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BIOLOGIA, SOCIEDADE E CONHECIMENTO EIXO

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I. Introdução

II. Cultura e evolução

III. Técnica e evolução biológica

IV. Linguagem, comunicação e evolução

V. Cultura e evolução: Sociobiologia

VI. Cultura e cultura científica: linguagem e evolução do conhecimento

VII. Considerações finais

VIII. Referências

Sociedade, cultura e linguagem: evolução biológica e cultura

Unidade 3

Autor: Arthur Octávio de Melo Araújo

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132        Módulo III — Processos de manutenção da vida

Nesta unidade, serão desenvolvidas idéias no contexto da chamada Filosofia da Biologia. Essa é uma área da Filosofia que se ocupa em analisar, no nível teórico, as idéias desenvolvidas pelas ciências biológicas: os objetos de estudo das ciên-

cias biológicas (origem e manutenção da vida, evolução, etc.) não estão distantes dos obje-tos de estudo das ciências humanas (linguagem, comunicação, mente, etc.) e vice-versa.

Dentro desse contexto, esta unidade vai procurar mostrar que a linguagem e a co-municação, de diferentes modos (falado, escrito, por imagens, etc.), têm funcionado como instrumentos importantes nos processos de manutenção da vida. Embora sejam uma parte significativa da cultura e o traço de diferença da espécie humana em comparação com ou-tras espécies, linguagem e comunicação parecem seguir o curso da evolução biológica. O que nós, seres humanos, somos, pensamos, expressamos, é parte da nossa história e evolu-ção biológica. Somos o que somos porque nossa história evolutiva estabeleceu as condições de construção da nossa vida social e cultural. Mas vemos, muitas vezes, que as ciências biológicas são separadas das ciências humanas. Os métodos dessas ciências são diferentes e, portanto, elas não se confundem. É certo que elas têm métodos diferentes, mas estarão as ciências biológicas realmente separadas das ciências humanas?

Esta unidade tem um problema a ser questionado e elucidado: aproximar ciências hu-manas e biológicas, em torno do tema da manutenção da vida, e mostrar que a linguagem e a comunicação, como núcleos da nossa cultura, são partes da história e da evolução biológica.

#M3U3 I. Introdução

#M3U3 II. Cultura e evoluçãoCultura e evolução

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Nesta unidade, serão desenvolvidas idéias no contexto da chamada Filosofia da Biologia. Essa é uma área da Filosofia que se ocupa em analisar, no nível teórico, as idéias desenvolvidas pelas ciências biológicas: os objetos de estudo das ciên-

cias biológicas (origem e manutenção da vida, evolução, etc.) não estão distantes dos obje-tos de estudo das ciências humanas (linguagem, comunicação, mente, etc.) e vice-versa.

Dentro desse contexto, esta unidade vai procurar mostrar que a linguagem e a co-municação, de diferentes modos (falado, escrito, por imagens, etc.), têm funcionado como instrumentos importantes nos processos de manutenção da vida. Embora sejam uma parte significativa da cultura e o traço de diferença da espécie humana em comparação com ou-tras espécies, linguagem e comunicação parecem seguir o curso da evolução biológica. O que nós, seres humanos, somos, pensamos, expressamos, é parte da nossa história e evolu-ção biológica. Somos o que somos porque nossa história evolutiva estabeleceu as condições de construção da nossa vida social e cultural. Mas vemos, muitas vezes, que as ciências biológicas são separadas das ciências humanas. Os métodos dessas ciências são diferentes e, portanto, elas não se confundem. É certo que elas têm métodos diferentes, mas estarão as ciências biológicas realmente separadas das ciências humanas?

Esta unidade tem um problema a ser questionado e elucidado: aproximar ciências hu-manas e biológicas, em torno do tema da manutenção da vida, e mostrar que a linguagem e a comunicação, como núcleos da nossa cultura, são partes da história e da evolução biológica.

#M3U3 I. Introdução

#M3U3 II. Cultura e evoluçãoCultura e evolução

Podemos realmente estudar vida social, linguagem e comunicação fora dos aspec-tos da história evolutiva? Podemos realmente afirmar que seres humanos nascem como “baldes vazios” e são a cultura e o ambiente externo que vão preenchendo o indivíduo ao longo da vida? Parece correto afirmar que características internas como composição genética, hereditariedade ou instintos têm pouca ou nenhuma influência na formação do ser humano?

O que parece ser mais certo pensar é que nossa condição biológica não é uma deter-minação e nós podemos ser diferentes e ter escolhas. Podemos pensar que, ao invés de de-terminação da história evolutiva, nossa condição biológica mostra nosso potencial e nossas possibilidades de ser, agir, escolher o que somos ou o que queremos e podemos ser.

Um ponto de vista tradicional, quanto aos limites entre biologia e cultura, e inclu-sive mantido por cientistas como o geneticista ucraniano Theodosius Dobzhansky (1900-1975), compreende que a composição genética do ser humano cedeu lugar para a um “agente não-biológico ou superorgânico, a cultura”, na explicação do comportamento. E o que significa ser a cultura um agente não-biológico? É a visão dominante nas ciên-cias humanas (Sociologia, Antropologia, Psicologia e Filosofia) de que, nas palavras do Franz Boas (1858-1942), pai da Antropologia contemporânea, “a cultura é a totalidade de comportamentos socialmente transmitidos, artes, crenças, instituições e todos os outros produtos do trabalho e do pensamento humano”. Posteriormente, um ex-aluno de Franz Boas, Albert Kroeber (1876-1960), afirmou que o comportamento das pessoas na socie-dade (ou comportamento social) não podia ser explicado por propriedades biológicas e acrescentou que “a cultura é superorgânica”.

“Superorgânico” significa algo que está além e acima da natureza e da evo-lução biológica, como, por exemplo, a linguagem e a comunicação, completamente isoladas na espécie humana e que não têm semelhança com qualquer característica de uma outra espécie.

É a cultura que permite ao ser humano superar suas limitações naturais com o de-senvolvimento de diferentes linguagens, comunicação e produção de instrumentos. Mais do que a herança genética, é a cultura que determina o comportamento humano.

Assim, o “superorgânico” começa quando terminam as explicações físicas ou bio-lógicas do mundo e o estudo passa a ser a interação entre os seres humanos ou a chamada

Saiba mais

Na opinião de alguns cientistas, é possível identificar uma “espécie de cultura” em alguns animais, especialmente em primatas. Toda essa “espécie de cultura” é muito diferente da que se identifica na espécie humana, sendo muito inferior e unicamente física, não englobando qualquer sinal comprovativo de aplicação racional, mas do entendimento.

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#M3U3 Sociedade, cultura e linguagem: evolução biológica e cultura

cultura: linguagem, comunicação, religião, filosofia, tecnologia e muito mais na sociedade. Esse ponto de vista vê entre Biologia e cultura uma oposição (ou descontinuidade),

como se fossem dois mundo separados (Figura 1):

Mas, ao contrário, podemos afirmar que cultura e natureza (ou história e evolução biológica), ao invés de pares de oposição, são aspectos complementares da própria vida. Ao invés de ver uma separação entre cultura e evolução, podemos ver uma complementa-ção entre elas. Essa parece ser a lição a tirar dos papéis da linguagem e da comunicação na manutenção da vida. O fato das duas serem traços específicos e isolados na espécie huma-na não implica uma descontinuidade com a evolução biológica.

