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  • JOGO,

    CELEBRAO,

    MEMRIA E IDENTIDADE

    -

    Vera Regina Toledo Camargo Maria Beatriz Rocha Ferreira Olga R. de Moraes von Simson

    ( organizadoras )

    Campinas, 2011

    Reconstruo da Trajetria de Criao, Implementao e Difuso dos Jogos Indgenas no Brasil

    (1996 - 2009)

  • CAPA: Ritual Xerente de despedida do morto, realizado nos X Jogos Indgenas (2009).

    Foto de Roberta Tojal

    REVISO:Gilberto Machel

    DIAGRAMAO:Amilcar Jos Veiga DAngelis

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IEL UnicampCRB 8/8624

    J595Jogo, celebrao, memria e identidade: reconstruo da trajetria de

    criao, implementao e difuso dos Jogos Indgenas no Brasil (1996-2009) / organizadoras: Vera Regina Toledo Camargo, Maria Beatriz Rocha Ferreira e Olga Rodrigues de Moraes von Simson. Campinas, SP : Curt Nimuendaj, 2011.

    176 p. : il.

    ISBN: 978-85-99944-27-1

    1. Jogos indgenas. 2. ndios - Brasil - Usos e costumes. 3. ndios - Brasil - Histria. I. Camargo, Vera Regina Toledo, 1957-. II. Ferreira, Maria Beatriz Rocha. III. Simson, Olga R. de Moraes von.

    CDD: 796.1

    Direitos desta Edio:

    EDITORA CURT NIMUENDAJCaixa Postal 6100

    13083-970 - Campinas-SP - BrasilTel/Fax: 55 (19) 3287-0461

    E-Mail: [email protected]: www.curtnimuendaju.com.br

    1 Edio (2011)

  • SUMRIOAPRESENTAO PREFCIO

    PARTE I HISTRIA E SIGNIFICADOS

    Carlos Justino Terena ...................................... 15Entrevistas: Marcos Terena ................................................ 21 Rejane Penna Rodrigues ................................... 25

    Maria Beatriz Rocha Ferreira Jogos dos Povos Indgenas: identidade e figuraes ........................ 29

    Olga R. de Moraes von Simson Memria, celebrao tnica e identidade : os jogos indgenas como um caminho para o empoderamento ................................... 41

    Vera Regina Toledo Camargo Mediatizao da cultura e a interface com a histria: a divulgao e circulao do conhecimento ................................... 47

    PARTE II OS REGISTROS DO EVENTO

    Deoclcio GruppiJogos Estudantis Brasileiros e os Jogos dos Povos Indgenas ............ 55

    Roberta Tojal Imagens de corpos e falas de povos: as possibilidades do olhar da Fotoetnografia nos Jogos dos Povos Indgenas. ...........................67

    Claudeni Fabiana Alves Pereira Corpos pintados nos Jogos dos Povos Indgenas ............................ 85

    Marina Gomes Jogos Indgenas em pauta. O ndio retratado na imprensa brasileira .................................................................................. 95

  • PARTE III ASPECTOS ESPECFICOS

    Glria Kok & Maria Beatriz Rocha Ferreira Jogos nacionais: espaos de visibilidade da mulher indgena ...........111

    Liliane da Costa Freitag & Jos Ronaldo Fassheber Um estranho no ninho? O futebol nas identidades indgenas .........127

    Marina Vinha Jogos dos Povos Indgenas e a organizao Kadiwu .....................141

    PARTE IV RELATOS DE PESQUISA

    Melissa Mng Espero ter contribudo da melhor forma possvel ..........................156

    Ira Amana Martins de SouzaLinguagem visual e Divulgao nos Jogos dos Povos Indgenas ......158

    Rafael da Silva MacedoDa experincia tcnica ao reconhecimento das culturas .................161

    Mateus Souza BorgesA experincia de um estudante de Engenharia Mecnica..............164

    Aline Santos Souza ReatoPouco sabia sobre os indgenas, mesmo cursando ensino superior ....167

    Gediel do Prado A participao no projeto superou minhas expectativas ..................171

  • APRESENTAO

    Este livro resultado de um trabalho de equipe. Organizado e desenvolvi-do em torno do projeto JOGO, CELEBRAO, MEMRIA E IDENTI-DADE: Reconstruo da Trajetria de Criao, Implementao e Difuso dos Jogos Indgenas no Brasil (1996-2009).

    As discusses, trajetria e a execuo da pesquisa deram origem a esta coletnea. Os artigos e textos so construes que trazem para a reflexo algumas discusses importantes na rea. O livro apresenta as nossas reflexes e contri-buies sobre a produo e circulao do conhecimento proporcionado atravs desta pesquisa.

    Agradecemos ao Ministrio do Esporte, Universidade Estadual de Cam-pinas, Comit Intertribal - Memria e Cincia Indgena (ITC), as entidades que apoiaram a realizao da pesquisa e que tornaram possvel a circulao deste trabalho e aos bolsistas do projeto:

    Profa. Dra. Glria KokClaudeni Fabiana Alves PereiraRoberta Helena Vieira Tojal

    Me. Deoclcio Rocco GruppiMarina Gomes

    Aline Santos Souza ReatoIra Amana Martins de Souza

    Melissa Mng

    Mateus Souza BorgesGediel Prado

    Rafael da Silva Macedo

    As Organizadoras:

    Vera Regina Toledo CamargoMaria Beatriz Rocha Ferreira

    Olga R. de Moraes von Simson

  • PREFCIO

    No carnaval de 1927 o antroplogo Herbert Baldus, radicado em So Paulo, visitou a aldeia Guarani do Bananal (atual municpio de Perube), no litoral paulista. Da sua descrio daquela comunidade indgena consta a seguinte passagem:

    O jogo da luta muito apreciado. E h um campo de foot-ball que satisfaria a qualquer sport-club branco. Alguns tm at uniformes e sapatos de footballistas. (Baldus 1929:88)

    Os Guarani que Baldus encontrou ali, segundo seu prprio registro, pro-vinham de duas correntes migratrias: uma que viera diretamente do Paraguai, pelo norte do Paran, na primeira metade do sculo XIX, e outra que viera, em tempos mais recentes, do Rio Grande do Sul. Eram, ao que parece, bons fute-bolistas j na dcada de 1920, menos de 30 anos depois da criao do primeiro clube de futebol no Estado de So Paulo.

    Esse amlgama de tradies, ou incorporao indgena de elementos cul-turais externos, no , em si, algo de extraordinrio. A idia de culturas puras, intocadas ou sem misturas e influncias que uma concepo equivocada, mas corrente no senso comum das pessoas. No entanto, o fato de no ser extra-ordinrio no diminui sua importncia, seu interesse, e o valor de seu registro e sua cuidadosa interpretao caso a caso.1 Em boa medida, o presente livro contribui para isso, ao analisar essa forma contempornea de interao indgena, em mbito nacional, por meio dos Jogos Indgenas.2 Tomo a liberdade de situar, nessa Apresentao, antes de tudo, o contexto histrico do surgimento desses Jogos.

    Por volta de 1960, quando a capital da Repblica estava sendo transferi-da para Braslia (recm-inaugurada), ningum duvidava de que havia ndios no Brasil, na Amaznia. Muito pouca gente, nos centros urbanos, acreditava que

    1 Sobre o futebol em comunidades indgenas, veja-se o texto de Liliane Freitag e Jos Ronaldo Fassheber, neste volume.

    2 O texto de Marina Vinha, entre outras questes, retoma a expresso nossos esportes tradicionais, empregada no contexto dos Jogos, para mapear sua significao na com-preenso dos seus usurios indgenas.

  • 8

    houvesse ndios em outras regies do pas, fora da floresta amaznica. ndio era, claramente, sinnimo de floresta. E ndio + floresta era uma combinao que facilmente se identificava como territrio selvagem, terras virgens, atra-so civilizatrio e territrio a conquistar. Ensinava-se isso em livros didticos, ouvia-se isso da boca de polticos e militares, a mdia estampava isso a todo momento.

    Veio o golpe militar de 1 de abril (64), poca de ouro do imperialismo norte-americano no pas, amparado por uma alta hierarquia militar lesa-ptria. A Amaznia e suas riquezas (especialmente minerais!) no poderia passar ilesa. No perodo de maior represso poltica no Brasil, a partir do final da dcada de 1960, e por quase uma dcada, a construo da Transamaznica e suas Perimetrais in-vadiu, de maneira criminosa, os territrios de dezenas de povos indgenas, grande parte deles at ento sem contato com os no-ndios.3 No h contabilidade da populao indgena aniquilada nesse processo. 4 A populao brasileira voltava a ler notcias sobre os ndios (da Amaznia). No eram, como se pode imaginar, notcias sobre os massacres e desaparecimentos de povos inteiros. Havia censura, auto-censura e conivncia da imprensa brasileira com o poder militar. As notcias que circulavam (e com grandes fotografias nas revistas da poca) eram do en-contro com os ndios sem contato, que se referiam aos esforos de indigenistas da FUNAI para estabelecer relaes com certos grupos indgenas antes que as turmas de construo da estrada chegassem at eles.

    Esses esforos nem sempre eram bem sucedidos, mas mesmo quando o eram, no significavam qualquer garantia de sobrevivncia, dignidade ou respeito pelos grupos contatados. Um caso exemplarmente triste foi o dos festejados (na imprensa) ndios gigantes, ou Kren-akarore, contatados na regio do Rio Peixoto de Azevedo, em 1973.

    Em meados da dcada de 1970, um setor progressista da Igreja Catlica promoveu, favoreceu e incentivou o encontro de lideranas indgenas em mbito nacional, em uma dezena de chamadas Assemblias de Chefes e Lideranas Indgenas. Foram as primeiras e decisivas oportunidades de contato entre povos indgenas to distantes como os Makuxi (RR) e os Kaingang (RS), ou em si-tuaes de vida, vitalidade cultural e lingustica to diferentes como os Tapirap ou os Xavante (MT) e os Guarani ou os Terena (MS). Esses contatos criaram as condies necessrias para o surgimento do movimento indgena no Brasil, na segunda metade da dcada de 1970.

    3 Cf. Vtimas do Milagre: o desenvolvimento e os ndios do Brasil, do antroplogo norte-americano Shelton H. Davis (edio brasileira da Zahar Ed., 1978).

    4 Um pequeno exemplo: Egydio Schwade (maior conhecedor da histria recente dos povos indgenas na Amaznia) denunciou recentemente o desaparecimento de 2 mil ndios Waimiri-Atroari entre os anos de 1972 e 1975, perodo em que seu territrio permane-ceu sob controle militar direto (cf. http://www.cartacapital.com.br/ politica/2000-waimiri-atroari-desaparecidos-na-ditadura, acessado em 22.05.11).

