livro e iconografia

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Cultura Revista de História e Teoria das Ideias vol. 21 | 2005 Livro e Iconografia João Luís Lisboa (dir.) Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/cultura/2772 DOI: 10.4000/cultura.2772 ISSN: 2183-2021 Editora Centro de História da Cultura Edição impressa Data de publição: 1 janeiro 2005 ISSN: 0870-4546 Refêrencia eletrónica João Luís Lisboa (dir.), Cultura, vol. 21 | 2005, « Livro e Iconograa » [Online], posto online no dia 31 julho 2018, consultado a 29 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/cultura/2772 ; DOI : https://doi.org/10.4000/cultura.2772 Este documento foi criado de forma automática no dia 29 setembro 2020. © CHAM — Centro de Humanidades / Centre for the Humanities

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Page 1: Livro e Iconografia

CulturaRevista de História e Teoria das Ideias 

vol. 21 | 2005Livro e IconografiaJoão Luís Lisboa (dir.)

Edição electrónicaURL: http://journals.openedition.org/cultura/2772DOI: 10.4000/cultura.2772ISSN: 2183-2021

EditoraCentro de História da Cultura

Edição impressaData de publição: 1 janeiro 2005ISSN: 0870-4546

Refêrencia eletrónica João Luís Lisboa (dir.), Cultura, vol. 21 | 2005, « Livro e Iconografia » [Online], posto online no dia 31julho 2018, consultado a 29 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/cultura/2772 ; DOI :https://doi.org/10.4000/cultura.2772

Este documento foi criado de forma automática no dia 29 setembro 2020.

© CHAM — Centro de Humanidades / Centre for the Humanities

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SUMÁRIO

Ver e lerJoão Luís Lisboa

Encontro sobre História do Livro

L’histoire du livreDe la tentation d’une histoire globale à une réflexion sur les systèmes de communicationHenri-Jean Martin

Histoire du livrePoints de vue sur l’évolution d’une disciplineJean-Dominique Mellot

Iconografia do Livro Impresso

Desencontros entre texto e imagem “ilustrativa”, no Flos Sanctorum de 1513Fr. António-José d'Almeida OP

Poder de convencimento e narração imagética na pintura portuguesa da contra-reformaA influência de um gravado segundo Seghers numa tela do Convento dos Paulistas de PortelVítor Serrão

Pierre-Antoine Quillard (c. 1703-1733)Os livros e a ilustração na gravura joaninaNuno Saldanha

Fontes para a iconografia teresiana no convento do Santíssimo Coração de Jesus à EstrelaSandra Costa Saldanha

As gravuras impressas na Academia dos Humildes e IgnorantesPaulo A. Fonseca

A imagem nos manuais do ensino primário do Estado NovoFilipe Mascarenhas Serra

Paisagens sem rostoPara o estudo da primeira edição ilustrada de A SelvaLiliana Dias Carvalho

Itinerários de Leituras

Lisboa - Rio de Janeiro - FortalezaOs caminhos da coleção Biblioteca do Povo e das Escolas traçados por David Corazzi, Francisco Alves e GualterRodriguesGiselle Martins Venâncio

« Vejo, agora que estou sonhando »O problema do sonho e da visão em comentários seiscentistas às Trovas de BandarraLuís Filipe Silvério Lima

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Page 3: Livro e Iconografia

O ensino e a valorização profissional do jornalismo em portugal (1940/1974)Fernando Correia e Carla Baptista

Diálogos Escritos

História cultural e história das idéiasdiálogos historiográficosJosé D’Assunção Barros

Os alemães e a modernidade(vistos hoje em Portugal)Carlos Leone

A filosofia da existência de Roger GaraudyJosé Mauricio de Carvalho

Edição de Gazetas Manuscritas do Século XVIII

Notícias de mãoAntónio Coimbra Martins

Manual de Edição das Gazetas Manuscritas da Biblioteca Pública de ÉvoraTiago C. P. dos Reis Miranda, Fernanda Olival e João Luís Lisboa

Recensões

Dictionnaire Encyclopédique du Livre. Volumes 1 e II: A-D; E-M. Sous la direction dePascal Fouché, Daniel Péchoin, Philippe Schuwer. Responsabilité scientifique de PascalFouché, Jean-Dominique Mellot, Alain Nave, Martine Poulain, Philippe Schuwer. Préface deHenri-Jean Martin. Paris: Éditions du Cercle de la Librairie, 2002; 2005, XXXIII-900 e XI-1074pp.José Augusto dos Santos Alves

José Gil, Portugal, Hoje: o Medo de Existir, Relógio d'Água, Lisboa, 2004Carlos Leone

Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, As Farpas, coord. Maria Filomena Mónica, Principia, S.João do Estoril, 2004.Carlos Leone

Robert Darnton, George Washington's False Teeth. An Unconventional Guide to theEighteenth Century, Nova Iorque/Londres, W. W. Norton, 2003, 208 pp.João Pedro Rosa Ferreira

João B. Ventura, Bibliotecas e Esfera Pública, Oeiras, Celta, 2002Fernando Pinto dos Santos

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Page 4: Livro e Iconografia

Ver e lerJoão Luís Lisboa

Imagens e textos cruzam-se e encontram-se (ou desencontram-se) de muitas formas.

Tenhamos presente as grandes narrativas que se partilham oralmente e que têm

referentes visuais nos templos, nos palácios e nas ruas, tanto em suportes efémeros, em

festas e procissões, como permanentes. Também nos livros, lugar de letras por

definição, vê-se para além do que se lê. Ou lê-se para além das letras. Lê-se na

composição, na disposição das páginas, na textura do papel ou das peles, no aparato ou

na falta dele, nas gravuras, sejam ornamento ou parte integrante da narrativa.

Porventura essas gravuras reproduzem cenas e personagens que já se conhecem das

igrejas e das ruas. Pensar o livro é, assim, como diz Henri-Jean Martin, pensar uma peça

de um processo de comunicação.

Ao longo dos séculos, e sobretudo a partir de setecentos, à medida que a cultura escrita

sai dos livros e passa a ocupar os espaços urbanos, na identificação dos locais, na

organização do quotidiano, tornando-se necessária, e não um recurso especializado de

quem precisa de exercer certas actividades, a imagem vai ganhando mais espaço no

mundo impresso, equilibrando um estatuto que pertencia sobretudo à palavra.

De que falam as representações que nos aparecem impressas e encadernadas? das

palavras que acompanham? repetem-nas? comentam-nas como um coro que sublinha

certas passagens? Entre os vários olhares possíveis, escolhemos considerá-las na sua

autonomia relativa, corno várias vozes que se encontram para cumprir funções

próprias.

Não pensamos a imagem impressa como subordinada a textos. Mas também não a

vemos como testemunho isolado da evolução de técnicas e valores estéticos. A imagem

faz passar sentido. Tem códigos próprios e assenta num saber fazer (de quem desenha,

grava ou imprime) e num saber ler (do conjunto daqueles a quem se destina). A imagem

existe nos suportes que lhe dão corpo, relacionando-se: (1) com as possibilidades de

leitura que esses suportes permitem ou sugerem; (2) com outras linguagens que lhes

estão próximas; (3) com outras imagens que os leitores viram ou conhecem. A imagem

fixa a atenção em personagens ou episódios. Enfatiza momentos de uma narrativa.

Confere estatuto ao próprio suporte, pela sua elaboração ou riqueza. Finalmente, a

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Page 5: Livro e Iconografia

imagem é feita para causar impressões, para sugestionar, para atrair, para contar de

outro modo.

A imagem ilustra, não necessariamente no sentido que lhe damos hoje, de estampa ou

desenho, associado a um texto, mas no de "tornar claro e evidente" que é o sentido de

Bluteau em 1713. A imagem integra os recursos da retórica, ao "mover afectos" e ao

"tornar inteligível" um discurso. Tem valor enquanto representação,

independentemente de apoiar ou de se apoiar em textos. Implica "decoro" e não

decoração. Que possa ornar no sentido de embelezar é apenas uma das suas funções.

Falamos, assim, de iconografia, e não de ilustração.

O modo como a imagem foi existindo nos livros ou em estampas soltas tem uma história

com referências. As mais importantes continuam a ser os trabalhos de Ernesto Soares. É

de salientar o Dicionário de iconografia portuguesa, em 5 volumes (1947-1960), que

começou a publicar com Henrique Ferreira Lima, entretanto falecido. Hoje, esses

trabalhos, embora manifestamente insuficientes, seja pelas naturais lacunas que o

tempo revela, seja pela sua perspectiva datada, continuam a ser muito úteis. Para além

de extenso inventário, o que devemos reter para os períodos mais remotos? Desde logo,

o facto de a grande maioria das gravuras terem os livros como destino. Também o facto

de quase não haver identificação dos gravadores antes do século XVIII. Finalmente,

Ernesto Soares fornece algumas razões para a diferença entre a produção ibérica e a do

centro e norte da Europa: "a pequena produção do livro, obrigado a ilustração artística,

a escassez de um mercado compensador e, especialmente, o nosso temperamento nada

sujeito a trabalhos, para o que se exigia uma sedentariedade enervante, são motivos

que explicam o atrazo neste ramo da arte" (Evolução da gravura em madeira em Portugal

nos séculos XV a XIX, Lisboa, CML, 1951, p.6). A questão do temperamento do "guerreiro,

navegador e aventureiro" pode hoje provocar um sorriso, mas importa pensar que a

história da gravura é parte da história (social e cultural) mais ampla de como se fazem

circular ideias, sentimentos, narrativas. Nessa história compreendem-se nomes (de

impressores e gravadores, por exemplo), segue-se a transformação de técnicas, gostos,

custos, procura-se o modo como cresce o número de leitores e a variedade das suas

características.

Se nunca existe um leitor abstracto e uniforme de textos idealizados, a diversidade dos

leitores acentua-se com a multiplicação das formas do que se dá a ler, incluindo na

relação entre texto e imagem. No caso dos almanaques de seiscentos e setecentos,

pequenos ícones podem ser o fio condutor do olhar de quem quer perceber as fases da

lua, ou a sucessão zodiacal. Há pois a necessidade de chegar a um público que não

convive quotidianamente com páginas escritas.

Pelo contrário, o aparato da representação do poder nas xilogravuras do De vita Christi

(1495) constitui um discurso paralelo ao do texto, como se se pudesse ler a piedade da

Coroa nas letras, e a devoção do rei nas imagens. Refiro não apenas a representação dos

soberanos em adoração ou as suas divisas, mas todo o cuidado iconográfico que é

condicionado pela encomenda. Pode até considerar-se que não existe uma relação

biunívoca entre as duas linguagens e que, paradoxalmente, uma leitura possível sugere

que é o texto que "ilustra" o que se vê. Na cópia manuscrita do mosteiro de Alcobaça, ou

nos fragmentos em latim que existem em Évora, ambos anteriores em cerca de meio

século ao incunábulo, as iniciais filigranadas a cores e as cercaduras filigranadas

marcam ritmos de leitura e sublinham a importância do livro (como, no impresso, as

capitulares e os sinais de parágrafos), sem introduzir nenhuma interferência no texto

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de Ludolfo de Saxónia. Já o livro impresso vem fazer duas afirmações que são novas

para o tempo em Portugal, ambas ligadas à possibilidade de a tipografia produzir livros

como aqueles que já se conheciam antes. Primeiro, que o livro impresso não é apenas

um expediente de cópia, mas pode ser um cuidadoso objecto de aparato. Segundo, que o

poder se identifica com o novo produto, o usa e nele se revê.

