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EIXO BIOLÓGICO

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EIX

O B

IOLÓ

GIC

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I. Introdução

II. Conceitos básicos

III. Mecanismos de regulação

IV. Regulação biológica

V. Considerações finais

VI. Referências

Lógica e mecanismos de regulação

Unidade 1

Autores: Waldenor Barbosa da Cruz e Marcelo Silveira de Alcântara

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152        Módulo III — Processos de manutenção da vida

Nesta unidade você terá uma visão introdutória sobre como ocorre a regulação nos seres vivos. Iniciaremos mostrando como um sistema mecânico é regulado, a partir de uma lógica externa a ele: um termostato. É um sistema simples, e você

deve refletir durante a sua leitura sobre como um sistema pode ser controlado.A seguir entraremos no estudo da regulação nos seres vivos. Nesse ponto você deve

prosseguir a leitura com muito cuidado. Os seres vivos, embora possa parecer estranho à primeira vista, não funcionam exatamente como um termostato, pois a sua lógica é inter-na, e não imposta de fora. Lembre-se da discussão de função no texto-base. Esse importan-te conceito será agora necessário. A regulação não existe para controlar o organismo, mas ele pode ter seus sistemas controlados porque essa regulação atua.

Vários mecanismos lógicos serão apresentados, e a seguir os veremos em ação em uma aplicação bioquímica, envolvendo uma das vias mais centrais do metabolis-mo, a glicólise. Finalmente, você deverá compreender que a lógica interna faz com que o ser vivo organize-se como um sistema adaptativo complexo, auto-organizado e, portanto, auto-regulado.

#M3U1 I. Introdução

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Consórcio Setentrional de Ensino a Distância        153

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Procure, então, prestar atenção na lógica e nos mecanismos de regulação atuantes no ser vivo, e tente ver como ela atua, através desses diversos mecanismos, tanto no exem-plo desta unidade como nos demais sistemas que compõem um ser vivo.

A palavra regulação tem uma multiplicidade de significados. Contudo, se você con-sultar um dicionário, ou fizer busca na internet, verá que todos eles envolvem a noção de manutenção do estado de um dado sistema, seja ele natural, como um ser vivo, ou cons-truído pelo homem. Isso implica a necessidade de especificarmos claramente o significado que utilizaremos. Para isso, podemos começar analisando a figura 1, que mostra um esque-ma de dispositivo contendo um tipo de termostato.

Figura 1: esquema de dispositivo contendo termostato.

Observe que o dispositivo esquematizado é composto de uma resistência elétrica, uma lâmina bimetálica, um parafuso, conectores e cabos elétricos, tudo contido em uma caixa. A lâmina bimetálica é composta de dois metais diferentes, fortemente soldados, que se dilatam diferentemente quando aquecidos. Conectando-se o dispositivo a uma tomada elétrica, a passagem de corrente terá como conseqüência:

1) produção de calor pela resistência elétrica;

2) aumento da temperatura da caixa que contém o dispositivo;

3) dilatação da lâmina bimetálica.

Como você pode prever, a dilatação da lâmina terá como resultado o seu encurva-mento na direção da lâmina que se dilata menos — na figura, a representada pelo retângulo amarelo — o que levará à abertura do circuito elétrico. Aberto o circuito, cessa a produção de calor pela resistência elétrica, a temperatura da caixa começará a baixar — por perda de calor para o ambiente — e a lâmina bimetálica voltará à sua posição inicial, fechando o circuito, e recomeçando o processo.

#M3U1 II. Conceitos básicos

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#M3U1

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Lógica e mecanismos de regulação

Note que o dispositivo oscila entre dois estados como mostra a figura 2.

Figura 2: estados do termostato.

Você, certamente, já percebeu que a temperatura da caixa que contém o dispositivo oscila entre um máximo, atingido no momento em que o circuito é aberto, e um mínimo, atingido no momento em que o circuito é fechado (a caixa é mantida em um intervalo de tem-peratura que depende das propriedades físicas dos componentes e da posição do parafuso).

Atividade complementar 1Tente analisar o funcionamento de sua geladeira com base na discussão acima.

Nesse ponto, é conveniente abrir parênteses para recordar alguns conceitos que

serão importantes em nossas discussões. Observe que nosso dispositivo é, na verdade, um conjunto, cujos elementos — resistência elétrica, lâmina bimetálica, etc. — mantêm entre si determinadas relações. Por exemplo, a resistência é ligada à lâmina por meio de cabos elétricos.

Um conjunto, cujos elementos mantêm entre si relações definidas, é denomina-do de sistema.

Observe, também, que as propriedades de nosso sistema, por exemplo, a temperatu-ra, variam com o tempo ou, dito de maneira mais técnica, as propriedades do sistema são funções do tempo. Essa é uma característica de sistema dinâmico.

Há, ainda, outros pontos a considerar antes de continuarmos. O termostato é um sistema simples, composto de apenas alguns componentes. É também um sistema construído com o propósito de manter a temperatura da caixa em determinado intervalo. Em resumo, até agora analisamos um sistema dinâmico simples com propósito predefinido.

Fechamos aqui os parênteses e voltamos ao nosso sistema para analisar as fun-ções de seus componentes.

Todo o dispositivo acima foi construído para produzir calor e manter a temperatura da caixa em um dado intervalo. A ação de produzir calor é realizada pela resistência elé-trica, porém sua ação é regulada pelo termostato — a resistência é, assim, um sistema (ou subsistema) regulado; enquanto que o termostato é o sistema regulador. Essa função de regulador é possível porque o termostato é sensível à temperatura do sistema, que é função da quantidade de calor produzida. Assim sendo, o termostato exerce a função de sensor da variável de saída. Mas, ao mesmo tempo, o termostato realiza a ação reguladora, abrindo o circuito elétrico. O termostato é, também, o efetor da ação reguladora. E o parafuso? O parafuso estabelece o grau de curvatura da lâmina bimetálica fazendo com que a caixa permaneça, digamos, à temperatura de 37±1ºC. Dessa forma, o parafuso estabelece o alvo do sistema regulador, controlando-o de forma oscilante em torno desse alvo (Figura 3).