Muito provavelmente nossa linguagem e nossos meios de comunicação evoluíram de formas passadas de expressão e comunicação primárias. Na (Figura 2) podemos observar um ponto de vista diferente quanto à relação entre evolução biológica, cultura e linguagem:

A visão naturalista é pouco ou nada estudada nas ciências humanas o que aumen-ta ainda mais a dificuldade de compreender que a cultura, em particular a linguagem e comunicação, faz parte da nossa própria história e da evolução biológica, além de ser um instrumento fundamental de manutenção da vida. A um aluno do curso de Biologia pa-rece importante saber que sua área de estudo não está distante das ciências humanas. É exatamente esse o objetivo desta unidade: mostrar que, no contexto de um ponto de vista naturalista, a cultura é parte da evolução biológica.

Figura 1: visão “culturalista”: a cultura não é parte da natureza ou da evolução biológica.

Figura 2: visão “naturalista”: a cultura é parte da Natureza e da Evolução Biológica.

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Mas se, por exemplo, dizemos que o significado das técnicas, instrumentos, lingua-gens ou meios de comunicação, na nossa cultura, são ampliações ou extensões das capaci-dades naturais do ser humano, as idéias do teórico canadense da comunicação, Marshall McLuhan (1911-1980), se mostram fundamentais nesse contexto da relação entre cultura e evolução biológica. Por exemplo, temos a capacidade natural da visão, mas podemos ver mais ou melhor com óculos, binóculos, microscópios, etc. Ou temos a capacidade natural da memória, mas podemos aumentar essa capacidade com o registro de documentos, li-vros, banco de dados dos computadores, etc. E assim poderíamos aumentar mais ainda nossa lista de meios ou linguagens que ampliam nossas capacidades biológicas naturais.

Hoje é inegável que novas técnicas de linguagem e comunicação, como a modali-dade de ensino a distância, são sempre o desenvolvimento de novos modos de pensar e agir no meio ambiente (natural e social), como pensava Mcluhan (2000) e as tecnologias de linguagem e comunicação por rede se mostram fundamentais nesse novo contexto do pro-cesso de educação e formação universitária. Abaixo temos a passagem de um interessante texto do Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina que mostra os potenciais da teoria da comunicação de McLuhan na modalidade de ensino a distância:

A essência da educação a distância reside na democratização do ensino, bem como

nas possibilidades de diferentes abordagens, de acordo com as necessidades de

cada grupo. No contexto dessa forma de ensino, inserem-se as idéias de McLuhan

relacionadas à transformação que os meios de comunicação, como extensões do

homem, promovem na forma de pensar, de agir, afetando os homens individu-

almente. As mídias eletrônicas possibilitaram o surgimento de novas relações,

recriando o mundo e também o sistema de educação. Os meios de comunicação

proporcionam uma nova abertura e novas possibilidades de ensino e educação.

disponível em <www.cee.sc.gov.br/ensino_distancia/Mcluhan)>. Acesso 14 de

maio de 2007.

De que modo podemos pensar que as novas tecnologias e linguagens de comunica-ção por rede correspondem a um novo modo de ver e agir no meio natural?

#M3U3 III. Técnica e evolução biológica

Podemos dizer que as técnicas de produção de instrumentos do ser humano, como a linguagem e a comunicação, são parte da evolução biológica? O que é evolução biológica?

Antes de responder tais perguntas, vamos relembrar como o grande biólogo alemão Ernest Mayr (1895-2005), considerado o “Darwin do Século XX”, define “evolução”: “é um processo gradual que, desde a origem da vida na Terra, tem seguido um processo de desenvolvimento”.

E que lugar ocupam as “técnicas” ou instrumentos de linguagem e comunicação no processo de desenvolvimento biológico do ser humano?

Tendo em vista essas questões de reflexão, aqui podemos contextualizar as idéias influentes de McLuhan: as técnicas, instrumentos, linguagens ou meios de comunicação são extensões do próprio homem que aumentam suas capacidades de pensar e agir no meio ambiente.

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#M3U3 Sociedade, cultura e linguagem: evolução biológica e cultura

Conclusão parcial: parece inegável que as técnicas, instrumentos, linguagens ou meios de comunicação seguem o ritmo da evolução biológica como um processo gradual e contínuo. Antes da tecnologia da roda, aprendemos a andar; antes do ipod, registramos nossas experiências nas cavernas, pedras, ossos, etc.; e sempre uma nova técnica ou tecnologia muda nosso modo de ver e agir no mundo.

No contexto da teoria da comunicação, uma idéia fundamental de Mcluhan é que o que somos é o que percebemos, e nossa percepção muda conforme mudam os meios de usar nossos sentidos naturais. Ele entende que, com as técnicas, instrumentos, linguagens ou meios de comunicação, passamos a ser homens ou animais que constroem sua própria natureza, pois mudamos nosso modo natural de perceber o mundo.

Mas quando exatamente começamos a construir nossa própria natureza e perce-ber o mundo além da nossa condição biológica? Ou quando começamos a usar técnicas, instrumentos, linguagens ou meios de comunicação?

Responder a essa questão talvez seja o desafio de um estudo da história do desen-volvimento de um processo longo, gradual e contínuo com nossos antepassados e parte da nossa evolução biológica.

No entanto, McLuhan se tornou célebre como teórico da comunicação quando, no final da década de 1960, disse que “o meio é a mensagem” (MCLUHAN, 2000, p. 21). Antes os teóricos da comunicação tinham a tendência a ver no “meio” simplesmente um suporte físico ou material de comunicação. Meio é televisão, rádio, telefone, imprensa escrita, atualmente a comuni-cação via rede ou internet, etc., e a mensagem é aquilo que o meio mostra ou seu conteúdo.

Mas a grande novidade, introduzida por Mcluhan na teoria da comunicação, é que os meios em si não significam nada. Se eles são extensões do homem, eles significam aquilo que nós queremos que eles signifiquem. Televisão, rádio, telefone, imprensa escrita, comunicação via rede ou inter-net, por exemplo, não são bons ou maus. Assim como, por exemplo, armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas, o significado dos meios ou técnicas de linguagem e comunicação é dado

por nós mesmos porque eles são nossa própria extensão: “[…] qualquer tecnologia pode […] tudo, menos somar-se ao que já somos” (MCLUHAN, 2000, p. 26). Se somos maus, agressivos, perversos, cruéis, etc., nossos meios de linguagem e comunicação(= mensa-gens) terão conteúdos de maldade, agressão, perversão, crueldade, etc.

