas redes de ensino. Fávero

(2004) destaca, dentre esses materiais, aqueles produzidos pelo Programa Integrar e pelo

Programa Integração, ambos criados e desenvolvidos pela CUT, pelo Programa de EJA do

MST, e pelo SEJA, da rede municipal de ensino de Porto Alegre. Para o autor, “esta opção

justifica-se porque os respectivos materiais didáticos estão referidos a propostas político-

pedagógicas inovadoras, que redefinem radicalmente a educação de jovens e adultos” (p. 3).

Restritos a esses programas, porém, essas publicações não alcançaram as redes públicas

oficiais em geral, fato que revela a permanência da dificuldade em se encontrar materiais

específicos para a escolarização de jovens e adultos trabalhadores.

Essa situação começou a se transformar a partir das DCNEJA (2000). Com o Parecer

CEB/CNE 11/2000, elaborado pelo Professor Jamil Cury e que deu origem às Diretrizes, um

novo conceito de EJA se estabelece. Dessa vez, as funções para essa modalidade se

encontram em um patamar mais próximo de uma visão não compensatória e que prevê

projetos educativos que considerem os trabalhadores como sujeitos de experiência, cujas

potencialidades cognitivas se encontram justamente nessa condição. A função reparadora

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reconhece a dívida social do Estado e da sociedade brasileira para com a classe trabalhadora

no que concerne ao direito constitucional de acesso ao processo de escolarização com

qualidade. A função eqüalizadora propõe a eqüidade, “forma pela qual de distribuem os bens

sociais de modo a garantir uma redistribuição e alocação em vista de mais igualdade,

consideradas as situações específicas” (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2000, p.

39). Isto quer dizer que, por esta função, o trabalhador busca restabelecer sua trajetória escolar

como forma de reaquisição de oportunidades mais igualitárias. A função qualificadora,

segundo o Parecer, é o sentido próprio da EJA, uma vez que estabelece a educação continuada

ao longo da vida, considera como espaços de aprendizagens não somente a escola e toma

como ponto de partida o caráter incompleto do ser humano. Dessa forma, as funções

apresentadas fazem com que a EJA passe a ser encarada não apenas a partir do aspecto formal

e oficial da escolarização, mas, junto a esse, devem ser consideradas outras dimensões, como,

por exemplo, as “demais ações educativas que trabalhavam com os segmentos mais pobres e

os empobrecidos das populações, com a finalidade de proporcionar-lhes a experiência de

saber o que é ter direito e de se organizar para conquistá-lo” (PAIVA, 2004, p. 33).

Podemos dizer que a elaboração das DCNEJA ouviu e considerou, em grande parte, as

reivindicações daqueles que há muito atuavam, pesquisavam e militavam na EJA. No entanto,

percebemos com certa clareza a influência de paradigmas de agências internacionais voltados

para esse campo. A Declaração de Hamburgo, conforme já anunciamos, promoveu o

alargamento do conceito de formação de adultos, tendo como principal pressuposto a idéia de

educação ao longo da vida, que, como vemos, se encontra presente na função qualificadora

estipulada pelas DCNEJA. Além disso, seus preceitos de “desenvolver a autonomia e o

sentido de responsabilidade das pessoas e comunidades para enfrentar as rápidas

transformações socioeconômicas e culturais por que passa o mundo atual” (DI PIERRO,

2004, p. 17) se coadunam com a idéia, presente no Parecer, de que “no século que se avizinha

[século XXI], e que está sendo chamado de ‘o século do conhecimento’, mais e mais saberes

aliados a competências tornar-se-ão indispensáveis para a vida cidadã e para o mundo do

trabalho” (CNE, 2000, p. 36). Dessa forma, vemos que o conceito de competências,

característico das propostas neoliberais para a educação, veiculadas, em grande medida, pelos

organismos internacionais, se faz presente no documento, assim como o “sentido de

responsabilidade das pessoas e comunidades” nos faz lembrar o conceito de empoderamento,

também próprio desse ideário e que tem muito mais imputado a responsabilidade pelos fatores

de desigualdade, bem como pelas possíveis soluções para o alívio destes, à classe trabalhadora

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do que uma verdadeira emancipação desta classe no sentido de se pensar e se vislumbrar a

possibilidade de projetos societários contra-hegemônicos.

Embora essa visão crítica seja pertinente, não a aprofundaremos nessa seção, pois aqui

nos cabe o reconhecimento do avanço que as DCNEJA trouxeram para a elaboração das

propostas curriculares dos cursos, que a partir de então deixavam de carregar a denominação

Supletivos e passavam a ser chamados de Cursos de EJA. Tais cursos, em função da

municipalização do Ensino Fundamental preconizada pela LDB, passaram a ficar a cargo dos

sistemas municipais de ensino, sendo flexibilizadas sua organização, duração e estrutura.

Toda essa normatização fica condicionada à autonomia dos entes federativos, o que significa

que as redes locais de ensino (estaduais e / ou municipais) é que passam a ser responsáveis

pela elaboração de diretrizes e propostas curriculares desde que sigam as diretrizes nacionais,

garantidoras da base comum nacional dos componentes curriculares.

No entanto, aos avanços obtidos na lei (Constituição/88, LDB 9.394/96 e DCNEJA)

no que tange ao direito ao acesso à escolarização e à autonomia dos sistemas de ensino em

formular suas propostas curriculares não têm correspondido outros dispositivos para essa

modalidade. Ao instituir o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental

e Valorização do Magistério (FUNDEF), o governo Fernando Henrique Cardoso não incluiu

as matrículas do então ensino supletivo para o cômputo dos valores a serem recebidos por

estados e municípios, o que provocou retração na oferta, já que, como dito, a nova LDB

promulgava aos municípios a prioridade no atendimento ao ensino fundamental31.

Além disso, a elaboração de documentos curriculares de abrangência nacional, a

exemplo dos PCN, e a instituição de exames nacionais podem levar a uma direção única, em

termos de concepção curricular, as propostas que, a princípio, seriam autônomas. Tais

iniciativas redundaram, ainda no governo FHC, na produção da Proposta Curricular para a

Educação de Jovens e Adultos (PCEJA) em duas versões – primeiro segmento e segundo

segmento (BRASIL, 2002d, 2002f) – e na instauração do Exame Nacional de Certificação

das Competências (ENCCEJA) (BRASIL, 2002a, 2002b, 2002c). Vale dizer que o atual

governo, até 2006, além de manter a Proposta Curricular Nacional como sugestão para a

elaboração dos currículos dos sistemas de ensino, retomou recentemente a intenção em aplicar

o ENCCEJA em caráter optativo, o que tem gerado contundentes questionamentos por parte,

principalmente, dos Fóruns Estaduais de EJA.

31 Em relação a esse fato, temos atualmente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), cujo texto prevê a inclusão das matrículas dos Cursos de EJA no cômputo para a distribuição da verba.

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Ainda assim, apesar do movimento contraditório das políticas educacionais, que ora

avançam no sentido da autonomia curricular como princípio ora criam mecanismos

regulatórios como o ENCCEJA, boa parte dos Cursos de EJA continua ignorando qualquer

tentativa de superação do modelo supletivo. Em balanço da evolução recente da EJA no

Brasil, Di Pierro (2004) atesta que:

[...] a concepção ainda predominante entre educadores e gestores da educação brasileiros continua a ser a visão compensatória que atribuía educação de jovens e adultos a mera função de reposição de escolaridade não realizada na infância ou adolescência. Essa concepção está por trás da constituição do ensino supletivo, que continua a ser a referência comum para pensar a educação de jovens e adultos no Brasil (p. 14).

É verdade que muitas prefeituras, através de financiamento do FNDE32, têm procurado

universidades, coletivos de formadores em EJA e mesmo empresas de assessoria pedagógica

para a formulação de suas propostas. Apesar das indicações presentes nas DCNEJA sobre a

importância do trabalho coletivo e da participação da comunidade escolar nesse processo,

muitos sistemas persistem ou em manter a concepção supletiva ou em empreender projetos

muitas vezes distantes da realidade vivida diariamente por educadores e educandos da EJA. O

conceito de recontextualização, desenvolvido por Bernstein (1996), nos ajuda a compreender

tal fenômeno, uma vez que ações indutoras e / ou reguladoras podem ser ressignificadas a

partir da valorização de determinados fragmentos presentes nos documentos oficiais. Essa

valorização de alguns aspectos em detrimento de outros é decorrência dos princípios políticos

aos quais os sistemas locais se filiam.

Essa situação, no entanto, pode estar sofrendo ajustes em seu rumo. Isso porque, no

caso do ENCCEJA, embora, até o momento, o governo federal o tenha indicado como opção

para os sistemas de ensino33, sabemos da forte influência de iniciativas como esta nas redes de

ensino. Conforme se observou em relação aos PCN, tanto o ENCCEJA como a Proposta

Curricular de EJA, por se configurarem em documentos confeccionados e distribuídos pelo

MEC, carregam consigo a autoridade do órgão máximo da educação brasileira. Em um país

onde a oferta da EJA em sistemas públicos ainda se configura incompleta e onde ainda

prevalece a concepção supletiva, tais documentos podem ser considerados como única

referência curricular para diversos municípios que enfrentam dificuldades em consolidar sua

32 Autarquia vinculada ao MEC, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) é responsável pela captação de recursos financeiros para o desenvolvimento de programas que visam, dentre outras ações, a formação continuada de profissionais de educação. Os recursos são distribuídos a partir de análise e aprovação de projetos formulados pelos sistemas públicos de ensino. 33 Disponível em: <http://www.inep.gov.br/basica/encceja> Acesso em: 10 set. 2006.

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rede de EJA. Vale lembrar que o ENCCEJA possui material didático próprio, o que reforça a

possibilidade da perspectiva anunciada. Assim, em vez de se configurarem como diretrizes

conceituais, esses documentos, com destaque para o ENCCEJA, podem se constituir, se já

não se constituem, em verdadeiros mecanismos de regulação e indução das políticas de

currículo para a EJA no país.

Embora aprofundemos essa questão no quarto capítulo, vale a reflexão, nesse

momento, sobre o papel do governo federal em relação à política de currículo para a

modalidade EJA. Uma análise profunda da ação do poder público seria necessária para

desenvolvermos essa reflexão, no entanto, discordamos da forma com que tem sido conduzido

esse processo. Por sabermos que toda proposta curricular se baseia em referenciais político-

filosóficos, tendemos a considerar que a União deveria fazer valer o disposto nas DCNEJA e,

de fato, assegurar a autonomia curricular dos Cursos de EJA, o que não tem ocorrido dada a

contradição entre a lei e a instauração dos mecanismos mencionados anteriormente. Além

disso, alguns documentos de caráter nacional se apresentam vinculados, como já dissemos, ao

projeto neoliberal da Terceira Via, o que, pelos motivos também já anunciados, revela a

introdução da nova pedagogia da hegemonia na educação dos trabalhadores brasileiros.

Essa avaliação procede a partir de um breve exame dos princípios e indicações gerais

desses documentos. A Proposta Curricular do MEC e os textos que compõem o material de

referência para o ENCCEJA, por exemplo, possuem como concepção básica os ditames do

currículo por competências. Tal concepção, que tem como premissa a listagem de produtos

desejados, herda das abordagens comportamentais a importância atribuída à definição precisa

dos comportamentos esperados e dos produtos a serem medidos em uma clara referência ao

pensamento tyleriano34 (MACEDO, 2002). Uma outra característica que lhe é peculiar é que,

em todos os textos que se apóiam nessa perspectiva, há um forte questionamento à

disciplinarização do currículo escolar, porém, no caso dos documentos em questão, a listagem

de capacidades e competências é adaptada à estrutura disciplinar. Portanto, podemos concluir,

no plano didático-pedagógico, que:

A concepção de currículo por competências traz embutida a idéia de que o currículo é um plano de atividades de ensino pelas quais a escola é responsável [...]. Dessa forma, o currículo se resume a uma lista de resultados esperados em conseqüência de um dualismo entre fins e meios que [...] traz uma série de dificuldades conceituais e práticas ao campo (ibid., p. 127).

34 “Os princípios de Tyler tinham dado forma mais elaborada à racionalidade eficientista, propondo um procedimento linear e administrativo de desenvolvimento do currículo, fundado no estabelecimento de planos, cujas metas pudessem ser medidas” (MACEDO, 2002, p. 125).

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78

Na PCEJA o conteúdo programático deve ser selecionado a partir de um conjunto de

dez capacidades35 que se pretende desenvolver. No ENCCEJA o conhecimento escolar é

pautado nas matrizes que estruturam as avaliações, sendo que tais matrizes são compostas por

um jogo de cruzamentos entre as competências gerais (eixos conceituais) e as competências

das áreas específicas, resultando desses cruzamentos as habilidades (ou capacidades) que

deverão ser consideradas na seleção de conteúdos a ser realizada pelos professores.

Na outra vertente de análise sobre o significado do currículo por competências, vemos

sua relação estreita com a nova pedagogia da hegemonia. Dentre os produtos desejados e os

resultados esperados a partir da aplicação de um rol de competências e habilidades,

percebemos claramente intencionalidades que se dirigem para a formação de um novo

trabalhador, de uma nova cidadania na perspectiva da empregabilidade e do empoderamento.

Este último conceito representa o que há de mais refinado na apropriação neoliberal

das possibilidades que se vislumbram como ações emancipatórias dos sujeitos. Para Petras e

Veltmeyer (2005), a nova ênfase das agências internacionais (Banco Mundial e BID,

principalmente) na implementação de projetos locais traz como princípio o enfoque

programático nas atividades individuais, o que resulta na minimização do interesse pelas

causas estruturais – e, portanto, sociais e políticas – da pobreza. Tal perspectiva faz uso da

noção neoliberal de empoderamento, na qual os trabalhadores são levados a encontrar uma

solução “empresarial” para seus problemas. Segundo os autores:

En este contexto, la OCDE [...] define su enfoque como “ayudar a los pueblos del mundo a desarrollar aptitudes y habilidades para resolver sus propios problemas”. Como se dijo anteriormente, el Banco Mundial adoptó la estrategia de “empoderamiento” y “participación”, al menos en un nivel retórico (sin ningún mecanismo efectivo o específico para producir estas condiciones), en nombre no sólo de la ‘equidad’ sino también de la eficiencia económica. […] En este discurso neoliberal del “empoderamiento”, el individuo, como depositario de recursos humanos (conocimientos, aptitudes, capacidad para decidir y actuar), es postulado como el problema y, a la vez, la solución al tema de la pobreza (p. 43-4).

Vemos, por conseguinte, que não é à toa que uma das competências gerais (eixos

conceituais) da matriz que estrutura a avaliação do ENCCEJA em Geografia e História se

refere à necessidade de “recorrer aos conhecimentos desenvolvidos para elaboração de

35 Por capacidade, Alves (2006) considera “o poder, a aptidão para fazer algo. É uma actividade que se exerce. Identificar, comparar, analisar, classificar, abstrair, observar... são capacidades. Os termos ‘atitude’ e ‘habilidade’ são próximos de capacidade” (p. 166). Por competência, a mesma autora diz: “ela tem uma função social, no sentido lato do termo, uma utilidade social, no sentido de ser portadora de sentido para o aluno” (p. 170).

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propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e

considerando a diversidade sociocultural” (BRASIL, 2002b, p. 36). No entanto, como

indicado por Petras e Veltmeyer (2005), e como se vê no enunciado da referida competência,

essa participação retórica não se dá como confronto e combate às causas estruturais das

desigualdades sociais nem como chamamento do Estado à sua responsabilidade em

redistribuir os recursos e as riquezas produzidas. Ela se dá a partir de uma noção utilitária do

indivíduo, na qual este recorre a formas pacíficas (“democráticas”) de ação política, tais como

consultas, diálogo, negociações etc. (p. 43). Além disso, termos como intervenção solidária e

diversidade sociocultural não são elucidados no texto, podendo ser utilizados pelo ideário

neoliberal sem nenhuma incoerência com suas premissas, uma vez que são expressões que

não exprimem o conflito de interesses presente nas relações políticas de uma sociedade de

classes.

Cabe ainda dizer que embora os guias curriculares, como a PCEJA e o ENCCEJA, se

destaquem na produção oficial do currículo da EJA, a produção de materiais didáticos

voltados para esta modalidade, uma outra vertente dessas políticas de currículo e que tenha

talvez mais penetração que os guias na prática das escolas, vem marcando as ações do

governo federal após a promulgação das DCNEJA. Em parceria com a ONG Ação Educativa,

por exemplo, o governo FHC disponibilizou para as redes de ensino, em 2001, a coleção

Viver, Aprender, voltada para o primeiro segmento do ensino fundamental. A partir de 2005,

já no governo Lula, a mesma Ação Educativa deu início a uma série de volumes temáticos

direcionados para o segundo segmento. Nessa mesma linha de ação política, o MEC amplia

sua produção e lança recentemente tanto a Coleção ProJovem quanto a Coleção Cadernos de

EJA, objetos de estudo desta tese.

Vale também ressaltar que a distribuição desses materiais segue uma significativa

particularidade. Com exceção da Coleção ProJovem, restrita ao Programa de Inclusão de

Jovens, as redes de ensino optam pela utilização do material e encomendam ao MEC a sua

aquisição ou a sua impressão através do FNDE. Tal procedimento configura-os como

materiais de referência para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem na EJA e

não de uso obrigatório. De qualquer forma, em tempos de documentos e arquivos digitais,

alguns deles, como a Coleção ProJovem e a Coleção Cadernos de EJA, se encontram

disponíveis no sítio eletrônico do MEC, tornando-os ao alcance de qualquer pessoa que tenha

acesso à Internet. Desse modo, embora poucos e basicamente vinculados à edição estatal,

vemos certo recrudescimento da produção de material didático voltado para o ensino

fundamental, fato que permite vislumbrarmos com maior clareza alguns aspectos da

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recontextualização dos saberes e discursos específicos das disciplinas escolares para o

contexto escolar da modalidade EJA.

As características dessa produção, porém, precisam ser mais bem analisadas no

âmbito das políticas de currículo de EJA levadas a cabo pelo atual governo federal. Só assim

podemos compreender os objetivos e as intencionalidades desse governo para com a

ampliação da oferta de escolarização para o público jovem e adulto trabalhador. Só assim é

possível analisarmos as concepções de currículo que embasam tais políticas, bem como suas

contradições, avanços e desafios.

Assim, concluímos este capítulo com algumas considerações importantes sobre a EJA

no que concerne à articulação entre seus fundamentos básicos e as políticas de currículo que

até então têm se configurado. A primeira delas diz respeito ao recente reconhecimento dos

sistemas oficiais em se pensar e elaborar propostas curriculares voltadas exclusivamente para

os cursos de EJA. Esse fato explicita a maneira como a educação dos trabalhadores tem sido

tratada historicamente, sempre de forma marginal e tomada como dimensão residual, algo

temporário, da educação brasileira, com seu suposto fim anunciado em função da também

suposta universalização da oferta da educação básica a todas as crianças e adolescentes. Esse

reconhecimento, no entanto, não se deveu à tomada de consciência dos dirigentes brasileiros

em geral sobre a necessidade de se inventar novas práticas curriculares e novas formas de se

conduzir o processo de ensino e aprendizagem em escolas para trabalhadores. A imposição da

lei é a causa dessa mudança de postura. A LDB e as DCNEJA, embora sejam produtos

também de lutas sociais, podem ser consideradas responsáveis pelas ainda tímidas, mas

importantes, alterações no marco legal e na fundação de um novo conceito de educação

pública para trabalhadores: os Cursos de EJA.

Porém, como sabemos, não são apenas as políticas oficiais que devem sofrer

alterações. As práticas curriculares, aquelas do saber ensinado, devem e podem caminhar a

partir de outras perspectivas. Para isso, ainda encontramos as lacunas da formação inicial de

professores, que não contempla, na maior parte dos cursos universitários, a EJA como

modalidade de ensino a ser estudada, e da formação em serviço, mais exercitada depois das

DCNEJA, mais ainda longe de se tornar realidade habitual nas redes públicas de ensino.

Outra consideração importante é a constatação de que três principais concepções de

currículo vêm permeando a elaboração de propostas curriculares e de materiais didáticos para

a EJA ao longo de sua história: 1) o currículo crítico, conjunto de propostas e ações que têm

como pressuposto básico a educação como ação social que contribui para a emancipação dos

sujeitos, como possibilidade de transformação social e de construção de um projeto societário

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contra-hegemônico; 2) o currículo supletivo, que é a base de cursos que ainda mantêm a

concepção subliminar ao antigo ensino supletivo e cuja seleção de conhecimentos é pautada

na redução de conteúdos pré-estabelecidos para o regular diurno (crianças e adolescentes); 3)

o currículo por competências, que tem marcado as políticas curriculares nacionais recentes e

é caracterizado pela forte relação com o processo de acumulação flexível. Sabemos dos riscos

que corremos com uma classificação como esta, pois é resultado de um ponto de vista

particular, por isso alertamos para o caráter provisório deste procedimento, merecedor,

portanto, de reflexão e análise mais profundas.

De qualquer forma, consideramos fundamental o panorama aqui apresentado, pois ele

pode ser tomado como ponto de partida para uma profunda reflexão acerca das nossas

impressões sobre a questão curricular e sua relação com as especificidades da EJA. Afinal,

que concepções e propostas podem ser anunciadas como mais adequadas para o público

trabalhador? Que limites e possibilidades caracterizam as propostas curriculares examinadas?

Estas e outras indagações nos acompanharão por todo o processo de construção da tese.

Porém, como este trabalho propõe um estudo que engloba a educação geográfica de jovens e

adultos trabalhadores, algumas destas reflexões e considerações somente poderão ser

desenvolvidas em seções posteriores, mais precisamente, partindo de nossa proposta de

estrutura da tese, ao longo do quinto capítulo.

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CAPÍTULO 2

TERRITÓRIOS DO CONHECIMENTO: POLÍTICAS DE CURRÍCULO DE

GEOGRAFIA E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Apresentamos neste capítulo algumas reflexões sobre o ensino de geografia e os

dilemas postos para o seu desenvolvimento na Educação de Jovens e Adultos trabalhadores.

Pretendemos com essas reflexões permitir o acesso a um panorama amplo, porém objetivo, da

trajetória do currículo de geografia à luz das principais questões que têm marcado esta

disciplina escolar desde sua origem até a atualidade (no mundo ocidental e no Brasil), bem

como o reflexo desse fazer na EJA.

Tendo já desenvolvido no capítulo anterior nossas concepções sobre currículo escolar,

cabe aqui apenas relembrar que, ao analisar a problemática específica de uma disciplina ou

uma área do conhecimento, é necessário esclarecer como nos orientamos no que concerne à

discussão acerca do conhecimento escolar. Identificamos anteriormente os conceitos de

recontextualização, desenvolvido por Basil Bernstein (1996), e de transposição didática,

formulado por Yves Chevallard (1991), como ferramentas analíticas importantes para tal

procedimento. Porém, como atesta Leite (2007), estes autores “abordam a questão da

constituição do conhecimento escolar a partir de perspectivas diferenciadas – o primeiro mais

diretamente sociológico, e o segundo, mais próximo de um olhar da epistemologia” (p. 75).

Sem, no entanto, considerar tais abordagens como antagônicas, Leite nos auxilia ao afirmar

que a pertinência de aplicação de um ou outro conceito diz respeito apenas ao enfoque e aos

referenciais teóricos presentes na pesquisa em questão “e não de superioridade heurística a

priori” (ibid.).

Tomando como referência essa observação da autora, optamos aqui pelo conceito de

recontextualização como categoria de análise que dá suporte às reflexões acerca da produção

e constituição do conhecimento geográfico escolar ao longo de sua trajetória histórica, bem

como em suas especificidades ao atender as características da modalidade EJA em diferentes

propostas curriculares. Assim, a problemática que envolve aquilo que de geografia se ensina e

se aprende em programas de EJA é analisada sob a ótica da recontextualização dos saberes e

discursos geográficos, isto é, sob o prisma daquilo que produz o campo recontextualizador,

formado por uma variedade de agentes, também recontextualizadores segundo Bernstein, que

atuam nas diferentes propostas curriculares em foco na presente pesquisa.

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Nesse sentido, o panorama apresentado se inicia com uma breve análise do

conhecimento geográfico presente no currículo escolar, problematizando seus objetivos e

funções desde os primeiros sistemas de ensino instituídos no continente europeu até as

transformações por que vem passando a partir do surgimento de novas correntes do

pensamento pedagógico e geográfico. Nesse processo, destacamos o que fica e o que se

transforma; em outras palavras, evidenciamos a maneira com que a geografia escolar

recontextualiza novos conhecimentos e novas formas de pensar a disciplina produzidos pela

geografia acadêmica e/ou outras agências produtoras de conhecimento. E aqui cabe a ênfase

naquilo que a geografia talvez tenha de mais singular entre as disciplinas acadêmicas e

escolares: a questão do seu objeto de estudo e o conseqüente problema que envolve a

articulação entre a dinâmica social e a dinâmica da natureza, o que a coloca sempre na

interseção entre as ciências naturais e humanas. Em seguida, o capítulo aborda a trajetória do

conhecimento geográfico escolar no sistema educacional brasileiro e culmina com a análise

da educação geográfica de jovens e adultos trabalhadores presente em guias curriculares de

base supletiva, bem como nas recentes políticas curriculares oficiais para o segundo segmento

do ensino fundamental da modalidade EJA.

2.1 O CONHECIMENTO ESCOLAR DE GEOGRAFIA: ENTRE RUPTURAS E

CONTINUIDADES

Entre as pesquisas sobre o currículo e as didáticas específicas das disciplinas

escolares, encontramos importantes estudos que tratam de suas constituições e das trajetórias

por elas percorridas ao longo da implantação e consolidação dos sistemas escolares. Por meio

desses estudos históricos podemos conhecer e compreender os contextos nos quais se deram

suas origens e suas evoluções (DAUDEL, 1990) ou, em sentido amplo, as razões pelas quais

um determinado conhecimento passa a compor o currículo escolar e o porquê de sua

conservação, exclusão ou alteração ao longo do tempo (ROCHA, 1996). Dessa forma, pode-

se desnaturalizar a disciplina como algo dado, estável e imutável e ressaltar o seu caráter de

produto social e histórico (ibid.), além de evidenciar as rupturas e continuidades de seus

conteúdos, de seu objeto de estudo, de suas formas de abordagem ou mesmo de sua função

social e de seu status na organização curricular.36

36 Sobre a constituição da história das disciplinas escolares como área de estudo do campo do currículo, ver Chervel (1990), Goodson (1998), Rocha (1996, 2003), Lopes e Macedo (2002).

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Assim, vale um breve mergulho na gênese da geografia escolar, o que nos traz

importantes reflexões para a compreensão das características desse campo do saber na

atualidade do mundo ocidental37, bem como das possibilidades de análise que podem ser

vislumbradas no que concerne à recontextualização pedagógica de seus discursos produzidos

nas universidades, agências e órgãos de pesquisa, revistas especializadas, meios de

comunicação etc. Ressaltamos ainda que consideramos como gênese de um determinado

fenômeno não apenas a sua origem em si, mas também a descrição e análise do contexto mais

amplo no qual se insere tal iniciativa. Ainda que o presente trabalho não tenha como objeto

principal tal aprofundamento, acreditamos ser necessário um breve resgate histórico por meio

da reflexão sobre os fatos que explicam as condições favoráveis ao surgimento da geografia

escolar, isto é, a conjuntura política, econômica, teórica e filosófica que dá sentido à sua

origem. Estas questões devem permear sempre a análise de qualquer processo de gênese, uma

vez que evidenciam as totalidades as quais estão submetidos os marcos iniciais de todo

fenômeno social e auxiliam na compreensão de suas particularidades.

2.1.1 Modernidade, ciência e escola: a gênese da geografia escolar no mundo ocidental

Vale destacar, de início, a intrínseca relação entre a instituição da chamada geografia

moderna, de base científica, e a presença do conhecimento geográfico no sistema escolar

europeu. É nesse continente, mais precisamente na Alemanha, que desde a primeira metade

do século XIX a geografia encontra-se presente na educação escolar. Embora seja atribuído à

França o início da organização da instrução pública em função do processo de implementação

da Revolução Francesa (PEREIRA, 1999), foi na Alemanha, que à época se encontrava

fragmentada em pequenos reinos, com destaque para a Prússia, o maior e mais importante de

todos, que o processo de constituição do sistema educacional, iniciado em fins do século

XVIII, conheceu um vertiginoso desenvolvimento a ponto de, em 1860, a obrigatoriedade da

escolarização já ser um fato generalizado por todo o território38 (ibid.). Razões diferentes

37 Vale dizer que toda a nossa fonte de consulta se refere à constituição e evolução da geografia como disciplina no sistema escolar ocidental, desde sua origem até a contemporaneidade. Não dispomos de dados e informações sobre essa questão em sociedades que se situam fora do eixo Europa e América, por isso nos restringimos a essa parte do globo terrestre. 38 A implantação inicial da geografia escolar nos sistemas educacionais europeus não se deu apenas nesses dois países. O foco sobre eles reflete apenas o papel de protagonismo das duas sociedades tanto em termos do desenvolvimento da educação escolar como um todo como da inserção da geografia nesse processo. Sobre o percurso da geografia escolar na Inglaterra, ver Goodson (1990). Na Rússia e na Europa oriental, ver Capel (1983, p. 159-171).

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levaram esses dois países a serem pioneiros na disseminação da educação escolar entre suas

populações. A burguesia francesa, que buscava justificá-la “como um meio para que o homem

possa prover às próprias necessidades, garanta o bem-estar, conheça e exercite os próprios

direitos e cumpra os próprios deveres” (PEREIRA, 1999, p. 22), tinha a intenção, na verdade,

de legitimar sua recém-conquistada hegemonia pelo mérito escolar e pelo triunfo da razão,

questionando, portanto, os privilégios do clero e da nobreza justificados pelas pretensas raízes

biológicas criadas pela força divina. Já os alemães desenvolveram seu sistema instrucional

influenciados pela Reforma Protestante do século XVI, que passou para os fiéis a

responsabilidade de sua fé e colocou a fonte dessa fé nas Sagradas Escrituras, criando, por

conseguinte, a necessidade de que todos os homens tivessem condições de ler a Bíblia para

salvar a sua alma (ibid.).

Logo considerado modelo para toda a Europa, o sistema educativo da Alemanha trazia

também a preocupação de difundir e afirmar o sentimento de unidade alemã a despeito da

divisão política existente39. Em função disso, a geografia gozava de enorme vantagem e se

encontrava sempre presente em todos os programas escolares, uma vez que, junto ao ensino

da língua e da história, era uma das matérias que mais contribuía para a difusão do

nacionalismo alemão (CAPEL, 1983).

Não é à toa que é nesse contexto que surge Karl Ritter (1779-1859), considerado um

dos pais da geografia moderna. Ritter, que para Capel tem seu pensamento profundamente

influenciado por suas preocupações pedagógicas, uma vez que desde muito jovem exercia a

atividade de preceptor, elaborou sua obra geográfica tendo como base as idéias de Johann

Heinrich Pestalozzi (1746-1827), pedagogo suíço que desenvolveu uma proposta pedagógica

referenciada no método intuitivo. Signatário de um projeto educacional não repressivo,

Pestalozzi acreditava no “ensino como meio de desenvolvimento das capacidades humanas,

como cultivo do sentimento, da mente e do caráter” (ZANATTA, 2005, p. 168). Tais

capacidades, por sua vez, deveriam ser desenvolvidas por meio da educação intelectual,

resultado da organização das impressões sensoriais obtidas pela relação homem-natureza e

cujo meio essencial seria a intuição. Por isso, Pestalozzi defendia uma educação prática, na

qual se aprende trabalhando, fazendo. Daí também a ênfase dada ao contato direto com a

natureza e à observação da paisagem, o que valorizava a excursão e o trabalho de campo

39 Até meados do século XIX, o espaço territorial alemão era formado por diversos estados germânicos, pequenos reinos e ducados sob influência da Prússia, o maior deles. Com o desejo de unidade nacional iniciado desde o início do século, a unificação alemã se torna um longo processo finalizado somente em 1871 com a formação do Império Alemão.

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como pressupostos básicos para o estudo40. Todo esse sistema de pensamento fez Ritter

considerar como problema essencial da geografia as relações entre fatores físicos e humanos

(CAPEL, 1983) e a constituição da “individualidade regional” (MOREIRA, 2006), uma vez

que “a aplicação dos métodos pestalozzianos permitia converter facilmente a Heimatkunde [o

local ou o regional] em geografia e fazer dela um ensino ativo e em contato com a natureza”

(CAPEL, op. cit., p. 90-91).41

Objeto do método comparativo na geografia, a constituição da individualidade

regional se tornou possível, pois:

[...] Ritter compara recortes de áreas diferentes, com o fim de identificar as suas características comuns e assim chegar a um plano de generalização (método indutivo). De posse desse plano de comparação possível, individualiza e analisa cada área separadamente, com o fim agora de identificar o que é específico a cada uma, distinguir o que as separa e assim classificar as áreas por suas propriedades dentro das propriedades comuns a todas (método dedutivo). Obtém-se com isto a individualidade de cada área, isto é, a construção teórica da região, que Ritter concebe de maneira a ver cada área como recorte de uma unidade de espaço maior, sendo uma unidade em si ao mesmo tempo que é parte diferenciada do conjunto maior da superfície terrestre (MOREIRA, 2006, p. 21).

Tal perspectiva confere a Ritter uma visão holista de sua concepção de geografia e,

nesse sentido, compõe com Alexander von Humboldt (1769-1859)42 o que Moreira denomina

como fase do holismo iluminista-romântico dos séculos XVIII-XIX. Humboldt parte do

mesmo princípio de Ritter: para ambos não se pensa homem e natureza de forma dissociada,

pois a referência da geografia é a superfície terrestre. No entanto, enquanto para Ritter “o

objeto de estudo da geografia é a superfície terrestre vista a partir das individualidades

regionais, para Humboldt é a globalidade do planeta, vista a partir da interação entre a esfera

inorgânica, orgânica e humana holisticamente realizada pela ação intermediadora da esfera

orgânica” (ibid., p. 21).

40 Pestalozzi desenvolveu sua proposta pedagógica no Internato de Yverdon, fundado por ele em 1805. “O currículo adotado dava ênfase à atividade dos alunos: apresentava-se no início objetos simples para chegar aos mais complexos; partia-se do conhecido para o desconhecido, do concreto para o abstrato, do particular para o geral. Por isso, as atividades mais estimuladas em Yverdon eram desenho, escrita, canto, educação física, modelagem, cartografia e excursões ao ar livre” (GADOTTI, 2002, p. 98). A influência de sua proposta na educação prussiana foi tamanha que esta passou a ser conhecida como “sistema escolar prussiano-pestalozziano” (ZANATTA, 2005). 41 “La aplicación de los métodos pestalozzianos permitía convertir fácilmente la Heimatkunde en geografia, y hacer de ella una enseñanza activa y en contacto com la naturaleza”. 42 Na literatura especializada sobre a história do pensamento geográfico (CAPEL, 1983; MORAES, 1987; MOREIRA, 2006), Humboldt e Ritter, ambos ligados à aristocracia prussiana, são considerados os pais da geografia moderna, seus reais precursores. Suas formas de contribuição, porém, são bem distintas. Naturalista e homem de viagens, Humboldt teve em Cosmos sua principal obra. Cristão evangélico praticante e historiador, Ritter tem no ser humano o centro de referência de sua geografia, pressuposto que vai balizar a Erdkund, sua obra de maior destaque.

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O trabalho de sistematização do conhecimento geográfico – até então disperso em

relatos de viagens e escritos em tom literário, dentre outros textos (MORAES, 1987) –, levado

a cabo por Ritter e Humboldt na primeira metade do século XIX, desenvolveu-se em meio a

importantes transformações no pensamento e na organização da sociedade européia. Tais

mudanças tornaram possível a elevação da geografia ao status de disciplina escolar e de

ciência no bojo da instauração dos sistemas escolares e da legitimação daquilo que hoje

denominamos por conhecimento científico. Como modo de facilitar o entendimento desse

processo, lançamos mão de duas dimensões que podem ser então consideradas para a análise

da origem da geografia moderna e de sua consolidação no sistema escolar: a dimensão

teórico-filosófica e a dimensão político-econômica.

A primeira dimensão diz respeito ao panorama do pensamento teórico e filosófico

predominante na virada do século XVIII para o século XIX, que criou condições para a

sistematização dos conhecimentos relacionados à geografia. Embora considere Ritter e

Humboldt como os reais precursores de uma sistematização teórico-metodológica mais

acabada da geografia, Moreira (2006) credita aos iluministas J. R. Foster e Immanuel Kant

(1724-1804) as primeiras tentativas de sistematização do conhecimento geográfico. O papel

do geógrafo Foster foi, para o autor, o de resgatar o discurso da geografia da Antiguidade

Clássica e atualizá-lo para os parâmetros científicos e filosóficos do século XVIII, ou seja, a

geografia descritiva de Estrabão (63 a.C. – 63 d.C.)43 e a geografia matemática de Ptolomeu

(~ 100 d.C.-170 d.C.)44 foram reconfiguradas pelo lado empírico-prático, possibilitando então

a primeira grande arrumação sistemática e metodológica da geografia moderna. De acordo

com Tatham (1959), citado por Moreira (2006), Foster despertava o interesse “apenas pelo

contato direto com uma variedade de naturezas em diversas partes da terra, e a sua

contribuição é o método adotado por ele no tratamento dos dados arrecadados” (p. 15). A

geografia seguiu então com Foster sendo um saber de forte recorte empírico, cabendo a Kant

a elaboração de um discurso mais teórico-conceitual (MOREIRA, 2006).

Para Kant, o conhecimento é uma combinação da sensibilidade e do entendimento,

sendo o espaço e o tempo formas puras da sensibilidade. No sistema de pensamento kantiano

espaço e tempo são juízos que se manifestam no plano das percepções sendo, no entanto, 43 Viajante, historiador e geógrafo, o grego Estrabão percorreu quase todo o mundo conhecido de sua época. As terras percorridas e os povos encontrados foram objetos de minuciosa descrição, consolidando, assim, uma geografia descritiva de grande utilidade para os governantes e conquistadores (ROCHA, 1996). 44Astrônomo, matemático e geógrafo, o também grego Ptolomeu ficou conhecido por sua concepção do universo que considerava a Terra como centro em torno do qual giravam os outros astros. Sem analisar os aspectos físicos e humanos da superfície terrestre, sua obra restringiu-se a calcular e descrever distâncias e áreas, além de desenvolver conhecimentos ligados à astronomia e à cartografia, inaugurando assim a chamada geografia matemática (ibid.).

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dados a priori, pois não há fenômeno senão no tempo e no espaço. Em outras palavras, Kant

considera que “quando captamos os fenômenos em nossa percepção, estes já aparecem diante

de nós organizados em suas localizações na extensão que nos rodeia (o espaço) e na sucessão

dos movimentos de mudanças do ontem para o hoje (o tempo)” (MOREIRA, 2006, p. 19). O

filósofo afirma ainda que esses dois juízos são percebidos de formas diferenciadas: o espaço é

da ordem da nossa externalidade, está fora de nós e é, por isso, objetivo; o tempo é da ordem

da nossa internalidade, está dentro de nós e é, portanto, subjetivo. A geografia é então

relacionada à percepção espacial dos fenômenos e classificada como ciência da natureza45,

cabendo-lhe descrever a distribuição das coisas na extensão que nos cerca. Nesse sentido, a

geografia é separada da história, a quem, por sua vez, cabe narrar os fenômenos na ordem da

sucessão em que se movem (ibid.).

Como vemos, a contribuição de Kant está em fundar as bases conceituais e

epistemológicas para as ciências em geral e a geografia aparece aí como um projeto de sua

filosofia. Nas palavras de Moreira (ibid.), no entanto, seu legado para a geografia é grande,

uma vez que:

Interessa ao seu sistema de idéias descobrir como a geografia pode ajudar na tarefa de constituição do entendimento da natureza. Forma de saber que nos põe em relação direta com o mundo exterior por meio das percepções externas, a geografia abre para o casamento da sensibilidade e entendimento, as duas categorias essenciais do conhecimento para Kant e tema que atravessa o debate epistemológico dos iluministas – Kant talvez o maior deles (p. 16).

Podemos perceber que, a despeito das inovações, reinterpretações e avanços trazidos

pelos iluministas, incluindo aí Kant e Foster em um primeiro momento e Ritter e Humboldt

em uma fase posterior, a geografia permanecia, até a primeira metade do século XIX, com seu

objeto voltado para a descrição do espaço. Herança da geografia clássica dos antigos gregos

acrescida agora de elementos empíricos e de bases conceituais mais sólidas, a ciência então

nascente só viria a romper com essa perspectiva quando novas formas de pensar o

conhecimento científico passaram a predominar a partir da segunda metade do século XIX.

A outra dimensão que utilizamos para esse breve resgate da gênese da geografia

moderna se refere aos fatores de ordem política e econômica que possibilitaram a implantação

dos sistemas escolares e se configuraram como pressupostos que alicerçaram a sistematização

da geografia enquanto ciência. Esses fatores se referem basicamente: 1) à ascensão da

burguesia ao poder a partir da Revolução Francesa; 2) à expansão do capitalismo, fruto da 45 Moreira (2006) alerta para o fato de que natureza, nos tempos de Kant, se referia a todo o mundo da percepção sensível, ao mundo objetivo, ou físico, de tudo o que nos rodeia.

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revolução industrial do século XVIII; 3) à consolidação dos Estados nacionais como forma de

organização política e territorial dos povos, cuja culminância se dá com a unificação e

formação da Alemanha e da Itália na segunda metade do século XIX. Em relação a estes dois

últimos fatores condicionantes, podemos mesmo dizer que a geografia presente na

escolarização os auxiliou sobremaneira, sobretudo no caso alemão, uma vez que:

Neste contexto, o ensino de geografia, ao ser introduzido nas escolas, já surge comprometido não apenas com a formação do Estado nacional, mas também com o capitalismo nascente, já que, para obter a almejada unidade interna alemã, é preciso ocultar a divisão social do trabalho inerente ao próprio capitalismo que precisa ser consolidado. Assim sendo, a construção da geografia moderna vincula-se a duas determinações fundamentais: a formação do Estado nacional e a expansão do sistema escolar (PEREIRA, 1999, p. 40).

Era preciso, portanto, recrudescer o sentimento de nacionalismo patriótico em todos os

cidadãos para, de certa forma, neutralizar a luta de classes que então se intensificava e que

culminou, segundo Hobsbawm (1982), com uma série de breves experiências revolucionárias

ocorridas no final da década de 1840. Em todos os sistemas escolares que se desenvolviam, à

geografia escolar coube então inventariar o território nacional e difundir a ideologia patriótica

e nacionalista, cujo escopo era inculcar a idéia de que o Estado-nação era a forma natural e

eterna de organização espacial das sociedades humanas (VESENTINI, 1998) e em torno de

seu desenvolvimento todos os esforços de seus compatriotas deveriam ser concentrados,

independente de sua posição na divisão social do trabalho.

Junto à introdução da geografia nas escolas, e servindo a propósitos de mesma ordem,

a ciência geográfica se desenvolvia em instâncias de produção do conhecimento conhecidas

como sociedades geográficas46. As universidades produziam geografia através de cátedras

isoladas ocupadas por cientistas de formações diversas e não em forma de cursos estruturados

voltados para o conjunto de conhecimentos geográficos. As sociedades geográficas, fundadas

ao longo do século XIX, surgiram em função da demanda por parte da burguesia industrial

européia em expandir o comércio e garantir alimentos e matérias-primas para a produção

fabril, o que acabou configurando uma fase onde a divisão internacional do trabalho ganhava

novos contornos com o neocolonialismo. Para Santos (1990), “era então imperativo adaptar as

estruturas espacial e econômica dos países pobres às novas tarefas que deviam assegurar sem

descontinuidade. A geografia foi chamada a representar um papel importante nessa

46 Em 1821, foi fundada a Sociedade Geográfica de Paris. Em 1828, surgia a Sociedade Geográfica de Berlim e, em 1830, foi criada a de Londres (PEREIRA, 1999). No Brasil, uma associação desse tipo surgiria apenas no final do século XIX, em 1883, quando foi fundada a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro.

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transformação” (p. 14). Assim, as sociedades geográficas, financiadas pelos governos e pela

burguesia empreendedora e que tão decisivo papel desempenharam no desenvolvimento da

geografia, tiveram sua existência intimamente relacionada à expansão colonial, uma vez que

reuniram informações que possibilitaram a política de conquista, repartição e exploração de

diferentes regiões da África e da Ásia principalmente (CAPEL, 1983; PEREIRA, 1999).

Ritter, que também produziu geografia na então incipiente esfera universitária alemã a partir

da cátedra de história que ocupava na Universidade de Berlim desde 1820, foi dos intelectuais

que mais influência exerceu, por exemplo, na sociedade geográfica de Berlim, fundada em

1828, e da qual foi presidente até sua morte.

Conhecimento de raízes que remontam à civilização grega da Antiguidade, a

geografia criada no século XIX é fruto, pois, do projeto de modernidade nascido com o

Iluminismo. Sua presença nos primeiros sistemas de instrução se deu ao mesmo tempo em

que suas bases conceituais, epistemológicas, teóricas e metodológicas eram lançadas com o

objetivo de se reconhecê-la como ciência. As intencionalidades que a fizeram se mover nesse

sentido eram relacionadas a esse projeto de modernidade de concepção cada vez mais

burguesa, o que nos faz crer que a geografia moderna nasce, enquanto ciência, comprometida

com o Estado capitalista que então se formava e com o projeto imperialista europeu. É a

geografia dos Estados-maiores da qual nos fala Lacoste (2005), filha do imperialismo e do

colonialismo, como a caracteriza Numa Broc, citada por Giblin (2005). Enquanto disciplina

escolar, tem origem nos mesmos pressupostos, se tornando, porém, “um discurso ideológico,

no qual uma das funções inconscientes é a de mascarar a importância estratégica dos

raciocínios centrados no espaço” (ibid., p.31). É a geografia dos professores sobre a qual

também nos fala o mesmo autor. No entanto, como não há processos homogêneos e imunes a

contradições e transformações, a trajetória da geografia escolar e do pensamento geográfico

nos mostra o quanto são dinâmicos os fenômenos sociais, quão ricas são as possibilidades de

ruptura, mas também o quanto são profundas as raízes que mantêm as continuidades.

Nesse sentido, a geografia que se ensina e se aprende hoje nas escolas só pode ser

compreendida em toda a sua complexidade se nos voltarmos para os aspectos históricos que

justificam a presença de temas e abordagens a princípio considerados anacrônicos e

ultrapassados, bem como a ascensão de diferentes formas de se pensar a disciplina e o

conjunto de conhecimentos que a integra. Lembramos também que junto à evolução do

pensamento geográfico, o pensamento pedagógico vem se transformando e trazendo uma

gama variada de novos sentidos ao processo de escolarização. Tal perspectiva nos leva então à

interface entre teoria da ciência geográfica e currículo escolar de geografia, vistos aqui como

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dois campos de estudo autônomos e constituídos de múltiplos e diferentes aspectos

condicionantes.

2.1.2 Geografia escolar, pensamento geográfico e processos de recontextualização

pedagógica

É fato que o conhecimento geográfico escolar mudou muito nas últimas duas a três

décadas. Essa mudança pode ser atribuída a diversos fatores, dentre os quais as

transformações ocorridas na própria sociedade, da qual a educação escolar é elemento

constitutivo dos mais destacados na contemporaneidade. Ainda e cada vez mais

hegemonizada pelo capitalismo monopolista, a sociedade atual tem vivenciado a compressão

espaço-tempo, para citar Harvey (2001) mais uma vez, de forma contundente, o que traz

implicações severas para o ensino de uma disciplina que lida com a espacialização e

territorialização de fenômenos sociais e naturais. Além disso, as mudanças sofridas pelo

ensino de geografia na educação básica também são conseqüência de transformações

ocorridas nas políticas educacionais, bem como do surgimento de novas abordagens da

ciência geográfica, estas, por sua vez, também influenciadas pelo atual contexto político,

econômico e cultural. Dizemos que hoje não faz mais sentido ensinarmos determinados

assuntos, que não podemos mais utilizar essa ou aquela perspectiva de análise, que alguns

autores de livros didáticos estão ultrapassados ou ainda que devemos trazer para a escola

aquilo que a geografia acadêmica tem mais valorizado ultimamente. Contudo, em meio a tanta

instabilidade e incertezas, devemos sempre nos perguntar o que realmente mudou, por que

mudou, de que forma e a serviço de que se deu essa mudança. Cremos que só assim podemos

dar sentido a todo esse movimento e nos aproximarmos da compreensão de sua

complexidade.

Com base nessas indagações, passamos agora a nos deter com mais atenção aos

movimentos de recontextualização pedagógica que possibilitaram a construção do

conhecimento geográfico veiculado nas escolas desde a constituição dos sistemas escolares

modernos no mundo ocidental. Em outras palavras, tratamos, em linhas gerais, da história do

currículo escolar de geografia a partir da sua relação com a história do pensamento

geográfico, com a evolução das idéias pedagógicas e com o contexto econômico, social,

político e cultural mais amplo em meio ao qual essas transformações puderam acontecer.

O sistema escolar alemão-prussiano, como já dito, o primeiro a se organizar como

instrução pública obrigatória, sempre contou com a geografia como uma de suas principais

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disciplinas. Segundo Capel (1983), a presença da geografia foi importante em todos os níveis

e centros de ensino, desde as escolas primárias às escolas médias, tanto nas escolas industriais

quanto nas escolas normais. No ensino primário, ao longo da primeira metade do século XIX,

eram privilegiados conteúdos como “a figura da Terra e seus movimentos, os princípios

elementares da geografia, os pontos cardeais, os sistemas de montanhas, o curso dos rios etc.,

assim como os ramos da indústria de cada país e o mecanismo de sua administração” (ibid., p.

91). Nas escolas médias, a geografia, cuja carga horária variava de uma a duas horas semanais

de acordo com o ano escolar, estudavam-se os primeiros elementos da cosmografia, geografia

geral das cinco partes do planeta e ainda a geografia da Alemanha com destaque para cada

região de acordo com o Estado (reino) do qual se fazia parte. Em escolas especiais, como a

Escola Industrial de Berlim, por exemplo, ensinavam-se princípios de geografia matemática,

política e comercial da Europa e dos outros continentes, sendo comum o uso de mapas mudos

para o estudo do território alemão.

Na França do início do século XIX, em seu esforço de difundir o ensino elementar

com vistas à construção de um novo sujeito histórico baseado nos ideais da revolução de

1789, a geografia se encontrava tradicionalmente presente no ensino básico ainda que com

maior ou menor intensidade. No ensino secundário, ao lado de um currículo clássico baseado

nas humanidades, vão se instituindo paulatinamente ciclos onde uma importância maior é

dada às disciplinas científicas e, em 1865, a geografia era introduzida nos Liceus (Ensino

Médio), embora sem um papel de destaque. Mesmo de forma tímida, a geografia escolar

francesa se consolidava e ainda na década de 1860 a demanda de professores fazia com que

essa disciplina começasse a ser ensinada também na Escola Normal Superior (ibid.).

É interessante observar, no entanto, que a geografia científica ainda não havia se

consolidado na primeira metade do século XIX. As contribuições de Humboldt e Ritter eram,

em realidade, dispersas e isoladas, demonstrando o pouco tráfego de idéias naquele momento

histórico, pelo menos no que tange à renovação do conhecimento geográfico. Na França, por

exemplo, o início desse século foi marcado por uma fase de intenso desenvolvimento

científico, ao qual a geografia esteve praticamente ausente, uma vez que ela era considerada

um conjunto de saberes auxiliares da história ou era relacionada às ciências naturais, como a

geologia. Tal problema de identidade se devia, em grande parte, à predominante e excessiva

descrição de regiões e países, o que gerava dúvidas em relação à sua cientificidade e

dificultava sua inserção no quadro de classificação das ciências (ibid.).

Vemos, portanto, que a geografia escolar exercia um papel muito mais destacado na

sociedade que a própria ciência geográfica, até então não reconhecida enquanto tal. Esse fato

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traz algumas questões importantes para a reflexão. Não sendo a academia a maior e mais

importante produtora de conhecimento geográfico, uma vez que as universidades estavam se

instituindo, essa função era exercida, provavelmente, pelas sociedades geográficas até a

segunda metade do século XIX. Foram essas associações que, de certa forma, contribuíram

com a gama de informações que abastecia as escolas. Nestas, como vimos, predominavam a

geografia descritiva e a geografia matemática, herança da Antiguidade clássica de Estrabão e

Ptolomeu, respectivamente. Nesse sentido, se podemos falar em processo de

recontextualização de saberes para fins pedagógicos, este se dava a partir de múltiplas e

variadas fontes, pois além das sociedades geográficas, conhecimentos produzidos por ciências

já legitimadas (física, biologia, história e estatística, por exemplo) e relatos de viagens,

geralmente veiculados por revistas que “facilitavam ao grande público ilustrado informação

sobre países exóticos e sobre os progressos da colonização européia” (CAPEL, 1983, p. 111),

construíam discursos que se constituíam como a base da geografia ensinada nas escolas.

A geografia acadêmica era, portanto, bastante incipiente em quase todo o século XIX,

tendo essa situação se alterado apenas nos três últimos decênios. Giblin (2005), ao se referir à

situação da geografia nas universidades francesas nesse período, esclarece:

Primeiro, são poucas as faculdades que ensinam geografia. No fim do segundo império, só há uma, a Sorbonne e o titular da cadeira é um historiador, já que não existe nenhuma formação específica em geografia no nível superior. De fato, só se ensinava geografia histórica. Em 1877, contam-se quatro faculdades com essa cadeira, todas chefiadas por historiadores (p. 137).

[...] Felizmente, as sociedades de geografia foram muito mais ativas, e graças à pressão que elas exerceram as cadeiras de geografia foram criadas. Não foram os universitários que se conscientizaram da necessidade de desenvolver o ensino de geografia, pelo contrário, foi preciso arrombar a porta e apoiar-se no interesse pela geografia por parte de um grande público para que os historiadores cedessem um pouco de lugar para essa disciplina que eles menosprezavam (p. 138).

Na verdade, não só a pressão exercida pelas sociedades geográficas foi responsável

pelo desenvolvimento da geografia acadêmica. As reformas na educação básica

implementadas tanto na França quanto na Alemanha, a partir da década de 1870, criaram uma

demanda estupenda de professores. Capel (op. cit.) afirma que, em relação ao caso francês,

“desde el final de la década de los 70 la presión para la institucionalización de la geografía

en los centros de enseñanza superior era muy fuerte. La necessidad de formar los profesores

que las reformas pedagógicas de los níveles primario y secundario exigían es, sin duda, el

factor decisivo para la aparición y la afirmación de este proceso” (p. 121). Na Alemanha, a

intensificação da difusão do nacionalismo patriótico que o processo de criação do Estado

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nacional, consolidado em 1871, passou a exigir estimulou sobremaneira a expansão do

sistema de ensino, sendo que:

Toda esta expansão vai exigir a formação de professores para atuar no nível primário e no secundário. A geografia universitária se desenvolve, então, em função das necessidades das escolas e das instituições de ensino médio. Não é, pois, como se pode pensar, a partir das universidades que a geografia alcança a rede escolar de ensino elementar e secundário, mas, ao contrário, seu desenvolvimento nestes níveis precedeu o desenvolvimento da geografia no ensino superior. E não só isto. A demanda criada com a expansão do ensino da geografia provoca a ampliação e a diversificação das publicações de cunho geográfico (PEREIRA, 1999, p. 43).

Assim, uma série de publicações de manuais didáticos e de Atlas geográficos voltados

para a rede de ensino foi disponibilizada. Na Alemanha, por exemplo, essa demanda

estimulou o desenvolvimento de centros cartográficos especializados, criando-se assim uma

infra-estrutura que viria a beneficiar a ciência geográfica antes mesmo de seu

desenvolvimento como ensino superior nas universidades (CAPEL, 1983).

Contudo, se é verdade que a origem da geografia acadêmica está relacionada às

sociedades geográficas e à demanda por formação de professores para a educação básica, não

podemos deixar de considerar que, a partir de meados do século XIX, seu desenvolvimento

foi também beneficiado pela consolidação da modernidade industrial e a mudança de

paradigma por ela provocada. A ascensão do positivismo como principal referencial teórico-

metodológico que iria balizar praticamente toda a construção e legitimação do conhecimento

científico conforme o concebemos hoje acarretou a fragmentação do holismo iluminista-

romântico que marcara a geografia de Humboldt e Ritter até então (MOREIRA, 2006).

Surgindo como contraponto ao pensamento utópico-crítico do Iluminismo, o método

positivo visava a “afastar a ameaça que [representavam] as idéias negativas, críticas,

anárquicas, dissolventes e subversivas da filosofia do Iluminismo e do socialismo utópico”

(LÖWY, 1998, p. 23). Tal intencionalidade se traduziu em uma epistemologia que

considerava como padrão científico o método empregado pelas ciências naturais, ou seja, os

fatos sociais deveriam ser analisados de forma neutra e rigorosamente objetiva, o que

acarretava a homogeneidade epistemológica entre as ciências sociais e as ciências naturais.

Para Löwy (ibid.), essa perspectiva remetia, “em última análise, à pressuposição essencial do

discurso positivista comtiano47: a rigorosa identidade entre sociedade e natureza, a dominação

47 Auguste Comte (1798-1857) é considerado o fundador do positivismo. Para Michael Löwy (1998), é ele quem “inaugura a transmutação da visão de mundo positivista em ideologia, quer dizer, em sistema conceitual e axiológico que tende à defesa da ordem estabelecida” (p. 22).

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da vida social por ‘leis naturais invariáveis’” (p. 24). O impacto desse movimento nas ciências

em geral foi forte, mas naquelas que iniciavam seu processo de institucionalização, como a

geografia e mesmo a sociologia, sua influência foi fundamental para que conseguissem ser

reconhecidas como detentoras de um método científico.

Para Moreira (2006), outro traço do positivismo é o encadeamento de todas as ciências

em torno de um conteúdo físico, a partir do princípio de que a construção do conhecimento se

dá do mais simples e mais geral ao mais complexo e específico. Esse mesmo princípio

fragmenta as ciências em diferentes campos de objetos e métodos específicos em função

exatamente do sistema piramidal de classificação dos saberes. Atingida em cheio por essa

perspectiva, a geografia passou a sofrer um processo de pulverização e especialização que, em

certa medida, foi responsável pelo seu reconhecimento enquanto ciência. Nesse sentido:

A geografia reproduz a setorialização geral da pirâmide positivista, referenciando sua setorialização interna na linha de fronteiras com os grandes campos de ciências, que o positivismo vai autonomizando por seus objetos e métodos. Assim, na fronteira com a geologia surge a geomorfologia, na fronteira com a meteorologia surge a climatologia, e, na fronteira com a biologia, a biogeografia (a partir da geografia das plantas), a fragmentação se multiplicando a cada novo campo de ciência que surja no plano geral do sistema de ciências (ibid., p. 28).

Ainda nesse período, no entanto, uma reação ao naturalismo mecanicista do

positivismo iria se configurar com base em um movimento conhecido como neokantismo. De

acordo com Moreira (2006), o retorno a Kant trouxe novamente à geografia seu caráter

unitário e corológico, pois, concomitante à continuidade do processo de fragmentação

positivista, passou a haver “a agregação dos setores assim formados em grandes campos de

semelhança. No campo da natureza se aglutinando na geografia física e no campo do homem

se aglutinando na geografia humana, ambos os campos se aglutinando na geografia regional –

o âmbito da geografia doravante dividindo-se nestes três campos de agregação” (p. 28).

Vale notar que tais campos, assim como os setores oriundos do processo de

fragmentação, permanecem até hoje na estrutura da maior parte dos cursos de graduação em

geografia, sendo também a base para a organização de muitos programas curriculares da

geografia escolar, bem como da maioria das coleções de manuais didáticos existentes no

mercado editorial brasileiro. Dessa forma, percebemos que se consideramos a geografia

escolar como campo constituído de múltiplas determinações e não apenas uma transposição

direta e “didatizada” da ciência geográfica, pois, como vimos, sua trajetória, seus objetivos e

campos constitutivos se diferem, não podemos negar a influência cada vez maior dos

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discursos produzidos e veiculados pelas universidades. Com efeito, a partir das duas últimas

décadas do século XIX, com a expansão das cátedras de geografia nas universidades

européias, a comunidade científica dos geógrafos se deslocou das sociedades geográficas em

direção aos departamentos universitários e estes passaram a controlar não só o

desenvolvimento científico como também a potente indústria editorial e cartográfica destinada

a publicações escolares (CAPEL, 1983). É nesse momento que a geografia acadêmica passa a

ser o principal centro de produção do conhecimento geográfico e base para o processo de

recontextualização pedagógica, não deixando, porém, de ser também influenciada pelos

objetivos, funções e discursos característicos da geografia escolar como bem comprova a sua

institucionalização através da demanda por formação de professores para a educação básica.

De volta aos campos aglutinadores das diversas ramificações então criadas pela ação

positivista, é mister destacar a dualidade entre a geografia física e a geografia humana, que

passaria a marcar a disciplina até a contemporaneidade. Fruto, em realidade, da visão

dicotômica entre natureza e sociedade, tal dualidade expressa a dificuldade de integração dos

conhecimentos relativos ao homem e à natureza, algo que acompanha a geografia desde a sua

constituição enquanto campo de saber científico. De acordo com Pereira (1999), essa

dificuldade tem origem na própria visão de mundo que se encontrava na raiz do pensamento

positivista e que dicotomizava os conceitos de homem e de natureza a partir de uma

concepção mecânica e fragmentária de ambos.

À geografia, então, só restou seguir as concepções hegemônicas, tendo, porém, extrema

dificuldade tanto em se constituir na interseção entre as ciências naturais e humanas quanto

em romper com essa concepção de sociedade e de natureza. Para Moreira (2006), isso se deve

ao fato de a geografia operar ainda hoje com um conceito de natureza “restrito à esfera do

inorgânico, fragmentário e físico-matemático do entorno natural” (p. 47). Desse modo, não

distinguimos natureza de fenômenos naturais, pois:

Vemos a natureza vendo o relevo, as rochas, os climas, a vegetação, os rios etc. E conhecemo-la medindo as proporções matemáticas e descrevendo os movimentos mecânicos das relações de seus corpos. Dito de outro modo, a natureza que concebemos é a da nossa experiência sensível, cujo conhecimento organizamos numa linguagem geométrico-matemática. É uma totalidade fragmentária, que então só ganha unidade mediante suas ligações físico-matemáticas. [...] Tudo legitimado na concepção de que a esfera orgânica é especialidade de outras ciências, a exemplo da biologia, a “ciência da vida”, numa noção de tarefa característica do sistema de ciências criado no meado do século XIX e ainda vigente no mundo acadêmico (ibid., p. 47).

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Tal fato mantém e reforça no saber escolar algo também presente no senso comum,

uma vez que percebemos em diversas esferas da vida cotidiana (políticas públicas, meios de

comunicação, ações individuais etc.) a mesma dualidade, a mesma fragmentação entre

sociedade humana e natureza. Consideramos, no entanto, que dentre as poucas experiências

que lograram ultrapassar essa visão de mundo várias podem ser encontradas no âmbito da

educação escolar. Reconhecemos os empecilhos enfrentados pela academia em produzir

conhecimento na interseção entre a geografia física e a geografia humana, até porque, ao

contrário do que o paradigma positivista apontava, ambas se utilizam de métodos científicos

distintos para alcançar seus objetivos. Acreditamos, contudo, que essa não deve ser uma

dificuldade para a geografia escolar, uma vez que ela não é ciência, não cria teorias baseadas

em hipóteses e não tem que comprová-las por meio de métodos rigorosos e legitimados pela

comunidade científica. Como artefato cultural pertencente ao fenômeno educativo, o saber

geográfico veiculado nas escolas pode contribuir significativamente para a superação da visão

dual sobre o que é do social e o que é da natureza na compreensão da espacialidade das

coisas. E essa possibilidade marca profundamente a diferença entre geografia escolar e

geografia acadêmica.

A distinção e a dualidade entre a geografia física e a geografia humana provocaram,

no final do século XIX, a cisão da geografia, tendo cada campo desenvolvido separadamente

suas principais premissas. Foi Friedrich Ratzel (1844-1904) quem, segundo Moreira (2006),

inaugurou a fase das geografias humanas sistemáticas. Ratzel cria, por exemplo, a geografia

política ao considerar que o homem “faz o seu espaço no ato da relação com a natureza e

como uma ação de construção política da sociedade, que compreende o papel da ação do

Estado” (p. 30). Assim, Ratzel inicia a tradição de ver-se o homem em sua relação com a

natureza pelo Estado, o que o faz ser considerado como o criador da geografia humana. Sua

Anthropogeographie (1882) considerava a geografia humana sistematicamente e não

regionalmente como Ritter. Sob influência do evolucionismo de Darwin, “Ratzel via o

homem como produto final da evolução, uma evolução cuja principal conseqüência era a

seleção natural dos tipos na conformidade da capacidade de ajustarem-se ao meio físico”

(TATHAM, 1959 apud MOREIRA, 2006, p. 31). Essa matriz determinista, que vê o homem

como produto de seu meio, revela uma atitude positivista que conduz a transferência de

conceitos e teorias das ciências naturais para as ciências humanas, nesse caso utilizando-se de

conceitos biológicos e ecológicos para a interpretação de fatos da geografia política (CAPEL,

1983). Para Gomes (2000), com tais pressupostos, Ratzel acabou por conceder à geografia

uma perspectiva rigorosa, objetiva e geral, fazendo com que fosse reconhecida e aceita no

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ranking das ciências positivas modernas. Além disso, seu conceito de espaço vital, também

extraído de conhecimentos biológicos e ecológicos, justificava cientificamente o triunfante e

expansivo nacionalismo alemão, uma vez que atribuía ao Estado a instância pela qual um

povo poderia conquistar para si mais território, seguindo, assim, sua força vital em busca da

sobrevivência. Dessa forma, atendia aos interesses e preocupações da burguesia industrial

alemã no momento em que a Alemanha acabara de se reunificar, anexando territórios de seus

vizinhos48, e se lançava à expansão colonial européia (CAPEL, 1983).

A geografia positivista encontraria fortes questionamentos ainda em fins do século

XIX, quando, influenciada pela ascensão do historicismo, a geografia francesa desenvolvia a

escola regional e da paisagem através dos trabalhos de Paul Vidal de La Blache (1845-1918).

Para Capel (1983), a base dessa reação metodológica era a oposição entre a explicação

generalizante positivista – que a partir de agora se considerava própria das ciências naturais –

e a compreensão historicista. Essa corrente do pensamento inaugurava com Wilhelm Dilthey

a distinção metodológica entre as ciências da natureza e as ciências humanas (as ciências do

espírito), tendo estas a necessidade de compreender a significação vivenciada dos fatos

sociais enquanto aquelas poderiam se limitar a uma explicação exterior dos fenômenos

(LÖWY, 1998). Além disso, passou-se a classificar as ciências naturais como nomotéticas,

cuja característica principal seria a de descobrir as leis gerais da natureza, e as ciências

humanas como idiográficas, interessadas pelo único, pelo singular, pelos fatos e

acontecimentos, pelas condições circunstanciais no tempo e no espaço (CAPEL, 1983).

Essa interpretação do universo das ciências, ao mesmo tempo em que trouxe para a

geografia o perigo de um corte profundo entre a geografia física e a geografia humana, acabou

constituindo-se em uma solução para essa mesma ameaça desagregadora. Com o caráter

idiográfico em voga, os estudos regionais fizeram-se a solução para a sobrevivência da

ciência (ibid.), uma vez que em qualquer região que se estude sempre estarão presentes os

elementos físicos e humanos compondo sua paisagem. De acordo com Moreira (2006), La

Blache não estaria sozinho nesse retorno ao tema regional, pois Alfred Hettner (1859-1941)

também retomava a regionalização inspirado na região como diferenciação de áreas, enquanto

La Blache trazia um olhar fracionário, baseado em uma concepção isolacionista de região, um

caso de singularidade, bem ao modo da premissa idiográfica.

Todavia, parte dessa perspectiva regional fez com que La Blache e seus discípulos

também desenvolvessem a chamada geografia da civilização, conjunto de estudos das

48 O fim do processo de unificação alemã se deu a partir da vitória sobre a França no conflito de 1870-1871, no qual obteve daquele país a região da Alsácia-Lorena.

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paisagens de diferentes civilizações advindas da relação local do homem com o seu meio

(MOREIRA, 2006). Com isso, La Blache fundava a categoria dos gêneros de vida,

considerando-os como resultado das possibilidades oferecidas pela natureza e utilizadas pelos

grupos humanos de acordo com suas necessidades49. Para Moreira (ibid.), a geografia da

civilização retorna, de certa forma, à geografia da superfície terrestre desenvolvida por Ritter,

só que agora “pela problemática da relação homem-meio em cada canto regional da terra” (p.

37). Além disso, continua estruturando a sequência de estudos a partir do modelo positivista

de divisão das ciências, pois como revela ainda o autor:

A geografia da civilização é, em suma, uma combinação da geografia física com a geografia humana, mas como terceiro campo de aglutinação (não a geografia regional). A necessidade de restabelecer-se a visão de totalidade reclamada por uma economia industrial que inicia sua arrancada de mundialização [...] leva a geografia das civilizações a tomar como suporte corológico as geografias físicas sistemáticas [geomorfologia, climatologia, biogeografia etc.], sobre as quais a geografia encontra-se então assentada, mas para o fim de compreender os fenômenos das geografias humanas sistemáticas [geografia urbana, agrária, da indústria, econômica etc.] (ibid., p. 37).

É importante ainda considerar que a fundação da escola francesa de geografia a partir

do pensamento de Vidal de La Blache deu-se não somente em função da sua contraposição à

geografia positivista de Ratzel, mas também, e talvez principalmente, em função da tentativa

francesa de aprofundar os estudos geográficos e se sobrepor em relação à escola alemã. E

havia fortes motivos políticos para tanto. Após a derrocada francesa na guerra franco-

prussiana, tornou-se comum entre políticos e intelectuais a explicação para a derrota a

excelência do sistema de ensino alemão, principalmente no que concerne ao ensino de

geografia, e os parcos conhecimentos dessa disciplina veiculados pelas escolas francesas. O

impacto dessa interpretação foi bastante significativo tanto para o avanço da ciência

geográfica na França quanto para a geografia escolar. Nos anos que se seguiram ao fim da

guerra (1870-1880), várias reformas no ensino foram realizadas, implementando-se desde a

obrigatoriedade de excursões geográficas nas escolas a novos programas de geografia no

ensino secundário. Nesse momento, tendo como referência ainda o pensamento positivista, a

geografia física era considerada a base de todos os conhecimentos geográficos e o currículo

49 Essa perspectiva fundou a escola possibilista de geografia, ou o possibilismo, em contraponto à visão determinista, que acreditava serem os fatores naturais determinantes na forma com que as sociedades humanas organizavam seus territórios. Moreira (2006), contudo, não crê nessa contraposição. Para o autor, o verdadeiro contraponto da geografia moderna se dava entre a concepção fracionária e isolacionista de região de La Blache e a região vista como uma diferenciação de áreas, desenvolvida por Hettner.

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de geografia para esse nível de ensino se configurava em: 1) uma parte física (relevo, regime

das águas, o mar e as costas e o clima); 2) uma geografia política, que se apóia na história e

estuda o homem em seu passado e em seu presente; e 3) uma geografia econômica, dentro da

qual apareciam estudos da população, da agricultura, da produção mineral, da indústria e das

vias de comunicação. Acrescentava-se ainda a esses itens a geografia matemática (CAPEL,

1983).

Nos primeiros anos do século XX, porém, a geografia lablachiana se desenvolveria

bastante, fato que acabou deslocando da Alemanha para a França a referência principal da

produção geográfica mundial e inaugurando um longo período – que perduraria quase todo o

século – em que a escola francesa de geografia ditava as regras não só para a ciência

geográfica como também para a geografia escolar.

De fato, ao analisar uma coleção didática francesa publicada em 1941 pela editora

Hachette e de autoria de Albert Demangeon e Aimé Perpillou, ambos professores da

Sorbonne à época, podemos notar características fundamentais que expressam a influência da

geografia lablachiana. Voltada para o equivalente ao nosso segundo ano do ensino médio, seu

prefácio anuncia a conformidade da obra para com o “ensino moderno”, pois “procura sempre

ir da observação à explicação e do simples ao complexo”. Com o objetivo de colaborar com a

cultura geral dos jovens alunos ao invés de lhes inculcar conhecimentos técnicos, o prefácio

ainda justifica o forte peso dado à geomorfologia e à climatologia ao dizer que, dessa forma,

se permite uma iniciação mais direta e mais proveitosa nas leis gerais da geografia física. É,

no entanto, na unidade dedicada à geografia humana que os pressupostos lablachianos mais

aparecem. Dos quinze capítulos dessa unidade, oito se referem aos gêneros de vida (do

período pré-histórico aos “gêneros de vida modernos e suas evoluídas tecnologias”)

encontrados em diferentes regiões do planeta (dos “gêneros de vida nas regiões polares e nas

florestas equatoriais” aos “gêneros de vida tradicionais e sua evolução na Europa ocidental e

central”). Tal análise nos reporta novamente às considerações de Moreira (2006) quanto à

apropriação de La Blache em relação ao papel das geografias sistemáticas nos estudos

regionais e das civilizações, “um approach que combina dentro da geografia todo o seu

sistema interno de ciências, indo da mais corológica, que então é tomado como a

geomorfologia ou a climatologia, à mais independente dos rigores de assentamento, que é

então a cultura humana, tal como no geral se estrutura o sistema de ciências do positivismo”

(p. 37).

Ainda hoje podemos reconhecer algumas dessas características nos currículos das

escolas de vários países. No Brasil, é comum encontrarmos a divisão de unidades, capítulos e

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volumes de muitas coleções didáticas, por exemplo, acompanhando os grandes setores das

geografias sistemáticas: a geografia física, a geografia humana e a geografia regional. A

análise das regiões (do globo, de continentes ou de países) se baseia, por vezes, no esquema

natureza-homem-economia (N-H-E)50, mesclando a fragmentação e a dicotomia homem-

natureza, típicas do positivismo, com o método regional lablachiano. Contudo, se ecos da

geografia positivista e do regionalismo historicista ainda se encontram presentes na geografia

escolar contemporânea, é fato também que processos de recontextualização pedagógica de

escolas do pensamento geográfico mais recente vêm sendo realizados desde meados do século

XX. É o caso do movimento de renovação da geografia sob a ótica do materialismo histórico-

dialético, a chamada geografia crítica ou radical, e da influência dos pressupostos da

fenomenologia na ciência geográfica, que deu origem à geografia cultural renovada.

Na verdade, a ciência geográfica, já consolidada em termos acadêmicos, conheceu,

principalmente após a Segunda Guerra Mundial, uma série de movimentos que passaram a

configurar a tendência pluralista que vigora atualmente no que concerne às correntes do

pensamento geográfico. Todas elas, de certa forma, embora tenham se constituído em

períodos distintos e se baseiem em diferentes matrizes teóricas, se contrapõem à geografia

desenvolvida até a metade do século passado, classificada com o nome genérico de geografia

tradicional, denominação que, apesar de comum em diversos trabalhos sobre a história do

pensamento geográfico, não evidencia todas as tendências e divergências que, como vimos,

marcaram as escolas de geografia desenvolvidas ao longo daquele período.

A tendência pluralista se inicia com a retomada do neopositivismo, que coloca em

voga a análise sistêmica. Nessa perspectiva, “todos os fenômenos devem ser vistos como

sistemas, independentemente do caráter particular ou da natureza dos elementos que os

compõem e das relações que os unem” (GOMES, 2000, p. 267). Tal concepção renovou a

análise geográfica pautada no método regional, pois a região não seria mais vista como uma

unidade territorial e sim como uma classe espacial que faz parte de um sistema hierarquizado,

substituindo a singularidade pela generalização (ibid.). A volta ao estatuto positivista vinha

acompanhada, no entanto, por uma preocupação quantitativa, transformando a linguagem

matemática na linguagem de referência das ciências e um modelo perfeito de precisão e

neutralidade. Na geografia, a eterna procura pelo cientificismo resultou na adoção dessa

perspectiva por uma série de geógrafos dos anos 1960 e inaugurou a chamada geografia

50 Para Moreira (2006, p. 10), este esquema se configura em “uma operação metodológico-discursiva simples na geografia: descreve-se primeiro a natureza, depois a população e por fim a economia. Sempre nesta ordem. E quando esta é alterada, apenas muda-se formalmente a seqüência”.

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quantitativa ou nova geografia. Muito pautada no emprego de técnicas informatizadas da

estatística, em modelos geométricos e simulações de padrões de organização espacial que

deveriam ser aplicados a qualquer realidade, o grande equívoco dessa proposta foi o de

confundir domínio teórico com método, pelo qual o resultado era evidenciado e o processo

omitido, uma vez que não eram reconhecidas as qualidades essenciais do tempo histórico

(CAPEL, 1983; SANTOS, 1990). De fato, observamos que na educação geográfica, embora

seja ainda necessário um estudo mais aprofundado sobre a influência dessa vertente nas

propostas e nas práticas curriculares, a geografia quantitativa assumiu um caráter muito mais

metodológico que paradigmático, notando-se algumas de suas características no tratamento de

dados estatísticos como base empírica de diversos fenômenos geográficos.

De forma bastante diferente, o movimento de renovação que a década de 1970 seria

testemunha, teve na geografia escolar um de seus pontos-chave, não se restringindo, portanto,

à geografia acadêmica. Estamos falando do movimento de renovação da geografia sob a ótica

do materialismo histórico-dialético, a chamada geografia crítica ou radical. Iniciado a partir

dos questionamentos de geógrafos estadunidenses51 em relação ao método quantitativo da

nova geografia, o movimento radical chega à Europa pouco tempo depois em parte

estimulado pela própria tradição marxista do continente. Tomando o marxismo como uma

ferramenta flexível de análise crítica da realidade, o movimento radical evita a atitude

dogmática ao interpretar a relação homem-natureza a partir de uma perspectiva histórica

(CAPEL, 1983) e ao conceber o espaço como produto social que só pode ser explicado

recorrendo-se aos aspectos fundamentais que organizam a sociedade (GOMES, 2000). Em

Por uma geografia nova (1990), obra que marca, de certa forma, a chegada da perspectiva

crítica à geografia brasileira, Milton Santos esclarece:

O que propomos como objeto dessa geografia renovada é o estudo das sociedades humanas em sua obra de permanente reconstrução do espaço herdado das gerações precedentes, através das diversas instâncias de produção. [...] Essa geografia renovada (espaciologia?) ocupar-se-ia do espaço humano transformado pelo movimento paralelo e interdependente de uma história feita em diferentes níveis – internacional, nacional, local. [...] a sociedade seria reconhecida em seu diálogo com a natureza transformada, não apenas como agente transformador mas também como um dos seus resultados (p. 195).

51 Dentre outros, se destaca a figura de David Harvey que, ao romper com as premissas neopositivistas da geografia quantitativa, lança com outros companheiros o periódico Antipode: a Radical Journal of Geography, cujo objetivo era de instituir uma mudança radical na geografia e passar a contribuir com as mudanças revolucionárias que a sociedade necessita (CAPEL, 1983).

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Como se vê, a perspectiva crítica da geografia também se opõe ao método regional de

La Blache, uma vez que “o conceito de região limita a extensão da reflexão a uma única

escala, apagando o papel do capitalismo como a força fundamental da organização do espaço”

(GOMES, 2000, p. 286). Na realidade, tanto a escola lablachiana quanto as perspectivas

positivistas e neopositivistas são vistas como constituidoras de uma geografia reacionária e

burguesa, responsável pelo ocultamento das relações assimétricas de poder presentes na

produção do espaço.

Para Lacoste (2005), a função ideológica do discurso geográfico veiculado por essas

correntes dava-se, como já mencionado anteriormente, por meio da geografia dos Estados-

maiores, dominada não só pelo Estado, mas também pelas grandes corporações capitalistas, e

da geografia dos professores, ensinada nas escolas. Em sua clássica obra – para Gomes

(2000) a pedra angular na constituição da corrente radical52 –, Lacoste denuncia que “a

geografia dos professores funciona, até certo ponto, como uma tela de fumaça que permite

dissimular, aos olhos de todos, a eficácia das estratégias políticas, militares, mas também

estratégias econômicas e sociais que uma outra geografia [a dos Estados-maiores] permite a

alguns elaborar” (p. 33). Essa ação, segundo o autor, seria efetivada por uma nomenclatura

que inculca elementos sem ligação entre si, em uma menção clara ao esquema N-H-E, e a

partir de uma didática mnemônica que tanto marcou o ensino de geografia. Com essa análise,

Lacoste traz a geografia escolar para o centro do debate político-filosófico em torno do

conhecimento geográfico, tratando-a como a outra vertente que, junto à geografia

universitária, contribui tanto para a crítica quanto para a superação da concepção burguesa de

geografia.

Nesse sentido, a perspectiva de transformação social que acompanha todas as análises

inscritas na geografia crítica passou, em certa medida, a caracterizar também a geografia

escolar. Potencializado pelas correntes pedagógicas de base marxista, o ensino de geografia

efetuou algumas reformas em seus conteúdos e passou a preocupar-se com a construção da

consciência crítica dos alunos, principalmente aqueles pertencentes à classe trabalhadora. No

Brasil, por exemplo, várias coleções didáticas passaram a adotar os modos de produção e a

perspectiva histórica como eixos principais de análise do conhecimento geográfico escolar.53

Outros autores introduziram análises espaciais tomando como base elementos da esfera

52 Trata-se do livro La géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre (A geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra), cuja primeira edição data de 1976. 53 ADAS, Melhem. O quadro político e econômico do mundo atual: 8ª série. 3 ed. São Paulo: Moderna, 1995.

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socioeconômica como a ideologia e a produção e circulação de mercadorias;54 e ainda outros

ressignificaram o conceito de região à luz do conceito de desenvolvimento econômico

desigual, substituindo, assim, a divisão de volumes, unidades e capítulos por continentes, por

exemplo, pela regionalização do mundo a partir da divisão internacional do trabalho.55 Além

disso, propostas curriculares de alguns estados e municípios,56 implementadas entre o final

dos anos 1980 e início dos 1990, embora referendadas por diferentes vertentes do pensamento

pedagógico crítico, se configuraram em importantes experiências de recontextualização

pedagógica que possibilitaram à geografia escolar vislumbrar novas abordagens, novas

perspectivas, novos conteúdos, novas formas, enfim, de pensar e praticar o currículo escolar.

É fundamental lembrar, no entanto, que a apropriação dessa renovação paradigmática

não se fez de forma linear e sem grandes conflitos no interior das escolas. Considerando que

uma mudança no discurso geográfico acadêmico não é acompanhada, necessariamente, de

alterações significativas no fazer pedagógico dos professores da educação básica, indagamos

como e até que ponto a introdução da abordagem marxista em propostas curriculares e livros

didáticos de geografia transformaram a maneira de se ver o mundo por parte de professores e

alunos. Cientes da importância dessa reflexão, reservamo-la para o próximo item deste

capítulo, quando analisamos o currículo escolar da geografia brasileira. Adiantamos, porém,

que esse outro processo de recontextualização, isto é, a reinterpretação de textos curriculares

por parte de professores e equipes pedagógicas e que constitui o currículo praticado nas

escolas, é complexo e tende a acompanhar menos as mudanças acadêmicas e mais as

necessidades, possibilidades e limites encontrados no cotidiano escolar.

