em tempo de incerteza, o pesquisar é preciso

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 MANSKE, George Saliba. Em tempos de incerteza o pesquisar é preciso?  Revista Interdisc iplinar Científica Aplicada , Blumenau, v.1, n.1, p.01-19, Sem I. 2007 ISSN 1980-7031 EM TEMPOS DE INCERTEZA O PESQUISAR É PRECISO? George Saliba Manske 1  RESUMO Algumas considerações são os pontos de partida sobre o fato de que vivenciamos na atualidade uma crise das verdades absolutas desenvolvemos algumas reflexões sobre possibilidades de construção de pesquisas que se inserem neste paradigma contemporâneo. Para isso, discutimos num primeiro momento, o marco teórico que privilegia a compreensão de investigações alicerçadas em tal condição. Na seqüência apresentamos as maneiras pelas quais inserido neste paradigma de dúvidas e incertezas que delineiam as produções que realizamos os modos pelos quais desenvolvemos a construção do objeto de estudo durante a pesquisa no curso de mestrado. Palavras-chave:  Pesquisar . Conhecimento. Estudo. Pós-estruturalismo. Culturas. 1 INTRODUÇÃO É recorrente, na atualidade, falar numa crise do pensamento. Esta crise é abordada como tema no ciclo de conferências promovido pelo Ministério da Cultura em parceria com instituições de ensino públicas e privadas do Rio Grande do Sul, durante o mês de maio de 2006 na cidade de Porto Alegre, tem como título a atual situação da “Cultura e do pensam ento em te mpos de incerteza”. Dentre as questões a serem debatidas no referido evento destacam-se temas referentes à crise dos ideais universais, ao ceticismo brasileiro diante de sua vida política, o fanatismo religioso em algumas regiões do mundo entre outros aspectos que tangenciam as dúvidas e transformações daquilo que se acreditava ser estável em nosso mundo moderno. Embora tenha conhecimento que inúmeros autores propunham que t al crise é um momento de fissuras e rupturas com as metanarrativas da modernidade, o qual nos endereça para as inerentes incertezas e contingências que compõem nossas verdades e mundos, n ão pretendem os, neste texto, disc utir as transformações de pensamento que apontam para este ou aquele estado e momento histórico da humanidade. 1  Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenador e docente do curso de Licenciatura em Educação Física do IBES - Instituto Blumenauense de Ensino Superior. ( [email protected] ).

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considerações são os pontos de partida sobre o fato de quevivenciamos na atualidade uma crise das verdades absolutas desenvolvemos algumasreflexões sobre possibilidades de construção de pesquisas que se inserem nesteparadigma contemporâneo. Para isso, discutimos num primeiro momento, o marcoteórico que privilegia a compreensão de investigações alicerçadas em tal condição.

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  • MANSKE, George Saliba. Em tempos de incerteza o pesquisar preciso? Revista Interdisciplinar Cientfica Aplicada, Blumenau, v.1, n.1, p.01-19, Sem I. 2007 ISSN 1980-7031

    EM TEMPOS DE INCERTEZA O PESQUISAR PRECISO?

    George Saliba Manske1

    RESUMO Algumas consideraes so os pontos de partida sobre o fato de que

    vivenciamos na atualidade uma crise das verdades absolutas desenvolvemos algumas reflexes sobre possibilidades de construo de pesquisas que se inserem neste paradigma contemporneo. Para isso, discutimos num primeiro momento, o marco terico que privilegia a compreenso de investigaes aliceradas em tal condio. Na seqncia apresentamos as maneiras pelas quais inserido neste paradigma de dvidas e incertezas que delineiam as produes que realizamos os modos pelos quais desenvolvemos a construo do objeto de estudo durante a pesquisa no curso de mestrado.

    Palavras-chave: Pesquisar . Conhecimento. Estudo. Ps-estruturalismo. Culturas.

    1 INTRODUO

    recorrente, na atualidade, falar numa crise do pensamento. Esta crise abordada como tema no ciclo de conferncias promovido pelo Ministrio da Cultura em parceria com instituies de ensino pblicas e privadas do Rio Grande do Sul, durante o ms de maio de 2006 na cidade de Porto Alegre, tem como ttulo a atual situao da Cultura e do pensamento em tempos de incerteza.

    Dentre as questes a serem debatidas no referido evento destacam-se temas referentes crise dos ideais universais, ao ceticismo brasileiro diante de sua vida poltica, o fanatismo religioso em algumas regies do mundo entre outros aspectos que

    tangenciam as dvidas e transformaes daquilo que se acreditava ser estvel em nosso mundo moderno. Embora tenha conhecimento que inmeros autores propunham que tal crise um momento de fissuras e rupturas com as metanarrativas da modernidade, o qual nos enderea para as inerentes incertezas e contingncias que compem nossas

    verdades e mundos, no pretendemos, neste texto, discutir as transformaes de pensamento que apontam para este ou aquele estado e momento histrico da humanidade.

    1 Mestre em Educao pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenador e

    docente do curso de Licenciatura em Educao Fsica do IBES - Instituto Blumenauense de Ensino Superior. ([email protected]).