Uma idéia central e influente de McLuhan nos estudos de comunicação de massa é que os meios de comunicação são “quentes” ou “frios”. O que é um meio quente? Um meio quente é aquele que estimula um único sentido: por exemplo, rádio e o sentido da audição; meio impresso (jornal, revista, livro, etc.) e o sentido da visão/leitura. E um meio frio? Um meio frio, ao contrário do quente, estimula mais de um sentido: o telefone esti-mula os sentidos da audição e da fala; a televisão estimula os sentidos da visão e da au-dição, etc. Inicialmente a cultura é dominada por meios quentes que estimulam um único sentido e uma percepção limitada do mundo. Mas a evolução biológica tornou possível uma percepção mais ampla do mundo e, conseqüentemente, novas técnicas e tecnolo-

Marshall Mcluhan (1911-1980)

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gias de linguagem e comunicação são desenvolvidas. Esse fenômeno corresponde ao que McLuhan chama da passagem da cultura “quente” à cultura “fria”: quando as linguagens e meios de comunicação começam a aumentar nossa percepção do mundo em vários ní-veis dos nossos sentidos (visão, audição, fala, etc.) e em várias direções diferentes.

Talvez o melhor exemplo da passagem de uma cultura quente a uma cultura fria seja a chamada “cibercultura” ou cultura da internet.

E por que a internet? Ela é o meio de linguagem e comunicação de uma cultura que mudou nossa percepção de mundo em vários sentidos: é o meio de uma cultura fria ou esfriada. Como vimos acima, um meio é frio quando estimula vários dos nossos sentidos. E nesse sentido particular, podemos ver que uma cultura fria não é aquela que não estimula o desenvovimento intelectual, mas, ao contrário, é aquela que estimula vários sentidos. O recurso às novas tecnologias de computação e comunicação via rede podem contribuir muito com novos processos de ensino e educação, uma vez que esses novos processos são sempre novos modos de ver e agir no meio ambiente. E se Mcluhan estiver certo, se os meios de comunicação são extensões do homem, novas tecnologias, como a internet, por exemplo, aplicadas aos processos de ensino, mostram novas possibilidades de formação educacional. Mas a internet ou comunicação via rede de computadores, curiosamente, era o meio de uma cultura quente. Aquele tipo de meio que estimula um único sentido ou percepção de mundo. A função única da internet era a comunicação militar e, nesse caso, as mensagens tinham um único significado na percepção de mundo dos próprios militares (comunicação codificada, segredo militar, espionagem, etc.): era o meio de uma cultura quente.

Mas, felizmente, hoje o cenário é diferente e uma explosão de novas mensagens aconteceu nesse meio de comunicação (internet). Uma vez que o meio é a mensagem, como entende McLuhan, os meios têm tantas mensagens quanto podemos dar significados di-ferentes a eles. Atualmente, na internet ou comunicação via rede, temos novas possibili-dades de comunicação, propaganda, notícia, arquivo de bibliotecas, catálogos, ensino a distância, etc.

Antes, a internet tinha um conteúdo determinado e era a expressão de uma cultura quente, hoje ela tem tantos significados quanto são nossos diferentes modos de perceber o mundo: é a expressão de uma cultura fria, pois estimula vários dos nossos sentidos e mostra novas possibilidades de percepção do mundo. No ponto de vista de McLuhan, o desenvolvimento de linguagens e meios de comunicação segue um processo de mudanças entre estados quentes e frios da cultura: hoje nossa cultura é a expressão dos meios frios de linguagem e comunicação.

Os significados de uma linguagem ou meio de comunicação estão no modo como eles são usados e representam nossa percepção do mundo. Se a linguagem e os meios de comunicação são o núcleo da nossa cultura, no ponto de vista de McLuhan, ela (cultura) não parece ser algo “superorgânico”, além e acima da nossa condição de vida e história evolutiva. Muitas vezes ouvimos dizer que são a linguagem e os meios de comunicação que corrompem os seres humanos.

Mas será que são realmente a linguagem e os meios de comunicação que corrom-pem os seres humanos?

A linguagem e os meios de comunicação só mostram o que nós somos, e se eles levam à corrupção do ser humano, é exatamente porque nós mesmos desenvolvemos a capacidade de corromper ou mentir, ao longo da nossa história evolutiva, ou ainda porque tornamos nossa cultura fria em excesso.

[…] Antes se pensava que os humanos eram a forma de vida avançada e pro-

gressista (os anjos), e que os outros animais eram mais primitivos; hoje se têm

meios de argumentar que o animal que temos dentro de nós é nosso lado nobre,

Saiba mais

A cibercultura é um termo utilizado na definição de estruturas sociais das comunidades no espaço eletrônico virtual. Essas comunidades estão ampliando e popularizando a utilização da internet e outras tecnologias de comunicação, possibilitando assim maior aproximação entre as pessoas de todo o mundo.

Curiosidade

Assista ao filme: Códigos de Guerra (2002), de John Woo para aprender mais sobre a comunicação militar antes da internet.

Curiosidade

A internet é utilizada por 16% da população mundial, cerca de 1,1 bilhões de pessoas. Segundo o IBGE o Brasil é o primeiro país da América Latina e o quinto no mundo no uso da internet.

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#M3U3 Sociedade, cultura e linguagem: evolução biológica e cultura

e a humanidade ou a civilização (ou a cultura) é nosso lado sombrio (FOLEY,

2003, p. 59).

Como parte de um processo de “esfriamento”, nossas técnicas de construção de instrumentos e meios de comunicação parecem ter uma história antiga e comum com os chimpanzés selvagens no que diz respeito à capacidade de produção e uso de ferramentas, planejamento de ações com objetos e com outros indivíduos, e inclusive na técnica de ma-nipular interesses próprios. Hoje parece pouco provável aceitar que os humanos tenham sido únicos no uso, produção ou desenvolvimento de técnicas de construção de instru-mentos, linguagem e meios de comunicação.

Podemos realmente dizer que hoje nossas técnicas de linguagem e comunicação correspondem a um modo único da cultura humana?

O que parece mais provável, no entanto, é que nossa linguagem e meios de comuni-cação tenham seguido o curso de uma evolução biológica particular e “esfriado” as experi-ências acumuladas dos nossos antepassados e parentes próximos. Hoje nossas técnicas de linguagem e comunicação parecem ser nosso lado sombrio e ter esfriado excessivamente os usos antepassados. Enquanto provavelmente o modo de linguagem e de comuni-cação primata e ancestral do homem era “quente”, nos termos de McLuhan, porque era a estimulação limitada dos sentidos, hoje, entre seres humanos, elas são “frias” ou estimulam vários de nossos sentidos (como os recursos de internet) e seguiram o curso da evolução biológica.

A capacidade de construir instrumentos (ou ‘técnica’, tekkné, do grego, “arte, técni-ca, criação”) ou de dar aos objetos naturais funções específicas, por exemplo, mostra que os grupos primatas socialmente organizados, antepassados dos seres humanos, conseguiram ultrapassar significativamente alguns limites fisiológicos e anatômicos, e aumentar sua capacidade mental.

O ato de dar valor a objetos, em comparação com a construção de instrumentos ou técnicas de contar, por exemplo, teve um papel importante no desenvolvimento de processos de comunicação, numeração, cálculo, etc. O uso de objetos naturais (como, por exemplo, pedras, pauzinhos, grãos, etc.) teve uma função importante na ampliação das capacidades mentais e de memória no ser humano: quantidades materiais de objetos pas-saram a representar grandezas numéricas ou ter o significado de número (por exemplo, ‘2 pedras = 2 animais’).