O quadro se torna ainda mais intricado quando recentemente, a partir da década de

1990, entram no cenário da pesquisa educacional do mundo ocidental as chamadas teorias

pós-críticas do currículo. Pautadas, por sua vez, no conjunto de perspectivas que crêem na

tese da pós-modernidade, as teorias pós-críticas rompem com o pensamento marxista e

exaltam a diversidade cultural, o multiculturalismo e as representações simbólicas como

elementos fundamentais para se pensar o currículo escolar. Estando muito presente no

pensamento pedagógico acadêmico, no qual é analisada e praticada sob variados ângulos, a

pedagogia pós-crítica tem chegado timidamente às escolas e por vias distintas, sendo canais

de disseminação de suas idéias tanto os textos das reformas curriculares nacionais

54 PEREIRA, D.; SANTOS, D.; CARVALHO, M. Geografia: ciência do espaço: o espaço mundial. 2º grau. 4ª ed. São Paulo: Atual, 1993. 55 VESENTINI, W.; VLACH, V. Geografia do mundo industrializado: v. 3. 7 ed. São Paulo: Ática, 1996 (Coleção Geografia Crítica). 56 Detalhes dessas propostas se encontram no capítulo 1, p. 55-56.

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105

implementadas nos anos 1990 em vários países,57 embora apresentem contradições já

analisadas em diversos trabalhos (LOPES, 2002; MACEDO, 2002; OLIVEIRA, 1999;

ROCHA, 2003; FALLEIROS, 2005), quanto alguns livros didáticos do ensino fundamental

que têm se apropriado de alguns elementos do viés multicultural para elaborar seus textos e

desenvolver seus temas.

Ao mesmo tempo, e em função dos mesmos referenciais conceituais das teorias da

pós-modernidade, a ciência geográfica via crescer rapidamente o interesse pela perspectiva

cultural na análise espacial, o que acabou por consolidar um novo campo de abordagem

geográfica: a geografia cultural. Considerada, na verdade, como uma renovação da

perspectiva cultural que se praticava desde os tempos de La Blache, quando apenas se

evidenciavam os aspectos materiais das culturas e as suas marcas nas paisagens, a nova

geografia cultural traz os valores e as representações simbólicas do espaço geográfico como

principal objeto de estudo. Para Claval (1999), um dos precursores desse movimento de

renovação, “a diversidade das culturas apresenta-se cada vez menos fundamentada sobre seu

conteúdo material. Ela está ligada à diversidade dos sistemas de representação e de valores

que permitem às pessoas se afirmar, se reconhecer e constituir coletividades” (p. 62). Assim,

ainda para o autor, é a percepção que as pessoas têm sobre o espaço que mostra como se dá as

suas relações com o meio e como estas são modeladas pela coletividade às quais se pertence.

Nesse sentido, “o ponto de vista cultural é constitutivo da geografia humana transformada

pela crítica pós-moderna” (p. 63).

Com efeito, de acordo com Holzer (1997), a ascensão da perspectiva pós-moderna

apenas atualiza várias idéias constituídas, desde os anos 1970, pela vertente fenomenológica

do movimento humanista levada a cabo por geógrafos estadunidenses, para quem “a fonte

legítima do conhecimento é a explicação centrada sobre as experiências vividas

cotidianamente, e contextualizadas a partir dos instrumentos culturais que lhes são relativos”

(GOMES, 2000, p. 327). Assim, para aquele autor, em função dos estudos culturais em

geografia terem sido influenciados por muitos dos temas do humanismo, podemos agora

identificar esse campo como geografia cultural-humanista. A questão, porém, nos parece

controversa, pois nem todo humanismo é fenomenológico, mesmo aquele que, na geografia,

influenciou o estabelecimento do espaço vivido como categoria de análise. É assim que

interpreta Gomes (2000) ao afirmar que o estudo sobre os espaços vividos começou a se

desenvolver na França de forma independente do humanismo fenomenológico estadunidense.

57 Destacamos aqui a reforma curricular do sistema de ensino espanhol, utilizado como referência no Brasil para a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

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106

Nessa abordagem, “o espaço vivido é visto como uma das dimensões da geografia, o

racionalismo como uma outra, e esta pluralidade é considerada como necessária e

complementar” (p. 317). Vê-se, portanto, que, sob esse ponto de vista, considerar a categoria

espaço vivido não exclui a conduta racionalista na geografia, o que abre importantes

horizontes para aqueles que, como nós, consideram a relevância desse conceito, mas elaboram

suas análises a partir de outros referenciais humanistas que não o fenomenológico.

E é dessa forma, parece-nos, que o espaço vivido chega à geografia escolar. Sendo

talvez já considerado na prática cotidiana de muitos professores, percebemos novamente

algumas coleções didáticas incorporando-o em algumas atividades pedagógicas.58 Contudo,

não podemos afirmar com clareza de que forma e até que ponto tem-se levado em conta na

geografia escolar as representações de ordem simbólica sobre o “espaço de vida, construído e

representado pelos atores sociais que circulam neste espaço” (GOMES, 2000, p. 319), pois

esse seria um importante objeto de estudo para um outro trabalho. O que vemos, como atesta

Rocha (2003), é a utilização da geografia humanista de base fenomenológica, ou nos dizeres

de Holzer (1987) a geografia humanista-cultural, em documentos curriculares oficiais, como é

o caso brasileiro dos PCN do ensino fundamental, contribuindo sobremaneira para a difusão

da nova pedagogia da hegemonia. 59

Traços gerais da complexa relação entre ciência geográfica e geografia escolar foram

analisados até aqui. Entendendo que são estes dois campos distintos, que trazem consigo

diferentes objetivos e que, exatamente por isso, não lhes cabe a atribuição de valores de

superioridade ou inferioridade, destacamos o que se alterou e o que permaneceu no ensino da

disciplina ao longo do tempo. Porém, quando se trata de evidenciar características e elementos

particulares da geografia escolar brasileira, contexto do presente trabalho, só podemos fazê-lo

quando se move o foco para a trajetória do currículo escolar no Brasil. É à luz desse campo

educacional e sob o enfoque da diferença entre o conhecimento escolar e o conhecimento

científico que podemos ter mais clareza das implicações dessa trajetória na prática educativa

dos professores e professoras de geografia de nossas escolas. Assim, passamos agora a um

breve relato da constituição e desenvolvimento da geografia escolar brasileira com o intuito

de identificar elementos essenciais para a compreensão da educação geográfica de jovens e

adultos trabalhadores veiculada em diferentes propostas curriculares.

58 SENE, Eustáquio de; MOREIRA, João Carlos. A geografia no dia-a-dia: 5ª série. São Paulo: Scipione, 2000 (Coleção Trilhas da geografia). 59 Ver capítulo 1, p. 57-60.

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2.2 TRAJETÓRIAS DO CURRÍCULO ESCOLAR DA GEOGRAFIA BRASILEIRA

A trajetória da geografia escolar brasileira pode ser considerada, a nosso ver, um bom

exemplo de como “o conhecimento escolar é produzido socialmente para finalidades

específicas da escolarização, expressando um conjunto de interesses e de relações de poder,

em dado momento histórico” (LOPES, 2007, p. 196). Isso porque, em várias fases de seu

processo histórico, a geografia na escola se constituiu em um potencial agente de veiculação

de valores e idéias necessárias à manutenção dos interesses das elites e ao favorecimento das

políticas de Estado. Não sendo, obviamente, exclusividade sua, tal característica influenciou e

vem influenciando seu currículo escrito e prescrito – nos documentos oficiais e nos livros

didáticos – na medida em que o conjunto de conhecimentos que a integra é composto, em boa

parte, por informações e análises que dizem respeito a decisões estratégicas do Estado

brasileiro concernentes ao uso de seu território, o que pode evidenciar interesses públicos e

privados em jogo, bem como as classes e/ou as frações de classes sociais atendidas ou alijadas

dos benefícios produzidos por tais decisões.

Ao mesmo tempo, e talvez em função exatamente dessa sua característica

marcadamente política, em muitos outros momentos, a geografia desenvolvida pelos

professores da escola básica proporcionou resistências, tanto conservadoras quanto

progressistas. Isso porque foi se moldando a partir de diferentes formas de se pensar a escola,

a sociedade e seus próprios conteúdos e métodos, fato que, longe de representar um processo

linear e homogêneo, acabou por caracterizá-la hoje como um amálgama de correntes e

tendências, muitas vezes anacrônicas e antagônicas, presentes tanto nos documentos oficiais e

livros didáticos quanto nas práticas dos professores. E aqui uma outra particularidade do

conhecimento escolar se torna evidente: “o passado pode permanecer presente, mas sob forma

implícita ou latente, incorporado em habitus intelectuais, em modelos de pensamento, em

procedimentos operatórios considerados como naturais e evidentes, em tradições pedagógicas.

Assim, a dimensão temporal da cultura pode se revestir no interior do currículo de toda a

espécie de graus e de modulações” (FORQUIN, 1992 apud PEZZATO, 2007, p. 5).

Com isso, reiteramos a diferença entre conhecimento científico e conhecimento

escolar, uma vez que, concordando com Lopes (op. cit.), compreendemos este como um

conjunto de saberes didatizados, produzidos socialmente e que incorporam valores sociais –

como as tradições pedagógicas citadas por Forquin. Isso não quer dizer, no entanto, ainda de

acordo com a autora, que desconsideramos o fato de que, em uma perspectiva crítica da

educação, é função da escola a socialização do conhecimento científico.

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108

Com base nesses pressupostos, o currículo da geografia escolar brasileira é analisado

historicamente a partir de dois marcos: a instituição e a consolidação da orientação moderna,

de base positivista e historicista e apoiada na pedagogia tradicional e no movimento da Escola

Nova, e a renovação crítica, influência do marxismo tanto no pensamento geográfico quanto

no pensamento pedagógico brasileiro. Outras tendências, por certo, aparecem nessa breve

análise, porém, consideramos centrais esses marcos tanto em função do poder de ruptura que

tiveram em relação à corrente hegemônica precedente quanto em função da força que exercem

de diferentes formas nas tradições pedagógicas presentes nas políticas de currículo.

2.2.1 A geografia é minha pátria: a consolidação da orientação moderna na geografia

escolar brasileira

Em linhas gerais, o desenvolvimento da educação geográfica no Brasil não difere

muito do processo que verificamos no continente europeu. Suas especificidades se encontram

talvez em determinadas nuances principalmente no que diz respeito ao difícil e problemático

processo de instituição e consolidação, ainda em curso, de um sistema nacional de instrução

pública garantido a todos os cidadãos. Inserida na lógica privatista e elitista que tão

fortemente marcou as políticas educacionais desde os tempos coloniais, a trajetória da

geografia escolar só pode ser compreendida se a considerarmos no âmbito da história da

educação brasileira. Conflitos, disputas e movimentos de ruptura presentes nesse caminhar só

fazem sentido se articulados às inúmeras reformas legislativas, aos interesses hegemônicos

perpetrados pelo Estado, bem como à ascensão de novas orientações pedagógicas.

Assim como na Europa, conhecimentos geográficos se encontram presentes na

educação escolar brasileira bem antes da consolidação e legitimação da geografia como

ciência moderna. Com efeito, podemos dizer que desde a época em que a educação se

organizava em torno da ordem católica Companhia de Jesus tais conhecimentos são

veiculados. Não eram, no entanto, sistematizados em uma disciplina autônoma, pois o Ratio

Studiorum60, o plano de estudos dos colégios jesuítas, negava à geografia esse estatuto. A

aprendizagem de conhecimentos geográficos se dava junto à aprendizagem da leitura, quando,

“a fim de que os alunos melhor compreendessem o trecho de uma obra, objeto de estudo nas

aulas de gramática, lançava-se mão, dentre outras coisas, de informações de caráter

60 O Ratio Ataque Insitutio Studiorum Societatis Jesu, insituído em 1599 pelos jesuítas, se configurava em um programa curricular que regulava todo o ensino ministrado nos colégios da ordem jesuítica. Pautado em elementos da cultura européia, era dominado pelo ensino das “humanidades” e dividido, para os cursos de ensino médio, em currículo teológico, currículo filosófico e currículo humanista (ROCHA, 1996).

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geográfico, bem ao estilo da geografia clássica, no que ela tinha de mais descritiva” (ROCHA,

1996, p. 127).

Com a reforma do Ratio Studiorum, realizada somente em 1832, conhecimentos

geográficos passaram a ser ministrados de forma mais sistemática, porém associados ao

ensino da matemática. Como parte do programa dessa disciplina, portanto, ensinamentos

relativos à astronomia, à cosmografia, à cartografia e mesmo à geometria se inseriam no

estudo das características gerais da Terra, configurando assim a chamada geografia

matemática. Dessa forma, conforme Rocha (ibid.), não só a tradição descritiva de Estrabão,

mas também a tradição matemática de Ptolomeu predominavam nesse currículo de orientação

clássica, cujo objetivo, ainda de acordo com o autor, não era outro que não servir à elite

colonial. Essa perspectiva não só o afastava totalmente da realidade vivida na colônia como

também o fazia desconsiderar por completo a geografia brasileira, seja descrevendo o

território colonial, seja trabalhando com a cartografia local.

A Chorographia Brasílica, obra do Padre Manuel Aires de Casal, publicada em 1817,

pode ser considerada a grande referência da geografia clássica para os professores. Sua

influência foi tão marcante que chegou mesmo a servir de modelo e fonte de informações para

autores de livros destinados ao ensino básico. Sua geografia, no entanto, não passava de uma

coleção de fatos e de um conjunto de nomenclaturas relativas à história, aos elementos

geográficos da paisagem (montes, rios, cabos, portos etc.), à mineralogia, à zoologia, à

fitologia, às cidades e às províncias. E foi inscrita nesses preceitos clássicos que a geografia

foi alçada ao estatuto de disciplina autônoma pela primeira vez em uma instituição educativa

no Brasil. A fundação do Imperial Colégio de Pedro II no Rio de Janeiro, em 1837, criou o

contexto no qual se daria a constituição de tal fato (ibid.).

O surgimento dessa instituição se dá no bojo da reforma constitucional de 1834, que

permitiu maior autonomia às então províncias do Império Brasileiro para que desenvolvessem

e legislassem sobre seus próprios sistemas de ensino. Tais sistemas provinciais, de acordo

com a nova constituição, ficaram responsáveis pelo ensino elementar e secundário, cabendo

ao poder central a política de ensino superior. No entanto, como o Rio de Janeiro, capital do

Império, se configurava à época como Município da Corte, isto é, uma unidade territorial

vinculada diretamente ao poder central, coube a este estabelecer naquela cidade as regras e o

controle sobre a educação básica. Assim, tal prerrogativa possibilitou a fundação do Imperial

Colégio Pedro II, instituição de ensino secundário localizada em um prédio da região central

da cidade onde funcionava o Seminário de São Joaquim, derivado, por sua vez, do antigo

Colégio dos Órfãos de São Pedro.

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110

Por ter sido destituído do controle direto sobre esse nível de ensino no país como um

todo, o governo central passou a utilizar as políticas adotadas para este colégio como modelo

a ser seguido por todas as outras instituições de ensino secundário, caracterizado à época

como um curso restrito às camadas médias da população e mero preparatório para o ingresso

no ensino superior. Para Rocha (1996), embora o objetivo de configurar o Colégio Pedro II

em padrão nacional não tenha sido totalmente atingido, tal fato revela a intenção em legitimar

os conhecimentos considerados pela elite imperial como aqueles que deveriam ser veiculados

nas escolas brasileiras e assimilados pelas novas gerações.

A geografia introduzida no currículo desta instituição, assim como toda a organização

escolar, tinha como modelo o sistema educacional francês. Pela primeira vez, foram

introduzidos estudos seriados em substituição às aulas avulsas, predominantes até então, com

duração de seis a oito anos e com base em um currículo de orientação fortemente clássica,

formado, além da geografia, por disciplinas como latim, grego, francês, inglês, gramática

nacional, retórica, história, ciências naturais, matemáticas, música vocal e desenho (ibid.).

Vale lembrar que essas disciplinas eram constituídas de conhecimentos bem diferentes do que

concebemos hoje e sob o rótulo de geografia, por exemplo, uma miríade de informações

enciclopédicas, relatos literários e descrições de viagens formavam boa parte de seu conteúdo.

Em função dessa transposição direta do modelo escolar francês, Rocha questiona a

versão bastante disseminada entre os estudiosos da história da geografia escolar brasileira de

que esta, assim como a língua materna e a história, pretendia difundir, desde seu início, a

ideologia do nacionalismo patriótico. Para tanto, o autor se utiliza de fortes argumentos,

dentre os quais se destacam: 1) a ausência da geografia do Brasil entre os conteúdos

ministrados, uma vez que a base para a programação da disciplina eram versões de manuais

didáticos franceses61; 2) o modelo metodológico adotado, que organizava os tópicos

programáticos em uma seqüência que deveria partir do que era mais geral e mais distante para

o que era mais particular e próximo (da descrição da esfera celeste, por exemplo, à descrição

do Brasil); 3) o pouco tempo destinado ao tripé língua materna, geografia e história em

detrimento às letras clássicas, como latim, grego e francês; 4) a inexistência de um sistema

nacional de ensino que alcançasse todos os recantos e classes sociais do país. Com isso, o

autor considera que a difusão do nacionalismo não foi a razão principal da inclusão da

61 Essa ausência se deve, em boa parte, à falta de conhecimento sobre o território nacional até então. Somente em 1838 seria fundado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), responsável por organizar os fatos históricos e estabelecer princípios gerais para o conhecimento do país (VLACH, 2004).

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111

geografia como disciplina escolar obrigatória no Brasil, já que as fontes históricas levantadas

não deixam evidente tal versão.

Com efeito, encontramos em Vlach (2004) outras razões para o surgimento da

disciplina geografia no Colégio Pedro II. Como dissemos antes, o ensino secundário estava

marcado àquela época como uma passagem em direção aos cursos superiores, fato que

caracterizou as primeiras intenções educativas do Colégio Pedro II, a despeito do discurso

oficial direcionado à definição de um colégio padrão. Para a autora, a presença da geografia

nos exames para as faculdades de direito desde 1831 pode ter se constituído, na verdade, na

principal contribuição para a inclusão da disciplina na organização curricular do colégio. Isso

não quer dizer, no entanto, que em outros momentos históricos, como abordaremos mais

adiante, a preocupação com a propagação do ideário nacionalista não fosse considerada.

Em todo o período do Império, portanto, a orientação clássica predominou de forma

bastante clara na geografia escolar brasileira. Como o currículo nacional era basicamente

inspirado no que se fazia no Colégio Pedro II, podemos perceber, através da análise de seu

conteúdo programático, que a geografia descritiva era a principal referência, a ponto de, em

alguns momentos, ser essa a denominação utilizada para a disciplina. As várias reformas pelas

quais a organização curricular do Colégio passou enquanto instituição imperial não alteraram

a referência clássica. Em um curso secundário distribuído por sete anos, a geografia aparecia

sempre em quatro ou cinco anos, geralmente com uma ou duas aulas semanais. A estrutura

organizacional de seu conteúdo obedecia, como já dito, à lógica do geral ao particular e

percorria um caminho que partia das leis gerais para chegar à descrição dos elementos do

território brasileiro, conforme atesta o programa estabelecido pela reforma de 1870 (1º ano:

“geografia elementar e descritiva em geral”; 2º ano: “continuação da geografia, especialmente

a da Europa e da América”; 3º ano: “continuação da geografia, incluída a antiga”; 7º ano:

“corografia do Brasil, mineralogia e geologia, cosmografia”) (ROCHA, 1996).

No final do Império, porém, ecos do positivismo europeu chegavam à educação

brasileira junto a tentativas de implementação de princípios liberais nas leis educacionais. Sob

a tutela do ministro Carlos Leôncio de Carvalho, alguns decretos foram baixados em 1879,

trazendo para a educação nacional, dentre outras intenções, o preparo científico dos alunos.

Encaminhados à Câmara dos Deputados, tais decretos foram analisados através de pareceres

da Comissão de Instrução Pública, cuja relatoria à época estava a cargo do deputado Ruy

Barbosa (ibid.).

O contexto político-econômico daquele momento era marcado pelo primeiro surto

industrial do país com o surgimento de indústrias de bens de consumo não duráveis –

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112

basicamente fábricas de tecidos, bebidas e alimentos – localizadas em alguns centros urbanos,

geralmente capitais das principais províncias, com destaque para o Rio de Janeiro, ou em

áreas rurais de produção açucareira ou cafeeira. Embora dominado pelas oligarquias rurais e

escravocratas e caracterizado pela economia de arquipélago, isto é, uma organização sem a

perspectiva da integração nacional da produção, uma vez que os poucos centros industriais

existentes tinham como objetivo apenas o abastecimento de regiões próximas e não o mercado

nacional, o país, de certa forma, iniciava um processo econômico que, na visão de alguns

intelectuais, exigia mudanças no sistema educacional. Para Zanatta (ibid.), “o acesso do povo

à escola tornava-se imprescindível, à medida que o mundo do trabalho começava a se

diversificar e a exigir alguns pré-requisitos como a leitura, a escrita, o conhecimento da

aritmética, mesmo para o exercício das atividades mais simples na fábrica ou na prestação de

serviços” (p. 175). Para tanto, a escola verbalista e elitista não bastavam.

Os pareceres de Ruy Barbosa, datados de 1882, acabaram engavetados e encobertos

por outros interesses do legislativo à época, mas se fizeram marcos das primeiras tentativas de

implantação de uma educação liberal e positivista. Ainda de acordo com Zanatta, “seu projeto

de reforma educacional traduzia a influência dos fundamentos científicos e psicológicos de

uma didática mais adequada a um ensino objetivo, eficiente e criador, baseado na realidade e

na natureza viva do aluno” (p. 175). Daí, a forte referência à pedagogia de Pestalozzi, cujo

método intuitivo, refinado pelo cientificismo positivista, deveria presidir todas as disciplinas

escolares, uma vez que, para ele, suscitava o espírito científico, a curiosidade e o gosto pela

experimentação.

Nessa perspectiva, o ensino da geografia tinha lugar especial, desde que assentado na

geografia científica moderna. Ferrenho crítico da geografia que se praticava nas escolas até

então, Ruy Barbosa não poupava críticas a certos manuais didáticos. Um deles, a Pequena

Geographia da Infância, de Joaquim Maria de Lacerda, voltado para a educação primária, foi

alvo de questionamentos em seu parecer sobre o ensino primário. Iniciando o programa com

algumas definições geométricas, “noções indispensáveis de cosmografia” (linhas e círculos do

globo, latitude e longitude, estações do ano) e “definições geográficas” (continente, região,

país, ilha, cabo, oceano, golfo etc.), bem ao estilo da geografia matemática e da geografia

descritiva, o compêndio seguia com a “geografia geral e particular” de todos os continentes

para chegar a uma descrição também interminável dos estados brasileiros (LACERDA, 1907).

Ruy Barbosa, considerando-o como crime pedagógico, concluiu em seu parecer que, dessa

forma, o ensino de geografia era inútil e embrutecedor, e chamou a atenção para o fato de em

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113

nenhum momento o estudo ser iniciado pelo município ou pelo país do aluno, o que

contrariava o método intuitivo por ele defendido.

Para Zanatta (2005), os pareceres de Ruy Barbosa anteciparam o escolanovismo, uma

vez que atribuíam especial significado à atividade do aluno. Tal análise se aproxima das

considerações de Rocha (1996), para quem o então deputado pode ser visto como precursor da

geografia escolar de orientação moderna no Brasil. Segundo este autor, mesmo não tendo sido

implementada de fato, a geografia anunciada por Ruy Barbosa pode ser considerada como o

início do ocaso da geografia clássica na educação brasileira.

De acordo com Vlach (2004), a mudança de perspectiva na própria ciência geográfica

brasileira se dá no âmbito da escola e seu marco inicial pode ser considerado o lançamento de

um livro didático voltado para o ensino secundário denominado Compêndio da geografia

elementar, de Manuel Said Ali Ida, datado de 1905 e única publicação de geografia desse

pesquisador da língua portuguesa e professor de alemão do Colégio Pedro II, onde também

lecionou francês, inglês e geografia. Para a autora, sua principal inovação dizia respeito à

divisão regional do Brasil proposta pelo autor, já que o que predominava à época era uma

divisão meramente administrativa pautada em uma excessiva nomenclatura dos estados

brasileiros, vistos então de forma isolada. A proposta apresentada dividia os estados então

existentes nas seguintes regiões: Brasil Central ou Ocidental (Mato Grosso e Goiás); Brasil

Setentrional (Amazonas e Pará); Brasil de Nordeste (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do

Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas); Brasil Oriental (Sergipe, Bahia, Espírito Santo,

Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo); Brasil Meridional (Paraná, Santa Catarina e Rio

Grande do Sul).

Vlach, porém, reconhece que, apesar da inovação, Said Ali Ida manteve a descrição

individual dos estados e não procedeu a análise regional baseada em critérios naturais, o que

caracterizava a geografia desenvolvida pela escola francesa de Vidal de La Blache. As

condições objetivas para esse procedimento só puderam ser encontradas nas duas décadas

seguintes por Carlos Delgado de Carvalho, que após longo período de estudos na Europa, foi

responsável pela introdução da geografia moderna nas escolas e nos centros de produção de

conhecimento geográfico no Brasil.

Profundo crítico da visão mnemônica, não científica e descritiva, bem como da

geografia administrativa e do excesso de nomenclatura geográfica, tão presentes no ensino da

disciplina, Delgado de Carvalho não só incorporou a visão moderna em toda sua plenitude,

como também inaugurou a geografia pátria, que a partir de então passou a ocupar

paulatinamente as salas de aula das escolas brasileiras. Além disso, suas reflexões e produções

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114

voltadas para a geografia escolar tiveram um rebatimento estrondoso na então incipiente

ciência geográfica brasileira, contribuindo sobremaneira para seu o desenvolvimento.

De todas essas contribuições, no entanto, a introdução da chamada geografia pátria

seria, a nosso ver, a mais destacada. Conforme Vlach (2004), o nacionalismo patriótico e a

formação da nação brasileira eram ainda grandes questões que preocupavam a arena política

nacional, uma vez que, embora a independência estivesse prestes a completar cem anos, esse

era um processo ainda inconcluso e, por isso, se tornara inadiável. Formar um único povo,

uma única nação era, na visão da elite política, intelectual e econômica, o desafio daqueles

anos iniciais do século XX e à educação escolar caberia a função primordial de disseminar e

veicular idéias e valores que contribuíssem para essa empreitada. Nesse contexto, a geografia

era considerada peça-chave e Delgado de Carvalho exerceria papel de destaque naquele

momento, fato que pode ser comprovado através de suas próprias palavras:

O ensino da geografia pátria é, entretanto, um dever de inteligência e de patriotismo. Aos nossos jovens patrícios não devemos apresentar a geografia do Brasil como uma disciplina austera e ingrata ao estudo. Por meio de bons mapas, de gráficos, de perfis, de diagramas, de fotografias, se for possível, é preciso torná-la fácil e cativante. É pelo conhecimento do país, pela consciência de suas forças vivas que podemos chegar a apreciá-lo a seu justo valor. [...] Em semelhantes estudos será colhido um patriotismo verdadeiro, esclarecido e inteligente, sem frases retumbantes, não um patriotismo incondicional e cego, mas, sim, justificado e nobre (CARVALHO, 1913 apud VLACH, ibid., p. 194).

Um patriotismo de bases científicas, considerava, na verdade, o autor. Tal fato

demonstrava sua profunda preocupação com o reconhecimento da geografia como ciência e

não como uma mera listagem de nomes e dados a memorizar. Nesse sentido, é mister

recorrermos à sua Metodologia do ensino geográfico, obra de 1925, na qual Delgado de

Carvalho apresentou os princípios da orientação moderna para o ensino da geografia62 e

justificou a divisão em regiões naturais como um dos principais pressupostos dessa nova

perspectiva, como ilustra a seguinte passagem:

Procurar no estudo da geographia a ordem natural das coisas, demonstrando que, não coincidindo os moldes da divisão administrativa com os da geographia physica, humana, econômica, etc., não pode a administração servir de base: um ramo das sciencias physicas e naturaes não pode amoldar o seu estudo ao quadro de uma sciencia social. Dahi a nova orientação da geographia para o estudo das regioes naturaes (CARVALHO, 1925 apud ROCHA, 1996, p. 239).

62 Lembramos que os pareceres de Ruy Barbosa e o livro didático de Manuel Said Ali Ida, citados anteriormente, são considerados anúncios de uma geografia de base moderna, tendo cabido a essa obra de Delgado de Carvalho a entrada definitiva de tais preceitos no Brasil.

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Como se vê, a fisiografia era a base da geografia para Delgado de Carvalho. Provável

explicação para essa concepção pode estar na influência da epistemologia positivista, já que

esta preconizava que a ciência, seja ela qual fosse, deveria ter no método das ciências naturais

o paradigma através do qual seria reconhecida e legitimada enquanto tal. Além disso, o

princípio da causalidade, bastante próprio do pensamento positivista, permitia considerar a

fisiografia como um conhecimento científico das causas dos fenômenos. Nesse sentido, Vlach

(2005) contribui para o entendimento da questão ao dizer que Delgado de Carvalho

considerava a geografia física como sustentáculo da geografia social, pois, segundo ele, “é na

geografia humana, baseada em sólidos conhecimentos de fisiografia, é na geografia causal,

segundo uma expressão moderna, que serão descobertos os ‘porquês’ de nossa nacionalidade”

(CARVALHO, 1925 apud VLACH, ibid., p. 157). Assim, concordando com as considerações

da autora, podemos dizer que Delgado de Carvalho concorreu para o desenvolvimento de uma

geografia voltada para os interesses do capital através da ideologia nacionalista burguesa

pautada no falso pressuposto de igualdade para todos e da afirmação da geografia como

ciência neutra.

A chamada orientação moderna de geografia, defendida por Delgado de Carvalho,

acabou se disseminando no ensino secundário, não sem resistências por parte de muitos

professores. Tal processo se iniciou a partir do novo programa do Colégio Pedro II63

instituído com base na reforma educacional de 1925, redigida pelo Professor Rocha Vaz,

então reitor da Universidade do Rio de Janeiro, e implementada na gestão Luiz Alves à frente

do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, pasta na qual as políticas educacionais estavam

inseridas. Essa reforma consolidou oficialmente o papel do Colégio Pedro II como escola

modelo para todo o país ao impor a todos os estabelecimentos oficiais de ensino secundário a

adoção de seu currículo. De acordo com Rocha (1996), em seu bojo se encontrava claramente,

pela primeira vez, a intenção em difundir o nacionalismo patriótico, uma vez que, entre outras

ações, recomendava aos professores uma seleção cuidadosa dos textos a serem trabalhados

nas disciplinas consideradas próprias para difusão dessa ideologia: a língua materna, a

literatura, a história e a geografia.

63 Com a proclamação da República, o Imperial Colégio Pedro II passa a se denominar Gymnasio Nacional, como forma de apagar qualquer vestígio do regime anterior. Com a reforma educacional implementada por Rivadávia Corrêa, em 1911, o nome da instituição sofre nova mudança e passa a se chamar Colégio Pedro II (ROCHA, 1996).

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A reforma Luiz Alves-Rocha Vaz estabeleceu para a geografia sua presença em três

dos seis anos previstos para o secundário, dividindo da seguinte forma seus conteúdos: no

primeiro ano, temas da geografia geral; para o segundo ano a geografia do Brasil; e no quinto

ano, conhecimentos de cosmografia. Seguindo a perspectiva regionalista moderna, a

introdução inovadora da divisão regional com base nos aspectos naturais em detrimento à

divisão administrativa se deu na quarta parte do programa de geografia para o primeiro ano.

Ao segundo ano, porém, coube o maior peso para o projeto nacionalista. Nessa fase, os

estudos sobre o Brasil se iniciavam pela fisiografia, seguidos pela antropogeografia com

ênfase na economia nacional e na tentativa, segundo Rocha (1996), de analisar os “interesses

econômicos brasileiros”. A regionalização do território brasileiro com base na região natural

também seria introduzida nesse período, aparecendo então cinco regiões que tinham como

base a divisão proposta por Said Ali Ida, conforme mencionamos anteriormente. Vale lembrar

que os estudos regionais se apresentavam conforme o esquema natureza-homem-economia

(N-H-E), no qual predominava uma visão fragmentada da realidade.

Assim, se instituía nas escolas brasileiras não só a perspectiva positivista-historicista

de geografia, na qual concepções ratzelianas e lablachianas se mesclavam, como também se

assumia oficialmente a função da educação escolar em veicular o sentimento patriótico na

população com vistas a consolidar o projeto nacionalista, tão caro às elites naquele momento

histórico.

No entanto, introduzida essa perspectiva, o desafio passava a ser a disseminação de

seus preceitos entre os professores e a sua continuidade nas reformas curriculares que se

seguiriam. Nesse sentido, o novo contexto político, social e econômico que passava a marcar

o país a partir de 1930 exerceria forte influência na política educacional como um todo e

favoreceria sobremaneira o desenvolvimento da geografia escolar. No campo econômico, o

Brasil enfrentava a queda nas exportações de produtos agrícolas, sobretudo do café, através do

incentivo à expansão industrial, o que contribuía para a implantação definitiva do capitalismo

industrial no país. Na arena política, o descontentamento com a velha política dominada pelas

oligarquias rurais se manifestava com o crescimento de reivindicações por parte das várias

camadas sociais, principalmente pela classe média e pelo operariado urbano. Esses fatos

redundariam na chamada revolução de 1930, ponto alto de uma série de movimentos armados

e que, segundo Romanelli (1997), se configurou em “um reajustamento constante dos setores

novos da sociedade com o setor tradicional, do ponto de vista interno, e, destes dois, com o

setor internacional, do ponto de vista externo” (p. 47).

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O reflexo desse novo contexto histórico na educação se tornou evidente a partir da

reforma educacional levada a cabo pelo governo pós-30. A expansão educacional então

defendida desejava favorecer o novo projeto econômico, além de dar vazão às demandas por

serviços e direitos básicos, advindos principalmente da crescente população urbana. Urgia,

por conseguinte, a instituição de um verdadeiro sistema nacional de educação, até então

incipiente, o que foi possível através da reforma educacional do Ministro Francisco Campos,

promulgada em 1931. Tal reforma instituiu pela primeira vez uma estrutura orgânica para o

ensino secundário que deveria ser vigente em todo o território nacional. Novamente o Colégio

Pedro II exerceria a função de padrão a ser seguido e nele seria estabelecido o regime seriado,

além da divisão desse nível de ensino em dois ciclos: o fundamental, com duração de cinco

anos e cuja característica principal era a formação geral básica; e o complementar, com

duração de dois anos, marcado pela formação propedêutica e dividido conforme a área de

escolha do candidato ao ensino superior (ROCHA, 1996). Vale destacar que a geografia se

encontrava presente em todas as séries do ciclo fundamental e em pelo menos uma série do

ciclo complementar voltado aos candidatos aos cursos de direito e aos candidatos para

ingresso nos cursos de engenharia e arquitetura.

É evidente, segundo Rocha (ibid.), a influência do movimento escolanovista nessa

reforma. Suas orientações, marcadas pelos métodos ativos, preconizavam no ensino de

geografia, por exemplo, o aproveitamento das observações e impressões colhidas pelo aluno,

bem como recomendava a realização de excursões para que os alunos pudessem entrar em

contato direto com a natureza. As duas primeiras séries do curso fundamental continham em

seu programa, por exemplo, as “Práticas de Geografia”, que, em conformidade com os

preceitos da Escola Nova, previam experiências sobre os processos de orientação, sobre as

formas de relevo, bem como a leitura de cartas e demonstrações da ação das águas sobre o

modelado.

Importante é destacar que o escolanovismo no Brasil se fez acompanhar de uma série

de reivindicações que iam mais além das preocupações metodológicas. O Manifesto dos

Pioneiros da Educação Nova, de 1932, é expressão desse movimento renovador, que não só

questionava a doutrina pedagógica da denominada pedagogia tradicional, de base positivista e

carregada de uma visão fixista do mundo, mas também fazia contundentes críticas à então

organização educacional do país que não assegurava o direito à educação escolar para todos

os brasileiros, independente do sexo, da origem de classe e da origem étnica. O Manifesto,

escrito por Fernando de Azevedo e assinado por 26 educadores, dentre os quais Delgado de

Carvalho, Anísio Teixeira, Roquete Pinto e Cecília Meireles, reivindicava basicamente uma

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118

ação mais objetiva do Estado na promoção da escola pública obrigatória, gratuita e laica,

porém de forma descentralizada e garantidora da autonomia para a função educativa. De

acordo com Romanelli (1997), muitas dessas reivindicações influenciaram as reformas

seguintes, no entanto, como expressão do embate e dos acordos protocolados entre as forças

conservadoras e liberais, ou, nas palavras da autora, entre a ala velha e a ala nova das classes

dominantes, várias delas cederam espaço à manutenção de antigas características, como, por

exemplo, a manutenção, embora facultativa, do ensino religioso no sistema de instrução

pública.

Assim, esse movimento dito renovador, que reconhecia a sociedade de classes, mas

que veiculava o discurso de que somente a universalização da educação acarretaria a sua

superação e não questionava o modelo desigual de desenvolvimento que se colocava para a

sociedade brasileira, se coadunava com o momento histórico e encontrava na geografia

escolar de base moderna, por exemplo, uma forte aliada.

Em função exatamente da demanda criada com a expansão do sistema público de

ensino a partir desse momento e da reestruturação do ensino superior também estabelecida

pela reforma Francisco Campos, surgia, em 1934, o primeiro curso superior de geografia e

história, na Universidade de São Paulo (USP). Inserido naquele contexto histórico que

instituiu pela primeira vez o regime universitário e constituiu o estatuto das universidades

brasileiras, tal curso visava, a princípio, formar professores para o magistério secundário e se

encontrava no âmbito da também recém-inaugurada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

O mesmo processo aconteceria quatro anos mais tarde, na então Universidade do Brasil, atual

Universidade do Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), indicando, então, o início de um novo

momento para a geografia escolar brasileira, já que, paulatinamente, ela passaria a ser

ministrada por professores formados em geografia. Contando em seus primeiros anos com a

participação de professores e geógrafos franceses, “a contribuição desses novos cursos seria

inquestionável em se tratando da difusão de uma ciência geográfica de orientação moderna,

tanto no campo da pesquisa aplicada quanto para o ensino secundário de geografia” (ROCHA,

1996).

A partir de 1937, o advento do Estado Novo, levado a cabo por Getúlio Vargas e seus

seguidores, traria mais uma reforma educacional, dessa vez sem muitas mudanças em relação

à anterior. Pelo contrário, na reforma Gustavo Capanema (1942) o aspecto propedêutico se

exacerbava e o ensino secundário passava a ser organizado em dois novos ciclos: o curso

ginasial, com duração de quatro anos, e o curso colegial, dividido, por sua vez, em dois outros

cursos a serem escolhidos pelos estudantes: o curso clássico e o curso científico, ambos com

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três anos de duração. A geografia foi extremamente beneficiada com essa reforma e, pela

primeira vez, ela aparecia como componente curricular em todas as séries do ensino

secundário. A sua contribuição para a propagação do discurso patriótico, sem dúvida,

auxiliou, e muito, a conquista desse espaço entre as disciplinas obrigatórias.

Embora, como vimos, o método intuitivo tivesse sido indicado na reforma Francisco

Campos, o currículo de geografia preconizado dessa vez instituía com maior clareza a visão

lablachiana. Sem deixar de considerar a cosmografia, geralmente privilegiada nas séries

iniciais de cada um dos cursos, seu programa era pautado basicamente nas dicotomias

geografia física / geografia humana e geografia geral / geografia regional. A ênfase, contudo,

na geografia física e na geografia regional era evidente. No curso colegial, por exemplo, à

primeira série eram reservados os conhecimentos relativos à geografia física, na segunda eram

os estudos regionais do mundo o eixo a ser seguido, e na terceira série, a geografia do Brasil

era o conteúdo a ser ministrado.

Esse programa era seguido à risca pelos livros didáticos que, a partir de então,

passaram a se proliferar. Na coleção elaborada por Aroldo de Azevedo, por exemplo, ficava

evidente a fragmentação do conhecimento geográfico em seus principais campos

aglutinadores. Ao verificarmos a seqüência de assuntos proposta pelo autor no primeiro

volume, denominado Geografia Física e direcionado ao primeiro ano colegial, constatamos

que não há nenhuma articulação entre aspectos físicos e aspectos humanos. Em seu segundo

volume, intitulado Geografia Regional e destinado ao segundo ano, as regiões do mundo,

embora, de acordo com o autor, tivessem sido divididas segundo critérios de “afinidade de

interesses políticos, econômicos e culturais, com identidades que se fundam nas tradições

históricas” entre os países, eram apresentadas a partir do esquema N-H-E, bem ao gosto do

que se concebia, à época, como o mais moderno em geografia.

Aroldo de Azevedo, na verdade, seria um dos maiores divulgadores desse modo de ver

a geografia nas escolas. De meados dos anos 1940, quando foi lançada a primeira edição de

sua coleção didática, à década de 1970, ele praticamente dominou o mercado editorial

brasileiro no que se refere aos livros didáticos de geografia, sendo responsável, por

conseguinte, pela formação de várias gerações de brasileiros que tiveram em sua obra a

referência sobre o que é ou não geografia. Essa visão disseminada por Azevedo é marcada, de

acordo com Vlach (2004), pela sua filiação à escola francesa de geografia, uma vez que ele é

um dos primeiros egressos do curso de geografia e história da USP, no qual a maior parte do

quadro docente era formado por professores universitários franceses. Influente também na

geografia acadêmica brasileira, Aroldo de Azevedo representou, ainda acompanhando as

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considerações de Vlach, a alienação dos geógrafos dessa geração em relação às grandes

questões nacionais em função da crença no estatuto da neutralidade, bem como da fé no

ideário nacionalista. Em artigo no qual reflete sobre o papel do autor de livros didáticos,

Azevedo deixa escapar facilmente suas concepções:

Em relação aos problemas brasileiros, [o autor de livro didático] deve ser o mais possível realista, desapaixonado, apolítico, sem se deixar levar pela constante exaltação do que é nosso ou transformar-se em instrumento de propaganda político-partidária. Em contrapartida, não pode ter a preocupação do menoscabo e da depreciação das nossas características de Povo e de Nação (1961 apud VLACH, 2004, p. 213).

Dessa forma, compartimentando a realidade através do paradigma “a terra e o

homem”, Aroldo de Azevedo veiculou por meio de seus livros didáticos uma geografia “que

não incentivou discussões metodológicas, que elidiu as classes sociais e os conflitos políticos,

que mascarou a ideologia liberal, enfim, aquilo que, mais tarde, seria apontado como os traços

característicos da geografia tradicional” (VLACH, ibid., p. 215). Contudo, ainda que a

geografia moderna passasse a ser considerada a geografia oficialmente reconhecida, Rocha

(1996) alerta para o fato de que muitos professores, formados ou não em geografia,

mantiveram a velha orientação clássica, mnemônica, descritiva e pautada em vãs

nomenclaturas em suas aulas. Os compêndios de Aroldo de Azevedo, por si só, não foram

capazes de apagar por completo tal perspectiva, apenas contribuíram, em parte, com o

hibridismo entre a concepção clássica e a concepção moderna que passou a marcar a prática

de muitos professores.

Vale lembrar que o período autoritário enfrentado pela sociedade brasileira de 1964 a

1985 assegurou que essa geografia tradicional e conservadora se fortalecesse nas escolas,

levando inclusive à sua supressão como disciplina autônoma a partir da Lei n 5.692/71,

quando se juntou à disciplina história nas séries finais do então recém-instituído ensino de 1º

grau e formou os chamados estudos sociais. Tal contexto histórico fez com que essa

perspectiva fosse abalada apenas a partir do final dos anos 1970 e início dos 1980, quando

passaria a sofrer fortes ataques e se iniciaria o movimento de renovação em direção a

vertentes mais críticas da geografia escolar brasileira.

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2.2.2 A renovação crítica e o apelo por uma geografia escolar engajada na luta por

justiça social

Como todo movimento de renovação que prevê fortes rupturas com o instituído, a

introdução dos preceitos da chamada geografia renovada, crítica ou radical nas escolas

brasileiras não se deu de uma hora para outra. A visão de uma geografia questionadora e

inconformada com as injustiças sociais foi, somente aos poucos, chegando às instituições que

trabalhavam com o conhecimento geográfico. Na academia, é comum entre os estudiosos da

história da geografia no Brasil a identificação do marco inicial da chegada da vertente crítica

como sendo o III Encontro Nacional de Geógrafos (ENG), realizado em Fortaleza (CE), em

1978. Nessa ocasião, alguns geógrafos que estiveram fora do país em função da ditadura

militar haviam retornado com idéias e trabalhos já inseridos nessa perspectiva, dentre os quais

Milton Santos, que mais tarde seria considerado um dos maiores expoentes da geografia

contemporânea brasileira.

No entanto, como nenhum processo de renovação se inicia a partir apenas de um

acontecimento histórico, Vesentini (2004) contesta essa versão e alerta para o fato de que bem

antes desse evento e de trabalhos, artigos e teses acadêmicas abordarem os fenômenos

geográficos através da perspectiva crítica, alguns professores da escola básica já praticavam

uma geografia escolar diferente da tradicional nas suas salas de aula. Utilizando-se de novas

estratégias, como debates e textos considerados críticos, e de novos conteúdos, como

distribuição social da renda, pobreza no espaço e subdesenvolvimento, esses professores se

baseavam, segundo o autor, tanto no que já vinha sendo feito por alguns poucos geógrafos,

como na produção de outras áreas do conhecimento – história, sociologia, economia,

principalmente – já influenciadas pelo pensamento marxista. Além disso, a luta social e o

embate político contra a ditadura em que muitos se envolviam possibilitavam o

desenvolvimento de uma visão bem mais questionadora da sociedade e os ajudava a

transplantar essas preocupações para as aulas de geografia.

Ressaltando que a geografia crítica escolar sempre possuiu uma dinâmica própria e até

certo ponto independente da sua vertente acadêmica64, Vesentini (ibid.) exemplifica suas

considerações ao afirmar que “uma parte importante dos geógrafos críticos acadêmicos

começou como professores dos ensinos fundamental e médio, e foi em grande parte aí que

64 Queremos deixar claro que quando falamos sobre a academia brasileira, estamos nos referindo às universidades públicas que desenvolvem pesquisa científica. Com poucas exceções, as instituições de ensino superior particulares têm proliferado sem condições materiais ou sem o objetivo institucional de realizar pesquisas.

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122

eles iniciaram as suas reflexões e as novas abordagens, que depois foram sistematizadas ou

reelaboradas com vistas à produção de trabalhos universitários” (p. 225). Tal movimento

apenas repetiu no Brasil o que já vinha acontecendo em outros países, como é o caso de Yves

Lacoste na França, que, segundo o autor, iniciara suas reflexões críticas a respeito dos

assuntos geográficos como professor da escola básica, muito antes de desenvolvê-las em

pesquisas acadêmicas. Com isso, Vesentini não quer dizer, obviamente, que não há

interlocução entre universidade e escola, nem que o desenvolvimento da perspectiva crítica na

ciência geográfica não foi de extrema importância para a geografia escolar. Assim como nós,

o autor apenas enfatiza a diferença entre o conhecimento científico e o conhecimento escolar

e exemplifica, mais uma vez através da geografia, como ambos formam uma unidade, não

sendo, porém, idênticos.

Portanto, convivendo ainda durante muito tempo com práticas tradicionais oriundas

das orientações moderna e clássica, a geografia escolar crítica foi se disseminando no sistema

educacional, segundo ainda Vesentini (2004), pautada nos princípios da criticidade, entendida

como a análise do espaço geográfico que leva em conta seus conflitos e contradições, e do

engajamento, tomado como a superação da neutralidade e o compromisso com a justiça

social. Para o autor, o diálogo com a Escola de Frankfurt, com alguns pensadores anarquistas,

bem como com as teses foucaultianas e marxianas formou a base da nova maneira de pensar a

geografia no Brasil. Dentre os marxistas, Gramsci teria exercido a maior influência

justamente na confluência entre os docentes da educação básica e a academia – fato que

oficializou o pensamento crítico na geografia –, uma vez que “o conceito gramsciano de

hegemonia com base cultural foi o leitmotiv que conduziu esses professores críticos até a pós-

graduação, até as pesquisas e a carreira universitária” (p. 231)65.

Além da incorporação dos princípios da criticidade e do engajamento, os educadores e

geógrafos críticos argumentavam que as alterações ocorridas nas relações políticas

internacionais ao longo do século XX levaram os preceitos da geografia moderna a uma

profunda crise. A divisão do mundo em regiões geográficas isoladas, com base em critérios

físicos, não dava mais conta de explicar satisfatoriamente um espaço cada vez mais

mundializado pelo capitalismo e pelo surgimento de novas formas de dominação, muito mais

65 Embora a filiação aos preceitos do materialismo histórico e dialético prevalecesse entre os geógrafos e professores, diversos embates teóricos marcaram e têm marcado o debate sobre o que seria de fato a geografia crítica, seja em sua vertente científica quanto escolar. Por esse motivo, concordamos com a afirmativa de que há, na verdade, muitas geografias críticas, no plural, e não apenas uma única. Porém, para os propósitos desta seção do presente trabalho, optamos por privilegiar o movimento de renovação como um todo, deixando de evidenciar, por conseguinte, suas nuanças e diferenças. Assim, a expressão geografia crítica, no singular, expressa aqui todo esse movimento, incluindo aí seus embates, conflitos e contradições.

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pautadas nas relações políticas e econômicas do que em conquistas territoriais. A própria

ideologia patriótica e nacionalista perdia sua importância, uma vez que a expansão industrial a

partir do núcleo capitalista internacional se dava, em grande parte, através da

“transnacionalização” de grandes corporações pautada, por sua vez, em uma nova rede global

de comunicações que articulava realidades locais, regionais e nacionais. Assim, justificados

por uma nova ordem mundial e considerando a educação e o ensino da geografia como um

instrumento de conscientização, era comum encontrarmos em textos desses professores a

tarefa e a opção que, julgavam eles, os outros professores deveriam exercer. Em um desses

textos, datado de 1987, Oliveira (2003) afirmava:

Com o professor de geografia (e de história) no ensino de 1º e 2º graus está a tarefa de desenvolver na criança e com ela a visão de totalidade da sociedade brasileira. E esta totalidade é produto da unidade na diversidade, logo, síntese de múltiplas determinações. A ele cabe a tarefa de ensinar os conceitos elementares da geografia, economia, política sociologia, antropologia, e outras ciências humanas e da natureza: geologia, geomorfologia, climatologia, astronomia, etc. [...] Nos dias de hoje só tem havido lugar para duas grandes vertentes ideológicas no ensino da geografia. Ensinar uma geografia neutra, sem cor e sem odor. Uma geografia que cria desde o início trabalhadores ainda que crianças, ordeiros para o capital. Ou ensinar uma geografia crítica, que forme criticamente a criança, voltada, portanto, para seu desenvolvimento e sua formação como cidadão (p. 143, grifos do autor).

Não é difícil supor que essa prerrogativa estava muito distante e não era de todo

compreendida pela grande maioria dos professores de geografia das escolas brasileiras. Em

outro artigo da mesma obra onde encontramos as palavras de Oliveira, Moraes (2003) alertava

para a dificuldade de muitos professores em acompanhar a “fronteira teórica da discussão”,

argumentando que a formação desses professores, desenvolvida em outros moldes, fazia-os

sentirem-se estranhos frente às propostas que surgiam. Moraes continuava afirmando: “o nível

de novidade vivenciado pela renovação geográfica é tão alto que sua integral compreensão

demandaria quase um novo curso regular dos professores formados há mais tempo” (p. 121).

Devemos lembrar ainda que muitos desses professores não eram formados em geografia, fato

comum até os dias atuais, a despeito da relativa proliferação dos cursos de licenciatura, o que

revelava a situação precária em relação à compreensão sobre o que é específico da abordagem

geográfica. Além disso, as difíceis condições de trabalho, a elevada carga horária a cumprir e

o grande número de alunos nas salas de aula muito dificultavam – e ainda dificultam –

reflexões e mudanças mais profundas.

De qualquer forma, é incontestável a importância dos professores críticos, tanto os que

migraram para as universidades como aqueles que permaneceram na educação básica. As

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pesquisas dos primeiros fortaleceram e consolidaram os fundamentos da geografia crítica

acadêmica. A prática pedagógica dos segundos alimentou o conhecimento escolar com

análises mais condizentes com a realidade vivida pela maioria dos alunos do sistema público

de ensino. Influenciada também pela pedagogia crítica, movimento em ascensão naquele

mesmo período66, a geografia escolar, no entanto, só daria organicidade a esse movimento a

partir da introdução de uma nova lógica em relação à seleção e à organização de seus

conteúdos. Nesse sentido, podemos dizer que um dos principais meios de disseminação da

concepção crítica foram as novas coleções didáticas de ensino médio lançadas principalmente

a partir do início dos anos 1980.

Com base na organização curricular implementada com a Lei 5.692/71, os livros

didáticos de geografia passaram a ser elaboradas em quatro volumes para o ensino de 1º grau

e geralmente dois volumes para o ensino de 2º grau. Essa reforma educacional levada a cabo

pelos militares dividiu o ensino secundário e fundiu o curso ginasial ao ensino primário,

formando assim o ensino de 1º grau com duração de oito anos (quatro para o primeiro

segmento – antigo primário – e quatro para o segundo segmento – antigo ginásio). Os três

anos do curso colegial passaram a compor o ensino de 2º grau, extinguindo os cursos clássico

e científico e instaurando a formação geral e a formação profissional. Vale lembrar que essa

mesma reforma, ao juntar a história e a geografia no componente curricular denominado

estudos sociais, foi responsável pela redução da carga horária dessas disciplinas no então

ensino de 1º grau, pois as mesmas duas ou três horas/aula semanais que cada uma possuía

passaram a ser utilizadas para o desenvolvimento de seus conhecimentos aglutinados, embora

muito pouco articulados. No processo de redemocratização do país, a separação das duas

disciplinas foi uma das maiores bandeiras de luta de professores, sindicatos e associações

docentes.

Com a extinção dos estudos sociais em meados dos anos 1980, surgiram as primeiras

coleções didáticas de geografia para o segundo segmento do 1º grau com abordagem crítica.

Contudo, para Carvalho (2004), o primeiro livro didático de geografia crítica no Brasil pode

ter sido Estudos de Geografia, de Melhem Adas, cuja primeira edição data de 1979.

Preocupações como “romper com a concepção de uma geografia descritiva ou enumerativa e

mostrar que ela deve ser lida com uma multiplicidade de fenômenos” (ADAS apud

CARVALHO, ibid., p. 48) estavam presentes na apresentação da obra, o que demarca a

filiação do autor a algo diferente da geografia praticada nas escolas até então. No entanto,

66 Em relação às diferentes vertentes da pedagogia crítica em voga naquele momento histórico, ver Capítulo 1, p. 65-67.

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Adas seria mais explícito e incorporaria a nova abordagem de forma mais sistematizada nas

edições lançadas a partir de meados dos anos 1980, tanto para o 1º quanto para o 2º grau. A

adoção da perspectiva histórica para a compreensão da formação socioespacial brasileira e

mesmo das relações internacionais pautadas na divisão internacional do trabalho, além da

análise dos modos de produção como condicionantes das relações dos homens entre si e

destes com a natureza são, a nosso ver, indícios evidentes da perspectiva crítica na geografia

apresentada pelo autor. Contraditoriamente, porém, Adas (1995) manteve em sua coleção

voltada para o 1º grau uma divisão regional baseada em critérios físicos. Seu terceiro volume,

por exemplo, voltado para a então sétima série, embora traga em seus primeiros capítulos

estudos sobre os conceitos de desenvolvimento e subdesenvolvimento e as características dos

modos de produção capitalista e socialista, é todo voltado para a geografia do continente

americano, analisado, por sua vez, a partir das regiões naturais (América andina, América

platina, Caribe etc.). Tal manutenção talvez revele a força da divisão regional pautada em

critérios físicos, o que pode ter se configurado em uma verdadeira tradição pedagógica da

geografia escolar. Ou ainda uma opção estratégica com a intenção de atrair aqueles

professores formados em outra perspectiva.

De qualquer forma, nem todos concordavam com essa opção e outras coleções

didáticas tentavam romper de vez com as regiões naturais. Vesentini (2003b), por exemplo,

considerava um contra-senso a geografia da América como unidade de estudo justamente por

ser o critério geológico – os continentes – o definidor desse recorte espacial. Dizia ele que se

o espaço geográfico é um espaço social, a sua divisão deve se basear sempre em critérios

econômicos, políticos e sociais, ou seja, a questão internacional a ser estudada em uma

perspectiva crítica da geografia deve partir da divisão territorial e internacional do trabalho.

Para o autor, “tentar estudar a ‘geografia da América’ com os conceitos e categorias que estão

sendo engendrados pela geografia crítica é pegar um envoltório novo para aí colocar um

conteúdo velho, é tentar separar conteúdo e forma” (p. 112). Por isso, na coleção didática que

elaborou em parceria com Vânia Vlach, intitulada Geografia Crítica (1996)67, o volume

voltado também para a sétima série apresentava nos oito capítulos de sua primeira unidade

(Como regionalizar o espaço mundial?) uma longa discussão sobre as diferentes formas e

critérios de regionalização. Optando por trabalhar nesse volume o “mundo industrializado”

(Europa, Comunidade de Estados Independentes, Estados Unidos e Canadá, Japão e Austrália

67 Consideramos as coleções de Melhem Adas e de José William Vesentini e Vânia Vlach como as mais emblemáticas do movimento de renovação crítica da geografia no ensino fundamental.

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126

e Nova Zelândia), Vesentini reserva para o quarto volume o estudo do “mundo

subdesenvolvido” (América Latina, África e Ásia).

Nota-se, portanto, que a revisão da questão regional era extremamente cara à geografia

escolar crítica. Cerne dos estudos geográficos durante décadas nas escolas, a velha geografia

regional francesa era questionada, mas seus traços ainda são vistos até hoje, tanto em manuais

didáticos, como em propostas curriculares, como nas práticas dos professores. Isso nos remete

à reflexão sobre a relação entre as escalas de análise e os recortes espaciais, uma das questões

primordiais na discussão contemporânea relativa à seleção e organização do conhecimento

geográfico escolar e que será abordada em seções posteriores deste trabalho.

Vale destacar que essas diferenças na organização dos conhecimentos nos livros

didáticos foram possíveis em função da descentralização na definição dos programas

disciplinares propiciada pela Lei 5.962/71. Tal legislação, ao contrário das anteriores reformas

Francisco Campos (1931) e Gustavo Capanema (1942), reservava aos estados e municípios a

autonomia na constituição de seus programas disciplinares, possibilitando também a diferença

na carga horária das disciplinas a partir de um padrão mínimo, porém unificando a presença

dos mesmos componentes curriculares em todos os sistemas locais e regionais de ensino. Nem

todos os entes federativos, contudo, usufruíam dessa prerrogativa, o que levava muitos a

adotarem a organização programática proposta por autores dos manuais didáticos.

No ensino médio, Adas e Vesentini também atuavam, mas chamamos a atenção nesse

nível de ensino para a coleção Geografia: ciência do espaço – o espaço mundial, de

Diamantino Pereira, Douglas Santos e Marcos de Carvalho (1993). Na quarta edição da

coleção lançada pela primeira vez em 1987, os autores justificavam alterações necessárias

tanto em função de mudanças ocorridas no espaço geográfico mundial quanto em razão do

aprimoramento na abordagem dos temas, mas reforçavam o mesmo método de investigação

geográfica adotado desde a primeira edição. Em tal método, o espaço é analisado com base no

funcionamento das forças produtivas, o que remete a geografia à investigação do modo pelo

qual a sociedade produz o espaço geográfico. A partir desse princípio, os autores organizam

grandes temas da geografia (indústrias, cidades, campo, transportes, população, cartografia)

de acordo com os três elementos do espaço que, segundo eles, “definem a forma e a dinâmica

de vida adotadas pelas pessoas” (p. 6): a produção, a circulação e as idéias. Consideramos

essa obra de fundamental importância para a compreensão do movimento de renovação

crítica, pois tratava-se de uma abordagem claramente pautada nos preceitos do materialismo

histórico e dialético que, embora corresse o risco de exacerbar uma visão economicista, trazia

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127

perspectivas que de fato rompiam com a visão conservadora presente nas diferentes

tendências da geografia tradicional.

Apesar de os livros didáticos serem encarados por nós como importantes elementos

das políticas de currículo, como guias curriculares que veiculam idéias e concepções acerca

do que é ou não conhecimento escolar, eles não são os únicos artefatos que divulgam

preceitos e métodos das disciplinas escolares. No caso da disseminação da geografia crítica,

por exemplo, também exerceram importante papel algumas propostas curriculares

implementadas por redes estaduais.

No final da década de 1980, o estado de São Paulo, por exemplo, constituiu, no âmbito

da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP), uma proposta curricular a partir

do trabalho desenvolvido por uma equipe formada por pesquisadores de universidades

públicas. Para a parte referente à geografia, foram chamados professores do Departamento de

Geografia da USP, os quais, segundo Pontuschka, Paganelli e Cacete (2007), “se propunham

não apenas elaborar um rol de conteúdos, mas sobretudo efetuar uma revisão metodológica

com amadurecimento dos princípios fundadores da disciplina” (p. 69). De acordo com as

autoras, considerando a geografia como uma ciência que procura integrar o arranjo espacial

com as relações sociais existentes em cada período histórico, a proposta da CENP, apesar de

não ter atingido todos, foi discutida por um bom contingente de professores do estado,

tornando-se, inclusive, referência na reformulação curricular desenvolvida em outros estados

da Federação. Em seus objetivos voltados para a construção do conhecimento geográfico,

estava bem clara a referência ao pensamento marxista, como podemos constatar a partir das

considerações das autoras:

Em relação ao valor potencial da Geografia para o ensino de 1º e 2º graus, a Proposta da CENP buscava desenvolver no aluno a capacidade de observar, analisar, interpretar e pensar criticamente a realidade, visando a sua transformação. A realidade era concebida como uma totalidade que deveria envolver a sociedade e a natureza. À Geografia caberia a compreensão do espaço geográfico produzido pela sociedade, suas desigualdades e contradições, as relações de produção e a apropriação que a sociedade faz da natureza (PONTUSCHKA et al., ibid., p. 73).

Justamente a filiação ao ideário marxista renderia questionamentos de alguns

professores, que acusavam o documento de não respeitar a pluralidade de idéias e métodos e

privilegiar uma interpretação inscrita em preceitos dogmáticos do próprio marxismo. Assim,

tachavam-no de parcial e discordavam de sua suposta “indefinição temática”, afirmando que

“as Propostas [da CENP] [sintetizavam] um projeto conservador de ensino, um novo status

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quo, o contrapoder que é tão Poder como o Poder” (ARAÚJO e MAGNOLI, 1991, p. 118).

Outros autores analisam tal proposta a partir de seu efeito restrito à introdução de um temário

diferenciado, o que acabou revelando uma preocupação reduzida ao tratamento dos

conteúdos, deixando de lado questões relativas à operacionalização destes a fim de que as

aulas de geografia fossem de fato aulas de geografia (SILVA, 2002).

De toda maneira, agradando a alguns e sendo rechaçado por outros, o documento da

CENP trouxe à baila o debate em torno de que educação e, nesse contexto, que geografia

escolar poderiam acompanhar de forma mais coerente a redemocratização das instâncias

políticas do país, bem como as transformações pelas quais a sociedade e o espaço geográfico

mundial vinham passando. Revelou também o delicado papel dos agentes

recontextualizadores, sobre os quais nos fala Bernstein, os elaboradores da proposta, ao

provocar a difícil compreensão e aplicação de seus princípios nas salas de aula. Concordando

com Moraes (2003), talvez a tentativa de uma implantação direta das teorias e temas de

vanguarda da geografia renovada nas práticas de ensino, algo que nos parece claro no

processo instituído pela rede de ensino paulista naquele momento, não fosse o melhor

caminho. Além de outros cuidados, a articulação entre o debate da renovação geográfica e o

da pedagogia e da filosofia da educação, necessidade apontada também pelo autor, quiçá

pudesse dirimir esses e outros problemas enfrentados na implementação da proposta.

Na verdade, verificamos que, de forma geral, a distância entre a renovação crítica na

geografia e a expansão do pensamento pedagógico crítico acarretou, como nos lembra

Cavalcanti (1998), a crença de que para ensinar bem e contribuir para a formação de cidadãos

participativos, bastaria apenas que os professores dominassem a abordagem crítica do

conhecimento geográfico. A recusa ou a pouca preocupação em estabelecer um referencial

pedagógico-didático que trouxesse para a geografia escolar um caráter próprio no tratamento

do seu objeto levou também a outro grave problema: a relativa perda do estatuto geográfico

na escola. A organização territorial dos fenômenos sociais, por exemplo, foi posta de lado,

abrindo mais espaço para a perspectiva histórica, econômica e sociológica principalmente.

Com isso, vários temas presentes em livros didáticos ou em propostas curriculares de

geografia acabavam se assemelhando aos conteúdos de história ou mesmo de sociologia,

gerando em professores e alunos uma sensação desconfortável e confusa em relação ao real

objeto de estudo da disciplina.

Nessa mesma linha de problemas ocasionados pela apropriação equivocada dos

pressupostos trazidos pela virada radical, os conhecimentos relacionados à geografia física

tiveram, em geral, dois tipos de tratamento: ou foram banidos de muitas práticas de ensino ou

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foram mantidos, porém de forma reduzida e ainda desarticulada dos conteúdos reconhecidos

como geografia humana. Identificados como característicos da velha geografia que se queria

superar, os temas da geografia física sofreram certa perseguição por parte de muitos

professores e geógrafos, assim como atividades e abordagens ligadas ao instrumental

cartográfico, também bastante vinculado às correntes tradicionais. A conseqüência mais

drástica, a nosso ver, foi a permanência, com novos contornos, da dualidade entre geografia

física e geografia humana. Dessa forma, a oportunidade de superação da visão dicotômica

entre sociedade e natureza corria entre os dedos, contribuindo mais ainda para a falta de

clareza sobre o cerne do conhecimento geográfico.

Alguns poucos livros didáticos, na verdade, tentaram inovar e superar essa visão, não

conseguindo, a nosso ver, êxito nessa empreitada. Esse foi o caso do primeiro volume da

coleção de Melhem Adas voltada para o ensino fundamental. Ao abordar conhecimentos

relacionados à geografia agrária, por exemplo, o autor apresenta as atividades rurais como

dependentes das condições impostas pela dinâmica da natureza, com destaque para o clima e

os tipos de solo. Após essa afirmativa, Adas inicia dois itens em que aborda exaustivamente

noções gerais de climatologia e pedologia. No entanto, ao voltar para o tema principal do

capítulo – as atividades e principais características do espaço rural – o autor não articula os

conhecimentos trabalhados, deixando de estimular importantes reflexões sobre a rica

interação entre a dinâmica social e da natureza, tão característica das áreas rurais, como ele

mesmo havia afirmado anteriormente.

A manutenção da visão dicotômica revela a não apropriação de reflexões advindas do

próprio pensamento marxiano. De acordo com Foster (2005), Marx, ao definir o processo de

trabalho em geral, descreve a relação do homem com a natureza. Para ele, o processo de

trabalho “é a condição universal da interação metabólica [Stoffwechsel] entre o homem e a

natureza, a perpétua condição da existência humana imposta pela natureza” (MARX apud

FOSTER, ibid., p. 221). Não sendo um problema de fundamento teórico, portanto, a

complexidade de tal relação é a justificativa, muitas vezes, para o tratamento fragmentado dos

conhecimentos físicos e humanos na escola. Mais uma vez, a falta de uma reflexão

pedagógico-didática que dê conta dessa dificuldade metodológica da geografia escolar tem

alimentado o não enfrentamento e o abandono de uma perspectiva integradora da relação

sociedade-natureza.

Todo esse quadro tem feito com que o discurso da geografia renovada acabe sendo

veiculado através de práticas pedagógicas pouco críticas. Kaercher (2002) chega a indagar se

realmente está se fazendo alguma geografia crítica nas escolas, considerando que para haver

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geografia crítica não basta mudar os temas e atualizar as aulas, já que não se trata de um

problema apenas de conteúdo. Deve-se, isso sim, “haver uma postura renovada de maior

diálogo, não só entre professor e aluno, mas com o próprio conhecimento. [...] Uma postura

mais investigativa. Que reproduza menos generalidades que tanto povoam a geografia” (p.

222). Todavia, os baixos salários, as péssimas condições de trabalho vigentes na maior parte

das escolas públicas e as incipientes políticas de formação continuada têm originado e

agravado essa situação.

Além disso, entraves de ordem filosófica e metodológica por parte das universidades

têm levado a uma desvalorização da produção acadêmica no tocante à reflexão da prática

escolar em geografia, fato que podemos perceber com clareza quando raramente encontramos

linhas de pesquisa estabelecidas que contemplem estudos relativos a essa área nos programas

de pós-graduação em geografia68. Como conseqüência, essa desvalorização e a distância entre

universidade e escola têm influenciado a condução dos processos de recontextualização de

conhecimentos científicos para o contexto escolar. No geral, projetos de reestruturação

curricular implementados pelos sistemas de ensino, um dos canais através dos quais se dá a

recontextualização pedagógica, são discutidos e gestados sem a participação dos professores e

sem lhes dar condições plenas de execução. Dessa forma, vê-se os profissionais como meros

reprodutores de informações e não produtores autônomos do conhecimento escolar, fato que

pode acarretar entre alguns a desconfiança e o descrédito nessas políticas e, mais grave, entre

outros pode levar à incorporação de que a profissão docente se reduz à repetição de conteúdos

e técnicas veiculados por manuais e guias curriculares.

Vale lembrar que a elaboração e implantação dos PCN seguiu essa linha de raciocínio

e excluiu, por exemplo, entidades representativas dos profissionais da educação das

avaliações e discussões que redundaram na feitura do documento. Em relação aos parâmetros

estabelecidos para a geografia no segundo segmento do ensino fundamental, Pontuschka

(1999) atesta que:

[...] o trabalho expressa o direcionamento dado ao ensino desta disciplina segundo a visão de um grupo de geógrafos, sobretudo paulistas, reconhecidos pela comunidade científica do país pela sua participação nas universidades, nos congressos e encontros, e por sua obra acadêmica que versa sobre problemas espaciais e ambientais. No entanto, embora tenha havido a preocupação, segundo os

68 A partir de breve pesquisa em sítios oficiais das principais universidades públicas brasileiras, encontramos essa linha de pesquisa delineada apenas na Universidade de São Paulo (mestrado e doutorado em geografia) e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (apenas mestrado em geografia). No geral, alguns poucos professores de outros programas que não possuem um campo de pesquisa formalizado nessa área se predispõem a orientar trabalhos relacionados à geografia escolar, embora o que prevaleça é a ida desses pesquisadores para os programas de pós-graduação em educação.

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autores, de realizar uma proposta plural, ela se tornou eclética, com momentos em que se percebe um direcionamento historicista e, em outros, um direcionamento fenomenológico (p. 15-16).

Tal ecletismo revela, na verdade, o que Oliveira (1999) chama de subjetivismo radical

e expressa mais a ausência que a presença de uma concepção de geografia. Para o autor, “não

eleger uma concepção de geografia para dar sustentação e consistência epistemológica, em

nome da pluralidade, deixou a descoberto a possibilidade de o ecletismo aparecer como

concepção dominante” (p. 50). Contudo, a crítica contundente ao positivismo e ao “marxismo

militante e ortodoxo do professor” atravessa boa parte da seção introdutória do documento.

Sempre se referindo ao marxismo ortodoxo e nunca revelando outras interpretações da própria

dialética materialista-histórica, os PCN de geografia estampam o discurso da pluralidade,

ocultam um certo ecletismo, mas, na verdade, adotam, segundo a interpretação de Rocha

(2003), uma geografia de fundamentação fenomenológica, que valoriza a percepção dos

indivíduos em relação aos objetos geográficos, mas não leva em conta o lugar social, a

condição de classe desse indivíduo. Para esse autor, ao desqualificar tanto a geografia

positivista quanto a marxista, os PCN deixam clara a opção pela geografia humanista de base

fenomenológica, muito em função da sua possível contribuição ao projeto neoliberal então em

curso.

No plano da seleção e organização dos conteúdos geográficos, o guia sugere uma lista

de itens a serem desenvolvidos nas escolas. Esses itens são extraídos de temas que, por sua

vez, compõem um conjunto de oito eixos temáticos indicados para as quatro séries finais do

ensino fundamental. Nessa estrutura, nos chama a atenção, por exemplo, o pouco

enfrentamento à visão dicotômica entre sociedade e natureza. No segundo eixo previsto para o

terceiro ciclo (5ª e 6ª séries), intitulado O estudo da natureza e sua importância para o

homem, um dos temas diz respeito aos fenômenos naturais, sua regularidade e possibilidade

de previsão pelo homem. Para a sua abordagem, são indicados itens que vão desde as formas

do relevo, passando pela circulação atmosférica e incluindo os principais biomas brasileiros.

A despeito de algumas tentativas de articulação entre conhecimentos da geografia física e da

geografia humana, presentes nos itens As formas de relevo, os solos e sua ocupação: urbana e

rural e As cidades e as alterações climáticas e no tema A natureza e as questões

socioambientais, o que prevalece é ainda a fragmentação, já que essa articulação não é a

preocupação central da proposta como um todo. Além disso, a forma com que eixos, temas e

itens são apresentados – ao final há um quadro resumo para cada ciclo – mais se assemelha a

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um rol de conteúdos estanques, bem próximo, portanto, dos velhos guias obrigatórios tão

comuns na história do currículo escolar brasileiro.

Dessa forma, mantendo a tradição fragmentadora da disciplina, os PCN de geografia

do ensino fundamental pouco auxiliaram na compreensão da complexidade e da crise pelas

quais passam a geografia escolar e a educação como um todo. Não temos acesso a pesquisas e

análises sobre a sua influência nas salas de aula brasileiras, mas, a nosso ver, nesses dez anos

de implantação, além da propaganda anunciada por diversas coleções didáticas que estampam

nas capas de suas novas edições a adequação ao documento, muitas das quais pouco o

fazendo de fato ao longo da obra, os PCN contribuíram para a importância da discussão sobre

as políticas de currículo. E embora sejam pouco lidos e analisados pelos professores em geral,

se tornaram forte instrumento de disseminação do ideário neoliberal, conforme analisamos no

primeiro capítulo deste trabalho.

Diante de todo esse panorama, então, podemos dizer que a geografia escolar,

tomando-a aqui tanto como aquela veiculada e prescrita em propostas curriculares e livros

didáticos como a praticada nas escolas, ainda mantém como base as principais características

adquiridas através do movimento de renovação crítica. No entanto, após quase trinta anos dos

primeiros ares do movimento, muitas dessas características se arrefeceram, como o princípio

do engajamento. Outras, como o princípio da criticidade, ainda não se completaram em

virtude da falta de uma reflexão didático-pedagógica articulada à renovação do conteúdo

geográfico. Por fim, as várias interpretações sobre o que é ser crítico redundaram em uma

pluralidade de concepções e práticas que, por princípio, pode revelar algo positivo. Por outro

lado, quando essa pluralidade dá lugar a um hibridismo eclético, isso nos preocupa em função

das continuidades e de algumas tradições pedagógicas que insistem em manter a geografia

como uma disciplina obscura e distante de práticas que possibilitem a formação de uma

reflexão espacial crítica e autônoma por parte dos alunos da educação básica.

2.3 ENSINO DE GEOGRAFIA PARA JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: DO

DESPREZO À FORMAÇÃO PARA O TRABALHO FLEXÍVEL

Iniciamos essa seção alertando para um fato de extrema gravidade que vimos

constatando na realização dessa pesquisa e que já nos chamava a atenção ao longo da nossa

carreira no magistério. Se a produção acadêmica sobre o ensino de geografia na educação

básica, em geral, é incipiente, podemos dizer que a situação se agrava profundamente quando

pensamos na prática de ensino desta disciplina na modalidade EJA. As pesquisas nesse campo

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são extremamente escassas, assim como a bibliografia especializada. Encontramos no

trabalho de Márcia Spyer Resende, por exemplo, produzido nos anos 1980, uma das poucas

análises da geografia que se ensina a jovens e adultos. A geografia do aluno trabalhador:

caminhos para uma prática de ensino (1986) aponta os principais problemas enfrentados

pelos professores em sua atividade profissional, analisa as diferentes maneiras com que os

trabalhadores interpretam a espacialidade da sociedade da qual fazem parte e propõe outras

possibilidades de abordagem da geografia escolar para esse público. Por essa razão, é com

base nesse trabalho que faremos algumas reflexões como forma de iniciar a discussão em

torno da história do currículo escolar de geografia na modalidade EJA.

É importante ressaltar que Resende elabora seu trabalho em um contexto histórico

marcado tanto pela renúncia, por parte de muitos professores, à geografia de orientação

moderna, que nas escolas ainda mantinha como referência tarefas mnemônicas e descritivas,

quanto pelo movimento de renovação crítica da geografia brasileira, fato que, sem dúvida, a

influenciava e orientava suas considerações e reflexões. Por esse motivo, suas críticas

voltavam-se para uma prática de ensino enciclopédica da geografia que, embora não fosse

exclusiva às escolas noturnas, tomava nesse contexto contornos muito graves devido à

importância da escola para o público jovem e adulto da classe trabalhadora, a despeito da

qualidade de muitos programas educativos desenvolvidos no âmbito da educação popular. O

questionamento a essa abordagem geográfica na escola levava, segundo a autora, à

necessidade de redefinição do conteúdo escolar consubstanciada em uma importante

convicção: “no ensino em geral e de Geografia em particular é não apenas possível, mas (do

ponto de vista das classes populares) necessário partir do saber do aluno, de sua acumulação

‘histórica’ de vida” (RESENDE, 1986, p. 12).

Como parte da construção reflexiva dessa convicção, Resende indagava sobre a

existência de um saber geográfico pré-escolar (ou diríamos não-escolar?) que brota da

vivência prática, social, do espaço. E se ele existe, consideramo-lo como simples opiniões

equivocadas e limitadas ou podemos atribuir-lhe status de conhecimento? Para autora, a

escola sempre considerou os alunos jovens e adultos trabalhadores pessoas neutras, sem vida,

sem cultura, sem história, isto é, “um ser que não trabalha, não produz a riqueza neste

momento histórico e neste espaço geográfico determinado” (ibid., p. 20). E essa geografia

que, segundo ela, desprezava o ser histórico do aluno, que não se percebia como totalidade,

que nunca se via como o trabalho de mulheres e homens históricos sobre o espaço, acabava

por marginalizar esse aluno como sujeito do processo de construção do conhecimento e

concebia-o como objeto nesse processo. Representava, portanto, uma geografia que via o ser

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134

humano como um fato a mais na paisagem. Por isso, os alunos, segundo os depoimentos

colhidos pela autora69, ao definir o que a geografia estuda, raramente mencionavam o ser

humano, pois essa geografia examina “o relacionamento entre homem e natureza sem se

preocupar com a relação social entre os homens, mediação inevitável da dialética homem-

natureza” (1986, p. 25).

Na verdade, encontramos nas palavras de Resende algo ainda presente em muitas

escolas de EJA, a despeito dos avanços e da mudança de perspectiva apontada tanto a partir

das contribuições da geografia crítica como pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da

Educação de Jovens e Adultos (DCNEJA). A consideração desses alunos como sujeitos

históricos e construtores do espaço geográfico permeia, podemos afirmar, apenas algumas

poucas práticas pedagógicas se considerarmos o universo de escolas de jovens e adultos

existentes no país. Levantamento realizado, em 2001, pela Coordenação de Educação de

Jovens e Adultos (COEJA)70 da Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da

Educação, por exemplo, revelava que 37% dos professores de geografia do segundo segmento

do ensino fundamental da modalidade EJA71 não levam em conta os conhecimentos e visões

que os alunos trazem de suas vivências, sendo que 13% afirmaram que eles têm pouco

conhecimento e 24% simplesmente não responderam a questão (BRASIL, 2002f, p. 57). Cabe

perguntar como os 63% dos professores que disseram considerar a leitura de mundo dos

alunos articulam esses saberes aos veiculados pela disciplina, já que a própria análise dos

técnicos do MEC revelou o predomínio de uma prática curricular de concepção supletiva,

cujos conteúdos se mostram semelhantes aos dos livros didáticos voltados para o ensino de

crianças e adolescentes. Como podemos ver, as tradições pedagógicas e as permanências

históricas, características do sistema educacional brasileiro, mantêm, em boa parte, o quadro

denunciado por Resende há mais de vinte anos. E como na EJA as mudanças nos marcos

legais ocorreram apenas recentemente, podemos afirmar que a contradição revelada pela

referida pesquisa, apesar da distância de sete anos em relação à sua execução, mantém-se

firme e forte nas escolas de EJA.

Assim, é extremamente pertinente e atual a conclamação de Resende para a

necessidade de impormos uma ruptura nesse modo de pensar. Para ela, é preciso valorizar a 69 Resende desenvolveu sua investigação a partir de vinte e cinco relatos de vida de alunos do ensino fundamental, à época ensino de 1º grau, do curso noturno da rede pública de ensino de Belo Horizonte (MG). 70 Em 2001, no governo Fernando Henrique Cardoso, a Coordenação de Educação de Jovens e Adultos (COEJA) era subordinada à Secretaria de Educação Fundamental. Atualmente, no governo Luís Inácio Lula da Silva, a Coordenação-Geral de Educação de Jovens e Adultos está ligada ao Departamento de Educação de Jovens e Adultos, subordinado, por sua vez, à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD). 71 A COEJA recebeu um total de 1.075 questionários de professores de todas as regiões geoeconômicas do país, sendo 35% do Nordeste, 24% do Norte, 19% do Centro-Oeste, 15% do Sudeste e 7% do Sul.

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135

experiência de espaço dos alunos trabalhadores, esse saber peculiar sobre o ‘espaço real’,

fruto da experiência imediata da vida, isto é, “aquele espaço cuja lógica eles experimentam na

própria carne, espaço que faz parte de suas histórias, das múltiplas atividades que ‘enchem’

suas vidas” (1986, p. 20), pois, para essas pessoas, a geografia é esse espaço real subordinado

à lógica do trabalho, cujos conceitos produzidos no cotidiano brotam dessa prática e ganham

ou não importância a partir da experiência vivida de cada um, que seleciona e ordena aquilo

que é percebido, experimentado.

Fica evidente, portanto, a relação de sua proposta com os conceitos de espaço vivido e

de saber da experiência. Concordando com essa perspectiva, ressaltamos desde já a

importância dessas categorias para a análise de qualquer proposta curricular referente à EJA

sem esgotar nesse momento, no entanto, as possibilidades e limites de seu uso pedagógico,

pois a elas retornaremos e sobre elas nos debruçaremos em outras seções.

Assim, com base nos pressupostos desenvolvidos por Resende, prosseguimos com a

trajetória da geografia escolar em turmas cujo público compõe-se de jovens e adultos

trabalhadores. Para tanto, retomamos a classificação apresentada no primeiro capítulo que diz

respeito às três principais concepções de currículo que vêm permeando a elaboração de

propostas curriculares para a EJA ao longo de sua história. Dada a distância do trecho em que

as expomos pela primeira vez, e em função de sua utilização nesse momento, entendemos que

vale à pena aqui reapresentá-las. São elas: 1) currículo supletivo: concepção subliminar ao

ensino supletivo e cuja seleção de conhecimentos é pautada na redução de conteúdos pré-

estabelecidos para o ensino regular diurno (crianças e adolescentes); 2) currículo crítico:

conjunto de propostas e ações que têm como pressuposto básico a educação como ação social

que contribui para a emancipação dos sujeitos, como possibilidade de transformação social e

de construção de um projeto societário contra-hegemônico; 3) currículo por competências:

concepção que tem marcado as políticas curriculares nacionais recentes e é caracterizada pela

forte relação com o processo de acumulação flexível.