  • 9

    A partir de ento, a populao brasileira passou a ver e ouvir os povos indgenas em um contexto absolutamente novo. J no se falava apenas dos ndios, eram os prprios ndios que passavam a falar de si mesmos e por si mes-mos. Um impulso maior se deu, finalmente, com o processo de redemocratizao do pas, na dcada de 1980. O Congresso Constituinte, nos anos de 1987 e 1988, marcou um momento decisivo no envolvimento e participao poltica dos povos indgenas, crescimento da articulao do movimento indgena em nvel nacional, e seu reconhecimento definitivo como parte integrante da nao brasileira. Em 1992, com a realizao da conferncia internacional Eco-92, no Rio de Janeiro, a presena e participao indgena foi igualmente importante para a visibilidade, agora internacional, da questo indgena no Brasil.

    Foi nesse novo contexto que a ong indgena Comit Intertribal,5 liderada pelos irmos Marcos e Carlos Terena, promoveu os I Jogos dos Povos Indgenas (Goinia, 1996).6 Esses Jogos, que passaram a ser anuais a partir do ano 2000,7 no alcanam a universalidade de representao dos povos indgenas brasileiros (o que praticamente impossvel nos dias atuais, por isso mesmo no alcanada tambm por qualquer evento nacional de iniciativa ou envolvendo esses povos), mas se firmaram como um evento original e nico. Segundo seus organizadores, os objetivos do evento so, em ltima anlise, uma grande celebrao e confra-ternizao dos povos indgenas, uma vez que no o move a idia de competio entre os povos propriamente. Um bom nmero de depoimentos e avaliaes dos prprios participantes, de diferentes etnias, destaca tanto esse valor de interao entre os povos, como de renovao cultural e reforo da auto-estima. Em outras palavras, a identidade tnica (afinal, so jogos indgenas) um componente bas-tante importante relacionado a esses eventos8, mas igualmente outras identidades (como a de gnero9).

    Seria ingenuidade, no entanto, no reconhecer que os Jogos funcionam tambm como espao de promoo e articulao poltica, no atual contexto de maior envolvimento dos povos indgenas com as instncias e instituies da sociedade nacional brasileira (o que inclui, obviamente, a poltica indigenista oficial).

    O fato que os Jogos Indgenas constituem um momento e uma instn-cia importante do movimento indgena no Brasil contemporneo. Registr-los,

    5 Comit Intertribal Memria e Cincia Indgena e Memorial dos Povos Indgenas.6 Ver entrevistas de Carlos Justino e Marcos Terena, e os textos de Maria Beatriz Rocha

    Ferreira e de Deoclecio Gruppi, neste livro. 7 A exceo foi o ano de 2006, em que no se realizaram. 8 Sobre isso, vejam-se, nesta obra, especialmente os textos de M Beatriz Ferreira, de

    Roberta Tojal, de Claudeni Pereira e de Olga von Simson (o desta ltima exatamente articulando memria, celebrao e identidade).

    9 Ver o texto de Gloria Kok e Maria Beatriz Ferreira.

  • 10

    conhec-los e interpret-los torna-se, assim, mais do que justificado, tanto como contribuio memria indgena, como memria poltica nacional, e como forma de compreenderem-se, a mdio e longo prazo, os caminhos trilhados pelo movimento indgena no pas, suas articulaes polticas internas e externas s sociedades autctones e suas relaes institucionais. Sobre essas ltimas, sempre caber perguntar-se em que medida em um movimento de mo dupla o movimento indgena articulado em aes como os Jogos Indgenas intervm na forma como se definem as aes pblicas em relao a esses povos, e em que medida a forma como se produzem as polticas pblicas em relao s minorias explica o formato de iniciativas indgenas como essas.

    O presente livro rene resultados de um trabalho coletivo na linha da pri-meira perspectiva aqui justificada, ou seja, aquela do registro da memria indge-na e no-indgena acerca dos Jogos Indgenas (em suas dez realizaes entre 1996 e 2009). Trata-se do trabalho do grupo de pesquisadores articulado em torno do projeto Jogo, Celebrao, Memria e Identidade: Reconstruo da Trajetria de Criao, Implementao e Difuso dos Jogos Indgenas no Brasil (1996-2009), coordenado por Vera Regina Toledo Camargo, Maria Beatriz Rocha Ferreira e Olga Rodrigues de Moraes von Simson (da Unicamp)10, e pelos indgenas Car-los Justino Terena e Mariano Marcos Terena, do Comit Intertribal, entidade criadora e organizadora daquele evento cultural-esportivo. O projeto subven-cionado pelo Ministrio do Esporte (igualmente um dos principais financiadores da realizao dos Jogos).

    A parceria com os prprios organizadores do evento torna pouco pratic-vel uma apreciao crtica independente acerca do papel poltico dos Jogos, de sua dependncia do poder pblico (e das boas relaes polticas e institucionais com ele), ou mesmo de sua representatividade em relao ao conjunto do movimento indgena. Esse no , porm, o foco dos trabalhos aqui reunidos. Ao contrrio, alguns textos at deixam transparecer um certo tom exageradamente otimista, ou pelo menos, no so devidamente dosados cum grano salis. No h, por exem-plo, meno alguma aos custos de cada edio dos Jogos e distribuio desses custos pelos diversos patrocinadores.

    Como dito, isso decorrncia tanto da constituio do grupo, como dos objetivos desse registro, cujo foco , mesmo, a memria do evento. Nessa pers-pectiva, os trabalhos reunidos permitem realmente um panorama do que foram as 10 edies dos Jogos Indgenas do Brasil, e prestam um servio inestimvel memria dos povos que deles participam. Igualmente contribuem grandemente memria brasileira em geral, ao reunir informaes, depoimentos e imagens

    10 Respectivamente integrantes do Laboratrio de Estudos Avanados em Jornalismo, do Laboratrio de Antropologia Bio-cultural da Faculdade de Educao Fsica e do Centro de Memria da Unicamp (CMU).

  • 11

    desses Jogos (alm de estatsticas, no que se refere cobertura da mdia11), o que tambm constitui material indispensvel avaliao do evento na esfera pblica. importante dizer que o registro fotogrfico est igualmente disponibilizado ao grande pblico12, do mesmo modo como a presente publicao tem verso impressa e verso digital aberta.

    Por fim, esse livro cumpre o importante papel de dar divulgao ampla a resultados de estudos realizados no mbito acadmico, o que consiste em uma forma de democratizao da informao.

    Wilmar da Rocha DAngelis13

    11 Ver texto de Marina Gomes, aqui publicado.12 A informao dada no texto de Vera Regina Toledo Camargo, neste volume, que trata

    dos outros recursos de divulgao do projeto. 13 Linguista (professor no Depto de Lingustica da UNICAMP) e indigenista, atua junto a

    populaes indgenas do Sul do Brasil desde 1977.

  • PARTE I

    HISTRIA E SIGNIFICADOS

  • ENTREVISTA

    CARLOS JUSTINO TERENA

    Liderana indgenaOrganizador dos Jogos dos Povos Indgenas, do Comit Intertribal Memria e Cincia IndgenaDiretor de Eventos Culturais e Esportivos da Funai.

    Entrevista concedida ao LABJOR/UNICAMP, Campinas-SP (entrevista por telefone).

    Entrevistadora: Diana Ruiz1

    Quais so os objetivos gerais do Comit Intertribal?

    O Comit foi criado em 1990, com a finalidade, inicialmente, de organi-zar a participao indgena na Eco-Rio 92, na questo poltico-ambiental. Com o decorrer do tempo encampamos o segmento da cultura e a criao dos Jogos dos Povos Indgenas, bem como a realizao de outros eventos regionais que estimulem as culturas indgenas, como os Jogos Tradicionais Indgenas do Par, Jogos Interculturais Indgenas de Mato Grosso, I Taa da Naes Indgenas de Futebol, Festival da Cultura Indgena de Bertioga (SP). Atualmente buscamos parceria na realizao de projetos sociais perenes.

    E os objetivos do Comit Intertribal nos Jogos Indgenas?

    Buscar recursos, coordenar e organizar a realizao dos Jogos, procurando obedecer todos os princpios das tradies de nossos ancestrais.

    1 Doutoranda pela Universidade Politcnica de Madrid (INEF) Espanha. Docente na Universidad Camilo Jos Cela, Facultad de Ciencias de la Salud (Madrid, Espanha).

  • 16

    Qual o significado dos Jogos dos Povos Indgenas para voc?

    Foram anos de pesquisas para conhecer a peculiaridade cultural de cada povo, formatar e organizar o evento, sob todos os aspectos: organizao social, lngua, danas, cantos, filosofias, ritos, crenas, espiritualidades e, principalmen-te, os esportes tradicionais. H que se lembrar que foram mais de 16 anos ba-tendo nos gabinetes dos ministrios e secretarias em busca de apoio. Pra mim uma realizao pessoal por saber que na prtica conseguimos resgatar em muitos povos, seus usos e costumes tradicionais que j estavam esquecidos, atravs dos jogos, bem como sua autoestima. Tudo isso enriqueceu mais meus conhecimen-tos em relao ao meu povo.

    Quando vocs decidiram criar os Jogos, que objetivos tinham?

    No h uma data especfica, as ideias foram nascendo naturalmente com o tempo. Minha vida foi pautada na msica e esporte. No final dos anos 70 fun-damos oficialmente a primeira seleo de futebol. Organizamos e coordenamos a participao da delegao indgena nos Jogos Escolares Brasileiros - JEB's por mais de seis anos. Foi nascendo assim a ideia de olimpadas indgenas. Realiza-mos alguns eventos culturais pilotos em aldeias. Os I Jogos dos Povos Indgenas em 1996, na cidade de Goinia, seria nosso laboratrio, onde todos os participantes queriam s jogar bola, os pdios foram montados para premiao com as meda-lhas de 1, 2 e 3, uma das provas de natao fora realizada em piscina olmpica, houve a disputa do voleibol. Poucos vieram com seus trajes tpicos. Mas algumas prticas das modalidades tradicionais foram realizadas; assim, os objetivos saam de nossa teoria para a prtica. A cada edio dos jogos as regras foram sendo criadas, aperfeioadas e fomos limpando, at chegar ao que atualmente. H que se dizer que demoramos um pouco, pois em cada estado que eram realizados os jogos, os professores de educao fsica insistiam em impor seus mtodos competitivos e isso causava uma certa confuso entre os jovens atletas participan-tes, mas mesmo assim fomos reeducando nossos parentes a pensar e a praticar o que eles tinham em suas tradies. Nossa equipe tambm ia sendo treinada e aperfeioada.