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Esse conceito de oscilação é extremamente importante. Um sistema de regulação faz com que uma variável oscile em torno de um valor central. Esse retorno ao valor central caracteriza a homeostase. Entretanto, é importante que você perceba que esse valor central não é fixo em qualquer situação. Ou seja, que em função das condições do momento, o valor em torno do qual a oscilação ocorre também se altera. Você verá essa alteração nas unidades de Homeostase e Resposta às Condições Ambientais I e II, onde se discutirá, por exemplo, as adaptações de seres vivos que habitam desertos em condições extremas.

Figura 3: respostas oscilatórias do sistema

Atividade complementar 2

Reflita sobre o sistema acima descrito, à luz do texto base. O que ele tem de seme-lhante e de diferente ao que você espera encontrar em um ser vivo?

Antes de iniciarmos um passeio geral pelos mecanismos de regulação, vamos dis-

cutir algo que você, como estudante, deverá compreender claramente, e que, como futuro professor, deverá orientar a sua prática pedagógica: que a aprendizagem de algo novo deve abordar a compreensão de dois aspectos distintos: sua lógica e seu mecanismo. Cha-mamos de lógica de um processo de regulação, o conjunto de regras que o regem. Em contraposição, mecanismo refere-se aos processos físicos envolvidos. A tendência, ao se estudar, é querer decorar esses mecanismos. Mas esse aprendizado não levará a nada se não compreendermos primeiro a lógica do funcionamento do processo em questão, diga-mos, uma via metabólica. Por exemplo, não faz sentido você querer entender qual a regu-lação que afeta as enzimas da via glicolítica hepática durante a hiperglicemia (mecanismo) se antes não entender primeiro que durante a hiperglicemia há um excesso de glicose no sangue, que em poucas horas volta ao valor normal (oscila), e que o fígado tem um papel central nesse processo, no qual a via glicolítica é uma “via de passagem” entre a glicose que entra no fígado e a síntese de ácidos graxos que será exportada.

Atividade complementar 3

Como dissemos no início, nosso objetivo, no momento, é especificar nosso conceito de regulação. Tendo isso em mente, é recomendável que você, antes de continuar, elabore, por escrito, um conceito preliminar, utilizando o conhecimento que agora tem sobre o termostato.

Ao discutir a regulação, vemos que há vários possíveis mecanismos envolvidos. Alguns são citados abaixo, acompanhados de exemplos de situações corriqueiras e com exemplo de uma situação biológica.

#M3U1 III. Mecanismo de regulação

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Lógica e mecanismos de regulação

Equilíbrio químico

Há na natureza uma tendência ao equilíbrio termodinâmico. Entretanto, devemos entender esse conceito de forma bem cuidadosa e diferenciar bem dois conceitos que utilizaremos a seguir e que são freqüentemente confundidos: os conceitos de estado de equilíbrio e de estado estacionário. Equilíbrio não quer dizer quantidades iguais entre dois compartimentos. Um sistema está em estado de equilíbrio quando sua composição não varia com o tempo ou, em outras palavras, é constante, e a variação de energia livre — ou seja, a energia disponível para produção de trabalho — é igual a zero. Um sistema está em estado estacionário quando sua composição é constante, mas a variação de ener-gia livre é diferente de zero.

Atividade complementar 4

Como você vê, o estado de equilíbrio é incompatível com a vida, já que nele um organismo não poderia realizar nenhum tipo de trabalho. Contudo, é possível que uma reação química particular numa via metabólica esteja em equilíbrio ou muito próximo dele. Todavia um organismo pode estar em estado estacionário. Por quê?

Vejamos a equação que exprime a Constante de Equilíbrio (Keq):

Nela, [A] representa a concentração molar do reagente e [B], a concentração molar do produto quando o equilíbrio é atingido, ou seja, quando a transformação de reagente em produto e a reação reversa, de transformação de produto em reagente, ocorrem na mesma velocidade. Se a reação tiver mais de um reagente ou produto, eles são também considerados, ficando:

Experimentalmente, obtém-se de modo ideal a constante de equilíbrio colocando-se em um frasco os reagentes e produtos de uma reação em concentrações iguais. Acelera-se a reação, adicionando-se um catalisador, químico ou biológico – uma enzima. Cabe ressaltar que o catalisador apenas acelera a reação (Cinética), mas não tem nenhuma in-fluência no equilíbrio a ser atingido (Termodinâmica). É muito importante que você não confunda velocidade de uma reação com o seu equilíbrio. Em um determinado momento, parece que a reação pára. Na realidade não pára, apenas as velocidades dos dois sentidos da reação se igualam.

Assim, quando se atinge o equilíbrio, temos três situações possíveis:a) há uma maior concentração de produtos que de reagentes, logo Keq > 1;b) há concentrações iguais de reagentes e produtos, logo Keq = 1;c) há uma maior concentração de reagentes que de produtos, logo Keq < 1.

A partir dessa equação, gera-se outra:

∆Gº’ = - R T ln Keq.

Saiba mais

A Cinética química é a ciência que estuda a velocidade das reações químicas, já a termodinâmica estuda os fenômenos relacionados com trabalho, energia, calor e entropia, e as leis que governam os processos de conversão de energia.

Keq = [A]

[B]

Keq = [A1] [A2]

[B1] [B2]...

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Nessa equação: AG é a energia livre do sistema; º representa as condições padrão (1 Atm e 298K); ’ representa a reação ocorrendo em pH 7; R representa a constante universal dos gases; T é a temperatura em Kelvin; ln é o logaritmo natural, ou seja, uma função matemática; Keq é a constante de equilíbrio.

E como é determinado esse ∆Gº’, e o que ele significa?Ora, a única conta a ser feita é a multiplicação de duas constantes (R e T) pelo ln Keq.

Pelas propriedades de logaritmos, se o número é maior que 1, o ln é positivo. Se o número é 1, o ln é zero. E se o número é menor que 1, o ln é negativo.

Então, temos que: ∆Go’ é igual a – (menos) R T ln Keq, de modo que o sinal final obtido na equação inverte-se (Tabela 1).

Tabela 1: relações entre Keq e ∆Gº’.