  • MANSKE, George Saliba. Em tempos de incerteza o pesquisar preciso? Revista Interdisciplinar Cientfica Aplicada, Blumenau, v.1, n.1, p.01-19, Sem I. 2007 ISSN 1980-7031

    O que me interessa pensar a partir desta chamada crise do pensamento e de uma quase celebrao da contingncia o fato de que tais acontecimentos perpassam e no

    podia ser diferente os diferentes campos de produo de saberes, e mais detidamente, os modos como se vm desenvolvendo essas produes, tal como as pesquisas e investigaes que realizamos nos mbitos das universidades e outras instituies de ensino.

    inserido nesta condio cultural de dvidas e incertezas que venho discutir alguns dos modos pelos quais desenvolvi uma investigao (MANSKE, 2006), a fim de tornar tais processos investigativos como parte integrante deste emaranhado de produes contemporneas inseridas numa crise do pensamento. Para tal me detenho,

    principalmente, nas maneiras pelas quais constru o objeto de estudo de minha pesquisa, assim como, nos modos pelos quais acabei por torn-lo um problema a ser investigado e analisado.

    Cabe ressaltar, para um melhor acompanhamento do leitor que meu estudo foi

    realizado na Associao Crist de Moos2 (ACM) de Porto Alegre. A ACM uma instituio centenria na referida cidade e possui mais de 150 anos de existncia desde sua institucionalizao em Londres, Inglaterra, no ano de 1844. Durante este estudo alguns temas tornaram-se centrais, constituindo, desde a construo do objeto at as anlises e consideraes realizadas, a base na qual desenvolvi a investigao. So eles: juventudes, produo de lideranas juvenis e voluntariado social. Estas prticas e temas constituem os grupos de liderana juvenil da ACM de Porto Alegre, espao em que estive vinculado desde o segundo semestre de 2004 at meados de 2005 na realizao dos processos investigativos da referida pesquisa.

    Neste processo, tive como objeto a ser analisado as produes dos jovens lderes acemistas para o exerccio de voluntariado social, e na realizao das discusses referentes a este objeto, eu procurei problematizar as prticas desenvolvidas nos grupos de liderana juvenil que so propostas com a inteno de formar jovens lderes para o exerccio do voluntariado social.

    As discusses realizadas esto ancoradas no campo dos Estudos Culturais nas vertentes denominadas ps-estruturalistas. Inserido neste campo de estudos e perspectiva terica apresento, nesse texto, um modo especfico pelo qual experimentei

    2 Chamo a ateno do leitor para o fato de que usarei ao longo deste texto a abreviatura ACM para

    tratar da Associao Crist de Moos, assim como o termo acemistas para designar prticas e sujeitos que estejam vinculados ACM.

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    minha investigao. Desse modo, este texto torna-se menos uma receita de pesquisa do que uma discusso sobre as inmeras possibilidades de construo de conhecimentos,

    assim como, das possibilidades dos caminhos no somente a serem trilhados, mas principalmente, criados para posteriormente serem abandonados.

    Este texto est dividido em dois momentos. O primeiro se refere a alguns pressupostos que precederam minha investigao nos quais acredito delinear as

    possibilidades do pesquisar. No segundo momento destaco alguns aspectos que conduziram a construo do objeto de estudo de minha investigao e suas possveis problematizaes, desde a perspectiva terica assumida.

    2 DELINEAMENTOS TERICOS

    A perspectiva terica assumida quando da realizao de uma pesquisa no indica apenas em que marco terico tal produo acadmica ser desenvolvida, mas antes

    disso, delimita as maneiras como ser construdo o objeto de estudo, as questes de pesquisa, o material emprico e as problematizaes a serem feitas, os caminhos metodolgicos, os recortes, as unidades, as problematizaes, em suma, a inscrio terica condiciona as possibilidades de composio, os modos de elaborao, as

    maneiras de olhar e construir a pesquisa e[m] seus mltiplos movimentos, a maneira pela qual estaremos entendendo o nosso mundo particular da investigao.

    No estudo realizado procurei deslocar meu olhar de um referencial terico que buscasse a possibilidade de explicar como as coisas verdadeiramente so. Tal

    entendimento de verdade como resultado do uso correto da razo e da aplicao minuciosa de observaes e de lgicas racionais resultante de diversas transformaes ocorridas num perodo que tem incio no Renascimento e consolida-se no Iluminismo denominado de Modernidade (HALL, 2003; SILVA, 1999). O modo de compreender o mundo desenvolvido a partir destas lgicas racionais influenciou diferentes campos de saber que, a partir desta racionalidade, buscaram analisar diversos acontecimentos, constituindo, assim, variadas epistemologias. Embora distintas tais epistemologias apresentam algumas caractersticas em comum, como por exemplo, a concepo de linguagem (VEIGA-NETO, 2002).