    Pode explicar o sentido do lema que vocs falam: o importante no competir e sim celebrar?

    Sempre tivemos como objetivo a celebrao de um grande encontro. As-sim, quando chegvamos em nossa aldeia e encontrvamos nossos parentes que no vamos h muito tempo, nossas vovs cantavam, choravam, traziam comidas e bebidas tpicas, ficvamos felizes. Foi assim que pensamos em colocar frente a

  • 17

    frente povos que nunca se viram, embora com todos seus costumes peculiares, primeiro para celebrar nossa existncia, nossa cultura e nossos esportes tradicio-nais. Embora ningum queira perder, mas nunca incentivamos, por exemplo, um Karaj e um Xavante, que foram inimigos no passado, a brigar por uma medalha, e sim a se respeitar. O que seria mais importante nesse encontro? O ganhar ou o celebrar?

    Fale sobre outros princpios do jogo como fogo, compartilhar, celebrar. Tem alguns outros princpios importantes tambm?

    So todos cerimoniais incorporados em nossos ritos tradicionais, princ-pios fundamentados na celebrao do encontro com a grande famlia: o repartir, o festejar no nascer, rito de passagem, formao do homem adulto, o ancio e nossa ida (morte), tudo ganha importncia em toda nossa existncia. Os Jo-gos nasceram nessa inspirao e com essas essncias, no h como fugir destes princpios.

    E tambm tem outras coisas importantes como o Frum. Como vocs fazem?

    Nos Fruns procuramos esclarecer numa linguagem mais acadmica, conversar com formadores de opinio como os professores, alunos universitrios, a prpria criana, buscando conscientizar o que uma cultura autctone e no um folclore. Todo este conhecer afasta o preconceito, pois o desconhecer gera discriminao.

    E quais so as diferenas entre os Jogos dos Povos Indgenas e os Intercul-turais, como os de Campo Novo dos Parecis?

    No h muita diferena, pois os objetivos so os mesmos, e do nosso interesse implantar estes jogos regionais para fortalecer as base das culturas das comunidades indgenas locais, bem como incentivar principalmente os jovens, que por muitas vezes sofrem discriminao; e tambm muitos indgenas no tm oportunidades de conhecer o que so os Jogos e seus reais objetivos.

    Na retrospectiva das nove edies dos Jogos dos Povos Indgenas voc acredita que atingiu os objetivos propostos?

    Estamos sempre afinando, faltam algumas coisas. H de saber que cada edio, embora sejam quase sempre as mesmas etnias, porm so de aldeias dife-rentes, buscamos sempre conscientizar a proposta e objetivos dos jogos. Um jogo nunca igual ao outro e vamos corrigindo.

  • 18

    Quais so os critrios para vocs escolherem os locais dos Jogos?

    Ao escolhermos uma cidade, procuramos o local que tenha o espao de ambiente natural: um parque, rio, mata, etc., onde vamos construir as ocas olmpicas; haver tambm espao para as prticas dos jogos e da cultura tradi-cional indgena; antes porm sempre procuramos trazer um guia espiritual, um paj para abenoar este lugar.

    E quais so os critrios para escolher as etnias?

    Se nossa proposta de jogos tradicionais indgenas, o critrio primordial para a escolha da etnia convidada ser o fator cultural - costumes originais: ln-guas, ritos, danas, cantos, instrumentos musicais, artesanatos, pinturas corpo-rais e principalmente os seus esportes tradicionais - que no obedece o critrio de escolha por estado da federao, pois trata-se de jogos intertnicos, ou seja, respeitando-se o mapa geogrfico indgena. Assim se refora um encontro das culturas e dos esportes.

    Cite os principais problemas que existem para a organizao dos jogos.

    Recursos humanos: temos dificuldades em montar uma equipe especiali-zada em muitos setores que o evento hoje requer, pois a organizao do Jogos co-mea com mais de um ano. Os primeiros e difceis contatos polticos para escolha da cidade, a busca de recursos, montagem do projeto, escolha de novas etnias; depois vem a execuo e operacionalizao dos jogos: transportes, alimentao, sade, segurana, hospedagens (ocas), arquibancadas, at o retorno da ltima etnia sua aldeia. Tudo isso requer pessoas que conheam todos os mecanismos, e com responsabilidade altura para que tudo saia a contento.

    Vou aprofundar em uma das atividades, que a corrida de tora. Ento, eu queria saber se a corrida de tora tem significados diferentes para as etnias que a realizam? E quando vocs trazem para os Jogos, quais so os signifi-cados que ela pode ter?

    Comeamos fazendo as demonstraes de cada etnia que possui ritual da corrida de tora, bem como outras atividades em suas respectivas culturas. Tnhamos, temos, muito cuidado, porqu cada povo que pratica tem sua pecu-liaridade e diversidade. Depois de mais de seis anos de estudo e atendendo soli-citao dos chefes indgenas, realizamos propriamente dito a corrida de tora entre etnias, sempre com muito cuidado de no esportilizar esse evento. Conseguimos chegar a um denominador comum e nos Jogos da cidade de Palmas, realizamos historicamente a primeira corrida de toras. Nossos parentes acharam legal essa

  • 19

    brincadeira de corrida entre eles, porm no deixamos de praticar na corrida as atividades demonstrativas tradicionais, com os ritos de cada povo. J houve solicitao para que outras modalidades tradicionais ganhem sentido competiti-vo, mas isso vai demorar um pouco.

    Agora vamos falar um pouquinho da relao com as outras entidades. Quais so os papis do Ministrio dos Esportes, Secretaria de Esporte de Estado, dos Municpios, na realizao dos Jogos?

    O Ministrio dos Esportes sempre foi nosso maior patrocinador e incen-tivador, no somente em relao aos Jogos; mas que hoje essa parceria se estendeu s aldeias com o projeto socioesportivo PELC, atravs de sua Secretaria Nacional de Desenvolvimento de Esporte e de Lazer SNDEL. Esperando que estas nossas inciativas sejam efetivadas atravs de outros programas.

    Para terminar, eu gostaria que voc falasse da ideia de vocs dos Jogos Mundiais Indgenas.

    Sempre nossa ideia foi muito alm das fronteiras, conhecer povos irmos indgenas de outros continentes: do gelo, do deserto, os africanos, asiticos... um outro sonho realizar os Jogos Mundiais Indgenas. Marcos [Terena] j conseguiu provocar um encontro com algumas lideranas indgenas dos quatro continentes, a partir dos irmos do Canad, em uma primeira reunio na cidade de Winnipeg, em 2009. Estamos trabalhando neste sentido com a criao de um comit; ser um novo desafio para todos ns. Temos duas situaes, sobre em qual modelo vamos trabalhar: jogos de alto rendimento ou os jogos intercultu-rais. Sei que nossos atletas indgenas brasileiros possuem condies de participar em qualquer modalidade, mas pra mim o mais importante o dilogo cultural.

    Que acima de tudo possamos afirmar nossos princpios, reverenciar e praticar os ensinamentos de nossos ancestrais, valorizando nossas razes tradicionais espirituais e culturais, fortalecendo-nos cada vez mais nas nossas verdades, como povos originrios e autnticos!

    Carlos Terena

  • ENTREVISTA

    MARCOS TERENA

    Articulador dos Direitos IndgenasMentor dos Jogos dos Povos Indgenas

    Fundador do 1 movimento indgena brasileiro, a Unio das Naes Indgenas

    Professor da Ctedra Indgena Itinerante - CII

    Entrevista gravada durante a cerimnia de revezamento da tocha Pan-Americana s margens do rio Sacre, na aldeia Quatro Cacho-eira, localizada a 33 km do municpio de Campo Novo do Parecis, MT (junho 2007)

    Acervo Radio TV UNICAMP.

    Entrevistadora: Vera Regina Toledo Camargo 1

    Primeiramente se apresente e fale sobre os Jogos dos Povos Indgenas

    Meu nome Marcos Terena, e sou um dos coordenadores dos Jogos dos Povos Indgenas, um dos idealizadores, e atualmente sou Presidente do Comit Intertribal, que a organizao que promove esses eventos. Nossa ideia sempre foi de lutar pelos direitos dos povos indgenas, os direitos humanos, e onde a gente contempla a questo da cultura, a questo educacional, bilngue, intercul-tural e tambm descobrimos a possibilidade de fazer valer esses direitos atravs da interculturalidade entre os povos indgenas, que muitas vezes no se conhecem e ao mesmo tempo conscientizando a sociedade brasileira do significado dos jogos,

    1 Local: Arena I Jogos dos Povos Indgenas Campo Novo dos Paresis (MT), 2007.

  • 22

    o que o sentido dos jogos sempre com palavras, mensagens de aes afirmativas para os povos indgenas por meio de amor prprio, resgate da identidade cultural. E com isso ns criamos os Jogos dos Povos Indgenas.

    Em 1996, ns fizemos o primeiro evento no Centro-Oeste brasileiro, numa terra tradicionalmente conhecida, que tem como smbolo os bandeirantes, que foram os grandes colonizadores do nosso pas, os caadores de ndios. Mas foi importante porque ao mesmo tempo ns precisvamos tambm conscientizar o Ministrio do Esporte de que essa atividade no era um campeonato de ndios, de esportes indgenas, mas tinha toda uma celebrao, uma tradio, um rito que a gente faz na aldeia e que precisava ser trazido pra cidade, onde geralmente o flecheiro mais capaz de atingir o alvo so os mais velhos, ento no havia a coisa da idade, a simbologia da fora fsica e ento esse tipo de trabalho e fez com que a gente fosse promovendo ao longo dos anos e em lugares diferentes o sentido dos Jogos dos Povos Indgenas.

    Nunca repetimos uma mensagem, sempre era uma novidade pra ns tam-bm, trabalhar com etnias diferentes, povos indgenas diferentes, regies dife-rentes, tudo aqui no Brasil. Ento, ns temos o orgulho de hoje afirmar que contribumos para promover o resgate da autoestima de vrios povos indgenas, que foram discriminados simplesmente pelo fato de sermos ndios, onde o ndio na cultura intelectual tinha que ser aquela pessoa pobre, a pessoa coitada, incapaz, e ns no somos assim, ns somos povos, ns temos soberania, temos autonomia econmica, autonomia cultural, e com isso a gente recuperou principalmente a questo da identidade com a terra, o orgulho de ser indgena.