Esses três modelos servem de base, portanto, para expormos a forma com que o ensino

de geografia vem sendo conduzido nas políticas de currículo da EJA. Para cada uma deles,

propostas curriculares de programas ou cursos de EJA, bem como materiais e livros didáticos

voltados para essa modalidade são analisados tomando como princípio a observação da

seleção e organização de conteúdos geográficos na tentativa de efetivarmos, da melhor

maneira possível, um panorama histórico desse fazer pedagógico na educação brasileira.

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136

2.3.1 O ensino supletivo de geografia e o desprezo à condição de aluno trabalhador

Com o propósito de evidenciarmos as características do currículo supletivo na

geografia que se ensina a jovens e adultos no segundo segmento do ensino fundamental,

optamos por seguir uma trajetória histórica, recorrendo à breve análise da concepção

curricular que embasava a maior parte dos cursos supletivos desde sua implantação a partir da

Lei n. 5.692/71. Dessa forma, ilustramos tal perspectiva com manuais e livros didáticos

produzidos e disponíveis no mercado editorial nos anos 1970, 1980 e início dos 199072. Não

queremos dizer com isso que a concepção supletiva tenha desaparecido das escolas

contemporâneas, apenas marcamos aqui a construção histórica dessa prática pedagógica para

melhor compreendermos o complexo processo de constituição dos saberes escolares dirigidos

ao público jovem e adulto.

Os cursos de ensino supletivo sempre foram oferecidos, majoritariamente, em escolas

noturnas, possuindo, porém, diferenças em relação ao ensino regular noturno73, geralmente

circunscritas à duração total do curso e à carga horária diária das disciplinas escolares.

Durante um período de quase três décadas, essas duas formas de organização do ensino oficial

foram as únicas possibilidades de escolarização para jovens e adultos trabalhadores. As

escolas supletivas seguiam a lógica da suplência e do suprimento, isto é, garantiam a

escolarização regular aos jovens e adultos que a ela não tiveram acesso e àqueles que

voltavam à escola para completar os estudos ou aperfeiçoá-los. Já o ensino regular noturno era

oferecido a jovens trabalhadores acima de dezoito anos que não podiam mais freqüentar o

horário diurno em função de sua carga horária de trabalho. Apesar das diferenças, as duas

realidades sempre se mostraram bastante mescladas, conforme anunciamos no primeiro

capítulo, o que nos leva a crer que os currículos prescritos e praticados nesse contexto se

pautavam, em sua maior parte, na mesma perspectiva da suplência.

No caso dos cursos supletivos de segundo segmento do ensino fundamental, no

entanto, era bastante comum a ausência de programas curriculares próprios. Estudo da Ação

Educativa (1999)74 aponta que, em contraste com o primeiro segmento (Suplência I), o

segundo (a Suplência II) “incorporou práticas do ensino regular como os professores

especialistas em suas respectivas áreas de ensino e grades curriculares praticamente idênticas

72As três coleções didáticas analisadas nesta seção foram selecionadas a partir de breve pesquisa em sebos virtuais. A escolha pautou-se em critérios cronológicos e nas características da obra referentes ao conteúdo geográfico. 73 Em relação a essas diferenças, ver capítulo 1, p. 67-70. 74 Análise geral sobre esse estudo encontra-se também no primeiro capítulo, p. 67-68.

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137

àquelas do ensino regular, mantendo praticamente o componente da aceleração escolar

(sintetizado na fórmula ‘quatro anos em quatro semestres’)” (p. 7). Elegendo como alvo

privilegiado os programas mantidos pelos governos estaduais, a pesquisa destaca que um

número considerável desses programas não possuía documentos curriculares sistematizados,

encontrando-se na maioria das vezes textos bastante genéricos ou listagem mais condensada

dos mesmos conteúdos do ensino regular diurno.

Esse panorama revela a difícil situação enfrentada então por muitos professores dessa

modalidade. Além dos problemas estruturais já elencados (formação inicial, baixos salários,

precárias condições de trabalho), os professores noturnos ainda lidavam com o cansaço e a

falta de tempo de sua terceira jornada de trabalho, bem como a ausência de diretrizes mínimas

que o auxiliassem em seu trabalho diário. Assim, a maioria acabava por adotar como

referência os livros didáticos elaborados para o público infantil e adolescente, sendo que

alguns recorriam às escassas coleções didáticas disponíveis no mercado editorial voltadas para

os cursos de ensino supletivo. Poucas e não muito presentes nas escolas, em função de seu

custo impedir a maioria dos alunos de adquiri-las, essas coleções expressavam a forma com

que as disciplinas eram conduzidas. Nos volumes dedicados à geografia, conteúdos reduzidos,

fragmentados, organizados em forma de resumo em tópicos e estímulo à memorização

excessiva eram características comuns mesmo entre aqueles que, a partir da renovação crítica,

reviram sua programação e introduziram temas relacionados à geografia renovada.

Encontramos na coleção Curso Integrado um exemplo claro da perspectiva supletiva.

Embora não contenha data de publicação, supomos se tratar de livros elaborados ainda nos

anos de 1970, dadas as suas características de impressão e em função de apresentar logo na

primeira página a íntegra da Lei n. 5.765/71, que trata da reforma ortográfica realizada em

1971. Em sua apresentação, o autor (o professor, médico e advogado Dr. Souza Diniz)

esclarece que a coleção foi idealizada para os estudantes do supletivo, sejam freqüentadores

ou não dos cursos propriamente ditos, ou seja, o público alvo seria composto prioritariamente

por aqueles que estariam se preparando para os exames supletivos. Para tanto, chama a

atenção para o fato de trazer um conteúdo selecionado, sintetizado e apresentado de forma

corrente e agradável, além de destacar a introdução de mais um “aprimoramento”: uma

bateria de testes de fixação com o intuito de “familiarizar os alunos com os exames que

deverão prestar”75.

75 Este trecho não se encontra paginado.

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138

Ainda que aglutine em um só volume os conteúdos de história e de geografia, eles são

desenvolvidos separadamente. Os temas relacionados à geografia, enumerados em pontos,

seguem à lógica padrão das correntes tradicionais e são divididos em noções de cosmografia

(Estrutura da Terra), partindo em seguida para assuntos de geografia humana (Os grupos

humanos, A circulação, A agricultura e a criação, A indústria e o comércio) e fixando a

maior parte do programa na apresentação dos continentes e na geografia do Brasil. Não é

preciso dizer que o esquema N-H-E acompanha todo o percurso dos capítulos ou pontos.

Sabemos que essas são características de uma visão positivista do conhecimento

escolar e da prática pedagógica, mas chama a atenção nesse caso a forte presença da

nomenclatura pura e simples. Nem mesmo os compêndios mais expressivos da perspectiva

regionalista, como os de Aroldo de Azevedo, se reduziam a um conjunto de nomes, datas e

classificações sem nenhuma articulação entre si e estimuladores apenas de uma memorização

vazia. Os estudos da geografia do Brasil, por exemplo, não passam de pontos enumerados

recheados de dados, números e nomes. Podemos afirmar que mesmo a descrição, tão cara à

geografia predominante à época, não se encontrava ali presente. Com isso, a anunciada bateria

de testes se resumia a questões de múltipla escolha que só poderiam ser respondidas a partir

de um enorme esforço de memorização por parte dos alunos.

Supomos que o afã em reduzir conteúdos tenha conduzido o autor a essa lamentável

geografia, que, temos certeza, espantaria até mesmo muitos geógrafos e professores das

correntes tradicionais. Uma geografia fracionada e parcial, nunca vista como totalidade,

conforme alertava Resende (1986), nunca encarada como “o trabalho de homens históricos

sobre um espaço que a história da sociedade humana reproduz” (p. 19). E o que é lastimável,

muitos jovens e adultos trabalhadores devem ter estudado com base nessa coleção e a partir

dela provavelmente incorporaram a idéia não só de um saber escolar distante de suas

realidades, mas também de que esse saber não lhes era mais possível apreender, pois não

possuíam mais o frescor da memória já calejada pelo tempo e pelas agruras da vida.

Outras coleções didáticas dirigidas ao curso supletivo, no entanto, superavam essa

geografia que remontava àquela desenvolvida nas escolas brasileiras do século XIX. A

Coleção Sagra, por exemplo, publicada no início dos anos 1980 pela Editora Sagra, de Porto

Alegre (RS), era composta por livros que tentavam, em cada disciplina, apresentar uma

“integração perfeita de conteúdos”, conforme apontavam seus editores. Porém, no que

concerne às características do ensino supletivo, sua parte introdutória não se referia a

nenhuma especificação, deixando entrever claramente a concepção supletiva de seleção e

organização dos conhecimentos escolares.

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139

No volume dedicado à geografia (SCHÄFFER e MEISTER, s/d), a seleção de

conteúdos até contemplava algumas inovações, como uma parte reservada ao planejamento

regional e o uso do conceito de subdesenvolvimento para tentar explicar os problemas

regionais brasileiros. Neste último item, afirmavam as autoras que os problemas que

caracterizam as áreas subdesenvolvidas do planeta são problemas nacionais, isto é, se repetem

em todas as regiões do país, mudando apenas de intensidade conforme a região. Contudo, os

dez itens apontados como problemas nacionais de subdesenvolvimento dizem respeito

somente a questões internas e vão desde o “forte desequilíbrio na distribuição da população”,

passando pela “deficiência de transportes” e pelo “baixo nível de instrução da população”, e

chegando à “forte migração intra e inter-regional”. Não há na listagem apresentada nenhum

item que expresse as evidências do desenvolvimento desigual e combinado, base da

interpretação crítica referente às relações políticas e econômicas entre o centro e a periferia do

capitalismo mundial. Vê-se, assim, a pouca vinculação com os conhecimentos acadêmicos

que naquele momento chegavam às universidades brasileiras, ainda que em sua bibliografia as

autoras tenham feito referência a obras de geógrafos críticos renomados como Yves Lacoste e

Milton Santos.

A organização do conteúdo geográfico, em geral, obedecia também à clássica divisão

regional, apesar de já não seguir com tanta obediência o esquema N-H-E. Porém, ainda nesse

aspecto, outra inovação se fez notar: a introdução de um capítulo intitulado Problemas do

mundo atual. Nele, as autoras fazem pequenos comentários referentes ao crescimento

demográfico, consumo per capita, esgotamento dos solos, crise energética, alimentação,

saúde, educação e água como recurso natural. A fundamentação crítica, no entanto, ainda se

encontraria distante da abordagem do material. Ao explorar a questão da alimentação, ou

melhor, da fome no mundo, por exemplo, as autoras lançam mão das teorias neomalthusianas,

que explicam a escassez de alimentos pela explosão demográfica e baixa produtividade das

áreas agrícolas das regiões subdesenvolvidas, ao invés de utilizarem a interpretação marxista,

que relaciona a fome à má distribuição de recursos e riquezas entre os povos do mundo.

Não temos como avaliar o alcance de tal coleção, uma vez que se constituía em uma

publicação bastante simples e talvez restrita ao estado do Rio Grande do Sul, porém, a

consideramos emblemática de um período de transição, no qual a introdução de novos temas e

conceitos, ainda que tímida, já a diferenciava dos manuais mais tradicionais. Porém, como

vimos através dos exemplos expostos, muitas abordagens se encontravam distantes de

interpretações críticas, o que revela certo hibridismo entre as tendências tradicionais da

geografia e a renovação crítica. Além disso, as atividades pedagógicas não apresentavam

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140

nenhuma inovação, pautando-se em perguntas de múltipla escolha ao final de cada capítulo

que exigiam apenas exercícios de memorização.

A terceira coleção analisada difere das demais pelo maior alcance e divulgação entre

os professores de escolas supletivas. A coleção de Zoraide Victorello Beltrame (1989) era

bastante conhecida e adotada por muitos docentes em virtude justamente de seu poder de

condensação dos temas e assuntos considerados pré-estabelecidos para as classes do então 1º

grau. Na apresentação, a autora dirige o livro aos alunos do curso supletivo e assume a

“maneira simples e sintética” com que desenvolve o conhecimento geográfico, a despeito dos

objetivos de ampliação do universo de conhecimento e do desenvolvimento do espírito crítico

dos alunos. Ora apresentando novos temas oriundos da geografia crítica, ora mantendo

preceitos da velha geografia regional, os livros de Beltrame caracterizam-se pela presença de

textos descritivos e curtos, já que, supondo estarmos de acordo com seu pensamento, nessa

modalidade não se podia perder tempo com textos explicativos e longos. Além disso, os

clássicos questionários mnemônicos completam o final de cada capítulo, embora na

apresentação a autora julgue “proporcionar ao aluno a oportunidade de aprender ativamente

sem ser um mero receptor de informações”.76

O segundo volume da coleção, voltado para o estudo dos continentes, apresenta a

tradicional divisão regional do mundo baseada em critérios físicos e desenvolve os assuntos

referentes a cada continente a partir do esquema N-H-E, graças ao qual, aliás, são tratados os

poucos conteúdos da geografia física. No início do livro, porém, a autora introduz uma

temática bastante característica da geografia crítica: os aspectos políticos e econômicos do

mundo atual, destacando os principais traços do capitalismo e do socialismo e a divisão dos

países em desenvolvidos e subdesenvolvidos. Em relação a este último item, no entanto, suas

explicações não passam de um conjunto de equívocos. Em primeiro lugar, naturaliza as

desigualdades internacionais ao afirmar que “na história da humanidade sempre existiram

nações pobres e nações ricas” (p. 8). Em seguida, caracteriza os dois grupos sem fazer

menção ao processo histórico que constituiu, ao mesmo tempo, as duas situações econômicas

e políticas, ressaltando apenas, como no livro de Schäffer e Meister (s/d), as particularidades

internas. Por fim, afirma categoricamente que o subdesenvolvimento é uma situação

transitória, pois, “dependendo dos acontecimentos, um país subdesenvolvido hoje poderá, no

futuro, ser até mesmo uma potência” (p. 10) e justifica tal certeza se referindo ao retrocesso

que antigas potências européias, como Grécia, Portugal e Espanha, teriam sofrido em seu

76 Este trecho não se encontra paginado.

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141

desenvolvimento. Equívocos interpretativos dessa natureza comprovam que a autora

selecionou alguns temas caros à geografia crítica apenas para vender sua obra como

atualizada, mantendo, no entanto, interpretações conservadoras sobre eles.

Como vemos, os exemplos aqui apresentados revelam total descuido para com a

geografia ensinada aos alunos das escolas supletivas. Muitas vezes, o objetivo de sintetizar o

conteúdo da série escolar ocultava, na verdade, uma geografia tradicional, conservadora e que

desprezava o espaço vivido e construído pelos próprios sujeitos participantes das classes

supletivas. Não temos conhecimento de livros didáticos menos problemáticos e mais críticos

publicados nessa época, o que pode ter ocorrido, ainda que em menor escala. Esses exemplos,

contudo, já que encontrados em uma apurada busca em sítios eletrônicos de sebos virtuais,

demonstram o predomínio de materiais de baixa qualidade, apressados e equivocados em suas

explicações, ligeiros em suas conclusões. Muito distantes, portanto, de um dos pontos

centrais, segundo Rummert (2002), da problemática referente à Educação de Jovens e

Adultos: as relações entre os conhecimentos escolares e os conhecimentos vivenciais.

A geografia veiculada nessa perspectiva despreza a condição de trabalhador dos alunos

noturnos, impedindo-os de refletir sobre sua relação com a natureza, sua cultura e sua

condição de classe. Desenvolve seu conteúdo de forma burocrática, não reflexiva e acrítica.

Como resultado, nega a construção do conhecimento geográfico, o raciocínio espacial e a

possibilidade de intervenção na realidade a jovens, adultos e idosos, fazendo-os crer, o que é

mais cruel, que são eles os responsáveis por não conseguirem entender e aprender essa

geografia artificial e nada humana.

2.3.2 A perspectiva crítica e a geografia do aluno trabalhador

Apesar do predomínio da concepção supletiva e das poucas propostas curriculares

específicas para a escolarização de jovens e adultos, algumas redes públicas de ensino

desenvolveram caminhos alternativos em seus programas supletivos. Aproveitando a

autonomia concedida legalmente para implementar diferentes formas de organização

curricular, essas prefeituras tomaram como referência uma série de reivindicações e

experiências de grupos que vinham estudando, pesquisando e praticando a Educação de

Jovens e Adultos na perspectiva da educação popular e levaram essas formas de abordagem às

salas de aula das escolas supletivas. Um desses programas foi o Serviço de Educação de

Jovens e Adultos (SEJA), da rede municipal de ensino de Porto Alegre (RS).

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142

Conforme relatado no primeiro capítulo do presente trabalho, o SEJA teve início em

1989, inicialmente como proposta para viabilizar a alfabetização de jovens e adultos

trabalhadores. Fazendo parte da reformulação geral implementada pela prefeitura local77 no

sistema de ensino municipal, o SEJA estabeleceu algumas importantes rupturas em relação à

concepção supletiva de currículo. A principal delas foi a elaboração e implantação de escolas

para trabalhadores, isto é, escolas que levassem em conta a condição de trabalhador de seus

alunos em todos os aspectos, desde a organização administrativa à discussão sobre o que,

como e por que ensinar. Apoiada na perspectiva do construtivismo interacionista e do legado

da educação popular, a proposta do SEJA apresentava uma lógica diferente à supletiva no que

concerne também à divisão do tempo escolar. A seriação dava lugar às totalidades de

conhecimento com a intenção de se favorecer e estimular o trabalho interdisciplinar,78 uma

vez que, nessa visão, nenhum fenômeno deve ser abordado de forma isolada.

Assim, a organização curricular passou a ser composta por seis totalidades, que

equivaliam às séries supletivas apenas para efeito de emissão de boletins e histórico escolar

dos alunos. Segundo a proposta, as totalidades tentavam resgatar a unidade do conhecimento

perdida com a fragmentação típica da educação bancária (PORTO ALEGRE, 1999). E

embora a visão totalizante da prática pedagógica prevalecesse no documento curricular, a

proposta mantinha a divisão por disciplinas na fase correspondente ao segundo segmento,

entendendo que a contribuição de cada área do conhecimento é fundamental para a

compreensão de determinadas problemáticas, desde que analisadas tanto em sua dimensão

particular como em seus aspectos totalizantes.

O quadro de disciplinas era então composto por geografia, história, língua portuguesa,

língua estrangeira moderna, ciências físicas e biológicas, educação artística, educação física e

matemática. Todas possuíam a mesma carga horária, uma vez que, segundo a proposta,

“qualquer fração do conhecimento está em inter-relação ativa com outras de igual

importância, onde uma ajuda a outra a se constituir: cada conceito traz consigo uma totalidade

(o conceito de espaço, por exemplo, não existe só na geografia, mas também em todas as

outras áreas)” (idem, 1997, p. 33). Na distribuição do horário, cada disciplina contava com

cinco horas de trabalho efetivo por quinzena, sendo três horas-aula em uma semana e duas

horas-aula na semana seguinte. Na semana em que dispunham de duas horas, as disciplinas

77 Em 1989, assume a Prefeitura de Porto Alegre o então bancário Olívio Dutra, do Partido dos Trabalhadores (PT). A presença deste partido no governo portoalegrense perduraria por mais três gestões e as transformações implementadas no sistema municipal de ensino durante esse período se tornariam referência para muitos outros governos locais. 78 Para melhores detalhes da proposta como um todo, ver o primeiro capítulo, p. 69-70.

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143

deveriam desenvolver seus conteúdos em forma de oficinas de trabalho com o intuito de

superar possíveis dificuldades e necessidades encontradas durante o processo de ensino-

aprendizagem.

Mesmo não possuindo uma carga horária exclusivamente determinada para a

geografia, as totalidades iniciais (1, 2 e 3), que correspondem ao primeiro segmento do ensino

fundamental, tinham como objetivo geral para essa área o desenvolvimento da noção de vida

em sociedade e pressupunham o trabalho pedagógico a partir de conceitos retirados da vida

cotidiana do aluno, como classe social, trabalho, cidadania, entre outros. Já nas totalidades

finais (4, 5 e 6), que correspondem ao segundo segmento do ensino fundamental, a disciplina

geografia tinha na sociedade ainda o seu tema central, mas enfocando, desta feita, a luta de

classes, o trabalho, o desenvolvimento econômico como acumulação de capital e a pluralidade

de olhares dos diferentes grupos (étnicos, de gênero, religiosos etc.).

Coerente com a visão totalizante da proposta, a seleção de conteúdos geográficos,

assim como em todas as disciplinas, era articulada aos princípios estabelecidos para o SEJA

como um todo. Para melhor compreensão dessa relação entre os temas sugeridos para a

geografia e os referenciais gerais de cada totalidade do SEJA, organizamos o seguinte quadro

relacional:

TOTALIDADES REFERENCIAIS GERAIS TEMAS DA GEOGRAFIA

1 construção dos códigos escritos estruturação espacial, noções de espaço partindo do cotidiano do aluno

2 construção dos registros dos códigos alfabetização cartográfica, níveis escalares, produção do espaço

3 construção das sistematizações dos códigos cartografia, diversidades culturais e econômicas da cidade, relação campo-cidade

4 aprofundamento das sistematizações através representação cartográfica e ideologia, relações cidade/país/mundo, problemas urbanos

5 das generalizações dos códigos e Estado-nação, desenvolvimento/subdesenvolvimento

6 das transversalidades entre os códigos realidade do Rio Grande do Sul no contexto regional, nacional e internacional

Fonte: Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (1997).

De acordo com o texto da área de geografia (PORTO ALEGRE, 1997), a totalidade 1

previa o trabalho com as relações espaciais centradas no sujeito, isto é, a partir da avaliação

das noções de espaço dos alunos, a ação pedagógica seguia para a descentralização espacial, a

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144

alfabetização da orientação geográfica e o desenvolvimento da capacidade de localização no

espaço cotidiano. Para a totalidade 2 o processo de alfabetização cartográfica era proposto

como eixo central. Tomando como referência o espaço vivido, as noções cartográficas

deveriam ajudar a compreender a divisão político-administrativa do espaço e sua relação com

as diferentes escalas de ação política e níveis de governo. Além disso, o texto ainda sugere a

análise do processo de produção do espaço e a relação deste com a condição de classe social e

com as situações vividas no trabalho, na participação política, no consumo e nas situações de

moradia. A totalidade 3 teria a incumbência de aprofundar o processo de alfabetização

cartográfica partindo agora para a utilização de plantas, cartas e mapas com o intuito de

avaliar e aplicar as noções obtidas nas totalidades anteriores, bem como proceder e aprofundar

a representação espacial das diferentes escalas de ação política. A cidade, com enfoque nas

desigualdades sociais, econômicas e culturais, e sua relação com o campo também fazem

parte dos temas propostos para esta fase.

A totalidade 4 retomava o instrumental cartográfico, dessa vez de forma aprofundada

em função da maior especialização do professor. Elementos componentes de uma

representação, como escala, redução, proporção e projeções cartográficas, deviam ser

trabalhados em sua relação com as intencionalidades e objetivos da representação cartográfica

em questão. A geografia urbana também era indicada, tendo como ênfase a análise das

relações da cidade com o país e o mundo a partir dos seguintes tópicos: a cidade como

elemento capitalista/industrial e urbano; o conceito de metrópole e regiões metropolitanas; a

hipertrofia do espaço urbano; os problemas urbanos (PORTO ALEGRE, 1997). O Estado e

sua relação com o espaço e a configuração territorial era o foco da totalidade 5. Trazia como

principal objetivo “a retomada e o aprofundamento da noção de Estado-nação enquanto

instituição político-administrativa, com o intuito de comparar os diferentes níveis de

qualidade de vida e dos problemas urbanos entre as regiões do Brasil e os diversos países”

(ibid., p. 62). Além disso, o documento ainda destacava a compreensão do conceito de Estado

frente às idéias de desenvolvimento e de subdesenvolvimento, bem como o seu papel diante

da ação das grandes corporações transnacionais e sua atuação no território brasileiro. A

totalidade 6 propunha o estudo do Rio Grande do Sul e sua interação com os contextos

regional, nacional e internacional, prevendo a abordagem dos seguintes temas: a posição

periférica do estado frente ao poder central e sua identidade forjada; o binômio cidade-campo

e a organização do território gaúcho frente à estrutura agrária e a imigração européia; a

atividade agropecuária e o fenômeno do êxodo rural.

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145

Como se vê, a perspectiva crítica encontrava-se bastante presente na proposta, tanto na

seleção dos conteúdos geográficos como na intenção de desenvolvê-los a partir de uma

abordagem interacionista e tendo em vista os preceitos da educação popular. Nesse sentido, o

SEJA evidenciava uma possível relação da geografia escolar crítica com a perspectiva

construtivista, o que revela a sua filiação a uma das diversas tendências teórico-metodológicas

surgidas com o movimento de renovação crítica no ensino de geografia na educação básica.

Tendo em mente que há diversas correntes que interpretam de forma diferente o que

vem a ser o construtivismo educacional,79 encontramos em Straforini (2004) algumas

importantes reflexões acerca dessa questão no âmbito da geografia escolar. O autor, ao optar

pela visão interacionista do construtivismo, chama a atenção para o papel do contexto social

no processo de ensino-aprendizagem e, também preocupado com o instrumental

metodológico, afirma que essa concepção de construtivismo, também chamada de

sociocontrutivismo, incorpora a idéia de processo, de movimento e de contradição, o que pode

colocá-la a serviço da geografia crítica escolar. Para Straforini, as condições para essa

articulação estão dadas já há algum tempo, tendo sido, porém, muito poucas as suas

experiências reais, o que faz com que considere ambos – geografia crítica e construtivismo –

ainda válidos como opção teórico-metodológica.

Também para Cavalcanti (2005) a concepção socioconstrutivista contribui para o

desenvolvimento intelectual, social e afetivo do aluno. Para a autora, essa concepção leva à

compreensão de que a construção do conhecimento é um processo ativo do aluno, que carrega

consigo suas peculiaridades e seus conhecimentos anteriores. Em suas reflexões sobre a

perspectiva socioconstrutivista na geografia escolar, Cavalcanti (ibid.) ressalta:

Em sua prática de todo dia, os alunos já são portadores de um conhecimento da geografia das coisas. As crianças e os jovens [e os adultos], independentemente da Geografia que estudam na escola, circulam pela cidade, pelo bairro, realizando suas atividades cotidianas, criando, recriando e organizando espaços, conhecendo a geografia das coisas. Essa geografia pode ser pensada ou conhecida no plano do cotidiano (onde estão disseminados saberes assistemáticos) e no plano do não-cotidiano (plano científico). Ao manipular as coisas na prática social cotidiana, os indivíduos vão construindo e reconstruindo uma geografia e um conhecimento dessa geografia (um conhecimento geográfico) (p. 77).

79 Segundo Carvalho (2001), “os discursos pedagógicos que, nas suas mais variadas formas, proclamam ter como base teórica os estudos de psicologia do desenvolvimento em uma perspectiva construtivista formam um conjunto muito amplo e diversificado. Mesmo sob uma delimitação teórica mais restrita, centrada em especial nas obras que direta ou indiretamente tomam os trabalhos de Piaget e de seus colaboradores como pelo menos uma de suas fontes primordiais, a variedade de perspectivas e propostas construtivistas é tão grande que qualquer tentativa de análise mais detida desse material encontraria sérias dificuldades de execução” (p. 41).

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146

As práticas sociais, portanto, necessitam de um conhecimento da espacialidade das

coisas, um conhecimento geográfico, ainda que não sistematizado. No entanto, prossegue a

autora, a construção de práticas reflexivas e críticas só são possíveis quando se amplia o

conhecimento da espacialidade e é aí que os conteúdos geográficos escolares “devem ser

vistos como parte dos instrumentos que podem contribuir para a qualificação necessária às

práticas sociais, às práticas socioespaciais, à participação do aluno na sociedade

contemporânea” (p. 78). Assim sendo, os procedimentos metodológicos utilizados para a

veiculação desses conteúdos não podem se pautar apenas em uma ação unidirecional entre

professor e aluno, o que exige práticas mais dialógicas. Contudo, Cavalcanti alerta para

alguns equívocos nessa interpretação, dentre os quais a exclusão de formas convencionais de

ensinar geografia, como as aulas expositivas, por exemplo. Para a autora, “o que importa não

é exatamente o tipo de procedimento utilizado, mas a garantia da possibilidade de atividade

intelectual dos alunos” (p. 80).

A outra base de ação do SEJA, a educação popular, também concorre para a prática

escolar da geografia crítica. Tendo como raiz a concepção freireana de educação, o currículo

escolar pensado sob a perspectiva da educação popular exige o conhecimento da realidade

social, econômica e cultural do estudante. Dessa forma, informações e análises sobre a

localidade na qual se dá a ação pedagógica, isto é, o olhar geográfico sobre o entorno da

escola é imprescindível para a elaboração da programação curricular de todos os professores,

seja qual for a disciplina. Aliás, a educação popular só faz sentido quando desenvolvida

exatamente na fronteira das disciplinas, o que não quer dizer, obviamente, que os

conhecimentos específicos destas não devam ser considerados. Assim, a escolha e o

desenvolvimento do tema gerador a partir do universo temático dos alunos exigem

conhecimentos espaciais que relacionem o local ao global, ou seja, impõem uma perspectiva

que vê o mundo através da articulação das escalas de análise.

No entanto, ainda que sejam claras as inovações, alguns desafios se mantiveram no

que se refere à educação geográfica. Cabe destacar, por exemplo, a ausência de indicações

que propiciem o aprofundamento da reflexão sobre a relação entre sociedade e natureza.

Reconhecemos que a proposta do SEJA não amarra o conhecimento a uma listagem pré-

determinada, apenas sugere uma série de conteúdos que podem ser priorizados a partir dos

temas geradores selecionados em cada unidade escolar, fato que pode desencadear a

articulação entre conhecimentos da geografia física e da geografia humana. Identificamos

também a preocupação com a cartografia escolar não apenas como valor em si mesma, mas

sobretudo como instrumental sujeito a manipulações técnicas que podem servir a

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147

intencionalidades políticas e ideológicas, além de necessário para interpretações e análises

espaciais, inclusive para aquelas que congregam fatores físicos e sociais. Sem dúvida são

avanços. Contudo, a falta de atenção para com a análise do espaço geográfico como resultado

da articulação entre a dinâmica social e a dinâmica da natureza revela, em última análise, o

não enfrentamento dessa questão fulcral para a geografia escolar.

Apesar dessas ressalvas, porém, acreditamos que a proposta curricular do SEJA pode

ter contribuído para uma prática escolar crítica na geografia que se ensina a jovens e adultos

trabalhadores. Seus pressupostos, pelo menos, indicavam esse caminho e, embora saibamos

que os preceitos e prescrições de um documento curricular não são necessariamente colocados

em prática nas escolas, o processo participativo de elaboração, avaliação e reconstrução de

sua proposta, relatado em seu texto oficial (PORTO ALEGRE, 1997), pode ter sido o grande

estímulo para a sua concretização.

2.3.3 Quando a educação geográfica contribui para a formação do trabalhador

“flexível”

Recentemente, a partir da promulgação das DCNEJA, em 2000, a EJA tem sido alvo

de uma série de diferentes iniciativas. Extinto o ensino supletivo, pelo menos em termos

oficiais, a escolarização de jovens e adultos trabalhadores tem-se expandido sobremaneira,

fato que tem propiciado diversas e diferentes experiências, que se dão tanto em programas

implantados por instituições e organizações não governamentais quanto em redes municipais

de ensino. No âmbito do governo federal, os últimos cinco anos têm revelado uma quantidade

bem maior de ações se compararmos com períodos anteriores. Tais ações vão desde a

implementação de programas de alfabetização, de elevação de escolaridade e de qualificação

profissional (Brasil Alfabetizado, ProJovem e Escola de Fábrica, por exemplo) até a

implantação de mecanismos de avaliação da Educação de Jovens e Adultos desenvolvida no

país. É no âmbito desta última iniciativa que se encontra o Exame Nacional de Certificação de

Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA), alvo de nossas atenções a partir desse

momento.

O ENCCEJA tem a incumbência de avaliar a qualidade do ensino e certificar a

aprendizagem de estudantes da modalidade EJA. De acordo com a Portaria n. 44, de 10 de

março de 2005, seus objetivos são: 1) construir uma referência nacional de auto-avaliação

para jovens e adultos por meio de avaliação de competências e habilidades; 2) estruturar uma

avaliação direcionada a jovens e adultos; 3) oferecer uma avaliação para fins de classificação

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148

na correção do fluxo escolar; 4) construir, consolidar e divulgar um banco de dados com

informações variadas que possa ser utilizado para a melhoria da qualidade na oferta da

modalidade EJA; 5) construir um indicador qualitativo que possa ser incorporado à avaliação

de políticas públicas da Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 2005). Traz como

justificativa a demanda nacional e internacional de exame para certificação na modalidade

EJA, em nível de conclusão do ensino fundamental e do ensino médio (BRASIL, 2004), e a

necessidade de reconhecer e validar, em forma de exames, os conhecimentos e as

competências que os estudantes da EJA já possuem (BRASIL, 2002b).

Tendo como meta a elevação de escolaridade da população jovem e adulta, o

ENCCEJA evidencia, na verdade, as políticas educacionais dos últimos governos federais que

se pautaram na implementação de medidas focais que, segundo Rummert (2007), atendem

não somente à necessidade de alteração dos indicadores estatísticos de baixa escolaridade da

população brasileira, como também aos interesses do capital em sua atual fase de acumulação

flexível. Tais características se revelam, ainda de acordo com a autora, na medida em que o

que está em pauta é apenas a ampliação de mecanismos de certificação “atendendo a

pequenos contingentes populacionais, aos quais, dadas as suas fragilidades como atores

políticos, são oferecidas possibilidades de elevação de escolaridade com caráter precário e

aligeirado, porém anunciadas como portadoras potenciais de inclusão” (p. 62). Argumentando

a favor de tal análise, Rummert lembra que de todos os exames nacionais existentes (ENEM,

SINAES etc.), o ENCCEJA é o único que confere certificados de conclusão80, o que evidencia

a maior preocupação dessa iniciativa com a emissão de diplomas em detrimento da garantia

efetiva de acesso ao conhecimento.

Para os objetivos desta seção, o ENCCEJA se mostra como uma ação governamental

de extrema importância. Além dos aspectos gerais já mencionados, o conjunto de documentos

elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), órgão

responsável pela sua implantação, atesta claramente sua vinculação ao currículo por

competências, concepção já analisada anteriormente81 e que, a nosso ver, tem estreita relação

com a formação de um novo tipo de trabalhador, que deve crer e agir conforme o discurso da

empregabilidade e do empoderamento. Além disso, tal conjunto de documentos configura-se

80 A adesão ao ENCCEJA é opcional e está disponível às secretarias estaduais e municipais de educação. Quanto à certificação “cabe às Secretarias de Educação, que aderirem ao Encceja, definirem como e para quê utilizarão seus resultados, bem como a responsabilidade pela emissão dos documentos necessários, quando for o caso, para a certificação de estudos no nível de conclusão do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, em cumprimento ao disposto no inciso VII, do Artigo 24, da Lei n. 9.394/96 (LDB)” (Disponível em: http://encceja.inep.gov.br/ Acesso em: 13 de abril de 2008). 81 Sobre currículo por competências, sua origem, pressupostos e implicações na EJA, ver capítulo 1, p. 75-76.

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149

em uma proposta curricular, na qual manuais didáticos para professores e alunos apresentam

seus pressupostos, critérios de seleção de conteúdos e perspectivas de trabalho para cada área

do conhecimento. Desse modo, um olhar mais atento em direção a esses textos torna-se

essencial para nossos objetivos, pois revela o quanto os conhecimentos geográficos aí

veiculados podem ou não contribuir para a formação desse novo trabalhador necessário para o

processo de acumulação flexível do capital.

Buscando identificar conteúdos e construir referências para um exame que levasse em

conta a especificidade da EJA, o documento-guia do ENCCEJA optou pela elaboração de um

quadro de Matrizes de Competências e Habilidades. Segundo o texto oficial, esse quadro

constitui um “referencial de exames mais significativos para o participante jovem ou adulto,

mais adequados às suas possibilidades de ler e de interagir com os problemas cotidianos, com

o apoio do conhecimento escolar” (BRASIL, 2002b, p. 12). Embora reconheça a dificuldade

de se averiguar os conhecimentos adquiridos na vivência de situações cotidianas, o guia

afirma que estas possibilitam aquisições lógicas universais de pensamento, podendo, portanto,

participar do processo de avaliação para certificação.

O que percebemos, no entanto, é que essas lógicas universais às quais se refere o texto

estão relacionadas a determinados valores e que a aquisição desses valores deve ser também

avaliada pelas provas. Ao considerar que “o exame sinaliza e valoriza um cidadão mais apto a

viver num mundo em constantes transformações, onde é importante possuir estratégias

pessoais e coletivas para a solução de problemas, fundamentadas em conhecimentos básicos

de todas as disciplinas” (ibid., p. 12), fica evidente, em nosso ponto de vista, o caráter também

ideológico) do ENCCEJA. Tal caráter vai ao encontro do projeto hegemônico de sociedade,

que prevê a adaptação dos trabalhadores às novas condições sociais e profissionais

introduzidas a partir da reestruturação produtiva de base flexível. E para esse fim, o enfoque

nas competências como elementos de ordem mais psicológica que técnica, a partir das quais

atitudes e características da personalidade são ressaltadas, torna-se imprescindível.

Anunciando sua base nos preceitos das DCNEJA, o quadro de matrizes apresentada

como eixo para a seleção dos conteúdos a serem cobrados no exame se constitui então de um

conjunto de nove competências82 amplas, articuladas às cinco competências previstas para o

ENEM, adaptadas e tomadas aqui como eixos cognitivos básicos. Dessa articulação resultam

os conteúdos em forma de habilidades mais específicas “que estabelecem as ações ou

82 O texto oficial do ENCCEJA reconhece a dificuldade de precisão do significado do termo competência, porém, afirma que “o termo competência vem substituindo a idéia de qualificação no domínio do trabalho, e as idéias de saberes e conhecimento no campo da educação” (BRASIL, 2002b, p. 27).

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150

operações que descrevem desempenhos a serem avaliados nas provas. Nessa concepção, as

referências de cada área descrevem as interações mais abrangentes ou complexas (nas

competências) e as mais específicas (nas habilidades)” (BRASIL, 2002b, p. 13).

Para a matriz referente ao ensino fundamental, a proposta parte da perspectiva de que

jovens e adultos trabalhadores precisam ter validados seus conhecimentos em função da

necessidade de melhor posicionamento no mercado de trabalho e da retomada de estudos no

ensino médio. Para tanto, traz como referência os conceitos, procedimentos, valores e atitudes

presentes nos PCN do ensino fundamental, subsidiários, por sua vez, da Proposta Curricular

para a EJA (PCEJA). Sobre a forma e a base conceitual a partir da qual os conhecimentos são

examinados, o documento deixa claro que não se deve esperar que jovens e adultos pouco

escolarizados “possam raciocinar com desenvoltura sobre a estrutura do conhecimento em si,

uma qualidade intelectual daqueles que freqüentaram a escola” e segue afirmando que

“respeitar essa característica representa uma exigência para a formulação de uma prova em

que se reconhecem as possibilidades intelectuais dos cidadãos que não tiveram oportunidade

de exercitar a compreensão dos objetos de conhecimento descontextualizada de suas ligações

com a vida imediata” (ibid., p. 17).

Se é verdade que devemos respeitar as características desse público ao se pensar um

conjunto de provas específicas para ele, é também fato que não devemos entender por isso

que a EJA deve ser considerada uma modalidade menor, na qual os conhecimentos escolares

devam ser menos prezados ou facilitados. O desafio é justamente manter o nível de

complexidade exigido no ensino dirigido para crianças e adolescentes, porém adaptado à

realidade de vida dessas pessoas. É nesse sentido que passamos a verificar como os conteúdos

geográficos se encontram presentes na Matriz de Competências e Habilidades.

Na perspectiva da proposta curricular, a geografia é encarada, em conjunto com a

história, como responsável pelo desenvolvimento de estudos interdisciplinares que propiciam

a análise e a compreensão da vida em sociedade. Desse modo, essas duas disciplinas possuem

uma matriz de competências única e são aglutinadas na área denominada ciências humanas.

Tal área, de acordo com o texto, contempla interpretações mais totalizantes de questões

intrínsecas às relações humanas e destas com a natureza. Seu compromisso com a formação

cidadã no ensino fundamental tem provocado a revisão de seus conteúdos disciplinares para

favorecer uma formação de caráter mais humanista. Assim, o estudo da geografia e da história

favoreceria “ao aluno a análise de sua inserção no mundo humano, dimensionando suas

temporalidades e suas relações com o espaço a partir do desenvolvimento de determinadas

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151

competências, envolvendo estudos de uma diversidade de conteúdos - informações, conceitos,

procedimentos, valores e atitudes” (p. 41).

Para atender a esses objetivos, por conseguinte, foram elaboradas nove competências

específicas para a área, que articuladas aos cinco eixos cognitivos básicos resultam nas

habilidades, estruturando assim a Matriz de Competências e Habilidades das ciências

humanas.83 Dentre as nove competências, destacamos aqui quatro84 que se relacionam mais

intrinsecamente com os conhecimentos geográficos e é a partir delas que procedemos a breve

análise da geografia escolar veiculada pela proposta curricular do ENCCEJA.

A primeira competência indica que o estudante da EJA deve compreender processos

sociais utilizando conhecimentos históricos e geográficos. Nesse sentido, implica a apreensão

da noção de processo social, o que requer a percepção de encadeamentos históricos relativos a

determinados espaços que se constituem pela ação humana. Ao se articular ao quinto eixo

cognitivo da matriz – recorrer aos conhecimentos desenvolvidos para elaboração de

propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e

considerando a diversidade sociocultural – dá origem à uma habilidade que prevê que o

aluno deve considerar o respeito aos valores humanos e à diversidade sociocultural, nas

análises de fatos e processos históricos e geográficos. Sem definir o que entende por

diversidade sociocultural, no entanto, o documento abre a possibilidade para inúmeras

interpretações, dentre as quais para aquelas que levam à idéia de que desigualdades sociais

fazem parte da diversidade sociocultural e que, portanto, a diferença entre ricos e pobres e a

segregação socioespacial, por exemplo, devem ser também respeitadas e valorizadas na

análise de processos histórico-geográficos.

Compreender o papel das sociedades no processo de produção do espaço, do

território, da paisagem e do lugar é a segunda competência das ciências humanas que traz

consigo conceitos geográficos. Para a sua construção, espera-se que o aluno seja capaz de

reconhecer o papel das sociedades na constituição do espaço geográfico ao longo da história e

na conseqüente transformação de territórios e paisagens. Identificar fenômenos e fatos

histórico-geográficos e suas dimensões espaciais e temporais, utilizando mapas e gráficos, é

a habilidade que se presume ser construída pelo público da EJA ao relacionar tal competência

ao eixo cognitivo que prevê, além do domínio da norma culta da Língua Portuguesa, o uso

das linguagens matemática, artística e científica. Destaca-se aí o instrumental cartográfico e a

83 Ver Anexo 1. 84 Pela ordem que aparecem na Matriz de Competências e Habilidades, analisamos a primeira, a segunda, a sexta e a sétima competências.

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152

leitura de gráficos na construção da habilidade, porém percebe-se a ausência das artes visuais

como facilitadoras da análise dos processos de produção do espaço, ainda que a linguagem

artística esteja prevista no próprio eixo cognitivo.

A sexta competência deseja que o estudante possa ter condições de interpretar a

formação e organização do espaço geográfico brasileiro, considerando diferentes escalas. A

princípio, pretende possibilitar a interpretação transversal das escalas geográficas e temporais.

No entanto, ao constituir a habilidade na qual se espera analisar interações entre sociedade e

natureza na organização do espaço histórico e geográfico, envolvendo a cidade e o campo,

deixa fugir, a nosso ver, tal possibilidade, pois não evidencia o jogo interpretativo das escalas

na relação entre sociedade e natureza, bem como entre campo e cidade. Além disso, não se

leva em conta a dimensão do conflito, isto é, os diferentes interesses que se dão em âmbito

local, regional, nacional ou internacional quando nos voltamos para a análise dos fenômenos

socioespaciais oriundos tanto da relação sociedade-natureza quanto da relação campo-cidade.

A ausência do conflito parece mesmo marcar as proposições do documento. A sétima

competência, cuja intenção é fazer com que o jovem e adulto trabalhador se perceba

integrante, dependente e agente transformador do ambiente, também não pressupõe a

existência de conflitos antagônicos entre agentes sociais e políticos no enfrentamento da

problemática ambiental. Da forma com que as habilidades oriundas dessa competência são

apresentadas, nos parece que a concepção que prevalece é a de que tal enfrentamento exige

apenas a união de todos em prol da conservação do ambiente, no qual cada uma faz a sua

parte e, por si só, em um passe de mágica, florestas deixarão de ser devastadas e animais serão

salvos. Ao pretender identificar a presença dos recursos naturais na organização do espaço

geográfico, relacionando transformações naturais e intervenção humana, uma das

habilidades previstas para essa competência, a matriz toca justamente em uma das questões

mais delicadas no que concerne aos fenômenos geográficos de cunho ambiental: a exploração

dos recursos naturais. Tem o mérito de propiciar a articulação entre fenômenos sociais e

naturais. Mas, ao tratar da intervenção humana sem evidenciar o conflito e a contradição entre

o modelo de desenvolvimento econômico levado a cabo pelo capital e projetos alternativos de

sociedade, deixa escapar a construção do pensamento crítico e impede a idéia de que um outro

mundo é possível.

Cabe ressaltar que do conjunto de documentos, fazem parte também um livro do

professor e um livro do estudante, ambos distribuídos às secretarias que aderem ao exame e

disponíveis no sítio eletrônico do INEP. O livro do professor contém todo o arcabouço

teórico-metodológico do programa de avaliação, como também pequenos textos de apoio

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153

referentes a temas extraídos de cada uma das competências determinadas para a área. A partir

dos textos, são indicadas formas de abordagem dos conteúdos estabelecidos com base nas

habilidades específicas. No livro dos estudantes, são desenvolvidos os mesmos temas

apresentados no livro dos professores acrescentados de textos explicativos e informativos,

além de exercícios e atividades didáticas a serem realizadas pelos alunos.

No ensino fundamental, os temas85 são, de maneira geral, apresentados com base em

interpretações críticas, contando com textos e abordagens que podem levar ao pensamento

autônomo. No que se refere às atividades propostas para os estudantes há de fato algumas

atividades criativas que podem estimular a capacidade crítica de argumentação e relação com

as informações veiculadas. Cabe destacar, contudo, que em função dos objetivos dessa seção

não procedemos a uma análise profunda dessa parte do material, mas percebemos a

contradição quando verificamos que os critérios utilizados para a seleção de conteúdos,

justificados e apoiados na teoria das competências, não passam de aspectos e informações

bem gerais, não contemplando, por exemplo, conhecimentos de base que explicam e dão

sentido aos fenômenos abordados. A ausência de temas como a Revolução Francesa, a

Revolução Industrial e suas implicações na análise dos processos socioespaciais

contemporâneos, bem como a não exploração de conceitos como economia-mundo e sua

relação com a regionalização e a organização do espaço geográfico mundial, evidenciam um

tratamento fragmentado e uma abordagem fenomenológica dos temas, a partir dos quais a raiz

das questões apresentadas não é identificada.

Nesse sentido, a educação geográfica aí exposta não permite pensar o espaço

geográfico como uma totalidade que se faz notar nos lugares, pois não problematiza aspectos

estruturais que condicionam a produção do espaço pela sociedade e pouco estimula a reflexão

desses aspectos e suas implicações nos espaços e territórios de vida dos estudantes. Além

disso, ao deixar de abordar conteúdos da geografia física, não supera a visão fragmentada da

relação sociedade-natureza, o que pode acarretar sérias dificuldades, por parte do público da

EJA, em construir uma visão de mundo integradora e de fato totalizante. O resultado é claro:

sem a possibilidade de visão do todo, o estudante de EJA analisa a parte, a toma como o real a

ser enfrentado de forma fragmentada e naturaliza as relações sociais constituídas

historicamente.

85 Ver o sumário dos temas no Anexo 2.

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154

***

Como foi visto ao longo dessa seção e do capítulo como um todo, a trajetória histórica

do ensino de geografia, assim como do conhecimento escolar em geral, não deixa dúvidas

quanto às marcas e características de diferentes visões e concepções sobre o que é educação

escolar, o que é geografia, o que é currículo, o que é Educação de Jovens e Adultos.

Verdadeiros territórios do conhecimento são constituídos e sobrepostos nos documentos

oficias, nas práticas dos professores e na construção intelectual dos estudantes. Frutos de

intencionalidades, conflitos e contradições, esses territórios, embora demarcados por

fronteiras fluidas, são convertidos em ação política quando utilizados tanto em direção à

manutenção das forças hegemônicas quanto em direção à práxis transformadora. Assim,

investigar a educação geográfica voltada para o público jovem e adulto trabalhador requer

minuciosa análise do contexto político em que se inserem a elaboração e a implementação de

diferentes propostas curriculares, bem como da influência deste no processo de seleção

cultural e de recontextualização dos discursos geográficos e pedagógicos referentes à EJA.

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155

CAPÍTULO 3

A GEOGRAFIA NA PROPOSTA CURRICULAR DO PROJOVEM

O Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação

Comunitária, o ProJovem, foi selecionado para análise nessa pesquisa por fazer parte do

conjunto de políticas do atual governo federal direcionadas à Educação de Jovens e Adultos

trabalhadores. Sua implantação, embora tenha sido pensada e gestada no âmbito da Secretaria

Nacional da Juventude86, em parceria com o Ministério da Educação, o Ministério do

Trabalho e Emprego e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, é

representativa, a nosso ver, do campo de ação política da EJA em virtude de: 1) ter como

objetivo a escolarização com certificação de jovens que cursaram até o quinto ano, mas não

concluíram o ensino fundamental, 2) acarretar prováveis impactos sobre as escolas de EJA,

uma vez que redirecionou interesses ao atrair para si parte do alunado dessa modalidade, e 3)

instituir uma proposta curricular própria marcada por diferenças de abordagem teórico-

metodológica em relação à escolarização de crianças e adolescentes.

O exame desse programa também se justifica por se configurar em um claro exemplo

do marco conceitual e operacional das políticas do governo federal para a EJA. Tais políticas

resultam, segundo Rummert (2007b), “das repercussões internas da reestruturação produtiva,

do aprofundamento do processo de internacionalização do capital e da redefinição das

condições de inserção dependente e subordinada do país no capitalismo internacional” (p. 36).

Nesse sentido, o ProJovem pode ser considerado uma resposta à demanda por programas de

escolarização e qualificação profissional dos estratos da classe trabalhadora mais destituídos

de direitos sociais. Atende, por um lado, à idéia de que é a educação a chave para o ingresso

na economia competitiva e globalizada, e, por outro, satisfaz as forças dominantes da

sociedade que pouco desejam a plena oferta de escolaridade básica de qualidade a toda a

população (ibid.). Situado no conjunto de ações focais que prevê certificação de escolarização

aligeirada e formação profissional de caráter inicial, que não exige escolaridade mínima, o

Programa ilustra a ausência de políticas unitárias que tenham como meta as melhorias das

86 A Secretaria Nacional da Juventude é diretamente ligada à Secretaria Geral da Presidência da República. Foi instituída em 2004 como fruto das discussões interministeriais que redundaram na Política Nacional para a Juventude.

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156

condições de trabalho em escolas de EJA já existentes, assim como uma maior articulação

entre diferentes esferas do poder público como garantia de geração de emprego e renda.

Desse modo, por seu vínculo direto com o contexto político e econômico mencionado,

a análise do Programa se configura em uma rica oportunidade de avaliarmos as estreitas

relações entre processo de escolarização e projetos societários, bem como analisarmos o papel

das disciplinas escolares no atendimento às demandas advindas dessas concepções e opções

políticas. É nesse sentido que, partindo dessa análise inicial e ampla, tomamos a proposta

curricular do ProJovem, assim como o material didático produzido para o seu

desenvolvimento, como documentos a serem examinados com o intuito de se investigar de

que forma a seleção e organização de conteúdos de geografia se articulam aos pressupostos e

objetivos do Programa. Interessa-nos, portanto, analisar até que ponto os conhecimentos

geográficos veiculados se coadunam ou não com as intencionalidades políticas, procurando

evidenciar adesões e contradições, hibridismos e possibilidades a partir das diferentes

concepções do pensamento geográfico escolar.

Para tanto, iniciamos com uma descrição geral do Programa com ênfase em seus

pressupostos teórico-metodológicos, objetivos, modo de funcionamento e estrutura curricular.

Nos itens seguintes examinamos as três principais dimensões do seu currículo, primeiramente

descrevendo-as conforme são apresentadas nos documentos oficiais que compõem a proposta

curricular e em seguida analisando-as à luz da crítica ao contexto dentro do qual o Programa

se situa. Por fim, procedemos ao exame do material didático, em especial da parte reservada

às ciências humanas, área curricular onde se encontram os conteúdos geográficos.

3.1 ESCOLARIZAÇÃO, EMPREGABILIDADE E EMPODERAMENTO: O PROJOVEM

NO CONTEXTO DA POLÍTICA DAS ILUSÕES

Criado em 2005 e implementado em 2006, o ProJovem prevê elevação de escolaridade

(término do ensino fundamental), qualificação para o trabalho com certificação inicial, ações

comunitárias de interesse público e ainda inclusão digital para jovens de 18 a 24 anos

residentes nas regiões metropolitanas das capitais estaduais e do Distrito Federal, ausentes dos

bancos escolares e sem vínculos formais de trabalho. Tal caracterização identifica esse grupo

como marcado pela “vulnerabilidade juvenil” que, segundo o documento base do Programa

(BRASIL, 2005), está presente em todas as capitais brasileiras, onde “a perversa conjugação

entre carências econômicas, presença do narcotráfico e certas práticas de corrupção policial

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157

cria a imagem do jovem, sobretudo do jovem negro, como um suspeito em potencial e alvo

preferencial da violência urbana” (p. 9).

E é assim que o projeto pedagógico do Programa justifica sua implementação voltada

para esses jovens que, além das características já anunciadas, vivenciam, de acordo com o

documento, uma inédita experiência geracional que os conecta a processos globais de

comunicação. Além disso, apresentam especificidades quanto a linguagens, comportamentos

e modos de vida, e revelam ainda trajetórias pessoais diferenciadas entre si, marcadas tanto

pelas imposições da sociedade de consumo quanto pelas “novas formas de engajamento social

geradoras de autovalorização e construtoras de identidades coletivas” (BRASIL, 2005, p. 11).

O ProJovem, na verdade, deriva de ações implementadas desde o governo Fernando

Henrique Cardoso, como o Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano e o

Programa Serviço Civil Voluntário, cujas premissas básicas comuns tinham como referência

o mito da periculosidade do jovem de classe trabalhadora, a necessidade de medidas

socioeducativas para ‘conter’ esse perigo, a transferência de renda e o protagonismo juvenil

como contrapartida. Repetindo essas mesmas bases em sua proposta, o ProJovem oferece a

cada um de seus cursistas um auxílio financeiro mensal no valor de cem reais como forma de

minimizar os efeitos desse verdadeiro perfil “TNT”, já que se trata, segundo essa perspectiva,

de jovens prestes a explodir e espalhar violência por todos os lados a qualquer momento.

Por isso, além da transferência de renda, o Programa tem como finalidade também

uma suposta formação integrada de seus alunos, articulando as atividades de formação

escolar, responsável pela re-inserção do jovem na educação escolar e sua posterior

recondução para o ensino médio; qualificação profissional, cuja meta é a capacitação para o

mundo do trabalho; ação comunitária, que prevê o desenvolvimento de experiências

comunitárias; e inclusão digital como instrumento de inserção produtiva e de comunicação.

Cabe ressaltar que todas essas finalidades devem ser proporcionadas em um ano de trabalho

efetivo, fato que demonstra, a nosso ver, uma real dificuldade em viabilizar esse projeto de

maneira plena e satisfatória diante do pouco tempo dedicado a tantas atividades previstas.

A atribuição do Programa como instrumento de inclusão social, proclamada em sua

proposta curricular, fica prejudicada não só em função dessa pouca duração do trabalho a ser

desenvolvido, como também pelo próprio conceito de inclusão87, encarado como simples

acesso à certificação de escolaridade, bem como a um processo incipiente de formação

profissional que não garante efetivamente inserção digna no mundo do trabalho. Pressupondo

87 Sobre a crítica aos conceitos de exclusão / inclusão social, ver capítulo 1, p. 42-43.

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158

ainda a interdisciplinaridade como forma de desenvolver saberes, conhecimentos e

competências, a proposta inscreve-se na perspectiva do currículo por competências e anuncia

“uma organização curricular inovadora e flexível, cujo maior desafio é romper com duas

clássicas dicotomias: educação geral X formação profissional e educação X ação cidadã”

(BRASIL, 2005, p. 13). Nesse aspecto, o ProJovem trabalha com uma dupla contradição.

Primeiro porque incorpora a crítica da escola dual para atingir objetivos da perspectiva

produtiva da educação. Segundo porque articula a relação entre escola e práxis

transformadora aos interesses da cidadania vista sob o ângulo neoliberal.

Em termos de sua operacionalização, é importante revelar que a execução do projeto é

feita em parceria com as prefeituras que aderirem à proposta, que ficam então responsáveis

por organizar e possibilitar as condições materiais para a efetivação do curso. No que se refere

à organização do espaço, o ProJovem tem como base os Núcleos, que são compostos por

cinco turmas de trinta alunos. Cada conjunto de oito Núcleos se vincula a uma Estação

Juventude, local onde funciona uma espécie de centro pedagógico e administrativo e para

onde alunos e professores se deslocam com alguma freqüência. Segundo o projeto

pedagógico, tanto os Núcleos quanto as Estações devem se instalar em lugares onde haja

espaço adequado para a realização das atividades educativas, ficando a cargo das prefeituras a

escolha e a preparação desses espaços. Percebe-se, portanto, que as atividades do ProJovem

não se dão necessariamente em espaços escolares, o que o aproxima de iniciativas

precarizadas de educação de adultos, fato tão recorrente na história dessa modalidade de

ensino.

Quanto à organização do tempo, o Programa é desenvolvido com uma carga horária

semanal dividida da seguinte forma: dez horas reservadas para a elevação de escolaridade;

cinco horas voltadas para a qualificação profissional; uma hora para as atividades de ação

comunitária; duas horas para informática; e seis horas direcionadas para estudos e trabalhos

interdisciplinares88. Além disso, cada semana inclui também oito horas de atividades não

presenciais acompanhadas pelo professor orientador. Desse modo, a carga horária semanal de

atividades perfaz o total de 32 horas, somando ao final de um ano 1.600 horas de trabalho

efetivo. Tal configuração requer que os Núcleos organizem seus horários de modo que cada

professor exerça uma dupla função: a de especialista em uma das áreas componentes do

quadro curricular – língua portuguesa, língua estrangeira, matemática, ciências humanas e

ciências naturais – e a de professor orientador para o desenvolvimento de atividades

88 Ver sugestão de organização semanal do tempo de uma turma no Anexo 3.

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159

integradas e para o atendimento das dificuldades específicas encontradas pelos alunos. Assim,

cada Núcleo conta com cinco professores que atuam em todas as turmas como especialistas e

em uma das cinco turmas como orientador.

A organização curricular de todas as atividades do ProJovem tem como base quatro

eixos estruturantes também chamados de Unidades Formativas (UF)89. Cada unidade possui

um tema a ser explorado por todas as áreas do conhecimento, bem como pelas ações previstas

para a qualificação profissional e para a ação comunitária. Assim, tais eixos podem ser

entendidos, segundo as orientações gerais do manual do educador, como temas transversais

que fazem parte do contexto dos estudantes e são focalizados pelas diferentes disciplinas a

partir do olhar específico de cada uma (SALGADO, 2007). As UFs são também a base para a

produção do material didático do Programa, uma vez que são organizadas em quatro volumes

multidisciplinares com o intuito de nortear o percurso do aluno em cada uma das dimensões

formativas: a escolarização, a qualificação para o trabalho e a ação comunitária.

No que se refere ao desenvolvimento do trabalho relativo à qualificação profissional e

à ação comunitária, cada Estação da Juventude conta com profissionais ligados à formação

profissional e à assistência social que atendem as demandas de cada um dos oito Núcleos de

sua jurisdição. Esses profissionais ministram as atividades planejadas para seus respectivos

componentes curriculares e atuam junto aos professores orientadores no sentido de auxiliá-los

a apoiar e avaliar o desenvolvimento integral dos alunos. Com isso, vemos que são os

professores especialistas, que também exercem o papel de orientadores nas atividades

relacionadas às ações comunitárias, à formação profissional e à introdução à informática, os

principais responsáveis pelo sucesso ou fracasso da integração das ações curriculares. Além

disso, a proposta ainda indica que todos os profissionais, incluindo aqueles lotados nas

Estações, devem planejar coletivamente suas ações “de modo a viabilizar a participação de

todos e criar sinergia no funcionamento do núcleo” (ibid., p. 33). Para tanto, é reservada uma

hora durante três dias para o planejamento coletivo da semana e duas horas para a formação

continuada.

Em linhas gerais, essa é a estrutura curricular do ProJovem, cabendo salientar que nos

referimos aqui às características do programa original, isto é, aquele desenvolvido nos anos de

2006, 2007 e em desenvolvimento em 2008, deixando de abordar, portanto, o chamado Novo

ProJovem, anunciado ao final de 2007. A nova versão do Programa pretende oferecer, até

2010, mais quatro milhões de vagas, agora para jovens e adultos de 15 a 29 anos que vivam

89 Ver a matriz curricular do ProJovem no Anexo 4.

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160

também em situação de “vulnerabilidade social”. A duração das atividades passa de doze para

dezoito meses e a abrangência territorial também é alterada, contemplando agora cidades com

população igual ou superior a 200 mil habitantes. Além disso, o Programa, em uma tentativa

de diversificar seu público-alvo, passa a ser subdividido em quatro modalidades: ProJovem

Adolescente, ProJovem Urbano, ProJovem Campo e ProJovem Trabalhador90.

É importante também deixar claro que baseamos nossas reflexões no conjunto de

documentos oficiais do Programa, composto pelo Projeto Pedagógico do ProJovem e pelos

volumes da coleção didática, formada, por sua vez, pelos manuais do educador e pelos guias

de estudo dos alunos. As críticas e questionamentos se voltam, portanto, à estrutura, aos

objetivos e aos pressupostos anunciados, o que não elimina a possibilidade de construção de

ricas e significativas experiências desenvolvidas nas turmas, nos Núcleos e mesmo nas

Estações da Juventude. As reinterpretações, ou melhor, o processo de recontextualização de

textos e discursos oficiais é fato e pode levar a interessantes iniciativas. No entanto, quando a

concepção e a estrutura da proposta apresentam limites e ambigüidades, supomos a extrema

dificuldade com a qual os profissionais se deparam ao tentar executar minimamente as

atividades previstas. Nas próximas seções aprofundaremos mais as análises acerca da

proposta de forma a contribuir com nossas reflexões sobre os limites e possibilidades

presentes no Programa.

3.1.1 A qualificação para o trabalho e a ilusão da empregabilidade

Na perspectiva anunciada pelo ProJovem, a qualificação profissional diz respeito “ao

desenvolvimento de habilidades, ao autoconhecimento, à sociabilidade, à realização pessoal,

simultaneamente à preparação para uma inserção ocupacional que possa assegurar renda aos

jovens participantes e levá-los à autonomia” (BRASIL, 2005, p. 15). A partir dessa

concepção, a proposta traça como objetivos gerais relacionados a esse eixo de atuação o

emprego de competências necessárias para o desempenho de uma ocupação que gere renda e

o estabelecimento de um projeto de desenvolvimento profissional, considerando as

potencialidades, as necessidades de aprendizagem e as características do contexto de trabalho

dos jovens cursistas. Pressupõe ainda como uma de suas diretrizes gerais que a qualificação

inicial para o trabalho deve criar possibilidades para o desenvolvimento de “novas formas de

90 Informações disponíveis em <http://www.projovem.gov.br/2008/>. Acesso em 20 abr. 2008.

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inserção produtiva”, bem como aliar as “necessidades e potencialidades econômicas, locais e

regionais” às vocações dos jovens atendidos (ibid., p. 17).

Para a viabilização dessa meta, a proposta inclui como tarefa para os alunos a

elaboração do Projeto de Orientação Profissional (POP). Trata-se, na verdade, de um projeto

de caráter individual que deverá ser produzido em etapas ao longo do desenvolvimento do

curso. As orientações gerais do manual do educador, no entanto, alertam para o fato de que o

POP “não é um plano para ser desenvolvido e avaliado durante o curso e nem mesmo depois

dele, embora se espere que ajude o jovem a situar-se no mundo do trabalho” (SALGADO,

2007). A construção do projeto tem como finalidades principais sistematizar e aproveitar as

oportunidades oferecidas pelo curso no que se refere à formação profissional, resgatar sua

trajetória profissional e ajudar a projetar os passos seguintes do estudante na busca pela sua

inserção no mundo do trabalho. Pretende ainda fornecer uma base de dados sobre os alunos

com o objetivo de qualificar o próprio Programa, além de outras políticas para a juventude.

Dessa forma, os cursistas devem informar dados de sua trajetória profissional, como

cursos que freqüentou e atividades profissionais realizadas, bem como pensar indicações

gerais sobre a melhor maneira de projetar seu futuro profissional. Para a sua elaboração,

contam com a coordenação do professor orientador que tem, por sua vez, a colaboração do

professor das matérias profissionalizantes específicas, também previstas para o curso. O

professor orientador deve utilizar parte das seis horas semanais reservadas para as atividades

integradoras, estudos e trabalhos interdisciplinares para o trabalho de acompanhamento da

feitura do projeto e o tempo usado pelos alunos para essa tarefa deve ser incluído na carga

horária semanal de atividades não presenciais.

Além do POP, o curso de qualificação para o trabalho prevê também outras duas

dimensões: a Formação Técnica Geral (FTG) e a formação específica a partir dos Arcos

Ocupacionais. A FTG é desenvolvida nas Unidades Formativas I e II com o intuito de

fornecer aos alunos a apropriação de conhecimentos, técnicas e atitudes inerentes a todos os

tipos de ocupação laboral. Para cada uma dessas UFs, são previstos tópicos distribuídos

conforme exposto no quadro 1.

Tais conteúdos são ministrados também pelo professor orientador, a quem, de acordo

com o Projeto Pedagógico, é garantida uma formação específica para esse fim. Nos volumes

da coleção didática do ProJovem destinados às UFs em questão, tanto na versão para os

alunos quanto no manual do educador, são reservados capítulos referentes a esse eixo. Para os

educadores são oferecidas atividades e orientações didáticas como forma de auxiliá-los no seu

trabalho pedagógico diário.

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162

Quadro 1: TÓPICOS DA FORMAÇÃO TÉCNICA GERAL DO PROJOVEM

Unidade Formativa I: 4 tópicos Unidade Formativa II: 5 tópicos

1. Formação técnica geral 1. O trabalho e seus resultados

2. Mobilidade e trabalho 2. A produção como processo

3. Atividades econômicas na cidade 3. Planejamento, programação e controle da produção

4. Organização do trabalho 4. Outras possibilidades de trabalho

5. Comunicação e trabalho

Fonte: Salgado (2007b).

A terceira dimensão da qualificação para o trabalho, a formação específica pelos Arcos

de Ocupação, é desenvolvida nas UFs III e IV. As atividades previstas dizem respeito à

formação técnica específica ministrada por profissionais ligados a alguma ocupação

profissional presente nos Arcos de Ocupação91. Estes são “conjuntos de ocupações

relacionadas, ou seja, que possuem base técnica comum, que podem abranger as esferas da

produção e da circulação [...], garantindo uma formação mais ampla e aumentando as

possibilidades de inserção ocupacional do/a jovem trabalhador/a” (BRASIL, 2005, p. 47). Na

proposta do ProJovem, cada arco é composto por quatro ou cinco ocupações selecionadas

com base na Classificação Brasileira de Ocupações, cabendo ao governo municipal, parceiro

do programa, a determinação das ocupações que serão objetos de formação profissional.

Como se vê, a proposta de formação profissional do ProJovem pretende, em cinco

horas semanais durante um ano, possibilitar a reflexão sobre o mundo do trabalho tanto a

partir de uma perspectiva sociológica quanto a partir da trajetória e das necessidades de

ocupação profissional dos alunos. Mescla, então, a concepção de trabalho em seu sentido

ontológico, ao propalar seu entendimento como “prática social específica, de caráter histórico

e cultural, por meio do qual o ser humano constrói suas condições de existência” (ibid., p. 14-

15), com a idéia de trabalho como emprego, como ocupação, já que nesse mesmo

entendimento está embutida a preparação para a inserção profissional.

Dessa forma, embora anuncie uma abordagem integradora do currículo no que diz

respeito à qualificação para o trabalho e sua relação com as atividades de escolarização e de

ação comunitária, há grande risco em se confundir integração com simultaneidade, uma vez

que, de acordo com Ramos (2005 apud FRIGOTTO et al., 2005), o currículo integrado

abrange formação geral, técnica e política com base nas ciências, no conhecimento escolar,

91 Ver a relação entre os Arcos e as ocupações no Anexo 5.

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163

como leis gerais que explicam fenômenos. Ainda para a autora, sendo a tecnologia

compreendida como a ciência apropriada com fins produtivos, “no currículo integrado

nenhum conhecimento é só geral, posto que estrutura objetivos de produção, nem somente

específico, pois nenhum conceito apropriado produtivamente pode ser formulado ou

compreendido desarticuladamente da ciência básica” (ibid., p. 1095).

Os conteúdos a serem ministrados na parte referente à qualificação para o trabalho das

UFs I e II tentam, a nosso ver, dar conta desse caráter integral da formação profissional.

Chegam inclusive a abordar temas que exigem a contribuição de diversas disciplinas

escolares. Dos temas a serem explorados na UF I, por exemplo, pelo menos dois – Mobilidade

e trabalho e Atividades econômicas na cidade – necessitam da abordagem geográfica para

que possam ser compreendidos em profundidade. Sem adentrar por esse cruzamento de

conteúdos disciplinares, consideramos que ainda assim, apesar da tentativa de integrar eixos

formativos e conhecimentos disciplinares, o perigo da simultaneidade persiste. Lembramos

que é o professor orientador o responsável por atividades de integração e se o trabalho

pedagógico não for fruto de reflexões e decisões coletivas, muitos desses conteúdos podem se

perder em vazias lições fragmentadas e desconexas.

Obviamente, a concretização desse risco só pode ser evidenciada com o

acompanhamento das práticas cotidianas da ação pedagógica. No entanto, uma outra questão

referente à estrutura curricular do Programa reforça nossas considerações. A previsão de

momentos distintos para a formação geral e para a formação profissional específica indica que

a preocupação com o currículo integrado não leva em conta o trabalho como princípio

educativo. Isso porque, “nessa perspectiva, não procede delimitar o quanto se destina à

formação geral e à específica, posto que, na formação em que o trabalho é princípio

educativo, estas são indissociáveis e, portanto, não podem ser predeterminadas e recortadas

quantitativamente” (RAMOS, 2005 apud FRIGOTTO et al., 2005, p. 1099).

Com efeito, essas características e contradições nos permitem situar o Programa na

esteira da política de educação profissional do governo Lula, que tem se processado, segundo

Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005), mediante programas focais e contingentes, a exemplo do

Projeto Escola de Fábrica92 e do PROEJA93. Tais projetos e programas têm sido marcados

92 O Projeto Escola de Fábrica tem como objetivo oferecer cursos de formação profissional inicial para jovens entre 15 e 21 anos de idade através de Unidades Formadoras criadas nas empresas que desejarem participar do programa. Os recursos são repassados da esfera pública para instituições gestoras (ONGs, por exemplo), responsáveis pela formulação e concepção pedagógica do projeto a ser implementado nas empresas. Os jovens atendidos recebem uma bolsa auxílio no valor mensal de meio salário mínimo e têm que estar matriculados no ensino público regular.

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164

pela lógica da formação por competências voltadas para a produção da empregabilidade dos

sujeitos, o que os distancia consideravelmente das promessas desse mesmo governo no início

de sua gestão, quando foi anunciada, ainda de acordo com Frigotto et al., a intenção de

reconstruir a educação profissional no país e torná-la alvo de uma política pública que

conjugasse educação profissional com educação básica nos moldes de um currículo integrado.

Nessas iniciativas pontuais, percebe-se também a falta de integração com outras

políticas como as de inserção profissional e de melhoria de renda das famílias. Isso reflete, de

certa forma, o não entendimento da formação profissional da classe trabalhadora como algo

extremamente complexo que requer uma série de cuidados por parte do poder público. A

própria redução da formação profissional à preparação para uma ocupação como única tarefa

a ser desempenhada já revela a pouca atenção dispensada a essa modalidade da educação

nacional.

Para Laflame e Baby (1993), citados por Frigotto et al. (2005), há, na verdade, três

dimensões que devem ser articuladas quando se pensa em política de formação profissional. A

primeira delas, a preparação profissional, diz respeito aos conhecimentos específicos

transmitidos aos jovens com a intenção de habilitá-los para o mercado de trabalho. Já a

transição profissional está relacionada a um conjunto de mecanismos situados na interface da

escola e do trabalho (centros de emprego, programas de auxílio ao emprego etc.) e que teriam

como incumbência o auxílio à procura de uma ocupação para os cursistas. Por último, ocorre

a integração profissional, que, segundo os autores, pode acontecer na forma de uma relativa

estabilidade, de marginalização ou mesmo de convivência com o trabalho precário. Destaca-

se ainda que “a natureza, a importância e o grau de coincidência dessas três dimensões

dependeriam de aspectos macrossociais e macroeconômicos e de outros aspectos, tais como as

políticas de emprego e de transição escola-empresa” (ibid., p. 1.103).

Vê-se, portanto, que o ProJovem é mais uma iniciativa que não passa da dimensão de

preparação para o trabalho, pois não há mecanismos que garantam a transição para o trabalho,

fato que apenas ratifica a ilusão da empregabilidade e inviabiliza, de certa forma, a

concretização do Projeto de Orientação Profissional (POP) a ser elaborado pelos estudantes.

Em última instância, tal caracterização, aliada ao pouco tempo destinado às diversas

atividades planejadas, acaba por aproximar essas ações à velha formação de uma mão-de-obra

93 O Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – o PROEJA – prevê ação integrada entre formação profissional, ensino médio e EJA a ser oferecida pelas instituições educativas da rede federal, incluindo aí os Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs), as Escolas Técnicas e Agrotécnicas, as Escolas Técnicas vinculadas às Universidades Federais e o Colégio Pedro II.

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165

cujo papel na divisão social do trabalho e no desenvolvimento econômico do país já sabe de

antemão.

Por fim, vale lembrar que essas ações focais não são acompanhadas de reformas

estruturais que visam à superação das desigualdades e da universalização da educação básica

com qualidade. Desse modo, de acordo com as considerações de Frigotto et al. (2005), o

governo Lula “conduz-se para o terreno das reformas parciais, antes que para uma reforma

integral que, neste momento, equivaleria à reapropriação da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional na perspectiva defendida nos anos de 1980, cujo princípio básico era o

direito à educação laica, gratuita, de qualidade, politécnica e de formação omnilateral” (p.

1107).

3.1.2 Ação comunitária, protagonismo juvenil e empoderamento: as bases para o alívio

da pobreza

A concepção de ação comunitária adotada pela proposta pedagógica do ProJovem é

pensada à luz do binômio cidadania e solidariedade e associada à contribuição “para o

desenvolvimento de potencialidades dos jovens e aquisições que resultem no reconhecimento

de seus direitos e deveres cidadãos” (BRASIL, 2005, p. 15). Baseando-se em dados que

atestam a pouca participação dos jovens brasileiros em atividades associativas, bem como em

movimentos sociais, associações profissionais e partidos, o Programa acredita que qualquer

projeto social dirigido a esse público deve chamá-lo permanentemente para a “participação

cidadã” sem, no entanto, explicitar claramente o que se entende por esta expressão. A

proposta ainda chama a atenção para o que considera como novas formas de participação

juvenil que, a despeito dos indicadores de certa apatia política, vêm expressando as principais

demandas, visões de mundo e necessidades dessa parcela da população.

Segundo o documento, o pertencimento a grupos que atuam para transformar o espaço

local (pastorais, redes, ONGs etc.), a participação em grupos que trabalham nos espaços de

cultura e lazer (grafiteiros, grupos artísticos, associações esportivas etc.), as mobilizações em

torno de uma causa ou campanha (ações contra a violência, campanha contra a fome etc.) e a

existência de grupos reunidos em torno de identidades específicas (mulheres, negros,

homossexuais etc.) demonstram a diversidade dessas novas formas de atuação as quais o

Programa deve não só reconhecer como também apoiar com o intuito de contribuir para a sua

ampliação. Desse modo, acreditando no protagonismo e nas potencialidades juvenis, o

ProJovem espera que os jovens egressos de seu curso sejam capazes de assumir

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166

responsabilidades frente à sua família e à sua comunidade. Para tanto, através do componente

curricular denominado ação comunitária, os alunos devem identificar problemas e

necessidades de sua comunidade, além de ajudar a planejar e participar de iniciativas

concretas que visem à sua superação. Nesse sentido, ainda segundo o documento oficial do

Programa, “a ação comunitária deverá resultar de um diagnóstico das necessidades locais e

regionais, promover o engajamento cidadão voluntário e a formação de valores e práticas

solidários” (BRASIL, 2005, p. 17).

Contando com uma hora semanal para o desenvolvimento das suas atividades, o

componente curricular prevê, além das aulas, a elaboração de um Plano de Ação Comunitária,

o PLA. Construído pelos jovens nas Unidades Formativas I e II e colocado em prática ao

longo das UFs II e III, o PLA tem como principais finalidades a promoção do protagonismo, a

participação crítica e transformadora dos jovens na vida pública, a articulação entre os

componentes curriculares através de práticas solidárias e o fortalecimento de espaços de

socialização e dos vínculos familiares e comunitários. Deve ser elaborado em grupo com a

coordenação do professor orientador e obedecer a três etapas básicas: 1) a realização de um

diagnóstico socioespacial do contexto em que os jovens estão inseridos; 2) a indicação de

propostas de ação junto à definição das formas de execução das ações; 3) a sistematização das

aprendizagens construídas na experiência vivida, prevendo também os procedimentos de

avaliação do que foi realizado.

A fase do levantamento diagnóstico busca construir e organizar conhecimentos sobre

os territórios onde vivem os jovens e prevê tanto o levantamento de informações e dados

conseguidos através de pesquisas, trabalhos de campo e entrevistas, como também a análise e

interpretação dessas informações coletadas. A definição das ações deve se pautar nas

demandas interpretadas como prioritárias a partir do diagnóstico e nos desejos dos próprios

alunos. Daí em diante, os grupos devem confeccionar o plano tendo como fio condutor um

conjunto de questões que indagam sobre o que pretendem fazer, por quê, para quê e para

quem, além do prazo e dos resultados necessários para a realização das ações.

A execução do PLA é prevista para acontecer em 50 horas distribuídas ao longo do

tempo determinado para as UFs III e IV e deve ser sempre acompanhada pelo professor

orientador. Durante esse período devem ser reservados momentos para a preparação e a

avaliação das ações, bem como para trocas, reflexões e registro de todas as atividades

realizadas. A proposta pedagógica ainda identifica alguns desafios que devem permear o

trabalho de professores e alunos nessa etapa: garantir que as decisões sejam coletivas,

fortalecer a autonomia dos estudantes na execução das ações, estimular a socialização das

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167

experiências e fomentar a articulação de novas parcerias que possam auxiliar na concretização

do plano.

Tomando como princípio a idéia de que “participar e exercer cidadania são ações que

se aprendem fazendo” (SALGADO, 2007a, p. 41), o ProJovem aposta que a participação

dirigida de seus jovens cursistas e a coordenação multifacetada de seus professores pode

provocar transformações concretas em situações que expressam os principais problemas

presentes nas localidades onde as turmas e os Núcleos estão inseridos. Como exemplo dessas

situações que podem ser objeto de ações comunitárias, o documento aponta, dentre outras, a

falta de infra-estrutura urbana, a defesa e a proteção ambiental, a preservação e a valorização

do patrimônio histórico, além do desenvolvimento de atividades lúdicas ou de recreação em

creches, abrigos, asilos etc.

Percebe-se, portanto, que muitas das ações previstas se situam no contexto de ausência

ou de precariedade de serviços públicos. Essa perspectiva do Programa o deixa vulnerável a

uma série de questionamentos que, em geral, se direcionam à concepção de juventude e de

protagonismo juvenil, bem como ao papel exercido pela ação comunitária na formação desses

sujeitos. Para Rummert (2007b), por exemplo, “a ação comunitária esperada situa-se no vácuo

deixado pelo próprio poder público, limitada pela ordem social já estabelecida, consistindo

numa contrapartida ao ínfimo valor da bolsa mensalmente recebida a título de auxílio” (p. 43).

Análise semelhante fazem Sposito e Corrochano (2005) ao comparar alguns

programas instituídos desde o final dos anos 1990 e voltados para jovens das classes

populares94. Esses programas também prevêem ações voluntárias compulsórias como

contrapartida para o recebimento do auxílio financeiro, o que nos faz incluir o ProJovem

nesse mesmo rol de iniciativas que delegam à juventude das frações menos favorecidas da

classe trabalhadora a missão de ajudar a resolver problemas estruturais das localidades onde

vivem. Tal perspectiva se torna perversa na medida em que os impactos negativos sobre seus

protagonistas não podem ser considerados pequenos. Na visão das autoras, o quadro se

configura grave porque:

[...] de certo modo, ocorre um novo ocultamento ou naturalização das condições em que as desigualdades sociais operam, pois na ausência de direitos assegurados resta aos atores jovens, muitas vezes sem nenhum apoio de caráter mais duradouro, a tarefa de construir um projeto voltado para o ‘desenvolvimento local ou comunitário’, deslocando-se para o sujeito a responsabilidade de empreendimentos

94 Dentre várias iniciativas dessa natureza desenvolvidas em diferentes níveis de governo, as autoras selecionaram dois programas federais para análise: o Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano e o Serviço Civil Voluntário (SCV), ambos implementados no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso.

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que não seriam a rigor de sua alçada. Sempre há o risco da mera farsa ou do simulacro de projeto de ação coletiva. Mas, se os jovens são responsáveis pelo projeto, provavelmente poderão sentir-se também responsáveis por seu fracasso, individualizando situações que encontram seus limites nas barreiras estruturais das desigualdades” (p. 166).

Encaixando-se perfeitamente na perspectiva apresentada pelo ProJovem, as

considerações de Sposito e Corrochano nos conduzem também à crítica das ideias de

cidadania e de protagonismo juvenil embutidas em praticamente todos esses programas.

Segundo as autoras, a perspectiva de cidadania que prevalece é a da “obrigação de cidadania”,

isto é, os jovens das classes populares95 devem ser transformados em indivíduos ativos que

participam das questões que interessam à nação e dispostos a defendê-la na guerra e mantê-la

na paz. Inserido nessa concepção, o mito da periculosidade dos jovens pobres tem servido

como lastro comum que permeia a origem de todas essas iniciativas, pois “grande parte delas

operou com a imagem de uma juventude perigosa, potencialmente violenta, que necessitava

de uma ampla intervenção da sociedade para assegurar seu trânsito para a vida adulta de modo

não ameaçador a certas orientações dominantes” (2005, p. 145).