Ora, então o que isso tem a ver com regulação? Em um sistema bioquímico, por exem-plo, numa célula, ocorrem milhares de reações. Como se controla essa aparente confusão?

Em determinado momento, há na célula uma concentração A de um reagente e uma concentração B de um produto. Como saber em que sentido a reação irá ocorrer?

Ora, a equação que determina em que sentido a reação ocorre é:

∆G = ∆Gº’ + R T ln Keq

Note que como ∆Gº’ = �� R T ln Keq, a equação fica:omo ∆Gº’ = �� R T ln Keq, a equação fica: ∆G = - R T ln Keq + R T ln [B] / [A]

onde [A] e [B] são as concentrações reais dos Reagentes [A] e dos Produtos [B] no local e na hora em que a reação está ocorrendo. Assim, comparamos a tendência, o “alvo” (∆Gº’) com a situação real, e podemos saber para que lado a reação ocorrerá naquelas condições.

Utilizando um exemplo corriqueiro, imagine dois recipientes ligados por um pe-queno canal pela parte de baixo. Se enchermos os recipientes com líquido, o líquido passa do recipiente onde está em um nível mais alto para o outro onde está em um nível mais baixo, até atingir o equilíbrio, situação em que os dois frascos apresentam o líquido na mesma altura (Figura 4).

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Lógica e mecanismos de regulação

Figura 4: equilíbrio.

Vamos agora fazer algumas reflexões. Imagine que um dos frascos tem um volume dez vezes maior que o outro. Ora, o fluxo pára não quando a quantidade de líquido em cada frasco se iguala, mas quando a altura nos dois frascos se iguala. Nesse caso, em um frasco eu terei dez vezes mais líquido que no outro ao se atingir o equilíbrio (Figura 5).

Figura 5A: situação inicial.

Figura 5B: situação final.

Essa analogia é uma visualização da constante de equilíbrio (dez para um). O ∆Go’ vai representar o que ocorre se inicialmente colocarmos quantidades iguais nos dois lados. O fluxo ocorre do frasco menor para o maior. Se o frasco menor for chamado de reagente, dizemos que a reação é espontânea. É chamada de espontânea porque ocorrendo no sentido de reagentes para produtos, o valor de ∆Gº’ será negativo, como demonstrado na Tabela 1. Se o frasco menor for chamado de produto, dizemos que a reação é não espontânea.

Uma vez sabendo qual é a proporção esperada para cada reação (Keq), podemos determinar o que acontecerá se tivermos, em um determinado momento, concentrações conhecidas de reagentes e produtos (líquido nos dois frascos), ou seja, em que sentido a reação estará ocorrendo naquele momento.

Visualizando a reação, teremos ∆G = - R T ln 10 / 1 + R T ln [B] / [A]. A proporção 10/1 significa que no equilíbrio teremos 10 vezes mais produtos do que reagentes, como pode ser visto na figura 5B.

Então, se tivermos uma proporção menor que essa, por exemplo 2/1, a reação ocorre no sentido de formar o que chamamos de produto, sendo então dita espontânea (Figura 6).

A B

A B

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Figura 6: reação espontânea.

Se eu tiver uma proporção maior, por exemplo 20/1, a reação ocorrerá no sentido de for-mar o que originalmente chamamos de reagente, sendo então dita não espontânea (Figura 7).

Figura 7: reação não espontânea.

E se eu tiver uma proporção de 10/1, igual à Keq, a reação atinge um estado estacio-nário, e está então em equilíbrio (rever figura 5b).

Finalizando essa discussão sobre equilíbrio, vamos ter de ressaltar um conceito muito importante. O ser vivo não está em equilíbrio. A vida ocorre em um estado denominado de “não��equilíbrio”. O que significa isso? Que embora as reações tenham um ponto de equilíbrio determinado pelo ∆Gº’, está sempre havendo fluxo de substâncias de um lado para outro, fazendo com que, nas diversas situações fisiológicas, haja consumo de reagentes e formação de produtos. E, dependendo da situação, o fluxo se inverte, de modo que o que era reagente, naquele momento, passa a ser produto e o que era produto pode passar a ser reagente. Para entendermos como isso ocorre, temos de compreender três importantes considerações.

A primeira é que no ser vivo uma reação não ocorre de forma isolada. Assim, o produto de uma reação torna-se o substrato de outra. Esse acoplamento pode, então, dire-cionar o fluxo através das reações. Imagine que os frascos têm comunicações com outros frascos (reações acopladas). Se no início tivermos um excesso de produto (imagine a quan-tidade de glicose disponível em hiperglicemia), isso “empurra” as reações (Figura 8).

Figura 8: reações aclopadas: alto fornecimento do reagente inicial.

fluxo

A B

A = 2,5 ml

B = 5 ml

BA

52,5

21

= =

fluxo

A B

A = 2,5 ml

B = 5 ml

BA

52,5

21

= =

fluxo

Reação não espontânea

A B

A = 1 ml

B = 20 ml

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Lógica e mecanismos de regulação

Pode também ocorrer que o produto final esteja sendo muito utilizado, como, por exemplo, ATP em atividade física intensa. Nesse caso, o último frasco está sempre “vazan-do”, o que “puxa” o fluxo em seu sentido (Figura 9).

Figura 9: reações acopladas: alto consumo de produto final.

A segunda é que temos no ser vivo reações que dizemos serem irreversíveis. São reações que têm uma constante de equilíbrio muito alta, ou seja, a proporção de reagentes e produtos ao fim da reação é muito grande. Por exemplo, o frasco A tem volume 1 e o frasco B tem volume 1000. Na prática, a reação ocorre no sentido de A para B. Para ocorrer no sentido contrário, teria de ocorrer na célula uma proporção maior que 1000 de B para 1 de A. Se essa proporção não for viável fisiologicamente, dizemos que no ser vivo a reação é irreversível.

Entretanto, vemos que, no ser vivo, reações ditas irreversíveis podem ocorrer. Como isso acontece?

