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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP STELA DA SILVA FERREIRA Educação Permanente no Sistema Único de Assistência Social: gestão democrática para uma ética pública DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

STELA DA SILVA FERREIRA

Educação Permanente no Sistema Único de Assistência Social:

gestão democrática para uma ética pública

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2015

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STELA DA SILVA FERREIRA

Educação Permanente no Sistema Único de Assistência Social:

gestão democrática para uma ética pública

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica como

exigência parcial para a obtenção do título de

Doutora em Serviço Social, sob a orientação

da Professora Dra. Aldaíza Sposati.

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2015

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BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

_________________________________________

_________________________________________

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_________________________________________

Page 4: Educação Permanente no Sistema Único de Assistência Social ... da Silva... · Educação Permanente no Sistema Único de Assistência Social: ... Social, pela aposta de que é

À Maju, She e Tatá que fizeram de mim um origami

e, ao dobrar uma socióloga, produziram uma

educadora.

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AGRADECIMENTOS

A finalização deste percurso acadêmico foi possível graças à presença forte e instigante da

orientadora Aldaíza Sposati. No momento em que buscava novo sentido para minha paixão pelos

estudos fui acolhida de modo singular. Num acolhimento público, ela abriu janelas, horizontes e

oportunidades para que eu pudesse fortalecer o sentido da ética pública no meu modo de pensar e agir

em diversos espaços coletivos.

O alcance deste estudo foi possível graças à confiança e generosidade que os trabalhadores do

SUAS em Atibaia, na DRADS-Franca - Tatiana, Renata, Jandira e Talismara - e nos municípios da

região, que aceitaram meu convite para expor suas experiências, incertezas e construções coletivas. Suas

iniciativas renovam minha confiança militante de que é possível produzir modos potentes e criativos de

estar no SUAS.

A viabilidade material para o desenvolvimento deste estudo ocorreu com apoio da Coordenação

de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (CNPq).

Agradeço também ao José Crus e Antônio Castro pelo respeito e admiração – que são recíprocos

– e que criaram possibilidades para exposições e debates das minhas ideias mesmo quando elas eram

apenas inspirações. Em nome deles, agradeço todos os membros das suas equipes da SNAS, da SAGI e

do CNAS pela confiança e pelo cuidado com os detalhes que tornam essa construção coletiva possível.

Aos profissionais que militam no fórum estadual de trabalhadores do SUAS no estado de São

Paulo pelo diálogo produtivo que amplia as agendas e compromissos desta política. E às companheiras

Vania Nery, Rina Nemenz e Eliane Cara, que compartilharam o cotidiano no período em que fui

coordenadora do ESPASO, da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, pela

aposta de que é possível propor outros modos de estar no serviço público.

As experiências que me conduziram até aqui foram compartilhadas com amigas queridas que,

mais de perto ou mais de longe, me deram sustentação ética e afetiva. As amigas a quem dedico este

trabalho – Maju, She e Tatá - fizeram a intervenção das mais belas que pude experimentar. Às parceiras

Abigail, Natalia e Rose que atualizam e renovam a aposta de que a gente aprende enquanto ensina. E

aos “incubadores de parceiras” - Felipe, Lucas, Bruno, Fernanda, Leticia, Gustavo, Mari Moura, Cesar,

Isis e Mari Manfredi – que dão vida aos encontros possíveis entre psicologia, teatro, sociologia, serviço

social e ciências da informação.

Às amigas Eliane Alves, Zil Miranda e Katia Gregório, que tiveram presença suave e

competente em momentos difíceis que vivi enquanto desenvolvia esse trabalho. E também ao Mário

Cesar pela delicadeza e competência dedicadas à revisão do texto.

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Às amigas Ana Ligia, Verônica, Isaura Isoldi, Silvia Brito e Damares agradeço o interesse e a

acolhida nos diálogos breves e marcantes. Mesmo em meio a estranhamentos, estimularam a

continuidade desta pesquisa, encorajando a seguir em frente.

Às “antigas” duplas de trabalho, Beth Cortes, Magali Leite, Marina Pompéia e Aline Andrade,

que verão parte das nossas inveções, encontros e desencontros alinhavados neste texto.

À Cristina Fernandes, companheira de vida, que me apoia e dá continência ao meu cotidiano e,

de quebra, melhora minha capacidade de escrever e me comunicar. E Abigail pela presença firme e

afetiva, que me fortaleceu nos momentos de desânimo e exaustão.

À Judith pelo amor enraizado que cria uma copa larga onde eu posso descansar depois de

exaurida pelo excesso de exposição pública. E também por reunir nesta sombra fresca tantas amigas

para nos alegrar: Wilma, Lídia, Cecília, Jô, Sandra, Elzinha, que estiveram mais perto nesses últimos

quatro anos.

Às minhas tias Neusa e Wilma que me acolhem com carinho depois de longos períodos de

ausência. E também meu irmão e minhas primas - Kelly, Elaine, Rose e Laura - que preparam os festejos

cotidianos para celebrarmos a vida.

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RESUMO

O objeto desse estudo são os nexos entre educação em serviço e trabalho institucional do sistema

único de assistência social. As condições históricas e políticas que o tornam possível na primeira década

(2005-2015) de implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) são apresentadas na

introdução. Nela são recuperados processos macroinstitucionais nos quais a gestão do trabalho e a

educação permanente foram pautados (as Conferencias Nacionais) e instituídos com a aprovação de

normativas de alcance nacional. Também são apresentados ao leitor os referenciais analíticos do método

proposto – a pedagogia da problematização (também denominada como aprendizagem baseada em

problemas no ensino superior). A sequência dos capítulos demonstra o desenvolvimento do próprio

método estudado: inicia-se a partir de situações concretas de trabalho que geram crises e incertezas no

ambiente institucional. Em seguida, estimula-se o pensamento crítico referenciado na ética de

responsabilidade (ética pública), agregando elementos teórico-metodológicos já existentes, bem como

contextualiza-se essas situações na história da assistência social e os projetos éticos e políticos nela em

disputa. Finalizando a demonstração do método, o último capítulo volta às experiências concretas para

delas extrair pistas e indicações de novos modos de articular educação e trabalho no SUAS, sobretudo

pela demanda de produção de novos conhecimentos e estratégias de uso do poder institucional. Os

referenciais analíticos que sustentam esta escolha são trazidos somente quando necessário explicitá-los

diante das situações concretas apresentadas. Além de ampla pesquisa bibliográfica em diferentes áreas

do conhecimento, o estudo vale-se de narrativas de trabalhadores do SUAS produzidas em espaços

coletivos: debate público sobre o trabalho social com famílias na região Sudeste, envolvendo

profissionais e gestores das esferas federal, estadual e municipal; entrevista coletiva e grupo focal que

deram acesso a experiências coletivas em âmbito municipal e regional no estado de São Paulo. Nas

considerações finais são explicitados os elementos que este estudo pôde acessar e que tem consistência

para adensar os nexos entre educação permanente e trabalho no SUAS. Por fim, são destacados dois

aportes analíticos: i) a diferenciação ente educação continuada e educação permanente no SUAS e ii) os

deslocamentos de poder que o método pode produzir nas relações de saber e poder instituídas na gestão,

no cotidiano dos serviços e na atenção direta ao cidadão. Com isso, pretende-se contribuir com a

produção de maiores gradientes de construção de autonomia e corresponsabilidade para uma gestão mais

democrática do SUAS e à altura do padrão de dignidade inscrito nos direitos dos usuários desta política

de proteção social devida pelo Estado brasileiro.

Palavras-chave: Assistência Social. Educação Permanente. Ética pública.

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ABSTRACT

This work intends to explore the connections between on the job training and work place

within the SUAS - Sistema Único de Assistência Social (Brazilian Unified Social Protection

System). It is based on some SUAS social workers narratives collected in public debates on

social work with families, in interviews, and focal groups. This method allowed access to

collective work experiences at municipalities, and regional levels within the State of Sao Paulo.

Those narratives in the light of the bibliography of several fields – philosophy, social work,

public healthy, and sociology -, make it explicit some elements such as conflicts, academic

knowledge, actual experience and new knowledge needs. Those elements might contribute to

deep the connections between on the job training and work place within the SUAS - Sistema

Único de Assistência Social (Brazilian Unified Social Protection System). One intends to

contribute with the production of gradients of the construction of autonomy and

coresponsability for a more democratic management of the SUAS that responds to a dignity

pattern forged in the public service user’s rights of the Brazilian social protection policy.

Key words: Social protection system, continuing education, public ethics.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... 10

1. COTIDIANO DO TRABALHO PROBLEMATIZADO: DISPARADOR DA

EDUCAÇÃO PERMANENTE................................................................................... 53

1.1 Recorte de uma situação coletiva: Encontro Regional Sudeste sobre trabalho

social com famílias no SUAS........................................................................................ 55

1.2 Implicações do educador na pedagogia da problematização................................... 78

1.3 A problematização como primeira produção coletiva na educação permanente..... 80

1.4 Direção democrática: a coerência da educação permanente como estratégia de

gestão............................................................................................................................. 90

2. EXPLICAÇÕES PARCIAIS PARA O COTIDIANO PROBLEMATIZADO... 93

2.1 Direito do cidadão de ser protagonista de respostas dignas: uma ética de princípios

e de responsabilidade..................................................................................................... 97

2.2 Pobreza e cidadania: a tensão entre os parâmetros de benefícios e serviços 105

2.3 Direito de acessar serviços ofertados por equipes capacitadas: as demandas

de produção de conhecimento no SUAS..............................................................

115

3. COTIDIANO E EXPERIÊNCIA: PISTAS PARA CONSTRUÇÕES

ASCENDENTES DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO

PERMANENTE................................................................................................

122

3.1 Breve apresentação das experiências............................................................ 126

3.2 Grupo autoanalítico da região de Franca-SP: mudanças no diagrama de

forças entre equipes estaduais e municipais........................................................ 135

3.3 Grupo autoanalítico de Atibaia: mudanças no diagrama de forças entre

trabalhadores e equipe de gestão.........................................................................

141

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 163

REFERÊNCIAS........................................................................................................... 168

ANEXOS....................................................................................................................... 177

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INTRODUÇÃO

O objeto deste estudo consiste em adensar os nexos entre educação em serviço e trabalho

no Sistema Único de Assistência Social (SUAS). A partir disso, o termo “introdução” extrapola

seu significado convencional - não só por introduzir o leitor na ambiência institucional, que cria

as condições para a proposição do objeto, como também apresentá-lo aos elementos

constitutivos da análise. A própria extensão deste item, por estas características apontadas,

não poderia, pois, ser menor.

A amplitude e heterogeneidade das questões que têm sido objeto de regulação no

processo de institucionalização da política de Assistência Social; no período posterior à Política

Nacional de Assistência Social (PNAS/2004), indicam, de um lado, que a transposição das

diretrizes da Lei Orgânica de Assistência social (LOAS/1993) em dispositivos democráticos de

gestão não tem sido tarefa fácil. De um lado, porque a construção de uma política com

legitimidade nacional requer lidar com o desafio de construir unidade de propósitos, respeitada

a autonomia administrativa e a diversidade do contexto do território de municípios e estados

brasileiros (SPOSATI, 2015; GOMES, 2008; KOGA, 2003). De outro, o conjunto das

regulações revela, amiúde, a necessária (e ainda incompleta) objetivação das situações

concretas que configuram demandas coletivas de proteção social de assistência social e a

correlata responsabilidade do Estado (e de seus agentes públicos) em provê-las.

Portanto, o solo dos desafios histórico, político e ético da gestão do trabalho do SUAS

está sedimentado na concepção de gestão democrática de Nogueira:

Por se dispor a dirigir, coordenar e impulsionar a formação ampliada de decisões, a

gestão democrática opera em um terreno que não se esgota no administrativo, no

manuseio de sistemas e recursos, mas se abre para o universo organizacional como

um todo. Ela é essencialmente dialógica, e transcorre em ambientes éticos e políticos

povoados de pessoas, desejos e interesses que não podem ser simplesmente

‘gerenciados’. (NOGUEIRA, 2004, p.11-12)

Partindo-se da compreensão de que os processos de regulação são sempre processos

históricos que confrontam concepções e projetos diferentes, interessa analisar o processo de

institucionalização do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) na chave analítica

construída por René Lourau e Jorge Lapassade (1972) 1. Para esses autores, a instituição é

definida pela tríade instituído/ instituinte/ institucionalização, que reconhece, portanto, o

1 Compreendida como uma abordagem que desenvolve um conjunto de conceitos e instrumentos para análise e

intervenção nas instituições, a análise institucional é trazida para o debate brasileiro, sobretudo, por autores que se

dedicam à produção de conhecimento na saúde coletiva Cecílio (2007), Ceccim (2005), L´Abbate (2001), Merhy

(2002).

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movimento que lhe constitui pela ação concreta de seus atores em face do contexto histórico

específico no qual se situam. Cada instituição contém ao mesmo tempo, e em constante

processo dialético, dimensões formais e estruturadas e acontecimentos negadores dessa

formalização, sendo que, na verdade, o modo de cada instituição apresentar-se à análise é

exatamente o resultado da relação entre esses dois momentos – instituído x instituinte–, que é

a institucionalização.

Considerando que práticas assistencialistas e tutelares antecedem historicamente a

formulação da Assistência Social como política pública, simultaneamente, as figurações

formais (ainda que frágeis) acenam horizontes mais democráticos na sua realização histórica.

Com isso, é fundamental reconhecer o processo de institucionalização em curso como um

campo aberto para possibilidades históricas diferentes, conflitantes até, no contexto

contemporâneo.

Quanto ao foco específico para o qual se dirige esta investigação, há uma tensão

(instituinte) posta pela afirmação dos direitos dos usuários e é sobre essa possibilidade que todo

o esforço desse estudo é empreendido.

A concepção da assistência social como direito impõe aos trabalhadores da política

que estes superem a atuação na vertente de viabilizadores de programas para a de

viabilizadores de direitos. Isso muda substancialmente seu processo de trabalho.

(COUTO, 1999 apud Brasil, 2004, p. 47).

Esta última perspectiva põe luz na presença dos usuários da política de assistência social

por seus atributos afirmativos, reposicionando o pacto em torno dos patamares de cidadania e

justiça estabelecidos (TELLES,1998; JACCOUD, 2009). Por outras palavras, trata-se de

deslocar o eixo de análises individualizantes ― segundo categorias como necessitado, tutelado

e carente- para a construção e adensamento de categorias públicas, tais como necessidades

coletivas, responsabilidade pública e potências relacionais. Entretanto, esta construção política

de superior patamar ético nas sociedades capitalistas é de difícil reconhecimento. Com precisão,

Sposati posiciona e defende esse patamar, ao tratar da seguridade social brasileira, na qual a

assistência social se insere a partir da Constituição Federal de 1988:

A proteção social, política pública de forte calibre humano, carrega marca genética

que a torna um tanto distinta das outras políticas sociais. Seu campo de ação não se

refere, propriamente, à provisão de condições de reprodução social para a restauração

da força viva do trabalho humano. As atenções que produz constituem respostas às

necessidades de dependência, fragilidade, vitimização, de demanda universal porque

próprias da condição humana. Porém, o modo pelo qual essa demanda é reconhecida

e incorporada, as respostas que obtém, no âmbito público ou privado, decorrem de

valores, mais ou menos igualitários da sociedade para com seus cidadãos. (SPOSATI,

2013, p.653)

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Como potência histórica, o projeto que advoga a responsabilização do Estado pela

proteção de assistência social devida aos cidadãos tem força instituinte: o redimensionamento

do poder político no qual o acesso e usufruto dos direitos socioassistenciais afirma um lugar

potente dos cidadãos, em oposição à matriz tutelar instituída que os visibiliza por ausências e

carências de ordem material e, não raro, moral.

A atualidade dessas questões requer o aprofundamento analítico quanto às regulações

do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), instituído a partir do conteúdo e direção

política da PNAS/2004, que propicia visibilidade à dimensão pública e ética na relação entre

trabalhadores e usuários. Exige, também, analisar as escolhas estratégicas que vêm sendo

adotadas, as perspectivas e tensões postas pelos atores participantes desse processo que requer,

entre outras medidas de gestão,

[...] Valorizar o serviço público e seus trabalhadores, priorizando o concurso público,

combatendo a precarização do trabalho na direção da universalização da proteção

social, ampliando o acesso aos bens e serviços sociais, ofertando serviços de qualidade

com transparência e participação na perspectiva da requalificação do Estado e do

espaço púbico, esta deve ser a perspectiva de uma política de recursos humanos na

assistência social, com ampla participação nas mesas de negociações. (BRASIL, 2004

pp. 48-49)

O longo e conflituoso processo de regulação da política de assistência social ganhou

densidade, como política de Estado com atribuições específicas entre as demais políticas de

proteção social, ao aprovar a Política Nacional de Assistência Social (PNAS 2004) e as Normas

Operacionais que decorreram dela, como a NOB- SUAS (2005) e NOB-RH (2006)2, NOB-

SUAS (2012).

É necessário configurar um campo de análise crítica dos elementos que compõem seus

dispositivos, particularmente os afetos à gestão do trabalho. Parto da premissa de que o

dispositivo do concurso público expresso na NOB-RH como estratégia de consolidação e

estabilidade da força de trabalho seja pertinente e, ademais, necessário em face de fragilidade

contratual e política dos trabalhadores verificada na época de sua aprovação e,

lamentavelmente, ainda nos dias de hoje. Fragilidade que se materializa na forte continuidade

de diversas formas de clientelismo e nepotismo na estruturação das equipes municipais de

assistência social.

2 Cabe ressaltar que essa institucionalização foi até 2011 fundamentalmente baseada em pactuações em termos

das instâncias do poder executivo federal (MDS, CNAS, CIT). As afirmações da PNAS/2004 só alçaram o patamar

de legalidade em 2011 quando aprovada a lei12.435/2011, que altera a LOAS. À exceção do Distrito Federal, nas

demais esferas de governo esse reconhecimento pelo legislativo ainda caminha a passos lentos, assim como o

reconhecimento dos direitos socioassistenciais pelo Poder Judiciário e, portanto, o campo de defesa dos direitos

de seus usuários.

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Portanto, o dispositivo do concurso público traz legitimidade e consequência à agenda

de debates e negociações relativas aos direitos dos trabalhadores e à face pública da

consolidação das equipes de trabalho. Entretanto, creio que ele por si seja insuficiente para

abordar a perspectiva qualitativa da presença desses profissionais nos serviços. Dito de outro

modo, a estabilidade da força de trabalho é condição necessária, mas por si só não consolida a

dimensão qualitativa esperada da atuação desses profissionais no âmbito da política pública de

assistência social.

A gestão do trabalho a que se refere à NOB-RH fundamenta-se em dois dispositivos: a

capacitação continuada e o plano de carreira, cargos e salários. A organização do trabalho,

portanto, não é uma mera questão instrumental e técnica, mas, sobretudo, de constituição de

novos pactos, contratos e compromissos que ampliem os espaços de atuação, de

compartilhamento do poder e, sobretudo, da qualidade do atendimento prestado à população.

Sob esse ponto de vista, trata-se de pensar e construir dispositivos de cogestão, e não apenas de

controle, seja dos profissionais, seja dos cidadãos-usuários. A persistência dessas tensões

quanto ao controle social e a gestão participativa aparecem com força quando se trata da

participação dos usuários no âmbito do sistema de representação nos espaços de cogestão e

representação de interesses.

Em 2014, a política de assistência social agregava na administração direta municipal

cerca 257 mil trabalhadores, ante 139 mil em 2005 (IBGE e MUNIC, 2005). Esta expansão é

parte do processo de institucionalização em curso, induzido por vetores como: normativas

(NOB-RH, 2006 e Lei 12.435, 2011); novos critérios para cofinanciamento (NOB-SUAS, 2005

e 2012); e organização dos trabalhadores em fóruns regionais e nacional (Fórum Nacional dos

Trabalhadores do SUAS, 2009) e organizações sindicais. Vale dizer que, de acordo com a

Pesquisa das Entidades de Assistência Social Privadas sem Fins Lucrativos (PEAS, 2006) havia

519 mil trabalhadores nas entidades de assistência social, sendo 26,8% com nível superior de

escolaridade.

Essa configuração histórica traz dificuldades para consolidar princípios da ética pública

e o caráter laico dos serviços socioassistenciais. Isso porque a presença massiva de organizações

e entidades de Assistência Social na prestação direta à população, especialmente nas regiões

Sudeste e Sul do país, tende a orientar os processos de trabalho segundo a égide religiosa de

suas instituições mantenedoras, que empregam cerca de 519 mil trabalhadores em todo país

(PEAS, 2006). Ademais, essas organizações além de prestadoras de serviços, compõem

também os conselhos de assistência social, representam seus interesses nos processos de

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regulação do acesso ao fundo público e na gestão do trabalho, vista sua condição de

empregadores.

Para além do traço “genético” dessa dificuldade no campo da assistência social, a

persistência e atualização no processo de institucionalização do SUAS foi destacada e pautada

por Sposati:

A ideia/perspectiva social do Estado em financiar e desenvolver proteção social não

contributiva não é simples. A permanência da cultura de concessão para terceiros da

operação dessas ações persiste em vários segmentos, rejeita que ela seja assumida

como responsabilidade pública. Consideram isso como uma forma de estatização e

não confirmam a proteção de assistência social como dever de Estado e direito de

cidadania.

Nesse modo de ver e agir o Estado não assume plenamente as atenções sociais,

somente passa meios, em geral insuficientes, para que as organizações sociais operem

como se fosse de iniciativa da sociedade, e não do Estado tal atenção. (SPOSATI,

2013, p.661)

A gestão e atenção direta à população são ações calcadas em concepções e essas, por

sua vez, correspondem a determinadas escolhas éticas, técnicas e operativas. Não há

procedimento isolado de uma concepção e de uma direção ética. A questão é como os

trabalhadores são capazes de refletir sobre isso e posicionar-se frente a diferentes projetos em

disputa3.

A concepção de trabalho que referencia as análises empreendidas neste estudo advém

do conceito de instituição que faz uma delimitação objetiva para o desenvolvimento do trabalho,

assim como mantém abertura e criação que o próprio trabalho aporta para mudar a instituição.

Desse modo, valho-me da definição de Lourau:

As instituições não são somente os objetos ou regras visíveis na superfície das

relações sociais. Têm uma face escondida. Esta face, que a análise institucional se

propõe a descobrir, revela-se no não dito.

Primeiro, as instituições são normas. Mas elas incluem também a maneira como os

indivíduos concordam, ou não, em participar dessas mesmas normas. As relações

sociais reais, bem como as normas sociais, fazem parte do conceito de instituição. Seu

conteúdo é formado pela articulação entre a ação histórica de indivíduos, grupos,

coletividades, por um lado, e as normas sociais existentes, por outro.

Segundo, a instituição não é um nível da organização social (regras e leis) que atua a

partir do exterior para regular a vida dos grupos ou as condutas dos indivíduos;

atravessa todos os níveis dos conjuntos humanos e faz parte da estrutura simbólica do

grupo, do indivíduo.

Logo, pertence a todos os níveis de análise: no nível individual, no da organização

(hospital, escola, sindicato), no grupo informal como no formal, encontramos a

dimensão da instituição. (LOURAU,1973, p. 71)

3 Tenho feito esse debate no âmbito da gestão do trabalho e, a pedido da Secretaria Nacional de Assistência Social,

elaborei um capítulo para o livro no prelo: Gestão do Trabalho no SUAS. O Anexo A traz uma sistematização

desta reflexão que fiz sob a forma de um exercício de como se poderia usar os princípios constitucionais da

administração pública para proceder a uma reflexão ética de conflitos cotidianos no SUAS.

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O próprio Lourau complementa:

[...] A instituição, embora se apresente como um fator exterior ao homem, necessitou

de seu poder instituinte. Além disso, se o homem sofre as instituições, também as cria

e mantém por meio de um consenso que não é somente passividade diante do

instituído, mas igualmente atividade instituinte a qual, além disso, pode servir para

pôr em questão as instituições. O fato de que uma instituição seja contestada também

faz parte dela. (LOURAU, 1977, p.73)

A institucionalização do SUAS traz consequências ao texto constitucional que trouxe

para a seguridade social brasileira um dos pilares do projeto político do estado de bem-estar

social: o acesso a serviços desmercadorizados, ou seja, cujo acesso não se dá pela capacidade

de consumo4. Assim, o SUAS tem força de indução da lógica de oferta e ampliação de serviços

cuja natureza do trabalho é produzir valor de uso (e não valor de troca).

Todo produto resultante dos sistemas públicos têm certo valor de uso: ou seja,

potencialidade de atender a alguma necessidade social. (...) a necessidade e os valores

de uso são constituídos por uma luta de influência entre saberes, interesses

econômicos, interesses e necessidades da população, prática política e profissional, a

mídia. O valor de uso dos saberes e práticas em saúde está na defesa da vida das

pessoas. Note-se então que as equipes, como o sistema público de saúde, também

influenciam as resultantes deste jogo. Por que, então, não fazê-lo de forma deliberada

e segundo o interesse público? (CAMPOS, 2007 pp.14-15)

Por isso, a concepção de trabalho que origina e sustenta o objeto deste estudo guarda

proximidade com os referenciais éticos e metodológicos da analise institucional, assim como

segue a pista da produção de valor de uso própria do serviço público.

Autores no campo da saúde coletiva valem-se do conceito “trabalho vivo em ato”,

construído como ferramenta de luta micropolítica. Ao adentrar os processos produtivos da

saúde, esses autores lançam luz para além do uso de tecnologias “duras” (máquinas e aparatos

tecnológicos produtores de diagnósticos e terapêuticas); olham para as tecnologias “leves”,

fundamentalmente calcadas na construção e sustentação de relações entre profissionais e

usuários dos serviços.

No encontro entre trabalhador de saúde e usuário, por ser um processo de intercessão,

território do trabalho vivo em ato, existe sempre uma disputa pelo cuidado que está

sendo construído e pelos tipos de apostas em relação aos modos de existir.

4 No aniversário de 10 anos da LOAS, para exposição, considerada um marco na Conferência Nacional de

Assistência Social, Sposati (2004) fez uma analogia entre a LOAS e uma menina, que chamou de Menina LOAS.

Ao apresentar os “parentes estrangeiros” desta “menina” ela torna clara a referência da matriz de cidadania inscrita

nesta lei. Tardiamente, no Brasil a CF-88 ao trazer a direção de universalidade da saúde e assistência social como

parte da Seguridade Social toma por referência a solidariedade que funda o pacto sociedade- Estado- Mercado.

Esse pacto – ambíguo e politicamente frágil – faz nascer no Brasil a proteção social de cidadania por meio da

garantida por serviços públicos custeados pelo orçamento estatal numa direção redistributiva. Assim, a presença

de serviços públicos de qualidade significa demandar proteção social como responsabilidade do Estado, mesmo

numa economia capitalista.

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Engessado pelas normas ou orientado à produção de procedimentos, o trabalhador

pode dirigir-se ao usuário tomando-o como objeto. [...] Seu agir, nesse caso, vai

somente numa direção: dele para o outro como seu objeto, negando o agir do outro e

seu saber, por ser de menor valor cientifico, portanto não alçado à posição de um saber

tecnológico produtor de autocuidado legítimo.

Mas o trabalhador também pode reconhecer o usuário como portador de necessidades,

mas também de desejos, valores, saberes e potências, que precisam ser levadas em

consideração, tanto para compreender a situação vivida, como para construir o melhor

plano de cuidado. O trabalhador afeta e deixa-se afetar pelo outro, sua vida e seu

contexto e coloca seu saber a serviço, o melhor arranjo para aquele usuário conduzir

sua própria vida na nova condição.

Nessa posição, abre-se espaço para o reconhecimento do não saber diante do outro,

daquilo que é estranho e, por isso mesmo, para a criação, para invenção de si, do

mundo e do outro. (MERHY et al., 2011, p.92)

A Política Nacional de Educação Permanente do SUAS (CNAS, 2013) reconhece que

os desafios éticos, políticos e técnicos trazidos pela institucionalização do SUAS (sobretudo a

Tipificação dos Serviços, em 2009, e os posteriores reordenamentos dos serviços)5 concernem

não apenas aos servidores públicos, mas a todos os trabalhadores dos serviços, da gestão, assim

como conselheiros de assistência social. Essa compreensão se traduz na definição de três

percursos formativos e ações de capacitação:

Considerando o caráter sistêmico e dinâmico do SUAS, os percursos formativos

devem estar acessíveis a todos os públicos destinatários das ações de formação e

capacitação em todas as esferas de governo. Em torno deles, serão planejadas,

formatadas, ofertadas e realizadas as ações compreendidas no escopo desta política

que são assim definidos: percurso formativo - gestão do SUAS; percurso formativo–

provimento de serviços e benefícios socioassistencias; percurso formativo - controle

social do SUAS (BRASIL, 2013, pp.42-43)

A Política Nacional de Educação Permanente do Sistema Único de Assistência Social

(PNEP. CNAS, 2013) é o documento público6 de referência para União, Estados, Distrito

Federal e Municípios quanto aos processos de formação e capacitação dos trabalhadores da

política de Assistência Social. Ela expressa a decisão tomada pelo governo federal em resposta

a um conjunto de deliberações reiteradas ao longo de quase duas décadas nas Conferências

Nacionais de Assistência Social.

Em termos macropoliticos, as primeiras conexões entre o reconhecimento dos direitos

dos usuários e a responsabilidade do Estado para constituir equipes próprias na Assistência

5 Serviços de acolhimento institucional para crianças e adolescentes (Resolução CNAS n. 23/2013); serviços de

alta complexidade, como residências inclusivas, abordagem de rua, acolhimento em república para pessoas em

situação de rua (Resolução CNAS n. 9/2013) e serviços de convivência fortalecimento de vínculos (Resolução

CIT n.1/2013), que motivam os municípios, mediante estímulos de maior cofinanciamento federal, a promover

aperfeiçoamento, adequação à legislação vigente e melhoria de qualidade da oferta aos cidadãos. Além de impactos

sobre a gestão financeira, o mais importante desses processos são os impactos na gestão do trabalho, tendo em

vista orientar e reorganizar a estrutura das equipes e a metodologia de trabalho social visando melhorar a qualidade

da atenção. 6 Resolução do CNAS, n. 4 de 13 de março de 2013.

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17

Social gerou-se nas Conferências Nacionais7. Nos anos subsequentes à aprovação da LOAS,

em 1993, teve início o processo de conferências nas três esferas de governo nas quais essa

interlocução foi gradualmente se adensando, sobretudo na articulação entre suas deliberações e

a agenda do CNAS e as decisões e ações efetivamente tomadas pelo órgão gestor federal8.

Como instância participativa, as conferências, ao lado dos conselhos paritários,

monitoram e avaliam as ações do governo em sua respectiva esfera; assim como propõem

pautas a serem incorporadas nos instrumentos de planejamento e financiamento públicos. Os

limites da arquitetura institucional descentralizada e participativa do SUAS estão

condicionados tanto às atribuições definidas em lei para os três entes federativos, quanto às

decisões e prioridades feitas pelo órgão executivo ao qual estão vinculadas.

O exame das deliberações das Conferências Nacionais permite identificar avanços e

reveses deste movimento no qual, simultaneamente, são debatidos os direitos socioassistenciais

dos usuários, as diretrizes e operacionalização da gestão pública e o lugar dos seus

trabalhadores. É possível, extrair pistas da trajetória de institucionalização da política de

Assistência Social por meio das deliberações das Conferências e resoluções do CNAS relativas

à gestão do trabalho. As Resoluções do CNAS, ao longo do período examinado, fornecem

elementos consistentes para esse cotejamento. Somente depois do pacto firmado em torno da

PNAS/2004, essas conexões ganharam forma instituída em normas e resoluções9.

A diretriz de descentralização em perspectiva ascendente requer que os processos de

decisão, monitoramento e avaliação das ações de educação permanente recolham matéria viva

nos processos deliberativos, ativando um fluxo de monitoramento participativo não apenas de

gestores e trabalhadores, como também dos próprios usuários deste Sistema10.

7 Evidentemente, tal construção política e institucional não ocorreu somente neste espaço, uma vez que a

institucionalidade de qualquer política pública se constrói num campo mais amplo dentro das estruturas do Estado

– as conexões entre os poderes executivo, legislativo e judiciário e as instâncias de controle interno e externo -,

assim como as relações que se estabelecem com setores da sociedade civil (movimentos sociais, categorias

profissionais, sindicatos, agências internacionais, universidades e centros de produção de conhecimento, entre

outros). 8 Lei 12.435/2011: Artigo 18: Compete ao Conselho Nacional de Assistência Social:

VI- A partir da realização da II Conferência Nacional de Assistência Social em 1997, convocar ordinariamente a

cada quatro anos a Conferência Nacional de Assistência Social, que terá a atribuição de avaliar a situação da

assistência social e propor diretrizes para o aperfeiçoamento do sistema. (Redação dada pela lei n. 9.720, de

26/04/1998) 9 Refiro-me à própria NOB-RH (2006) e às Resoluções n.14 (CNAS, 2011), que ratificam a equipe de referência

definida em 2006 e reconhecem as categorias profissionais de nível superior para atender as especificidades dos

serviços socioassistenciais e das funções essenciais de gestão; e a Resolução n.9 (CNAS, 2014), que ratifica e

reconhece as ocupações e as áreas de ocupações profissionais de ensino médio e fundamental do SUAS, em

consonância com a NOB-RH/SUAS. 10 Ainda que novas instâncias participativas sejam constituídas, a exemplo dos Núcleos de Educação Permanente

que estão lentamente se formando no âmbito dos estados, auscultar as análises e avaliações num processo tão

amplo como pode ser o das Conferências, permite colher elementos para os planos municipais e estaduais de

educação permanente.

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Há que se ter parâmetros de prudência quanto a dois aspectos políticos essenciais para

captar das deliberações o conteúdo necessário:

O primeiro deles é de que há frágil representação dos usuários nas fases ascendentes dos

processos deliberativos das conferências (pré-conferências em municípios de maior porte,

conferências municipais, estaduais e distrital e nacional). A avaliação feita pelos Conselheiros

do CNAS ao justificar a aprovação da Resolução n. 24/2006, que trata e orienta o

reconhecimento da representação dos usuários nos Conselhos, é bastante lúcida ao considerar

aspectos históricos, éticos e políticos11.

O segundo parâmetro de prudência diz respeito às dificuldades de construção de

identidade coletiva e política dos trabalhadores do SUAS. Há uma cisão, historicamente forjada,

entre trabalhadores da administração pública (servidores públicos) e trabalhadores empregados

pelas organizações de assistência social que executam os serviços socioassistenciais; sem contar

aqueles cujos vínculos trabalhistas são tão frágeis que inviabilizam o reconhecimento social e

público de seu trabalho na Assistência Social12. Aqui também cabe a menção a alguns critérios

do CNAS quando da aprovação da Resolução n. 23, em 2006, que define e orienta a

representação dos trabalhadores nas instâncias deliberativas do SUAS.

Ao longo do período aqui examinado (1995-2013), foram realizadas nove Conferências

nacionais. A despeito dos projetos políticos em disputa nas conferências durante esse período,

foram aprovadas e reiteradas deliberações que demandaram “treinamentos”, “capacitação” e

“supervisão” aos trabalhadores e conselheiros dos municípios. O entendimento em torno dessa

necessidade suscita a seguinte pergunta: o adjetivo “continuada” ou “permanente” seria

suficiente para diferenciar projetos políticos e éticos no que se refere às relações entre educação

e trabalho na Assistência Social?

Se de um lado, o advérbio “permanente” evoca uma perspectiva de duração,

continuidade, ele pode também, à uma vista mais rasa, indicar perpetuação, repetição. Interessa

aprofundar o cerne dessa concepção gestada no campo da saúde coletiva: a pedagogia da

11 Serão considerados representantes de usuários, pessoas vinculadas aos programas, projetos, serviços e benefícios

da PNAS, organizados sob diversas formas, em grupos que têm como objetivo a luta por direitos. Reconhecem-se

como legítimos: associações, movimentos sociais, fóruns, redes ou outras denominações, sob diferentes formas de

constituição jurídica, política ou social. (CNAS, Resolução n.24, 2006). E, desde 2014, o Fórum Nac. dos Usuários

do SUAS. 12 Conforme analisei na dissertação, a própria construção do lugar dos trabalhadores da assistência social, entre

1995 e 2005, explicitou que essa construção se consubstancia por categoria profissional − particularmente de

assistentes sociais−, ou por lócus de atuação – administração pública e organizações da sociedade civil. A

constituição do Fórum Nacional dos Trabalhadores do SUAS (FNTSUAS), em 2011 é, sem dúvida, um passo

importante nessa trajetória, uma vez que é composto por trabalhadores e diferentes de profissões, vínculos

empregatícios e região de origem. O FNTSUAS é reconhecido como ator político nas arenas consultivas e

deliberativas nacionais do Sistema Único de Assistência Social.

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problematização como exercício constante de autorreflexão e reflexão coletiva sobre onde

estamos e para onde vamos quando se tem em mira também processos de mudança que ativam

novas tensões instituintes.

Esse estudo assume e provoca consequência à opção pelo termo “educação

permanente”, pois indica a dimensão substantiva dessa equação por meio da pedagogia da

problematização. Conforme afirmei na dissertação de mestrado (Ferreira, 2010), esse

entendimento é adjetivado, porém pouco substantivo:

Embora ocupe um lugar central nos argumentos em defesa da centralidade da gestão

do trabalho, a política de capacitação recebe um trato mais adjetivo do que

substantivo. As diretrizes da NOB-RH indicam que ela deva ser sistemática,

continuada, sustentável, participativa, nacionalizada, descentralizada, avaliada e

monitorada. No entanto, traços substantivos, como conteúdos, estratégias e

prioridades em face dos desafios reais colocados em nível nacional, e que ganham

tonalidades diversas em todo o país, não são explicitados no texto. A estratégia mais

claramente anotada diz respeito à necessidade de articulação com as Instituições de

Ensino Superior, assim como com as escolas de governo e organizações não-

governamentais. (FERREIRA, 2010. p.11)

De outro lado, porém, tendo participado ativamente do processo de revisão da versão

preliminar da Política Nacional de Capacitação do SUAS (CNAS, 2001), que derivou na

aprovação da Política Nacional de Educação Permanente (CNAS, 2013)13 pude observar que

os princípios da educação permanente geram certo encantamento, ou seja, as pessoas tendem a

conectar-se facilmente com a ideia, como se ela captasse uma dimensão de abertura, de

possibilidades de produção de novos conhecimentos e práticas ainda não experimentados por

muitos de nós. Parece sinalizar horizontes desejados por muitos daqueles que trabalham nessa

política.

Os princípios da educação permanente guardam profunda coerência com as diretrizes

da descentralização e da participação da LOAS, como já mencionado. Entretanto, além de

pouco estudada e aprofundada entre pesquisadores da assistência social, o desafio de trazer

esses princípios como orientadores de decisões e implementação de processos educativos não

é tarefa fácil e, tampouco, de um único agente institucional.

13 Após debate da versão preliminar em oficina realizada em abril de 2012, o CNAS constituiu um Grupo de

Trabalho (Resolução 19, de 06 de junho de 2012.) composto paritariamente pelos conselheiros José Ferreira da

Crus, representante do MDS e Jane Pereira Clemente, representante da Federação Nacional dos Empregados em

Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas - FENATIBREF. Compuseram também este grupo a convite

do CNAS: Esther de Souza Lemos, Joaquina Barata Teixeira, Jucimeri Isolda da Silveira, Stela da Silva Ferreira.

Além de profissionais da SAGI e SNAS. As sessões de orientação do doutorado nesse período permitiram a

maturação de analises contidas neste estudo: ao mesmo tempo em que intervinha na sistematização do debate da

oficina e na elaboração da Política Nacional de Educação Permanente da visão crítica e colaborativa da orientadora

nesse processo.

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Dessa leitura, emerge o objeto deste estudo: adensar os nexos entre educação em serviço

e trabalho no SUAS, de modo a que eles expressem mais claramente a transposição dos

princípios e diretrizes de descentralização e participação dos dispositivos da gestão do trabalho.

Na época de sua aprovação, a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS/1993) trazia

inovações pelo reposicionamento das relações entre União, Estados, DF e municípios. As

deliberações das Conferências Nacionais da segunda metade da década de 1990 indicam

claramente que as diretrizes de descentralização e participação requeriam uma mudança

substantiva nas estruturas institucionais instaladas 14 . Na conjuntura (1995-2003), as

deliberações que requeriam maior presença e assessoramento aos Estados e Municípios, salvo

orientações individualizadas que possam ter ocorrido, não foram atendidas. Como analisado

por Gomes:

O ritmo e a forma de construção pós-constitucional da política de assistência social,

tardio e lento, foi imprimido, inicialmente, pela condição – e tensão – de aliar

conteúdo e método, ou seja, sua redefinição de competências e definição de modelo

de descentralização político-administrativa. (GOMES, 2008, p.200)

A novidade da implantação de conselhos, planos e fundos mobilizou muitos delegados

nas primeiras Conferências nacionais. Suas deliberações eram endereçadas à Secretaria de

Assistência Social (SAS), órgão gestor federal, e demandavam qualificação e treinamento para

criar e operar a dinâmica dos conselhos nas três esferas de governo15.

As demandas de capacitação dos conselheiros foram, em alguma medida, e durante

muito tempo, respondidas por meio de orientações das Resoluções do CNAS. Essa resposta

institucional tem o seguinte suposto: “a norma forma”, ou seja, há um suposto de que a regra

tem entendimento e aplicação automática e que, uma vez informados, os conselheiros estariam

aptos a lidar com os conflitos decorrentes na vigência da própria norma.

Esse é o fundamento da educação continuada que produz nexos entre educação e

trabalho distintos dos propostos neste estudo, a educação permanente16. A necessidade de

14 A LOAS extingue o Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), que era um conselho consultivo atuante

desde 1938, cujos conselheiros eram nomeados pelo Presidente da República. Sua função era conceder às entidades

privadas de caráter filantrópico, atestados que lhe permitiam obter subvenções públicas, sem qualquer

procedimento para aferir sua real existência e realização das ações de benemerência que diziam executar. No

entanto, o recém-instituído Conselho Nacional de Assistência Social recebe, por herança autoritária e

patrimonialista, a atribuição de revisar processos de registro e certificado de entidade de fins filantrópicos (artigo

3º. da LOAS). 15 As resoluções publicizadas pelo CNAS no período de 1998-2001 não dão elementos seguros para afirmar que

as demandas de capacitação dos conselheiros tenham sido atendidas. Mesmo estendendo o prazo para que o GT,

criado pelo Conselho Nacional, elaborasse a proposta de capacitação e os materiais didáticos para conselheiros de

todo país, essa iniciativa não obteve êxito. 16 Anexo a este material está o quadro comparativo, desenvolvido pela equipe do Ministério da Saúde, em que se

distinguem a educação continuada e a educação permanente (Anexo B). Em síntese, essa é a orientação que

pretendo seguir na fundamentação dos argumentos da tese.

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“capacitação sempre” justifica-se pela recorrente mudança das normas. Por consequência, os

conselheiros precisam sempre estar “atualizados”. Embora não sejam excludentes, a concepção

da educação permanente provê outras respostas a essa mesma expectativa, pois trata-se de

atualizar e produzir sentido para o normatizado.

As demandas de capacitação técnico-administrativa para os conselheiros, assim como a

necessidade dos governos federal, estaduais e distrital exercerem a função de assessoramento

técnico indicam que os requisitos para o exercício do controle social eram desconhecidos por

muitos que ocupariam esse lugar no processo de institucionalização da política de assistência

social.

Ao examinar o conjunto das deliberações no período de 1995-2013, foi possível

identificar três vetores de força reiterados ao longo desse processo.

1) A definição de constituição de equipe multidisciplinar.

2) Garantia de transferência de recursos federais e estaduais para pagamento de

profissionais que atuam nos municípios.

3) Elaboração e implementação de política nacional de capacitação continuada.

Esses vetores compõem a inteireza do que, desde 2006, entende- se por gestão do

trabalho no SUAS. Eles são aqui tratados com objetivo de não cindir as discussões que ocorrem

simultaneamente no processo de institucionalização da gestão do trabalho no SUAS. Entretanto,

o foco de problematização e análise desse estudo tem como centro o vetor afeto ao plano de

capacitação “continuada, permanente e sistemática”.

A IV Conferência Nacional, realizada em 2003, foi um marco na trajetória da política

pública de assistência social, ao aprovar como diretriz a criação do Sistema Único de

Assistência Social (SUAS), que teve como decorrência a elaboração, debate e aprovação pelo

CNAS, da Política Nacional de Assistência Social no ano seguinte (PNAS/2004).

A PNAS/2004 oferece referenciais políticos e técnicos para lidar com os dilemas postos

à universalização desta política pública como atribuição precípua do dever de Estado. Destaca-

se de seu conteúdo elementos que balizam o lugar dos trabalhadores nos órgãos gestores de

assistência social:

A definição mais clara dos conteúdos específicos da assistência social:

seguranças sociais de convívio, acolhida e sobrevivência;

A precedência da prestação de serviços públicos continuados em lugar de

programas de governo ou projetos de entidades socais.

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A alteração do modelo de financiamento federal de convênio para pisos de

proteção com intuito de garantir a continuidade dos serviços e maior clareza dos

critérios de repasse de recursos entre as esferas de governo17.

Ao fortalecer a institucionalidade do SUAS, os três vetores anteriormente destacados

das deliberações das conferências nacionais são, gradativamente, incorporados nas decisões da

Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) e resoluções do CNAS a partir de 2005.

Em um primeiro momento (1995-2003), os processos de trabalho no âmbito dos

programas, projetos, serviços e benefícios de Assistência Social não foram objeto de discussão

nas Conferências Nacionais. Ficaram genericamente enunciados como necessidade de

“assessoria e treinamento de RH”. Nesse mesmo período, observa-se também no conjunto das

resoluções do CNAS que suas prioridades naquele momento eram de estruturação interna –

aprovação de regimento, criação de comissões e grupos de trabalho em temáticas específicas –

e, massivamente, a aprovação de resoluções que tratam da concessão e renovação de Certificado

de Entidades de Fins Filantrópicos. Este traço fortemente cartorial capturou, em grande medida,

sua função precípua de controle da ação governamental e construção da agenda pública da área.

Desse modo, a premência em construir instrumentos normativos para sustentar a diretriz

da descentralização político-administrativa se sobrepôs à pauta dos até então chamados

“recursos humanos”. Ou seja, não havia visibilidade para o conteúdo sobre o qual os próprios

conselheiros deliberavam planos e orçamentos. Embora ainda bastante genérica, já estava

enunciada, em 1997, a demanda por uma “política para qualificação sistemática e continuada

dos recursos humanos da área da Assistência Social”, entendidos como os “executores dos

programas” em âmbito municipal.

A superação da baixa visibilidade das demandas desses trabalhadores no espaço das

Conferências Nacionais foi proposta por meio de moção na Conferência de 1997, que solicitava

que o tema “Recursos Humanos” fizessem parte do temário das próximas Conferências

estaduais e Nacional de Assistência. Somente treze anos após a aprovação da LOAS, a política

de Assistência Social reconhece na NOB-RH/SUAS (2006) que a gestão do trabalho é questão

estratégica para consolidar os direitos dos usuários. A presença de agente públicos é central

nesse processo, uma vez que “a qualidade dos serviços socioassistenciais disponibilizados à

17 Ainda que um primeiro movimento de institucionalização da política de assistência social, no final dos anos

1990, a importância do planejamento fosse o mote para a criação em lei dos conselhos e fundos especiais desta

política - a chamada fase CPF (conselho, plano e fundo) -, a ação dos órgãos gestores e os conselhos ainda

estavam marcados pelo dispositivo do convênio, por meio do qual o governo federal implantava seus programas

e projetos dirigidos a segmentos populacionais específicos, com financiamento anual per capita.

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sociedade depende da estruturação do trabalho, da qualificação e valorização dos trabalhadores

atuantes no SUAS.” (NOB-RH, 2006, p. 19).

Em outros termos, a institucionalização da assistência social convoca o fortalecimento

de nexos entre o ato profissional (seja na gestão, seja no provimento de serviços e benefícios)

e certo domínio de conhecimentos específicos. Nesse momento, tais conhecimentos são

atribuídos a assistentes sociais, psicólogos e advogados, prioritariamente, embora outras áreas

de conhecimento e profissões tenham gozado de reconhecimento em suas normativas, em

caráter complementar a estes.

Vistos individualmente, esses trabalhadores devem ingressar por meio do concurso

público, que atesta seus conhecimentos por meio de prova e diploma. Entretanto, no cotidiano

profissional, deparam-se com uma configuração institucional que demanda atuação em equipe

multiprofissional, composta por trabalhadores de nível fundamental (15%), médio (49%) e

superior de escolaridade (36%), conforme Censo SUAS 2014.

As equipes de referência do SUAS têm essa característica, definida na NOB-RH (2006)

e para a qual as normativas pretendem agregar um certo modo de funcionamento coletivo

adjetivado como “interdisciplinar” e induz a produção de novos saberes a partir de um trabalho

coletivo, que deve expressar para o cidadão as aquisições esperadas dos serviços

socioassistenciais. Há aqui elementos que demandam aprofundamento teórico-analítico, uma

vez que os processos educativos destes trabalhadores precisam considerar, à luz dos direitos

dos usuários, uma dinâmica institucional que deles requer:

• domínio de conhecimentos,

• capacidade de produção de novos conhecimentos,

• e, não menos importante, aprendizados de natureza relacional.

As equipes de referência são, portanto, uma construção (um devir) e não um dado. A

postura regida pela ética pública também é um constructo diário não aferido pelo concurso;

assim como a capacidade de lidar com os sistemas de poder e mover-se em meio a diferentes

conflitos para construção de projetos pessoais (carreira) e projetos coletivos (a proteção social

aos usuários) é um aprendizado.

Há aqui elementos nítidos de que o processo de institucionalização da Assistência Social

passa a requerer, cada vez mais, a profissionalização e constituição de burocracias estatais.

Conforme sintetizado por Nogueira em seu verbete sobre a burocracia:

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O próprio Estado de Bem-Estar, nessa medida, é importante fator de impulsionamento

da burocracia, seja em decorrência da multiplicidade e da crescente complexidade das

demandas, seja em decorrência do fato de que o atendimento passa a depender da

incorporação de sempre maiores doses de conhecimentos técnicos. (NOGUEIRA,

2011, p.119)

Produzir respostas às necessidades dos usuários “desde dentro” de uma política pública,

em tempos de democracia, abre um diálogo com profissionais que analisam o trabalho na saúde

coletiva. Seus profissionais e pesquisadores têm-se dedicado à reflexão em torno de novos

modos de gestão dos coletivos de saúde (Pinheiro, 2005; Campos, 2007), sustentado numa base

epistemológica que lhes possibilita transitar de um modo bastante inovador no qual a produção

do sujeito-cidadão e do sujeito-trabalhador configuram-se no ato profissional, num campo de

imanência. Desse modo, operam uma inversão tanto da lógica mercantil, quanto da lógica

tecnocrática:

O valor de uso não é, pois, igual ou equivalente à necessidade social. As necessidades

sociais cristalizam-se a partir de processos complexos dependentes da dinâmica

econômica, social e política. A formação econômico-social e os movimentos políticos,

ideológicos e culturais é que produzem as necessidades.

[...] Os bens ou serviços, as práticas ou políticas sociais, são apenas meios com

valor de uso potencial, com capacidade de assegurar atendimento a algumas

necessidades sociais.

Trata-se de uma manobra ideológica a equivalência que costuma estabelecer-se entre

produtos e práticas com as necessidades sociais uma vez que tenta transformar um

meio em um fim. [...] Confundir valor de uso com atendimento automático de

necessidades sociais é uma armadilha tecnocrática ou mercantil, que dificulta a

maioria a analisar de modo crítico a produção de valores de uso (CAMPOS, 2007a,

pp. 48-49). [grifo meu]

O cerne dessa produção pretende viabilizar e criar instrumentos de gestão de coletivos

de saúde com vistas a produzir relações de confiança e, sobretudo, de alteridade com os

usuários. Em outros termos, opõe-se tanto à suspeita recíproca que gera a compulsão por

instrumentos de controle, quanto à identificação dos usuários exclusivamente às objetivações

técnicas, políticas ou científicas que lhes possam ser atribuídas.

Na assistência social, a mudança que o trabalho social deve produzir é a passagem das

objetivações como carente, necessitado e tutelado para a objetivação de uma concepção política

e a ética que reconhece a necessidade coletiva de proteção social do usuário. Por isso, tal como

diz Hannah Arendt - a questão [da ética] nunca é se um indivíduo é bom, mas se sua conduta é

boa para o mundo em que vive. No centro do interesse está o mundo e não o eu.

A afirmação do sujeito de direitos na assistência social exige, pois, reconhecer que os

usuários podem manifestar seus interesses sem necessitar de “tradutores” mais aptos ao discurso

nas arenas políticas, que eles têm capacidade de discernimento e escolha diante das

oportunidades e dos acessos que lhe são oferecidos, assim como de atribuir valor às suas

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demandas por direitos e configurar novas demandas coletivas. Esse reconhecimento público

compõe a equação democrática a que se refere um direito do cidadão e, portanto, um dever de

Estado.

Por isso, adoto o conceito de trabalho, tal como proposto por Campos, ao debruçar-se

sobre novos dispositivos de gestão do trabalho no âmbito do SUAS (método Paidéia):

Um conceito ampliado de trabalho que superasse a concepção restrita de trabalho

produtivo e que considerasse como digno de ser remunerado todo esforço humano

voltado para a produção de valores socialmente construídos. O trabalho sendo toda e

qualquer atividade humana voltada para o atendimento de necessidades sociais.

(CAMPOS, 2007, p. 154)

Contudo, o debate em torno do conteúdo e dos resultados do trabalho com os usuários

é tardio, se comparado ao debate em torno das medidas e responsabilidades de gestão, ao menos

quando se trata de discussões em âmbito nacional. Para usar um exemplo inerente ao objeto

desta pesquisa: a aprovação da Norma Operacional de Recursos Humanos em 2006 antecedeu

a própria tipificação dos serviços específicos da Assistência Social, em 2009.

Quanto às forças convergentes para a garantia de transferência de recursos federais e

estaduais para pagamento de profissionais que atuam nos municípios, a discussão acerca do

financiamento sofre um deslocamento significativo em 2005, na V Conferência Nacional. Nas

Conferências anteriores, os recursos investidos na contratação de profissionais por meio de

concursos públicos seriam a contrapartida dos estados e municípios em relação às transferências

federais.

A aprovação da NOB-RH, em 2006, cria condições institucionais para responder à

ausência e/ou insuficiência de parâmetros e normas, requeridos ao longo de várias conferencias,

para o financiamento de equipes multiprofissionais.

Lastreada na necessidade de ofertar serviços públicos diretos, a NOB-RH reiterou a

responsabilidade dos entes federados para a constituição de suas equipes de gestão e atenção

direta ao usuário por meio de concurso público e definição participativa dos respectivos planos

de carreira, cargo e salários. Com isso, ela cria respaldo, ou legitimidade conforme já afirmado,

para atender as reivindicações de gestores relativas ao cofinanciamento dos serviços prestados

em nível municipal.

A NOB-RH foi um dos fundamentos utilizados pela Advocacia Geral da União (AGU)

para emissão de parecer favorável para assegurar transferência obrigatória de recursos federais

para pagamento de equipes que atuam na assistência social em âmbito municipal. Tal processo

instituiu o cofinanciamento na lei 12.435/2011.

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Artigo 6º: A gestão das ações na área de assistência social fica organizada sob a forma

de sistema descentralizado e participativo, denominado Sistema Único de Assistência

Social (SUAS), com os seguintes objetivos:

V- implementar a gestão do trabalho e a educação permanente na assistência social.

Artigo 6º. E - Os recursos do cofinanciamento do SUAS destinados à execução de

ações continuadas de assistência social poderão ser aplicados no pagamento de

profissionais que integrem as equipes de referência, responsáveis pela organização e

oferta daquelas ações, conforme percentual apresentado pelo Ministério do

Desenvolvimento Social e Combate à Fome e aprovado pelo CNAS. (Incluído pela

Lei 12.435, de 2011)18

Sem dúvida, a aprovação deste artigo eleva o patamar institucional sobre o qual hoje se

discute a implementação da gestão do trabalho no SUAS no país. A definição de

responsabilidades compartilhadas e os parâmetros de cofinanciamento vão materializando,

gradativamente, as possibilidades históricas e políticas do pacto político inicial instituído pela

PNAS/2004.

Quanto ao terceiro vetor, cujas forças indicam a elaboração de política nacional de

capacitação continuada a conferência de 2005, e seus desdobramentos, foi um marco. Como

primeira Conferência Nacional posterior à aprovação da PNAS/2004, ela pôs em debate em

todo país a projeção de dez anos para a implantação e implementação do SUAS. As deliberações

desta conferência, articuladas às metas do PPA federal, foram consolidadas no documento

orientador das três esferas de governo: o SUAS Plano 10.

Nesse Plano, constam metas nacionais e federais a serem alcançadas até 2015. Dada a

extensão e a complexidade das medidas de gestão a serem adotadas, outros instrumentos são

articulados ao Plano Decenal: a Norma Operacional Básica (NOB-SUAS/ 2005), a NOB-

RH/2006, o Pacto de Aprimoramento de Gestão (Resolução n.17, CNAS, 2010) e, mais

recentemente, a Norma Operacional Básica do SUAS (NOB-SUAS/2012).

Entre os cinco eixos do Plano Decenal, destaco as metas que agrupam duas áreas afetas

à Gestão do Trabalho. São 12 metas nacionais indicativas do desafio de estruturar as equipes

de referência, em conformidade com a regulação da NOB-RH/ 2006, o que inclui desde

adequação das equipes, passando por ações de gestão para melhorar as condições de trabalho

(salários adequados, espaço físico e materiais de trabalho), implementação de mesas de

negociação até a criação de plano de carreiras, cargos e salários. E também metas indicativas

do desafio de estruturar processos de formação e capacitação capazes de aprimorar a qualidade

da atenção prestada aos usuários dos serviços socioassistenciais.

18 A Resolução do CNAS n.32, de 2011, estabelece o limite de até 60% do recurso do cofinanciamento federal

para ações continuadas da Assistência Social para custeio de recursos humanos.

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27

As metas nacionais para o período de 2007 a 2015 relativas ao campo que se nomeia

como educação permanente no SUAS − ainda pouco adensado em termos conceituais e

metodológicos − são:

Implantar e implementar política de educação permanente e valorização de

profissionais, conselheiros, gestores, técnicos governamentais e não

governamentais, usuários, entre outros atores, orientada por princípios éticos,

políticos e profissionais, para garantir atendimento de qualidade na assistência

social como política pública.