    E tem um aspecto muito importante tambm dos jogos que a relao com a terra, com o meio ambiente. Todo lugar onde a gente promoveu os jogos, a gente respeitava o sistema local e o povo indgena local tambm. Ento essa diversidade foi mostrando que possvel a gente fazer uma olimpada indgena mundial com esses valores, que infelizmente os jogos Olmpicos deixaram pra trs trocando pela simples forma: competir, ganhar medalhas, chegar em pri-meiro lugar; se esqueceram dos valores humanos que ns queremos resgatar. E por isso a gente est se aproximando pouco a pouco desse cenrio aparentemente inatingvel que so os Jogos Olmpicos, Pan Americanos, ou Mundiais.

    H outros princpios dos Jogos dos Povos Indgenas?

    O outro princpio dos Jogos dos Povos Indgenas a celebrao com sm-bolos da natureza: a gua, a semente e o fogo. O fogo que ns chamamos o Fogo Sagrado, que um pouquinho diferente do da Tocha Olmpica - de carregar a tocha acesa - o fogo pros povos indgenas significa exatamente a possibilidade de voc construir novos cenrios de relacionamentos humanos; o fogo como se fossem iluminar novos caminhos. Ento quando a gente precisa iluminar a escurido a gente acende o fogo. Quando a gente precisa o calor humano a gente

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    acende o fogo, mas o fogo tambm pode matar, por isso que ele tem essa simbo-logia sagrada, da vida.

    E nesses Jogos Pan Americanos de 2007 ns conseguimos o apoio do Comit Olmpico para mostrar um pedao da histria das tradies indgenas, numa regio onde comea a Amaznia e onde termina um ecossistema como as guas do Pantanal, o Cerrado. E tambm pra mostrar o equilbrio que ns estabelecemos com a natureza, com as matas, com a gua pura, gua lmpida, pra conscientizar o homem branco de que ele no pode destruir a natureza. Essa gua pura, saudvel, vai alimentar os povos indgenas - alimentou ao longo do tempo - mas vai tambm assegurar a qualidade de vida do futuro. Ento por isso que ns levantamos o fogo, o fogo - esse fogo que est aceso a - na passagem da tocha do Pan Americano de 2007 aqui pelas Terras Indgenas.

    Pela primeira vez na histria um smbolo Olmpico passa por uma Terra Indgena. Ento, isso para ns foi importante para demonstrar que mais uma vez ns no fazemos o evento apenas para promover uma vaidade, um esprito individual, mas o direito ao coletivo, e tambm o direito terra e o respeito aos fatores da natureza como a gua, e como o fogo.

    NOTA DA ENTREVISTADORA M. MARCOS TERENA o organizador do Frum Social, um dos momentos significativos dos Jogos dos Povos Indgenas. Os palestrantes convidados so indgenas e no indgenas nacionais e internacionais, visando debater temas como edu-cao, sade, ecologia e juventude, comunicaes, utilizao de energia solar, reflexes sobre os jogos e esportes indgenas.

  • ENTREVISTA

    REJANE PENNA RODRIGUES

    Secretria Nacional de Desenvolvimento de Esporte e de Lazer1

    Entrevista ao Laboratrio de Estudos Avanados em Jornalismo Labjor, Unicamp (entrevista gravada em 10/06/2011)

    Entrevistadora: Vera Regina Toledo Camargo

    1. Em termos de polticas pblicas, qual a importncia dos Jogos dos Povos Indgenas?

    Os Jogos dos Povos Indgenas brasileiros so de fundamental importn-cia para as polticas pblicas, principalmente do esporte e do lazer. Estes jogos vm ao encontro do que prev o Artigo 217 da Constituio Federal de 1988 que inclui o esporte, em suas diferentes manifestaes, como direito de todo o cidado.

    O resgate, a valorizao e a difuso da cultura indgena so elementos ne-cessrios preservao do conhecimento e das manifestaes culturais advindas das mais de 220 etnias que vivem nas diferentes regies do Brasil. So valores e ritos que fazem parte do universo cultural das sociedades indgenas e que se manifestam em suas danas, cantos, pinturas corporais e em seus jogos esportivos que valorizam o ldico, o brincar e a expresso de sentimentos como a alegria.

    Os jogos transcendem a sua prpria realizao enquanto atividade fsica esportiva. Sua importncia vai alm da demonstrao de fora, habilidade, velo-cidade, destreza, cumprimento de regras, ao reafirmar valores sociais importantes como a cooperao entre as pessoas e o respeito natureza.

    Portanto, ao valorizar o universo cultural dos indgenas, principalmente sobre o olhar das suas prticas corporais tradicionais, um passo importante foi dado para a formulao e implementao de polticas pblicas especficas, visando garantir direitos sociais de populaes historicamente excludas.

    1 SNDEL, Ministrio do Esporte.

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    2. Qual foi o avano que houve nos ltimos anos da parceria entre o Ministrio do Esporte e o Comit Intertribal?

    O Comit Intertribal em parceria com o Ministrio do Esporte, atravs da Secretaria Nacional de Desenvolvimento de Esporte e de Lazer sero os res-ponsveis pela realizao, neste ano de 2011, da XI Edio dos Jogos dos Povos Indgenas. Ser o terceiro evento que realizaremos juntos. Do ano de 2007 at a presente data, podemos dizer que houve uma grande evoluo de confiana e de conhecimento para ambos os parceiros. Aprendemos muito durante este proces-so. A questo indgena hoje no nosso Ministrio tema de pesquisas, programas e outras aes polticas, cientficas e de tecnologia de gesto.

    Estes Jogos propiciaram tambm um avano nas aes intersetoriais do Ministrio do Esporte na parceria com outros Ministrios como: o Ministrio da Sade, da Educao, do Turismo, Justia, da FUNAI e da Secretaria de Pol-ticas de Promoo da Igualdade Racial da Presidncia da Repblica (SEPPIR).

    3. Os valores homologados para os Jogos tem aumentado nos ltimos anos. Estes valores significam um maior interesse do governo no reconhecimen-to das iniciativas indgenas?

    Que h uma maior valorizao por parte do governo verdade, mas eu acredito que os valores financeiros tambm tenham aumentado por conta de uma maior apropriao, por parte do Comit Intertribal, das possibilidades de financiamento para os Jogos. Um exemplo disso a Lei do Incentivo ao Esporte. Desde a edio passada o Comit apresentou proposta para a realizao dos jogos e obteve a chancela desta Lei para a busca de patrocnio.

    4. Qual a proporo destes valores comparados com os outros programas do Ministrio do Esporte?

    Esta comparao difcil de ser feita, devido s caractersticas diferencia-das dos demais programas. Mas podemos afirmar que esto aumentando.

    5. Gostaria de abordar algum outro assunto sobre os Jogos dos Povos Indgenas?

    Estes jogos tem sido de grande contribuio para retratar mudanas. Trouxeram demandas que retratam as diferenas das manifestaes culturais, das formas de organizao, enfim do prprio cotidiano que envolve as aldeias e os povos indgenas. Explicitam tambm as relaes ndios e no-ndios, suas tenses e negociaes. Trazem tambm desafios que nos levam a aprofundar os programas sociais existentes e a criao de novos programas, assim como infra-estrutura fsica e material, maior nmero de publicaes, pesquisas e eventos que

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    contribuam para a qualidade de vida dos povos indgenas. Estes jogos podem ser considerados uma ao afirmativa, j que do visibilidade questo indgena. Acredito que os jogos tambm tenham ajudado a sensibilizar a juventude ind-gena, motivando seu envolvimento e contribuindo na sua organizao. Um dos objetivos principais dos Jogos dos Povos Indgenas, que o de garantir a preser-vao das prticas tradicionais, com certeza tem sido alcanado. Outro fator que destaco o intercmbio e a integrao entre as etnias e delas com os no-ndios. Porm existem ainda outros desafios, como: envolvimento de maior nmero de etnias, a possibilidade da existncia de jogos regionais e a divulgao das publi-caes relativas rea do esporte e do lazer bilngues (traduzidos para algumas lnguas indgenas).

    Entretanto, em 2011 j estamos colhendo resultados da parceria e dos avanos trazidos pelos Jogos dos Povos Indgenas: o projeto e a implementao de trs Ncleos do Programa Esporte e Lazer da Cidade - PELC Indgena (Xavante, Terena e Wai Wai). So ncleos de esporte e lazer implantados nas referidas aldeias que desenvolvero prioritariamente prticas tradicionais ind-genas como: arco e flecha, corrida de toras, cabo de guerra, brincadeiras no rio e atividades culturais (dana e canto). Nosso desejo que as crianas e jovens indgenas sintam-se orgulhosos de suas tradies e que valorizem as experincias, histrias e vivncias dos mais velhos. E, caso seja do interesse dos indgenas, se-ro oportunizadas vivncias de esportes que no so da sua cultura como o vlei, o futebol, atletismo.

  • JOGOS DOS POVOS INDGENAS: IDENTIDADE E FIGURAES

    Maria Beatriz Rocha Ferreira1

    Faculdade de Educao Fsica UNICAMP

    As relaes sociais so complexas e h sempre tenses de poder imbrica-das nelas. O poder no est centrado e congelado nas mesmas pessoas e/ou grupos/instituies na histria da humanidade. Ele se desloca medida que ocorrem novas informaes, presses externas e internas, enfim no prprio processo de mudanas sociais na histria. Todos ns temos poder na sociedade, e a natureza e extenso da rea para decises dependem da estrutura e da constelao histrica da sociedade na qual ns moramos e agimos. (Norbert Elias, 1994)

    INDIGENISMO E IDENTIDADE

    Os Jogos dos Povos Indgenas representam importantes construes so-ciais entre lderes indgenas, o poder pblico e o setor privado, afirmando-se com lemas e identidades prprias no pas. Embora sejam um movimento nacional, estes se inserem num contexto de ideias e aes internacionais mais amplas so-bre indigenismo e identidades, naes e povos indgenas, ocorridas nos ltimos sculos. O texto se constri sobre essas ideias: uma sociedade de indivduos onde as iniciativas dos lderes indgenas originam processos de dilogo ainda inditos, com diferentes setores da sociedade do esporte.

    Na Amrica, as ideias e polticas que perpassaram na histria indgena so de incentivo aos aldeamentos, uma nica educao nas escolas fundamenta-da nas escolas no indgenas, eliminao da lnguas nativas deliberadamente ou sutilmente, desrespeito aos sistemas prprios de justia e resoluo de conflitos, suspenso das energias culturais daqueles que conhecem profundamente as foras da natureza, contato com os brancos essencialmente atravs do trabalho e da

    1 Mestre em Educao Fsica, Doutora em Antropologia. Professora Livre-Docente.

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    mestiagem, perspectiva de aculturao. Os ndios assimilados ou integrados sociedade que os envolve seriam, de alguma maneira, menos ndios. Os ndios ficariam (ou deveriam ficar, em ltima anlise) subjugados s foras dos governos a que pertencem (LIMA, 1992; CUNHA, 1992; MONTEIRO, 2001; NIE-ZEN, 2003).