    Veiga-Neto (2002, p. 26) enfatiza que nas distintas epistemologias desenvolvidas a partir do pensamento moderno a linguagem entendida como um instrumento capaz de descrever o mundo e, de certa forma, represent-lo. O autor

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    segue afirmando que nesta perspectiva a linguagem funciona como um meio capaz de chegar realidade quer seja por sua aplicao minuciosa e descritiva dos fatos observados quer seja pela aplicao correta que supere as distores que os fatos colocam sobre a realidade. Assim, desde que utilizada de maneira correta e eficaz, baseada pelos princpios da racionalidade que a sustentam, a linguagem poderia ser potencialmente uma ferramenta de aquisio e de encontro com as verdades.

    Tal entendimento de linguagem deslocado no incio do sculo XX, principalmente a partir dos trabalhos do lingista suo Ferdinand Saussure. Em Saussure, a linguagem no uma ferramenta utilizada para a apreenso e a descrio do real e da verdade das coisas, ela que delimita e produz o que so as coisas a partir das

    estruturas sociais internas que a conformam. Em seus estudos, Saussure entendia que a lngua, em sua parte de sistemas estruturados, era o que conformava a fala enquanto prtica, enquanto uma ferramenta que utilizava a estrutura mais profunda de sistemas e convenes para colocar em movimento possveis significados.

    Muitos outros autores elaboraram a partir dos trabalhos de Saussure algumas consideraes em relao concepo de linguagem por ele promulgada. Para o movimento de pensamento ou a atitude convencionada de ps-estruturalismo a linguagem adquire maior centralidade enquanto meio de produo de significados e, de

    certa forma, radicalizada em relao concepo desenvolvida nos trabalhos de Saussure (SILVA, 1999).

    Na tica ps-estruturalista os significados produzidos pelos processos de significao ocorridos atravs das linguagens no so nunca fixados, esgotados e

    finalizados, h sempre uma falta, uma incompletude, uma brecha, uma fenda que se abre ininterruptamente nas relaes de produo de sentido das coisas. E tal compreenso um dos deslocamentos realizados pela perspectiva ps-estruturalista em relao ao entendimento de linguagem idealizado por Saussure, pois enquanto para este

    estudioso o mtodo estruturalista da linguagem, se aplicada com um rigoroso cientificismo, poderia estabelecer e identificar estruturas universais e comuns a todas as culturas - tendo a pretenso de um formalismo auto-suficiente - no ps-estruturalismo a linguagem concebida como antifundacional, ou seja, no existe nenhum elemento, essncia, organizao ou estrutura de qualquer tipo, que possa garantir a validade ou a

    estabilidade de qualquer sistema de pensamento (GUTTING, 1998 apud PETERS, 2000, p. 39).

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    Assumir a importncia da linguagem como um meio de produo de sentidos e significados requer pensar no apenas como a linguagem funciona na produo desses

    significados, mas tambm, quais os efeitos desses processos de significao em nossas vidas, em nossas prticas, em nossas subjetividades, nas maneiras como nos entendemos e como compreendemos o mundo. O deslocamento proposto no ps-estruturalismo principalmente nas vertentes que se utilizam dos estudos de Michel

    Foucault - evidencia a necessidade de problematizar os efeitos dessas produes em nossas vidas, o que produzido como verdade e como conhecimento, com que efeitos e para quem, quem pode, o qu, de que posio, em que momento e de que maneira participar no processo de significao, em suma, tal perspectiva advoga a necessidade

    de estarmos atentos s relaes de poder e de produo de conhecimento que permeiam os processos de significao.

    Foi a partir deste movimento de transformao conceitual em relao linguagem denominado de virada lingstica que, em meados de 1960, houve um movimento de transformao poltica e epistemolgica denominado de virada cultural - que contribuiu para a emergncia de um campo de estudos organizado em torno da cultura, os campos dos Estudos Culturais.

    Desde tal reconfigurao terica e das produes de conhecimento

    desenvolvidas desde este campo de estudos, a cultura passou a ser compreendida como um conjunto de sistemas de organizao e de classificao de sentidos no qual a linguagem, como instncia privilegiada de significao, posta em movimento a fim de dar significado s coisas (HALL, 1997). Assim, poderamos pensar no mais em Cultura, no singular, mas em culturas, no plural, e tampouco em distines hierrquicas de culturas, outrossim, pensar que elas so produtos e produtoras das relaes sociais de grupos e indivduos.

    Tal possibilidade de pluralizar o termo cultura acarretou pens-lo como uma

    condio constitutiva da vida social e com um amplo poder analtico e explicativo nas Cincias Humanas e Sociais, adquirindo, dessa forma, uma centralidade em nosso mundo contemporneo (HALL, 1997, p. 16). Essa centralidade no significa que a cultura seja o centro das aes humanas ou um elemento neutro e acima dos outros para realizarmos anlises e compreenses, mas essa centralidade se refere ao fato de que a

    cultura perpassa todos os espaos e recantos da vida humana. A partir desse delineamento terico que desenvolvi minha investigao. Procurei

    incorporar no modo de pensar, escrever e pesquisar tais pressupostos sobre o que pode

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    ser conhecimento e como ele produzido. Assim, desde esse campo de estudos, seguindo algumas consideraes sobre as possibilidades de anlise cultural, procurei

    elaborar um objeto de estudo e suas possveis problematizaes.