Seguir os impressores do De vita Christi é ver outros usos das mesmas gravuras, como faz

Nicolau de Saxónia ao reproduzir uma excepcional (e possivelmente não produzida em

Portugal) imagem do calvário no Missale Bracharense, em 1498, ou é confirmar a

importância de uma oficina como a de Valentim Fernandes, que multiplica as

xilogravuras nos seus trabalhos posteriores, a começar pelas também excepcionais

representações na Grammatica Pastranae (1497) e na Estoria de muy nobre Vespesiano

(1496). Ainda quanto a esta novela, Artur Anselmo chamou a atenção para a flagrante

semelhança entre uma das suas xilogravuras, relativa ao massacre dos Judeus, e uma

outra publicada poucos anos depois por Pedro Brun, em 1499, em Sevilha, no terceiro

dos incunábulos peninsulares dedicados à novela (História da edição em Portugal, Porto,

Lello & irmão, 1991, pp.168-169).

Bem diferentes (mais simples, menos elaboradas) são as características do gravado em

Evangelhos e epístolas, publicado no Porto em 1497. Mas também aqui há nota de uma

ligação peninsular, neste caso adaptando-se, no Porto, texto e imagens de uma edição

de Salamanca de 1493 (cf. Anselmo, ibidem, pp.172-173).

Para perceber a presença da imagem nos livros, será necessário, assim, seguir um

conjunto de nomes e como evoluem os recursos técnicos. Mas interessa-nos ainda mais

as transformações que se operam nos conceitos, aquilo que eles procuram identificar, o

que numa publicação torna possível que se fale de "livro", de que elementos é

constituído, ou o que leva a que uma publicação seja procurada e apreciada. Ou o que,

sendo inexistente ou extraordinário num dado momento, é indispensável num outro, as

separações gráficas, os índices, a arrumação das páginas, incluindo a sua identificação.

Interessa-nos ainda como essas mudanças correspondem a transformações nas formas

de relacionamento com o leitor que envolvem também a iconografia, seja a que separa

capítulos, a que fecha o volume, a que torna singular uma folha de rosto, ou a que

acompanha os textos. Note-se que a função de separar ou de sublinhar passagens não é

excusiva de tarjas e capitulares. Voltando ao Vespesiano, cinco dos ricos desenhos que

contam a história em imagens aparecem repetidos ao longo do texto, dois deles quatro

vezes. O que aparentemente é a mesma imagem (ou o mesmo tipo de imagem) ganha

sentidos diferentes de acordo com a forma e o tempo da sua publicação.

Nas imagens procuramos quem as faz e quem as vê, ou seja, quem lhes dá sentido e

organiza ou determina os conceitos referidos atrás. De quem são os desenhos que

circulam? Quem os reconhece? Quem grava é alguém que simultaneamente procura e

produz imagens. A oficina terá a propriedade das placas onde os desenhos estão

conservados. Por isso, conhecer os desenhos é também conhecer a oficina e como

evolui. Reproduzem-se motivos, mas as placas são únicas e individualizáveis. Copia-se,

mas nas imagens ficam inscritos traços, sinais de gestos concretos que fazem de cada

gravura um caso distinto, diferenciável de todos os outros, como a cópia manuscrita se

distingue da cópia industrial.

Por exemplo, as diferenças evidentes da gravura da folha de rosto da primeira edição de

Os Lusíadas, em 1572, deram azo a muitas explicações, a mais atraente das quais,

perfilhada por Aquilino Ribeiro, era de que se estava perante uma contrafacção. A

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inversão da posição do pelicano e as diferenças no plinto podiam significar a abertura

de nova gravura a partir de decalque. Hoje sabemos, seja pelo confronto de três dezenas

de exemplares que existem espalhados pelo mundo, feito por K. David Jackson (Camões

and the first edition of The Lusiads, 1572, Univ. Massachusetts Dartmouth, 2003), seja pelo

melhor conhecimento de como decorria um processo de impressão, com modificações

constantes sem que se desaproveitasse o que já estava impresso, que existe apenas uma

edição com muitas pequenas alterações. A folha de rosto e as suas gravuras são, assim,

um exemplo, não da transferência de oficina, mas de um segundo momento da feitura

de uma impressão.

Outro exemplo da singularidade do impressor é a forma como, no início da sua

actividade, em finais do século XVI, Pedro Craesbeeck, não possuindo ricas capitulares,

usava pequenas tarjas envolvendo maiúsculas normais para as substituir, o que

constitui uma marca que o identifica. Este tipo de atenção permite que, numa

circunstância em que não se conhece o impressor, se perceba a quem pertence um

gravado.

Uma imagem pode permitir identificar uma contrafacção, como mostrou Teresa Payan

Martins na sua tese, Livros clandestinos e contrafacções em Portugal no século XVIII (FCSH,

1995), onde se percebe que impressores associados aos poderes políticos e religiosos

participam, por razões várias, nomeadamente de ordem comercial, no mundo da

circulação clandestina.

Uma imagem revela o impressor que se queria discreto, mas mostra também a relação

entre oficinas, as placas que circulam, ou as famílias que se sucedem, quem garante a

continuidade de um património (em tipos e gravuras). As imagens podem ainda dar

uma dimensão do sucesso de uma publicação, como mostra Paulo A. Fonseca ao fazer

um apanhado das diferenças que se detectam nos mesmos fascículos da Academia dos

Humildes e Ignorantes, sobretudo nos seus primeiros anos de existência, entre 1758 e

1760, diferenças que permitem verificar a multiplicação rápida de edições de um

periódico, por vários impressores. Essa multiplicação revela-se em dois tempos. A que

se faz no momento em que o fascículo se esgota e é procurado, a um ritmo semanal. A

que se faz para completar compilações anuais que se vendem também com sucesso.

Uma como outra são localizáveis pelas datas impressas, mas também em parte através

das gravuras que identificam os impressores, e que se repetem noutras publicações das

mesmas oficinas.

Já Pierre-Antoine Quillard, aqui apresentado por Nuno Saldanha na sua obra de

gravador, é um artista de transição, mais conhecido como pintor, mas responsável por

gravuras identificáveis, em livros e em grande formato.

Deste facto decorre o que apenas aparentemente seria uma contradição. Ao longo da

história das imagens, o seu carácter único não se confunde com a busca da

originalidade do que se desenha, mas é relevante como informação sobre um momento

de um processo, de um fazer artesanal. Ou seja, olhamos para as imagens nos livros

anteriores ao século XIX como elementos de cadeias de imagens que as oficinas

reproduzem e não tanto pelo valor que uma mão mais criativa acrescenta e que, mais

tarde, permitirá a distinção pela busca da originalidade. A noção de unicidade só

implica contradição se não se entender aquilo a que se refere, se falamos do produto

enquanto resultado artístico ou do exemplar concreto manufacturado. Este é único,

ainda que reproduzindo ou copiando, não se confundindo com objectos que se

pretendem inimitáveis enquanto concepção. Neste caso, enquanto sobressai uma

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composição, ou um desenho, o trabalho do gravador, integrado em séries, pode ficar

oculto pela qualidade técnica do impresso.

Desta aparente contradição resulta que as perguntas que se fazem e o que se pode

retirar das imagens varia segundo os tempos e as circunstâncias. Que problemas se

podem, então, colocar?

Um é o que segue os encontros e os desencontros de texto e imagem num mesmo livro,

que podem remeter para diferenças de narrativas ou para formas de circulação

separadas que circunstancialmente se encontram numa tipografia. Ou seja, o gravado

não foi realizado a partir da leitura do mesmo texto. Pode até ser anterior e tem, em

qualquer caso, uma existência própria que se encontra circunstancialmente num livro.

É essa divergência (e essa autonomia) que o estudo de Fr. António Almeida, a partir da

análise da edição de 1513 do Flos Sanctorum, aborda.

Outro problema é o da forma como se relacionam suportes diversificados das

representações, transmitindo-se modelos, cruzando sucessivamente, sem uma ordem

pré-definida, pintura, gravura, azulejo ou escultura, por exemplo, e fazendo algumas

imagens viajar milhares de quilómetros. Nestes circuitos, a fixação de imagens em

suportes estáveis pode ser apenas um momento da sua circulação. Painéis pintados

inspiram gravadores, do mesmo modo que artistas recorrem a gravuras para compor os

seus trabalhos. Di-lo Vítor Serrão a propósito de pinturas de uma igreja alentejana e

Sandra Costa mostrando a forma como no azulejo, mas também na pedra esculpida, se

recorre às gravuras como fonte de inspiração para representar a vida de Santa Teresa

de Jesus, em Lisboa. Outros estudos recentes procuraram precisamente seguir as

mesmas pistas. São os casos dos estudos aprofundados de Manuel Batoréo, que

comprova a extensão da presença da imagem gravada pela sua apropriação pela pintura

em todo o país e o de Ana Paula Correia sobre a relação entre azulejo e gravura, ambos

referidos por Vítor Serrão.

Diferentes são as abordagens da imagem em livros do século XX. Apresentamos dois

exemplos diametralmente opostos, não apenas no imaginário que convocam, mas

também na pretensão de originalidade e de diálogo criativo com o texto que

acompanham. Um caso de propaganda, nos manuais escolares, ao lado de exemplos de

recriação artística de um texto literário. A estratégia de convencimento de que fala

Vítor Serrão para o século XVII não se confunde com a propaganda do século XX sobre

que escreve Filipe Serra. E o artista, o editor e o escritor protagonistas do estudo de

Liliana Carvalho não existiam antes do século XIX.

Não se pretende, nas páginas que se seguem, colocar todas as perguntas possíveis à

iconografia do impresso, ou aos modos como as imagens coexistem com os textos, nos

livros. Mas, como terá ficado claro, justifica-se o interesse de um projecto que se

reclama de história das ideias pelo estudo de imagens desenhadas e gravadas. Ao

contrário do que seria a perspectiva de uma Susan Sontag, agastada pelo menosprezo

que a preocupação de interpretar teria pelas formas, o que nos interessa é o sentido das

próprias formas, o que representam em cada momento em que se constituem. O que

implica que não se trata de interpretar para além das formas, mas com elas, e por elas.

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Page 9: Livro e Iconografia

AUTOR

JOÃO LUÍS LISBOA

CHC UNL.

Professor na FCSH, UNL. Director do CHC UNL onde é responsável pelo projecto "Livro e leitura".

Publicou, entre outros trabalhos, Teoria da história em Francisco Manuel de Melo (com Teresa

Amado) [1983], Ciência e política. Ler nos finais do Antigo Regime (1991), Gazetas. A informação política

nos .finais do Antigo Regime (coord.) (2002) e, com Tiago C.P. dos Reis Miranda e Fernanda Olival,

Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora, 2 vols., 2002 e 2005.