    Estas ideias e polticas foram sendo modificadas, ou melhor, ressignifi-cadas no processo de mudanas sociais, especialmente no ltimo sculo, embora ainda permaneam congeladas em muitos setores da sociedade por desatualizao de informao ou mesmo resistncia devido a interesses poltico-econmicos.

    Os movimentos indgenas recentes, ou melhor, no sculo XX, refletem um fenmeno chamado de encurtamento global (global shrinking), associado a diversos aspectos, tais como a mobilidade das pessoas, aumento da transmisso dos meios de comunicao, ideias e doenas (NIEZEN, 2003). De acordo com o Niezen, uma das consequncias da globalizao uma revolta contra as foras de uma uniformidade cultural e contra a interferncia do Estado na poltica dos povos indgenas. (idem 2003, p. 2).

    As primeiras iniciativas de movimentos indgenas expondo-os como na-es e no sujeitos autoridade dos governos aos quais respondem, foram ob-servadas pelos ndios Canadenses e os Maori de Nova Zelndia em meados do sculo XIX. Entretanto os passos mais relevantes, nos Estados Unidos, sobre o entendimento de naes indgenas ocorre paralelo elaborao dos direitos humanos ps II Guerra Mundial (NIEZEN, 2003).

    As experincias dos povos indgenas para serem reconhecidos como na-es ou povos indgenas foram diferentes nos diversos pases. Estes povos com-partilham ideais comuns, como enfatizado por Niezen (2003, p. 23):

    todos participantes compartilham a mesma forma econmica de sub-sistncia, um territrio ou terra que antecede chegada dos coloniza-dores, um sistema espiritual que antecede chegada dos missionrios, e uma lngua que expressa tudo o que importante e distingue um lugar no universo. Mais importante, eles compartilham a destruio e perda destas coisas. Suas marcas culturais ganham uma autoconscin-cia significante quanto mais eles so diminudos pelas foras externas. Eles tambm compartilham o compromisso de encontrar estabilidade e justia restaurativa mesmo que isso signifique usar as prprias ferra-mentas de alfabetizao e de direito que, por outro lado, so responsveis pela opresso deles.

    Apesar dos movimentos indgenas terem avanado em diversos aspectos, se fortalecerem e propiciarem dilogos com diferentes setores da sociedade, a experincia nos mostra que h poucas chances de que as expectativas desses povos sejam integralmente atendidas pelo Estado e organizaes internacionais (NIEZEN,

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    2003). Inclusive porque os pontos de vista polticos muitas vezes diferem, as pre-missas bsicas das partes divergem, a lgica racionalista da sociedade ocidental difere da indgena, a burocracia emperra o desenvolvimento de projetos, entre outros aspectos.

    No Brasil, as transformaes scio-poltico-econmicas e a expanso de-mogrfica influenciaram as polticas de Estado para os povos indgenas. A re-configurao da noo dos direitos indgenas como direito histrico, sobretudo territorial, estimulou importantes estudos e polticas que buscavam nos docu-mentos coloniais os fundamentos histricos e jurdicos das demandas atuais dos ndios ou, pelo menos, dos seus defensores (MONTEIRO, 2001; MELATTI, 2007; MOTA, 2008). Em decorrncia desses fatos, etnias que se consideravam desarticuladas ou extintas (miscigenadas) comearam a ressurgir, como os casos dos Potiguara, da Baa da Traio; os Xoc, de Sergipe; os Patax, do sul da Bahia, entre outros. importante lembrar que a organizao de uma comuni-dade em torno de seus antigos costumes e/ou mesmo costumes ressignificados requer necessidade de separao territorial e cultural (MOTA, 2008). As prticas alimentares, artesanais, corporais, de cura, entre outras, at ento desativadas nas aldeias, comearam a ressurgir.

    Um outro indicador das mudanas sociais e da reconfigurao da noo dos direitos indgenas o censo demogrfico. Em 2000, a populao indgena era constituda por 701.462 pessoas, o que mostra um aumento dessa populao em relao ao Censo de 1991, o qual apontava uma populao de 294.128 pessoas. O processo da recuperao demogrfica, entre outros fatores, causado pelo crescimento vegetativo e a crescente identificao de pessoas e comunidades que no se valorizavam como um grupo tnico especfico, tais como o caso das etnias mencionadas acima, o autorreconhecimento e a melhora das fontes de informa-o sobre esses povos (AZEVEDO, 2008).

    Os movimentos polticos no pas, especialmente das dcadas de 70/80 influenciaram o processo de reconhecimento dos povos indgenas. As mudanas constitucionais foram possveis, conforme menciona Graziela SantAna (2010: 20), com o embate/debate do movimento indgena que ecoou no Brasil (e em toda a Amrica Latina) nos idos dos anos 70, momento em que outros movi-mentos sociais se empenhavam na luta pela redemocratizao do pas. Na poca, os indgenas receberam o apoio de diferentes profissionais como missionrios, antroplogos, jornalistas e artistas, todos empenhados em protestar contra a opresso atravs da luta pelos direitos dos indgenas sade, educao, autode-terminao e territrio. De acordo com a autora, o movimento indgena

    um fenmeno que abarca uma multiplicidade de aes, envolvimentos, articulaes, objetivos e direcionamentos, locais, nacionais e internacio-nais, dados, tambm, pelas especificidades de cada etnia, pelas relaes particulares destas com o Estado, com as agncias de apoio, pela inser-

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    o maior ou menor no contexto da sociedade nacional, entre tantas outras particularidades. No deve ser pensado como algo unssono ou linear, mas sim como movimentos repletos de fluxos e refluxos, cujos contextos vivenciados influenciam nos impactos e resultados diferencia-dos. (SANTANA, 2010, p. 20)

    Em decorrncia das articulaes, dos movimentos, das associaes, en-tre outros fatores, a partir da Constituio Federal de 1988 (BRASIL, 1998) os indgenas passaram a ser reconhecidos como cidados, como pessoa jurdica, conforme reza o Captulo VIII, em seus artigos 215 e 231: respectivamente, responsabiliza o Estado pela proteo e incentivo de todas as manifestaes cul-turais, e assegura aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies; admite, portanto, a pluralidade cultural caracterstica da nao brasi-leira, atribuindo Unio a tarefa de proteger e assegurar a existncia dessas etnias e culturas diferentes.

    Na educao, os indgenas tiveram aprovada a lei de Diretrizes e Bases para a Educao Nacional - LDB n 9.394/96. Na sade, a Lei 9.836/1999 insti-tui, no mbito do Sistema nico de Sade - SUS (criado e definido por esta lei, e pela lei no 8.142 de 28 de dezembro de 1990), o subsistema de ateno sade indgena, que cria regras de atendimento diferenciado e adaptado s peculiarida-des sociais e geogrficas de cada regio, entre outras medidas.2

    O associativismo tnico um dos fenmenos recentes na histria das mobilizaes e inseres polticas indgenas. Este surgiu nos processos de luta pela redemocratizao do pas e, mais especificamente, no campo dos embates e alianas com o poder tutelar e a busca por cidadania (SANTANA, 2010). Entre outras associaes, a autora descreve as prticas corporais dana, jogos e futebol como um dos motins da criao de algumas delas, visando salvaguardar e tornar visvel a cultura.

    JOGOS DOS POVOS INDGENAS

    Os Jogos dos Povos Indgenas representam importantes aquisies etnosocio-poltico-esportivas no Brasil. Alm do mais, so um movimento genuno, pois no h em outro pas evento semelhante a este. Os atores principais so dois lderes indgenas, M. Marcos Terena e Carlos Justino Terena, idealizadores dos Jogos dos Povos Indgenas. A vivncia esportiva destes lderes os iluminou na constru-o desta experincia.

    Na dcada de 80, estes irmos fizeram parte de um grupo de jovens ind-genas que foram estudar em Braslia, com bolsas concedidas pela Funai. L for-maram um time de futebol denominado Unio das Naes Indgenas UNIND (SANTANA, 2010, p. 101; e Terena, 2009). A convivncia entre eles propiciou

    2 http://www.socioambiental.org/inst/leg/pib.shtm

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    reunies e momentos de reflexo sobre as condies dos parentes, as polticas indigenistas, a estrutura da FUNAI e os movimentos indgenas que j ocorriam no pais. Este grupo comeou a se fortalecer politicamente, reivindicaes ocor-reram, o que incomodou o governo. Alguns desses jovens foram estimulados a voltar para as aldeias e outros decidiram ficar no Distrito Federal.

    Em abril de 1980, a UNIND lanou oficialmente a Associao, ainda sem uma diretoria definida ou estatuto, mas tinha na figura de Marcos Tere-na um dos grandes representantes da mobilizao e organizao do grupo, que contava, na poca, com estudantes das etnias Karaj, Bakairi, Xavante, Urubu-Kaapor, Bororo, Terena, Canela e Patax. Entretanto, em agosto de 1980 surge uma nova associo denominada Unio das Naes Indgenas, mas com a sigla UNI, liderada pelo Sr. Domingos Verssimo Marcos, tio de Marcos Terena (SANTANA, p. 103). Houve embates e acordos polticos entre os lderes e as associaes. Embora Marcos Terena tenha participado tambm da UNI, de-cidiu ficar na UNIND. De 1982 a 1985 deu continuidade s suas aes como movimento e no como associao, especialmente pelo fato de sofrer presso dos militares e no entrar em competio com a UNI (SANTANA, 2010, p. 104). Entretanto, foi somente com a nova Constituio em 1988 (BRASIL, 1998) que as associaes indgenas puderam ter o status jurdico para serem representantes legais de seus grupos e no precisarem depender exclusivamente da FUNAI para dar continuidade s muitas de suas atividades e projetos (convnios, financia-mentos, contratos).

    O Comit Intertribal de Memria e Cincia Indgena uma das asso-ciaes decorrentes dos movimentos sociais, polticos, de direito e vontades dos lderes. Um dos objetivos principais do Comit a realizao dos Jogos dos Povos Indgenas.