Contribuir, em conjunto com o MEC, na formulação de residência para os

profissionais da assistência social.

Promover estratégias que incluam conteúdos específicos da assistência social em

cursos de graduação e pós-graduação da área social.

Instituir, a partir do Plano Nacional de Assistência Social, escola de qualificação

permanente em parceria com as universidades, públicas, privadas e confessionais,

para os gestores, trabalhadores da área, conselheiros e usuários, respeitando as

diferenças regionais e diversidades na proteção social básica e especial.

Criar, efetivar e manter equipe técnica para realizar o monitoramento e avaliação

dos serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais.

Contribuir com o estabelecimento da política de recursos humanos do SUAS que

garanta: a) melhoria das condições de trabalho; b) isonomia salarial entre os

trabalhadores da assistência social; c) definição da composição de equipes

multiprofissionais, formação, perfil, habilidades, qualificação, etc.; d) definição de

piso salarial para as categorias profissionais da área de assistência social, em

negociação com as entidades dos trabalhadores.

Em 2009, a VII Conferência Nacional teve como mote a valorização dos trabalhadores.

Na mesa central da conferência, Jucimeri Siqueira reaviva esta pauta ao analisar aquele

momento do SUAS:

[...] O novo estágio do SUAS anuncia uma agenda política e eu me pergunto se

estamos preparados para essa agenda política. Vamos ter que nos preparar

politicamente para essa agenda nos espaços dos trabalhadores, que criem e

possibilitem a construção de estratégias, trocas e alianças que deem transitar de uma

perspectiva corporativista de disputa de espaço, para uma perspectiva ou uma

dimensão ético-política, que supere interesses egoístas, passionais e individualistas.

A formação é também para rever as suas diretrizes, de forma a corresponder ao

trabalho socialmente necessário na Assistência Social. Então estamos questionando a

formação dos trabalhadores para que possam exercer suas atividades na Assistência

Social, nesta relação de trabalho como requisito do SUAS. (CNAS, 2011, p.105)

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28

Mesmo considerando a necessidade de construção coletiva a respeito da formação

inicial de trabalhadores de nível superior e médio de escolaridade, como frisado por Jucimeri,

o fato é que há cerca de 800 mil trabalhadores já atuando no SUAS. Numericamente expressivo,

embora ainda insuficiente do ponto de vista da cobertura desejada no âmbito da atenção direta

e na organização dos processos de gestão, esses trabalhadores estão colocando em movimento

a construção do SUAS no cotidiano do seu trabalho.

Duas décadas após a aprovação da LOAS (1993), convivem hoje diferentes gerações de

profissionais e gestores: parte deles foi protagonista da luta pelo direito à assistência social,

enquanto outros a tem como um legado histórico dos militantes e trabalhadores da área. Em

outras palavras, todos os trabalhadores do SUAS estão lidando com as tensões históricas que

deslizam para o campo ideológico os compromissos dessa política de proteção social no âmbito

estatal. Ao mesmo tempo, reproduzem e produzem conhecimentos no cotidiano.

Embora o conteúdo da PNAS 2004 seja, em certa medida, sustentado por produções

acadêmicas, ainda é necessário um grau de aprofundamento de conceitos e compreensões que,

no documento, são apenas indicativos da diretriz a ser dada para a política19. O processo de

institucionalização do SUAS pauta em uma agenda extensa de estudos e pesquisas20; revisões

curriculares e regulação dos estágios e criação de modalidades de residência nas áreas

profissionais ligadas a ela. Inclui, ainda, a formação técnica em nível médio para as funções

recémreconhecidas: educador, cuidador, além de executar funções de apoio à gestão. Como já

explicitado, mais da metade dos trabalhadores (66%) que hoje estão na atenção direta à

população não têm formação específica. Embora esteja na pauta do governo federal, não há

posições claras quanto à formação em nível médio e técnico para as funções.

Há, portanto, implicações significativas das IES e demais instituições formadoras do

ponto de vista da profissionalização dos atuais trabalhadores e formação de novos profissionais.

Entretanto, ao longo da última década, o diálogo entre as gestões federal, estadual, instituições

de ensino e associações de ensino e pesquisa pouco avançou. Ressalvo que o programa

19 Com esse propósito, dedicamos várias sessões do NEPSAS à pesquisa, debate e amadurecimento das noções de

vulnerabilidade e risco social, que constam como concepções da política de assistência social e que exigem maior

compreensão quanto ao seu potencial analítico das proteções demandadas pelos usuários. De outro lado, o conceito

de território parece ser mais amadurecido, posto que o grau de apropriação e uso de suas categorias no texto do

documento parecem mais claros.

20 Em 2014, sob a coordenação de Aldaíza Sposati pesquisadores do NEPSAS-PUC empreenderam ampla pesquisa

das produções acadêmicas (dissertações e teses) na área do Serviço Social, que nominaram por Plataforma de

Pesquisa em Assistência Social (PqAS, 2014). Os estudos mapeados tem em comum objetos afetos à política de

Assistência Social.O banco de teses e dissertações da CAPES foi a base consultada (1987-2012), complementada

por pesquisa in loco nas universidades para acessar e organizar trabalhos acadêmicos no período entre 1972- 1986,

abrangidos pela pesquisa. Total de teses e dissertações: 819, (690 mestrado e 129 doutorado); 528 (64%) em

programas de Serviço Social.

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29

Capacita-SUAS, ao credenciar instituições públicas e privadas, para compor a Rede Nacional

de Capacitação e Educação Permanente do SUAS, tem estimulado para que essas instituições

se aproximem do conteúdo próprio desta política21. Embora tenha feito neste estudo a opção

por abordar e adensar os nexos entre educação em serviço e trabalho institucional, defendo que

cada conteúdo da agenda merece debate, aprofundamento, assim como disseminação de

experiências que já estejam em curso, pois dizem respeito à necessidade de aprimorar o conceito

prévio dos trabalhadores para o ingresso nessa política22.

Este estudo parte da compreensão de que os nexos entre educação e trabalho não se

esgotam na formação prévia. Nesse aspecto, creio que seja oportuno trazer a questão formulada

por Arouca (2003) em sua análise do “dilema preventivista”: Qual a contradição entre a prática

e o conhecimento que o torna um saber não realizado? Essa questão teve impactos na educação

médica e penso poder ressoá-la no atual momento em que a assistência social procura

referenciais para sua intervenção, sobretudo nas correlações entre a produção de conhecimento

e sua implicação na educação dos profissionais.

Tendo como fio condutor as correlações entre o conhecimento produzido e a prática

profissional, Arouca responde a essa questão ao refletir sobre o que denomina “atitude

ausente”, apresenta dois cenários instigantes: o primeiro deles, quando a prática não cria

questões para a ciência, e torna-se um obstáculo ao desenvolvimento do conhecimento; o

segundo, quando a prática gera resistência e não se apropria de conhecimentos já produzidos, o

que também a empobrece tanto do ponto de vista prático quanto analítico.

Por isso, o objeto desse estudo são os nexos entre educação em serviço e trabalho na

institucionalização da política pública de Assistência Social e as possibilidades de fortalecê-los

por meio de dispositivos da gestão do trabalho. Desse modo, gera consequência à seguinte

premissa: as práticas profissionais dos cerca de 800 mil trabalhadores que atuam no SUAS hoje

ativam conexões entre conhecimentos já produzidos e a demanda de construção de novos

conhecimentos. Por analogia à formulação de Arouca, pretendo reunir elementos capazes de

tratar de uma “atitude presente” de trabalhadores, gestores, pesquisadores e educadores que,

por meio de sua ação, ativam os nexos entre educação e trabalho institucional no SUAS.

Entendo que é preciso reunir elementos históricos e analíticos que contribuam para

alcançar um dos objetivos que orienta esta tese: a necessidade de problematizar o entendimento

21 Em 2014, havia 114 instituições credenciadas pelo MDS nessa rede, dentre as quais escolas de governo,

institutos federais de educação e instituições de ensino superior públicas e privadas. 22 A exemplo da SNAS e da SAGI que têm incentivado as equipes estaduais e das IES que realizam o programa

Capacita-SUAS a elaborar artigos que sistematizem experiências e aprendizados de sua implementação em nível

regional.

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30

em torno da capacitação continuada dos trabalhadores da Assistência Social sintetizado, em

grande medida, nas Conferências Nacionais.

Em nível federal, essa agenda deu um passo largo com a aprovação da Política Nacional

de Educação Permanente, em 2013, e as regulações que vêm sendo construídas desde então.

Mas ainda há muito a construir.

Do elenco das metas contidas no Plano Decenal, interessa destacar a convocação para

que diferentes áreas de conhecimento produzam estudos e pesquisas específicos da proteção

social de assistência social23. O texto deste Plano demonstra essa encomenda com nitidez.

A base científica da assistência social assenta-se no conhecimento produzido sobre a

realidade das vulnerabilidades e dos riscos sociais e pessoais a que estão sujeitos os

usuários, bem como nos conhecimentos que sustentam o trabalho social e

socioeducativo de agentes técnicos institucionais no processo de restabelecimento

sociofamiliar e superação das sequelas desses riscos de vida das famílias e de seus

membros e de redução/eliminação de vulnerabilidades sociais. O incremento da base

cientifica para a política de assistência social visa gerar capacidade técnica de

resolutividade e qualidade nas respostas da política a cada usuário. (...) Tal acúmulo

e acervo não se resumem à elaboração de diagnósticos situacionais. Estes apoiam a

produção de novos conhecimentos e também a proposição de formas de

aprimoramento das estratégias de gestão dos serviços, projetos, programas e

benefícios.

[...] É indispensável estimular estudiosos, pesquisadores, núcleos de estudos e

pesquisas acadêmicas de modo a fomentar a capacitação dos agentes institucionais, a

qualidade resolutividade nas ações. (Plano Decenal. SUAS: Plano 10, pp. 38-39)

Este estudo insere-se nesta pauta com o propósito de contribuir para a demonstração de

um método – pedagogia da problematização – que esclareça a direção da educação permanente

que:

Deve induzir, nos trabalhadores e equipes profissionais, um estado de permanente

questionamento e reflexão acerca da permanência e adequação dos seus processos de

trabalho e práticas profissionais quanto ao reconhecimento desses usuários enquanto

sujeitos de direitos e capazes de agir para modificação da realidade, e quanto à

integralidade dos contextos de vida, demandas e aspirações das populações com as

quais trabalham. (CNAS, 2013, p.35)

23 Em 2011, quando a centralidade do debate nacional da Conferência foi “Consolidar o SUAS e valorizar seus

trabalhadores”, a exposição de especialistas no painel central da VIII Conferência Nacional de Assistência Social

inseriu na pauta e na agenda de órgãos gestores e também nas instituições de ensino e pesquisa as demandas de

produção de conhecimento. As exposições de Raquel Raichelis, Jucimeri Silveira e Berenice Couto pautaram esse

desafio tanto para as IES quanto para os órgãos gestores do SUAS.

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31

Ao buscar referenciais no campo da educação que possam contribuir para fortalecer o

vetor instituinte da política de assistência social – a afirmação da dignidade e potência política

de seus usuários – encontro nos pesquisadores que trazem de Foucault um analisador necessário

ao desenvolvimento do pensamento e da ação: a relação entre saber e poder.

Estudar o poder, a sujeição, as técnicas de fabricação da subjetivação permitia a

Foucault evitar enganos de pensar a liberdade como aquela constituída por

mecanismos jurídicos, com base nos embates com a lei, e assim como quase sempre

a temos buscado. A mesma liberdade que, concedida através do aparato jurídico-

político do poder é por ele usurpada e serve para legitimá-lo nas suas próprias

concessões. Dessa liberdade deve-se desconfiar. (SOUSA FILHO, 2008, p.15).

Os dados oferecidos pelos municípios ao responder ao Censo SUAS 2014 atestam de

forma inconteste que os processos de capacitação estão ocorrendo em todo o país.

Gráfico 1: Uso dos recursos do IGD-SUAS24, pelos municípios, para fins de capacitações, encontros,

seminários e oficinas (Brasil e regiões geográficas)

Fonte: Brasília: MDS/SNAS, Censo SUAS, 2014.

Os dados mostram ainda que esses processos vêm acontecendo independentemente do

porte populacional dos municípios:

24 Instituído pela Lei n.º 12.435/2011, que altera a Lei n.º 8.742/1993 (LOAS), regulamentado pelo Decreto n.º

7.636 de 07 de dezembro de 2011/2011, pela Portaria n.º 337 de 15 de dezembro de 2011 e Portaria nº 7, de 30 de

janeiro de 2012, o Índice de Gestão Descentralizada do Sistema Único de Assistência Social – IGDSUAS. Segundo

divulgação no site oficial do MDS, trata-se de um instrumento de aferição da qualidade da gestão descentralizada

dos serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais, bem como da articulação intersetorial, no âmbito

dos municípios, DF e estados. Conforme os resultados alcançados, a União apoiará financeiramente o

aprimoramento da gestão como forma de incentivo.

67,9

71,5

71,3

74,5

64,0

64,4

0 20 40 60 80 100

Brasil

Centro-Oeste

Nordeste

Norte

Sudeste

Sul

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Gráfico 2: Acesso aos recursos do IGD-SUAS, pelos municípios, para fins de capacitações,

encontros, seminários e oficinas, por porte de município.

Fonte: Brasília: MDS/SNAS, Censo SUAS, 2014.

Uma vez instituída a política de educação permanente e desenvolvidos os processos

atinentes a ela, é preciso manter ativas as forças que nas conferências possam avaliar o alcance

de processos instituídos a partir da normativas. Tal como afirma Tapajós:

A tarefa que está colocada agora pela história e pelo tempo desta política pública, aos

20 anos de LOAS, é compreender o que é conferir e de que forma deliberar na sua

inteireza e magnitude, tendo como baliza o exato significado da deliberação, que

deliberar não se trata de debater e resolver (e não pode se tratar) de situações

individualizadas ou de interesses de grupos, mas sim de tomada de decisões que

precisam alcançar todo o sistema de proteção social brasileiro e seus usuários.

(TAPAJÓS, 2013, p. 238)

Para o desenvolvimento desse estudo parto partimos de algumas premissas, ou seja,

algumas condições assumidas como verdadeiras para esta pesquisa; fatores que, na investigação

científica em tela foram considerados seguros, tendo em vista sua validade conferida num

determinado campo institucional (acadêmico e/ou político).

Premissa 1 (sobre a história): o processo de institucionalização da política de assistência

social, em curso desde a aprovação e atualizações da Lei Orgânica de Assistência Social, põe

em cena agentes e instituições capazes de produzir vetores de forças que corroboram ou

fragilizam sua direção ético política.

Portanto, história é campo de forças em luta e não progresso.

Premissa 2 (sobre o campo analítico): a complexidade do objeto científico convoca

diferentes áreas do conhecimento, e pode adensar linhas de pesquisa de uma área específica. A

análise dos processos educativos de trabalhadores do setor público mobiliza conhecimentos

63,1

68,8

61,6

62,4

66,7

0 20 40 60 80 100

Pequeno I

Pequeno II

Médio

Grande

Metrópole

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33

produzidos nos campos da administração pública, educação pública, saúde coletiva, serviço

social aplicado, direito público. Portanto, o próprio modo de enunciação do objeto delimita as

escolhas teóricas e metodológicas que podem sustentá-lo.

Premissa 3 (sobre a dimensão operacional): toda política pública requer a transposição

de princípios e diretrizes gerais para contextos institucionais específicos, capazes de induzir

ações numa determinada finalidade prevista. No caso da política pública de assistência social,

a gestão do trabalho e, dentro dela, os processos educativos dos trabalhadores devem ser

orientados para o alcance dos direitos dos cidadãos por ela alcançáveis/ protegidos.

A temática e o objeto em foco nesta pesquisa, portanto, configuram dois desafios. O

primeiro deles de caráter epistemológico, posto que exige escolha de teorias, construção de

hipóteses, seleção de informações empíricas disponíveis e seu exame crítico. E o segundo de

ordem prática ou, mais precisamente, do campo da ação dos agentes públicos, posto que a

gestão diz respeito especificamente ao manejo de concepções, estratégias e recursos tendo em

vista uma ação política numa perspectiva democrática.

Em síntese,

Resta, então, indagar que poderes e quais saberes têm os trabalhadores da política de

assistência social na realização da política pública no Estado Democrático de Direito.

Ou seja, trata-se, agora de saber como os profissionais ocupam esse lugar para

investigar o seu devir democrático. Não porque a democracia esteja pronta, mas é a

herança mais igualitária que conseguimos forjar. (FERREIRA, 2010, p. 173).

O objeto aqui construído ― os nexos entre educação em serviço e trabalho na

institucionalização da política pública de Assistência Social e as possibilidades de fortalecê-los

por meio de dispositivos da gestão do trabalho ― situa esta produção na tradição de

pesquisadores e profissionais que se dedicaram a problematizar sua própria prática, seja de

pesquisa ou de intervenção. Tal visão crítica - ou contra hegemônica nos termos de Boaventura

de Souza Santos (2004) - afirma um campo de expansão dos saberes e poderes daqueles que

são reiteradamente destituídos dos instrumentos reconhecidos como válidos para a disputa na

arena política. No Estado Democrático de Direito é necessário compreender tanto a distribuição

dos poderes no interior da administração pública, quanto a necessidade de tornar mais

democráticos os sistemas de controle da burocracia.

Segundo análise de Nogueira,

A gestão participativa depende intensamente de profissionais que dominem o campo

técnico-científico e que sejam capazes de pensar de modo complexo, realizar análises

concretas de situações concretas e imprimir outro padrão ético à administração

pública. (2004, p.151)

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Não se trata de uma benevolência para com os “mais fracos”, como se o conhecimento

científico nos habilitasse a falar em nome deles, mas de afirmar um campo potente de ação que,

orientado pelos princípios de igualdade e justiça, é capaz de propor deslocamentos no jogo de

forças em que atuamos: pesquisadores, gestores, agentes públicos ou usuários das políticas

públicas.

Por isso, a hipótese deste estudo é de que a pedagogia da problematização pode produzir

nexos mais potentes entre educação e trabalho no SUAS.

Pedagogia da problematização

Dos medos nascem as coragens. Os sonhos anunciam outra realidade possível, e os

delírios, outra razão. Somos o que fazemos para transformar o que somos. A

identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas sempre assombrosa

síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio. (Eduardo

Galeano).

A literatura no campo da educação é farta de concepções e métodos que alimentam

debates em torno dos processos de ensino-aprendizagem. Tais concepções atravessaram as

fronteiras da política educacional estrito senso, espraiando-se para o campo das organizações

públicas e privadas, serve aos seus propósitos e corrobora seus diferentes valores. Nas políticas

sociais de Saúde 25 , Educação e, mais recentemente, na Assistência Social, diferentes

concepções educativas são transportadas para a ambiência institucional, de maneira mais ou

menos explícita, em processos denominados como capacitação, atualização, formação

continuada ou educação permanente de seus trabalhadores.

A adoção do termo “educação permanente” na política de Assistência Social é muito

recente e de discussão ainda a merecer maior adensamento. Frequentemente tem sido tratada

como sinônimo de capacitação continuada, aspecto que será analisado numa perspectiva crítica

no segundo capítulo deste estudo. No campo da Seguridade Social é na política de Saúde que a

concepção de educação permanente e sua necessária diferenciação do termo “educação

continuada” está mais amadurecida pelo debate havido, desde os anos 1990, na América Latina

e no Brasil a propósito dos processos de educação em serviço na saúde pública.

25 Davini (s/d) recupera as formulações no campo da educação que ofereceram subsídios para os debates da

educação permanente de trabalhadores da saúde coletiva na América Latina, destacando a importância daquelas

que reconheceram os adultos como sujeitos da educação. “Una corriente de pensamiento se origina en las

concepciones de Educación Permanente - desarrolladas tanto en experiencias concretas y como en formulaciones

de teoría desde comienzos de la década del 70, particularmente difundidas por UNESCO (1979). Ellas facilitaron

el reconocimiento del adulto como sujeto de la educación (tradicionalmente centrada en el niño) y la ampliación

de los ámbitos de aprendizaje, más allá del ambiente escolar, a lo largo de toda la vida y en contextos

comunitarios y laborales.” (Davini, s/d, p.5. Grifo meu)

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A literatura já consolidada no Sistema Único de Saúde (SUS) traz para a ambiência

desta política pública um modo de realizar os processos de educação permanente denominado

“pedagogia da problematização”. Davini (1995), uma das primeiras e fecundas interlocutoras

no âmbito no SUS, assim define:

A este tipo de enseñanza reservamos el calificativo de “formación en profundidad”.

No se trata de una transmisión de conocimientos que interesa solamente a las áreas

intelectuales de la personalidad, sino que una interacción de experiencias entre los

sujetos que hace entrar en juego tanto el nivel consciente de sus conocimientos como

la afectividad y la psicología profunda. El fin último perseguido es una modificación

profunda de las actitudes ligada a un enriquecimiento en los conocimientos. Esta línea

pedagógica tiene orígenes muy antiguos, puesto que un principio de ella se encuentra

en mayéutica socrática. […] En América Latina ha alcanzado una configuración

importante en la obra de Paulo Freire.

Las características centrales de esta pedagogía muestran puntos de interés para la

formación de los trabajadores de los servicios de la salud. Su punto de partida es la

indagación sobre la práctica, entendida como la acción humana y profesional dentro

de un contexto social e institucional. El camino de la indagación es la pregunta, por

lo cual también se ha dado en llamar “pedagogía de la pregunta”: ¿Cómo hago?; ¿Qué

dificultad encuentro cuando hago? ¿ Por qué lo hago de esta manera? (DAVINI, 1995,

p.40)

Em outras palavras, as práticas concretas, histórica e culturalmente situadas são a

matéria-prima dos processos de educação permanente baseados na pedagogia da

problematização. Quando questionadas e postas em análise, produzem situações problemáticas,

que são a primeira produção coletiva num processo de aprendizado institucional. Assim,

prossegue Davini:

El pensar la práctica no debe ser un acto individual sino colectivo. Esto implica

contextualizar el pensar reuniendo los aportes individuales en el pensamiento del

grupo. El co-pensar cooperativamente y la discusión solidaria lleva a detectar los

problemas del equipe. (DAVINI, 1989 p.14)

A ressonância da pedagogia da problematização no SUS, assim como as inovações

produzidas pelos pesquisadores brasileiros em diálogo com intelectuais da Organização Pan-

americana para a Saúde (OPAS), pode ser aferida pela extensa bibliografia, sistematização de

experiências e invenções de percursos de aprendizagem coletiva: Campos (2006; 2007),

Ceccim (2004; 2005; 2007), Costa (2006), Feuerwerker (2004), Merhy (2005), entre outros.

Recorro à companhia desses autores porque em suas pesquisas e reflexões sobre o SUS

vêm lidando com desafio semelhante ao enfrentado hoje no SUAS. Mais do que isso, a

educação permanente tem sido uma ferramenta de luta para adensar e capilarizar os princípios

constitucionais nas práticas de profissionais do SUS. Desse modo, asseveram os sanitaristas:

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Todo processo que esteja comprometido com estas questões da educação permanente

tem de ter a força de gerar no trabalhador, no seu cotidiano de produção do cuidado

em saúde, transformações da sua prática, o que implicaria força de produzir,

capacidade de problematizar a si mesmo no agir pela geração de problematizações. E

aí está o cerne de um grande novo desafio: produzir autointerrogação de si mesmo no

agir produtor do cuidado; colocar-se ético políticamente em discussão, no plano

individual e coletivo, do trabalho. E isto não é nada óbvio ou transparente.

Parece que estamos diante do desafio de pensar uma nova pedagogia - que usufrua de

todas as que têm implicado com a construção de sujeitos autodeterminados e

comprometidos sócio historicamente com a construção da vida e sua defesa,

individual e coletiva – que se veja como amarrada à intervenção que coloca no centro

do processo pedagógico a implicação ético político do trabalhador no seu agir em ato,

produzindo o cuidado em saúde, no plano individual e coletivo, em si e em equipe.

(MERHY, 2005, 172-174)

Mas como seguir a pista de Mehry? Qual seria essa “nova pedagogia” requerida por ele

que possa contribuir na construção desse projeto ético político no SUAS? Sem incorrer em

longas digressões, entendo necessário situar a “pedagogia de problematização” no campo da

educação para explicitar a categoria “problema” e para situar seu lugar nos processos de

educação permanente.

Para tanto, recorro ao balanço desta literatura feito por Zanotto (2002), que empreendeu

um acurado levantamento de diferentes linhas de pensamento que adotam a perspectiva da

problematização para organizar situações de ensino-aprendizagem. Nesse balanço, identificou

e sistematizou quatro abordagens, ancoradas no pensamento de Dewey, Saviani, Freire e

Hernandez. Embora ressalte aspectos comuns, Zanotto explicita algumas diferenças entre eles,

sobretudo quanto ao entendimento sobre o sujeito que realiza a ação de problematizar.

John Dewey, regido pela lógica formal, propôs que o sujeito que aprende tem um papel

ativo nesse processo porque, ao problematizar, ele explicita uma situação de experiência sobre

a qual seu pensamento é estimulado, sua observação aguçada e, ao final, deve ter a oportunidade

de comprovar suas ideias por meio de sua aplicação. Demerval Saviani, guiado pelo

materialismo-histórico dialético, defende que a busca de respostas inerente à ação de

problematizar é uma reflexão filosófica que articula, dialeticamente, os requisitos de

radicalidade, rigor e globalidade. Em Fernando Hernandez, a perspectiva cognitivista considera

que a ação de problematizar coloca o sujeito na condição de aprender a aprender, o que implica

a aprendizagem por reestruturação que aspira a uma mudança conceitual. A ação de

problematizar, neste caso, não é auto-organizada, prescindindo de um plano de ensino para o

seu desenvolvimento. Em Paulo Freire, a ação de problematizar como parte do processo de

aprendizagem enfatiza o sujeito práxico, uma vez que a ação de problematizar parte de sua

realidade, incide sobre ela e transforma, ao mesmo tempo, a realidade e o próprio sujeito da

ação, que passa a criar novas perguntas.

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Duas premissas fazem a lâmina de corte e a lente de acuidade para escolher, dentre os

autores que adotam a perspectiva da problematização, aqueles que trazem para dentro de sua

produção: i) a democracia como valor nos processos de ensino-aprendizagem; ii) a ação política

engendrada no processo de ensinar-aprender.

As reflexões de John Dewey (1979) e Paulo Freire (2000) oferecem elementos potentes

para ancorar a pedagogia da problematização no projeto político da Educação Permanente no

SUAS26. Pela ressonância que as afirmações do pedagogo americano têm na obra de Freire e

deste na literatura latino-americana a respeito da educação permanente na saúde (Davini, 1995)

vale expor com mais vagar o meticuloso esforço de Muraro (2013), que investigou com maior

profundidade os ecos do pensamento de Dewey na produção freiriana. Para tanto, utilizou as

concepções de democracia e educação em ambos os autores como chave de sua análise27.

Enfatizo que esse diálogo criativo demonstra a abertura de Freire a diferentes leituras

de mundo e a recusa em fundamentar seu pensamento em uma referência teórica exclusiva, a

despeito das tentativas de classificá-lo sob os mais diversos matizes. Em diversas conferências

e entrevistas, Freire expressou o rigor de sua postura ética ao dizer que seu pensamento não está

enquadrado a uma única e exclusiva referência teórica, tanto quanto manifestou sua recusa em

ser tratado como “ícone da educação progressista” ou ser capturado em discursos que congelam

suas análises, extraindo o contexto em que foram produzidas. Antes disso, Freire correu o risco

e assumiu a responsabilidade de defender uma educação dialógica, problematizadora, crítica e

democrática em defesa da luta política da classe trabalhadora.

Ao retomar a obra Democracia e Educação (DEWEY, 1979), que influenciou

notadamente as reflexões de Freire, Muraro assim sintetiza:

Dewey mostrou com clareza que a vida democrática depende de uma educação que

desenvolva o hábito do pensamento reflexivo sobre os problemas da experiência. O

pensar reflexivo é, para Dewey, condição de possibilidade da vida democrática.

[...] O autor faz uma discussão sobre a primeira etapa do processo reflexivo, que é a

localização do ato de pensar na experiência, inicialmente indeterminada (confusa e

duvidosa) e a segunda que é a decisão de querer interpretar os dados da situação para

definir o problema, tendo-se uma situação problemática. Para superar, o método de

26 Posteriormente, como se verá no desenvolvimento da análise de situações concretas nos capítulos que seguem,

outros autores passam a compor o mapa de referências, sobretudo aqueles que trazem o binômio saber-poder como

analisador das práticas educativas, a exemplo de Castro (2006), Fonseca (2008), Foucault (2014), Gallo (2012) e

Motta (2010). 27 As reflexões de Dewey traduzidas no Brasil por Anísio Teixeira, a partir dos anos 1930, ecoaram profundamente

entre educadores e cientistas sociais da época, sobretudo para o grupo que buscava afinar as concepções de

educação e da democracia como modo de vida democrática e educação deweyanas com a gravidade das condições

históricas, sociais e educacionais do Brasil. O livro Democracia e Educação (1979) é, seguramente, uma marca

no pensamento dos educadores brasileiros e mais intensamente em Paulo Freire. O movimento escolanovista é

herdeiro dessas reflexões, por reconhecer em Dewey o precursor de uma filosofia debruçada na organização

democrática da sociedade a requerer novos modos de produzir conhecimento no campo das ciências do homem e

da sociedade.

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tentativa e erro e tornar o ato de pensar numa experiência autenticamente reflexiva

são necessários dois movimentos nesta etapa: examinar os dados oriundos da

observação atenta da situação que origina o ato de pensar para retirar dela os dados

relevantes e, por outro lado, buscar as informações, conhecimentos, conteúdos

acumulados em experiências anteriores do sujeito ou da cultura. Esses dois

movimentos articulados permitem localizar e definir a situação e o problema. Na etapa

seguinte, a reflexão continua com a elaboração de hipóteses e suas consequências

como soluções possíveis para o problema. A conclusão do processo reflexivo consiste

na elaboração de um plano de ação para pôr à prova a hipótese. (MURARO, 2013, p.

817-818)

O traçado feito por Dewey, conectando pensamento reflexivo e democracia como modo

de vida marcou fortemente Paulo Freire. Sobretudo porque a problematização proposta pelo

educador americano origina-se na experiência e a ela retorna mais alargada, pois foi fertilizada

por novas conexões, que tornam estranho o que era familiar:

É infinito esse processo em espiral: matéria desconhecida a transformar-se, pelo

pensamento, em possessão familiar; possessão familiar a instituir-se em recursos para

julgar e assimilar outra matéria desconhecida. (DEWEY, 1979, p.285-286 apud

MURARO, 2013, p. 818)

Em síntese, Dewey concebe a educação como uma experiência reflexiva contínua,

motivada sempre por perguntas. Entendo que esta concepção adensa o qualificativo

“permanente” atribuído aos processos de educação em serviço no âmbito do SUAS, pois extrai

desse adjetivo a acepção de mera repetição e continuidade:

Educação é uma reconstrução ou reorganização da experiência que esclarece e

aumenta o sentido desta, e também, a nossa aptidão para dirigir o curso das

experiências subsequentes. (DEWEY, 1979a, p.83. apud MURARO, 2013, p. 819)

Paulo Freire, em sua obra Pedagogia da Autonomia (2000), faz uma transposição do

pensamento reflexivo de Dewey, ao definir o processo de construção de conhecimento como

um ciclo gnosiológico. Para o educador brasileiro esse ciclo se faz em dois momentos: o que se

ensina e o que se aprende, o conhecimento existente e aquele em que se trabalha a produção do

conhecimento ainda não existente. Decorre desse entendimento a definição de Paulo Freire de

educação: ela é uma situação gnosiológica que entende que aquele que aprende é um ser de

práxis.

A crítica vinda de Dewey a respeito da associação da educação como verbalismo ou

informação, nociva à vida democrática porque gera servidão mental, é contextualizada por

Freire na sociedade brasileira, excludente e profundamente desigual28. Ao trazer para dentro de

28 O termo “educação bancária”, cunhado por Freire em Pedagogia do Oprimido é expressão do mesmo

entendimento, transportado às práticas que ele observou na educação brasileira e dos países em que esteve exilado.

"Na concepção bancária (burguesa), o educador é o que sabe e os educandos, os que não sabem; o educador é o

que pensa e os educandos, os pensados; o educador é o que diz a palavra e os educandos, os que escutam

docilmente; o educador é o que opta e prescreve sua opção e os educandos, os que seguem a prescrição; o

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sua análise a relação entre educador e educando como parte inerente à construção da

problematização, Freire dá um passo fundamental para abordar a dimensão política das escolhas

que o educador faz em seu cotidiano. Sem condescendência ele afirma:

Ninguém, na verdade, problematiza algo a alguém e permanece, ao mesmo tempo,

como mero expectador da problematização. A problematização não é, sublinhemo-

lo uma vez mais, um entretenimento intelectualista, alienado e alienante, uma

fuga da ação; um modo de disfarçar a negação do real. (FREIRE, 1980, p.82. Grifo

meu)

Em sua acepção de educação problematizadora, cabível tanto nos processos de

alfabetização, quanto em processos de extensão universitária e tantos outros processos

educativos que se querem democráticos:

O educador já não é mais o que apenas educa, mas o que enquanto educa, é educado,

em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se

tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os argumentos de

autoridade já não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita

de estar sendo com as liberdades e não contra elas. (FREIRE, 1998, p. 68)

Freire também fez uma leitura com muita precisão do momento em que vivia, no qual

muitos intelectuais de esquerda mudaram-se para as favelas para serem “iguais” à classe

operária. Com a mesma lucidez, desfaz esse equívoco político, também presente em práticas

educativas que, em nome da autodeclarada posição progressista, almeja tornar o outro igual a

si mesmo, negando-lhe a alteridade. Para Paulo Freire, a democracia não surge de uma prática

autoritária. Assim posicionou-se em Pedagogia da Esperança:

O diálogo entre professoras ou professores e alunos ou alunas não os torna iguais, mas

marca a posição democrática entre eles ou elas. Os professores não são iguais aos

alunos por n razões, entre elas porque a diferença entre eles os faz ser como estão

sendo. Se fossem iguais, um se converteria no outro. O diálogo tem significação

precisamente porque os sujeitos dialógicos não apenas conservam a sua identidade,

mas a defendem e mesmo crescem um com o outro. O diálogo, por isso mesmo, não

nivela, não reduz um ao outro. Nem é favor que um faz ao outro. Nem é tática

manhosa, envolvente, que usa para confundir o outro. Implica ao contrário, um

respeito fundamental dos sujeitos nele engajados que o autoritarismo rompe ou não

permite que se constitua. Assim também a licenciosidade, de forma diferente, mas

igualmente prejudicial (FREIRE, 2011, p. 162-163, grifos do autor).

Entendo que essa posição política de Freire demarca a diferença entre educadores e

educandos e, ao mesmo tempo, combate a desigualdade entre eles é uma poderosa arma de

educador escolhe o conteúdo programático e os educandos jamais são ouvidos nessa escolha e se acomodam a

ela; o educador identifica a autoridade funcional, que lhe compete, com a autoridade do saber, que se antagoniza

com a liberdade dos educandos, pois os educandos devem se adaptar às determinações do educador; e, finalmente,

o educador é o sujeito do processo, enquanto os educandos são meros objetos.”

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combate às formas de subalternidade produzidas e reproduzidas nos processos educativos e no

cotidiano do trabalho das equipes do SUAS.

Ao reavivar essa tomada de posição de Paulo Freire, reconheço muitos dos limites

colocados hoje à realização do projeto de Educação Permanente no SUAS. Há uma concepção

de educação muito arraigada em seus atores estratégicos (equipes de governos estaduais, federal

e instituições de ensino superior) que propõem e conduzem processos educativos numa

perspectiva declarada de “nivelamento”; ou criando uma sinonímia entre projeto político das

categorias profissionais, como assistentes sociais e psicólogos, como se fossem os parâmetros,

por excelência, para demarcar a identidade e o projeto institucional da política pública de

Assistência Social. Ambas as perspectivas, sem dúvida, são modos de exercício do poder que

pretendem dissolver alteridades, que forja uma igualdade ilusória e, ao mesmo tempo,

reprodutora de desigualdades.

Analisei essa tendência quando do estudo da NOB-RH/SUAS (2006) no mestrado e

entendo oportuno retomar o argumento, pois um dos efeitos do ainda titubeante pacto em torno

das responsabilidades específicas da Assistência Social no conjunto das políticas sociais é o

pouco adensamento das categorias públicas –e, portanto, não coorporativas - como orientadoras

das decisões e práticas de seus trabalhadores e gestores.

No processo de institucionalização do SUAS, a direção de profissionalização indica o

necessário trânsito do paradigma tradicional da tutela e o paradigma moderno dos direitos, o

que afeta as referências de julgamento em torno do senso de justiça e de responsabilidade dos

agentes públicos. Contudo, como analisei a partir do pacto estabelecido na NOB-RH/SUAS

(2006), os princípios éticos nela contidos reproduzem, em grande medida, os códigos de ética

das profissões que compõem as equipes de referência (assistentes sociais, psicólogos e

advogados). Com isso, não estabelecem os nexos, a meu ver necessários, entre os parâmetros

éticos desses trabalhadores- agentes públicos com os princípios que orientam a ética pública, a

saber: legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência.

A fragilidade desses nexos emerge quando os trabalhadores e gestores são convocados

a construir protocolos de atenção aos usuários e, por vezes, entendem que isso fere a autonomia

dos profissionais. Ao expor essa tensão (FERREIRA, 2010), atualizei e contextualizei uma

questão clássica do pensamento social e político: é possível conciliar o poder político e o

exercício da liberdade? Com base na definição de poder de Foucault, entendo que a questão do

poder é, sobretudo, uma questão de estratégia de criação ou de resistência. Desse modo,

formulei as seguintes questões:

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Como discutir protocolos e procedimentos de trabalho “desde dentro”, ou seja, como

agente público, cuja autonomia é sempre relativa em face dos princípios

constitucionais que o orientam? Seria possível (e desejável) debater e construir

dispositivos que fomentem a criatividade e a inovação como algo “exterior” aos

órgãos gestores das políticas públicas, tal como recomendam os Parâmetros para a

atuação dos Assistentes Sociais na política de Assistência Social (CFESS, 2009)?

Como a capacidade criativa dos profissionais pode ser fonte para a própria produção

do conhecimento e dispositivos de gestão? (FERREIRA, 2010, pp.138-139)

Ao buscar respostas a essas questões formuladas na dissertação em debates e foros

coletivos do SUAS percebo que neles têm sido mais ocupados por polêmicas e menos por

efetivas problematizações. Daí uma última diferenciação é necessária: a pedagogia da

problematização é o avesso da polêmica, recurso muito utilizado quando posições políticas

opostas se confrontam.

Recupero a definição de Foucault sobre a polêmica e a esterilidade dela para o propósito

de ampliar entendimentos, mudar práticas como resultado de um diálogo entre pontos de vista

diferentes. Ao ser indagado por Paul Rabinow - Por que você não se envolve em polêmicas?

Foucault responde:

Eu gosto de discussões e quando me fazem perguntas eu procuro respondê-las. É

verdade que eu não gosto de me envolver em polêmicas. [...] Eu insisto nesta diferença

como uma coisa essencial para mim. Uma moralidade está em questão, a que se

preocupa com a busca da verdade e com a relação com o outro.

No jogo sério de perguntas e respostas, no trabalho de esclarecimento recíproco, os

direitos de cada um são, em certo sentido, imanentes na discussão. Eles dependem

somente da situação de diálogo. A pessoa que está fazendo as perguntas está

meramente exercendo o direito que lhe foi dado: de permanecer não convencido, de

perceber as contradições, de requerer mais informação, de ressaltar proposições

diferentes, de apontar argumentações (elaborações) incorretas, etc. Já a pessoa que

está respondendo às questões, também exerce um direito que não vai além da própria

discussão. Pela lógica de seu próprio discurso, ele está atrelado ao que ele tenha dito

anteriormente e, ao aceitar o diálogo, ele está atrelado ao questionamento do outro.

Perguntas e respostas dependem de um jogo – um jogo que é ao mesmo tempo

prazeroso e difícil. E no qual cada uma das duas partes aceita a dor de somente usar o

direito dado a ele pelo outro e pela forma de diálogo aceita por ambos.

O polemista, por outro lado, age resguardado por privilégios que ele possui a priori e

nunca aceita questionamentos. Em princípio, ele possui direitos que o autorizam a

declarar guerra e fazer da batalha somente um procedimento. A pessoa que ele

confronta não é um parceiro em busca da verdade, mas sim um adversário, um inimigo

que está errado, que está ‘armado’ e cuja própria existência se constitui uma ameaça.

Então, para ele, o jogo consiste em não reconhecer esta pessoa como um sujeito com

direito de falar, mas sim negando ele como um interlocutor de qualquer diálogo

possível. E o seu objetivo final não é chegar o mais próximo possível de uma difícil

verdade, mas sim de alcançar o triunfo da única causa que ele declaradamente apoiou

desde o início. O polemista se apoia em uma legitimidade que a seu adversário é

negada por definição. (FOUCAULT, 1998, p.1. Tradução livre. Grifos meus)

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Procedimentos de pesquisa

Ao escolher o método qualitativo de pesquisa para acessar os conteúdos relevantes para

a elaboração desta tese, entro em contato com narrativas de, aproximadamente, 50 pessoas,

entre trabalhadores, gestores e pesquisadores da área. Essas narrativas estão contextualizadas

no tempo-espaço de dez anos de implantação do SUAS e também circunscritas a três diferentes

estratégias coletivas criadas para sua produção:

a integralidade da transcrição do debate havido no Encontro da Região Sudeste

sobre Trabalho Social com Famílias, no qual estive presente na condição de relatora

contratada pela equipe responsável pelo registro. Coordenado pela SNAS/CNAS

(set/2014), o encontro foi organizado em seis oficinas, realizadas nos dias 04 e 05

de outubro, da qual participaram cerca de 140 trabalhadores do SUAS: gestores de

municípios de diferentes portes populacionais, gestores estaduais dos quatro

estados da região sudeste e gestores federais, das diretorias de Proteção Social

Básica e Especial e do Diretoria de Vigilância; trabalhadores de serviços

sociaioassistenciais em âmbito municipal das proteções sociais básica e especial e

também das equipes de gestão na esfera municipal. Especificamente quanto ao

Seminário Regional, pode-se dizer que os participantes estavam entre seus pares.

Frequentemente narravam suas experiências e expunham suas dúvidas na

expectativa de compreensão e cumplicidade dos demais. A oficina foi também um

espaço de reconhecimento dos trabalhadores entre si e, por vezes, um momento para

dirigir diretamente à equipe da SNAS problemas cotidianos a serem solucionados.

Considerando que as tensões delimitam situações problemáticas específicas, elas

são um corte que delimitei de uma série de pontos presentes nas narrativas de

diferentes participantes. Esses cortes e pontos ofereceram a entrada que me permitiu

colocar em movimento um modo de pensar e construir argumentos nos quais

convergem minha experiência e posicionamento ético, o conhecimento das

normativas macropoliticas que delimitam esse campo no processo de

institucionalização do SUAS e o adensamento teórico e metodológico conquistado

ao longo da minha trajetória como pesquisadora.

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narrativas de trabalhadores participantes de um grupo de estudos sobre o trabalho

social no SUAS, constituído por trabalhadores de municípios e da Divisão Regional

de Assistência Social de Franca – o GECATS, por meio da estratégia de grupo

focal. O grupo foi realizado com 11 trabalhadores (7 de municípios e 4 do estado),

em julho de 2014. Segui referências pesquisadas sobre grupo focal, de modo que

adotei um roteiro com questões-chave e, dentro delas, havia alguns temas para

aprofundamento. Na condição de mediadora do grupo, busquei explorar cada tema,

analisando o momento oportuno para introdução de um novo tema, fomentando a

manifestação de cada participante do grupo.

narrativas produzidas por trabalhadores e gestores em duas entrevistas coletivas –

a primeira com roteiro semi estruturado, a segunda com trechos da transcrição

reapresentados para os participantes em continuidade ao diálogo - realizadas com

os participantes do Grupo de Trabalho Técnico (GTT) do município de Atibaia em

outubro de 2014, das quais participaram 17 pessoas.

Esses diferentes diálogos, geraram um vasto e diversificado material empírico.

Cartografar essas narrativas permitiu identificar de que modo a concepção de proteção social

no SUAS gera demandas de educação permanente no atual momento de implementação do

sistema na região Sudeste. Pela diversidade da composição dos participantes das oficinas, das

entrevistas e do grupo focal foi possível manter como foco o trabalho social (atenção direta à

população), uma vez resguardada a conexão com as funções de gestão (criação e manejo dos

meios necessários à atenção). Ou seja, acessar reflexões presentes no campo do trabalho social,

seja do ponto de vista da gestão, seja da atenção direta, preservando a totalidade do objeto

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Estrutura da tese

A mobilização para conhecer vem de certos incômodos que a ação como protagonista

pode gerar como acontecimento, mobilizando as várias dimensões do sujeito de modo

que interajam para conduzir a um saber militante, que lhe permite compreender "mais"

sobre a situação e a ação, para continuar agindo. (FEUERWERKER, 2014, p. 30)

Defendo que a construção da tese pode também reafirmar a possibilidade de fazer um

juízo sobre a relação entre a construção do objeto do conhecimento e o sujeito que o constroi,

ou seja, simultaneamente o campo de afirmação de uma ética e de uma responsabilidade

coletiva no ato mesmo de pesquisar.

Segundo o referencial teórico e metodológico aqui adotado, a condição de pesquisadora

não atribui exclusivamente ao intelectual a capacidade de análise. Todos os sujeitos que estão

produzindo e reproduzindo o SUAS têm essa capacidade, tal como o material empírico

sistematizado demonstra. Sustento essa afirmação na companhia de outros pesquisadores que

defendem que a ciência pode ser avaliada não só pelo valor cognitivo (epistêmico) dos seus

produtos teóricos, mas também pela sua contribuição para a justiça social e para o bem-estar

humano, ou seja, pelos valores sociais que sustenta (LACEY, 2004).

Como participante desse processo de institucionalização, exercendo funções de gestão,

atuando como educadora em capacitações e docente dos trabalhadores do SUAS em nível de

pós graduação julgo fazer parte dessa dinâmica.

Dessa compreensão decorre a escolha de conceitos forjados pela análise institucional,

sobretudo pela definição de instituição, que é constituída por três momentos dinâmicos e

dialéticos. O primeiro, é o da universalidade, constituído pela ideologia, pelos aspectos formais,

pelo sistema de normas e valores (o instituído). representando assim, o instituído. O segundo,

momento é o da particularidade, entendido como o conjunto de fatos e situações que ocorrem,

constantemente, nas instituições: decisões sociais que negam e entram em conflito constante

com a universalidade (o instituinte). A singularidade é o terceiro momento, do movimento

dialético entre o instituído e o instituinte, ou seja, é o momento concreto da instituição,

denominado institucionalização.

Também na análise institucional, o analista não escapa da tomada de posição. Não lhe

resta exterioridade. Se, tal como afirma Lourau, “quando surge uma crise, pode-se dizer que

estão reunidas as condições para uma análise institucional”. Ele próprio conclui:

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A análise não é o oposto da ação. A ação é a análise. [...] Digamos que a ação é o

analisador, inclusive da análise instituída como atividade do especialista. (LOURAU,

1974, p. 123. Grifo do autor).

Não deixa de ser verdade, porém, que somente a intervenção em uma situação permite

a verdadeira socioanálise. A análise do papel pode contribuir com materiais, favorecer

o enfoque ativo da situação, ajudar a elucidá-la teoricamente, sugerir modos de

avaliação, critérios de validade. Tem a desvantagem de colocar o sociólogo, o

psicólogo, o economista, o teórico político na situação ao mesmo tempo confortável

e exilada do “sábio” ou do “perito”.

Por conseguinte, não separaremos a análise da intervenção, a fim de bem caracterizar

que o sistema de referência da analise institucional é estreitamente determinado pela

presença física dos analistas enquanto atores sociais em uma situação social, e a

presença material de todo contexto institucional. (LOURAU, 1996, p.266-267)

O conceito de implicação (LOURAU, 1996), sob o qual desenvolvi a análise do material

empírico, sejam documentais ou orais, está baseado na análise institucional como um método

de intervenção em situação que consiste em analisar as relações que as múltiplas partes no

jogo social mantêm com o sistema manifesto e oculto das instituições. Uma das originalidades

desse método está no fato de o analista não mais se situar no exterior dos grupos, coletividades

ou organizações que lhe demandam a intervenção, mas como alguém implicado na rede de

instituições que lhe dá a palavra.

Nesta pesquisa, em particular, a disputa que se põe luz é a permanência de modos

instituídos (clientelistas, autoritários, subalternizadores de gestão e intervenção profissional)

em tensão com o surgimento de modos democráticos de gerir o trabalho e, por conseguinte, o

acesso público por parte dos cidadãos (instituinte). A política de assistência social está em

processo de institucionalização.

Ainda com referência às formulações de Lacey (2004), em diálogo com Boaventura de

Sousa Santos, dois componentes são necessários para uma transição da ciência hegemônica

(aqueles que elegem apenas as estratégias materialistas) para a ciência contra-hegemônica

(aquelas baseadas em múltiplas estratégias):

A gradual dissolução interna das estratégias materialistas, ou seja, aquelas que

alimentam exclusivamente os valores do controle sobre a natureza e

o reconhecimento da multiplicidade de formas de conhecimento e de aquisições

deste, refletem ,a diversidade cultural e as necessidades e interesses de

movimentos de emancipação.

Estes dois pontos são fundamentais para a reflexão que proponho aqui. Para sairmos do

entendimento superficial da necessidade de qualificação e capacitação dos profissionais como

forma de adequação às novas demandas do SUAS, é preciso enfrentar dois pontos centrais. O

primeiro deles, não pautar as capacitações exclusivamente pelo viés da eficiência, eficácia,

atributos que dialogam com a perspectiva do controle, seja do próprio profissional, seja das

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tecnologias que geram suporte ao desempenho de suas funções. Ao mesmo tempo, utilizar

estratégias de capacitação e formação capazes de reconhecer a diversidade dos modos de

produzir conhecimento, sem impor o modo acadêmico/ científico que, embora legítimo, não é

o único válido.

Os processos de educação permanente necessariamente têm que dialogar com a

multiplicidade das formas de conhecer, e apresentar o estatuto legitimo e diferenciado dos

saberes científicos e dos saberes da experiência.

Segundo o referencial teórico e metodológico aqui adotado, a condição de pesquisador

não atribui exclusivamente ao intelectual a capacidade de análise. Todos os sujeitos que estão

a produzir e reproduzir o SUAS têm essa capacidade, tal como o material empírico

sistematizado demonstra.

O diferencial do pesquisador (analista) é encontrar o analisador que se antepõe a ele

próprio, ao propor-se a tarefa de analisar uma dada instituição.

O intelectual não é o analisador e sim o analista, com possibilidade de tomar

consciência dos efeitos dos analisadores que desencadeiam sua intervenção. Não tem

apenas que reconhecer e legitimar, ou mesmo exaltar, a existência dos analisadores;

deve compreender que somente os analisadores o constituem como analista.

(LOURAU,1973, p. 80)

[...] Quando dizemos que o analisador deve substituir o analista – de qualquer modo

é sempre o analisador que dirige a análise - queremos indicar, como regra

fundamental, que o analista não deve procurar subtrair-se dos efeitos do dispositivo

de intervenção. [...] O importante para o investigador não é, essencialmente, o objeto

que “ele mesmo se dá”, mas sim tudo o que lhe é dado por sua posição nas relações

sociais, na rede institucional. (LOURAU, p. 84)

Para Lourau (1996), a construção da situação analítica só é possível quando se formula

uma hipótese, que, em situação, requer decifrar as relações que os indivíduos e grupos mantêm

com as instituições e pressupõe sempre um não-saber dos atores sobre o que os vincula à

organização.

A situação analítica também se constrói por meio dos instrumentos para analisá-la, que

são um feixe de dez conceitos articulados num sistema da referência da análise institucional:

segmentaridade, transversalidade, distância institucional, distância prática, implicação

institucional, implicação prática, implicação sintagmática, implicação paradigmática,

implicação simbólica, transferência institucional. Nas situações concretas que se apresentam

pela empiria a esse estudo recorro a algumas ferramentas da socioanálise, principalmente a

segmentaridade, a transversalidade, a implicação institucional e a transferência institucional.

Essas ferramentas foram assim descrita por Lourau (1996):

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Sobre a segmentaridade:

Os indivíduos justapostos não constituem um grupamento, pois o que dá unidade à

formação, o que dá forma ao grupamento é a ação reciproca e frequentemente oculta

de uma multidão de grupos fragmentários no interior do grupamento. Os indivíduos

não decidem abstratamente viver ou trabalhar juntos, mas aquilo a que pertencem e as

referências a numerosos grupos agem de tal maneira, que podem se constituir novos

grupamentos, que se reúnem assim às relações e referências já existentes, embora

negando-as em graus diversos, porque as participações e referências anteriores

admitem em geral oposições, critérios exclusivos, os quais contudo são obrigados a

se fundirem na multidão das diferenças. Esse caráter singular dos grupamentos que a

intervenção socianalítica encontra toma o nome de segmentaridade. (LOURAU,

p.268)

Sobre a transversalidade:

A transversalidade pode, portanto, definir-se como fundamento da ação instituinte dos

grupamentos, na medida em que toda a ação coletiva exige uma perspectiva dialética

da autonomia do grupo e dos limites objetivos dessa autonomia. A transversalidade

reside no saber e no não-saber do grupamento a respeito de seu polissegmentaridade.

É a condição indispensável para passar do grupo-objeto ao grupo-sujeito. (LOURAU,

p. 270)

Sobre a distância prática:

Podemos falar de distância prática para designar a forma do não-saber que se refere

ao papel do substrato material de todas as instituições e da organização social.

[...] O momento da singularidade do conceito de instituição tem não somente por

conteúdo a organização no sentido de sistema de decisão e de poder, mas também a

organização material, a componente tecnológica e o componente físico. (LOURAU,

p. 271)

Implicação institucional:

[...] designaremos pelo termo implicação institucional o conjunto das relações que

existem, conscientemente ou não, entre o ator e o sistema institucional. A

segmentaridade e a transversalidade atuam de maneira a especificar e modifica as

implicações de cada um, ao passo que a ideologia se esforça por unificá-los.

(LOURAU, p.273)

Transferência institucional, "Uma nova concepção da análise, como intervenção

institucional, e do analista como ator social que entra no meio de uma situação social"

(LOURAU, p. 275).

O entrecruzamento entre o ato de implicar-se e de explicar contribuem para que sejam

expostas as premissas da problematização, base do método educativo aqui proposto. No

entanto, problematizar requer reconhecer o ponto de vista a partir do qual a situação problema

é coletivamente construída. Dessa feita, o ponto de vista não é um lugar fixo ou pré-fixado que

determina um certo “topos”. Distinto disso, o ponto de vista de quem analisa uma situação

problema é precisamente o encontro com uma força que obriga e convoca o pensamento.

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O ponto de vista é também produzido sob o efeito dos elementos que estão constituindo

a própria situação problemática. Ao entrar em contato com pontos de vista diferentes, abre-se

a possibilidade de um novo horizonte de sentido, não capturado pela cristalização da

experiência ou pela explicação de teorias. Nesse jogo, o analista é ativo e participa da

construção da problemática, que se torna, para ele próprio, mais complexa porque informada

por outros pontos de vista que suscitam perguntas, questionamentos que poderiam ter sido,

incialmente, desvalorizados.

A construção de um objeto supõe uma posição de ignorância/conhecimento que se dá,

no caso da sociedade capitalista, por meio da intrínseca relação entre os meios de

produção e reprodução social, mutáveis e instáveis, que convocam a demanda de

conhecimento acerca das transformações que ocorrem nessas relações sociais. É na

prática geralmente que se conhece um ou muitos fragmentos desse complexo

mecanismo que é a sociedade. (LAPASSADE e LOURAU, 1972, p. 3)

Considerando o objetivo geral desse estudo, busco explicitar os nexos entre escalas

macro e micropolíticas, associando-os a vetores de força que potencializam e fragilizam as

diretrizes e princípios do SUAS e de que maneira a pedagogia da problematização, como

método da educação permanente, pode contribuir para produzir sujeitos capazes de perceber-se

como parte da construção do SUAS, com autonomia e corresponsabilidade.

A pertinência do referencial da analise institucional encontra aqui um nexo com o par

saber-poder construído por Foucault ao se debruçar sobre a relação do sujeito com a verdade e

desta com o poder. Em sua obra Microfísica do Poder (1979), Foucault retoma as reflexões que

fez em História da Loucura para reposicionar sua definição de poder.

Ora, me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do

que existe justamente de produtor no poder. Quando se define os efeitos do poder pela

repressão tem-se uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-

se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio

ser essa uma noção negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente todo

mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não

ser dizer não, você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se

mantenha e seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz

não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz

discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo corpo

social muito mais do que uma instância negativa que tem poder função reprimir.

(FOUCAULT, 1979, pp.7-8)

Nesse estudo o analisador da instituição em análise, e que se antepôs ao próprio analista,

é o binômio saber- poder. Por isso, quanto mais os processos de educação em serviço acolherem

as tensões e conflitos vocalizados por diferentes sujeitos (usuários, conselheiros, trabalhadores,

gestores e formadores), tanto mais os trabalhadores do SUAS serão capazes de transpor

conhecimentos e posturas democráticas em relação aos usuários da Assistência Social.

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49

Esse modo busca adensar e fortalecer as diretrizes de participação e descentralização da

política de Assistência Social inscritos no texto constitucional.

O desafio é fazer passar na própria escrita e na construção da tese aquilo que é o

pressuposto do trabalho, que é não dissociar a política de educação permanente dos

impasses cotidianos. Os “pés de barro” precisam ser trazidos para uma cena

protagônica, com a delicadeza de mostrar os impasses que o campo empírico traz e

como você [a pesquisadora e educadora] coloca-se junto, ao lado, desses impasses

históricos. (Maria Cristina Vicentim)

A sugestão de “performatizar a escrita da tese” pressupõe uma inversão da escrita

clássica. Ela soou afinada a várias referências teóricas e metodológicas que sustentam os

argumentos aqui desenvolvidos, por isso, eu e a orientadora a acatamos de pronto, mesmo ao

saber do trabalho que demandaria tecer novamente o texto. Mas o que significa “performatizar

a escrita da tese?”