Desse modo, se configuram duas representações sociais relativas a esses jovens: a

primeira o identifica como fonte e vítima dos problemas sociais, principalmente aqueles

relacionados à violência urbana; a segunda o coloca como protagonista das soluções desses

mesmos problemas, bem como do desenvolvimento das “comunidades” onde moram. Em um

processo que individualiza os problemas estruturais da sociedade e reproduz a velha

culpabilização da vítima, o conceito de protagonismo juvenil pode ser resumido da seguinte

forma: mesmo continuando pobre e muitas vezes sem condições mínimas de sobrevivência

digna, os jovens são chamados a ajudar a “melhorar” sua comunidade em geral desprovida de

equipamentos e serviços públicos básicos.

Se é verdade, porém, que nesse quadro podem ser encontrar pequenas possibilidades

de intervenção social através do potencial juvenil, é fato também que a forma com que os

programas lidam com essa questão impõe sérios limites à sua realização. Sposito e

Corrochano (ibid.) apontam e comentam os principais deles:

95 Sposito e Carrochano (2005) indagam por que essas exigências e expectativas se dirigem apenas aos jovens trabalhadores. “Por que jovens de classes médias e de elite, alguns alunos de escolas técnicas federais ou de universidades públicas, usufruindo serviços gratuitos mantidos pelos impostos, não estão também submetidos a qualquer contrapartida comunitária, sabendo-se que teriam facilidades para essa ação, diante de seu capital cultural e social? Ocorre mais uma exigência voltada apenas aos pobres, aqueles que no discurso são considerados desprovidos de direitos?” (p. 165).

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[...] primeiramente, a ênfase em certos aspectos comportamentais – como se todo e qualquer jovem em qualquer momento histórico e social fosse naturalmente predisposto a provocar mudanças –; em segundo lugar, essa mudança será realizada apenas se o mundo adulto reconhecer e criar condições para isso, de onde se pode subentender a dificuldade do jovem em fazer-se ouvir e em agir por si só. Por fim, atribui ao jovem uma tarefa dificílima – a de transformar a sua “comunidade”, em geral desprovida de equipamentos públicos e serviços que assegurem um mínimo de qualidade de vida. O envolvimento em ações e capacitações voltadas para a “comunidade” ao lado da continuidade da trajetória escolar são as contrapartidas exigidas pelo recebimento da bolsa (p. 150).

Percebe-se, portanto, outra limitação de extrema gravidade: em geral, essa suposta

mobilização de cidadãos tem como lógica principal ser a contrapartida pelo benefício

financeiro concedido através da bolsa auxílio. Ainda para as autoras, tal fato se dá em função

da necessidade de que a transferência de renda, característica recorrente em todos esses

programas, não se configure como puro assistencialismo e escape à lógica do filantropismo.

Nesses termos, “pretende-se restabelecer a solidariedade social a partir da ação pública,

constituindo, além da transferência de renda, uma espécie de distribuição de responsabilidades

que mobilize os cidadãos para a sua efetiva integração na ordem nacional” (SPOSITO e

CORROCHANO, 2005, p. 160).

No entanto, como boa parte das ações que integram essa grande mobilização é de

difícil realização, o que prevalece é o discurso da inovação e da ação comunitária. Discurso

que, na verdade, pode estar encobrindo outras intencionalidades que se relacionam muito mais

com o mito da periculosidade juvenil, como a gestão do tempo livre dos jovens pobres.

Assim, vê-se que o que move essas iniciativas não é a perspectiva da garantia dos direitos aos

jovens da classe trabalhadora, uma vez que elas não são acompanhadas de ações públicas que

promovam a igualdade de acesso à educação, à saúde, à cultura, ao lazer e ao trabalho, bens

dos quais esses jovens são sistematicamente excluídos (ibid.). Além disso, na extensão desses

direitos, as localidades onde vivem também deveriam ser alvo de políticas de fato

participativas e democráticas.

Assim, concordando com as considerações de Rummert (2007b), as atividades de ação

comunitária previstas pelo ProJovem não só se restringem ao atendimento de demandas

pontuais, exercidas em um tempo tutelado, como também convidam “os jovens ao

engajamento em um projeto que lhes pré-determina o futuro nos marcos já estabelecidos para

as frações mais exploradas da classe trabalhadora” (p. 43). Além disso, vemos bastante

explícita a idéia de empoderamento, noção neoliberal veiculada por organismos multilaterais

(Banco Mundial, OCDE etc.) na qual os trabalhadores são levados a encontrar soluções para

seus problemas, e cujo enfoque em ações individuais minimiza o interesse pelas causas

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170

estrututrais. Dessa forma, a ação comunitária, o protagonismo juvenil e o empoderamento são

vistos como paliativos que podem contribuir para o alívio da pobreza e não como estratégias a

partir das quais se possam vislumbrar outros projetos societários.

3.1.3 Elevação da escolaridade ou certificação da precariedade?

A formação escolar referente ao ensino fundamental é o terceiro e mais importante

eixo de atuação do ProJovem. Na própria orientação inicial do Programa, o Grupo

Interministerial da Juventude, responsável pelo diagnóstico e pela indicação de uma política

nacional de juventude, sugeriu a implantação de um programa que atendesse, em caráter

emergencial, o segmento da população brasileira que tem necessidade de chegar ainda jovem

ao ensino médio. Também propunha que, em caráter experimental, o programa baseasse sua

proposta curricular em um paradigma que integrasse formação geral, qualificação profissional

e engajamento cívico (BRASIL, 2005).

Na proposta curricular do ProJovem a carga horária total dedicada às atividades

relacionadas à elevação da escolaridade é de 800 horas a serem cumpridas em um ano. Como

principal finalidade da formação escolar, o Programa indica a re-inserção do jovem na escola

e concebe o processo educativo como “construtivo e permanente, que vai da vida para a

escola e da escola para a vida, articulando conhecimentos formalmente estruturados e saberes

tácitos” (ibid., p. 13). Desse modo, compreende o conhecimento escolar como uma construção

que tem como base o encontro conflituoso entre diferentes saberes: os cotidianos, os conceitos

e as leis científicas, além de elementos estéticos, reflexões filosóficas e o que o texto oficial

chama de determinações legais sobre o currículo.

No processo ensino-aprendizagem, o ensino é visto como a relação pedagógica que

prevê intervenção educacional planejada capaz de criar situações desafiadoras para que os

alunos sejam estimulados em suas aprendizagens. A aprendizagem, por sua vez, “consiste na

construção de competências e capacidades por meio da re-significação de elementos sociais e

culturalmente transmitidos e da construção/reconstrução pessoal” (ibid., p. 14). O documento

não aprofunda cada uma dessas premissas, apenas apresenta-as dando a entender que seus

significados e definições são consensuais e de domínio comum. Ao ressaltar que a

aprendizagem está vinculada à construção de competências e capacidades, vemos claramente

que a proposta se insere nos marcos do currículo por competências, para o qual o aprender se

restringe à acumulação de saber-fazer e de saber-pensar dentro da lógica hegemônica de

produção material e de produção simbólica.

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171

Acompanhando essa perspectiva, a interdisciplinaridade é justificada como mais um

dos conceitos básicos da proposta curricular em função do “enfraquecimento das fronteiras

entre as disciplinas”. No que se refere à relação entre teoria e prática, toma-se como referência

a visão de que o trabalho é cada vez mais articulado entre teoria e tecnologia, o que supõe,

segundo a proposta, análise e tomada de decisões in processu, ação coletiva, gestão

democrática e questionamento da própria prática. Todas essas definições, expostas de forma

bastante superficial no documento, se encontram nos limites da regulação e da reprodução dos

discursos vinculados aos interesses das forças produtivas. A interdisciplinaridade, a ação

coletiva e a gestão democrática, para ficar apenas em alguns exemplos, são definidas e

justificadas com base no referencial da integração e da flexibilidade produtivas, bem como na

intencionalidade de se formar o novo sujeito, o novo trabalhador que deve pensar de forma

integrada toda a cadeia produtiva sem problematizar, no entanto, o acirramento das relações

de poder e das desigualdades subjacentes às relações de trabalho, agora também flexíveis.

Dessa forma, o currículo do ProJovem é organizado em grandes áreas temáticas

justificadas pela intenção de que os conteúdos disciplinares não se esgotem na carga horária

atribuída às disciplinas. De acordo com o projeto pedagógico do Programa, em cada período

se deve criar um “espaço bem delimitado para concretizar estudos teórico-práticos e

interdisciplinares ligados ao trabalho e à ação comunitária” (BRASIL, 2005, p. 18). Para

tanto, cada Unidade Formativa é articulada em torno de um eixo estruturante, de referências

conceituais e de ações curriculares. O eixo estruturante corresponde a uma situação-problema

considerada relevante para o cotidiano dos jovens cursistas, as referências conceituais indicam

a perspectiva de abordagem dessa situação-problema e as ações curriculares têm como

objetivo formular atividades didáticas que possam superar a disciplinarização do trabalho

escolar.

O desenho curricular do Programa, isto é, a seleção e a organização dos conteúdos, é

resultante da interação entre os eixos estruturantes e as referências conceituais relacionadas a

cada grande área. Os eixos estruturantes, estabelecidos com base nas características do

público-alvo e determinados para cada UF, são: Juventude e Cidade para a UF I; Juventude e

Trabalho para a UF II; Juventude e Comunicação para a UF III; Juventude e Cidadania para a

UF IV. A partir dessa interação são selecionados tópicos do conhecimento escolar que os

educadores devem ministrar tanto de forma disciplinar como professores especialistas, nos

tempos designados para as áreas, quanto a partir de sínteses interdisciplinares como

professores orientadores, desenvolvidas nos tempos específicos para esse fim e para a

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172

elaboração do Plano de Ação Comunitária (PLA) e do Projeto de Orientação Profissional

(POP).

Segundo as orientações gerais contidas no manual do educador (SALGADO, 2007a),

as sínteses interdisciplinares são desenvolvidas a partir de temas integradores, escolhidos com

base no cotidiano e nas emoções dos jovens. A abordagem desses temas tem como objetivo

principal levar os estudantes a organizar novos conhecimentos que se relacionem a suas

experiências passadas, bem como a seus desejos e sonhos para o futuro. Para isso, foram

selecionados cinco temas integradores para cada Unidade Formativa e distribuídos da seguinte

forma:

Quadro 2: TEMAS INTEGRADORES DO PROJOVEM

Eixo estruturante

Tópicos de Ciências Humanas

Tópicos de

Língua Portuguesa

Tópicos de

Inglês

Tópicos de Matemática

Tópicos de Ciências

da Natureza

Tópicos de Formação Técnica Geral e Arcos

Tópicos de

Ação Comunitária

I Juventude e Cidade

Ser jovem hoje

Morar na cidade grande

Violência urbana e defesa do cidadão

Qualidade de vida na cidade

Meio ambiente e saneamento

II Juventude e Trabalho

Ser jovem: aprendendo e trabalhando

Produzir e consumir na cidade

A violência e o trabalho

Qualidade de vida e trabalho

Trabalho e meio ambiente

III Juventude e Comunicação

A importância da comunicação para a vida e o trabalho dos jovens

Comunicação: espaço de interação dos jovens cidadãos ou espaço de alienação?

Comunicação: proteção contra a violência urbana?

Como a comunicação influi na qualidade de vida do jovem?

Comunicação, globalização e cidadania

IV Juventude e Cidadania

Ser, de fato, um cidadão completo já é uma realidade para o jovem brasileiro?

Dá para ser feliz morando na cidade grande?

Violência urbana combina com cidadania?

Ser aluno do ProJovem: uma experiência cidadã?

Que responsabilidade tem o jovem cidadão na proteção do meio ambiente e do planeta?

Fonte: Salgado (2007a).

Seguindo uma orientação bastante prescritiva, o currículo do ProJovem prevê que os

temas integradores devem ser desenvolvidos a cada quinze dias ao longo das quatro UF,

perfazendo o total de vinte sínteses interdisciplinares. A semelhança entre os temas, ainda de

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173

acordo com o manual, se deve à concepção de interdisciplinaridade adotada pela proposta

curricular do Programa, “a qual implica criar condições para uma apropriação dos conteúdos

pelo jovem, não em si mesmos, mas como suporte para o desenvolvimento das habilidades de

diferentes tipos, dos valores e atitudes, enfim, das competências buscadas pelo curso”

(SALGADO, 2007a, p. 40). A partir, portanto, da lógica do currículo por competências, o que

se busca é o processo de aprender a aprender, no qual a interdisciplinaridade é centrada no

aluno e os conteúdos disciplinares tratados repetidas vezes e como objetos de diferentes ações

e reflexões. Desse modo, a proposta não indica a ampliação dos conteúdos, mas sim a criação

de condições “para que o aluno adquira ‘desenvoltura’ em relação ao que foi selecionado” (p.

40).

Assim, tendo como principais fundamentos a aquisição de competências e o processo

de aprender a aprender, a formação escolar não necessita de muito tempo para o

desenvolvimento de suas atividades, o que explica, a nosso ver, a opção por apenas um ano de

efetivo trabalho educativo. Ainda assim, oferecer os conhecimentos essenciais para a

conclusão do ensino fundamental, para a formação profissional e para atividades de ação

comunitária em apenas doze meses revela o caráter aligeirado do processo de escolarização

proposto pelo ProJovem.

Além disso, à semelhança de outros programas destinados a jovens da classe

trabalhadora já mencionados anteriormente, o Programa de Inclusão de Jovens pode ser

associado ao que Leão (2004 apud SPOSITO e CORROCHANO, 2005) chama de

“pedagogia da precariedade”. Ao analisar turmas do Programa Serviço Civil Voluntário

implementadas em Belo Horizonte (MG), Leão chama a atenção para o fato de que, no que se

refere às atividades de elevação de escolaridade, “salas pouco adequadas, falta de material,

ausências freqüentes dos educadores, (...) entre outros aspectos, eram evidências de situações

marcadas pela precariedade, revelando uma determinada lógica, segundo o autor, de que para

‘pobre qualquer coisa parece bastar’” (ibid., p. 154). Em relação ao ProJovem, reportagem de

um jornal carioca de grande circulação96 sugere que a infra-estrutura precária encontrada nas

turmas organizadas em convênio com a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, por exemplo,

tem provocado o alto índice de evasão dos alunos: dos 28 mil matriculados em 2006, apenas

2.776 teriam se formado. Instalações provisórias, não entrega de computadores e atraso no

pagamento das bolsas de auxílio são alguns dos problemas enfrentados a despeito dos 68

milhões de reais repassados pelo governo federal à prefeitura do Rio de Janeiro desde 2005,

96 ENGELBRECHT, Daniel. ProJovem forma só 10% do previsto. O Globo, Rio de Janeiro, 22 out. 2007. Disponível em <http://www.uff.br/obsjovem/mambo>. Acesso em: 5 nov. 2007.

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174

conforme informação da reportagem. Mesmo com o anúncio de uma nova versão, o Novo

ProJovem, conforme já relatamos no início deste capítulo, na qual é prometida a superação de

lacunas e distorções relativas à versão atual, dentre as quais a ampliação da duração do curso

de doze para dezoito meses, o Programa continuará sendo caracterizado como um curso

precário e aligeirado na medida em que não vislumbramos alterações de fundo nos

pressupostos teórico-metodológicos que norteiam a sua execução.

Nesse sentido, tomamos as palavras de Sposito e Corrochano (2005) quando analisam

os efeitos do paralelismo das práticas escolares com as atividades não convencionais de

caráter socioeducativo características de programas voltados para a juventude da classe

trabalhadora. Segundo as autoras,

Sem interação e desarticulado dos sistemas escolares, esse conjunto de ações começa a criar uma rede paralela não convencional, destinada aos jovens pobres, que muitas vezes é uma versão piorada e precária da prática educativa da escola pública. Pouco se aprende de significativo e não há apropriação de ferramentas que possa interferir nas condições em que ocorre a relação desses jovens com o conhecimento escolar (p. 163).

Na mesma linha de pensamento, Rummert (2007b) denuncia o retrocesso que o

ProJovem vem representando em relação à luta dos profissionais da educação pelo

reconhecimento da esfera política da educação como a instância mais adequada para a

implantação de ações de caráter educacional em detrimento das agências de assistência social.

Para a autora:

Nesse sentido, o ProJovem representa uma perda sensível para a educação pois que, além de seu caráter assistencialista, representa uma iniciativa que não oferece à juventude efetivo acesso à educação mas, apenas, à certificação de conclusão do Ensino Fundamental de discutível qualidade. O ProJovem constitui mais um exemplo de ação política que, sob a aparência da inovação, gera a continuidade da submissão ao instituído. E o instituído, em nosso país, é gerador de diferenças de caráter sócio-econômico cada vez mais extensas e profundas (p. 43).

Em meio a esses questionamentos e críticas, o ProJovem recontextualiza saberes e

discursos, veicula valores e concepções de conhecimento escolar que necessitam ser

analisados em profundidade. Nesse âmbito, é também construída uma das versões possíveis

da educação geográfica que pode ser destinada a jovens da classe trabalhadora. Cabe a nós,

nas próximas linhas, evidenciá-las e analisá-las.

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175

3.2 O CONHECIMENTO ESCOLAR DE GEOGRAFIA NO PROJOVEM

A análise dos conhecimentos escolares de geografia presentes na proposta curricular

do ProJovem se dá partir do exame da seleção e da organização dos conteúdos previstos para

a área de ciências humanas97. Como todas as áreas do conhecimento, as ciências humanas têm

seu conteúdo programático organizado com base nas quatro Unidades Formativas (UFs) que

compõem o desenho curricular do Programa. Para cada UF são determinados dez tópicos do

conhecimento relacionados ao tema geral de cada unidade, o que nos leva a proceder a análise

das UFs separadamente em função justamente da temática diferenciada às quais os tópicos

estão vinculados.

Embora a proposta curricular do Programa aglutine os conhecimentos geográficos,

históricos e mesmo de outras disciplinas da área de ciências humanas, em geral é nítida a não

articulação entre eles ao longo de sua distribuição nas e pelas UFs. Tal procedimento revela

um currículo disciplinar e não integrado, ainda que os tópicos relativos às disciplinas se

encontrem relacionados às temáticas estabelecidas para as UFs. Como a não integração dos

conteúdos disciplinares permite claramente a vinculação dos tópicos às diferentes disciplinas,

identificamos, para efeito da análise proposta, aqueles relacionados à geografia e pautamos o

exame somente neles, uma vez que a análise geral do que se entende por ciências humanas

não é o objeto central deste trabalho.

Além disso, cabe ressaltar que conteúdos geralmente abordados pela geografia escolar

podem ser encontrados na área de ciências naturais, também uma das componentes do quadro

curricular do Programa. Apesar disso, optamos por não investigar tal possibilidade na seleção

e organização dos tópicos previstos para essa área em função de alguns fatores. Primeiro,

porque a própria proposta curricular vincula a geografia às ciências humanas, fato que, por si

só, já orienta nossa atenção a esse componente com o intuito de desvelarmos as bases da

seleção e da organização de conteúdos dessa disciplina. Depois, a identificação e análise de

conhecimentos geográficos presentes nas ciências naturais exigiria um esforço bastante

grande e que poderia nos conduzir para fora dos limites a que se propõe a pesquisa em tela.

Por último, pesa o argumento de que, assim como a proposta curricular do Programa,

consideramos a geografia uma disciplina do campo das ciências humanas, ou melhor, das

ciências sociais, uma vez que seu objeto de estudo, seu escopo não é outro que a relação entre

sociedade e espaço, isto é, seu campo de preocupações se restringe à espacialidade produzida

97 Ver Anexo 6: ProJovem – Organizção dos Conteúdos de Ciências Humanas.

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176

pela sociedade humana, ainda que a dinâmica da natureza exerça um papel essencial nessa

produção e que conhecimentos relativos às ciências da Terra ocupem um lugar deveras

importante para sua compreensão e análise. Desse modo, a partir dessa justificativa, o foco da

investigação se resume aos tópicos relativos ao conhecimento geográfico presentes nas

ciências humanas.

É importante também aqui destacar que ao longo da análise dos conteúdos

geográficos, procuramos evidenciar as concepções e formas de tratamento dos temas em

questão, assim como as contradições e as conseqüentes possibilidades de abordagem distintas

das que identificamos como predominantes na proposta. Tomamos como base os pressupostos

da geografia crítica em sua vertente escolar e os fundamentos de uma visão também crítica em

relação aos objetivos e aos procedimentos metodológicos referentes à modalidade EJA. A

filiação à corrente de pensamento que considera a práxis transformadora e emancipadora dos

sujeitos nos leva à interlocução com autores, tanto da ciência geográfica quanto das ciências

da educação, cujos trabalhos se encontram vinculados ao campo do materialismo histórico e

dialético, o que não impede o diálogo, quando pertinente, com outras vertentes da teoria

social.

Dessa forma, ao proceder a análise dos conteúdos, procuramos identificar os conflitos

e confrontos tanto entre os diferentes discursos geográficos quanto entre aqueles que

permeiam as funções e objetivos da EJA. Analisamos, portanto, a recontextualização

pedagógica dos discursos geográficos e educacionais, isto é, “os movimentos de

textos/práticas do contexto primário da produção discursiva [universidades, centros de

pesquisa, agências internacionais] para o contexto secundário da reprodução discursiva [os

sistemas e programas educativos]” (BERNSTEIN, 1996, p. 269).

Conforme esclarecido no capítulo introdutório deste trabalho, alguns eixos são

estabelecidos com o intuito de nortear o exame comparativo das propostas curriculares

selecionadas para análise. São eles: o saber da experiência, o mundo do trabalho, as escalas

geográficas, a relação sociedade/natureza. Tais eixos se constituem nos referenciais sobre os

quais são tecidas as considerações relativas às concepções, objetivos, conteúdos e métodos da

geografia prescrita e indicada a ser ensinada nos programas ou materiais didáticos em

questão. Nesta seção, entretanto, a análise se concentra nos conteúdos geográficos em sua

relação com as concepções subjacentes ao ProJovem, identificando, em alguns momentos, o

tratamento dado aos eixos norteadores descritos anteriormente.

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177

3.2.1 A cidade como tema para constatar diferenças e desigualdades na juventude

A Unidade Formativa I tem como temática condutora dos conhecimentos escolares a

cidade como locus de vivência da juventude atendida pelo ProJovem. Tal perspectiva fica

evidente quando a parte introdutória do guia do estudante dessa UF justifica o tema

selecionado:

Nesta primeira unidade formativa, que estamos chamando de Juventude e Cidade, seus estudos vão ter como assunto central a sua vida na cidade. Você mora em uma cidade grande, e esse fato influi sobre suas experiências do dia-a-dia. Claro que nem todas as cidades têm o mesmo tamanho e as mesmas particularidades. Cada uma oferece oportunidades e apresenta problemas diferentes das outras. Mas as cidades grandes também se parecem umas com as outras em muitos pontos. Viver em uma delas faz com que você tenha muitas experiências em comum com todos os jovens, mas, ao mesmo tempo, faz com que você viva situações diferentes, conforme a região do país onde mora. Dentro da própria cidade, esse fato se repete: todos os jovens têm alguma coisa em comum, mas vivem a juventude de maneiras bem diferentes, na sua família, no seu bairro, na sua escola, com seus amigos (SALGADO, 2007b, p. 12).

Chamando a atenção para as semelhanças e diferenças entre as metrópoles brasileiras,

além da diversidade de experiências vividas no espaço urbano, o material didático apresenta o

estudo da cidade em cada uma das disciplinas, deixando escapar, no entanto, o papel de

destaque das ciências humanas. A nosso ver, parece que esta área é o fio condutor da proposta

de trabalho não só para essa UF, como também para todas as outras. No caso desta primeira

unidade, além de o tema escolhido ter estreita relação com as ciências humanas,

principalmente com a geografia, no próprio texto não se vê com clareza a articulação entre a

cidade e sua problemática e os conhecimentos a serem trabalhados nas outras áreas. Esse fato

revela uma visão restrita do trabalho com eixos temáticos, na qual o tema não é objeto de uma

preocupação interdisciplinar em torno de uma problemática única, e sim visto como uma

referência para a qual em alguns momentos as disciplinas, principalmente aquelas que se

consideram mais afastadas do tema em pauta, se voltam em forma de exemplos ou situações-

problema com o intuito de desenvolver conteúdos estabelecidos previamente.

Portanto, com a função ressaltada nessa unidade, a geografia ganha contornos de

disciplina essencial para o desenvolvimento da temática proposta. E aqui já podemos perceber

o tratamento dado a um aspecto crucial referente à seleção de conhecimentos geográficos

escolares: o recorte espacial adotado e a escala geográfica evidenciada. Em função do eixo

temático – a cidade – o espaço urbano local é a escala privilegiada para a análise dos

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178

fenômenos socioespaciais e, como será demonstrado a seguir, a ampliação desse recorte chega

no máximo à escala nacional em alguns itens da unidade. Trazemos essa questão nesse

instante em função de sua importância para a compreensão das opções em torno da seleção e

organização dos conteúdos geográficos, mas a aprofundamos com mais afinco na última seção

da tese, dedicada à análise comparativa das propostas curriculares.

Dos dez tópicos do conhecimento previstos para a UF I98, um deles trata do conceito

de geografia e de história. Após estimular a reflexão sobre essa conceituação a partir do

levantamento do conhecimento prévio dos alunos, o texto do guia do estudante evoca a idéia

de que a geografia, ou melhor, os conceitos da geografia se encontram no cotidiano das

pessoas, no conjunto de saberes construídos na experiência de vida de todos nós. O

documento, entretanto, não aprofunda a definição do objeto da disciplina e não explicita sua

fundamentação teórica em função mesmo do pouco espaço reservado a essa tarefa, embora

anuncie no manual do educador que tanto a história quanto a geografia são “ciências que

estudam as ações humanas no tempo e no espaço, numa perspectiva crítica e reflexiva”

(SALGADO, 2007c, p. 12, grifo nosso). Ao mesmo tempo, afirma que a geografia contribui

para se conhecer a sociedade e a natureza, mas não deixa claro o porquê nem a maneira com

que pode atingir esse objetivo, o que demonstra uma conceituação vaga e imprecisa e que

pode trazer como resultado mais a dúvida e a incompreensão do que o esclarecimento quanto

às diferentes possibilidades de definição da disciplina.

Em função disso, cabe destacar que desenvolvemos a questão relativa ao objeto da

geografia escolar e os referenciais a partir dos quais procedemos a investigação em pauta em

seções mais à frente deste trabalho. É possível, contudo, conforme anunciado anteriormente,

encontrar nossas perspectivas teórico-metodológicas já nesta seção, ao longo do exame dos

conteúdos geográficos presentes no programa aqui avaliado.

O primeiro tópico da unidade discute a questão da identidade individual, social e

cultural com um enfoque marcadamente histórico. Outros dois tópicos são identificados com

aspectos mais sociológicos e antropológicos que históricos e geográficos. Tratam eles da

identidade juvenil tanto em sua dimensão social quanto cultural. À geografia cabe, por

conseguinte, o seis itens restantes, todos tendo como referência o espaço urbano.

A temática urbana se inicia no quinto tópico, cujo objetivo, segundo o manual do

educador da UF I, é desenvolver o conceito de urbanização. As primeiras atividades propostas

lançam mão da diferenciação entre o espaço rural e o urbano através do levantamento do

98 Ver no Anexo 6 a identificação dos conteúdos por disciplina da área das ciências humanas.

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179

conhecimento prévio dos alunos. Feita a caracterização do “cenário urbano”, o texto do guia

do estudante passa a proceder a análise da evolução da população urbana no Brasil ao longo

da segunda metade do século XX a fim de caracterizar o atual predomínio desta em relação à

população rural. O conceito de urbanização é então explicitado como “o processo no qual a

população urbana passa a aumentar mais do que a população rural, ocasionando o crescimento

das cidades” (SALGADO, 2007b, p. 32), adotando-se, portanto, uma visão parcial do

fenômeno, pois, como sabemos, o conceito ampliado de urbanização leva em conta também

todo o processo de influência cultural e do modo de vida urbano na sociedade como um todo,

inclusive em áreas rurais. Além disso, o texto deixa de chamar a atenção para o fato de que o

processo de urbanização brasileira foi marcado pela metropolização, isto é, o crescimento

vertiginoso da população e do ambiente metropolitano, com destaque para as duas metrópoles

nacionais: São Paulo e Rio de Janeiro.

Em seguida, enfatiza a juventude nas cidades, estimulando os estudantes a refletir

sobre as diferenças entre os jovens, principalmente das cidades grandes, no que tange ao local

de moradia, poder de consumo, formas de expressão etc. Para tanto, algumas atividades com

grande potencial crítico são propostas proporcionando a identificação das desigualdades

sociais e da segregação socioespacial por parte do aluno. No entanto, nenhum desses

conceitos são minimamente aprofundados, sendo que a segregação socioespacial, categoria

cara às correntes mais críticas da geografia urbana, não chega a ser mencionada.

Dessa forma, a cidade brasileira da contemporaneidade não é entendida como

momento do processo capitalista periférico que, segundo Carlos (2006), produz as

contradições da cidade e revela sua crise atual. Para a autora, são essas contradições que dão

origem à segregação que se realiza na concretude da vida cotidiana. Nesse sentido, a

segregação socioespacial “deve se deslocar do plano de sua constatação prática enquanto

separação, fragmentação, para aquele que envolve os conteúdos do processo histórico que a

produz como condição de realização da reprodução social fundada na propriedade privada (e

sua extensão)” (p. 48). Ou seja, ainda de acordo com a autora, segregação “significa o modo

como a propriedade se realiza em nossa sociedade, construindo uma cidade de acessos

desiguais aos lugares de realização da vida numa sociedade de classes onde os homens se

situam dentro dela e no espaço de forma diferenciada e desigual” (p. 49). A segregação,

portanto, constitui o fundamento dos conflitos urbanos e a base através da qual se direcionam

os investimentos públicos e produtivos na cidade.

A interpretação do urbano na proposta do ProJovem se despoja da explicação das

desigualdades sociais e espaciais. É mostrada uma cidade onde há “diferentes experiências

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180

vividas pelos jovens no processo de apropriação do espaço da cidade” (SALGADO, 2007c, p.

15), diferenças que se devem à existência de pessoas ricas e de baixa renda e não de classes

sociais antagônicas que disputam investimentos públicos e direitos iguais no que concerne aos

equipamentos urbanos básicos. Os elaboradores do material didático chegam a admitir as

relações desiguais que fundamentam as paisagens urbanas, reveladoras, por sua vez, de

padrões desiguais de vida entre os habitantes e da falta de acesso de muitos à moradia, bens e

serviços básicos. Entretanto, o texto não vai à raiz desses problemas, não estimula a indagação

sobre o porquê de as cidades serem assim, apenas descrevem e constatam o fenômeno da

desigualdade social.

O plano fenomênico parece mesmo ser o patamar máximo que o texto didático

alcança. No oitavo tópico, a atividade denominada Cidade imagem tenta justamente

evidenciar as diferentes paisagens urbanas para que os alunos possam identificar de que forma

elas são expressas pelos meios de comunicação e outros meios de divulgação de imagens.

Nesse ponto, a proposta atende em parte ao requisito considerado fundamental por Cavalcanti

(2002) quando o urbano se torna tema curricular. De acordo com a autora, “se a escola

assume o tema da cidade e do urbano como conteúdo educativo, ela necessita promover em

suas atividades a possibilidade de confronto entre diferentes imagens de cidade: cotidianas e

científicas” (p. 48). Nesse sentido, as atividades devem pressupor confronto de conhecimentos

e não apenas a constatação de algo aparente. Assim, se por um lado há boas atividades

pedagógicas que aguçam a observação espacial, a ausência de análises que levem às possíveis

causas e razões do observado deixa incompleto o trabalho de formação crítica e autônoma do

estudante do Programa.

Ainda no oitavo tópico, por exemplo, cujo objetivo é fazer o aluno refletir sobre a

qualidade de vida nas cidades, são tratadas questões que podem ser associadas ao mesmo

tempo à segregação sociespacial e aos problemas ambientais urbanos. É dado um tratamento

empírico às diferenças entre o centro e a periferia das grandes cidades brasileiras no que se

refere ao saneamento básico, condições de moradia e renda dos habitantes. O tom de busca

por uma melhor qualidade de vida prevalece em uma abordagem vinculada à proposta de

ações que nada mais são que “paliativos para que a cidade não exploda e a população se sinta

participante de seu destino” (CARLOS, 2004, p. 145). Qualidade de vida, nesse sentido,

pressupõe um modelo de vida que gira em torno do “bem estar”, criador, por sua vez, da

“satisfação do indivíduo envolto no consumo; enquanto usuário de bens de consumo e de uma

‘qualidade ambiental’ [...] Nesta direção o que dá conteúdo hoje, ao termo cidadão é a sua

condição de consumidor seja de mercadorias [...] seja de serviços públicos” (ibid., p. 145).

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181

E é a discussão em torno da cidade, do cidadão e da cidadania que compõe o nono

tópico desta primeira unidade. Apesar de aparecer como eixo estruturante da UF IV, a

cidadania é aqui acoplada à cidade em duas dimensões. Primeiro, a cidadania é associada à

participação política na localidade de moradia dos estudantes através de atividade que busca o

relato de experiências vividas ou conhecidas no que se refere a lutas, movimentos e

participação em projetos reivindicatórios de direitos. O saber da experiência é então a chave

para o tratamento do conceito de cidadania e da reflexão sobre o que é ser cidadão. Em um

segundo momento, a cidadania é abordada explorando-se alguns sentidos da identidade

cultural dos jovens de periferia. A atividade pedagógica proposta traz o movimento hip-hop

como exemplo de manifestação artística que estimula a reflexão e a participação cidadã,

servindo de mote para a construção de uma postura mais “consciente” perante a sociedade.

Não aprofundamos aqui a discussão em torno do conceito de cidadania em função de

nos vermos obrigados a voltarmos a ele mais adiante. Apenas chamamos a atenção para o fato

de que tanto no guia do estudante quanto no manual do educador não se problematiza o

conceito, algo grave perante a polissemia que o caracteriza. Esperemos, portanto, a análise da

quarta unidade para desenvolvermos as reflexões necessárias sobre como a questão é

abordada.

O último tópico da unidade coroa o tratamento superficial e fenomenológico dado às

questões urbanas. “O futuro da cidade”, título do tópico, tem como objetivo “elaborar

propostas para melhorar a qualidade de vida dos habitantes da cidade” e para atingi-lo sugere

uma atividade na qual os cursistas devem pensar e propor uma solução inovadora para um

problema da cidade onde vivem. O manual do educador indica, para tanto, que o professor

estimule o aluno a imaginar uma cidade ideal, lançando mão da criatividade e da imaginação,

e articule essa atividade aos trabalhos relativos à elaboração do Plano de Ação Comunitária

(PLA).

Com base no que expusemos em trechos anteriores, não podemos deixar de fazer uma

série de indagações referentes à realização dessa atividade: o aluno deve pensar soluções

sobre que bases? Para mudar o quê exatamente? Deve-se pensar apenas paliativos sem

questionar a estrutura socioeconômica, raiz de muitos dos problemas a serem elencados?

Como isso pode ser feito se essa estrutura não foi objeto de reflexão e aprendizagem em

nenhum momento? As soluções se dariam somente dentro dos marcos da cidade capitalista?

Essas indagações nos permitem vislumbrar a concepção de transformação social veiculada

pela proposta, isto é, o que se deve transformar e até onde ela pode ir. Desse modo,

transformação social se torna uma expressão esvaziada de significado revolucionário e

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182

utópico, posto que não é acompanhada de conhecimentos essenciais para a reflexão em torno

de sua possível efetivação.

Assim, a UF I se encerra propondo a realização de mais uma atividade com potencial

crítico e reflexivo, reproduzindo, porém, as mesmas lacunas e ausências dos exercícios

anteriores. Revela-se então a apropriação que essas atividades fazem de elementos da

perspectiva crítica: tomam o discurso para si, mas se mantêm na superficialidade. Contudo,

ainda assim, tais atividades deixam brechas para que o educador supere essa visão e trabalhe

em uma perspectiva mais plural, possibilitadora da reflexão em torno do direito à cidade como

parte de outro projeto de sociedade, mas isso depende exclusivamente da orientação político-

pedagógica e da formação desse profissional. Pois a educação geográfica do ProJovem, pelo

menos no que concerne ao eixo estruturante juventude e cidade, não adota a variedade de

idéias e aposta em uma visão fenomenológica da cidade.

Tal visão, segundo Carlos (2004), se constitui em uma das diferentes vertentes que

apóiam os estudos sobre a cidade no âmbito da geografia. Além dela, a corrente histórico-

geográfica, a corrente marxista e a corrente marxista-lefebvriana compõem as principais

referências sobre as quais o estudo da geografia urbana na escola pode se basear. Ao tomar

esta última perspectiva como pressuposto para o desenvolvimento dessa seção, a cidade é

entendida, dialeticamente, como produto, condição e meio para a reprodução das relações

sociais. Para Carlos (ibid.), também seguidora da mesma tendência teórica, “a cidade se

reafirma enquanto espaço social na medida em que se trata da realização do ser social ao

longo do processo histórico. Deste modo, a análise da cidade, em sua dimensão espacial, se

abre para a análise da vida humana em sua multiplicidade” (p. 20).

Isso quer dizer que as práticas cotidianas, o tempo e o espaço da vida cotidiana são

também objetos imprescindíveis dessa análise da cidade. Cotidiano é aqui concebido com

base em Lefebvre, para quem “o cotidiano é o encadeamento dos atos que formam um

conjunto que não se reduz à soma dos atos isolados, mas de um encadeamento de ações que se

efetua num espaço e tempo sociais ligados à produção” (ibid., p. 63). Ainda para o autor, o

cotidiano compreende o vivido, subjetividade fluida, emoções, afetos e comportamentos, não

coincidindo, portanto, com a realidade. É no cotidiano, entretanto, que o modo de produção se

realiza, sendo ele ao mesmo tempo produto deste. E é assim também que Cavalcanti (2002)

sintetiza a análise espacial da cidade: “a produção da cidade refere-se à produção da vida

cotidiana das pessoas que nela vivem e atuam – suas atividades e o arranjo espacial em função

dessas atividades – e à produção econômica realizada nessa cidade, que diz respeito às

atividades diretamente produtivas” (p. 55).

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183

Nesse sentido, é na vida cotidiana que o direito à cidade se torna conflito e luta, uma

vez que “a luta pela cidade é produto da constatação das contradições que estão na base da

construção do urbano no Brasil, e envolve a elaboração de um projeto para a sociedade”

(CARLOS, 2004, p. 137). Como podemos perceber, a cidade preconizada pela proposta

curricular do ProJovem está muito distante dessa perspectiva. As atividades a serem

realizadas pelos estudantes até podem permitir a constatação das contradições, mas o

conteúdo geográfico disponível dificulta a reflexão sobre o significado da luta pela cidade no

âmbito de um projeto para a sociedade. Isso porque:

O que se ignora é que o motor do processo de produção espacial da cidade é determinado pelo conflito a partir das contradições inerentes às diferenças de necessidades e de pontos de vista de uma sociedade de classes, manifesta na propriedade privada do solo e, conseqüentemente, no seu uso. Este fundamento direciona o entendimento sobre o ‘direito à cidade’, circunscrito à democracia participativa que envolve a população sem todavia lhe permitir questionar o que dá sustentação à reprodução social, capaz de manter a acumulação capitalista nos trilhos (ibid., p. 144).

As palavras de Carlos traduzem nossa reflexão. O conhecimento geográfico sobre o

urbano revela, sem dúvida, a filiação do ProJovem à perspectiva que não assume o conflito e

tampouco faz compreender as razões de sua existência. Algo bem típico da lógica presente na

tese do neoliberalismo da Terceira Via, para a qual a transformação social se resume ao alívio

da pobreza sem combater suas causas estruturais. A cidade, assim, se mantém como produto,

condição e meio para a reprodução das relações sociais que provocam desigualdades.

Por fim, cabe dizer que a cidade e as questões urbanas se configuram de fato em eixos

temáticos bastante pertinentes na seleção e organização de conteúdos escolares de geografia

para o público da EJA. Jovens e adultos trabalhadores percebem e vivenciam as paisagens e

os problemas urbanos em seu cotidiano, e isso deve, sem dúvida, ser evidenciado no processo

de ensino-aprendizagem. Porém, pensar a cidade em suas múltiplas dimensões e

determinações, refletir sobre o direito à cidade em uma perspectiva emancipadora são ações

que exigem conhecimentos mais profundos no que concerne ao processo histórico e

geográfico que explica a constituição e configuração atual das cidades. E isso, em hipótese

alguma, pode lhes ser negado.

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184

3.2.2 A abordagem geográfica do mundo do trabalho

Pode-se dizer que o mundo do trabalho é a temática que mais imediatamente se

relaciona com a Educação de Jovens e Adultos. Em uma proposta curricular voltada para essa

modalidade, as questões e reflexões sobre o trabalho são praticamente imperativas se se

pretende atender o princípio através do qual a realidade vivida pelos estudantes deva ser

considerada99. Nesse sentido, o ProJovem acompanha essa perspectiva ao eleger o trabalho

como problemática para se pensar a juventude subalternizada das metrópoles brasileiras.

Juventude e trabalho, título da UF II, devem ser discutidos por todas as áreas e disciplinas

que compõem a proposta, orientação que, dessa vez, é exposta para cada componente

seguindo a lógica, já anunciada em páginas anteriores deste texto, dos eixos temáticos como

exemplos e ilustrações de conhecimentos pré-determinados.

Para as ciências humanas, a proposta prevê como ponto de partida as relações dos

jovens com o mundo do trabalho manifestadas em suas experiências e em seus

conhecimentos. Tomando o trabalho como um direito, um valor, uma necessidade e fonte de

realização pessoal, a temática é desenvolvida com base nas transformações e permanências

nos modos de viver e trabalhar na realidade brasileira (SALGADO, 2007d).

Desse modo, os tópicos previstos para essa unidade possuem um caráter um pouco

mais interdisciplinar que os determinados para a UF I, sendo apenas dois com enfoque

essencial na análise histórica (As mudanças nas relações de trabalho no Brasil; Lutas e

conquistas de mulheres e homens no mundo do trabalho) e três com ênfase na análise

geográfica (O trabalho e as transformações do espaço geográfico; O trabalho assalariado e

as novas tecnologias no Brasil; Trabalho, cidadania e condições de vida). Os outros cinco

tópicos tentam articular conhecimentos geográficos, históricos e sociológicos com uma

tendência maior para os últimos. Em função dessa característica, decidimos examinar todos os

itens em que aparece ou há potencialidades claras para a análise geográfica, mesmo que isto

não esteja exaltado e tão explícito, deixando de fora apenas os dois tópicos bastante

vinculados à abordagem histórica.

Vale destacar aqui que tal procedimento revela a nossa opção por uma perspectiva que

reconhece as zonas fronteiriças entre as disciplinas como campo rico e estimulante para outras

abordagens metodológicas do trabalho pedagógico. A delimitação fechada dos conhecimentos

99 Tanto o é que selecionamos o mundo do trabalho como eixo analítico das duas propostas curriculares investigadas nesta tese. Em função disso, aprofundaremos sua abordagem geográfica no último capítulo, destinado às considerações relativas à análise comparativa entre as duas propostas.

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escolares de acordo com as disciplinas pode, muitas vezes, engessar tanto o desenvolvimento

do processo ensino-aprendizagem quanto a investigação destes em diferentes propostas

curriculares. Deixamos claro, porém, que não entendemos com isso que os conhecimentos

disciplinares das ciências humanas devam ser mesclados em uma espécie de amálgama onde

seus distintos elementos formadores não possam ser distinguidos. Assim, onde não há clareza

na contribuição da geografia para o tema em pauta, ou melhor, onde não estão explícitos

conteúdos tradicionalmente desenvolvidos na geografia escolar, buscamos nessas interfaces as

possibilidades, o emergente na análise geográfica.

O primeiro tópico da unidade tenta proceder ao levantamento dos diferentes

significados do trabalho para a juventude. Lançando mão de atividades que estimulam a

descrição e a análise das distintas experiências de trabalho presentes entre os alunos, o texto

conduz o educador para a aproximação da definição do conceito de trabalho. Relacionado ao

desenvolvimento, à sobrevivência e à realização do ser humano, o trabalho é diferenciado de

emprego, por exemplo. No manual do educador dessa UF, o texto afirma: “lembramos que

estamos falando de trabalho e não apenas de emprego; pois, com a crise do emprego, em

especial entre os jovens, muitos deles já trabalharam e trabalham, mas nem sempre em

empregos formais” (SALGADO, 2007e, p. 10). Tal distinção, no entanto, além de não ser

aprofundada, deixa margens para a confusão conceitual que envolve a questão, uma vez que

emprego parece estar aí relacionado à forma assalariada ou à profissionalização e trabalho

parece ser vinculado às diferentes formas de ocupação que geram renda.

A confusão se intensifica quando o guia de estudo alerta para as diferentes maneiras de

interpretar o trabalho, incluindo a significação de “algo positivo, auto-realização, condição

que possibilita a sobrevivência do ser humano e a transformação do espaço” (SALGADO,

2007d, p. 15). Apesar disso, o seu caráter ontológico acaba sendo pouco ressaltado e

articulado ao caráter histórico. O terceiro tópico, por exemplo, mais voltado para a abordagem

histórica, trata da diferença entre o trabalho escravo e o trabalho assalariado ao longo do

processo de constituição da sociedade brasileira. Logo, tem o mérito de considerar que o

trabalho, ou melhor, o processo de trabalho toma diferentes formas e constitui-se a partir de

relações sociais predominantes em diferentes contextos históricos. Contudo, o texto didático

perde excelente oportunidade de evidenciar, a partir daí, a dimensão ontológica do trabalho,

uma vez que deixa de mencionar que ele é comum a todas as formas de sociedade humana e

que foi através dele que surgiu o ser social, isto é, que foi através do trabalho que a

humanidade se constituiu como tal (BOTTOMORE, 2001; NETTO e BRAZ, 2007).

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186

O segundo tópico, intitulado O trabalho e as transformações do espaço geográfico,

embora afirme que o trabalho é uma atividade social, também avança pouco em direção à

riqueza conceitual dessa categoria. Aqui, a relação sociedade/natureza é destacada para

explicar que o espaço geográfico é fruto do trabalho humano, ou melhor, “é através do

trabalho que os homens e as mulheres transformam a Natureza e produzem o espaço em que

vivem” (SALGADO, 2007e, p. 18). Apesar de correta, tal afirmativa bastante abstrata é

acompanhada de alguns poucos exemplos que, por si só, não favorecem à formação da

dimensão ontológica do trabalho. Talvez um exemplo que percorresse a cadeia produtiva de

alguma mercadoria e identificasse seus impactos no espaço geográfico pudesse evidenciar

melhor e de forma mais didática o fato de que “o trabalho não transforma apenas a matéria

natural [...] numa interação que pode ser caracterizada como o metabolismo entre sociedade e

natureza. O trabalho implica mais que a relação sociedade/natureza: implica uma interação

no marco da própria sociedade, afetando os seus sujeitos e a sua organização” (NETTO e

BRAZ, 2007, p. 34). Mas o pouco tempo destinado à formação escolar em função da ligeireza

do curso não permite o aprofundamento e o uso de exemplos mais robustos para uma

construção conceitual tão complexa como essa.

De qualquer forma, a proposta curricular, ao apostar nos eixos estruturantes, provoca

as disciplinas a repensar e refletir sobre seus objetivos, conteúdos e métodos. No caso da

geografia, a temática do trabalho, por exemplo, raramente é posta em evidência em sua

vertente escolar. Mesmo na academia são poucos os grupos e laboratórios de pesquisa que se

dedicam à produção do conhecimento geográfico tendo como objeto de investigação o

trabalho em sua dimensão ontológica. Entretanto, a centralidade do tema na EJA nos lança à

busca pelo que se tem produzido nesse campo com o intuito de reconstruir essa produção no

contexto escolar, além de instituir e sistematizar o que não está evidente. Assim, encontramos

em Thomaz Júnior (2002) uma análise fecunda sobre o que ele chama de geografia do

trabalho. Nas reflexões e teorizações do autor nos deparamos com os fundamentos para a

abordagem geográfica do trabalho. Diz ele:

Com as atenções voltadas, então, para a dialética do processo social, o trabalho sob o enfoque geográfico é compreendido por nós, pois, como expressão de uma relação metabólica entre o ser social e a natureza, sendo que nesse seu ir sendo ou em seu vir a ser está inscrita a intenção ontologicamente ligada ao processo de humanização do homem. A dupla linha de ação entre a ideação, a previsibilidade (a finalidade), enfim a teleologia (inexistente na natureza), e a materialidade fundante (causalidade), formam uma conexão interativa que solda a práxis ontológica do trabalho diante do agir societal (ibid., p. 4).

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187

Tal reflexão, para nós muito cara à discussão sobre o ensino de geografia na EJA, será

retomada no último capítulo da tese. Deixamos aqui o embrião do debate e o registro sobre a

sua urgência no âmbito da geografia escolar.

De volta à organização dos conteúdos geográficos, o quarto item do segundo volume

traz o trabalho assalariado e as novas tecnologias no Brasil como assunto a ser tratado. Com o

enfoque inicial dirigido às condições de trabalho da incipiente indústria brasileira da primeira

metade do século XX, à luta dos trabalhadores e às políticas trabalhistas instituídas nesse

mesmo período, o guia de estudo faz uma rápida passagem pelo modo de produção fordista,

sem, contudo, denominá-lo dessa forma, e chega à revolução técnico-científica da

contemporaneidade.

Ainda que mencione o desemprego como uma das maneiras com que as inovações

tecnológicas afetam o mundo do trabalho, nos parece que o texto acaba por positivar alguns

desses impactos. Quando falam sobre a descentralização e flexibilização do trabalho, os

elaboradores da proposta explicam: “em vez de comparecer e permanecer as oito horas no

mesmo ambiente de trabalho desempenhando a mesma função, o trabalhador pode realizar

diferentes atividades em vários lugares, até mesmo em sua própria casa” (SALGADO, 2007d,

p. 28). Quando citam a maior exigência de qualificação e especialização dos trabalhadores,

dizem apenas que com isso o trabalhador deve estudar, aprender e se aperfeiçoar

permanentemente. Portanto, considerando apenas as inovações tecnológicas, sem associá-las à

ascensão do padrão flexível de produção e acumulação do capital e sem proceder a análise

crítica da mudança na relação capital-trabalho, a abordagem do tema se mostra incongruente e

incompleta, fazendo ressaltar aspectos que podem ser tomados somente como positivos para a

classe trabalhadora como um todo.

No tópico dedicado ao emprego, subemprego e desemprego, a ênfase é dada a dois

fenômenos com rebatimento no espaço geográfico: o mercado informal de trabalho e a

migração. No primeiro caso, a informalidade do trabalho se configura em um importante

elemento para se compreender a paisagem urbana, principalmente das metrópoles brasileiras.

Camelôs e outras modalidades de vendedores ambulantes, transporte alternativo irregular e

mesmo ocupações ilícitas, além de comporem a paisagem das cidades, têm sua espacialidade

condicionada pela cidade capitalista que ora lhes nega condições mínimas para o exercício da

atividade ora lhes outorga concessões temporárias e instáveis, em um movimento constante de

legitimação/proibição dessa inserção informal no mundo do trabalho. O guia de estudo,

através de duas atividades pedagógicas, estimula a identificação de atividades desse tipo no

cotidiano dos alunos, porém deixa de possibilitar tal análise espacial, pois em seu conteúdo

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188

novamente a abordagem é pontual, apenas reconhecendo o fato, mas pouco refletindo sobre

ele.

No que concerne à migração, a proposta também não vai muito além do fato

constatado. Sem problematizar o tema de forma ampla a partir de suas múltiplas

determinações, o guia não chega a elaborar um item específico para desenvolver o fenômeno

dos movimentos migratórios no Brasil e no mundo, este sim um conteúdo bastante presente

em livros didáticos e na prática do professor de geografia do ensino fundamental. Prefere

apenas associá-lo à questão do desemprego e a partir daí tratar em brevíssimas linhas

conceitos como êxodo rural – sem mencionar esse termo – e crescimento das cidades, além de

temas como migrações internacionais contemporâneas de tipo periferia-centro. Sobre essa

questão, um texto é apresentado aos alunos no qual se retrata a situação de mulheres de uma

cidade goiana que se tornaram prostitutas na Espanha e os impactos de seus ganhos na

economia de seu local de origem. Sem considerar a complexidade dos fatores de repulsão e de

atração dos lugares, as políticas e conflitos internacionais provocados pela questão e conceitos

importantes como o de xenofobia, a abordagem do tema migrações não passa de mais um

tratamento superficial e fenomênico, o que é lamentável diante do fato de que ele faz parte da

história de muitas famílias presentes nas próprias salas de aula do ProJovem.

O sexto item do manual didático traz uma questão que tradicionalmente não é

abordada pela geografia escolar, aliás, uma questão praticamente ausente do currículo das

escolas: a economia solidária. Provavelmente com exceção de algumas experiências em

cursos de EJA realmente voltados para as características de seu público, a definição e os

pressupostos da economia solidária não costumam ser encontrados em materiais didáticos de

geografia e de história do ensino fundamental. Tal fato a coloca, portanto, como um tema

candente e associado exclusivamente ao currículo da EJA.

De acordo com a proposta curricular do Programa, a intenção em abordar a economia

solidária é fazer com que os estudantes compreendam-na como uma forma de enfrentar a crise

do emprego e a exclusão social. Após defini-la como “uma nova forma de relacionamento

econômico, que não prioriza o capital, mas o ser humano e o meio ambiente” (SALGADO,

2007d, p. 33), o guia de estudo passa a apresentar dados e informações sobre os chamados

empreendimentos econômicos solidários, também conhecidos como organizações econômicas

populares, no Brasil. Uma dessas informações diz respeito às instituições que fomentam esses

empreendimentos, destacando tanto as organizações da sociedade civil (ONGs, movimentos

sociais, igrejas, incubadoras universitárias etc.) como o poder público. Em relação a este

último, Godoy (2008) afirma que o empreendedorismo autogestionário tem suas raízes nas

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189

administrações municipais em função de os efeitos do desemprego e da precarização do

trabalho serem sentidos com maior intensidade na escala local. Para a autora:

No município e, mais propriamente na cidade, estão materializadas as desigualdades sociais através da fragmentação do espaço e da diferenciação dos lugares. Na medida em que a reprodução social é dificultada pela falta de emprego o espaço social reproduz a dificuldade de acesso à moradia, aos serviços de saúde, educação e segurança. Em uma análise crítica o direito à cidade, muito mais amplo que o acesso a moradia e serviços públicos, é negado quando o homem tem restringida a sua possibilidade de se reproduzir (GODOY, 2008, p. 11).

Apesar disso, metade dessas iniciativas ocorre nas áreas rurais brasileiras. A exceção

fica por conta da região Sudeste onde 33% dos empreendimentos solidários acontecem em

áreas urbanas (ibid.). O texto do ProJovem também destaca a localização e distribuição da

economia solidária pelo território brasileiro, informando que metade das organizações

populares se encontram na região Nordeste, acompanhada, em seguida, pela Região Sul. Sem,

contudo, avançar um pouco mais, o texto não deixa claro se esses empreendimentos se dão

pelas mesmas razões nas duas regiões, bem como se são da mesma natureza. Recorrendo mais

uma vez a Godoy para a elucidação da questão, constatamos que o principal motivo que leva

parcela da população nordestina para esse caminho é a alternativa ao desemprego, já na região

Sul aparece como o motivo mais citado a obtenção de maiores ganhos. Com relação à

natureza da organização econômica, as associações predominam no Nordeste enquanto os

grupos informais constituem a maioria no Sul.

Julgamos o tema pertinente por se tratar de um programa de escolarização de jovens,

porém, os poucos exemplos e a ausência de alertas para as contradições concernentes à

questão dificultam mais uma vez a apreensão reflexiva desse conhecimento. Como ilustração

que expressa a complexidade da questão, trazemos as palavras de Tiriba (1998), cujo espírito

poderia ter sido incorporado pela proposta curricular do Programa:

Considerando os movimentos contraditórios e os limites impostos pela própria sociedade, é possível perceber que, no vasto e diversificado campo da economia popular, as organizações econômicas populares – OEPs, como iniciativas coletivas e solidárias, podem muitas vezes representar os germes de uma nova cultura do trabalho, apresentando-se como alternativa à crise do emprego e/ou como parte integrante do projeto maior de transformação da sociedade. [...] [Porém] Além do caráter educativo desses empreendimentos, nos cabe indagar em que aspectos e em que medida as formas não assalariadas de trabalho empreendidas pelos setores populares fazem coro com os projetos de deterioração das relações de trabalho, hoje tão fortemente presentes no processo de reestruturação produtiva e de globalização da economia (p. 191).

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No que se refere ao olhar geográfico sobre o assunto, novamente Godoy (2008)

contribui, nos fazendo pensar sobre seu desenvolvimento na educação geográfica de jovens e

adultos. Para ela, “a análise da Economia Solidária no âmbito da Geografia possibilita o

entendimento da produção de novos espaços econômicos suscitados pela necessidade de

novas formas de reprodução do trabalho e da vida e que atualmente são objetos de políticas

públicas de diferentes instâncias do governo” (p. 8). Acrescentamos ainda a possibilidade do

entendimento da lógica espacial que rege a produção e comercialização de mercadorias

oriundas da economia solidária, sendo os conceitos de território e de redes geográficas

essenciais para essa análise.

Sem propor maiores reflexões sobre a diferença axiológica entre trabalho manual e

trabalho intelectual na sociedade capitalista, o tópico denominado Trabalho, cidadania e

condições de vida chama a atenção para o trabalho como relação social e, a partir daí, tenta

discutir como a sociedade valoriza os diferentes tipos de trabalho. Essa questão é associada à

constatação das desigualdades entre ricos e pobres, que é atribuída, por sua vez, à excessiva

concentração de renda no Brasil. No entanto, os fatores que causam a concentração não são

abordados, isto é, a crítica ao modelo de sociedade hegemônico passa ao largo da discussão,

bem como a difícil reflexão sobre as possibilidades de superá-lo. Cabe lembrar que falar para

trabalhadores das condições de vida e da discriminação em relação à atividade laboral

exercida por trabalhadores pode não passar de mera comprovação do real. Não possibilitar a

compreensão das razões do fenômeno, bem como o debate em torno das possibilidades de

superação desse quadro significa negar aos trabalhadores o acesso à reflexão sobre seu lugar

social. Mais uma vez, o texto didático do ProJovem não aponta para esse caminho, deixando a

cargo do educador o possível avanço da questão.

Os dois últimos tópicos da UF II trazem uma abordagem mais sociológica, porém com

potencialidades para a análise geográfica. Esse item apresenta, a nosso ver, méritos na seleção

e tratamento de algumas questões e problemas em relação a outras, repetindo o movimento

contraditório que marca a proposta. Um dos avanços diz respeito à não atribuição à educação

para a solução do desemprego. Ao afirmar que “essa é uma questão que gera muita angústia

entre os jovens [pois] hoje não se pode mais assegurar ao jovem que o estudo e a qualificação

sejam suficientes para que ele consiga um trabalho decente” (SALGADO, 2007d, p. 42), os

elaboradores do texto didático de fato não jogam um peso excessivo na formação escolar

quando se trata de pensar formas coletivas de superação da crise do trabalho assalariado. No

entanto, ao anunciarem acriticamente a exigência constante da capacitação e do

aprimoramento dos conhecimentos dos trabalhadores, trazem a lógica da empregabilidadde e

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do “aprender por toda a vida”, noções bem próprias do discurso hegemônico. Assim, o alerta

para os limites da formação escolar acaba se tornando ambíguo, pois fica claro o pensamento

de que é a preparação para o trabalho, sob a responsabilidade individual do trabalhador, que

vai criar oportunidades de inserção no trabalho formal.

Um outro ponto positivo do material de ciências humanas se refere ao questionamento

feito em relação à ideia de que o trabalho é o valor mais nobre da vida. Essa marca da ética

protestante que endemoniza o tempo livre é problematizada chamando a atenção para a alta

carga horária de trabalho das classes populares presente em sociedades como a brasileira.

Apresentando uma tabela com a média de horas anuais de trabalho de alguns países, o texto

tenta superar o senso comum que insiste em disseminar a ideia de que o brasileiro trabalha

pouco em comparação a outros países, principalmente os que se situam no centro do

capitalismo mundial. Com o quadro, comprova-se que o Brasil está entre os dez primeiros

países com maior carga horária de trabalho anual.

Além disso, o último tópico fecha a unidade com uma interessante discussão acerca da

necessidade de acesso à cultura e ao lazer por parte dos trabalhadores. Utilizando-se da

análise da canção Comida, intrepretada pelo grupo musical Titãs, o texto indaga sobre o que é

indispensável na vida para além daquilo que provê a sobrevivência. Dessa forma, rompe com

um conceito bastante arraigado de que só o trabalho enobrece, tomando como supérfluas

todas as lutas que tentam garantir à classe trabalhadora o acesso a bens e equipamentos

culturais e de lazer.

Por fim, cabe ressaltar, como exposto antes, as contradições que permanecem também

nessa unidade formativa. Parte delas se deve ao não aprofundamento de determinados temas

ou à ausência de conteúdos essenciais para a compreensão dos fenômenos abordados. Quanto

à geografia, essa unidade mesclou mais os conhecimentos das ciências humanas, o que acaba

deixando nas mãos do educador a opção pelo tratamento mais geográfico dos assuntos.

Sabendo que nem todos os educadores de ciências humanas do Programa têm formação em

geografia, supomos as suas dificuldades e as lacunas que ficam no que se refere às análises

espaciais dos fenômenos estudados.

3.2.3 Juventude, globalização, mapas e comunicação

O terceiro volume da Coleção ProJovem é dedicado ao eixo estruturante Juventude e

Comunicação, cujo enfoque gira em torno da comunicação na vida do jovem no contexto

contemporâneo. O tema perpassa todas as disciplinas, segundo anuncia a introdução do

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volume, mas é no programa das ciências humanas e de língua portuguesa que, a nosso ver,

questões referentes à comunicação se encontram em maior quantidade e intensidade.

Não há, tanto no manual do educador quanto no guia de estudo, nenhuma justificativa

geral para a escolha desse tema. Sem dúvida, reconhecemos o papel e a relevância da

comunicação nos dias atuais, mas sua escolha como eixo articulador de conteúdos escolares

em uma proposta curricular voltada para jovens da classe trabalhadora mereceria ao menos

algumas linhas através das quais pudéssemos conhecer os critérios utilizados para sua eleição.

Ao longo de nossa análise, tentamos vislumbrar as possíveis razões para tanto a partir dos

tópicos dedicados às ciências humanas, deixando de lado, porém, por força dos objetivos

desta tese, os conhecimentos relativos às outras áreas/disciplinas.

Inicialmente, percebemos na estrutura e na organização dos conteúdos relativos às

ciências humanas que os conhecimentos históricos e geográficos apresentam tópicos bastante

diversificados, com pouca relação entre si e, por vezes, com o próprio eixo temático. O

conteúdo histórico é trabalhado em apenas dois tópicos que tratam do conceito e das noções

de tempo (Para que tanta pressa? Diferentes formas de viver o tempo; Diferentes formas de

representar o tempo). No que tange à geografia, três partes distintas ficam bem claras em

função do tratamento estanque e não articulado dado aos assuntos abordados: globalização,

noções de cartografia e meios de comunicação. Essa organização acaba revelando o

predomínio dos conteúdos geográficos nesse volume, sendo o primeiro e os dois últimos

tópicos, mais voltados à temática central da comunicação na vida do jovem, podendo ser

interpretados como multidisciplinares com foco mais direcionado ao conhecimento

sociológico.

Tendo como objetivo geral a análise das “relações entre a comunicação e as

transformações ocorridas nas formas de viver, conceber e representar o espaço e o tempo na

sociedade globalizada” (SALGADO, 2007f, p. 20), a terceira unidade formativa inicia a

abordagem do eixo estruturante através de atividades que propiciam o levantamento de

hábitos e conhecimentos prévios dos alunos em relação à comunicação. Com enfoque na

discussão sobre o diálogo como valor a ser compartilhado por todos, o primeiro tópico

procura saber dos jovens como lidam com a comunicação entre si e com os outros com o claro

intuito de problematizar a forma pouco dialógica de ouvir e de se fazer ouvir que tem

prevalecido nas relações humanas. Na verdade, esse item se encontra presente nas ciências

humanas, mas está, obviamente, relacionado a todas as disciplinas, sendo, portanto, um tópico

não necessariamente geográfico, embora tenha um grande potencial de abrir caminho para

outras discussões de caráter mais espacial.

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O fenômeno da globalização é o eixo selecionado pelos autores da proposta para

compor os dois tópicos seguintes. Tempo, espaço e fluxos são categorias utilizadas para a

compreensão do conceito de globalização, que é posteriormente analisada em suas várias

faces. Associada às novas formas de comunicação, transporte e fluxos, a globalização é

definida como “a integração entre os diversos países e povos do mundo através da circulação

de mercadorias, investimentos financeiros, informações, idéias e pessoas” (SALGADO,

2007f, p. 26). Como exemplo e ilustração desse fato, o material pede aos estudantes uma

listagem de canções, filmes, produtos alimentícios, marcas de roupas, entre outras

mercadorias, com origem em outros países. Solicita também o registro de palavras

estrangeiras encontradas com freqüência no dia-a-dia. Porém, tanto as mercadorias quanto as

palavras elencadas no manual do educador como possíveis respostas dos alunos têm como

referência basicamente a produção material e cultural estadunidense. Não são apresentadas,

por exemplo, outras palavras que não do vocabulário da língua inglesa, apesar de pedirem na

atividade palavras estrangeiras. Não compreendendo as intencionalidades dos autores, ficam

aqui a nossa curiosidade em relação a essa grave lacuna e a indagação sobre a não

problematização do predomínio dessa língua em nosso cotidiano, o que já permitiria uma boa

ampliação da análise do fenômeno em pauta.

O fato é que sem analisar as origens históricas da globalização100 e não a associando a

outros processos como colonização, imperialismo, dominação cultural e o papel das grandes

corporações capitalistas transnacionais, o texto didático dá um caráter superficial e perigoso

ao conceito. A idéia de que a globalização representa a atual fase histórica do capitalismo, que

vem se expandindo pelo mundo com maior intensidade nos últimos vinte anos, é revelada em

apenas um parágrafo no início do terceiro tópico do guia de estudo, sendo a falta de

aprofundamento dessa questão um fator que enfraquece analiticamente a abordagem do tema,

impedindo o jovem trabalhador de construir de forma mais coerente o conceito em tela.

Além da maior circulação de mercadorias e de capitais pelo mundo, a globalização é

também identificada com a expansão da cultura e da política. A visão de cultura não é

explicitada, mas fica evidente a não problematização não só do conceito como também da

desigualdade que marca tal processo, como podemos perceber no seguinte trecho:

Há, no mundo atual, um acelerado fluxo de capitais e de mercadorias; os hábitos culturais dos diferentes povos tornam-se cada vez mais semelhantes; os acordos

100 Análise mais aprofundada sobre o fenômeno da globalização, sua origem histórica e as diferentes visões que a permeiam, ver a primeira seção do primeiro capítulo desta tese.

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194

políticos internacionais sobre meio ambiente, segurança, ajuda humanitária etc são muito freqüentes. Aqui no Brasil, podemos comprar um produto fabricado na China ou na Coréia do Sul. Podemos assistir a um desenho animado feito pelos japoneses, gostar de um grupo de rock da Inglaterra, não perder o último filme americano e tomar o mesmo refrigerante que milhões de jovens do planeta tomam (SALGADO, 2007f, p. 28).

Utilizando exemplos do cotidiano dos jovens, os elaboradores da proposta deixam

transparecer a ideia de um processo sem conflitos através do qual produtos e manifestações

culturais de todos os povos circulam por todos os pontos do globo na mesma proporção e com

a mesma intensidade. Além disso, trata o consumo de mercadorias estrangeiras no Brasil

como uma grande novidade, algo que distingue o período atual de outros não tão longínquos,

caindo em erro conceitual grave, pois não leva em conta processos que há muito tempo

permitem a troca de produtos em escala planetária como a colonização e a divisão

internacional do trabalho.

Apesar de anunciada no título do terceiro tópico, a análise das várias faces da

globalização não se dá de forma completa. Os autores tomam como faces as dimensões

econômicas, políticas e culturais da globalização e não as diferentes interpretações sobre ela.

Para a perspectiva crítica da geografia, por exemplo, com base nas referências de Milton

Santos (2001), esse processo é constituído por três realidades: a globalização como fábula, a

globalização como perversidade e a globalização como possibilidade.

A fábula diz respeito à globalização que o pensamento hegemônico quer nos fazer

crer. Como afirma Santos (ibid.), a repetição de certo número de análises fantasiosas sustenta

a máquina ideológica que dá continuidade ao modelo socioeconômico instituído. Como

exemplo, o autor cita a idéia de aldeia global, encarada por ele como um verdadeiro mito

contemporâneo que cria a sensação de que a difusão instantânea de notícias torna o mundo ao

alcance das mãos de todos. Suas reflexões nos revelam a outra faceta desse discurso:

Um mercado avassalador dito global é apresentado como capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças locais são aprofundadas. Há uma busca de uniformidade, ao serviço dos atores hegemônicos, mas o mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal. Enquanto isso, o culto ao consumo é estimulado (p. 19).

A perversidade é, para Santos, a face da globalização encontrada no aumento da

pobreza, no desemprego crônico, no espalhamento de novas e velhas enfermidades, na

permanência dos altos índices de mortalidade infantil nas regiões periféricas do capitalismo,

na falta de acesso à educação de qualidade, nos egoísmos e na corrupção. Todo esse quadro

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195

“tem relação com a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente

caracterizam as ações hegemônicas. Todas essas mazelas são direta ou indiretamente

imputáveis ao presente processo de globalização” (SANTOS, 2001, p. 20).

No entanto, a despeito de todas essas adversidades, a globalização pode se constituir

na possibilidade de se construir um outro mundo, uma globalização mais humana. Santos

vislumbra essa hipótese considerando que as mesmas bases materiais do período atual, isto é,

a unicidade da técnica, a convergência dos momentos e o conhecimento do planeta podem

servir a outros objetivos e intencionalidades. Para o autor, a “sociodiversidade”, uma

verdadeira mistura de pessoas (povos, raças, culturas, gostos etc.) e de filosofias (em

detrimento do racionalismo europeu), aglomerada em espaços cada vez menores, “constitui

uma das bases de reconstrução e de sobrevivência das relações locais, abrindo a possibilidade

de utilização, ao serviço dos homens, do sistema técnico atual” (p. 21).

O ProJovem, ao que nos parece, embora reconheça as desigualdades presentes no

processo de globalização, permite a construção de um conceito mais próximo da fábula,

criando, talvez, a percepção por parte dos jovens cursistas de uma certa distância entre a

globalização estudada e aquela vivenciada no cotidiano. Alertamos, contudo, para o fato que

essa percepção pode ser diferenciada de acordo com a realidade urbana na qual se insere a

turma, bem como à condução do tema pelo educador.

Um salto significativo na seqüência do programa é dado com o quarto tópico. O

conhecimento e a representação do mundo é o conteúdo geográfico a ser trabalhado, tendo

como continuidade a construção de noções de cartografia nos dois tópicos seguintes. O

material inicia a temática relativa à linguagem cartográfica com uma abordagem histórica,

tentando levar o aluno a compreender a evolução das técnicas de mapear o espaço geográfico.

Para tanto faz referência ao período das grandes navegações européias, que a partir do século

XV incentivaram o desenvolvimento da cartografia, e chega ao momento atual ressaltando o

papel das novas tecnologias, com destaque para as imagens produzidas por satélites, na

elaboração de mapas. A relação com o eixo estruturante da unidade – a comunicação – está

brevemente anunciada quando os autores afirmam que a história da cartografia revela que o

desenvolvimento dos meios de comunicação e de transporte foi muito importante no processo

de modificação da maneira de ver, conceber e representar o mundo ao longo do tempo

(SALGADO, 2007f).

A definição de alguns produtos oriundos da técnica cartográfica – maquetes, plantas,

cartas e mapas – e a explicação de elementos importantes para a compreensão e leitura dessas

representações espaciais – visão oblíqua / visão vertical, legenda e escala – são tratadas no

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196

quinto e no sexto tópicos. Entremeadas por atividades que pedem ao aluno o registro de

informações veiculadas por mapas bastante simples, essas explicações contam com razoável

material iconográfico (mapas, imagens de satélites, esquemas explicativos). Outro destaque

vai para a boa definição dos mapas como representações do espaço, conforme verificamos no

seguinte trecho:

[...] o mapa é apenas uma representação do espaço, construída por alguém de acordo com certos critérios e formas de pensar. Os mapas não retratam fielmente a realidade, são, na verdade, uma construção sobre ela, uma maneira de representá-la. Podemos comparar um mapa com um texto escrito. Ambos são representações da realidade. Enquanto o texto utiliza palavras para descrever um determinado lugar, os mapas utilizam cores, traçados e símbolos. Isto é muito importante: sempre que vemos um mapa, devemos lembrar que ele foi construído por alguém e é fruto de determinadas visões de mundo (SALGADO, 2007f, p. 38).

O estudo dos mapas e da linguagem cartográfica como um todo é feito, no entanto,

com base na cartografia em si, isto é, embora se trate de um volume cujo eixo temático

pressupõe a abordagem de questões relativas à comunicação, não há a opção pelo tratamento

da linguagem cartográfica como instrumento de compreensão de um determinado tema ou

problemática. Essa questão nos remete ao problema de ser a proposta do ProJovem um

currículo único e prescritivo para todas as turmas, dando pouca margem ao tratamento de

outras temáticas por parte do professor. Dessa forma, a linguagem cartográfica não passa de

um conteúdo pré-estabelecido com início e fim em si mesmo e não um instrumental capaz de

auxiliar na compreensão de diferentes fenômenos geográficos.

Dessa forma, a relação entre cartografia e comunicação não é explorada de modo a

contemplar a evolução do próprio conceito de cartografia, que, a partir dos anos 1980, vem se

preocupando mais com o usuário do mapa e com a mensagem transmitida, em uma clara

vinculação, conforme afirma Simielli (2007), à eficiência do mapa como meio de

comunicação. A mesma autora, corroborando a concepção de mapa como meio de

comunicação, considera que:

Ao pensar no mapa como transmissor de informações, deve-se ter em mente os princípios da comunicação em cartografia. Se os mapas são veículos no processo de comunicação, mediante símbolos cartográficos, é preciso apresentar a informação adequadamente e, para tanto, conhecer as regras da comunicação e assim expressar como dizer o quê?, como? e para quem? (ibid., p. 78).

Uma outra importante questão se refere às atividades a serem realizadas pelos alunos

para a apreensão das noções cartográficas. Analisamos esse ponto tomando como base mais

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197

uma vez as reflexões de Simielli (2003), que propõe dois eixos de ação para o trabalho com a

cartografia na escola. Partindo do pressuposto de que a cartografia deve se calcar sempre na

transmissão de informações, a autora sugere que um dos eixos seja o trabalho com o produto

cartográfico já elaborado: mapas, cartas, plantas. Tal eixo redundaria na formação de um

aluno leitor crítico de mapas. No outro eixo, o estudante teria um papel de participante efetivo

no processo de confecção de produtos cartográficos através da elaboração de maquetes,

croquis e mapas mentais, resultando daí um aluno mapeador consciente. Os dois eixos,

segundo a visão da autora, teriam um papel de complementaridade e não de conflito, pois a

construção de um leitor crítico de mapas só seria completa se o desenvolvimento de um

mapeador consciente se realizasse e vice-versa.

Ao sugerir uma atividade de mapeamento – que propõe a elaboração de uma planta ou

uma maquete da sala de aula – e três atividades de leitura de mapas, o volume analisado se

coloca em diálogo com as reflexões trazidas por Simielli. Acrescentamos, no entanto, que no

contexto da EJA, cujos alunos possuem vivência espacial mais apurada e alguma possível

experiência na manipulação e uso de mapas ou outras representações espaciais, a formação do

mapeador consciente e do leitor crítico de mapas poderia vir acompanhada de objetivos

voltados para a construção do pensamento crítico da realidade vivida. Assim, o mapa seria

encarado como instrumento para pensar o direito de todos à cidade, por exemplo, ou como

meio para obter informações e propiciar a busca de soluções para os grandes problemas do

território brasileiro e do espaço geográfico mundial.

A proposta do ProJovem, ao organizar os conteúdos geográficos a partir de eixos

estrutrantes, propicia o uso instrumental das representações cartográficas. No entanto, não se

vê esse uso nos outros eixos, pois quase não há neles leitura de mapas, tampouco atividades

de mapeamento. A cartografia, assim, não passa de mais um conteúdo geográfico pré-

estabelecido tratado burocraticamente.

Por fim, a Unidade Formativa III traz a questão dos meios de comunicação de massa

como mais um tópico a ser desenvolvido nas ciências humanas. Não há, a nosso ver, uma

abordagem geográfica sobre o tema, porém tecemos algumas considerações em função da

contribuição que a geografia pode dar para a sua compreensão.

O foco do nono tópico é o poder e a influência dos meios de comunicação de massa na

vida das pessoas. Em um dado momento o texto afirma que tanto a televisão como o rádio

influenciam nossos hábitos e podem provocar mudanças em nossos comportamentos, valores

e idéias. Porém, após indagar por que isso acontece, o texto não chega a reflexões que podem

se aproximar das razões para tal fato. Na verdade, o tratamento dado à questão é mais

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198

próximo da abordagem comportamental, pois conclui, por exemplo, que “a TV pode ser

‘companheira’, mas também vício; pode ser realidade, mas também ilusão!” (SALGADO,

2007f, p. 53). De certa forma, problematiza a mídia, mas não estimula a reflexão sobre os

diferentes interesses e visões de mundo por ela veiculados.

Desse modo, o poder dos meios de comunicação de massa é discutido levando-se em

conta apenas o espectador e a sua responsabilidade diante do que assiste. Não trabalha,

portanto, com a vertente que vê a chamada grande mídia como fabricante do consenso, isto é,

instituições que, segundo Chomsky (1998 apud MORAES, 2005), disseminam ideias e visões

de mundo que garantem que a maioria das pessoas concordarão com a ordem que grupos

dominantes estão impondo à sociedade, uma vez que não se pode obrigar as pessoas a

obedecerem um regime à força. Ordem que garante ao capital sua reprodução sem sustos, já

que “por trás da mídia a classe dominante capitalista, às custas de todos, inclusive dos seus

concorrentes, cada vez mais concentra e centraliza o capital, aumentando a miséria e a

dominação humana” (ibid., p. 3).

Possível abordagem geográfica sobre a questão dos meios de comunicação de massa

estaria na construção do conceito de rede, por exemplo. Ao chamar a atenção para a geografia

das redes, Santos (2002) considera que um dos sentidos atribuídos ao conceito diz respeito à

“projeção concreta de linhas de relações e ligações que é o caso das redes hidrográficas, das

redes técnicas territoriais e, também, das redes de telecomunicações hertzianas, apesar da

ausência de linhas e com uma estrutura física limitada aos nós” (p. 263, grifo nosso). Para

Dias (2003), o que pressupõe a existência de redes são os fluxos de todo o tipo, das

mercadorias às informações, sendo a sua primeira propriedade a conexão, a ligação entre seus

nós, isto é, entre os lugares de conexões. Por isso, de acordo com Santos (op. cit.), as redes,

embora animadas pelos fluxos, não prescindem dos fixos, que constituem suas bases técnicas.

Sendo assim, fixos e fluxos são intercorrentes, interdependentes, fazendo com que as redes

não tenham seu princípio dinâmico em si mesmas, mas no movimento social. E no caso das

redes de informação e de comunicação de massa, o movimento social que lhes anima é

restrito a algumas poucas corporações que controlam tanto a produção quanto o acesso à

informação.

Aí poderia estar atuando a geografia escolar, ajudando a problematizar junto aos

cursistas do ProJovem a produção de mídia e suas contradições, através das quais se

encontram brechas para uma produção contra-hegemônica. Uma produção que pudesse dar

vazão à suas expressões a partir da utilização do vídeo, das possibilidades da Internet e de

outros meios alternativos de comunicação.

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199

3.2.4 A geografia cidadã do ProJovem

A última Unidade Formativa proposta para a formação escolar do ProJovem tem como

tema a relação entre juventude e cidadania. Sua escolha é justificada pela necessidade de se

aprofundar tal relação que, de acordo com a apresentação do quarto volume da coleção

didática do Programa, já vem sendo trabalhada desde o início do curso. Agora, no entanto, o

objetivo geral é “ampliar a noção de cidadania como situação própria da juventude, o que

implica identificar as características dos jovens, suas potencialidades e fragilidades e

reconhecer seu protagonismo” (SALGADO, 2007h, p. 11).

Para contribuir com o objetivo proposto, as ciências humanas devem voltar-se para a

abordagem sociológica dos conceitos de cidadania, política, poder, ideologia, democracia e

Estado e tratá-los de forma articulada à participação política dos jovens brasileiros analisada

sob uma perspectiva histórica. Além disso, conteúdos tradicionalmente abordados pela

geografia escolar são também estabelecidos: o território brasileiro, as diferentes regiões

brasileiras, a população brasileira, a população jovem no mundo globalizado e a população

jovem no Brasil. Dos dez tópicos previstos, portanto, apenas um (Os jovens e a participação

em movimentos políticos) tem relação com o conhecimento histórico, enquanto quatro trazem

a análise sociológica e cinco a perspectiva geográfica101.

Prometendo aos estudantes “buscar compreender as relações entre o mundo juvenil e a

construção de uma sociedade democrática na qual os direitos dos cidadãos são respeitados”

(ibid., p. 19), os autores iniciam a unidade procurando fazer o levantamento dos significados

de cidadania e política para os jovens. Para isso, utilizam, mais uma vez, um questionário que,

assim como na Unidade Formativa I, resgata conhecimentos e opiniões dos alunos, dessa vez

sobre o conceito de cidadania e sua relação com a política. Percebemos, contudo, que o

trabalho com o conhecimento prévio do aluno não é suficientemente explorado, pois, em

geral, faz-se o levantamento, mas não se evidencia o confronto com o saber escolar. O próprio

manual do educador não orienta de forma clara o encaminhamento que deve ser dado após

essa primeira etapa, fazendo com que os conceitos cotidianos e o senso comum sejam apenas

revelados, mas não problematizados. Mais adiante, retornamos e aprofundamos essa questão

em função de sua larga utilização nessa unidade.

101 Ver anexo 6.

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200

O primeiro tópico tem como principal preocupação a articulação entre os conceitos de

política, poder e ideologia. A política é definida como o “processo que envolve uma tomada

de decisão com o objetivo de atender a determinados interesses” (SALGADO, 2007h, p. 23),

o que permite tencionar e superar o senso comum que geralmente associa a política apenas ao

governo, aos políticos (tanto de cargo executivo quanto parlamentares) e às eleições. A partir

dessa premissa, o texto encaminha a organização dos conteúdos para o tratamento dos

conceitos de poder e ideologia no segundo tópico e de democracia e Estado no terceiro.