    3 DAS POSSIBILIDADES DE CONSTRUO DE UM OBJETO DE ESTUDO

    Durante a construo do objeto de estudo procurei colocar em movimento aquilo que Hall (1997) descreve como sendo parte da constituio cultural de sentidos e verdades dos objetos que temos possibilidades de conhecer. O referido autor, ao comentar sobre a centralidade da cultura na contemporaneidade, destaca que nem

    sempre nas Cincias Humanas e Sociais atribuiu-se uma importncia aos aspectos substantivos e um peso e legitimidade aos aspectos epistemolgicos quando das anlises sobre os modos de constituio de sentidos e de verdades na cultura.

    Hall (1997, p. 16) evidencia a importncia de estarmos atentos aos aspectos substantivos da cultura, ou seja, s condies materiais e empricas que organizam atividades, instituies, e relaes culturais na sociedade (tais como as prticas acerca de juventude, voluntariado e liderana) a fim de que possamos compreender de que modo afetam e condicionam ao mesmo tempo em que so condicionados por os

    aspectos epistemolgicos da cultura, ou seja, os modos pelos quais so produzidos os conhecimentos acerca desses processos empricos reais.

    Desta forma, procurei pensar e elaborar algumas recorrncias contemporneas acerca do objeto de estudo que delineava balizado, principalmente, pelos trs eixos temticos, quais sejam: as juventudes contemporneas, as aes de voluntariado social e a produo de lideranas. Busquei algumas possveis articulaes entre os eixos, a fim de elaborar meu objeto de estudo ancorando-me na existncia de seus elementos na contemporaneidade, e no isolados da cultura da qual fazem parte.

    Ressalto que esta proposta ocorreu em duas frentes: a primeira refere-se recorrncia dessas temticas desde os aspectos substantivos da cultura, ou seja, reportagens, cartazes, notcias, programas, palestras e outros artefatos que versassem

    sobre jovens, voluntariado e liderana. Seguindo, destaco a recorrncia desses temas em seus aspectos epistemolgicos, ou seja, as produes de verdades e de conhecimento desenvolvidas sobre essas mesmas temticas.

    Ao buscar recorrncias contemporneas dos trs eixos, procurei problematizar as diferentes modalidades e maneiras como estes temas so produzidos nas sociedades, a

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    fim de compreender suas relaes singulares com as redes de significados e de saberes que estabelecem entre si. Tal tarefa colabora ao entendimento da relao ntima que o

    emprico e o material possuem com os aspectos epistemolgicos que as culturas

    produzem; propiciam entender que tais relaes so intrnsecas, so relaes em que no h um ponto de partida e nas quais causa e conseqncia se confundem tambm inextricavelmente (VEIGANETO, 2002, p. 168); compreender que aquilo que podemos produzir como conhecimento est atrelado s condies empricas nas quais vivemos e nas quais estamos imersos.

    3.1 DE PRTICAS CULTURAIS CONTEMPORNEAS COMPOSIO DO OBJETO DE ESTUDO: JUVENTUDES, VOLUNTARIADOS E LIDERANAS

    possvel perceber que a sociedade brasileira nos ltimos anos vem dedicando maior ateno aos jovens, sendo estes sujeitos freqentemente alvos de preocupaes e estudos (ABRAMO, 1997; SPOSITO; CARRANO, 2003). Essa constatao reflete-se nos diversos investimentos realizados pelos diferentes setores da sociedade, tais como a opinio pblica, os meios de comunicao, rgos pblicos governamentais, instituies polticas, acadmicas, assistenciais, filantrpicas, entre outras.

    Embora os autores acima referidos apontem que somente nos ltimos anos as iniciativas pblicas e as polticas governamentais estejam sendo desenvolvidas na direo de contemplar os jovens brasileiros, outras instituies como associaes beneficentes e organizaes no-governamentais (ONGs), h mais tempo, e crescentemente, vm destinando programas e projetos s diferentes juventudes no Brasil. Dessa forma, segundo Abramo (1997), h um incremento de projetos sociais preocupados em desenvolver junto aos jovens distintos elementos que contribuam para sua formao como sujeitos sociais, tais como a cidadania e o protagonismo. Indo um pouco mais alm, poderamos acrescentar o voluntariado e a liderana como aspectos tambm abordados por alguns projetos.

    No Rio Grande do Sul, por exemplo, h uma organizao no-governamental, a Parceiros Voluntrios, em que participam, atualmente, 32 mil jovens engajados em diversas aes, sendo este o maior movimento de voluntariado jovem do pas, somando, junto com os outros participantes, mais de 90 mil pessoas atuando em aes voluntrias (JORNAL CORREIO DO POVO, 16 jan. 2005, p. 18). Estas aes,

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    envolvendo jovens e voluntariado, vm ganhando cada vez mais espao nos meios de comunicao de nossas sociedades.