Quando algumas linhagens de ancestrais do homem começaram a perceber que qualquer objeto podia significar alguma coisa (pedra = ‘animal’), é seguramente uma mu-dança de atitude frente ao mundo e à origem de um estado de ‘pré-cultura’ ou uma visão semiótica de mundo.

Quando essa mudança de atitude frente ao mundo parece ter acontecido, teve ori-gem um estado de ‘pré-cultura’, ou uma visão semiótica de mundo.

No contexto de um estado de pré-cultura ou uma visão semiótica de mundo, qual-quer coisa pode representar ou significar outra. Aqui podemos ver a contribuição impor-tante do filósofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), um pensador influente no século XX, fundador contemporâneo da Semiótica ou Teoria Geral dos Signos. Peirce entendia que tudo no mundo pode ser um signo e signo é aquilo que representa alguma coisa de algum modo para alguém. Ele classifica os signos em três categorias básicas:

www.Internet – para conhecer mais a respeito dos ancestrais humanos na idade da pedra acesse o site: http://www.brasilescola.com/historiag/paleolitico.htm

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· ícone: é o signo que representa o objeto por semelhança com ele (por exemplo, as fotografias, imagens, pinturas, desenhos, etc.);

· índice: é o signo que representa o objeto por uma relação de causa e efeito e não tem semelhança alguma com ele (por exemplo, céu nublado, fumaça, hematomas na pele, etc.). Céu nublado significa que provavelmente vai chover, fumaça é um sinal provável de fogo, hematomas na pele significam provavelmente uma experiência de dor, etc;

· símbolos: é o signo que representa o objeto por convenção e, igualmente ao an-terior, não tem semelhança alguma com ele (por exemplo, bandeiras, insígnias, credos religiosos, etc.).

A pré-cultura humana teve provavelmente origem quando os signos, ou uma visão semiótica do mundo, começaram a mostrar uma capacidade mental de construir sistemas de linguagem e comunicação sofisticados. Nesse processo histórico particular, provavel-mente entre 5 e 1.2 milhões de anos atrás, os signos da pré-cultura são coisas ou fenômenos do mundo natural (pedras, paus, céu nublado, trovão, fumaça, etc.) e a eles são dados signi-ficados particulares. É um passo importante no desenvolvimento da cultura, como um es-tado de pré-cultura humana, quando exatamente se introduzem as técnicas de linguagem e comunicação simbólicas entre diferentes grupos sociais de primatas ancestrais do homem.

Aqui é interessante notar que a evolução humana ocorre em dois níveis de herança: cultural e biológica. Mas enquanto a evolução cultural é “lamarckista” e muito rápida, a evolução biológica é “darwinista”, gradual e lenta.

O que pode ser a diferença entre esses dois aspectos cultural e biológico na evolução humana?

A evolução cultural corresponde a um ritmo geométrico, acelerado e descontínuo ou com saltos históricos. A evolução biológica corresponde a um ritmo aritmético, lento e con-tínuo ou sem saltos. A diferença entre os dois ritmos de evolução leva muitos antropólogos a sustentarem uma superação da evolução biológica pela evolução cultural.

Enquanto que em quase um quarto de milhão de ano o ser humano praticamente não teve nada a acrescentar à sua evolução biológica, a evolução cultural, ao contrá-rio, chega a um desenvolvimento histórico vertiginoso e impressionante.

Saiba mais

Lamarckismo tem como base a lei do uso e desuso, ou seja, as espécies se modificam ao utilizar mais umas partes do que outras, desenvolvendo assim estas partes. O desuso faria com que certas partes dos organismos atrofiassem e por fim desaparecessem. Darwinismo é a evolução por seleção natural, ou seja, características vantajosas de alguns indivíduos proporcionam melhor sobrevivência e estes deixam mais descendentes.

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#M3U3 Sociedade, cultura e linguagem: evolução biológica e cultura

Mas a divergência entre os dois ritmos de evolução (biológico e cultural) não é tão expressiva: 250 mil anos significam muito tempo em termos de história, mas, quanto à evo-lução biológica, é praticamente um tempo insignificante. Entre a pré-cultura (aproximada-mente 1.2 milhões) e a cultura humana (aproximadamente um quarto de milhão) uma gra-dação de estados intermediários preencheu esse intervalo: a cultura humana não poderia ter tido origem por milagre! Uma série de linguagens ancestrais do homem e grupos pri-matas, socialmente organizados, preparou o berço da humanidade. Grupos ancestrais de “homens-macaco” estabeleceram as condições de origem do ser humano (anatomicamente moderno) e sua capacidade mental de sustentar um modo de vida ou cultura diferente.

A antiga expressão medieval latina calculus ponere (“colocar pedras”) ilustra bem os sinais de um processo primitivo de linguagem e memória simbólicas associado ao valor dado ao calculus ou “pedra”, e já presente entre grupos de ancestrais próximos do homem. É muito mais fácil dar às pedras um valor e saber que a quantidade corresponde ao nú-mero de animais do que guardar na memória ou contar os próprios animais: ‘1 pedra = 1 animal’, ‘2 pedras = 2’ animais,… ‘100 pedras = 100 animais’. O ‘significado de número’ ou

‘grandeza numérica’ é dado às pedras quando elas passam a representar e comunicar uma quantidade ou grande-za numérica, ou seja, quando elas passam a ser signo de alguma coisa, ou seja, quan-do elas representam alguma coisa. A técnica do cálculo ou linguagem de contar com pe-dras, paus, grãos, etc. mostra uma característica importante no desenvolvimento do ser humano e sua relação com o meio ambiente.

Assim como contar com pedras e dar a elas o significado de uma quantidade, ou seja, tornar pedras signos ou representação de alguma coisa, a possibilidade de um significado diferente também é possível. Ao ser atacado por um cão, por exemplo, no comportamento humano, uma “pedra no caminho” pode significar instrumento de defesa. Quando um primeiro indivíduo ou um grupo deu às pedras o significado de “instrumento de defesa”, vimos nascer a técnica de um uso simbólico ou abstrato da linguagem e um modo de dizer ou comunicar alguma coisa: “tome esta pedra e defenda-se!”

Atividade complementar 1

Na sua opinião, por que objetos naturais (como por exemplo, “pedras”) podem, ser a base de uma linguagem e meio de comunicação sofisticados? Cite exemplos de objetos que servem para este propósito.

Como resultado da sofisticação das técnicas de produção de linguagem e comunica-ção, agora “pedras” são signos ou símbolos: elas podem ter significados diferentes: quan-tidades de animais, meio ou instrumento de defesa, etc.; mais ou menos como pensava o teórico da comunicação McLuhan: o significado de um meio está no uso dado a ele.

Mas, no ser humano (ou Homo sapiens), como assinala o antropólogo evolutivo Ro-bert Foley (2003), talvez venha a ser a técnica, ou “tecnologia” (saber construir ou criar), o

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“fator-chave” que pode nos situar no problema acerca da nossa origem. Quando nos tornamos humanos? Que acontecimento marca nossa origem? Quanto a uma resposta possível, nesse contexto particular, podemos dizer que a

“tecnologia” parece estar associada à origem do “tornar-se humano” e duas características são importantes:(a) o domínio da “tecnologia passou a ser um traço do nosso próprio comportamento e vai além da simples função ou anatomia; (b) a “tecnologia” passou a ser a expressão da mente ou mentalidade humana.