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Encontro sobre História do Livro

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Page 11: Livro e Iconografia

L’histoire du livreDe la tentation d’une histoire globale à une réflexion sur les systèmes decommunication

A história do livro: da tentação de uma história global à reflexão sobre os

sistemas de comunicação

Henri-Jean Martin

Le livre a toujours été objet de passions. Dans tous les pays et de tout temps, il est

apparu comme le porteur d'une culture qu'on rêve de posséder. Partout, les princes et

les Grands ont voulu se l'approprier en constituant des collections somptueusement

reliées et classées dans leurs bibliothèques aux livres somptueusement reliés au long de

galeries, selon un ordre qui voulait constituer un programme symbolique. Imprimé, il a

été le vecteur d'idéaux collectifs, de l'humanisme aux Lumières, mais plus encore, des

nationalismes. Mais il a toujours été également objet d'art tenant de par sa forme de

multiples langages. De sorte qu'il constitue la mémoire des civilisations et des nations

qui consacrent à sa sauvegarde de grandes bibliothèques tandis que certains amateurs

le font objet de collection. Aujourd'hui, cependant, sa primauté est remise en cause et

on s'interroge sur son avenir. De sorte que le grand problème est pour les historiens du

livre de comprendre comment il a structuré les esprits et les sociétés, et de s'interroger

sur la place qu'il doit conserver face aux nouveaux médias.

Le rôle joué par le livre a toujours été particulièrement ressenti en Allemagne. On y a

beaucoup discuté sur le rôle qu'il a joué lors de la Réforme du XVI siècle. Surtout, on

considère à juste titre qu'il a assuré du XVe au XIXe siècle à travers un pays morcelé

l'unité et la survie d'une langue et d'une culture communes, grâce à la centralisation de

la distribution à Francfort et surtout à Leipzig, et à la publication de catalogues annuels

des ouvrages mis en vente à travers les pays germaniques. Qu'on ne s'étonne donc pas

si l'histoire du livre se développa précocement dans cette partie de l'Europe, et si elle

fut naturellement centrée sur la glorification de l'oeuvre de Gutenberg, promu héros

national dès le XVIe siècle et célébré chague année en des fêtes de caractère à la fois

professionnel et folklorique – ce qui était l'occasion pour de savants professeurs de

publier des dissertations érudites en l'honneur de l'art typographique. Ce mouvement

culmina entre 1870 et 1914, dans l'Empire allemand reconstruit par la Prusse et baptisé

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Page 12: Livro e Iconografia

à juste titre par Frédéric Barbier « Empire du livre ».1 Et cela en une période où

l'Allemagne, en pleine ascension industrielle, possédait une impressionnante avance

intellectuelle dans tous les domaines de la science. On ne s'étonnera donc pas que

1'Association des libraires allemands ait publié, de 1886 à 1914, quatre gros volumes

d'une très savante histoire de la librairie allemande.2

Ailleurs, les choses furent plus compliquées. En France, dans la monarchie

centralisatrice des XVIe et XVIIe siècles, l'orthographe et la langue écrite avaient été

codifiées par des typographes tels que Robert Estienne, souvent proches du Pouvoir, et

l'Académie française fut créée en 1636 avec la mission d'en réglementer les usages. La

langue et les Lettres devinrent ainsi des instruments de gouvernement régis par l'Etat

qui s'efforçait par ailleurs de contrôler cette production au moyen d'un appareil

complexe et d'une censure, comme toujours en fin de compte impuissante. Cependant,

la passion pour le livre y était grande, notamment à l'époque des Lumières, Les

bibliophiles étaient nombreux et plus encore, les amateurs de lectures « philosophiques

». Les bibliothèques ecclésiastiques étaient bien garnies et les notables possédaient tous

des collections.

Survint alors la Révolution française. Elle était très largement le fait d'hommes nourris

de la littérature des Lumières. On comprend donc qu'après la saisie des biens du clergé

et de ceux des émigrés et condamnés, le pouvoir révolutionnaire ait décidé de mettre

les livres saisis à la disposition de la Nation. Je ne conterai pas ici une fois de plus

comment ces précieuses collections, confondues et déménagées à plusieurs reprises

furent triées par des ignorants et en partie détruites ou revendues. Finalement subsista

seule de ce gâchis la Bibliothèque royale promue tour à tour nationale, royale ou impé

riale au fil des régimes. Elle s'enrichit des dépouilles de nombreux établissements,

tandis que les autres fonds, confiés en province aux municipalités s'endormaient d'un

long sommeil, dans des bibliothèques qui ne recevaient pas les crédits nécessaires pour

se mettre au goüt du jour et n'étaient fréquentées que par un petit nombre de

bibliophiles qui y consacrèrent des études ou des recensements parfois précieux.

Dernier résultat des saisies révolutionnaires, enfin, particulièrement important : tandis

que les fonds des anciennes universités avaient été saisis, on attendit près d'un siècle

avant de doter l'ensemble des universités mises en place par Napoléon de

bibliothèques, si bien que nos établissements d'enseignement supérieur offrent

aujourd'hui encore un singulier contraste avec les vieilles universités voisines comme

celles d'Oxford et Cambridge ou de la Péninsule ibérique , où le livre ancien est

omniprésent.

L'université française se trouvait ainsi mise par Napoléon à l'heure d'une rhétorique

souvent creuse dont la première mission était de glorifier le pouvoir en place. Ainsi,

personne ne réfléchit alors, là comme ailleurs au reste, sur le rôle joué par le livre en

tant qu'instrument de diffusion des cultures, si ce ne fut quelques républicains groupés

autour de du poète Lamartine.3

Il fallut pour que tout cela change, à la fois un bouleversement général de climat tant

économique qu'intellectuel, et l'intervention de nouvelles générations d'intellectuels

désireux d'expliquer le présent à la lumière du passé. Ce mouvement débuta dans les

années 1860, avec la création par Victor Duruy, alors ministre de l'Education nationale,

de l'Ecole pratique des Hautes études dont le but était de rattraper le retard pris par la

France sur l'Allemagne tant dans les domaines des sciences exactes et naturelles que

dans ceux de la philologie et de l'histoire, et d'introduire en France ce qui faisait la

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force de ses voisins, le travail en séminaires. Après la défaite de 1871, la France vaincue,

se mit de plus belle à l'école de la science allemande. Bientôt, les universités françaises

connurent un net renouveau qui se traduisit par la multiplication de publications de

caractère scientifique et la promotion de revues spécialisées dirigées par les maitres les

plus écoutés qui y multipliaient les comptes-rendus comme Valérie Tesnière l'a rappelé

dans un livre récent.4 Cependant l'heure était alors celle du positivisme, et on

entendait, à l'image des Allemands, privilégier l'étude des faits tels qu'en eux-mêmes.

Tout cela cependant se déroulait dans une Europe en pleine expansion, mais qui

connaissait dans tous les domaines un climat d'incertitude et d'interrogation, voire de

crise. Tandis que l'essor de l'industrie engendrait des crises sociales, de nouvelles

manières d'étudier le vivant et l'homme se développaient. Par ailleurs, les intellectuels

et les artistes de ce temps étaient comme inconsciemment sensibles aux

bouleversements scientifiques de l'époque comme l'attestent leurs oeuvres. I1 ne

s'agissait plus, en particulier pour les physiciens, d'expliquer le monde en offrant de lui

une représentation apparemment logique et accessible à l'imagination, mais seulement

en en proposant une description basée sur le langage mathématique. Soit un

mouvement qui aboutit à la découverte de la relativité par Einstein en 1905. Ainsi

l'Europe ne réussissait pas dans les mouvements perpétuels dont elle était le théâtre à

trouver un équilibre. Et, pour donner un seul exemple, les conséquences de tout cela

étaient particulièrement sensibles dans la Vienne du début du XXe siècle on

triomphaient les inquiétantes peintures de Kokoschka tandis que Freud, le père de la

psychanalyse, Wittgenstein, le rénovateur génial de la logique, et un peintre

traditionaliste raté nommé Adolf Hitler pouvaient se croiser dans la rue.

Tout cela explique la révision qui commença alors à s'amorcer parmi les intellectuels,

notamment en France. Nous en retiendrons ici deux dont l'un doit être tenu comme

ayant initié une nouvelle manière de regarder le livre.

Né en 1858, Emile Durkheim, reçu en 1878 à l'Ecole normale supérieure on il fut le

condisciple de Jaurès, le père du parti socialiste français, était très sensible aux

problèmes sociaux de son temps. Admirateur du philosophe Auguste Comte, il suivit en

Allemagne les leçons de Wilhelm Wundt, l'un des créateurs de la psychologie

expérimentale, et voulut faire de la sociologie la science humaine par excellence. Dans

cette perspective, il sut s'imposer comme chef d'école incontesté par l'intermédiaire

d'une revue l'Année sociologique. Cette école continua d'exercer après sa mort (1917) une

influence considérable sous la direction de son neveu Marcel Mauss qui fut son actif

successeur grâce à la collaboration de personnages remarquables comme Ignace

Meyerson, l'auteur de La fonction psychologique et les oeuvres, Maurice Halbwachs, le

spécialiste de la mémoire collective, Henri Hubert, l'historien des Celtes, Louis Gernet,

qui jeta un regard d'anthropologue sur les origines de la pensée grecque, Marcel

Granet, l'historien de la Chine, ou François Simiand, l'historien des cycles économiques.5 Avec ces personnages s'ouvre une ère nouvelle caractérisée en France par une

interrogation des sciences sociales sur I 'homme tel qu'en lui-même, tandis que le

pragmatisme américain s'intéressait au maniement des hommes à travers des études de

psychologie sociale.

Cependant, Durkheim estimait que toutes les sciences humaines, à commencer par

l'histoire, devaient se mettre au service de la sociologie, conçue comme la science de

l'homme par excellence et calquée sur les sciences de la nature. Soit une attitude qu'un

homme en apparence bien seul entendit dépasser. Henri Berr avait été reçu à l'Ecole

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normale supérieure en 1881, deux ans donc après Durkheim auquel il était apparenté. Il

soutint en 1898 une thèse sur L'Avenir de la philosophie. Esquisse d'une synthèse des

connaissances fondée sur l'histoire. Le titre de ce travail résumait la cause qu'il allait

défendre toute sa vie. Et, resté sa vie durant professeur de rhétorique au lycée Henri-

IV, à Paris, il chercha toujours à trouver le juste milieu que les historiens allemands

n'avaient pas su trouver, entre la philosophie et le culte des faits – et cela afin de

reconstituer l'unité morale de son pays comme des autres peuples à travers une

coopération scientifique organisée en vue de déboucher sur des synthèses bien

comprises.6

Je ne l'ai jamais rencontré personnellement, car il est mort au moment oú Lucien

Febvre allait me présenter à lui, mais j'en ai beaucoup entendu parler ceux qui l'ont

connu ont eu l'impression de rencontrer une sorte de Socrate. Multipliant les contacts,

recevant volontiers des visiteurs, il s'avéra en fim de compte un éditeur avisé, un chef

d'entreprise entendu et, par-dessus tout, un animateur et un éveilleur d'esprits hors de

pair.

En témoignent ses créations : d'abord, dès 1900 une revue, baptisée Revue de synthèse

bientôt devenue Revue de Synthése historique qui fit souvent bondir les historiens en

place, par sa prétention à l'universalité. Ensuite vint, conçue en 1914, l'élaboration

d'une collection destinée à devenir célèbre, l'Evolution de l'humanité dont l'objectif était

de donner en cent volumes l'histoire des grands événements de l'histoire humaine.