    As iniciativas dos irmos Terena propiciaram a organizao do primeiro evento. Transcrevemos trechos da palestra de M. Marcos Terena sobre os Jogos dos Povos relatando o seu incio:

    (...) Fomos [Carlos e Marcos Terena] falar com o Ministro da Educao e perguntamos ser que d para a gente trazer um ndio aqui [nos Jogos Escolares Brasileiros JEBS] para mostrar que ele um bom arqueiro? Trazer um ndio no meio dos estudantes? perguntou o Ministro. Sim, s para mostrar como atira uma fle-cha sem 'doping', sem anabolizante, deixa a gente atirar uma flecha. (TERENA, 2003, p. 19-20)

    A partir deste momento, eles se reuniram com o Pel, quando este era Ministro dos Esportes, e realizaram a primeira Olimpada que congregou 30 po-vos do Brasil em Anhanguera, Goinia (1996). E desde ento deram continuida-de ao movimento, organizando Olimpadas Indgenas em Marab - PA (2000),

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    Campo Grande - MS (2001), Marapani - PA (2002), Palmas - TO (2003), Porto Seguro - BA (2004), Fortaleza - CE (2005), Recife - PE (2007) e Para-gominas - PA (2009). Os nveis estaduais e regionais so realizados com outras denominaes, tais como: Festa Nacional do ndio que a partir de 2009 tornou-se Festa Nacional da Cultura Indgena (Bertioga), Jogos Indgenas (Par), Jogos Interculturais Indgenas (Campo Novo do Parecis), entre outros. Estes seguem uma mesma linha de pensamento, com maior ou menor enfoque em atividades esportivas ou culturais. Quem determina esse enfoque a Secretaria promotora, seja ela do Esporte e/ou Cultura.

    O lema, celebrar e no competir, e jogar sem dopping, sem anabolizantes, sem roubar, respeitar as diferenas, trazer o esprito de guerreiro, de autossupera-o, sem desejar vencer a qualquer custo, podem ser observados nos participantes durante as apresentaes, nas provas, nos embates e nas lutas (TERENA, 2003; TERENA, 2007).

    Os jogos representam uma rede complexa de atores e instituies. Eles so realizaes do Comit Intertribal de Memrias e Cincia Indgena, Minist-rio do Esporte, e em parcerias com os Governos dos Estados e Prefeituras. Tm apoio dos Ministrios da Justia, da Educao, da Cultura e da Sade, FUNAI e FUNASA, contando com suporte financeiro da Caixa Econmica Federal, Banco do Brasil, entre outros. Nos jogos h tambm a participao da mdia, das universidades (atravs dos pesquisadores) e das ONGs (ROCHA FERREI-RA et al., 2006; ROCHA FERREIRA et al. 2008; ROCHA FERREIRA & FASSHEBER, 2009).

    O evento uma representao de conhecimento ancestral e contempor-neo. A escolha do local passa por orientaes dos pajs, lderes indgenas e dos parceiros dos governos federal, estadual e/ou municipal. Os cenrios dos eventos congregam os seguintes momentos: (a) cerimonial de abertura com uma paje-lana; (b) desfile de abertura semelhante abertura de jogos olmpicos - entrada da tocha, seguida das etnias com roupas tpicas; (c) a arena - local dos jogos; (d) tendas de artesanatos; (e) frum social com convidados indgenas e no ind-genas nacionais e internacionais que tem por finalidade debater temas, como educao, sade, ecologia, juventude, comunicaes, utilizao de energia solar, reflexes sobre os jogos e esportes indgenas, entre outros (ROCHA FERREI-RA & FASSHEBER, 2009).

    As prticas corporais apresentadas nos eventos representam atividades de (i) sobrevivncia no cotidiano das aldeias, como arco, flecha e canoagem utiliza-dos na caa e pesca, (ii) inseridas em rituais como corrida de toras, lutas e (iii) outras, de carter geral como os jogos cabo de guerra e futebol. A diversidade dos povos indgenas pode ser vista nas plumagens, pinturas corporais, artesanatos, danas e jogos. Um locutor transmite os jogos, com algumas intervenes de lderes indgenas a fim de propiciar a interao com o pblico.

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    Os eventos denotam prazer, sensibilidade e emoes. Eles congregam construes mimticas. Mimesis um termo conhecido desde a antiguidade e utilizado em diferentes reas do conhecimento. O antroplogo Taussig (1993, p. xiii-xiv) o define como a capacidade humana de

    criar uma segunda natureza, de copiar, imitar, fazer modelos, explo-rar diferenas, ceder e tornar-se Outro. A maravilha da mimesis reside na cpia das caractersticas e do poder do original, at o ponto em que a representao possa at mesmo assumir a caracterstica e o poder.

    A capacidade mimtica humana propicia a construo de novas relaes sociais. E, portanto, esta capacidade humana de perceber, sentir, transformar em imagens mentais, reinterpretar e ressignificar favoreceu a arte, a msica, o jogo, o esporte, entre outros.

    Elias e Dunning enfatizam a importncia da mimesis no lazer3, e contex-tualizam da seguinte forma:

    o termo refere-se a este aspecto de um tipo de factos e ex-perincias de lazer. O seu sentido literal mas j na Anti-guidade era usado num sentido mais alargado e figurado. Referia-se a todas as espcies de formas artsticas na sua relao com a , quer possussem um carcter de representao ou no.

    Os autores continuam:

    desde as tragdias e sinfonias at ao pquer e roleta, no significa que se trate de representaes de factos da , mas antes que as emoes os sentimentos desencadeados por elas esto relacionadas com as que se experimentam em situaes da transpostas apenas e combinadas com uma espcie de prazer. Social e individual-mente, possuem uma funo e um efeito diferente sobre as pessoas.

    Elias & Dunnig (1992, p. 128) enfatizam que,

    na mimesis, referente ao lazer, ocorre um aumento de tenso: (...) aquilo que as pessoas procuram nas suas atividades de lazer no o ate-nuar de tenses, mas, pelo contrrio, um tipo especfico de tenso, uma forma de excitao relacionada, com frequncia, como notou Santo Agostinho, com o medo, a tristeza e outras emoes que procuraramos evitar na vida cotidiana.

    3 Os autores entendem lazer como o tempo fora das obrigaes (spare time) e no neces-sariamente do trabalho. Na compreenso de mimesis se fundamentam em Aristteles, o qual propunha na sua tese que o prazer um ingrediente necessrio ao efeito curativo, catrtico, das ocupaes de lazer (in Elias e Dunning, p. 123)

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    Esta tenso ou excitao podem ser observadas nos jogos indgenas na aldeia e durante os eventos na cidade. H uma descontinuidade do cotidiano para um tempo mtico, unio indivduo-cosmo, prazer, alegria, tristeza, dor, medo, raiva, momento transformador, passagem de um estado para outro, superao.

    Neste sentido, o jogador transcende s necessidades imediatas do cotidia-no, passando por uma esfera no-material. Como diz Huizinga (1993):

    (...) uma ao livre, que no-sria e conscientemente existe fora do es-prito da vida normal, que pode absorver completamente o jogador, que no tem uma relao direta concernente ao material ou a ganhos, que desenvolve num tempo e espao definidos e progride ordinariamente de acordo com certas normas, que evoca relaes sociais, que prefere estar envolvida por mistrios ou atravs de nfases camufladas em si mesmo como sendo diferentes do mundo convencional.

    A mesma prtica corporal realizada na aldeia trazida para a cidade e ressignificada com novos sentidos (ROCHA FERREIRA et. al. 2008). As ati-vidades apresentadas no evento, no representam a totalidade daquelas realizadas nas aldeias.

    Outra caracterstica notvel a oportunidade de intercmbios. Os parti-cipantes tm oportunidades de se encontrar e trocar experincias, negociarem, aprenderem uns com os outros, etc, em diferentes locais, nos alojamentos, nos traslados de um local para outro, no refeitrio, no artesanato, nas concentraes, nos rituais, nas pajelanas, na arena e no frum social.

    A pesquisa nos VIII Jogos dos Povos Indgenas em Fortaleza, Cear (ROCHA FERREIRA, et alii 2006), forneceu um material importante sobre os Jogos. A questo sobre o significado dos Jogos para os lderes e atletas ind-genas est transcrita abaixo:

    Os jogos integram as etnias. Discusso com os parentes. (Patax) importante para conhecer outras etnias. (Terena)Importante para saber das outras etnias e ver que esto pobres, com dificuldade e viver. Divulgar a cultura para branco. Os Paresi perdem a cultura. (Paresi)Importante para encontrar pessoas e trocar cultura. Nos jogos falamos com os parentes e ficamos com a famlia. (Wai-Wai)A gente vem para apresentar a cultura e trocar experincia. (Kaiap)Trocar experincia com os parentes. (Karaj) importante para saber das outras etnias. (Java) importante para a aldeia porque tem como trocar experincia.

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    (Xerente)Gostamos para trocar experincia e vender artesanato (Rikbaktsa)A importncia dos jogos tradicionais manter a cultura. Conversam mais sobre suas culturas do que poltica, pois no entendem muito de poltica. (Kaiw)Para o povo a importncia manter a tradio da etnia e tem muito interesse em conhecer e aprender as coisas dos brancos. Aqui o mais bonito. (Xikrin)Para o povo a importncia manter a tradio da etnia e tem muito interesse em conhecer outras etnias, parentes, contato com Carlos Te-rena (Matis)Melhorar a cultura, deixar viva a tradio, valorizao (Gavio Kyikatje)Apresentar, cantar e manter a tradio (Kanela)Mostrar sua cultura, tradio. Experincia boa. Oportunidade de co-nhecerem as cidades, os povos, vender artesanatos. Bom. Mostrar a cultura (Enawen-Naw coletiva e traduo Fabrcio)Encontro dos irmos ndios, resgate cultural, conhecer, trocar idias. (Yawalapiti)Nosso esprito encontros dos Povos Indgenas. Organizao indgena. Conhecermos uns aos outros. Naes indgenas. Gosta de valorizar cultura de nossa nao. (Suru)Consegue levar algumas coisas que sabem. Conhecimento das pessoas que no sabem. E passam a conhecer as culturas diferentes, lnguas, danas. (Krah)Representa a aldeia, divulga e mostra para ao branco que so diferen-tes. (Paracan)Mostrar a cultura para no perder. (Aikewara)Oportunidade para mostra a cultura indgena, continuar a tradio. (Manoki)Mostrar sua cultura, tradio. (Nambikwara)A importncia dos Jogos Indgenas continuar a cultura indgena. Eles tm pouco conhecimento da poltica e querem saber mais para no ficar na dependncia dos brancos, que no respeitam sua vontade e tambm no querem perder a identidade. (Manoki)

    Estes depoimentos refletem a vontade dos indgenas de mostrarem e re-vitalizarem a cultura, as tradies, os valores; de se tornarem visveis para uma

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    sociedade que no os reconhece e que acreditava no desaparecimento de vrias etnias; de propiciarem a troca de experincia entre as etnias, a unio entre elas; de venderem artesanatos, de aprenderem sobre coisas dos brancos, de aprenderem futebol, de mostrarem a diversidade na cidade e de serem respeitados (ROCHA FERREIRA et al, 2006).