Imagine que sobre o frasco maior eu tenha um êmbolo, como uma seringa de injeção. Se for colocada pressão nesse êmbolo, a reação ocorrerá abaixando o nível no reservatório maior e aumentando no menor, ou seja, contrário à tendência. Na célula, isso é feito com o acoplamento da hidrólise do ATP, que libera a energia que “empurra” a reação no sentido não espontâneo (Figura 10).

Figura 10: fornecimento de energia.

Por fim, a terceira é: como ocorre a regulação desse sistema? Em uma célula, as entidades reguladas são as enzimas. Como você pode intuir, as

enzimas são representadas pelas comunicações entre os sistemas.

O que a regulação faz é o equivalente a aumentar ou diminuir o tamanho do canal de comunicação entre os frascos. Esse efeito dá-se a partir da interação da enzima com efetores, como você verá adiante na seção “uma aplicação bioquímica”.

fluxo

A B C D

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Compartimentalização

Pode haver regulação simplesmente porque ações opostas ocorrem em locais distin-tos. Essa separação física permite que os fatores envolvidos na regulação não só sejam dis-tintos, mas também que possam estar em contato com estímulos diferentes. Por exemplo, em uma escola, em cada sala, temos uma aula diferente. Em uma célula hepática, a síntese de gordura se dá no citoplasma e a beta-oxidação, na mitocôndria.

Controle a partir de um estímulo externo

Um ambiente pode alterar o seu funcionamento a partir de um estímulo externo. Em um exemplo mais coloquial, continuemos vendo o que acontece em uma sala de aula. As ações do professor são, em parte, controladas por estímulos externos: o horário da aula, a média para aprovação, o currículo. Todos os professores têm de agir de forma homogênea em relação a esses “estímulos externos”.

Em um exemplo biológico, quando o corpo está realizando atividade física intensa, as células do corpo reagem e realizam ações em função desse fato. Cada tipo celular realiza um tipo de ação, mas coordenada entre todas as células do mesmo tipo. Por exemplo, as células musculares estão captando glicose, logo a glicólise está funcionando rapidamente. Nas célu-las hepáticas, por sua vez, a glicólise está inibida, estando ativa a gliconeogênese, que repõe a glicose no sangue. Assim, a mesma via metabólica pode estar ativa em um local (músculo) e inativa em outro (fígado). Isso também reforça o conceito de compartimentalização.

No caso bioquímico, há alguns fatores envolvidos: a) um estímulo; b) uma glândula que reconhece esse estímulo e libera uma mensagem (hormônio); c) o hormônio (primeiro mensageiro) que leva a mensagem às células; d) um receptor celular que interage com o hormônio; e) um efeito celular, mediado por um segundo mensageiro, que irá alterar o funcio-namento celular. Metabolicamente, essa regulação age por modificação covalente da atividade enzimática. Portanto, algo que acontece em um ambiente pode afetar o funcionamento de outro.

Controle a partir de um estímulo local

Em outras ocasiões, um ambiente altera o seu funcionamento em função de estímu-los locais. No caso do professor, a sua aula também é controlada por estímulos locais. Nun-ca duas aulas são iguais: em cada sala, as perguntas que os alunos fazem são diferentes, logo o professor tem de ter uma ação específica em resposta aos estímulos locais.

Vamos dar outro exemplo corriqueiro. Imagine um vendedor de pipoca. Há sempre um “morrinho” de pipoca no carrinho. Quando a quantidade abaixa, o vendedor faz mais pipoca. Quando sobe, ele pára de fazer pipoca. Há um ní-vel “normal”. Não faz sentido ser diferente. Além disso, o vendedor nunca lota o carrinho nem es-pera a pipoca acabar. Ele sempre mantém o nível de pipoca aproximadamente constante, oscilando em torno dele. Para tanto, ele varia a velocidade com que a pipoca é feita em função da velocidade em que é vendida. No caso do controle local, ele é, então, muito sensível a variações momentâneas.

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Lógica e mecanismos de regulação

Em um exemplo biológico, a produção de ATP pode ser controlada pela concentra-ção relativa de ATP/AMP (carga energética).

Vamos à lógica: se tenho muito ATP (e consequentemente pouco AMP), não faz sen-tido continuar sintetizando. Se tenho pouco ATP (e consequentemente muito AMP), devo acelerar a síntese. Qual o mecanismo? ATP e AMP são fabricados e consumidos no mesmo ambiente. Assim, o excesso de ATP liga-se a um sítio alostérico em uma enzima chave e muda a sua conformação, inibindo-a. Já o excesso de AMP liga-se a outro sítio alostérico na mesma enzima, ativando��a. Deve��se notar que a velocidade da reação oscila – mais ATP (e menos AMP), mais lento, menos ATP (e mais AMP), mais rápido. Metabolicamente, essa regulação ocorre por modificações alostéricas da atividade enzimática. Mais à frente, você verá detalhes desse mecanismo.

Indução

Pode-se, dependendo da situação, aumentar o número de entidades atuantes. Se o número de alunos matriculados em uma escola aumenta, pode-se aumentar a carga de trabalho ou até aumentar o número de alunos por sala. Mas também pode ser necessário ter de contratar mais professores.

Vamos ver o caso de um bar que serve suco de laranja. Há a laranja, a máquina de fazer suco e o suco. Imaginemos que chegue um cliente. Ocorre a interação da laranja (substrato) com o espremedor (enzima) e obtém��se o suco (produto). O pedido do cliente faz o espremedor funcionar. Se houver mais pedidos, o espremedor funciona mais rápido (controle alostérico). Se o número de pedidos exceder a capacidade da máquina, o único modo de atender é conseguindo mais uma máquina (indução).

Em um exemplo biológico, em situação de hiperglicemia, além de haver um controle hormonal da forma enzimática da glicocinase e um alostérico da sua velocidade momen-tânea, pode haver um incremento no número de enzimas presentes. Você verá no tópico “uma aplicação bioquímica” como ocorrem esses controles.

Atividade complementar 5

Escolha algumas situações cotidianas, como as apresentadas nessa seção e tente exercitar como elas seriam controladas a partir dos tópicos apresentados.

ComplexidadeVocê pode agora estar se perguntando: como tudo isso apareceu? Como uma tal

quantidade de processos pode, de maneira conjunta, funcionar?A primeira explicação biológica é a da seleção natural. Entretanto, a seleção natu-

ral deve atuar sobre algo.