L'immensité de la tâche qui se prolongea durant 50 ans, exigeait de faire appel à des

historiens de tous bords mais qu'il fallait savoir choisir. Ainsi virent le jour Le langage de

Joseph Vendryès (1923) La Cité antique de Gustave Glotz (1928), Les Celtes de Henri

Hubert (1932) en attendant La société féodale de Marc Bloch (1939) et Rabelais et le

problème de l'Incroyance de Lucien Febvre (1942).

Berr aurait-il pu maintenir longtemps le niveau de ces entreprises sans la collaboration

de Lucien Febvre ? Né à Nancy en 1878, admis à l'Ecole normale supérieure en 1898, il

avait pris contact avec Berr dès 1905, enthousiasmé qu'il était par le ton de la nouvelle

revue. Il était en plein accord avec lui pour ajouter à la sociologie de Durkheim la

géographie de Vidal de La Blache dans l'explication des faits historiques. Et la

correspondance de Febvre avec Berr montre qu'il joua un rôle important dans

l'élaboration du plan même de l'Evolution de l'humanité, dans ses révisions successives, et

surtout dans le choix des auteurs.

Ce fut, semble-t-il, Henri Berr qui prit la décision d'inscrire L'Apparition du livre dans les

cent titres de sa collection. Ce fut Febvre, cependant, qui proposa pour écrire cet

ouvrage, le nom de son camarade et ami Augustin Renaudet.

Reste à savoir si l'heure était venue où un sujet comme celui de l'apparition de

l'imprimerie avec toutes les conséquences psychologiques qu'elle entrainait, pouvait

être traité. Ce que j'ai pu lire de la correspondance de Berr avec Lucien Febvre et

Augustin Renaudet montre que Berr avait demandé à Renaudet de ne pas composer une

histoire érudite et technique des débuts de l'imprimerie – mais d'en indiquer les

conséquences intellectuelles et morales, et de souligner le retentissement psychique de

cette découverte capitale ; ce qui impliquait la comparaison de l'avant et de l' après. Ce à

quoi Renaudet donna son plein accord .7

Il avait, semble-t-il, promis à Febvre de se mettre au travail en 1926. Est-ce la difficulté

du sujet qui le fit reculer ? Il semble en fait qu'il ait réservé la priorité à la publication

de trois manuels parus entre 1929 et 1931 dans la collection Peuples et civilisations

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dirigée par Louis Halphen, lui aussi apparenté à Durkheim. D'où cette remarque

désabusée qu'on trouve d'une lettre de Febvre à Pirenne du 7 janvier 1930 : « Je ne sais

pas pourquoi il s'en était dégoûté [de l'Apparition du livre] et paraissait médiocrement

soucieux de l'écrire ». Ce à quoi Febvre ajoute : « Comme ce magnifique sujet m'a

toujours attiré, je lui ai demandé de me le céder ».8

On sait cependant que le livre prévu resta encore quelque 25 ans à l'état de projet. On

peut certes attribuer ce retard à la surcharge de travail de Lucien Febvre qui n'eut

jamais le temps de s'y consacrer, et à la difficulté de trouver un spécialiste en ce

domaine. Mais pour ma part, j'ai été frappé par le fait qu'il n'était pas question dans la

correspondance que j'ai consultée de l'aspect économique du problème. S'il en allait

ainsi, c'est bien que l'histoire économique était alors à peu près inexistante. Il aurait

donc été psychologiquement difficile à Renaudet de prendre en considération ce qui fit

du livre imprimé une marchandise avec toutes les conséquences que cela comportait.

Par ailleurs, seul un émigré russe nommé Nicolas Roubakine avait consacré en 1922 une

étude à la psychologie bibliologique qui étudiait les rapports de l'auteur avec le lecteur

par l'intermédiaire du texte, et demandé qu'on étudie le livre « comme une sorte

d'engin, d'appareil, d'instrument psychologique destiné à provoquer dans l'être

psychique du lecteur des expériences et déterminations complexes », ceci en recourant

aux méthodes des sciences naturelles.9 Cependant, la primauté du livre n'apparaissait

pas encore menacée et l'étude des communications était encore dans les limbes. Soit

autant de problèmes dont certains étaient plus aisément solubles lorsque j'ai écrit

1'Apparition du livre, tandis que d'autres, repoussés par Lucien Febvre en un second

volume, ne sont pas encore entièrement résolus.

Tout cela montre bien que la recherche historique ne peut progresser, comme Henri

Berr et Lucien Febvre l'avaient bien vu, qu'au rythme de l'ensemble de la recherche

scientifique. Ce qui explique les nouvelles entreprises dans lesquelles l'un et l'autre

s'engagèrent, ensemble ou séparément, à partir de 1920. L'une d'elles est évidemment

le lancement de la revue des Annales par Lucien Febvre et Marc Bloch. Je suppose cette

histoire assez connue pour ne pas y revenir ici. Mais il en est deux autres sur lesquelles

je voudrais insister parce qu'elles me semblent caractéristiques d'une époque et de

formes d'idéologie sur lesquelles il me semble opportun de réfléchir aujourd'hui.

La première est la création par Henri Berr en 1925, d'un Centre international de

synthèse installé deux ans plus tard dans ce qui restait du noble Hôtel de Nevers, à côté

de la Bibliothèque nationale. Berr avait disposé pour cette création de puissants

soutiens politiques, ceux de Paul Doumer, très lié à la franc-maçonnerie, ministre des

finances (1925-1926) et vice Président du Sénat (1927-1931) avant de devenir Président

de la République, ainsi que d'Emile Jeanneney et d'Edouard Herriot qui présideront le

Sénat et la Chambre des députés. A côté d'eux, cependant, le Conseil d'Administration

comportait Einstein, lord Ernst Rutherford, prix Nobel de chimie pour ses travaux sur

la structure de l'atome, et l'anthropologue britannique James Georges Frazer. Il était

partagé en différentes sections réunissant plusieurs dizaines de membres, français et

étrangers, dont celles de synthèse historique dirigée par Berr et Febvre et des sciences

de la nature sous la direction du grand physicien français Paul Langevin, très lié à

Pierre et de Marie Curie, qui avait failli être le premier, selon une déclaration

d'Einstein, à énoncer la théorie de la relativité restreinte. On voit bien là l'intention de

rapprocher scientifiques et littéraires, hommes politiques et universitaires dans une

réflexion commune. Ce travail de fond était rythmé par des semaines de synthèse

traitant des sujets les plus divers10 et dont le résultat le plus marquant fut de favoriser

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le développement en France de travaux d'histoire des sciences, qui aboutirent à la

rédaction d'une Histoire generale des sciences sous la direction de René Taton, sans

cependant faire admettre ce type de recherche de plein droit dans l'université française

toujours conservatrice.

Bientôt cependant, et dans le même esprit, Anatole de Monzie, ministre de l'Education

nationale, prenait la décision de lancer une Encyclopédie ,française selon l'idéologie qui

avait été celle de la Grande Encyclopédie de d'Alembert et Diderot.

J'ai expliqué ailleurs comment Lucien Febvre fut nommé en même temps qu'il était élu

Professeur au Collège de France, secrétaire general, soit en fait directeur de

l'Encyclopédie française qu'il organisa en volumes thématiques et qui réunit quelque 700

auteurs. Malheureusement, celle-ci fut interrompue en 1940 et les derniers volumes

furent achevés après la guerre sous la direction du philosophe Gaston Berger qui fit

largement appel au Prince de Broglie, prix Nobel de Physique.11

On se doute de ce que pouvait représenter pour Febvre la direction d'une telle oeuvre

qui le mettait en contact avec les meilleurs esprits du temps et je puis témoigner, par

les conversations que j'ai eues avec lui, qu'il fut ainsi incité à élargir ses vues au-delà de

la simple histoire, d'autant plus qu'il travaillait en étroite union avec son camarade

Henri Wallon, devenu médecin et spécialiste de la psychologie de l'enfance. Soit des

relations dont il tira à mon sens les meilleures pages de son Rabelais et le problème de

l'incroyance, il posait à travers une étude de vocabulaire, le problème de l'outillage

mental de l'homme et de son évolution selon les époques. Ce qui montre clairement

qu'un historien novateur doit se tenir au courant de la recherche en dehors de sa

propre discipline, surtout lorsqu'il s'occupe de problèmes telles que ceux des

communications.

Par ailleurs, Julien Cain, éminence grise de la République qui avait préparé le Front

populaire en réconciliant Edouard Herriot et Léon Blum avant d'être nommé à la tête

de la Bibliothèque nationale, réclama et obtint qu'un des volumes de l'Encyclopédie fut

consacré au livre et à l'édition de l'époque – soit un travail qui fut particulièrement

stimulant pour moi lorsque je préparais de l'Apparition du livre.

Telles sont les conditions dans lesquelles je me trouvai amené à travailler sous la

direction de Lucien Febvre à l'Apparition du livre qui, commencée en 1953 à partir d'un

plan qu'il m'avait remis, fut publiée un an après sa mort, en 1959.12 Je n'ai point à parler

de cette publication si ce n'est pour rappeler qu'elle avait été relue et approuvée par

Febvre avant sa mort à l'exception du dernier chapitre. Cependant, je dois ajouter qu'il

s'agit d'une entreprise inachevée. J’ai souvent expliqué à ce propos que Febvre avait

prévu deux volumes, le premier intitulé Le livre cette marchandise et second Le livre, ce

ferment. Mais, lorsqu'il avait rédigé le plan qu'il me remit, il s'était arrêté au milieu de la

seconde partie, quand il était arrivé à Descartes, parce que, m'expliqua-t-il « il ne

voyait plus » – ce qui m'amena à me borner à joindre simplement aux chapitres

consacrés au livre cette marchandise, un dernier chapitre intitulé « Le livre ce ferment

» consacré seulement au rôle joué par le livre au XVe et au XVIe siècle.

Lucien Febvre ne m'a jamais expliqué ce qui l'avait arrêté lorsqu'il traitait du « livre ce

ferment ». Cependant, il me l'a fait pressentir en me disant lors d'une de nos dernières

entrevues que j'avais encore beaucoup de progrès à faire et qu'il fallait pour cela que je

commence par lire Condillac. Voilà dons avec quel viatique j 'ai essayé d'aller plus

avant. Ce faisant, j'ai été très influencé par l'exercice de mon métier. Chargé de

construire une grande bibliothèque à Lyon et d'organiser dans cette ville un réseau de

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lecture publique, j'ai dû m'occuper de lecture vraiment populaire et faire face à une

demande croissante de lecture, je tiens à souligner ce point à l'intention de ceux qui

annoncent la mort du livre ; j 'ai donc dirigé des enquêtes de caractère

psychosociologique sur la lecture et je me suis vu un temps chargé de responsabilités

concernant l'informatisation des bibliothèques françaises. En même temps j'ai été

chargé d'enseigner l'histoire du livre à l'Ecole nationale des bibliothèques et à l'Ecole

des chartes, ce qui m'a amené à m'initier aux théories de l'information. Comme tous

mes contemporains enfin, j'ai été frappé par l'impact croissant de la télévision et de la

publicité – fruit amer à mês yeux de la psychosociologie à l'américaine.13 Au cours de ce

long parcours, je réalisai qu'on ne peut comprendre une époque que si on prend en

compte l'ensemble des connaissances alors acquises, comme Berr et Febvre avaient

rêvé de le faire. Autrement dit, il faudrait se représenter, en quelque sorte, la

structuration des esprits – et tout particulièrement ce que Popper appelle le monde 3,

celui des idées et des connaissances qui ont en quelque sorte conquis leur autonomie

dans les pensées de chacun, tandis que le Monde 1 est celui des choses et des états

matériels et le Monde 2 celui des perceptions, de la pensée, des émotions ou des

intentions.14 Ainsi, donc, à mesure que j'étais le témoin et participai quelque peu à la

révolution des communications, j'avais de plus en plus le sentiment qu'il serait

essentiel de dégager ce qui pouvait faire la spécificité du livre qui lui permettait de

façonner les sociétés où il était le medium dominant.