    Na realizao dos jogos, os saberes ancestrais e o conhecimento tcnico cientfico dos poderes pblico, Ministrios e Secretarias dos Esportes e Cultura e reas afins do esporte, entrelaam-se e muitas vezes produzem tenses. Como diz Norbert Elias (1994), as relaes sociais so complexas e h sempre tenses imbricadas nelas.

    As lgicas das vrias entidades envolvidas nos Jogos dos Povos Indgenas so diferentes e muitos dos atores/auxiliares do esporte no indgenas tm for-mao profissional distante da filosofia e cultura indgenas. O exerccio do poder influenciado pela formao profissional das pessoas. A linguagem do esporte como pensamento hegemnico dos diferentes setores da sociedade pode dificul-tar a compreenso do outro. O esporte tem uma caracterstica racionalista, com regras pr-estabelecidas e de carter competitivo. E o ampliar da conscincia e um alargamento das tenses requer tempo e experincias compartilhadas.

    A gerncia dos recursos financeiros e muitos aspectos da infraestrutura dos jogos ficavam sob o controle do Gestor/Governo. Este fato foi causa de embates e discordncias, no modo de realizar os jogos na prtica por muitos anos. Nos X Jogos em Paragominas PA em 2009, pela primeira vez, os Jogos dos Povos Indgenas ficaram sob o controle financeiro, tcnico e administrativo do Comit Intertribal. Foi um ganho histrico, poltico e tcnico para todos - Comit e Ministrio do Esporte, atravs da Secretaria de Esporte e Lazer.

    CONSIDERAES FINAIS

    Os Jogos dos Povos Indgenas so construes mimticas, propiciam novas formas dos povos se reunirem e exercerem a alteridade, construrem identidades, perceberem suas diferenas e superarem obstculos. So espaos que envolvem um grande nmero de etnias, propiciam trocas de saberes e de encaminhamentos polticos, em carter regional, nacional e internacional.

    Representam momentos de visibilidade e de reconhecimento da diver-sidade cultural, de fortalecimento do parentesco, da unidade na diversidade. As disputas polticas e tcnicas so resolvidas no processo de realizao dos Jogos. A cada edio, novidades acontecem e a experincia nas negociaes propicia novos acordos.

    O evento tem um sentido de aproximao do conhecimento milenar e contemporneo na presena de diferentes atores, lderes indgenas, atletas in-dgenas, poder pblico, representantes profissionais/tcnicos e personalidades nacionais e internacionais de diferentes setores da sociedade (dependendo da

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    temtica) e universidade. A utopia o importante celebrar e no competir vem se tornando realidade.

    O Comit Intertribal Memria e Cincia Indgena (ITC), representado pelos irmos Terena, d sentido aos jogos e luta pela continuidade do lema o importante celebrar e no competir. O Ministrio do Esporte, nos ltimos anos, atravs da Secretaria de Esporte e Lazer, avanou nas negociaes com o Comit e passou a gesto e controle dos Jogos para esta entidade, como reconhe-cimento de alteridade e identidade indgena no pas.

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  • MEMRIA, CELEBRAO TNICA E IDENTIDADE: OS JOGOS INDGENAS COMO UM CAMINHO PARA O EMPODERAMENTO

    Olga Rodrigues de Moraes von Simson1

    Pesquisadora do Centro de Memria da UNICAMP

    Memria a capacidade humana de reter fatos e experincias do passado e retransmiti-los s novas geraes. Esse registro se faz atravs de diferentes su-portes: voz, imagem, textos literrios (poesia, biografias), filmes, obras pictricas, MAS TAMBM ATRAVS DE CELEBRAES.

    Existe uma Memria Individual que aquela guardada por um individuo e se refere s suas prprias vivncias e experincias, mas guarda tambm aspec-tos da memria do grupo social a que este individuo pertence e onde ele foi socializado.

    Isso acontece porque pelo processo de socializao, realizado por insti-tuies sociais como a famlia, a igreja, a escola, o partido poltico, os movimen-tos sociais e pelas grandes celebraes, que constituem as bases para a formao da nossa memria individual.

    Existe tambm a Memria Coletiva que aquela formada pelos fatos e aspectos julgados relevantes pelos grupos dominantes de uma determinada socie-dade e que nos transmitida como a memria oficial desta mesma sociedade.

    Essa memria oficial fica gravada no que chamamos de lugares da mem-ria que so memoriais, monumentos, quadros famosos, obras literrias, msicas e CELEBRAES que expressam a verso sobre o passado que o grupo do-minante deseja ver veiculada e difundida.

    Por outro lado existem as memrias subterrneas ou marginais, que cor-respondem s verses do passado construdas pelos grupos dominados. Elas no esto monumentalizadas e s se expressam, de maneira indireta, de forma meta-frica ou ritualizada em festividades familiares ou de pequenos grupos, ou ainda,

    1 Professora Colaboradora do DECISE Departamento de Cincias Sociais na Educao FE/UNICAMP.

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    mais diretamente, quando emergem conflitos sociais. Uma maneira de reco-nhecer e de registrar essas memrias subterrneas possibilitada pelas pesquisas com o mtodo da Histria Oral, uma metodologia de pesquisa que nos permite buscar na oralidade a base para a reconstruo dessas memrias dominadas.

    Todas essas consideraes se aplicam nossa sociedade, 'branca', capita-lista, crist, ocidental, cujos membros so referidos (em ingls) pela abreviatu-ra WASP (white, anglo-saxon, protestant). Entre ns, brasileiros da sociedade capitalista urbano-industrial, poderamos criar uma sigla semelhante, expressa na abreviatura BRABC (brasileiro branco cristo). Assim como os wasps no representam, de forma alguma, a maioria dos habitantes da Amrica do Norte, mas detm certamente o poder poltico e econmico naquela sociedade, tambm os brabcs seriam uma minoria neste pas tropical, formado pela miscigenao dos trs grupos tnicos constituidores da nossa nacionalidade: europeus, afro-des-cendentes e indgenas. Mas tambm entre ns o poder poltico e econmico no est em mos dos representantes das etnias de cor.

    Os nossos compatriotas de origem afro-brasileira vm realizando um importante trabalho de reconstruo e perpetuao da sua memria ancestral, atravs de numerosos grupos organizados em pontos de cultura em vrias regies do nosso pas. Em dcadas mais recentes foram criados no Norte, Nordeste e Centro-Oeste memoriais voltados para a perpetuao da trajetria secular de luta e resistncia afro-brasileira, reafirmando a importncia da contribuio cultural dessas etnias na constituio da brasilidade.

    Observamos, entretanto, que a batalha das comunidades indgenas em busca da reconstruo de sua prpria trajetria histrica (que em nosso pas ainda mais longa do que a saga africana), com o objetivo de reconstruir e valorizar sua identidade tnica e cultural, ainda est apenas comeando.

    Nesse sentido a importncia da pesquisa que ora relatamos indiscutvel e constitui uma oportunidade excepcional de atravs de uma parceria entre a uni-versidade e as entidades representativas dos povos indgenas possibilitar o re-gistro e a anlise de um movimento mpar de reconstruo histrico-identitria, cuja forma original e inovadora, ao se expressar atravs de celebraes esportivas e ldicas. Tais festividades, reunindo numerosas etnias indgenas, foram regular-mente realizadas nos ltimos dez anos em espaos apropriados e especialmente preparados para receber os assim denominados JOGOS INDGENAS.

    A originalidade dessa reconstruo histrico-identitria indgena possui uma caracterstica que deve ser salientada: se faz de maneira pacfica, alegre e envolvente, ao utilizar a estratgia da celebrao esportivo-cultural para difundir suas prodigiosas riquezas culturais, sendo tambm capaz de cativar o pblico e difundir, de maneira prazerosa, sua viso de mundo, seu orgulho tnico, alm dos objetivos de suas lutas afirmativas.

    A essa capacidade de lutar por seus objetivos, sem se valer de qualquer

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    agressividade, mas sim criando ocasies de fruio e de prazer chamamos, em trabalho anterior, de resistncia inteligente. Ao pesquisar a trajetria da cultura afro-brasileira na regio sudeste do nosso pas, notamos que ela se utilizou a prin-cpio das luxuosas e ritualizadas procisses coloniais dos sculos XVIII e XIX, valendo-se, posteriormente, da riqueza visual e musical dos festejos carnavalescos para construir, com maestria, uma trajetria bem sucedida de luta e afirmao tnica, em uma sociedade branca e discriminadora como a nossa.

    No projeto de pesquisa, cujos resultados finais agora relatamos e que teve como objetivo reconstruir, registrar e avaliar a riqueza da memria de mais de uma dcada de jogos indgenas, a oralidade foi importante, mas tambm a visua-lidade esteve presente, com toda a sua capacidade de captao da pluralidade das manifestaes e salientando as particularidades das numerosas celebraes que pretendamos conhecer e registrar.

    Na verdade foi a especificidade da cultura indgena, que se manifesta pre-ferencialmente atravs da fora dos vrios e mltiplos sons e da beleza das ricas imagens, fator constituinte e indispensvel nas celebraes dos nossos silvcolas, o que acabou determinando quais seriam as estratgias metodolgicas a serem utilizadas pela equipe de investigadores.

    Com a preocupao de divulgar os resultados da pesquisa no s no espao das instituies cientficas e universitrias, mas tambm entre a sociedade mais ampla, buscamos maneiras mais acessveis e eficazes de transmitir as concluses da investigao para um pblico no acadmico. Sendo assim, novamente a orali-dade e a visualidade se mostraram caminhos privilegiados para obter os melhores resultados. A equipe optou, ento, pela realizao de vdeos que discutissem o fe-nmeno dos jogos indgenas e pela montagem de um site que apresentasse textos, imagens fixas e imagens em movimento resultantes do trabalho investigativo.

    Porm, dentro de uma posio terico-metodolgica que afirma ser tarefa indispensvel de todo projeto de pesquisa, realizado por investigadores social-mente conscientes e participantes, a devoluo dos resultados de forma transpa-rente, em linguagem acessvel e captvel pelos membros do grupo pesquisado, esta foi certamente uma atitude promotora de processos de empoderamento, voltados para tais grupos.

    Por empoderamento compreendemos um processo de emancipao in-dividual, mas tambm de aquisio de uma conscincia coletiva da dependncia social e da dominao poltica.

    Essa atitude busca contribuir com os parceiros de pesquisa, para que pu-dessem incorporar de maneira rpida e eficiente o conhecimento produzido pelos pesquisadores e assim crescer na busca de melhores condies para engendrar suas lutas socioculturais e polticas.