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O reducionismo biológico nos levou a substituir o entendimento do organismo como um todo pelo estudo de uma coleção de partes. Mas será suficiente conhecer a fundo os componentes? DNA, genes, enzimas, etc., são todos componentes importantes da com-plexa estrutura e funcionamento do ser vivo. Pensou��se que a seqüência de genes especifi-ca a gênese da forma. Mas será algo assim tão linear? Os genes certamente dão origem às estruturas (proteínas), mas a questão persiste: como essas estruturas organizam��se em um sistema tão complexo e organizado? De onde vem a ordem?

Nos últimos anos, tem aparecido cada vez com mais força uma explicação interes-sante: a de que os sistemas não são organizados a partir de regras vindas de fora, mas simplesmente a partir das possíveis interações entre seus elementos.

Experimentos computacionais demonstraram que a vida tem a capacidade de auto-organizar-se. Veja uma pequena história, contada pelo ganhador do prêmio Nobel, Murray Gell��Mann, em um programa intitulado The Way of Science, da série televisiva The Human Quest.

Podem as pesquisas sobre a complexidade ajudar cientistas com suas teorias, por exemplo, de seleção natural? Entender como regras simples podem gerar comple-xidade como o ecossistema de uma floresta tropical? Ao perceber que uma vida de estudos sobre florestas tropicais era muito pouco, o ecologista Tom Ray resolveu simular a evolução no computador. Ele buscou ajuda no Instituto Santa Fé. Ele es-creveu um programa em linguagem de máquina e o limpou, pensando que iria ter que aprimorá-lo várias vezes e adicionar vários tipos de características da evolução biológica. Ele tentaria por parasitismo e o que Eldredge e Gould chamaram de Equi-líbrio Pontuado, longos períodos onde a evolução não é acelerada, depois curtos períodos onde há grandes mudanças. Ele esperava inserir até sexo. Mas tudo o que tinha era um programa primitivo escrito para máquinas, a primeira ecologia virtual. Seus “organismos digitais” eram códigos de computador, e habitavam o seu interior. Competição por espaço na memória do computador e por tempo na CPU forçavam a seleção. Mesmo primitivo, o primeiro programa incluía elementos essenciais da luta pela sobrevivência, replicação, mutação e morte. Para testar Tierra, Ray começou um programa digital auto-replicante lançado no ambiente virtual da memória do computador. Ele tentou num computador, aplicando-o em muitas gerações. Ele se surpreendeu com o resultado da invenção do parasitismo. Foram produzidos episódios de equilíbrio pontuado e até criaram algo como sexo, tudo sozinho. Ele entrou em algo com o poder da evolução biológica, apenas com o primeiro progra-ma em linguagem de máquina. Foi um exemplo dramático de como regras simples podem levar a um tipo de complexidade. Regras simples atreladas com o acaso podem levar a uma complexidade que se vê na Biologia. Neste universo de Silício, Ray viu todos os jogos da vida: cibersexo, corrida armamentista evolucionária en-tre parasitas e hospedeiros, desenvolvimentos de imunidades, extinção em massa, trapaça conflito e cooperação, mas, acima de tudo, aumentado a diversidade e a complexidade. Talvez Darwin dissesse: “Formas infinitas mais bonitas e maravi-lhosas estão sendo criadas”.

Assim, vemos uma nova abordagem. Os organismos vivos, bem como outros sis-temas, como civilizações, consciência humana, ecossistemas, clima, entre outros diversos, são sistemas auto-organizados.

Isso é intuitivo. Pense como todas as civilizações humanas conhecidas apresentam padrões repetitivos. Esses sistemas têm uma tendência para se auto-organizarem. O im-portante é que isso ocorre sem que haja um planejamento externo, sem a necessidade de um organizador. Ordem de graça em uma região denominada de o “limite do caos”.

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Lógica e mecanismos de regulação

Simplesmente, ao colocarmos os elementos juntos, as interações entre eles levam a um local onde o sistema alcança uma estabilidade, que não pode ser prevista a partir da análise dos componentes individuais. É necessário compreender como ocorrem as intera-ções entre esses elementos, ou pelo menos perceber que o mundo não é tão reducionista como pensávamos antigamente.

Não basta reduzir a Biologia aos seus componentes: é necessário compreender que as interações entre eles, que não ocorrem de maneira previsível e linear, são tão im-portantes quanto os próprios componentes.

A isso chamamos propriedades emergentes, que são propriedades que aparecem apenas em um nível acima do nível dos componentes e que não podem ser previstas ape-nas com o conhecimento das estruturas participantes. Mesmo porque uma pequena dife-rença inicial pode ocasionar uma mudança dramática no resultado final.

Por exemplo, pense em uma turma de alunos. Mesmo se conhecêssemos todas as características dos colegas, não seria possível prever o comportamento do grupo como turma. Pode ser que apenas o fato de no primeiro dia você, se tivesse sentado por acaso em outra carteira, seus melhores amigos do tempo de faculdade teriam sido outros. Isso é um exemplo simples de como as condições iniciais podem afetar de forma dramática e imprevisível os resultados finais. Conhecer os neurônios não é suficiente para entender o funcionamento da mente e nem o fato de conhecer os fatores bióticos e abióticos nos per-mite prever como funciona e é controlada a dinâmica de um ecossistema.

Desse modo, você deve sempre ter um questionamento na mente. Compreender a Biologia é mais do que conhecer os seus nomes, as suas partes. É entender que a lógica subjacente ao funcionamento do ser vivo é que ele, como economias, climas e sociedades, é um sistema complexo, auto-organizado, emergente. E que isso deve levar a muitas reflexões sobre o que realmente significa vida e como o ser vivo atua na manutenção da vida.

Uma aplicação bioquímica

Para você visualizar o que foi dito, vamos analisar como exemplo um sistema bio-químico real, representado na figura 11. O sistema tem como entrada a glicose G e como saída a glicose��6��fosfato, G6P, que é produzida por fosforilação da glicose, utilizando ade-nosina��trifosfato, ATP; a adenosina��difosfato, ADP, é o outro produto da reação que é ca-talisada pela enzima hexocinase.