Je laisse à Jean-Dominique Mellot le soin de rappeler l'évolution de l'histoire du livre en

France et d'indiquer les perspectives qui lui sont ouvertes aujourd'hui. Je rappellerai

simplement que je n'étais pas le seul désormais à travailler. J'ai bénéficié de l'appui et

de l'amitié de nombreux spécialistes anglais de la bibliographie matérielle, dont l'un,

Don McKenzie, a donné des études exceptionnelles sur la psychologie de la lecture. J'ai

eu la chance d'avoir de nombreux élèves, de travailler en étroite liaison avec Roger

Chartier qui s'est consacré avant tout à la psychologie de la lecture, et avec Daniel

Roche, qui vient d'écrire un beau livre sur l'histoire du vêtement aux XVIIe et XVIIIe

siècles, baptisé La culture des apparences. Et je me réjouis vivement de voir des pays de

vieille tradition comme le Portugal et l'Espagne développer aujourd'hui les études sur

le livre en tant qu'objet patrimonial et instrument de communication.

I1 est enfim deux points sur lesquels je voudrais insister. Le premier concerne mes

travaux, mais aussi ceux de mon ami Paul Saenger, sur les manières de lire. J'avait été

très frappé par le fait que les Anciens, les Grecs et surtout les Latins, avait l'habitude de

lire leurs livres à haute voix. En outre, j'avais constaté que les manuscrits du Haut

Moyen Age que je conservais à Lyon étaient écrits, comme les papyrus anciens, en

écriture continue, autrement dit sans séparation entre les mots et sans alinéas. Je

rencontrai alors Paul Saenger à Chicago et celui-ci m'expliqua que l'examen attentif des

manuscrits écrits entre le VIlle et le XIIe siècle lui avait montré qu'on avait commencé

par découper les syllabes pour les bien prononcer à l'époque carolingienne, mais qu'on

avait commencé à isoler les mots aux Xe-XIe siècles, ce qui ouvrait la porte à la lecture

muette. Dès lors, tout apparaissait clairement et l'organisation des pages ainsi que les

indexations m'ont semblé refléter l'évolution de la pensée à la fin Moyen Age comme je

l'ai signalé dans Histoire et pouvoirs de l'écrit.15 Restait à poursuivre l'enquête. Profitant

de ma retraite, je me suis constitué une base de données de 11.000 vues de pages de

livres antérieurs à la fin du XVIIe siècle, et j'ai essayé de montrer comment la logique

d'une époque correspondant à la naissance du livre moderne, entre le XlVe et le XVIIe

siècle, se manifestait dans la mise en page des textes. Et il m'est apparu avec évidence

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que la révolution cartésienne était étroitement liée à l'adoption systématique d'une

division par paragraphes dont j'ai retracé l'histoire. Soit un changement des

présentations des textes en relations étroites avec de nouvelles manières de penser,

d'écrire et de lire. Il n'est que de songer au passage du roman historique en plusieurs

tomes à pages pleines entrecoupées de conversations, à la nouvelle psychologique de la

fin du XVIle siècle. Soit une évolution qui fit passer les Français d'une littérature

classique largement constituée pour dite à haute voix – qu'il s'agisse des sermons ou

des oraisons funèbres de Bossuet ou des pièces de théâtre de Corneille, Molière et

Racine – la littérature des Lumières conçue pour être lue à voix basse et ressentie d'une

tout autre manière.

Le livre que j'ai consacré à ce sujet est très illustré et se présente comme un livre de

luxe.16 Il n'est donc pas très répandu et il faudra sans doute attendre, mais j'en ai

l'habitude, pour que ces thèses soient adoptées dans le monde universitaire français. A

partir de là cependant, il m'est apparu que le rôle des signes d'écriture, des schémas et

des tableaux dans l'évolution de la recherche scientifique méritait réflexion, tout

autant que les mots et les systèmes de classification. J’ai donc rédigé, à mon intention,

pour éclaircir mes idées en ce domaine, un volume d'histoire des sciences dont j'ai fait

contrôler les assertions par un spécialiste afin de m'en servir dans une publication ulté

rieure. Et, à partir de là, j'ai commencé à rédiger un ouvrage intitulé Pour une histoire de

la civilisation européenne, axé sur les systèmes de communication qui ont conféré à notre

petit continent sa cohérence, ouvrage dont la nécessité me semble aujourd'hui

particulièrement évidente dans le contexte mondial que nous connaissons tous ici. Si

Dieu me prête três longue vie, cette publication comprendra trois volumes. Le premier

qui est en achèvement porte comme sous-titre Les fondements et je me bornerai à

indiquer qu'il part de chapitres consacrés à l'avènemcnt d'Homo sapiens et à l'homme

face à son langage, pour traiter ensuite de la constitution de l'espace européen, de son

peuplement, pour en arriver à une présentation des sociétés orales, de leurs cultures,

de leurs valeurs et de leurs religions, en insistant sur les sociétés de langue indo-

européennes et aboutir aux origines si complexes de l'écriture alphabétique et

comprendre les conséquences psychologique de l'adoption de ce système. Après quoi

suivra un volume déjà bien avancé sur le règne de l'écriture basé sur l'étude des

instruments de communication et des systèmes de pensée dominants durant le Moyen-

Age et les Temps modernes. Puis viendrait, si Dieu me prête toujours vie, un dernier

volume sur l'Europe de la mondialisation au temps de la révolution médiatique, -

ouvrage pour lequel j'espère trouver un collaborateur. J'aurai alors atteint sans nul

doute le niveau de Peter – celui où chacune parvient à son point d'incompétence –

niveau où je me trouvait peut-être déjà en méditant ce projet.

Ainsi, l'histoire du livre, intégrée à une histoire plus générale des communications,

permettrait, me semble-t-il, de mieux comprendre ce que les peuples européens

peuvent avoir de commun et de rappeler la nécessité d'y maintenir une pensée

humaniste informée des différents aspects de la recherche actuelle, et porteuse de ce

que nous sommes, face à tous les utilitarismes.

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NOTES

1. Frédéric Barbier, L'Empire du livre, Paris, Editions du Cerf, 1995.

2. J. Goldfriedrich et F. Kapp, Geschichte des deutschen Buchandels, Leipzig, Verlag des Börsevereins

der deutschen Buchandels, 1886-1903, 4 volumes.

3. Henri-Jean Martin, « Le sacre de Gutenberg », Revue de synthèse, IVe série, janvier-juin 1992, p.

15-27.

4. Valérie Tesnière, Le Quadrige, Un siècle d'édition universitaire, 1860-1968, Paris, Presses

universitaires de France, 2001.

5. J'ai encore travaillé sous la direction de Jean Meuvret dans les cours de François Simiand et je

saisis cette occasion pour regretter que la statistique bibliographique soit autan négligé de nos

jours, sans doute parce que les historiens du livre reculent devant l'effort que tout travail de ce

type implique. En fait, il ne sera par exemple pas possible d'écrire une histoire du livre européen

sans recourir à de telles méthodes et le recours à l'informatique devrait y aider

considérablement. Resterait cependant à procéder à une étude critique préalable faite par des

spécialistes de technique du livre, qui manque de nos jours, pour savoir ce qu'on entend compter

et dans quels buts. Soit un travail collectif qui devrait être encouragé par des institutions

internationales.

6. Voir sur Henri Berr, Henri Berr et la culture du XX e siècle, sous la direction de Agnès Biard,

Dominique Bourel, Eric Briand, Paris, Albin Michel, 1997.

7. Jacqueline Pluet-Despatin, « Henri Berr éditeur », Henri Berr et la culture du XXe siècle, ouvr. cit.,

p. 248 ; Lucien Febvre, Lettres à Henri Berr, présentées et annotées par Jacqueline Pluet et Guies

Candar, Paris, Fayard, 1997, p. 203-206.

8. Jacqueline Pluet-Despatin, « Henri Berr éditeur », Henri Berr et la culture du XXe siècle, ouvr. cit.,

p. 261.

9. Nikolas Roubakine, Introduction à la psychologie bibliologique, Paris, J. Povolosky, 1922, p.; cf.

Robert Escarpit, dir., Le littéraire et le social, Paris, Flammarion, 1970, p. 284-296.

10. A côté de colloques sur la Relativité (1930), la théorie des Quanta (1931) ou l'invention (1937),

je me permettrai de mentionner ici la XXIIe semaine de synthèse sur l'Ecriture et la psychologie des

peuples, tenu en 1960 à la suite de la publication de l'Apparition du livre, Paris, Armand Colin, 1963.

Les actes de ce colloques comptent parmi les trois ouvrages qui ont inspiré à Jacques Derrida la

rédaction de sa fameuse Grammatologie (Paris, Editions de minuit, 1967, p.7) sur laquelle je

partage les réserves de Sylvain Auroux (La révolution technologique de la grammatisation, Paris,

Mardaga, 1994, p.156-158). Ce colloque fut à l'origine d'une série d'autres réunions dirigées par

Anne-Marie Christin qui ont abouti à la publication sous la direction de celle-ci d'une importante

Histoire de l'écriture. De l'idéogramme au multimédia, Paris, Flammarion, 2001.

11. « Esprit de synthèse et encyclopédie. Henri Berr, Anatole de Monzie, Julien Cain, Lucien

Febvre ». Tous les savoirs du monde. Encyclopédies et bibliothèques de Sumer au XXle siècle, dir. Roland

Schaer, Paris, B.N.F.-Flammarion, 1996, p.442-449 ; Valérie Tesnière, Eric Brian et Bertrand

Müller préparent une étude d'ensemble sur l'Encyclopédie française.

12. Voir à ce sujet la Postface de Frédéric Barbier à : Lucien Febvre et Henri-Jean Martin,

L'apparition du livre, 3e éd., Paris, Albin Michel, 1999, p. 539-579.

13. Voir sur ces sujets Henri-Jean Martin, Les Métamorphoses du livre. Entretiens avec Jean-Marc

Chatelain et Christian Jacob, Paris, Albin Michel, 2004.

14. Karl Popper, La connaissance objective, trad. fr. Jean-Jacques Rosat, Paris, Flammarion, 1991 (1e

édition anglaise 1972), notamment p. 138-139, 181-210, 231-236 ; cf. Renée Bouveresse, Karl Popper

ou le rationalisme critique, Paris, Vrin, 1998, p. 110-115.

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15. Voir sur ce thème: Henri-Jean Martin, "Pour une histoire de la lecture", Le Débat, 22,

novembre 1982, p. 160-177 ; Paul Saenger, Space between words, the origins of silent reading,

Stanford, Stanford University Press, 1997; Henri-Jean Martin, Histoire et pouvoirs de l'écrit, 2e éd.,

Paris, Albin Michel, 1996 (le éd., Paris, Perrin, 1988).