Os significados mais comuns remetem a atuar, desempenhar; em sentido etimológico:

alcançar, executar, concluir. Segui em busca de seus usos e, a princípio, percebi que se tratava

de um transporte para outra linguagem, uma vez que o termo performance é de uso corrente

nas artes. A performance artística remete a outros modos de perceber e fazer arte. Nas artes,

assim como na tese, performatizar exige desestabilizar modos de fazer. E esse deslocamento

fez todo sentido, pois associa a forma da escrita ao próprio conteúdo do texto. Explico-me.

Pedron (2013), em artigo a propósito da escrita performática, estabelece uma

composição de autores que posicionam essa escolha no campo das artes e que agora faço minhas

para esclarecer a estrutura da tese. Sua composição toca em categorias centrais desse estudo,

como o tempo, o espaço, a política, a posição ativa na relação entre o leitor e o texto. Destaco

algumas dessas características da performance artística que podem ser transportadas para esse

texto. Elas guardam proximidade com a própria pedagogia da problematização, como procuro

demonstrar na sequência e conteúdo dos capítulos: não linearidade do tempo, permeabilidade

entre espaços, potencial de experimentação, valorização do vivencial e, sobretudo, por uma

afirmação peculiar da ação política:

A arte se efetiva na realidade histórico-social e, ao mesmo tempo, constrói essa

realidade à medida que a transforma por meio da ação que propõe. A performance é,

assim, portadora de um forte caráter político pela sua capacidade de criar formas de

intervenção social e simbólica.

A performance está sempre aberta para o tempo presente e, portanto, aberta a

transformar e a sofrer transformação. (PEDRON, 2013, pp.158-159)

As docentes da banca de qualificação reconheceram que a motivação desse estudo

consiste em reunir armas para luta em torno de um certo modo de realizar os processos de

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educação em serviço29. Ao acolher essa proposta pelo vigor que ela traz a esse estudo, a parte

nuclear da tese percorre o caminho do próprio método que ela investiga, ou seja, a pedagogia

da problematização.

Busquei oferecer consequência à discussão, colocando em análise e, portanto, em

reflexão a minha própria experiência como educadora no SUAS30. Assim, esta tese já é em si

uma intervenção, uma possibilidade de dialogar de dentro da academia com autores e

interlocutores que concebem o lugar dessa instituição não como o espaço da transmissão do

conhecimento, mas da construção que está à disposição das práticas cotidianas, para mudá-las,

qualificá-las, fortalecê-las. A escolha ética e política dessa elaboração, se sustenta no

entendimento de que a relação entre conhecimento e trabalho é que sustenta a ética da mudança.

Cada capítulo constrói, na escala que as fontes selecionadas permitem alcançar, os nexos

relevantes para demonstrar a hipótese deste estudo.

Desse modo, o primeiro capítulo capta e dá visibilidade aos problemas cotidianos que

os trabalhadores estão vivendo no processo de institucionalização do Sistema Único de

Assistência Social (SUAS).

As narrativas dos participantes do Encontro regional sobre trabalho social com famílias

foram reconstituídas como cenas. Seguindo o método da análise institucional, para composição

das cenas mantive a tensão – ou relação antagonista – entre o instituinte e instituído. Com isso,

a narrativa do processo de institucionalização do SUAS se dá, precisamente, nesta tensão: por

vezes suas normas e regulações instituem um novo modo de funcionar (dimensão instituinte);

enquanto outras vezes reproduz modos já instituídos.

Neste capítulo ao expor minha prática profissional, criei um recurso textual para intervir

nessas cenas. Esse recurso me coloca em cena em duas personagens o educador e o

narrador/analista. O educador dialoga com as questões problemáticas trazidas pelos

participantes e oferece a eles referências para informar essa situação problema e eventualmente,

quando entende necessário e pertinente, aporta questões para desestabilizar o consenso do

29 Refiro-me aqui à profa.. Maria Regina Giffoni Marsiglia e a profa. Maria Cristina Vicentin, além da minha

orientadora profa. Aldaíza Sposati. 30 A experiência profissional como educadora em programas e projetos de capacitação de agentes públicos permitiu

que, ao longo de quinze anos de trabalho, eu pudesse a) formular e sistematizar questões de ordem teórica, política

e prática; b) propor caminhos e metodologias mais adequadas ao fortalecimento da participação e ampliação da

convivência das crianças e adolescentes que acessam os serviços socioeducativos municipais e c) compartilhar

conhecimentos com os profissionais acerca dos avanços, entraves e possibilidades para uma ação pública de

melhor qualidade para os cidadãos. Essa experiência deixou como marca a possibilidade de fazer dos espaços

educativos um exercício de igualdade em ato e não apenas uma retórica, posto que “A igualdade é um pressuposto

e não um objetivo, deve pôr-se antes e não depois, não como uma ilusão, mas como uma potência da qual é possível

verificar seus efeitos. E só nos restará, como ao maestro ignorante, comprovar o que se pode fazer com base nela”.

(BONDÍA, 2002)

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grupo. Desse modo, sua contribuição nunca é de fora e não é a única possível, legítima e válida

para solução da questão apresentada, os próprios participantes também aportam conhecimentos

e referências para equacionar os desafios com os quais se deparam.

O segundo capítulo aporta referências conceituais às situações problemáticas

construídas a partir da narrativa do cotidiano “encenado” no primeiro capítulo. O que nas cenas

nomeio como “dado” é aquilo que os narradores apresentam como “naturalizado”, algo do qual

a origem foi esquecida. Embora sejam produções históricas num campo de luta, fazem parecer

fixas e eternas.

As referências teóricas são trazidas neste capítulo para demonstrar que estão a serviço

da análise de situações concretas. A assunção desta concepção implica que o referencial teórico-

metodológico não seja tomado como algo a ser aplicado a um determinado contexto empírico.

Ele tece o próprio modo de construção das narrativas, é explicitado sempre que contribuir para

o entendimento ou explicitação das escolhas feitas. O exercício nesse método é deixar aberto o

diálogo para que se continue a construção com os sujeitos ativos, assim, não me sobreponho

para explicar o porquê das cenas vividas no SUAS, tampouco pretendo fechar a questão.

No método aqui o performatizado, o educador também não está obrigado a apresentar

todas as referências que o constituem e que são de seu conhecimento, ele põe à disposição do

grupo somente conhecimentos que podem informar o problema. A radicalidade ética que

informa esse modo de olhar o real, está justamente em reconhecer que as respostas não estão

somente em uma instituição ou em um personagem dentro da cena ou fora dela.

O referencial de leitura que sustenta essa construção não aparecerá necessariamente em

citações, pois só estará explicitado quando contribuir para a análise das situações reais, sabendo

que essa análise é sempre uma escolha parcial, no meu caso, orientada pelos autores alinhados

com a premissa democrática de que a assistência social é responsabilidade pública e estatal e

direito do cidadão.

O terceiro capítulo corresponde ao ponto de chegada da pedagogia da problematização,

sempre delimitado no tempo e no espaço. Ele consiste, fundamentalmente, na elaboração de

proposições, indicações de modos de fazer, pistas para pôr em prática soluções coletivas para

problemas concretos. A ênfase deste capítulo é dar visibilidade e analisar caminhos possíveis

já experimentados e vividos. Portanto, não se trata de um modelo ideal, ou de uma idealização,

mas do reconhecimento do alcance e dos limites de viver a pedagogia da problematização “na

carne”.

Para atender a essa direção, trouxe para a tese as experiências que de grupos que buscam,

por meio de estudos e diálogos coletivos, produzir respostas para as questões que enfrentam no

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cotidiano. Ambos têm uma relação particular com os centros de conhecimento, que se dá

principalmente por meio de uma atitude em que os demandam e convocam quando consideram

que podem trazer alguma resposta para as situações enfrentadas. Assim, não se trata de um

conhecimento que se legitima a priori e que explica o real, antes de que ele seja conhecido, mas

sim, referências que são usadas na medida em que úteis para a construção de práticas mais

informadas e orientadas. Desse modo, pude valorizar não somente as respostas que eu própria

acessei na minha trajetória de pesquisadora, educadora e consultora no SUAS, mas sim aquelas

também construídas pelos profissionais ao depararem com os desafios do real no processo de

institucionalização do SUAS.

Nas considerações finais, explicito ao leitor as afirmações éticas e políticas do método

performatizado. O objeto do estudo é retomado pela explicitação dos nexos entre educação e

trabalho no SUAS percebidos nesta pesquisa. E também agrega duas inserções analíticas por

meio da quais oferto possibilidades de diferenciar educação permanente e educação continuada,

bem como a problematização como ferramenta que contribui para a reflexão ética.

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1 COTIDIANO DO TRABALHO PROBLEMATIZADO: DISPARADOR DA

EDUCAÇÃO PERMANENTE

Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um

produto, por um véu acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o

sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto

se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido - nessa

textura - o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolve ela mesma nas

secreções construtivas de sua teia. (BARTHES, 2002, p.71)

A frase de Barthes diz muito da construção desta tese e, mais precisamente, deste

capítulo, que foi tecido e tramado duas vezes. Primeiro como ponto de chegada e neste formato

final, como ponto de partida. Na primeira estrutura da tese, as experiências cotidianas narradas

por trabalhadores do SUAS demonstrariam a força e a pertinência do uso da pedagogia da

problematização para produzir visibilidade às questões que se colocam para o trabalho na

Assistência Social31.

Na atual configuração, este capítulo explicita o esforço em fazer da própria trama deste

texto um exercício de exposição dos elementos que hoje marcam, de forma intensa, o trabalho

no SUAS pela voz de seus trabalhadores. Por isso, as narrativas do cotidiano são trazidas,

inicialmente, para expor a importância do conflito, do estranhamento e da incerteza como

condição sine qua non para construir a objetivação de situações com potencial de impulsionar

processos de educação permanente. Mais ainda, a presença e intensidade dessas questões

clamam por processos que as tornem explícitas e compartilhadas32.

O foco deste capítulo é apresentar o objeto de pesquisa – adensamento dos nexos entre

educação em serviço e trabalho institucional no SUAS – na face de seus atores “reais”, que

lutam em arenas diversas – nas gestões municipal, estadual e federal – por projetos nem sempre

convergentes. Oferecer visibilidade aos conflitos coletivos é, parafraseando John Dewey, o

primeiro passo para reconstruir e reorganizar a experiência, alargar seus sentidos e dirigir os

cursos subsequentes.

31 Nesta reflexão, ao trazer a “pedagogia da problematização” para o processo de educação em serviço na

Assistência Social não há qualquer ilação, vinculo ou “metamorfose” que aproxime a matriz teórica e o uso dessa

definição à formulação de “situação social problema” cunhada por Lucena Dantas no Serviço Social. A formulação

de Dantas encontrou espaço nos primeiros movimentos de reconceituação do Serviço Social (Araxá, 1967) e

Teresópolis (1970), sendo criticada por Netto (1991) por alinhar o projeto político do Serviço Social à

modernização conservadora hegemônica na ditadura militar, sobretudo por uma análise funcionalista que negava

as contradições sociais constitutivas das políticas sociais em sociedades capitalistas. 32 Por isso, o conteúdo deste primeiro capítulo guarda profunda relação com o último capítulo. A volta às narrativas

do cotidiano ao final desta tese demonstra experimentações ético-políticas nas quais coletivos de profissionais

estão produzindo respostas para suas inquietações.

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Construo uma narrativa a partir de experiências já em curso, “encarnadas” e que dão

acesso ao processo de institucionalização da política de Assistência Social, cujo modelo de

gestão por sistema único nacional, adotado desde 2005, inspira-se no Sistema Único de Saúde.

Tal como este último, enfrenta as dificuldades de construir uma política pública de

responsabilidade de entes federados autônomos que alcance, em extensão e diversidade, os mais

de cinco mil municípios brasileiros, considerando suas histórias, forças econômicas, políticas e

culturais, com o intuito de contribuir para a superação de desigualdades regionais.

A narrativa da institucionalização da política de Assistência Social como produção

histórica de sujeitos “concretos” tem um passado e um devir, que envolve e mobiliza diferentes

instituições. Uma questão que julgo relevante é o modo como estas instituições participam dessa

construção social e dos seus horizontes no SUAS. Evidentemente, a condição de pesquisadora

da Assistência Social em uma instituição de ensino e pesquisa me inclui nessa requisição, posto

que a delimitação da questão da pesquisa já pressupõe um determinado campo teórico e

metodológico, que, por sua vez, adota uma dada posição política e ética, conforme explicitei na

introdução deste estudo.

Busco, nessa perspectiva histórica, adotar a simultaneidade dos tempos: coexistência do

passado e do devir na experiência do tempo presente. Não pretendo narrar o processo de

institucionalização do SUAS como “avanço” ou “progresso”. Antes de tudo, trata-se de um

tempo presente no qual o que foi instituído está em tensão permanente com o seu contrário

(instituinte), no processo de institucionalização.

A intensa construção do SUAS, dos últimos dez anos, se realiza de forma capilarizada

em muitas instituições que lhe dão forma e, ainda que suas conexões sejam por vezes frágeis,

pertencem à mesma trama institucional. Há muitas construções técnicas e políticas em curso,

conflitos éticos pouco visíveis, perguntas em busca de respostas, ações represadas por medos,

inseguranças e arbitrariedades de diversas naturezas e outras ações ganhando forma e sentido.

Gestores municipais tencionam os critérios de cofinanciamento dos serviços nas Comissões

Intergestores Bipartite (CIB) e Tripartite (CIT) por meio de posicionamento político do seu

colegiado nacional e estadual de representação, CONGEMAS e COEGEMAS,

respectivamente. Trabalhadores de diferentes profissões reconhecidas pelo SUAS organizam-

se em Fóruns estaduais, regionais e nacional e são reconhecidos como atores políticos pelo

Conselho Nacional de Assistência Social, embora estes fóruns enfrentem dificuldades de

mobilização de trabalhadores de nível médio e fundamental de escolaridade. Entidades e

organizações de Assistência Social, Educação e Saúde debatem as regulações de

reconhecimento das modalidades de prestação de serviço e assessoramento em âmbito nacional,

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enquanto outras organizam-se em Fóruns municipais como interlocutoras da gestão municipal,

a exemplo do Fórum de Assistência Social de São Paulo. Instituições de Ensino Superior

confrontam-se e buscam negociar condições com o órgão gestor estadual de Assistência Social

para realizar cursos do programa federal Capacita-SUAS33, enquanto outras criam caminhos

próprios de participar do SUAS por meio de programas de extensão, ofertas de cursos de

aperfeiçoamento, pesquisas e assessorias.

Captar e analisar esse movimento amplo e complexo exige fazer escolhas e, a partir

delas, explorar, ao máximo, suas possibilidades e reconhecer seus limites. Por essa razão, a

escolha que ora apresento neste capítulo, parte do reconhecimento de que para estabelecer os

nexos entre educação em serviço e trabalho no SUAS antes de pretender explicá-los, é

fundamental e necessário estar atento à sua complexidade. Trata-se, portanto, da assunção de

um lugar e de um projeto político e ético de fortalecimento da direção democrática do SUAS.

Nesse sentido, há uma proximidade daqueles que tomaram as instituições como foco de análise,

tanto quanto de intervenção:

A complexidade do objeto implica não análise, mas projetos. Projetos de

transformação somente através dos quais é possível obter conhecimento. Estes

projetos (a invenção e os seus resultados cognitivos) devem considerar,

contemporaneamente, o universo das instituições e as particularidades singulares dos

indivíduos que chegam aos serviços. (ROTELLI, 1990, p.92)

1.1 Recorte de uma situação coletiva: Encontro Regional Sudeste sobre trabalho

social com famílias no SUAS

Para captar a dinâmica institucional da qual emergem as demandas de educação

permanente no SUAS, começo a partir de uma situação coletiva na qual essa trama pode ser

delimitada para análise. Assim, o debate havido no Encontro Regional sobre Trabalho social

com famílias - Sudeste é ponto de partida. Os conflitos narrados pelos participantes do Encontro

ressoam também nas experimentações em andamento no município de Atibaia e na região de

Franca analisadas no terceiro capítulo.

O Encontro Regional Sudeste sobre o trabalho social com famílias foi parte de um ciclo

nacional, coordenado pela Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) para debater e

aprofundar entendimentos sobre esse tema no SUAS. Teve início em fevereiro de 2014, em

33 Resolução CNAS n. 8/2012 – Programa CapacitaSUAS – Apoiar os Estados e o Distrito Federal na execução

dos Planos Estaduais de Capacitação do SUAS, visando ao aprimoramento da gestão e à progressiva qualificação

dos serviços e benefícios socioassistenciais. Meta 2013-2014: mais de 70 mil trabalhadores em todo o Brasil.

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seminário realizado em Brasília que gerou Encontros nas cinco regiões do país. Na etapa

regional o formato adotado foi de dois dias, com mesas temáticas nas quais docentes e

especialistas de cada região traziam reflexões e aportes para que, no período da tarde, os

participantes pudessem debatê-los e contextualizá-los em oficinas.

O objetivo da SNAS foi ouvir dos trabalhadores e gestores a respeito dos modos como

as orientações do SUAS materializam-se, de acordo com as especificidades regionais. Ao final

dessa etapa, foi realizado novo Encontro Nacional, em novembro de 2014, quando se discutiram

algumas questões vistas e debatidas em todo país. O conteúdo de cada encontro regional está

em processo de sistematização por uma consultora contratada que irá compor um painel

nacional do “estado da arte” e os desafios para o SUAS.

O Encontro Regional na região Sudeste foi realizado em São Paulo, nos dias 4 e 5 de

setembro de 2014. No primeiro dia, o tema em tela foi Princípios e Diretrizes da Política

Nacional de Assistência Social para o Trabalho Social com Famílias. As exposições na mesa

temática foram realizadas por Denise Colin, na época, Secretária Nacional de Assistência

Social, Lea Braga, Diretora do Departamento de Proteção Social Básica e Abigail Torres,

docente e pesquisadora da área, participante como debatedora.

A mesa temática foi seguida de oficinas nas quais cerca de 140 participantes 34

aprofundavam os temas a partir de questões elaboradas previamente. Nas oficinas, os próprios

participantes elegeram um coordenador e um relator, cujas funções previamente definidas pela

coordenação do Encontro, eram coordenar o debate, a partir de questões propostas, e elaborar

um registro para ser apresentado à plenária ao final do dia. A última hora da programação de

cada dia foi dedicada à apresentação destes relatos na plenária para todos os demais

participantes do Encontro.

No primeiro dia foram realizadas quatro oficinas dedicadas às seguintes as questões

prpostas pela SNAS: i) Quais limites, possibilidades e desafios temos encontrado para o

trabalho integrado com as famílias na Proteção Social Básica e na Proteção Social Especial? ii)

Sabemos o que os usuários querem e esperam desta política e do trabalho social? Como

construir referências metodológicas, que possibilitem um alinhamento conceitual e de práticas,

sem limitar as intervenções profissionais na realidade das famílias e dos territórios. Que

34 Os participantes do Encontro Sudeste, de acordo com lista de presença, eram gestores de municípios de

diferentes portes populacionais, gestores estaduais dos quatro estados da região sudeste e gestores federais, das

diretorias de Proteção Social Básica e Especial e da Diretoria de Vigilância; trabalhadores de serviços

socioassistenciais em âmbito municipal das proteções sociais básica e especial e, também; das equipes de gestão

na esfera municipal.

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resultados e impactos pretendemos alcançar? iii) Como coletivizar a demanda transformando

experiências individuais, em processos de Participação Social e mudança?

No segundo dia, o tema em pauta foi Trabalho Social com Famílias: Territorialização

e Intersetorialidade. Para expor os conteúdos, compuseram a mesa Luís Otávio Pires Farias,

Coordenador-Geral de Serviços de Vigilância Social da SNAS e Telma Maranho, Diretora do

Departamento de Proteção Social Especial. Dirce Koga, docente e pesquisadora desta temática

atuou como debatedora desta mesa35.

A mesa temática foi seguida de duas oficinas, em virtude do menor número de

participantes. A proposta de aprofundamento da temática consistiu nas seguintes perguntas: i)

Como avançar no papel da vigilância socioassistencial na apropriação das informações pelos

profissionais dos serviços e na construção da leitura socioeconômica e cultural das famílias e

dos territórios em conjunto com as famílias dos serviços socioassistenciais? ii) Qual

abrangência de nossas ações quando envolve os indivíduos e as famílias, a comunidade, o

território, a sociedade. Como contemplar a dimensão da comunidade e do território como

campo do trabalho social? iii) Quais ações a gestão deve desenvolver para garantir as

articulações e planejamentos intersetoriais dos territórios sem sobrecarregar as famílias com

encaminhamentos e atendimentos por diferentes equipes, diferentes instituições?

Participei no Encontro como prestadora de serviço de relatoria, responsável pela

sistematização do conteúdo do debate das oficinas para posterior composição com o conteúdo

dos demais Encontros Regionais. Todo o material transcrito das seis oficinas foi autorizado pela

SNAS a ser utilizado e as falas ora apresentadas foram extraídas desse documento interno,

contendo 356 páginas. Por não ter obtido consentimento direto dos participantes, o nome e a

cidade de origem dos profissionais utilizados nas cenas que seguem são fictícios para preservar

sua identidade.

Animado pela presença de aproximadamente 140 participantes, o Encontro criou uma

oportunidade rara de reunir no mesmo espaço gestores e trabalhadores dos municípios, estados

e do governo federal, ao lado de pesquisadores e docentes de instituições de ensino superior.

As narrativas produzidas por eles nas oficinas deram acesso a uma matéria rica e consistente

em qualidade e intensidade, que suscitou o interesse de contemplar neste estudo, da forma mais

extensiva possível, as questões desenvolvidas, apresentadas no processo de institucionalização

do SUAS, pela voz dos participantes.

35 Abigail Torres e Dirce Koga fazem parte de uma geração de pesquisadores do NEPSAS/PUC-SP, coordenado

pela profa. Dra. Aldaíza Sposati, que tem se dedicado tanto à produção de pesquisas, quanto a contribuições em

debates e consultas públicas no período de consolidação do SUAS.

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Ao sistematizar pela primeira vez essas narrativas, produzi uma espécie de

“estiramento”, acompanhando a extensão das falas dos participantes em paralelo à explicitação

do campo institucional construído pelo SUAS nos últimos dez anos. Constatei que esse campo

é vasto e a metáfora de que o Brasil é um país de extensão continental me pareceu fazer todo

um sentido. Trazer “o Brasil para dentro da região Sudeste” agregou complexidade a esse

campo, tendo em vista que as diretrizes nacionais de um sistema único ganham vida em

territórios plenos de história, memória, pessoas, modos de relação instituídos, tramas de poder,

dentre tantas outras características.

Metaforicamente, o processo de institucionalização do SUAS tem sido vivido ao longo

dos últimos dez anos como uma trama cada vez mais densa e complexa, seja pela profusão de

normativas, orientações técnicas etc., seja pela amplitude de suas inter-relações institucionais

com outros sistemas públicos, como SUS, SINASE, Sistema de Garantia de Direitos. Acredito

que a densidade das narrativas sistematizadas inicialmente seja efeito dessa trama em que

muitos fios são tecidos, linhas vão sendo amarradas, enquanto outras escapam abrindo os

espaços que lhe conferem maleabilidade.

Reconhecer essa trama complexa é explicitar que no tempo presente há múltiplas

camadas de histórias – passados e futuros – que mobilizam ação, afetos, pensamentos. E

também que a complexidade das questões que desdobram do reconhecimento dos direitos do

cidadão à Assistência Social requer de todos que dela participam um exercício cotidiano de

escolhas, sempre contingentes e históricas.

Como já dito na introdução desse estudo, a opção pelo método qualitativo dá acesso a

conteúdo que permite ao narrador expressar sua experiência e visão de mundo para o

interlocutor-pesquisador. Este, por sua vez, numa postura ativa, implica-se com o que ouve e

escolhe o modo como irá reconstruir essas narrativas como parte inerente da construção do

objeto de conhecimento a que se propôs.

Diante do conjunto de questões apresentadas pela coordenação do Encontro, os

participantes não responderam “à risca”. Tomaram o mote e fizeram escolhas do que dizer

dentro do propósito geral do Encontro e do reconhecimento de quem estava presente como

interlocutor. Também foram tocados por diversas sensações: de reconhecimento entre pares, de

encorajamento para narrar o próprio cotidiano, de impotência diante dos problemas vividos, de

cumplicidade política, de fragilidade diante dos poderes instituídos presentes, de ânimo para

continuar, de solidão por não se sentir ouvido e também de companhia quando isso aconteceu.

Parto da premissa, portanto, de que a conexão entre educação em serviço e trabalho

institucional não é imediata e tampouco evidente. Trata-se de uma construção política e, ao

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mesmo tempo, um problema metodológico, tal qual dito por Passos e Kastrup a respeito da

política de narratividade.

Toda produção de conhecimento, precisamos dizer de saída, se dá a partir de uma

tomada de posição que nos implica politicamente. [...] Em sentido ampliado, a política

é a forma de atividade humana que, ligada ao poder, coloca em relação sujeitos,

articula-os segundo regras ou normas não necessariamente jurídicas ou legais. Não

mais pensada exclusivamente a partir de um centro do poder (o Estado, uma classe),

a política se faz também em arranjos locais, por microrrelações, indicando esta

dimensão micropolítica do poder. Nesse sentido, podemos pensar a política da

narratividade como uma posição que tomamos quando, em relação ao mundo e

a si mesmo, definimos uma forma de expressão do que se passa, do que acontece.

Sendo assim, o conhecimento que exprimimos acerca de nós mesmos e do mundo

não é apenas um problema teórico, mas um problema político. (PASSOS e

KASTRUP, 2012. pp.150-151. Grifo meu.)

O desafio de reconstruir essas narrativas como situações problemáticas disparadoras dos

processos de educação permanente é trazer essa vida e esse “drama” para o texto; transpor o

conteúdo das falas dos participantes do Encontro para um estilo que mantenha em diálogo a

pluralidade de pontos de vista e de lugares institucionais.

A ideia da criação de cenas surgiu da necessidade de aperfeiçoar a comunicação com os

leitores, resguardando a relação entre a forma (cenas) e o conteúdo (material transcrito da fala

dos participantes do Encontro). A condição essencial para a construção de roteiros teatrais é a

presença de conflitos e ela estava posta naquelas centenas de páginas transcritas, visível na

riqueza do relato dos participantes do Encontro. De um lado, porque foram motivados pelas

perguntas de seus organizadores e, de outro, porque os conflitos foram multiplicados no debate

e na troca de experiências entre os participantes.

Para apresentar essas narrativas e preservar a integridade das falas, construo três cenas

teatrais. Utilizo esse recurso narrativo para dar visibilidade aos diversos conflitos cotidianos

narrados pelos participantes do Encontro. Afinal, uma das definições de teatro é “o lugar onde

se vê”. Mas a visibilidade dos conflitos no teatro é fruto de um trabalho “invisível”, que é a

criação do roteiro.

A construção do roteiro das cenas que seguem é inspirada em pistas de dois roteiristas

do teatro. De Marçal Aquino sigo a pista de que roteiro não é produto final, é uma espécie de

molde no qual se aplica uma resina, retira-se o produto, e o molde permanece lá. De Jean-

Claude Carrière, retive a segunda pista. Escrever um roteiro é muito mais do que escrever, é

escrever de outra maneira: com olhares e silêncios, com movimentos e imobilidades, com

conjuntos complexos de imagens e de sons que podem possuir mil relações entre si. Também

recorro às minhas próprias vivências como educadora, às experiências em produção executiva

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no teatro e, sobretudo, ao convívio e aprendizado com psicodramatistas com quem compartilhei

meu aprendizado profissional, Lucia Helena Nilson e Cida Davoli.

Três perguntas constituem o roteiro: O que se apresenta como natural e instituído para

os narradores? Quais conflitos essa “constatação” gera entre os próprios narradores? Quais as

saídas os próprios narradores produzem para esses conflitos?

A ambientação e o jogo dramático entre os atores seguem as pistas do teatro espontâneo

de Moyses Aguiar, no qual os atores protagonistas são acompanhados pelos membros da

plateia. Estes podem contribuir para a construção da história que está sendo contada. Portanto,

nessa abordagem:

[...] o que se requer dos atores que participam da encenação juntamente com o ator

protagônico é que façam suas respectivas complementações a partir de sua própria

experiência pessoal, tanto a histórica como a do momento. Supõe-se que, por meio

desse recurso, se consegue uma reconstituição analógica do conflito social subjacente,

sendo que a vivência de co-criação da cena tem em si um efeito transformador,

abrindo horizontes para soluções criativas e solidárias para as dificuldades de

convivência. (AGUIAR, 1998, p. 83)

A partir do roteiro, a definição da estrutura cênica obedeceu às seguintes etapas:

Mapeamento de todos os diálogos estabelecidos entre os participantes das seis

oficinas.

Identificação de narrativas que afirmam as situações cotidianas como algo já dado,

instituído.

Reconhecimento de diferentes narrativas que questionam esse “dado”. Esses

questionamentos permitiram identificar conflitos centrais e, em torno deles,

estruturar cada uma das três cenas. Nesta etapa, a definição dos três conflitos

delimita os personagens das cenas diante do conjunto das falas transcritas. Sempre

que possível, foi preservada a heterogeneidade e característica do grupo de

participantes do Encontro.

Seleção de narrativas que trazem reflexões e “soluções” elaboradas pelos próprios

participantes. Sempre que possível, destacando aquelas em que a ação profissional

e política é uma saída possível, em detrimento de explicações que produzem

imobilismo.

Criação de uma ambiência para o encadeamento das narrativas: palco e plateia,

assim como de uma “estética” para a ocupação desse espaço: movimentações,

posições cênicas, sonoridade. O lugar institucional de onde cada narrador fala é

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encenado no modo como ocupa o espaço cênico: por proximidades, distancias,

equidistâncias em relação aos demais.

Criação de uma personagem – o educador – que está presente na cena. O educador,

ao final de cada cena, intervém elaborando perguntas que o tocam, a partir da

posição que assume em face dos conteúdos e do clima produzido entre os diversos

narradores.

Assumo o lugar de narradora que capta o que ouve e implica-se com essa escuta. Por

isso, as cenas são apresentadas, não explicadas. Elas foram construídas como implicações

paradigmáticas, que segundo Lourau: "É a implicação mediatizada pelo saber e pelo não-saber

sobre o que é possível e sobre o que não é possível fazer ou pensar. [...] Em todos os casos,

segundo a expressão de Lefebvre, “é a exploração refletida do adquirido”". (1995, p. 274)

SUAS em cena: construção a partir de narrativas dos participantes do Encontro

[Na idade antiga] o teatro era a arte política por excelência: ele combina ação e

palavras, mostra os avatares das personagens ao desenrolar do enredo: os humanos

serão punidos ou premiados pelos Deuses em razão de suas ações. Os heróis escolhem.

E têm sempre escolhas sofridas e difíceis. Eles têm, portanto, autonomia. A noção de

autonomia vigente entre os gregos era a de uma autonomia em que os atos “levavam”

o sujeito a se responsabilizar por eles. Eles combinavam autonomia com

responsabilidade. Não haveria ação sem responsabilização. (CAMPOS, 2006, p.675)

Num hotel no centro da cidade de São Paulo, a sala acarpetada e sem janela recebe os

140 participantes previamente agrupados em seis oficinas. O círculo formado pela disposição

das cadeiras transforma-se num teatro de arena O centro vazio, margeado por tantas histórias e

experiências, está à disposição para ser ocupado. Aos poucos, vão chegando trabalhadores de

municípios, estados e do governo federal e ocupam as cadeiras dispostas em círculo.

Ao se apresentar, todos confirmam o que têm em comum: atuam no SUAS na região

Sudeste do Brasil, à exceção de membros da equipe da gestão federal, entre os quais a Secretária

Nacional e as Diretoras da Proteção Social Básica e Proteção Social Especial. Muitos vêm de

municípios metrópoles e capitais; outros das regiões metropolitanas; e há, ainda, os que vêm de

realidades de municípios de pequeno e médio porte.

O lugar de onde falam é diverso: há gestores municipais e federais; membros de equipes

de gestão estadual e municipal; trabalhadores que atuam diretamente com a população em

serviços prestados em unidades estatais (CRAS, CREAS e Centro Pop); trabalhadores que

atuam em funções de gestão. Todos têm nível superior de escolaridade e são, em sua maioria,

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assistentes sociais, embora psicólogos, pedagogos e poucos advogados também estejam ali.

Alguns se encorajam, enquanto outros assistem. Todos compõem a cena com seu silêncio, seu

ruído e sua voz. Na roda, nenhum trabalhador de nível médio de escolaridade, nenhum

trabalhador de entidade prestadora de serviço no SUAS.

Os conflitos ganham vida em três atos:

Primeiro ato ˗ Fortalecimento de vínculos: quem tece essa trama de muitos fios?

Segundo ato – Afinal, carente ou cidadão?

Terceiro e último ato – CRAS e CREAS: por que a gente é assim?

Primeiro ato: Fortalecimento de vínculos: quem tece essa trama de muitos fios?

De seu lugar na plateia, Ariel, psicólogo da equipe de gestão estadual, constata:

A questão do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários como foco do

trabalho social com famílias já é alguma coisa que está muito internalizada pra gente.

Inclusive, é meio que o eixo orientador para saber qual o melhor encaminhamento,

num primeiro momento pelo menos, seria exatamente fazer uma avaliação dessa

questão dos vínculos.

Está colocado para nós como uma certa tarefa trabalhar o fortalecimento, a

reconstrução ou, inclusive, a construção de vínculos familiares e comunitários.

Com ar inquieto, Ariel tenciona:

Por outro lado, a defesa e a garantia de direitos não converge, necessariamente, para

um fortalecimento desses vínculos! Muitas vezes a defesa a garantir direitos vai

implicar rompimento desses vínculos.

Dirige-se ao centro da arena e, agora, equidistante de demais participantes, os convoca:

E, vocês enquanto técnicos, ficam naquela sinuca: cabe a você ao mesmo tempo

orientar em relação aos direitos que aquela pessoa tem. E se você vai respeitar o

protagonismo dos usuários, de alguma forma você precisa entender o ponto de vista e

as escolhas que ele faz.

E se você for trabalhar especificamente no fortalecimento e construção de vínculos, é

preciso entender que muitos desses vínculos podem se dar por relações de dominação,

por relações de violência dentro da própria família ou dentro da própria comunidade.

Daí vocês ficam diante de um paradoxo: se você for lutar pela garantia e pela defesa

de direitos numa determinada situação, isso implica o rompimento de vínculos.

Na plateia alguns se reconhecem na “sinuca de bico" e respondem à sua convocação,

trazendo para o diálogo conflitos cotidianos que adensam a situação. Helena, da diretoria de

proteção especial de uma metrópole, levanta-se de seu lugar para explicar o "paradoxo".

Entende que isso pode ajudar a encontrar saídas:

A gente não consegue definir muito bem o que é autonomia, o que é pertencimento, o

que é protagonismo. E aí, eu acho que a gente acaba se perdendo e não fazendo a

nossa intervenção ou não contribuindo nesse processo de fortalecimento da familia

que é nosso objetivo.

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Margarida, assistente social do CREAS no interior paulista, cochicha com a colega ao

lado. Ambas acenam a cabeça em sinal de concordância. No entanto, algum incômodo

transparece no semblante de Margarida. O educador nesta situação olharia para Margarida e a

convidaria a vir para o centro. Buscando palavras para expressar essa sensação, Margarida

levanta e vem para o centro da arena e coloca uma dúvida:

É que talvez a gente esteja naquela dificuldade entre superar algumas intervenções

conservadoras e ao mesmo tempo a gente recai numa ideia muito culturalista. E aí eu

fico preocupada também... até que ponto pensar o protagonismo e autonomia das

famílias faz com que eu possa ser evasiva a ponto de não interferir numa rotina? Mas,

ao mesmo tempo, eu sei que essa família sofre violência. É claro que quando a gente

está falando de violência contra a mulher, ela por si só pode ter o tempo dela de decidir

o que ela vai fazer da vida dela.

Mas, por outro lado, se a gente também se recai demais nessa questão muito

culturalista das coisas, eu acho que a gente também não está fortalecendo os vínculos,

não está contribuindo. Porque no meio familiar não só tem a mulher, a gente também

tem as crianças. E nesse caso, como é que as crianças ficam sofrendo violência, numa

violência intrafamiliar, em que a gente também fica esperando que essa mulher tome

essa decisão?

O educador poderia pedir que ela recolocasse seu incômodo:

Até que ponto o protagonismo e autonomia das famílias não nos faz agir de forma

evasiva, ao ponto de não interferir numa dinâmica familiar, mesmo quando a gente

sabe que essa família sofre violência?

A dúvida de Margarida ressoa, causando burburinho entre os participantes. Alguns deles

viram sons audíveis à medida que vêm para o centro da arena. São tentativas de sair do

“paradoxo” apresentado por Ariel: se você for lutar pela garantia e pela defesa de direitos

numa determinada situação, isso implica o rompimento de vínculos.

Silenciando o burburinho, Priscila, psicóloga da diretoria de proteção social especial de

uma metrópole, fala em tom assertivo no centro da arena. Para ela a saída do “paradoxo” tem a

ver com a conscientização das famílias:

Porque assim, a situação de vulnerabilidade é uma, mas a de violência são várias! Tem

violência contra mulher, tem o idoso, tem o deficiente na família. A gente tem famílias

aqui que a complexidade é muito grande.

A gente tem que trazer para a família o conhecimento, informá-la de quais são seus

direitos para que ela possa decidir o que é que ela vai fazer da vida dela. Em que

implica para ela fazer a denúncia, o que implica para ela sair de onde ela está. E isso

realmente não demora um mês, não é em um encontro, não é em uma visita. Isso

demora meses! É uma coisa muito lenta.

Na sequência Renata, assistente social do CREAS, posiciona-se às costas de Priscila

sugerindo caminho inverso: se necessário, a denúncia deve ser feita pelo próprio trabalhador do

SUAS.

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Muitas vezes a gente cai nesse conceito de permitir autonomia, protagonismo, respeito

às famílias. Mas, por outro lado, é importante que a gente não tenha esse medo de

poder propor intervenção e até mesmo de fazer a denúncia, porque vai ser preciso.

Ludmila, assistente social da equipe de gestão estadual, abre espaço entre elas, traçando

um triângulo no centro da arena. Em tom ponderado dialoga com Priscila e Renata, chamando

a atenção para a dimensão coletiva das situações de violência que chegam ao CREAS como

casos individuais.

Acompanhando o CREAS pelo Estado, a gente percebe que, às vezes, ele faz um papel

muito de fazer a denúncia. E a gente não sabe se é bem esse [o papel do CREAS]. A

gente discute um pouco se é esse o papel do CREAS porque se não ele entra, eu acho,

no papel de outras políticas.

Então a gente orienta esses CREAS, esses municípios, a tratar a falar da violência

como a temática. Poderia fazer grupos para se discutir a violência, independente se

essa violência se configura um crime ou não. E fazer a discussão da violência no

grupo, primeiro perguntando para as pessoas o que é violência e se as pessoas se

sentem violentadas. Porque, às vezes, as pessoas passam por situações de violência e

não enxergam aquilo como uma violência.

Isso seria uma forma de coletivizar as situações vividas. A gente pode discutir as

diversas violências. Eu não preciso trabalhar com um grupo só de mulheres

violentadas pelos seus maridos. Eu posso também trazer a discussão da violência

urbana, da violência na sociedade, a violência por parte do Estado. A gente sabe que

o Estado brasileiro é um dos atores da violência. E a partir disso, dessa discussão da

violência de uma forma não criminalizadora, podemos resgatar tudo isso para

transformar aquela violência individual como um processo coletivo e social. E aí,

depois, chamar de fato, os movimentos sociais. Os movimentos sociais eles são muito

importantes para a gente entrar nessa questão que é colocada aqui, como participação

social e mudança.

Ao som de uma voz que vem em direção ao centro da arena, as três viram-se em sua

direção. É Wanda, psicóloga da equipe de gestão municipal, que se aproxima em tom tranquilo

e com firmeza. Ela traz uma outra saída possível, e diferente das anteriores:

Penso que a decisão é da família, é da mulher, é do usuário da Assistência. Quem tem

direito é alguém que está de cabeça erguida, pode fazer suas escolhas e assumir toda

sua vida. Então eu acho que o nosso papel não é fechar os olhos para qualquer situação

que seja. Nosso trabalho é propor espaços de reflexão, de construção coletiva de

problemáticas.

No caso do exemplo citado: uma mulher vítima de violência pode enfrentar essa

violência, sabendo que isso implica várias perdas. É realmente ela que tem que tomar

essa decisão. Mas para que ela possa tomar essa decisão consciente, firme, certa

daquilo que ela deve fazer, ela precisa de todo um trabalho que possa auxiliá-la a

compreender a realidade que ela vive, a complexidade dessa situação. E, inclusive,

apoio para uma situação mais emergencial. A gente tem um serviço previsto na

política de assistência social para o apoio emergencial para uma mulher que tenha

tomado essa decisão e fique momentaneamente sem uma estrutura.

Alguns aplaudem. Outros silenciam. Há quem fique surpreso.

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Segundo ato: Afinal, carente ou cidadão?

Tereza, assistente social e pesquisadora da área, abre o segundo ato mimetizando no

centro da arena uma situação cotidiana.

Quando uma família chega para a gente - eu falo dessa profissão porque eu sou

assistente social - tem muito assistente social que quer dizer quantos filhos as

mulheres precisam ter. [Dizem:] De novo grávida! Nossa, qual é o pai?

Em tom indignado, interpela a plateia:

As pessoas ainda acham que a Assistência Social é um favor, uma benemerência, uma

caridade. Este legado é muito forte entre nós.

O grande desafio da Política Nacional de Assistência Social é a gente avançar para a

concepção, de fato, de Assistência Social como direito do usuário. Porque têm alguns

- não é nem alguns, tem muitos de nós profissionais - que acham que para os pobres

serve qualquer porcaria. Me desculpe a expressão, mas eu ando nesse Brasil inteiro,

gente!

E ela própria busca um jeito de desatar este nó, concluindo:

Precisamos amadurecer as nossas concepções acerca do que é direito mesmo. É

fazendo que a gente vai aprendendo. Mas ninguém faz isso sem estudar porque as

situações são muito complexas.

Materializando essa complexidade, Telma, pedagoga da equipe de gestão municipal na

RMSP, vem para o centro da arena. Gesticulando as mãos como quem segura uma batata quente

ela constata:

Até dentro das próprias políticas setoriais, nos Grupos Intersecretariais ou

Interinstitucionais que a gente acaba realizando, as pessoas ainda colocam a

Assistência Social como ajuda e não como direito. Então qualquer questão de urgência

que ninguém conseguiu resolver dentro da própria administração pública ainda se

entende que é papel da Assistência Social fazer.

Telma evoca a presença de outros atores do Executivo, dos Poderes Judiciário e

Legislativo e do Ministério Público. Dirce, trabalhadora de um centro de formação para

profissionais do SUAS, reconhece a presença deles na cena, mas inverte o ponto de vista:

No diálogo com as outras políticas, a gente fica muito fragilizado quando nos indagam

- Mas o que o sujeito vai fazer lá no CRAS? O que o sujeito vai fazer lá no CREAS?

- Isso nos gera, me parece, que uma certa imposição do que nós devemos fazer por

parte do outro. Como tem um vazio de conteúdo, eles nos dizem o que nós temos que

fazer.

Amanda, docente de Serviço Social e pesquisadora da Assistência Social, põe-se frente

a frente com Telma. Como se pegasse a batata quente de suas mãos, faz um vai e vem com ela

enquanto explica:

A dificuldade na identificação dessa especificidade muitas vezes é também do próprio

gestor, incluindo gestores que colocam o campo da Assistência Social como espaço

de distribuição de bens materiais, como apadrinhamento. Um limite para isto é o fato

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de ainda existirem nomes diferentes atribuídos à pasta da Assistência Social, juntando

também com a presença do Fundo de Solidariedade.

Muitos participantes remexem-se nas cadeiras. Há uma tensão latente e as cenas vão

adensando essa sensação. Captando esse clima, o educador poderia lançar a pergunta: a entrega

de bens materiais, tal como faz o Fundo de Solidariedade, é um nó na Assistência Social?

Laura, assistente social da equipe de gestão municipal de uma cidade mineira irrompe

no centro da arena:

A gente tem aí dentro do país uma política de transferência de renda [Programa Bolsa

Família], que eu acho que é um processo histórico. Ela está concretizada. Eu vejo nas

nossas equipes que a gente reproduz um modelo de fazer política de pobre para pobre:

“Ah, eu vou te encaminhar para as necessidades básicas: saúde e educação”.

Uma voz feminina soa alto e confiante na plateia. Sem sair do seu lugar, Helena explica

dirigindo-se a todos:

É que a Assistência não é condicionalidade no Bolsa Família. A gente só entra nas

situações de descumprimento para acompanhar as famílias! O trabalho da gente é para

não suspender o benefício. A gente só associa, só pensa nas políticas que têm interface

com o Bolsa.

A gente esquece de pensar essa família dentro de um território, dentro de uma cidade,

dentro da necessidade, dentro de outras políticas. E a gente não percebe essa família.

A gente também reduz o caráter do Bolsa Família enquanto só um programa de

transferência de renda. A gente esquece que o Bolsa Família tem uma outra interface,

que são as ações complementares.

Eliane, da equipe de gestão de um município capixaba, vem para o centro da arena e

conta o que se passa em seu município. À luz das orientações do SUAS, tenciona as práticas de

encaminhamento trazidas por Laura:

Na minha realidade, eu vejo que acompanhamento das famílias é encaminhamento. E

encaminhamento...gente! Visitas domiciliares uma única vez, você não está fazendo

acompanhamento!

Existe uma necessidade da clareza do que é um acompanhamento com a família. Para

eu atender uma família, eu tenho que saber que ali exige um planejamento de atuação

e intervenção com aquela família.

Rosário, da SNAS, segue a “deixa” de Eliane e, ao seu lado, explica qual a perspectiva

dos benefícios e serviços na lógica do SUAS:

Nosso esforço é que a gente consiga mesmo ofertar serviços para este público, que

são os públicos prioritários, tanto de transferência de renda, do BPC, dos benefícios

eventuais e das famílias mais vulneráveis. Mas a ideia é que a gente não seja mais

reconhecido pelas provisões materiais especificamente. E, então, que [as famílias] não

nos procurem só para os benefícios eventuais, embora eles sequer estejam

regulamentados de forma satisfatória em várias localidades.

A gente espera que pelo menos do ponto de vista de normativas e de planejamento

esta vertente - essa lógica de direito e proteção social- esteja presente e instituída. A

gente sabe que depois na aplicação prática nem sempre é assim que as coisas estão

acontecendo.

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[Como a Eliane disse] isso vai depender da nossa capacidade de planejamento, de

avaliação, de monitoramento e de organização dos nossos serviços para que nós não

só possamos corresponder às previsões que estão já asseguradas na lei do SUAS, como

também que tenhamos esse reconhecimento e, portanto, tenhamos condições de

disputar apoios políticos e fundos públicos que viabilizem esta organização e essa

articulação. Isso é uma conquista, isso nunca vai ser uma doação! Essa disputa do

fundo [público] é muito pesada.

Só na medida em que a gente conseguir, realmente, com uma avaliação apontar que

mudamos os indicadores, que conseguimos melhorar as condições de vida e que

estabelecemos uma outra forma de relação naquela determinada localidade é que a

gente vai ter este aporte.

Angustiada, Márcia, psicóloga recém-chegada ao SUAS, vem para a arena, mas

posiciona-se distante de Eliane e Rosário. Sua posição explicita a distância entre as diretrizes e

a execução cotidiana.

É que na verdade quando o pessoal foi falando, a gente vai pensando em várias

coisas... Se a gente pega o Guia de Orientações do PAIF, lá tem passo a passo, tudo,

que vai ajudar bastante. Lá explica o que é uma demanda dos técnicos do CRAS e dos

educadores.

Só que nessa rotina, como o CRAS é porta aberta, então são várias demandas que

surgem. A gente acolhe, faz a escuta...Mas eu não sei se é em relação à quantidade de

pessoas atendidas e a quantidade de profissionais, que a sensação é que nunca a gente

consegue terminar, de você conseguir chegar até aquele acompanhamento ao final. O

plano de acompanhamento com aquela família, qual o resultado que você alcançou?

O que a família alcançou? Fica um pouco difuso, porque sempre surge algo novo e

são muitas demandas!

Eliane, que trouxe o planejamento como saída para a dificuldade, sente-se tocada pela

reflexão de Márcia. Dá um passo largo para alcança-la e diz:

Mas é isso, Márcia! Nem para quem trabalha há mais tempo no SUAS está claro o

que é acompanhar as famílias. Tem muita gente achando que encaminhar pras outras

políticas é acompanhamento!

Márcia, agora mais encorajada, chega mais perto e continua sua reflexão.

O que a gente sente de dificuldade no CRAS é encontrar uma forma de aprofundar na

teoria, nos materiais, para preparar com qualidade aquela atividade. Muitos materiais

[de orientação técnica] são riquíssimos! Tem muita coisa que já está colocada, às

vezes, dúvidas que a gente tem, se você ler já vai ficar esclarecido. Por exemplo, o

encaminhamento: Ah, encaminhamento não é só você encaminhar para o outro órgão,

você tem que entrar em contato antes, previamente, fazer o encaminhamento formal,

encaminhar, verificar se a pessoa compareceu. Então não é uma palavra!

Rita, pedagoga e também recém-chegada ao trabalho no SUAS num município

fluminense, coloca-se ao lado de Márcia e arrisca uma proposta:

A gente sempre pensa no CRAS do nosso sonho: seria a gente conseguir carga horária

mesmo para que, realmente, você possa planejar com a equipe. Semelhante ao

professor, que ele tem HTPC [horas de trabalho pedagógico coletivo], que ele pode

estudar. Então alguma coisa que seja parecida para o trabalhador conseguir ter esse

momento de leitura.

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Eu não sei se é só no CRAS lá, ou se vocês também sentem isso... mas a gente não

consegue muitas vezes ler o material dentro do setor. Eu sei que existe toda a questão

da educação permanente, mas pelo menos não chegou assim de forma continuada lá.

Eu acredito que como já tem muito material, tem muita experiência que a gente

poderia trocar.

Percebendo-se ouvida pelos demais da plateia, Márcia se dá conta que tem o que dizer.

Andando pela arena para encontrar o olhar dos demais que a assistem, ela continua:

Aqui hoje eu estou achando super rico o que eu já estou trocando com ela [apontando

para a plateia], saber o que ela faz no CRAS... Essas experiências é o que a gente

precisa mesmo para não desmotivar!

Por exemplo, lá a gente conseguiu sistematizar um estudo sobre as famílias em

situação de descumprimento [das condicionalidades do Bolsa Família]. Muitas que

não podiam comparecer às reuniões é trabalho informal, poucas eram donas de casa.

A maioria era trabalho informal, ou seja, aí também vai de encontro de que a gente

não tem como exigir uma participação se ela vai desfalcar em outro aspecto da vida

dela. Porque o CRAS funciona até às 17h e não pode abrir à noite ou de sábado... eles

dizem que é porque não pode pagar hora extra e também se for banco de horas, vai

afetar depois no dia a dia. Porque se faz banco de horas, depois aquele profissional

vai ter que compensar. Aí no dia que desfalca ali a equipe. E, geralmente, a equipe

não está completa.

Mas, ao mesmo tempo, a gente precisa trabalhar no coletivo essas demandas. Aí eu

não sei, na verdade eu não sei a solução, me ajuda!

Animada com a presença das jovens profissionais, Laura, da coordenação de proteção

social básica de um município mineiro, vem para o centro da arena. Embora não dê a resposta

esperada por Márcia, ela abre mais caminhos:

E é óbvio: tem coisas que são completamente enviesadas. A gente também cansa de

receber tarefas que são nossas e que a gente não dá conta! Mas o fato é que o cardápio

de ofertas da Assistência Social precisa de uma renovação.

De fato, historicamente, essas políticas [saúde e educação] encaminharam tudo pra

gente. Mas e se a gente trabalhar uma concepção de acesso à cidade, cultura, lazer,

esporte; trabalhar com uma visão mais ampliada de garantir, verdadeiramente, que

essas famílias tenham acesso à cidade? Isso é uma mudança de paradigma da

Assistência Social!

Dirce, trabalhadora em um centro de formação para profissionais do SUAS e docente

na área retoma o fio que já havia lançado. Chama atenção para o processo de formação dos

profissionais que estão ingressando no SUAS:

E eu acho que nosso desafio, antes de pensar na metodologia, é pensar o que oferto

em uma metodologia X, Y e Z. Porque a metodologia ela pode ser a mais diversa e a

mais variada, seguindo princípios éticos, princípios éticos políticos, que dialoguem

com os princípios do SUAS. Mas eu acho que nós estamos indagados a construir,

definir a identidade da oferta socioassistencial.

[...] Então acho que os nossos processos de formação eles tem que ainda bater na tecla

de que: Qual é o conteúdo do meu trabalho, da minha oferta? Como se materializa a

minha oferta? A minha oferta não se materializa só na transferência de renda, a minha

oferta se materializa, como a Abigail disse, no campo relacional. Isso a gente não

pega, não se materializa. Então acho que a gente tem mais essa tarefa de dar nome a

algo que talvez não se materialize.

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Agora com o centro da arena mais povoado, o educador sensível notaria um olhar

interessado e pediria à Laura para repetir o chamado. E ela repetiria: O cardápio de ofertas da

Assistência Social precisa de uma renovação!

O educador então convocaria: Quem pode vir pro banquete?

Emerson, geógrafo e assistente social na região metropolitana de Belo Horizonte, que

observava atento, sai de seu lugar num gesto corporal como quem está abraçado a outros. Narra

sua experiência coletiva, em que os usuários estão no centro da ação política. Não são

encaminhados:

O corpo técnico da secretaria fez uma profunda pesquisa com as famílias e com os

indivíduos do CRAS e CREAS para a gente poder ter um mapa, na verdade, da

necessidade destes sujeitos, do que eles querem discutir e não do que eles querem

acessar.

O papel do CRAS também é dialogar com seus usuários na construção das suas

demandas de saúde na Conferência de Saúde. Não é só indicar o dia que vai ter a

reunião, é uma preparação ativa para a Conferência. É fazer a discussão lá no serviço

de convivência sobre a importância da discussão da saúde no seu cotidiano e na

comunidade!

Então, com isso, a gente aproximou o trabalho do CRAS no território entre a

construção cotidiana mesmo e a construção coletiva com as famílias e com os

indivíduos através do que eles queriam dizer, e não das demandas que eles tinham

para apresentar.

Na verdade, esta foi a estratégia que a gente entendeu que era mais importante do que

fazer um serviço de convivência apenas por uma alienação cotidianista. Mas tentando

trazer elementos, a gente elucida uma vontade diferente de participar da política e de

participar de forma particular, para além, inclusive do CRAS. Hoje a gente tem vários

atores organizando o território através dos seus pontos de vista, porque autonomia

desta construção é de quem vivencia o território no seu dia a dia.

A experiência trazida por Emerson traz, de fato, algo novo para o grupo. O impacto de

sua fala é evidente nas expressões de surpresa. Para muitos foi como girar a arena 180 graus!

A reação de Solange é quase imediata. No centro da arena, ainda girando, fala como

quem vem fazer uma denúncia:

Mas essas famílias nos colocam mesmo nessa condição de ter que resolver, de ter que

ter respostas para tudo!

Agora a plateia se agita não mais em burburinhos e ruídos. Corpos inquietos começam

a transitar pelo centro da arena, passando à frente de Solange. São falas aparentemente

desconexas entre si. A plateia acompanha o movimento de quem mais lhe chama a atenção,

pois todos passam quase que ao mesmo tempo diante de Solange, paralisada no centro da arena.

Wanda, da equipe de gestão municipal carioca, atravessa rapidamente o centro da arena.

Irritada, ela diz o quão dispersa e fragmentada é a “recepção” da expectativa dos usuários. O

“tudo” parece virar “nada”.

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Cada CRAS fazia de um jeito. Dentro de um CRAS cada profissional fazia de um

jeito. Cada um tinha cinco técnicos e cada técnico usava um instrumental diferente.

Cada CRAS usava um instrumental diferente, uma metodologia diferente.

Roseli, assistente social e coordenadora do CRAS, mirando de outro ponto círculo,

atravessa em passo cadenciado. Para diante de Solange e assevera:

Em primeiro lugar, eu acho que a gente não conhece as famílias que a gente atende.

Porque até agora em todas as falas a gente ainda não falou nada sobre essas famílias,

o que essa família espera ou esses indivíduos que a gente atende esperam da Política

de Assistência Social.

Renata, psicóloga do CREAS, segue atrás de Roseli. Em passo mais seco, vem fazendo

lhe eco:

Sabemos o que os usuários querem e esperam dessa política e do trabalho social? Eu

respondo com toda certeza que não sabemos. Não sabemos porque eu acho que nós

temos trabalhadores que não sabem.

Todas elas permanecem ali à espera da continuidade da conversa. O que à primeira vista

está desconexo, vai ganhando corpo à medida que os conflitos e as tensões vão sendo

explicitados.

Rosa, docente do Serviço Social e pesquisadora do SUAS, para diante de Solange, como

se estivesse confrontando-a. Com habilidade dramática, vai mudando a entonação de voz para

reproduzir o relato de uma ex-aluna, hoje trabalhadora do CREAS na Baixada Santista:

Olha, nós fizemos uma reunião de rede para discutir uma situação de desabrigamento

de umas crianças que estavam no serviço de acolhimento. Todo mundo veio para a

reunião de rede. E eu chamei a mãe para a reunião.

Quando a mãe chegou, todos os técnicos falaram:

- Não, mas como é que nós vamos fazer a reunião? A mãe está aqui! Sim, a mãe está

aqui porque nós estamos discutindo a vida dos filhos dela. Então ela vai participar da

reunião. Em seguida eles reagem:

- Não, não, tem questões técnicas. Não há como a gente discutir essas questões na

frente da família.

Bom a situação foi, foi, foi, até que ela...[pausa] Não teve jeito: ela conversou com a

família e falou: Eu peço mil desculpas, realmente você não vai poder participar da

reunião. Nós vamos fazer a discussão e depois eu conto para você o que ficou

decidido.