Cabe ressaltar que esses itens, como dito anteriormente, não são abordados em uma

perspectiva geográfica, porém, como se referem a categorias basilares para quaisquer

conteúdos das ciências humanas, consideramos de vital importância a análise sobre a maneira

como são tratadas. Desse modo, podemos buscar possíveis vínculos e articulações com o

conhecimento geográfico presente na proposta curricular, que, como vimos, compõe a maior

parte dos conteúdos selecionados para essa Unidade Formativa.

De antemão, alertamos para a complexidade dos conceitos em pauta. Poder, ideologia,

democracia e Estado têm sua história marcada por diferentes interpretações e concepções,

posto que distintas correntes da teoria social e da filosofia lhes imprimiram definições muito

diversas. Em nossa breve análise, não pretendemos esgotar todas essas possibilidades de

interpretação, apenas examinamos qual ou quais predominam no texto didático em questão e

relacionamos essas opções aos marcos conceituais do projeto político-pedagógico do

ProJovem. Em seguida, essas mesmas opções são também analisadas em sua articulação aos

conhecimentos geográficos propostos para a unidade.

Para desenvolver o conceito de poder, os elaboradores do texto didático indagam aos

estudantes sobre sua relação com a política para que possam refletir sobre a ideia de que

poder é algo localizado apenas em instituições políticas como o Governo, a Câmara dos

Deputados, a Assembléia Legislativa etc. Rompendo com essa visão, o texto relaciona poder e

cotidiano ao afirmar que “o poder não está distante de nós, dos espaços onde convivemos e

atuamos [pois] ele se exerce também em nossas casas, famílias, nas relações entre amigos,

vizinhos, na sala de aula, no ambiente de trabalho, nos grupos de convivência etc.” (ibid.,

2007h, p. 24). Trabalhando na esfera do micropoder, com clara influência do pensamento

foucaultiano, os autores lançam mão de um texto de Sílvio Gallo para fazer com que os

alunos assimilem essa concepção. “A capacidade de transformar as vontades dos outros na

sua vontade”, “a capacidade de realizar qualquer ato ou ação”, “potência para realizar

determinado desejo ou vontade” são algumas das definições encontradas no texto de Gallo e

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201

que dão a dimensão de suas referências. Ainda um trecho desse mesmo texto complementa a

visão a ser construída pelo aluno:

O jogo de poder apresenta-se, assim, como um jogo de vontades, no qual a vontade de um, o mais forte, por alguma razão acaba se impondo sobre a vontade de outro ou outros. A noção de poder implica também a capacidade de ter suas ordens obedecidas. Aquele que é investido de poder, um indivíduo ou uma instituição, tem a chance e os instrumentos para potencializar suas vontades (GALLO, 1998 apud SALGADO, 2007h, p. 25).

Dessa forma, tal concepção se coaduna com os pressupostos do ProJovem. Se o poder

se apresenta como um jogo de vontades no qual o mais forte impõe a sua perante os demais,

basta um indivíduo ou um grupo se instituir de algum tipo de força para criar ou reverter a

situação de poder estabelecida. Em nossa visão, é instantânea a relação com as ideias de

empoderamento e protagonismo juvenil preconizadas pela proposta curricular do Programa.

Nelas, a complexidade das relações de poder, e aqui não negamos os micropoderes que

permeiam as relações humanas em suas mais variadas dimensões, não são retratadas.

Conduzido dessa maneira, poder é somente uma questão de vontade e de força, não se

levando em conta, assim, os processos hegemônicos historicamente constituídos por grupos e

classe sociais que têm conseguido impor seus interesses políticos, econômicos e culturais à

sociedade como um todo.

Tentando articulá-lo ao poder, o conceito de ideologia é apresentado a partir de

diferentes acepções: 1) como um modo de pensar, uma maneira pela qual vemos o mundo; 2)

como um conjunto de idéias que é produzido por determinadas pessoas em determinados

tempos e lugares; 3) como idéias que são disseminadas por um grupo e distribuídas por toda a

sociedade, agindo sobre os desejos, as vontades e as necessidades dos indivíduos, de forma

que eles incorporam estas idéias como se fossem suas. Como se vê, são definições que se

tangenciam, mas que também se afastam na medida em que se inscrevem em diferentes

momentos da história do conceito. De um corpo de idéias, princípios e valores que refletem

uma determinada visão de mundo às ideias políticas relacionadas com os interesses de um

grupo social, o conceito se apresenta, a nosso ver, de forma não muito clara.

A situação se agrava quando o texto didático utiliza as propagandas eleitorais dos

diferentes partidos políticos como contribuição para a construção do conceito. Considerando,

nesse caso, ideologia como o conjunto de ideias de uma agremiação partidária, o exemplo

pode confundir, pois, muitas vezes, as propagandas eleitorais costumam não revelar todas as

intenções e visões de mundo engendradas pelos partidos, principalmente por aqueles que

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respondem pelos interesses da classe que detém a hegemonia política e econômica. A nosso

ver, compreendendo ideologia como o meio pelo qual “uma classe pode exercer hegemonia

sobre outras, isto é, pode assegurar a adesão e o consentimento das grandes massas”

(BOTTOMORE, 2001, p. 186), um bom exercício poderia ser o desvelamento de discursos

ideológicos veiculados em filmes, jornais impressos e televisivos ou outros programas de TV.

Afinal, esses são produtos midiáticos que diariamente jovens trabalhadores têm contato, o que

facilita seu uso tanto em função do acesso quanto em termos de familiaridade com a

linguagem utilizada.

Acreditamos ainda que tenha faltado o reconhecimento da complexidade e da

polêmica que envolve o conceito de ideologia, o que poderia ser feito apresentando-se

diferentes abordagens e problematizando-as. A escolha pela simplificação extrema acaba por

não contribuir com a construção do pensamento crítico e autônomo do aluno, embora o

manual do educador anuncie como objetivo desse tópico o desenvolvimento da capacidade

crítica do aluno “para que ele seja capaz de, autonomamente, ler as entrelinhas, as lacunas, as

omissões dos discursos ideológicos e fazer suas escolhas de forma consciente” (SALGADO,

2007i, p. 19).

O terceiro tópico pretende identificar e debater o significado dos conceitos de

democracia e Estado. A democracia é conceituada a partir da diferença entre as duas formas

através das quais ela se apresenta historicamente: a democracia direta e a democracia

representativa. Restringindo-se a esses termos, o conceito é visto também de forma

incompleta, pois não agrega a essa necessária discussão o que Bobbio (2004) chama de

processo de alargamento da democracia na sociedade contemporânea, que, segundo o autor,

não ocorre somente em função da integração entre democracia representativa e democracia

direta. Para ele, a discussão deve incluir a esfera política à esfera da sociedade em seu

conjunto, ultrapassando assim a discussão sobre a democratização da direção política e

chegando à democratização da sociedade – a democracia social. Suas palavras esclarecem o

ponto primordial que poderia ser evidenciado na formação escolar de jovens e adultos

trabalhadores:

Em conseqüência, pode muito bem existir um Estado democrático numa sociedade em que a maior parte das instituições, da família à escola, da empresa aos serviços públicos, não são governados democraticamente. Daí a pergunta que melhor do que qualquer outra caracteriza a atual fase de desenvolvimento da democracia nos países politicamente mais democráticos: ‘É possível a sobrevivência de um Estado democrático numa sociedade não democrática?’ [...] Hoje, quem deseja ter um indicador do desenvolvimento democrático de um país deve considerar não mais o número de pessoas que têm direito a votar, mas o número de instâncias diversas

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203

daquelas tradicionalmente políticas nas quais se exerce o direito de voto. Em outros termos, quem deseja dar um juízo sobre o desenvolvimento da democracia num dado país deve pôr-se não mais a pergunta ‘Quem vota?’, mas ‘Onde vota?’” (p. 156-7).

Com esse espírito, a coleção didática do ProJovem poderia contribuir sobremaneira

para uma verdadeira reflexão sobre a democracia brasileira, indo mais a fundo que as

constatações corretas, mas superficiais que se encontram em suas páginas. Jovens da classe

trabalhadora têm condições e maturidade suficientes não só para a compreensão da reflexão,

como também para fazer valer seus direitos vinculados à democracia social. Afinal, se os

autores do texto de ciências humanas assumem as relações cotidianas como instâncias de

exercício do poder, deveriam também estimular a discussão a respeito do exercício

democrático nessas mesmas relações cotidianas. Tal reflexão também permitiria se chegar à

compreensão e aos limites da democracia considerada pela visão liberal e burguesa do mundo.

Relacionado aos interesses da sociedade, o Estado é definido como o conjunto de

instituições que administram a vida social. Nenhuma alusão é feita à sua recente formação

histórica articulada ao projeto de modernidade instaurado na Europa a partir do século XVIII,

tampouco ao território como elemento essencial para o seu entendimento. A abordagem se

restringe à identificação dos três poderes, da Constituição da República como lei maior do

país e do papel do Estado como indutor e formulador de políticas públicas. Isso tudo em um

tratamento tão superficial que acaba por não contribuir nem mesmo para a superação da

associação direta entre governo e Estado.

Analisados os tópicos referentes aos conceitos elementares das ciências humanas,

passamos ao exame do conteúdo geográfico que pretende contribuir com o eixo estruturante

juventude e cidadania. Desde já, anunciamos que uma das intenções é perceber não só a

relação desse conteúdo com a temática proposta como também a apropriação feita pelo

conhecimento geográfico dos conceitos abordados na primeira parte do volume.

É interessante observar que logo após o breve tratamento do conceito de Estado, no

qual se notou a ausência da constituição do território como um dos elementos-chave para sua

compreensão, os autores optam por selecionar o território brasileiro como tema do quarto

tópico da unidade. Porém, mesmo aí, ao falar de território nacional, a associação ao conceito

de Estado não é ressaltada, não contribuindo, portanto, para a própria compreensão do termo

país, tão utilizado cotidianamente. Em geral, a ênfase da abordagem está nos aspectos

culturais do povo brasileiro e nas diferenças e identidades desse povo ao longo do vasto

território nacional. Este, por sua vez, é definido como “um espaço físico, geograficamente

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delimitado por relações de poder de ordem econômica, política, social e cultural”

(SALGADO, 2007h, p. 32).

Em nossa avaliação, alguns problemas sérios se apresentam nesse tópico. Ao afirmar,

por exemplo, no manual do educador, que “nós, brasileiros, temos muito em comum: falamos

a mesma língua, gostamos de futebol e do carnaval” (SALGADO, 2007i, p. 23), o documento

aponta para uma homogeneização perigosa e incoerente com a proposição da diversidade

cultural apresentada no guia de estudo, além de não considerar a variedade de povos indígenas

e suas respectivas línguas. Incompatível com essa afirmativa, o guia de estudo, ao tratar dessa

diversidade cultural brasileira, diz que o que diferencia gaúchos, baianos, mineiros, cariocas

etc. é, além da variação lingüística, a alimentação, os costumes e os hábitos. Como os autores

não trazem a reflexão sobre a cultura de massa e sua influência nas culturas regionais, vemos

o perigo em se reproduzir estereótipos e inverdades acerca dos diferentes povos brasileiros.

O conceito de território também se apresenta problemático, pois ele é associado

apenas ao espaço físico de um país. Não estabelecendo nenhum tipo de relação com o

conceito de poder desenvolvido em tópicos anteriores, os autores deixam de ver o território

como um conceito geográfico mais abrangente, como um espaço fundamentalmente definido

e delimitado por e a partir de relações de poder e/ou através do estabelecimento de identidades

culturais. O que se faz é reduzi-lo à escala nacional em associação exclusiva à figura do

Estado. Dessa forma, no contexto do ensino de geografia voltado para o público jovem de

classe trabalhadora, os autores deixaram de contribuir para uma possível tomada de

consciência do aluno como sujeito da reconstrução social do espaço, entendendo o espaço

como algo dinâmico, permeado por relações de poder que constroem e desconstroem

territórios em diferentes escalas espaciais e temporais.

A divisão regional do Brasil é o enfoque do quinto e do sexto tópicos da unidade. O

texto se inicia apresentando a divisão oficial das cinco regiões propostas pelo IBGE e levanta

alguma discussão sobre os critérios de regionalização. Logo em seguida, desenvolve questões

simples de leitura de mapas através das quais se exige conhecimentos mínimos de localização

das regiões em uma opção clara pela redução e simplificação dos conteúdos geográficos. A

nosso ver, a cartografia temática poderia e deveria ser aqui trabalhada, superando a leitura de

mapas somente como exercício de localização de unidades espaciais. Temas ligados à

ocupação humana, à dinâmica da natureza e mesmo a aspectos ambientais e culturais das

regiões e do Brasil como um todo ampliariam a visão de mundo dos alunos, auxiliando-os na

compreensão mais aprofundada do território de seu país. Tal fato pode estar relacionado ao

caráter aligeirado do curso, algo assumido pelos próprios elaboradores da proposta de ciências

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205

humanas ao afirmar a impossibilidade em se esgotar o estudo pormenorizado sobre as regiões

brasileiras (SALGADO, 2007h, p. 35). Contudo, supomos que mesmo com pouco tempo e

mesmo sabendo das dificuldades de aprendizagem que muitos podem apresentar, os alunos

deveriam ser estimulados a avançar mais em suas análises.

Quanto à caracterização das regiões, a solução encontrada para tentar superar o tempo

reduzido para a formação escolar dos jovens cursistas é a realização de um trabalho em grupo

no qual os alunos devem pesquisar informações sobre seus diferentes aspectos. Com pouca

orientação para os educadores e sem alertas importantes para a coordenação da pesquisa,

corre-se o risco de se reproduzir nessa tarefa o caráter fragmentado da análise regional, uma

vez que o conceito de região não é problematizado, nem outros critérios de regionalização são

apresentados. A opção teórico-metodológica, portanto, não vê a região como resultado de

múltiplas determinações, como a especificação de uma totalidade da qual faz parte, não

sendo, portanto, única, mas particular. A análise regional, nesse sentido, se distancia da

perspectiva que toma como base a relação centro-periferia em função do papel econômico

exercido por cada região na divisão territorial do trabalho.

A população brasileira, tema do sexto tópico, é abordada somente em relação à sua

distribuição pelo território, ou mais precisamente pelas cinco regiões do país. Revelando a

extrema concentração demográfica nas regiões Nordeste e Sudeste, onde vivem mais de 70%

da população, os autores procuram explicar tal fenômeno através do processo de colonização

do território brasileiro, deixando entender que o Nordeste e o Sudeste são os mais habitados

por terem sido as primeiras regiões a serem ocupadas. As desigualdades regionais também são

atribuídas à formação histórica, mas tal explicação não é aprofundada, o que impede a relação

dessas disparidades aos processos econômicos que redundaram no desenvolvimento desigual

das diferentes regiões brasileiras.

Como vemos, os conceitos de política, democracia e Estado não são retomados em

sua relação com a abordagem do território brasileiro e da distribuição da população. É como

se eles não fossem necessários para a compreensão do desenvolvimento econômico e das

opções políticas que o país tem adotado e que explicam boa parte de suas crises e mazelas. A

possibilidade dessa relação tornaria bastante rico o tratamento dado aos conteúdos

selecionados, porém, mais uma vez, a fragmentação analítica predomina e dificulta a

contribuição do conhecimento geográfico para a construção de uma visão mais crítica da

realidade nacional por parte dos estudantes do ProJovem.

Dando continuidade à análise do conteúdo da unidade, chegamos aos dois últimos

tópicos em que a geografia é abordada. Neles, a temática da população permanece, sendo

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206

agora focada na reflexão acerca dos problemas e desafios da juventude no mundo e no Brasil.

Nos dois capítulos basicamente não há texto didático explicativo das questões evolvidas,

apenas lançam mão de textos jornalísticos e filmes para desenvolver a temática. De certa

forma, os textos são bons para os objetivos propostos, no entanto, como textos jornalísticos,

precisam ser utilizados de forma cuidadosa e problematizadora, pois corre-se o risco de tomar

suas interpretações como únicas. O primeiro texto, por exemplo, ao tratar das manifestações

dos jovens das periferias urbanas francesas, em 2005, traz a seguinte afirmação:

A maior parcela dos revoltosos nasceu na França e tem como pais e avós imigrantes do norte da África. São quase todos mulçumanos, embora seja equivocado relacionar os distúrbios a motivos religiosos. Também não parece certeiro ver neles motivação política. Queimar carros e quebrar lojas é a expressão de sua independência. E de sua ira contra um inimigo definido. Derrubar Nicolas Sarkorzy, ministro do Interior francês que adotou uma política linha dura de combate ao crime nas periferias, é o objetivo da molecada (Folha de São Paulo - Folhateen, Fábio Victor, 21/11/2005, p. 3, grifos nossos).

A falta de problematização das ideias veiculadas pelo texto faz com que o movimento

dos jovens franceses seja encarado como ações sem sentido político e realizadas por bandidos

que apenas pretendiam retaliar o governo em função de seu suposto combate mais vigoroso ao

crime. A incoerência com o conceito de política apresentado em tópicos anteriores do próprio

material didático e a ausência de qualquer tipo de alerta aos educadores sobre a melhor forma

de conduzir um trabalho pedagógico com textos jornalísticos revelam, em última instância, a

falta de cuidado dos autores para com essa problemática.

Outra séria questão relativa ao conhecimento geográfico diz respeito aos critérios de

regionalização e classificação dos países do globo. Naturalmente, como se fosse consenso, o

texto utiliza termos como países ricos e pobres e países desenvolvidos, subdesenvolvidos e

em desenvolvimento. Em nenhuma outra parte do programa curricular, porém, o texto

didático discute a regionalização do mundo. No mínimo, a divulgação de outras

nomenclaturas, advindas de outras interpretações, como a teoria da economia-mundo, de

Immanuel Walerstein, que propõe a divisão em centro, periferia e semi-periferia do

capitalismo mundial, deveria ser contemplada. Em função disso, indagamos sobre que tipo de

compreensão é feita pelos alunos acerca dessa questão. Permaneceriam eles apenas no plano

do senso comum? Que intencionalidades a seleção de conteúdos geográficos revela? Será só

uma dificuldade relacionada ao aligeiramento do curso? Ou está intimamente ligada aos

preceitos do projeto político-pedagógico do Programa?

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207

Esses mesmos questionamentos valem também para a reflexão sobre os contrastes,

problemas e desafios da juventude brasileira, proposta para o oitavo tópico. Sem qualquer

intervenção explicativa sobre um tema tão complexo, as discussões giram somente em torno

do filme Cidade de Deus (Fernando Meireles, 2002) e de um texto jornalístico intitulado

Mundos paralelos (Folha de S. Paulo, Antonio Góes e Rafael Canelo, 2005). Sem dados,

gráficos e mapas que complementem e aprofundem a análise das desigualdades sociais

presentes entre a juventude urbana brasileira, perguntamos em que sentido o material didático

ajuda os jovens estudantes a construir o “significado desses diferentes mundos em que vivem

os jovens brasileiros e ter a utopia de que podem construir espaços e histórias de inclusão

social e econômica” (SALGADO, 2007i, p. 30), conforme anuncia contraditoriamente o

manual do educador.

Por fim, trazemos para a análise uma preocupação relativa a alguns procedimentos

metodológicos adotados por esse quarto volume de ciências humanas da coleção didática do

ProJovem. Pelo menos três atividades relativas ao levantamento do conhecimento prévio e

das opiniões dos alunos acerca de uma determinada temática são sugeridas no material. No

entanto, em nenhuma delas, o manual do educador avança na orientação para o seu

desenvolvimento. Em primeiro lugar, a ausência de reflexões que instiguem o professor a

pensar sobre os objetivos e cuidados com atividades desse tipo nos traz a sensação de que os

autores supõem que o levantamento deve ser feito para que logo depois os conceitos

cotidianos e o saber da experiência sejam sobrepujados pelo conhecimento escolar. Ao não

instrumentalizar o professor com técnicas de ensino que aproveitem e partam do saber e da

visão de mundo dos alunos para ampliar e/ou superar esse saber com novas informações e

reflexões, o material didático se utiliza de importante intervenção pedagógica, mas não

contribui para a superação de um dos maiores clichês presentes hoje na educação brasileira.

Avançar nessa compreensão e problematizar o que já se tornou “lugar comum” em qualquer

proposta pedagógica da EJA é tarefa a que nos propomos no capítulo conclusivo desta tese.

***

Ao findar a análise da educação geográfica do ProJovem, julgamos importante e

pertinente tecer algumas considerações gerais a respeito da seleção e da organização de

conteúdos geográficos e de sua relação com o projeto político-pedagógico do Programa. Tal

procedimento se torna essencial na medida em que, nesse momento, após examinarmos todos

os tópicos relativos à disciplina, temos melhores condições de construir uma visão mais ampla

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208

e abrangente da geografia que se pretende ensinar a jovens trabalhadores das regiões

metropolitanas brasileiras.

Em primeiro lugar, chamamos a atenção para o fato de que a geografia tem um papel

de destaque na proposta curricular das ciências humanas. Em um rápido olhar na organização

dos conteúdos previstos para as Unidades Formativas (Anexo 6), podemos perceber o

predomínio do conhecimento geográfico em relação ao conhecimento histórico, fato que nos

faz indagar sobre os objetivos e intenções que motivaram a elaboração do conteúdo

programático de ciências humanas. Se observarmos com cuidado a falta de aprofundamento

do processo histórico que dá sentido aos fenômenos geográficos, é possível constatar a opção

clara por uma abordagem que não prima pelo rigor conceitual. Em diversos momentos de

nossa análise ficam evidentes as lacunas e as explicações incompletas e, por vezes,

incoerentes.

Além disso, a não integração dos conhecimentos que compõem as ciências humanas,

embora estejam aglutinados em uma mesma área, impossibilita o estabelecimento de relações,

comparações e criação de sentido para os temas previstos. Tal fato revela a manutenção das

disciplinas escolares como “‘tecnologia’ de organização curricular relacionada aos fins sociais

do conhecimento e da educação” (MACEDO e LOPES, 2002, p. 82) sem que seus conteúdos

sejam articulados horizontalmente para a compreensão das temáticas propostas para as

Unidades Formativas, por exemplo. Dessa forma, ainda que a opção por eixos estruturantes

demonstrem a tentativa de superar a transmissão de informações estanques e fragmentadas,

vemos claramente que a proposta do ProJovem não logrou avançar para além dessa

perspectiva nem mesmo entre as disciplinas formadoras de uma área do conhecimento, como

é o caso das ciências humanas. Acabou por ficar no meio do caminho, pois preparou uma

estrutura que pudesse viabilizar o trabalho pedagógico mais integrado (entre as disciplinas,

entre as áreas, entre as dimensões formativas do Programa), mas organizou os conteúdos

disciplinares de forma não articulada.

Outra característica percebida diz respeito à escolha por uma proposta curricular única

para todas as turmas do Programa. Fechada e com pouco estímulo para o professor buscar e

inserir outros temas a partir da realidade encontrada, a prescrição se faz em função dos

exames aos quais os estudantes são submetidos ao final do curso. Junte-se a isso o pouco

tempo de trabalho efetivo para a formação escolar e tem-se um quadro bastante desfavorável

para a inovação e para a autonomia do trabalho docente. Ainda assim, acreditamos na

possibilidade de muitos educadores, ao imprimirem suas visões e concepções às aulas,

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209

poderem exercer uma proposta mais crítica e reflexiva em relação àquela que o material

didático pode oferecer.

Ainda no que se refere ao caráter aligeirado do curso, sabemos das dificuldades e

desafios que envolvem os programas de EJA. O tempo escolar para essa modalidade deve ser

repensado à luz das especificidades de seu público. Por isso, a comparação com o ensino

regular diurno no que tange à duração do dia letivo se torna pouco pertinente se queremos

avaliar a qualidade do ensino em cursos de EJA. Em função dessas características, a seleção

de conteúdos e a sua abordagem metodológica devem ser pautadas em critérios que

relativizem o tempo de estudos, mas que imprimam, na medida do possível, a qualidade

exigida aos estudantes de outros níveis e modalidades de ensino. Essa situação, portanto, não

pode ser a justificativa para o não aprofundamento de determinadas questões suscitadas pelo

tema a ser estudado.

O que vimos no ProJovem, porém, foram escolhas que nem sempre podem ser

explicadas a partir do pouco tempo de aula e do curso. Entendemos que, mesmo enfrentando

esse desafio, a proposta curricular é uma opção política e as ausências e lacunas, que em

alguns momentos podem até ser relacionadas ao tempo escasso, se devem muito menos a esse

fato que às concepções pedagógicas e correntes do pensamento geográfico adotadas pelo

projeto político-pedagógico do Programa.

Nesse aspecto, o que pudemos constatar é que a geografia veiculada pelo ProJovem

apresenta abordagens híbridas entre aquelas que se situam nos marcos da chamada geografia

crítica e as que se aproximam da perspectiva fenomenológica da geografia cultural-humanista.

O grande número de atividades que estimulam o levantamento das concepções predominantes

entre os alunos relativas aos temas abordados revela a preocupação em aproximar o conteúdo

geográfico ao espaço vivido e dar sentido ao conhecimento produzido. No entanto, como já

revelado em muitas passagens da análise realizada, o não aproveitamento dessas falas para

proceder a superação dialética de determinadas visões, coloca a proposta pedagógica em dois

patamares contraditórios: ora estimula o levantamento do senso comum para em seguida

desconsiderá-lo a favor do saber escolar que se quer transmitir, ora busca os conceitos

cotidianos e, ao não problematizá-los, neles permanece.

A aproximação problemática com a abordagem fenomenológica, assim, se torna

evidente, confirmada também por uma geografia do comportamento que poucas vezes leva

em conta o lugar social, a condição de classe do indivíduo. Além disso, é bem clara na

proposta curricular a ausência de conflitos na cidade, no mundo do trabalho, na veiculação

das informações através dos meios de comunicação, na construção da cidadania. Nesse

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210

sentido, ao associar-se ao pensamento único que preconiza o fim dos conflitos e da luta de

classes na tentativa de se impor uma mudança cultural a favor da lógica do mercado e da

competitividade, a geografia do ProJovem contribui, como atesta Rocha (2003), para “apagar

da memória coletiva o processo sempre conflitivo de construção da cidadania, do bem

comum, da solidariedade, da igualdade e dos direitos sociais” (p. 23).

Para que os conflitos e confrontos pudessem ser revelados e uma concepção mais

crítica de cidadania pudesse ser construída, seriam necessários menos prescrição e mais

orientação teórica e metodológica para se desenvolver conhecimentos geográficos que

tomassem como referência o espaço local, posto que o cidadão, de acordo com Damiani

(2003) é sempre o cidadão de um lugar, de um espaço. Dessa forma, levando em conta seu

cotidiano, seu espaço vivido, mas também tendo acesso à identificação e análise dos

processos históricos constituintes do espaço geográfico, o estudante do ProJovem poderia dar

passos mais largos em direção à cidadania de fato efetiva. Isso porque, ainda segundo

Damiani (ibid.):

É preciso que o homem comum chegue ao nível da razão, da totalidade, do movimento, da história, para discernir completamente as condições em que vive. Mas o conhecimento do dia-a-dia remete ao entendimento, e esse homem pode permanecer no entendimento. O entendimento determina os objetos como distintos, destrói o todo e o conjunto; “como a mão e o utensílio, o entendimento separa objetos e em seguida os estabiliza”. O homem pode se perder na parcialidade de sua atividade diária. O outro pode guardar a razão que restabelece o conjunto: o poder econômico e político (p. 55).

A geografia veiculada pela proposta curricular do ProJovem está, portanto, longe de

contribuir para que os alunos não se percam na parcialidade de suas atividades diárias. Os

conteúdos geográficos selecionados e a forma com que foram organizados pouco contemplam

a crítica, o questionamento e a reflexão acerca dos conflitos e das lutas diárias a que estão

sujeitos os jovens trabalhadores. Ao apenas constatar o espaço desigual através do estímulo à

leitura das paisagens urbanas e ao levantamento de opiniões com pouco substrato teórico, essa

geografia concorre para o projeto de sociedade que esvazia a participação política e vê a

pobreza como uma disfunção social que pode ser atenuada a partir de ações pontuais e focais.

Em última análise, coaduna-se e atende, assim, aos preceitos do próprio Programa como um

todo.

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211

CAPÍTULO 4

A GEOGRAFIA NA COLEÇÃO CADERNOS DE EJA: APOIO DIDÁTICO OU

REFERÊNCIA NACIONAL?

A Coleção Cadernos de EJA, lançada no ano de 2007 pelo Ministério da Educação,

pode ser considerada a mais recente ação vinculada às políticas de currículo voltadas para a

EJA no âmbito federal. Elaborada pela Fundação Interuniversitária de Estudos e Pesquisas

sobre o Trabalho, a Unitrabalho, com recursos do FNDE, a coleção é considerada pelo MEC

como material didático de apoio a todos os professores que trabalham com o ensino

fundamental em programas e cursos de EJA do país. Segundo o Ministério, o material é

prioritariamente direcionado às escolas públicas, embora possa ser também utilizado por

projetos de educação não formal, uma vez que se encontra disponível para impressão em meio

eletrônico. Sendo assim, uma vez que é veiculada através do órgão máximo da educação

brasileira e se diz coerente com as DCNEJA, documento oficial que guia as ações curriculares

dessa modalidade no país, a Coleção Cadernos de EJA, a nosso ver, pode tornar-se uma

espécie de referência nacional em termos de proposta de material didático para a EJA.

Nesse sentido, consideramos a relevância da análise dessa coleção didática, tomando

como principal foco de investigação o conteúdo geográfico nela disposto em função dos

objetivos da presente pesquisa. Interessa-nos, dessa forma, o desvelar de suas

concepções, justificativas e adequações para a modalidade EJA; ou seja, procuramos

evidenciar a seleção de conhecimentos geográficos e o modo pelo qual eles são organizados e

metodologicamente trabalhados, levando em conta a especificidade do público a ser atendido.

Dessa forma, acreditamos ser possível revelar a educação geográfica que hoje se coloca

oficialmente à disposição de professores e alunos dos cursos de EJA espalhados pelo país.

Para tanto, o exame do material se faz desde a sua proposta curricular, presente no

volume intitulado Caderno Metodológico, até as temáticas e os conteúdos geográficos

presentes nos seus outros cadernos. Estes perfazem o total de vinte e seis volumes, sendo treze

voltados para os alunos e treze direcionados para os professores. Cada caderno do aluno

corresponde a um caderno do professor que desenvolve a mesma temática, sendo o caderno

do aluno formado somente por textos a serem trabalhados nas aulas e o caderno do professor

composto por sugestões metodológicas para o desenvolvimento das questões suscitadas pelos

textos. Desse modo, ao procedermos a análise do conhecimento geográfico, voltamo-nos

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212

basicamente para os cadernos do professor, uma vez que são neles que se encontram os

objetivos, os conteúdos e os métodos da geografia escolar pensada para estudantes jovens e

adultos trabalhadores do ensino fundamental.

Cabe destacar que a coleção em pauta, em função do seu caráter até certo ponto

inovador no que diz respeito à organização e ao tratamento pedagógico dos conhecimentos a

serem desenvolvidos, não se configura em material com formato igual aos livros didáticos que

professores e alunos estão habituados a encontrar nas escolas. No entanto, assim como os

livros didáticos convencionais, a coleção é também considerada por nós como “uma versão

didatizada do conhecimento para fins escolares e/ou com o propósito de formação de valores

[...] incluindo as funções de referencial curricular, de instrumentalização de métodos de

aprendizagem, ideológica e cultural e, mais restritamente, documental” (LOPES, 2007b, p.

208).

Encarada, então, como um currículo escrito, isto é, um artefato cultural no qual se

encontram concepções e discursos a serem veiculados como legítimos para a população

escolar, tal coleção, porém, não pode ser considerada como decorrente apenas de discursos

originados no âmbito do governo federal a serem disseminados verticalmente nas escolas de

EJA. Concordando com Lopes (ibid.) em sua análise sobre os livros didáticos, vemos os

Cadernos de EJA como veiculadores de discursos recontextualizados da academia, das

escolas e das disciplinas específicas para a modalidade EJA, revelando, assim, um processo

muito mais complexo do que se poderia supor.

Como uma edição estatal, a coleção em tela possui, obviamente, características que a

diferenciam de coleções didáticas produzidas pelo mercado editorial. Sua elaboração,

produção, divulgação e distribuição obedecem a lógicas que não se encontram presentes

quando se trata de livros didáticos convencionais. Sendo assim, o que tomamos como similar

entre um e outro material didático é o caráter de referencial curricular e a idéia de que, como

atesta Choppin (2004), “a concepção de um livro [ou material] didático inscreve-se em um

ambiente pedagógico específico e em um contexto regulador que [...] é, na maioria das vezes,

característico das produções escolares (edições estatais, procedimentos de aprovação prévia,

liberdade de produção, etc.)” (p. 554).

Nesse sentido, o presente capítulo se inicia abordando as recentes políticas

curriculares de EJA no âmbito do governo federal. Trata das ações que têm marcado o atual

governo em termos de políticas gerais para a modalidade e seu rebatimento na produção de

currículo. Em seguida, focaliza a Coleção Cadernos de EJA, examinando desde as iniciativas

que possibilitaram a sua elaboração até as concepções teórico-metodológicas que marcam sua

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213

proposta curricular. Por fim, investiga a geografia que se quer ensinar a jovens e adultos da

classe trabalhadora através da análise do conteúdo geográfico presente em quatro dos treze

cadernos temáticos que compõem a coleção.

4.1 AS RECENTES POLÍTICAS CURRICULARES DE EJA NO ÂMBITO FEDERAL

Partindo do pressuposto que a política se refere aos processos e decisões da vida

coletiva e que não se restringe, portanto, apenas às ações do Estado (LOPES, 2006),

examinamos as recentes políticas de currículo relativas à EJA no âmbito federal com o intuito

de descobrir os discursos que a constituem, além de revelar possíveis contradições e

antagonismos presentes em seus textos e suas iniciativas. Assim, acreditamos ser possível

reconhecer os processos de recontextualização desses discursos originários de diversos

contextos, do âmbito global às esferas locais, estas somente compreensíveis em função da

trajetória histórica da educação brasileira.

Nesse sentido, no caso da EJA, vale observar o marco conceitual e operacional das

políticas do governo federal e as reinterpretações de iniciativas vinculadas ao contexto

político e econômico internacional, bem como às marcas tanto da educação popular quanto da

educação escolar de base supletiva, ambas características da história da EJA no Brasil. Dessa

forma, projetos, programas, financiamento, produção de materiais voltados para professores e

alunos, dentre outras, são ações comentadas à luz das premissas até aqui expostas com a

intenção de se compor o panorama dentro do qual a educação geográfica presente nos

Cadernos de EJA foi pensada e produzida.

4.1.1 O governo Lula e o cenário de permanências e mudanças na EJA

Em 2004, segundo ano de seu primeiro mandato (2003-2006), o atual governo

reestruturou o MEC e instaurou a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade (SECAD), dentro da qual passou a atuar o Departamento de Educação de Jovens

e Adultos. Com essa nova organização, a SECAD102 passaria a congregar setores ligados à

alfabetização e educação de jovens e adultos, educação do campo, educação ambiental,

educação escolar indígena, e diversidade étnico-racial, temas antes distribuídos em outras

102 Além do Departamento de Educação de Jovens e Adultos, compõem a SECAD o Departamento de Educação para Diversidade e Cidadania, o Departamento de Desenvolvimento e Articulação Institucional e o Departamento de Avaliação e Informações Educacionais.

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214

secretarias. De acordo com o portal eletrônico do MEC, o principal objetivo da SECAD é

“contribuir para a redução das desigualdades educacionais por meio da participação de todos

os cidadãos, em especial de jovens e adultos, em políticas públicas que assegurem a

ampliação do acesso à educação continuada” (BRASIL, 2008). É também em seu âmbito que

são elaborados e desenvolvidos projetos voltados para segmentos da população considerados

vítimas potenciais de discriminação e violência, marcando, assim, ainda segundo o MEC, a

chegada de novos tempos no que se refere ao combate às injustiças que caracterizam o

sistema educacional brasileiro.

Em relação à EJA, portanto, a SECAD passou a gerir todas as políticas que lhe dizem

respeito, dentre as quais uma das maiores marcas dos primeiros anos do governo Lula: o

Programa Brasil Alfabetizado. Tal programa, implantado em 2003 a partir do anúncio de que

a alfabetização de adultos seria uma prioridade da então nova administração federal, iniciou-

se em meio a uma forte polêmica entre os militantes, pesquisadores e professores da EJA que

não acreditavam mais nos efeitos de políticas efêmeras que se assemelham às antigas

campanhas de alfabetização de adultos. Como conseqüência de todo esse questionamento, o

governo, chamando esses mesmos atores para configurar estratégias de atuação do Programa

(HADDAD, 2006), instituiu a Comissão Nacional de Alfabetização (CNA) através do Decreto

4.834, de 8 de setembro de 2008. Com caráter consultivo, a CNA tem como principais

atribuições subsidiar a elaboração das diretrizes gerais para o Programa Brasil Alfabetizado;

manifestar-se sobre questões que envolvam a operacionalização do Programa; assessorar o

Ministério da Educação no diagnóstico dos problemas relativos ao analfabetismo no Brasil e

propor medidas para aperfeiçoar o Programa Brasil Alfabetizado, especialmente no que diz

respeito ao cumprimento das metas por ele estabelecidas103.

Cabe destacar, como bem lembra Haddad (2006), que o Brasil Alfabetizado é um

programa de governo, quer dizer, é realizado pela ação efetiva do Estado e não pela

transferência de recursos e responsabilidades para a sociedade civil, como se caracterizava o

Programa de Alfabetização Solidária (PAS), instituído no governo FHC. Além disso, o

caráter mais democrático do Programa, que prevê mecanismos de controle social, o diferencia

de outras iniciativas semelhantes que se realizaram ao longo da história da EJA no Brasil.

103 Tendo ampliado seu arco de atuação e reflexão para além da alfabetização, a atual Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA) se mantém atuante e conta com a participação de representantes de movimentos sociais, movimentos de educação popular, ONGs, Fóruns de EJA, governos municipais (através da UNDIME), governos estaduais (através do CONSED) e organismos internacionais (através da UNESCO).

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215

Em termos curriculares, ainda segundo o autor, o Programa não adota uma única

metodologia de alfabetização, ao contrário, congrega e apoia experiências de programas já em

andamento, inclusive algumas ações do próprio Alfabetização Solidária, “reafirmando assim a

intenção [do governo] de prosseguir nas parcerias com organizações da sociedade civil,

empresas, instituições de ensino superior e pesquisa, além de governos estaduais e

municipais” (ibid., p. 6). No que se refere ao atendimento a públicos e temáticas específicas,

vale lembrar que a SECAD disponibiliza em seu portal eletrônico alguns referenciais

curriculares que podem servir de subsídio a diferentes projetos de alfabetização vinculados ao

Brasil Alfabetizado. Um deles é a Proposta Pedagógica para a Alfabetização de Pescadores e

Pescadoras Profissionais e Aqüicultores e Aqüicultoras Familiares, elaborada, em 2005, pela

Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República, com projeto e

coordenação da ONG Sapé (Serviços de Apoio a Pesquisa em Educação), e direcionada a

comunidades pesqueiras tanto do litoral quanto do interior do país. O outro é o material

didático composto pelo livro de textos intitulado Almanaque do alfabetizador. Escravo, nem

pensar!, organizado, em 2006, pela ONG Repórter Brasil em parceria com o MEC e voltado

especificamente para regiões onde ainda se encontra a utilização de trabalho escravo.

Entretanto, e apesar da diversidade de propostas e de metodologias, cinco anos depois

do início da implementação do Brasil Alfabetizado, a queda na taxa de analfabetismo segue

lenta, fato que obrigou o governo a elaborar, em 2007, um redesenho do Programa, que prevê,

dentre outras ações, aumento da dotação orçamentária e fortalecimento do repasse de verbas

para as redes oficiais (80%) em detrimento às ONGs (20%), ampliação da carga horária de

formação inicial de professores do Programa, e apoio à aquisição de material didático livre

(BRASILEIRO e OLIVEIRA, 2007). Além disso, o governo traz como princípio a ser

observado nesse redesenho, a “escolarização através do fortalecimento da alfabetização e da

EJA como política pública, e do aumento da participação dos entes públicos no Programa”

(ibid.), tentando, assim, garantir a articulação da alfabetização inicial ao processo de

escolarização e responder a uma das maiores críticas direcionadas ao Programa desde sua

implantação.

No que concerne à escolarização de jovens e adultos, o governo Lula, embora tenha

implementado novos programas, manteve muitas iniciativas realizadas pela gestão anterior.

Nesse caso estão o Plano Nacional de Qualificação Profissional (PLANFOR), voltado para a

educação profissional de trabalhadores e realizado em parceria com organizações da

sociedade civil através das verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT); o Programa

Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), que oferece escolarização a jovens

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216

e adultos assentados em comunidades rurais por processos de reforma agrária; e o Fazendo

Escola, antigo Programa Recomeço, que apoia com recursos financeiros a implementação da

EJA em estados e municípios com baixo IDH.

Entre as políticas instituídas pelo atual governo ainda nesse campo da escolarização de

jovens e adultos, destaca-se a implantação do ProJovem, objeto de estudo deste trabalho em

seu terceiro capítulo, e do Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino

Médio na Modalidade de EJA (PROEJA), que prevê, pela primeira vez, ação integrada entre

formação profissional, ensino médio e EJA a ser oferecida pelas instituições educativas da

rede federal, incluindo aí os CEFETs, as Escolas Técnicas e Agrotécnicas, as Escolas

Técnicas vinculadas às universidades federais e o Colégio Pedro II.

Nesse campo, portanto, vê-se que o governo, ao atender a demanda por escolarização

de diferentes segmentos da sociedade, o faz priorizando ações focalizadas e de caráter

temporário. Ou seja, dando continuidade à lógica que prevalecia no governo FHC, iniciativas

pontuais são privilegiadas em detrimento à política de valorização da escola pública de EJA

no que se refere ao seu financiamento, à ampliação da oferta de vagas, ao atendimento de sua

especificidade e à eliminação das precárias condições de trabalho dos profissionais da

educação.

É verdade, porém, que o governo, tentando resolver a questão do financiamento das

modalidades e níveis de ensino da educação básica descobertos pelo FUNDEF, formulou e

encaminhou ao Congresso Nacional a Emenda Constitucional 53, que cria o FUNDEB,

incluindo agora as matrículas dos cursos de EJA. No entanto, o artigo 11º da Medida

Provisória 339, que regulamenta o FUNDEB, estabelece um teto de 10% dos recursos do

fundo a serem apropriados pelos estados e pelo Distrito Federal para o financiamento da EJA.

Tal fato, segundo o Fórum Paulista de Educação de Jovens e Adultos (2007), fere as

responsabilidades atribuídas ao poder público pelo art. 208 da Constituição e também as

metas instituídas pelo Plano Nacional de Educação.

Além disso, a fixação dos fatores de ponderação de cada etapa e modalidade da

educação básica, levada a cabo pela Junta de Acompanhamento do FUNDEB (composta por

representantes do MEC, CONSED e UNDIME), reservou para a EJA o peso de 0,7 em

relação ao valor padrão de referência estabelecido para os anos iniciais do ensino fundamental

urbano, simplesmente a menor proporção de todos os níveis e modalidades da educação

básica (FORUM PAULISTA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS, 2007). Essas

ações, ainda de acordo com o Fórum Paulista, demonstram a percepção da EJA como uma

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217

modalidade de menor importância em relação às demais, reproduzindo, assim, o trato dado

historicamente pelo Estado brasileiro à escolarização de jovens e adultos trabalhadores.

Na luta pelo reconhecimento, valorização e pela instauração de uma política

educacional de EJA, é importante destacar o papel exercido pelo movimento dos fóruns

estaduais e regionais de EJA. Surgido nos anos 1990 em função dos preparativos para a V

CONFINTEA, esse movimento ganhou força nos anos 2000 e hoje se faz presente nos 26

estados e no Distrito Federal. Geralmente sediado em uma universidade, sua composição é

diversa, contemplando setores de diferentes naturezas e matizes políticos e ideológicos104. A

cada ano, os fóruns organizam os Encontros Nacionais de Educação de Jovens e Adultos

(ENEJAs) com a intenção de unificar as reflexões e os debates acerca da implantação e

consolidação das políticas públicas educacionais voltadas para a modalidade. No que se refere

à sua relação com o governo federal, vale dizer que, a partir de 2003, o movimento passou a

ser reconhecido, de acordo com Machado (2007), como um dos interlocutores privilegiados

na construção da política de EJA, expressa na representação na CNAEJA e nas reuniões

semestrais com a SECAD.

Nesse sentido, ainda conforme a autora, os fóruns têm defendido a escolarização como

meta a ser atingida para o combate ao analfabetismo funcional, sem deixar de manter, porém,

a interlocução com as experiências advindas da educação popular. Em relação a essa questão,

podemos perceber, através das reflexões de Machado, o caráter dos fóruns como também uma

arena de conflitos. Diz ela:

Há quem entre nós, ou num espaço de interlocução não muito distante de nós, tem questionado a atuação dos fóruns por estarmos muito presos à questão escolar. A EJA que defendemos é mesmo só a escolarização? Deixamos de dialogar com a educação popular, quando brigamos por escolarização? Há um engessamento do currículo formal instransponível pelos sujeitos da EJA? Perdemos o foco da luta política na EJA? Pensemos um pouco sobre isto, diante do contexto que vivemos na última década. Parece-me impossível não centrar força na defesa do direito a escolarização diante dos dados [...] Portanto, um fórum que não mobilize, pressione, acompanhe e colabore para a expansão das matrículas, para o acesso e a permanência de jovens e adultos, principalmente na educação básica cada vez com maior qualidade, não está cumprindo uma de suas principais funções (ibid., p. 6).

A autora baseia suas considerações no fato de que o contexto que predomina na EJA

ainda é o que ela chama de super oferta de iniciativas de alfabetização levadas a cabo por

104 Em geral, os Fóruns de EJA são compostos por representantes de universidades (professores e estudantes), movimentos sociais, movimentos de educação popular, ONGs, secretarias estaduais e municipais de educação, Sistema “S” (SESC, SESI, SENAI, SENAC), professores, educadores populares e alunos da EJA.

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218

estados, municípios, ONGs, movimentos sociais, empresas etc., todos com possibilidade de

financiamento por meio do Programa Brasil Alfabetizado. Esse quadro, contudo, não é

acompanhado nem pela ampliação do número de matrículas no primeiro segmento do ensino

fundamental da EJA, nem pela superação da lógica compensatória, aligeirada e utilitarista que

ainda marca muitas ações para essa modalidade da educação básica.

Assim, a luta que o movimento dos fóruns lidera, e que também é a nossa, se direciona

para que o poder público tome para si a responsabilidade sobre a educação básica de jovens e

adultos a partir da perspectiva de sua oferta como um direito daqueles que a ela não tiveram

acesso em outros momentos de suas vidas. Efetivamente, é verdade que recentemente muitas

ações têm sido implementadas; boa parte delas, porém, têm sido realizadas de forma

fragmentada e pulverizada em diferentes ministérios e fundações, algo que também se

reproduz no âmbito de estados e municípios. Acompanhando a análise e as reflexões de

Machado, indagamos: “como transformar tantos projetos e programas em componentes de

uma política pública sólida que ultrapasse os governos e se consolide como política de

Estado” (ibid., p. 10). Ou seja, perguntamos sobre a consolidação de uma política de

ampliação da oferta de educação básica para a EJA que valorize a escola pública ao mesmo

tempo em que lhe dê condições físicas e intelectuais de pensar ações curriculares voltadas

para as características específicas do público atendido, promovendo, desse modo, a qualidade

de seu ensino.

Para Machado, é vital, para esse fim, o fortalecimento do Departamento de Educação

de Jovens e Adultos, no âmbito da SECAD e do MEC, no sentido de ratificar sua importância

para a coordenação política da EJA em todo o território nacional e para a implementação de

ações que tenham como horizonte a perspectiva da educação como direito de todos. Se isso

ocorrer de fato, acreditamos que questões como financiamento, propostas curriculares e

produção de materiais didáticos de apoio, dentre outras, possam ser permanentemente

discutidas à luz da garantia, como política de Estado, da interlocução do poder público com os

atores que historicamente vêm se dedicando à luta pela ampliação da oferta e da qualidade da

escolarização de jovens e adultos trabalhadores.

Nesse sentido, é mister reconhecer alguns avanços do governo Lula no que concerne

às políticas de EJA, dentre os quais, por suas ações, trazer essa modalidade para o centro do

debate no âmbito da educação brasileira. Entretanto, é primordial ressaltar que algumas de

suas opções, inscritas na lógica de cursos aligeirados que alimentam a ideologia da

empregabilidade, podem se constituir em armadilhas que, com o passar do tempo, tornem

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219

cada vez mais difícil a possibilidade de construção de uma EJA que de fato contribua para a

emancipação intelectual dos trabalhadores brasileiros.

4.1.2 Ações curriculares como políticas de Estado para a EJA: contradições e

perspectivas do atual governo

Michael Apple, ao desenvolver reflexões em torno da educação como política cultural

(2000), questiona a pertinência e o sentido da produção de um currículo nacional como

conhecimento oficial. Compreendendo o currículo como fruto de uma tradição seletiva, o

autor não se coloca, a princípio, contra o currículo nacional, no entanto, alerta para seus fins e

indaga sobre a quem ele interessa em determinados contextos históricos. Em relação à

contemporaneidade, diz ele que “nos dias de hoje – dado o peso relativo das diversas forças

sociais – há perigos muito reais dos quais devemos estar bastante conscientes” (p. 56).

Referindo-se ao que ele chama de predomínio da modernização conservadora na educação em

várias regiões do planeta, ou da educação à direita, tese desenvolvida em outra obra sua

(APPLE, 2003), o autor chama a atenção para os novos compromissos ideológicos das

políticas educacionais oficiais com os padrões, agora flexíveis, de acumulação do capital.

Como manifestação dessa empreitada, Apple fala de determinação de competências a

serem construídas por alunos, professores e escolas; de conhecimentos curriculares básicos

que vêm sendo testados por sistemas de avaliação estaduais e nacionais; de pressão por tornar

como fins da escola as necessidades do comércio e da indústria. Nesse contexto, o autor é

categórico ao afirmar que “o currículo nacional é um mecanismo de controle político do

conhecimento [...] [que] uma vez estabelecido, ele indubitavelmente se solidificará ao se ligar

a um sistema nacional maciço de avaliação” (idem, p. 71). Vale ainda salientar que, para

Apple, os reais beneficiários desse projeto de homogeneização curricular em nível nacional

são aqueles que defendem as abordagens orientadas pelo mercado.

Trazemos essas discussões para o início desta seção em função das características que

marcam as recentes políticas oficiais de currículo da EJA e que nos remontam às reflexões,

considerações e alertas de Apple. Ao dar continuidade a certas iniciativas que dizem respeito

também às políticas curriculares para essa modalidade, o governo Lula optou por manter, de

certa forma, a lógica que orienta a perspectiva mercadológica do projeto neoliberal de

educação. Tal fato, somado às ações implementadas já nesse governo, demonstra certas

contradições da política atual que precisam ser examinadas, mesmo que brevemente, para que

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220

possamos compreender o cenário político-filosófico em que se encontra a produção oficial de

referenciais curriculares para a EJA.

Primeiramente, ao manter como política de currículo a Proposta Curricular para a

Educação de Jovens e Adultos (PCEJA) e o Exame Nacional de Certificação das

Competências da Educação de Jovens e Adultos (ENCCEJA), elaborados no governo FHC, o

atual governo corrobora e toma para si seus pressupostos e indicações gerais, assumindo-os,

portanto, como elementos de sua política. A análise dos princípios gerais dessas ações já foi

desenvolvida no primeiro capítulo desta tese, tendo sido objeto também do segundo capítulo a

geografia veiculada pelo ENCCEJA, mas cabe aqui relembrar que faz parte de suas premissas

o estabelecimento de capacidades e competências acompanhado da instauração de uma

política de avaliação nacional da EJA, para a qual o ENCCEJA, mesmo não sendo obrigatório

para todos os sistemas de ensino, constitui-se em principal mecanismo. Tais ações, como

vemos, aproximam-se bastante da perspectiva mercadológica e homogeneizadora apontada

por Apple e por tantos outros autores já citados em páginas anteriores deste trabalho.

Contraditoriamente, no entanto, o governo lança, em 2006, a coleção Trabalhando

com a Educação de Jovens e Adultos, publicação composta por cinco cadernos temáticos que

abordam diferentes questões relacionadas ao trabalho pedagógico dos educadores na EJA. A

partir de situações concretas e exemplos familiares aos professores do primeiro segmento do

ensino fundamental, aos quais se dirige, a coleção adota, em parte, uma concepção que,

embora apresente algumas incoerências, se alinha aos preceitos da pedagogia crítica com mais

ênfase na perspectiva freireana.

No volume em que a coleção trata do processo de aprendizagem de alunos e

professores, seus elaboradores indicam a concepção democrática do conhecimento como base

para o trabalho pedagógico e utilizam como referencial conceitual para sustentar essa opção a

visão crítica sobre a produção do conhecimento. Ao afirmar, por exemplo, que o

conhecimento nasce da relação dos seres humanos entre si e com o mundo e que ele se

constrói nessa relação (BRASIL, 2006c), a coleção se aproxima da ideia de que “o homem só

conhece aquilo que é objeto de sua atividade”, conforme assegura Kuenzer (s/d) com base na

Ideologia alemã, de Marx e Engels (1998). Aparece também no material em questão a

concepção de que a transformação do mundo é o grande estímulo para a produção do

conhecimento, pois “se as coisas não estão do jeito que queremos, o estímulo para mudar

torna-se grande [acarretando] a necessidade de aprender novas coisas para enfrentar a situação

e mudar o mundo que não está nos satisfazendo” (BRASIL, op. cit., p. 24).

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221

A premissa de que “a existência de necessidades a serem satisfeitas desempenha papel

fundamental para que se produza conhecimento” (ibid., p. 24) também se encontra presente

nesse texto de orientação para professores, o que nos remete novamente a Kuenzer (s/d.), uma

vez que esta autora sustenta que “para mostrar sua verdade, o conhecimento tem que adquirir

corpo na própria realidade, sob a forma de atividade prática, e transformá-la” (p. 12), fato que,

por sua vez, coloca a práxis como fundamento do conhecimento. Nesse sentido, os autores da

coleção, mesmo sem citar uma vez sequer o conceito de práxis, o consideram ao afirmar, por

exemplo, que “a ação-reflexão que produz conhecimentos é capaz de mudar o Mundo e a nós

mesmos” (BRASIL, op. cit., p. 30) e que “para exercer qualquer ação que não seja apenas

reflexa é preciso estar sustentado por uma teoria” (p. 36).

Ainda no que se refere à questão do conhecimento e à seleção de conteúdos escolares

para a EJA, a coleção Trabalhando com a Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 2006b)

indica aos professores o levantamento de temas geradores como um dos possíveis critérios a

ser utilizado na definição do conteúdo programático. No entanto, os exemplos dos quais lança

mão para desenvolver o conceito de tema gerador produz certa confusão, levando a indicação

sugerida a algo mais próximo da idéia de eixos temáticos. Para o documento, tema gerador é

resultante da escolha feita pelo professor em função de algum problema que, em sua

concepção, aflige a localidade na qual se insere a escola. Já para Freire (1987), o tema gerador

se encontra no “universo temático” dos estudantes e, para selecioná-lo, é preciso investigá-lo,

o que pressupõe, na verdade, “investigar [...] o pensar dos homens referido à realidade, [isto é]

investigar seu atuar sobre a realidade, que é sua práxis” (p. 98). O tema gerador não é,

portanto, uma problemática selecionada pelo professor a partir apenas de seus pressupostos,

mas uma questão que resulta da inquietação dos alunos e que toma como base suas visões de

mundo.

Com a afirmação de que “os homens, mulheres, jovens, adultos ou idosos que buscam

a escola pertencem todos a uma mesma classe social: [isto é] são pessoas com baixo poder

aquisitivo, que consomem, de modo geral, apenas o básico à sua sobrevivência” (BRASIL,

2006a, p. 15), a coleção admite que são as frações mais destituídas de direitos da classe

trabalhadora que conformam o principal público da EJA. Contudo, em nenhum momento do

volume dedicado ao perfil desse alunado, embora apareça a afirmação anterior, a questão de

classe é aprofundada, tampouco a classe trabalhadora e suas características contemporâneas

são analisadas como forma de auxiliar o professor da EJA na compreensão da complexa

realidade vivida por seus alunos.

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222

Como se vê, o próprio documento é repleto de lacunas e incoerências. Usa referenciais

da pedagogia crítica e conceitos oriundos do materialismo histórico-dialético, lançando mão

inclusive de autores clássicos do pensamento crítico ocidental, como Karl Marx e Karel

Kosik, mas não os cita diretamente nem os relaciona ao conjunto de idéias que apresenta para

defender a concepção democrática de conhecimento; indica o trabalho com temas geradores,

mas não o conceitua conforme os princípios desenvolvidos por Paulo Freire; reconhece a

questão de classe como marca da escolarização de jovens e adultos, mas não assume a classe

trabalhadora como categoria central na composição do público ao qual a EJA se dirige. De

qualquer forma, as referências no campo crítico da teoria social demonstram uma visão mais

questionadora do texto em relação às abordagens orientadas pelo mercado, bem como às

visões homogeneizantes do currículo, principalmente aquelas que defendem que os sistemas

de ensino devem ser avaliados somente através da verificação dos conhecimentos escolares

adquiridos pelos alunos.

Nesse sentido, embora sejam evidentes as contradições presentes no documento, não

se pode deixar de perceber as incongruências existentes entre esse texto, que evoca o

pensamento pedagógico crítico, e a manutenção e instauração de outras iniciativas políticas

que condizem com outros pressupostos e intenções, como é o caso do ENCCEJA.

Tal situação nos remete ao hibridismo presente nas políticas de currículo, sobre o qual

nos fala Lopes (2006). A autora adota um modelo teórico de interpretação de políticas de

currículo que leva em conta as reinterpretações que acontecem no momento em que propostas

curriculares oficiais são produzidas e incorporam sentidos e significados originados tanto no

contexto de práticas locais quanto no contexto internacional de influência. Essas

reinterpretações produzem discursos híbridos, o que envolve a mistura de concepções em um

mesmo documento ou em diferentes ações políticas de um mesmo governo. Para Lopes:

[...] o hibridismo é caracterizado, sobretudo, pela negociação de sentidos nos diferentes momentos da produção de todos esses textos e discursos da reforma. Nessa negociação entram em jogo, particularmente, concepções de currículo e acordos a serem feitos entre os diferentes segmentos sociais, dentre eles as comunidades disciplinares. O híbrido não resolve as tensões e contradições entre os múltiplos textos e discursos, mas produz ambigüidades, zonas de escape dos sentidos (p. 40).

São essas ambigüidades, que chamamos de incongruências, de contradições, que

garantem a legitimidade de boa parte desses documentos perante um considerável número de

atores envolvidos na formulação de políticas educacionais (pesquisadores, professores,

dirigentes, alunos etc.), uma vez que são frutos de negociações e acordos tácitos. No caso das

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223

políticas de currículo da EJA, por exemplo, os discursos híbridos que as dominam no atual

governo podem ser resultado tanto da influência dos organismos internacionais, que vêm

insistindo na adoção de propostas baseadas no currículo por competências, como do

reconhecimento do legado que a educação popular deixou para os projetos político-

pedagógicos relacionados à alfabetização e escolarização de adultos. Se a manutenção do

ENCCEJA se coaduna com o primeiro tipo de influência, os textos da coleção Trabalhando

com a Educação de Jovens e Adultos, apesar de suas inconsistências internas, trazem

elementos bastante vinculados às concepções de conhecimento e de seleção de conteúdos que

marcam as experiências de educação popular desenvolvidas por movimentos sociais ou

mesmo por algumas redes oficiais de ensino.

Ainda segundo Lopes (ibid.), a disseminação desses discursos é realizada por

comunidades epistêmicas com capacidade de influência nas políticas públicas. Por serem

compostas por “grupos de especialistas que compartilham concepções, valores e regimes de

verdade comuns entre si e que operam nas políticas pela posição que ocupam frente ao

conhecimento, em relações de saber-poder” (p. 41), tais comunidades contribuem com os

discursos hegemônicos, porém hibridizados em muitos casos. Para a autora, o questionamento

a esses discursos deve passar pela investigação sobre como as comunidades epistêmicas,

sejam elas específicas do campo educacional, do ensino das disciplinas específicas ou mesmo

do campo da economia e da administração, os mantêm e os produzem, “sustentando

argumentos favoráveis a eles e fazendo com que eles circulem em diferentes contextos” (p.

49).

As políticas curriculares para a EJA, no entanto, não param por aí. Se consideramos o

Programa de Inclusão de Jovens, o ProJovem, como pertencente ao conjunto de políticas do

atual governo federal direcionadas à educação de jovens e adultos trabalhadores, conforme

defendemos no terceiro capítulo deste trabalho, sua proposta curricular e a coleção didática

que a acompanha podem também ser tomadas como parte da política de currículo atual para a

modalidade. Assim sendo, ampliam-se as ambigüidades, pois, também de acordo com a

análise que fizemos, tal programa se insere em perspectivas teórico-metodológicas advindas

dos discursos veiculados por organismos internacionais de cooperação multilateral,

principalmente no que diz respeito às ideias de qualificação para o trabalho e

empregabilidade, no campo da formação profissional, e de protagonismo juvenil, no campo

das políticas de juventude.

Já em relação à produção de materiais didáticos, duas iniciativas completam o

panorama em que se encontram hoje as ações curriculares direcionadas para a EJA: a

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224

implantação do Programa Nacional do Livro Didático para Alfabetização de Jovens e

Adultos (PNLA) e a elaboração dos Cadernos de EJA.

O PNLA foi criado, em abril de 2007, no âmbito do Programa Brasil Alfabetizado e,

segundo o Art. 2º da Portaria que lhe deu origem,105 “tem por objetivo atender alfabetizandos

e alfabetizadores oficialmente cadastrados no Ministério da Educação, com livros didáticos

adequados ao público da educação de jovens e adultos”. A Resolução n. 18, de 24 de abril de

2007106 considera que “a necessidade de promover ações de inclusão social, ampliando as

oportunidades educacionais para jovens e adultos com 15 anos ou mais que não tiveram

acesso ou permanência na educação básica”, é uma das justificativas para a “distribuição, a

título de doação, de obras didáticas às entidades parceiras, com vistas à alfabetização e à

escolarização” de jovens e adultos. Além disso, o texto da lei amplia a justificativa do

Programa ao considerar o livro didático um direito constitucional do educando, garantindo

também ao professor sua participação no processo de escolha em função do conhecimento que

este possui da realidade do aluno e da escola em que atua.

A execução do PNLA fica a cargo do FNDE, que elabora junto à SECAD/MEC o

edital de convocação para a inscrição de obras que devem passar por um processo de

avaliação conduzido pelo MEC, nos moldes do que já se faz com o PNLD e com o PNLEM.

Em 2008, as entidades parceiras, isto é, aquelas que mantêm parceria com o MEC na

execução das ações do Programa Brasil Alfabetizado (estados, Distrito Federal, municípios,

entidades da sociedade civil e instituições de ensino superior), puderam escolher e receber

livros didáticos elaborados pelo mercado editorial desde que obedecessem ao cadastramento

dos alfabetizandos, das turmas e dos coordenadores de turmas do Programa.

Vale dizer que essa ação política atende, de certa forma, antigas reivindicações

daqueles que sempre se envolveram com a alfabetização de jovens e adultos e nunca contaram

com livros ou materiais didáticos específicos. No entanto, ao abrir um novo campo para as

editoras, acostumadas com padrões escolares mais propensos à rigidez diretiva e não à

flexibilidadede curricular, corre-se o risco de se produzir livros que, embora atendam às

especificidades da EJA, contribuam para a homogeneização dos procedimentos teórico-

metodológicos. Nesse sentido, cabe à SECAD/MEC a adoção de critérios claros para a

105 BRASIL. Portaria Normativa n. 9, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa Nacional do Livro Didático para Alfabetização de Jovens e Adultos – PNLA. Ministério da Educação. Gabinete do Ministro. Brasília: MEC, 2007. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/portaria_pnla.pdf> Acesso em: 28 jun. 2008. 106 BRASIL. Resolução nº 18, de 24 de abril de 2007. Dispõe sobre o Programa Nacional do Livro Didático para Alfabetização de Jovens e Adultos – PNLA 2008. Ministério da Educação. Fundo Nacional para Desenvolvimento da Educação. Conselho Deliberativo. Brasília: MEC, 2007. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/resolucao_pnla_17_04_2007.pdf> Acesso em: 28 jun. 2008.

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225

avaliação desse material, o que se constitui em um necessário e amplo campo de pesquisas

educacionais daqui para frente.

Por fim, a Coleção Cadernos de EJA, objeto de investigação do presente trabalho, se

configura como uma das mais recentes ações curriculares no que tange à EJA. Publicada em

2007, como dito anteriormente, a coleção é resultado de uma parceria entre a SECAD/ MEC e

a Unitrabalho. Parte das características da coleção já foi apresentada no início deste capítulo,

cabendo agora uma breve análise das questões que envolvem a sua elaboração pela

Unitrabalho, uma vez que essa entidade possui particularidades que a aproximam de centrais

sindicais historicamente comprometidas com o interesse dos trabalhadores em uma

perspectiva contra-hegemônica.

A Unitrabalho é uma rede universitária nacional que agrega, atualmente, 70

universidades e instituições de ensino superior de todo o Brasil, sendo apenas uma do setor

privado. Criada em 1996, constitui-se na forma de fundação de direito privado e sem fins

lucrativos e tem como objetivo contribuir para o resgate da dívida social que as universidades

brasileiras têm com os trabalhadores. De acordo com Arquimedes Ciloni107 (SENADO

FEDERAL, 2007), essa é uma iniciativa das instituições de ensino superior e das centrais de

trabalhadores do país que visa a colocar a inteligência da universidade a serviço da melhoria

das condições de vida dos trabalhadores por meio de projetos de pesquisa, ensino e extensão.

Por ser uma rede interuniversitária nacional, seus programas estão estruturados de maneira a

atender projetos de diferentes áreas respeitando as peculiaridades de cada uma das regiões do

país. Vale lembrar que a organização possui sete seções regionais, cujas coordenações se

encontram a cargo de algum professor de uma das universidades que participa da rede. Na

regional Norte são oito instituições agregadas: todas as universidades federais e a

Universidade Estadual do Amazonas. Na regional Centro-Oeste, são sete instituições: também

universidades federais e uma estadual do Mato Grosso. No Nordeste, são vinte as instituições,

em sua imensa maioria instituições públicas do sistema federal. O estado de Minas Gerais, por

ser o estado com maior número de instituições federais no Brasil, tem uma regional que

congrega oito instituições. A regional Rio de Janeiro/Espírito Santo, outras oito, dentre as

quais a FIOCRUZ, a PUC do Rio de Janeiro, a UERJ, além das cinco universidades federais

ali existentes. A regional São Paulo, com sete universidades, e, por fim, a regional Sul, com

doze universidades, completam a rede interuniversitária (ibid.).

107 Arquimedes Ciloni é presidente da Unitrabalho.

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226

Atualmente, a fundação desenvolve programas nas áreas de economia solidária,

emprego e relações de trabalho, saúde do trabalhador, assim como trabalho e educação, sendo

este último o programa ao qual está vinculado o projeto de elaboração da Coleção Cadernos

de EJA. Tal programa voltado para a área de trabalho e educação nasce respaldado pelos

diferentes projetos desenvolvidos pela Unitrabalho na área de formação profissional, junto a

diferentes parceiros, dentre os quais a Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM),

filiada à CUT, na elaboração de uma pesquisa nacional visando um diagnóstico da formação

profissional do ramo metalúrgico, em 1999; e a Escola Sindical Sul, também ligada à CUT, na

formação de formadores para educação profissional e capacitação de conselheiros das

Comissões Estaduais e Municipais de Trabalho e Emprego, de 1997 a 1999, com a produção

de cadernos de apoio às atividades de formação (Trabalho e Educação num Mundo em

Mudanças; Educação e Sindicalismo; Manual dos Conselheiros das Comissões Estaduais e

Municipais de Trabalho e Emprego).

Como vemos, pelas características e pelo histórico das ações desenvolvidas pela

Unitrabalho, sua escolha para a elaboração dos Cadernos de EJA não deriva de inclinações e

adesões aos discursos oriundos do contexto hegemônico internacional, mas da relação de

algumas vertentes do atual governo com a luta histórica dos trabalhadores brasileiros, mesmo

que bastante questionada e criticada atualmente. Tal situação aumenta as contradições

verificadas nas políticas de currículo da EJA, pois, como visto, são diversas e antagônicas as

concepções que permeiam as propostas apresentadas pelo governo.

De qualquer forma, com o intuito de examinarmos com mais afinco as

intencionalidades a partir das quais foi elaborada essa proposta curricular que pretende apoiar

os professores brasileiros em seu trabalho com a EJA, apresentamos na próxima seção suas

concepções e premissas básicas que norteiam a seleção e organização dos conteúdos

escolares.

4.1.3 A proposta curricular dos Cadernos de EJA: flexibilidade e intertextualidade no

processo ensino-aprendizagem de jovens e adultos trabalhadores

Embora tenhamos apresentado, em linhas gerais, a estrutura da Coleção Cadernos de

EJA no início deste capítulo, vale aqui retomarmos essa exposição com o intuito de

procedermos à descrição mais detalhada da proposta como um todo. Ao fazer isso, esperamos

facilitar o entendimento das concepções e referenciais teórico-metodológicos utilizados, bem

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227

como contribuir para a compreensão da forma com que se organizam os conteúdos

disciplinares.

A coleção é composta por vinte e sete cadernos, dos quais treze são dirigidos para os

alunos, treze são para o uso do professor e um, o caderno metodológico, é voltado para

professores, coordenadores e direções das escolas. De acordo com as orientações

metodológicas da coleção (BRASIL, 2007a), os cadernos do aluno compreendem, na verdade,

um livro de textos a ser utilizado no desenvolvimento dos conhecimentos referentes às

disciplinas que compõem o quadro de componentes curriculares obrigatórios da educação

nacional. Esses textos são oriundos de diferentes gêneros literários e são voltados para alunos

do primeiro e do segundo segmentos do ensino fundamental. Já os cadernos do professor

trazem sugestões de atividades para as diferentes disciplinas sempre relacionadas a cada um

dos textos presentes nos cadernos do aluno. As atividades são apresentadas em forma de

planos de aula que contêm objetivos, introdução, descrição da atividade, tempo e recursos

indicados para a sua realização, bem como algumas sugestões de livros, sítios eletrônicos,

músicas e filmes para a consulta do professor. O caderno metodológico possui orientações

gerais da proposta direcionadas aos profissionais envolvidos com a EJA com vista a

esclarecer questões relativas à concepção que norteia o material, à organização dos temas, aos

possíveis usos e à articulação das atividades sugeridas com o mundo do trabalho.

É importante frisar que a coleção se apresenta como um material de apoio aos

professores e alunos em suas atividades diárias, não se constituindo, portanto, como livros

didáticos a serem utilizados a partir de uma organização pré-estabelecida de conteúdos. Com

isso, pretende-se estimular a construção da autonomia docente, bem como a cooperação e o

respeito às diversidades; além de “incentivar uma postura investigativa e criativa por parte do

educador, para que possa reconstruir o material a partir da sua própria prática; [e] promover a

integração dos vários campos do conhecimento entre si e com a temática do trabalho”

(BRASIL, 2007a, p. 13). Dessa forma, de acordo com os formuladores do caderno

metodológico:

A palavra-chave dessa coleção é flexibilidade. Ela dá liberdade ao professor para decidir o que quer ou não utilizar, em que ordem, com que finalidade, enfim, tornando o material uma verdadeira ferramenta de trabalho pedagógico. Essa flexibilidade traz vantagens para a organização do processo de ensino-aprendizagem, já que o professor, ao elaborar seu planejamento, pode inserir os textos e atividades de forma mais livre para enriquecer o dia-a-dia da sala de aula. (ibid., p. 6).

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228

Essa flexibilidade é garantida na medida em que não há uma seqüência

predeterminada de assuntos e temas, mas sim um conjunto de textos variados108 que podem

ser trabalhados a partir da determinação de um coletivo de professores ou mesmo de

professores isolados, seguindo então concepções e métodos que obedecem a uma lógica

própria e autônoma. Assim, os cadernos, os textos e as sugestões de atividades podem ser

utilizados integralmente ou em partes e na seqüência que melhor convier à equipe de

professores. Além disso, o material pode ser trabalhado tanto no primeiro quanto no segundo

segmento e em qualquer ano de escolaridade, cabendo também ao professor ou ao coletivo a

escolha dos temas, textos, conteúdos e das atividades de acordo com o nível e características

da turma. Esse último aspecto evidencia claramente o direcionamento da coleção para a EJA,

já que, em função da aproximação da faixa etária dos estudantes, uma diversidade maior de

temas pode ser abordada independente do segmento, diferenciando apenas o grau de

aprofundamento de cada uma deles de acordo com a disciplina.

De maneira geral, essa configuração dá ao material um caráter bastante inovador em

relação à maioria das coleções didáticas voltadas para a escolarização de crianças e

adolescentes. Ao exigir a autonomia do professor no que se refere à seleção e organização dos

conteúdos disciplinares, a proposta curricular dos Cadernos de EJA só pode ser plenamente

desenvolvida em realidades onde essa independência é possível e incentivada. Isso porque ela

requer dos professores uma liberdade de ação que nem sempre é possibilitada em função das

relações pouco democráticas encontradas no interior das escolas ou das redes de ensino. O

trabalho coletivo é outro aspecto a ser ressaltado, uma vez que a escolha dos textos e

atividades deve estar pautada na decisão da equipe pedagógica e em função do projeto

político-pedagógico desenvolvido pela unidade escolar. Além disso, fica claro também o

caráter de complemento ao trabalho pedagógico que essa coleção possui, uma vez que para a

abordagem mais aprofundada de determinados conteúdos disciplinares outras fontes devem

ser utilizadas.

Outra característica da coleção é o tratamento dos conteúdos disciplinares a partir de

temas determinados para cada caderno. Esses temas, por sua vez, mantêm relação como o

tema maior que norteia toda a coleção e articula as temáticas desenvolvidas pelos cadernos.

Segundo os elaboradores, a escolha do tema trabalho como o norteador de todo o material se

deve tanto por sua presença no cotidiano dos alunos, posto que boa parte deles é inserida de

108 Dentre os diversos gêneros literários, são encontrados na coleção: narrativas (contos/crônicas), poemas, letras de músicas, páginas da web, manuais de orientação, notícias de jornais e revistas, reportagens, histórias em quadrinhos, charges, receitas culinárias, leis e normas, literatura de cordel.

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229

alguma forma no mundo do trabalho, como por sua ausência enquanto conteúdo e

problemática para reflexão e debates nas salas de aula da EJA. Nesse sentido:

O tema trabalho constitui um dos mais importantes elementos de articulação dos conhecimentos científicos reunidos e sistematizados nos conteúdos escolares com os conhecimentos do cotidiano, resultantes da experiência de vida dos trabalhadores e trabalhadoras na sua luta constante pela subsistência, por melhores condições de vida e pela emancipação de todas as formas de opressão (BRASIL, 2007a, p. 5).

Quanto aos temas de cada caderno, os autores da proposta indicam que eles podem ser

concebidos tanto como temas transversais, seguindo a concepção e abordagem dos PCN no

sentido de que os temas podem perpassar todas as áreas do conhecimento, como enquanto

temas geradores, “uma vez que estão inseridos no universo cultural dos educandos e permitem

gerar debates que promovem uma leitura crítica da realidade ‘codificada’ nesses temas”

(ibid.). Cabe salientar aqui que a concepção de tema gerador é também nesse documento

entendida como algo dado a priori, pois, ao supor que os temas selecionados se encontram no

universo temático dos estudantes, já se toma, de antemão, a palavra do trabalhador. Voltamos

a afirmar que, no sentido freireano estrito, tema gerador é fruto da investigação sobre uma

determinada realidade local. As temáticas apresentadas pela coleção são, na verdade, mais

amplas e abrangentes, nas quais muitos temas geradores podem estar inseridos, mas,

definitivamente, não podem ser confundidas com os temas que podem gerar reflexões e ações

transformadoras em cada realidade local.

De qualquer modo, em função da flexibilidade em sua utilização, o material permite

que um processo de ensino-aprendizagem pautado no trabalho com temas geradores possa

lançar mão de seus textos e atividades sugeridas. Outras propostas também podem fazer uso

de seu conteúdo desenvolvendo os treze temas indicados como eixos articuladores dos

conhecimentos disciplinares, podendo ser trabalhados a partir de uma abordagem

problematizadora ou simplesmente como exemplos e ilustrações para a melhor compreensão

dos conteúdos pré-estabelecidos para cada disciplina.

Em relação à definição dos treze temas, a base utilizada foi, segundo as orientações

metodológicas, a análise de textos produzidos por movimentos sociais e por outros materiais

didáticos de EJA, bem como sugestões de especialistas e professores que atuam na

modalidade. É, portanto, construção coletiva daqueles que de alguma forma estiveram

envolvidos na elaboração do material.

Esse processo de elaboração teve como equipe central de produção um grupo

constituído de vinte e cinco professores de várias universidades brasileiras, que foi

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230

responsável pela seleção dos textos e pela confecção das atividades didáticas. Uma série de

oficinas de trabalho, no entanto, envolvendo desde representantes de órgãos governamentais,

organizações da sociedade civil e professores que trabalham com a EJA, foi realizada com o

intuito de colher considerações e sugestões, principalmente no que se refere à escolha dos

textos e à seleção dos temas de cada caderno. Vale destacar, dentre essas instâncias

consultivas, as oito oficinas regionais realizadas com professores em diferentes cidades do

país109 e, embora os autores não explicitem os critérios de participação nessas reuniões, eles

afirmam que esses encontros foram avaliados como positivos pelos participantes por

estabelecer um canal de diálogo com o professor, algo raro na produção de materiais

didáticos. Além disso, ainda segundo os autores, as oficinas foram fundamentais para

corroborar a concepção que orienta toda a coleção, desde a organização do caderno de textos

até a estrutura dos planos de aula presentes nos cadernos do professor.

E é justamente o diálogo um dos princípios pelos quais a coleção foi concebida.

Orientando a escolha dos textos e a elaboração das atividades, o diálogo como princípio

pedagógico perpassa também a relação entre os professores das diferentes áreas e níveis, a

cooperação entre os alunos e a interação destes com o conhecimento sistematizado. Esse

princípio encontra-se presente ainda na concepção de material didático adotada pela proposta,

uma vez que ele é visto como “um elemento complementar numa relação social que se

estabelece entre professor e alunos” (BRASIL, 2007a, p. 14). Até porque, como a proposta

pedagógica rompe com o paradigma da linearidade no ensino dos conteúdos e “os

componentes curriculares se interpenetram sem fronteiras estanques” (p. 15), o papel de

mediação do professor se torna fundamental para o processo de aquisição de sentido do

material por parte dos alunos.

O trabalho como princípio educativo também marca a proposta curricular da coleção.

Visto como atividade essencial para o ser humano e meio pelo qual o ser humano se relaciona

com a natureza, o trabalho também é encarado como uma contradição na sociedade moderna,

pois, da forma com que ele é estruturado nesse modelo de sociedade, ele é ao mesmo tempo

fonte de enriquecimento para uns e pobreza e sofrimento para a maioria. Em função disso,

vale destacar, “os textos e atividades sugerem a educadores e educandos elementos para

compreender a sociedade atual de forma crítica, compreendendo as causas das desigualdades

e injustiças, e, ao mesmo tempo, imaginando a possibilidade de construir novas relações

humanas no trabalho e na vida” (BRASIL, 2007a, p. 15).

109 As cidades são: Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Goiânia (GO), Guarulhos (SP), Salvador (BA) e Santo André (SP).

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231

Tendo, portanto, a emancipação dos trabalhadores como horizonte, a coleção se

fundamenta ainda em alguns outros princípios, dentre os quais se destacam a sustentablidade,

no sentido de contribuir para o estabelecimento de uma nova forma de trabalho na qual se

supere a relação predatória dos recursos naturais e se garanta a sustentabilidade da existência

humana e da vida como um todo; a solidariedade, possibilitadora da autonomia e da

cooperação, além do combate ao preconceito e do acesso a outras formas de relações de

trabalho, como os empreendimentos econômicos solidários; a criticidade, vista como a busca

pelo entendimento das causas dos problemas, como a não conformação “com as explicações

simplistas e superficiais (quando não falsas) do senso comum e dos grandes veículos da

mídia” (ibid., p. 17); e, por fim, a criatividade, pois, para os autores da proposta, além de o

ato criativo ser essencial para a realização do/no trabalho, é o seu desenvolvimento que

provoca a percepção de que todo o produto da atividade humana pode ser transformado, seja

ele um texto ou um sistema político e econômico.

Outra marca bastante evidente na proposta curricular da coleção é o questionamento à

organização compartimentada das disciplinas, dificultadora da percepção de unidade das

coisas e obstáculo para se alcançar a integração dos conhecimentos veiculados pela escola.

Como forma de superação dessa visão de mundo, a proposta sugere a interdisciplinaridade

como um novo modo de institucionalizar a produção do conhecimento nas escolas, nos

currículos e nos espaços da pesquisa. Contudo, tal consideração não implica em abandono das

disciplinas escolares como tecnologia de organização do currículo escolar, uma vez que, de

acordo com Frigotto (2004), “se o processo de conhecimento nos impõe a delimitação de

determinado problema, isto não significa que tenhamos que abandonar as múltiplas

determinações que o constituem [pois] mesmo delimitado, um fato teima em não perder o

tecido da totalidade de que faz parte indissociável” (p. 27).

Porém, os desafios que se colocam para o desenvolvimento do processo

interdisciplinar envolvem, segundo as orientações metodológicas da coleção, uma maneira de

articular o trabalho dos professores das diferentes disciplinas no cotidiano das unidades

escolares. Concordando com essa evidente dificuldade, tomamos mais uma vez as reflexões

de Frigotto (ibid.) para ampliar essa questão e dizer que “o limite mais sério, para a prática do

trabalho interdisciplinar, situa-se na dominância de uma formação fragmentária, positivista, e

metafísica do educador e de outra nas condições de trabalho (divisão e organização) a que está

submetido” (p. 47). Esse viés de formação, segundo Frigotto, é responsável também por situar

o desafio do trabalho interdisciplinar no campo dos métodos e técnicas de transmissão dos

conteúdos e não no processo de produção do conhecimento. Ou seja, nessa perspectiva, a

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232

interdisciplinaridade, deslocada das reflexões que envolvem a natureza do conhecimento,

acaba por ser reduzida apenas à discussão sobre quais as melhores técnicas para torná-la

realidade no trabalho pedagógico.

Nesse sentido, os Cadernos de EJA correm o risco de reproduzir essa visão, uma vez

que consideram o texto – não só o escrito, mas também filmes, músicas, propagandas e outros

gêneros textuais disponíveis nos cadernos do aluno – como o “ponto privilegiado para o

encontro entre as diversas disciplinas” (BRASIL, 2007a, p. 30). Sua interpretação leva em

conta os diferentes olhares que cada disciplina possibilita sobre o mesmo objeto e considera

que “o ponto de articulação entre esses olhares é o resultado da interdisciplinaridade, o

elemento da unidade” (p. 31). O caminho para a construção dessa unidade é, portanto, o

ensino da leitura, que envolve construção e desconstrução de textos, cria intertextos e exige de

professores e alunos um processo efetivo de produção de sentidos. A intertextualidade, dessa

forma, atua como eixo central que conduz não só o diálogo entre os textos, mas também a

possibilidade de formação do espírito crítico em estudantes e professores. Essa perspectiva do

trabalho interdisciplinar por meio do exercício da leitura fica bastante clara no seguinte trecho

do caderno metodológico:

Uma simples olhadela nos “Cadernos do Aluno” permite constatar que o plano intertextual é a tônica. Ao tratar do mesmo tema em todos eles, as citações de outros textos são inevitáveis e muito positivas. Como encontramos, nas salas de EJA, alunos com diversos graus de capacidade leitora, trabalhar a leitura é função do professor que, quando atua como mediador, incentiva a sala a manifestar suas impressões sobre o texto e, assim, cria um clima amistoso em que o conhecimento de mundo de cada um se transforma em saber partilhado para todos (ibid., p. 22).