Inserida no contexto amplo da “tecnologia”, como arte de saber construir, pode-se dizer que as situações em que se cria um significado simbólico nos objetos, como, por exemplo, a técnica de contar com pedras, ou quando surge a “arte” em cavernas, são con-textos que mostram o desenvolvimento de uma característica singular da mente ou men-talidade humana: anterior ao estado de cultura, seres humanos tiveram como herança a capacidade de dar, armazenar e comunicar um significado simbólico fora do próprio corpo em pedras, pinturas, instrumentos, linguagem, etc.

A técnica de representação e comunicação simbólicas, como, por exemplo, o artesa-nato de pulseiras, colares, brincos, etc., criado com pedras, penas, conchas, ossos e afins, pa-rece ter sido uma característica singular do ser humano no processo de evolução biológica. Mas essa característica teria sido precedida por um longo processo de “aumento do cérebro” e “refinamento dos artefatos de pedra”, que indicam o desenvolvimento de capacidades mentais superiores. Posteriormente, cerca de um quarto de milhão de anos atrás, a taxa de crescimento do cérebro começa a diminuir e tem origem a espécie moderna Homo sapiens.

Que relação pode existir entre o desenvolvimento da anatomia do ser humano, em particular a anatomia do cérebro, e a origem da cultura?

A resposta a essa questão poderia nos fornecer uma boa pista na explicação, pois, há cerca de 40 mil anos, na Europa, teria ocorrido uma “explosão cultural” onde os diferentes modos de pensamento e expressão simbólicos, característicos dessa explosão cultural (co-municação, arte, sistema de cálculo, expressão religiosa, etc.), teriam sido precedidos pela origem e desenvolvimento do Homo sapiens ocorrida, aproximadamente, cerca de 200 a 250 mil anos atrás. Assim, podemos dizer que as técnicas primitivas de linguagem e comuni-cação simbólicas seguiram o curso da evolução biológica quando a anatomia e o cérebro humanos estavam prontos e podiam sustentar a mente ou mentalidade e um modo de vida diferente ou o que hoje chamamos de “cultura”.

Dar às pedras diferentes significados mostra o possível começo da linguagem sim-bólica, como vimos antes, uma visão semiótica do mundo e o estado de pré-cultura hu-mana: símbolos são signos ou representações de coisas que um grupo estabelece e são reconhecidos socialmente por convenção. Mas entre o símbolo e a coisa representada não existe semelhança (ver acima a definição de “símbolo” como um tipo de signo).

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#M3U3 Sociedade, cultura e linguagem: evolução biológica e cultura

Atividade complementar 2

Que semelhança pode existir entre o objeto “pedra” e a idéia de número? Ou atu-almente que semelhança existe entre os símbolos nacionais, como, por exemplo, as bandeiras, e os países representados?

Assim como as pedras, que podem representar ou significar qualquer coisa, os sím-

bolos representam algo por “convenção” ou “acordo” entre os membros de um grupo so-cialmente organizado. Mas o desenvolvimento de técnicas de linguagem e comunicação simbólicas mostra significativamente que esses acontecimentos não poderiam ter come-çado antes que o cérebro humano já estivesse anatomicamente modelado pela evolução biológica e pudesse sustentar processos mentais superiores.

O desenvolvimento de técnicas de linguagem e comunicação simbólicas sustentou melhor e maiores chances de sobrevivência ao ser humano e à própria manutenção da vida da espécie em competição com espécies rivais. A explosão cultural na Europa (cerca de 40 mil anos atrás) parece mostrar claramente o resultado desse longo e gradual processo de desen-volvimento da mente ou mentalidade humana associado à evolução biológica da espécie.

#M3U3 IV. Linguagem, comunicação e evolução

Questão para reflexão: o que sustenta nossa capacidade ou faculdade de linguagem? Esse é um problema que está no centro das preocupações de muitos filósofos, psicólogos e lingüistas. Por que não poderia estar entre as preocupações dos biólogos?

Entre filósofos, psicólogos e lingüistas, é quase um consenso que a linguagem ou a capacidade da linguagem representa um aspecto que tornou possível a cultura ser uma característica isolada da espécie humana. Mas este não é um ponto de vista completamente verdadeiro. É certo que a linguagem (falada ou escrita) sustentou e sustenta nossos modos de organização social e comunicação, e muitos antropólogos entendem que esses modos são o núcleo da cultura e o que nos torna humanos. Hoje se reconhece que as formas supe-riores da mente humana, e entre elas está a linguagem, são os fundamentos da vida social e da cultura. O modo de vida primata e ancestral do ser humano forneceu a base para o pen-samento, a linguagem simbólica, a tradição de comunicação e acúmulo de conhecimento.

A linguagem é seguramente uma característica humana e nosso diferencial em rela-ção às outras espécies. É a linguagem que nos permite pensar e representar nossos próprios pensamentos. Não podemos pensar sem uma linguagem. Mas o que se quer mostrar, nesta parte da unidade, é que a compreensão de muitos autores nas ciências humanas, entre eles o lingüista americano Noam Chomsky, quanto à característica “isolada” da linguagem, é ingênua (figura 1). Aliás, como expressa Chomsky (2006), a tentativa de “isolar” o traço de diferença da mentalidade humana e conceder a ela o status de característica “real” da his-tória evolutiva porque é o que aconteceu, ou seja, porque o mundo e natureza são assim, parece impor uma necessidade imperativa de existir do ser humano, como se ele sempre tivesse sido o filho aguardado da natureza ou o anjo caído do céu.

Mas se, como entende Chomsky, a mente ou mentalidade humana, sustentada pela faculdade da linguagem, é um traço “isolado” da história evolutiva da espécie, não parece claro em que medida ela significaria uma descontinuidade com o resto da natureza e a evolução biológica. Linguagem, comunicação e cultura fazem parte da nossa história evo-lutiva e não de um mundo isolado (Figura 2). Ser uma característica isolada da linguagem não implica descontinuidade com a natureza ou tornar a cultura um “superorganismo” além e acima da evolução biológica.

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Desde o biólogo austríaco Korand Lorenz (1903-1989), e ao contrário do holandês Nicholas Tinbergen (1907-1988), o estudo do comportamento animal (não-humano e hu-mano) tem mostrado avanços significativos em torno da continuidade ou semelhanças entre mentes não-humanas e humanas.

Mas, ao contrário da compreensão de Chomsky, uma característica isolada não sig-nifica uma descontinuidade entre a espécie humana atual e uma espécie ancestral. Ernst Mayr (2005), a quem é tributado os termos “espécie” e “especiação”, assinala que a “no-vidade evolutiva” tem dois caminhos de implementação: “intensificação de função” ou “adoção de uma função inteiramente nova”.