Percebendo o visível desconcerto de Solange, caberia ao educador repetir a pergunta

provocadora de Rosa: Então todas as respostas que as famílias esperam estão sendo

respondidas pelas equipes?

Eu só queria dizer que também por vezes essa nossa dificuldade de dialogar com o

outro é a dificuldade de sustentar o trabalho que nós estamos fazendo. É a dificuldade

de dizer: Qual é o campo que a gente vai responder?

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71

Emerson, inquieto, complementa:

Eu falo que a gente fica pedindo tanto para o usuário participar, mas eu não sei se a

gente sabe o que fazer também quando o usuário participa. Eu acho que isso é um

ponto muito sério, porque às vezes a gente atropela a participação.

Um longo silêncio sucede a fala de ambos. Esperamos. Um tempo depois, Regina,

psicóloga do CRAS, aproxima-se de Wanda, retomando os cacos deixados pelos registros

individuais e fragmentados.

Mas o processo de articulação dos saberes no acompanhamento familiar é um desafio.

A gente precisa trabalhar como é que, de forma orgânica, esses profissionais

efetivamente constroem junto com as famílias um plano de acompanhamento familiar.

Eu sinto que a gente precisa alinhar um pouco esse papel. Todos nós somos

profissionais do SUAS, mas as especificidades acabam ficando num balaio só. Eu

sinto que “na ponta” não há essa identidade. Todo mundo acha o máximo trabalhar de

forma coletiva, porém na execução a gente vê que isso é um nó.

Ana Ligia, assistente social do CRAS num município mineiro, faz dupla com Renata,

como se estivesse correspondendo à sua intervenção sobre o mútuo desconhecimento da política

de Assistência Social:

A questão do conhecimento da política, das diretrizes, ainda não compõe a identidade

dos nossos profissionais que estão lá na ponta trabalhando com essas famílias. Então

existe sim essa dificuldade que acaba sendo um limite: se eu não conheço a política,

eu não tenho incorporado tudo isso na minha ação profissional. E se eu não incorporo

na minha ação, eu não consigo fazer com que a população, o usuário, ele enxergue

essa política dentro dessa concepção.

Célia, psicóloga do CREAS, aproxima-se de Roseli trazendo as reflexões sobre como o

serviço de medida socioeducativa tem funcionado distante da família dos adolescentes.

Eu tenho uma preocupação no que diz respeito à questão da matricialidade

sociofamiliar. Nos serviços de medida socioeducativa o foco é no adolescente, ok. Se

a medida aplicada pelo juiz, por si só fosse bastante, parava ali. E a gente existe

enquanto um serviço para poder construir um acompanhamento. Mas esse

adolescente, ele não é dissociado da família e da comunidade! Então não tem como

você atender o adolescente nas medidas e a família no PAEFI. Então eu acho que tem

algo que mexe com todos os serviços!

A gente tem o propósito de criar vínculo. Para isso, precisamos ampliar um pouco

esse raciocínio de que acompanhar e atender não significa só ali na sala de

atendimento, só em uma visita domiciliar. Existem várias maneiras de construir

vinculo.

O espaço da arena parece ter se transformado em uma grande teia, emaranhados de

experiências. No meio dela muitos nós. A arena agora está povoada de experiências, pontos de

vista diversos e alguns divergentes. Aquecidos, os participantes da cena estão mais à vontade

para propor saídas. Algumas delas titubeantes, outras seguras porque lastreadas em experiências

compartilhadas.

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A primeira sugestão para desatar o nó vem de Fátima, gestora municipal de Assistência

Social no interior paulista:

O que hoje fica muito claro para a gente é que precisamos sair da zona de conforto,

da mesmice enquanto trabalhadores, e buscar realmente entender a família na sua

especificidade.

Em seguida, Solange diante da dificuldade de lidar com a dimensão relacional que

compõe essa “demanda”, conclui:

Não existe uma receita igual para todas as famílias, não existe o “como fazer” para

todas. Cada uma tem a sua necessidade, cada uma tem a sua história de vida. É muito

complexo lidar com essas relações.

Realmente, não tem uma receita pronta de como você atender as famílias que chegam,

por exemplo, no CREAS. Porque cada caso é um caso. Cada família é uma família.

Cada família tem um tempo diferente.

Wanda narra como a equipe de gestão buscou saídas para a dispersão e fragmentação

dos procedimentos e registros do trabalho nos CRAS de seu município:

Nas reuniões mensais com toda equipe de CRAS é estabelecida a pauta em conjunto.

No decorrer dessas reuniões, nós identificamos a necessidade de pensar em todas as

ações propostas para o CRAS: dentro do PAIF e da gestão de território.

Nós começamos a discutir em grupos e todo mundo falava o que acha certo, o que não

acha para tentar encontrar um consenso de ação dentro de cada uma delas. A partir

daí, a gente está elaborando um plano de trabalho para CRAS no município, que vai

ser uma matriz.

Interessada, Regina pergunta como a equipe pretende continuar. E Wanda, animada,

complementa, falando dos próximos passos:

A partir dessa matriz como uma referência, cada CRAS vai elaborar o seu

planejamento e o seu plano de trabalho, respeitando a diversidade dos profissionais e

da região onde está localizado.

Então é uma forma de encontrar uma metodologia de trabalho que não havia. Está

sendo um processo muito interessante porque mexeu com a questão metodológica,

conceitual e ética das equipes.

A gente tem que partir para isso: trocar experiências e ações que mexam com os

profissionais que estão, para que eles digam: “eu quero” ou “eu não quero ficar na

assistência social”.

A visão de futuro e a possibilidade de escolha trazidas por Wanda parece ter puxado um

fio dessa grande teia, aliviando a tensão, aumentando a elasticidade.

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Terceiro ato: CRAS e CREAS: por que a gente é assim?

No centro da arena, Marta e Heloisa, assistentes sociais na baixada fluminense, contam

que chegaram recentemente no SUAS. Elas trazem os primeiros elementos da cena. Marta puxa

o fio:

A gente tem clareza de qual é o público da básica e qual é o público da especial. Na

Política [PNAS, 2004] está claro qual é o público. A dificuldade é como vai passar de

um para o outro: da família sair da básica e ir para a especial; e sair da especial e ir

para a básica.

Heloisa, em concordância, indica como estão lidando com esse dilema no CRAS onde

trabalha. Com orgulho, conta que já construíram algumas certezas, por isso, diz com prontidão:

Essa parte dos limites [entre CRAS e CREAS] é uma construção mesmo. A gente

sempre se pega lá no município: E agora? Qual que é o limite do CRAS? Essa família

agora é violação?

Então o que a gente tem bem clareza no CRAS: proteção social especial é prioridade!

Chegou um caso hoje de violação, ela vai ser encaminhada o mais rápido para aquele

programa ou para aquele serviço porque ela já está em uma situação de violação.

Irene, gestora municipal no Espirito Santo, traz outro ponto de vista. Com andar

cauteloso, aproxima-se de Marta e Heloísa e expõe o que observa do lugar da gestão:

Nós na gestão, muitas vezes, perdemos a referência do território. A família está no

território. Nós temos o equipamento de referência no território que é o CRAS, temos

a relação direta com essa família. Se acontece algum tipo de violação de direito, com

o adolescente por exemplo, ele vai para a proteção especial. Muitas vezes os

profissionais acabam desconectando essa família da Política, achando que isso é da

especial.

Da plateia, ouve-se uma voz masculina, cuja entonação traz uma pergunta indireta: o

que parece óbvio, de fato, não é:

Está entre os princípios e diretrizes norteando a estrutura da Política de Assistência

Social o tempo inteiro: matricialidade sociofamiliar e território. Não só nas

competências, mas as relações. O território é um mito hoje da discussão da Política

de Assistência Social. Qual é, de fato, nossa compreensão de território?

Ao dizer o porquê da afirmação tão contundente, detalha:

É uma vergonha ver colegas de profissão, assistentes sociais em grande parte, dizerem

que tem medo de visitar certos lugares no território, sem fazer sequer uma discussão

do que é violência no território e qual que é o papel do Estado no território. Quanto

mais a gente se afasta, mais a gente garante com que a violência se legitime. Então,

acho que é uma grande retomada mesmo da discussão do território.

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A dúvida paira no ar, até que Wanda vem para o centro da arena oferecendo uma

hipótese para buscar o porquê dessas dificuldades.

Talvez a nossa dificuldade esteja mais relacionada ao espaço físico de CRAS e

CREAS, às equipes, aos prontuários e registros. A dificuldade não tem nada a ver com

a população atendida. Porque se a gente pensar, a população atendida está lá onde ela

vive, onde ela mora.

Neste momento, a plateia seria instigada pelo educador: o que o funcionamento das

equipes, os prontuários e registros tem a ver com tudo isso?

Meire, da equipe de gestão municipal no ABC paulista, com expressão de certo

desalento, traz sua experiência. Em tom de autocrítica reforça a hipótese de Wanda.

Nosso CREAS não é porta aberta, não tem demanda espontânea. Então alguém tem

que encaminhar. Mas na hora que "desliga" a família e passa para o referenciamento

no CRAS, o que a gente está tentando ajustar agora [é o seguinte:] o papel vem, mas

só que a família não é informada! Então às vezes ela chega para ser referenciada no

CRAS ou ter a unidade como referência naquele território, e ela fala: Mas eu sou

atendida lá no CREAS!

Olhando para ela, Wanda expõe a vivência de onde parte sua hipótese. Com tom

aguerrido, solidariza-se com Meire diante das dificuldades que enfrenta em seu município:

Várias vezes no município, se tentou estabelecer fluxo entre CRAS e CREAS, mas

realmente não funciona! Um acusa o outro que não cumpre.

Tem também atitudes profissionais como, o profissional do CRAS não quer “soltar”

para o CREAS porque “eu já acompanho”. Profissional do CREAS diz: “ ah, eu acho

que já superou a violação, mas não solto mais para o CRAS”.

Recomeça o burburinho na plateia. Várias conversas paralelas parecem indicar que o

clima vai esquentar. Laís, pedagoga e coordenadora do CRAS, está atenta e alguma conversa

que chega aos ouvidos parece incomodá-la profundamente. O educador, em um gesto de

empatia, poderia cruzar olhares com ela, reconhecendo seu incômodo. Neste momento, Laís,

reconhecendo seu incômodo, levanta-se da cadeira e dali mesmo se expõe, tentando conter a

irritação:

Acho que a gente está num momento de mudança de paradigma, de tentar não ser

mais conservadores. Mas estamos colocando essas famílias e esses indivíduos nas

caixinhas! Daí eu não estou mais vendo nem a família, nem o indivíduo como um ser

global, que precisa de uma série de coisas. Então ele é da caixinha do CRAS, ora ele

é da caixinha do CREAS. Pelas falas, me parece que a gente está brigando por uma

população!

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É uma Po-lí-ti-ca de Assistência Social, nós a dividimos hierarquicamente, mas essa

pessoa não está dividida hierarquicamente! Então acho que assim, a gente tem que

começar a pensar nessas questões, isso me incomodou bastante aqui.

Tentando acalmar os ânimos, Tania, docente de cursos de especialização e pesquisadora

da área, dirige-se ao centro da arena. Reconhecendo a tensão, tenta canaliza-la:

A gente vem discutindo os lócus onde esse usuário tem que ser atendido, e não as

necessidades desse usuário, que ultrapassam os lócus. Na Assistência Social a gente

precisa discutir as necessidades desse usuário.

E aí, eu quero colocar uma pimenta aqui na discussão: não é o caso de todas as

situações que são atendidas pela Especial, como serviço especializado, serem

referenciadas também na Proteção Básica, até pela característica de afiançar outras

seguranças sociais? E aí a gente consegue pensar como sistema!

Sueli segue esse fluxo, reconhecendo a pertinência da proposta de Tania:

A gente fica no exercício da ação que muitas vezes acaba sendo imediatista, não

porque queiramos, mas por conta da demanda e da própria condição que nos é

estabelecida. E a gente tem pouco tempo para repensar a ação. Eu acho que um desafio

é a gente poder propiciar dentro das nossas unidades, do nosso planejamento enquanto

gestor, enquanto Coordenação de CRAS momentos em que a gente possa fazer essa

discussão e com as duas proteções [básica e especial].

Nanci, da equipe de gestão de uma metrópole paulista, narra a iniciativa recém-instituída

que busca lidar com esse desafio e produzir algumas saídas.

A gente está fazendo uma experiência, muito inicial, que é um espaço que nós estamos

entendendo como um espaço formativo e permanente, que chamamos de GT

Interproteções. É um grupo de trabalho permanente, com representantes dos CRAS,

dos serviços da média complexidade, do CREAS, da alta, tanto de criança e

adolescente, como adulto, Pop-Rua e idoso.

Estamos nos desafiando a fortalecer o entendimento de que o usuário entra no Sistema

Único de Assistência Social, ele não entra na Básica, ele não entra na Média, ele não

entra na Alta. Ele entra no sistema, que é composto por serviços que são

complementares. Então esse primeiro reconhecimento, do outro, que estamos em um

sistema, que é orgânico, é um desafio muito grande.

É um espaço que nós estamos apostando muito, que todo mundo está ali de forma bem

sinérgica para tentar avançar nesse sentido porque, de fato, acredito que a gente não

sabe ainda fazer essa transição, essa ponte entre as proteções.

Lucia, docente e pesquisadora da área, põe-se ao lado de Nanci. Traz a experiência das

equipes Presidente Prudente, interior de São Paulo. O relato é trazido por Lúcia para dizer que

é possível trilhar esse caminho:

É uma história de violência doméstica super grave: o rapaz foi preso mais de uma vez,

inclusive, por espancar a esposa; as sete crianças todas foram abrigadas etc etc.

Uma das questões que é diferenciada nessa experiência é que primeiro: eles foram

discutindo quem era a referência para a família. Então o técnico de referência para a

família, o profissional que tinha maior proximidade com a família, era um profissional

do CRAS. Mesmo quando essa família tinha todo o "perfil" para atendimento pela

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equipe do CREAS. E uma das questões que eles entenderam que era essencial, era

manter essa referência. Então eles faziam reuniões para discutir os encaminhamentos,

as responsabilidades, mas quem conversava com a família era sempre esta

profissional, que era a referência para a família.

Meire afetada pelas narrativas, traz um novo elemento para compor a situação:

Na lógica da organização da Política, a gente tem todos os documentos muito

separados. Eu sempre costumo falar, mas qual é a especialidade que os profissionais

do CREAS têm, diferente dos profissionais do CRAS? Se a gente for olhar bem, pelo

menos lá na região do ABC, a gente não conseguiu desenvolver nenhuma

especialidade diferenciada para os profissionais do CREAS que os profissionais do

CRAS não tenham!

Roberta, docente e supervisora de estágios em Serviço Social em Minas Gerais, vê-se

implicada na afirmação de Meire. Levanta-se da plateia, dirigindo-se a todos ali:

A gente ouve falar o tempo todo que os técnicos também têm dificuldade de

compreender ainda a política de assistência social. Eu acho que tem a questão de muito

rodízio [rotatividade] de profissionais, que tem na nossa área ainda; a questão de

muitos cargos comissionados.

Mas eu acho que nós das Universidades temos deixado muito a desejar. O que eu

tenho visto na realidade é que essa discussão da assistência social na Universidade

está passando muito ao largo.

Eu acho que a gente também tem que começar a cobrar dos centros de formação -

onde não se discute a política de assistência social -para que [tragam esse conteúdo]

para dentro da Graduação. Daqui a pouco o aluno se formou, ele é o técnico que está

lá, e a gente quer que ele tenha uma coisa que ele não tomou contato na sua formação

inicial.

Agora mais animada Meire retoma sua fala do lugar da gestão. Conta que no processo

de discussão coletiva feito em seu município imaginaram a alteração do próprio desenho

institucional do SUAS:

Tem hora que a gente já até pensou: acho que não devia ter CREAS! A gente deveria

mesmo é ter equipes especializadas no território, junto. A gente está nesse momento

tentando buscar. É um desafio mesmo buscar formas de integrar as equipes para

oferecer atendimento mais harmônico dentro do processo que a família está

vivenciando.

Alguns olham com susto, outros com admiração. Há aqueles que levantam a sobrancelha

como a dizer: ousadas, hein! E o inesperado surpreende a todos. Ana Maria, gestora na

Secretaria Nacional de Assistência Social dá margem à essa possibilidade:

Acompanhando as nossas discussões, para mim, o grande limite que nós temos hoje é

a ausência da compreensão do que é um sistema. Eu percebo que a compreensão do

SUAS está comprometida porque nós reproduzimos as nossas caixinhas na estrutura

de um sistema.

A gente já reflete lá na Secretaria Nacional que o estágio do SUAS demanda rever as

estruturas. A gente já está avaliando a necessidade de organizar por serviços, e não

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mais por nível de proteção. Agora, para ter um fluxo eu tenho que colocar conteúdo

nele. Tenho que compreender as especificidades.

Isso ficou muito claro para mim, quando eu andei pelo Brasil todo, discutindo o

reordenamento do serviço de convivência. As pessoas falaram assim: Uai, mas agora

não existe mais básica e especial? Agora vocês estão misturando tudo? Mas como que

o menino do PETI vai para o serviço de convivência? Não estou entendendo! É mais

fácil não ter o serviço!

Então, isso é fruto de uma primeira compreensão sobre o sistema. Para algumas

cabeças, demos uma bagunçada geral quando a gente trouxe a dimensão do risco

social para o debate da convivência, do fortalecimento do vínculo, estabelecendo a

relação entre serviços da básica e da especial.

Essa possibilidade histórica faz sentido para Helena, trabalhadora do CREAS na capital

mineira:

Eu acho que o reordenamento do serviço de convivência e fortalecimento de vínculos

foi muito importante porque trouxe para todos nós um olhar de que precisamos sim

priorizar cada componente e as famílias na inclusão nos serviços. O reordenamento

está trazendo uma discussão obrigatória, que é verificar quais são as crianças e

adolescentes que irão fazer parte de convivência e fortalecimento de vínculos. E aí, as

crianças das famílias acompanhadas no CREAS, estão referenciadas, de fato, para o

acompanhamento no CRAS. Porque além de ter um acompanhamento aprofundado,

especializado, lá no CREAS, ela participa de um grupo do CRAS, nas atividades das

oficinas, nas atividades que a gente tem na Proteção Social Básica.

Finalizando a cena, um tecido leve, do teto ao chão. No movimento de uma escrita à

mão, o tecido contorna lentamente o círculo de cadeiras daquela sala de hotel transformado

num teatro de arena. Nela está grafada em letra cursiva uma reflexão de Paulo Freire.

Sendo os homens seres em “situação”, sujeitos que se encontram enraizados em

condições tempo-espaciais que os marcam e a que eles igualmente marcam, sua

tendência é refletir sobre sua própria situacionalidade, na medida em que, desafiados

por ela, agem sobre ela.

Os homens são porque estão em situação. E serão tanto mais quanto não só pensem

criticamente sobre sua forma de estar, mas criticamente atuem sobre a situação em

que estão.

O “SUAS em cena” encerra com protagonistas, coadjuvantes, plateia, todos em pé

captam o que seus olhos podem alcançar.

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1.2 Implicações do educador na pedagogia da problematização

Ante à construção real de uma situação problemática, o educador estaria presente porque

participaria desta construção. Esta presença poderia se dar por diversas posições; sua escolha e

ação são sempre percebidas. Em geral, ele é demandado a ocupar o lugar de quem explica, posto

que, historicamente, o professor é aquele que enuncia um saber verdadeiro, aquele que detém

uma “supervisão”, ou é portador da análise inquestionável e cabal. Não por acaso, sua presença

em processos educativos ditos “participativos” se dá pela fala de “fechamento”, aquela que

encerra todos os sentidos, costura todos os fios, “não deixa escapar nada”.

Na pedagogia da problematização a elaboração coletiva do problema é a primeira

construção coletiva. Ela não é, tal como dizia Paulo Freire, externa ao grupo que formula ou

previamente definida ou dirigida pelo docente cuja resposta ele sabe de antemão, ou seja, como

um artifício supostamente participativo.

Davini, uma das primeiras e fecundas interlocutoras do projeto de educação permanente

no âmbito no SUS assim define:

El camino de la indagación es la pregunta, por lo cual también se ha dado en llamar

“pedagogía de la pregunta”: ¿Cómo hago?; ¿Qué dificultad encuentro cuando hago?

¿ Por qué lo hago de esta manera?

[…]La identificación de los problemas de la práctica representa un punto

fundamental. Hay que avanzar distinguiendo los problemas subjetivos (sentidos como

tales, pero que permanecen en el plano superficial o individual), de los objetivos, que

son los determinantes de la situación del equipo. En este momento, la constante

pregunta del docente-orientador debe ayudar al grupo a discriminar unos e otros

para avanzar prioritariamente sobre los segundos. (DAVINI, 1989 p.14)

Ao criar a personagem do educador, intento demonstrar que a posição mais adequada

do educador no momento de construção da situação problemática é a de formular perguntas,

sempre a partir do que foi enunciado pelo grupo, tateando possibilidades de desvelar o

funcionamento instituído e nele encontrar sua negação, o instituinte. Por isso, o educador em

presença é um sujeito afetado pelos acontecimentos. Ele não é neutro ou passivo diante das

questões que mobilizam o grupo. Dessa feita, seu ponto de vista não é um lugar fixo ou pré-

fixado que determina um certo “topos”. Distinto disso, o ponto de vista do educador quem

intervém é precisamente o encontro com a força do coletivo que convoca seus pensamentos e

seus afeto.

O ponto de vista dos demais participantes é também modificado sob o efeito dos

elementos que estão constituindo a própria situação problemática. Ao entrar em contato com

visões diferentes, abre-se a possibilidade de um novo horizonte de sentido, não capturado pela

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cristalização da rotina ou pela explicação das teorias. Nesse jogo, o analista é ativo e participa

da construção da problemática, que se torna, para ele próprio mais complexa porque informada

por outros pontos de vista que suscitam perguntas, questionamentos que poderiam ter sido,

incialmente, desvalorizados.

As perguntas também são armas de luta, tal como diz Lourau, ao responder à pergunta:

mas em caso de crise o que fazemos? Responde ele:

Lutamos sozinhos, a 2, a 3, a 10, a 20 para que todas as pessoas envolvidas na situação

se encontrem, falem entre si, reconheçam juntas os analisadores da situação, decidam

coletivamente...[…] uma luta para levar às ultimas consequências (inclusive quanto a

si mesmo) a crise. Eis a analise institucional em ação e não no papel (LOURAU, 2004,

p. 125)

A encomenda do SUAS para seus trabalhadores é: fortalecer os vínculos sociais dos

usuários. Ao invés de simplesmente repetir, é possível problematizar essa encomenda, que está

sustentada na seguinte premissa: os vínculos sociais que compõem (ou poderão compor) a rede

de proteção dos usuários existe, por isso, podem ser fortalecidos por meio do trabalho social.

Diante disso, o educador poderia fazer ecoar perguntas como: sabemos como os usuários

constroem seus vínculos sociais? Conhecemos os vínculos valorizados por eles? As atividades

individuais ou coletivas desenvolvidas nos serviços criam vínculos? Em que se baseiam os

trabalhadores quando afirmam que há vínculos rompidos ao ponto de justificar “tecnicamente”

um acolhimento institucional, por exemplo? Quais relações sociais produzem vínculos de

proteção? Quais delas produzem vulnerabilidade social? O que escapa do trabalho social na

construção de vínculos? Ao “permitir” ou “conceder” autonomia aos usuários os trabalhadores

perdem seu poder? Em que momento a ação profissional gera paralisia nos usuários? Quando

a ação dos usuários desestabiliza a ação dos trabalhadores do SUAS?

As perguntas percorrem conteúdos, posicionamentos políticos e escolhas éticas,

construindo o esboço de um mapa possível para um percurso de aprendizagem nos processos

de educação permanente. E, no entrelaçamento entre as situações problemáticas do primeiro e

do segundo atos, por exemplo, poderiam vir perguntas como: A provisão material por meio de

benefícios induz a Assistência Social a olhar para a pobreza? Se fossem extintas as provisões

materiais, para que os cidadãos procurariam a Assistência Social? Qual é a “materialidade” da

entrega dos serviços socioassistenciais aos usuários? Qual o trabalho social possível a partir da

“evidência” da pobreza? O que “esquecemos” de olhar quando a pobreza está em primeiro

plano?

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Ainda que a problematização seja delimitada no tempo e no espaço – daí a entrada

sempre parcial que temos a situação problema – ela compõe e está enredada num contexto

complexo no sentido de que há múltiplas articulações e ressonâncias nem sempre evidentes.

En definitiva, toda situación entra en resonancia con otra multiplicidad de otras

situaciones. Es lo que hace difícil e interesante la exploración de una situación, porque

cada una de ellas remite directa o indirectamente a otras situaciones. Pensar en una

situación requiere entonces el mismo tiempo centrarse en ella y dejar que nos desvíe

hacia otras situaciones. Pero estos desvíos tienen interés toda vez que, por una parte,

se identifican como tales y, por otra, sirven para esclarecer o desplazar la situación

considerada. (VERCAUTEREN (et al), 2010, p.168)

Por isso, do ponto de vista da organização das situações de aprendizagem é mais

adequado falar em percursos formativos do que em grade ou currículo. Tais percursos são

propostos e desenvolvidos de forma não linear e sem obedecer, necessariamente, a uma

sequência lógica. A construção do conhecimento se dá por ampliação de conexões cognitivas e

afetivas, uma espécie de rede na qual conceitos, posturas ou procedimentos podem iniciar um

percurso de aprendizagem pertinentes às situações problemáticas que se quer transformar.

Desse modo, os percursos formativos são como mapas de travessia que segue algumas balizas

em sua organização e desenvolvimento:

• Curiosidade frente a uma situações-problema. (saber perguntar)

• Tentativa de interpretação das situações. (expor o que já sabe e elaborar hipóteses)

• Identificação dos elementos que a compõem, como funcionam, qual sua dinâmica.

• Exploração e análise das situações, com base em referencias científicas, normativas,

outras práticas profissionais, conhecimentos compartilhados.

• Experimentação de diferentes soluções e produção de consensos possíveis e

contingentes.

• Sistematização e registro para memória, disseminação e submissão à reflexão de outros.

1.3 A problematização como primeira produção coletiva na educação permanente

A escolha de “perfomatizar” o método na própria estrutura da tese implica reconhecer

que as situações problemáticas explicitam mapas possíveis para organizar e propor processos

de educação permanente. Esses mapas têm como premissa o exercício de autonomia e

corresponsabilidade de trabalhadores e educadores responsáveis pelos processos de educação

em serviço. Estes últimos, por sua vez, expressam escolhas quanto ao formato, aos conteúdos

e à abordagem das questões problemáticas que emergem do cotidiano institucional dos

trabalhadores.

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Nessa concepção, o percurso de aprendizagem não é dado a priori pelo educador, mas

construído num processo de negociação do qual o ponto disparador de mudanças das práticas

institucionais adotadas por equipes “reais” e ativas capazes de elevar o padrão de justiça na

atenção devida aos cidadãos. Por isso, a pedagogia da problematização requer tornar visíveis

as incertezas e dilemas do cotidiano. Eles não são temas genéricos à espera da explicação de

um especialista. São problemas situados em contextos concretos, que evocam,

simultaneamente, dimensões conceituais, éticas e políticas. Os conflitos trazidos nas cenas

enredam demandas de entendimento de conceitos, como autonomia, ao mesmo tempo em que

indicam incômodos diante de condutas que humilham os usuários quando tratados como

“ralé”36 – os pobres – convocando discussão ética e também política quando questionam

decisões de funcionamento do próprio SUAS, como a hierarquização entre proteção social

básica e especial.

Portanto, a adoção da pedagogia da problematização reconhece que educadores,

gestores e trabalhadores são corresponsáveis pelo mapa de questões a serem trabalhadas nos

processos de educação permanente. Da perspectiva de pesquisadora busco evidenciar o lugar

do educador nos processos de educação permanente e as ferramentas analíticas da Análise

Institucional são potentes para pôr em evidência um certo modo de exercer esse poder instituído

e também de negá-lo.

O reconhecimento dos conflitos e a sua centralidade no andamento das cenas sinaliza a

presença de dois elementos fundamentais para a Análise Institucional: i) quando surge uma

crise, pode-se dizer que estão dadas as condições para uma análise institucional; e ii) a política

é a vida cotidiana.

Nesse sentido, a reflexão de Marcia no Segundo Ato do “SUAS em cena”, dá

visibilidade à crise ao se dar conta da distância do serviço em relação às possibilidades e

necessidades das famílias.

A visibilidade das problematizações ou análises feitas pelos próprios narradores decorre

da concepção de que a crítica da instituição é parte dela mesma, o que lhe imprime dinâmica e

caráter histórico. No Segundo Ato do “SUAS em cena”, por exemplo, a crítica de Célia sobre

a dissociação entre os serviços que atendem membros da família – como as medidas

socioeducativas – e os que atendem “ a família” – como o PAEFI. No Terceiro Ato, Tania ao

propor que todas as situações atendidas na proteção especial sejam compartilhadas com os

36 Refiro-me ao termo usado por Jessé de Souza e apropriado por Abigail Torres (2013) ao explicitar a produção

social das desigualdades no Brasil.

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serviços de proteção social básica, haja vista a necessidade de gestão articulada quando se trata

de um sistema de proteção.

A explicitação das conclusões a que chegam os narradores trazem possibilidades “reais”

para o campo de tensão colocado na cena. Com isso, são vem à tona linhas de força do futuro,

já vistas ou percebidas no tempo presente, mas ainda que não experimentadas ou concretamente

efetuadas. No Segundo Ato, a experiência de Emerson traz para os serviços de convivência a

própria possibilidade de construção coletiva de demandas das políticas sociais no território

pelos próprios moradores como saída para a sobreposição de sua fala nos encaminhamentos

feitos pelas equipes. O sonho de Rita, no Segundo Ato, de ter no CRAS uma carga horaria para

estudo e planejamento mostra sua viabilidade na experiência por Wanda, no Primeiro Ato, ao

dizer da construção coletiva de uma metodologia de trabalho para todo o município e o

planejamento de ações num diálogo entre as equipes dos serviços e da gestão Ou até mesmo a

sinalização de Ana Maria de que há um disposição da SNAS de reavaliar o modo de organização

do SUAS por hierarquias entre os níveis de proteção, indicando uma estrutura não mais por

níveis de proteção, mas por serviços articulados entre si.

A ação da personagem educador está sustentada na premissa de que “a ação é a análise”.

Por isso, sua intervenção ao formular perguntas, é também disparadora de “crises”, pois evoca

a análise da encomenda, da demanda e de suas próprias implicações. E, precisamente em

relação a este último aspecto – o das implicações – o educador assume a opção pela pedagogia

da problematização: um sujeito que faz da sua presença diante dos conflitos uma oportunidade

para atiçar e aguçar o desejo de aprender para si mesmo e para os outros presentes. Sua

intervenção por meio de perguntas, sempre contextualizadas, pode mover campos como:

problematização a respeito da posição entre os atores, questões para ativar saberes já instituídos;

para produzir novos conhecimentos; para provocar posicionamentos éticos e para produzir

(re)conhecimento da demanda institucional.

Adotar a pedagogia da problematização nos processos de educação permanente significa

também imprimir deslocamentos importantes em face das concepções, decisões e estratégias

que vem sendo adotadas para objetivar demandas de educação continuada no SUAS. Há uma

distância – para não dizer um abismo - entre os enunciados que clamam por processos

educativos e as respostas que vem sendo produzidas.

As instituições que têm seus discursos legitimados nos espaços de debate e proposição

no SUAS tem expressado, cada uma ao seu modo, a encomenda de processos continuados de

educação dos trabalhadores. Sinteticamente, esses discursos podem ser reproduzidos em alguns

enunciados recorrentes.

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Gestores públicos frequentemente reclamam que, a despeito da realização de concursos

públicos, os profissionais que ingressam na Assistência Social não estão suficientemente

preparados pelas instituições de ensino superior para atuar na dinâmica complexa do SUAS.

Docentes e supervisores de estágio frequentemente apontam dificuldades nos processos

de aprendizagem na gestão pública pela distância, ou mesmo negação, de princípios e diretrizes

contidos nas próprias normativas do SUAS, como se a prática prescindisse da reflexão, pois já

está consolidada e “é assim que funciona”.

Representantes de conselhos de categorias profissionais, a exemplo do Conselho Federal

de Serviço Social (CFESS) e Conselho Federal de Psicologia (CFP), constroem parâmetros para

orientar a atuação desses profissionais no SUAS, ao mesmo tempo em que trabalhadores

atestam dificuldades de construção de intersecções e produção conjunta de conhecimento em

equipes interdisciplinares.

Auxiliares administrativos, educadores, cuidadores e outros trabalhadores de nível

médio e fundamental de escolaridade - apesar de terem suas funções recentemente reconhecidas

no SUAS - seguem invisíveis no lugar nebuloso de “auxiliares” de assistentes sociais,

psicólogos, contadores e administradores e sem voz nas arenas de decisão da política de

Assistência Social. Por isso, sequer é possível supor os conflitos que sejam capazes de

explicitar, embora já haja ruídos de assédio moral e submissão abafados pela hierarquização

interna reprodutora do saber-poder das chamadas “equipes técnicas”37. A esse respeito, a profa.

Joaquina Barata manifestou-se de forma veemente na reunião descentralizada do CNAS,

realizada em Manaus, abril de 2012: Não podemos permitir que a distinção entre profissionais

de nível superior e profissionais de nível médio, em termos organizativos no SUAS, se constitua

JAMAIS como a cristalização da divisão social do trabalho que impera na sociedade. No SUAS

os contingentes de trabalhadores de nível de nível médio e de nível superior, tem que se

relacionar em uma divisão técnica do trabalho, mas nunca, NUNCA, em uma divisão social,

produtora da arrogante superioridade classista.

37 Em março de 2015 participei da Roda de Debate “Trabalhadoras/es do Suas em cargos de nível fundamental e

médio: reconhecimento e valorização", organizada pelo Fórum Estadual dos Trabalhadores do SUAS de São Paulo,

em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores em Entidades de Assistência e Educação à Criança, ao Adolescente

e à Família do Estado de São Paulo. Nessa ocasião, foram relatadas situações de assédio moral e submissão que

esses trabalhadores vêm sofrendo por parte de membros de equipes no cotidiano dos serviços socioassistenciais,

enfraquecendo ainda mais a vocalização política de suas demandas. A concepção de problematização defendida

neste estudo advoga que os conflitos sejam tomados como construção coletiva e como produtores de mudanças.

Por isso, há uma direção ética de que queixas ou denúncias não sejam tomadas como sinônimo de situação

problemática, pois elas não instauram simetria entre aqueles que falam e aqueles que ouvem, e podem ser um

recurso para manutenção e/ou reprodução de lugares de vítimas ou de polêmicas estéreis.

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Usuários do SUAS também permanecem, em grande medida, silenciados em suas

vocalizações políticas, sem encontrar no cotidiano da atenção ou nos espaços de controle social

lugar para manifestação de suas expectativas quanto à qualidade que esperam encontrar nos

serviços socioassistenciais. Sua resistência emerge no silêncio da recusa em participar dos

grupos e palestras para controlar sua vida privada sem lhes oferecer reconhecimento público de

cidadania. Na fala de muitos profissionais, eles “não aderem” aos serviços.

Diante dessas encomendas explícitas e demandas ocultas os disparadores dos processos

de educação continuada tem sido, predominantemente, levantamentos repetitivos de temas,

atualização de normativas e de procedimentos para preenchimento de sistemas de informação.

Há que considerar que embora importantes, esses elementos são insuficientes para a

transposição das diretrizes da participação e da descentralização para os dispositivos de gestão

do trabalho, como é hoje a educação permanente no SUAS. Também são ineficientes para

adensar e tornar mais coletiva a direção ética do SUAS com centralidade no usuário, uma vez

que muitos desses disparadores estão mais a serviço do gerenciamento de processos e metas de

gestão do que da constituição de equipes corresponsáveis por ofertar benefícios e serviços de

qualidade à população.

Nesse caso, caberia indagar: Quais os processos de trabalho próprios da gestão federal,

estadual e municipal, além de produzir encomendas para aqueles que estão “na ponta” e

prescrever suas ações? Quem pode fazer a encomenda e explicitar as crises e instabilidades

presentes nos processos de gestão para que, no mesmo movimento, seja possível construí-las

como situações problemáticas disparadoras de processos de educação permanente? As

conferências e os conselhos de Assistência Social e, mais recentemente os Núcleos de Educação

Permanente, instituídos gradativamente após a aprovação da Política Nacional de Educação

Permanente do SUAS (PNEP-SUAS/ 2013), são as instâncias de ação política mais ampliadas

hoje no SUAS, que podem servir a essa experimentação nas propostas de aprimoramento da

gestão do trabalho; assim como somados a espaços e institucionalidades em nível micropolítico,

como comissões temáticas no âmbito dos conselhos, câmaras técnicas, grupos de trabalho, a

exemplo do que será analisado no terceiro capítulo desse estudo.

A construção coletiva de situações problemáticas induz deslocamentos de natureza

filosófica e política e reverte concepções que tem sustentado muitas decisões de gestão hoje no

SUAS no que tange aos processos de educação continuada. Isso porque listas temáticas,

atualizações normativas e treinamentos para sistemas informacionais fundamentam-se na

distância entre experiência, aprendizado e finalidade do trabalho. E na certeza de que a

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informação e a norma são “evidências” suficientes para alterar práticas institucionalizadas e

produzir sentido para elas. Portanto, basta transmiti-las repetida e continuadamente.

Ao revés, Dewey confrontou-se a essa concepção ao criticar o verbalismo:

Saber se segunda mão, saber que não é nosso, mas dos outros, tende a tornar-se

meramente verbal. Nada se objeta a que as informações sejam expressas com palavras;

a comunicação opera-se necessariamente por meio de palavras. Mas na proporção em

que o comunicado não possa ser incorporado à experiência existente de quem aprende,

converteu-se em simples palavras isto é, estímulos sensoriais desprovidos de

significação. (DEWEY, 1979a, p. 207 apud MURARO, 2013, p. 821. Grifos do autor)

A pedagogia da problematização filia-se a uma outra linhagem filosófica, parte dela já

explicitada no pensamento de Dewey e Freire, que critica a hegemonia do racionalismo

cartesiano, a cisão entre sujeito-objeto, teoria-prática, objetividade-subjetividade. Reconhece

que os desdobramentos das afirmações de Descartes para o conhecimento científico

produziram, entre outros efeitos, a primazia do método das ciências naturais e do pensamento

matemático sobre as ciências sociais por sua capacidade de produzir as “evidências

cartesianas”.

Tais efeitos são conhecidos e foram analisados e criticados por diferentes matizes

filosóficas. Chauí (1982) critica o modo como esse pensamento hegemônico vem sendo

reproduzido em diferentes instituições, inclusive na docência e na pesquisa universitária.

Recupera com precisão o ponto chave deste debate:

Não podemos esquecer que o humanismo moderno nasce como ideal de domínio

técnico sobre a natureza (pela ciência) e sobre a sociedade (pela política), de sorte que

o chamado homem ocidental moderno não é a negação do tecnocrata, mas um de seus

ancestrais. O homem moderno, na qualidade de sujeito de conhecimento e da ação, é

movido pelo desejo de dominação prática sobre a totalidade do real. Para tanto, precisa

elaborar uma ideia acerca da objetividade desse real que o torne susceptível de

domínio, controle, previsão e manipulação. Na condição de sujeito do conhecimento,

isto é, de consciência instituidora de representações, o homem moderno cria um

conjunto de dispositivos teóricos e práticos, fundada na ideia modera de objetividade

como determinação completa do real, possibilitando a realização do adágio

baconiano: “saber é poder”. [...]

O sujeito enquanto constituidor das representações, ocupa o lugar do puro observador,

isto é, instala-se num polo separado das coisas e graças a essa separação pode dominá-

las. [...] Assim, opor de maneira muito imediata humanismo e tecnicismo, não leva

muito longe, pois são resultados diversos da mesma origem. (CHAUÍ, 1982, pp.61-

62)

Autores que tem trazido as reflexões filosóficas de Foucault para as práticas educativas

reforçam essa crítica, em matriz distinta daquela que orienta a crítica de Chauí, para

reposicionar a relação entre experiência e educação fora do enquadre do pensamento cartesiano.

Como observou Castro (2006), a fragmentação, repetição e descontinuidade das investigações

de Foucault compõem uma escolha política de resistência ao pensamento cientifico ou

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filosófico que pretendem recompor uma totalidade ou afirmar uma verdade universal. O caráter

nômade deste pensamento, também negador de uma afirmação de autoria, consistiria no retorno

aos saberes não-sujeitados. Deste modo, Foucault afirma:

De fato, se trata de fazer jogar os saberes locais, descontínuos, desqualificados, não

legitimados contra a instância teórica unitária que pretendia filtrá-los, hierarquizá-los,

ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma

ciência que seria propriedade de alguns.[...] É contra os efeitos do poder, próprios de

um discurso considerado como cientifico que a genealogia tem que levar adiante o

combate. (FOUCAULT, 1997 apud CASTRO 2006, p.64)

Ao negar a ciência como única verdade, assim como o exercício de dominação que ela

cria e justifica, Foucault mantém abertas as fissuras do tempo presente para que delas seja

possível criar outras formas de pensamento e ação. A apropriação do pensamento de Foucault

no campo da educação tem sido feita no Brasil especialmente a partir dos anos 1980, com

intensificação nos anos 1990. Os autores que se dedicam a esse exercício intelectual e práxico

reiteram que não se vê explicitamente nos escritos do filósofo francês uma discussão acerca da

educação, mas encontram nele armas para o combate de práticas educativas autoritárias,

produtoras de sujeição e obediência.

Nesse sentido, o diálogo tem sido buscado pelo menos por duas vias: pela discussão das

técnicas do poder, especialmente a disciplina; e pela reflexão em torno do governo de si e a

produção de subjetividades não sujeitadas.

Segundo Castro (2006), pelo ângulo da disciplina é possível circunscrever a organização

da educação e da ciência pedagógica como elementos do grande processo de reestruturação do

poder moderno a partir dos séculos XV e XVI. Do ponto de vista produtivo do poder, a

disciplina produz individualidade. No campo da educação essa construção se dá pelo conjunto

de técnicas micropolíticas, como:

a relação dos sujeitos com o espaço, ao organizar uma individualidade definida desde

uma classificação. Na educação, esse espaço é a classe disposta com cadeiras

enfileiradas voltadas para o professor;

a relação dos sujeitos com o tempo, que ajusta o corpo ao imperativos temporais

marcados desde a exterioridade cronológica. É o tempo educativo da sequência,

repetição e graduação do qual os currículos com pré-requisitos são exemplos notórios;

a relação do sujeito consigo mesmo atravessada pela força e sanção normalizadora, que

refere as condutas individuais a padrões comparativos que definem a escala do normal

e do anormal. Os exames e as provas são exemplares desta normalização das condutas

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disciplinadas, que trazem para a educação o modelo matemático como o único capaz de

aferir valor.

Os três aspectos expostos acima traduzem o modo como pedagogos tem utilizado da

descrição das técnicas do poder feita por Foucault na Microfísica do Poder (1979) para a

analisar os espaços, tempos e sujeitos da educação.

Ainda nessa apropriação da disciplina no campo da educação, Castro aponta também a

disciplina como especialização do saber na educação moderna. Desloca-se, então, a pluralidade

dos saberes e das ciências para a centralização, especialização e hierarquização dos saberes,

tendo o saber cientifico a prerrogativa de superioridade em relação aos saberes ditos inúteis.

Duas instituições são criadas nesse bojo: a universidade moderna, lócus por excelência da

produção da ciência, e as escolas normais, baseadas no princípio de coerção e padronização do

ensino. Daí a ligação entre a constituição das ciências humanas e sua intrínseca relação com os

dispositivos de poder analisados por Foucault em Vigiar e Punir.

Chauí, novamente com precisão, aborda o modo pelo qual a universidade brasileira

ainda vem reproduzindo essa relação de poder-saber, sobretudo pela confusão que tem feito

entre pensar e conhecer, que ela assim concebe:

Conhecer é apropriar-se intelectualmente de um campo dado de fatos e de ideias que

constituem o saber estabelecido. Pensar é desentranhar a inteligibilidade de uma

experiência opaca que se oferece como matéria para o trabalho de reflexão para ser

compreendida e, assim, negada enquanto experiência imediata. Conhecer é tomar

posse. Pensar é trabalho da reflexão. O conhecimento se move na região do instituído,

o saber na do instituinte. (CHAUÍ, 1982, p. 60)

Ao reconhecer que a universidade brasileira – reconhecida como a instituição educadora

por excelência – tem reduzido a questão do saber à do conhecimento, ela pode administrá-lo,

dividi-lo, dosá-lo, distribuí-lo e quantificá-lo. Pode-se afirmar até que é possível comercializá-

lo para gestores públicos, selecionando conhecimentos e quantificando horas sob a forma de

cursos certificados que, sob sua autoridade correm o risco de “dar a conhecer para que não se

possa pensar”, como sintetizou Chauí em poucas e contundentes palavras. Para ela

A universidade está estruturada de tal forma que sua função seja: dar a conhecer para

que não se possa pensar. Consumir em lugar de um trabalho de reflexão. Porque

conhecemos para não pensar. Tudo quanto atravessa as portas da universidade só tem

direito à entrada e permanência, se for reduzido a um conhecimento, isto é, a uma

representação controlada e manipulada intelectualmente. É preciso que o real se

converta em coisa para adquirir cidadania universitária. (1982, p. 62. Grifo da autora)

Para Foucault, a problematização também implica um modo de conceber a atividade do

pensamento. Em entrevista a Paul Rabinow (1998), explicita o que é para ele o pensamento, o

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que em complementaridade ao já exposto na introdução desta tese, dá sustentação para afirmar

as condições necessárias para que a problematização seja possível.

Pensamento não é o que reside numa certa conduta e que lhe dá seu significado. É

como dar um passo atrás desse jeito de agir ou reagir para apresentar a si mesmo como

um objeto de pensamento e questionar quanto ao seu significado, suas condições e

seus objetivos. Pensamento é liberdade em relação ao que se faz, o movimento pelo

qual se depreende dele, estabelece-o como objeto e reflete sobre ele como um

problema. (FOUCAULT, 1998. Tradução livre).

Dar um passo para trás, é importante que seja dito, não significa recuo, retrocesso. Antes

disso, é o ato de separar-se do que se faz, para estranhar determinados modos de pensar, agir e

sentir. Interrogá-los sob outro ponto de vista e abrir fissuras de modo que outras possibilidades

possam ser vistas, sentidas e, sobretudo, experimentadas. Por isso, a problematização para

Foucault não é um exercício de um indivíduo isolado, embora a problematização seja,

simultaneamente, uma prática reflexiva sobre si mesmo38.

Dizer que o estudo do pensamento é a análise de uma liberdade não significa que se

está lidando com um sistema formal que só tem referência em si mesmo. Na verdade,

para um domínio de ação, um comportamento, para entrar no campo do pensamento,

é necessário um certo número de fatores que o tenham tornado incerto, tenham perdida

sua familiaridade, ou ter provocado um certo número de dificuldade em torno dele.

Estes elementos resultam de processos sociais, econômicos ou políticos. Mas aqui seu

único papel é de instigar. (FOUCAULT, 1998. Tradução livre.)

Considerando que o objeto desse estudo são os nexos entre educação e trabalho

institucional, a relação entre experiências e práticas institucionais no SUAS precisa ser acessada

de forma peculiar. O recente e intenso processo de institucionalização do SUAS tem gerado

essas incertezas e dificuldades de ordem ética, política e econômica.

A política de Assistência Social pode ser compreendida nesse contexto como um

amálgama de leis, instituições públicas e sujeitos políticos “concretos”. Os atores do “SUAS

em cena” explicitam os vetores que desestabilizam suas certezas. Do ponto de vista social, o

reconhecimento dos direitos dos usuários à proteção social de Assistência Social desloca a

centralidade das burocracias e das entidades de assistência social e põe no centro os cidadãos a

que a ela tem direito.

38 A noção de epilemeia, trabalhada por Foucault como trabalho sobre si mesmo, um labor, é retomada por Gallo

(2006) para explorar a relação entre cuidar de si como “preparação” para governar o outro, especialmente o diálogo

entre Sócrates e Alcibíades. Nesse sentido, ao “retornar” ao mundo antigo, Foucault instiga a pensar o cuidado de

si como necessário para governar a cidade. Especialmente porque a cisão entre cuidar de si e cuidar do outro não

estava posta para os antigos. A ascese cristã é o traço que constitui o movimento de separação entre cuidar de si e

cuidar do outro por meio de práticas de negação de si, de deixar-se governar por outrem. Em certo sentido, o

diálogo entre a educação e as reflexões de Foucault em torno das morais antigas (plurais) e nelas os cuidados de

si abre a possibilidade de uma crítica das práticas educativas desde a produção de subjetividades não controladas,

mas sim como práticas de liberdade.

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As falas de “concessão de autonomia”; “dar permissão ao usuário” expressam as

dificuldades de fazer esse trânsito da tutela para a cidadania. Ou ainda falas que demonstram a

extrema “autonomia” de profissionais que fazem o registro para si mesmos, como relatado por

Wanda, no Primeiro Ato: Cada CRAS fazia de um jeito. Dentro de um CRAS cada profissional

fazia de um jeito. Cada um tinha cinco técnicos e cada técnico usava um instrumental diferente.

E também por Meire: O que a gente está tentando ajustar agora [é o seguinte:] o papel vem,

mas só que a família não é informada! Então às vezes ela chega para ser referenciada no CRAS

ou ter a unidade como referência naquele território, e ela fala: Mas eu sou atendida lá no

CREAS!

Do ponto de vista econômico, institui serviços e centros de referência de atuação direta

do Estado, demandando constituição de equipes profissionais e pactuação de cofinanciamento

federal devido à maior incidência desses serviços em âmbito municipal. No “SUAS em cena”,

Marcia fala de equipes insuficientes para atender à demanda nos territórios: Como o CRAS é

porta aberta, então, são várias demandas que surgem. A gente acolhe, faz a escuta... Mas eu

não sei se é em relação à quantidade de pessoas atendidas e à quantidade de profissionais, que

a sensação é que nunca a gente consegue terminar, de você conseguir chegar até aquele

acompanhamento ao final.

As dificuldades na disputa pelo recurso público são reveladas de diferentes formas, tal

como analisa Rosário: Vai depender da nossa capacidade de planejamento, de avaliação, de

monitoramento e de organização dos nossos serviços para que nós não só possamos

corresponder às previsões que estão já asseguradas na lei do SUAS, como também que

tenhamos esse reconhecimento e, portanto, tenhamos condições de disputar apoios políticos e

fundos públicos que viabilizem esta organização e essa articulação. Isso é uma conquista, isso

nunca vai ser uma doação!

Do ponto de vista político, a maior clareza quanto à especificidade do conteúdo próprio

da Assistência Social impacta a estrutura das administrações públicas pelo reconhecimento

desse campo de responsabilidade pública e seus efeitos nas relações interinstitucionais, a

exemplo dos poderes Legislativo, Judiciário e Ministério Público. As dificuldades formam

apontadas no Segundo Ato por Dirce: No diálogo com as outras políticas, a gente fica muito

fragilizado quando nos indagam - Mas o que o sujeito vai fazer lá no CRAS? O que o sujeito

vai fazer lá no CREAS? - Isso nos gera, me parece, que que uma certa imposição do que nós

devemos fazer por parte do outro. Como tem um vazio de conteúdo, eles nos dizem o que nós

temos que fazer. E também por Telma: Até dentro das próprias políticas setoriais as pessoas

ainda colocam a Assistência Social como ajuda e não como direito. Então qualquer questão de

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urgência que ninguém conseguiu resolver dentro da própria administração pública ainda se

entende que é papel da Assistência Social fazer.

1.4 Direção democrática: a coerência da educação permanente como estratégia de

gestão

A problematização, tal como apreendo das teorizações de Foucault, oferece um modo

de construir nexos entre conhecimento e sujeito inventando novas possibilidades de exercício

do poder. Ou seja, reforçam o caráter político da pedagogia da problematização, que coloca o

trabalho e a própria instituição diante do exercício do pensamento. A leitura de Sousa Filho

lançou luz sobre um aspecto fundamental das pesquisas de Foucault para analisar a educação:

Estudar o poder, a sujeição, as técnicas de fabricação da subjetivação permitiam a

Foucault evitar enganos de pensar a liberdade como aquela constituída por

mecanismos jurídicos, com base nos embates com a lei, e assim como quase sempre

a temos buscado. A mesma liberdade que, concedida através do aparato jurídico-

político do poder é por ele usurpada e serve para legitimá-lo nas suas próprias

concessões. Dessa liberdade deve-se desconfiar. (SOUSA FILHO, 2008, p.15)

Por isso, para produzir uma posição ativa no processo de aprendizagem é necessário um

certo trabalho sobre si, uma reflexão ética de sua relação com o mundo e, mais especificamente

no foco deste estudo, de sua relação com a proteção social pública. Daí a força de perguntas

que dispara nos educadores e nos trabalhadores muitas e diversas possibilidades de pensar e

agir fora da captura da obediência irrefletida às normas ou da produção de informações

ignorando suas finalidades. Irene, no Segundo Ato, corrobora a ideia de que na Assistência

Social, território ainda é um mito, dada a distância entre o conceito e as decisões de gestão: Nós

na gestão, muitas vezes, perdemos a referência do território. A família está no território. Nós

temos o equipamento de referência no território que é o CRAS, temos a relação direta com essa

família. Se acontece algum tipo de violação de direito, com o adolescente por exemplo, ele vai

para a proteção especial. Muitas vezes os profissionais acabam desconectando essa família da

Política, achando que isso é da especial.

Assim, a problematização é um exercício político de combate ao exercício do saber-

poder como forma de sujeição: seja ela de trabalhadores e gestores pela universidade; seja de

trabalhadores de nível médio de escolaridade por aqueles que possuem graduação; seja dos

usuários pelos trabalhadores do SUAS. Exige, portanto, deslocamentos nos modos de pensar e

agir, dentro de um espaço e tempo específicos, para produzir respostas (contingentes) ou

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propostas (viáveis) diversas daquelas inicialmente consideradas como dadas e imutáveis por

ser, supostamente, a expressão da verdade ou da ‘realidade’.

A propósito da relação do sujeito com a verdade, a reflexão de Foucault é oportuna:

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é –

não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a

recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que

souberam se libertar. A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas

coerções e nele produz efeitos regulamentos de poder. (FOUCAULT, 1979, p.12)

Ao percorrer o trajeto de estudos de Foucault, num engendramento não linear e unívoco,

Castro (2006) retoma o espectro dos mecanismos de poder disciplinar e de segurança. Nesse

espectro, encontra o tema do governo, da governamentalidade, para expor uma via ainda pouco

explorada no campo educativo: o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre o

outro e as técnicas de si como exercício de liberdade. Por outras palavras, tal como sugere Sousa

Filho:

Quando o sujeito se exercita pelo pensamento a considerar como devendo produzir-

se como uma obra de arte, permanecendo mestre de si, vivendo consigo mesmo,

repousando em si próprio, refletindo sobre a natureza do seu próprio governo, sendo

o sujeito ético que se pensa, sendo capaz de agir em função de uma verdade, e devendo

sê-lo pelo exercício da reflexividade e da ação. (SOUSA FILHO, 2008, p. 21)

Ao dar consequências para afirmação de que as situações problemáticas são uma

produção coletiva, é fundamental expor seu posicionamento político: a construção de situações

problemáticas não é o imediato retrato em negativo da realidade.

Quando digo que as situações problemáticas são coletivas é porque elas dizem respeito

a situações e acontecimentos que afetam um conjunto de relações sociais, sejam elas entre os

membros da equipe de um serviço ou departamento, entre a equipe e os cidadãos usuários, entre

membros de diferentes equipes e instituições ou mesmo entre equipes de trabalhadores e equipe

gestora.

Por isso, a reflexão sobre si mesmo é necessária, mas nunca isolada. É um ato reflexivo

com o outro, tal como expressam as problematizações de Laís: Acho que a gente está num

momento de mudança de paradigma, de tentar não ser mais conservadores. Mas estamos

colocando essas famílias e esses indivíduos nas caixinhas! Então ele é da caixinha do CRAS,

ora ele é da caixinha do CREAS. Pelas falas, me parece que a gente está brigando por uma

população! É uma Po-lí-ti-ca de Assistência Social, nós a dividimos hierarquicamente, mas

essa pessoa não está dividida hierarquicamente! Então acho que assim, a gente tem que

começar a pensar nessas questões, isso me incomodou bastante aqui.

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As situações problemáticas são vividas por um coletivo ativo em um campo institucional

em movimento. Tomada nesse sentido, a problematização é uma construção coletiva, uma

criação que pode produzir a sensação de potência e vontade de agir, pois ela não resulta da cisão

objetividade-subjetividade. A matriz ética e política é de clara inspiração na racionalidade de

Baruch Espinosa, que sustenta uma rede de conceitos e autores da qual fazem parte Foucault e

Chauí. Esta última, como estudiosa dedicada a este filósofo é capaz de uma síntese clara e

precisa:

Espinosa dizia que a razão só inicia o trabalho do pensamento quando sentimos que

pensar é um bem ou uma alegria, e ignorar, um mal ou uma tristeza. Somente quando

o desejo de pensar é vivido e sentido como um afeto que aumenta nosso ser e nosso

agir é que podemos avaliar todo o mal que nos vem de não saber. Pensar, agir, ser

livre e feliz constituem uma forma unitária de viver individual e politicamente.

Ignorar, padecer, ser escravo e infeliz, também constituem um modo unitário de

existir. Por isso, escrevia Espinosa, não há instrumento mais poderoso para manter a

dominação sobre os homens do que mantê-los no medo e para conserva-los no medo,

nada melhor do que conservá-los na ignorância. Inspirar terror, alimentar o medo,

cultivar esperanças ilusórias de salvação e conservar a ignorância são as armas

privilegiadas dos governos violentos. (CHAUÍ, 1982, p.57)

A pedagogia da problematização oferece, portanto, aportes para instigar atitudes

críticas. No “SUAS em cena” que dá visibilidade ao ponto chave da institucionalização: a crítica

da instituição é parte dela mesma, o que lhe imprime dinâmica e caráter histórico. Contribui,

portanto, para colocar em movimento as diretrizes do SUAS no cotidiano da gestão do trabalho

e da atenção à população. Afinal, como analisa Nogueira,

A gestão participativa depende intensamente de profissionais que dominem o campo

técnico-científico e que sejam capazes de pensar de modo complexo, realizar análises

concretas de situações concretas e imprimir outro padrão ético à administração

pública. (NOGUEIRA, 2004, p.132)

Por isso, o projeto que advogo nesta tese é de que a pedagogia da problematização é

capaz de produzir nexos mais consistentes entre educação e trabalho no SUAS. Com isso, eles

não se limitam a transmitir conhecimentos, normas e procedimentos. Isso significa adotar um

pensamento de “adição” e não de “negação”, ou seja, reconhecer a importância do que já está

estabelecido, mas suspendendo, temporariamente, sua prévia autorização para prescrever

condutas e procedimentos.