16. Henri-Jean Martin, La Naissance du livre moderne. Mise en page et mise en texte du livre français

(XlVe-XVIle siècles), avec la collaboration de Jean-Marc Chatelain, Isabelle Diu, Aude Le Dividich et

Laurent Pinon, Paris, Electre, 2000.

ABSTRACTS

A história do livro é uma invenção alemã nascida das celebrações de Gutenberg, festejadas

anualmente naquele país. No último terço do século XIX, em França, Durkheim desenvolveu uma

escola sociológica influente que pretendeu anexar a história. Contra o que se opôs um dos seus

companheiros da Escola superior normal, Henri Berr. Desde logo acompanhado pelo jovem

Lucien Febvre, criou a Revue de synthèse que abriu caminho aos Annales e fundou a colecção da

Evolution de L'Humanité, cujos cem volumes deveriam estudar os grandes momentos da história

humana. De entre os volumes previstos, figurava um dedicado à Apparition du Livre que demorou a

surgir. Paralelamente Berr e Febvre organizaram um trabalho interdisciplinar fecundo, o

primeiro com o Centre de Synthése, o segundo com a publicação de uma Encyclopédie française, o que

renovou a escola histórica francesa. A Apparition du Livre, publicada em 1959, inscreve-se neste

contexto, mas ficou de certa forma incompleta na medida em que se deveria ter inscrito, mais

claramente, no quadro de uma história geral das comunicações que se começa hoje a

desenvolver.

L'histoire du livre est une invention allemande, née des célébrations de Gutenberg feté

annuellement dans ce pays. En France, dans le dernier tiers du XIXe siècle, Durkheim développa

une école sociologique influente qui prétendit annexer l'histoire, ce contre quoi un de ses

camarades de l'Ecole normale supérieure, Henri Berr, s'éleva. Très tôt secondé par le jeune

Lucien Febvre, il créa la Revue de synthèse qui prépara la route aux Annales et fonda la collection de

l'Evolution de l'humanité dont les cent volumes devaient étudier les grands moments de l'histoire

humaine. Parmi les volumes prévus figurait une Apparition du livre qui tarda à voir le jour.

Parallèlement Berr et Febvre organisèrent le premier avec un Centre de synthèse, le second avec la

publication d'une Encyclopédie française, un travail interdisciplinaire fécond qui favorisa le

renouvellement et l'essor de l'école historique française. L'Apparition du livre, publiée en 1959,

s'inscrit dans ce contexte mais elle resta en quelque sorte incomplète dans la mesure oú elle

aurait du s'inscrire plus nettement dans le cadre d'une histoire générale des communications qui

commence seulement à se développer aujourd'hui.

INDEX

Mots-clés: histoire du livre, Henri Berr, Lucien Febvre, histoire des communications

Palavras-chave: história do livro, Henri Berr, Lucien Febvre, história das comunicações

Cultura, vol. 21 | 2005

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AUTHOR

HENRI-JEAN MARTIN

EPHE, Paris.

Foi professor na Escola de Chartes e na École Pratique des Hautes Études. Autor de, entre outras

obras, L'apparition du livre (com Lucien Febvre) (1958), Livres, pouvoirs et société à Paris au XVIIe

siècle (1598-1701), 2 vols., (1969); Histoire de l'édition française, (dir. com Roger Chartier) 4 vols.,

(1983-1986); Le livre français sous l'Ancien Régime (1987), Histoire et pouvoirs de l'écrit (1988), Mise en

page et mise en texte du livre français. La naissance du livre moderne (XIVe-XVIIe siècles) (2000), Les

métamorphoses du livre (entrevistas) (2004).

Cultura, vol. 21 | 2005

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Histoire du livrePoints de vue sur l’évolution d’une discipline

História do Livro: Pontos de vista sobre a evolução de uma disciplina

Jean-Dominique Mellot

Histoires de livres et « protohistoire du livre »

Le livre et plus généralement l'écrit sont des médias qui imprègnent depuis longtemps

nos sociétés – Henri-Jean Martin vient de le rappeler. De sorte que l'on a longtemps fait

pour ainsi dire de l'histoire du livre « sans le savoir ». Le livre en effet a été d'abord une

évidence sur laquelle l'histoire générale s'est appuyée sans autrement y réfléchir. Puis,

au fil des découvertes, on a étudié les supports livresques successifs : tablettes d'argile

mésopotamiennes, rouleaux de papyrus du Bassin méditerranéen, codices du monde

romain et au-delà, sur parchemin puis sur papier, plus près de nous livres imprimés au

moyen de caractères mobiles de métal, et ainsi de suíte jusqu'aux livres brochés et

imprimés en série, voire aux éditions numériques.

Pour étudier ces types de livres successifs, il a fallu et il faut toujours mettre en oeuvre

des disciplines et des sciences auxiliaires de l'histoire aussi incontournables que

l'archéologie, la papyrologie, la codicologie, la paléographie, l'histoire de la

typographie, etc. – dont chacune apporte sa pierre suivant les périodes et les

géographies concernées.

Mais, au-delà de ces approches compartimentées, à dominante technique et

archéologique, il est apparu peu à peu que l'on devait aussi et surtout envisager le livre,

dans le temps long de son existence, suivant la perspective la plus large et la plus

globale qui soit, en interrogeant ses usages sociaux, les enjeux économiques et

politiques induits, les pratiques culturelles associées...

Cette forme d'approche, large et pluridisciplinaire, est caractéristique de ce que l'on

appelle aujourd'hui l'histoire du livre. C'est cette approche qui façonne notre regard sur

le livre à travers les siècles. C'est elle aussi qui inspire depuis quelques décennies une

foule de recherches sur l'univers du livre et son articulation avec les autres médias.

Mais une telle démarche n'allait pas de soi. Elle supposait un changement de regard et

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une vaste entreprise de décloisonnement. Pour suivre cette démarche et tenter de

comprendre comment l'histoire du livre s'est construite en Occident, je vous propose

donc à présent un aperçu qui se veut à la fois historique et épistémologique. Aperçu qui

sera suivi d'une brève réflexion sur les perspectives offertes aujourd'hui à l'histoire du

livre.

L'Ancien Régime européen, à défaut d'histoire du livre,1 a vu naitre d'abord un intérêt

certain pour l'histoire de l'imprimerie à caractères métalliques mobiles, cet « art divin

» (selon l'expression de l'époque), qui permettait de multiplier notamment les écrits

religieux. Très tôt – dès le début du XVIe siècle – on en a donc commémoré l'«

invention » par Gutenberg.2

Témoin de cet intérêt, 1'Histoire de l'origine et des premiers progrès de l'imprimerie (La Haye,

1740), histoire érudite due à une figure de la « République européenne des lettres », le

libraire protestant français Prosper Marchand, réfugié en Hollande. Parallèlement, on

voit se développer à la même époque l'attrait bibliophilique des éditions incunables

(autrement dit nées au berceau de l'imprimerie, avant 1501), qui jusque-là étaient

souvent qualifiées péjorativement de « gothiques ». Cette nouvelle curiosité stimule les

travaux de bibliographie savante et notamment l'élaboration du premier répertoire

d'incunables, dû au Britannique Michael Maittaire (Annales typographici ab artis inventae

origine..., La Haye – Londres, 1719-1741). Puis, au cours du XVIIIe siècle, l'héritage

imprimé humaniste de la Renaissance retient à son tour l'intérêt des amateurs et des

érudits.

La Révolution française, quant à elle, exalte Gutenberg comme le premier artisan de la

diffusion des Lumières en Europe ; c'est alors qu'on identifie l'imprimerie au «

flambeau de la Liberté » des peuples.

Le XIXe siècle, en revanche, va inspirer une historiographie souvent plus érudite mais

moins universaliste : en Europe, l'histoire de l'imprimerie et de ses premiers

monuments vient alors illustrer l'affirmation des identités nationales – le cas est

particulièrement net en Allemagne, comme vient de le rappeler H.-J. Martin. Mais le

XIXe siècle voit aussi bibliothécaires, libraires, collectionneurs et érudits se lancer dans

des travaux de bibliographie savante, solides,3 qui font nettement progresser la

description et la connaissance des éditions, pour les XVe et XVIe siècles principalement.

Toutes avancées dont l'histoire du livre actuelle peut être, partiellement, considérée

comme l'héritière.

Parmi ces travaux relevant de ce qu'on peut appeler la « protohistoire du livre », deux

champs plus ou moins interpénétrés se détachent donc : celui de l'histoire technique et

professionnelle (typographie et arts graphiques), et surtout celui de la production

imprimée des siècles d'or de la renaissance des lettres en Occident, XVe et XVIe.4

Le problème de ce type d'histoire, c'est qu'il était d'abord affaire de spécialistes, de

professionnels ou d'amateurs du livre tels que libraires, bibliothécaires et bibliophiles.

Lesquels avaient certes un accès aisé aux volumes (à la différence de la plupart des

universitaires français – on vient de le rappeler), mais travaillaient en marge de

l'histoire officielle et de la reconnaissance académique. L'histoire littéraire et l'histoire

intellectuelle étaient alors fondées exclusivement sur l'étude des oeuvres et des auteurs

consacrés, et non sur une approche de l'ensemble de la production livresque, ni encore

moins de l'objet livre. Et on allait se satisfaire longtemps de cette situation de

déconnexion.

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Page 24: Livro e Iconografia

L'Apparition du livre : gestation et émergence d'unediscipline aujourd'hui choyée

En revanche, à partir du début du XXe siècle, l'ouverture de l'histoire à la sociologie5 et

la montée en puissance des concepts de « sciences humaines » et d'« interdisciplinarité

» vont contribuer à créer de nouvelles attentes. Ces attentes – cela a été bien rappelé

dans la postface de Frédéric Barbier à la nouvelle édition de L'Apparition du livre, en 1999

– se font jour dans la mouvance de la Revue de synthèse historique, qu'H.-J. Martin vient

d'évoquer, revue fondée en 1900 par Henri Berr (1863-1954) et à laquelle collabore

activement Lucien Febvre (1878-1956). Avec Febvre nait le projet d'explorer la

dimension culturelle de la sociologie historique, et en particulier le concept d'« histoire

des mentalités » qui connaitra au cours du XXe siècle le succès que l'on sait. Lucien

Febvre, dans cette perspective, est persuadé qu'il y aurait beaucoup à tirer d'une

histoire du livre dépassant le champ de l'érudition. Une histoire du livre qui permettrait

d'appréhender une époque en approchant au plus près l'ensemble de son offre de

lectures, et non plus seulement ses oeuvres devenues classiques. Mais en attendant,

rien n'émerge, et Febvre s'indigne dans un texte de 1952 resté célèbre :

« L'histoire du livre, terra incognita. Non que fassent défaut les travaux d'érudition[..] Mais [..] l'histoire de l'imprimerie n'est que trop rarement intégrée à l'histoiregénérale. Des historiens « littéraires » peuvent encore disserter à longueur dejournée sur leurs auteurs sans se poser les mille problèmes de l'impression, de lapublication, de la rémunération, du tirage, de la clandestinité, etc., qui feraientdescendre leurs travaux du ciel sur la terre. »6

Autrement dit, ceux qui alors sont censés être les historiens de la culture se

désintéressent de l'un de ses fondements majeurs, à savoir le livre. Pourquoi ? Parce

que, comme le dira plus tard H.-J. Martin, ils y voient un « objet sans problème sinon

sans histoire ».