No segundo caso, o que ocorre muitas vezes é melhor descrito como “um novo papel ecológico” e não exatamente uma nova função: a “estrutura” que adota uma nova função é considerada “pré-adaptada” a essa mudança. É muito provavelmente a pré-adaptação de um órgão a uma nova função o que tenha originado a capacidade da linguagem no ser humano.

Assim, avança Mayr, a mudança de função tem um papel biológico importante entre certos casos de especiação. Algumas mudanças parecem “simular” um salto, no entanto, elas significam um processo gradual entre os indivíduos de uma população. Em princípio, a mudança afeta um indivíduo somente e, em seguida, passa a ser uma característica sig-nificante ou um traço, favorecido por ação da seleção natural e ampliada gradualmente a diferentes indivíduos da população; e, finalmente, o traço passa a diferentes populações da espécie: a evolução por mudança de função é um processo gradual e contínuo.

Aqui podemos comparar a compreensão de Chomsky sobre a característica isolada da função da linguagem na espécie humana. A capacidade da linguagem corresponde a uma parte do processo de especiação do ser humano e ao desenvolvimento gradual de uma função biológica. Aqui, aliás, é importante compreender um pouco o que pensava o lingüista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), fundador da Lingüística contemporâ-nea: a “língua” não se confunde com a linguagem.

Língua (português, francês, espanhol, árabe, chinês, etc.) é um produto social da cultura e uma aquisição. Linguagem é uma capacidade natural ou biológica, como, por exemplo, são a respi-ração, a digestão, o movimento cardíaco, etc.

Chomsky parece equivocado quando afirma que a capacidade da linguagem como “um produto recente e isolado” da evolução é uma conquista cultural da nossa história. Mas como algo (linguagem) que é uma capacidade biológica pode ser uma “conquista cultural”?

Parece que Chomsky não leva a sério a diferença entre linguagem e língua; aliás, como define Saussure, a linguagem é uma capacidade biológica (ou inata) e a língua é um produto social (ou uma aquisição). Mas o que é interessante na compreensão de Saussure, quanto à linguagem, parece corresponder à idéia de uma “estrutura” que adotou uma nova função biológica ou uma “pré-adaptação” no sentido de Mayr e por acaso. E o que acontece por acaso não é alguma coisa prevista ou aguardada. Se a espécie humana existe, assim como suas capacidades mentais e linguagem, não era um produto previsto na na-tureza. Simplesmente aconteceu! Mas Saussure é cauteloso quanto ao papel do acaso na implementação do aparelho vocal:

Inicialmente, não está provado que a função da linguagem, tal como ela se ma-

nifesta quando falamos, seja inteiramente natural, isto é, que o aparelho vocal

tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas para andar. Os lingüistas

Saiba mais

A ciência que estuda o comportamento animal é denominada Etologia (do grego, êthos, costumes, conduta comportamento, + lógos, tratado, estudo).

Saiba mais

Para Mayr, as espécies são grupos naturais de populações ativas ou potencialmente entrecruzantes e reprodutivamente isolados de todos os outros grupos similares.

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#M3U3 Sociedade, cultura e linguagem: evolução biológica e cultura

estão longe de concordar nesse ponto. Assim, para Whitney, que considera a

língua uma instituição social da mesma maneira que as outras, é por acaso e

simples comodidade que nos servimos do aparelho vocal como instrumento da

língua; os homens poderiam ter escolhido o gesto e empregar imagens visuais

em lugar de imagens acústicas. Sem dúvida, esta tese é demasiada absoluta […]

Além disso, Whitney vai longe demais quando diz que nossa escolha recaiu por

acaso nos órgãos vocais; de certo modo, já haviam sido impostas pela Natureza

[…] A questão do aparelho vocal se revela secundária no problema da linguagem

(SAUSSURE, 2002, P. 17-18).

Se o problema do aparelho vocal é secundário, parece igualmente pouco relevante aqui. Mas, embora Saussure reconheça como “absoluta” a tese de Whitney, ou seja, uma tese muito forte quanto ao acaso na formação do aparelho vocal, o fato é que, muito pro-vavelmente, o acaso tenha tido um papel decisivo. O que parece relevante é que a capaci-dade da linguagem é um órgão biológico como resultado de uma nova função adaptativa do aparelho vocal ou uma pré-adaptação a uma mudança ecológica na espécie humana. E mudanças adaptativas não são ou podem ser previstas. Aqui, por exemplo, podemos identificar que a ocorrência de “erros” evolutivos nos projetos e novos órgãos têm origem: “[…] Durante a transição da vida aquática para a terrestre, a bexiga natatória do peixe se transformou em órgão respiratório” (LORENZ, 1996, p. 46) , e que não era um produto previsto. Assim, comparativamente, a origem da capacidade da linguagem humana teria correspondido a um erro no projeto do aparelho vocal e uma nova adaptação e função teriam sido implementadas no comportamento da espécie Homo.

A capacidade da linguagem, como traço ou característica isolada, não significa certa-mente uma descontinuidade evolutiva da espécie humana ou uma diferença de tipo entre as espécies. Os possíveis intervalos entre grandes primatas (em inglês, ape) gorila, chim-panzé, orangotango e gibão – e o homem são preenchidos por um número incontável de “gradações” das capacidades biológicas como já advertia Charles Darwin (1809-1882) em seu livro A Descendência do Homem (1871). Na verdade, nossas regras sociais, comunicação e comportamento gregário (comportamento de grupo) têm uma descendência primata de-terminante. E se a faculdade da linguagem tem a função atual, como nosso melhor modo de expressão do pensamento e comunicação, certamente, é algo que não estava previsto no aparelho vocal ou é um resultado por acaso. Quanto à língua, claro, é uma conquista da nossa cultura e história particulares. Mas, ao contrário, Chomsky parece atribuir à institui-ção cultural e social da língua o traço necessário ou a característica biológica distintiva da capacidade da linguagem. Parece seguramente um ponto de vista ingênuo e expressa uma confusão quanto à relação entre natureza e cultura.

A capacidade da linguagem articulada (ou língua falada), ou seja, uma linguagem que usa sons e palavras combinados, e não somente meros sons, tem uma característica particular e isolada na espécie humana. No entanto, essa característica não parece eliminar o elo com espécies animais em termos de comunicação por meios não-articulados (gestos, sons, sinais, etc.). O que parece certo é que a linguagem e o pensamento conceitual do ser humano são a síntese de sistemas anteriores de expressão e comunicação de primatas, e os órgãos da linguagem falada parecem resultado do desenvolvimento evolutivo ao acaso do aparelho vocal e estão associados à capacidade de expressão de emoções e pensamentos.

Ainda assim é muito interessante ver que a comparação entre linguagens e meios de comunicação articulados e não-articulados já havia sido objeto de estudo de Darwin (1872). No estudo da expressão das emoções no homem e nos animais, Darwin mostrou que a evolução de certos padrões de comportamento como o “rosnar”, identificado ini-cialmente com uma função de comunicar alguma coisa, enquanto praticamente perdeu

Curiosidade

O Bonobo (Pan paniscus), um tipo de chimpanzé descoberto em 1928, é segundo estudos genéticos a espécie animal mais próxima dos seres humanos. A espécie é distinguida por uma postura ereta, uma cultura matriarcal e igualitária, e o papel proeminente da atividade sexual em sua sociedade. Os bonobos são capazes de se comunicar de forma primária e têm expressões faciais que podem ser reconhecidas pelos seres humanos.