O cotidiano problematizado convoca simultaneamente a produção de sujeitos e objetos

do conhecimento, teorias e práticas que se alimentam mutuamente. Os desdobramentos dessa

afirmação são objeto do capítulo que segue.

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93

2. EXPLICAÇÕES PARCIAIS PARA O COTIDIANO PROBLEMATIZADO

O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina;

cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no

estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de

narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o

saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado,

recolhido pelo trabalhador sedentário. (BENJAMIM, 1994, p. 198)

Nesse segundo capítulo, exploro a força instituinte do Decálogo dos Direitos

Socioassistenciais, aprovado na V Conferência Nacional de Assistência Social para adensar os

nexos entre educação e trabalho institucional no SUAS. Tomando como ponto de partida o 5º

direito socioassistencial, situo uma trama de tensões que o processo de institucionalização

expõe aos olhos do analista que busca captar esse movimento e, em alguma medida, reunir

elementos para explica-lo.

O argumento que desenvolvo neste capítulo consiste em demonstrar o campo de

imanência que constitui, no mesmo processo histórico, o direito dos usuários e o lugar

institucional dos trabalhadores do SUAS. Por isso, o enunciado do 5º direito do Decálogo é

examinado em suas consequências éticas e políticas para o trabalho vivo em ato.

Direito do usuário à acessibilidade, qualidade e continuidade. Direito, do usuário

e usuária, da rede socioassistencial: à escuta, ao acolhimento e de ser protagonista

na construção de respostas dignas, claras e elucidativas ofertadas por serviços de

ação continuada, localizados próximos à sua moradia, operados por profissionais

qualificados, capacitados e permanentes, em espaços com infraestrutura adequada

e acessibilidade, que garantam atendimento privativo, inclusive, para os usuários com

deficiência e idosos. (CNAS, 2005. Grifos meus.)

Esse enunciado traz conteúdos suficientes para afirmar que os processos de educação

permanente constituem os direitos dos usuários39. Pelo avesso, a afirmação seria: a ausência de

trabalhadores “capacitados” para construir respostas dignas e claras com os usuários põe em

risco a efetivação de seus direitos. Três elementos desdobram-se dessa afirmação, sustentando

o diálogo com os conflitos trazidos em cada ato do “SUAS em cena”, respectivamente: i) a

participação como método e conteúdo do trabalho no SUAS; ii) a concepção que traz

39 Pela parcialidade das questões trazidas no “SUAS em cena” não me atenho às decisões e ao processo de trabalho

das equipes de gestão, também inerentes ao direito dos usuários: o acesso facilitado pela proximidade e em espaços

adequados, ambos os conteúdos dizem de demandas para planejar e avaliar o acesso e cobertura, assim como

indicam a qualidade dos serviços prestados e poderiam por luz em situações problemáticas afetas, por exemplo,

entre as equipes de gestão, responsáveis pela função de vigilância socioterritorial e as equipes dos serviços, por

exemplo.

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visibilidade dos usuários na cena pública: pobres versus cidadãos e; iii) a necessidade de

produção de conhecimento como parte dos processos de trabalho no SUAS.

Na primeira seção deste capítulo, aprofundo parte do conteúdo do 5º direito mencionado

acima – direito de ser protagonista de respostas dignas, claras e elucidativas – para

desenvolver argumentos que sejam capazes de produzir explicações para o dilema ético trazido

no Primeiro Ato do “SUAS em cena”, a saber: a tensão entre a autonomia dos trabalhadores e

o direito à proteção social devida aos usuários. Exploro, portanto, o primeiro elemento, o da

participação como método de trabalho no SUAS e como conteúdo político deste mesmo

trabalho.

Na segunda seção, recupero e atualizo as construções históricas que ainda vigoram na

Assistência Social entendida como política para pobres e não para cidadãos. Exploro as tensões

e a problematização do Segundo Ato do “SUAS em cena”, particularmente a partir da pergunta

do educador: Qual o trabalho social possível a partir da constatação da pobreza?

Na terceira seção, enfatizo outro componente do 5º. Direito socioassistencial – direito a

serviços operados por profissionais qualificados, capacitados e permanente - desenvolvo o

argumento para explicar que os processos de educação permanente são inerentes aos direitos

dos usuários, sobretudo quando se afirma que sua materialização ocorre pela oferta de serviços

(e não de projetos e benefícios). Adentro as tensões emergentes na problematização do

Primeiro e Terceiro Atos: produzir conhecimento sobre relações e vínculos sociais que têm

orientado a hierarquização da atenção em prevenção às violações do direito à convivência e a

reparação deste direito quando violado pelo Estado, pela sociedade ou pela família.

Em continuidade ao exercício de fazer desta tese a demonstração do método da

pedagogia da problematização, ressalto que as explicações que um educador ou um analista

possam oferecer são sempre parciais e contingentes às situações que um grupo constrói para

dar vazão às suas incertezas.

Portanto, nesta condição particular de pesquisa, trata-se de produzir algumas

explicações – sempre parciais e contingentes – para as questões trazidas pelos trabalhadores no

“SUAS em cena”. Afinal, como esclarece Vercauteren,

Nos estamos introduciendo en el movimiento de a ‘problematización’’ a partir de una

línea, de una localidad, de un espacio-tiempo más o menos determinado. Efectuamos

de alguna forma un corte en el caos: extraemos una tendencia, un pliegue, que

nombraremos ‘situación’. Esta situación es concreta, en el sentido de que es palpable

y es posible definir sus contornos, desde luego siempre parciales y limitados.

(VERCAUTEREN, 2010, p.167)

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Para tanto, as situações problemáticas devem ser exploradas em dois níveis: o da

implicação e o da explicação. O primeiro remete à experiência concreta dos trabalhadores que

ofereceram sua narrativa no “SUAS em cena”, a personagem do educador que acolhe e ressoa

as problematizações do grupo e a do narrador que reconstruiu as narrativas, implicando-se com

elas. O segundo nível – da explicação - remete a diferentes recursos teóricos e analíticos aos

quais se pode recorrer e mobilizar nos processos de educação permanente.

Novamente Vercauteren argumenta que ambos os níveis, embora distintos, são

complementares na problematização:

Para explorar una situación concreta, disponemos de dos tipos de recorridos. Dos

movimientos complementarios, pero relativamente distintos. Se trata en un primer

momento de implicarse, entrar en la materia, revolver en esa experiencia, la nuestra,

para, a continuación, articular y desarticular sus múltiples componentes, con el

objetivo de ‘des-prenderse’, descentrarse’ con respecto al modo en que

aprehenderíamos la situación hasta el momento. […]

El segundo nos remite a los diferentes campos de recursos analíticos y teóricos a los

que hemos podido recurrir y que hemos podido movilizar: la semiología, la filosofía,

la estética, la historia, la economía…. Así como a nuestros propios saberes, adquiridos

a lo largo de nuestras diferentes experiencias y que muchas veces son menos fáciles

de categorizar.

El ex de ex-plicare designa el acto de ‘desenrollar’ y ‘desplegar´ lo que está im-

plicado, o sea: lo que está ‘plegado dentro, enredado, embrollado’. (VERCAUTEREN

(et al), 2010, p.169. Grifos do autor.)

O entrecruzamento entre o ato de implicar-se e de explicar contribuem para que sejam

expostas as premissas da problematização. Por isso, neste capítulo, recorro à história registrada

em estudos e pesquisas na área da proteção social e da Assistência Social.

Para desenvolver os processos de educação permanente baseados na pedagogia da

problematização na acepção aqui defendida, o educador é também portador de referências

conceituais e metodológicas construídas a respeito das demandas de conhecimento requeridas

nas situações problemáticas coletivamente construídas. Desse aporte, ele faz as escolhas para

ampliar as referências “explicativas”. Esse recurso tem duas premissas.

A primeira premissa: o conhecimento cientifico é uma prática social que, ao lado de

outras práticas sociais, compõe o processo de construção do SUAS. Sua singularidade reside

no fato de que, com certa frequência, ele produz o “discurso competente” e, nessas

circunstâncias, como assevera Chauí (1982):

O discurso e a prática científicos, enquanto competentes, possuem regras precisas de

exclusão e inclusão cuja determinação, em última circunstância, é dada finalmente,

pela divisão das classes sociais. No entanto, não é apensa como reprodutora da divisão

social e dos sistemas de exclusão social que a ciência é poderoso instrumento de

dominação, nem mesmo como condição necessária da tecnocracia. Ela é poderoso

instrumento de dominação porque é fonte de intimidação.

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[...] Interpostas entre nós e nossas experiências, esses discursos competentes tem a

finalidade de fazer-me considerar minha própria vida como desprovida de sentido

enquanto não for obediente aos cânones do “progresso cientifico” que me dirá como

ver, tocar, sentir, falar, ouvir, escrever, ler, pensar, viver. (CHAUÍ, 1982, p.58-59)

A segunda premissa, decorrente da anterior: a necessária articulação entre educação e

democracia, tal qual a preocupação de Dewey há mais de um século. Há pelo menos três formas

de articular democracia e educação: pelo reconhecimento de que todos sujeitos produzem

cultura e conhecimento; pelo acesso à produção cultural e de conhecimento; pela

desnaturalização da hierarquia entre ciências “puras” e ciências “aplicadas”.

Ao adotar a concepção de Dewey segundo a qual a educação é uma reconstrução da

experiência para ampliar seu sentido, entendo que o atual momento de institucionalização do

SUAS é fértil para o aprendizado entre diferentes gerações. Por impulso de concursos públicos

realizados mais recentemente e, também, pelo processo de reordenamento de serviços, no qual

muitos jovens trabalhadores convivem com aqueles que atuam na Assistência Social há tempos.

E por que não dizer que o direito dos trabalhadores do SUAS à memória é um elemento

articulador, no tempo presente, da educação com o trabalho institucional? Essa narrativa

poderia ser estimulada e se constituir em domínio dos profissionais em seus registros de

trabalho e da produção científica.

Entretanto, a ausência de registros do trabalho ou o trato a eles conferidos ao longo dos

anos têm levado à perda de narrativas importantes sobre o trabalho na Assistência Social. O

relato de Wanda no Segundo Ato do “SUAS em cena” expõe essa lamentável fragmentação–

Cada CRAS fazia de um jeito. Dentro de um CRAS cada profissional fazia de um jeito -. Mais

recentemente, a profusão de sistemas de informação tem aumentado exponencialmente o

volume te informações sobre o trabalho no SUAS, mas não tem gerado na mesma medida

conhecimentos compartilhados entre equipes de gestão e equipes dos serviços40.

Nesse sentido, a convivência intergeracional hoje vivida pode ser produtiva se a

experiência e o conhecimento gerado pela prática forem colocados em análise nas equipes em

processos de sistematização do próprio trabalho. Desse modo, as narrativas dos trabalhadores

40 A situação das equipes do âmbito estadual é especialmente dramática. Em seminários que realizei em 2014,

junto a esses grupos, pude saber do enorme número de profissionais prestes a se aposentar sem que novos

concursos sejam abertos; ou mesmo sejam pouco atrativos para novos profissionais devido aos baixos salários que

vigoram na área. E, lamentavelmente, pouco se sabe sobre os processos de trabalho desenvolvidos pelas equipes

estaduais de Assistência Social. Encontrei realidade semelhante ao coordenar o ESPASO na capital paulista: cerca

de 23% dos servidores púbicos da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social se aposentariam nos

próximos quatro anos. Uma das estratégias que propusemos para construir o Plano Municipal de Educação

Permanente consistiu em realizar Rodas de Conversa com esses trabalhadores para produzir narrativas e

sistematizar suas experiências. Desse modo, teríamos conteúdos vivos para o processo de formação inicial para

acolher os novos trabalhadores que seriam empossados no concurso público. O acesso à memória e sua

problematização como parte do aprendizado institucional.

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do SUAS podem ser uma força de negação daquilo que Arouca (2003) chamou de “atitude

ausente”.

Tendo como fio condutor as correlações entre o conhecimento produzido e a prática

profissional, Arouca (2003) denomina “atitude ausente”, e analisa dois cenários instigantes: o

primeiro deles, quando a prática não cria questões para a ciência, tornando-se um obstáculo ao

desenvolvimento do conhecimento; o segundo, quando a prática gera resistência e não se

apropria de conhecimentos já produzidos, o que também a empobrece tanto do ponto de vista

prático quanto analítico. Daí a epigrafe deste capítulo ser uma inspiração em Benjamin para

que os trabalhadores possam transitar entre aprendizes migrantes e mestres sedentários.

2.1 Direito do cidadão de ser protagonista de respostas dignas: uma ética de

princípios e de responsabilidade

A mudança do eixo da política de Assistência Social do campo da tutela para o da

cidadania tem força instituinte até os dias de hoje, sobretudo pela criação de três funções a partir

da PNAS/2004: proteção social, defesa institucional e vigilância socioterritorial.

Em sentido amplo, as tensões explicitadas pelos trabalhadores quanto às funções de

proteção e defesa de direitos do Primeiro Ato do “SUAS em cena” são motivadas por uma

premissa fundamental do trabalho institucional em quaisquer políticas sociais que realizam o

dever de Estado. Há um poder institucional investido nos agentes públicos, que o manejam para

satisfazer o interesse alheio (dos usuários) que está a seu cargo prover, dentro das limitações

para exercê-lo em cumprimento do dever de Estado41.

Desdobro daí a continuidade da problematização do “SUAS em cena” em torno da

autonomia do profissional, sobretudo quando esta é compreendida, a priori, como apartada dos

limites institucionais da responsabilidade pública. Lourau (1995), ao detalhar as ferramentas

socioanalíticas da Analise Institucional oferece recursos pertinentes a essa problematização,

especialmente quando define a segmentaridade dos grupamentos.

41 Embora os desdobramentos da problematização seja mais atinente às situações de atenção direta à população,

esse poder institucional também é conferido aos agentes públicos da gestão e seus enfrentamentos são de diferentes

ordens: com setores jurídico, administrativo e financeiro da administração pública que, não raro, manifestam

concepções distintas para realizar as funções de gestão em prol do usuário, orientados pelos princípios de

economicidade e eficiência que, por vezes, se confrontam com a justiça social. Dada a recente estruturação dos

órgãos gestores de Assistência Social – se comparados às pastas da Saúde e Educação, por exemplo – as equipes

de gestão frequentemente ficam intimidadas diante do discurso competente de procuradores, economistas ou

quaisquer outros que dominam o funcionamento da máquina pública.

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Os indivíduos justapostos não constituem um grupamento, pois o que dá unidade à

formação, o que dá forma ao grupamento é a ação recíproca e frequentemente oculta

uma multidão de grupos fragmentários no interior de um grupamento. […] Esse

caráter singular dos grupamentos que a intervenção socioanalitica encontra toma o

nome de segmentaridade. (LOURAU, 1995, p. 268)

A segmentariedade é uma ferramenta de análise que funciona como “lanterna”, um

recurso de explicitação que produz crítica do instituído. A unidade positiva dos grupamentos

(sua suposta homogeneidade) funciona, para Lourau, à maneira da opacidade da ideologia.

Assim, a existência de regra ou norma criada fora deste grupo e posta ou imposta a ele, mantém-

se como transcendente e heterônoma. Por isso, Lourau denomina a condição desses

grupamentos como grupo-objeto. Nesse sentido, a relação do grupo-objeto com o que lhe é

exterior pode se dar de duas formas: de radical negação desta exterioridade; ou o seu inverso, a

plena aceitação desta exterioridade como se ela também não existisse.

Lourau definiu por “grupo-objeto” para fazer a crítica da “ideologia grupista”, que tende

a construir para si mesma a imagem da coerência absoluta, seja de uma categoria profissional,

de uma filiação religiosa, e uso de determinado cargo, de certa posição institucional. Trata-se

de um tipo de grupamento que recusa tudo o que lhe é externo e assim exemplifica:

O grupo contempla-se narcisicamente no espelho da unidade positiva de seus

membros, excluindo dissidentes, aterrorizando os membros animados de tendências

centrífugas, condenando e às vezes combatendo os indivíduos e os grupos que

evoluem em suas fronteiras. (LOURAU, 1995, p. 269)

São igualmente criticados os grupos instituídos como ou grupos-objeto que funcionam

no exato oposto do anterior: identificam-se de tal forma com a regra que sequer admitem que

ela lhes seja exterior. Os grupos que reproduzem esse funcionamento falam e prescrevem a

norma como se estivesse acima de qualquer julgamento ético ou autorreflexão. Ou seja, não

reconhecem nenhuma existência efetiva fora da que lhes é atribuída pelas instituições ou

grupamentos exteriores.

A síntese de Lourau é quase um retrato de atitudes recorrentes no cotidiano institucional

do SUAS – quer seja nas administrações públicas, quer seja nas instituições de assistência social

de matriz religiosa - nas quais a polêmica da autonomia vem acontecendo:

Se o primeiro caso do grupo-objeto é da seita, o segundo é dos grupamentos definidos

pelo lugar que ocupam na divisão do trabalho e, por conseguinte, nas hierarquias de

poder. A estratégia da seita consiste em esmagar o adversário; enquanto a do grupo

totalmente dependente consiste em “esmagar-se” diante das instâncias superiores.

(LOURAU, 1995, p.269)

Em transposição à problematização havida no “SUAS em cena” a respeito dos poderes

que limitam a autonomia do profissional, ambos os funcionamentos de grupos-objeto produzem

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trabalhadores sujeitados. Para uns porque as normativas do SUAS ferem sua liberdade e

autonomia; para outros, porque as normas são como um “dado” e, porque aparecem sem sujeitos

e sem história, são aceitas e repetidas, mesmo quando não compreendidas. Assim, o poder

institucional investido nos agentes públicos é exercido cega e indiscriminadamente, sem

parâmetro ético que lhe exija senso de consequência e responsabilidade. Diante disso, o usuário

deve corresponder à sua prescrição, ou é considerado suspeito pela tendência de infringir a

norma.

Conforme anotou Mioto em texto recente, embora tenha havido avanços no campo

normativo do SUAS – não sem contradições internas como sublinha a autora -

No campo do trabalho com as famílias usuárias do SUAS, apesar da existência dessa

definição orientadora [na NOB SUAS 2012] do que se considera como família, ela

não garante por si só a sua operacionalidade. [...] Sobre isso a observação tem

mostrado que, quanto menor é a apropriação teórico-metodológica que os

profissionais têm sobre a temática da família, maior é a possibilidade de interveniência

dos fatores relacionados à ordem pessoal nas suas proposições como técnicos

implicados no trabalho social com famílias. Isso acontece não só no plano do

atendimento das famílias, mas também no plano da gestão do sistema. (MIOTO, 2014,

p.17)

Nos processos de educação permanente no SUAS, os educadores encontram essas

segmentaridades atinentes ao grupo dos trabalhadores das equipes de referência previstas na

NOB-RH: nível de escolaridade (fundamental, médio e superior), profissão (assistente social,

psicólogo, advogado); vínculos empregatícios (estatutários, celetistas públicos e empregados

de organizações sociais) e funções (de provimento de serviços e benefícios e de gestão). E, além

destas, outras tantas, como: origem de classe, idade, gênero, raça/ etnia, religião, formação

profissional, posição político-partidária, tipo de vínculo empregatício, apenas para ficar entre

as mais conhecidas. No cotidiano da gestão do trabalho essas segmentaridades geram conflitos

que podem produzir tensões criativas ou reiteração de desigualdades.

Todas elas afetam o modo como a norma e a regra são interpretadas e podem (ou não)

produzir sentido e orientar condutas já investidas do poder instituído do dever de Estado. São

esses trabalhadores os herdeiros do pacto dos direitos socioassistenciais, que podem reconhecê-

los ou negá-los; julgá-los justo ou injusto a partir de suas próprias referências morais e éticas,

mas que tem consequências para os usuários de um serviço público.

Nesse âmbito, a intervenção do educador, que pretende “alinhamento” e transmissão da

regra, mantém os grupos na condição de objeto, pois as normas transmitidas não são suficientes

para que um entendimento comum sobre os limites e possibilidades de construção e exercício

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do poder institucional seja construído e passe a orientar o trabalho de todos os membros da

equipe. Essa transposição é sempre mediada pela segmentaridade do grupo.

A pedagogia da problematização indica intervenção oposta, tal como fez o educador do

“SUAS em cena” ao indagar os atores ao final do Primeiro Ato: Ao “permitir” ou “conceder”

autonomia aos usuários os trabalhadores perdem seu poder? Ou seja, perguntas que façam

reconhecer e explicitar alguns analisadores do exercício do poder, a encomenda dos grupos

dirigentes, ou como diria Lourau (2014): “o que fazer se não existe crise?” Ao que responde:

“Dê um jeito de fazer para que ela ecloda” (p.125). Sem dúvida, essa é uma situação de risco

para o educador que faz essa opção de intervenção nos grupos.

A parcialidade das situações do “SUAS em cena” não criou visibilidade, por exemplo,

para um grande desafio para a institucionalização da Assistência Social, particularmente nas

regiões Sul e Sudeste do país: concretizar o princípio de laicidade da política pública42. Ambas

as regiões concentram o maior número de organizações e entidades de assistência social

prestadoras de serviços socioassistenciais. O trânsito para a ética pública vem se dando com

muitos conflitos nos processos desencadeados a partir da Tipificação dos Serviços

Socioassistenciais (CNAS, 2009), e do reordenamento dos serviços de acolhimento

institucional e convivência e fortalecimento de vínculos.

A negatividade dialética dos grupamentos, por outro lado, requer o reconhecimento de

que eles são heterogêneos e plurais, pois a posição que tomam e as escolhas éticas que fazem

podem estar mais próximas ou mais distantes do consenso e da regra que lhe é, ao menos num

primeiro momento, externa. Esse reconhecimento “negativo” da ideologia “grupista” é, para

Lourau, condição para a passagem do grupo-objeto ao grupo-sujeito, tem força de pôr luz no

instituinte.

Do ponto de vista da relação desses trabalhadores com os usuários, não é demasiado

supor que as atitudes de cumprimento cego e irrefletido das regras – e as interpretações

aleatórias a respeito dos critérios de acesso aos serviços, ou mesmo o controle policialesco das

condicionalidades dos programas de transferência de renda – geram sujeição e submissão dos

cidadãos que devem ser protegidos e “protagonistas de respostas dignas e elucidativas nos

serviços.”

42 Segundo dados do Censos SUAS (SNAS, 2014), das 9.965 entidades que recebem recursos por convênio com

o órgão gestor municipal de Assistência Social, 5.627 estão na região Sudeste (cerca de 3 mil só no estado de São

Paulo); 2.478 na região Sul; 926 no Nordeste; 714 na região Centro Oeste e apenas 220 no Norte do país.

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Mas quais são, então as possibilidades das equipes de trabalhadores do SUAS

constituírem-se fora dessa capciosa teia de submissão mútua? Fiz indagação semelhante em

pesquisa anterior

Se a tendência da política pública de assistência social, conforme indicado na NOB-

RH, é compor equipes profissionais por meio de concurso público, como discutir seus

protocolos e procedimentos de trabalho “desde dentro”, ou seja, como agente público,

cuja autonomia é sempre relativa em face dos princípios constitucionais que o

orientam? Como a capacidade criativa dos profissionais pode ser fonte para a própria

produção do conhecimento e dispositivos de gestão? (FERREIRA, 2010, p.138-139)

Creio ter encontrado na Análise Institucional elementos explicativos consistentes. A

transversalidade é uma importante ferramenta analítica que ela oferece para diferenciar aquilo

que Lourau definiu como grupo-objeto e grupo-sujeito, trazendo a discussão da autonomia

como possibilidade instituinte dentro das próprias instituições.

Nos dois casos de grupo-objeto que acabamos de mencionar [o grupo seita e o grupo

que se define pela hierarquia da divisão do trabalho], há negação da transversalidade

constitutiva de todo grupo humano. A transversalidade pode, portanto, definir-se

como fundamento da ação instituinte dos grupamentos, na medida em que toda a ação

coletiva exige uma perspectiva dialética da autonomia do grupo e dos limites objetivos

dessa autonomia. A transversalidade reside no saber e no não-saber do grupamento a

respeito de sua polisegmentaridade. É a condição indispensável para passar do grupo-

objeto ao grupo-sujeito. (LOURAU, 1995, p. 270)

Dessa perspectiva, para que os trabalhadores do SUAS se constituam como grupos-

sujeito, é necessário enfrentar o dilema ético, como o instalado pela pergunta de Margarida no

Primeiro Ato do “SUAS em cena” - Até que ponto o protagonismo e autonomia das famílias

não nos faz agir de forma evasiva, ao ponto de não interferir numa dinâmica familiar, mesmo

quando a gente sabe que essa família sofre violência?

É preciso trazer essa antítese que situa em polos opostos a autonomia do profissional e

o protagonismo dos usuários para fazer o trânsito da ética privada (religiosa, coorporativa,

familiar etc.) para a ética pública. Como complementa Lourau:

A descoberta da transversalidade é descoberta de conflitos, de lutas sociais: ela própria

é uma fonte de conflitos, porque lugar das resistências do não dito. O poder vive e se

nutre de escondido, de não dito: portanto, na maior parte das vezes, é muito difícil

revelar, ou deixar que outros revelem, essa familiaridade, essa vinculação com o

poder. É aqui que aparece a implicação. (LOURAU, 2004, p.133)

Estudiosos da ética diferenciam a ética de princípios e a ética de responsabilidade. A

possibilidade de julgar uma ação, com base, exclusivamente, em princípios (ética de princípios),

supõe que determinados valores sejam compartilhados porque já foram ponderados, refletidos

por um determinado grupo social com o qual um grupo se identifica. Esses princípios passam

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a ser orientadores da conduta e do posicionamento ético em situações de conflito. De forma

muito sintética, é possível dizer que a ética de princípios é construída, validada e utilizada como

parâmetro para justificar motivações, o porquê de o sujeito agir de uma maneira e não de outra.

Portanto, é uma ética que explicita valores e intenções.

Também é possível - e diga-se necessário para o SUAS - julgar uma decisão ou ação

por suas consequências, ou seja, pela chamada ética de responsabilidade. Igualmente baseada

em princípios, a ética pública (ou ética de responsabilidade), orienta o julgamento de ações e

condutas quando são levadas em consideração as relações de poder, o projeto de futuro que se

tem em mira. O julgamento ético, neste caso, tem um diferencial importante: ele leva em conta

tanto a ação (e os princípios que a motivam) como seus resultados, ao indagar sempre se o

sentido político inicialmente dito é preservado; se intenção e consequência estão na mesma

direção.

Renato Janine Ribeiro, filósofo dedicado ao tema da ética, assim esclarece:

A ética de responsabilidade é a de todo aquele que vê o social como podendo e/ou

devendo ser plasmado por uma ação criadora – e pouco importa se esta é a do

indivíduo ou a do grupo. A essa ação que cria o social, cabe chamar de ação política.

[...] É política, assim, a ação que assume como seu o ponto de vista da criação, que

pretende moldar, criar, o social. Para se definir a ação como política, não tem mais

valor falar “ex parte principi”, falar do lugar do príncipe [do governante] – nem do

revolucionário, que contesta aquele a fim de lhe ocupar a posição.

O que importa é, pois, uma atitude criativa, de quem se torna sujeito de sua vida, e

não mais o lugar: a postura, e não a posição, eis o que conta. Sai-se de uma ideia de

poder delineada a partir de um espaço, de um território, mais ou menos estáticos, e

passa-se a uma política que tem mais a ver é com uma atitude, com um enfoque, com

o rumo de uma ação. (RIBEIRO, 2004, s/n)

Após dez anos de implementação do SUAS, persistem tensões no que se refere às forças

instituintes, especialmente quando se trata da participação dos usuários na tomada de decisão

no cotidiano, a exemplo do Plano Individual de Acompanhamento (PIA) e do Plano de

Acompanhamento Familiar (PAF). E também no âmbito do sistema de representação nos

espaços de cogestão e representação de seus próprios interesses.

A partir de material de pesquisa recente realizada junto aos agentes públicos da

Assistência Social na capital e Região Metropolitana de São Paulo Sposati (2012) faz a seguinte

afirmação:

Uma ampliação da leitura sobre o cotidiano da política permite atestar que, por vezes,

o discurso do direito está impregnado de concepções a ele contraditórias e que, ao

indicar os caminhos para assegurá-lo, percebem-se muito mais estratégias

reducionistas e redutoras dos acessos. A falta de conhecimento e a necessidade de

capacitação podem explicar parte dessas dificuldades. Todavia, o desconhecimento

dos compromissos ético políticos dessa política, bem como a baixa adesão a eles, são

provavelmente razões motivadoras de práticas conservadoras e desqualificadoras dos

cidadãos usuários. (SPOSATI, 2012, p.130)

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103

A intervenção sagaz do educador, no Primeiro Ato do “SUAS em cena” capta e expõe

esse conflito: Ao “permitir” ou “conceder” autonomia aos usuários os trabalhadores perdem

seu poder? Em que momento a ação profissional gera paralisia nos usuários? Quando a ação

dos usuários desestabiliza a ação dos trabalhadores do SUAS?

O 5º direito socioassistencial em tela - direito a ser protagonista de respostas dignas,

claras e elucidativas – é portador dessa força instituinte, pois demanda um modo participativo

de realizar o trabalho social – usuário protagonista de respostas dignas -, assim como requer

que seus resultados sejam acessíveis para que haja o controle social, razão de existência dos

conselhos e conferências de Assistência Social.

Desse modo, a PNAS/2004 adensou e atualizou o desafio latente no texto da LOAS, de

1993:

Há que se produzir uma metodologia que se constitua, ao mesmo tempo, em resgate

de participação de indivíduos dispersos e desorganizados, e habilitação para que a

política de assistência social seja assumida na perspectiva de direitos publicizados e

controlados pelos seus usuários. (PNAS, 2004)

Em artigo recente, Berenice Couto (2014) reafirma a conclusão a que chegou na

elaboração de sua tese de doutorado. Para ela, só é possível a assistência social ser um direito

social com a participação popular. Argumenta que a assistência social lida com uma população

que tem sua trajetória fortemente marcada pela subalternidade vista como pessoas que “não

sabem o que querem” e que, por isso mesmo, é necessário que alguém pense e faça por elas.

Essa direção impacta diretamente nas práticas profissionais na Assistência Social que,

para ela, está eivada de “nomes grandiosos”, convivendo com cotidianos burocráticos,

repetitivos e impregnados de subalternização. Para fortalecer a participação e o protagonismo

do cidadão no cotidiano dos serviços socioassistenciais, Couto (2014) aponta que essa

participação não pode ser tomada como um recurso gerencial 43 , que serve para legitimar

decisões que visam economizar recursos, organizar o trabalho e definir procedimentos

burocráticos. Ao contrário, o fomento ao protagonismo dos sujeitos precisa deslocar modos de

fazer:

[Trata-se] de trabalhar a partir daquilo que o dialético conhecimento da realidade

proporciona a respeito daquela população. Ouvi-la, ouvir o que diz, pois a população

sobrevive em situações tão adversas que nenhum trabalhador social é capaz de supor.

Sem ouvir e pensar junto, de fato, pode-se até apresentar a melhor intenção, mas será

vazia de potencial transformador. (COUTO, 2014, p. 397)

43 Para Nogueira (2004), quando a participação é tomada como um recurso gerencial, as pessoas podem participar

sem se intrometer significativamente no estabelecimento das escolhas essenciais. Podem permanecer subalternas

a deliberações técnicas ou a cálculos políticos engendrados nos bastidores, em nome da necessidade que se teria

de obter suportes técnico-científicos para decidir ou de concentrar certas decisões eminentemente políticas.

(NOGUEIRA, 2004, p. 143)

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104

Como se pôde ver nas situações problemáticas do Primeiro Ato do “SUAS em cena” as

funções públicas de proteção social e defesa institucional tem efeitos de desestabilização do

instituído, traz inseguranças e incertezas; e também gera novas composições de força para a

produção de sentido. Também requer uma reflexão da ética de responsabilidade para atravessar

a cultura política fortemente arraigada na naturalização e reprodução das desigualdades e

construir a cultura política de corresponsabilidade com os cidadãos que têm direito de

“protagonizar respostas dignas e elucidativas”.

Há várias formas de fazer esse percurso educativo e ampliar as possibilidades de

informar e responder a tantas indagações. E essa variedade demonstra a multiplicidade de

espaços em que a educação permanente pode acontecer para além de salas de aula. Com isso,

revelam-se três possibilidades que podem estimular a busca dessas respostas.

A primeira delas é a participação em espaços coletivos nos quais a construção da pauta

da Assistência Social pode ocorrer. A segunda é a ampliação de referências bibliográficas que

tragam novas perspectivas para o pensamento e para a ação. A terceira é a troca de experiências

em espaços inventados, rodas de conversa, encontros, oficinas, entre outras atividades.

Intelectuais e militantes têm assumido o lugar de construção da pauta política do SUAS

nas Conferencias Nacionais. Em 2011, quando a centralidade do debate da Conferência foi

“Consolidar o SUAS valorizando seus trabalhadores”, Berenice Couto interpelou os mais de

mil participantes da Conferência fazendo perguntas e construindo uma pauta política.

Essa mesa pauta a Gestão do trabalho e o controle social. E até que ponto, nós

trabalhadores, permitimos que o usuário controle o nosso trabalho? Até que ponto

permitimos que os usuários conheçam os mecanismos de inclusão próprios do nosso

trabalho? Conheçam como eles podem e como não podem participar dos programas

que nós estamos trabalhando? Como vamos fazer essa interlocução? Como é que nós

permitimos o controle social do nosso trabalho para potencializar o controle social do

Estado?

A pratica, o seu sentido consistente, dever ser ética e política e requer conhecimento.

Precisa ser realizada em todos os espaços do Sistema Único de Assistência Social,

seja ele no CRAS, no CREAS, ou na entidade privada integrante da rede. Se esse

trabalho não estiver explicitado lá, vamos perpetuar o diagnóstico da falta de

protagonismo do usuário e, consequentemente, da nossa desorganização.

[...] Se não temos condição de responder, pela maneira como estamos estruturados,

temos que descobrir um mecanismo de incluir aquelas demandas, rompendo com a

lógica de que “o que está estruturado está dado”, não há outro caminho. Então é

preciso ouvir, fazer diagnóstico, conversar, estudar muito sim, e qualificar nossa

política. (CNAS, 2011, pp.109-111)

Outra fonte para explicar e aportar mais elementos que colaborem para construir

entendimentos comuns que o educador pode recorrer são textos, como a perspicaz definição de

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Onoko e Campos (2006) para a construção de autonomia nos serviços públicos de saúde,

oferecendo-a como reflexão aos trabalhadores do SUAS:

Considerar a coconstrução de autonomia como uma das finalidades do trabalho em

saúde tem importantes implicações políticas, epistemológicas e organizacionais. A

adoção desta diretriz exige uma reformulação ampliada tanto dos valores políticos,

quanto do sistema de conceitos teóricos que orientam o trabalho em saúde. A principal

destas mudanças refere-se à redefinição do “objeto” do trabalho em saúde, refere-se a

pensar esse “objeto” como uma síntese entre problemas de saúde (riscos,

vulnerabilidade e enfermidade) sempre encarnados em sujeitos concretos. Esta

valorização do “sujeito” e de sua singularidade altera radicalmente o campo de

conhecimento e de práticas da saúde coletiva e da clínica.

[...] Não tomamos autonomia como o contrário de dependência, ou como liberdade

absoluta. Ao contrário, entendemos autonomia como a capacidade do sujeito lidar

com sua rede de dependências. Autonomia poderia ser traduzida, segundo esta

concepção, em um processo de coconstituição de uma maior capacidade dos sujeitos

compreenderem e agirem sobre si mesmo e sobre o contexto conforme objetivos

democraticamente estabelecidos. (ONOKO E CAMPOS, 2006, p. 670).

E os próprios trabalhadores e gestores podem criar espaços para troca de experiências

para que seja possível conhecer diferentes possibilidades de responder às suas inquietações

comuns. A narrativa de Wanda, ao final do Primeiro Ato, é indicação clara dessa possibilidade:

Uma mulher vítima de violência pode enfrentar essa violência, sabendo que isso

implica várias perdas. É realmente ela que tem que tomar essa decisão. Mas para que

ela possa tomar essa decisão consciente, firme, certa daquilo que ela deve fazer, ela

precisa de todo um trabalho que possa auxiliá-la a compreender a realidade que ela

vive, a complexidade dessa situação. E, inclusive, apoio para uma situação mais

emergencial. A gente tem um serviço previsto na política de assistência social para o

apoio emergencial para uma mulher que tenha tomado essa decisão e fique

momentaneamente sem uma estrutura.

Por isso, é fundamental e possível a passagem da condição grupo-objeto para grupo-

sujeito, fazendo um manejo do poder que tem para abrir passagem para si mesmo, para o

coletivo do qual faz parte e para o usuário que acolhe.

2.2 Pobreza e cidadania: a tensão entre os parâmetros de benefícios e serviços

Na seção anterior, optei por analisar as situações problemáticas a partir de uma reflexão

ética. Em continuidade, nesta seção evidencio o feixe explicativo que articula a história da

Assistência Social e a produção de seu objeto específico no campo da proteção social brasileira.

Entre os muitos conteúdos emergentes nas narrativas do “SUAS em cena”, foram

selecionadas as problematizações do Segundo Ato, no qual as tensões entre a concepção de

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pobreza (que define a concessão de benefícios) parece se confrontar com a concepção de

vulnerabilidade social, (que orienta o acesso aos serviços socioassistenciais). Estas tensões não

passaram despercebidas pelo educador que indagou: Qual o trabalho social possível a partir

da “evidência” da pobreza? Que necessidades têm os pobres? Que direitos eles têm? O que

“esquecemos” de olhar quando a pobreza está em primeiro plano?

Uma retrospectiva histórica pode contribuir para explicar a atualização dessas tensões.

A garantia do direito não contributivo na Constituição Federal de 1988 foi uma conquista

importante dos setores que reivindicaram maior participação popular, entre os quais se incluem

assistentes sociais, médicos sanitaristas e os próprios movimentos populares. Jaccoud (2005)

esclarece o significado histórico do direito à Saúde e à Assistência Social inscritos Seguridade

Social.

A ampliação das situações sociais reconhecidas como objeto de garantias legais de

proteção submetidas à regulação estatal [na seguridade social brasileira] implicaram

significativa expansão da responsabilidade pública em face de vários problemas cujo

enfrentamento se dava, parcial ou integralmente no espaço privado. (JACCOUD,

2005 p. 74).

Boshetti (2008) em sua pesquisa de doutorado reconstruiu os dilemas e debates

ocorridos no período constituinte em torno da Seguridade Social e também no período posterior,

quando da regulamentação da legislação infraconstitucional, no qual a Lei Orgânica de

Assistência Social foi construída, negada, reconstruída e, finalmente, o “fim da travessia do

deserto” com sua aprovação em 1993. Boschetti construiu seu objeto de pesquisa nesse

ambiente político pela chave que denominou de “complexo previdenciário-assistencial” e

analisa o quão restritivo foram os pactos estabelecidos em torno dos benefícios de Assistência

Social: o benefício de prestação continuada (BPC) e benefícios eventuais. Conforme esclarece:

Além do reconhecimento tardio da assistência social como direito obrigatório, a falta

de legislação constituiu terreno fecundo para formulações de todo tipo e para a inércia

dos poderes públicos. Falar de assistência social no Brasil significava falar de uma

ação residual em termos de recursos, fragmentada em termos de programas e ações e

indefinida quanto aos objetivos e à “clientela”. (BOSCHETTI, 2008, p. viii)

Sposati (2004) sintetiza em relato lúcido este momento inicial de baixo consenso em

torno da presença da Assistência Social na Seguridade Social brasileira:

A inclusão do campo particular da Assistência Social, no âmbito da Seguridade Social

proposto pela Constituição de 1988, não encontrou interlocutores e interlocuções

estruturadas e organizadas na academia, na sociedade civil e nos movimentos sociais.

Diversa situação ocorreu, a exemplo, no âmbito da Saúde que partiu de uma proposta

estratégica (acadêmica, política, de gestão e de poder) construída nacionalmente (e

com apoio internacional da Conferência de Alma Ata). (SPOSATI, 2004, p.33).

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Quando examina, já ao final de seu estudo, o conteúdo da LOAS, a autora reafirma que

essa legislação ratificou uma linha extremamente restritiva ( ¼ de salário mínimo) e excludente

para o acesso ao BPC, a despeito das lutas e propostas vencidas por sua ampliação. E, naquele

momento histórico, também instituiu procedimentos burocráticos para controle e verificação de

rendimentos da família. Desse modo, segundo Boschetti, o acesso aos benefícios

socioassistenciais, em rigor, não configuram um “direito adquirido objetivamente”, pois

submete os potenciais beneficiários ao crivo de agentes públicos que operam esse benefício

ainda hoje nas agências no INSS.

Ao analisar a outra face também presente no texto da LOAS – a da prestação de serviços

- Boschetti ressalva:

Mas a LOAS não se limita a essas prestações monetárias tão restritivas. Ela prevê,

igualmente, a implementação de serviços, programas e projetos destinados à redução

da pobreza e à melhoria das condições de vida. Estes, diferentemente dos benefícios

de prestação continuada e dos benefícios eventuais, são de responsabilidade dos

estados e dos municípios. (BOSCHETTI, 2008, p. 272)

Por essa ambiguidade da LOAS sustentou-se, ao longo dos anos 1990 e início dos anos

2000, a luta em torno da “supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as

exigências de rentabilidade econômica”, conforme o artigo 4º. da LOAS e o primeiro princípio

enunciado na PNAS/2004.

Continua Boschetti:

Ao contrário das prestações monetárias, essas ações podem ser interpretadas como

bens coletivos destinados à redução das desigualdades sociais, colocando

oportunidades de acesso a bens e serviços públicos à disposição do maior número de

pessoas.

[...] os serviços, programas e projetos assistenciais são orientados pela lógica da

cidadania, rompendo assim com a lógica contratual que determina as prestações

monetárias de substituição de renda. Esses serviços assistenciais públicos, não

condicionados a nenhuma contribuição, materializam o dever do Estado para com os

cidadãos pobres sem categorizá-los nem subordiná-los à tradicional clivagem entre

capazes e incapazes. Os princípios que orientam esses serviços se contrapõem às

condições extremamente restritivas de acesso ao BPC e atribuem à LOAS um caráter

contraditório. (BOSCHETTI, p.273)

As tensões em tela nesta seção são inauguradas, portanto, nesse pacto político que deu

o contorno legal e institucional a essas tensões que se estenderam ao longo dos anos 1990 em

diversos espaços de disputa, entre os quais destaco os conselhos e as conferências de assistência

social nas três esferas de governo.

Desde 1995, as Conferências Nacionais têm sido, em muitos aspectos, um espaço

instituinte na trajetória da política pública de Assistência Social. Isso porque diferentes projetos

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estão em disputa, configurando um leque de escolhas possíveis para responder aos problemas

postos na arena pública da proteção social não contributiva no país. Esses projetos distinguem

dois campos de força nítidos, particularmente no que diz respeito ao papel do Estado.

O primeiro deles, inscrito no texto constitucional, advoga a primazia da

responsabilidade de Estado na proteção aos cidadãos, regido, entre outros princípios, pela

supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade

econômica (artigo 4º, inciso I da LOAS) e pela diretriz da primazia da responsabilidade do

Estado na condução da política de Assistência Social em cada esfera de governo (artigo 5º,

inciso III). Este projeto ainda guarda uma força instituinte, mesmo decorridas mais de duas

décadas de sua aprovação.

O segundo, historicamente anterior ao primeiro, defende menor presença e regulação

pública em nome da prevalência do princípio da subsidiariedade. De tradição mais longa,

sustenta-se, de um lado, no vínculo histórico entre Estado e setores da igreja e instituições

filantrópicas e, de outro e alinhado a esse primeiro, no princípio liberal da liberdade negativa

do Estado, ou seja, onde as virtudes da sociedade civil alcançam a presença e regulação do

Estado deve ser mínima. Diversos autores, especialmente do Serviço Social, têm analisado as

consequências da convivência desses dois projetos no processo de institucionalização do

SUAS: Mestriner (2001) e Chiachio (2011), Stuchi (et. al, 2012) entre outras44. Di Pietro (1989)

é bastante precisa ao caracterizar esse projeto:

A forma mais branda de neoliberalismo encontra eco no princípio da subsidiaridade,

amplamente desenvolvido pela doutrina social da Igreja. Baseia-se em alguns

postulados básicos: de um lado, a ideia de respeito aos direitos individuais, pelo

reconhecimento de que a iniciativa privada, seja dos indivíduos, seja das associações,

tem primazia sobre a iniciativa estatal. Em consonância com esta ideia, o Estado deve

abster-se de exercer atividades que o particular tem condições de exercer por sua

própria iniciativa e com seus próprios recursos; sob este aspecto, o princípio implica

uma limitação à intervenção estatal. De outro lado, o Estado deve fomentar,

coordenar, fiscalizar a iniciativa privada, de tal modo a permitir a particulares, sempre

que possível, o sucesso na condução de seus empreendimentos (2001, p. 53).

44 De acordo com levantamento feito em 2014 por pesquisadores do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade

e Assistência Social (NEPSAS/ PUC-SP), coordenado pela profa. Aldaíza Sposati, no período entre 1972 a 2012

o número de teses e dissertações que discorrem sobre a história e a legislação da Assistência Social soma 100

títulos. Os trabalhos foram classificados em cinco períodos, de acordo com marcos importantes nesta área: 1984 a

1987, corresponde ao período pré-Constituição Federal; 1988 a 1992, intervalo entre inscrição da Assistência

Social na CF-88 e sua regulamentação na Lei Orgânica (LOAS/ 2013); 1993 a 2003, vigência da LOAS e

implantação de conselhos, plano e fundos em todas esferas de governo; 2004 a 2010, alteração do modelo de

gestão, instituição do Sistema Único de Assistência Social a partir da Política Nacional de Assistência Social

(PNAS/ 2004); 2011 e 2012, atualização da LOAS consolidando as normativas do SUAS na Lei 12.435/ 2011.

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Mais recentemente, um terceiro projeto político – nomeado de Piso de Proteção Social

- vem concorrendo com os anteriores, lastreado em recentes consensos firmados entre as

agências multilaterais, alterando o eixo de regulações entre o mercado e o Estado. De maior

domínio analítico entre economistas e cientistas sociais, esse projeto tem ameaçado as

conquistas das políticas sociais em nível global. Conforme define Lavinas (2014): “ Trata-se de

ampliar e consolidar mercados, na contramão do princípio básico de proteção social que é

dissociar a reprodução das condições de vida e bem-estar das condições do mercado.” No

Brasil, este projeto imprime força reversa à concepção de Seguridade Social inscrita na

Constituição Federal de 1988, uma vez que ela assegura como direção de universalidade a

garantia de serviços desmercadorizados, ou seja, em alguma medida dissocia a reprodução das

condições de vida e bem-estar das condições de mercado.

Lavinas (2014) faz uma análise precisa desse novo cenário.

[...] O acesso ao básico é prerrogativa de quem é pobre, vulnerável, excluído, ou

qualquer outra categorização que se queira adotar. Claramente, institui-se um padrão

dual, onde o público tem por obrigação oferecer cobertura aqueles que não alcançam

o mercado. Em lugar da coesão social, promove-se a discriminação, em nome dos

direitos humanos. O piso de proteção social é para quem não tem status de cidadão.

Central a esse novo framework a ideia, portanto, de que não se trata de prover proteção

através da provisão de bens e serviços e de uma renda relativamente segura, alheia à

dinâmica econômica, mas de prover assistência para que famílias, indivíduos e

comunidades possam, através de boas práticas, melhor enfrentar os riscos inerentes à

globalização e às incertezas crescentes daí derivadas. (LAVINAS, op cit, s/n.)

A disputa entre os projetos políticos de subsidiariedade, de primazia de responsabilidade

do Estado e de piso de proteção social atravessa o tema aqui proposto, uma vez que cada um

deles expressa uma concepção sobre a especificidade e o conteúdo da Assistência Social,

gerando impactos, por sua vez, na definição do trabalho e dos trabalhadores. Impacta

particularmente no reconhecimento de demandas materiais para acesso aos benefícios e não

materiais para acesso aos serviços.

A simultaneidade desses três projetos institui três objetivações distintas: o projeto de

subsidiariedade corresponde ao assistido e tutelado; de primazia do Estado corresponde ao

usuário do serviço e o de piso de proteção social consagra o consumidor. No cotidiano do

trabalho social no SUAS, essas três forças estão em embate.

A comparação entre a Política Nacional de Assistência Social de 1998 e a de 2004

permite reconhecer claramente essa disputa e seus efeitos porque orientou a organização de

atenções e critérios de acesso de formas bastante distintas.

A primeira Política Nacional de Assistência Social, aprovada em 1998, corrobora a

concepção desta política pública como uma estratégia de enfrentamento da pobreza. Sem

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conteúdo próprio, ela é vista como uma política essencialmente transversal, processante do

acesso dos pobres às demais políticas sociais. As proposições que constam da PNAS/ 1998 são

fundamentadas na seguinte compreensão da natureza da política de assistência social:

A Assistência Social, como política pública, tem papel de destaque na reversão desse

quadro [de pobreza e exclusão], por meio da construção de uma rede de proteção

social, que privilegie a articulação entre as ações desenvolvidas pelo Estado e pela

Sociedade; a intersetorialidade entre as políticas públicas e a complementaridade entre

as áreas sociais e econômicas, visando à inclusão dos destinatários desta Política

Nacional de Assistência Social. (PNAS, 1998)

A concepção desta política parte da lógica de acesso de seus beneficiários ao mundo do

trabalho, sendo construída pelo avesso deste, ou seja, como estratégia de enfrentamento da

pobreza e da exclusão social. Ainda hoje, a defesa de atividades de inclusão produtiva em

precárias (e por vezes ilegais) atividades econômicas é defendida como “porta de saída” e como

resultado de “autonomia” dos usuários da Assistência Social. No entanto, como adverte Telles

(2001), pobreza não é categoria que fundamenta o direito social:

No horizonte da cidadania, a questão social se redefine e o “pobre”, a rigor, deixa de

existir. Sob o risco do exagero, diria que a pobreza e a cidadania são categorias

antinômicas. Radicalizando o argumento, diria que, na ótica da cidadania, pobre e

pobreza não existem. O que existe, isso sim, são indivíduos e grupos sociais em

situações particulares de denegação de direitos. É uma outra figuração da questão

social, que põe em cena a ordem das causalidades identificáveis e que armam, ao

menos virtualmente, arenas distintas de representação e reivindicação, de interlocução

pública e negociação entre atores sociais e entre a sociedade e Estado (TELLES, 2001,

p. 51).

Voltada aos pobres e aos excluídos (temporária ou definitivamente) do mercado de

trabalho e de consumo, a política pública de assistência social esvai-se o caráter universalizante,

uma vez que é entendida como focalizada e extremamente seletiva entre os mais pobres.

Lavinas no mesmo artigo já mencionado contextualiza essa opção feita na década de

1990 por muitos países latino-americanos. No Brasil, expressa-se pela negação à ampliação dos

direitos recém- reconhecidos pela Constituição Federal de 1988. Essa opção associava a forte

privatização dos sistemas de saúde e contributivo da previdência, marcante na década de 1990,

às políticas de ajuste fiscal, aumentando de forma exponencial o contingente da população

vulnerável. Tal situação, segundo a autora, demandava alguma intervenção compensatória,

visto que não poderia abalar a política econômica e fiscal em vigor. Essa opção foram, via de

regra, os programas de renda mínima focalizados nos mais pobres e os de transferência

condicionada de renda (PTCR).

Com o aceite desses programas pelo Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional,

implementa-se sua linha de pobreza e indigência para a concessão dos PTCR, a despeito de

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críticas de sua aplicabilidade indiscriminada em países de rendas diferentes. Desde então, a

linha de pobreza definida pelo FMI tem sido a principal régua para a seleção extremamente

baixa para a concessão de benefícios, e inclui o Programa Bolsa Família.

Conforme analisa Lavinas, os países latino-americanos

Passam a adotar mínimos sociais a partir da formulação de um novo framework

conceitual, o do social risk management (Holzmann and Jorgensen, 2000), que nada

mais é que uma forma de expandir mercados, através da monetarizacao dos grupos

que vivem notadamente na subsistência (área rural, indígenas, least developed

countries, etc) ou são extremamente pobres. (LAVINAS, 2014, s/n)

Conforme analiso em pesquisa anterior, esvaída da concepção de direitos e, portanto, de

um horizonte de universalidade, a PNAS 1998 é orientada por aquilo que o Estado determina

como fator de pobreza, sobrepondo a lógica do necessitado sobre a lógica das necessidades

coletivas. Desse modo, a proteção social de Assistência Social é compreendida na PNAS 1998

“como atenção às populações excluídas e vulneráveis socialmente, operacionalizada por meios

de ações de redistribuição de renda direta e indireta”.

No que tange aos serviços, a PNAS/1998 não cria mecanismos para estruturar serviços

públicos de caráter não seletivo e continuado. Ao contrário, estimula os municípios a implantar

programas federais por meio de convênios e, sobretudo, amplia a atuação das entidades de

assistência social e educação por meio de seus projetos.

Nesse processo, dada a visão do papel do Estado como essencialmente regulador,

caberia ainda aos trabalhadores da política de assistência social o papel de gerenciar

informações e produzir avaliações sobre as ações executadas pelas entidades sociais. Nessa

conjuntura, foi notória a expansão das organizações da sociedade civil, como as Organizações

Sociais (OS) e Organizações Sociais de Interesse Público (OSCIPS), no campo que hoje foi

consolidado como Terceiro Setor.

Como decorrência dessa concepção, as proposições relativas aos trabalhadores são,

fundamentalmente, para desenvolver sua capacidade de articulação com as demais políticas

para “processar os direitos dos usuários”, que estariam assegurados somente pelas demais

políticas sociais e inserção no mercado de trabalho por meio de estímulo ao empreendedorismo,

por exemplo.

Alguns narradores do “SUAS em cena” quando rementem as necessidades dos mais

pobres às políticas de saúde e educação, manifestam esse entendimento. No Segundo ato do

“SUAS em cena” a fala de Laura é nítida: A gente tem aí dentro do país uma política de

transferência de renda [Programa Bolsa Família], que eu acho que é um processo histórico.

Ela está concretizada. Eu vejo nas nossas equipes que a gente reproduz um modelo de fazer

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política de pobre para pobre: “Ah, eu vou te encaminhar para as necessidades básicas: saúde

e educação”.

A capilaridade dos programas de transferência condicionada de renda gerava – e ainda

gera - para os trabalhadores da Assistência Social nos municípios processos de trabalho que

demandam controle e acompanhamento das famílias beneficiárias que não tenham cumprido as

condicionalidades, numa inversão perversa, pois é o Estado que não cumpre com o seu dever

de assegurar acesso digno aos serviços públicos.

É uma ótica que turva a visão dos trabalhadores para responder as questões suscitadas

pelo educador: Qual o trabalho social possível a partir da “evidência” da pobreza? Que

necessidades têm os pobres? A hesitação das respostas evidencia a atualidade do dilema posto

por Lavinas.

Mostra-se fundado afirmar que a institucionalidade da nossa Seguridade Social,

inscrita na Constituição de 88, foi fator determinante para preservar uma trajetória

mais promissora, igualitária e verdadeiramente comprometida com o bem-estar dos

brasileiros que o modelo ora na berlinda [piso de proteção social], defendido e

promovido de forma integrada por mais de três dezenas de agências multilaterais,

notadamente o sistema ONU, associado ao FMI e ao Banco Mundial.

Entretanto, as tensões evidentes na disputa pela mudança/permanência desse sistema

de proteção social evidenciam que tal institucionalidade não é forte o suficiente para,

verdadeiramente, estabelecer a relação de interatividade e de indissociabilidade entre

política social e política econômica que demanda um sistema de proteção social para

atingir com êxito os seus propósitos. (LAVINAS, 2014, s/n)

Seguindo as perguntas lançadas pelo educador ao grupo - Que direitos eles têm? O que

“esquecemos” de olhar quando a pobreza está em primeiro plano? - diria que parte dessas

respostas só é possível quando associadas ao conteúdo da PNAS/2004.

A forte resistência de setores organizados da sociedade civil que se opunham à matriz

da subsidiariedade manteve o texto constitucional como arma de luta. Assim, a primazia da

responsabilidade do Estado manteve-se em pauta nas Conferências Nacionais ao longo da

década de 1990 e início dos anos 2000.

Na IV Conferência Nacional, realizada em 2003, foi aprovada a diretriz para criação do

Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que teve como decorrência a elaboração, debate

e aprovação da Política Nacional de Assistência Social no ano seguinte, (PNAS/2004), hoje em

vigor, tendo parte dos conteúdos incorporado do texto da lei 1.2435/2011, que atualiza a LOAS.

A PNAS/2004 traz o ineditismo e a novidade de trabalhar com vínculos sociais ao

instituir a três seguranças: acolhida, convívio e sobrevivência trazido pela PNAS 2004 e

problematizados no Primeiro e Terceiro Ato do “SUAS em cena”.

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113

Ao tratar da natureza própria dos direitos sociais, Telles (1998) faz afirmações que

inspiraram pesquisas no Serviço Social que enfrentavam o debate entre pobreza e cidadania:

Ao revés da suposta objetividade do problema social, passível de ser gerenciado

tecnicamente, na voz desses sujeitos se enunciam outros mundos possíveis de valores,

de aspirações e esperanças, de desejos e vontades de ultrapassagem das fronteiras reais

e simbólicas de lugares predefinidos em suas vidas, sonhos de outros mundos

possíveis e que valham a pena ser vividos. Por isso mesmo, se a reivindicação de

direitos está longe de ser a tradução de um suposto mundo de necessidades, tampouco

pode ser traduzida simplesmente ao jogo de interesses, pois os direitos estruturam uma

linguagem pela qual esses sujeitos elaboram politicamente suas diferenças e ampliam

o “mundo comum” da política ao inscrever na cena pública suas formas de existência,

com tudo o que elas carregam em termos de cultura e valores, esperanças e aspirações,

como questões que interpelam o julgamento ético e a deliberação política (TELLES,

1998, p. 40).