Cette situation ne fait que conforter Lucien Febvre dans le projet d'entreprendre un

ouvrage fondateur sur l'histoire du livre. Un ouvrage qui viendrait prendre une place

de choix dans la collection « L'Évolution de l'humanité » – dont la contribution

précédente vient de resituer l'importance. En dépit de son enthousiasme pour ce

nouveau chantier, Febvre, comme on l'a vu, va sans cesse en différer la réalisation.

Faute de pouvoir mener seul le projet à bien, il cherche un collaborateur spécialiste. Il

va le trouver, au début des années 1950, en la personne d'Henri-Jean Martin, jeune

bibliothécaire issu de l'École des chartes et alors en poste à la Réserve de la

Bibliothèque nationale. D'emblée, nos deux auteurs sont d'accord sur le but visé ; il

s'agit de tirer profit des acquis de l'érudition et de la bibliographie accumulés autour

du livre (qu'H.-J. Martin connait bien et dont il mesure aussi les limites), mais de les

intégrer dans le champ beaucoup plus large d'une « histoire sociale du livre ». Le tout

en s'appuyant autant que possible sur les méthodes quantitatives alors en plein essor.

Le pari est relevé entre 1953 et 1958 avec l'élaboration puis la publication de

L'Apparition du livre. Initialement, l'ouvrage devait comprendre deux volumes bien

distincts et complémentaires, « Le Livre, cette marchandise » et « Le Livre, ce ferment

». Comme le résumera plus tard Henri-Jean Martin dans l'article « Histoire du livre » du

Dictionnaire encyclopédique du livre,7 « la rédaction du premier [volume] ne posait pas

trop de problèmes en ces années 1950 : l'acquis érudit était considérable en ce domaine

et [...] l'histoire économique et sociale proposait une problématique. En revanche, la

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réflexion sur les communications n'était pas même à ses débuts et Febvre lui-même ne

put esquisser que le début du plan de ce second volume, dont le tiers seulement fut

rédigé... ». Et il est vrai qu'il manquait encore un certain nombre d'outils conceptuels

pour mener à bien de façon satisfaisante l'étude de ce que Lucien Febvre appelait «

l'action culturelle et l'influence du livre ».

Tel quel – et malgré son titre critiquable (de fait, on y traite non pas de l'apparition du

livre mais de celle du livre imprimé) cet ouvrage répondait pourtant à plus d'une attente.

On a relevé à juste titre qu'il n'a pas suscité en France l'intérêt immédiat de la

communauté universitaire. Peu de comptes rendus lui ont été consacrés lors de sa

parution. Toutefois, il a très tôt retenu l'attention d'historiens issus de l'École des

chartes et de professionnels des bibliothèques. Désormais, selon le mot du chartiste

Charles Samaran (1879-1982), l'histoire du livre s'inscrivait « dans le cadre infiniment

plus vaste de l'histoire de la civilisation ».8

Si L'Apparition du livre n'était pas d'emblée consacrée comme un classique de

l'historiographie française, une « histoire globale du livre » émergeait bel et bien. Et

elle avait tout pour séduire d'autres chercheurs à l'étranger, notamment dans le monde

anglophone où les problématiques de la bibliographie matérielle avaient déjà réconcilié

histoire littéraire et bibliographie érudite. Dès 1962, des traductions anglaise et

espagnole étaient publiées, suivies d'éditions italiennes (1977, 1983), japonaise (1985),

portugaise (2000), et tout récemment (2005) chinoise.

L'histoire du livre, en quelques années, avait gagné ses lettres de noblesse. Discipline

reconnue et autonome, elle faisait bientôt l'objet en France d'un enseignement

particulier, tout d'abord à l'École pratique des hautes études et à l'École nationale des

chartes, puis progressivement dans le reste du monde universitaire. Discipline neuve,

elle mobilisait un faisceau d'approches historiennes aussi bien techniques

qu'économiques, sociales, intellectuelles, culturelles ; elle permettait d'investir sans

cesse de nouveaux « territoires » de recherche et suscitait à ce titre la curiosité et

l'enthousiasme de générations d'étudiants à partir des années 1960 et 1970.

Maturité, approfondissements, renouvellements

L'histoire du livre, en multipliant ses centres d'intérêt, ses méthodes, ses sources, ses

périodes et ses géographies de reference, ne perdait cependant pas de vue l'idéal d'une

histoire globale, d'une histoire « totale » lue à travers le prisme du livre. C'est cette

exigence qui a inspiré d'abord une Histoire de l’édition française, publiée sous la direction

d'Henri-Jean Martin et Roger Chartier entre 1982 et 1986 en 4 volumes (réimpr. en

format réduit en 1989-1991), puis différentes entreprises similaires en Espagne, en

Grande-Bretagne, aux Etats-Unis, en Australie, etc. Ensuite dans la même ligne une

Histoire des bibliothèques françaises (1988-1992, 4 vol.). Et tout dernièrement un Dictionnaire

encyclopédique du livre, que je codirige, qu'H.-J. Martin a préfacé, et dont j'ai l'honneur

de présenter ici le tome II, paru cette année (3 vol. sont prévus en tout).

Autrement dit, en synthétisant et en vulgarisant ses acquis, en levant les

cloisonnements inhérents à toute spécialisation, en se remettant constamment en

question,9 l'histoire du livre a su, dans les dernières décennies, démontrer ses capacites

à relever les défis d'une exigence permanente de dépassement.

Et cette dynamique est loin de prendre fin avec les grandes entreprises évoquées à

l'instant. Celles-ci ont au contraire joué et jouent toujours un rôle de tremplin et de

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stimulant pour de nouvelles recherches ou pour des remises en perspective. Parmi

d'autres, un certain nombre d'approfondissements – je n'en citerai que quelques-uns –

sont engagés, sur des questions aussi diverses et essentielles que :

– l'histoire des pratiques de lecture, de la réception et de l'appropriation des textes

(courant de recherche impulse par R. Chartier) ;

– la réappréciation du statut du livre à travers une relecture des constructions

institutionnelles qui ont encadré sa production ;

– la collaboration croissante avec les historiens de la presse périodique et du

journalisme, mais aussi avec les codicologues et les spécialistes des manuscrits ;

– le rapprochement prometteur esquisse en direction de l'histoire littéraire, grâce à la

sociologie de la littérature et des textes, à l'exploitation de concepts tels que le «

paratexte » et aux apports de la bibliographie matérielle ;

– le renouveau des études statistiques dans une perspective comparative, grâce à

l'informatisation des catalogues de bibliothèques patrimoniales ;

– de même, des champs plus traditionnels de l'histoire du livre et de l'imprimerie, tels

que l'histoire de l'innovation technique et l'histoire sociale des métiers du livre et de la

presse, ont commencé d'être revisités pour les XIXe et XXe siècles...

Toujours soucieux d'élargir les perspectives, H.-J. Martin lui-même, depuis sa thèse

Livre, pouvoirs et société à Paris au XVIIe siècle (1969, 2 vol.), n'a cessé de prêcher

d'exemple :

– en défrichant de nouveaux territoires par ses travaux sur la morphologie historique

du livre et sur les logiques de sa « mise en texte » du Moyen Âge au XVIIe siècle10 ;

– en appelant aussi la communauté des historiens du livre à cultiver les vertus du

comparatisme11 ;

– ou encore en s'efforçant dans Histoire et pouvoirs de l'écrit de replacer l'histoire du livre

à travers les âges dans une interrogation plus large sur l'écriture et la communication

sociale.12

Histoire du livre et histoire des communications et desmédias : quelle articulation ?

À travers cet ouvrage – Histoire et pouvoirs de l'écrit – s'est exprimée tout

particulièrement l'une des préoccupations majeures et toujours actuelles du fondateur

de l'histoire du livre. Celle de rappeler – je le cite – que « l'histoire du livre constitue,

après tout, un aspect de l'histoire des communications ».13 Et H.-J. Martin d'en appeler

(lors d'une interview accordée au périodique Livres Hebdo l'an dernier) à « un

débordement de la stricte histoire du livre vers une réflexion historique plus generale

sur les rapports entre communication et société ».14

La démarche est louable et même indispensable, au moins depuis la Galaxie Gutenberg de

McLuhan.15 Et le fait que F. Barbier, historien du livre, soit précisément le coauteur

d'une Histoire des médias de Diderot à Internet,16 et qu'il aborde largement la

problématique des concurrences médiatiques dans son manuel d'Histoire du livre,17 doit

nous rassurer sur les capacites qu'a l'histoire du livre à intégrer ces questionnements.

Mais il n'est pas non plus inutile de rappeler que le livre, imprimé ou manuscrit, n'a

jamais été placé, au cours de sa longue existente, en situation de « monopole

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médiatique ».18 L'un des défis fondamentaux qu'ont eu à relever les historiens du livre

dans leur quête d'histoire totale a justement été de chercher à déterminer la « part du

livre » et son influence dans une société donnée – c'est ce que pour ma part j'ai tenté

modestement de faire dans mon travail sur l'édition à Rouen, deuxième ville de France

au XVIIe siècle.19 En effet, même à l'époque où on le dit « triomphant »20 (entre la fim du

XVIIe et le début du XIXe s.), le livre règne sur une société où l'oralité est dominante et

où une partie non négligeable de la population est encore analphabète. Quant aux

lisants, leur premier accès à l'écrit se fait le plus souvent à travers des médias

manuscrits ou imprimés porteurs de messages courts (billets, avis, formulaires,

affiches, feuilles périodiques, nouvelles à la main, chansons, libelles...). Écrits que les

historiens du livre qualifient certes de « non-livres », mais dont ils ne négligent ni

l'importance sociale ni le poids quantitatif, bien que ces supports n'aient été que très

peu conservés.

Il ne faudrait pas oublier non plus que cette « cohabitation médiatique » séculaire a pu

se transformer très tôt en concurrence en temps de crise politique. En France durant la

Ligue (1589-1593), la Fronde (1648-1653), puis surtout la Révolution, on observe

nettement que la production de livres est submergée par une marée de libelles, de

brochures et de feuilles d'information. Pendant la Révolution française, cette

concurrence médiatique devient même idéologique : nombre de journalistes et de chefs

de file politiques proclament en effet que le livre, « article d'Ancien Regime »,

instrument d'une elite aristocratique et cléricale condamnée, doit désormais faire place

aux périodiques et aux brochures d'information « démocratiques » accessibles à tout

citoyen.21 Louis Blanc, dans son Histoire de la Révolution française (1852, 12 vol.),

cautionnera cette vision des choses.

Bien qu'elles n'aient pas donné lieu à une lecture aussi politisée, les vagues successives

de nouveaux médias caractéristiques des deux derniers siècles, qui ont permis de

massifier la circulation des informations, ont été généralement interprétées comme des

concurrences de plus en plus menaçantes pour I'hégémonie supposée22 ou pour la vie

même du livre.

Dans des sociétés de plus en plus alphabétisées et consommatrices, cette vie du livre

s'en est-elle pour autant trouvée atrophiée ? I1 ne semble guère, à première vue.