    No dia 21 de abril de 2005, feriado nacional, muitos jovens resolveram abrir mo de seu feriado para auxiliar na reforma do Colgio Estadual Jlio de Castilhos (Porto Alegre), realizando pinturas no prdio, segundo relato de um jovem entrevistado no programa jornalstico da TV Educativa do Rio Grande do Sul. Nesta atividade, onde os jovens eram os principais agentes da ao voluntria, houve a presena do secretrio estadual da educao do Rio Grande do Sul, Jos Fortunati, comentando a importncia social destas atitudes dos jovens cidados e de sua vinculao com os processos educativos.

    Embora a ao voluntria juvenil seja o centro da referida reportagem ou que agregue em torno de si milhares de jovens como no exemplo da ONG Parceiros Voluntrios, parece haver a necessidade de um elemento indispensvel para a realizao do voluntariado, elemento evidenciado, por exemplo, nas palavras do secretrio, quando

    refere que para a ao voluntria preciso ter atitude. Nesse caso, esta ao se articula necessidade de uma atitude juvenil, elementos que associados podem ser produtivos para a sociedade.

    importante perceber que o voluntariado juvenil se engendra, tambm, com outros elementos e em distintos espaos sociais na atualidade, assumindo diferentes caractersticas em cada um desses espaos. Um exemplo disso pode ser evidenciado no seguinte fato: certa vez, ao caminhar pelas ruas de Porto Alegre me deparei com um cartaz fixado em uma parede que tinha o seguinte dizer: Globalizao, idealismo e

    voluntariado. Como o assunto me interessava, resolvi conferir sobre o que se tratava. A Sociedade Nova Acrpole3, espao indicado no referido cartaz, possui sedes

    na cidade de Porto Alegre e realiza estudos sobre filosofia promovendo palestras abertas ao pblico. Aconteceu, no dia 28 de abril de 2005, um encontro com o ttulo de

    3 A Sociedade Nova Acrpole reconhecida como uma Fundao de utilidade pblica que executa

    aes sociais e culturais, estando presente, atualmente, em mais de 40 (quarenta) pases e representando mais de 15 (quinze) idiomas e uma ampla gama de convices religiosas, origens tnicas e heranas culturais. Sua principal misso buscar despertar no homem e na mulher uma viso global atravs do estudo comparado das Cincias, das Religies, das Artes e das Filosofias (ASSOCIAO CULTURAL NOVA ACRPOLE. Disponvel em: . Acesso em: 07 fev. 2006).

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    Globalizao, idealismo e voluntariado, coordenado pelo professor Fabiano Camilo. Nesse encontro, entre os diferentes temas abordados, foram discutidos:

    I) a importncia dos jovens nas aes voluntrias nas quais os jovens desempenham um papel fundamental como atuantes e agentes de modificao das sociedades.

    II) a necessidade de o jovem ser idealista, o que, a partir das palavras do palestrante, estabelece uma dinmica no voluntariado, ativa o voluntariado, uma atitude do querer mudar, do tomar a frente nas aes voluntrias, de ser um consciente multiplicador de aes. Nesse exemplo, podemos perceber a relao estabelecida entre a ao voluntria e a necessidade dos jovens voluntrios serem idealistas, pois o idealismo, ao mobilizar e potencializar as aes daquele que executa o voluntariado, torna-se um aspecto essencial nas aes voluntrias.

    Diante desses exemplos, percebemos que h distintos investimentos sociais centrados nos jovens e nas aes voluntrias, quer sejam acerca dessas aes e sua vinculao com a educao e a necessidade dos jovens em tomar atitudes, quer sejam articulaes entre o voluntariado e a urgncia dos jovens serem agentes de modificao das sociedades, multiplicadores de aes, enfim, idealistas, tal como promulgou a palestra Globalizao, Idealismo e Voluntariado.

    Independentemente do espao social em que estejam sendo produzidas, veiculadas e fomentadas, as prticas de voluntariado social e sua articulao com os sujeitos jovens vm adquirindo uma grande visibilidade nas culturas contemporneas.

    Alm das recorrncias acima referidas sobre as diferentes articulaes

    estabelecidas entre jovens e voluntariado social, h, ainda, outras possibilidades de se realizar este imbricamento, as quais ligam e potencializam a produtividade da dade jovem-voluntrio. No caso do meu estudo o elemento que esteve imbricado ao jovem e ao voluntria foi a liderana.

    A liderana um termo amplamente utilizado na Associao Crist de Moos de Porto Alegre, que desenvolve, em conjunto com o voluntariado juvenil, aes que contemplam e buscam desenvolver nos sujeitos participantes elementos do lder acemista.

    Na tradio do trabalho acemista o incentivo ao desenvolvimento de lderes foi e a varivel presente e constante, [...] o lder (agente de transformao) tem no seu agir como voluntrio a sua maior fora de colaborao, j que ser agente de transformao e ser voluntrio uma ferramenta indispensvel na funo da liderana crist. (ACM, 1999, p. 9).

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    possvel destacar, acerca da conexo estabelecida entre liderana e voluntariado jovem na ACM, que a liderana juvenil acemista atua em conjunto com o voluntariado, ou ainda, que a liderana constituinte do voluntariado, mesmo que para ser lder seja necessrio o exerccio do trabalho voluntrio. H, ento, uma quase inseparabilidade destes termos, ainda que cada um diga respeito a aspectos especficos e inextricavelmente sobrepostos.