A PNAS 2004 objetiva oferecer referenciais políticos e técnicos capazes de lidar com

os dilemas postos à universalização da política pública de Assistência Social, atribuição

precípua do dever de Estado. Destaco entre as inovações trazidas por esta política a

incorporação em seu vocabulário o conceito de seguranças socais.

A definição das seguranças sociais trazidas pela PNAS/2004 – convivência, acolhida e

sobrevivência - tem inequívoco alinhamento conceitual com o valor constitucional da segurança

que amplia e delimita o entendimento de universalidade para além de interpretações

reducionistas do enunciado constitucional “para a quem dela necessitar”:

Exige, pois, que todos, nas mesmas condições, tenham o mesmo tratamento.

Segurança exclui, portanto, tratamento arbitrário, ou seja, não só os que não são

uniformes, mas também os que ocorrem à margem do direito. [...] Como valor amplo,

alcança, pois, também as arbitrariedades decorrentes de situações legalmente

conformes, mas socialmente injustas que são, então, juridicamente repelidas pela

sua inclusão, no artigo 6º, como um direito social (FERRAZ JUNIOR, 1989 apud DI

PIETRO, 2001, p. 45). [grifo meu]

Portanto, as seguranças sociais oferecem subsídios históricos, jurídicos e políticos que

colaboram para responder às situações problemáticas que põem luz na pergunta do educador: o

que esquecemos de olhar quando a pobreza está em primeiro plano?

Ao produzir conteúdo sobre a função de defesa de direitos para os trabalhadores do

SUAS participantes do programa federal de capacitação – Capacita-SUAS – Sposati (Brasil,

2013) recupera o percurso e o vigor dessa construção que se fez também na universidade e,

mais precisamente, na PUC-SP:

A construção das seguranças sociais no âmbito da assistência social tem por

perspectiva identificar a particularidade e a especificidade do campo dessa política

social.

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114

A primeira formulação de seguranças sociais para a assistência social procede do

NEPSAS – PUCSP no período 96-98, com a participação de vários pesquisadores

procedentes de diferentes cidades e estados do país. Essa construção teve duas

vertentes desencadeantes. A primeira delas foram os resultados de larga pesquisa

realizada na cidade de São Paulo sobre iniciativas existentes no campo da assistência

social, públicas e privadas, conveniadas ou não, identificando do que elas se

ocupavam e com que resultados. Essa pesquisa agregou por finalidades do ponto de

vista dos resultados para o cidadão, as ações dessa rede. (BRASIL, 2013a, p.53)

A segunda desencadeante partiu da derivação do próprio texto constitucional que

reconhece a assistência social como política de seguridade social. À diferença das três

seguranças afirmadas na PNAS/2004, o estudo coordenado por Sposati configurou cinco

seguranças: acolhida, convívio, equidade, travessia e renda. Torres, ao entrevistá-la, em 2012,

para aprofundar o conteúdo da segurança de convívio em sua tese de doutorado assim narrou:

O estudo partiu das ações realizadas por organizações sociais e inspirou-se em

pesquisa, também desenvolvida pelo Núcleo, sobre padrões de inclusão/exclusão do

qual decorreu o Mapa da Exclusão/Inclusão Social inicialmente desenvolvido para a

cidade de São Paulo e posteriormente replicado em outras cidades brasileiras. O

raciocínio estabelecido definiu um ponto de mutação pelo qual se reconheceu

coletivamente que a condição vivida pela pessoa expressa, a partir daquele parâmetro,

uma condição de civilidade e de atenções às suas necessidades desejável diante do

padrão de riqueza social, econômica e cultural construído coletivamente. Portanto,

trabalha tendo como referência a melhor condição de inclusão territorial num extremo,

e no outro, a pior condição de exclusão territorial. Assim, as seguranças de assistência

social representariam esse ponto de mutação que ao serem garantidas, expressariam

um padrão de dignidade e de condição de desenvolvimento a todos os cidadãos.

Previu-se ainda que, em cada uma dessas seguranças houvesse definição de

padrões de inclusão, parâmetros e indicadores que expressam que aquela

condição está assegurada. (TORRES, 2013, p. 163. Grifo meu)

Nos processos de educação permanente esses elementos históricos, teóricos e

“didáticos” são fontes para explicar e ampliar as inquietações contidas nas situações

problemáticas. Podem ser levados por educadores, assim como acessados pelos processos de

estudos entre os próprios trabalhadores. Especialmente o conteúdo do caderno Capacita- SUAS

(Brasil, 2013), assim como outros disponíveis na internet, podem realizar o desejo de Rita, que

no Segundo Ato do “SUAS em cena” sonha ter espaço no cotidiano do trabalho para estudos

coletivos dos materiais institucionais já produzidos.

Grupos de estudos - auto organizados por trabalhadores, por conselhos de classe, por

equipes de serviços etc – podem se debruçar coletivamente sobre esses materiais, a partir de

perguntas geradas em situações do cotidiano que os convoque a estudar. Desse modo, podem

pôr em pratica o que para Paulo Freire é o sentido crítico da leitura de textos (e do mundo): Ler

não é caminhar e nem voar sobre as palavras. Ler é reescrever o que estamos lendo, é perceber

a conexão entre o texto e o contexto e como vincula com o meu contexto.

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115

2.3 Direito de acessar serviços ofertados por equipes capacitadas: as demandas de

produção de conhecimento no SUAS

O enunciado do 5º direito socioassitencial que percorre, subterraneamente, a

estruturação dos argumentos deste capítulo traz como condição de sua efetividade certas

“qualidades” requeridas dos trabalhadores do SUAS. Embora genéricos, esses adjetivos –

qualificados, capacitados e permanentes – demarcam a distância em relação ao que

historicamente lhes antecedeu que, grosso modo, poderia ser assim expresso – “desabilitados”,

voluntaristas e de presença inconstante. A afirmação do direito socioassistencial, portanto,

indica que o trabalho nos serviços (e também na gestão que organiza os meios para sua

efetividade) é baseado no “domínio” de certos conhecimentos.

Portanto, a centralidade dos direitos dos cidadãos no SUAS também cria,

simultaneamente, a encomenda de maior profissionalização do trabalho institucional, seja no

âmbito da gestão, seja na atenção direta à população45. Nesta seção, adentro o conteúdo do 5º

direito socioassistencial - direito a serviços operados por profissionais qualificados,

capacitados e permanente - para demonstrar que os processos de educação permanente são

inerentes aos direitos dos usuários.

Como visto na seção anterior, embora o conteúdo da PNAS 2004 seja, em certa medida,

sustentado por produções acadêmicas, ainda é necessário um grau de aprofundamento de

conceitos e compreensões que no documento são apenas indicativas da diretriz a ser dada para

o SUAS. Por isso, as interfaces entre o campo normativo do SUAS e a produção de

conhecimento são cada vez mais exigidas para os atores nele implicados, assim como o nexo

entre produção de conhecimento e qualidade da intervenção profissional também tem sido

fortemente demandado.

Em 2005, a primeira Conferência Nacional posterior à aprovação da PNAS/2004, pôs

em debate em todo país a projeção de dez anos para a implantação e implementação do SUAS.

As deliberações desta conferência, articuladas às metas do PPA federal, foram consolidadas no

documento orientador das três esferas de governo: o SUAS Plano 10. Interessa destacar para o

foco desta seção que o horizonte traçado pelo Plano Decenal convocou diferentes áreas de

45 Estudo recente de Campos (2015) trouxe reflexões profícuas sobre essa temática ao analisar as demandas

profissionais para o exercício de funções de gestão nas políticas de Assistência Social e Saúde no Brasil e a

percepção de assistentes sociais que as ocupam em nível municipal. Suas conclusões sugerem a necessidade de

revisão da formação de assistentes sociais, assim como dos processos de trabalho.

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116

conhecimento em torno da produção conceitual e técnica acerca dos conteúdos específicos da

proteção social de assistência social46.

A base científica da assistência social se assenta no conhecimento produzido sobre a

realidade das vulnerabilidades e dos riscos sociais e pessoais a que estão sujeitos os

usuários, bem como nos conhecimentos que sustentam o trabalho social e

socioeducativo de agentes técnicos institucionais no processo de restabelecimento

sociofamiliar e superação das sequelas desses riscos de vida das famílias e de seus

membros e de redução/eliminação de vulnerabilidades sociais. O incremento da base

cientifica para a política de assistência social visa gerar capacidade técnica de

resolutividade e qualidade nas respostas da política a cada usuário. (...) Tal acúmulo

e acervo não se resumem a elaboração de diagnósticos situacionais. Esses apoiam a

produção de novos conhecimentos e também a proposição de formas de

aprimoramento das estratégias de gestão dos serviços, projetos, programas e

benefícios.

[...] É indispensável estimular estudiosos, pesquisadores, núcleos de estudos e

pesquisas acadêmicas de modo a fomentar a capacitação dos agentes institucionais, a

qualidade resolutividade nas ações. (Plano Decenal. SUAS: Plano 10, pp. 38-39)

O processo de institucionalização da política de assistência social pauta uma agenda

extensa de estudos e pesquisas47, revisões curriculares e regulação dos estágios e criação de

modalidades de residência nas áreas profissionais ligadas a ela. E também formação técnica de

nível médio para as funções recém- reconhecidas: educador, cuidador e funções de apoio à

gestão. Há, portanto, implicações significativas das IES e demais instituições formadoras do

ponto de vista da profissionalização dos atuais trabalhadores e formação de novos profissionais.

Embora tenha sido feita nesta pesquisa a opção por abordar e adensar os nexos entre educação

em serviço e trabalho institucional, defendo que cada conteúdo dessa agenda merece debate,

aprofundamento, assim como disseminação de experiências que já estejam em curso. No plano

federal essa agenda deu um passo largo com a aprovação da Política Nacional de Educação

Permanente, em 2013, e as regulações que estão sendo construídas desde então carreadas pelo

programa federal Capacita-SUAS. Mas ainda há muito a construir.

46 Em 2011, quando a centralidade do debate nacional da Conferência foi “Consolidar o SUAS e valorizar seus

trabalhadores”, a exposição de especialistas no painel central da VIII Conferência Nacional de Assistência Social

inseriu na pauta e na agenda de órgãos gestores e também nas instituições de ensino e pesquisa as demandas de

produção de conhecimento. As exposições de Raquel Raichelis, Jucimeri Silveira e Berenice Couto pautaram esse

desafio tanto para as IES quanto para os órgãos gestores do SUAS.

47 Em 2014, sob a coordenação de Aldaíza Sposati pesquisadores do NEPSAS-PUC empreenderam ampla pesquisa

das produções acadêmicas (dissertações e teses) na área do Serviço Social, que nominaram por Plataforma de

Pesquisa em Assistência Social (PqAS, 2014). Os estudos mapeados tem em comum objetos afetos à política de

Assistência Social.

O banco de teses e dissertações da CAPES foi a base consultada (1987-2012), complementada por pesquisa in

loco nas universidades para acessar e organizar trabalhos acadêmicos no período entre 1972- 1986, abrangidos

pela pesquisa. Total de teses e dissertações: 819, (690 mestrado e 129 doutorado), sendo 528 (64%) em programas

de Serviço Social.

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117

Retomo o eixo central desta tese – a relevância da pedagogia da problematização para

desenvolver os processos de educação permanente – para reafirmar que a natureza coletiva das

situações problemáticas significa que elas não expressam um dado a priori, ou são apenas a

manifestação de uma condição estruturante e socialmente dada àqueles que a enunciam e

revelada por aqueles que a analisam. Nesse sentido – e também pela encomenda claramente

posta no Plano Decenal – as situações problemáticas solicitam conhecimentos já

sistematizados. Na seção anterior, os desdobramentos desta afirmação seguiram a primeira

solicitação. Demonstrei que o educador tem sempre à sua disposição um conjunto de

conhecimentos produzidos no campo das Ciências Humanas e Sociais, assim como na área da

Seguridade Social e, nela, a proteção social de Assistência Social. Ciente de sua limitação e

incompletude, ele faz escolhas sobre as quais pode se responsabilizar junto com aqueles com

quem compartilha as situações de aprendizagem.

Tendo em vista que as situações problemáticas de onde partem os processos de educação

permanente põem luz nos conteúdos específicos do trabalho na assistência social, o educador

tem diante de si o desafio de pesquisar e produzir novos conhecimentos. A prevalência da

categoria pobreza como fundadora e justicativa para o trabalho social o imobiliza, sobretudo

porque, tal como analisa Lavinas (2014), Sposati (2013) e Pereira (2013), as politicas sociais

nas sociedades capitalistas se institucionalizam em um campo contraditório, em que o pacto

Estado- sociedade – mercado implica a assunção de políticas fiscais e econômicas

redistritibutivas, decisão que não vem ocorrendo no Brasil de forma continua e duradoura. Ao

mesmo tempo, o conteúdo próprio sobre o qual a política de assistência social, como direito às

seguranças sociais de acolhida e convívio, recebeu historicamente menos atenção por parte das

instituições de ensino e pesquisa. Por isso, as afirmações contidas na PNAS/2004 ao tornar mais

especifica a natureza do objeto da assistencia social, passam também a requerer a produção de

novos conhecimentos.

Nos três atos do SUAS em cena o objeto específico da proteção social de Assistência

Social está em questão: no primeiro ato, o fortalecimento de vínculos como finalidade dos

serviços, no segundo, a provisão material dos benefícios e o terceiro ilumina as dificuldades de

lidar com o objeto intangível das relações e dos vínculos sociais que diferencia os processos de

trabalho entre a proteção social básica e especial.

Na trilha dessa possibilidade mantenho o chão concreto de onde parte essa possível

“crise”. As dificuldades de demonstrar os resultados dos serviços continuados na vida dos

usuários podem gerar novas situações problemáticas. Duas narrativas cotidianas expõem

claramente essa possibilidade.

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Meire traz para o Terceiro Ato do “SUAS em cena” a seguinte constatação para dizer

da ausência de conhecimento especializado capaz sustentar teórico-tecnicamente a

hierarquização organizacional entre proteção social básica e especial: Na lógica da organização

da Política, a gente tem todos os documentos muito separados. Eu sempre costumo falar, mas

qual é a especialidade que os profissionais do CREAS têm que é diferente dos profissionais do

CRAS? Se a gente for olhar bem, pelo menos lá na região do ABC, a gente não conseguiu

desenvolver nenhuma especialidade diferenciada para os profissionais do CREAS que os

profissionais do CRAS não tenham!

Márcia, trabalhadora do CRAS narrou no Segundo Ato que o acompanhamento das

famílias nos serviços produz – A sensação é que nunca a gente consegue terminar. [...] O

plano de acompanhamento com aquela família, qual o resultado que você alcançou? O que a

família alcançou? Fica um pouco difuso, porque sempre surge algo novo e são muitas

demandas! E foi, em seguida, complementada por Rosário, da SNAS: “Só na medida em que a

gente conseguir, realmente, com uma avaliação apontar que mudamos os indicadores, que

conseguimos melhorar as condições de vida e que estabelecemos uma outra forma de relação

naquela determinada localidade é que a gente vai ter este aporte [de acesso ao fundo público

que viabilizem esta organização e essa articulação do trabalho no SUAS].

Diante dessas duas narrativas, é possível afirmar que o processo de institucionalização

do SUAS ainda não produziu condições para que, coletivamente, seja possível definir padrões

de qualidade dos serviços ou indicadores que expressem o alcance das seguranças por eles

provido. Sposati segue tencionando o debate nessa direção, pois ainda é baixo o consenso em

torno dos resultados desses serviços.

O que se espera da proteção social aos cidadãos? Em uma sociedade de mercado a

resposta mais usual tem sido a que relaciona, mecanicamente, o acesso à renda como

condição para “estar protegido”. Por outras palavras, ter renda seria o suficiente para

resolver situações que fragilizam as famílias e seus membros. (...) Por essa via, o

acesso ao mercado por meio do consumo seria a única resposta possível de garantia

ou restauração da automanutenção. Duas realidades são ocultadas por esse modo de

pensar. Primeiro, a de que a proteção social é mais do que um objeto de compra e

venda; segundo, que ela ultrapassa o campo individual. A produção da segurança

social é efeito de um pacto coletivo, que estabelece os patamares dignos e indignos de

viver e de lidar com as incertezas e inseguranças geradas pela própria dinâmica da

sociedade de mercado. Portanto, sentir-se seguro não é uma decisão pessoal, posto

que diz respeito ao campo das responsabilidades púbicas e coletivas. (SPOSATI,

2011, p. 6)

Com a implantação da função de vigilância territorial nos municípios, por indução da

NOB-SUAS 2012, muitas tensões são vividas, frequentemente opondo equipes de gestão e

equipes dos serviços em torno da necessidade de produzir informação para planejamento,

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monitoramento e tomada de decisão acerca da dos pactos em torno da oferta e cobertura de

serviços, por exemplo. Tensões que ainda estão, muitas vezes, no ponto cego da polêmica entre

dados quantitativos que não captam a “verdadeira” qualidade da atenção. A possibilidade de

aferir o valor de uso dos serviços socioassistenciais pelos usuários e trabalhadores precisa

ganhar objetivações, parâmetros de qualidade consensuais. Ainda que possam ser provisórios e

limitados eles podem ser uma arma de luta de gestores e trabalhadores do SUAS pela disputa

do fundo público. Na ausência deles fica ainda mais frágil sustentar o projeto político do SUAS.

Como potência histórica, o projeto que advoga a responsabilização do Estado pela

proteção aos cidadãos tem força instituinte: o redimensionamento do poder político no qual o

acesso e usufruto dos direitos socioassistenciais afirma um lugar potente dos cidadãos, em

oposição à matriz tutelar instituída que os visibiliza por ausências e carências de ordem material

e, não raro, moral, conforme visto nas narrativas do segundo ato do SUAS em cena.

Daí a reflexão ainda necessária para a qual a conexão entre o Primeiro e o Terceiro atos

convocam: Sabemos como os usuários constroem seus vínculos sociais? Conhecemos os

vínculos valorizados por eles? São eles que nos escapam enquanto olhamos para a pobreza?

Ao estudar a convivência como segurança de proteção no SUAS, Abigail Torres (2013),

em sua tese de doutorado, traz sustentação teórica para a afirmação contida na PNAS/2004,

qual seja: vínculos fortalecidos são o resultado esperado do trabalho social no SUAS, tendo

como metodologia de intervenção experiências de convivência que reconheçam e valorizem as

pessoas.

Para a autora, não é possível compreender os indivíduos dissociados de suas relações e

dos vínculos por ele criados. Apoiada em Norbert Elias, ela afirma que as relações sociais se

estabelecem como um tecido. Tecidos são compostos por fios que representariam os indivíduos.

Um fio isolado não oferece as características ou propriedades do tecido, essas características só

se tornam palpáveis e visíveis a partir das diferentes formas desses fios se conectarem, ou seja,

a trama. Advoga que para entender as trajetórias dos sujeitos e de grupos é fundamental

compreender e analisar suas relações, considera que elaborações verbais, valores, explicações

para o real e modos de viver não podem ser compreendidos descontextualizados. Relações são

uma trama que se faz e desfaz várias vezes em diferentes redes.

As ideias, convicções, afetos, necessidades e traços de caráter produzem-se no

indivíduo mediante a interação com os outros, como coisas que compõem seu “eu”

mais pessoal e nas quais se expressa, justamente por essa razão, a rede de relações de

que ele emergiu e na qual penetra. E dessa maneira esse eu, essa “essência” pessoal,

forma-se num entrelaçamento contínuo de necessidades, num desejo e realização

constantes, numa alternância de dar e receber. É a ordem desse entrelaçamento

incessante e sem começo que determina a natureza e a forma do ser humano

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individual. Até mesmo a natureza e a forma de sua solidão, até o que ele sente como

sua “vida íntima”, traz a marca da história de seus relacionamentos – da estrutura da

rede humana em que, como um de seus pontos nodais, ele se desenvolve e vive como

indivíduo. (ELIAS, apud TORRES, 2013, p. 49)

Ao trazer a contribuição de Serge Paugam, o estudo aponta que os vínculos sociais que

constituem essa trama de conexão entre as pessoas podem ser de diferentes naturezas: de

filiação, eletivos (relações escolhidas pelas pessoas como os grupos de amigos, as comunidades

locais, as instituições religiosas, esportivas, culturais etc.) orgânicos (afetos à relação com o

trabalho) e de cidadania (produzida pela relação de reconhecimento das pessoas nos serviços

públicos). De modo que, quanto mais diversificados os vínculos que as pessoas possuem e

quanto mais eles forem sustentados no tempo, mais protegidas as pessoas estarão, quando

vivenciarem situações que as fragilizam, tornam inseguras ou violam seus direitos. Vínculos

são, nessa elaboração, compreendidos como expressão de reconhecimento e de proteção social.

Reconhecimento quando as pessoas sabem que há instituições, grupos e indivíduos que as

enxergam como dignas de receber atenção e cuidados em situação de necessidade; proteção

quando elas contam com atenções e serviços para responder a essas necessidades.

Se a diversificação dos vínculos torna a pessoa com maior segurança de contar com

proteção, a fragilidade ou a restrição a poucas relações são indicadores que expressam

desproteção. Para demonstrar essa afirmativa, o estudo busca dar visibilidade a situações que

podem ser tomadas como exemplares de vínculos fragilizados sejam eles nas relações

familiares, nos territórios e nas instituições públicas, afirma a autora a importância de que haja

estudos a respeito de vivências de situações de subordinação e sobre os sentimentos que

acometem as pessoas submetidas a essas situações. A aposta é que a intervenção da política

pública de assistência social, deve estar baseada em um maior conhecimento de como os

movimentos de desproteção se dão, para conseguir se antecipar a eles, combatê-los e ainda

restaurar trajetórias após essas vivências.

Assim, há que se ressaltar que o estudo não trata de vínculos somente nas relações

familiares, ao contrário, a análise das situações de proteção/desproteção decorrentes da

presença ou não de vínculos, estende-se às relações sociais e na atenção em serviços públicos.

Essa direção é importante porque o debate dos profissionais em geral se concentra na leitura

dos vínculos familiares e associam a vivência da institucionalização ao rompimento desses

vínculos. O estudo traz uma contribuição ao apontar que as violações ocorridas nas instituições

que deveriam proteger as pessoas, são uma face ainda mais perversa da desigualdade, que

precisa tornar-se visível, desnaturalizada e tornar-se objeto de estudo e debates públicos na

assistência social.

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Na Política Nacional de Assistência Social de 2004 estão enunciados que sustentam e

expressam compromisso com uma “visão social inovadora”, que afirma a necessidade

de conhecer o cotidiano e não se limitar à leitura macrossocial ou somente aos dados

estatísticos secundários, associa-se a estes a necessidade de conhecer o cotidiano e a

premente obrigatoriedade ética de atuar na perspectiva de fortalecimento dos sujeitos

e não produzindo novas subordinações. Uma possibilidade nessa direção é produzir e

ampliar oportunidades de viver relações que valorizam as diferenças numa

perspectiva de igualdade. Assim, as discriminações e preconceitos por vezes

entendidos como banais passam a ser desnaturalizados; novas relações se

estabelecem, novas possibilidades de proteção se descortinam e novos vínculos

passam a ser possíveis. (TORRES, 2013, p.142)

Entretanto, questões de natureza teórica no campo das políticas sociais estão associadas

também a indagações sobre a ação profissional. Os participantes do primeiro ato do “SUAS em

cena” fizeram esse movimento ao remeter o fortalecimento de vínculos aos verbos: construir,

reconstruir, reparar vínculos por meio do trabalho social. E ainda, as falas que compõem esse

primeiro ato dão a ver hesitações e dúvidas quanto a melhor decisão a tomar: intervir ou não;

denunciar ou não; “aceitar” ou não as escolhas dos usuários concretos e singulares, que vivem

imersos nessas relações de gênero, classe, etnia e tantas outras formas de submissão que

marcam a construção da subcidadania, para usar os termos de Jessé de Souza (2003).

Por isso, analisar a política social sob a ótica da autonomia de trabalhadores e usuários

exige redefinir seu objeto de trabalho. Por analogia, empresto de Onoko e Campos (2006) a

indagação: “como se produz vínculos ou o que é produzir vínculos” e também suas respostas,

uma vez que vínculos não são transcendentes, nem abstratos. Por isso, a indagação acerca da

produção de vínculos deve ser respondida sempre em comparação a alguma posição do sujeito

sob análise, seja ele um indivíduo ou uma coletividade. Há, portanto, do ponto de vista do

trabalho institucional nas políticas sociais uma gradualidade e a necessidade de ter como

referência sujeitos históricos, “concretos”.

Partindo da definição de ambos, diversas analogias podem ser pertinentes para ampliar

e dar consequência às indagações dos profissionais acerca de sua insegurança e incerteza quanto

ao uso do conceito em situações concretas.

A autonomia depende também da capacidade do sujeito agir sobre o mundo, de

interferir em sua própria rede de dependências. A capacidade do sujeito de lidar com

o sistema de poder, de operar com conflitos e de estabelecer compromissos e contratos

com outros sujeitos para criar bem-estar e contextos mais democráticos.

[...] Portanto, a definição de autonomia que propomos a torna sempre uma forma

relativa, em gradientes, passiveis de terem seus limites tencionados, mudados. O seu

exercício se aproxima, assim, de uma ética, pois deverá sempre se colocar em situação

e envolverá algum juízo de valor. Não haveria uma autonomia pronta a priori para

todos, nem em qualquer situação. (ONOKO e CAMPOS, 2006, p. 674)

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3 COTIDIANO E EXPERIÊNCIA: PISTAS PARA CONSTRUÇÕES ASCENDENTES

DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO PERMANENTE

Partimos do princípio de que não iríamos começar a mudar. Em vez disso, paramos

para nos perguntar que mudanças já estavam acontecendo. Miguel Arroyo48

Tendo participado ativamente da construção da Política Nacional de Educação

Permanente do SUAS (CNAS, 2103), apresentada na introdução deste estudo, coloco em

perspectiva essa experiência, indicando aspectos relevantes para que sua implementação possa

se diferenciar de padrões antigos de educação - por vezes autodeclarados como inovadores. Por

isso, busco mudanças que já estão acontecendo nos processos de educação em serviço para

escapar da armadilha - e da minha própria ilusão - de que a objetividade e responsabilidade

instituída pelas normas sejam a salvaguarda de continuidade.

Ao voltar às práticas cotidianas neste último capítulo e buscar nelas potências criativas

e inovadoras, interrogo a maneira como elas estão produzindo deslocamentos de modos

instituídos de poder. A reflexão de Miguel Arroyo me parece assertiva e inspiradora. Ao ser

questionado pela jornalista do Jornal do Brasil sobre “Como conviver ou enfrentar este quadro

[de mudanças de governo que interferem no que foi feito na administração anterior]”? Arroyo

responde lastreado em sua experiência:

Miguel Arroyo - As tentativas de dar diretrizes, no velho estilo, para uma inovação,

em geral, não levam a nada. Fui convidado a participar do lançamento de uma

proposta supostamente inovadora em uma rede de ensino e, antes de se falar sobre ela,

houve o cuidado de se entregar aos diretores e professores uma portaria em que se

definiam os limites da inovação. Aí não dá. É uma espécie de inovação tutelada.

Enquanto os professores não adquirirem autoconfiança e deixarem de perguntar

às secretarias com que pé podem andar agora, nada acontece. Uma das

preocupações é de que o professor adquira cada vez mais confiança nele mesmo,

criem-se coletivos de profissionais que se apoiem. [JORNAL DO BRASIL, 03 de

dezembro de 2000. Grifo meu.]

Convivi com alguns professores e gestores que participaram da construção da Escola

Plural. Marcada por essa convivência e seus desdobramentos, a Escola Plural tornou-se

inspiração para buscar experiências em andamento na Assistência Social. Sobretudo porque

tem sido muito recorrente nos debates coletivos e públicos dos quais tenho participado as

seguintes expressões por parte de trabalhadores e gestores: “ a gente ainda não começou a fazer

porque não veio orientação do MDS”; “o MDS tem que soltar um passo a passo pra gente poder

fazer os planos de capacitação”; “nós fechamos o serviço de convivência para idosos porque

48 Miguel Arroyo, professor emérito da Faculdade de Educação da UFMG, elabora essa frase ao narrar a

experiência de construção coletiva da proposta político-pedagógica “Escola Plural” no momento em que esteve

como Secretário Municipal Adjunto de Educação de Belo Horizonte (1993-1996).

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123

não tinha número suficiente para colocar no campo do SISC”; “ a gente faz assim [o trabalho

com as famílias] porque está no Caderno do PAIF”; “ a gente não conhece a demanda [dos

serviços] porque ainda não tem a vigilância instalada no município”.

A lista poderia se estender por páginas, mas já dá elementos suficientes para indicar um

baixo reconhecimento e produção de sentido para as finalidades de decisões tomadas no

cotidiano, assim como para os processos e procedimentos de trabalho advindos da

institucionalização do SUAS.

Compreendo que as normativas são dinâmicas políticas que institucionalizam consensos

e pactos históricos possíveis, mantenho a perspectiva de analisa-las à luz de movimentos

instituintes, como os do município de Atibaia (Grupo de Trabalho Técnico) e da diretoria

regional de Assistência e Desenvolvimento Social (DRADS) de Franca denominado (Grupo de

Estudos e Capacitação Continuada para Trabalhadores do SUAS - GECATS). Tal como

procuro demonstrar, ambas experiências abrem novas possibilidades políticas e éticas de maior

realização das diretrizes de descentralização e participação de trabalhadores e usuários do

SUAS. Por isso, elas finalizam a estruturação dos argumentos que demonstram que é possível

produzir modos diversos de conectar educação em serviço e trabalho institucional no SUAS

para além da estrita e literal leitura e aplicação das normas; para além da estrutura formal de

cursos e palestras.

Portanto, numa perspectiva de que a aplicação das normas, assim como dos demais

elementos instituídos no SUAS, precisam ser submetidos a uma reflexão sobre suas

consequências para a vida e a proteção social devida aos cidadãos. Produzi um esboço das

possibilidades desta reflexão da ética pública no 1º. Seminario Nacional da Gestão do Trabalho

no SUAS, realizado em 2014, e cuja síntese organizei no quadro anexo. (Anexo- A).

Ao voltar às experiências cotidianas demonstro que é possível haver experiências – para

ser possível a troca de experiência nos processos de educação permanente – nesse momento do

SUAS, ainda que elas pareçam (e talvez sejam) raras. É possível ver modos de enfrentar

coletivamente e propor saídas para alguns conflitos que se interpõem no cotidiano do trabalho.

Neste capítulo os deslocamentos nas formas de exercício do poder em nível micro

político são analisados para iluminar a produção de novas realidades em face daquelas que

estavam instituídas até então para esses grupos específicos de trabalhadores de Atibaia e da

região de Franca.

Ao utilizar o termo “deslocamento” nos modos de exercício do poder para analisar as

duas experiências em tela neste capítulo, inspiro-me nas reflexões de Foucault a respeito da

vontade de saber. Ao invés de buscar a substância, os atributos ou mesmo o lugar do poder, o

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filósofo francês analisa seu enraizamento e capilaridade nas relações sociais, suas modalidades

de exercício transitórias e móveis. Portanto, uma acepção que não interroga o poder como

propriedade (a condição para que um tenha poder é necessário que o outro não tenha); nem o

poder como lugar (o poder estático e situado em um centro a partir do qual emana seu

capacidade de gerar obediência e submissão); tampouco o poder como negatividade (aquela

instancia da interdição, da proibição e da lei). Trata-se, então, de uma afirmação do poder

eminentemente como relação. Nesse sentido, as perguntas mais assertivas para analisa-lo são:

quais são os modos pelos quais o poder opera? Por onde ele circula e transita? Como se expande

ou se restringe num campo de forças delimitado historicamente?

Uma vez que Foucault depreende o poder como positividade (não no sentido comum de

“bom”) não se trata de analisar o que ele proíbe, interdita, e sim o que ele produz, uma vez que

Dispomos da afirmação que o poder não se dá, não se troca, nem se retoma, mas se

exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é

principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo

uma relação de força. (FOUCAULT, 1979, p. 175)

Como consequência, a resistência ao poder não é sua antítese, não se trata do outro do

poder que resiste – fora do jogo concreto em que os sujeitos usam sua força - mas é o outro

numa relação de poder histórica e socialmente construída. A negação da definição hegemônica

de poder constitutiva das reflexões e teorizações de Foucault podem ser sintetizadas em três

rubricas:

O poder não é essencialmente repressivo (já que incita, suscita, produz); ele se exerce

antes de se possuir) já que só se possui sob uma forma determinável – classe- e

determinada – Estado); passa pelos dominados tanto quanto pelos dominantes (já que

passa por todas as forças em relação). (DELEUZE, 1991 apud VEIGA-NETO, 2011,

p. 126)

Essas ferramentas analíticas de Foucault são referencias para examinar, em modos

concretos de exercício de poder, suas possibilidades de descolamento. Os sujeitos que encarnam

essas experiências podem ser assim apresentados, de acordo com o perfil dos profissionais

participantes da pesquisa:

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Figura 1: Perfil dos grupos entrevistados

Fonte: Ficha para caracterização de perfil preenchida pelos entrevistados.

O acesso a essas experiências é sempre parcial porque recortado pelo ângulo de visão e

do instrumento de pesquisa utilizado para acessá-las. Essa parcialidade também se dá porque

essas experiências reproduzem o jogo de luz e sombra, do dito e do não dito das instituições.

O acesso às narrativas dos participantes dessas experiências se deu por meio de duas

estratégias de pesquisa qualitativa distintas.

Figura 2: Estratégias de pesquisa

Fonte: Ficha para caracterização de perfil preenchida pelos entrevistados.

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3.1 Breve apresentação das experiências

O Grupos de Estudos e Capacitação Continuada dos Trabalhadores do SUAS

(GECATS) foi gestado na região de Franca, interior do estado de São Paulo, envolvendo 23

municípios adstritos à Diretoria Regional de Assistência e Desenvolvimento Social (DRADS)

de Franca49. Foi instituído em 2009 por iniciativa da equipe desta diretoria regional num

momento ainda bastante incipiente do processo de implementação do SUAS e das unidades

públicas CRAS e CREAS. Trata-se de uma estratégia de gestão estadual na região, sem

correspondência a um plano, orientação ou direção dada pela Secretaria de Estado de

Desenvolvimento Estadual (SEDS).

Em 2014, quando foi realizado o grupo focal, o GECATS contava com participação de

77 trabalhadores da proteção social básica e de equipes de gestão - oriundos de 23 municípios

da região - e 4 profissionais da DRADS50. Desde então, o Grupo reúne-se mensalmente, num

processo auto organizado no qual a equipe da DRADS ocupa hoje o lugar de articulação dos

municípios e sistematização de registros, compartilhando a responsabilidade pela realização das

reuniões e demais atividades com as equipes municipais.

O processo de mobilização dos municípios participantes do GECATS se deu pelo

reconhecimento da necessidade de implantar as unidades públicas estatais prestadoras dos

serviços socioassistenciais: CRAS e CREAS51. Esse requisito foi particularmente exigente com

os municípios de menor porte populacional, que, via de regra, tem condições institucionais mais

frágeis. Daí a importância do apoio técnico das equipes estaduais no processo de

institucionalização do SUAS junto a estes municípios que, aliás, são maioria no país.

O GECATS foi criado nesse momento da institucionalização do SUAS, explicitando a

necessidade de aprofundar as reflexões desencadeadas no processo de capacitação ofertado pelo

49 A caracterização destes municípios por porte populacional indica que a maioria é de pequeno porte 1 (14),

seguido de pequeno porte 2 (7); um de grande porte e outro de médio porte.

50 De acordo com perfil traçado pela equipe da DRADS-Franca em 2014, participavam do GECATS 30 técnicos

de CRAS, 11 coordenadores deste Centro de Referência, 8 profissionais da equipe de gestão municipal e 6 gestores

municipais. Os demais participantes estavam em férias e/ou licença e não responderam ao questionário de perfil.

Apenas 3 profissionais não estavam participando regularmente do grupo. O grupo focal realizado captou essa

heterogeneidade.

51 Os critérios nacionais de habilitação para os municípios que aderissem ao SUAS (NOB-SUAS/2005) serviram

como indutores de instalação ou aprimoramento da capacidade institucional, que funcionavam como requisitos

para acesso ao recém-instituídos pisos de proteção social, em substituição aos convênios.

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governo do estado, sob a coordenação da Fundação Vanzolini52. Gabriela, hoje da equipe da

DRADS, narra como se constituiu a demanda coletiva para instituir este grupo.

Eu não participei desde o início, mas eu lembro quando montou o CRAS, a gente na

realidade não sabia mesmo o que ia fazer! Então veio essa capacitação da Vanzolini,

que o Estado desenvolveu.

Primeiro era a Casa da Família, que virou o CRAS, mas ninguém sabia na realidade

o que ia fazer. Então começou a entupir esse CRAS de oficina, porque em 2007

começou a mobilização de implantar, em 2008 a gente implantou, e ninguém tinha

noção do que ia fazer! Nem a Vanzolini na realidade sabia. Mas eu concordo, na

Vanzolini se conversou de estar fazendo o grupo da proteção social básica dos CRAS

pra trabalhar o que ia ser feito, pra trocar experiências, construir juntos aí um processo

que... havia um processo a ser construído. Então a proposta era de haver essa discussão

envolvendo todos os municípios porque todos estavam na mesma, na época não tinha

nem cartilha!

A memória de Gabriela foi complementada por Dulce, assistente social de um municipio

da região.

Então eu acho que foi um híbrido: tanto da gente notar que havia uma insuficiência

mesmo de respostas diante de uma realidade que estava ali nos pedindo novas ações,

novas metodologia, mediante todas as regulamentações que estavam surgindo.

Portanto, havia o reconhecimento de que a implantação do SUAS requeria inovação e

produção coletiva capaz de deslocar as práticas vigentes do plantão social em nível municipal

e as práticas de fiscalização e controle administrativo exercida pelas equipes estaduais por meio

do apoio técnico aos municípios. Daí a complementação da narrativa de “origem” feita por

Dulce fazer muito sentido ao retomar seu lastro em experiências coletivas das quais participou

nas décadsa de 1980 e 1990.

Antes a gente não tinha o nome de diretoria e éramos subdivididas em 3 regiões. Então

sempre se reunia nessas sub-regiões para discutir a política de assistência social. Nessa

época a gente envolvia uma outra instância que é a instancia federal, a LBA [Legião

Brasileira de Assistência Social], envolvia outras secretarias e era um trabalho muito

importante. E isso acabou contribuindo bastante para que essa demanda, que apareceu

posteriormente, fosse levantada pelos municípios.

Então alguns trabalhadores que fizeram parte desse primeiro momento cobravam

muito porque a gente teve que romper esse trabalho por conta das mudanças que

ocorreram com a LOAS e depois com a extinção LBA. Isso motivou também os

municípios a propor a instituição de um grupo que pudesse estar focado na política de

assistência social, sobretudo no SUAS, com base nessas experiências anteriores.

52 O curso Implantação dos Centros de Referência de Assistência Social – CRAS foi realizado no período de 2008-

2009 por iniciativa da Secretaria da Assistência e Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo (SEADS). Foi

desenvolvido de forma de descentralizada com o objetivo de consolidar a proteção social básica nos municípios

paulistas por meio de apoio técnico, reflexões teóricas e troca de experiências. O desenho da capacitação consistiu

em três módulos, com conteúdos interdependentes e periodicidade mensal, intercalados por atividades

complementares, não presenciais. Capacitou 1.481 técnicos estaduais e municipais. Dessa experiência foram

produzidos dois volumes da publicação: São Paulo Capacita CRAS: Marcos Legais (2008) e O CRAS no

contexto dois municípios paulistas: panorama e experiências (2009), sob a coordenação pedagógica de Sonia

Nozabielli e assessoria de Maria Luiza Mestriner e Vânia Baptista Nery.

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Do ângulo macro institucional, o GECATS efetiva de um modo particular a

responsabilidade do ente estadual prevista desde a LOAS e atualizada na PNEP (2013): ofertar

capacitações de atualização e supervisão técnica aos municípios, além de pactuar e validar

conteúdos para, posteriormente, disseminá-los ao maior número de trabalhadores do SUAS.

(CNAS, 2013, p.52)

De acordo com o Regimento Interno do Grupo53:

Artigo 8º – Para cada reunião será instituída uma comissão organizadora de forma

que o grupo prime pelo caráter democrático e participativo, além de propiciar

dinâmica pedagógica de aprendizagem de condução de atividades coletivas, já se

traduzindo em processos que agregam à competência profissional.

A relação de horizontalidade entre a equipe estadual e as equipes municipais não dilui

as atribuições próprias de cada uma delas. As profissionais da DRADS-Franca tem uma

atribuição distinta, própria do lugar institucional em que estão, conforme detalha Olga:

Em toda reunião a gente faz avaliação do encontro. Então, mesmo as pessoas que não

falam contribuem porque elas escrevem, o que foi legal, o que não foi naquela reunião.

E a gente lê todas as avaliações; a gente faz um compilado de todas as avaliações e

apresenta no encontro seguinte. Então assim, todas as opiniões acabam sendo

respeitadas. […] E a gente chama gestor municipal também quando precisa a gente

diz para ele: tem que ampliar [a participação dos trabalhadores], ou outras pessoas

têm que vir [quando eles não revezam os profissionais inscritos e vem sempre os

mesmos].

Ao longo dos seus cinco anos de existência, o modo de funcionamento do GECATS foi

aperfeiçoado ao ponto de, coletivamente, construir um regimento interno no qual se define (e

eventualmente se atualiza) as condições necessárias para o cumprimento dos objetivos do

Grupo.

Mantém-se o foco de assegurar a presença e participação de trabalhadores e

coordenadores dos CRAS, trabalhadores da equipe de gestão e gestores municipais. Em 2014,

a maioria das participantes era servidora pública efetiva, sendo em menor número as

participantes que ocupavam cargos comissionados ou que tinham outros vínculos.

A respeito do zelo pelo foco do grupo e dos seus participantes, Alice enfatiza avaliação

coletiva feita recentemente:

Nós tivemos umas três ou quatro reuniões ampliadas e a gente viu que estava perdendo

um pouco o foco do grupo de estudos, porque o objetivo do grupo é justamente pra

aqueles profissionais se formarem, se fortalecerem pra levar pros municípios. Acabou

virando quase que uma capacitação mesmo. Então pra esse ano a gente já fechou que

não, é um decisão coletiva: nós decidimos que reuniões do grupo seriam somente para

53 O Regimento do GECATS encontro anexo a este texto (Anexo-D).

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membros do grupo, outros temas que pudessem ser ampliados aí seria à parte do grupo

pra não descaracterizar como grupo de estudos.

Indagadas sobre como o Grupo lida com a rotatividade dos trabalhadores nos municípios

e na própria gestão, Lucia esclarece:

Quanto à questão da rotatividade, de mudança dos integrantes, a gente tem um

regimento interno. E nesse regimento a gente adotou como critério não ficar nessa

rotatividade de ficar mudando, um dia vem um, no outro dia vem outro. A inscrição é

semestral para ter a possibilidade de mudança de integrantes e, ao mesmo tempo, pra

não ter essa coisa de cada encontro vem um técnico diferente54.

Considerando que a opção do GECATS consiste em que todos seus participantes sejam

ativos e corresponsáveis em face dos objetivos do grupo, a decisão coletiva – para além

daquelas previstas no regimento interno – foi multiplicar as estratégias possíveis de aprendizado

mútuo: troca de experiências, comissões para estudo de temas específicos e ações de

disseminação interna e externa. Os relatos que seguem dão conta dessa diversidade e do valor

atribuído a cada uma dela pelos participantes do grupo focal:

Troca de experiencias:

Às vezes a gente tem apresentação de experiências. Se a gente tem um projeto, a gente

apresenta pro grupo e isso permite que a gente troque essas experiências. Dá uma

segurança pra gente, se o que a gente está fazendo está sendo bom...nada é fechado

Nesses 3, 4 anos que a gente está junto aí se fortaleceu muito. Não é cobrança, a gente

compartilha as nossas dificuldades. Então o grupo fortaleceu muito essa troca

também, entre os grandes e pequenos municípios. (Regina, de Restinga).

Porque aí você chega no seu município [e diz]: olha, nosso serviço está sendo

executado assim, mas o município apresentou de uma outra forma que, de repente, dá

pra gente adaptar, melhorar, dinamizar. Então se consolida também entre a troca entre

nós. (Alice, de Patrocínio Paulista)

Palestras informativas: Quando a gente não consegue esgotar entre nós a gente busca pessoas de fora pra dar

um suporte maior em algumas temáticas que a gente tem uma certa dificuldade ainda.

A gente traz pessoas de fora que estão estudando mais dentro dessa área.

Trouxemos uma representante do conselho regional de serviço social pra discutir

ética. [Também trouxemos] o Fernando Brandão para a questão do cofinanciamento.

Nós já discutimos esse tema uma vez a partir dos materiais do SUAS, a NOB etc. E

outra vez nós trouxemos o Fernando pra ele falar sobre isso. Foi um encontro

importantíssimo. Então a gente não esgota um assunto num único encontro. Se houve

uma discussão de cofinancimento dois anos atrás e depois sentiu uma necessidade de

discutir novamente, a gente discutiu novamente. (Adriana da DRADS-Franca)

Grupos de estudo: Alguns temas é o próprio grupo que estuda e apresenta. A gente se divide, aí esse

grupo aqui apresenta essa parte, esse aqui outro, é igualdade. Todo mundo apresenta,

todo mundo fala. Então vamos aprender juntos. E o grupo dá motivação. (Fernanda,

de Ituverava)

54 De acordo com o Regimento Interno, o número de profissionais inscritos por município varia de até 8 (grande

porte) a até 2 (pequeno porte I).

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Tem também as comissões do próprio grupo. Se é pra estudar algum assunto a gente

faz comissões de municípios que estão ali na mesma região. Então já teve situações

de um município ir pro outro lá no CRAS. Eles iam todos pro CRAS daquele

município estudar aquele assunto. Também é uma forma de compartilhar

conhecimento. (Elaine, de Franca)

Estratégicas de disseminação e comunicação55:

A gente procura levar e colocar em prática tudo aquilo que vivenciou dentro das

reuniões. Uma forma que a gente usa lá no município, a gente tem feito reuniões de

equipe, tanto do órgão gestor quanto da equipe do CRAS. Então a gente leva, aqui no

caso no município de Restinga, eu e a gestora participamos, eu sou a única do CRAS.

Então a gente une tanto a equipe gestora, aí a gente reúne equipe do nível médio, até

de nível fundamental. Então a gente reúne todos, a gente passa o que foi colocado no

grupo. E tem a discussão do que pode ser melhorado no nosso município.

A gente sempre tenta disseminar o máximo possível. E outra forma também que é

uma forma que todo mundo usa é o facebook, as redes sociais. Então tudo aquilo que

a gente consegue produzir a gente tem colocado lá. Assim, outros municipios ficam

sabendo o que acontece no grupo, pedem orientações do grupo. Então tem essa troca

assim, não só em âmbito regional, mas em algo mais ampliado com as redes sociais.

(Adriana, DRADS-Franca)

____________

Em Atibaia, o Grupo de Trabalho Técnico (GTT), constituído em 2014, é uma

iniciativa dos profissionais (assistentes sociais e psicólogo) que atuam nas unidades públicas

estatais (CRAS, CREAS e Centro Pop) do município56. Em formato negociado com a equipe

de gestão, o GTT funciona em reuniões quinzenais de seis horas de duração, com a presença de

todos os profissionais de nível superior de escolaridade, que organizam sua própria pauta,

decidem caminhos e estratégias para se olhar mais, se ouvir mais, falar sobre o que lhes

acontece e refletir sobre os processos e procedimentos de trabalho junto aos usuários.

Os diferentes pontos de vista contemplados na fase de mobilização dos trabalhadores

para a constituição do GTT permitiram identificar problemas comuns a esse grupo, tal como

esclarece Ricardo, psicólogo do CREAS e um dos protagonistas desta iniciativa:

A gente tentou desenhar um primeiro modelo que era pensar exatamente como um

cidadão chega na lógica da Assistência Social. Como é que ele chega até nós: é o

cidadão que bate à nossa porta? De alguma maneira sabemos da situação e vamos

buscá-lo? E a partir daí, a gente tentar caracterizar quais são as demandas que os

cidadãos trazem, como é que a gente consegue, de fato, olhar pra essas demandas,

pensar o que é Assistência. Fazer um diagnóstico e disso [discutir] as intervenções

que a gente possa fazer. Então a proposta inicial do grupo é aprofundar o olhar pra

demanda do cidadão que chega; fazer o percurso com esse cidadão nas diversas

lógicas, nos diversos programas da Assistência; e tentar pautar nessas discussões qual

é o passo a passo.

55 O perfil do grupo no Facebook é: https://www.facebook.com/geccats.dradsfranca. 56 Atibaia é um município de grande porte, com 126.603 habitantes, que conta com 4 CRAS, 1 CREAS e um

Centro Pop.

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Como é esperado do processo de institucionalização de um sistema único nacional, as

questões que afetam Atibaia são, de um lado, reverberações daquilo que se passa em nível

nacional. Por isso, algumas das problematizações construídas por este grupo ressoam conflitos

que foram expostos no “SUAS em cena”. Da ótica macro institucional, aqui entendida como de

âmbito nacional, é possível ler as perguntas de Ricardo no seguinte campo de correspondência:

A pergunta - Como é que ele [o cidadão] chega até nós: é o cidadão que bate à nossa

porta? De alguma maneira sabemos da situação e vamos buscá-lo? - remete à diretriz de

territorialização trazida pelo SUAS como parâmetro de acesso para serviços e benefícios.

Já a pergunta – Quais são as demandas que os cidadãos trazem? Como é que a gente

consegue, de fato, olhar pra essas demandas, pensar o que é Assistência? – diz respeito à

construção da especificidade da política de Assistência Social no campo Seguridade Social,

particularmente nas seguranças a serem providas por serviços e benefícios, como abordado no

segundo capítulo.

Por fim, a pergunta – Como fazer o percurso com esse cidadão nas diversas lógicas,

nos diversos programas da Assistência e tentar pautar qual é o passo a passo? - pode ser lida

em duas óticas. Da perspectiva das famílias usuárias do SUAS, a pergunta atesta a incompletude

dos serviços socioassistenciais, em si mesmos, para prover atenção aos membros da família. Da

ótica da gestão, reporta à hierarquização da proteção social entre básica e especial, que implica

um fluxo de atenções segundo a matricialidade sociofamiliar, modelo de atenção também

consolidado na Lei 12.435/2011.

Ao longo desses poucos meses de existência, o GTT tem funcionado quinzenalmente,

numa sala da sede da Secretaria, em formato de reuniões, cuja coordenação tem sido feita pelo

grupo de quatro profissionais que protagonizaram a iniciativa e conta com algumas de suas

habilidades, como destaca Mário, assistente social do CRAS e participante do grupo:

A metodologia é bem ímpar no sentido de trabalhar além dessa necessidade de discutir

os casos e discutir a legislação, mas também a própria organização do grupo, que são

as dinâmicas. A gente sempre faz desde o início, que é de conversar e entender o outro.

Isso é uma coisa muito bacana, hoje eu vejo a Lígia não só a Ligia como uma colega

de trabalho, mas eu vejo como uma pessoa, que a gente faz dinâmica, tem o momento

de integração, de conversa, então isso foi um enriquecimento em vários aspectos.

Ao lado do cuidado com a convivência e os vínculos que vão se formando aos poucos

entre os próprios participantes, a escolha dos temas, estratégias e a definição da pauta da reunião

foram definidas nesses primeiros meses pelo próprio grupo. Com isso, distanciam-se cada vez

mais do formato anterior que chamam de “burocrático”, quando as reuniões eram

essencialmente informativas, com pouco espaço para construções e troca de ideias entre os

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próprios profissionais. Os participantes entendem que esse tom “informal” é um facilitador das

discussões a que se propõem, conforme continua Mário:

Nessa questão de funcionamento do grupo eu acho que o importante é você ter um

ambiente que não tem a especificidade do trabalho formal. Você tem condições de

transformar da maneira mais particular o direcionamento das discussões, não ter

regras rígidas que possam afunilar, engessadas. Pra movimentação do próprio grupo

como indutor de ideias uma maneira mais tranquila de fazer, talvez você fazer essa

interlocução mediante um padrão pré-determinado, a gente, graças a deus não tem

isso, ficaria, vamos dizer assim, talvez mais enfadonho, não teria essa tranquilidade

de estar conversando sobre esse trabalho na ponta. Assim, você começa a colocar

situações que efetivamente são importantes pra definir regras e até protocolos no

futuro. Eu acredito que esse é um caminho legal. Do jeito que está aqui é o caminho.

A necessidade de discutir coletivamente o trabalho no cotidiano é complementada por

Beatriz, que enfatiza sua motivação para participar dessa construção coletiva ainda incipiente:

Um bom exemplo é isso que eu vou falar agora, de que a gente passa muito tempo

respondendo processos que não é nosso, mas a gente não estava respondendo o que é

nosso. Então o GTT veio muito disso, de saber o que é nossa demanda, o que é nosso.

[A demanda externa] é uma coisa que ocupa muito tempo do nosso trabalho.

Além de se debruçar sobre a leitura de algumas legislações, o grupo também criou um

espaço para apresentação do trabalho que realizam nos diferentes centros de referência (CRAS,

CREAS e Centro Pop). Essa estratégia foi acolhedora para os trabalhadores, pois permitiu

conhecer mais de perto a dinâmica de cada serviço. Para os trabalhadores do CREAS, contribuiu

para entender que os usuários que atendem vivem num território cuja dinâmica a equipe

frequentemente desconhece. A partir na narrativa das equipes dos CRAS, passaram a ouvir de

outro modo o relato dos usuários “desterritorializados” com quem trabalham.

Como analiso mais à frente, as equipes dos serviços têm sido ampliadas e alguns

trabalhadores que chegam por meio do concurso público vem de outras cidades. O GTT propôs

um exercício coletivo para mapear os territórios, como descreve Natalia:

Um trabalho muito legal que foi feito nesse grupo foi mapear territórios, o que o

território tem, como é que a gente reconhece o território, pra gente começar a enxergar

quais são as demandas para além daquilo que nos chega nos prontuários, nas

solicitações externas. Pra conhecer mesmo quais são as potencialidades, quais são as

vocações, quais são os problemas pra gente começar a pensar na atuação.

Ao compartilhar as “descobertas” nas reuniões do GTT, Laís, que vem de outra cidade

e ingressou no último concurso fala de seu aprendizado:

Recentemente o Mario veio contar pra mim de um trabalho que a Daniela está fazendo

com as famílias que trabalham em olarias. Como a gente nunca tinha pensado nessa

hipótese? Chegaram eventualmente de uma situação de denúncia, mas quando você

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amplia o olhar - opa peraí, a característica dessa região.. - aí a pessoa já começou a

mexer com isso. Discutimos como vamos trazer esse problema pra dentro, esse

problema tem uma parte nossa pra resolver, tá visível, como tem as pessoas da área

rural, os idosos. Quando a gente tinha tempo, de fato, de olhar pra eles? Isso passava,

muitas vezes a gente sabia, muita coisa a gente sabe, sabe mas não... Olha a gente tem

que começar a construir respostas pra isso, não esperar alguém vir nos provocar com

situações isoladas. E a gente tinha um hábito muito grande de responder a quem pediu,

e não pensar na demanda com um foco na assistência social.

A partir dessas experiências concretas é possível colher pistas e indicações de

possibilidades efetivas – e não idealizadas – de conectar educação e trabalho no cotidiano da

política de Assistência Social. Assim como elas ressoam a força descendente da

institucionalização do SUAS, da ótica micropolítica essas experiências podem ecoar decisões

e ações possíveis em sentido ascendente, quando um grupo de trabalhadores reconhece que tem

poder para interferir nessa ampla e viva trama institucional.

Digo isso porque ao propor um processo de auto aprendizado como saída para as

questões que os interpelam, os participantes desses dois grupos pelos quais fui tocada instituem

um novo dispositivo de gestão do trabalho que escapa do que Arroyo chama de “inovações

legalistas”.

Por isso, a narrativa de “origem” de ambos os grupos é indicativa da presença da

condição fundamental para produzir mudanças nas instituições: o reconhecimento da

capacidade de exercício do poder pelos trabalhadores (CECILIO, 2005). Por isso, o caráter

político deste método parte da concepção foucaultiana acerca do poder expressa em dois de

seus livros:

Concebe-se um jogo de forças de saberes e poderes, em que o poder se dá na ação de

força sobre força - só existe poder em ato (FOUCAULT, 1995).

Ou seja, o poder não é da ordem do consentimento, ele não é em si mesmo renúncia

a uma liberdade. O poder é um conjunto de ações sobre ações possíveis, ele opera

sobre o campo da possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos

ativos. Ele é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos.

(FOUCAULT, 1995, p. 239)

Os conflitos e as incertezas que produzem situações problemáticas para desencadear

processos de educação permanente são construções coletivas. Tais construções têm como

característica o reconhecimento da dinâmica vigente e os possíveis deslocamentos nos modos

de produzir conhecimento e (re)construir as relações de poder entre os diferentes atores

envolvidos.

Enquanto em Atibaia os deslocamentos de poder dizem respeito à relação entre equipes

técnicas dos centros de referência e a equipe de gestão da Secretaria, na região de Franca a força

desse deslocamento induz a horizontalidade nas relações entre a equipe estadual e as equipes

municipais.

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Na próxima seção explicito um analisador dessas experiências: as relações de poder e o

manejo desses grupos para intervir e inventar novas formas de exercê-lo. Por isso, recorro a

Cecílio (2005), cujas pesquisas e produções científicas sobre gestão e saúde coletiva do SUS

partem de questões semelhantes às quais me proponho neste capítulo. Pergunta-se, então Luiz

Cecílio em seu artigo: é possível constituir espaços auto analíticos nos coletivos dos serviços

de saúde”? Sua resposta afirmativa fica condicionada a um primeiro pressuposto:

Podemos afirmar que, antes de tudo, é possível construir esse espaço auto analítico

nos coletivos dos serviços de saúde. Em princípio e como possibilidade, sim, mas

não sem certas exigências ou cuidados – chamemo-los de pressupostos – nem sempre

levados em consideração.