    Assim, o fato de termos como parceiros de pesquisa os grupos indgenas, que so, em sua maioria, grafos, constituiu uma das razes mais fortes que nos

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    levou a optar pelas metodologias que utilizam o som e a imagem. Estvamos conscientes de que elas nos permitiriam a elaborao de materiais de devoluo adequados, na forma de vdeos, sites na internet, e exposies fotogrficas, todos permitindo uma compreenso muito mais efetiva dos resultados finais, do que a tradicional forma livresca de apresentao das concluses de pesquisa.

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  • MEDIATIZAO DA CULTURA E A INTERFACE COM A HISTRIA: A DIVULGAO E CIRCULAO DO CONHECIMENTO

    Vera Regina Toledo Camargo1

    Pesquisadora Labjor/ UNICAMP

    Para assegurar sua coeso,as sociedades dotadas de memria

    valem-se da histria;as sociedades sem memria,

    da comunicao.(Lucien Sfez, 1994)

    Mediatizao o termo utilizado por Muniz Sodr (2001) para carac-terizar a vinculao das instituies com os meios de comunicao, e o estabe-lecimento da produo de bens simblicos ou culturais. Neste sentido, o que se compreende por bens e consumo culturais passa necessariamente atravs das aes dos meios de comunicao. Um filme, um livro, uma fotografia ou uma obra de arte assumem o papel de produto cultural. Bourdieu (2005) mencio-na dois enfoques importantes acerca dos bens simblicos: so caracterizados ao mesmo tempo como significaes e mercadorias. No entanto, a valorao destes bens, seja especificamente cultural ou econmica coexiste independentemente uma da outra.

    Autores importantes j abordaram conceitualmente os bens culturais e as formas de consumo, assim como a necessidade de posse, como Benjamin, Baudelaire e Bourdieu. Nesse panorama de culturalizao muito importante compreender as relaes, as ideologias e os poderes que esto presentes nestas estruturas. Proporcionar uma democratizao do acesso cultura e aos bens cul-turais atravs da mdia o nosso postulado.

    1 Doutora em Comunicao com Ps-Doutorado em Multimeios.

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    A produo cultural a que nos reportamos apoia a iniciativa de que os prprios atores do processo cultural possam criar, dar vozes e registrar suas atividades culturais em detrimento da cultura massificada, dominante, ou da interferncia de outras culturas, na divulgao do seu conhecimento e ainda ao criar todo o suporte para que tenham tambm um canal para divulgao.

    Para Mendez (2002), o jornalismo deveria ir alm da sua forma de pro-duo do conhecimento, construindo-se diariamente como se todos os dias o jornalista assentasse um tijolo sobre o conhecimento que a humanidade tem acesso atravs dos meios de comunicao. Ao jornalismo no cabe construir toda a histria, mas colaborar para que todos possam conhecer, entender e ser crticos acerca dos fatos histricos.

    Na entrevista publicada pelo Atrator Estranho2, Nicolau Sevcenko compa-ra a atuao profissional do jornalista com a do historiador. O jornalista, segundo ele, deveria utilizar-se dos argumentos da histria para relatar os acontecimentos, tendo os meios de comunicao como o lugar das mltiplas histrias, e atuao do historiador caberia acompanhar, refletir e interpretar os passos da humani-dade. Esse paralelo tambm se distancia quando o historiador deve cumprir o rigor historiogrfico e o jornalista seguir as regras e tcnicas especficas para a construo do texto jornalstico. Reforando a tese de Sevcenko, o jornalista constri a histria do cotidiano, a vida diria das pessoas, e traz as informaes sobre os acontecimentos presentes, enquanto o historiador salvaguarda as aes do passado.

    Comunicao e Histria esto muito prximas. A utilizao dos supor-tes miditicos pelos socilogos, como objetos de anlise, j os levou a escrever grandes pginas na nossa histria, tendo artigos, anncios de jornais, fotografias e outros como fontes de informao. O foco destas pesquisas tinha como objeti-vo reconstruir um cenrio histrico do qual no restavam outros registros. Jos Marques de Melo em Estudos de Jornalismo Comparado (1972), e em especial no captulo A Imprensa como objeto de estudo cientfico no Brasil: Contribuies de Gilberto Freyre e Luiz Beltro, revela o quanto os jornais colaboraram para a (re)construo de vrios perodos da nossa histria. A trajetria de Gilberto Freyre apresenta sempre o seu envolvimento com o campo da comunicao.

    Contemporaneamente percebemos que a notcia presente nos meios de comunicao est relacionada a um fato, um relato e tambm ao pblico alvo, mas o ponto central que a notcia deveria ser interessante para um grande n-mero de pessoas. Portanto, o jornalismo deve estar sempre em busca do novo, de um novo saber e, portanto, de um novo conhecimento sobre a sociedade em que em que vivemos.

    2 A revista Atrator Estranho uma publicao do Centro de Estudos e Pesquisas em Novas Tecnologias, Comunicao e Cultura da ECA/USP.

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    Com esse cenrio traado entre a cultura e histria, focaremos o ato de co-municar e a divulgao do conhecimento. Se entendermos a comunicao como um processo de inter-relaes, aproximando pessoas e conhecimentos, podemos compreender seu papel e a importncia para a sociedade como um instrumento para o desenvolvimento social.

    Ramrez y Moral (1999) afirmam que os prprios meios so, em si mes-mos, elementos culturais j que so transmissores de conhecimentos, construin-do valores culturais e possibilitando uma difuso de informaes, e a associao com a rea da antropologia amplia mais esse entendimento, pois um grande acervo imagtico no ser somente tratado no aspecto da imagem, mas tambm com a possibilidade de salvaguardar uma cultura.

    Resgatando a parceria entre a Comunicao e a Antropologia, em 1895 o doutor Felix-Louis Regnault, da Sociedade de Antropologia de Paris, foi um marco muito importante, pois ele registrou, atravs da fotografia, cenas de uma mulher africana, com o objetivo de estud-la, inaugurando com sua ao o que receberia o nome de Antropologia Flmica, preconizando a utilizao dos meios de comunicao em antropologia. Desta forma, os meios de comunicao se convertem em um objeto de estudo, porque neles podemos perceber o homem pelo prisma miditico, em suas aes, atitudes e, mesmo, em suas atividades. Tambm encontramos na mesma corrente terica Claudine de France, antro-ploga, cineasta e professora da Universidade de Paris, que utilizou a fotografia em seus estudos.

    Andra Tonacci, produtora do InterPovos de So Paulo e da Veneta Vdeo, do Rio de Janeiro, tambm entrou para a histria como a pioneira no Brasil a dedicar-se a realizar documentrios nas aldeias indgenas. A Veneta V-deo trabalhou com os Kayap e com os Ticuna do Rio Solimes. Colocou em prtica, entre os ndios, os conhecimentos e tcnicas assim como a utilizao dos equipamentos.

    Infelizmente estas iniciativas tiveram um tempo curto devido aos altos custos e falta de uma rede de distribuio, que no existia na poca.

    Em 1986, Vincent Carelli, fotgrafo do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), e com participao da antroploga Dominique T. Gallois, fundou uma organizao sem fins lucrativos em que desejava ampliar suas experincias, e in-troduziu o uso do vdeo entre os Nambiquara de Mato Grosso e o povo Gavio, do Par. Registraram um ritual de iniciao feminina com os Nambiquara. Fato interessante foi quando realizaram uma segunda festa da puberdade, especial-mente para ser registrada pela cmera.

    O audiovisual importante nestes contextos porque costumes tradicio-nais abandonados depois do contato com a civilizao - como a perfurao de narizes, lbios e danas - foram esquecidos, e atravs do registro, reaparecem no

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    vdeo intitulado A festa da moa (1987).Destas experincias nasce o projeto Vdeo nas Aldeias, em 1987, com o

    objetivo de, atravs de cursos formadores, capacitar os indgenas para operar cmeras digitais e tambm priorizar a participao no processo de roteiro, edio e produo. Esta parceria e os produtos audiovisuais por ela gerados ganharam muitos prmios importantes.

    Em 2005, com a necessidade de documentar as investigaes antropolgi-cas e a possibilidade de utilizar a linguagem audiovisual para as aes do grupo de investigadores, documentando e resgatando a comunicao intercultural, nasce a parceria entre a pesquisadora da Faculdade de Educao Fsica, Profa. Dra. Maria Beatriz Rocha Ferreira, e o Laboratrio de Estudos Avanados em Jorna-lismo, Labjor, ambos da Unicamp, com o Grupo de Investigao em Tcnicas Aplicadas Atividade Fsica e o Esporte, da Universidade Politcnica de Madri, Espanha, com o Prof. Dr. Manuel Hernndez Vzquez. Vrios projetos foram desenvolvidos e, com a entrada da Professora Dra. Olga de Moraes von Simson, do Centro de Memria da Unicamp, houve uma grande aproximao com a questo da memria e a oralidade, acrescentando instrumentos importantes para a anlise da trajetria dos Jogos Indgenas.

    Realizadas estas relaes iniciais entre comunicao, cultura, histria e antropologia, quero registrar a construo, trajetria e implementao dos canais e suportes miditicos que auxiliaram no contexto do projeto. Foram pensados para que pudessem servir ao mesmo tempo como um banco de dados e ser um acervo catalogado sobre os jogos, que tambm proporcionasse a visibilidade do projeto, possibilitando a aproximao entre a comunidade externa e o acervo cientfico e cultural sobre os jogos dos povos indgenas.

    Iniciamos com a construo coletiva do site do projeto que est hos-pedado na pgina: www.labjor.unicamp.br/indio. Este proporcionou ao mesmo tempo o registro e as aes do projeto e tornou-se referncia para as questes dos jogos dos povos indgenas, sendo que atravs do acervo de seu banco de dados enfatizamos: os grupos de pesquisa, a bibliografia e pesquisas na rea, os aspec-tos histricos e conceituais sobre os jogos e a riqueza do material audiovisual. O site possui uma linguagem clara e objetiva, voltado para a divulgao cientfica, aproximando os pesquisadores, seu objeto de pesquisa e a sociedade.

    Outra inquietao do grupo de pesquisadores foi em relao ao acer-vo das fotografias, entrevistas e vdeos realizados sobre a construo das edi-es dos jogos. Tambm foi objetivo do projeto compreender como a mdia pautou os Jogos e a construo das notcias. Construmos ento um ban-co de imagens com aproximadamente cinco mil fotografias. Esto inseridas em um banco de dados na web e podem ser visitadas e consultadas a partir de palavras-chave, sendo necessrio ter uma senha para entrar no sistema.