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expressão na espécie humana, passou a uma forma de agressão (mordida) em outros ani-mais. No desenvolvimento do aparelho vocal ao acaso, por comparação, a linguagem fa-lada manteve a continuidade como uma função comunicativa primária no ser humano e, ao invés de rosnar, dizemos alguma coisa quando queremos expressar nossas emoções e pensamentos. Embora a linguagem articulada seja um traço isolado e significativo da espécie humana, ela é parte dos meios naturais ou biológicos de expressão (pensamentos, emoções, sentimentos, crenças, etc.).

O que pode ser a “Sociobiologia”? Como indicado no primeiro tópico desta unidade, os objetos de estudo das ciên-

cias biológicas (origem, manutenção e evolução da vida) não estão distantes dos objetos de estudo das ciências humanas (linguagem, comunicação, mente, etc.) e vice-versa. Uma área de estudos importante e que parece eliminar a distância entre ciências biológicas e humanas é a Sociobiologia. No contexto dessa área de estudos da Biologia, procura-se desenvolver idéias da biologia de populações e da teoria da evolução na organização e no comportamento social. No contexto da Sociobiologia, não importa qual o tipo de organiza-ção ou comportamento, a questão decisiva não é saber se eles são geneticamente determi-nados, mas qual é o grau de determinação.

No ponto de vista do sociobiólogo Edward O. Wilson (1981), a determinação genéti-ca significa potencialidades de ser, pensar, ou agir: somos o que somos ou o que queremos e podemos ser em função da nossa herança genética. A cultura, portanto, é uma expressão da nossa determinação genética. Mas talvez possamos ter uma idéia melhor da Sociobiolo-gia por meio da análise de uma prática cultural e do que significa a determinação genética dos nossos modos de ser, pensar ou agir.

Por que a prática do incesto (prática sexual entre parentes consangüíneos ou afins dentro dos graus em que a lei, a moral ou a religião proíbe ou condena o casamento, por exemplo: entre irmãos ou pais e filhos. ) é considerada um comportamento errado e é reprovada socialmente? O que é o “tabu do incesto” (ou lei do incesto)? Quais van-tagens ele traz?

Entre antropólogos, psicólogos e filósofos, uma resposta possível é que o tabu ou lei do incesto preserva a integridade da família ao evitar a confusão de papéis: o membro de uma família só poder ter um papel e não dois; por exemplo, o pai não pode ser pai e amante da filha ao mesmo tempo, ou a mãe ser mãe e amante do filho ou, entre irmãos, o irmão ser irmão e amante da irmã. Outra explicação para o tabu do incesto é que se preservam as filhas, o que permite um modo melhor de negociar casamentos entre famílias ou grupos sociais. São basicamente estas duas explicações “culturalistas” para o tabu do incesto ou a razão de proibição desta prática em sociedade.

Mas o que diz a explicação da Sociobiologia? Por que, embora o incesto sempre seja uma prática possível, ele é reprimido socialmente entre diferentes culturas?

Uma explicação sociobiológica possível considera a integração de papéis na família ou os acordos de casamentos um “subproduto” de um comportamento biológico básico. A prática do incesto ou “endocruzamento” (ou prática sexual entre membros de um mesmo grupo) leva a uma “punição biológica”: o resultado são crianças com dificuldades físicas ou limitações mentais. A manifestação das patologias do endocruzamento mostrou que o “exocruzamento” (ou prática sexual entre membros de grupos diferentes) leva a uma

#M3U3 V. Cultura e evolução: Sociologia

Saiba mais

Sociobiologia é um ramo da Biologia que estuda o comportamento social dos animais, usando conceitos da etologia, evolução sociologia e genética de

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#M3U3 Sociedade, cultura e linguagem: evolução biológica e cultura

vantagem biológica: evitar exatamente a geração de crianças com anomalias e manter a integridade biológica da vida. O tabu do incesto mostrou ser uma adaptação secundária das diferentes culturas a uma razão biológica imperativa da natureza. Ao longo de várias e várias gerações, o exocruzamento mostrou-se biologicamente significativo e passou a ser um patrimônio cultural e hereditário da espécie humana.

Mas, exatamente, por que preferimos a repreensão moral do incesto se ele ainda é uma parte dos nossos desejos?

Quanto aos desejos com baixo grau ou grau zero de satisfação na realidade do mun-do, como, por exemplo, o desejo do incesto, ou desejo de voar pelos próprios meios e não por avião, estes mostram uma vantagem à repressão desses comportamentos, uma vez que podem comprometer a sobrevivência ou bem-estar do grupo ou da espécie. Nos sistemas sofisticados de linguagem simbólica, como o sistema de linguagem humana, teria ocorrido uma seleção de símbolos apropriados a representar a repressão de comportamentos “er-rados” como, por exemplo, o símbolo lingüístico “incesto” = “comportamento errado”, ou seja, usamos o símbolo “incesto” para significar um comportamento errado.

Podemos dizer que agentes biológicos ou instintos tenham evolutivamente desen-volvido a função de reprimir comportamentos que colocam em risco o ser humano. Ins-tinto “é um sistema espontaneamente ativo de mecanismos comportamentais” (LORENZ, 1995, p. 287) que realiza certas funções. Podemos usar as expressões “instinto reprodu-tivo”, “instinto agressivo”, etc., que levam à realização de comportamento sexual, com-portamento agressivo, etc. Os instintos são sistemas geneticamente determinados que podem gerar certos tipos de comportamentos específicos.

Mas os comportamentos instintivos gerados podem, eventualmente, ter um sentido moral (comportamento agressivo ou práticas sexuais incestuosas, por exemplo), mostran-do apenas o potencial genético da nossa condição de existência. Tudo o que somos, po-demos ser, nossos comportamentos, etc., mostra nosso potencial genético de ser, pensar ou agir: se somos ou podemos ser agressivos, se nossos comportamentos são agressivos, assim como se somos ou podemos ser benevolentes, se nossos comportamentos são bene-volentes, se temos práticas sexuais incestuosas, etc. são potenciais da nossa genética. Não é a cultura que nos torna bons ou maus: o fato de sermos bons ou maus é parte do nosso potencial genético de ser o que podemos ou queremos ser.

Atividade complementar 3

Baseado no que você aprendeu até agora, o que é exatamente cultura ? E cultura científica, o que seria?

O conhecimento humano evolui e as experiências individuais são os veículos des-

sa evolução. A experiência e a aprendizagem que tornam possível a produção do conheci-mento. Mas quando podemos dizer que alguém aprende ou conhece alguma coisa? Entre as teorias contemporâneas da aprendizagem, alguém aprende ou conhece alguma coisa quan-do modifica sua atitude frente ao mundo: aprender significa mudar de comportamento.

Vamos pensar um exemplo simples. A criança inicialmente tem certas experiências concretas do mundo: cores, sons, sensações, sabores, fome, etc. Ela reage de um modo par-

Curiosidade

Assista ao filme Gattaca de Andrew Niccol, 1997, para ter uma visão de como poderia ser uma sociedade influenciada pela genética no futuro.