O primeiro pressuposto é a existência de ator(es) implicado(s) na situação conflituosa

com suficiente poder e/ou autoridade para enunciar o conflito como problema e

conseguir a constituição de um coletivo (de implicados) com motivação para colocá-

lo em análise. Em princípio, e por atribuição própria do lugar que ocupa, o gerente

seria o ator mais indicado para esse primeiro movimento. Mas poderiam ser os

usuários que conseguissem uma ação mais articulada e orgânica, através do conselho

gestor local, por exemplo. Ou poderia ser o pessoal de enfermagem e da recepção que,

não suportando mais o desgaste do cotidiano, conseguisse trazer para a pauta da gestão

o tema do conflito. Como pode ser visto, esse primeiro movimento (definição da

situação problemática e constituição de um coletivo com disposição auto analítica) já

implica em atores, intencionalidades, ação, mas, principalmente, controle de algum

recurso de poder para impor uma definição da situação como problemática.

(CECÍLIO, 2005, p. 514. Grifo meu)

Conforme já dito na introdução, as experiências do GTT e do GECATS trazem pistas

de como é possível construir nexos entre educação em serviço e trabalho a partir da análise da

própria experiência. Portanto, não se trata de uma avaliação das experiências e, tampouco,

transformá-las em “case” de sucesso. Apenas obter delas um efeito demonstrativo, ou seja,

expor uma possibilidade histórica construída na intensidade do processo de institucionalização

do SUAS. Nesse sentido, esclareço o rigor do método de ensino-aprendizagem baseado na

pedagogia da problematização:

Podemos evaluar la pertinencia de nuestra manera de problemar en función de los

efectos que producen tanto la propia enunciación del problema (el lenguaje), como las

soluciones que se desprenden de la misma.

Por un lado, pues, se trata de valorar si el lenguaje utilizado, las palabras que se

movilizan para nombrar el problema, producen más complicaciones que alegrías. […]

Por otro lado, hay que invertir la perspectiva. La puesta en marcha de soluciones

puede alterar relaciones habituales existentes y abrir nuevas configuraciones. Se

genera un desfase, se abre una brecha con respecto a lo costumbre, una nueva

percepción comienza a habitarnos y tiene por efecto que ya no aceptemos lo que

habíamos aceptado hasta el momento, a la par de nuevas exigencias se apoderan de

nosotras. (VERCAUTEREN (et al), 2010, p.173. Grifo meu)

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3.2 Grupo autoanalítico da região de Franca-SP: mudanças no diagrama de

forças entre equipes estaduais e municipais

A decisão da equipe da DRADS de Franca quando da constituição do GECATS expressa

um modo peculiar de dar vida à sua atribuição legal prevista desde a LOAS e atualizada nas

recém regulações do SUAS. Atribuição, diga-se, desgastada pela vigência de um modo

verticalizado de relação com os municípios, instituído na cultura da SEDS. Nesta experiência,

o incômodo da equipe, associado a um novo momento da política de Assistência Social a partir

do SUAS, ativou um novo campo de forças, potencializador tanto da gestão estadual quanto

das gestões dos municípios mobilizados.

Conforme narra Olga,

[O grupo] foi a possibilidade da gente mudar um pouco da nossa relação com os

profissionais dos municípios, no sentido de mudar a tônica da supervisão, porque

muitas vezes por uma série de questões de estrutura, de possibilidades, a gente não

tinha condições pra ir [oferecer apoio técnico] com tanta regularidade. Às vezes ficava

uma imagem de cobrança, de que a gente ia fiscalizar...

Com a criação do grupo eu acho que foi muito importante mostrar que, independente

da instância a gente enquanto trabalhador está inserido, a nossa luta era única. [...]

Havia muitas dúvidas, mas que de uma certa forma também foi a partir dessas dúvidas

que a gente pode sentar, discutir, se aproximar, e buscar em conjunto. Então eu acho

que esse foi o embrião mesmo do grupo, de a gente conseguir mostrar pros municípios

que estamos em igualdade de condição, somos trabalhadores do SUAS, queremos

implementar isso.

Ao longo dos cinco anos de vida do grupo, as estratégias criadas e sustentadas

coletivamente produziram esse deslocamento de poder, como satisfeita conta Marcela, da

equipe estadual:

O que sempre me incomodou foi essa relação que o estado tinha com os municípios.

Então era chance que a gente tinha de conseguir mudar essa relação. A gente sempre

entendeu que o estado tinha que ser parceiro, não só cobrando... tanto que, por

incentivo desse grupo, de a gente estar mais junto, não só nas visitas de supervisão, a

gente agarrou e conseguiu mudar essa relação. E hoje, depois de quase cinco anos, a

gente pode falar que mudou, pode confirmar isso.

À diferença do grupo de Atibaia - cuja sensação de isolamento se dá pela ampliação das

equipes e por um modo de efetivar a gestão do trabalho no cotidiano num município de grande

porte-, o GECATS lida com a realidade de municípios em que o “isolamento” se dá pela

característica de municípios de pequeno porte. Nestes, as equipes são pequenas e não raro,

compostas por poucos profissionais que, devido aos baixos salários, trabalham em mais de um

município e se revezam para cumprir as oito horas de atendimento à população. As

possibilidades de acesso aos processos de educação permanente são escassas, embora realizem

ações pontuais de capacitação, como demonstram os dados do Censo SUAS 2014 apresentados

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na introdução deste estudo. E também por uma cultura política instituída que, frequentemente,

dificulta a mobilização e articulação coletiva dos trabalhadores em âmbito local.

Por essas razões, a intervenção do GECATS nesse contexto foi potente ao produzir

sentido de pertencimento aos trabalhadores dos pequenos municípios. Tal como relata

Fernanda, psicóloga no CRAS do município de Ituverava:

Eu cheguei na política de assistência em 2005. Quando eu cheguei lá [disseram]: tem

que montar um CRAS! O que é um CRAS? Ninguém sabia! Não tinha outra psicóloga,

nem as assistentes sociais sabiam direito o que fazer.

Sem possibilidades de troca e diálogo para dar vasão e consequência às suas

inquietações, Marilia, assistente social em São Joaquim da Barra, compartilha da aridez do

terreno onde deveria crescer o SUAS:

Eu não fui nessa capacitação [da Fundação Vanzolini], mas logo em seguida que

começaram a reunir aqui eu já vim. Eu achei ótimo porque eu estava mais perdida do

que tudo! Lá no meu município entendia que a assistência ia dar conta de tudo.

[diziam]: vamos fazer cursos, aí vai ter uma maneira de conseguir a renda, o dinheiro

e vão acabar os problemas. Eu ficava meio inquieta porque eu achava que não era

bem assim. Eu tinha meio uma intuição de que não era bem por aí, mas não sei também

como é que se faz.

E também reconhece as mudanças produzidas por esse dispositivo de gestão estadual.

Numa experiência coletiva, Fernanda passou de uma profissional que não sabia o que era a

política de assistência social para uma profissional que hoje tem o que narrar no seu artigo em

gestação:

O grupo foi muito bom porque a gente foi descobrindo, entendendo o que era tudo

que estava acontecendo, que era um momento muito importante. Eu nem sabia o que

era assistência...a gente foi descobrindo juntas e construindo esse novo saber, essa

prática. Inclusive, há um certo tempo eu tentei até escrever um artigo sobre essa

história né, de como foi esse momento. Por enquanto ainda é um projeto.

Sua narrativa ecoou na fala de Ana, gestora municipal:

Depois que encerrou essa capacitação com a Mônica, eu percebi que o grupo deu uma

guinada. Foi incrível, foi muito visível, não foi? Vocês podem até reforçar isso, parece

que o grupo criou uma força, que a gente começou até a se organizar melhor, em

termos de grupo mesmo. Pra quem participa desde essa época, ficou muito clara essa

mudança.

Curiosa, perguntei como isso foi possível. Fui então apresentada à Mônica Trindade

Siqueira, docente da faculdade de Serviço Social da Universidade de Taubaté. “Descoberta”

pelos participantes do GECATS, Mônica provocou uma experiência que fez uma inflexão nas

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relações do grupo57. O tempo intenso do GECATS é narrado por essa marca: antes e depois da

chegada de Mônica:

Na verdade não tem nem como esquecer porque como a gente se reunia e surgia as

angústias, eu não diria angústia, mas aquela ansiedade de descobertas. E a gente

procurava o que tem a respeito de trabalho com familias. E aí fomos procurar na

internet e, pesquisando, a gente achou um artigo da profissional, da Mônica Siqueira.

Lemos, achamos interessante convocar o saber especializado.Embora seja um artigo

relativamente curto, ele faz referência entre teoria e prática, muito bacana. (Aline)

O artigo de Mônica por ser curto e em linguaguem acessível pôde ser lido em uma das

reuniões do GECATS.

A gente queria algo que fosse mais próximo de prática mesmo, que fosse um artigo

que falasse de alguma coisa que você pudesse sentir o cheiro da prática mesmo, ler e

falar: não, peraí, isso aqui tem a ver com alguma coisa que está acontecendo de fato!

E aí quando a gente pegou esse artigo viu que tinha alguma coisa diferente nele.

E desta leitura compartilhada, os participantes do grupo propuseram trazê-la para um

diálogo mais próximo que se materializou em um processo de educação permanente.

Financiado com rercursos dos próprios municípios, este processo foi realizado em quatro meses,

nos quais foram realizados encontros presenciais a cada quinze dias, seguidos de exercícios que

eram realizados pelas equipes nos serviços e trazidos para reflexão posteriormente no encontro

presencial.

Pela intensidade e vivacidade com que relatam a experiência e suas reverberações, é

possível perceber que Mônica valeu-se de uma metalinguagem: em lugar de falar como se

trabalha em grupo, ela fez os participantes vivenciarem a experiência de constituir-se como

grupo. Forma e conteúdo de potência criativa, produtora de relações e conexões entre trabalho,

vida e aprendizado. Como explicita Mara, participante do GECATS desde o início:

Essa foi a primeira vez que a gente pensou em trabalho com familia. Foi um trabalho

muito importante porque ele era muito vivencial. E aí fortaleceu os vínculos do grupo.

Até então a gente era pessoas isoladas discutindo... a partir das vivências que faziam

a gente conhecer o outro, se aproximou, porque pra trabalhar em grupo a gente tem

que se conhecer. Então foi fundamental. Eu diria até que a gente poderia classificar o

grupo antes dessa capacitação da Mônica e depois, porque foi um marco pro grupo, o

grupo mudou completamente depois dessa vivência.

Alessandra, do município de Pedregulho, não esteve presente fisicamente, mas sentiu

os efeitos dessa inflexão em seu cotidiano:

57 Ao buscar referências que pudessem dialogar com seus desafios concretos e dificuldades para o trabalho com

famílias as participantes do GECATS encontraram o artigo Famílias: uma experiência de trabalho com grupo,

publicado por Monica na Revista de Ciências Humanas da Universidade de Taubaté. Vol. 1 n.2, 2008.

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Eu não participei dessa época porque entrei no grupo em 2011. Mas eu falo que eu

participei ativamente do grupo nos dias em que eu não estava aqui: a pessoa do

município que participava na época, hoje ela não está em Franca... e tudo que

acontecia no grupo ela levava pra gente no CRAS. Ela tinha as “tarefas de casa”. Daí

a gente assistiu todos os filmes juntos, a gente respondeu a todas as questões juntos.

E foi uma aproximação muito grande entre os profissionais, porque tinha profissionais

que estavam chegando no CRAS na época... eu atendendo plantão e saúde lá dentro...e

a gente tentando no meio de tanta confusão descobrir realmente o que era nosso. E

muita coisa surgiu daqui do grupo mesmo sem a gente estar presente.

A narrativa de Alessandra traz a força desta experiência, fazendo pensar que os

processos de educação permanente, de fato, podem atravessar fronteiras simbólicas e políticas.

O relato de Adriana da equipe da DRADS conta dessa passagem de uma motivação

racionalizada pela norma para uma racionalidade encarnada na experiência. Horizontalidade

em ato.

Eu só queria fazer uma observação que eu acho interessante em relação a essa

metodologia que a Mônica utilizou, porque naquele momento que a gente se

colocava… digamos assim… descia do salto. A gente participava das dinâmicas

enquanto pessoa, porque a gente passou pelas dinâmicas que teve utilidade depois no

CRAS pelos usuários. Então eu acredito que aquilo desarmou um pouco a gente assim

e participar daquilo mudou um pouco alguma coisa dentro da gente.

Vivências, experimentações coletivas, materiais diversos e ricos à disposição de um

grupo de profissionais ativos e ativados em busca de um encontro com as famílias, com o

CRAS, com toda aquela instituição nova à sua frente. O processo de educação permanente

vivido por este grupo expande seu campo de força, pois quando organizado e desenvolvido a

partir do cotidiano e a ele voltar, é capaz de estimular a própria produção de sentido para o

enunciado “equipe de referência”.

Do ponto de vista da regulação (NOB-RH, 2006) as equipes dos serviços

socioassistenciais devem ser heterogêneas no que se refere ao grau de escolaridade e profissão

de seus membros. Esse porvir, contudo, traz uma outra dimensão que já está sendo

experimentada, nos dias de hoje, como conflito entre profissionais de gerações diferentes e com

tempo de atuação no SUAS também diverso. Esse conflito é relevante como uma das dimensões

a serem consideradas na gestão cotidiana do trabalho, especialmente para adensar os nexos

entre educação em serviço e trabalho no SUAS. O GECATS produz saídas possíveis para isso,

a partir do contexto instituído no qual intervém.

Assim Clarice, do CRAS de Ipuã, conta se sentiu:

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Quando eu entrei no CRAS a minha gestora fazia parte do GECATS. Ela não foi uma

aluna muito assídua, mas levou pra gente todo material que ela recebeu na capacitação

da Mônica. A gente utiliza esse material até hoje. Utiliza mesmo! Então esse material

foi de grande valia pra todo. Foi muito enriquecedor.

E Ana endossa, especialmente por ter transitado por diferentes lugares ao longo destes

cinco anos de existência do GECATS:

Nesse meio tempo, a psicóloga foi embora do município e só esse ano que entrou

outra pessoa. A gente tinha uma do CRAS, só e eu achava muito pouco, uma só ser

responsável por um serviço tão importante. Daí então a gente conversava com

profissionais comissionados, que estavam lá mas não eram de lá; conversava com

nível médio, a recepcionista…

Hoje eu sou gestora e eu estou lá sem ninguém porque vim para a reunião. A

recepcionista está sozinha: eu tenho confiança porque eu sei que ela está conseguindo

transmitir as noções corretas porque a gente trabalhou isso com toda a equipe.

Sobre as reverberações dessa experiencia, perguntei se as participantes do GECATS se

viam como quem ensina os demais trabalhadores da equipe. E obtive uma resposta assertiva e

de descontrução do ponto de vista implícito na pergunta:

Eu acho que a palavra ‘ensina’ não caberia, porque a gente compartilha muito. Então

mesmo que a gente não saia daqui com uma resposta, a gente sai daqui com uma ideia.

Mesmo que a gente não tenha o ensinamento pronto, a gente pode compartilhar…se

eu tenho a mesma dúvida e o outro município também não está conseguindo, acaba

que gera muita troca aqui. Então não é um ensinamento, mas só de compartilhar já dá

pra gente ter uma visão mais ampla.

Foi tão importante, que não foi muito fácil pra gente sair daqui, porque todo encontro

tinha tarefa de casa, a gente tinha um rol de livros, que filmes que a gente tinha que

assistir, e a gente tinha que fazer análise ainda desses filmes, tinha questões pra gente

analisar e trazer no próximo encontro, então foi muito produtivo né, não foi fácil

conciliar, porque não dava pra gente fazer isso em horário de trabalho, era a noite,

trabalhava o dia todo, família, casa, filho, não foi fácil, mas foi muito bom. (...) ela

abriu nossa mente, deu um novo olhar pra gente, pra gente visualizar a família de um

outro ângulo.

Em diálogo com os elementos trazidos pela narrativa de experiência das participantes

do GECATS é oportuno trazer neste capítulo uma outra concepção de Dewey a propósito da

relação entre educação e experiência, pois para ele uma simples atividade não constitui

experiência. Assim aprofunda Dewey:

Na sua qualidade de tentativa [a experiência] subentende mudança, mas a mudança

será uma transição sem significação se não se relacionar conscientemente com a onda

de retorno das consequências que dela defluam. “Aprender da experiência” é fazer

uma associação retrospectiva e prospectiva entre aquilo que fazemos às coisas e aquilo

que em consequência essas coisas nos fazem gozar ou sofrer. Em tais condições, a

ação torna-se uma tentativa; experimenta-se o mundo para se saber como ele é; o que

se sofre em consequência torna-se instrução – isto é, a descoberta da relação entre as

coisas. (DEWEY, 1979, p. 152-153)

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Em complementaridade às suas reflexões, trago a chave analítica de Bondía (2002),

educador e docente na Universidade de Barcelona, por sua força crítica e produtiva para

sustentar o argumento de que a experiência adensa o nexo entre educação em serviço e trabalho

institucional. Em lugar do par teoria/prática ou ciência/técnica que predominam no debate da

pedagogia contemporânea, Bondía tem explorando o par experiência/ sentido para suscitar

novas possibilidades da educação no mundo contemporâneo, numa clara referência à Walter

Benjamim. E assim a define:

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se

passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém,

ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. [...] Nunca se passaram tantas coisas, mas

a experiência é cada vez mais rara. (BONDÍA, 2002, p. 21)

Após expor o porquê da raridade da experiência nos dias de hoje, Bondía explicita as

condições para que “algo nos aconteça”.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto

de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar

para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais

devagar, escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião,

suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a

atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece,

aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter

paciência e dar-se tempo e espaço. (BONDÍA, 2002, p. 24)

Portanto, há uma problematização possivel a ser feita que diz respeito ao tempo e a

educação em serviço. Zarifian (2002), sociólogo dedicado à temática do trabalho, em artigo de

título “O tempo do trabalho” propõe-se a criar um “desvio” conceitual a respeito da relação

entre tempo e trabalho. Para tanto, explicita e analisa duas dimensões acerca do tempo, cujos

impactos sociais no trabalho são significativos. Trata-se da perspectiva do tempo

“espacializado” e o tempo-devir.

As reflexões sugeridas por esse pesquisador são bastantes férteis para adentrar o aspecto

temporal na gestão do trabalho, sobretudo porque estou tratando de um dispositivo que leva em

seu nome uma acepção temporal ‘educação permanente’, e dialogar com elementos que a

experiência do GECATS dá acesso.

Há cinco anos, a experiência do GECATS conecta educação e trabalho no SUAS. Como

é possível reconhecer pelos relatos trazidos aqui, não se trata do que comumente entendemos

por experiência: aquela do tempo decorrido, marcada pelo relógio (tempo espacializado), mas

a experiência marcada e modificada pelos acontecimentos havidos nesse tempo. Por isso, as

reflexões de Zarifian, indicam que o tempo da educação permanente não é o tempo do porvir.

Ela refere a uma duração – aquilo que é dificil esquecer -, ao tempo-devir.

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A duração, no sentido de Bergson, introduz uma perspectiva do tempo inteiramente

diferente. O tempo-devir é o tempo das mutações, o tempo das séries de mutações e

suas imbricações. Esse tempo é qualitativo: ele fala sempre de uma transformação. O

presente existe nele, mas como simples tensão entre um passado já passado – porque

a mutação já teve lugar – e um futuro que ainda está por vir. É no presente que nos

transformamos sempre, mas esse presente só tem sentido se estendido entre o passado

e o futuro no fluxo das mutações. [...] E a proximidades dessas intensidades guia-nos

em nossas escolhas atuais de maneira bem mais forte e ativa que toda especulação

intelectual sobre o porvir. O após [ o acontecimento] é o que nos propomos chamar:

antecipação do porvir. Não se trata de uma previsão: do ponto de vista do tempo-devir,

é impossível, pois todo avanço para o futuro traz novidade, possui um valor

diferenciador. [...] a antecipação do porvir está em função de nossa escolha. O

cognitivo, “aquilo que poderia acontecer, se”, depende dessa escolha, é guiado por

ela. (ZARIFIAN, 2002, p. 6)

3.3 Grupo autoanalítico de Atibaia: mudanças no diagrama de forças entre

trabalhadores e equipe de gestão

A escolha ética e política dos profissionais da Secretaria Municipal de Assistência e

Desenvolvimento Social (SEDS) de Atibaia consiste em trazer para o centro das reflexões e

proposições do Grupo de Trabalho Técnico os conteúdos, processos e procedimentos de

trabalho em um município de grande porte. Catalisei os elementos trazidos na segunda

entrevista coletiva na seguinte problemática: Como os cidadãos chegam à política de

Assistência Social? Quais são suas demandas explícitas? Que ofertas de serviços encontram?

Como usufruem delas? Como é a circulação do usuário dentro do sistema municipal de

Assistência Social?

Como pesquisadora, assumi uma posição de disponibilidade para as narrativas dos

participantes do GTT, feita em duas entrevistas coletivas. A primeira delas com roteiro

semiestruturado, a segunda com uma sistematização de ideias-força feita por mim a partir da

transcrição do material para que o grupo pudesse desdobrar, aprofundar ou mesmo rever

conteúdos da primeira entrevista. Analiso alguns dos desdobramentos da situação problemática

construída coletivamente. Adentrei essa experiência oito meses depois de sua criação. Convidei

os profissionais a fazer suas narrativas e ofereci reflexões que me inquietam e que venho

fazendo como educadora na Assistência Social há cerca de quinze anos.

Assim como toda situação problemática, a que foi construída pelo GTT está situada no

tempo e no espaço entrecruzando a história do município de Atibaia e sua região e a história da

Assistência Social no país. Sendo assim, os profissionais de Atibaia participam de um processo

de institucionalização no qual lidam com as forças instituídas, por vezes reproduzindo-as, e tem

capacidade para produzir campos instituintes, criando deslocamentos na estrutura de poder. Na

experiência do GTT, como procuro demonstrar, tais deslocamentos referem-se à:

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necessidade de alinhamento entre a equipe de gestão e as equipes técnicas das

unidades públicas estatais (CRAS, CREAS e Centro Pop);

importância de articulação entre equipes de diferentes serviços

socioassistenciais e;

possibilidade de composição entre a experiência dessas equipes e ao saber-poder

de especialistas, frequentemente vindos de instituições de ensino superior (IES).

Raquel, assistente social do CRAS, que não esteve à frente desse movimento narra o

modo como se sente acolhida nessa iniciativa:

Era uma necessidade sentida por todos, mas não sabíamos como fazer! Mas é aquilo,

sempre estava alguém [dizendo]: vamos, está precisando! Eles [os quatro

trabalhadores que protagonizaram esse momento de mobilização] estavam atentos à

necessidade de negociar e como isso pode ser feito.

Eles deram o passo inicial. O protagonismo deles foi muito importante, até porque

eles tiveram essa conversa com a gestão, com a chefia. Eles fizeram toda essa questão.

E aí [disseram]: vamos sentar e vamos começar. E aí começamos, né.

O grupo que mobilizou os profissionais e protagonizou a iniciativa de constituição do

GTT deu visibilidade às tensões, apostando em sua dimensão produtiva, ou seja, produtora de

uma outra condição para o trabalho. Conseguiu transformar “ruídos”, conversas dispersas,

queixas de corredor, em uma certa “entonação de voz” capaz de vocalizar um projeto de

mudança e fazer-se ouvir. Relembra Ricardo:

Um dos primeiros pontos que tentamos pautar – não só nesta gestão, como também

nas anteriores - foi a questão “do que fazer”, que era pouco privilegiado nas discussões

de equipes. Na estrutura que a gente tem hoje temos uma cultura de poucas reuniões

técnicas. As reuniões eram mais informativas, mais administrativas e pouco se

discutia sobre o “como fazer”.

O exercício desse poder instituinte, de autoanalise pelos próprios trabalhadores SEDS

de Atibaia encontrou na equipe de gestão também certa disposição para experimentar esse novo

dispositivo articulador entre educação em serviço e o trabalho institucional. Desse modo, o

formato negociado já expressa o primeiro deslocamento: de reuniões predominantemente

informativas, passaram a ter um espaço para refletir sobre o seu “fazer” cotidiano.

A reconstrução do diálogo estabelecido na entrevista coletiva visa demonstrar o

processo de construção do GTT como dispositivo de gestão, que à primeira vista pode parecer

prosaico, simples e superficial. Para o propósito deste estudo, conforme procuro demonstrar,

ele é criativo, complexo e denso; é também vivo e possível na contingência vivida por esse

grupo de trabalhadores, em Atibaia, nos dez primeiros anos de implementação do SUAS.

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Ao narrar as motivações dessa iniciativa, os participantes explicitaram diferentes

leituras do contexto institucional que vivenciam. Entre elas estão o crescimento das equipes por

conta da recente realização de concurso público; a sensação de insegurança e isolamento diante

das situações concretas com as quais tem que lidar e prover respostas aos usuários; o sentimento

de valorização do trabalho social trazido pela institucionalidade do SUAS e as demandas de

atualização decorrentes da ampliação e aprimoramento dos serviços socioassistenciais e;

necessidade de mudar práticas profissionais e atitudes perante os usuários.

As diferentes leituras que contribuíram para formar um ponto de convergência de

interesses e projeções dos participantes do GTT adensam o que, à primeira vista, pode parecer

superficial. Essa densidade pode ser apreendida à medida que se reconhece que cada leitura

carrega um foco de tensão presente no cotidiano. Primeiramente as explicito para, em seguida,

tratá-las com mais profundidade.

a) Tensões entre o aumento do número de trabalhadores nos serviços socioassistenciais

e ausência de espaços de troca e produção de consensos entre eles a respeito de como

conduzir o trabalho;

b) Tensões entre as demandas que foram historicamente atribuídas à Assistência Social

(e para o profissional assistente social) e as demandas que são construídas

coletivamente (pelas equipes e junto com os usuários);

c) Tensões entre necessidade de estar atualizado e obter acesso às informações

(educação continuada) e necessidade de mudar práticas de atenção aos usuários dos

serviços (educação permanente).

Essas tensões e conflitos compõem o que Cecílio (2005) chama por superfície e

espessura dos acontecimentos. Após apresentar distintas concepções sobre o conflito nas

instituições e seus respectivos desdobramentos para a ação política, o autor expõe a seguinte

acepção:

O conflito é fenômeno, é comportamento, é ruído: SUPERFÍCIE. As tensões

constitutivas seriam a ESPESSURA, a “estrutura”, os lugares instituídos (instâncias,

topos, saberes/poderes das diferentes corporações etc). Estrutura e superfície, tensões

constitutivas e conflitos se interpenetrando, produzindo deslocamentos, instituindo

novas configurações da organização, mas também reproduzindo, confirmando

instituídos, malhas de captura: territórios de poder. (CECÍLIO, 2005, p. 510)

Ao delimitar os três campos de tensão busco esclarecer quais são as problemáticas e as

saídas propostas para cada um deles. Ao analisar as interfaces entre esses três campos de tensão

procuro demonstrar o GTT como um dispositivo potente para conectar processos de educação

e trabalho no SUAS.

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a) Tensões entre o aumento do número de trabalhadores nos serviços socioassistenciais e

ausência de espaços de troca e produção de consensos entre eles

A ampliação de serviços socioassistenciais e a chegada de novos profissionais, em

virtude da realização de concurso público nos últimos anos, alteraram a dinâmica cotidiana dos

profissionais que já trabalhavam em Atibaia. Do ponto de vista das diretrizes da NOB-RH/2006,

o município deu um passo importante no processo de constituição de equipes de referência dos

serviços de responsabilidade direta da administração pública58. Esse acontecimento trouxe uma

nova dinâmica para os profissionais, sendo um dos vetores que alimentou a proposta de criação

do GTT, conforme relata Célia, assistente social do CRAS:

A equipe de profissionais cresceu nos últimos anos, [aumentou a presença de]

assistentes sociais, mas não cresceu tanto em relação a outros profissionais. Os

serviços também foram ampliados, outros programas foram se desmembrando, mas a

estrutura de gestão continua pequena. Conforme iam chegando os serviços, a gente

tinha uma dificuldade muito grande de trocar experiências e de olhar,

sistematicamente, para os nossos ‘fazeres’.

O caminho encontrado pelo Grupo foi reunir todos os profissionais da equipe técnica,

ou seja, os profissionais de nível superior de escolaridade que atuam nos CRAS, CREAS e

Centro Pop. Passo importante, pois a institucionalização do SUAS tem levado a uma excessiva

fragmentação interna entre os serviços de proteção social básica e especial, conforme visto no

primeiro capítulo. Assim, criar um dispositivo capaz de promover o encontro e o diálogo entre

esses profissionais, o GTT faz um deslocamento no modo de funcionamento cindido e

fragmentado predominante nos serviços socioassistenciais.

Do ponto de vista da encomenda da instituição, essa cisão distancia a atenção

profissional da diretriz de matricialidade socioafamiliar. De um lado, porque tende a focalizar

o trabalho no “caso” individual e desterritorializado na proteção especial59. De outro lado,

ignora a importância de uma atenção continuada às famílias articulada nos territórios de

58 Desde 2013, a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social de Atibaia vem adequando, gradativamente,

sua estrutura às normativas do SUAS, processo não concluído, ademais, como na maioria dos municípios

brasileiros. A direção adotada pela gestão que assumiu o governo em 2013 foi convocar profissionais aprovados

em concurso público e não nomear cargos em comissão de livre provimento. Com isso, dos 65 servidores existentes

no final de 2012, restaram apenas 22 efetivamente concursados, sendo quatro assistentes sociais e dois psicólogos.

Também não havia coordenadores das unidades públicas (CRAS e CREAS). Com a alteração da legislação

municipal, foi possível criar cargos de psicólogo, coordenador dos Centros de Referência e orientador social e

realizar o concurso em 2015. 59 Tal como denunciado por Irene no Terceiro Ato do “SUAS em cena”: Nós na gestão, muitas vezes, perdemos a

referência do território. A família está no território. [Mas] Se acontece algum tipo de violação de direito, com o

adolescente por exemplo, ele vai para a proteção especial. Muitas vezes os profissionais acabam desconectando

essa família da Política, achando que isso é da especial.

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referência do CRAS, pois o suposto é que a equipe do CRAS conheça o território onde vivem

as famílias a ele referenciadas, o que nem sempre ocorre de fato60.

Da perspectiva dos profissionais de Atibaia, essa cisão, somada ao quadro ainda

insuficiente de profissionais nos serviços, produz a demanda coletiva de gerar espaços de

encontros, pois a sensação é de isolamento gerada pela falta de respaldo coletivo para a tomada

de decisão, conforme narra Ricardo:

Eu discuto com alguns colegas a questão do isolamento que o profissional da área

social sente. Assim, com equipes pequenas, com equipamentos que ainda não estão

estruturados adequadamente...Às vezes os equipamentos têm mais de um profissional;

às vezes estão divididos em turnos pra cobrir as oito horas. Então se encontram em

horários intermediários de almoço. Daí não há uma discussão técnica cotidiana. Você

está muito isolado diante do cidadão que a gente atende e tem que tomar várias

decisões. E você sofre pressões da situação e tem que tomar decisões pra encaminhar,

pra orientar, pra pensar pra onde esse caso vai terminar. É solitário e não deveria ser.

Essa condição tem gerado insegurança quanto às saídas que cada profissional vai

construindo dia a dia e aos procedimentos adotados no cotidiano. Vale retomar aqui um

elemento fundamental da pedagogia da problematização: ela só é possível quando há um

estranhamento, uma hesitação, uma incerteza que possa ser formulada e reconhecida pelo outro

como válida. A condição de incerteza não se confunde com desinformação, para o qual o acesso

a ela, além de necessário, pode ser suficiente.

A incerteza e a hesitação implica numa tensão entre aquilo que é sabido, conhecido, e o

que é preciso ou se pode saber. Portanto, é a fissura necessária para que os processos de

educação permanente baseados na problematização possam ocorrer. Para que as práticas

possam ser alteradas é necessário um conflito ético, reconhecido por um coletivo ativo, uma

insegurança ou uma insuficiência entre o que se sabe e o que é preciso saber para oferecer uma

atenção de qualidade, que é a materialização dos direitos dos usuários.

À medida que o GTT começa a funcionar, suas questões iniciais vão ganhando corpo,

construindo direções para responde-las de forma mais compartilhada do que antes. Ao

dedicarem-se à análise coletiva dos processos de trabalho de forma criativa - não prescritiva -,

os profissionais narram efeitos de segurança, de fortalecimento, mesmo que ainda tênues dada

a incipiência do grupo.

60 A crítica manifesta por Emerson no “SUAS em cena” é clara: O território é um mito hoje da discussão da

Política de Assistência Social. Qual é, de fato, nossa compreensão de território? É uma vergonha ver colegas de

profissão, assistentes sociais em grande parte, dizerem que tem medo de visitar certos lugares no território, sem

fazer sequer uma discussão do que é violência no território e qual que é o papel do Estado no território.

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É assim que Renata, assistente social do CRAS sente a força do Grupo ao responder a

pergunta a respeito de como se sente ao participar do GTT:

O grupo contribui pra gente poder trocar palavras em segurança, cargas que a gente

recebe nesse processo e [ajuda] perceber que os colegas também sentem a carga da

responsabilidade. As palavras que você coloca numa determinada orientação, como

você conduz esse atendimento...Não poder discutir, buscar experiências de outros

locais, poder compor, isso aí também aprisiona muito o profissional.

Em diálogo e composição com a fala de Renata, Ricardo assume a posição de que a

busca do consenso é necessária para melhorar a qualidade do trabalho e, desse modo, contribuir

para superar leituras e decisões cotidianas estritamente baseadas no “bom senso” ou nos valores

de cada profissional:

Eu não acredito nesse negócio de uniformização porque nós somos pessoas, somos

humanos. Mas minimamente alguns consensos do que é correto; de poder dizer porque

eu tomo determinadas atitudes e não outras, porque eu estou apontando pra tais

encaminhamentos. Eu tenho respaldo da equipe? Eu tenho reflexão sobre isso? Não é

por espontaneísmos, não é por intuição. Embora a intuição tenha um sentido bastante

forte na nossa atuação, mas ela tem que estar calçada também em conhecimento e

experiência.

O desejo de construir entendimentos comuns para questões colocadas pelo próprio

Grupo - Que ofertas de serviços os cidadãos encontram? Como usufruem delas? Como é a

circulação do usuário na lógica da Assistência? - aumenta o senso de responsabilidade pública

dos profissionais. Uma face dessa maior responsabilidade se expressa no interesse e

compromisso de maior participação dos profissionais na pauta técnica e política da Assistência

Social no município. Mário, assistente social do CRAS, fala dos planos do GTT:

Inclusive nós temos um planinho provisório no nosso grupo de estudos. E um dos

objetivos que nós colocamos é de contribuir na produção de alguns documentos.

Contribuir na elaboração do plano municipal, que não existe aqui ainda, mas eu acho

que nós estamos pegando conteúdo pra, quem sabe Deus, construirmos uma

orientação técnica da operação de serviços básicos aqui de Atibaia.

Especialmente para aquelas profissionais que já estão há muito tempo atuando na

Assistência Social, o GTT agrega um sentido de fortalecimento dos trabalhadores frente à

indesejável possibilidade do retorno de práticas fisiologistas ou mesmo aos caprichos das

primeiras-damas que estiveram à frente da Secretaria ou do Fundo de Solidariedade. Na

incerteza de que nas próximas gestões se tenha uma gestora da pasta com conhecimento e

militância na área o grupo valoriza o espaço conquistado. Helena que trabalha no município há

mais de dez anos, destaca:

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Aqui também em Atibaia a Assistência Social é uma secretaria nova, [existe desde]

2004. E enquanto secretaria ela já teve mais de 10 secretários! Então ela não tem

também uma duração porque troca muito, aquela questão da política partidária.

Eu sinto que hoje isso pra mim esse grupo de trabalho é extremamente importante

porque a gente conseguiu construir muito, mudar muito, melhorar muito. Está muito

longe de ideal, eu sei que está, mas também a gente está muito distante do que foi

muito ruim.

Por isso que eu defendo esse grupo! Sei lá... em 2016 vai ter nova eleição. Aí talvez

mude o prefeito. Aí a gente fica de novo à mercê da política partidária. Vai que entra

um secretário e manda a gente trabalhar no Fundo Social? A gente está sujeito a isso

aí! É por isso que a gente tem que definir muito bem o que é que a gente quer fazer

enquanto trabalhadores pra não ficar à mercê da política.

Ao mesmo tempo em que se sentem mais responsáveis pelo SUAS no município, a força

de propor a discussão sobre o “como fazer” gerou uma nova tensão. Esse objetivo evidenciou

a insuficiências das estratégias de gestão adotadas até então. Basicamente essas estratégias

restringiam-se às reuniões para transmissão de informações, seja para manter a equipe

atualizada, seja para comunicar prazos para o cumprimento de tarefas específicas. Nesse

sentido, o dispositivo GTT é também um ato político, pois propõe um outro modo de relação

entre trabalhadores e equipe de gestão para evitar o isolamento tendencial de ambos, seja pela

autoridade técnica, seja pela autoridade normativa ou mesmo partidária. Por isso, reivindicam

a presença não só das equipes técnicas, como também da equipe de gestão da Secretaria.

A partir do reconhecimento de perspectivas e pontos de vista diferentes, os participantes

do GTT buscam alinhamento com a equipe de gestão sobre o trabalho realizado com os

usuários.

Laís assim explicita o “empuxo” desse deslocamento:

Eu acho que o que a gente precisa é mesmo esse olhar pra dentro pra gente ter uma

fala que seja única, tanto da equipe como da gestão. Eu acho que a gente tem que

conversar isso mais internamente pra colocar isso pra fora, questões polêmicas,

questões difíceis.

Portanto, essa questão que os participantes do GTT se propõem não é trivial, dado que

ainda é frequente - embora não seja este o caso do município de Atibaia, cuja gestora atua na

área há muitos anos - o baixo reconhecimento do conteúdo próprio da Assistência Social por

muitos gestores da Pasta, que ainda enfrenta a práticas de nepotismos61.

61 Essa necessidade reverbera conflitos narrados no “SUAS em cena” acerca das tensões entre equipes de serviço

e da gestão, especialmente quando ainda se tem presente o Fundo de Solidariedade, como é o caso da quase

totalidade dos municípios do estado de São Paulo: em 2013, 639 municípios paulistas mantinham o fundo de

solidariedade, à exceção de Campinas, Diadema, São Paulo, Salto, Mauá e Votorantim. Este Fundo foi criado por

lei estadual em 1964 e vem sofrendo alterações por meio de decretos. Atualmente, sua relação com os municípios

se dá fortemente por meio do Programa de Qualificação Profissional, que contempla os projetos Escola de Beleza

e Escola de Moda, que oferta cursos para população de baixa renda, entre os quais os usuários dos CRAS. Agradeço

à Priscila Souza, pesquisadora do NEPSAS-PUCSP que, gentilmente, disponibilizou informações de sua pesquisa

de mestrado para a complementação deste esclarecimento sobre o Fundo de Solidariedade no estado de São Paulo.

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Ou seja, os participantes do GTT entendem que as questões que hoje os interpelam não

dizem respeito apenas à atenção direta. Elas têm relevância também para as funções de gestão.

Por isso, o GTT quer provocar mais um deslocamento, tal como expressa Ricardo, psicólogo

do CREAS.

Então aí eu acho que existe um descolamento entre o que a equipe vem tentando

discutir e o entendimento que a própria gestão faz. E essa discussão não é feita

internamente. Existe ainda um descolamento, isso faz parte também do diálogo

interno, principalmente com a equipe de gestão pra que a gente se afine. As

concepções são diferentes? Vamos discutir! Às vezes a gente pode ter um

entendimento x e eu não olhei por outro lado! Mas se está na mesa e a gente está

dialogando sobre isso, a gente tem que construir e levar como nossa decisão, decisão

da equipe. Só que muitas vezes essa discussão não é feita.

A ausência de discussão é, por vezes, atribuída à falta de tempo. Entretanto, não

“encontrar tempo” para discussão, abertura para o dissenso e a produção de alguns consensos

são, frequentemente, entendidos como “perda de tempo”. Nesta acepção, o uso do tempo faz

força reversa ao movimento proposto pela pedagogia da problematização. Do ponto de vista

dos processos de educação permanente, a distinção entre polêmica e problematização feita por

Foucault e explicitada na introdução deste estudo é bastante lucida e esclarecedora.

A pedagogia da problematização contém um rigor ético importante também para

reposicionar os conflitos entre equipes de gestão e equipes dos serviços, até mesmo porque de

acordo com as regulações mais recentes do SUAS, funções de gestão também tendem a ser

ocupadas por profissionais concursados para responder, por exemplo, pela função de vigilância

socioterritorial e pela gestão do trabalho. Expus esse rigor ao longo da entrevista coletiva

baseada nas ferramentas da segmentaridade e transversalidade da analise institucional. Reagi

às seguintes afirmações de Célia e Diana:

Célia - O formato que a gente está hoje praticando tem garantido a participação dos

técnicos. A gente tentou ampliar, mas tem comparecido os técnicos das equipes.

Diana - O grupo vai construir identidade, uma forma de fazer, de compreender

situações, que é fato, é o caminho que a gente está tomando. Eu acho que isso é muito

saudável. A ideia é como é que nós nos colocamos dentro das situações que a gente

tem pra trabalhar e, a partir disso, a gente vai criando a identidade mesmo do grupo.

Ao narrar o modo como entendem e se envolvem com as condições institucionais que

os afetam, os trabalhadores do GTT forjaram um coletivo no sentido de co-engendramento

empregado por Passos e Kastrup (2012): eles se constituem nessas condições, ao mesmo tempo

em que assumem uma posição ativa diante delas, assumindo um lugar criativo em busca de

saídas para problemas construídos como comuns. Em obra coletiva, Escóssia e Tedesco

explicitam essa ideia:

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É possível apreender o coletivo longe dessa visão dicotômica sobre coletivo e

indivíduo. A oposição é substituída pelo entendimento do coletivo a partir de relações

estabelecidas entre dois planos – o plano das formas e o plano das forças- que

produzem a realidade. Embora distintos, os dois planos não se opõem, e sim

constroem entre si relações de reciprocidade que asseguram cruzamentos múltiplos.

[ ...] Em dimensão ampla, o conceito de coletivo refere-se ao plano de forças também

definido como plano de consistência ou de imanência (DELEUZE e PARNET, 1998),

ou ainda, plano instituinte (LOURAU, 1995). (ESCÓSSIA e TEDESCO, 2012, p. 92)

Contudo, a despeito de todas as justificativas que possam ser dadas e da pertinência

delas, há tensões não audíveis, “ruídos”, no dispositivo criado pela equipe técnica de Atibaia.

Decisões, modos de funcionar do GTT estão criando obstáculos à presença de trabalhadores de

nível médio e fundamental de escolaridade que também compõe a equipe de referência dos

serviços e da gestão no SUAS.

Se retomarmos o conjunto das cenas do primeiro capítulo, vemos esse silenciamento

reproduzido numa escala ainda maior, haja visto que nas discussões sobre o trabalho social com

famílias não se consideram as falas dos trabalhadores de nível médio que fazem o acolhimento

nos serviços, desenvolvem atividades na função de educadores ou orientadores sociais nas

unidades públicas e nas organizações conveniadas, tal como pode ser conhecido em detalhes

nos dados produzidos pelo Censo SUAS anualmente. Além do fato inegável de que eles são,

numericamente, a maioria dos trabalhadores do SUAS, conforme já demonstrado.

A vigilância desse rigor ético, que distingue problematização e polêmica, é necessária

também para que se reconheça que as problematizações são construções coletivas que também

forjam sentidos de pertencimento ao grupo. Quando se busca, legitima e justificadamente,

construir “unidade” esse rigor ético precisa demarcar uma posição nítida: a abertura para que

aqueles que não participaram da produção do entendimento comum, do consenso, possam

discordar, questionar decisões e entendimentos havidos no coletivo instituído. Ou seja, possam

também se constituir em grupo-sujeito.

Ao longo da entrevista, a perspectiva deste grupo ser também um indutor desse processo

nos serviços trouxe uma tensão latente da chegada dos coordenadores de CRAS e CREAS,

recém aprovados no concurso público. Isso significará negociar isso também junto aos

coordenadores que serão empossados em 2015.

A problematização do GTT evidencia que o processo de institucionalização é dinâmico

e contraditório. A realização de concursos públicos não é a “salvação” por ser um passo à frente

dado em relação ao voluntarismo histórico desta política. Ela gera novas e contínuas tensões,

seja pelos baixos salários, seja pelos planos de carreira pouco atrativos (quando existentes). O

fato é que, a despeito dos concursos públicos, persiste rotatividade dos profissionais. Ao lado

das lutas por salários dignos e planos de carreira justos e atrativos, a potência criativa do GTT

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em constituir um dispositivo de gestão do trabalho na educação permanente precisa ser ativada

sempre. Isso porque novos profissionais ingressam nas equipes ou mesmo aqueles que já

estavam percebem que suas certezas tenham sido desestabilizadas ou insuficientes para ofertar

a melhor qualidade na atenção aos usuários. Nesse sentido, o termo “permanente” que qualifica

os processos educativos do SUAS precisa se conectar com os fluxos de trabalho, com a

dinâmica institucional.

Intervi na narrativa do grupo para por luz em outra dinâmica que afeta sobremaneira a

qualidade da atenção ao usuário. De passagem, uma das participantes mencionou como

perspectiva para o GTT em 2015:

É meio que adiantando o que a gente discutiu na avaliação, tirando indicações para o

planejamento de 2015, a necessidade de discutir, por exemplo, dentro dos CRAS o

mesmo instrumento. A gente não conseguiu nem que os instrumentos do trabalho

sejam compactuados dentro dos CRAS ainda! É uma necessidade que temos hoje real,

como no CRAS62.

Afetada por esta constatação intervi:

A vigilância socioterritorial é mais uma função que a Secretaria tem que estruturar, é

uma responsabilidade do órgão gestor. Os trabalhadores da vigilância precisarão

construir um entendimento do que é acompanhamento, do que é atendimento de

familias, do que é vulnerabilidade, todas essas coisas que vocês foram falando, que

vão criando um consenso. Daí vai se estruturar mais uma instância da secretaria que

precisa participar disso pra que de novo a gente não tenha o hiato entre o que uma

instância de gestão que entende por x e o que o grupo técnico entende por y. [...] Isso

é uma dinâmica do SUAS e é sempre bom vocês ficarem alertas porque são

mecanismos de negociações constantes, pra que esses entendimentos sejam o mais

alinhados e próximos possível e não fiquem capturados em caixinhas.

Portanto, escolhas tal como o GTT tem feito, são sempre contingentes e históricas:

buscam responder a uma determinada tensão e, ao mesmo tempo, pode gerar outras. Uma vez

que o GTT foi instituído como estratégia para superar a sensação de isolamento e solidão dos

trabalhadores, as decisões sobre seu modo de funcionamento podem produzir direção diferente

daquela a que hoje contrapõem.

Ao serem interpelados por minha pergunta projetiva - como vocês vão se sentir quando

disserem “eu fiz um encaminhamento agora, mas eu sei que tem uma equipe inteira que está

bancando isso comigo”? - as respostas multiplicam rapidamente.

É um sentimento de segurança né, porque é um respaldo.

E eu acho que a gente consegue dar um salto, que a gente tem dito muito, que é olhar

pros resultados. Eu acho que a gente consegue ter mais acesso ao que o nosso trabalho

está gerando como resultado pra população que a gente atende.

62 Esse retrato é idêntico ao descrito no “SUAS em cena”: a excessiva fragmentação dos registros gera

sobreposição e impede uma visão comum a respeito das demandas e das intervenções necessárias ou mesmo do

compartilhamento e avaliação sobre elas numa perspectiva ética de responsabilidade.

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É um entendimento de que os objetivos propostos pelo trabalho conjunto estão sendo

alcançados. Mas quando se chega a um entendimento desse resultado é uma questão

de verificar, na prática, aquilo que nos motiva pra esse tipo de trabalho conjunto.

Porque eu acho que quando a gente tem esse pensamento, eu não diria uniforme, mas

alinhado, eu acho que tem um reflexo na rede. Aquele que espera que eu venha a

cumprir algo que não me pertence, ele vai saber que a gente tem uma linguagem entre

todos os técnicos... porque o que eu sinto mais hoje é tentar atribuir a nós funções que

não são nossas.

b) Tensões entre as demandas que foram historicamente atribuídas à Assistência Social e

as que são construídas coletivamente

A narrativa dos participantes do GTT dá acesso a outro conjunto de tensões próprias do

processo de institucionalização do SUAS em Atibaia e que reverberam nitidamente os conflitos

do Segundo Ato do “SUAS em cena” . Trata-se, nessa segunda camada, de escavar os elementos

contidos nas questões que o grupo pôs para si: Como a gente pode tentar caracterizar quais

são as demandas que os cidadãos trazem? Como é que a gente consegue, de fato, olhar para

essas demandas? Como é que a gente consegue pensar o que é da Assistência Social?

A resposta a essas questões está longe de ser obvia e consensual, conforme as

explicações parciais dadas no segundo capítulo. Para muitos trabalhadores do GTT trata-se de

um esforço e uma necessidade de distinguir a política social de Assistência Social e a profissão

daqueles que se formam em Serviço Social, os assistentes sociais. De outro lado, porque as

necessidades reconhecidas e atendidas pelas práticas tutelares são distintas das demandas

sociais construídas desde uma política pública, como a Assistência Social.

Como visto no “SUAS em cena”, as objetivações reconhecidas até o momento como de

responsabilidade da Assistência Social - violação de direitos e pobreza – ainda são genéricas e

passiveis de diversas interpretações, em geral, restritivas de acesso aos usuários.

Consequentemente, ainda há pouca segurança e conhecimento dos profissionais do SUAS

quanto aos direitos que, de fato, podem e devem assegurar dentro das possibilidades e dos

limites institucionais desta política pública.

Na experiência de Atibaia as equipes profissionais estão compartilhando o tempo

presente, trazendo diferentes trajetórias pessoais e profissionais, frustrações e expectativas, que

se expressam no projeto político do SUAS que querem (ou não) construir no seu cotidiano.

Nessa coexistência de tempos, expectativas e experiências desaguam processos históricos que

atualizam conteúdos que foram atribuídos às práticas profissionais na Assistência Social –

vinculados à matriz tutelar de origem religiosa e/ou político-autoritária - e explicitam

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conteúdos em produção – vinculados à matriz da cidadania de origem laica e político-

democrática.

Começo então do presente, em que Beatriz, de 28 anos, relembra sua prática profissional

no período em que esteve no CREAS. Ela faz um relato carregado de história e rico em

autorreflexão gerada nas reuniões do GTT:

Na verdade eu ia dar um exemplo. Há três anos quando eu cheguei aqui em Atibaia

eu recebi um P.A. [processo administrativo]. Era um pedido de avaliação social, pelo

Ministério Público, da situação de um rapaz que tinha problemas psiquiátricos. A

família estava pedindo a internação por tempo indeterminado dele. E fui, fiz a

avaliação social, respondi o P.A. e encaminhei. Não retornei pra aquela família.

Um ou dois meses atrás aconteceu uma outra situação dentro daquele mesmo grupo

familiar, que envolvia um idoso. Quando voltei lá, eu percebi tudo o que eu podia ter

feito e não fiz porque eu estava só preocupada em responder o P.A. Ficou evidente

minha falha. Claro! Mas eu estava tão voltada a responder aquela demanda imediata

que estava ali! A gente deixa muita coisa passar e não faz efetivamente o nosso

trabalho.

A narrativa de Beatriz, assistente social, explicita uma prática imediatista e pontual, que

atualiza o anacrônico do “plantão social”. Nessa modalidade de prática, três gerações se

encontram, a geração de Beatriz, a de Lígia e Luiza. Num passado não tão distante, a Assistência

Social confundia-se com o trabalho de profissionais assistentes sociais. Nessa indiferenciação,

compunham a lista de tarefas que essas profissionais de Atibaia, por exemplo, deveriam dar

conta: prescrever hábitos de higiene e conduta tidas como ‘normais”, “remover” moradores

de rua da porta de comércios e residências, conseguir transporte e vaga em outras políticas

públicas. Conforme relembra Lígia, hoje no CRAS, e que atua no município há mais de vinte

anos:

Então, na verdade eu sou funcionária bem antiga aqui né. De quando assistência social

e assistentes sociais [faz gesto para dizer que era tudo a mesma coisa]. Então uma

coisa é você ter Assistência Social. Outra coisa é você ter assistente social de

prefeitura. Porque coube ao assistente social coisas do tipo: o delegado me chamou lá

porque queria saber o que ele podia mandar pra mim. Quando ele não resolvia, o

servidor competente pra isso era o assistente social. Resolvia até briga de ladrão de

galinha...

Seu relato suscita a memória atualizada de Luíza, assistente social do CRAS, que está

prestes a se aposentar:

Porque existia um plantão social, olha o nome! Então caía tudo naquela porta de

plantão social do assistente social. Então tudo que ninguém resolvia era lá! A gente

não tinha discernimento ou sei lá, até tinha discernimento, mas não tinha o respaldo

pra dizer não.

E eu acho que o SUAS veio pra ajudar, porque é legislação. Então hoje a gente tem

legislação que nos respalda. Antes a gente não tinha, tinha que arcar com tudo isso

que já foi falado como era o trabalho da gente. Porque às vezes [o gestor da pasta] é

uma pessoa leiga. Nem sempre você tem a sorte de ter um secretário que conheça o

SUAS, que conheça a assistência social, aí você tem que ter o respaldo pra comprovar

[esse discernimento profissional].

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Quando o relato de Luíza traz do passado uma marca de “discernimento” e se ela remete

a um “respaldo” é porque a especificidade da demanda de proteção da Assistência Social hoje

reconhecida em leis e normas, realiza um projeto e o desejo de muitos profissionais. De forma

mais intensa e engajada, um grupo de assistentes sociais lutou para que a Assistência Social,

uma vez inscrita no campo da Seguridade Social, fosse mais do que dar respostas imediatas

para problemas urgentes sem, no entanto, produzir mudança nas condições de vida dos

cidadãos63.

A autocritica de Beatriz reporta a uma história de longa duração a respeito do que foi

atribuído à sua profissão e também refere a uma história atual, dos tempos do SUAS. No modo

de funcionar refletido por ela a necessidade do cidadão é substituída e recoberta pelo pedido do

promotor do Ministério Público, sobre o qual ela não agregou nenhuma leitura mais ampliada,

uma escuta mais atenta, uma reflexão compartilhada com a equipe do serviço socioassistencial.

Também não compreendeu, inicialmente, que se tratava de uma família com demandas de

proteção social ocasionada pelo sofrimento mental de um de seus membros, o que poderia levar

a fragilidade de vínculos naquele convívio tenso e sofrido.

Partindo do entendimento de que a produção de sentido para o trabalho é mais do que a

repetição literal da lei, é necessário conhecer a história, reconhecer essa herança e ser capaz de

analisa-la à luz do processo de institucionalização do SUAS reconhecer que a demanda social

por proteção de Assistência Social está em construção, sobretudo pelos trabalhadores que hoje

estão atuando no SUAS requer uma reflexão de natureza da ética de responsabilidade. Silvia,

assistente social do CRAS, de 31 anos, assim expos na segunda entrevista coletiva:

Eu tenho uma questão sobre o papel da garantia de direitos. Quando a gente fala das

nossas atribuições, a questão da garantia de direitos, nessa articulação com outras

políticas, qual é o nosso papel nesse sentido de garantia de direitos?

Eu tenho muito claro que é não fazer o que o outro faz, por tudo isso que já foi dito.

Mas aí a minha questão é: como eu vou atuar num sentido desse para garantir o direito

da outra [política social] que não está sendo garantido? Ou eu posso estar fazendo

uma leitura errada...[pausa] pode ser que essa garantia de direitos que eles falam na

Política Nacional [PNAS, 2014] é a garantia dos direitos na área da assistência social.

É uma dúvida que eu tenho. (Grifo meu)

A dúvida de Silvia é a mesma de muitos trabalhadores do SUAS, seja daqueles que

atuam na esfera municipal, estadual ou mesmo federal. Ela indica que o processo de

63 A redação da LOAS e toda a articulação havida no Congresso Nacional para sua aprovação atesta esse empenho

e essa conquista histórica no campo dos direitos sociais (Boschetti, 2008; Sposati, 2004; Pereira, 2013). Sposati

narra em detalhes essa história ao fazer a analogia da Menina LOAS em sua exposição na IV Conferência Nacional.

Destaca o protagonismo do CFESS e da ABEPSS, que constituíram uma comissão interlocutora da Câmara Federal

para a discussão da LOAS no governo de Itamar Franco. Fizeram parte desta comissão: Laura Lemos Duarte,

Carmelita Yasbek, Aldaíza Sposati, Potyara Pereira, Rosangela Bastistone e Ana Lígia Gomes.

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institucionalização do SUAS fez um corte histórico importante, embora inconcluso. Nesse

sentido, o campo jurídico-normativo tem cumprido ainda um papel instituinte, ou seja, tem

força para criticar o instituído: praticas tutelares, assistencialistas e fisiologistas. E em seu lugar

construir o direito à convivência, acolhida e sobrevivência.

Beatriz é uma profissional tensionada por um conflito ético sobre o que ela própria,

agora modificada nos encontros do GTT, espera do seu trabalho na delimitação institucional do

SUAS. Busca maior compreensão do que é esperado de seu trabalho nessa instituição e não o

que o Ministério Publico considera satisfatório do trabalho de uma assistente social: a entrega

de uma avaliação social.

Duas pesquisadoras dessa política, Gomes e Nery (2013), dedicaram-se a questão,

trazendo aportes relevantes para o entendimento do que são demandas “atribuídas para” e

“construídas na” Assistência Social:

O caráter emergencial de respostas requeridas à equipe de trabalhadores exige

presteza e prontidão nas providências iniciais, o que é agravado quando pautados por

prazos de determinações judiciais. Considera-se, ainda, que a atribuição de serviços

ao CREAS, por vezes, é confundida com atribuições designadas aos seus profissionais

[assistentes sociais e psicólogos], dada a lacuna de sua existência em outros campos

de políticas públicas, bem como nos órgãos de defesa de direitos.

Isso pode ser agravado quando prevalece a compreensão de que o CREAS é espaço

de averiguação de denúncias. Trata-se de afirmá-lo enquanto lócus da proteção social.