Figura 11: reação de fosforilação da glicose. G, glicose; G6P, glicose-6-fosfato; ATP, adenosina-

trifosfato; ADP, adenosina-difosfato. O sinal “-” indica inibição da hexocinase.

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Note que um dos produtos da reação — a glicose-6-fosfato — inibe a hexocinase de duas maneiras diferentes: por meio de competição pelo centro ativo da enzima e por alosteria.

Se o substrato de uma enzima (Figura 12) tem forma semelhante ao seu produto, tanto um como outro pode ocupar o centro ativo. Evidentemente, as moléculas de enzima que num dado instante têm seu centro ativo ocupado pelo produto não participam da re-ação. Assim, como você certamente já percebeu, o número de moléculas de enzima ativa depende da relação entre as concentrações de substrato e produto — no nosso caso, glicose e glicose-6-fosfato, respectivamente.

Quando a concentração de glicose for muito maior do que a de glicose��6��fosfato, a probabilidade de ligação de glicose ao centro ativo será muito maior e a atividade da enzima será alta. No caso contrário — se a concentração de glicose-6-fosfato for maior — a atividade da enzima será baixa.

A figura 12 também mostra que parte da molécula de G6P tem forma que possi-bilita sua ligação à molécula da enzima em um outro sítio de ligação diferente do centro ativo. Tais ligações podem modificar a conformação espacial da enzima de modo a alte-rar a conformação do centro ativo, reduzindo a probabilidade de ligação do substrato, dessa forma, inibindo a enzima. A inibição de uma enzima por meio desse mecanismo chama-se inibição alostérica ou inibição por alosteria.

Sendo esse o caso, se aumenta a concentração de G6P no sistema, a velocidade da re-ação enzimática tende a diminuir. Todavia, o comportamento do sistema não é tão simples assim. Note, por exemplo, que o aumento da concentração de G6P poderá aumentar a saída de material do sistema. Se isso ocorrer, o efeito do aumento da concentração do produto so-bre a enzima será afetado. Além disso, o fluxo de material depende também da velocidade de entrada de glicose e da concentração de ATP. O fluxo de material é o resultado da inte-ração de várias variáveis. Voltaremos a esse ponto no tópico sobre regulação biológica.

Figura 12: esquema de dois mecanismos de inibição enzimática. Competição pelo centro ativo e alosteria.

Podemos, agora, comparar os dois sistemas, o termostato e as reações enzimáticas. Em primeiro lugar, note que ambos são sistemas dinâmicos, já que suas propriedades va-riam em função do tempo. Contudo, há uma diferença importante entre eles: enquanto o primeiro troca apenas calor, ou seja, energia com seu ambiente, o segundo troca também material — há fluxo de material através dele. Em outras palavras, o sistema com termosta-to é termodinamicamente fechado, enquanto a reação enzimática é um sistema aberto.

Saiba mais

Alosteria é apropriedade que certas enzimas possuem de mudar entre uma conformação ativa e outra inativa, a partir da interação do efetor em um local diferente do sítio ativo.

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Lógica e mecanismos de regulação

Há outra diferença a considerar. Como já mencionamos, o termostato “persegue um alvo” definido externamente — a temperatura. Por outro lado, o sistema de regulação da hexocinase não busca um alvo externamente definido. A produção de G6P é mantida num dado intervalo de valores, mas esse intervalo é conseqüência da própria estrutura do sistema resultante de sua evolução.

A despeito dessas diferenças, há uma semelhança fundamental entre os dois sistemas. Para percebê-la voltemos ao sistema resistência/termostato (Figura 1). Recorde que, enquan-to o termostato estiver ligado, a resistência produz calor — o calor é, assim, a saída (ou variável de saída) do sistema. Todavia, a variável de saída age de volta sobre o termostato, mais precisamente sobre as lâminas metálicas, abrindo o circuito elétrico e interrompendo a produção de calor. Podemos então dizer que o termostato exerce ação positiva sobre a resistência elétrica, já que quando ligado leva a resistência a produzir calor, o qual, por sua vez, exerce ação negativa sobre o termostato, resultando na interrupção da produção de calor, ou seja, o calor reduz sua própria produção. O diagrama da figura 13 representa esse comportamento.

Figura 13: comportamento do sistema resistência/termostato.

Analisando o sistema glicose/hexocinase da mesma maneira, chegamos ao dia-grama da figura 14.

Figura 14: comportamento do sistema glicose/hexocinase.

Você já percebeu a semelhança a que nos referimos. Nos dois sistemas, a variável de saída age de volta sobre um componente do sistema. Tal processo chama-se de retroação. Note que, em ambos os casos, a resposta do sistema é contrária à variação da variável de saí-da: se essa aumenta de valor, a atividade do sistema diminui; se o valor da variável de saída diminui, a atividade do sistema aumenta. Por essa razão, tais retroações são ditas negativas.

Compare, agora, a figura 1 com a figura 13 As figuras 1 e 13 representam o sistema resistência/termostato. Contudo, enquanto a figura 1 indica um dado tipo de termostato — o termostato bimetálico — e conseqüentemente um mecanismo específico de regulação da temperatura, a figura 13 refere��se a qualquer termostato. A figura 13 indica, não um mecanismo específico de regulação da temperatura, mas a regra seguida pelo processo de regulação, qualquer que seja a estrutura física do termostato. Assim sendo, a figura 13 representa uma coleção de dispositivos maior do que a figura 1 ou, em outras palavras, a figura 13 representa uma classe de dispositivos — aqueles que operam segundo a regra espe-cificada. Por esse motivo, dizemos que a figura 13 é uma generalização da figura 1. Por fim, podemos eliminar qualquer referência a componentes físicos e escrever o diagrama da figura 15a que representa a coleção de sistemas regulados por meio de uma retroação ne-

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gativa. Recordando a questão título dessa unidade, a figura 15a representa a lógica de um sistema, se nos referimos a um sistema em particular e, se estudarmos como atuam os seus componentes físicos, estaremos estudando os mecanismos do sistema.