    Estes elementos da cultura acerca de juventudes, voluntariado e liderana podem, tambm, ser percebidos nos diferentes estudos realizados sobre esses temas, ou

    seja, em seus aspectos epistemolgicos. possvel destacar que h uma gama bastante variada de trabalhos que enfocam esta temtica. Posso destacar a existncia de um Programa de Estudo sobre Trabalho Voluntrio vinculado a um Laboratrio de Polticas Pblicas e Terceiro Setor no Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais Aplicadas

    da Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS/ RS, que contempla distintas pesquisas acerca do voluntariado social (BAVARESCO, 2003, p. 12).

    A maioria dos estudos voltados discusso do voluntariado se embasa em preceitos e pressupostos da rea da Administrao, do meio empresarial e das

    organizaes do Terceiro Setor, tais como o de Bavaresco (2003), que problematiza o discurso sobre o voluntariado na UNISINOS, o de Matsuda (2002), que busca compreender o nvel de satisfao pessoal dos voluntrios engajados em alguns projetos sociais e o de Pinheiro (2002), no qual o autor intenta problematizar a ao voluntria como ao em rede social, entre outros.

    Do mesmo modo como ocorre com o tema do voluntariado, h uma grande produo de estudos sobre a liderana, sendo que boa parte est voltada para o meio empresarial e de negcios. Estudos como o de Asanome (2001), que procura estabelecer um novo paradigma nas relaes de liderana no meio empresarial, ou ainda o de Petracca (2001), que faz uma reviso acerca das distintas concepes de liderana nas cincias humanas, articulam o termo lder e liderana, na maioria das vezes, a uma cultura de empresa, concepo esta tal como apresentada por Peters (2002).

    Parece-me necessrio nesse texto discutir e apresentar ao leitor algumas

    possibilidades de construo do objeto de estudo, desde sua insero e produo nas culturas contemporneas. Desse modo, desde o ponto de vista terico assumido, foi necessrio, ao discutir detidamente o objeto de estudo em questo, elaborar articulaes acerca dos aspectos culturais que o compem e sustentam na atualidade, sendo

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    extremamente produtivo pens-lo como um produto da cultura, que adquire e faz circular sentidos especficos que so produzidos em meio s relaes substantivas e

    epistemolgicas da cultura na qual ele se insere. Foi inserido nessa episteme que pude melhor delimitar, aprofundar e tecer

    algumas consideraes sobre meu objeto de estudo. Entrementes, um outro empreendimento foi necessrio para que as discusses se tornassem mais produtivas:

    fazer de tal objeto de estudo um problema; problematiz-lo, enfim.

    3.2 DA CONSTRUO DE UM OBJETO DE ESTUDO S POSSVEIS PROBLEMATIZAES

    A perspectiva terica aqui assumida implica colocar em suspenso as verdades daquilo que investigado, suspeitar do que constitui, naturaliza, legitima e estabiliza o objeto de estudo, buscar tornar incerto aquilo que as faz parecer mais coesas e bem estruturadas. Para isso, a problematizao do objeto de estudo requer a elaborao e transformao de um fato, de uma materialidade, de um discurso, de uma prtica, em

    um problema, em questes, em questionamentos. Essa transformao de um conjunto de complicaes e dificuldades em

    problemas para os quais as diversas solues tentaro trazer uma resposta o que constitui o ponto de problematizao e o trabalho especfico do pensamento

    (FOUCAULT, 2004, p. 233). Portanto, problematizar requer, principalmente, a elaborao do nosso objeto de

    estudo em problema, constru-lo a partir de conjuntos de questionamentos e de elaboraes de respostas, ou ainda, de mais perguntas.

    Tal perspectiva terica permite, ento, um olhar e tornar problemticos os fatos, os ditos, os escritos que so pertinentes, permite um movimento que no gira em torno do bem e do mal, do certo e do errado, tampouco daquele olhar que exige uma soluo final e derradeira para os problemas que investigamos embora instigue a pensarmos e

    elaborarmos algumas consideraes. A no proposio de verdades e solues finais no implica que no seja possvel e diria at mesmo necessrio realizar consideraes ou alguns apontamentos acerca daquilo que investigamos, mas implica estar atento para o fato de que inclusive aquilo que estamos considerando tambm

    passvel e diria tambm necessrio de ser posto em suspenso, de averiguar as singularidades que possibilitaram determinadas inferncias e no outras. Esse

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    movimento requer que delimitemos o que produzimos como conhecimento, ou ainda, como ressalta Foucault, tal movimento na constituio de respostas a partir das

    problematizaes que elaboramos implica questionar no apenas como puderam ser construdas as diferentes solues para os problemas; mas tambm como essas diferentes solues decorrem de uma forma especfica de problematizao (FOUCAULT, 2004, p. 233).