Juntos novamente com Frigotto (2004), alertamos para o perigo da redução da questão

interdisciplinar ao plano simplesmente metodológico. O autor chama a atenção para a

necessidade da evidência do conflito, do levantamento e análise das diferentes concepções

que estão em jogo quando se fala em trabalho interdisciplinar, pois, sem isso, sem ter claros

os objetivos e intencionalidades de cada um dos envolvidos, é forte a tendência ao

artificialismo e são quase certas as frustrações e a ampliação das dificuldades. Suas palavras

são contundentes:

Se esta é uma direção adequada, fica claro que a condição prévia para o trabalho interdisciplinar, tanto no nível da pesquisa como do trabalho pedagógico, é de que as concepções de realidade, conhecimento e os pressupostos e categorias de análise sejam criticamente explicitados. O convívio democrático e plural necessário em qualquer espaço humano, sobremaneira desejável nas instituições de pesquisa e educacionais, não implica na junção artificial, burocrática e falsa de pesquisadores

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233

ou docentes que objetivamente se situam em concepções teóricas e forçosamente ideológica e politicamente diversas. A diluição forçada do conflito e da diversidade não ajuda ao avanço do conhecimento e nem à prática democrática (ibid., p. 45).

De qualquer modo, ainda que reproduza algo recorrente em muitas propostas

curriculares, qual seja a ausência do estímulo para a emersão dos conflitos, a proposta da

coleção indica caminhos importantes para a superação da fragmentação disciplinar que,

mesmo pautados em questões técnicas e metodológicas, contribuem para possibilidades

efetivas de ação pedagógica, como é o caso da intertextualidade. Fica aqui, entretanto, o

reforço à necessidade de discussão e aprofundamento de reflexões sobre o caráter do que é

uno (o inter) e do que é múltiplo (o disciplinar).

Coerente com essa perspectiva, isto é, por não deixar de considerar a especificidade e a

identidade de cada disciplina escolar, o caderno metodológico da coleção reserva um espaço

para a apresentação das abordagens e concepções que norteiam cada área do conhecimento na

elaboração das atividades didáticas. Artes, Ciências, Educação Física, Espanhol, Geografia,

História, Inglês, Matemática e Português são as disciplinas escolares que compõem o quadro

de componentes curriculares da proposta. Além dessas, a coleção ainda inclui nesse quadro

duas áreas do conhecimento acadêmico que se constituem em disciplinas do currículo do

ensino superior em alguns cursos de graduação ou mesmo de pós-graduação: educação e

trabalho e economia solidária. Os autores da proposta justificam essa inclusão revelando que

A intenção da equipe ao incorporar essas áreas ao lado das disciplinas tradicionalmente abordadas no ensino fundamental foi, por um lado, desafiar o professor para um trabalho transdisciplinar, que rompesse de modo mais ousado com o currículo tradicional e, por outro lado, trazer conhecimentos acumulados e debates do mundo acadêmico diretamente para os trabalhadores(as) e professores(as) que irão usar a coleção (BRASIL, 2007a, p. 74).

A inclusão da área educação e trabalho deve-se, de acordo com os autores, à profunda

crítica que os pesquisadores desse campo têm elaborado às condições em que o trabalhador

vende sua força de trabalho no âmbito do sistema econômico capitalista. Já a economia

solidária é justificada pela sua emergência e expansão no mundo do trabalho, bem como para

a sinalização que ela traz “para a possibilidade de novas relações de trabalho e para uma

possível reconstrução das relações econômicas em novas bases” (ibid., p. 75).

Enfim, vemos que, em linhas gerais, a proposta curricular da Coleção Cadernos de

EJA, ainda que apresente algumas lacunas e ambigüidades, traz como principais referenciais

político-filosóficos alguns elementos do pensamento pedagógico crítico, com destaque para a

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234

indicação do trabalho e do diálogo como princípios educativos. Toda sua estrutura

organizacional baseia-se na flexibilidade das ações pedagógicas e carrega como pressuposto a

liberdade de escolha dos professores em relação à melhor forma de utilização dos textos e

atividades sugeridas. Todavia, a proposta é bem clara quando aposta teórica e

metodologicamente na intertextualidade como meio para se alcançar a criticidade e a

criatividade dos educandos, bem como a interdisciplinaridade como ação educativa.

Desse modo, constatamos ser essa uma proposta inovadora em termos de organização

do conhecimento escolar em materiais didáticos, progressista em seus princípios e

incentivadora do trabalho coletivo, reflexivo e autônomo dos professores. No entanto, como

forma de verificar a aplicação desses princípios no desenvolvimento dos conteúdos escolares,

nos resta o exame mais detido das atividades indicadas para as disciplinas, o que é feito

tomando-se como foco aquelas que são vinculadas ao ensino de geografia.

4.2 O QUE DE GEOGRAFIA TEM NOS CADERNOS DE EJA?

Em função dos objetivos desta tese, voltamo-nos agora para a forma com que a

geografia é concebida no âmbito da coleção. Assim, explicitamos o que se entende por essa

disciplina, bem como os pressupostos que explicam o espírito e as opções que conduzem as

atividades propostas para o desenvolvimento do conteúdo geográfico.

No que se refere ao campo conceitual, o documento aponta os conceitos de espaço

geográfico, paisagem e natureza como basilares para a abordagem proposta. Concebendo o

espaço geográfico como espaço social mediado pelo trabalho humano, a coleção o apresenta

como fio condutor que norteia a elaboração das atividades didáticas. Para tanto, lança mão da

observação e descrição de elementos da paisagem, sob a forma de textos ou imagens, como

ponto de partida para o tratamento dos conhecimentos geográficos selecionados. A natureza,

concebida como possuidora de dinâmica própria, é reconhecida como objeto de preocupação

da geografia na medida em que sua apropriação pela sociedade humana ao longo do tempo a

transformou em mercadoria no âmbito do atual modelo de sociedade. Com isso, os Cadernos

de EJA consideram que “a compreensão de que vivemos numa sociedade historicamente

determinada, marcada pela exploração e desigualdade e o arranjo territorial resultantes desta

relação da sociedade com a natureza, parece ser um caminho que permite ao aluno o exercício

da reflexão em geografia” (BRASIL, 2007a, p. 39).

Percebe-se, portanto, que, abordada a partir dessas premissas, a geografia apresenta-se

sob a égide da vertente crítica, posto que é claramente tratada como uma ciência social que

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235

mantém estreita relação com a dinâmica da natureza para que possam ser compreendidos os

elementos e os processos configuradores do citado arranjo territorial. Nota-se, contudo, a

ausência dos conceitos de região e lugar, bem como a referência sobre a forma com que é

tratada a questão das escalas geográficas, isto é, a maneira com que os autores da coleção dão

conta dos recortes espaciais de análise. Tal indicativo torna-se relevante principalmente por se

tratar de uma proposta que não se alinha à clássica organização dos conteúdos geográficos

presente nos livros didáticos, em geral baseada na classificação e identificação de regiões do

país e do mundo. O aprofundamento dessa questão é deixado para a análise dos tópicos

reservados para a disciplina nos cadernos do professor, uma vez que só a partir deles é

possível encontrar respostas para as lacunas deixadas nessa apresentação inicial.

A maneira com que os conteúdos são tratados metodologicamente é também

explicitada nessa introdução à abordagem geográfica da coleção. A preocupação em articular

o cotidiano dos alunos à reflexão geográfica contida nos cadernos é ressaltada, bem como o

estímulo ao debate e a “busca do conhecimento amplo, consciente, crítico e transformador da

realidade que nos cerca” (BRASIL, 2007a, p. 39).

Cabe ressaltar que as considerações gerais sobre o tratamento dado à disciplina não

esclarecem os critérios e elementos utilizados para a seleção e organização dos conteúdos

geográficos para a escolarização de jovens e adultos trabalhadores. O que baliza a geografia

da/para a EJA não foi explicitado. Tampouco aparecem considerações sobre em que essa

geografia se diferencia daquela proposta comumente para o ensino regular de crianças e

adolescentes. Que assuntos são introduzidos? Quais são excluídos? De que forma os

conteúdos geográficos são articulados às temáticas indicadas para cada caderno? Todas essas

indagações ficam no ar nesse momento, somente podendo ser respondidas a partir do exame

mais detalhado do material.

Em função da grande quantidade de temas e subtemas que compõem a coleção,

conforme pode ser constatado no índice de atividades direcionadas para o desenvolvimento do

conteúdo geográfico em todos os treze cadernos da coleção (Anexo 7), fomos obrigados a

selecionar apenas quatro deles para a análise mais detida da educação geográfica presente na

proposta. Os critérios de escolha de três cadernos pautam-se na aproximação dos temas

desenvolvidos em cada um deles com a perspectiva geográfica. Assim, foram selecionados os

cadernos Globalização e Trabalho, Meio Ambiente e Trabalho e Trabalho no Campo. A

escolha do quarto caderno, Emprego e Trabalho, teve como critério de seleção a aproximação

do tema com o mundo do trabalho. Dessa forma, vislumbramos a possibilidade de examinar a

forma encontrada pelos autores da proposta para o tratamento do conhecimento geográfico e

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236

sua articulação com o mundo do trabalho, algo tão próximo do cotidiano vivido pelos alunos

da EJA e historicamente não muito presente em propostas curriculares, livros e materiais

didáticos de geografia.

As atividades didáticas propostas nos cadernos selecionados são a matéria-prima de

nossa investigação. Na proposta da coleção, a maior parte delas é indicada tanto para o

primeiro quanto para o segundo segmento; analisamos, porém, apenas aquelas direcionadas

para o segundo segmento, foco desta pesquisa, mesmo que estejam também apontadas para os

anos iniciais do ensino fundamental. Por fim, cabe salientar que, em função da característica

inovadora da coleção, que não adota uma seqüência predeterminada de conteúdos, os temas

da geografia são examinados conforme vão aparecendo nos cadernos do professor, ordem

estabelecida a partir da seqüência de textos para análise presentes nos cadernos do aluno. Com

esse procedimento, acabamos por relacionar e aglutinar os conteúdos geográficos a alguns

subtemas extraídos dos temas que articulam o conteúdo de cada caderno110.

4.2.1 O caderno Emprego e Trabalho e a procura pela abordagem geográfica

Primeiramente, vale a pena chamar a atenção para o fato de que o próprio título do

caderno já inspira curiosidade, uma vez que emprego e trabalho são dois termos que

costumam ser tratados como sinônimos tanto no senso comum como em algumas

interpretações mesmo acadêmicas. Ao separá-los como conceitos e uni-los em uma mesma

temática, os autores da coleção evidenciam uma concepção que rompe com essa visão e

aponta na direção de conceber o trabalho em seu sentido ontológico, isto é, presente na

composição do homem como ser social e constituído de diferentes formas conforme o

contexto histórico. A curiosidade vem então no sentido de verificarmos como os autores

desenvolvem essa concepção e de que forma ela é apropriada pelo conhecimento geográfico,

em geral pouco propenso a essa questão em sua vertente escolar.

De início, a leitura das atividades indicadas para a área de geografia no caderno

Emprego e Trabalho nos leva a três eixos principais de análise. O primeiro diz respeito à

questão do próprio significado de geografia, isto é, as atividades sugeridas suscitam a reflexão

sobre o que se entende pelo objeto da disciplina geografia, seu estatuto e sua contribuição

para a construção do conhecimento escolar. O segundo eixo diz respeito à discussão da

relação sociedade-natureza no âmbito da geografia e o último aborda a vida do trabalhador na

110 Ver quadro dos subtemas da coleção no Anexo 8.

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237

cidade. Todos esses eixos, obviamente, têm como referência e ponto de partida a temática do

trabalho humano no seu sentido histórico de ocupação laboral na sociedade capitalista atual.

Para facilitar a compreensão das atividades didáticas e sua relação com os eixos de

análise mencionados, apresentamos um quadro que mostra os textos dos cadernos do aluno

aos quais as atividades estão vinculadas, bem como os assuntos por elas abordados e o

segmento do ensino fundamental ao qual elas se dirigem. Vale lembrar que nem todos os

textos têm atividades didáticas sugeridas para todas as disciplinas. Nesse volume dedicado ao

tema Emprego e Trabalho, nove textos tiveram atividades vinculadas à geografia, sendo duas

voltadas para o primeiro segmento, cinco voltadas para o segundo e duas para ambos. Aqui,

expomos e analisamos apenas aquelas em que o segundo segmento é contemplado. A ordem

de aparição das atividades não segue a encontrada no caderno do professor, pois

privilegiamos o agrupamento que dá destaque aos eixos identificados. A partir desse quadro

procedemos ao exame de cada um dos eixos e suas implicações para a geografia que se

veicula através das páginas da coleção.

Quadro 1: ATIVIDADES DIDÁTICAS DE GEOGRAFIA DO CADERNO EMPREGO E TRABALHO

TEXTO ATIVIDADE SEGMENTO Cântico da rotina Viver para trabalhar ou trabalhar para viver? II A grande data Dia do trabalho ou do trabalhador? I e II O homem que inventou a roda A dor do desemprego II O camelô Trabalho informal I e II A economia vai bem, mas o trabalho... O trabalho vai mal?... Qual trabalho? II A cigarra e a formiga Cigarras, formigas trabalho, natureza e arte II De dar dó O operário e os lugares II Fonte: Coleção Cadernos de EJA (2007c).

As cinco primeiras atividades do quadro demonstram um problema que acompanha a

geografia escolar desde a sua implantação nos sistemas de ensino e na sua constituição

enquanto ciência: o seu objeto de estudo. Nessas atividades não está clara a contribuição da

disciplina para a compreensão da temática abordada. Ainda que no caderno metodológico da

coleção, o espaço geográfico tenha sido apontado como “o fio condutor que norteia a

confecção das atividades” (BRASIL, 2007a, p. 39), não notamos este conceito nas ações

sugeridas, fazendo com que esse grupo de atividades não condiga com o expresso nas

orientações curriculares da coleção. Para melhor desenvolvimento dessa análise, descrevemos

cada uma das atividades, já identificando como, a nosso ver, o conhecimento geográfico

poderia contribuir para o assunto suscitado pelo texto, e, em seguida, comentamos a

problemática nelas embutida.

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238

A atividade intitulada Viver para trabalhar ou trabalhar para viver? parte do texto

chamado Cântico da rotina (Anexo 9), que trata basicamente dos direitos dos trabalhadores

relacionados à vida cotidiana, enfatizando-se o lado humano do trabalho, bem como a

necessidade de se repensar a relação entre prazer e trabalho. Assim, o objetivo proposto para a

atividade indica que se deve levar o estudante a “perceber que o trabalho é uma atividade vital

para o homem e o diferencia dos outros animais, devendo ser motivo de satisfação e dando

significado à sua existência” (BRASIL, 2007c, p. 19). No texto introdutório da atividade, os

autores esclarecem a temática abordada ao afirmarem que “raramente o trabalho é associado

ao prazer, ao gosto do fazer e à criatividade, uma vez que a sua remuneração é sempre apenas

uma parcela da riqueza que foi produzida e, portanto, para uma grande maioria da população,

insuficiente à satisfação de suas necessidades básicas” (ibid., p. 19). A atividade sugerida

estimula o aluno a associar os direitos veiculados no texto ao seu cotidiano e indica que o

professor discuta coletivamente com os alunos os seguintes pontos: corpo e máquina, corpo e

vida, trabalho e prazer, trabalho e aprimoramento da vida, trabalho e significado de nossa

existência. Como resultado, espera-se que o estudante reflita “sobre seu próprio cotidiano de

trabalho e sobre o papel do trabalho na formação de sua individualidade” e compreenda “o

significado e a função da máquina no contexto da produção das mercadorias, além da relação

dos homens com ela” (ibid., p. 19).

Como se vê, a pergunta sobre o que de geografia aparece nessa atividade aponta para

uma resposta negativa, pois em nenhum momento conceitos geográficos são abordados. A

questão do cotidiano dos trabalhadores, problemática central da atividade, poderia ser

analisada sob o viés de sua espacialidade, ou seja, evidenciar o espaço vivido e relacioná-lo

aos direitos poderia trazer à baila assuntos como o direito à moradia, ao transporte público

mais eficiente, a áreas de lazer nas periferias e favelas das grandes e médias cidades, enfim, o

direito à cidade. Além disso, como há menção ao papel da máquina no trabalho humano, a

relação entre produção de mercadorias, máquina e produção do espaço geográfico poderia ser

muito bem explorada.

A atividade Dia do trabalhador ou do trabalho? aborda uma questão de extrema

importância para a superação de determinadas interpretações do senso comum: o real

significado das comemorações do dia 1º de maio. O texto em prosa explica a origem histórica

da data e a atividade traz como objetivo a possibilidade de o aluno refletir “sobre a forma

como se dá a conquista de direitos trabalhistas, bem como a reação à mobilização e luta pelos

trabalhadores, seja em países desenvolvidos ou não” (ibid., p. 27). A introdução chama a

atenção para a redução da jornada de trabalho como a principal pauta de reivindicações das

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manifestações que originaram a escolha da data e conclui afirmando que “a História nos

mostra que a conquista de direitos e condições de trabalho hoje existentes não se deram sem

luta” (ibid., p. 27). Mais uma vez, a atividade propõe a relação do tema com as experiências

de vida dos alunos para, a partir de seus relatos, aprofundar a discussão sobre as conquistas

trabalhistas, seu processo histórico, bem como a situação atual da organização dos

trabalhadores, destacando os problemas e dificuldades que os sindicatos vêm enfrentando.

Associada aos sub-temas direito e luta dos trabalhadores, previstos para esse caderno,

a atividade enfatiza o papel dos sindicatos no Brasil e no mundo. Novamente, a contribuição

geográfica não está clara, ficando nas mãos do professor a possibilidade ou não de trazer a

interpretação socioespacial para o fenômeno estudado. Dentre outras possibilidades,

vislumbramos mais uma vez o espaço urbano, dessa vez destacando o papel da cidade como

campo de lutas. Entendendo, como afirma Carlos (2003), que o espaço é produzido também

em função das condições de reprodução da vida humana e não apenas em função das

condições de reprodução do capital, a cidade pode ser vista como lugar de confrontos,

encontros e desencontros, isto é, “ela é sem dúvida o lugar onde as lutas se manifestam em

toda sua plenitude ganhando visibilidade” (ibid., p. 85). Trazer essa análise às classes de EJA

poderia contribuir para o reconhecimento dessa dimensão da cidade, já experimentada por

muitos dos estudantes, e para a melhor compreensão das lutas políticas, já que os usos sociais

do espaço urbano, principalmente quando se fala em manifestações, lutas e confrontos,

refletem e condicionam ao mesmo tempo a organização política da sociedade.

O texto que dá origem à atividade chamada A dor do desemprego é uma crônica

jornalística que retrata as conseqüências individuais e sociais do desemprego. Fala de um

suposto executivo recém-demitido de uma fábrica de automóveis e a crise que se instaura em

sua vida a ponto de, sofrendo de amnésia progressiva, retornar a condições primitivas de vida

e refugiar-se em um ambiente descrito como natural e distante da “civilização”. A partir daí, o

homem sobrevive instintivamente até que, feliz, redescobre a roda e os mecanismos que lhe

são necessários para funcionar. O texto termina dizendo que esse homem, ao reinventar o

automóvel a partir da descoberta da roda, já imaginava sua própria fábrica e pensava sobre

quem ele demitiria. Abordando os efeitos do desemprego na saúde física e mental do

trabalhador e na posição dos dirigentes das empresas, que são pressionados a reduzir custos e

administrar para o lucro, a atividade proposta parte do princípio de que “a premissa do lucro

se torna o objetivo maior do funcionamento das empresas, antes mesmo que as necessidades

humanas por trabalho e renda” (BRASIL, 2007c, p. 36).

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240

Preocupada em debater e aprofundar os impactos individuais e sociais do desemprego,

a divisão social do trabalho, as classes sociais e o papel dos dirigentes não proprietários do

capital, a atividade, também pautando-se em relações com a experiência de vida, espera como

resultado a assimilação por parte dos alunos da ideia de que as funções representadas por cada

um na sociedade capitalista não depende de vontades individuais e sim de sua posição na

divisão social do trabalho. Assim, mais uma vez, a abordagem geográfica é deixada de lado,

justamente quando a crônica utilizada possibilitava o tratamento de temas como a relação

homem-natureza, os recursos naturais e a sobrevivência humana, a produção do espaço a

partir das necessidades humanas e sociais etc. Sem dúvida, vale o registro da pertinência e da

criatividade com que o tema foi abordado, o que se coloca, porém, é que a procura pelo olhar

geográfico sobre ele não encontra evidências.

O trabalho informal é o conteúdo e o título da atividade que desenvolve o texto de

número 23 do caderno do aluno, intitulado O Camelô. Essa atividade pretende discutir as

características do trabalho informal e as dificuldades daqueles que se encontram nessa

situação. Um dos itens que compõem a atividade sugere que o professor levante e analise com

os alunos exemplos de trabalho informal encontrados no bairro em que moram, podendo

possibilitar uma boa oportunidade de se transversalizar escalas de análise ao associar decisões

tomadas em lugares distantes com a composição da paisagem de sua localidade. No entanto, o

que vemos é o destaque dado à vida do trabalhador informal e sua relação com o Estado

através da repressão policial à sua ocupação. Uma outra possibilidade de se pensar

geograficamente a questão seria examinar a localização dos vendedores de rua nas grandes e

médias cidades, o que se constituiria em um bom motivo para se estudar a configuração do

espaço urbano no que se refere à sua divisão em setores funcionais e o reconhecimentos dos

centros e sub-centros como locais de concentração de atividades comerciais e de serviços e

consequentemente de pessoas. Tal conteúdo poderia promover ainda um bom aprofundamento

sobre os usos e apropriações do espaço urbano diante da crise do trabalho formal no Brasil e

no mundo.

Extraído de um artigo, o texto A economia vai bem, mas o trabalho... é ponto de

partida para a atividade denominada O trabalho vai mal?... Qual trabalho?. O texto traz em

seu bojo os conceitos de economia e de trabalho e a questão da concentração de renda, o que

contribui para que o objetivo a ser alcançado pela atividade seja “perceber as relações entre

trabalho e economia, considerando os diferentes interesses dos grupos e classes sociais”

(BRASIL, 2007c, p. 85). A proposta estimula a interpretação do texto e o levantamento das

opiniões dos alunos sobre a temática, além de propiciar a discussão sobre o caráter histórico

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do trabalho ao pedir aos alunos uma pesquisa sobre as diferentes formas pelas quais,

historicamente, os seres humanos buscam satisfazer suas necessidades. Dessa forma, marca

bem a forma atual de trabalho, na qual “os sistemas econômicos são organizados de maneira a

beneficiar alguns grupos e classes sociais em detrimento de outras” (ibid.), além de sugerir

ainda ao professor uma ação educativa interdisciplinar com a história.

Pertinente e essencial para a ampliação da visão de mundo do estudante da EJA, a

atividade relaciona a geografia à economia e à história, mas a vê, nesse caso, como um

conjunto de dados, como PIBs e taxas de desemprego. Apenas nas dicas do professor, seção

nem sempre encontrada em outras atividades, os autores se aproximam de uma possível

abordagem geográfica ao recomendar que o professor pesquise sobre a organização da

produção em uma comunidade quilombola ou em uma aldeia indígena. Mesmo assim, a

preocupação manifestada se refere à importância de se ver outras maneiras de trabalhar e de

fazer economia e não na organização do espaço produzido a partir dessas diferenças.

Como já anunciado anteriormente, a análise desse grupo de atividades revela uma

geografia afastada do seu objeto, isto é, uma geografia escolar que não se compromete em

interpretar a sociedade a partir do espaço que ela ocupa, transforma e produz. O problema da

definição de seu objeto remonta, na verdade, à própria constituição da geografia tanto como

ciência quanto como disciplina escolar. Negligenciada por boa parte dos geógrafos do século

XIX e da primeira metade do século XX, essa definição, ou melhor, essa indefinição é,

segundo Santos (1990), uma das causas de seu atraso no campo teórico-metodológico. A

preocupação em definir a disciplina em si e não seu objeto acarretou em uma infinidade de

teses sobre o que seria a geografia, deixando-se de lado o foco no espaço, este sim seu objeto

e merecedor de maior atenção. Tal fato pode ter provocado a extensão da geografia a

infindáveis esferas de ação, tal qual, ainda de acordo com Santos, Durkheim alertava em

relação à mesma problemática na sociologia.

A recontextualização desse problema para o contexto escolar faz com que até hoje o

objeto da disciplina geografia se mantenha confuso e escorregadio para professores, alunos e,

principalmente, para aqueles formados em outras ciências sociais, sempre desconfiados em

relação ao real foco de análise da abordagem geográfica. É válido ressaltar o quanto a

docência dessa disciplina por parte de historiadores, sociólogos, antropólogos e filósofos pode

ter influenciado no agravamento dessa situação, pois se a dúvida perpassa as mentes daqueles

acostumados às especulações no âmbito da própria geografia, que dirá o que ocorre com os

professores para quem essas discussões não fizeram parte de sua formação acadêmica.

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242

Poderíamos supor que o que moveu as intenções dos autores da Coleção Cadernos de

EJA tivesse sido a inclinação pelo trabalho interdisciplinar em busca da totalidade. Ainda

assim, diríamos que esta só é possível a partir da contribuição clara de cada olhar específico,

caso contrário, somos conduzidos “à construção teórica de uma totalidade cega e confusa,

incapaz de permitir uma definição correta de suas partes, e isso agravaria, ainda mais, o

problema de sua própria definição como realidade total” (SANTOS, 1990, p. 111). No caso da

geografia, é preciso reconhecer o espaço como seu objeto e suas categorias fundamentais para

que se escape de sua interpretação como campo dos “conhecimentos gerais” e das

“atualidades”, este último muito comum no currículo de alguns colégios e cursos pré-

vestibulares. Tomando nossas as palavras de Santos, afirmamos que, “em realidade, para ter

sucesso é, antes de tudo, preciso partir do próprio objeto de nossa disciplina, o espaço, tal

como ele se apresenta, como um produto histórico, e não das disciplinas julgadas capazes de

apresentar elementos para sua adequada interpretação” (ibid., p. 111).

Voltamo-nos agora para as outras duas atividades indicadas para a geografia nesse

caderno. Ao contrário das descritas anteriormente, essas apostam no olhar espacial sobre os

fenômenos sociais e trazem a contribuição da geografia para a compreensão dos sub-temas

derivados da articulação entre emprego e trabalho.

Ao traçar como objetivo a interpretação de diferentes significados atribuídos ao

trabalho e às relações com a natureza, a atividade chamada Cigarras, formigas, trabalho,

natureza e arte inclui nas tarefas sugeridas sub-temas como tipos de trabalho e trabalho

produtivo e improdutivo. Além desses, encontramos ainda aqueles que mais se preocupam

com a questão espacial: a relação entre trabalho, produção e natureza, e os conceitos de

natureza e de elementos naturais, todos eles trazendo como pano de fundo a própria discussão

acerca da relação sociedade-natureza. Partindo de uma paródia de Monteiro Lobato sobre a

clássica fábula de La Fontaine, a atividade busca que o professor reflita com seus alunos sobre

os diferentes conceitos de trabalho e suas relações com a natureza. E mesmo não

mencionando a produção do espaço geográfico como resultado dessa relação, as tarefas

conseguem, pelo menos, trazer à baila a importante interseção entre a dinâmica da natureza e

a dinâmica social, algo bastante pertinente na abordagem geográfica.

Não aprofundamos a questão nesse momento. A discussão referente à natureza e suas

concepções, à sociedade e suas interpretações e a relação destas com o conceito de espaço

geográfico dificilmente se dá satisfatoriamente se não são empenhados tempo e fôlego

consideráveis. Deixamos esse esforço para o capítulo derradeiro da tese em função da

aparição do tema em outras partes do trabalho. Adiantamos, porém, uma pequena amostra do

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243

debate a partir da reflexão de Casseti (2002), que, ao articular a natureza ontológica de Engels

à physis pré-socrática e ao espaço geográfico na perspectiva de Milton Santos111, afirma que:

[...] da mesma forma que a physis expressa a totalidade, a visão ontológica da natureza dialética [...] também procura integrar as relações entre natureza e sociedade numa perspectiva unificada. A noção de espaço geográfico, embora apropriada como categoria geográfica, também busca a superação dicotômica entre natureza e sociedade, destacando o peso social no processo de organização do território (p. 160).

Por fim, analisamos a atividade denominada O operário e os lugares, aquela em que a

geografia aparece com mais clareza e consegue melhor contribuir para o tratamento da

espacialidade da vida cotidiana da classe trabalhadora. A sua problemática envolve a rotina do

trabalhador analisada sob o ângulo do espaço vivido, da segregação socioespacial e do

transporte coletivo urbano. Inspirada em composição do rapper pernambucano DJ Dolores,

intitulada De dar dó, a atividade explora ainda o saber geográfico não escolar dos

trabalhadores ao sugerir que os alunos analisem a trajetória diária de um trabalhador relatada

no rap, bem como “reflitam criticamente a respeito da relação entre os lugares e a condição

social operária” (BRASIL, 2007c, p. 73). Parte do pressuposto que

diferentes classes sociais podem ser identificadas pelas particularidades dos espaços e dos caminhos que freqüentam, ao mesmo tempo em que a freqüência de certas classes modela culturalmente os lugares e os lugares constroem as vivências. [...] O caminho do operário expressa sua condição social. Recife, assim, transforma-se, os rios da cidade mudam a partir da referência de quem o vê e a partir de onde o rio é visto (ibid., p. 73).

Evocando a premissa de que cada homem vale pelo lugar onde está, isto é, que o seu

valor como produtor, consumidor e cidadão depende de sua localização no território

(SANTOS, 1998), a atividade proposta estimula o olhar espacial daqueles que se lançam

diariamente às ruas da cidade, que percorrem muitas vezes longos percursos e que constroem,

por conseguinte, um saber geográfico com base nessa experiência condicionada pela vida de

trabalhador. Permite, assim, construir o conceito de lugar, além de refletir sobre a forma com

que a segregação socioespacial configura o espaço urbano e problematizar a política de

transporte estabelecida para a maioria das cidades brasileiras.

111 “[...] o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que estão acontecendo diante de nossos olhos e que se manifestam através de processos e funções. O Espaço é, então, um verdadeiro campo de forças cuja aceleração é desigual. Daí porque a evolução espacial não se faz de forma idêntica em todos os lugares” (SANTOS, 1978 apud CASSETI, 2002, p. 159).

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Dentre os conhecimentos geográficos suscitados pela atividade, destacamos a

geografia dos transportes urbanos. Roubando tempo, saúde e dinheiro do trabalhador

brasileiro, o modelo privado de transporte rodoviário, invariavelmente adotado em todo o país

é, sem dúvida, um peso para a classe trabalhadora que vive, em geral, distante dos locais de

trabalho. Percorrer a cidade se torna uma aventura estressante, tanto nos dias de semana,

quando engarrafamentos aumentam o tempo de deslocamento, quanto nos finais de semana,

quando a escassez dos ônibus dificulta sobremaneira a mobilidade pela cidade. Dessa forma,

mais um direito à cidade não se completa. Para Caiafa (2002), o transporte coletivo é uma

figura-chave para a promoção da heterogeneidade urbana, isto é, para a realização da cidade.

No entanto, o modelo em questão, ao beneficiar os veículos individuais, atender sempre em

primeira instância os interesses privados das empresas de ônibus e não investir em transporte

público de massa, não dá vazão à inquietude e à dispersão que, ainda segundo Caiafa, são as

condições para que a cidade se realize.

Fechando a análise da geografia presente no caderno Emprego e Trabalho, concluímos

que sua marca é a abordagem de temas que pouco dialogam com o objeto da disciplina. A

seleção de conteúdos e as sugestões de atividades, não se pode negar, levam em conta as

especificidades do público jovem e adulto trabalhador, mas a contribuição da educação

geográfica para a realização dos referenciais teóricos anunciados no caderno metodológico foi

aqui pouco explicitada, deixando lacunas e dúvidas em relação à seleção de conhecimentos

geográficos e o modo através do qual eles são organizados para atender as necessidades da

EJA.

4.2.2 Caderno Globalização e Trabalho: quando a geografia contribui para a criticidade

do aluno trabalhador

O caderno Globalização e Trabalho é, provavelmente, o mais geográfico de toda a

coleção. O tema que articula os conteúdos e as atividades didáticas das diversas áreas do

conhecimento traz em si um fenômeno socioespacial que exige mais da contribuição do

pensamento geográfico. Por esse motivo, os textos selecionados para leitura e interpretação

nas salas de aula da EJA são todos propícios para o estudo de conteúdos geográficos presentes

em muitos livros e artigos acadêmicos, bem como em coleções de livros didáticos para a

educação básica. Também pela mesma razão, nesse caderno o número de atividades

direcionadas para a geografia é o maior entre todos os outros, somando nove atividades no

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total. Todas são indicadas para o segundo segmento do ensino fundamental, sendo seis

sugeridas para ambos os segmentos.

O exame do caderno proporcionou a identificação de dois grupos temáticos nas

atividades propostas para o desenvolvimento do conteúdo geográfico. Um grupo diz respeito

ao conceito e às várias interpretações sobre o fenômeno da globalização, tanto em sua

dimensão econômica quanto social e cultural, e engloba seis atividades didáticas. O outro,

presente nas três atividades restantes, aborda os movimentos e deslocamentos populacionais

pelo mundo em suas várias faces, sendo interpretados à luz dos impactos e efeitos da

globalização. Cabe ressaltar que, como dissemos, muitos outros textos suscitam temas

geográficos, fato que pode acarretar a existência de outros grupos temáticos, porém, em

função dos limites deste trabalho, optamos por examinar apenas as atividades programadas

para a geografia, que, para uma melhor visualização da seleção e da organização dos

conteúdos veiculados, são dispostas no quadro abaixo junto aos textos que lhes deram origem.

Quadro 2: ATIVIDADES DIDÁTICAS DE GEOGRAFIA DO CADERNO GLOBALIZAÇÃO E TRABALHO

TEXTO ATIVIDADE SEGMENTO Parabolicamará Antes longe era distante I e II

Perversidades e possibilidades no mundo globalizado II A globalização como perversidade Conhecendo Milton Santos e sua importância I e II

Trabalhadores sindicalizados nos EUA Sindicalização em baixa, salários também I e II Ricos e pobres estão na moda da globalização? I e II A era da incerteza Globalização diminui distâncias e lança o mundo na era da incerteza socioeconômico-cultural

II

Deslocamentos populacionais I e II Um dia sem imigrantes Imigração e pichação – o que há de ilegal nisso? II

Flagelos humanos Refugiados do planeta Terra: direitos humanos e cidadania

I e II

Fonte: Coleção Cadernos de EJA (2007e).

A letra da canção Parabolicamará, de Gilberto Gil, já se tornou clássica nos estudos

sobre a globalização. É fácil encontrá-la em livros didáticos, em questões de vestibulares e

nas salas de aula de todo o país quando o assunto se refere aos efeitos da evolução das

tecnologias de comunicação e de transporte na sensação de compressão do tempo e do espaço

nos dias atuais. A primeira atividade, intitulada Antes longe era distante, repete a fórmula e

faz da interpretação das palavras de Gil o mote para o aprofundamento da questão. Seu

objetivo é refletir sobre as mudanças tecnológicas e sua interferência nas relações espaciais

das pessoas, chamando a atenção para o fato de que “também a condição socioeconômica

acaba sendo determinante para a construção da noção de espaço” (BRASIL, 2007e, p. 10). A

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articulação desses impactos com o mundo do trabalho e da produção de bens e mercadorias é

explicitada no seguinte trecho do documento:

As mudanças das relações com o espaço e o tempo na atualidade sofrem influência da tecnologia, dos meios de comunicação, dos transportes e dos ritmos de vida e de trabalho. A tecnologia acelera os acontecimentos, encurta as distâncias e o tempo torna-se mais produtivo. Se for possível produzir mais em menos tempo, menor será o custo da produção (p. 10).

A percepção do fenômeno pelos alunos é estimulada através de tarefas que sugerem o

levantamento do mundo “alcançado” por eles, levando-se em conta as tecnologias da

informação às quais eles têm acesso. Desse modo, os autores da atividade proporcionam não

só a identificação do espaço-tempo percebido pelos trabalhadores como também a forma com

que as condições sociais e culturais de classe interferem nessa percepção. Traz-se à tona,

assim, o saber da experiência que, uma vez problematizado, pode propiciar novos olhares,

novas descobertas.

O texto A globalização como perversidade, na verdade um pequeno depoimento de

Milton Santos e outro de Carlos Lessa, é a referência para duas atividades. Perversidades e

possibilidades no mundo globalizado, a primeira atividade, tem como objetivo “refletir sobre

as conseqüências da globalização para os trabalhadores e as possibilidades de enfrentamento

das dificuldades por meio da organização da sociedade a partir de seus territórios” (ibid., p.

19). Se apoia em Lessa e Santos para partir do princípio de que o espaço local é produtor de

forças que resistem, de certa forma, a alguns efeitos da globalização. Para tanto, indica uma

tarefa que pede aos alunos a confecção de um quadro que identifique e relacione elementos

dessa perversidade e as possíveis formas de enfrentamento. Para favorecer a evidência da

força do lugar, a atividade sugere também a caracterização do lugar em que vivem os alunos,

inclusive com a identificação da materialização de políticas globais, e a investigação da

existência de movimentos, grupos e ações que questionam e combatem tais políticas.

Ao abordar os contrastes da globalização a partir da relação entre o local e o global e

do papel do lugar na constituição de uma outra globalização, o documento concorre para a

construção do pensamento crítico e autônomo do estudante da EJA. Habituados, muitas vezes,

às interpretações unívocas veiculadas pelos meios de comunicação, os trabalhadores têm aqui

a oportunidade de desvendar a sensação de distância que possivelmente sentem em relação à

globalização vendida e propagada e a realidade que enfrentam cotidianamente. A retomada do

espaço banal em contraposição ao mundo, identificado como o mercado nas teorias do

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pensamento único, é justamente o que Santos apregoa. Vale a pena reproduzir aqui seu

pensamento como forma de ilustrar e consubstanciar as atividades didáticas descritas:

Há um conflito que se agrava entre um espaço local, espaço vivido por todos os vizinhos, e um espaço global, habitado por um processo de racionalização e um conteúdo ideológico de origem distante e que chegam a cada lugar com os objetos e as normas estabelecidos para servi-los. Daí o interesse de retomar a noção de espaço banal, isto é, o território de todos, frequentemente contido no trabalho de todos; e de contrapor essa noção à noção de redes, isto é, o território daquelas formas e normas ao serviço de alguns. Contrapõem-se, assim, o território todo e algumas de suas partes, ou pontos, isto é, as redes. Mas, quem produz, quem comanda, quem disciplina, quem normatiza, quem impõe uma racionalidade às redes é o Mundo. Esse mundo é o do mercado universal e dos governos mundiais. O FMI, o Banco Mundial, o GATT, as organizações internacionais, as Universidades mundiais, as Fundações que estimulam com dinheiro forte a pesquisa, fazem parte do governo mundial, que pretendem implantar, dando fundamento à globalização perversa e aos ataques que hoje se fazem, na prática e na ideologia, ao Estado Territorial (SANTOS, 1996, p. 18).

Acreditamos que a segunda atividade derivada do mesmo texto, ao possibilitar aos

alunos da EJA o encontro com o pensamento de Milton Santos, auxilia mais ainda no

processo de compreensão dessa complexa assertiva. Conhecendo Milton Santos e sua

importância é uma atividade que inova o conteúdo geográfico escolar, pois destaca o papel

dos estudiosos e pesquisadores e sua contribuição para a compreensão de fenômenos que

muitos têm dificuldade de sistematizar. No caso desse autor, sua trajetória, revelada

brevemente no texto introdutório da atividade, ilustra também as dificuldades enfrentadas por

um intelectual negro e de origem popular, o que pode também suscitar profícuo debate sobre

essa situação entre os alunos. Assim, sua tese sobre a globalização é socializada e colocada

em discussão, possibilitando novos olhares em direção ao território em que vivem. Olhares

estimulados a identificar e analisar criticamente o que é do global e o que é do local nesse

território, além de poder vislumbrar a globalização de outra forma, como uma interação mais

simétrica entre culturas.

A atividade denominada Sindicalização em baixa, salários também traz um dos

elementos da globalização perversa para a reflexão. Ao pretender “discutir as relações entre a

redução do número de trabalhadores sindicalizados e a queda nos níveis salariais nos EUA”

(BRASIL, 2007e, p. 23), os elaboradores da proposta tentam problematizar a crise pela qual a

organização dos trabalhadores vem passando. Fenômeno atribuído por eles a vários fatores,

como desemprego, diminuição dos postos de trabalho, insegurança do trabalhador,

especialização das tarefas, diferenciação salarial e ganho por produtividade, dentre outros, sua

materialização na vida cotidiana é considerada como uma das perversidades do mundo

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globalizado. Nas tarefas sugeridas, os alunos são levados a analisar essa realidade a partir de

entrevistas realizadas com familiares ou pessoas conhecidas que se encontram desempregadas

e/ou que são filiadas a algum sindicato. Vale ainda destacar o exercício de interpretação de

dados referentes ao tema com base nos gráficos presentes no caderno do aluno.

O texto intitulado A era da incerteza é a base para duas atividades didáticas que ainda

abordam a globalização. Considerado como expansão do capitalismo efetuado nas últimas

décadas, o fenômeno é associado tanto à diminuição das distâncias quanto ao aumento das

desigualdades sociais e regionais no mundo atual. A atividade Ricos e pobres estão na moda

da globalização? trata de sub-temas como globalização e classes sociais, globalização e

cotidiano e escalas geográficas. Ao incentivar os alunos a perceber e debater a presença de

seus efeitos em seu dia-a-dia e nas condições de vida das diferentes classes sociais, as tarefas

sugeridas permitem, assim como em outras atividades já analisadas, a transversalidade das

escalas geográficas, isto é, novamente o local como concretização de decisões tomadas nos

espaços hegemônicos do planeta é enfatizado e problematizado.

A atividade seguinte, Globalização diminui distâncias e lança o mundo na era da

incerteza socioeconômico-cultural, dá mais ênfase à dimensão cultural da globalização e

destaca o papel dos meios de comunicação na disseminação apenas de uma visão positiva em

relação ao fenômeno. Sem deixar de abordar também as desigualdades provocadas pelo

modelo de capitalismo globalizado, suas tarefas solicitam aos alunos a identificação e análise

do termo globalização veiculado nos mais variados meios de comunicação (TV, rádio, jornais,

revistas etc.) em seus diversos aspectos (culturais, sociais, políticos e econômicos). As

mudanças de hábitos e costumes na família, no trabalho e na sociedade de forma geral

também se configuram em objeto de discussão e reflexão na ação educativa proposta.

Passamos a comentar agora o segundo grupo de atividades didáticas de geografia do

caderno Globalização e Trabalho. Tais atividades vinculam-se à questão das migrações no

mundo contemporâneo e sua relação com a globalização. Assunto com presença garantida na

maior parte dos guias curriculares de geografia, os movimentos migratórios também se

configuram em temática significativa em turmas de EJA, sua associação com as histórias de

vida dos alunos é algo bastante comum, pois, de acordo com De Vargas (2003), “esse grupo

busca nas migrações alternativas às precárias condições de vida, estando o acesso a maiores

níveis de escolaridade dentro de seus projetos de inserção nos centros urbanos” (p. 122). Nas

últimas décadas, algumas dessas pessoas têm ainda vivenciado os efeitos da onda de

emigração de brasileiros em direção ao centro do capitalismo mundial. Familiares, conhecidos

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249

ou elas mesmas podem já ter passado por experiências de clandestinos em terras estrangeiras,

fato que super dimensiona o tratamento da problemática em questão entre os alunos da EJA.

Os deslocamentos populacionais são abordados na atividade de mesmo nome, cujo

objetivo não é outro senão refletir sobre esses movimentos no contexto do mundo globalizado

e na história do Brasil. Tendo como referência um conjunto de três diferentes textos – uma

notícia de jornal sobre imigrantes nos Estados Unidos, a frase Nenhum ser humano é ilegal

(pichada em um muro de Amsterdã - Holanda) e um poema de Fernando Pessoa112 - a

atividade analisa a relação do processo de globalização com os deslocamentos populacionais

para o Brasil, dentro do Brasil e de saída do país. Faz isso estimulando a percepção desses

processos na experiência de vida dos estudantes e incentivando-os a expressar a compreensão

sobre o tema através de produções textuais. Já a atividade intitulada Imigração e pichação – o

que há de ilegal nisso?, cuja base é o mesmo conjunto de textos, focaliza com mais

intensidade a questão dos imigrantes e problematiza a frase Nenhum ser humano é ilegal,

incentivando os alunos a refletir também sobre a articulação entre diferentes formas de

manifestação política e os vários recursos de narrativa existentes (poesia, passeata, notícia,

pichação etc.).

O último texto do caderno Globalização e Trabalho traz também uma atividade

didática a ser desenvolvida pela geografia. O texto, chamado Flagelos humanos, trata da

questão dos refugiados no mundo contemporâneo e apresenta um mapa-múndi contendo

dados referentes tanto à localização da população refugiada quanto aos países de origem dos

refugiados. Associando a situação dos refugiados aos direitos humanos e à cidadania, a

atividade introduz o problema partindo do seguinte pressuposto:

Os discursos que enaltecem a globalização elogiam a liberdade de comércio entre as nações, a livre circulação de mercadorias, capitais, informações, tecnologias. Entretanto, o mesmo não ocorre com as pessoas. Quantos países, em diferentes momentos da história, chegam a construir muros, cercas para fechar suas fronteiras e impedir a entrada de imigrantes? No mundo global, além das questões políticas, étnicas e religiosas que obrigam milhares de pessoas a viver em países diversos do seu, o desemprego estrutural, a fome e a falta de acesso aos direitos básicos de cidadania que atingem os países pobres obrigam milhares de pessoas a arriscar suas vidas em travessias ilegais e clandestinas em busca de melhores condições de vida

112 Patriota? Não: só português. Nasci português como nasci louro e de olhos azuis Se nasci para falar, tenho que falar uma língua. (...) Falaram-se em homens, em humanidade mas eu nunca vi homens, nem vi humanidade. Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si cada um separado do outro por um espaço sem homens. (BRASIL, 2007d, p. 38).

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em outros países. Exemplo disso é a emigração de brasileiros para os EUA e para a Europa em busca de trabalho (BRASIL, 2007e, p. 91).

A ampliação do conceito de refugiado para além dos aspectos políticos é clara, o que

promove uma boa reflexão sobre os fatores de repulsão e de atração de população. Vale dizer

que a categoria dos refugiados ambientais é também comentada e designada como “aquelas

pessoas que se vêem obrigadas a ir embora ou porque lhes é negado o acesso à terra ou

porque a sua região não lhe permite satisfazer suas necessidades básicas” (ibid., p. 91). As

tarefas solicitadas exigem do aluno o estudo das principais causas do fenômeno, bem como

sua relação com aspectos contraditórios da globalização, como a dicotomia entre a circulação

de mercadorias e a circulação de pessoas, e que evocam a ampliação da noção de direitos

humanos.

Cabe aqui expressar alguns comentários acerca da problemática da migração veiculada

nesse caderno em virtude da possibilidade que ela cria de se articular diferentes escalas

geográficas. Tal articulação se mostra essencial para a maior compreensão dos deslocamentos

populacionais contemporâneos e se concretiza na abordagem das condições que repelem

pessoas de seus territórios, em geral vinculadas a aspectos de ordem local (políticos,

econômicos, sociais ou ambientais), bem como dos impactos criados nas nações que as

atraem, o que invariavelmente tem promovido sérios problemas nas relações internacionais,

configurando-se assim em fatores de ordem global.

À complexa situação dos refugiados políticos se tem mesclado o fenômeno da

migração econômica, de fluxo sul-norte, fazendo com que, segundo Póvoa Neto (2007), “a

própria indistinção, crescente em determinados contextos, entre migrante econômico e

refugiado, é de certa forma uma decorrência do esvaziamento do significado político da

recepção deste último” (p. 2). Nesse sentido, a atividade didática sugerida contribui para a

ampliação do debate e para o consequente questionamento das imagens ameaçadoras sobre a

imigração contemporânea, geralmente veiculadas por meios de comunicação e disseminadas

por forças políticas conservadoras dos países centrais através de iniciativas como a construção

de barreiras físicas (muros, cercas, faixas militarizadas de fronteiras) à entrada de imigrantes.

Em um contexto no qual a mobilidade geográfica é exaltada em função da crescente

globalização do mundo, não deixa de ser paradoxal a existência dessas barreiras. Sobre elas,

Póvoa Neto (ibid.) assinala:

Reconhecidos como indesejáveis ou ameaçadores, migrantes e refugiados tornam-se objeto de políticas de estado mais radicais que as das formas tradicionais de

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intervenção, quanto ao controle das fronteiras e ao acompanhamento das trajetórias sociais dos imigrados. Multiplicam-se, nesse contexto, iniciativas de erguimento de barreiras físicas nos pontos de passagem de migrantes e de criação de campos para reunião e confinamento de migrantes e refugiados (p. 3).

Longe de se constituírem em um anacronismo, ainda que se configurem em um

paradoxo, tais barreiras condizem com o modelo de globalização imposto, pois a apregoada

“hipermobilidade” de pessoas se refere, ainda segundo o autor, apenas a um estrato social

numericamente reduzido.

Ao abordar o conteúdo geográfico dessa forma, a criticidade, considerada um dos

princípios pedagógicos da coleção, é exercida e estimulada, uma vez que aos estudantes da

EJA é possibilitado o questionamento do discurso contraditório da globalização que, como

uma fábula, une os povos e cria oportunidades para todos. Além disso, ao propiciar o debate

sobre fenômenos que, a princípio, podem lhes parecer distantes de suas vidas, as atividades

didáticas sugeridas lhes aproximam dos fatos, contribuindo para torná-los, dessa forma sim,

cidadãos que pensam o mundo.

Por fim, julgamos importante tecer alguns comentários sobre a abordagem do tema

globalização em classes de EJA. O tratamento pedagógico desse fenômeno pode ser

considerado um dos exemplos da especificidade metodológica da EJA. Em virtude dos

impactos das ações globais na vida do trabalhador, sua abordagem exige do professor um

diálogo intenso com a experiência de vida dos alunos e com o saber que dela brota. Diferente

da maioria das crianças e dos adolescentes, muitos jovens e adultos que freqüentam as salas

de aula dos Cursos de EJA já experimentaram o dissabor do desemprego, as dificuldades do

trabalho informal, as conseqüências das relações flexíveis de trabalho, as tentações do

consumismo e as infindáveis dívidas dele derivadas, todas essas características da

exacerbação da competitividade capitalista travestida na inexorabilidade do dito mundo

globalizado. Todos, ou quase todos, só conhecem a globalização perversa sobre a qual nos

fala Milton Santos.

Seguindo esses mesmos pressupostos, a geografia presente nesse caderno da Coleção

Cadernos de EJA desenvolve estudos sobre a globalização selecionando e organizando os

conteúdos geográficos de acordo com a realidade de vida do trabalhador, utilizando-se de

exemplos do mundo adulto e trabalhando metodologicamente a partir das necessidades dos

jovens e adultos. Compreendendo o caráter de complementaridade das atividades didáticas

sugeridas, entendemos que a elas o professor deve acoplar outros textos informativos,

encontrados em artigos acadêmicos, ensaios jornalísticos ou textos didáticos. Assim,

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252

encontramos nesse caderno uma geografia que considera e problematiza o espaço vivido e sua

percepção pelo aluno trabalhador sem abandonar, porém, a perspectiva crítica e a necessidade

de ir além da constatação dos fatos já evidentes.

4.2.3 Sociedade, natureza e meio ambiente sob a ótica do trabalho

Também de cunho geográfico, o caderno Meio Ambiente e Trabalho é o que

possibilita, entre todos, o maior número de atividades referentes à geografia física. Muitos dos

textos selecionados como articuladores das atividades didáticas podem suscitar temáticas que

necessitem a exploração de conteúdos da climatologia, da biogeografia ou da geomorfologia,

por exemplo. Porém, como nem todos os textos são acompanhados por atividades de

geografia, fica a critério do professor elaborar aulas em que tais conhecimentos sejam

desenvolvidos e problematizados, fato que a própria proposta curricular da coleção indica e

incentiva.

Ao contrário dos cadernos analisados até o momento, não identificamos a existência

de diferentes grupos temáticos ou de eixos de análise que agrupam as atividades sugeridas

para a geografia. O que vemos é a exploração de assuntos variados ligados a temáticas

diversificadas que se aproximam em algumas atividades, não chegando, porém, a constituir

grupos ou eixos bem definidos. Em função disso, analisamos individualmente as atividades

pensadas para o segundo segmento do ensino fundamental, seguindo uma seqüência que

privilegia campos e temas da geografia e não a ordem em que aparecem no caderno do

professor.

Quadro 3: ATIVIDADES DIDÁTICAS DE GEOGRAFIA DO CADERNO MEIO AMBIENTE E TRABALHO

TEXTO ATIVIDADE SEGMENTO Agressão e consciência Sociedade e paisagem II Pequenos produtores contestam ciclo da monocultura da soja

Monocultura ou diversidade na produção agrícola?

I e II

Economia do Pantanal Os perigos ao ecossistema do Pantanal I e II Forças da natureza Energia eólica nos EUA II

A escassez de água I e II O planeta água pode secar O ritmo de crescimento populacional I e II

Níquel Náusea / Gente que faz O lixo nosso de cada dia I e II Fonte: Coleção Cadernos de EJA (2007g).

A primeira atividade que analisamos parte de um trecho extraído do texto O que

agride a natureza agride o homem, encontrado na cartilha Trabalho e Meio Ambiente,

elaborada pela CUT-RJ, em 2000. O texto aborda a relação entre sociedade e natureza com

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253

enfoque nos interesses econômicos, na consciência ecológica e no papel do Estado e dos

grandes meios de comunicação na continuidade e estímulo ao processo de degradação dos

ambientes naturais. Em um box, a Revolução Industrial é responsabilizada pela aceleração

dessa degradação em função da demanda criada por matérias-primas e o conseqüente aumento

tanto das áreas cultivadas quanto da extração mineral. Como ilustração e exemplo do processo

de degradação, o texto traz uma fotografia de parte do garimpo de ouro de Serra Pelada, no

estado do Pará, na qual pode se perceber os impactos dessa ação tanto no ambiente natural

quanto nas condições de trabalho dos garimpeiros.

Na atividade didática sugerida, a imagem é tomada como base para desenvolver as

questões suscitadas pelo texto. Para tanto, os conceitos de sociedade e de paisagem são

explorados com o intuito de fazer com que os alunos não só reflitam “sobre a ação coletiva do

homem na modificação da natureza e as motivações para tal”, como também entendam “que a

paisagem é o ponto de partida da compreensão desses fenômenos e, que o estudo das relações

sociais, a partir dela, possibilitam a sua compreensão” (BRASIL, 2007g, p. 30). A extração

mineral, portanto, é o mote para discussões em torno dos conflitos socioambientais na

sociedade capitalista e suas conseqüências, como a apropriação da natureza como mercadoria

e a degradação das condições de vida dos trabalhadores.

Entre as tarefas elaboradas, a leitura de imagens é destacada, pois os estudantes são

levados a descrever e problematizar a fotografia veiculada no caderno do aluno (Anexo 10),

indicando o grau de destruição das condições ambientais naturais e questionando os motivos

que levam a sociedade a produzir essa situação. A promoção de um debate acerca da relação

entre sociedade capitalista, obtenção de lucro e transformação da natureza em mercadoria

completa o rol de ações a serem realizadas. Segundo os elaboradores da coleção, tais ações

têm como intenção promover a compreensão de que são as relações sociais que geram as

paisagens, sendo estas, portanto, uma das principais categorias de análise da geografia em sua

busca por entender a sociedade através de sua espacialidade.

Cabe salientar que a atividade contextualiza o tema e as tarefas apresentadas às

especificidades do aluno da EJA ao relacioná-las ao mundo do trabalho. De acordo com a

proposta, a região de Serra Pelada se constituiu uma forte atração para trabalhadores

desempregados, tendo sido também ocupada por um grande número de pessoas que agiam em

serviços de suporte ao formigueiro humano que se formava na mina. Assim, se ampliavam as

oportunidades de alguma inserção no mundo do trabalho, mesmo que de forma precarizada,

de um grande número de trabalhadores vindos de várias regiões do país (BRASIL, 2007g).

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254

Vale ainda dizer que as questões relacionadas aos conflitos socioambientais e sua

abordagem no âmbito da geografia escolar para a modalidade EJA são mais bem analisadas

no último capítulo deste trabalho. Chamamos a atenção, no entanto, para o fato de que a

articulação da atividade à situação de milhões de trabalhadores brasileiros que se veem na

obrigação de migrarem e se submeterem a formas degradantes de inserção laboral se revela

coerente e com boas potencialidades de reflexão sobre as condições de vida e de trabalho na

sociedade capitalista. Dessa forma, a geografia escolar é levada a contribuir com a

compreensão de que os conceitos de degradação e de conflitos ambientais também dizem

respeito à vida humana e às desigualdades sociais, não ficando restritos aos problemas que

envolvem exclusivamente a dinâmica da natureza.

O texto que dá sustentação à atividade denominada Monocultura ou diversidade na

produção agrícola? aborda a contestação da monocultura da soja por pequenos produtores

rurais de Mato Grosso. Nele, a degradação ambiental de solos e rios, o desmatamento e a

concentração de renda são debitados na conta do agronegócio monocultor, que, embora

anuncie contribuir com a geração de empregos, na verdade emprega pouco e beneficia

somente os grandes produtores. Assim, para “refletir a respeito do modelo agrícola

implantado no Centro-Oeste do Brasil e suas conseqüências para a qualidade de vida e o meio

ambiente” (BRASIL, 2007g, p. 14), a atividade didática de geografia associa a monocultura

aos conflitos socioambientais a partir da reflexão em torno do modelo econômico adotado e

seus impactos sobre a população e o cerrado, bioma característico da região estudada.

Além da análise das denúncias encontradas no texto, as tarefas propõem o estudo do

cerrado, do processo histórico de ocupação e desenvolvimento econômico da região, bem

como das transformações ocorridas com a chegada da soja. Sugerem ainda a discussão acerca

das alternativas econômicas ao modelo monocultor a partir das propostas anunciadas por

sindicalistas rurais presentes no texto de análise. Desse modo, incentiva não só o

desenvolvimento da criticidade do aluno, como também a busca por soluções viáveis e que

levem em consideração os interesses da população como um todo, superando a denúncia pura

e simples.

A atividade Os perigos ao ecossistema do Pantanal se aproxima sobremaneira da

atividade recém-analisada em função da abordagem regional presente em ambas. O texto que

lhe dá origem – Economia do Pantanal – também discute a relação entre atividades

econômicas e biomas da região Centro-Oeste, tendo como foco dessa vez o Pantanal

Matogrossense. Em suas linhas, encontramos as características físicas e econômicas da região

pantaneira, além das principais preocupações relativas aos conflitos e problemas

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255

socioambientais aí encontrados, bem como as soluções para um modelo de desenvolvimento

econômico que leve em conta o menor impacto possível nas características naturais do

Pantanal.

Tendo como objetivos a compreensão dos principais problemas da região, bem como o

conhecimento sobre “as especificidades de cada atividade econômica desenvolvida e os

efeitos gerados no bioma pantaneiro” (BRASIL, 2007g, p. 41), a atividade didática justifica

sua abordagem pelo processo histórico de ocupação da região Centro-Oeste nos últimos trinta

anos e dos impactos ambientais produzidos na esteira do modelo de desenvolvimento adotado

nesse processo. Segundo os autores da atividade, “no caso específico da região pantaneira, a

agricultura da soja, do arroz e da cana de açúcar, aliada ao crescimento urbano, e o

desenvolvimento dos meios de transportes e da garimpagem são atividades econômicas de

alto impacto ambiental local” (ibid., p. 41). Tal fato, aliado às possibilidades de

enriquecimento rápido por parte de alguns empresários e de novas perspectivas de vida por

partes de trabalhadores migrantes, merece especial atenção daqueles que se preocupam com o

choque inevitável entre o econômico e o ambiental nessas condições.

Dentre as tarefas solicitadas aos estudantes, se destaca aquela que pede a identificação

das atividades econômicas causadoras de maior impacto e aquelas que oferecem menor risco

ao frágil equilíbrio ambiental apresentado pelo bioma pantaneiro. Vale lembrar que às tarefas

apresentadas o professor pode acrescentar outras que exploram, por exemplo, conteúdos da

geografia agrária, como a expansão das frentes agrícolas no Centro-Oeste do país, e mesmo

da geografia física, como aspectos do clima e da rede hidrográfica da região. Aliás, é

conveniente que se proceda assim, caso contrário corre-se o risco do não aprofundamento das

razões que explicam a configuração do quadro atual apontado pelo texto.

Outra justificativa para esse procedimento se encontra no fato de que a proposta

curricular da coleção não prevê o acompanhamento de uma seqüência de conteúdos pré-

determinada, cabendo ao professor e à escola o planejamento do curso. Dessa forma, não é a

coleção que vai indicar a melhor organização dos conhecimentos geográficos e sim a

necessidade advinda do desdobramento de cada texto ou tema por ele suscitado. No caso da

geografia, as atividades apresentadas sobre a problematização da soja no Mato Grosso e das

atividades econômicas no Pantanal, por exemplo, remetem à questão regional. Ao trabalhar

por e com temas, a proposta curricular rompe com a clássica divisão regional e acopla a

região a uma temática mais abrangente que pode ser associada a outras regiões, a questões de

âmbito nacional ou mesmo a questões globais, permitindo, desse modo, a transversalização

entre as escalas de análise.

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256

A questão regional também caracteriza a atividade Energia eólica nos EUA, dessa vez

ligada aos estudos regionais do mundo contemporâneo. Partindo do texto Forças da natureza,

que discorre sobre a produção de energia eólica em áreas rurais das planícies centrais

estadunidenses, a atividade didática desenvolve temas geográficos como a questão energética

e as fontes alternativas, a geografia dos EUA, a leitura de mapas e a localização e orientação a

partir das direções cardeais e colaterais. Percebe-se, assim, dois grupos de objetivos: o

primeiro diz respeito à construção de conhecimentos geográficos acerca das fontes de energia

e o segundo à divisão política dos EUA.

A questão energética é abordada tendo como pressuposto os problemas suscitados pelo

uso em larga escala de combustíveis fósseis, como o esgotamento das reservas e a emissão de

gases poluentes. Fontes alternativas, com a energia eólica em destaque, são, então, apontadas

como possibilidade de substituição dessa matriz de produção energética. Ao contextualizar o

tema ao mundo do trabalho, a atividade chama a atenção para a expansão do transporte

individual e o gigantesco consumo de petróleo, pois, em função do impacto sociambiental

decorrente desse uso, “as grandes montadoras do mundo vêm reestruturando suas plantas

industriais e eliminando postos de trabalho, apontando para a necessidade da revisão de

nossas prioridades, tanto no meio de transporte preferencial, como nas fontes energéticas

utilizadas” (BRASIL, 2007g, p. 55).

Embora apresente toda essa argumentação na introdução da atividade, as tarefas

relativas às fontes de energia se resumem à interpretação do texto gerador, bem como à

explicação sobre a forma de funcionamento e as vantagens da energia eólica. Das seis tarefas

sugeridas, quatro desenvolvem conteúdos relacionados à localização dos estados citados no

texto e das planícies centrais estadunidenses, tendo como base a identificação das direções

cardeais e colaterais sobre o mapa dos EUA. Dessa forma, a atividade anuncia e justifica o

desenvolvimento de uma determinada temática – a energia eólica –, mas acaba por priorizar

outra que se aproxima dos velhos compêndios de geografia regional, nos quais identificar

países e estados era a principal atividade. Obviamente, a localização das regiões sobre as

quais a atividade se debruça é importante, porém ela pode ser contextualizada à temática em

questão, pois localizar só faz sentido se as informações espaciais extraídas auxiliarem na

compreensão do fenômeno estudado.

Avaliamos que, em função disso, essa atividade didática perdeu o rumo e a

oportunidade de ir além da clássica tarefa de localização de áreas pura e simples. Vale

lembrar ainda que essa questão remete a reflexões em torno dos critérios de regionalização do

mundo contemporâneo, questão tratada com mais atenção no último capítulo deste trabalho.

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257

O longo texto intitulado O planeta água pode secar é o suporte para a proposição de

duas outras atividades: A escassez da água e O ritmo do crescimento populacional. O texto

gerador trata de uma série de questões relacionadas à disponibilidade e à política de recursos

hídricos no planeta como um todo, indo desde índices demográficos, impactos ambientais em

rios e bacias hidrográficas, desenvolvimento desigual, concentração de renda e mudanças

climáticas até guerras e conflitos internacionais causados pela escassez de água, exigindo,

assim, um conjunto diversificado, porém articulado, de conteúdos geográficos para sua

compreensão. A opção dos autores, no entanto, privilegiou apenas dois objetivos: para a

primeira atividade, a ideia é “discutir ações alternativas de combate à escassez de água no

planeta” (BRASIL, 2007g, p. 46) e na segunda a intenção é refletir “sobre as causas do

crescimento populacional, identificando os fatores que levaram a essa explosão recente,

associando-a ao desenvolvimento do sistema capitalista e às conseqüências ambientais” (p.

47).

A primeira atividade didática focaliza a política de captação e abastecimento de água

no Brasil. Para isso, procede a análise das principais bacias hidrográficas, identificando-as e

associando-as aos tipos climáticos através da leitura e interpretação de mapas. Ao final, as

tarefas se dirigem à discussão em torno dos fatores sociais e comportamentais que levam ao

desperdício de água na família, na comunidade e no trabalho, culminando com a elaboração

de um painel reflexivo sobre o controle do uso da água em diferentes âmbitos da sociedade.

A segunda atividade centra o debate em torno da relação entre o crescimento

demográfico mundial e o consumo de água. Desse modo, explora o conhecimento sobre o

processo de transição demográfica ocorrido de forma mais intensa nos últimos 150 anos

utilizando-se da confecção e análise de gráficos com dados obtidos a partir do texto gerador

da atividade. A análise é recomendada tomando como base as características do modo de

produção capitalista no que tange tanto à necessidade de uma massa de trabalhadores

concentrados em cidades quanto ao estímulo ao consumo exacerbado de uma parcela

privilegiada de pessoas e países.

Pela riqueza do texto-base, outros conhecimentos geográficos poderiam ter sido

também explorados nessas atividades, principalmente os relacionados à dinâmica da natureza.

Ainda que a primeira atividade tenha trabalhado a análise de alguns elementos naturais e sua

interligação a fatores socioeconômicos, supomos que o incentivo ao estudo das condições de

captação e abastecimento de água nos locais de moradia dos alunos seria um ótimo tema a ser

desenvolvido. Afinal, os alunos jovens e adultos trabalhadores brasileiros, também

contribuintes e eleitores, costumam enfrentar problemas de escassez de água não por viverem

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258

necessariamente em regiões secas ou semi-áridas, mas pela má distribuição dos recursos

hídricos entre a sociedade como um todo.

A última atividade sugerida para este caderno trata da questão do lixo urbano e parte

de um quadrinho do personagem Níquel Náusea, de Fernando Gonsales. Contemplando dessa

vez a análise do problema tendo como referência o local de vivência dos alunos, a atividade

didática traz como objetivos a reflexão acerca da produção de lixo e a realização de pesquisa

de campo sobre a destinação final de resíduos sólidos. Nesse sentido, explora sub-temas como

a sociedade de consumo, a problemática dos lixões e as questões socioambientais relacionadas

às desigualdades sociais. Na articulação da temática com o mundo do trabalho, os autores

chamam a atenção para os lixões e as degradantes condições de trabalho tanto de adultos

quanto de crianças, que, muitas vezes sem outra alternativa, se submetem a situações sub-

humanas em meio a montanhas de lixo à procura de algo que lhes sustente a vida.

Propondo tarefas de levantamento de dados a partir de pesquisa quantitativa acerca do

lixo produzido no local de moradia dos alunos, a atividade espera como resultado final não só

o maior conhecimento sobre o principal destino do lixo, como também a possível mudança de

comportamento no consumo e na produção diária de lixo por parte dos alunos. Além disso,

proporciona também a reflexão em torno da situação daqueles que vivem dos lixões, fazendo

com que a degradação ambiental seja mais uma vez associada à degradação humana.

Por fim, cabe dizer que, ao mesclar reflexões teóricas com tarefas relacionadas ao

cotidiano dos alunos na maioria das atividades propostas, o caderno Meio Ambiente e

Trabalho contribui sobremaneira para a construção da emancipação do pensamento de jovens

e adultos trabalhadores. Embora em algumas passagens estimule a revisão de determinados

comportamentos individuais relativos a ações que possam interferir no agravamento de

problemas ambientais, a concepção adotada não nos parece corroborar o que Loureiro (2005)

chama de fetichismo da individualidade. Segundo o autor, as propostas curriculares de

educação ambiental que trabalham nessa perspectiva costumam exaltar apenas as ações

individuais como possibilitadoras de mudanças do quadro de degradação que vivemos na

atualidade. Além disso, é comum, sob esse ponto de vista, considerar a escola como a

“salvação da espécie”, pois se lhe atribui “um grau de responsabilidade no processo de

formação de valores e comportamentos que só é cabível se a imaginarmos ou como algo cuja

dinâmica independa da sociedade da qual é uma prática social ou como sendo a reprodução

direta e fiel da sociedade, como no pensamento escolanovista” (p. 4).

No que se refere à geografia, o caderno é um dos poucos que sugere atividades com o

instrumental cartográfico, ainda que de forma tímida e pouco problematizadora. Os conteúdos

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259

da geografia física, embora também apareçam de forma escassa, sempre se articulam a

questões relativas à dinâmica social, fato que merece destaque em função da quase ausência

dessa relação em materiais didáticos voltados para outros níveis e modalidades do ensino

fundamental. As tarefas sugeridas oscilam entre a articulação dos conhecimentos trabalhados

à vida cotidiana e o desenvolvimento de habilidades importantes para a geografia, como a

elaboração e a análise de gráficos e tabelas. Tais ações educativas podem contribuir

efetivamente para a inserção mais qualitativa do aluno trabalhador ao mundo letrado, além de

possibilitar a ampliação da visão de mundo desses sujeitos que vivem de sua força de

trabalho.

4.2.4 Espaço rural e trabalho: uma perspectiva totalizante do campo brasileiro

O espaço rural brasileiro é o tema central do caderno intitulado Trabalho no Campo.

Entre matérias jornalísticas, poemas, crônicas e depoimentos, os textos disponibilizados para

os alunos e geradores das atividades didáticas contemplam uma série de assuntos que vão da

relação entre cidade e campo, agricultura familiar, estrutura fundiária e reforma agrária até o

extrativismo e a demarcação de terras indígenas. Tamanha diversificação expressa bem os

diferentes “campos” brasileiros, o que faz desse caderno um dos mais ricos para o trabalho

com as ciências sociais em geral e com geografia em particular, principalmente no que refere

à diversidade regional brasileira.

As atividades previstas para a geografia acompanham essa tendência e podem ser

agrupadas em quatro eixos de análise. O primeiro diz respeito à caracterização do espaço rural

e do espaço urbano; o segundo eixo, congregando duas atividades, trata de questões relativas

à produção de determinados produtos agrícolas; o terceiro desenvolve temáticas sobre as

relações de trabalho no campo através de três atividades; e o quarto é dedicado ao

reconhecimento das terras indígenas e os problemas deflagrados a partir de suas demarcações.

Quadro 4: ATIVIDADES DIDÁTICAS DE GEOGRAFIA DO CADERNO TRABALHO NO CAMPO

TEXTO ATIVIDADE SEGMENTO Cidades demais O que é uma cidade? Viver e trabalhar no meio rural

e urbano I e II

Do caju brasileiro se aproveita até o cheiro Do caju brasileiro se aproveita até o cheiro I e II Biodiesel: alternativa de emprego e renda Biodiesel: impactos sociais e ambientais II Agricultura familiar Precarização do trabalho no campo I e II Máquina x Homem Desemprego na entressafra I e II Os primeiros gritos do campo A organização camponesa e a luta dos trabalhadores

rurais I e II

Demarcação de terras indígenas O mapa do Brasil I e II Fonte: Coleção Cadernos de EJA (2007i).

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A primeira atividade problematiza a diferença entre campo e cidade e através do texto

Cidades demais discute “o que é ‘cidade’ no Brasil e em outras partes do mundo,

confrontando modos e condições de viver e trabalhar no meio urbano e rural” (BRASIL,

2007i, p. 12). Tratando de sub-temas como definição de espaço rural e urbano, classificação

de cidades e êxodo rural, o texto introdutório da atividade indaga sobre o critério de definição

de cidades no Brasil, questiona o “mito difundido que considera o meio rural como lugar do

atraso, da miséria e a cidade, o lugar do progresso, da vida moderna” (ibid., p. 12) e pergunta

se esse mito não seria reforçado justamente pela maneira como se define a cidade no país. A

introdução ainda justifica o debate dessas questões por elas estarem diretamente ligadas à vida

dos alunos, tanto daqueles que habitam as grandes cidades quanto dos que vivem no campo.

Auxiliadas pelo texto gerador, que informa sobre os critérios de definição e

classificação de cidades no Brasil113 e em alguns outros países, a primeira tarefa da atividade

exige do aluno o pensar sobre as diferenças existentes entre o espaço rural e o espaço urbano,

além de estimulá-lo a refletir sobre as vantagens e desvantagens de se viver e trabalhar nos

dois espaços. As outras tarefas giram em torno da problematização do mito do atraso atrelado

ao campo, bem como das causas que levam ao êxodo rural, incentivando a que todos pensem

sobre as políticas públicas que poderiam viabilizar a valorização das economias e ambientes

rurais.

Ainda que não mencione diretamente a eliminação gradativa da separação entre o rural

e o urbano, a atividade oportuniza o aprofundamento e o debate acerca dessa questão. Para

Oliveira (2003), campo e cidade vêm se unificando dialeticamente, “isto quer dizer que

campo e cidade, cidade e campo formam uma unidade contraditória” (p. 475) soldada pelo

desenvolvimento do capitalismo no campo. Ainda segundo o autor, esse processo tem levado

a efetivação dessa integração “quer no processo produtivo, quer no processo de lutas por

melhores salários, por melhores preços para os produtos agrícolas e particularmente pela

reforma agrária” (p. 477). Uma outra linha de argumentação para esse fenômeno pode ser

encontrada em Trevisan (2003), que defende a ideia da “existência de um contínuo, onde

teríamos num extremo, situações extremamente urbanizadas (megalópoles) e, noutro extremo,

situações totalmente desocupadas” (p. 7). Tal perspectiva não permite o trabalho com duas

realidades distintas e sim com a formação de um todo integrado, o que, ainda para o autor,

113 Lembramos que, no Brasil, o critério adotado para a definição do que é cidade é o político-administrativo. Sob esse critério, cidade é a sede do município e vila é a sede do distrito. A área urbana, por sua vez, é definida pela Câmara de Vereadores do município, unidade territorial a quem cabe o recolhimento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Tal situação tem provocado um panorama bastante complexo e confuso para a maioria da população que tende a definir cidade pela densidade da aglomeração urbana, bem como pela oferta e variedade de comércio e serviços.

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261

exige o abandono da ideia de campo e cidade para fins de planejamento e de políticas

públicas.

Obviamente que essa perspectiva, isto é, “essa unidade contraditória entre a cidade e o

campo não elimina suas diferenças – ao contrário, aprofunda-as, tornando cada uma mais

específica, porém cada vez mais portadora da característica geral da outra” (OLIVEIRA,

2003, p. 477). E é sobre esse algo específico do campo, a produção agrícola – embora

atividades não agrícolas como turismo rural e ecoturismo, por exemplo, também estejam cada

vez mais presentes em determinadas áreas rurais brasileiras –, que o segundo grupo de

atividades trata.

A atividade Do caju brasileiro se aproveita até o cheiro, originária de um texto

homônimo, discorre sobre a produção sustentada dessa fruta tropical e sua contribuição para a

“alternativa de geração de emprego, renda e cidadania no meio rural, nas regiões Nordeste e

Centro-Oeste do Brasil” (BRASIL, 2007i, p. 35). Em geral, as tarefas sugeridas exploram a

cadeia produtiva do caju, mas não aproveitam todo o potencial do texto gerador, que informa

sobre as características da produção, atribuída basicamente à agricultura familiar, e da

comercialização dos derivados da fruta (doces, sucos, castanha), chamando a atenção para a

perda obtida com a inadequação da colheita, do transporte e da industrialização. Com a

oportunidade de demonstrar e analisar todo o processo produtivo, as tarefas acabam se

restringindo à “história” da fruta, à localização das áreas produtoras e a alguma discussão

sobre a geração de emprego e renda a partir da exploração do produto, perdendo, assim, a

chance de aprofundar a análise e dar mais sentido à unidade contraditória entre campo e

cidade.

A outra atividade que trata da produção agrícola brasileira traz uma questão bastante

atual e polêmica: a produção de biodiesel e seus impactos socioambientais. A interpretação

adotada chama a atenção, no entanto, por não apontar possíveis riscos e impactos negativos

dessa produção. O texto introdutório da atividade deixa bem clara essa opção ao afirmar que:

Essa medida terá vários impactos sociais, econômicos e ambientais para as populações rurais e urbanas nas diferentes regiões do Brasil. Nas regiões produtoras, especialmente o Nordeste e o Centro-Oeste, o agronegócio e a agricultura familiar incrementarão o cultivo de plantas oleaginosas. As empresas energéticas cuidarão da produção do biodiesel. Este processo gerará mais empregos e renda, desenvolvimento econômico e social. Além disso, há um outro impacto: a diminuição da poluição do ar o que, por sua vez, contribuirá para a diminuição de doenças e de problemas ambientais. O biodiesel se insere no âmbito dos objetivos de um desenvolvimento sustentável (BRASIL, 2007i, p. 47).

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262

Como se vê, ficam de fora da análise outros possíveis impactos como o aumento das

áreas desmatadas de Cerrado e de Floresta Amazônica em função da ampliação da área de

cultivo, a diminuição da produção de alimentos em detrimento à produção de oleaginosas,

com destaque para a soja, além da maior pressão por grandes propriedades, uma vez que para

a produção em larga escala, extremamente mecanizada e voltada para exportação é esse tipo

de estabelecimento que melhor consegue se desenvolver. Vale dizer que esse debate tem se

destacado nos meios de comunicação de massa ultimamente, fato que talvez tenha levado os

autores da proposta a pedir aos alunos a investigação de notícias em jornais, revistas e páginas

eletrônicas sobre o biodiesel no Brasil. A falta de alerta para as possíveis distorções e

ocultações que a grande mídia pode inferir sobre o assunto, no entanto, demonstra a

univocidade dada pelos autores ao tratamento dessa questão.

As outras tarefas não avançam muito na análise e giram em torno da localização das

regiões produtoras de biodiesel, lançando mão novamente apenas da função de localização do

instrumental cartográfico e do debate e da produção textual sobre o tema, sempre deixando

transparecer um valor positivo acerca da questão. Obviamente, sabemos das vantagens do

biodiesel como fonte de energia alternativa aos combustíveis fósseis, porém deixar de abordá-

lo à luz do desenvolvimento do agronegócio no Brasil significa, no mínimo, desconsiderar as

críticas a esse modelo concentrador de terras e de renda. Além disso, os impactos ambientais

positivados pelos autores associam a produção do biodiesel ao desenvolvimento sustentável,

conceito que deveria ser também problematizado pela atividade.

É importante frisar, contudo, que as atividades relativas às relações de trabalho no

campo são bastante críticas no que se refere ao agronegócio e à concentração fundiária, o que

revela algumas contradições e incoerências no tratamento da temática ao longo das atividades

propostas. Na verdade, tal oscilação entre atividades de cunho mais crítico e outras com

consideráveis lacunas nesse aspecto vem sendo apontada na análise do conteúdo geográfico

presente na coleção. Esse fato não altera nossa avaliação em relação à opção da proposta

curricular pela geografia crítica e pelo pensamento pedagógico problematizador, mas merece

maior atenção em função dos problemas que pode causar nas abordagens de determinados

conhecimentos, conforme analisamos mais adiante.

Voltando ao exame do caderno, a primeira atividade didática que aborda as relações de

trabalho no campo tem como um de seus objetivos justamente “avaliar a contradição entre o

crescimento do agronegócio nos últimos anos e a ampliação das condições de miséria e

pobreza no campo” (BRASIL, 2007i, p. 18). Além disso, também deve possibilitar aos alunos

da EJA o conhecimento sobre o mundo do trabalho no espaço rural e a precarização que

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263

predomina em boa parte da agricultura de base familiar. A partir de um texto jornalístico que

atribui à agricultura familiar a chave para a criação e manutenção do emprego no campo, a

atividade, denominada Precarização do trabalho no campo, desenvolve sub-temas que vão

das características do capitalismo e das desigualdades sociais no campo até os principais tipos

de produção agrícola: comercial, familiar, monocultura, subsistência. Com a intenção de

tornar mais evidente a contradição apontada em relação à atividade anterior sobre a produção

do biodiesel, extraímos do texto introdutório à atividade a base teórica sobre a qual as tarefas

didáticas são pensadas:

Nas últimas décadas, os investimentos do agronegócio foram intensos: maquinário, grãos selecionados, pesticidas e herbicidas, correções de solo, dentre outros. O resultado econômico é que o Brasil ampliou sua capacidade de exportação de produtos agrícolas, especialmente os grãos, dentre eles a soja. Ao mesmo tempo que o campo passa pela modernização agrícola, as condições de trabalho e de vida de grande parte dos agricultores brasileiros permanecem marcadas pela pobreza e pela miséria. Perda da terra, trabalho familiar e trabalho precário são algumas das condições experimentadas pela maioria dos camponeses no Brasil (BRASIL, 2007f, p. 18).

Para materializar empiricamente essa concepção com os alunos, algumas tarefas

solicitam o levantamento e a análise de dados referentes às relações de trabalho no campo,

com destaque para o quantitativo de trabalho formal, familiar e autônomo, bem como a

comparação entre esses mesmos dados no espaço urbano. Com base na explanação do

conceito de monocultura de exportação e de sua associação ao agronegócio, as outras

atividades estimulam a discussão acerca da contradição entre o aumento da produção

agropecuária e a diminuição do número de empregos no campo. Com isso, os autores da

proposta esperam que os alunos compreendam “a necessidade da Reforma Agrária no

desenvolvimento da produção no mercado interno, para melhorar a distribuição da terra no

Brasil e reduzir as desigualdades sociais no campo” (BRASIL, 2007i, p. 18). Ao final,

indicam ao professor a visita ao sítio eletrônico do MST e do INCRA como forma de

subsidiar a condução das aulas.