Também podemos reescrever o diagrama da figura 14, como mostrado na figura 15b, que representa a coleção de sistemas regulados por duas retroações negativas.

Figura 15 a e b: sistemas genéricos de regulação.

Entretanto, a retroação pode ser positiva, como mostrado na figura 16. Naturalmen-

te, nesse caso, a variação da variável de saída e a resposta do sistema têm o mesmo sinal. A tabela 2 resume esses conceitos.

Figura 16: retroação positiva.

Tabela 2: definições de retroação negativa e positiva.

Alguns sistemas contêm, também, “ações para a frente” — denominadas proações — como mostrado na figura 17.

Figura 17: proação positiva.

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Lógica e mecanismos de regulação

Já mencionamos a existência de fluxo de energia e material em nossos sistemas (ver página 11). Agora, note que as interações representadas por linhas azuis , nas figuras ante-riores, não contribuem para a produção desses fluxos, apenas alteram seus valores. Tais interações “informam” a um dado componente do sistema o estado de outro componente, ou seja, se seu valor aumentou ou diminuiu. Por esse motivo, dizemos que constituem flu-xo de informação. Muitas vezes é conveniente descrever o comportamento de um sistema em termos destes fluxos: energia, material e informação.

Atividade complementar 6

Antes de continuar escreva com suas próprias palavras o significado de:1) sistema, sistema termodinamicamente fechado e aberto, sistema dinâmico, siste-ma simples, sistema com propósito predefinido, estado de um sistema;2) retroação, retroação negativa e positiva;3) proação;4) fluxos de energia, material e informação;5) mecanismo e lógica de um processo.

Podemos, então, conceituar regulação. Com esse objetivo, examinemos o mapa conceitual da figura 18.

Em primeiro lugar, regulação é uma capacidade de um sistema. Tal capacidade pode ser preestabelecida pelo construtor que tem um propósito em mente como a manu-tenção da temperatura de um dispositivo. Alternativamente, a capacidade de regulação pode ser intrínseca à estrutura do sistema — sem preestabelecimento por um construtor — como ocorre com os sistemas naturais — esses sistemas são ditos auto-reguláveis.

Em qualquer dos casos, o resultado é a manutenção do conjunto de variáveis em determinados intervalos de valores.

Figura 18: mapa conceitual de regulação.

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Atividade complementar 7

Você acha que falta alguma coisa no mapa conceitual de regulação? Por exemplo, deveríamos acrescentar explicitamente algo sobre mecanismos e lógica?

Evidentemente, isso requer mecanismos de detecção de oscilações das variáveis sis-têmicas e de ações sobre tais variáveis de modo a manter seus valores em um dado intervalo. Em outras palavras, requer a existência de sensores das variáveis a serem reguladas e de efe-tores que realizem o processo de regulação. As retroações e as proações são fundamentais.

O sistema glicose/hexocinase é útil no laboratório para exploração das proprieda-des da enzima, mas não é um sistema natural, somente existe como parte do sistema me-tabólico, particularmente da via glicolítica da qual é a primeira reação. Todavia, o estudo do sistema isolado não fornece informação sobre a regulação da glicólise como um todo. A figura 19 mostra as razões para isso. A figura 19 é bem mais complicada do que as anterio-res, mas não se intimide. Vamos analisá-la cuidadosa e detalhadamente.

Figura 19: alguns processos de regulação da glicólise hepática. G, glicose; G6P, glicose-6-fosfato;

Glico, glicocinase; G6Pase, glicose-6-fosfatase, ATP, adenosina-trifosfato; ADP, adenosina-difosfa-

to; F6P, frutose-6-fosfato; FFC1, fosfofrutocinase 1; FFC2, fosfofrutocinase 2; F16P2, frutose-1,6-

bifosfato; F26P2, frutose-2,6-bifosfato; PEP, fosfoenolpiruvato; PIR, piruvato; PC, piruvatocinase.

As setas com ± ao lado indicam processos de regulação — envolvendo ativação ou inibição ou am-

bos — com origem fora da via. Note que o sinal + junto às setas indicadoras de fluxo, que usamos

nas figuras anteriores, não foram incluídos nessa figura.

Você pode ver que a regulação da via é constituída basicamente de três partes, mó-dulos ou unidades reguladoras. A primeira, representada em verde na figura, envolve os metabólitos glicose e glicose��6��fosfato; a segunda, em vermelho, envolve os metabólitos frutose��6��fosfato, frutose��1,6��bifosfato e frutose��2��6��bifosfato e a terceira, em azul, os meta-bólitos fosfoenolpiruvato e piruvato. Vejamos cada uma das partes.

#M3U1 IV. Regulação biológica

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Lógica e mecanismos de regulação

A glicose é a entrada do sistema e sua fosforilação é realizada como vimos ante-riormente, mas, dessa vez, é catalisada pela glicocinase ou hexocinase IV. Essa isoenzima é regulada pela F6P por meio de uma retroação negativa. Essa retroação tem mecanismo complicado, que não nos interessa no momento, a não ser o fato de envolver moléculas de proteínas externas à via glicolítica. Note que a glicose-6-fosfatase também é regulada por meio de mecanismo externo à via.

Fosforilada a glicose, o fluxo de material continua por meio de uma reação re-versível de isomerização e que conseqüentemente não está envolvida na regulação da glicólise. Assim, as duas reações de fosforilação da F6P — por meio do ATP — compõem a segunda unidade reguladora. Note que a frutose-2,6-bifosfato é ativadora da fosfofru-tocinase 1 e que o ADP, um produto da reação, é ativador dessa enzima, constituindo, portanto, uma retroação positiva. A primeira vista, poderíamos pensar que um aumento de concentração de F6P — conseqüente ao aumento da velocidade de fosforilação da glicose — levaria obrigatoriamente o aumento contínuo da velocidade de suas reações de fosforilação. Contudo, observe que as duas enzimas, a FFC1 e a FFC2, estão também submetidas à regulação externa.

Entre o segundo e o terceiro módulos de regulação, há uma série de reações reversí-veis que não vêm ao caso. Há, contudo, um ponto importante: a proação da F16P2 para a piruvatocinase, que por sua vez também é regulada por fatores externos. Incidentalmente, observe que essa é uma reação de produção de ATP.