    Uma das possveis maneiras de problematizao das produes de jovens lderes acemistas para o exerccio de voluntariado social consistiu em torn-lo um problema especfico, em arranjar, elaborar e empreender nele movimentos de reorganizao e de re-elaborao daquilo que o constitui. Assim, procurei problematizar

    o curso de liderana juvenil acemista, em suas mltiplas intervenes e aes, como um currculo, um currculo cultural que delimita, organiza, sistematiza e impe, atravs de inmeras estratgias, determinados conhecimentos, certas prescries, selecionados contedos, em suma, maneiras especficas dos sujeitos se posicionarem no mundo e de conhec-lo.

    Um currculo, seguindo algumas reflexes de Corazza (2003), produto de relaes de fora e de poder delimitadas histrica e culturalmente. Um currculo tem como base de sustentao o conhecimento e a verdade por ele apregoada, assim como,

    um tipo especfico de sujeito e de subjetividade por ele almejada. Pensar um currculo dos jovens lderes acemistas foi, ento, problematizar as prticas que produzem, legitimam e circulam certo tipo de conhecimento e de verdade sobre o tema da liderana juvenil acemista; foi problematizar um espao no qual se procura formar um determinado tipo de sujeito: o jovem lder acemista. Foi tornar problemtico este curso de liderana juvenil e entend-lo como um lugar produzido no interior e atravs de relaes de poder, de imposies de saberes e de significados.

    Portanto, problematizar o curso de liderana juvenil acemista como um currculo, significou pensar que os contedos foram selecionados, de que modo, em que momento, por quem e para quem; como foram postos em movimento estes saberes e que elementos os sustentam, enfim, foi colocar em suspenso e movimentar aquilo que

    os cursos de liderana juvenil da Associao Crist de Moos de Porto Alegre buscavam produzir e fabricar em suas inmeras aes.

    Discutir e analisar tal curso de formao de lideranas juvenis como um currculo ajudou-me a problematiz-lo como um espao de organizaes sistemticas que possuem contedos e saberes a serem ensinados, e que almejam um tipo especfico

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    de sujeito a ser formado. Assim, estabeleci discusses acerca das prticas mais recorrentes postas em funcionamento na formao dos jovens acemistas (prticas esportivas e recreativas, dinmicas de grupos, reunies e palestras, e, por fim, prticas de voluntariado juvenil) e tambm, os saberes mais enfatizados em sua formao (pressupostos da religio catlica, de liderana juvenil e algumas relaes e questes de gnero), a fim de pensar qual o jovem lder acemista que o curso procurava produzir.

    Este foi um dos procedimentos empreendidos em minha pesquisa, a qual se delineou durante o prprio processo de investigao e a partir das leituras, sugestes e indicaes realizadas. Tal movimento acabou por se tornar bem distinto dos procedimentos iniciais que pretendia seguir, configurando-se como um processo

    imprevisvel de construo de conhecimento. Assim, diante desses fatos e acontecimentos, fica uma pergunta: pesquisar preciso?

    4 PESQUISAR PRECISO?

    Navegar preciso, viver no preciso.

    (Fernando Pessoa)

    Preciso: 1. o que faz falta; necessrio, indispensvel. 2. feito ou determinado com absoluto rigor e perfeio; exato, certo, definido. 3. que faz com perfeio aquilo que se prope. 4. que atinge exatamente o alvo. (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2281). Numa rpida consulta ao dicionrio, percebemos que o termo preciso possui diferentes

    sentidos. Um dos sentidos diz respeito necessidade, ao fato de se precisar de algo, de algo ser indispensvel. O outro sentido diz respeito preciso, ao fato de ser certeiro, exato, perfeito naquilo que se prope. Portanto, uma mesma palavra com diferentes sentidos. Esta ambigidade do termo preciso potencializa as possibilidades de

    interpretao que Fernando Pessoa traz em seu poema, onde navegar preciso (preciso com o sentido de exato, de definido) e viver no preciso (com o mesmo sentido de claro, fixo, tambm de exato e definido). Embora a frase escrita dessa forma navegar preciso, viver no preciso - seja de Fernando Pessoa, cabe ressaltar que o poeta re-escreveu uma frase antes proferida por

    Pompeu, general romano, por volta de 70 a.C. (MING, 2004). Este fato, relatado por Plutarco em Vida de Pompeu, tinha no Latim ao invs do termo precisar o termo necessrio. Ento, segundo Plutarco, a frase a seguinte: navigare necesse est, vivere

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    non est necesse (Navegar necessrio, viver no ). Pompeu proferiu esta frase quando ele e sua tripulao estavam prestes a embarcar num navio para mais uma viagem

    durante a guerra e seus marinheiros ficaram amedrontados com uma tempestade que estava por vir, negligenciando a ordem de embarcar dada pelo general - sendo naquele contexto das guerras a viagem muito mais necessria do que qualquer outra coisa, inclusive do que a vida. Por isso navegar era necessrio, viver no. Quando Fernando Pessoa escreveu seu poema, parafraseando Pompeu, utilizou-se do termo preciso ao invs do termo necessrio e, segundo Moreno (2005), foi justamente ambigidade que o termo preciso passou a ostentar neste poema [entre necessidade e exatido] que acabou por torn-lo to famoso, sendo esta, uma das marcas de um dos principais

    gnios da poesia. Gostaria agora de fazer uma parfrase com este poema, trocando o termo viver e

    navegar por pesquisar. Ficaria assim: Pesquisar preciso, pesquisar no preciso.