#M3U3 VI. Cultura e cultura científica: linguagem e evolução do conhecimento

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ticular a essas experiências: reação ao azedo do limão, ao calor do fogo ou ao mal-estar da fome (chorar), etc. Diante dessas reações diferen-tes a certas situações podemos dizer que a criança modificou seu comportamento frente ao mundo ou que ela aprendeu algo. Agora ela sabe que o limão é azedo, que o fogo é quente e também já sabe expressar sua fome (ela chora). Mas a crian-ça, posteriormente, já na fase de desenvolvimento da linguagem, começa a associar suas diferentes experiências à prática de dizer o que ela pensa ou quer; ela começa a ter uma prática lingüística de expressar suas experiências de conhecimento do mundo dizendo que o limão é azedo, que o fogo é quente ou que quer comer. Esse é o modo de conhecer da cultura popular, o chamado conhe-cimento do senso comum. As experiências indi-viduais ou a herança entre gerações constituem a base desse tipo de conhecimento.

A prática lingüística aumenta significativa-mente a capacidade de conhecer e desenvolver a aprendizagem. Aqui é importante ver que o desenvolvimento do conhecimento e da aprendizagem segue paralelamente o pro-cesso de maturação biológica. Aliás, esse é o princípio básico da teoria da aprendizagem do suíço Jean Piaget (1896-1980), considerado a maior autoridade nessa área, cujo princí-pio fundamental é baseado nas condições biológicas do conhecimento: o desenvolvimento mental e aprendizagem seguem paralelamente a maturação biológica.

Assim, por comparação ao processo de aprendizagem da criança, quando as expe-riências de mundo mostram ser a fonte de conhecimento e aprendizagem, ou quando a criança mostra modificação no comportamento, ocorre a evolução do conhecimento cien-tífico. Mas aqui é importante ver uma diferença: enquanto a experiência individual é o veículo do processo de desenvolvimento do conhecimento e de aprendizagem na criança, no contexto da ciência e da cultura científica, as coisas não acontecem exatamente assim.

O filósofo da ciência Karl Popper (1902-1996) tem um modelo interessante para de-monstrar como acontece o desenvolvimento e a evolução do conhecimento cientí-fico e o que poderíamos chamar cultura científica. Ele primeiro identifica o que é o mundo do conhecimento científico em comparação aos mundos físico e mental:

Mundo 1: mundo da realidade física e fisiológica.

Mundo 2: mundo das atividades mentais.

Mundo 3: produtos da mente humana (arte, literatura, pintura, arquitetura, etc.) e mundo do conhecimento objetivo (filosofia e ciência).

Aqui nos interessa o Mundo 3. Parte do Mundo 3 pertence ao contexto da ciência. Mas nesse contexto os agentes de evolução do conhecimento são as teorias científicas. Popper mostra que a evolução do conhecimento científico tem um alto grau de significação biológica. As teorias, como agentes de evolução do conhecimento, estruturam o mundo da cultura e comunicação na ciência. O esquema explicativo de Popper é muito simples (figura 3). Imagine que duas teorias (T1 e T2) são candidatas a resolver um problema (P):

Jean Piaget (1896 - 1980)

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148        Módulo III — Processos de manutenção da vida

#M3U3 Sociedade, cultura e linguagem: evolução biológica e cultura

Figura 3: Adaptação de Popper (1997). EE1 e EE2: processos de eliminação de erros; S1 e S2:

soluções apresentadas ao problema P, DCA: Debate Crítico Apreciativo.

Ao final de uma série sucessiva de experiências e testes, as teorias chegam ao “De-bate Crítico Apreciativo” (DCA) quando procura avaliar e ver qual teoria representa a melhor solução ao problema. Aquela teoria que mostra a melhor solução, em comparação com a teoria rival, garante sua sobrevivência. O esquema DCA mostra, assim como enten-de Popper, uma luta por sobrevivência entre teorias e evolução do conhecimento: quanto mais as teorias lutam entre si, mais evolui o conhecimento. Assim, por comparação, as teorias são os agentes de teste e o DCA tem a função de “seleção natural” na evolução do conhecimento, como na aprendizagem individual e evolução do conhecimento humano, a experiência é o agente de desenvolvimento do conhecimento.

Podemos ver que os conhecimentos humanos e científicos têm um alto grau de valor biológico na sobrevivência do ser humano ou das teorias. E assim como na experiência humana e na evolução biológica, como parte do desenvolvimento da cultura, igualmente, a cultura científica tem seus agentes próprios: as teorias e as linguagens científicas são os agentes de comunicação e evolução do conhecimento. No esquema de Popper, acima ilustrado, desde o problema inicial até o DCA, temos determinado o limite do mundo ou cultura científica. No modelo de divisão do conhecimento entre três mundos, o mundo da ciência, ou a cultura científica, é parte da cultura e, no entanto, ele tem seus agentes e lin-guagens próprios. Os agentes são as teorias e os meios de comunicação são os congressos, artigos, aulas, etc. Mas ao contrário da cultura popular, ou conhecimento do senso comum entre pares de indivíduos ou grupos, no mundo do conhecimento, ou cultura científica, os agentes são pares ou grupo de teorias em debate.

Mas acontece muitas vezes que a comunicação da cultura científica, ou seja, o resul-tado das teorias em debate, usa meios tradicionais de divulgação da cultura popular como revista, jornal, televisão, rádio ou internet. Nesse contexto particular, como se mudam os meios, mudam-se os modos de comunicação da cultura científica e ela alcança o grande público. Porque, como vimos com McLuhan, o meio é a mensagem.

Quando a comunidade científica leva ao conhecimento público os resultados dos debates e pesquisas, a linguagem ou o meio precisa ser amplo e ir além da própria cultura científica ou mundo da ciência.

E ainda por comparação à evolução biológica, podemos ver que o conhecimento cien-

tífico está em constante evolução e problemas, e mais problemas exigem teorias como candi-datas à solução. Nesse processo de evolução constante do conhecimento, teorias surgem ou são eliminadas, e novos problemas se apresentam, assim como parece ser o próprio curso da vida: problemas, experiências sucessivas, solução, conhecimento… novos problemas!

Vimos nesta unidade que muitos temas das ciências humanas não estão distantes das ci-ências biológicas e que, na verdade, eles são complementares entre si. Em grande parte, se

P

T2 EE2 S2

DCA

S1EE1T1

#M3U3 VII. Considerações finais

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procurou mostrar que a separação entre linguagem, comunicação e cultura, de um lado, e natureza e evolução biológica, de outro, não parece ser justificada atualmente. Uma com-preensão ampla de “vida”, ou processos de manutenção da vida, não pode ignorar o fato de que diferentes modos de linguagem e comunicação têm um papel fundamental nesses processos. Em particular, entre os seres humanos, parece claro que linguagem e comuni-cação, como características particulares da espécie, têm esse papel fundamental de manu-tenção do nosso modo de vida ou cultura. O que não podemos ignorar é que esse modo de vida não está completamente isolado. Ele é uma parte significativa da nossa história e evolução biológicas.

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#M3U3 VIII. Referências