Começamos este tópico dizendo que o sistema representado na figura 19 é bem mais complicado que o sistema glicose/hexocinase que analisamos anteriormente.

De fato, aqui temos três unidades reguladoras conectadas em série. Mas há bem mais do que isso. Ainda que unidade tenha estrutura e comportamento individual-mente bem definidos, a regulação da glicólise é resultado da interação entre elas — o comportamento de cada uma se altera em função do comportamento de suas vizi-nhas. Além disso, cada unidade reguladora é, por sua vez, regulada externamente. Podemos expressar isso dizendo que a regulação da glicólise é distribuída. Por esse motivo, também dissemos acima que a regulação da hexocinase isoladamente pouco ou nada informa sobre a regulação da glicólise.

Sendo assim, você deve estar suspeitando que esse sistema é, sem dúvida, compli-cado, mas não no mesmo sentido que é complicado um quebra��cabeça de 10.000 peças, um avião ou um computador. Nestes, as propriedades de uma dada peça não se alteram em função das conexões com suas vizinhas como no sistema representado na figura 19. Desse fato, resultam diferenças que são suficientemente importantes para definirmos uma nova classe de sistemas — os sistemas complexos. Mas, quais são exatamente as diferenças? Isso é o que veremos a seguir.

Atividade complementar 8

Tente identificar no sistema mostrado na figura 19: sistema regulado; sistema regu-lador; sensor; alvo do sistema.

A figura 19 é apenas um fragmento — na verdade, um fragmento muito pequeno — das vias metabólicas. Mesmo assim, nos será útil na identificação de algumas das pro-priedades dos sistemas complexos.

Já mencionamos duas destas propriedades: a regulação distribuída — isso é, não há um sistema regulador único como nos sistemas estudados anteriormente — e a alteração do comportamento de cada componente em conseqüência de suas interações com outros componentes. Disso resulta que o sistema é irredutível e tem comportamento não-linear.

Saiba mais

Existem quatro isoenzimas da hexocinase que ocorrem em diferentes tecidos. A do fígado é a hexocinase IV.

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Ser irredutível significa que não se pode descrever a regulação da glicólise por meio de um sistema mais simples.

A propósito, recorde que já dissemos que a regulação da glicocinase isoladamente pouco ou nada informa sobre a regulação dessa via metabólica.

Informalmente, o fato do comportamento do sistema em questão ser não-linear sig-nifica que o comportamento do sistema como um todo não é simplesmente o resul-tado da soma do comportamento de suas partes.

Ainda utilizando a figura 19, observe que algo que ocorra fora do sistema poderá afetar seu estado por meio das enzimas que estão sujeitas à regulação externa. Dizemos, então, que o sistema é acionado por eventos.

Recorde agora os conceitos de estado de equilíbrio e estado estacionário vistos an-teriormente nessa unidade. Suponha um sistema com as propriedades acima e em estado estacionário. Suponha, também, que ocorra um evento externo que afete, digamos, a fos-fofrutocinase 1, FFC1, da figura 19. A observação da figura mostra que o efeito poderá se propagar por todo o sistema, mas essa propagação dependerá do estado de cada unidade de regulação. Assim sendo, o sistema poderá apresentar uma multiplicidade de estados. A capacidade de se apresentar em um dos múltiplos estados possíveis em um dado momento e em conseqüência de eventos externos é chamada de adaptação e o sistema que a apresen-ta de sistema complexo adaptativo.

Tais sistemas, diante da ocorrência de um dado evento, passam, em resposta, por um estado transitório e entram em seguida em estado estacionário que, eventual-mente, pode ser o mesmo que o estado inicial.

Agora, considere o seguinte: as macromoléculas que constituem um ser vivo não têm estrutura rígida. Tanto os ácidos nucleicos como as proteínas têm movimentos inter-nos que modificam sua conformação espacial transitoriamente e em conseqüência suas propriedades funcionais como, por exemplo, sua propriedade de catalisador. Essas osci-lações internas geram eventos internamente com resultados semelhantes aos já descritos para os eventos externos.

Até o momento, discutimos as propriedades definidoras de um sistema complexo, ajudados pela figura 19. Há, contudo, uma propriedade adicional fundamental. Os siste-mas complexos são auto-organizados e se auto-organizam em decorrência da dissipação de gradientes de energia.

Nesse ponto, é importante uma observação sobre a expressão “sistemas complexos adaptativos”. Essa expressão foi criada no contexto de investigações computacionais sobre sistemas complexos. Todavia, os seres vivos não se adaptam passivamente a eventos am-bientais, eles modificam ativamente seu ambiente, o que significa dizer que os seres vivos constroem seu ambiente. Portanto, no que diz respeito aos seres vivos, seria melhor falar de sistemas complexos construtivos de si próprios e de seu ambiente. Apesar disso, a ex-pressão “sistemas complexos adaptativos” está consagrada pelo uso.

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172        Módulo III — Processos de manutenção da vida

Lógica e mecanismos de regulação

Você viu nesta unidade uma discussão conceitual sobre mecanismos e lógica da regulação metabólica. Ao estudar as demais unidades, procure correlacionar a lógica sub-jacente descrita nesse capítulo com os diversos assuntos que serão abordados, tentando descrever os diferentes mecanismos que, em cada assunto específico, auxiliam na regula-ção do sistema e contribuem para a manutenção da vida.

Atividade complementar 9

Escolha outro sistema biológico, por exemplo, um ecossistema, e tente aplicar aos seus mecanismos específicos a lógica de regulação discutida nesta unidade.

STRYER, L. Bioquímica. 5. ed. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan, 2002.

LEHNINGER, A.; COX, M.; NELSON, D. Princípios de Bioquímica. 4. Ed. Rio de Janeiro: Sarvier, 2006.

LEWIN, R. Complexidade. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1994.

GELL��MANN, M. O quarck e o jaguar: aventuras no simples e no complexo. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

KAUFFMAN, S. At home in the universe: the search for laws of self��organization and comple-xity. Oxford University Press, 1996.

#M3U1 V. Considerações finais

#M3U1 VI. Referências

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