    Busco utilizar nesta frase os dois sentidos antes apresentados para o termo preciso e isto

    por dois motivos: um deles me leva a pensar o pesquisar e sua relao com o termo preciso de maneira semelhante utilizada por Freitas (2002) quando escreve que Viver a tese preciso!, e a Marques (2003), que afirma que Escrever preciso, pois o escrever o princpio da pesquisa. Freitas (2002) destaca algumas finalidades da ao do pesquisar como, por exemplo, a funo burocrtica institucional e a funo social da pesquisa, envolvida na produo e renovao de conhecimentos e na formao do pesquisador que passar a ser um multiplicador dessas aes do pesquisar. A autora ainda destaca que no limite, ns somos o maior objeto da tese, pois enquanto sujeitos dela ns vivemos um embate de foras internas e externas, elas nos ensinam muito sobre ns mesmos (FREITAS, 2002, p. 225). Dessa forma, pesquisar preciso, pois h nesta ao distintas funes necessrias, tais como institucionais, sociais, polticas e, tambm, h a necessidade de nossa constituio enquanto sujeitos pesquisadores. Assim, pesquisar preciso, pois algo que nos mobiliza, que nos constitui, no a partir de um lugar vazio a ser preenchido, mas a partir das questes que nos mobilizam e nos impulsionam a pesquisar, a nos constituir e constituir outras funes necessrias

    pesquisa.

    O segundo motivo pelo qual relaciono o pesquisar com o termo preciso em sua

    segunda acepo - se deve ao fato de que entendo o pesquisar como uma aventura, um sair e deixar-se levar, na medida do possvel, pelos movimentos prprios que o ato de pesquisar empreende. Uma aventura. Assim entendo minha pesquisa, com seus

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    movimentos, tempestades, balanos, calmarias e inseparabilidade daquilo que a constitui em seu entorno. Embora navegar seja preciso, necessite de preciso para guiar-se, entendo o pesquisar como algo que cria suas condies e constitui sua bssola e seu norte no movimento mesmo de sua construo, de sua aventura de pesquisar, em nossa aventura de pesquisar e construir a pesquisa. Por isso, pesquisar no absolutamente preciso algo que requer desde sempre preciso, exatido, alvos e caminhos fixos e

    certeiros. Pesquisar no preciso, pois no exato, no claro e previamente definido, descrito, prescrito, mapeado. A pesquisa envolve, nos constitui e somos produzidos num mesmo movimento de transformao e de elaborao que passa por diferentes caminhos. Nesses caminhos h trabalhos de campo, entrevistas, reunies, discusses,

    leituras, re-elaborao do material de pesquisa, modificaes na organizao da composio do material de anlise, mudanas e delimitaes do foco e das questes de pesquisa e, principalmente, inmeras sesses solitrias em frente tela do computador e dos livros. Portanto, pesquisar no preciso. Embora seja.

    Para lanar minhas ltimas consideraes sobre o pesquisar, creio que no decorrer da pesquisa que a construmos como tal e nesse movimento, tambm, que delineamos e construmos os modos mais apropriados para conduzir a produo de nosso mundo especfico de investigao.

    No h, portanto, uma receita ou um caminho prvio que desde seu comeo defina o bom andamento da pesquisa, mas pelo contrrio, so as inmeras escolhas e caminhos trilhados que definiro a investigao durante sua prpria elaborao.

    Lano-me, ento, a esta contingente e incerta aventura do conhecimento. E no

    encerro meu texto afirmando como ela deve ser feita, pois creio que se o fizesse, poderia perder toda a produtividade e riqueza que nessa aventura se inscreve. E lembro, por fim, Zaratustra aquele mesmo de Nietzsche (2005, p. 153) - que, quando interrogado sobre as provas e os caminhos que trilhou durante suas muitas

    transformaes, assim falou: Provando e interrogando, foi assim que caminhei. Este agora o meu caminho; onde est o vosso? Era o que eu respondia aos que me perguntavam o caminho. Que o caminho... o caminho no existe. Pelo menos no antes de ser iniciado!

    IS IT NECESSARY TO RESEARCH IN TIMES OF UNCERTAINTY?

  • MANSKE, George Saliba. Em tempos de incerteza o pesquisar preciso? Revista Interdisciplinar Cientfica Aplicada, Blumenau, v.1, n.1, p.01-19, Sem I. 2007 ISSN 1980-7031

    ABSTRACT Considering the starting points on the fact that today we experience a crisis of

    the absolute truths, we developed some considerations on the possibilities of constructing surveys which insert themselves in this contemporaneous paradigm. For that, first we discussed the theoretical frame which favors the comprehension of surveys based on that condition. In the sequence we presented the ways by which we insert this paradigm of doubts and uncertainties which outline the productions we carry out and the ways we develop the construction of the object of study during a research in the course of the masters degree.

    Key words: Research. Knowledge. Study. Post structuralism. Cultures.

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