Seguindo a mesma linha teórica, a atividade Desemprego na entressafra evidencia

certas particularidades do trabalho no campo, principalmente aquelas que envolvem

trabalhadores assalariados em períodos de colheita. As questões abordadas na atividade são

extraídas do texto Máquina x Homem, que informa sobre o alto índice de desemprego que

assola a Zona da Mata de Pernambuco na época da entressafra da cana-de-açúcar. Assim, com

o intuito de que os alunos tomem conhecimento das condições de vida desses trabalhadores,

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264

de suas estratégias de sobrevivência, bem como das peculiaridades da produção no campo, as

tarefas propostas chamam a atenção para a maior dependência da produção agrícola em

relação aos ciclos da natureza e das precárias condições de vida dos trabalhadores na

entressafra, especialmente pelo alto índice de analfabetismo, desnutrição e trabalho infantil.

Dessa forma, a realidade do trabalho assalariado rural é colocada em discussão,

permitindo maior evidência da unidade contraditória entre campo e cidade ou do contínuo que

impede a separação entre essas duas paisagens. A produção açucareira (monocultura da cana-

de-açúcar + usinas e destilarias de álcool e açúcar) é ilustrativa desse processo de

territorialização do capital monopolista no campo, conforme afirma Oliveira (2003). Nesse

caso, indústria e agricultura são etapas de um mesmo processo, pois “capitalista da indústria,

proprietário de terra e capitalista da agricultura têm um só nome, são uma só pessoa ou uma

só empresa. Para produzir, utilizam o trabalho assalariado dos ‘bóias-frias’ que moram e

vivem nas cidades” (ibid., p. 478). Os efeitos perversos dessas relações sazonais e precárias

de trabalho assalariado são sentidos pelos trabalhadores, que, muitas vezes, levados à

exaustão da colheita e à baixa remuneração de serviços temporários nas periferias urbanas,

não conseguem sair da exploração e da miséria às quais estão submetidos.

E é justamente a luta dos trabalhadores rurais por melhores condições de trabalho e

sua relação com a estrutura fundiária brasileira o principal foco da atividade chamada A

organização camponesa e a luta dos trabalhadores rurais, última do bloco que congrega as

sugestões didáticas que giram em torno das relações de trabalho no campo. Baseada em um

texto que fala dos primeiros movimentos de trabalhadores organizados em torno da reforma

agrária e dos direitos trabalhistas dos camponeses, a atividade parte do pressuposto de que “a

concentração da terra no campo é a principal responsável pelo êxodo rural [e que] a

manutenção do trabalhador no campo requer medidas que alterem o desigual quadro da

concentração da terra, sendo a luta dos trabalhadores uma delas” (BRASIL, 2007i, p. 82).

Essa perspectiva tenta levar o aluno a compreender o processo de distribuição e concentração

fundiária no Brasil, assim como contribuir para que ele entenda que o movimento do

camponês brasileiro na luta por terra e por direitos faz parte de um processo histórico que tem

origem na colonização e no modelo econômico implantado no país.

As tarefas designadas para os estudantes se resumem à interpretação do texto, tendo no

final a indicação para que o professor desenvolva um debate com a turma acerca dos conflitos

no campo gerados pela luta pela terra e pela resistência dos latifundiários. Dessa forma, os

autores esperam contribuir para a compreensão de que a concentração da terra é um traço

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265

marcante das relações capitalistas presentes no espaço rural brasileiro e a organização e luta

dos trabalhadores rurais são delas derivadas.

A cartografia volta à cena na última atividade pedagógica de geografia analisada do

caderno Trabalho no Campo. Baseando-se em um texto que trata da demarcação das terras

indígenas, a atividade tem como objetivos a ampliação do conhecimento relativo aos

diferentes povos indígenas e a elaboração por parte dos alunos de um mapa do Brasil no qual

se considere apenas a territorialização atual desses povos. O mapa deve ser produzido tendo

como lastro uma pesquisa a ser realizada pela turma acerca dos povos e da localização de suas

terras, além do destaque que cada aluno deverá dar a um povo de sua escolha. A justificativa

dos autores para essa atividade pode ser evidenciada a partir da ideia de que “quando

desenhamos o mapa político do Brasil [...] Não determinamos a localização das nações

indígenas existentes em nosso país” (BRASIL, 2007i, p. 68), fato que pode nos remeter à

discussão em torno dos conceitos de povo, nação, território e Estado.

Porém, não só a ausência dessa discussão é sentida, como também é estranha a não

abordagem da questão central do texto gerador, a demarcação das terras indígenas. Sabemos

que as atividades de outras disciplinas que partem do mesmo texto podem cobrir a lacuna

dessas ausências, mas por se tratar de uma atividade de geografia, e embora a tarefa

apresentada seja importante e criativa, a discussão sobre as demarcações e a associação destas

à questão fundiária é algo essencial para a compreensão da complexa e conflituosa situação

do campo brasileiro. Afinal, conforme atesta Oliveira (2003):

A história da ocupação de terras no Brasil está [...] marcada pelo genocídio e pelo etnocídio a que essas nações indígenas estão sendo submetidas. Atualmente as áreas reivindicadas pelas nações indígenas não atingem nem 10% da área total do país, que um dia foi totalmente deles. Os governos, sistematicamente, não têm demarcado as terras reivindicadas pelas nações indígenas. Dessa forma a estrutura fundiária brasileira tem sido caracterizada pelo processo de incorporação de novos territórios, assaltados, tomados dos povos indígenas, aumentando ainda mais a concentração de terras em mãos de poucos proprietários (p. 484).

Desse modo, entre algumas incoerências, lacunas e contradições, mas com muitos

avanços, criatividade e uma visão pertinente e crítica do espaço rural brasileiro, o

conhecimento geográfico escolar é selecionado e organizado pelo caderno Trabalho no

Campo. Cabe destacar a sempre presente tentativa de associar o mundo do trabalho no campo

às relações de trabalho na cidade. Coerentes com a discussão apresentada na primeira

atividade didática por nós analisada, as realidades rural e urbana são estreitadas de modo que

os estudantes da EJA que vivem nas metrópoles, por exemplo, possam dar mais sentido ao

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266

estudo das áreas rurais, assim como os alunos trabalhadores do campo tenham condições de

melhor compreender a complexa configuração da paisagem urbana. Nada mais pertinente para

uma proposta curricular de EJA, pois a aposta na diversidade da condição de trabalhador deve

se constituir, a nosso ver, um de seus mais importantes distintivos.

***

Ao concluir a análise das atividades didáticas de geografia presentes em quatro

volumes da Coleção Cadernos de EJA, somos levados a algumas reflexões que dizem respeito

tanto à pertinência da proposta curricular para a EJA quanto à abordagem de conteúdos e

métodos da geografia pensados para essa modalidade. Desse modo, podemos avaliar de forma

mais abrangente a maneira encontrada pelos autores da proposta para o tratamento do

conhecimento geográfico e sua articulação com o mundo do trabalho, tema transversal a todos

os cadernos da coleção.

No que se refere à adequação à modalidade EJA, percebe-se um bom diálogo com a

realidade do aluno jovem e adulto trabalhador na elaboração da maioria das tarefas sugeridas

nas atividades, bem como na escolha do tema que atravessa todos os cadernos. O trabalho

como problematizador de diferentes temáticas segue uma concepção que se distancia da

pedagogia das competências e aproxima a proposta curricular da coleção às vertentes críticas

da teoria educacional. Tal perspectiva pode ser claramente notada tanto na seleção e

abordagem dos conteúdos escolares quanto nas ações educativas propostas em forma de

tarefas a serem realizadas pelos educandos. Também os treze temas indicados para os

cadernos demonstram grande preocupação com a realidade contemporânea tomada do ponto

de vista da situação da classe trabalhadora e da diversidade de dilemas, lutas e desafios que

aflige os trabalhadores brasileiros.

Contudo, no tocante à estrutura flexível adotada para o desenvolvimento das

atividades e dos conhecimentos veiculados, observa-se que a coleção acaba por trazer à tona o

velho dilema entre o que se considera ideal para o trabalho pedagógico e a situação real

encontrada na maioria das escolas. Sabemos que os problemas da EJA atingem as escolas de

forma contundente e que a saída para sua superação não é algo fácil e rápido. No que tange ao

trabalho do professor e a sua forma de encarar e desenvolver o conhecimento escolar nessa

modalidade, a realidade demonstra uma série de dificuldades que vão desde a falta de tempo

até a ausência de condições mínimas de trabalho coletivo para que se desenvolva um currículo

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267

que tome como referência o mundo adulto. Obviamente, há experiências bastante

significativas acontecendo pelos cursos de EJA do país, mas a nossa inserção na pesquisa e no

trabalho com essa modalidade nos permite afirmar que são poucas e geralmente frutos do

esforço individual ou de pequenos grupos que acreditam na capacidade cognitiva do público

trabalhador.

Ao optar pela flexibilidade na programação dos conteúdos escolares, a coleção aposta

na autonomia das escolas e dos professores, princípios por nós compartilhados. No entanto, a

cruel realidade da terceira jornada de boa parte dos professores, a formação inicial alheia às

especificidades da EJA e a falta de uma política nacional unificada em torno da escolarização

de jovens e adultos trabalhadores que contemple, dentre outras ações, a formação continuada

em serviço desses profissionais, podem tornar inexeqüível o trabalho com a Coleção

Cadernos de EJA. Tal fato se agrava a partir do momento em que não encontramos nenhum

esclarecimento por parte da SECAD/MEC sobre a previsão de ações de formação continuada

que possam garantir a reflexão em torno da proposta, bem como a possibilidade de diferentes

intervenções pedagógicas a partir do uso dos cadernos da coleção. Essa preocupação procede

em função da ameaça e do risco que corre o material didático em ficar no esquecimento e no

abandono por parte das escolas e de se tornar mais uma boa idéia, materializada com verba

pública, porém muito distante da realidade vivida pelas escolas de EJA.

No que se refere ao princípio da intertextualidade e do trabalho com textos geradores

para o desenvolvimento dos conteúdos disciplinares, observam-se algumas armadilhas que

somente podem ser verificadas através da análise detalhada das atividades de uma disciplina.

Uma delas diz respeito ao não aproveitamento de alguns textos para as disciplinas que

poderiam contribuir para a melhor compreensão da problemática por eles veiculada. No nosso

caso, a geografia deixou de contribuir com a temática de vários textos dos cadernos

analisados, principalmente dos cadernos Globalização e Trabalho e Meio Ambiente e

Trabalho, e mesmo sabendo que a proposta da coleção é fazer com que o professor também

crie atividades didáticas, sentimos falta da definição de critérios para a seleção das disciplinas

que desenvolveriam os textos. A outra armadilha, em linha contrária, se refere ao risco do

artificialismo e do distanciamento do objeto das disciplinas em função do assunto abordado

em determinados textos. Queremos dizer com isso que nem sempre a temática do texto suscita

a contribuição de todas as disciplinas. Novamente a falta de critérios para essa definição pode

ter sido a causadora desse problema, que trouxe para a geografia várias atividades distantes da

análise espacial, como se pode verificar no caderno Emprego e Trabalho principalmente.

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268

No que compete ao conhecimento geográfico escolar, algumas questões merecem ser

destacadas. A primeira delas se refere ao uso da linguagem cartográfica nas atividades

examinadas. Em geral, a cartografia e suas potencialidades para a análise espacial são

escassas nas tarefas designadas para os alunos e quando aparecem se resumem à localização

de fenômenos isolados, nível preliminar do trabalho a ser realizado com a cartografia,

segundo Simielli (2003). Para a autora, também a correlação, que permite a análise

combinada de duas ou mais representações cartográficas (cartas, mapas temáticos, maquetes

etc.), e a síntese, que possibilita, através de uma carta-síntese, o estabelecimento de relações

entre várias representações, são níveis essenciais na formação intelectual dos estudantes em

geral. No caso da Coleção Cadernos de EJA, as temáticas abordadas apresentam riqueza

analítica suficiente para o trabalho mais instigante com mapas, mas, infelizmente, algumas

poucas e pobres tarefas de leitura de mapas e nenhuma tarefa de elaboração de representações

cartográficas acabaram prevalecendo. Fruto de uma leitura discriminatória que associa o

trabalho com a cartografia escolar às correntes tradicionais da geografia? Talvez, mas o fato é

que esse importante instrumental praticamente ficou de fora da educação geográfica veiculada

pela coleção.

Podemos ressaltar ainda a completa ausência nas atividades de indicações para

trabalhos de campo, como visitas ou excursões, bem como a pouca exploração do espaço de

vivência dos alunos. É verdade que há muitas tarefas que levam o aluno trabalhador a refletir

sobre sua realidade e cotidianeidade, mas a conjugação entre a percepção do espaço vivido e a

saída da sala de aula para o seu aprofundamento e para a ampliação do horizonte de leitura

espacial se constituiria em algo primordial para a construção do pensamento crítico dos

educandos. Por ser um material de base nacional, temos consciência da impossibilidade de se

propor algo específico, mas sugestões e adaptações às diferentes realidades escolares podem e

devem ser apresentadas, assim como propostas claras e bem formuladas podem incentivar o

professor a ousar e experimentar outras possibilidades de ação com seus alunos.

Por fim, cabe dizer que, apesar das observações e da indicação de ausências e lacunas,

não se pode deixar de ratificar a abordagem geográfica crítica presente na maior parte das

tarefas avaliadas e o estímulo ao pensamento autônomo dos estudantes trabalhadores. A

recontextualização do saber geográfico para a modalidade do ensino fundamental responsável

pela escolarização de trabalhadores se dá de forma articulada às principais questões que

envolvem hoje o mundo do trabalho, fato que torna o conhecimento escolar algo significativo

para esses alunos. A geografia, assim, pode ser vista como o conjunto de saberes que

possibilita a visão sistêmica do mundo, isto é, que pode levar os alunos a compreenderem o

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269

fenômeno da globalização, por exemplo, através da leitura do lugar, da análise dos problemas

socioambientais ou ainda da visão unitária e contraditória da relação entre campo e cidade.

Vale dizer ainda que o trabalho pedagógico com temas vinculados a diferentes gêneros

textuais reconstrói o legado teórico-metodológico da educação popular problematizadora e de

base freireana em um contexto de desenvolvimento dos conteúdos disciplinares vinculados ao

processo de escolarização de jovens e adultos trabalhadores. Além disso, a abordagem dos

temas afasta a proposta da perspectiva dual de educação, na qual a escolarização da classe

trabalhadora é direcionada apenas para a formação para o trabalho alienado, e a aproxima da

perspectiva integral, uma vez que a reflexão crítica é privilegiada. Tais opções inscrevem a

Coleção Cadernos de EJA no rol de propostas curriculares cujo maior compromisso é a

emancipação dos sujeitos frente ao discurso hegemônico que reitera desigualdades e tenta se

apropriar de saberes, vidas e culturas em torno dos interesses do mercado, a nova forma de se

referir à velha e cada vez maior acumulação privada do capital.

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270

CAPÍTULO 5

EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES:

CONCEPÇÕES, PRINCÍPIOS E BASES

Analisar a seleção e organização de conhecimentos escolares presentes em materiais

didáticos significa entrar em detalhes que só fazem sentido no contexto da proposta curricular

à qual esses materiais estão inseridos. Opções metodológicas, referenciais teóricos,

contradições e lacunas são objetos de atenção, descrição e análise que visam a fomentar

reflexões acerca das principais questões que envolvem a temática estudada e a

problematização central apontada pela pesquisa. No caso deste trabalho, o exame do conteúdo

geográfico encontrado na Coleção ProJovem e na Coleção Cadernos de EJA serve como base

empírica não só para a análise das políticas educacionais, ou, mais precisamente, das políticas

de currículo da EJA, mas principalmente para a investigação dos princípios que regem a

recontextualização de discursos e conhecimentos geográficos para o ensino fundamental na

modalidade EJA. Dessa forma, um dos objetivos da pesquisa é contemplado, pois essa análise

demonstra o quanto e o como concepções, conteúdos e métodos da geografia escolar

contribuem, nesses contextos, para a veiculação de ideais e valores que compõem o projeto

político-pedagógico das propostas em questão.

No entanto, faz-se necessária, nesse momento, uma sistematização das análises

realizadas, partindo para o exame comparativo das propostas curriculares selecionadas e para

algo que chamamos de princípios e bases da educação geográfica de jovens e adultos

trabalhadores. Nesse sentido, alguns eixos são estabelecidos com o intuito de nortear a

sistematização e, para o atendimento dessa exigência, são identificadas e selecionadas as

principais questões e os mais importantes dilemas que, a nosso ver, marcam tanto a educação

de jovens e adultos quanto a geografia escolar na atualidade.

A sistematização se desenvolve, portanto, tomando como base, primeiramente, alguns

aspectos da EJA e suas implicações na educação geográfica. Assim, partindo das análises

realizadas sobre a geografia presente nas propostas curriculares dos materiais didáticos

examinados, a temática que envolve o mundo do trabalho e as discussões que dizem respeito

aos saberes adquiridos a partir das experiências de vida dos trabalhadores são colocadas em

destaque. Do mesmo modo, são objetos de problematização determinados aspectos da

geografia escolar e a forma com que eles são abordados no âmbito das propostas curriculares

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271

avaliadas. A relação sociedade-natureza e a questão das escalas de análise, por se constituírem

em pontos bastante incertos e polêmicos no processo de seleção e organização de conteúdos

geográficos escolares, passam então a ser também focos de nossas considerações neste

capítulo. Por fim, é desenvolvida uma seção dedicada às bases e princípios que, sob o nosso

ponto de vista, podem ser levados em conta quando da elaboração de políticas de currículo de

geografia para a EJA.

5.1 AS MARCAS DA EJA NA GEOGRAFIA ESCOLAR

A Educação de Jovens e Adultos é reconhecida como modalidade da educação básica

brasileira em função de certas características que a distinguem do processo de escolarização

de crianças e adolescentes. Apresentadas e analisadas nos primeiros capítulos deste trabalho,

bem como em numerosos outros estudos, tais características tomam direções e dimensões

específicas de acordo com o projeto político-pedagógico que se quer desenvolver, bem como

em função dos conhecimentos que se quer socializar. Nesse sentido, as disciplinas escolares,

constituídas social e politicamente como resposta a objetivos sociais da educação (MACEDO

e LOPES, 2002), carregam instrumentos e mecanismos próprios que contribuem para a

construção do conjunto de saberes que se encontram sob sua delimitação. Com isso,

queremos dizer que há especificidades no ato de ensinar e aprender em cada disciplina e em

cada modalidade de ensino. A articulação entre ambas as especificidades, neste caso entre

aquilo que é próprio da modalidade EJA e o que é característico da geografia escolar,

constitui-se no principal eixo da sistematização e das reflexões desta seção.

Entre aquilo que é próprio da escolarização de jovens e adultos, as DCNEJA, ao

caracterizarem os cursos específicos para esse público, ressaltam, por exemplo, que o trabalho

é o contexto mais importante da experiência curricular e que, “neste sentido, o projeto

pedagógico e a preparação dos docentes devem considerar, sob a ótica da contextualização, o

trabalho e seus processos e produtos desde a mais simples mercadoria até seus significados na

construção da vida coletiva” (SOARES, 2002, p. 123). O mundo do trabalho é então

estabelecido como referência essencial para a discussão e a elaboração de projetos

pedagógicos no contexto da EJA, não sendo à toa, portanto, que encontramos essa

prerrogativa nas duas propostas curriculares examinadas.

No ProJovem, essa atribuição aparece na sua própria estrutura, uma vez que a

perspectiva de formação para o trabalho, analisada no terceiro capítulo, é uma das dimensões

formativas do Programa. Além disso, um dos eixos estruturantes da programação curricular e

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272

que compõe um dos volumes da coleção didática – Juventude e Trabalho – traz o trabalho

como tema a ser desenvolvido em articulação com os conteúdos disciplinares. Na Coleção

Cadernos de EJA, por sua vez, a temática do trabalho é parte constituinte de sua proposta

curricular, configurando-se em eixo norteador de toda a seleção e organização dos

conhecimentos escolares. Logo, em virtude dessas particularidades das propostas analisadas,

da orientação legal, mas principalmente em função da concepção que nos direciona na ação

pedagógica com a EJA, optamos por verificar de que forma o mundo do trabalho é

desenvolvido na perspectiva geográfica presente nas coleções didáticas aqui examinadas.

Ainda de acordo com as DCNEJA, a vivência do trabalho não pode se ausentar do

tratamento dos conteúdos curriculares. Tal premissa nos remete ao aproveitamento das

diversas experiências que esses alunos trazem consigo e que conformam o que chamamos de

“saber da experiência”. Quanto a esse outro aspecto característico da EJA, o texto das

Diretrizes é claro:

A EJA é momento significativo de reconstruir estas experiências da vida ativa e resignificar conhecimentos de etapas anteriores da escolarização articulando-os com os saberes escolares. A validação do que se aprendeu "fora" dos bancos escolares é uma das características da flexibilidade responsável que pode aproveitar estes "saberes" nascidos destes "fazeres" (SOARES, 2002, p. 78).

Inquirir sobre a forma com que o conhecimento geográfico escolar aproveita e dialoga

com o saber da experiência é uma das intenções deste capítulo. Para tanto, são aprofundadas

análises e considerações já realizadas no exame das propostas curriculares pesquisadas, bem

como desenvolvidas uma série de reflexões acerca dos conceitos cotidianos e dos saberes

geográficos não escolares construídos a partir das relações e percepções espaciais inerentes ao

ato da existência humana.

Dessa forma, as reflexões aqui expostas procuram responder a seguinte pergunta:

como esses dois aspectos característicos da EJA se configuram na geografia a ser ensinada?

As descobertas e constatações daí engendradas podem então concorrer para o já anunciado

estabelecimento de princípios a serem considerados na formulação de propostas curriculares

de geografia que levem em conta o compromisso com a formação crítica e autônoma dos

sujeitos da EJA.

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273

5.1.1 O mundo do trabalho na perspectiva geográfica

O conceito de trabalho não se configura historicamente em categoria central da

geografia. Isso não quer dizer, no entanto, que ele não esteja presente na abordagem

geográfica, pois sua compreensão enquanto ação humana, desde sua dimensão ontológica até

a forma que assume em diferentes contextos históricos, é essencial para o desenvolvimento de

variados temas da geografia. Podemos dizer, então, que o trabalho é uma categoria

fundamental para a análise espacial, mas com uma função auxiliar junto às principais

categorias da geografia,114 exercendo maior ou menor influência de acordo com a perspectiva

teórico-metodológica adotada.

Segundo Thomaz Júnior (2002), dois aspectos relativos ao conceito de trabalho

sempre foram evidenciados pela abordagem geográfica ao longo do tempo e independente da

corrente de pensamento: a relação sociedade-natureza e a dimensão da organização espacial

da sociedade. Tratados de forma isolada, esses aspectos ajudaram a configurar a forma com

que o trabalho era entendido pela geografia:

Como mediador das transformações que o homem promovia na natureza, base, aliás, do recorte positivista que dá liga às Geografias e que sacramentou a dicotomia entre o que viria cimentar o discurso geográfico escolar: paisagem natural, paisagem humanizada; somente em meados do século XX ganha a cena a formulação primeira natureza e segunda natureza herdada de um debate enraizado nas ciências sociais (ibid., p. 3).

No que concerne à geografia escolar, portanto, o trabalho sempre esteve presente

como mediador da ação humana frente à natureza, mas seu peso maior no tratamento dos

conteúdos curriculares deu-se a partir do movimento de renovação crítica, quando a

interpretação do espaço geográfico como produto do trabalho humano passou a vigorar com

intensidade. Ainda assim, na seleção de conteúdos normalmente encontrada em livros

didáticos e propostas curriculares para a educação básica regular, o mundo do trabalho sempre

foi tratado como algo não muito propício a ser aprofundado nas aulas de geografia. É nesse

sentido, portanto, que as propostas curriculares de EJA examinadas nesta pesquisa contribuem

para a centralidade dessa categoria e tensionam sua abordagem na perspectiva geográfica.

114 Consideramos como categorias geográficas os conceitos que se constituem como principais ferramentas para a análise espacial. A literatura especializada contemporânea aponta, com certo consenso, os conceitos de espaço, paisagem, região, território e lugar como as categorias centrais na abordagem geográfica.

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274

Cabe ressaltar que, coerentes com o referencial teórico do materialismo histórico-

dialético, o trabalho é compreendido e analisado por nós tanto como criador da vida humana

quanto como em sua forma constituída historicamente sob o capitalismo. Na primeira

dimensão, aquela que configura o seu sentido ontológico, o trabalho é, de acordo com Frigotto

(2002), “produção de bens úteis materiais e simbólicos ou criador de valores de uso, é

condição constitutiva da vida dos seres humanos em relação aos outros” (p. 12). Desse modo,

o trabalho se converte em um princípio educativo, uma vez que se constitui em dever a ser

socializado, no sentido de o ser humano, como ser natural, saber transformar a natureza para

satisfazer suas necessidades, e em direito a ser estendido a todos, pois é através dele que os

sujeitos podem criar e reproduzir permanentemente sua existência (ibid.).

Sob o capitalismo, o trabalho se torna alienado, pois “o trabalho assalariado passa a

ser a pedra de toque, o manancial de onde se torna possível a acumulação e a riqueza de

poucos, mediante a exploração e alienação do trabalhador” (ibid., p. 17). No entanto, a partir

das contradições inerentes a esse processo de alienação do trabalho, a luta segue, para

Frigotto, no sentido de afirmar o trabalho como valor de uso e, desta forma, como princípio

educativo e criador, no qual:

Os professores, como educadores, têm um papel importante para evidenciar que os trabalhadores produzem ciência e técnica, as quais têm a virtualidade efetiva de liberar tempo livre, de fruição, de arte, de humanização, mas que, por sua apropriação privada pelo capital, voltam-se contra eles na forma de desemprego, de trabalho precarizado e de superexploração (ibid., p. 25).

A partir e em função do panorama até aqui exposto, cabe sistematizar e analisar a

maneira como as propostas curriculares de EJA abordam o mundo do trabalho através dos

conteúdos geográficos. Para essa tarefa, disponibilizamos um quadro no qual localizamos

alguns aspectos dessa temática nos materiais didáticos examinados, bem como a forma de

abordagem geográfica e o tratamento pedagógico dado. Por abordagem geográfica

entendemos o contexto no qual o tema aparece e os referenciais teórico-metodológicos que

embasam a organização dos conteúdos geográficos. Como tratamento pedagógico,

consideramos as atividades e as tarefas didáticas sugeridas para o desenvolvimento do tema,

levando em conta as especificidades dos educandos da EJA.

Os aspectos enfocados dizem respeito às variadas dimensões e problemáticas que o

mundo do trabalho evoca. O primeiro aspecto diz respeito ao conceito de trabalho. Com ele,

sistematizamos as concepções de trabalho veiculadas pelo conhecimento geográfico com o

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275

intuito de por em evidência quando e como a abordagem geográfica se refere à dimensão

ontológica do trabalho e quando e como ela o conceitua tomando como base apenas sua forma

histórica. A leitura geográfica para o trabalho sob o contexto histórico do capitalismo é o

segundo aspecto a ser sistematizado. Nele pretendemos apontar as características, os

problemas e as contradições das formas e relações de trabalho capitalistas através dos

conflitos relacionados à falta de emprego e à crise do trabalho assalariado. Por último, a

relação estabelecida entre trabalho e espaço geográfico é enfatizada na tentativa de extrair dos

materiais didáticos o tratamento espacial do fenômeno do trabalho, isto é, a possível mediação

realizada pelos conceitos geográficos para a compreensão do trabalho na sociedade

contemporânea.

Vale observar que os pontos selecionados para a sistematização expressam de maneira

clara os aspectos ressaltados do mundo do trabalho. Outros trechos dos materiais didáticos

podem também conter elementos que indicam a forma com que esses aspectos são abordados;

no entanto, privilegiamos aquelas passagens em que, sob o nosso ponto de vista, as

concepções adotadas estão mais em evidência. Para cada uma delas, é realizada uma análise

comparativa entre as propostas curriculares em pauta com o intuito de aprofundar reflexões

sobre o tratamento de conteúdos geográficos na EJA.

O conceito de trabalho é relacionado nas duas coleções à ideia de necessidade

humana, isto é, seguindo a interpretação marxiana, o trabalho é “subordinado às necessidades

imperativas do ser humano considerado em sua condição de ser histórico-natural que

necessita produzir os meios da manutenção de sua vida biológica e social” (FRIGOTTO,

2002, p. 14). A diferença entre as duas abordagens é que a Coleção ProJovem destaca a

transformação do espaço como resultado do trabalho humano enquanto a Coleção Cadernos

de EJA enfatiza a relação entre trabalho e natureza, indagando sobre até que ponto e de que

forma o ritmo imposto pela natureza ainda interfere na produtividade nos dias atuais.

Nas duas propostas, porém, o conhecimento geográfico acionado não discute a fundo a

dimensão ontológica e articulada ao mundo da liberdade, que, para Frigotto (ibid.), revela a

fruição do trabalho mais especificamente humano, isto é, o trabalho não demarcado apenas

pelo mundo da necessidade e, portanto, mais criativo e livre. Na Coleção ProJovem, esse

caráter acaba sendo pouco ressaltado, chegando mesmo a ser confundido com o trabalho

enquanto emprego, forma histórica do trabalho no capitalismo. Nos Cadernos, a relação

estabelecida entre trabalho, produção e natureza demonstra uma preocupação espacial e

conceitual do trabalho, mas o que prevalece na atividade didática proposta é discussão acerca

da relação sociedade-natureza. A análise conceitual que a geografia faz sobre o trabalho se

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276

Quadro 5: MUNDO DO TRABALHO E PERSPECTIVA GEOGRÁFICA

Coleção ProJovem

Coleção Cadernos de EJA

Materiais didáticos

Aspectos do Mundo do Trabalho

Contexto curricular

Abordagem geográfica

Tratamento

didático

Contexto curricular

Abordagem geográfica

Tratamento

didático

Conceito de trabalho

Unidade Formativa

II: Juventude e Trabalho

Tópico 1: Os

significados do trabalho para a

juventude

Trabalho como condição que possibilita a

sobrevivência do ser humano e a

transformação do espaço

Interpretação de textos

Relato de

experiências vividas

Caderno:

Emprego e Trabalho

Atividade: Cigarras, formigas trabalho,

natureza e arte

Relação entre trabalho,

produção e natureza

Interpretação de textos

Unidade Formativa II: Juventude e

Trabalho

Tópico 4: O trabalho

assalariado e as novas tecnologias

no Brasil

Descentralização e

flexibilização do trabalho: menor permanência no

ambiente de trabalho, o

trabalhador realiza diferentes

atividades em vários lugares

Leitura e interpretação de

texto

Caderno Emprego e Trabalho

Atividade: O operário e os

lugares

Rotina do

trabalhador: espaço vivido,

segregação socioespacial,

transporte coletivo urbano

Interpretação de texto

Entrevista com

trabalhadores

Trabalho sob o

contexto histórico do capitalismo

Unidade Formativa II: Juventude e

Trabalho

Tópico 5: Emprego, subemprego e desemprego

Desemprego estrutural e

mercado informal de trabalho

Relato de experiências

vividas

Caderno Trabalho no

Campo

Atividade: Desemprego

na entressafra

Trabalho assalariado

na monocultura canavieira

Leitura e interpretação

de texto

Unidade Formativa II: Juventude e

Trabalho

Tópico 2: O trabalho e as

transformações do espaço geográfico

Através do trabalho homens e

as mulheres transformam a

natureza e produzem o

espaço em que vivem

Leitura de imagem

Caderno Meio Ambiente e

Trabalho

Atividade: Sociedade e

paisagem

Relações

sociais como geradoras de

paisagem

Apropriação da natureza e degradação

das condições de

trabalho

Leitura de imagem

Discussão e debate

Trabalho e espaço

geográfico

Unidade Formativa

II: Juventude e Trabalho

Tópico 5: Emprego,

subemprego e desemprego

Fluxos migratórios

Êxodo rural

Relato de experiências

vividas

Leitura e interpretação de

texto

Caderno Globalização e

Trabalho

Atividade: Deslocamentos populacionais

Migração, trabalho e

globalização

História de vida

Fonte: Coleção ProJovem (2007); Coleção Cadernos de EJA (2007).

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277

restringe, então, à relação homem-meio e à ideia de mediação das transformações que a

sociedade promove na natureza.

Isso significa que, embora contribua para a superação da visão que atribui o mesmo

significado entre trabalho e emprego, a abordagem geográfica sobre o conceito de trabalho

não avança, em nenhuma das propostas, em direção à perspectiva apontada anteriormente por

Frigotto (2002), qual seja a de reafirmar o trabalho como valor de uso, como direito, como

possibilidade de liberdade. Temos clareza que esse objetivo não deve ser almejado apenas

pela geografia e sim pela totalidade do projeto político-pedagógico dos cursos de EJA que

vislumbram a emancipação dos trabalhadores. De qualquer forma, a geografia escolar precisa

repensar e definir novas problemáticas que, sob seu olhar, possam contribuir com tal projeto.

O trabalho sob o contexto histórico do capitalismo é desenvolvido a partir de diversas

temáticas presentes em vários tópicos e atividades didáticas. Destacamos aqui aquelas que

evidenciam tal aspecto sob diferentes ângulos e inseridos em diferentes contextos. A Coleção

ProJovem, por desenvolver conteúdos geográficos relacionados ao tema trabalho basicamente

no volume intitulado Juventude e Trabalho, apresenta as principais questões que envolvem o

trabalho assalariado em tópicos que falam das transformações e da crise que marcam hoje as

relações de trabalho capitalistas. Os impactos das novas tecnologias e as questões relativas ao

desemprego são tratados, conforme analisado no terceiro capítulo, de forma superficial, pois

são privilegiadas apenas a identificação e a constatação do que é vivenciado pelos

trabalhadores. Além disso, a flexibilização do trabalho, ou melhor, das relações de trabalho

não se configuram em objeto de aprofundamento, discussão e debate, pois a abordagem se

mantém na demonstração sobre o que muda com a reestruturação produtiva, mas não avança,

como foi constatado na análise do tópico, no sentido de problematizar essas transformações e

seus significados para a classe trabalhadora. O mesmo acontece com a análise do desemprego

e do mercado informal de trabalho. Exigindo dos alunos apenas o levantamento de

experiências de vida que retratem essa situação em sua realidade cotidiana, a proposta

permanece de novo na constatação do problema. O olhar geográfico deixa de ser acionado

para refletir sobre a espacialidade do fenômeno, principalmente nas grandes cidades do país,

nas quais territórios dominados por trabalhadores informais e ilegais reorganizam o espaço

urbano à luz das necessidades de reprodução dessas atividades.

Os Cadernos de EJA, em função da maior inserção do tema trabalho na seleção dos

conteúdos escolares, apresentam um panorama mais diversificado no tratamento dado aos

aspectos relacionados à forma assalariada de trabalho. Da dura vida cotidiana dos

trabalhadores que habitam as metrópoles à realidade do campo brasileiro, o trabalho

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278

assalariado é visto em seus diferentes modos de realização, a partir dos quais os alunos da

EJA têm a oportunidade de analisar as características comuns à condição de trabalhador, mas

também de perceber as diferentes realidades engendradas por essa forma histórica de trabalho.

A rotina do trabalhador é então evocada tanto na dureza do chão da cidade, onde a segregação

socioespacial é definidora de sua moradia e de sua mobilidade pelo espaço urbano, quanto na

penúria do campo, onde a superexploração e o vaivém causado pelo trabalho temporário da

colheita lhes negam a dignidade humana. Desse modo, a abordagem geográfica dos Cadernos,

ao estimular a reflexão sobre o cotidiano sem, contudo, mantê-lo na superficialidade, desvela

os mecanismos que tornam o trabalho, no contexto do capitalismo, alienador e mutilador da

vida daqueles que dele dependem para sobreviver.

Os exemplos apresentados demonstram o quanto há de espacialidade na interpretação

das relações de trabalho assalariadas, tendo sido algumas aproveitadas didaticamente e outras

não contempladas. Desde situações mais bem analisadas sob ponto de vista local até aquelas

em que a escala nacional e mesmo global propiciam maior poder de compreensão, o trabalho

assalariado – e suas cada vez mais numerosas formas precarizadas – conformam lugares e

territórios, bem como refletem e condicionam a configuração do espaço geográfico. Essa

evidência não pode deixar de ser objeto de atenção da geografia que se ensina na educação

básica, principalmente quando se trata da escolarização de jovens e adultos trabalhadores,

pois o poder de intervenção dessas pessoas na realidade, seja de forma individual ou coletiva,

depende, dentre outros domínios, do saber espacial, isto é, do saber ler e pensar o espaço para

nele atuar politicamente e dele extrair soluções que lhes possam dignificar a vida.

E é justamente a relação entre o trabalho e a produção do espaço geográfico o terceiro

aspecto a ser sistematizado. Duas formas de abordagem são identificadas: uma diz respeito ao

trabalho como transformador e produtor do espaço e a outra refere-se à mobilidade das

pessoas no espaço geográfico mundial em função da histórica busca pela melhor forma de

inserção no mundo do trabalho. Na primeira abordagem, tanto o ProJovem quanto os

Cadernos associam trabalho, natureza, produção e espaço, retomando parte das reflexões já

comentadas acerca do conceito de trabalho. Com a atenção voltada nesse momento para o

papel do trabalho na produção do espaço, a relação sociedade-natureza é vista como pano de

fundo para essa relação. Já na segunda abordagem, os movimentos migratórios são encarados

como um dos impactos territoriais e humanos provocados pela degradação ou precarização

das relações de trabalho capitalistas em diversas regiões do planeta. Nas duas abordagens,

desenvolvidas com diferentes intensidades nos materiais didáticos analisados, os conceitos

geográficos são categorias centrais para a compreensão dos fenômenos em pauta.

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279

A geografia a ser ensinada no ProJovem chama a atenção para o fato de que quase

tudo o que existe no mundo atual foi construído pelo trabalho humano, isto é, “cidades,

lavouras, rodovias, ferrovias, indústrias, hidrelétricas e tantas outras construções humanas são

fruto de muito trabalho e obra de muitos trabalhadores” (SALGADO, 2007e, p. 18). Ressalta

também que esse processo produz paisagens distintas em função da forma desigual com que

ele ocorre nas diferentes regiões do planeta e lança mão da leitura de uma imagem (fotografia

de um aeroporto) para que os alunos reflitam sobre as relações que se estabelecem entre os

homens e entre a sociedade e a natureza para a concretização da construção analisada.

Também ressaltando a paisagem como categoria central da perspectiva geográfica, a

atividade Sociedade e paisagem, presente no caderno Meio Ambiente e Trabalho da Coleção

Cadernos de EJA, vale-se também de uma imagem (fotografia do garimpo de Serra Pelada)

para possibilitar a “compreensão das relações sociais que se estabelecem na sociedade e que

são as geradoras da paisagem” (BRASIL, 2007g, p. 30). Explorando as degradantes condições

de trabalho a que são submetidos os trabalhadores do garimpo, bem como os impactos

ambientais decorrentes dessa atividade, a abordagem geográfica dos cadernos avança mais em

direção à análise crítica, pois estimula a reflexão sobre a ocupação descontrolada de uma

localidade conjugada à agressão ambiental e à precarização das relações de trabalho.

A especificidade da EJA enquanto modalidade de ensino voltada para jovens e adultos

é atendida quando se articula trabalho, seja em seu sentido social seja em sua dimensão

histórica, à produção do espaço. Construir a idéia de que todos são responsáveis por essa

produção, inclusive os trabalhadores, embora a sociedade de classes determine papéis e

responsabilidades diferenciadas nesse processo, constitui-se tarefa da geografia escolar para

todas as modalidades e níveis de ensino. Na EJA, entretanto, a proporção dessa premissa

alcança graus bastante elevados, uma vez que muitos dos alunos já fazem parte do processo

produtivo e já têm demarcado seu lugar na divisão social do trabalho, o que os torna ao

mesmo tempo testemunhas e agentes de todo o processo estudado.

Quanto aos movimentos migratórios, as duas coleções os associam ao mundo do

trabalho na medida em que é a crise que envolve o trabalho, seja em sua forma assalariada ou

de base familiar no caso do espaço agrário, uma das principais razões para os deslocamentos

humanos. Para os autores da geografia do ProJovem, “muitas pessoas se vêem motivadas a

mudar de uma região para outra, ou até mesmo a deixar o país onde nasceram à procura de

melhores oportunidades de trabalho e renda em outros países” (SALGADO, 2007d, p. 31).

Nos Cadernos de EJA, uma das atividades didáticas sugeridas para esse tema tem como

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280

objetivo refletir sobre os movimentos migratórios dentro do país ou para fora dele associando-

os ao atual processo de globalização.

Desse modo, e também ao extrair dos alunos situações reais de vida que se relacionam

a essa questão, os materiais didáticos evocam o mundo do trabalho e o vinculam a razões que

provocam mudanças na configuração territorial de cidades e regiões de diversos países.

Razões que, na atualidade, têm na globalização instaurada pelo processo de reestruturação

produtiva a sua base explicativa. Como atesta Thomaz Júnior (2002):

É recorrente apontarmos que o processo de reestruturação produtiva do capital provoca um extenso conjunto de modificações no âmbito do trabalho e isso remete a profundas alterações no espaço e no território (enquanto categorias de uso interligado), portanto, nas diferentes escalas de análise. Esses referenciais teóricos nos põem na linha de frente para captarmos o movimento através das suas contradições, pelo viés da sua dimensão espacial (p. 5).

Assim, analisar o trabalho sob a perspectiva geográfica é, pois, dar conta não só da

interação metabólica entre o ser social e a natureza, como também considerar a produção do

espaço como processo resultante e condicionante das relações de trabalho. É pensar também

que as ações que redundam na construção e constituição do espaço geográfico fazem parte da

práxis ontológica do trabalho.

Conforme as duas coleções assinalaram em suas páginas, ainda que de diferentes

formas e intensidades, essa perspectiva pode constituir-se em referência para todo o processo

ensino-aprendizagem na geografia que se ensina a jovens e adultos trabalhadores. Sem ela, o

mundo do trabalho pode se deslocar do conteúdo curricular, deixando de ser, portanto, objeto

de reflexão e análise, e significar apenas o atendimento às exigências do mercado e à

preparação de mão-de-obra alienada e dócil aos interesses do capital.

5.1.2 O saber da experiência e os conceitos geográficos cotidianos

Por saber da experiência consideramos o conjunto de saberes adquiridos ao longo da

vida e que não se configuram necessariamente pela forma escolar e sistematizada. Sua

definição precisa, no entanto, é complexa e suscetível a inúmeras interpretações e análises.

Nesse sentido, alertamos para o fato de não podermos aqui dar conta de toda a profundidade

necessária às discussões que envolvem esse conceito, bem como de alguns de seus correlatos,

como senso comum, visão de mundo, cultura popular, pois são construtos abordados de

diferentes formas e sob variados matizes epistemológicos. Apenas expomos brevemente

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281

algumas dessas formas pelo diálogo com autores que tecem considerações acerca dessas

questões, admitindo, contudo, o imperativo desse aprofundamento.

Em algumas perspectivas, o saber da experiência é associado ao senso comum, termo

difundido a partir do pensamento de Antonio Gramsci que, ao analisar a cultura nas

sociedades de classe e a emergência necessária de uma nova cultura para a superação dessa

sociedade, identifica níveis culturais que correspondem a diferentes graus de organização

intelectual e consciência crítica (RUMMERT, 2007a). Dentre esses níveis, o senso comum é

aquele que se refere à concepção do mundo absorvida acriticamente pelos vários ambientes

sociais e culturais, “seu traço fundamental e mais característico é o de ser uma concepção

(inclusive nos cérebros individuais) desagregada, incoerente, inconseqüente, conforme à

posição social e cultural das multidões das quais ele é a filosofia” (GRAMSCI, 2001a, p.

114).

Embora ressalte o seu caráter equivocado e contraditório, o autor não considera o

senso comum como “algo rígido e imóvel, mas [algo que] se transforma continuamente,

enriquecendo-se com noções científicas e com opiniões filosóficas que penetram no costume”

(ibid., p. 209). Desse modo, reconhece, conforme afirma Rummert (2007a), o “’núcleo sadio

do senso comum, no qual reside a capacidade de construção de uma nova concepção de

mundo, coerente, unitária e, portanto, capaz de se constituir como base das transformações da

realidade de exploração” (p. 37). Nesse sentido, a problematização tanto do senso comum

quanto de seu núcleo sadio é que pode propiciar, em qualquer processo educativo, a formação

da nova cultura, que, para Gramsci, “não pode deixar de estar intimamente ligada a uma nova

intuição da vida que chegue a se tornar um modo de sentir e de ver a realidade” (Gramsci,

2002 apud RUMMERT, ibid., p. 38).

Em uma linha de raciocínio bem próxima a Gramsci, Thompson (2005), para quem a

cultura é sempre expressão de correlação de forças, usa o termo costume para designar aquilo

que é adquirido através da interação social, isto é, que está crivado de costumes do grupo

social ao qual se pertence. O costume, entretanto, é, para o autor, um campo de disputa no

qual interesses antagônicos apresentam reivindicações conflituosas. Por isso, chama a atenção

para o cuidado que se deve ter com termos como cultura popular, uma vez que:

[...] uma cultura é também um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa – por exemplo, o nacionalismo, a consciência de classe ou a ortodoxia religiosa predominante – assume a forma de um ‘sistema’. E na verdade o próprio termo ‘cultura’, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa

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282

atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto (p. 17).

Dessa forma, Thompson reconhece que há culturas instituídas a partir das classes

sociais, porém, não desenvolve suas reflexões através de uma visão dicotômica entre elas.

Para o autor, as culturas de classe mantêm uma relação dialética, na qual uma alimenta a

outra. Assim, é possível, para o autor, que um trabalhador, por exemplo, alterne identidades,

reproduzindo um discurso ora conservador ora rebelde. Tomando como base o pensamento

gramsciano, Thompson afirma, então, que essas duas “consciências teóricas” são derivadas de

dois aspectos: “de um lado, a conformidade com o status quo, necessária para a sobrevivência

[...] De outro lado, o ‘senso comum’, derivado da experiência de exploração, dificuldades e

repressão compartilhada com os companheiros de trabalho e os vizinhos” (ibid., p. 20).

Senso comum e cultura ou saber popular podem ser considerados, portanto, o modo

como os grupos e classes subordinadas vivem a sua subordinação, ou seja, são constituídos a

partir da visão de mundo que essas classes sociais estabelecem. Por isso a intrínseca relação

com o conceito de visão de mundo, já que esta representa uma categoria de análise que pode

abarcar tanto o senso comum como a cultura popular. Para Romão (2002):

As visões de mundo, geralmente expressas nas grandes obras políticas, filosóficas, literárias, artísticas, às quais – acrescentaríamos também as obras pedagógicas – apresentam uma estruturação interna que exprime a coerência das atitudes globais das classes sociais diante dos problemas postos pelas relações inter-humanas e pelas relações das pessoas com a natureza. A coerência estrutural não é uma realidade estática, mas uma virtualidade dinâmica no interior dos grupos, uma estrutura significativa para a qual tendem o pensamento, a afetividade e o comportamento dos indivíduos (p. 80).

Essa estrutura significativa da qual fala Romão é forjada desde os primeiros canais de

socialização pelos quais passam todos os indivíduos, processo marcado, por sua vez, pelo

contexto socioeconômico e pelas condições materiais de vida. Tal questão nos remete à

necessidade do diálogo, da alteridade, da exigência em se criar mecanismos que produzam o

conhecimento do outro, para além das verdades absolutas, da imposição de valores

hegemônicos. A escola pública de jovens e adultos trabalhadores deve, então, perceber-se

enquanto ação política direcionada a essa camada da sociedade e a ela deve propiciar o

conhecer do outro e de si. Para tanto, deve examinar o contexto socioespacial no qual se

insere e interpretar a visão de mundo engendrada pelas pessoas que ali vivem.

Não se supõe, no entanto, a visão de mundo da classe trabalhadora como única a ser

considerada, como verdade absoluta. Isso seria negar o diálogo. É preciso, pois, extrapolá-la,

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283

colocá-la em diálogo e confronto com outras visões de mundo, outras formas de

conhecimento. Assim, não se corre o risco da permanência no senso comum. A educação

dialógica, autêntica, de que fala Freire (1987), deseja a emancipação dos sujeitos oprimidos,

prega a prática libertadora e a transformação da sociedade desigual, por isso:

[...] não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo. Mundo que impressiona e desafia a uns e a outros, originando visões ou pontos de vista sobre ele. Visões impregnadas de anseios, de dúvidas, de esperanças ou desesperanças que implicitam temas significativos, à base dos quais se constituirá o conteúdo programático da educação (p. 84).

Tentando aproximar-se dessa perspectiva, as coleções didáticas examinadas neste

trabalho propõem uma série de atividades e tarefas que exigem o levantamento de saberes e

visões de mundo que os jovens e adultos trabalhadores trazem para o espaço escolar. No que

se refere ao conteúdo geográfico, esse saber da experiência é evocado a partir de quatro

dimensões básicas: o espaço vivido, a história de vida, a experiência de trabalho e os

conceitos geográficos cotidianos, conforme exposto no Quadro 6.

O espaço vivido pode ser entendido como uma dimensão da experiência humana dos

lugares, uma vez que “o espaço é cotidianamente apropriado pelos grupos que nele habitam e

lhe conferem dimensões simbólicas e estéticas [...] que dão sentido e espessura a ele, tais

como o sentimento de pertencimento, as imagens dos lugares, a dinâmica identitária, a

experiência estética etc.” (GOMES, 2000, p. 317). Nesse sentido, de acordo com Resende

(1986), “o espaço vivido é sempre descrito e/ou julgado à luz da experiência concreta de

trabalho e sobrevivência, à luz da posição que o sujeito ocupa nas relações sociais de

produção” (p. 156), fato que lhe confere o caráter de representações únicas e particulares,

sem, no entanto, abandonar a interpretação racionalista da abordagem geográfica.

De todas as dimensões do saber da experiência presentes nas duas coleções didáticas,

o espaço vivido é o mais evocado nas atividades e tarefas didáticas de geografia. Encontramo-

lo todas as vezes em que as atividades solicitam o levantamento de percepções relativas ao

lugar em que os alunos vivem ou já viveram. Assim, na Coleção ProJovem, por exemplo,

informações sobre o serviço público e a política locais, a busca por soluções para os principais

problemas vivenciados no local de moradia, a percepção de aspectos da revolução técnico-

científica no espaço de vivência, bem como a comparação das características do lugar onde

vive com outros lugares, são atividades que aparecem ao longo de seus quatro volumes e que,

de certa forma, incitam a emergência de saberes e visões estabelecidas pela experiência de

vida em relação ao espaço onde os alunos vivem, circulam e trabalham.

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284

Na Coleção Cadernos de EJA, as reflexões sobre a vida dos trabalhadores na cidade, a

percepção sobre o trabalho informal no bairro em que moram, a caracterização do espaço em

que vivem a partir dos aspectos vinculados à globalização, bem como o levantamento de

informações e questões referentes ao abastecimento de água ou à geração e coleta de lixo no

local de moradia se constituem em tarefas que exigem dos alunos da EJA o olhar mais atento

à ocorrência de fenômenos socioespaciais em seu cotidiano. Dos quatro cadernos examinados,

apenas aquele que trata de temas ligados ao trabalho no campo apresenta poucas atividades

que dialogam com o saber da experiência, nenhuma delas sobre o espaço vivido.

Embora as duas coleções se utilizem de atividades semelhantes nesse aspecto, há

diferenças em relação à forma com que as desenvolvem. Na Unidade Formativa I do

ProJovem, cujo eixo estruturante é Juventude e Cidade, por exemplo, há uma atividade que

solicita aos estudantes uma pesquisa com os moradores de suas ruas com o intuito de coletar

informações relativas aos principais serviços básicos, como fornecimento de energia,

saneamento básico, transporte público etc. A atividade solicita ainda que seja levantada a

percepção dessas pessoas em relação às vantagens e desvantagens de se viver no lugar, bem

como possíveis soluções e formas de organização para reivindicá-las. Oportunizando a

reflexão sobre o espaço vivido não só dos alunos, mas também de sua vizinhança, esse tipo de

atividade propicia o afloramento de uma rede de valores, representações e imagens espaciais

vividas que demanda, de acordo com Gomes (2000), um trabalho de interpretação

aprofundado. E é aí, nesse aprofundamento, que o ProJovem não chega, pois ao resultado da

pesquisa não são articuladas as principais causas das precárias situações em que se encontram

as periferias das cidades brasileiras, local de moradia de boa parte do público atendido pelo

Programa. Apenas a constatação da precariedade é proporcionada.

Na Coleção Cadernos de EJA, o volume intitulado Globalização e Trabalho contém

uma atividade que associa as perversidades e possibilidades do mundo globalizado ao espaço

de vivência dos alunos. A tarefa solicitada envolve a caracterização do território em que o

aluno vive, isto é, indaga sobre como as pessoas produzem sua existência e sobre os limites

desse território do ponto de vista socioeconômico e ambiental, bem como exige a percepção

em relação às perversidades da globalização que ali se manifestam. Pede, em seguida, a

investigação de movimentos ou grupos atuantes no local que reivindicam “ações inclusivas”,

sugerindo, inclusive, entrevistas com lideranças desses movimentos. O contexto dessa

atividade é a discussão em torno do lado perverso e desigual da globalização, o que faz com

que os estudantes tenham condições de chegar a uma concepção mais crítica e ampliada cuja

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285

Quadro 6: SABER DA EXPERIÊNCIA E CONHECIMENTOS GEOGRÁFICOS

Saber da experiência

Material didático

Espaço vivido

História de vida

Experiência de trabalho

Conceitos

geográficos cotidianos

UF I Juventude e

Cidade

Geografia no dia-a-dia

Periferia urbana Serviço público local

Vida política local Solução para

problemas locais

Participação no movimento hip-hop ou

outro grupo

x

Conceito de Geografia

Conceito de segregação

socioespacial

UF II Juventude e

Trabalho

Revolução

científica no dia-a-dia

Economia solidária no local onde vive

Participação em movimentos pela

igualdade de direitos Relação com alguém que

tenha migrado Profissão desejada

Hábitos / desejos de lazer

Inserção no mercado informal

Experiências no mundo do trabalho

Conceito e causas do desemprego

UF III Juventude e

Comunicação

Elaboração de planta ou maquete

da sala de aula

Relação cotidiana com os meios de

comunicação de massa

x

x

Coleção ProJovem

UF IV Juventude e Cidadania

Política, poder e

cotidiano da cidade em que vive

Diferenças do lugar onde vive em relação ao restante do Brasil

x

x

Conceito de cidadania

Conceito de território

Caderno Emprego e Trabalho

Vida de

trabalhador na cidade (transporte

e moradia) Trabalho informal

no bairro

Pesquisa sobre grau de escolaridade em

trabalhadores submetidos ao

trabalho informal

Participação em sindicatos

Experiência de desemprego

x

Caderno Globalização e

Trabalho

Globalização e percepção do espaço

Caracterização do espaço em que vive

Globalização no cotidiano dos alunos Espaço de origem da

família

Origem familiar e

migração

História e origem da família

Experiência de desemprego

Conceito de território

Conceito de globalização

Caderno Meio Ambiente e

Trabalho

Abastecimento de água no local em

que vivem Geração de lixo no local de moradia

x

x

x

Coleção Cadernos de EJA

Caderno Trabalho no

Campo

x

x

x

Conceito de cidade

Conceito de campo

Fonte: Coleção ProJovem (2007); Coleção Cadernos de EJA (2007).

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286

construção partiu justamente do espaço vivido e percebido em seu cotidiano. Dessa maneira, a

possibilidade da efetivação de uma superação dialética em torno do que era apenas constatado

pela vivência, pelo senso comum, é propiciada pela problematização desse “espaço real”,

fruto da experiência imediata da vida.

Um outro tipo de ação educativa que proporciona o diálogo com o saber da

experiência é o trabalho com a história de vida. São classificadas como tal as atividades que

evocam trajetórias de vida ou fragmentos destas, como também iniciativas passadas e também

presentes dos alunos e/ou de suas famílias, em geral obtidos através de depoimentos orais.

Segundo Schmidt e Cainelli (2004), o trabalho com a história de vida “constitui-se de vários

tipos de relatos dos sujeitos históricos, acerca da própria existência, pelos quais se podem

conhecer suas relações com seu grupo de pertencimento, de profissão, de classe e da

sociedade em que vive” (p. 126).

Como se pode perceber no quadro das atividades, algumas tarefas que envolvem a

história de vida são disponibilizadas nas coleções, como a história e origem da família do

aluno, a participação em movimentos pela igualdade de direitos ou ainda depoimentos sobre a

profissão desejada, dentre outras. A sessão de relatos orais sugerida no caderno Globalização

e Trabalho dos Cadernos de EJA, por exemplo, é uma clássica atividade de história de vida.

Nela são solicitados depoimentos dos alunos sobre os motivos que fizeram suas famílias

deixarem seus locais de origem, bem como os lugares e regiões que percorreram. Outras

tarefas não tão clássicas, no entanto, também servem como gancho para depoimentos sobre

momentos específicos da história de vida do estudante, como, por exemplo, a série de

perguntas relacionadas à participação do aluno em algum grupo ou movimento como o hip-

hop, conforme aparece na unidade Juventude e Cidade da Coleção ProJovem. Todas elas,

porém, só cumprem adequadamente a função da história de vida como atividade pedagógica

se são articuladas aos fenômenos históricos e geográficos a partir dos quais foram pensadas,

caso em que se encontram os dois exemplos citados.

Além do espaço vivido e da história de vida, os saberes e as experiências adquiridas no

mundo do trabalho se configuram em processos igualmente importantes no processo

pedagógico com a EJA. Como se vê no quadro de atividades, porém, essa é a dimensão menos

solicitada nas atividades relativas à geografia, muito em função, talvez, do pouco

reconhecimento do trabalho como um tema geográfico. Quando aparecem, estão ligadas

geralmente às experiências referentes a situações de desemprego ou a inserções do aluno ou

de conhecidos e familiares no mercado informal. Chama a atenção, porém, a tarefa que o

caderno Emprego e Trabalho sugere, perguntando sobre a participação dos alunos em

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movimentos sindicais ou outras organizações trabalhistas. Podendo também evocar

fragmentos da história de vida, a tarefa tem o mérito de, a partir dessa experiência ou da

ausência dela, contextualizar historicamente as principais conquistas trabalhistas

relacionando-as a esse tipo de manifestação e mobilização.

Por fim, também como uma ação que evoca os saberes da experiência, o levantamento

de conceitos cotidianos é analisado. Sendo utilizado em vários tópicos e atividades das duas

coleções, tal levantamento introduz, em geral, o tratamento dado a algum assunto que

necessite dos conceitos em questão. No caso da geografia, algumas tarefas solicitam o

conhecimento prévio de alguns de seus conceitos estruturantes, como território, ou mesmo a

visão que o aluno traz sobre a própria geografia. Na maior parte dos casos, entretanto, a

solicitação se refere a conceitos específicos de alguma temática, como segregação

socioespacial, desemprego, cidadania, globalização, cidade e campo. De qualquer forma, tal

ação pedagógica se mostra fundamental para evidenciar aquilo que Resende (1986) chama de

saber geográfico pré-escolar que surge da vivência prática e social do trabalhador, o saber

peculiar sobre o espaço real, isto é, “aquele espaço cuja lógica eles experimentam na própria

carne, espaço que faz parte de suas histórias, das múltiplas atividades que ‘enchem’ suas

vidas” (p. 20).

Cabe ressaltar que esse saber se constrói na forma de conceitos cotidianos, isto é,

conceitos que, em contraposição aos conceitos científicos, são elaborados ao nível do

cotidiano das pessoas. Vygotsky, segundo Cavalcanti (1998), considera que “o processo de

formação de conceitos cotidianos é ‘ascendente’, surgindo impregnado de experiência mas de

uma forma ainda não consciente e ‘ascendendo’ para um conceito conscientemente definido”

(p. 27). Função essencial da escola, o desenvolvimento do pensamento conceitual, ainda de

acordo com a autora, permite uma mudança na relação cognoscitiva com o mundo, uma vez

que “os conceitos científicos têm o papel de propiciar a formação de estruturas para a

conscientização e ampliação de conceitos cotidianos, possibilitando, assim, o

desenvolvimento intelectual” (p.28).

No caso do ensino da geografia para jovens e adultos trabalhadores, é imprescindível

considerar a construção de conceitos cotidianos a partir das percepções, vivências,

experiências e memórias dos alunos. Sendo assim, o educador, cujo papel é o de mediador no

encontro entre esses dois tipos de conceito, deve levar em conta os saberes produzidos fora da

escola, reconhecê-los como legítimos e identificá-los às visões de mundo engendradas a partir

do lugar social que essas pessoas ocupam, geralmente permeado por precárias condições de

trabalho e de sobrevivência.

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288

Contudo, uma importante questão merece ser destacada e comentada. Notamos, em

muitas atividades e tarefas, que esse conhecimento prévio à escolarização que o saber da

experiência institui não é objeto de intervenções mais diretas. Queremos dizer com isso que,

em geral, esse conhecimento é estimulado, seja no levantamento do espaço vivido, da história

de vida, da experiência de trabalho ou dos conceitos cotidianos, mas é pouco problematizado.

Na análise da Coleção ProJovem, anunciamos a transformação desse procedimento

metodológico em clichê em virtude exatamente do uso não problematizador das opiniões e/ou

saberes adquiridos na experiência da vida dos alunos. Estimulá-los para em seguida

desconsiderá-los a favor do conhecimento escolar sem nenhuma problematização pode tornar

a atividade tão ou mais perversa quanto se não a se realizasse. Nos Cadernos de EJA, as

tarefas se apresentam um pouco mais cuidadosas nesse aspecto, mas, ainda assim, também

não avançam no sentido de fornecer ao professor reflexões sobre os objetivos e intenções

desse tipo de atividade, bem como a melhor dinâmica para desenvolvê-la.

A questão se torna grave porque a contraposição de saberes e das visões de mundo

através da imposição de valores por parte dos educadores tem sido a marca do processo de

escolarização. Isso porque boa parte dos educadores que trabalham na escola pública emerge

de outros extratos de classe, sendo detentores, portanto, de visões de mundo distintas da maior

parte de seus alunos. Estes, por sua vez, raramente externalizam suas visões e saberes, pois,

incorporando a condição de subalternidade, acabam por considerá-las sem valor e

inadequadas. Por isso, dar voz a quem a sociedade sempre calou, deixar que ele diga como vê

o mundo e como interpreta a sociedade é tarefa essencial na EJA, porém essa ação deve ser

acompanhada de extremo cuidado para não se reforçar preconceitos arraigados ou então, na

tentativa de acelerar o processo, acabar falando pelo outro, dizendo pelo outro aquilo que

somente ele, e seus pares, têm propriedade para dizer. No outro extremo, também não se pode

deixar de problematizar e tencionar esse conhecimento prévio sob o risco de não contribuir

para a superação dialética e a construção da consciência filosófica por parte dos alunos.

No ensino de geografia, a percepção do espaço profundamente ligada à experiência

vivida não pode valer, segundo Resende (2005), como verdade científica, pois raramente

transcende o particular em direção ao geral. Entretanto, rica porque intensa e subordinada à

divisão social do trabalho, tal vivência se torna necessária à educação geográfica “pelo seu

caráter, enfim, de saber originário produzido pela ação do homem sobre a natureza, mas que

é, via de regra, deliberada ou inadvertidamente ignorado pela escola, isto quando não

simplesmente considerado um obstáculo ao verdadeiro saber” (ibid., p. 87). Corroborando

com o pensamento de Thompson (2002), que afirma ser “sempre difícil conseguir o equilíbrio

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289

entre o rigor intelectual e o respeito pela experiência” (p. 46), consideramos essa questão um

dos maiores desafios no trabalho pedagógico com alunos jovens e adultos trabalhadores.

5.2 OS DILEMAS DA GEOGRAFIA NAS PROPOSTAS CURRICULARES DA EJA

A trajetória histórica da geografia escolar brasileira demonstra, conforme

apresentamos no segundo capítulo desta tese, a existência de diversos movimentos que

imprimiram rupturas em relação às correntes antecessoras, mas ao mesmo tempo mantiveram

características que se adaptaram ou mesmo se cristalizaram no processo de constituição do

conhecimento geográfico escolar. Tal evolução, com suas ambiguidades e contradições, fez

com que o processo de recontextualização de saberes e discursos geográficos acadêmicos e

científicos para o contexto escolar se caracterizasse por um hibridismo bastante complexo e

instigante. Em função disso, e também em virtude da crise paradigmática que se abate sobre a

ciência geográfica, a escola e a própria teoria social neste período de fim/início de milênio, a

geografia escolar coleciona uma série de dilemas que devem ser considerados em qualquer

trabalho que a tenha como objeto central de análise.

A relação entre o conhecimento geográfico produzido através da pesquisa científica e

aquele construído para o processo de escolarização já foi tratada em outros capítulos desta

tese, mas retomamos aqui o debate em função do conteúdo que ora apresentamos. Identificar

e pensar sobre os dilemas que afligem hoje a educação geográfica é, de certa forma, refletir

também sobre os desafios que se põem à geografia acadêmica. A crise pela qual ambas

passam é interligada, sendo a identidade científica da geografia e sua socialização no âmbito

escolar, segundo Daudel (1990), o cerne do problema. Partindo do pressuposto de que o

interesse pela geografia induz ao mesmo tempo as motivações do pesquisador e do professor,

Daudel aponta três níveis de reflexão que podem ajudar no debate em torno dos grandes

dilemas: 1) a identificação dos tipos de solidariedade entre geografia escolar e ciência

geográfica; 2) as diferenças entre ambas; 3) a dependência do progresso da didática da

geografia em relação ao progresso da epistemologia da geografia. Nesse sentido, o autor

indaga sobre a forma com que os progressos da pesquisa geográfica repercutem ou não sobre

a difusão e o ensino da ciência e, já tentando refletir sobre a questão, afirma:

Os temas de estudo dos pesquisadores são submetidos a uma evolução contínua do pensamento geográfico. Em compensação, os programas escolares, nesta disciplina, são o resultado de um dado momento, de uma escolha para a qual a evolução se fez gradualmente, numa situação em que se tratava justamente de se ratificar profundas

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290

modificações já produzidas no setor da pesquisa, e que a grande inércia dos cursos escolares não havia permitido considerá-las anteriormente (p. 74).

Embora consideremos as diferentes configurações e finalidades do ensino e da

pesquisa, concordamos com Daudel no que se refere à clara ligação entre ambos, pois sem ela

o ensino corre o risco de se tornar, na melhor das hipóteses, puro empirismo, e na pior, mero

formalismo. Desse modo, desafios se interpenetram e aos dilemas da geografia escolar

advindos do âmbito da ciência se somam aqueles originados no seio da escola, frutos da crise

de modelos educativos e das tradições pedagógicas.

Dentre tantos desses dilemas que poderíamos aqui elencar, selecionamos dois que vêm

marcando a seleção e a organização de conteúdos geográficos escolares: a relação sociedade-

natureza e o recorte espacial privilegiado para a análise dos fenômenos geográficos. O

primeiro é derivado diretamente dessa relação entre ciência e escola que acabamos de

apresentar. A discussão entre sociedade e natureza na geografia remonta sua própria gênese

enquanto ciência moderna, tendo a acompanhado ao longo de todo o seu processo evolutivo e

chegando aos dias atuais ainda como uma grande questão a ser debatida e enfrentada. Nas

escolas, a discussão em torno do que ensinar em geografia no que se refere a essa questão,

expressa na velha dualidade entre geografia física e geografia humana, revela muitas

dificuldades e dúvidas por parte de autores de livros didáticos, professores e formuladores de

propostas curriculares.

Por isso, trazemos para o âmbito da EJA o debate em torno dessa questão a partir do

exame de seu tratamento nos materiais didáticos que formam a base empírica de nossa

pesquisa. A investigação e a sistematização aqui expostas pretendem evidenciar a maneira

com que os autores das duas coleções selecionam e organizam conhecimentos voltados para a

dinâmica da natureza e aqueles mais relacionados à dinâmica social. Possíveis diálogos,

dicotomias e abandonos formam o alvo para o qual dirigimos nossas atenções, sempre tendo

em mente o contexto da escolarização de trabalhadores.

O outro dilema diz respeito às escalas de análise ou escalas geográficas. Questão

crucial para a pesquisa geográfica, o problema das dimensões escalares e a definição dos

conjuntos espaciais é preocupação antiga entre geógrafos, tendo sido retomada com mais

vigor e crítica desde Lacoste (2005). Para Castro (2003), isso ocorre porque “o problema do

tamanho é, na realidade, intrínseco à análise espacial e os recortes escolhidos são aqueles dos

fenômenos que são privilegiados por ela” (p. 121). Ainda segundo a autora, na geografia

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291

humana, por exemplo, “os recortes utilizados têm sido o lugar (e seus diversos

desdobramentos – cidade, bairro, rua, aldeia etc.), a região, a nação e o mundo” (ibid., p. 121).

No ensino de geografia na educação básica, a problemática das escalas de análise e dos

recortes espaciais têm se dado em função dos questionamentos sobre o predomínio da região

como um dos principais critérios para o estabelecimento da programação curricular da

disciplina. Estabelecida como a razão de ser da geografia desde os tempos de Vidal de La

Blache, a dimensão regional se constitui até hoje em recorte privilegiado em várias coleções

didáticas e na prática de boa parte dos professores. Em geral, a divisão por regiões parte do

recorte nacional, mas é a região que acaba dando o tom do conteúdo geográfico, muito em

virtude da herança da diferenciação de áreas como principal objeto de estudo da geografia.

Para Callai (1998), no entanto, “os fenômenos acontecem no mundo, mas são

localizados temporal e territorialmente em um determinado local” (p. 57). Por isso, para que a

abordagem geográfica consiga dar conta das explicações dos fenômenos espaciais, há que se

considerar os diferentes níveis de análise: o local, o nacional, o regional e o global.

Corroborando a necessidade da transversalidade entre as escalas, a autora ainda esclarece que,

ainda que a maioria dos fenômenos possa ser evidenciada na escala local, “outros níveis de

análise devem ser considerados ou esgotados. Caso contrário, há o risco de explicações

simplistas, que não abarcam toda a análise necessária e que justificam, de forma natural,

problemas que são essencialmente sociais ou que decorrem de situações sociais” (ibid.).

Na EJA, tal debate se torna urgente e necessário em virtude de muitas propostas

curriculares conduzirem os critérios de seleção de temas e conteúdos a partir da realidade

local vivenciada pelos alunos. Concordando com essa prerrogativa, porém preocupados com

leituras equivocadas que acabam por reduzir ao estudo do lugar todo o conhecimento

geográfico escolar, examinamos aqui como essa problemática se dá nas coleções didáticas em

tela. Com base nas reflexões de Callai (ibid.), indagamos sobre o espaço a ser estudado nessas

propostas, sobre os recortes espaciais privilegiados, sobre os critérios que estabelecem esses

recortes e de que forma se os consideram.

Assim, os dilemas da educação geográfica são investigados tendo como base a sua

recontextualização para o ensino fundamental de jovens e adultos trabalhadores. Para tanto, os

conteúdos das coleções que, de alguma forma, se vinculam a essas questões são

sistematizados e contrapostos às principais reflexões teórico-metodológicas que analisam

criticamente a temática abordada.

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292

5.2.1 Sociedade, natureza e produção do espaço

O conhecimento escolar de geografia é sistematizado e analisado nesta seção tendo

como eixo central a dualidade sociedade-natureza. Tal escolha se deve em função de duas

práticas que podem ser, em geral, encontradas na geografia que se ensina/aprende nas escolas:

o abandono quase total da gama de conhecimentos referentes à dinâmica da natureza, a

chamada geografia física; e, a despeito da corrente do pensamento geográfico, bem como da

tendência pedagógica adotada, a forte presença dessa dualidade na ação curricular, expressa

através da pouca ou nenhuma articulação entre a dinâmica da natureza e a dinâmica social na

explicação dos fenômenos em sua espacialidade. Pretendemos então examinar a forma com

que essa questão é abordada nas propostas curriculares selecionadas e contribuir para a

discussão em torno da razão e do sentido da educação geográfica para alunos trabalhadores.

Nessa perspectiva, julgamos importante uma breve reflexão sobre a maneira como os

conceitos de natureza e de sociedade têm sido abordados pela geografia, para podermos,

assim, levantar as questões necessárias ao processo de investigação que ora apresentamos.

Podemos dizer que a dualidade entre sociedade e natureza presente na geografia a

acompanha desde a sua constituição enquanto campo de saber científico, em meados do

século XIX. Da intenção inicial em se construir como uma ciência que pretendia a integração

dos conhecimentos relativos ao homem e à natureza, a geografia logrou poucos avanços,

sendo comum a todas as tentativas de definição acerca do seu objeto central de estudo a

dificuldade em articular esses dois ramos do saber (PEREIRA, 1999). De acordo com Pereira

(idem), essa dificuldade tem origem, na verdade, na própria visão de mundo que se encontra

na raiz do pensamento ocidental. Nesse sentido, a filosofia da ciência nos ajuda a explicar a

dualidade sociedade-natureza porque, para além da geografia, o pensamento positivista, base

epistemológica encontrada na gênese da ciência moderna, dicotomizava os conceitos de

homem e de natureza a partir de uma concepção mecânica e fragmentária de ambos. Portanto:

Filha do século XIX, a geografia é moldada à sua imagem e semelhança, no bojo de um movimento global de fragmentação do conhecimento que dá origem a uma série de ciências naturais e ciências humanas. A divisão intelectual do trabalho científico tem sua origem no processo de divisão do trabalho em geral, fenômeno típico da sociedade capitalista, já que esta, ao dividir o trabalho, parcelou-o de tal forma que tornou necessária, ao mesmo tempo, a divisão também no plano teórico (ibid., p. 57).

À geografia, então, só restou seguir as concepções hegemônicas, tendo, porém,

extrema dificuldade tanto em se constituir na interseção entre as ciências naturais e humanas

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293

quanto em romper com essa concepção de sociedade e de natureza, mesmo quando filiações

teóricas críticas passaram a ser utilizadas como referenciais para os estudos e as pesquisas

realizadas em seu âmbito. Para Moreira (2006), isso se deve ao fato de a geografia operar

ainda hoje com um conceito de natureza “restrito à esfera do inorgânico, fragmentário e

físico-matemático do entorno natural” (p. 47). Desse modo, não distinguimos natureza de

fenômenos naturais, pois:

Vemos a natureza vendo o relevo, as rochas, os climas, a vegetação, os rios etc. E conhecemo-la medindo as proporções matemáticas e descrevendo os movimentos mecânicos das relações de seus corpos. Dito de outro modo, a natureza que concebemos é a da nossa experiência sensível, cujo conhecimento organizamos numa linguagem geométrico-matemática. É uma totalidade fragmentária, que então só ganha unidade mediante suas ligações físico-matemáticas. [...] Tudo legitimado na concepção de que a esfera orgânica é especialidade de outras ciências, a exemplo da biologia, a “ciência da vida”, numa noção de tarefa característica do sistema de ciências criado no meado do século XIX e ainda vigente no mundo acadêmico (ibid., p. 47-8).

A questão é grave e controversa, atingindo em cheio a geografia escolar que, assim

como a vertente acadêmica, não tem conseguido superar a visão dicotômica. Tal fato mantém

e reforça no saber escolar algo também presente no senso comum, uma vez que percebemos

em diversas esferas da vida cotidiana (políticas públicas, informações veiculadas nos meios de

comunicação, ações individuais etc.) a mesma dualidade, a mesma fragmentação.

Consideramos, no entanto, que dentre as poucas experiências que lograram ultrapassar essa

visão de mundo várias podem ser encontradas no âmbito da educação escolar, sendo essa

característica mais uma evidência que marca a diferença entre a geografia escolar e geografia

acadêmica.

Acreditamos que a EJA pode ser a modalidade de ensino na qual a tensão entre a

concepção dualista e a visão integradora da relação sociedade e natureza seja mais intensa,

justamente por se tratar de um público cujos conceitos cotidianos se encontram mais

enraizados e densos. Entretanto, apostando na potencialidade da educação geográfica e, ao

mesmo tempo, levando em conta que o trabalho escolar é possibilitador da superação dialética

de saberes, trazemos o desafio de sistematizar e analisar os conteúdos programáticos de EJA a

partir dessa perspectiva. Contribuir para outras possibilidades de análise, pois, é o que nos

instiga.

Nas duas coleções examinadas, a relação sociedade-natureza nos conteúdos

geográficos se dá de forma esparsa e concentrada, conforme pode ser observado no quadro

dos tópicos e atividades (Quadro 7). Esparsa porque sua aparição é rara ao longo das duas

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294

coleções, e concentrada porque se faz presente em poucos volumes, como é o caso do caderno

Meio Ambiente e Trabalho da Coleção Cadernos de EJA. A maneira com que a relação é

abordada também é diferenciada ao longo da seqüência de temas e conteúdos, podendo ser

encontrada ou como uma questão conceitual, quando se pretende construir determinados

conceitos, ou na forma de conteúdos relativos à dinâmica da natureza (biomas, formação do

relevo, elementos e características de tipos climáticos etc.) ou ainda como temáticas

relacionadas a problemas, conflitos e impactos socioambientais. Na sistematização aqui

desenvolvida, a análise tem como base essas três formas de abordagem da relação sociedade e

natureza e os conhecimentos geográficos a elas vinculados.

Na Coleção ProJovem, é notória a ausência dessa problemática nas ciências humanas,

área em que se encontra a geografia. Acreditamos que muitos dos conhecimentos relativos a

essa questão, principalmente os mais relacionados à dinâmica e aos elementos da natureza,

tenham sido explorados na programação curricular das ciências naturais, fato que revela tanto

o abandono da geografia física quanto o distanciamento dos conhecimentos das ciências

humanas, e principalmente da geografia, em torno das reflexões acerca da natureza. Já os

Cadernos de EJA apresentam em sua programação uma série de atividades didáticas que

tratam de temas relacionados à questão em tela e, ainda que também sejam marcadas pela

concentração em alguns volumes, tais atividades se constituem em interessantes momentos de

reflexão e aprofundamento acerca da relação entre fenômenos sociais e naturais.

Cabe ressaltar que alguns tópicos e atividades das coleções apresentam grande

potencialidade para o tratamento de uma das formas de articulação entre as dinâmicas social e

da natureza, mas não tendo sido opção dos autores das propostas, o que poderia ser uma rica

discussão em torno dessa articulação acaba não passando de possibilidades que os professores

podem ou não aproveitar em suas aulas. De qualquer maneira, também sistematizamos essas

possibilidades com o intuito de chamar a atenção para a relevância das temáticas deixadas de

lado como também para revelar o quanto a articulação entre sociedade e natureza contribui

para a compreensão da complexidade que envolve os fenômenos socioespaciais.

No que se refere à questão conceitual, a natureza é evocada nos momentos em que as

definições de geografia e de trabalho são desenvolvidas. No ProJovem, ela aparece quando à

geografia é atribuída extrema importância por permitir conhecer mais sobre a sociedade e a

natureza, embora, como já dissemos, esse “conhecer mais” sobre a natureza não tenha feito

parte dos conteúdos geográficos selecionados pela proposta curricular do Programa. Em

relação ao conceito de trabalho, o texto didático trata da apropriação social da natureza e das

alterações que o trabalho humano provoca nas relações entre elementos naturais ao

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295

transformá-los em recursos. Trazendo à tona o conceito de segunda natureza, os autores ainda

atribuem a esse trabalho transformador da sociedade humana a produção do espaço

geográfico.

Quadro 7: SOCIEDADE, NATUREZA E GEOGRAFIA

Relação Sociedade-natureza

Material didático

Questão conceitual

Dinâmica da natureza

Questão ambiental

UF I

Juventude e Cidade

Definição de Geografia

x

Qualidade de vida

nas cidades

UF II

Juventude e Trabalho

Conceito de trabalho

x

x

UF III

Juventude e Comunicação

x

Há possibilidades:

cartografia

Há possibilidades:

problemas ambientais globais

Coleção ProJovem

UF IV

Juventude e Cidadania

x

x

Há possibilidades:

cidadania e problemas

socioambientais

Caderno

Emprego e Trabalho

Conceito de trabalho

Estações do ano, clima

x

Caderno

Globalização e Trabalho

x

Há possibilidades:

conceito de refugiados ambientais

Há possibilidades:

problemas ambientais globais

Caderno Meio

Ambiente e Trabalho

Conflitos ambientais e

capitalismo Desenvolvimento

sustentável

Bioma Cerrado brasileiro Bioma Pantanal

Clima, rede hidrográfica Água, recurso hídricos

Impactos socioambientais:

soja, Pantanal, água, transição

demográfica, lixo, energia

Coleção Cadernos de EJA

Caderno

Trabalho no Campo

Produção e dinâmica da natureza

Desenvolvimento sustentável

Clima, solos, ecossistemas

Há possibilidades: questão indígena, demarcação de

terras

Fonte: Coleção ProJovem (2007); Coleção Cadernos de EJA (2007).

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296

Na Coleção Cadernos de EJA, o trabalho volta ser conceituado a partir da relação que

os seres humanos estabelecem com os elementos naturais que os circundam. De acordo com o

descrito no quarto capítulo, uma das atividades didáticas sugerida pelo material toma como

base duas paródias da fábula A cigarra e a formiga e centra o debate em torno da forma com

que os autores dessas paródias concebem a apropriação da natureza em seus textos. Com isso,

a atividade propicia a identificação dos elementos naturais como recursos necessários à

produção da existência humana, a problematização da relação sociedade-natureza e ainda

revela o caráter social e ontológico do trabalho humano.

O conceito de natureza, na verdade, não é aprofundado em nenhum das partes

referentes ao conteúdo de geografia das duas coleções. Seu tratamento sempre é associado ao

desenvolvimento de outros conceitos, por isso aparece articulado à dinâmica social. De

qualquer maneira, a tendência verificada nas duas propostas, mesmo não muito aprofundada

nos textos didáticos, segue a perspectiva dialética na qual sociedade e natureza não são vistas

de forma dicotômica a partir de uma percepção antropocêntrica e sim como dimensões

relacionais que dão sentido à existência humana e à sua condição social. Nessa concepção

marxiana, ser humano é então natureza, uma vez que esta não pode ser vista como algo

exterior à sociedade, pois tanto o sujeito – o trabalhador – como o objeto – a matéria-prima a

ser transformada – são fornecidos pela natureza ao trabalho.

Para Foster (2005), Marx definiu o processo do trabalho como “um processo entre o

homem e a natureza, um processo pelo qual o homem, através de suas próprias ações, medeia,

regula e controla o metabolismo entre ele mesmo e a natureza” (p. 201). As relações de

produção capitalista e a separação antagonista entre cidade e campo, no entanto, causaram

uma falha irreparável neste metabolismo. Ainda de acordo com o autor:

O conceito de metabolismo, com as suas noções subordinadas de trocas materiais e ação regulatória, permitiu que ele [Marx] expressasse a relação humana com a natureza como uma relação que abrangia tanto as “condições impostas pela natureza” quanto a capacidade dos seres humanos de afetar esse processo (ibid., p. 223).

A ideia de falha nessa relação metabólica surge para melhor expressar “a alienação

material dos seres humanos dentro da sociedade capitalista das condições naturais que

formaram a base de sua existência – o que ele chamou de ‘a[s] perpétua[s] condição[ões] da

existência humana imposta[s] pela natureza” (ibid., p. 229). Tal alienação se constitui a base

que regula a produção e a dinâmica da natureza no capitalismo, fenômeno que promove boa

parte dos intensos conflitos socioambientais que a humanidade enfrenta hoje.