É necessário adensar o debate em torno do trabalho técnico especializado na atenção

às diferentes violações de direitos que aportam ao CREAS

[...]. Trata-se, portanto, do desafio deste profissional estar implicado com o que faz

— o conteúdo do seu trabalho no CREAS —, e com quem faz — o sujeito. (GOMES

e NERY, 2013, p.26)

O relato de Carolina, 29 anos, assistente social do CREAS, trata das dificuldades de seu

superar práticas já instituídas:

Quando a gente responde simplesmente o P.A, a gente está trabalhando no campo

mais superficial, aparente e burocrático. Quando a gente aqui no Grupo pensa em

responder a demanda, a gente se aprofunda e consegue começar a trazer pra

compreensão e pro trabalho de equipe a resposta que esta situação trouxe pra gente,

que essa demanda inicial apresentou.

Eu acho que mudar essa forma de fazer não é fácil. A gente tem um jeito que se habitua

a ser. Começar a mudar uma situação que já está institucionalizada, mudar a forma de

fazer não é fácil, mas eu acho que é necessária. E eu tenho que dar uma resposta que

muitas vezes é mais um relatório pra um órgão que solicitou, do que efetivamente uma

ação junto com essa pessoa; uma ação que a aponte para caminhos de resolução.

(Grifo meu)

Ao deslocar o campo de reflexão estritamente de sua categoria profissional e trazê-lo

para a equipe multiprofissional do CREAS, de fato, Carolina traz uma questão essencial: para

quem afinal, os profissionais do SUAS trabalham? Num momento em que ainda há muita

hesitação, tem cabido respostas como: para o MP, para o Judiciário, para o “governo”, para a

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155

“entidade”. Somente uma reflexão ética, uma problematização das práticas profissionais é

capaz de produzir o entendimento comum de que o trabalho é para os cidadãos usuários. Daí a

vitalidade das perguntas dos profissionais de Atibaia.

É visível como o modo com que as demandas de Assistência Social tem sido analisadas

no GTT já instala um novo jeito de pôr a questão: não se trata de uma resposta a ser dada por

um profissional isoladamente, mas como uma questão a ser construída pela equipe. Essa marca

do SUAS é significativa: em lugar de práticas isoladas e baseadas no repertório de intervenção

de cada profissão, o que está em construção são equipes de referência multiprofissionais e,

quiçá, interprofissionais.

Ao projetar respostas mais coletivas a essa questão, os participantes do GTT fazem um

duplo movimento. Primeiramente, entendem que a construção coletiva dessas respostas nunca

é imediata, tal como era no plantão social; tal como tem sido em relação ao MP, ao Poder

Judiciário etc. Por isso, por vezes, o tempo que a equipe de gestão espera que as respostas e os

resultados desse Grupo sejam dadas é distinto do ritmo que o GTT consegue produzi-las.

Uma descoberta dessa experiência de auto aprendizado é de que há uma direção ética e

política para construir respostas aos usuários. Mais do que ser uma política transversal e

“despachante”, que encaminha os cidadãos para as demais políticas sociais, a Assistência Social

não deve se sobrepor a outras, como o exemplo da saúde mental, trazido por Ricardo.

Eu não acredito nesse negócio de uniformização porque nós somos pessoas. Mas,

minimamente, tem que haver algum consenso do que é correto. Por que tomar

determinadas atitudes e não outras? Por que eu estou apontando para tais

encaminhamentos?

Como a gente, de fato, não fecha a porta, mas estipula exatamente o que é o nosso

campo de atuação pra não substituir a deficiência de espaços da saúde mental, por

exemplo? Se a gente faz o trabalho do outro e faz sem as competências que foram

acumuladas lá, a gente não atende o direito do cara. Porque o direito do cara é ser

atendido onde foram construídos historicamente os procedimentos, as capacidades

técnicas, as competências, estruturas de serviços. Se gente faz um paliativo, um

remendo, impede, inclusive, a pessoa de acessar os seus direitos.

Tomar o trabalho vivo em ato como objeto de reflexão, analise e construção coletiva é

uma força instituinte do GTT. Ou seja, extrair do gesto mais cotidiano e prosaico os elementos

necessários para a mudança.

Os exemplos que seguem são emblemáticos do esforço dos participantes do GTT para

produzir, ao mesmo tempo, o conteúdo do trabalho e os sujeitos deste trabalho no SUAS.

Ricardo, traz outro exemplo, indicando o quanto os procedimentos profissionais

precisam ser revistos, pois neles estão os elementos de repetição de valores conservadores e

autoritários em práticas e posturas que os participantes do GTT querem mudar:

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156

Vamos olhar pra essa nossa demanda de fato. Vamos olhar um pouquinho mais pra

dentro dessa situação. Então o trabalho do Grupo tá nesse sentido, de discutir a visita

domiciliar, por exemplo. Coisas mínimas que até um tempo atrás era meio automático:

chegou a demanda [do Conselho Tutelar] vamos visitar! Mas por que? Para que?

Se a pessoa faz parte de um processo que eu quero valorizar, eu não invado a casa

dele, bato foto, falo como ele deve ou não deve fazer, falar como as crianças estão

vestidas. Isso é loucura! Então a gente tem que, de fato, trazer essas coisas, pequenas

coisas pra ampliar a visão sobre o que a gente quer atingir, que campo a gente está

demarcando para nossa atuação na Assistência.

Geni, assistente social do CRAS, chega na conversa com assertividade. Ela atribui ao

exercício de autoanalise feito no GTT a construção de outra visão de quem é o usuário da

Assistência Social:

Então isso faz parte de um amadurecimento profissional, de um enxergar pra ir além

do que é posto naquele primeiro momento. E também essa questão da motivação ao

usuário... há também de refletir isso porque daí a gente tem falado muito isso aqui no

Grupo, do direito da pessoa, do que ela quer, de se impor, falar.

Claro que a gente tem um papel profissional que é diferenciado. Uma escuta

qualificada gera confiança, gera essa possibilidade de uma troca maior. Começar a dar

um lugar pra essa pessoa que não é mais um objeto da sua ação, da ação de diferentes

políticas. Essa pessoa traz elementos pra nossa ação. Elas vão se encorajando a falar

mais do que estavam habituadas.

Isso é um começo pra chegar numa participação maior. É um caminho muito longo,

mas é um passo inicial, dar lugar pra essa pessoa que não é só um objeto da minha

ação. Ela passa a ter um histórico, o que ela pensa, o que ela sente é valorizado.

A referência a um campo de confiança entre profissionais e usuários abriu espaço para

que Rosa, assistente social no Centro Pop, entrasse na conversa trazendo mais um ganho para

os trabalhadores. Ela começa a ver que as discussões no Grupo têm contribuído para enxergar,

de outro prisma, o “aumento da demanda”:

A gente está construindo aqui um trabalho de qualidade! Em algum momento desse

Grupo uma das perguntas era assim: de 2013 para 2014 aumentou o número de

pessoas em situação de rua? Aumentou. Por que? Ah, porque os municípios vizinhos

sentiram que a gente tem um trabalho de qualidade. Então mandaram “de presente”.

Daí aumenta mesmo, mas então você tem que ter um olhar de andar junto, achar um

ponto de equilíbrio.

Mas o que é mais interessante é que a gente ficou sabendo que teve moradores de rua

lá de Bauru que ficou sabendo de Atibaia. Então assim, essa questão do trabalho

reflete porque eu sei que é uma referência! Sem a parte de falar que termina sendo de

muito trabalho... mas a gente tem que perceber que isso [aumento da demanda] é o

resultado de um bom trabalho, de uma forma ou de outra vira uma referência, né.

Há uma força instituinte do GTT ao propor a construção coletiva da demanda de

Assistência Social e a não aceitação como mera objetivação estatística ou “fato moral”.

Construir socialmente a demanda de Assistência Social é entrar na disputa e na luta cotidiana

do trabalho vivo em ato para superar as concepções conservadoras, autoritárias e moralistas que

a essa política foram (e ainda são) atribuídas e reproduzidas.

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157

Nesses dez anos de institucionalização do SUAS, adotar tal posição significa incidir no

campo de produção de conhecimento e também da ação profissional. É abrir espaço para

compreender que se trata de um campo de imanência em que, simultaneamente e num mesmo

processo são produzidas as demandas de proteção social, os sujeitos usuários dessa política

setorial, seus trabalhadores e a referência dos serviços. O entendimento comum em torno de

demandas sociais e oferta/ cobertura de serviços e benefícios certamente se beneficia de

esforços empreendidos nessa direção.

Ao situar o debate sobre a construção social da demanda em saúde coletiva Camargo Jr.

afirma ser necessário enfrentar os problemas conceituais, assim como os efeitos práticos, da

adoção dessa perspectiva teórica64.

Apresentar as necessidades sociais como construídas desestabiliza a suposta

autoridade de quem as declara como preexistentes, abrindo possibilidades de ação.

[...] Dentro dessa perspectiva, portanto, ressalta a ideia da demanda como resultante

de um processo de negociação, culturalmente mediado, entre atores representantes de

diversos saberes e experiências. De imediato, tal concepção traz uma vantagem

importante: não há a priori, a distinção entre demanda “real” e “falsa” ou “fabricada”;

a partir do momento em que se enuncia aos serviços de saúde um pedido de

intervenção, está estabelecida a demanda. (CAMARGO JR, 2005, pp.98-99)

A primeira ideia a reter deste autor é: as “necessidades sociais” são socialmente

construídas para justificar as intervenções e, ao mesmo tempo, definem quais são essas

intervenções. No caso das políticas sociais as instituições, praticas, profissões e saberes fazem

emergir problemas para os quais elas próprias devem responder por meio de métodos,

procedimentos e técnicas especificas.

Por isso, entendo que reflexões dos pesquisadores do SUS são pertinentes para a

construção do argumento referente à imanência da produção dos direitos dos usuários, o dever

de Estado na proteção social de Assistência Social e a constituição do valor e da identidade

coletiva dos trabalhadores do SUAS. Todas essas dimensões precisam ser consideradas nos

processos de educação permanente.

Considerando que o objeto da Assistência Social, ou seja, a proteção social não é tão

consensual como o objeto da Saúde, a construção social da demanda do SUAS é, de saída, mais

esgarçada65. A tradição de “não especificidade” dos problemas aos quais ela deve responder e

64 A literatura da saúde coletiva tem trazido importantes contribuições para adensar a direção teórica e política de

“construção social da demanda”. Em livro organizado por Pinheiro e Mattos (2005) diversos autores debruçam-se

sobre esse mote, buscando novas chaves analíticas para fortalecer o projeto do SUS. 65 As comparações entre o processo analisado por Camargo Jr na política de saúde requerem certa cautela, uma

vez que no SUS o campo médico industrial mobiliza atores e instituições mais amplos do que hoje se tem no

SUAS.

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a redução das necessidades exclusivamente à dimensão material, com respostas pontuais e

contingenciais limitam o que este autor, de forma muito apropriada define como “construção

social da demanda”.

Essa concepção explicita o processo de co-produção de demanda e oferta, o que coloca

em xeque diretamente a ideia de que é possível a adoção de critérios puramente

técnicos para a determinação de que “necessidades” seriam “reais” – e portanto se

constituiriam em direitos – e quais poderiam ser colocadas fora da cobertura das

ações governamentais. Dessa forma, tais definições são trazidas, de fato e de direito,

para a arena de negociação política. (CAMARGO JR, 2005, p. 99)

Os argumentos de Camargo Jr estruturam-se para desmontar a suposta objetividade das

“reais demandas de saúde”: as doenças. Ao traçar um paralelo com o SUAS, a objetividade

suposta seria a vulnerabilidade e risco social também reduzidas, tal como explicitado no “SUAS

em cena” à dicotomia rápida “é violação, vai para o CREAS; não é violação, fica no CRAS.”.

A crítica possível a essa suposta objetividade consiste em demonstrar o quanto essa

“objetividade” e “essencialidade” é resultado de negociações complexas entre atores e

instituições cujos resultados são sempre contingentes e históricos, longe, portanto, de serem

objetivos e expressarem uma “essência” do fenômeno para o qual se justifica uma intervenção.

O GTT está criando aos poucos essa arena de negociação em Atibaia em nível micropolítico.

Em outras palavras: o modo como são construídas socialmente as demandas justificam

as intervenções e, ao mesmo tempo, as definem. A continuidade da reflexão de Geni é

esclarecedora:

A partir do momento que o profissional muda o usuário também vai mudar. É uma

coisa que eu tenho percebido. Então às vezes você percebe na comunicação do

grupo...eu já vi casos de já vir com a coisa já formada do que vai levar [para o grupo],

aí no que você amplia, a pessoa vai chegando, vai revendo o que ele veio pedir. É uma

busca em dois aspectos: tanto profissional quanto o resultado do seu fazer, que no

caso se reflete no usuário. A gente não pode simplesmente dar respostas imediatas.

Por enquanto, na Assistência Social, o desafio tem sido trazer para o campo da

responsabilidade pública as inseguranças e desproteções sociais que ainda permanecem na

concepção de muitos trabalhadores e gestores como de responsabilidade privada e, mais

frequentemente, das próprias famílias que tem o dever de proteger. Na assistência social há

muito a construir a respeito de seu objeto próprio: os vínculos sociais (e não só os familiares)

como elemento de proteção social. As autoras trazidas no segundo capítulo abriram um caminho

a ser pavimentado.

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c) Tensões entre encomenda de estar atualizado e a demanda de mudar práticas de

atenção

Além de ampliar o modo como os trabalhadores dos serviços e a equipe de gestão vinha

se reunindo – do formato informativo para um formato de construção de respostas mais

coletivas e consensuadas – o GTT produziu um outro deslocamento na estratégia de gestão que

vinha sendo adotada. Desde de 2013 até meados de 2014, foram ofertadas mensalmente

capacitações para os trabalhadores de todos os serviços. Numa perspectiva de assegurar

continuidade e discutir temas candentes da agenda do SUAS66. A partir de um elenco de temas

a equipe de gestão mobilizava recursos para trazer especialistas para expô-los e aprofunda-los

para as equipes.

Entretanto, o GTT faz uma inflexão nesse movimento, a partir da seguinte avalição

explicitada por Letícia, assistente social do CRAS, e complementada por Maria, também

assistente social:

Letícia -Nessa gestão a gente teve a oportunidade de diversas capacitações. E nas

conversas que a gente ia tendo nos setores começamos a questionar − Ninguém vai

dar a verdade absoluta! Então a gente realmente pensou nessa nossa parte. A gente

tinha muita capacitação, mas a gente até colocou na avaliação que a capacitação

realmente tem que vir de acordo com as necessidades que a gente sente dentro do

grupo né. Não adianta a gente receber a capacitação e não saber como usar.

Maria - Surgiu a partir de algumas indagações do tipo: de que adianta trazer tantas

contribuições de fora, de professores, mestres e doutores, na medida em que nós não

conseguimos utilizar na prática esses conhecimentos?

Os elementos que compõem essa situação problemática encontraram ao menos duas

respostas distintas: da parte da equipe de gestão, foram ofertadas capacitação mensais sobre

temáticas atuais, dialogando com a necessidade de atualização das equipes, num processo em

que o “permanente” ganha sentido de regular e sistemático67.

Os trabalhadores das equipes técnicas de Atibaia trazem à tona algo já dito

anteriormente: junto com a discussão conceitual, imbricada à ela, vem a problematização ética,

66 Em fevereiro de 2014 eu e Abigail Torres tivemos o primeiro contato com a equipe de Atibaia. Fomos

convidadas na condição de especialistas para abordar, em dois de trabalho, a segurança de convívio no SUAS no

momento em que os municípios estavam mobilizados para essa temática por força da adesão ao reordenamento

dos serviços de convivência e fortalecimento de vínculos proposto pela SNAS. Abigail Torres e Maria Julia

Azevedo foram as consultoras responsáveis pela elaboração do material de referência dessa temática: Concepção

de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (BRASIL, 2013a). Fiz parte da equipe que colaborou para esta

construção que tem sido referência na área. 67 A iniciativa de ofertar capacitações para os profissionais ocorre há muito tempo, e por vezes com recursos

próprios, especialmente nos municípios de maior porte populacional ou ainda entre aqueles que contam com

proximidade e interesse de Instituições de Ensino Superior. Vale dizer que as oferta de capacitação tem sido

impulsionada em todo os municípios por meio de repasses federais fundo a fundo que permitem e estimulam esse

tipo de despesa, a exemplo dos recursos do IGD-M, do PAIF, entre outros.

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pois em política pública o uso de categorias e mesmo de conceitos desdobra-se em ações, atos

profissionais que tem consequências na vida dos cidadãos usuários dos serviços. Da parte dos

trabalhadores essas ofertas, embora bastante valorizadas, abriram o flanco para a

problematização dessas práticas de capacitação e a proposição de alternativa complementar.

Lenita relembra o hiato percebido naquele formato de capacitação:

Vou dar um exemplo bem claro que marcou muito pra mim e eu acho que ele está

muito ligado na nossa prática mesmo.

Veio aqui falar com a gente o Edson Seda. Estávamos nós, a entidade [prestadora de

serviço de acolhimento para crianças e adolescentes], e o Conselho Tutelar. Então ele

veio, esclareceu muita coisa, definiu muita coisa. Porém, o que foi feito daquela

capacitação? O Conselho Tutelar continuou trabalhando do mesmo jeito; nós também

do mesmo jeito! Não houve mudança nisso porque não paramos pra pensar. Eu acho

que não houve também uma troca com a gestão. Não tivemos tempo de conversar

com a gestão e também não sei, se houve conversa com o tutelar o teor dessa conversa,

o que ficou definido naquela sala, então a gente não sabe então.

O Edson Seda veio, eu ouvi muita coisa, mas o nosso trabalho continuou o mesmo, e

o Conselho Tutelar continuou trabalhando do mesmo jeito.

Assim complementa Ligia:

Nos nossos diálogos observamos que precisávamos de um momento nosso, sem os

doutores, os mestres, de modo que nós pudéssemos trocar experiências, dificuldades,

construções, instrumentos para discutir a nossa insegurança, o nosso conflito, a nossa

incerteza, as dúvidas que tínhamos e temos no nosso cotidiano. A gente tinha uma

capacitação hoje e não tinha um momento pra sentar e processar. E aí a gente já queria

uma outra, porque elas eram mensais. Mas e os momentos para falar disso? [...] Se

você não tem tanto conhecimento do que existe, das possibilidades, de quem é quem,

quando que a gente vai colocar dentro da realidade da cidade de Atibaia?

O deslocamento provocado pelo GTT indica a direção de que a relação entre equipes

profissionais e especialistas ou docentes universitários seja construída em outros termos. A

relação instituída diz que estes últimos são os únicos capazes de produzir e disseminar

conhecimentos. Assim, os profissionais põem em questão a relação socialmente construída, e

apresentada como “natural”, entre quem ensina e quem aprende.

Eu acho que hoje a gente busca alcançar um outro patamar, como a Elaine, quando

ela fala assim: buscar um outro patamar em que a gente não só se empodera, mas

também ganha uma responsabilidade muito maior do nosso trabalho, da nossa

atuação. Eu acho que isso é um pouco do que a gente vem buscando.

A proposição do Grupo de Trabalho Técnico (GTT) representa uma nova força à

resposta construída pela equipe de gestão, inserindo outro vetor potente, o foco nas práticas dos

profissionais e a necessidade de muda-las, trazendo para primeiro plano o foco nos usuários.

Nesse exercício coletivo da entrevista com o GTT foram explicitados pelo menos quatro

resultados parciais, de grande valor ético, político e técnico: i) não atender demandas que são

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claramente de outras políticas sociais, pois o “quebra-galho” só deprecia a atenção de qualidade

a que a população tem direito; ii) projetar mudanças na vida dos usuários, construir com em

eles a demanda e os resultados dos serviços traz um sentimento de dignidade para o trabalhador;

iii) estar aberto e disponível para que a construção das demandas seja feita pelas equipes e não

apenas por assistentes sociais e iv) não reduzir os usuários a um objeto de intervenção da

equipe, mas relacionar-se com eles como sujeitos, cuja presença é valorizada e a manifestação

de seus interesses é reconhecida.

Ao sistematizar a narrativa dos participantes na primeira entrevista coletiva e

reapresenta-la na segunda entrevista, percebi que, se não havia “resultados concretos” a

apresentar como efeito do trabalho coletivo desse Grupo, era possível falar em “resultados

parciais”. Os participantes da segunda entrevista coletiva reconheceram esses conteúdos,

embora não tivessem dado esse nome a eles, tal como eu propus para continuarmos o diálogo.

A partir dessa proposta, muitos outros “resultados parciais” emergiram à medida em que

tomavam o contato com seu próprio discurso.

Um dos resultados reconhecido pelos profissionais na entrevista coletiva foi de que o

GTT tem permitido a produção de entendimentos comuns sobre quais são as demandas

especificas da Assistência Social. Ao refletir sobre os conteúdos que eu havia sistematizado e

(re)apresentado aos participantes da segunda entrevista como “resultados parciais”, Luíza fala

do sentimento de valorização profissional que se faz no mesmo movimento de construção da

especificidade da Assistência Social como política pública.

Hoje eu sinto que é muito importante a gente estar fazendo esse Grupo porque eu acho

que o SUAS veio limitar a situação e dar mais dignidade ao trabalho profissional.

Quando você tinha que atender uma unha encravada, [e em seguida] o outro que é

uma vítima de violência, isso acontecia muito... nosso trabalho não tinha o mesmo

valor que ele tem hoje. Então quando eu falo em dignidade é que realmente o nosso

valor seja reconhecido. A gente trabalha a pessoa, a necessidade daquele usuário, não

só a necessidade material, mas a necessidade, assim, emocional, tudo que ele tem, a

bagagem dele.

Diante do conjunto dos resultados parciais reconhecidos pelos participantes do GTT e

seus deslocamentos de poder, retomo a análise de Cecílio (2005) quando indaga a potencia dos

grupos autoanalíticos:

• qual a potência autoanalítica de um coletivo, muito implicado com a situação

conflituosa, para dizer e escutar o que normalmente não se diz e não se escuta

nas organizações? Esse coletivo é capaz de realizar a análise das suas redes de

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poder e de inconciliáveis visões de distintos atores a partir de diferentes lugares

que ocupam?

• qual a potência (governabilidade) desse mesmo coletivo para propor novos

arranjos, novas contratualidades, novas regras do jogo que resultem em

mudanças, para melhor, para o maior número possível de atores envolvidos?

Não há uma resposta única para essas questões. Ou seja, o resultado do novo arranjo

não está dado previamente. Ele depende da posição e da disposição, dos modos de exercer o

poder e produzir realidade a partir do conflito relevante para o grupo. A resposta mais

pessimista, centrada mais no instituído e na assimetria de poderes entre gestores e equipes

profissionais, por exemplo, diria que essas experimentações estão fadadas ao fracasso, pois não

dispõe de poder necessário para confrontar estruturas e condicionantes externos. A resposta

mais otimista corroboraria a afirmação de Friedberg:

Um grupo que nas suas condições de ação concreta, isto é, nos constrangimentos

materiais e relacionais da sua situação, aprendeu a gerir e de algum modo a

domesticar, em vez de os abafar, os conflitos, as tensões, as discussões e as relações

de poder e de concorrência inseparáveis da sua existência e da sua ação enquanto

grupo, adquiriu, por esse fato, uma capacidade cultural propriamente coletiva. Esta,

permitir-lhe-á agir melhor e mais eficazmente que outros grupos que, por razões

diversas, não adquiriram essa capacidade. (FRIEDBERG, 1993, p. 287 Apud

CECÍLIO, 2005, p. 515)

Adoto um ponto de vista otimista no qual os conflitos cotidianos fazem parte do

processo de institucionalização, explicitando a tensão entre instituído e instituinte. Defendo que

eles podem motivar ações de transformação, estimular a criação de projetos de mudança.

Embora seja um ponto de vista otimista, preservo a cautela de que a direção desses projetos

demanda, sempre, uma reflexão ética, tendo como lastro os direitos do cidadão à proteção social

de Assistência Social e, portanto, a ampliação dos parâmetros de justiça vigentes.

A perspectiva de imanência do direito do usuário e da valorização dos trabalhadores do

SUAS requer uma concepção precisa de autonomia, tal como a construída por Onoko e

Campos:

A co-produção de maiores coeficientes de autonomia depende do acesso dos sujeitos

à informação, e mais do isso, depende de sua capacidade de utilizar esse conhecimento

em exercício crítico de interpretação. [...] Mas a autonomia depende também da

capacidade do sujeito agir sobre o mundo, de interferir em sua própria rede de

dependências. A capacidade do sujeito de lidar com o sistema de poder, de operar com

conflitos e de estabelecer compromissos e contratos com outros sujeitos para criar

bem-estar e contextos mais democráticos.

[...] Portanto, a definição de autonomia que propomos a torna sempre uma forma

relativa, em gradientes, passiveis de terem seus limites tencionados, mudados. O seu

exercício se aproxima, assim, de uma ética, pois deverá sempre se colocar em situação

e envolverá algum juízo de valor. Não haveria uma autonomia pronta a priori para

todos, nem em qualquer situação. (ONOKO e CAMPOS, 2006, p. 674)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se a consciência retém o passado e antecipa o futuro, é precisamente, sem dúvida,

porque ela é chamada a efetuar uma escolha: para escolher, é preciso pensar no que

se poderá fazer e lembrar as conseqüências, vantajosas ou prejudiciais, do que já foi

feito; é preciso prever e recordar. Henry Bergson

Nestas considerações finais faço dois movimentos. O primeiro deles reapresenta o

objeto deste estudo adensado pelos elementos aprendidos no percurso da pesquisa: conflitos

vividos por trabalhadores, conhecimentos já produzidos; demanda de novos conhecimentos e

experiências em curso. O segundo destaca duas inserções analíticas possíveis como

contribuição para desdobramentos de análises e implementação de processos de educação

permanente no SUAS. Assim, sugiro a diferenciação entre os termos “continuada” e

“permanente”, e faço analogias entre problematização e ferramentas que podem contribuir para

impulsionar processo de aprendizagem coletiva em serviço.

Os elementos da pedagogia da problematização expostos e analisados ao longo deste

estudo tornam possível recolocar o objeto deste estudo - os nexos entre educação e trabalho -

em outros termos. Assim, os nexos entre educação e trabalho no SUAS podem ser mais

adensados quando:

Os conflitos vividos por trabalhadores são considerados matéria-prima para a

construção coletiva de situações problemáticas, que conferem visibilidade pública

às “crises” do cotidiano. As situações problemáticas expõem o caráter dinâmico no

qual se produz o trabalho vivo em ato. Em uma acepção produtiva, essas situações

evidenciam tensões entre forças instituídas e instituintes, podendo deslocar os

trabalhadores de uma condição de obediência e heteronomia para uma condição ativa

e de maiores graus de autonomia. Há uma possibilidade de ampliação da democracia

no cotidiano institucional quando o dissenso reconhecido como ponto de partida para

a construção de entendimentos comuns e horizontes mais compartilhados.

Os conhecimentos já produzidos estão disponíveis e são acessíveis à reflexão ativa

de trabalhadores e educadores. Informar, explicar e contextualizar as situações

problemáticas concretas amplia o campo de entendimento das equipes e assegura o

direito dos trabalhadores à memória da instituição que estão cotidianamente

reproduzindo e produzindo. Como referência instituída, esses conhecimentos

sistematizados são mobilizadores de diálogos e estímulo à curiosidade e à pesquisa.

O processo de institucionalização do SUAS passa a requerer novos conhecimentos.

Conhecimentos que guardem proximidade com as situações concretas – e cada vez

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mais complexas – que desafiam e desestabilizam certezas, conceitos, métodos que

orientam condutas e decisões dos trabalhadores do SUAS. Há muitas perguntas

buscando respostas nessa primeira década do SUAS: O que se sabe dos efeitos e

consequências do trabalho realizado na vida dos usuários? Ele tem produzido mais

segurança social para a população? A ação profissional – seja no serviço, seja na

gestão – tem ampliado o acesso aos serviços e benefícios? Tem ampliado sua a rede

de proteção social, com o que podem contar em situações de insegurança social?

Portanto, novos conhecimentos podem produzir nexos inovadores entre educação e

trabalho, a exemplo da direção interdisciplinar a ser construída pelas equipes no

SUAS.

A experiência é colocada em análise pelos próprios trabalhadores. Ao

problematizar a própria experiência, tendo como parâmetro a ética pública (ética de

responsabilidade), os trabalhadores vão desvelando elementos da coconstrução de

necessidades sociais dos usuários e do valor de uso do seu próprio trabalho vivo em

ato. Em lugar de uma política de pobre para pobres, passam a reconhecer que as

respostas quando dignas aos usuários dignificam seu próprio trabalho.

O objeto deste estudo foi construído a partir de minha experiência em intervenções

profissionais e militantes e da participação no processo nacional de institucionalização da

educação permanente – em diferentes posições, como educadora, gestora, pesquisadora,

“especialista” e colaboradora do CNAS. Ao transitar entre estas diversas posições, sintetizo

duas inserções analíticas dessas experiências e, oxalá, possa expandi-la.

A primeira inserção analítica que este estudo destaca diz respeito ao uso do termo

“permanente” e a necessidade de diferenciá-lo de “continuada”, utilizados comumente como

sinônimos e que de fato, na educação permanente não são. Ainda que ambos sejam

caracterizadores, na assistência social, possuem matizes semânticos diferentes. O primeiro –

permanente-, pressupõe mudança, ao contrário do segundo – continuada -, que essencialmente

demonstra algo previamente estabelecido.

Há também outros atributos referentes ao espaço, como “patamares” e “níveis”,

frequentemente transportados para práticas de educação em serviço (ou capacitação, como se

diz comumente). Essa perspectiva verticalizada de espaço também não corresponde à direção

de processos de educação permanente baseados na pedagogia da problematização. Nesta

ultima, o espaço é horizontalizado, promove “rodas” e percusos que indicam onde se que

chegar, mas o transito entre ponto de partida e de chegada não é linear e cumulativo.

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Em síntese, estes termos – progressiva e níveis - referem o tempo à continuidade e o

espaço à ascensão ou progressão. Para a gestão do trabalho as concepções de tempo e espaço

são socialmente necessárias. Tem-se aqui uma das faces em que a gestão do trabalho se

desdobra. A continuidade instituída pelas normativas do SUAS é negadora da opção por uma

política eventual, provisória, de pouca responsabilidade pública e sem referências estáveis e

seguras para o cidadão. A progressão, a ser instituída como horizonte para seus trabalhadores,

é arma de luta diante de relações trabalhistas ainda presas num presente de horizonte estreito e

pouco atrativo para seu desenvolvimento profissional e com remuneração justa.

O tempo continuado e progressivo é, portanto, o tempo cronológico que orienta a

construção social dos planos de carreira e salários; que sustenta a presença constante, valorizada

e ascendente dos trabalhadores no decurso do tempo.

Esse tempo continuo é homogêneo, passível de medida espacializada e matemática:

horas podem ser multiplicadas em meses (ou em carga horária); meses multiplicam-se em anos,

e vice-versa, anos podem ser divididos em meses. Visto assim, é o tempo indiferenciado,

repetido ou progressivo. Para usar os termos de Bondía, a esse tempo atribui-se valor ao que

passa – os anos – mas não ao que se passa - a experiência.

A pedagogia da problematização traz concepção diversa de tempo, mais adequada à

outra face da gestão do trabalho: a educação em serviço. Trazida para a educação permanente,

a natureza desse tempo é qualitativa, pois associa ao adverbio “permanente” a ideia de duração

(BERGSON, 2006). O tempo da duração marca as intensidades que nos fazem dizer: nossa,

parece que faz tanto tempo! Para referir a algo que é recente, tamanha a intensidade que o

acontecimento imprime em nós; ou dizer: parece que foi ontem! Quando o acontecimento

narrado deixa marcas tão intensas que se fazem presentes mesmo quando decorridas décadas.

O tempo da educação permanente é o tempo-devir: "Entre o antes de e o após um

acontecimento marcante, esgueira-se uma iniciativa humana, modesta, mas essencial. É ela que

nos torna [coletivamente] responsáveis pelo nosso próprio devir". (ZARIFIAN, 2002, p.6).

Portanto, uma concepção de tempo-devir, qualitativo, sempre associado às

transformações possíveis. Estas transformações estão no presente, pois somente nele convivem

a extensão do passado e o fluxo do futuro. A ação se realiza no presente e nele inscreve as

marcas dos acontecimentos pessoais e coletivos. Por isso, o tempo da educação permanente é

tempo da experiência – não aquela que somamos em anos – mas aquela a que estivemos ex-

postos e, por isso, fomos modificados pelos acontecimentos.

Em decorrência desta concepção de tempo, os processos de educação permanente são

aqueles que desestabilizam e interrompem o tempo contínuo “que passa”. Neste tempo,

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trabalhadores e educadores tornam-se corresponsáveis pelo devir do SUAS. Em outras palavras,

é o tempo da produção coletiva de experiências, tal como do GECATS, do GTT e tantas outras

em curso no país; ou das que poderão exercer sua força instituinte criando novas realidades.

Ao interferir e trazer esse tempo qualitativo para a gestão do trabalho no SUAS, o campo

de valorização do trabalhador é ampliado: é por meio do tempo-devir que “o trabalho pode

retomar seu sentido, em particular quando se torna serviço, quando é orientado na perspectiva

da ação recíproca entre produtor e [usuário]”. (ZARIFIAN, p.16)

A segunda inserção analítica explora algumas das consequências possíveis quando se

adota a problematização para impulsionar processos de aprendizagem coletiva em serviço.

Trata-se de uma interferência de ordem prática, em ato. Há, portanto, uma ideia inerente à

problematização e que diz respeito à produção de mudanças ou ‘soluções’ parciais e

contingentes, mas nem por isso menos importantes e significativas como experiência coletiva

de trabalhadores, usuários e educadores. Mudanças capazes de produzir deslocamentos nos

modos de exercer o poder e de produzir os saberes necessários para o SUAS. Afinal, não se

trata de “politica pobre para pobres”. Trata-se de construir, pelo trabalho vivo em ato, uma

política pública à altura da dignidade dos usuários. Com esta direção,

La apuesta estriba en fabricar los problemas, tratar de plantearlos, de formularlos lo

mejor y más allá que podamos, de manera que algunas soluciones se vayan

descartando solas y otras, aunque estén aún por descubrir, acaben imponiéndose por

sí mismas. En otras palabras, las soluciones descubiertas y finalmente elegidas estarán

a la altura de la forma en que se haya planteado el problema. (VERCAUTEREN (et

al), 2010, p.164)

Por isso, a problematização pode ser considerada uma ferramenta que contribui para a

democratização do SUAS, ao mesmo tempo em que produz trabalhadores reflexivos e

corresponsáveis pela proteção social devida aos usuários. Ela opera como uma ferramenta

dotada de precisão, pois incide nas relações de saber-poder instituídas: seja dos trabalhadores

entre si, seja entre eles e os usuários, ou mesmo entre eles e as instituições de ensino.

Diante de situações problemáticas “reais”, essa ferramenta assume diferentes formas de

intervenção no pensamento, na postura e na ação: às vezes opera como lâmina de corte de

decisões e posturas baseadas em parâmetros religiosos, morais e coorporativos; outras vezes

funciona como lanterna, pondo luz em decisões e modos de fazer que ampliam leituras do

mundo, da instituição, do cidadão usuário e de si próprio como trabalhador do SUAS; pode,

também, ser usada como tear, tecendo fios soltos, articulando processos estanques e forjando a

construção de tramas mais fortes de proteção aos usuários e; finalmente, pode ser como uma

chave de fenda que se encaixa numa pequena fresta e, por um movimento de torção, produz

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conexão entre partes, antes separadas, dentro da própria instituição (categorias profissionais,

setores, funções, locus de trabalho e tantas outras segmentações já expostas neste estudo e que

hoje constituem o cotidiano no SUAS).

Do ponto de vista político, a força da pedagogia da problematização ativa,

simultaneamente, o sabido e o não sabido, conceitos e preconceitos, procedimentos e

automatismos, decisões e hesitações, falas e silêncios. Por mover e incidir em situações de

natureza complexa, a problematização feita “desde dentro” ou “ao lado” dos trabalhadores torna

todos nela implicados corresponsáveis por seus gestos, decisões e omissões. Por isso, a

problematização é uma ferramenta potente para suscitar reflexões próprias da ética pública. Ela

oferece visibilidade aos conflitos que, de forma subterrânea ou explícita, tem restringido o

acesso e o usufruto dos direitos pelos usuários.

Antepõe-se uma igualdade ao afirmar que todos são capazes de construir conhecimentos

necessários para a melhor qualidade da atenção ao usuário. Ao mesmo tempo se reconhece a

alteridade entre trabalhadores, usuários, pesquisadores e educadores do SUAS.

Parodiando Onoko e Campos, eu diria: Há de se estar muito vivo e em contato com

aquilo que – no outro – nos desestabiliza e interroga. Há de se manter aberto a todas as

perguntas. Há que se interrogar a assistência social em geral e a que fazemos.

Essa condição de igualdade pode ser experimentada nos processos de educação

permanente – tal como visto nas experiências ‘encarnadas’ do GTT e do GECATS. Por

analogia, essa é a construção histórica (o tempo-devir) do 5º. Direito socioassistencial: o

usuário tem direito de ser protagonista de respostas dignas, claras e elucidativas.

O vocabulário dos direitos socioassistenciais precisa ser de uso corrente e apropriado (e

não apenas de forma literal) pelos trabalhadores e usuários do SUAS. O domínio deste

vocabulário tem a força instituínte de negação de formas de obediência e servidão que se

reproduzem silenciosamente no cotidiano do SUAS.

Ao analisar a mal interpretada afirmação de La Boétie a respeito da servidão voluntária

– não é preciso combater um único tirano; não se deve tirar-lhe coisa alguma, e sim nada lhe

dar - Chauí (1999) entrega uma reflexão valiosa:

O Discurso simplesmente contrapõe desejo de servir e amizade. Não retira desse

contraponto qualquer projeto de ação, mas apena a convicção de que não servir é

sempre possível, e sempre vitorioso quanto tentado, pois “a bom querer fortuna nunca

falha” convicção que não afasta outra, ainda mais paradoxal: a de que desejar servir

também é sempre possível. No tempo sem garantia onde se efetuam liberdade e desejo

de servir, a história se faz e, desde que não confundamos memória e hábito, o recurso

ao passado e maneira de narrar o presente. (CHAUÍ, 1999, p. 183)

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2012.

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176

Legislação e documentos oficiais:

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de

Assistência Social. Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução n. 9, de 15 de abril de

2014.

______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de

Assistência Social. Conselho Nacional de Assistência Social. Política Nacional de Educação

Permanente do SUAS. Brasília: Secretaria Nacional de Assistência Social, 2013.

_____. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Centro de Estudos e

Desenvolvimento de Projetos especiais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Gestão do Trabalho no

âmbito do SUAS: uma contribuição necessária para ressignificar as ofertas e consolidar o

direito socioassistencial. Brasília, MDS/SNAS, 2011.

______. Lei Orgânica de Assistência Social, alterada pela Lei 12.435, de 07 de 2011.

______. Secretaria Nacional de Assistência Social. Conselho Nacional de Assistência Social.

Resolução n. 17, de 20 de junho de 2011.

______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Conselho Nacional de

Assistência Social. VIII Conferência Nacional de Assistência Social, realizada de 7 a 10 de

dezembro de 2011. Brasília: CNAS, 2011.

_______. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais – Resolução CNAS nº 109 de

11/11/2009. Brasília: CNAS/MDS, 2009.

_____. Ministério do Planejamento. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. As

Entidades de Assistência Social Privadas sem Fins Lucrativos no Brasil. Brasília, 2006.

_______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Conselho Nacional de

Assistência Social. V Conferência Nacional de Assistência Social, realizada de 5 a 8 de

dezembro de 2005. Brasília: CNAS, 2005.

______. Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB-SUAS).

Brasília: MDS, 2005.

_______. Secretaria Nacional de Assistência Social. Conselho Nacional de Assistência Social.

Política Nacional de Assistência Social. Brasília, 2004.

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177

ANEXOS

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Anexo A – Exercício de aproximação da reflexão da ética pública ao cotidiano do SUAS.

O quadro que segue é sistematização da exposição realizada no 1º Seminário Nacional da Gestão do Trabalho e Educação Permanente do

SUAS, realizado em Brasília em 2014. Nesta ocasião, estavam presentes, pela primeira vez em um debate nacional do SUAS, trabalhadores que

exercem funções de nível médio de escolaridade, recém reconhecidas pelo CNAS.

Possíveis transposições dos princípios

constitucionais ao ambiente institucional do SUAS

Possibilidade de reflexão da ética da responsabilidade em

ato no cotidiano do SUAS

Legalidade: Os direitos socioassistenciais assegurados na

Constituição Federal, na LOAS e suas atualizações regem

também as leis orgânicas estaduais e municipais. Sem isso,

continuaremos a entender como “natural” que, nas

mudanças de governo, a assistência social retroceda nos

avanços já alcançados.

Manter na legislação municipal e estadual redação avessa aos princípios,

diretrizes e modos de fazer a gestão do SUAS. Negar o direito à

participação dos usuários nas decisões político-profissionais que afetam

sua vida e da coletividade a que pertence; fechar ou interromper serviços

em mudanças de governo; contratar profissionais sem proteção trabalhista

para atuar no SUAS

Impessoalidade: O direito é regido pela régua da

igualdade, buscando para todos tratamento igual, sem

discriminações de qualquer natureza. Por isso, a natureza

deste princípio consiste em distanciar os valores

(religiosos, familiares, morais etc) que regem a vida

pessoal do trabalhador do SUAS e os valores que orientam

sua decisão e ação junto aos cidadãos usuários.

Indicar parentes para exercer cargos de confiança; escolher, ainda que de

maneira informal, quem “merece” e quem “não merece” frequentar o

serviço e ter acesso ao benefício; exigir a obrigatoriedade da presença em

atividades como “contrapartida” obrigatória de beneficiários de

transferência de renda; definir condições que impeçam ou dificultem o

acesso aos serviços a determinados grupos sociais.

Publicidade o acesso à informação é condição sine qua

non para o exercício de controle do Estado pela sociedade.

Informação, nesse sentido, é poder, pois só existe

participação capaz de influenciar decisões quando se tem

informação.

Instalar serviços longe de onde está a maior demanda social por eles, sem

explicitar as motivações; mobilizar os usuários às vésperas da conferência

de assistência social apenas para garantir presença sem participação

qualificada no dia a dia; negar informações sobre o atendimento - sob

alegação de sigilo profissional - a outras equipes que trabalham com os

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mesmos usuários ou famílias. Assegurar às famílias o conhecimento e o

diálogo sobre o conteúdo do seu prontuário de atendimento.

Moralidade pública: considera-se imoral usar

recursos públicos (materiais, financeiros, infraestrutura e

tempo) para interesses pessoais. A moralidade pública faz

assim uma separação fundamental: na gestão e no

atendimento à população, o jeito como se organiza e

conduz é diferente daquele que é praticado em nossa vida

pessoal, religiosa e familiar.

Utilizar transporte, alimentação e outros recursos destinados ao

atendimento aos usuários em benefício pessoal de trabalhadores e gestores;

usar recursos do fundo de assistência social para fins que não sejam

previstos no SUAS; obrigar os usuários a rezar antes ou durante as

atividades; desrespeitar regras de convênio entre entidades e o órgão gestor

de assistência social; desrespeitar o direito à privacidade das famílias em

visitas domiciliares sem agendamento e sem objetivo claro para quem a

recebe.

Eficiência. Este princípio anda de mãos dadas com

a ideia de cobertura quando se está na institucionalidade de

uma política pública. Na lógica de projetos sociais de

iniciativa de entidades sociais mesmo que sejam bem

atendidos 50, entre 1.000 pessoas que demandam aquela

atenção, é possível falar de resultados. A ética pública

dirige-se a todo o universo de pessoas que demandam a

atenção. Portanto, procedimentos “caso a caso”, estão

longe de prover a amplitude e cobertura necessária para

benefícios e serviços, sobretudo na proteção social básica.

Entender como natural ter uma lista de espera de mais de 100

usuários para um determinado serviço; agendar atendimento individual nos

CRAS, o que pode custar ao cidadão até 3 meses de espera; dividir o

trabalho social em duas partes: da subjetiva cuidam psicólogos; da objetiva,

como perfil de renda e composição familiar cuidam assistentes sociais;

fragmentar a atenção entre os serviços da proteção social básica e especial,

negando a complementaridade entre elas.

Fonte: Elaboração própria para capítulo de livro sobre Gestão do Trabalho no SUAS, a partir de exposição no 1º Seminário Nacional da Gestão do Trabalho e Educação

Permanente do SUAS, em 2014. No prelo.

179

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180

Anexo B – Diferença entre educação continuada e educação permanente

Educação Continuada Educação Permanente

Pressuposto

Pedagógico

O “conhecimento” preside /

define as práticas

As práticas são definidas por múltiplos

fatores (conhecimento, valores, relações de

poder, organização do trabalho etc.); a

aprendizagem dos adultos requer que se

trabalhe com elementos que “façam

sentido” para os sujeitos envolvidos

(aprendizagem significativa).

Objetivo

principal

Atualização de

conhecimentos específicos.

Transformação das práticas.

Público Profissionais específicos, de

acordo com os

conhecimentos a trabalhar.

Equipes (de atenção, de gestão) em

qualquer esfera do sistema.

Modus

operandi

Descendente. A partir de

uma leitura geral dos

problemas, identificam-se

temas e conteúdos a serem

trabalhados com os

profissionais, geralmente em

formato de cursos.

Ascendente. A partir da análise coletiva dos

processos de trabalho, identificam-se os nós

críticos (de natureza diversa) enfrentados na

atenção ou na gestão; possibilita a

construção de estratégias contextualizadas

que promovem o diálogo entre as políticas

gerais e a singularidade dos lugares e

pessoas.

Atividades

educativas

Cursos padronizados - carga

horária, conteúdo e

dinâmicas definidos

centralmente. As atividades

educativas são construídas

de maneira desarticulada em

relação à gestão, à

organização do sistema e ao

controle social. A atividade

educativa é pontual,

fragmentada e se esgota em

si mesma.

Muitos problemas são

resolvidos/equacionados em situação.

Quando necessárias, as atividades

educativas são construídas de maneira

ascendente, levando em conta as

necessidades específicas de profissionais e

equipes. As atividades educativas são

construídas de maneira articulada com as

medidas para reorganização do sistema

(atenção- gestão- educação-controle social

articulados) que implicam

acompanhamento e apoio técnico.

Exemplos: constituição de equipes de

especialistas para apoio técnico às equipes

da atenção básica em temáticas específicas

prioritárias; instituição de processos de

assessoramento técnico para formulação de

políticas específicas.

FONTE: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde.

Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.

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Anexo C

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Instituição de ensino: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP

Título da pesquisa: Educação Permanente: indagações e contribuições para a

profissionalização no Sistema Único de Assistência Social

Nome do pesquisador: Stela da Silva Ferreira

Nome da orientadora: Prof. Dra Aldaíza Sposati

Você está sendo convidado/a a participar de pesquisa realizada por Stela da Silva

Ferreira, intitulada “Educação Permanente: indagações e contribuições para a

profissionalização no Sistema Único de Assistência Social”, que faz parte de projeto de

doutorado vinculado ao Programa de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, orientado pela Prof. Dra. Aldaíza Sposati.

A pesquisa aborda o processo de institucionalização da política pública de assistência

social, particularmente as demandas de produção de conhecimentos necessários para que as

equipes profissionais alcancem a finalidade específica desta política de proteção social. Visa

conhecer e analisar diferentes estratégias de produção e disseminação de conhecimentos,

previstas ou não nas normativas do SUAS, como a NOB-RH (2006) e Política Nacional de

Educação Permanente (2013).

Solicitamos sua autorização para uso de conteúdo captado durante a realização de grupo

focal junto aos profissionais dos serviços socioassistenciais de ______, lembrando que as

informações serão tratadas com sigilo e confidencialidade, para preservar a sua identidade.

No caso da gravação de voz, estas serão ouvidas apenas pelo pesquisador e pela

orientadora da pesquisa. Destacamos que a participação é voluntária, sendo garantida a

desistência em qualquer momento do processo, sem que isso implique em qualquer prejuízo a

sua pessoa. Informamos ainda que você não pagará nem será remunerado por sua participação.

Caso você tenha dúvidas ou necessite de maiores esclarecimentos sobre essa pesquisa

pode entrar em contato por meio do telefone (11) 99116-5083 (inclusive ligações a cobrar) e

pelo endereço eletrônico: [email protected].

Este termo deverá ser preenchido em duas vias de igual conteúdo, sendo uma delas,

devidamente preenchida e assinada, entregue a você.

Local, data.

_____________________ __________________________

Stela da Silva Ferreira Participante:

RG: 21.868.987 RG:

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182

Anexo D – Regimento interno GECATS, em vigor em 2014

Regimento Interno do GECCATS

O presente Regimento Interno tem por objetivo estabelecer as normas que devem ser

cumpridas por todos os membros do Grupo intitulado GECCATS - Grupo de Estudos e

Capacitação Continuada para Trabalhadores do SUAS, que foi criado no dia 10 de setembro de

2009, a partir da continuidade da Capacitação para Implantação e Implementação de CRAS no

Estado de São Paulo desenvolvida pela parceria Fundação Vanzolini/SEDS, enquanto iniciativa

conjunta da Diretoria Regional de Assistência e Desenvolvimento Social e os respectivos

municípios da área de sua jurisdição/abrangência.

O cumprimento deste Regimento possibilitará uma convivência equilibrada e

confortável para todos os participantes do GECCATS.

CAPÍTULO I

Do Grupo e Seus Objetivos

Artigo 1º – O GECCATS está vinculado à Diretoria Regional de Assistência e

Desenvolvimento Social de Franca que se constituí na representação do Órgão Gestor Estadual

na região e tem a incumbência de fomentar, estimular a capacitação continuada e a educação

permanente dos trabalhadores do SUAS que têm suas funções sócio-ocupacionais afetas à

Proteção Social Básica.

Parágrafo 1º - O objetivo geral do GECCATS é consubstanciar-se em espaço

privilegiado de capacitação continuada e educação permanente para trabalhadores do SUAS

dos municípios da região de Franca-SP.

Parágrafo 2º - São objetivos específicos do GECCATS:

I- Contribuir com a consolidação do SUAS de maneira qualificada na região através

do fortalecimento dos atores da PNAS;

II- Propiciar integração trocas de experiências, iniciativas de resolutividade;

III- Construir conjuntamente metodologias que permitam a materialização do SUAS e

portanto dos direitos;

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IV- Disseminar e propagar os princípios, diretrizes e conceitos do SUAS adensando o

arcabouço teórico-metodológico, ético-político e prático-operacional dos

trabalhadores da região;

V- Desenvolver a capacidade investigativa da prática profissional;

VI- Realizar inscrição junto às Instituições de estudo e pesquisa para tornar-se

conhecido na comunidade científica;

VII- Elaborar artigos e publicá-los.

CAPÍTULO II

Da Composição do Grupo

Artigo 2º – O GECCATS é composto pela equipe técnica do Núcleo de Avaliação e

Supervisão da DRADS - Franca e trabalhadores do SUAS dos Municípios da região,

dentre eles(as) Gestores(as) da Assistência Social, Coordenadores(as) de CRAS,

Assistentes Sociais, Psicólogos(as), Pedagogo(as), Advogado(as), Sociólogo(as),

Terapeutas Ocupacional, Musicoterapeutas, Antropólogo(as), Economista Doméstico,

e Estagiários(as) que atuam na Proteção Social Básica.

Parágrafo 1º – Os componentes do grupo deverão participar ativamente, assumindo

responsabilidades e atribuições visando à materialização dos objetivos do grupo.Artigo

3º – A admissão e desligamento dos membros seguirão as seguintes regras:

Parágrafo 1º - Serão admitidos novos membros no início de cada semestre (fevereiro e

julho), cabendo a estes realizar inscrição (ANEXO I) através de fichas específicas

solicitando inserção no grupo sendo respeitada a representatividade de cada município,

de acordo com o porte do município:

Porte Quantidade de

Participantes/limite

Grande Até 8

Médio Até 5

Pequeno II Até 4

Pequeno I

acima de 10.000 hab

Até 3

Pequeno I Até 2

Parágrafo 2º - Os municípios que não ocuparem todas as vagas deverão assinar um

termo de desistência e nos casos de vagas remanescentes, será realizado sorteio para os

municípios que tiverem interesse;

Parágrafo 3º Os membros do grupo não poderão ter duas faltas consecutivas e/ou três

faltas alternadas durante o ano sem a devida justificativa, pois tal situação desencadeará

o desligamento automático/compulsório do grupo;

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Parágrafo 4º - As faltas justificadas não serão contabilizados para desligamento. As

justificativas devem ser feitas por escrito (ANEXO II) e de forma transparente sendo

postadas no grupo on-line dando conhecimento a todos os membros;

Parágrafo 5º - No caso de eventos organizados pelo GECCATS, a Comissão

Organizadora estabelecerá as regras de participação dos participantes;

CAPÍTULO III

Dos Direitos e Deveres

Artigo 4º - O conjunto de direitos dos membros do grupo está assim constituído:

I- Sugerir assuntos e temas para as reuniões;

II- Propor adequações e mudanças a este regimento interno bem como à condução das

reuniões mediante avaliação e submetê-las ao referendo dos demais membros;

III- Manifestar opiniões acerca dos assuntos e temas tratados sendo as mesmas

respeitadas pelo grupo;

IV- Ter duas faltas consecutivas e até três faltas alternadas desde que devidamente

justificadas com antecedência e de forma transparente através do grupo on-line, não

podendo ultrapassar o limite de 25% de faltas sem justificativas no ano;

V- Ter acesso prévio à proposta da reunião seguinte e até 15 dias após, o relatório da

mesma;

Artigo 5º - O conjunto dos deveres dos membros do grupo segue assim composto:

I- Tomar conhecimento do Regimento Interno e cumprí-lo;

II- Sempre que reconhecer que este Regimento não está sendo cumprido apontar como

e por quem para a tomada de providências;

III- Chegar no horário marcado para início das reuniões, havendo no máximo quinze

minutos de tolerância;

IV- Respeitar a fala de cada membro buscando inscrever-se, levantando a mão, para

então se pronunciar;

V- Fazer parte da comissão organizadora da reunião pelo menos uma vez por ano;

VI- Preferencialmente avisar com antecedência em caso de falta;

VII- Ficar até o final da reunião, participando na íntegra das atividades propostas;

VIII- Em casos de necessidade de sair antes do término da reunião fazer uma justificativa

plausível para o restante do grupo, sem que haja exposição de sua vida pessoal;

IX- Colaborar com a cessão de materiais (data show, máquina digital, som, etc)

necessários para as reuniões, ficando cada município encarregado alternadamente

pela mesma;

X- Colaborar com a oferta do café e do lanche alternadamente;

XI- Postar informações no grupo on-line: [email protected]

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CAPÍTULO IV

Da Estrutura e Funcionamento

Artigo 7º - O Grupo estrutura-se em bases horizontais, estando todos os membros em

situação de paridade, tendo a voz e a opinião igual valor.

Artigo 8º – Para cada reunião será instituída uma comissão organizadora de forma que

o grupo prime pelo caráter democrático e participativo, além de propiciar dinâmica

pedagógica de aprendizagem de condução de atividades coletivas, já se traduzindo em

processos que agregam à competência profissional.

CAPÍTULO V

Da Coordenação

Artigo 9º - A equipe do NUASU da DRADS – Franca ficará responsável pela Coordenação

do GECCATS tendo as seguintes atribuições:

I- Fazer a divulgação do grupo em toda a região e Estado de São Paulo;

II- Sediar as reuniões;

III- Planejar junto com a comissão organizadora as reuniões;

IV- Fomentar iniciativas de capacitação;

V- Apoiar a coordenação das reuniões;

VI- Arquivar as documentações e registros;

VII- Mediar o grupo on-line.

CAPÍTULO VI

Da Comissão Organizadora

Artigo 10– A comissão organizadora será composta por no mínimo representantes de

dois municípios, cabendo a preparação da reunião, a organização dos materiais e equipamentos

necessários para a reunião e a relatoria da mesma. A equipe técnica do NUASU, da DRADS -

Franca estará em conjunto com a comissão organizadora, inclusive cedendo espaço para a

preparação das reuniões.

Artigo 11 – A lógica adotada é que através de revezamento todos os municípios

componham a comissão organizadora ao menos uma vez por ano.

Parágrafo 1º – Dar-se-à preferência a temas e assuntos advindos da solicitação da

maioria dos componentes do grupo na forma de prioridade, sem desconsiderar o que foi

proposto por uma minoria, uma vez que, a intenção do grupo é reconhecer a legitimidade e

operacionalizar estudos de forma democrática e participativa.

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I- As atividades devem conciliar explanações, apresentações, dinâmicas, trabalhos em

subgrupos e devem ser desenvolvidas em um processo de interdependência e

complementariedade potencializando a assimilação do conteúdo abordado.

Parágrafo 2º – No que concerne a preparação deverão ser elaborados os seguintes

instrumentais:

I- Proposta da reunião que deve ser enviada com antecedência através do grupo on-

line;

II- Pauta da reunião para ser entregue no dia em que esta ocorrerá;

III- Orientações, quando for o caso, para trabalhos em subgrupos;

Parágrafo 3º – O relatório da reunião deverá ser postado no grupo on-line até 15 dias para que

os membros possam assimilar a síntese e se prepararem para a reunião seguinte.

Parágrafo 4º – A Comissão Organizadora deverá se responsabilizar com a organização do

espaço, a montagem dos equipamentos e demais necessidades do ambiente antes e após as

reuniões.

CAPÍTULO VII

Das Reuniões

Artigo 12 - As reuniões serão mensais e acontecerão na sede da DRADS - Franca, no

salão nobre da antiga UNESP, atualmente, CIRG- Centro Integrado Regional de Governo,

situada à Rua Major Claudiano, 1488, Centro, Franca - São Paulo.

Artigo 13 – As reuniões acontecerão preferencialmente nas terceiras quartas-feiras de

cada mês, das 8h30 às 15h30, havendo recesso apenas no mês de janeiro.

CAPÍTULO VIII

Da Avaliação

Artigo 14 – A avaliação ocorrerá de forma constante, permitindo reconduzir os

trabalhos, bem como tomar novas rotas.

Parágrafo Único - A avaliação mais densa e formal será feita ao final do exercício de

cada ano na última reunião a ser realizada.

CAPÍTULO IX

Das Disposições Gerais

Artigo 15 – Este regimento entrará em vigor imediatamente após sua aprovação pela

maioria dos componentes do GECCATS.

Artigo 16– Os casos omissos serão resolvidos pela posição assumida pela maioria

simples dos membros do grupo.