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297

Seguindo o tratamento conceitual dado à relação sociedade-natureza, os Cadernos de

EJA abordam exatamente o conceito de conflito socioambiental quando discutem a situação

do garimpo de Serra Pelada (PA) como um claro exemplo da associação entre degradação

ambiental, acumulação privada do capital e exploração do trabalho humano. É nesse sentido

também que duas atividades didáticas presentes nos cadernos Meio Ambiente e Trabalho e

Trabalho no Campo desenvolvem conhecimentos e reflexões acerca da monocultura da soja,

da produção de biodiesel, do modelo de desenvolvimento econômico e do conceito de

desenvolvimento sustentável. Nelas é estimulado o debate sobre alternativas econômicas à

soja no Centro-Oeste que levem em conta os interesses relativos à qualidade de vida da

maioria da população, bem como a importância do biodiesel como fonte alternativa de

energia, sendo o desenvolvimento sustentável a meta a ser alcançada.

A relação entre desenvolvimento econômico e dinâmica da natureza é de fato

abordada em uma perspectiva crítica nesses Cadernos. No entanto, o desenvolvimento

sustentável é apresentado sem discussão mais aprofundada sobre o conceito e tomando-o

como algo positivo, fato que causa estranheza em função da polêmica que se institui em seu

entorno. Considerado por muitos como uma maquiagem ambiental do velho

desenvolvimentismo com centro no mercado e nas premissas capitalistas, o desenvolvimento

sustentável é questionado, segundo Layrargues (1997 apud Rua, 2001), justamente por não

atacar o excessivo consumo dos países centrais e das classes mais privilegiadas nem a lógica

de mercado responsável por esse consumo, o que retira do debate o componente ideológico da

questão ambiental.

Prosseguindo a sistematização, voltamo-nos para a análise dos conteúdos geográficos

relativos à dinâmica da natureza. Como exposto no quadro de atividades, a geografia que se

ensina no ProJovem abandona por completo os conhecimentos de geografia física, havendo

apenas alguma possibilidade de abordagem por parte do professor no tópico que trata da

cartografia escolar, mesmo assim em forma de temas ou fenômenos a serem representados

cartograficamente. Nos Cadernos de EJA, a situação é um pouco diferente, embora a maior

presença esteja concentrada no caderno Meio Ambiente e Trabalho. No caderno Emprego e

Trabalho, a atividade que gira em torno da paródia sobre a fábula A cigarra e a formiga, já

comentada anteriormente, estimula um tímido debate sobre estações do ano e clima,

dependendo de seu aprofundamento a opção metodológica do professor. O mesmo acontece

no caderno Trabalho no Campo, no qual é estimulada uma breve discussão acerca da relação

entre clima, tipos de solos e ecossistemas na produção agrícola. No caderno Globalização e

Trabalho, não há conteúdos, apenas uma possibilidade de abordagem quando a atividade

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298

sobre migração e refugiados lança o conceito de refugiados ambientais, sem, contudo,

aprofundá-lo, ação que provavelmente necessitaria do entendimento de algumas

características da dinâmica da natureza.

Conteúdos da geografia física só aparecem, porém, com mais intensidade no caderno

dedicado ao meio ambiente. Nele estão presentes diferentes atividades didáticas que tratam do

conceito de bioma, das características naturais do Cerrado e do Pantanal, assim como o

conceito de rede hidrográfica e sua articulação com a política de recursos hídricos no Brasil.

Dessa forma, alguns fenômenos naturais são contemplados sempre como contribuição para a

compreensão de fenômenos e questões que compõem a dinâmica da sociedade. Propicia-se,

assim, a visão de que conhecimentos da geografia física e da geografia humana se articulam a

partir da perspectiva de que a natureza não é isolada do homem, pois a sua incorporação à

vida humana tem sido, na verdade, um longo processo. Por meio do trabalho e dos sistemas

técnicos cada vez mais complexos, a sociedade humana se apropria do espaço natural,

desenvolvendo não só as atividades econômicas que lhe sustentam a sobrevivência, mas

também diferentes formas de interpretar simbólica e politicamente esse processo histórico.

Isso significa dizer que “a questão do meio ambiente é um problema que enfrentamos hoje,

mas que é resultado de toda uma história de nossa relação com a natureza”, expressando,

assim, a história dos homens em um determinado lugar (CALLAI, 1997, p. 19).

Logo, a abordagem da temática ambiental na geografia física, e por extensão na

geografia como um todo, se justifica em função da compreensão da escala de longo prazo dos

fenômenos da natureza, detentores de uma lógica interna de evolução que precisa ser estudada

e evidenciada. Essa reflexão é de extrema importância em sua articulação com os fenômenos

socioeconômicos, pois permite a compreensão do grau de interferência destes na dinâmica da

natureza (ibid.). Tomando “o espaço geográfico como um conjunto uno e múltiplo aberto a

múltiplas determinações” (SUERTEGARAY, 2002, p. 118), pode-se considerar que a temática

ambiental exige um repensar mais conjuntivo da geografia, ultrapassando o campo

especificamente da geografia física e, para além dela, um repensar transdisciplinar e

interdisciplinar (ibid., p. 114).

E é com essa direção em mente que percebemos e sistematizamos a forma com que a

questão ambiental é retratada nos volumes das coleções didáticas estudadas. Seguindo a

tendência já apresentada, a Coleção ProJovem também ignora a temática em pauta. Presente

apenas em uma atividade da Unidade Formativa I – Juventude e Cidade –, a preocupação com

o meio ambiente na geografia aparece apenas no tópico dedicado à qualidade de vida nas

cidades. Mesmo assim, traz à tona tão somente informações e discussões sobre o saneamento

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299

básico e abastecimento de água, mas não desenvolve nenhum conhecimento sobre elementos

da natureza importantes para a compreensão mais totalizante e histórica do problema, como,

por exemplo, a dinâmica das redes hidrográficas. No outros volumes, há apenas mais duas

possibilidades de tratamento da questão ambiental: uma sobre os problemas ambientais

globais e outra sobre a relação entre cidadania e conflitos socioambientais.

Continuando de forma escassa e concentrada, a questão ambiental só é de fato

abordada na geografia presente nos Cadernos de EJA no volume em que se constitui o tema

central. Em outras duas oportunidades, problemas de ordem global como as mudanças

climáticas e a questão indígena se configuram em temas que poderiam ter sido desenvolvidos

sob a ótica ambiental, uma vez que os eixos temáticos dos respectivos cadernos permitem tal

análise. A questão ambiental, todavia, é tratada tendo como base a identificação dos impactos

socioambientais causados por atividades como a monocultura da soja no Cerrado e a produção

agrícola em larga escala no Pantanal matogrossense, além dos efeitos da má gestão dos

recursos hídricos, da má distribuição dos recursos em face ao crescimento populacional, da

problemática produção e destinação final do lixo e do uso de combustíveis fósseis como

matriz de produção de energia. Todos esses temas são abordados a partir de sua relação com o

trabalho humano em sua forma histórica sob o modo de produção capitalista, o que propicia

importantes reflexões sobre o modelo hegemônico de sociedade e suas mais graves mazelas.

Cabe salientar que, ainda que algumas tarefas problematizem algumas ações

individuais dos alunos, o tom dado a esses assuntos se distancia do fácil apelo à consciência

individual, que destaca apenas problemas comportamentais dos indivíduos e se afasta da

análise crítica acerca da estrutura socioeconômica e sua interferência nos conflitos e

problemas socioambientais. Ao contrário, é clara a aproximação com a perspectiva crítica de

educação ambiental, para quem “a prática escolar exige o conhecimento da posição ocupada

por educandos na estrutura econômica, da dinâmica da instituição escolar e suas ‘regras’ e da

especificidade cultural do grupo social com o qual se trabalha” (LOUREIRO, 2006, p. 2).

Tal perspectiva é ratificada por Rua (2001), quando chama a atenção para a

necessidade de se estabelecer, nas escolas, debates acerca das intrínsecas relações entre

desenvolvimento e natureza “sempre com uma ampla discussão desses conceitos, sob pena de

reforçar o discurso neo-malthusiano, já incorporado ao senso comum pela mídia, e privar os

alunos, dos diversos níveis, de uma reflexão crítica, fundamental para definições de escolhas

pessoais e coletivas” (p. 22). Concordando plenamente com o autor, reforçamos essa mesma

necessidade para a modalidade EJA, uma vez que seus alunos sofrem duplamente os impactos

socioambientais negativos do desenvolvimento econômico sob a lógica hegemônica: como

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300

explorados nas relações de trabalho sob a ótica da reprodução privada do capital e como as

maiores vítimas do processo de degradação ambiental em função da pouca possibilidade de

escapar de seus efeitos mais perversos.

Em relação à geografia veiculada nas duas propostas curriculares, embora estas

tenham privilegiado a visão integradora entre natureza e sociedade, fica a indagação pela

ausência dos conhecimentos vinculados aos fenômenos naturais, componentes históricos da

disciplina em sua vertente física. O aligeiramento do ProJovem pode explicar a opção em seu

curso de formação escolar, mas a Coleção Cadernos de EJA, por se constituir na principal

referência para essa modalidade do ensino fundamental em termos de material didático,

deveria repensar essa escolha. Sabemos que a importância desses conhecimentos não se

restringe à EJA, mas a sua abordagem na escolarização de trabalhadores, desde que realizada

de forma articulada à dinâmica social, pode levá-los a reflexões necessárias e imprescindíveis

sobre a produção do espaço geográfico, principalmente quando se pensa na formação crítica e

autônoma de pessoas que podem assumir imensas responsabilidades na gestão coletiva do

espaço cotidiano de suas famílias e das localidades onde vivem.

5.2.2 Recortes espaciais, escalas de análise e seleção de conhecimentos escolares na EJA

A problemática das escalas de análise e dos recortes espaciais têm se dado, como já

dito anteriormente, em função dos questionamentos sobre o predomínio da região como um

dos principais critérios para o estabelecimento da programação curricular da disciplina.

Estabelecida como a razão de ser da geografia desde os tempos de Vidal de La Blache, a

dimensão regional se constitui até hoje em recorte privilegiado em várias coleções didáticas e

na prática de boa parte dos professores. Em geral, a divisão por regiões parte do recorte

nacional, mas é a região que acaba dando o tom do conteúdo geográfico, muito em virtude da

herança da diferenciação de áreas como principal objeto de estudo da geografia.

De acordo com Lacoste (2005), a região geográfica, fruto do pensamento de La

Blache,115 dificultou ou mesmo impediu o tratamento analítico de outros níveis espaciais de

análise e suas relações, chegando a ser considerada pelo autor como um verdadeiro conceito-

obstáculo. O sucesso de se recortar a priori o espaço em regiões, ainda segundo Lacoste, parte

de sua difusão nos manuais escolares, na literatura e na mídia, levando à consagração do que

ele chama de região-personagem, responsável, por sua vez, pelos geografismos, isto é, “as

115 Ver segundo capítulo deste trabalho.

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301

metáforas que transformam em forças políticas, em atores ou heróis da história, porções do

espaço terrestre ou, mais exatamente, os nomes dados (pelos geógrafos) a territórios mais ou

menos extensos” (LACOSTE, 2005, p. 65).116 Essa maneira simples de ver o mundo é, para o

autor, uma forma de negar as interseções entre múltiplos conjuntos espaciais e, embora tenha

muitas vantagens pedagógicas, derivando daí sua presença maciça nas escolas até hoje, é

expressão de razões ideológicas que estão ligadas ao nacionalismo patriótico, para o qual

“cada região, descrita como uma entidade viva muito antiga, senão eterna, aparece como um

dos órgãos do corpo da pátria” (ibid., p. 72).

O problema que envolve a definição dos recortes espaciais nos remete à discussão em

torno da escala como uma questão epistemológica séria no âmbito da análise espacial. Na

geografia acadêmica, tal debate ganha contornos complexos e que exige níveis de

profundidade que o presente trabalho não tem condições nem propósitos em desenvolver.

Nesse contexto, portanto, apenas efetuamos algumas considerações que julgamos contribuir

com o tratamento dessa questão na geografia escolar.

Partindo do pressuposto de que a noção de escala congrega tanto a relação como a

inseparabilidade entre tamanho e fenômeno, Castro (2003) considera que a escala não é um

problema apenas dimensional, mas sobretudo um problema fenomenal. Com isso, a autora

quer dizer que, na realidade, a escala confere visibilidade ao fenômeno, isto é, “todo

fenômeno tem uma dimensão de ocorrência, de observação e de análise mais apropriada. A

escala é também uma medida, mas não necessariamente do fenômeno, mas aquela escolhida

para melhor observá-lo, dimensioná-lo e mensurá-lo” (ibid., p. 127). Para a autora, não se

pode, portanto, confundir a escala com a dimensão do que é observado, afirmação válida para

afastar qualquer proximidade conceitual entre escala cartográfica – medida numérica que

expressa a relação de proporção entre o tamanho real do fenômeno e sua representação

cartográfica – e escala de análise – dimensão espacial de ocorrência do fenômeno –, embora

não se possa descartar a cartografia como importante instrumento para a análise espacial.

Nesse sentido, Castro (ibid.) contribui para a premissa de que os fenômenos podem ser

observados em suas múltiplas dimensões e expressões espaciais, com “cada escala

representando uma face particular do processo, um conjunto de características intrínsecas” (p.

136), “sendo o jogo de escalas um jogo de relações entre fenômenos de amplitude e natureza

116 Como exemplo desses geografismos, encontramos expressões bastante comuns, como “o Nordeste protesta”, “a Amazônia luta”, “o Norte Fluminense produz” etc.

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302

diversos” (p. 138). Tal jogo é ao que Callai (1998) se refere quando afirma que “os

fenômenos acontecem no mundo, mas são localizados temporal e territorialmente em um

determinado local” (p. 57). Por isso, para que a abordagem geográfica consiga dar conta das

explicações dos fenômenos espaciais, há que se considerar os diferentes níveis de análise

espacial: o local, o nacional, o regional e o global. Corroborando a necessidade da

transversalidade entre as escalas, a autora ainda esclarece que, ainda que a maioria dos

fenômenos possa ser evidenciada na escala local, “outros níveis de análise devem ser

considerados ou esgotados. Caso contrário há o risco de explicações simplistas, que não

abarcam toda a análise necessária e que justificam, de forma natural, problemas que são

essencialmente sociais ou que decorrem de situações sociais” (ibid., p. 57).

Na EJA, tal debate se torna urgente e necessário em virtude de um discurso bastante

presente em propostas curriculares que toma como base o espaço local vivenciado pelos

alunos na condução dos critérios de seleção de temas e conteúdos. Concordando com essa

prerrogativa, porém preocupados com leituras equivocadas que acabam por reduzir ao estudo

do lugar todo o conhecimento escolar veiculado pela geografia, examinamos aqui como essa

problemática se dá nas coleções didáticas em tela. Com base nas reflexões de Callai (1998),

indagamos sobre o espaço a ser estudado nessas propostas, sobre os recortes espaciais

privilegiados, sobre os critérios que estabelecem esses recortes e de que forma se os

consideram.

O Quadro 8, que sistematiza a relação dos recortes espaciais e as escalas de análise

com a seleção de conteúdos geográficos, demonstra a forma com que as duas coleções

didáticas examinadas tratam a questão. Em virtude da opção por eixos temáticos como

definidores e organizadores dos conhecimentos escolares, as duas propostas não adotam a

divisão clássica de conteúdos geográficos a partir da regionalização. Como se pode ver, esta

aparece como recortes espaciais em alguns volumes e com diferentes propósitos. Já as escalas

de análise estão presentes em todos os volumes analisados, o que configura uma preocupação

dos autores, pelo menos em alguns momentos, com a visão integradora dos fenômenos

espaciais.

No que se refere aos recortes espaciais, o foco que determina a delimitação das áreas a

serem estudadas é o tema articulador de cada volume ou caderno e não um recorte dado a

priori, como é de costume em boa parte das propostas curriculares de geografia. A Coleção

ProJovem, por exemplo, em seu primeiro volume – Juventude e Cidade –, traz como tema

justamente um recorte espacial, isto é, a cidade ou os fenômenos e acontecimentos do espaço

urbano, os quais em geral possuem o local como escala preferencial de análise, não

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303

prescindindo, porém, de outras escalas de urbanização, como atestou Harvey (1973 apud

CASTRO, 2003). De fato, o conteúdo geográfico desse volume da coleção aborda a cidade

contemplando basicamente aspectos locais e lançando mão de outros níveis espaciais de

análise apenas quando desenvolve explicações em torno do processo de urbanização

brasileira.

Quadro 8: AS ESCALAS DE ANÁLISE NA SELEÇÃO E ORGANIZAÇÃODE CONTEÚDOS GEOGRÁFICOS

Recortes espaciais

Escalas de análise

Questão escalar Material didático

Delimitação de área

Conteúdo geográfico

Níveis de escala

Conteúdo geográfico

UF I

Juventude e Cidade

A cidade

O tema do caderno em si

Local/nacional

Urbanização

brasileira

UF II

Juventude e Trabalho

x

x

Local/nacional

Local/global

Produção de mercadorias

Migrações internacionais

UF III

Juventude e Comunicação

Regiões brasileiras

Trabalho com

mapas

Local/global

Local/regional/ nacional/global

Globalização

Meios de comunicação de

massa

Coleção ProJovem

UF IV

Juventude e Cidadania

Regiões brasileiras

Caracterização

regional

Local/global

Juventude brasileira Juventude francesa Juventude chinesa

Caderno

Emprego e Trabalho

x

x

Local/global

Economia mundial e vida cotidiana

Caderno

Globalização e Trabalho

x

x

Local/global

Local/regional/ nacional/global

Compressão espaço-tempo; globalização no local; sindicalismo; mídia Migrações; êxodo rural

Caderno Meio

Ambiente e Trabalho

Regiões brasileiras

Regiões do

mundo/países

Região Centro-Oeste

EUA

Local/regional/

global

A questão da água

no Brasil e no mundo

Coleção Cadernos de EJA

Caderno

Trabalho no Campo

Regiões brasileiras

Região Nordeste

Local/global

Há possibilidades:

produção de biodiesel

Fonte: Coleção ProJovem (2007); Coleção Cadernos de EJA (2007).

Tal fato acaba por não enriquecer a visão constituída e constituinte da cidade, uma vez

que, como atesta Vainer (2002), ela não é solta no ar, ela é dotada de uma particularidade, que

faz com que “as formas de dominação que a caracterizam não [possam] ser percebidas sem

um olhar para suas articulações regionais, nacionais e, cada vez mais, internacionais” (p. 27).

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304

A cidade é, então, formada por um conjunto de relações que produzem formas particulares

que estruturam o poder e as relações econômicas e é nesse conjunto de relações que se situam

espaços de alterações reais na vida da classe trabalhadora.

Em outros volumes da Coleção ProJovem o recorte espacial privilegiado é a região,

sendo enfatizadas, por força dos respectivos temas propostos, as regiões brasileiras. O mesmo

acontece na Coleção Cadernos de EJA, na qual duas regiões brasileiras são abordadas em dois

volumes tendo como pano de fundo questões envolvidas com as temáticas. No ProJovem, o

tratamento segue a divisão regional do IBGE, seja no trabalho com mapas ou na

caracterização regional, que, aliás, mantém, nesse caso, a velha abordagem fragmentada do

esquema N-H-E. Nos Cadernos de EJA, o Cerrado e o Pantanal são focalizados em duas

atividades didáticas no caderno Meio Ambiente e Trabalho em função do enfoque dado aos

biomas presentes na região Centro-Oeste, conforme analisado na seção anterior deste capítulo.

O recorte que se privilegia é, na verdade, o que Lacoste (2005) chama de conjuntos

espaciais, isto é, conjuntos que representam objetos e ferramentas de conhecimento

produzidos pelas diversas disciplinas científicas, que, “no seu esforço de investigação da

realidade, se adequam a uma espécie de divisão, mais ou menos acadêmica, do trabalho, cada

uma delas privilegiando uma ‘instância’, isto é, um modo de ver o mundo [...] a ponto de

traçar da realidade uma representação que negligencia todas as outras” (p. 69). A instância

enfatizada, nesse caso, é dada pelo campo da biogeografia, que define os conjuntos espaciais

formados pelos biomas.

Nas duas coleções didáticas, as escalas de análise exercem um papel preponderante na

organização de diversos conteúdos geográficos. Em geral, o jogo de escalas ou a abordagem

transversal das escalas se dá predominantemente a partir de atividades e tarefas que estimulam

a articulação entre fenômenos interligados, embora em algumas vezes o próprio tratamento

analítico integre as diferentes dimensões espaciais do tema em pauta. Como se vê no Quadro

8, a articulação entre diferentes níveis de análise espacial se dá em todos os volumes e

cadernos, sendo mais presente quando o assunto abordado se refere ao processo de

globalização e sua articulação com fenômenos sociais e espaciais de âmbito local, nacional ou

regional. Cabe ressaltar, no entanto, que há diferenças de abordagem dessa articulação nas

coleções. A Coleção ProJovem, ratificando a sua característica de uma proposta referenciada

na geografia humanista-cultural de base fenomenológica, promove essa integração sem

problematizar os fenômenos envolvidos, apenas incentivando algumas relações com base no

espaço vivido dos alunos. Os Cadernos de EJA, por tratar mais criticamente os temas, já

parecem ter mais compromisso com a perspectiva histórico-dialética, para quem o lugar pode

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305

ser considerado no contexto do processo de globalização a partir da análise de suas

particularidades, que permanecem nesse processo, mas que não podem ser entendidas nelas

mesmas (CAVALCANTI, 1998).

Com efeito, a questão das escalas de análise e sua relação com a organização dos

conteúdos geográficos ajuda a evidenciar o fato de que os fenômenos espaciais são

interligados, embora apresentem melhor visibilidade em diferentes escalas. A transversalidade

dos níveis de análise espacial, ação presente nas coleções em exame, ressalta essa interligação

e garante a perspectiva totalizante. Nessa perspectiva, uma avaliação que destaca essa

interligação de forma mais qualitativa e dialética é oferecida por Milton Santos, que constrói

um sistema de explicações que nos leva à aproximação entre o conceito de espaço e o de

totalidade.

Santos (1996) se baseia em Sartre para considerar que a totalidade está sempre em

movimento, num incessante processo de totalização, isto é, a totalidade é incompleta porque

sempre procura totalizar-se. Trazendo essa análise para a compreensão das categorias

espaciais, Santos revela que “tal evolução retrata o movimento permanente que interessa à

análise geográfica: a totalização já perfeita, representada pela paisagem e pela configuração

territorial e a totalização que se está fazendo, significada pelo que chamamos de espaço”

(p.96). Nesse sentido, o espaço é “um aspecto particular da sociedade global. A produção e a

sociedade em geral não são mais que um real abstrato, o real concreto sendo uma ação,

relação ou produção específicas, cuja historicidade, isto é, cuja realização concreta, somente

pode dar-se no espaço” (ibid., p. 96). Para o autor, a ação leva o universal ao lugar, cria uma

particularidade, que é ultrapassada, por sua vez, pelos novos movimentos do todo. Esses

movimentos da totalidade, para que possam existir objetivamente, são dirigidos à sua

espacialização, que é também particularização. Para melhor elucidação dessa premissa,

citamos:

A transformação do todo, que é uma integral, em suas partes – que são as suas diferenciais, dá-se, também, por uma distribuição ordenada, no espaço, dos impactos do Todo, por meio de suas variáveis. As ações não se localizam de forma cega. Os homens também não. O mesmo se dá com as instituições e infra-estruturas. É esse o próprio princípio da diferenciação entre os lugares, produzindo combinações específicas em que as variáveis do todo se encontram de forma particular (ibid., p. 100).

Mas, se as ações não se localizam de forma cega, que forças as produzem e as

conduzem ao acontecer local, ou regional? Santos atribui ao Estado uma dessas forças, já que

o uso que faz da lei é geral, isto é, a norma pública por ele implementada age na totalidade do

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306

território. As instituições supranacionais e as empresas multinacionais não têm esse poder,

pois, se podem colher indiretamente resultados globais, seus efeitos diretos são, contudo,

pontuais ou lineares. As autoridades regionais ou locais, por sua vez, atuam como produtoras

oficiais de eventos sobre superfícies menores que o território nacional. O conceito de escala,

então, conforme o anunciamos em linhas anteriores, pode nos ajudar a compreender tal

questão. O conceito deve ser aplicado aos eventos, às ações segundo duas acepções: 1) a

escala de origem, envolvida na produção do evento, da ação, é a escala das forças operantes,

que tem a ver com a força de seu emissor; 2) a escala do impacto, da realização do evento, é a

escala do fenômeno. Santos (1996) chama a atenção, no entanto, para o fato do caráter

solidário dos eventos:

Além do mais, os eventos históricos não se dão isoladamente. Esse não isolamento se traduz por dois tipos de solidariedade. O primeiro tem como base a origem do evento, sua causa eficiente, cuja incidência se faz, ao mesmo tempo, em diversos lugares, próximos ou longínquos. Trata-se, aqui, de eventos solidários, mas não superpostos: sua ligação vem de um movimento de uma totalidade superior à do lugar em que se instalam. O outro tipo de solidariedade tem como base o lugar da objetivação do evento, sua própria geografização. Aqui os diversos eventos concomitantes são solidários porque estão superpostos, ocorrendo numa área comum (p. 121).

Esse acontecer solidário integra o universal e o individual, o singular. O nível global e

o nível local do acontecer são fundamentais para o entendimento do mundo e do lugar, já que

cada evento é fruto do mundo e do lugar ao mesmo tempo. Por essa razão, a região e o lugar

não possuem existência própria; são partes da totalidade. Como o movimento da totalidade

muda conforme o movimento histórico e a combinação com elementos locais, há uma

diferenciação no interior do espaço total, o que confere a cada região ou lugar uma

especificidade e uma definição particular (ibid.).

Sabemos, porém, que para identificar a particularidade de algum fenômeno, é preciso

lançar mão de mediações. Só elas poderão revelar as conformações específicas e as

“definições particulares” dos lugares, por exemplo. Santos mais uma vez nos brinda com a

clareza de suas reflexões ao dizer que é a formação social nacional que funciona como

mediação entre o mundo e o lugar, e que conforma, portanto, a sua particularidade, sendo que

mais que a formação socioeconômica, é a formação socioespacial que melhor exerce esse

papel. Isso não quer dizer que é no território em si que está localizado o campo das

mediações, mas em seu uso. Ou melhor, ainda segundo o autor, as formas geográficas do

território, naturais ou transformadas pela sociedade, e suas normas de uso, jurídicas ou

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307

costumeiras, atuam como um conjunto indissociável que condiciona a utilização dos lugares

por empresas, sobretudo as gigantes, governos ou organismos internacionais.

Como vemos, os eventos e as ações inscritas nos processos econômicos, políticos,

sociais e culturais não podem ser analisados ou engendrados em uma perspectiva uniescalar.

Como diz Vainer (2002), o que temos são processos com suas dimensões escalares, quase

sempre transescalares, o que nos permite concluir que “qualquer projeto (estratégia?) de

transformação envolve, engaja e exige táticas em cada uma das escalas em que hoje se

configuram os processos sociais, econômicos e políticos estratégicos” (p. 24). E isso só pode

ser realizado se se leva em conta as categorias da singularidade, particularidade e

generalidade como aspectos visíveis e essenciais dos objetos da realidade objetiva

(CIAVATTA, 2002, p. 136).

No âmbito da Educação de Jovens e Adultos, portanto, selecionar e organizar os

conteúdos disciplinares, e no nosso caso os geográficos, tendo como referência questões

“locais” não implica em estudar única e exclusivamente o local. Nenhum fenômeno de

qualquer ordem, de qualquer campo do conhecimento se explica em sua completude e

complexidade por meio de uma escala apenas, isto é, “as diversas escalas de análise devem

estar presentes em tudo o que se estuda, sem o que corremos o risco de fazer interpretações

que não dêem conta do que estamos estudando” (CALLAI, 1998, p. 73).

Compreender a produção histórica da sociedade humana e a sua relação com a

natureza expressa na construção do espaço geográfico significa, na verdade, compreender as

dimensões transescalares dos processos econômicos, políticos, sociais e culturais. É nesse

sentido que Vainer (2002) indaga se “haverá ainda hoje algum processo social relevante cuja

compreensão e modificação seja possível através de uma análise ou intervenção uniescalar” e

assegura que “a dimensão escalar da vida cotidiana está impressa e expressa em todas as

configurações escalares, desde o nosso corpo, até o internacional, passando pelo comunitário,

urbano, regional” (p. 24). Devemos lembrar ainda que na sociedade atual os meios de

comunicação de massa exercem papel preponderante na construção da percepção e da

concepção de mundo, já que através deles informações e imagens dos mais diversos lugares

do planeta nos chegam a todo o momento. Mesmo sem o tempo e o aprofundamento

necessários para compreender de fato os fenômenos que são veiculados, construímos idéias,

noções, interpretações e relações com o nosso cotidiano.

É em função dessas considerações e premissas que a abordagem transescalar dos

fenômenos espaciais encontra-se presente nas propostas curriculares analisadas. Mesmo com

objetivos e tratamentos diferenciados, ambas aglutinam, nesse aspecto, a preocupação com as

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308

diferentes dimensões espaciais do tema a ser estudado. Corroborando essa preocupação,

consideramos que o aluno jovem e adulto trabalhador, por sua experiência de vida e sua

inserção no mundo do trabalho, é o tempo todo confrontado com fenômenos e ações políticas

que não têm origem nem base explicativa apenas no lugar em que vive. A compreensão crítica

desses fenômenos espaciais contemporâneos leva à necessidade de outras maneiras de se

selecionar e organizar o conhecimento escolar que não se pautem mais em recortes espaciais

pré-determinados, como o já propalado e consagrado recorte regional. Assim, se se quer uma

educação de trabalhadores que busque a superação dialética e problematize os saberes e

visões de mundo que circulam tanto na escola quanto na vida cotidiana, o desafio da

abordagem transescalar deve ser enfrentado.

5.3 BASES E PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DE TRABALHADORES

Inicialmente cabe esclarecer que não se pretende, com esta seção, desenvolver

considerações prescritivas para uma suposta melhor forma de se ensinar e aprender geografia.

A intenção é que, partindo de reflexões surgidas no processo de análise das propostas

curriculares e da seleção, organização e tratamento do conhecimento escolar veiculado nos

tópicos e atividades de geografia, possamos anunciar algumas bases e princípios de atuação

dessa disciplina em programas e cursos de EJA. Tais bases e princípios também não se

pretendem únicos e verdadeiros, pois expressam um ponto de vista pautado na análise dos

avanços e das contradições encontradas nas coleções didáticas, bem como nas concepções de

educação e de sociedade do autor.

Portanto, partindo do pressuposto de que não há ação educativa que seja neutra, ao

contrário, com toda ação sempre se exprimem intencionalidades e visões de mundo,

entendemos como bases as premissas e os objetivos relativos ao projeto político-pedagógico

que se quer construir e sua relação com o projeto de sociedade para o qual se pretende

contribuir. Nesse sentido, as bases têm a ver com os propósitos educacionais do processo de

escolarização de jovens e adultos trabalhadores como um todo, ou seja, com aquilo que dá

sentido à seleção do conhecimento escolar e a melhor forma de desenvolvê-lo. Tais bases dão

sustentação aos princípios educativos, compreendidos aqui como um conjunto de

pressupostos que devem nortear as ações, nesse caso as ações educativas relacionadas ao

desenvolvimento da educação geográfica de jovens e adultos trabalhadores.

Como forma de organizar as reflexões expostas, apresentamos duas seções que tratam

exatamente, cada qual, das reflexões em torno das bases que podem sustentar o trabalho

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309

pedagógico da EJA e dos princípios que podem nortear a seleção e organização de conteúdos

geográficos. Cabe salientar que ambos, bases e princípios, têm como horizonte a construção

de uma geografia escolar mais comprometida não só com as especificidades da escolarização

dos trabalhadores, mas também com a perspectiva ético-política desse processo de ensino-

aprendizagem.

5.3.1 As bases: por uma perspectiva ético-política da EJA

Por perspectiva ético-política entendemos o trabalho pedagógico que tem como base a

constituição da práxis como fundamento da emancipação do pensamento dos sujeitos

envolvidos no projeto educativo de escolarização de trabalhadores. Tal perspectiva se apoia

nas reflexões e considerações de Antonio Gramsci e de Paulo Freire, autores que, para Mayo

(2004), levam a uma educação de adultos transformadora, isto é, uma educação que não só

reconhece o sentido político de toda intervenção educacional, mas também “que apela por

iniciativas educacionais socialmente transformadoras que enfocam [...] ‘sobre as mudanças

nas raízes dos sistemas’ e, portanto, não nos sintomas daquelas que são percebidas como

formas de opressão determinadas estruturalmente” (p. 28).

A natureza política do processo educativo se dá, para Gramsci, a partir da relação

entre a instituição escolar e as questões ligadas à disputa por hegemonia, que ocorre, por sua

vez, em um amplo espectro e tem a ver, sobretudo, com a formação dos intelectuais da/para a

sociedade. Se hegemonia é direção política, cultural, intelectual e moral, uma de suas

características é possuir um centro diretivo sobre os intelectuais que se afirma por meio de

duas direções: uma concepção geral de vida, uma filosofia; e um programa escolar, um

princípio educativo e pedagógico original (GRAMSCI, 2002b, p. 99). A escola, portanto, é

um instrumento para elaborar intelectuais de diversos níveis.

A hegemonia não pode ser vista como dogma, mas como produção do conhecimento,

tendo, portanto, um caráter gnosiológico. Para se definir estratégias, vale-se do conhecimento,

pois “a realização de um aparelho hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico,

determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de

conhecimento, um fato filosófico” (GRAMSCI, 2001a, p. 320). Se é assim, a contra-

hegemonia é, então, também gnosiológica, por isso Gramsci insiste no acesso da classe

trabalhadora ao conhecimento escolar.

O acesso ao conhecimento pode favorecer a catarse, isto é, a consciência da

hegemonia em detrimento à vida imersa somente na estrutura social e econômica. É a

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310

passagem do momento econômico-corporativo ao momento ético-político, a saída do mundo

das necessidades para a consciência da exploração das classes dominantes em relação às

subordinadas. Vejamos nas palavras de Gramsci (2001a) o sentido mais profundo da

expressão:

A estrutura, de força exterior que esmaga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em origem de novas iniciativas. A fixação do momento ‘catártico’ torna-se assim, me parece, o ponto de partida de toda a filosofia da práxis; o processo catártico coincide com a cadeia de sínteses que resultam do desenvolvimento dialético (p. 314).

Para o autor, a escola torna-se o meio através do qual o momento catártico pode e deve

ser alcançado. Para tanto, indica a formação de uma escola desinteressada, ou melhor, uma

educação mediatamente interessada, onde “o estudo ou a maior parte dele deve ser (ou assim

aparecer aos discentes) desinteressada, ou seja, não deve ter finalidades práticas imediatas ou

muito imediatas, deve ser formativo ainda que ‘instrutivo’, isto é, rico de noções concretas”

(idem, 2001b, p. 49). Nesse sentido, Gramsci propõe a escola unitária como possibilitadora do

momento de catarse e de um ensino desinteressado do trabalho, mais relacionado a uma

educação geral, com um lastro geral. O que se quer, na verdade, é romper com a escola

dualista: técnica e profissional para trabalhadores; e geral e filosófica para a elite. Por isso a

escola unitária, em contraponto à escola dualista.

Assim, se acreditamos que o processo de escolarização de jovens e adultos pode

exercer um papel contra-hegemônico, isto é, que a escola pode reverter sua origem de

aparelho privado de hegemonia das elites e se instituir em um aparelho privado de hegemonia

da classe trabalhadora, devemos recorrer a Freire (1987), que credita à práxis a possibilidade

de superação da condição de opressão:

Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “convivência” com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas que esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis (p. 52).

Reconhecemos, no entanto, que a educação escolar não deve, e nem pode, ser

considerada a única alavanca a ser acionada para a superação da opressão na sociedade de

classes, mas pode, e deve, ser pensada como uma primordial contribuição para esse processo.

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311

É preciso ter sempre essa questão em mente, pois, como nos alerta Vale (2001), ao

transpormos os objetivos da educação popular preconizada por Freire para a escola pública

nos deparamos com limitações de toda ordem: as normas e a burocracia que exigem que

cumpramos e façamos cumprir; as condições sociais dos alunos, como saúde, moradia,

alimentação, transporte, violência, trabalho precoce; e a própria formação do professor, a sua

prática educativa, a sua prática política.

E é exatamente por isso, pelas estruturas que nos puxam para o lado contrário ao qual

queremos ir que, a nosso ver, uma das bases que sustenta qualquer proposta curricular de uma

EJA transformadora deve ser a crença na possibilidade do que Freire (2000) chama de

intervenção no mundo, ação contrária à adaptação à realidade que dessa forma não é

contestada. Assim comprometida, a proposta curricular pode contribuir para a superação do

senso comum, ou a conversão deste em bom senso, “não meramente por um clima que

possibilite aos aprendizes ‘dar voz’, mas mais importante, por um clima que permite a

interrogação dessas vozes e o reconhecimento das contradições que ali existem” (MAYO,

2004, p. 120).

Das propostas curriculares examinadas neste trabalho, os Cadernos de EJA parecem

mais se aproximar da perspectiva ético-política que ora defendemos. A Coleção ProJovem

acaba por ficar na constatação dos sintomas das formas de opressão sobre os quais fala Mayo

(ibid.), pois, ao se configurar em um prática educativa aligeirada, carrega consigo as

características dessa prática que, para Rummert (2002), embora aparentemente democrática e

solidária, é repleta de preconceitos, fato que não concorre para a construção da democracia

em geral por ela anunciada. Os Cadernos, ao contrário, ainda que apresentem as lacunas

exaustivamente comentadas ao longo de sua análise, trazem não só o compromisso com a

leitura crítica dos fatos e fenômenos, mas negam o que Freire (2000) denomina de

desproblematização do futuro, isto é, a inexorabilidade do mundo globalizado tal qual as

forças hegemônicas nos querem fazer crer e apostam naquilo que o mesmo autor considera

como a ética universal do ser humano ou “a necessária transformação da sociedade que

decorra a superação das injustiças desumanizantes” (p. 57).

Dessa forma, as bases que anunciamos podem ser resumidas na problematização das

coisas, no aprendizado da dúvida e da procura, na aposta na intervenção no mundo. Com isso

queremos afirmar a inconclusão dos homens, mulheres e da sociedade humana e, em virtude

disso, a crença em outras possibilidades de vida social potencializada pela educação

transformadora.

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312

5.3.2 Os princípios: por uma educação geográfica do aluno trabalhador

Em boa parte desta tese falamos em escolarização de jovens e adultos trabalhadores.

Queremos deixar claro, no entanto, que falar de escolarização não prescinde tratar de

educação, pois entendemos por escolarização a ação formal de um processo que vai além da

transmissão passiva e acrítica de conhecimentos disciplinares. Falamos em escolarizar jovens

e adultos trabalhadores porque queremos marcar politicamente um direito negado

socialmente a uma grande parcela da população brasileira, mas ao falar em escolarização

estamos, na verdade, tratando de educação, e mais precisamente de educação geográfica.

Desse modo, educação geográfica, no nosso entender, não se resume ao

desenvolvimento solto e vazio de uma listagem de tópicos e itens que constam de uma

programação curricular preestabelecida, mas sim a articulação crítica entre o conhecimento

escolar veiculado pela geografia e os grandes temas e conceitos que contribuem para a

compreensão do complexo mundo contemporâneo. Educar através da geografia ou, nos

dizeres de Kaercher (2007), fazer da geografia uma forma de filosofar, isto é, pensar o mundo

e a vida, significa levar em conta a totalidade do processo educativo do qual a geografia, a

escola e seus sujeitos são partes indissociáveis. Eis então o primeiro dos princípios educativos

aqui defendidos.

Ao seguir com a reflexão sobre os princípios, cabe uma ressalva: tentando evitar a

reprodução de certos discursos pedagógicos que idealizam a escola, isto é, que imputam à

escola ações e iniciativas que dificilmente podem ser executadas, utilizamos como referência

a escola real de jovens e adultos. Essa escola que é feita para crianças e adolescentes e, com

seus ambientes infanto-juvenis, é emprestada para jovens e adultos estudarem; na qual, em

função disso, boa parte de seu currículo tem como referência o ensino para crianças e

adolescentes; na qual a cultura escolar privilegia a padronização e a homogeneização e poucos

materiais didáticos específicos são disponibilizados; essa escola onde a carga horária diária é

reduzida, mas, contraditoriamente, condiz com o padrão de escola que os adultos procuram.

Se esse é o quadro, é a partir dele que temos que pensar os princípios educativos de uma

proposta curricular que possa reverter tal estado de coisas, mas não através do anúncio de

soluções mágicas e inatingíveis. Criar frustrações talvez seja o único resultado da tentativa de

execução de princípios que não consideram a escola de jovens e adultos que predomina no

cenário educacional brasileiro.

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313

Assim, como o que se propõe são princípios educativos e não ações efetivas ou

listagem de tópicos a ser seguida, a sua consideração pode se dar tanto em um projeto coletivo

como em iniciativas individuais e isoladas por parte do professor. Pode ser o apoio a

propostas de educação geográfica de cursos de EJA, de cursos regulares noturnos, bem como

de projetos de educação popular ou ainda de programas de escolarização de trabalhadores. A

configuração desses princípios, repetimos, não se pretende modelo, apenas possibilidades que,

por inteiro ou em partes, podem ser levadas em conta no processo de educação geográfica de

jovens e adultos trabalhadores.

Para além de consensos fáceis, trazemos e problematizamos como princípio educativo

a consideração da realidade do aluno na elaboração da proposta curricular de geografia. Junto

à adesão a esse pressuposto, há de se indagar sobre o seu significado na educação geográfica.

Apenas evocar uma série de opiniões, relatos de vida e conceitos cotidianos sem

problematizá-los e colocá-los em confronto com outros saberes, conforme a Coleção

ProJovem faz, não nos parece a melhor forma de dialogar com essa realidade vivida. Em

geografia, a grande potencialidade do tratamento pedagógico dessa realidade pode estar em

sua forma espacial, o que pode ocorrer através da análise de perfis socioeconômicos, de

relatos do cotidiano ou de elaboração de mapas mentais com o intuito de evidenciar os saberes

espaciais da experiência e, problematizando-os, refletir espacialmente sobre as questões

cotidianas, pensadas aqui a partir de uma visão transescalar.

E se interrogamos, assim como Souto González (2002), sobre o que o conhecimento

geográfico oferece às pessoas na compreensão dos problemas cotidianos e se este pode

facilitar a tomada de decisões éticas e responsáveis em termos de organização do espaço,

precisamos conhecer justamente as geografias pessoais dos alunos, suas concepções e

avaliações espaciais. Nesse sentido, também de acordo com o autor, a contribuição de

algumas técnicas e metodologias da geografia humanista-cultural pode ser valiosa por ajudar

na compreensão dos aspectos culturais que envolvem o espaço vivido dos alunos.117

Sendo assim, a referência no local é um pressuposto. Mesmo quando se trabalha com

materiais didáticos diretivos, como os livros didáticos convencionais, a referência no local é

possível. Já discutimos sobre a questão das escalas de análise e a visão transescalar como

meio para romper com análises uniescalares dos fenômenos espaciais. Obviamente que,

dependendo do tema estudado, nem sempre a referência no local será evocada em sua

117 Souto González (2002) deixa claro, porém, que as contribuições de diferentes correntes do pensamento geográfico têm lugar em diferentes momentos do processo educativo. O autor se afasta, com isso, da síntese eclética dessas diferentes contribuições para a didática da disciplina.

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plenitude, mas buscá-la a fim de imprimir significado ético-político à educação geográfica é

princípio educativo dos mais caros à perspectiva aqui apontada.

Na procura por uma educação geográfica que contribua para o pensamento crítico, ou

nos dizeres de Souto González (2002), um conhecimento que equivalha crise à tomada de

decisão, não é possível prescindir das perspectivas apontadas pela geografia crítica ou radical.

Segundo o mesmo, ela “tem de estar ao nosso serviço, para realizarmos o estudo do meio

onde se insere a actuação do aluno, especialmente no momento de selecionar os objectos de

aprendizagem, os grandes temas de estudo [...] os conteúdos e os critérios de avaliação das

respectivas competências essenciais” (p. 30). Compreendendo a preocupação de Kaercher

(2007), para quem “em nome da Geografia Crítica corre-se o perigo de fazer da Geografia um

pastel de vento: boa aparência externa, mas pobre na capacidade de reflexão” (p. 3), isto é,

muito conteudismo e pouca reflexividade, ratificamos a base ético-política como sustentação

para a educação geográfica de trabalhadores. Isto significa que não adotamos os preceitos

dessa corrente de pensamento na geografia escolar de jovens e adultos como um a priori

inconseqüente, mas como um conjunto de pressupostos que orienta o caminho em direção à

dúvida, à procura e à intervenção no mundo.

Para isso, a geografia deve também se apresentar por inteiro. Obviamente, isso não

significa lançar mão de todo o conhecimento escolar de geografia, até porque isso é algo

incomensurável. Trabalhar a geografia escolar por inteiro significa dispor de toda sua riqueza

analítica, tanto no que ela tem de conhecimentos referentes às ciências da terra como no que

ela tem de referência nas ciências sociais. E quanto mais ela puder buscar a relação entre esses

conhecimentos a fim de que se possa compreender os processos que organizam o espaço e o

estruturam em território mais ela pode se aproximar de uma perspectiva holística.

Ressaltamos aqui com veemência nossa recusa em aceitar uma geografia empobrecida e

mutilada para a EJA; ao contrário, tomamos como princípio uma educação geográfica

inteiriça e desafiadora em seu propósito educativo.

Por fim, salientamos algo para o qual já chamamos a atenção em outras passagens

desta tese. É urgente pensar os conteúdos geográficos escolares sob a ótica do trabalho

humano. Se falamos em escolarização de jovens e adultos trabalhadores, falamos em mundo

de adulto, isto é, mundo de responsabilidades, injustiças e desigualdades perpetradas em

grande medida pelas relações de trabalho. Também falamos de direitos, racismos, sexismos,

preconceito lingüístico e cultural, além de uma gama variada de tensões cotidianas; mas

também falamos de outras possibilidades, de outras formas históricas de trabalho mais

solidárias que podem ser ou que já estão sendo construídas. O conjunto de todos esses

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aspectos pode ser alvo de problematização por uma geografia que privilegia o trabalho – em

todos os seus sentidos – também como princípio educativo.

Como dissemos no início da seção, os princípios para a geografia a ser

ensinada/aprendida nas classes de EJA aqui apresentados não se configuram em modelo

acabado que precisa ser copiado e transplantado a todo custo em qualquer realidade. Se eles

servirem de lastro para profícuas reflexões e para o levantamento de possibilidades teórico-

metodológicas no âmbito da educação geográfica de jovens e adultos trabalhadores já terá

valido a pena tê-los exposto.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOVAS INQUIETAÇÕES, OUTROS DESAFIOS As últimas considerações desta tese têm a intenção de congregar uma série de

reflexões que esclareçam o caminho percorrido no trabalho de investigação, bem como

exponham as principais constatações às quais chegamos. Sem falar em conclusões e sim

ressaltando novas inquietações, pretendemos sintetizar os resultados da pesquisa e sinalizar as

questões que brotam a partir deles, evocando, assim, a máxima de que, nos trabalhos

acadêmicos, principalmente naqueles realizados no âmbito das ciências sociais, as certezas

são sempre provisórias enquanto a busca por novas indagações é perpétua.

Tomamos como base o resgate das questões que nortearam o trabalho de investigação

e análise do conhecimento escolar de geografia presente nas propostas curriculares

selecionadas como base empírica para a pesquisa. Em razão de elas terem exercido o papel de

guião de todo o processo de análise, passamos a respondê-las com o intuito de expor as

principais constatações estabelecidas, além de levantar novas reflexões, inquietações e

desafios suscitados pela investigação realizada.

A primeira indagação diz respeito à forma com que as coleções didáticas analisadas

justificam a especificidade de uma geografia escolar voltada para o atendimento dos sentidos

contemporâneos da escolarização de jovens e adultos trabalhadores. Tais sentidos se referem

basicamente ao que está posto pelas DCNEJA, uma vez que é esse documento legal balizador

da concepção de EJA que deve servir de referência para os projetos pedagógicos da

modalidade. Assim, podemos dizer que as duas propostas curriculares analisadas esforçam-se

por alcançar as prerrogativas anunciadas pelas Diretrizes, uma vez que elaboram materiais

didáticos que tentam expressar as especificidades do público atendido. Tal ação faz valer, por

conseguinte, a função qualificadora da EJA, uma vez que esta se constitui também em “apelo

para as instituições de ensino e pesquisa no sentido da produção adequada de material

didático que seja permanente enquanto processo, mutável na variabilidade de conteúdos e

contemporânea no uso de e no acesso a meios eletrônicos da comunicação” (BRASIL, 2000,

p. 43).

A Coleção ProJovem, ao indicar o tema juventude como eixo articulador a outros

temas contemporâneos e vinculados ao público atendido pelo programa – cidade, trabalho,

comunicação e cidadania –, contempla a especificidade almejada. No que tange à geografia,

tanto os conteúdos quanto as atividades apresentadas atendem, na medida do possível, a

valorização das experiências e dos conhecimentos prévios dos jovens, tomando-os, segundo o

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projeto político-pedagógico do Programa, como base e ponto de partida para a aprendizagem

de conteúdos do ensino. Por seu caráter extremamente prescritivo, no entanto, a coleção

enrijece as possibilidades de ação do professor, o que pode acabar dirigindo a ação educativa

apenas para o propósito de preparação para o exame que os alunos do Programa devem

realizar ao final do tempo previsto para a formação escolar. Em função disso, os conteúdos

geográficos não se apresentam em sua potencialidade, pois o aligeiramento do curso aliado ao

caráter prescritivo mencionado pouco permitem outras ricas relações entre o conhecimento

escolar e a vida cotidiana dos alunos.

Os Cadernos de EJA, por possuírem outro caráter e forma de organização,

apresentam-se com grande potencial inovador no que diz respeito ao atendimento da

especificidade do aluno trabalhador. Também optando por uma proposta curricular que parte

de temas contemporâneos, dessa vez articulados a um tema mestre – o trabalho –, os

Cadernos desenvolvem os conhecimentos escolares de geografia a partir de uma perspectiva

crítica e dialógica com o mundo adulto de trabalhador. Um sério problema, porém, está em

deixar escapar o objeto geográfico em muitas atividades didáticas sugeridas, fato que

contradiz os preceitos para a disciplina apresentados em seu caderno metodológico. Ao tentar

dar conta dessa especificidade exigida, a geografia dos cadernos privilegia temáticas

relacionadas ao mundo do trabalho, mas perde, por vezes, a análise espacial como foco.

Essa última constatação nos leva a inquietações que giram em torno do que é

geográfico no conhecimento escolar. Mesmo tentando ultrapassar o estabelecimento de

fronteiras rígidas entre as disciplinas, indagamos sobre os princípios educativos para a

educação geográfica utilizados pelos agentes recontextualizadores que, nos dizeres de

Bernstein (1996), são responsáveis pela formulação de propostas curriculares. Seria a

dificuldade em vislumbrar a contribuição do objeto geográfico para o desenvolvimento das

temáticas estabelecidas a razão para tal abandono? Ou a perspectiva é mesmo trabalhar na

área das fronteiras disciplinares sem a preocupação em definir objetos fechados para cada

uma delas? Ou ainda essa dificuldade seria mais uma expressão da crise de identidade que

assola a geografia ao longo de sua trajetória histórica? Essas dúvidas se transformam em

desafios a serem observados em outras propostas de EJA tendo como base as reflexões em

torno dos objetivos e métodos da geografia escolar.

A segunda questão se refere aos referenciais teórico-metodológicos que baseiam a

seleção e o tratamento dos conteúdos geográficos presentes nas propostas. Tal ponto de

investigação é traduzido em um bloco de perguntas que aqui reproduzimos como forma de

balizar mais claramente nossas considerações: que matrizes teóricas características do

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pensamento geográfico podem ser consideradas como referências para tais propostas? Quais

as concepções e visões de mundo e de sociedade podem ser aí encontradas? Como a seleção e

a organização dos conhecimentos geográficos escolares podem contribuir para a veiculação

dessas concepções?

Se ambas as coleções se aproximam no que se refere à organização do conteúdo

escolar geográfico em consonância com a especificidade do alunado jovem e adulto, elas se

afastam no que concerne às matrizes teóricas tomadas de sua ciência de referência, a

geografia. O ProJovem opta por um tratamento conceitual que se coaduna mais de perto com

a corrente fenomenológica da análise espacial. Sem revelar sua escolha, a geografia escolar

veiculada pelo Programa, apresenta muitas atividades que estimulam o levantamento das

percepções e opiniões dos alunos acerca de seus espaços vividos, porém não se preocupa em

problematizá-las, permanecendo no patamar do senso comum. Cabe ressaltar, no entanto, que

é claro também o hibridismo entre correntes do pensamento, pois se é verdade que a corrente

humanista-cultural da geografia predomina nas atividades didáticas, é também fato a

influência das interpretações críticas da abordagem geográfica nos textos relativos a alguns

temas, como a discussão em torno da urbanização brasileira, por exemplo. Tal hibridismo,

porém, pára por aí, em alguns poucos tópicos e de forma bastante breve porque o que

prevalece é o tratamento fenomênico, sem raiz, sem essência.

Com isso, a geografia escolar preconizada pelo ProJovem contribui para a construção

de uma visão de mundo que estaciona na constatação das desigualdades sociais, tomadas

muitas vezes ao longo das páginas dos volumes de sua coleção didática apenas como

diferenças. Apoiando-se na premissa anunciada no projeto pedagógico em relação à ação

comunitária, uma das três dimensões formativas do Programa, a intervenção no mundo é até

discutida e incentivada, mas não na perspectiva da práxis, uma vez que a reflexão sobre a

ação não se desenvolve de forma plena. Na unidade na qual o tema Cidade e Juventude é

abordado, a reflexão sobre o direito à cidade, a partir do qual a articulação entre organização

do espaço urbano e características da sociedade capitalista se tornaria evidente, não é

realizada. Desse modo, as ações comunitárias se restringem a algumas idéias de intervenção

na realidade apoiadas apenas no caráter econômico-corporativo, do qual fala Gramsci, não

avançando, portanto, para a dimensão ético-política.

A Coleção Cadernos de EJA trabalha em outra perspectiva. A recontextualização

pedagógica dos preceitos da geografia crítica é evidente, pois a geografia aí veiculada entende

o espaço como produto do trabalho humano em relação com a natureza pautado, na

contemporaneidade, na forma de trabalho assalariado. Ao possibilitar a reflexão sobre a crise

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que envolve essa mesma forma de trabalho, as atividades didáticas de geografia concorrem

para a compreensão da complexidade que envolve as relações sociais e sua participação na

produção do espaço geográfico. A percepção do aluno em relação ao seu espaço vivido

também é evocada, porém de forma mais reflexiva e crítica, o que confere à geografia dos

cadernos vários momentos ricos de aprofundamento e articulação de temáticas da geografia

com as grandes questões que afligem o mundo contemporâneo. As características do processo

de globalização da economia, por exemplo, não são desenvolvidas como inexoráveis, ao

contrário, são questionadas e colocadas em xeque quando algumas atividades anunciam os

efeitos perversos desse processo no cotidiano dos trabalhadores. A globalização possível

desenvolvida a partir das reflexões de Milton Santos também exemplifica a linha adotada pela

educação geográfica dos cadernos e a vincula de forma mais clara ainda ao ideário da

abordagem crítica da geografia.

A organização dos conteúdos em forma de atividades didáticas acaba, obviamente, por

não possibilitar o tratamento de toda a riqueza da análise geográfica para todos os temas

disponíveis nos cadernos do aluno. A flexibilização adotada remete ao professor a

responsabilidade de criar outras atividades e desenvolver novas temáticas, o que torna a

coleção, nesse aspecto, uma espécie de apoio ao trabalho docente, uma vez que ela não

direciona a ação educativa, apenas anuncia possibilidades que podem ser repetidas,

modificadas ou potencializadas. A qualidade das atividades didáticas, no entanto, deixa a

desejar em alguns momentos. A sensação de que a geografia tinha algo mais a dizer se repete

algumas vezes, fato agravado pelo já mencionado abandono do objeto geográfico. De

qualquer forma, vale ressaltar o esforço em sugerir atividades e tarefas que exemplifiquem a

possibilidade de uma educação geográfica muito próxima da perspectiva ético-política e

alimentem a criatividade e a criticidade de professores e alunos da EJA.

Como política de currículo, a Coleção Cadernos de EJA carrega também a dimensão

de referencial a ser seguido. As atividades sugeridas podem ser balizadoras da geografia que

deve ser ensinada/aprendida na escolarização/educação de jovens e adultos trabalhadores, fato

que pode introduzir uma geografia mais engajada na luta por justiça social em muitos cursos e

programas de EJA. Nesse sentido, novas inquietações surgem, pois, a partir do exposto, fica a

indagação sobre o uso dessa coleção. Será a geografia aí preconizada de fato referência para o

trabalho pedagógico em classes de EJA? De que modo os professores, com suas dificuldades,

angústias e condições precárias de trabalho, se relacionarão com a coleção? Há perspectivas

de cursos de formação continuada que auxiliem no entendimento e na adoção da coleção? O

desafio posto a partir de então conduz a outros momentos de reflexão.

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A última questão a que nos propomos responder se refere às contradições e limites,

inerentes a qualquer ação política, que podem ser desvelados nas propostas curriculares. A

concepção de políticas de currículo com a qual trabalhamos contribui sobremaneira para a

compreensão dessa questão. Ao considerar tais políticas como processos híbridos de

recontextualização de discursos oriundos de diferentes contextos, podemos vislumbrar de

maneira mais clara as razões que explicam as incoerências presentes nas propostas

curriculares analisadas. Se encaramos o hibridismo como o resultado da negociação entre

diferentes discursos, muitas vezes antagônicos, dentro de uma mesma ação política que

intenta legitimação perante seus interlocutores, não é difícil perceber os problemas que isso

pode acarretar para a coerência teórico-metodológica da política em questão. E é aqui que nos

aproximamos da compreensão acerca das razões que levam à existência de ambiguidades

internas às coleções examinadas.

Assim é, por exemplo, o que acontece com o ProJovem quando seu projeto político-

pedagógico se reveste de um discurso includente e progressista, mas contraditoriamente

oferece a ilusão da empregabilidade e da formação escolar aligeirada que pouco pode

acrescentar à formação intelectual de seus alunos. A coleção didática expressa essa

contradição quando seleciona temas atuais e condizentes com as várias identidades de jovens

trabalhadores, mas, ao menos no que tange à geografia, não os aborda de forma aprofundada e

crítica. Ao mesmo tempo, as atividades que incentivam a percepção do espaço vivido dos

alunos, que de certa forma identificam o material à concepção fenomenológica da geografia

humanista-cultural, são desenvolvidas em meio a uma proposta prescritiva e que se

assemelha, em muitos momentos, aos convencionais e diretivos livros didáticos. Quanto a

essa característica, julgamos sua existência como fruto de negociações inerentes ao processo

de imposição de um determinado discurso, no caso, aquele que leva a proposta curricular do

programa a um tratamento superficial e aligeirado do conhecimento escolar no qual a lógica

do aprender a aprender prevalece. Provavelmente, como forma de legitimação perante boa

parte dos professores e alunos, porém, a lógica prescritiva e diretiva se faz presente.

Quanto aos Cadernos de EJA, talvez possamos dizer que não haja contradições no

sentido estreito do termo, mas sim uma incoerência para uma proposta que pretende apoiar o

trabalho pedagógico dos cursos e programas de escolarização de jovens e adultos. Tal

incoerência está, a nosso ver, em oferecer discussões pertinentes e atividades didáticas

criativas e de base crítica, mas com um formato bastante distante da dura realidade que a

maior parte das escolas de EJA enfrenta cotidianamente. Não falamos isso em função da

opção por eixos temáticos ou pela intertextualidade como princípio pedagógico, muito menos

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em virtude da escolha por um viés flexível e não prescritivo da organização curricular. Essa

compreensão se dá pela ausência de textos informativos disciplinares ou mesmo de caráter

interdisciplinar que pudessem exercer o papel tanto de complementação didática das temáticas

desenvolvidas como de informação e atualização para o professor acerca do conhecimento

abordado. Estimular o educador a se ver também como pesquisador em sua prática é algo que

merece ser destacado, mas não percebê-lo como um sujeito real que enfrenta uma série de

limitações e dificuldades para o procedimento pleno desse fazer pode levar os Cadernos de

EJA às prateleiras das escolas e não às mesas e carteiras onde se encontram professores e

alunos.

E é em torno dessa questão que se produz outra gama de desafios e inquietações.

Como professores que lecionam geografia a jovens e adultos trabalhadores reinterpretam e

recontextualizam conhecimentos e discursos veiculados nesses documentos curriculares?

Percebem ou não, e como, as ambiguidades e contradições? De que forma os estudantes

reagem e interpretam a educação geográfica a eles disponibilizada por esses materiais? Essas

são indagações que não couberam a essa pesquisa responder, mas foram suscitadas ao longo

de seu desenrolar. Cabem a outros trabalhos, a outros momentos em que a geografia escolar

praticada em cursos de EJA possa ser problematizada.

Enfim, consideramos que, apesar das dificuldades, incongruências e questionamentos,

a modalidade EJA ganha com o surgimento dessas coleções. Ganha porque é reconhecida

como modalidade de ensino e como direito dos trabalhadores. Ganha porque se torna

referência para a produção de outros materiais didáticos. Ganha porque adquire discurso

pedagógico que passa a balizar concepções disciplinares, bem como propostas inter ou

multidisciplinares. Ganha porque a educação geográfica nela referenciada pode então receber

novos contornos, novas possibilidades, novas proposições.

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SCHÄFFER, Neiva O.; MEISTER, Ana Maria S. Geografia. 1º grau e supletivo. Porto Alegre: Sagra, s/d. (Coleção Sagra). SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. Ensinar história. São Paulo: Scipione, 2004. SILVA, Jorge Luiz B. O que está acontecendo com o ensino da geografia? Primeiras impressões. In: PONTUSCHKA, Nídia Nacib; OLIVEIRA, Ariovaldo U. (orgs.). Geografia em perspectiva: ensino e pesquisa. São Paulo: Contexto, 2002. SENADO FEDERAL. Subsecretaria de Apoio às Comissões Especiais e Parlamentares de Inquérito. Ata da 13ª Reunião de 2007. Brasília: Senado Federal, 2008. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. SIMIELLI, Maria Elena. Cartografia no ensino fundamental e médio. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri (org.). A geografia na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003. ____________________. O mapa como meio de comunicação e a alfabetização cartográfica. In: ALMEIDA, Rosângela Doin (org.). Cartografia escolar. São Paulo: Contexto, 2007. SOARES, Leôncio. Educação de Jovens e Adultos: Diretrizes Curriculares Nacionais. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. SOUTO GONZÁLEZ, Xosé Manuel. A didáctica da geografia: dúvidas, certezas e compromisso social dos professores. In: INFORGEO, n. 15 (Educação geográfica). Lisboa: Associação Portuguesa de Geógrafos, 2002. SPOSITO, Maria Encarnação B. Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de geografia: pontos e contrapontos para uma análise. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri; OLIVEIRA, Ariovaldo U. (orgs.). Reformas no mundo da educação: parâmetros curriculares e geografia. São Paulo: Contexto, 1999. STABILE, Carol A. Pós-modernismo, feminismo e Marx: notas do abismo. In: WOOD, E.M.; FOSTER, J.B. (orgs.). Em defesa da história: marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. STRAFORINI, Rafael. Ensinar geografia: o desafio da totalidade-mundo nas séries iniciais. São Paulo: Annblume, 2004. SUERTEGARAY, D. Geografia física (?) geografia ambiental (?) ou geografia e ambiente (?). In: MENDONÇA, F.; KOZEL, S. (orgs.). Elementos de epistemologia da geografia contemporânea. Curitiba: Ed. da UFPR, 2002. THOMAZ JÚNIOR, Antônio. Por uma geografia do trabalho (reflexões preliminares). Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788, v. VI, n. 119 (5), ago. 2002. Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-5.htm> Acesso em: 22 mai. 2008. THOMPSON, Edward P. Os românticos: a Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

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____________________. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. TIRIBA, Lia Vargas. Economia popular e produção de uma nova cultura do trabalho: contradições e desafios frente à crise do trabalho assalariado. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (org.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1998. TREVIZAN, Salvador. O que é rural? o que é urbano? e a educação? Ilhéus: mimeo, 2003. Disponível em: <http://www.forumeja.org.br/ec/files/Texto%20Salvador%20Trevisan.pdf> Acesso em: mar. 2008. VAINER, Carlos. As escalas do poder e o poder das escalas: o que pode o poder local? In: Planejamento e território: ensaios sobre a desigualdade. Rio de Janeiro: DP&A, IPPUR-UFRJ, 2002. VALE, Ana Maria do. Educação popular na escola pública. São Paulo: Cortez, 2001. VESENTINI, José William. Geografia crítica e ensino. In: OLIVEIRA, Ariovaldo U. (org.). Para onde vai o ensino de geografia? São Paulo: Contexto, 8 ed., 2003a. ______________________. Ensino de geografia e luta de classes. In: OLIVEIRA, Ariovaldo U. (org.). Para onde vai o ensino de geografia? São Paulo: Contexto, 8 ed., 2003b. ______________________. Realidades e perspectivas do ensino de geografia no Brasil. In: _________ (org.). O ensino de geografia no século XXI. Campinas: Papirus, 2004. VESENTINI, José William; VLACH, Vânia. Geografia crítica. Geografia do mundo industrializado. 7 ed. São Paulo: Ática, 1996, v. 3. VIEIRA, Jarbas Santos. Política educacional, currículo e controle disciplinar: implicações sobre o trabalho docente e a identidade do professorado. In: Currículo sem fronteiras, v. 2, n. 2, p. 111-136, jul./dez. 2002. VLACH, Vânia. O ensino de geografia no Brasil: uma perspectiva histórica. In: VESENTINI, J. W. (org.). O ensino de geografia no século XXI. Campinas: Papirus, 2004. WOOD, Ellen Meiksins. Trabalho, classe e Estado no capitalismo global. In: LEHER, Roberto; SETÚBAL, Mariana (orgs.). Pensamento crítico e movimentos sociais: diálogos para uma nova práxis. São Paulo: Cortez, 2005. ZANATTA, Beatriz A. O método intuitivo e a percepção sensorial como legado de Pestalozzi para a geografia escolar. In: Cadernos Cedes, Campinas, vol. 25, n. 66, p. 165-184, maio / ago. 2005.

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337

ANEXOS

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338

ANEXO 1

MATRIZ DE COMPETÊNCIAS E HABILIDADES DO EXAME NACIONAL DE CERTIFICAÇÃO DE COMPETÊNCIAS DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

(ENCCEJA) - ÁREA HISTÓRIA E GEOGRAFIA - ENSINO FUNDAMENTAL

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS - INEP

DIRETORIA DE AVALIAÇÃO PARA CERTIFICAÇÃO DE COMPETÊNCIAS

Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos – Encceja/2002

Matriz de Competências e Habilidades de História e Geografia - Ensino Fundamental

EIXOS COGNITIVOS

I. Dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica.

II. Construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas.

III. Selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema.

IV. Relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente.

V. Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos para elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural.

COMPETÊNCIAS GERAIS

F1 - Compreender processos sociais utilizando conhecimentos históricos e geográficos.

F2 - Compreender o papel das sociedades no processo de produção do espaço, do território, da paisagem e do lugar.

F3 - Compreender a importância do patrimônio cultural e respeitar a diversidade étnica.

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339

F4 - Compreender e valorizar os fundamentos da cidadania e da democracia, de forma a favorecer uma atuação consciente do indivíduo na sociedade.

F5 - Compreender o processo histórico de ocupação do território e a formação da sociedade brasileira.

F6 - Interpretar a formação e organização do espaço geográfico brasileiro, considerando diferentes escalas.

F7 - Perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente.

F8 - Compreender a organização política e econômica das sociedades contemporâneas.

F9 - Compreender os processos de formação das instituições sociais e políticas a partir de diferentes formas de regulamentação das sociedades e do espaço geográfico.

HABILIDADES

I II III IV V F1 H1 H2 H3 H4 H5 F2 H6 H7 H8 H9 H10 F3 H11 H12 H13 H14 H15 F4 H16 H17 H18 H19 H20 F5 H21 H22 H23 H24 H25 F6 H26 H27 H28 H29 H30 F7 H31 H32 H33 H34 H35 F8 H36 H37 H38 H39 H40 F9 H41 H42 H43 H44 H45

H1 - Identificar diferentes formas de representação de fatos e fenômenos histórico-

geográficos expressos em diferentes linguagens.

H2 – Reconhecer transformações temporais e espaciais na realidade.

H3 - Interpretar realidades históricas e geográficas estabelecendo relações entre diferentes

fatos e processos sociais.

H4 - Comparar diferentes explicações para fatos e processos históricos e/ou geográficos.

H5 – Considerar o respeito aos valores humanos e à diversidade sócio-cultural, nas análises

de fatos e processos históricos e geográficos.

H6 – Identificar fenômenos e fatos histórico-geográficos e suas dimensões espaciais e

temporais, utilizando mapas e gráficos.

H7 – Analisar geograficamente características e dinâmicas dos fluxos populacionais,

relacionando-os com a constituição do espaço.

H8 – Interpretar situações histórico-geográficas da sociedade brasileira referentes à

constituição do espaço, do território, da paisagem e/ou do lugar.

H9 – Comparar os processos de formação socioeconômicos e geográficos da sociedade

brasileira.

H10 – Comparar propostas de soluções para problemas de natureza socioambiental,

respeitando valores humanos e a diversidade sociocultural.

H11 – Identificar características de diferentes patrimônios étnico-culturais e artísticos.

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340

H12 – Reconhecer a diversidade dos patrimônios étnico-culturais e artísticos em diferentes

sociedades.

H13 - Interpretar os significados de diferentes manifestações populares como representação

do patrimônio regional e cultural.

H14 - Comparar as diferentes representações étnico-culturais e artísticas.

H15 – Identificar propostas que reconheçam a importância do patrimônio étnico-cultural e

artístico para a preservação das memórias e das identidades nacionais.

H16 – Identificar em diferentes documentos históricos os fundamentos da cidadania e da

democracia presentes na vida social.

H17 – Caracterizar as lutas sociais, em prol da cidadania e da democracia, em diversos

momentos históricos.

H18 – Relacionar os fundamentos da cidadania e da democracia, do presente e do passado,

aos valores éticos e morais na vida cotidiana.

H19 – Discutir situações da vida cotidiana relacionadas a preconceitos étnicos, culturais,

religiosos e de qualquer outra natureza.

H20 – Selecionar criticamente propostas de inclusão social, demonstrando respeito aos

direitos humanos e à diversidade sociocultural.

H21 – Identificar em diferentes documentos históricos e geográficos vários movimentos

sociais brasileiros e seu papel na transformação da realidade.

H22 – Investigar criticamente o significado da construção e divulgação dos marcos históricos

relacionados à história da formação da sociedade brasileira.

H23 – Interpretar o processo de ocupação e formação da sociedade brasileira, a partir da

análise de fatos e processos históricos.

H24 – Analisar relações entre as sociedades e a natureza na construção do espaço histórico

e geográfico.

H25 – Avaliar propostas para superação dos desafios sociais, políticos e econômicos

enfrentados pela sociedade brasileira na construção de sua identidade nacional.

H26 – Identificar representações do espaço geográfico em textos científicos, imagens, fotos,

gráficos, etc.

H27 – Caracterizar formas espaciais criadas pelas sociedades, no processo de formação e

organização do espaço geográfico, que contemplem a dinâmica entre a cidade e o campo.

H28 – Analisar interações entre sociedade e natureza na organização do espaço histórico e

geográfico, envolvendo a cidade e o campo.

H29 – Discutir diferentes formas de uso e apropriação dos espaços, envolvendo a cidade e

o campo, e suas transformações no tempo.

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341

H30 – A partir de interpretações cartográficas do espaço geográfico brasileiro, estabelecer

propostas de intervenção solidária para consolidação dos valores humanos e de equilíbrio

ambiental.

H31 – Associar as características do ambiente (local ou regional) à vida pessoal e social.

H32 – Identificar a presença dos recursos naturais na organização do espaço geográfico,

relacionando transformações naturais e intervenção humana.

H33 - Relacionar a diversidade morfoclimática do território brasileiro com a distribuição dos

recursos naturais.

H34 - Analisar criticamente as implicações sociais e ambientais do uso das tecnologias em

diferentes contextos histórico-geográficos.

H35 – Selecionar procedimentos e uso de diferentes tecnologias em contextos histórico-

geográficos específicos, tendo em vista a conservação do ambiente.

H36 - Identificar aspectos da realidade econômico-social de um país ou região, a partir de

indicadores socioeconômicos graficamente representados.

H37 – Caracterizar formas de circulação de informação, capitais, mercadorias e serviços no

tempo e no espaço.

H38 - Comparar os diferentes modos de vida das populações, utilizando dados sobre

produção, circulação e consumo.

H39 – Discutir formas de propagação de hábitos de consumo que induzam a sistemas

produtivos predatórios do ambiente e da sociedade.

H40 – Comparar organizações políticas, econômicas e sociais no mundo contemporâneo,

na identificação de propostas que propiciem eqüidade na qualidade de vida de sua

população.

H41 - Identificar os processos de formação das instituições sociais e políticas que

regulamentam a sociedade e o espaço geográfico brasileiro.

H42 - Estabelecer relações entre os processos de formação das instituições sociais e

políticas.

H43 - Compreender o significado histórico das instituições sociais considerando as relações

de poder, a partir de situação dada.

H44 – Discutir situações em que os direitos dos cidadãos foram conquistados, mas não

usufruídos por todos os segmentos sociais.

H45 – Comparar propostas e ações das instituições sociais e políticas, no enfrentamento de

problemas de ordem econômico-social.

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ANEXO 2

SUMÁRIO DOS TEMAS PRESENTES NO LIVRO DO ESTUDANTE ENCCEJA - ENSINO FUNDAMENTAL

Capítulo I Confrontos sociais e território nacional

Dora Shellard Corrêa

Capítulo II Mudanças no espaço geográfico do Brasil

Gilberto Pamplona da Costa

Capítulo III O valor da memória

Denise Gonçalves de Freitas

Capítulo IV Cidadania e democracia

Antônio Aparecido Primo - Nico

Capítulo V Movimentos políticos pelos direitos dos índios

Adriane Costa da Silva

Capítulo VI A cidade e o campo no Brasil contemporâneo

Roberto Giansanti

Capítulo VII As sociedades e os ambientes

Hugo Luiz de Menezes Montenegro

Capítulo VIII A organização econômica das sociedades na atualidade

Sônia Maria Vanzella Castellar

Capítulo IX Estado e democracia no Brasil

Jaime Tadeu Oliva

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343

ANEXO 3

SUGESTÃO DE ORGANIZAÇÃO SEMANAL DE TEMPO DE UMA TURMA DO

PROJOVEM

Dia 1 Dia 2 Dia 3 Dia 4 Dia 5

1ª hora

hora

FORMAÇÃO BÁSICA: LÍNGUA

PORTUGUESA

FORMAÇÃO BÁSICA:

MATEMÁTICA

FORMAÇÃO BÁSICA: LÍNGUA

ESTRANGEIRA

FORMAÇÃO BÁSICA:

CIÊNCIAS HUMANAS

FORMAÇÃO BÁSICA:

CIÊNCIAS NATURAIS

3ª hora

AÇÃO

SOCIAL/ COMUNITÁRIA (PROFESSOR ORIENTADOR)

4ª hora

QUALIFICAÇÃO PARA O

TRABALHO (PROFESSOR ORIENTADOR)

hora

INFORMÁTICA (PROFESSOR ORIENTADOR)

PLANTÃO

(PROFESSOR ORIENTADOR)

TRABALHO COM O

PROFESSOR ORIENTADOR:

ARTES; ATIVIDADES

INTEGRADORAS

QUALIFICAÇÃO PARA O

TRABALHO (PROFESSOR

DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL)

TRABALHO COM O

PROFESSOR ORIENTADOR:

ARTES; ATIVIDADES

INTEGRADORAS

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ANEXO 4

MATRIZ CURRICULAR DO PROJOVEM

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347 ANEXO 6

PROJOVEM - ORGANIZAÇÃO DOS CONTEÚDOS DE CIÊNCIAS HUMANAS

UNIDADES

FORMA- TIVAS

TÓPICOS

I – JUVENTUDE E CIDADE

II – JUVENTUDE E TRABALHO

III – JUVENTUDE E

COMUNICAÇÃO

IV – JUVENTUDE E

CIDADANIA

1

H Quem sou eu? Quem somos nós?

G/S Os significados do trabalho para a

juventude

S A comunicação na vida do jovem

S Significados de cidadania e

política para os jovens

2

G/H O que é História? O que é Geografia?

G O trabalho e as transformações do

espaço geográfico

G Globalização, tempo, espaço e

fluxos

G/H/S Ideologias e poder

3

S Como somos nós? O que significa ser

jovem?

H As mudanças nas relações de

trabalho no Brasil

G As várias faces da globalização

G/H/S Democracia e Estado

4

S Como é ser jovem para você? E para

seu grupo?

G O trabalho assalariado e as novas

tecnologias no Brasil

G O conhecimento e a representação

do mundo

G O território brasileiro: unidade

e diversidade

5

G Por que moramos na cidade?

G/H Emprego, subemprego e

desemprego

G Como os mapas são feitos?

G As diferentes regiões

brasileiras

6

G Os jovens no espaço urbano

Economia solidária: empreendedorismo e

cooperativismo

G Compreendendo as representações

espaciais

G A população brasileira

7

G Diferentes paisagens urbanas

G Trabalho, cidadania e condições de

vida

H Para que tanta pressa? Diferentes

formas de viver o tempo

G Problemas e desafios da população jovem no mundo

globalizado

8

G A qualidade de vida nas cidades

H Lutas e conquistas de mulheres e homens no mundo do trabalho

H Diferentes formas de representar o

tempo

Mundos paralelos: problemas e desafios de jovens

brasileiros

9

G Cidade, cidadão, cidadania

G/H/S A educação, os novos desafios e a

juventude

G/S/H Admirável mundo novo: os meios

de comunicação de massa

S Os jovens e a participação em

movimentos políticos

10

G O futuro da cidade

G/H/S Trabalho, lazer e uso do tempo livre

G/H/S A juventude e o acesso aos meios

de comunicação

S Os jovens como sujeitos –

idéias, grupos, ações: e você?

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348

ANEXO 7 CONTEÚDOS GEOGRÁFICOS – COLEÇÃO CADERNOS DE EJA

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349

ANEXO 7

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350

Cultura e Trabalho: A arte e o trabalho; Conceito (de cultura); Cultura do trabalho; Cultura e culinária; Cultura política; Cultura popular; Festas populares; Futebol e trabalho; História da cultura; O trabalhador do setor cultural; Primeiro emprego; Regionalidades; Trabalho e tempo livre; Diversidades e Trabalho: A luta dos negros; Ambiente de trabalho; Diversas idades; Diversidade cultural; Diversidade de sentidos; Diversidade étnica e cultural; Diversidade religiosa; Diversidades regionais; Economia Solidária e Trabalho: Causas coletivas; Convívio social; Desenvolvimento social; Economia solidária; Filosofia social; Leis e regras; O que é cooperativismo?; Organização do trabalho; Organização empresarial; Organização social; Organização social feminina; Produção conjunta; Sistemas cooperativos; Sistemas políticos; Vida solidária; Emprego e Trabalho: Alienação do trabalho; Desemprego; Direitos dos trabalhadores; Lutas dos trabalhadores; Para que trabalhar; Relações no trabalho; Rotina do trabalhador; Tipos de trabalho; Trabalho informal;

Globalização e Trabalho: Interação de culturas; Contrastes de globalização; Mudanças no mercado de trabalho; Comércio internacional; Presença militar norte-americana; Uma outra globalização; Integração latino-americana; Migrações; Relações de trabalho; Concentração de renda; Juventude e Trabalho: Consumo; Cultura juvenil; Desemprego juvenil; Empreendedorismo; Jovens no campo; Necessidades especiais; Participação política; Risco social; Rotina do jovem; Saúde do jovem; Ser jovem; Meio Ambiente e Trabalho: A luta para salvar o planeta; A luta pelo desenvolvimento sustentável; A monocultura degrada o meio Ambiente; Degradação Ambiental; Desenvolvimento sustentável; Ecossistemas brasileiros; Energia limpa; Interferência no ambiente; Mudanças climáticas; O trabalho em harmonia com a natureza; Pesca artesanal; Tratamento de lixo; Mulher e Trabalho: Assédio sexual; Competição Profissional; Conquistas trabalhistas / femininas; Desigualdade; Direitos trabalhistas; Discriminação social; Feminino X masculino; História do trabalho feminino; Mulher e desemprego; Mulheres famosas; O que é ser mulher;

ANEXO 8 SUBTEMAS DA COLEÇÃO CADERNOS DE EJA

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351

Risco social; Trabalho doméstico; Trabalho e família; Trabalho no campo; Qualidade de Vida, Consumo e Trabalho: Alimentação e saúde; Comércio ilegal; Consumismo; Consumo consciente; Consumo responsável; Cultura social; Defesa do consumidor; Desenvolvimento sustentável; Direitos civis; Direitos do consumidor; Hábitos alimentares; Organização da produção; Os perigos do álcool; Os perigos do fumo; Serviços Públicos; Televisão; Transgênicos; Segurança, Saúde e Trabalho: A luta pelo trabalho decente; Acidentes de trabalho; Ambiente de trabalho; Ambiente insalubre; Conseqüências do excesso de trabalho; Cuidados com o corpo; Cuidados com o local de trabalho; Direito ao trabalho decente; Excesso de trabalho; Normas de segurança; Prevenção de acidentes; Riscos do ambiente de trabalho; Saúde e sustentabilidade; Saúde indígena; Tempo Livre e Trabalho: Ansiedade; Carga horária; Carnaval e liberdade; Costumes regionais; Cultura popular; Família; Lazer; Lazer e deficiência; Lazer e tragédia; Lazer gerando renda; Más compensações; Mudanças inevitáveis; O conceito de tempo livre; O direito ao lazer;

Qualidade de vida; Realidade de vida; Saúde e lazer; Sofrimento e alegria no escritório; Sofrimento e alegria; Tempo bem empregado; Trabalho e tempo livre; Trabalho voluntário; Vida urbana; Tecnologia e Trabalho: Acesso à tecnologia; Apropriação; Desenvolvimento sustentável; Desenvolvimento tecnológico; História da tecnologia; Invenções; O homem e a máquina; Projeção; Relações no trabalho; Substituição de mão-de-obra; Tecnologia alimentícia; Tecnologia de comunicações; Tecnologia e cotidiano; Tecnologia e desemprego; Tecnologia e transporte; Trabalho no Campo: A luta pela terra; Agricultura familiar; Agroecologia; Artesanato; Automação rural; Crescimento urbano; Desemprego rural; Economia sustentável; Energia renovável; Fruticultura tropical; Igualdade e auto-suficiência; Índios no Brasil; Mão-de-obra rural; Mecanização e desemprego; Produção rural; Reforma agrária; Trabalhadores sem terra.

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ANEXO 9 TEXTO 3 DO CADERNO EMPREGO E TRABALHO

COLEÇÃO CADERNOS DE EJA

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353

ANEXO 10 IMAGEM DO CADERNO MEIO AMBIENTE E TRABALHO

COLEÇÃO CADERNOS DE EJA