Elizabeth Eisenstein, ici même à Lisbonne il y a cinq ans, concluait son exposé « Old

media in the new millenium »23 en constatant que l'imprimé n'avait nullement été

supplanté par les nouveaux médias successifs. Il convient même d'observer que les XIXe

et XXe siècles ont été marqués, en Occident en particulier, par une croissance

vertigineuse de la production et de la consommation du livre imprimé. Le livre, Jean-

Yves Mollier l'a encore rappelé dernièrement, a pris toute sa place dans la construction

d'une culture de masse – cela est très net au XIXe siècle. À l'heure actuelle on peut même

dire qu'il ne s'est jamais autant produit et vendu de livres à travers le monde. Jamais

non plus le livre n'a bénéficié d'un public universitaire aussi nombreux et captif. Jamais

il n'a été aussi présent auprès des jeunes enfants, à l'école ou en dehors d'elle. Jamais

les bibliothèques n'ont proposé et prêté autant de livres.24 Jamais le livre n'a bénéficié

de tels moyens de diffusion – n'oublions pas par exemple que les plus importantes

librairies au monde n'exercent que sur Internet...

Il est vrai pourtant que le public, sollicité par d'autres loisirs culturels, consacre

souvent de moins en moins de temps à la lecture de livres, et que le chiffre d'affaires

global du secteur de l'édition reste modeste – en France, il a tout de même été multiplié

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pratiquement par six en un demi-siècle, tandis que la production faisait plus que

quadrupler en nombre de titres.25 De plus, ce secteur, en Occident, se retrouve

aujourd'hui majoritairement entre les moins de grands groupes de communication

(audiovisuel, presse, télécommunications, publicité, divertissement, etc.). Or, pour de

tels groupes, le livre, malgré une importance symbolique certaine, n'est qu'une activité

secondaire, bien moins rentable, bien moins perméable à la publicité et bien moins

stratégique en termes de « médiacratie » que la télévision, la radio, ou même la presse

écrite pourtant en recul dans nos sociétés.

Mais cette situation d'intégration médiatique du livre, voire d'inféodation médiatique

apparente, doit-elle peser sur notre approche scientifique au point que l'on se

demande, comme Martin un jour de doute, lors d'une interview accordée l'an dernier

au Bulletin des bibliothèques de France26 : « Est-ce qu'il y a encore une place pour l'histoire

du livre ? L'histoire du livre doit-elle rester une discipline autonome ou s'intégrer à une

histoire [...] et à une réflexion sur les communications qu'il faudra bien développer un

jour ? »

Retour sur le livre et nouveaux enjeux de son histoire àla lumière des évolutions en cours

L'histoire du livre est-elle autrement dit soluble dans l'histoire des communications et

des médias, de même que l'édition de livres serait promise à se fondre dans la stratégie

capitalistique des grands groupes de communication qui la contrôlent ? Pardonnez-moi

pour ce parallèle, mais en ce qui me concerne, je vois pour le moment à cet «

alignement » de la discipline histoire du livre sur le destin supposé du livre un certain

nombre d'objections dont je souhaiterais vous livrer au moins une partie.

Et tout d'abord du côté de l'histoire même des communications, qui est censée dans

cette optique prendre en charge l'histoire du livre. Les spécialistes de la

communication et des médias font certes constamment référence à Gutenberg. Et j'ai

participé ici même il y a cinq ans, grâce au professeur José Alves, à un remarquable

colloque sur la communication – colloque qui s'était légitimement placé sous

l'invocation liminaire de Gutenberg.27 De même, Régis Debray, par exemple, dans son

intéressant Cours de médiologie générale (1991, nouv. éd. 2001), autrement dit de logique

des médias, a fait un sort au livre, à l'imprimé et à ce qu'il appelle la « graphosphère »

suivant son système de classification des médias. Toutefois, d'une façon générale, les

spécialistes des communications et des médias ont jusqu'à présent développé une

approche qui remonte rarement au-delà du XIXe siècle ou de la Révolution – approche

assez peu attentive, en fim de compte, aux évolutions du livre lui-même. Envisageant

avant tout la mécanique des médias de masse et l'impact d'informations, de messages

brefs et liés à une actualité, ils ont eu tendance à laisser de côté le livre. Voire à le

regarder sous l'angle fixiste d'une sorte d'« archéologie des médias », un peu comme si

l'objet livre et ses usages sociaux avaient été figés une fois pour toutes avant d'être

définitivement et irrémédiablement supplantés par d'autres médias.

Pourquoi cette vision des choses ? Parce que les contenus et l'inscription du livre dans

le temps sont complexes, ses chiffres de tirage relativement modestes, sa diffusion plus

lente, l'investissement de son contenu par la publicité très difficile et son influente sur

la collectivité fort délicate à évaluer dans le court terme, par rapport aux audiences des

grands médias audiovisuels, aux ventes de la presse quotidienne ou aux connexions à

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tel ou tel site Internet. Si bien que même l'approche médiologique, pourtant

prometteuse, s'est contentée à cet égard de procéder de seconde main ou par

approximations et conjectures.

Or ce constat d'inadéquation nous amène à une autre série d'objections liées à la

problématique de la définition du livre. Si l'on peut en effet parvenir à identifier ce

qu'est et a été l'objet livre, en Occident et ailleurs, au cours des siècles, il reste à cerner

ce qui fait sa spécificité intellectuelle, voire son caractère irréductible, en quelque

sorte, dans le concert des moyens de communication et dans l'univers de l'écrit

particulièrement.

De fait, tout écrit n'est pas livre. Le contenu d'un livre, objet porteur d'un certain

nombre de signes comme tout écrit, n'est cependant pas réductible à un unique

message ou à un ensemble de données et d'informations isolables et décomposables,

comme celles auxquelles l'univers informatique nous a habitués. Un livre, en théorie de

l'information, comporte même nécessairement du « bruit » le plus souvent en grande

quantité. Car un livre forme un tout, une unité structurée à laquelle aucune partie ne

doit en principe manquer pour qu'il puisse produire tout son sens. II en résulte que

composer un livre, de même que lire un livre, suppose un effort d'une certaine durée.

Effort d'attention et de concentration qui s'applique à un « assez grand nombre de

feuilles » – selon la formule volontairement vague de la définition lexicographique du

livre –, ou en tout cas à un support d'une longueur non négligeable. La lecture d'un

livre (quel que soit son genre) est un exercice généralement solitaire, silencieux et

suivi. Cet effort va rarement permettre une mémorisation exacte, mais il peut en

revanche laisser une trace durable dans l'imagination ou la consciente de son lecteur,

et favoriser ainsi la réflexion ou la mise à distante du contenu.

En tant que tel, le livre apparait investi d'une mission de mémorisation mais aussi de

distanciation vis-à-vis de l'immédiat. Ce médium abstrait et distant ne prend sens que

s'il est approprié à travers l'acte de lecture – acte généralement long et individualisé.

Mais il permet en même temps d'accéder à une dimension collective à travers l'exercice

de mémoire qu'il implique. Et il appartient ainsi, comme l'a rappelé H.-J. Martin en

citant le philosophe Karl Popper (1902-1994),28 à un « troisième monde » culturel, dont

chague « volume qui reproduit un récit ou un discours [...] se révèle destiné à maitriser

le temps [... et] est dès lors détenteur de valeurs symboliques et sacralisantes ».29

Avant d'admettre que le livre soit placé sur le même plan que les autres médias, et que

l'histoire du livre soit intégrée à celle des communications, ne faut-il donc pas se poser

la question de ce qu' implique sa spécificité ? Ne faut-il pas, en raisonnant (pour le

moment) par l'absurde, se demander par exemple ce que perdraient nos sociétés si le

livre ainsi défini, instrument à la fois de la constitution de la conscience collective et de

l'indépendance d'esprit de tout un chacun, venait à disparaitre de notre univers

culturel ?

Plusieurs utopies du XXe siècle ont exploré cette éventualité, notamment deux d'entre

elles particulièrement brillantes et visionnaires, à savoir Le Meilleur des mondes (Brave

New World) d'Aldous Huxley (1932) et Fahrenheit 451 de Ray Bradbury (1953).30 Or il est

intéressant de relever que toutes deux se sont placées dans l'hypothèse de sociétés qui,

à l'image des sociétés occidentales actuelles, sont déjà complètement alphabétisées. Où

l'écrit et les médias de masse de toutes sortes sont omniprésents, mais dont seul le livre

a été délibérément banni. Qu'on le persécute par l'autodafé comme dans Fahrenheit, ou

qu'on en inspire dès l'enfance une haine réflexe comme aux habitants du Meilleur des

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mondes, le but poursuivi est en fait le même. Le livre est perçu dans les deux cas comme

le lieu de formation par excellence de la réflexion solitaire, de l'esprit critique, des «

idées générales » (chez Huxley). des débats et controverses, des « pensées inutiles » et

irréalistes (chez Bradbury). Pour toutes ces raisons, il est jugé antisocial et présente un

risque majeur pour des sociétés dont la stabilité, l'uniformité, l'asservissement au

bonheur matériel et au consumérisme dépendent entièrement du conditionnement et

de la « prédestination sociale ». Ces best-sellers de l'anticipation nous ont donc

parfaitement avertis de ce à quoi pourraient aboutir les évolutions présentement à

l'oeuvre sous nos yeux, au moins en Occident. Priver (brutalement ou graduellement)

de livres une société développée et alphabétisée, c'est la rendre disponible pour une

foule d'inforrnations, de modèles et de messages à caractère prescriptif ou publicitaire

; c'est la maintenir sur un horizon collectif d'immédiateté, de volatilité et d'oubli

accéléré. C'est en un mot retirer à une telle société les armes et les repères dont elle

dispose pour éviter l'aliénation par la « contrainte positive » chère à Huxley.

Et je voudrais à ce propos rapporter ici une anecdote qui me semble bien illustrer les

enjeux en presence. Il y a un peu plus de vingt ans, un journaliste cherchant lors d'une

interview télévisée à embarrasser l'ex-président François Mitterrand lui avait demande

ce qu'il entendait quant à lui par le mot galvaudé de « liberté ». Alors le président

français lui avait fait cette réponse, qui en avait décontenancé plus d'un à l'époque : «

Pouvoir lire, un livre, une heure ou deux par jour, il n'y a pas pour moi de plus grande

liberte. » Le message était fort : il nous rappelait que la liberté, comme la lecture d'un

livre, est un choix et un effort d'abord personnels et solitaires – choix et effort d'autant

plus difficiles à assumer pour un homme public surexposé, au milieu du « bruit »

médiatique, de la surinformation et du trop-plein de la vie politique. Mais que cet

exercite silencieux, lent, intime,31 comme hors du monde réel, pouvait nous rendre

paradoxalement plus concernés par ce monde, et qu'il nous permettait d'accéder par là

à une forme supérieure de liberté à travers la conscience collective.32

À cela, me direz-vous, on peut objecter à juste titre que le livre a su se faire aussi par le

passé le vecteur de la propagande, ou de la pensée et de la religion uniques. Il a pu

s'identifier à une sorte de « matérialisation de la vérité » à la fois autoritaire et

totalisante, ainsi que l'a releve Michel Melot.33 En outre, il n'a pas toujours su, loin de

là, échapper à la tentation de la souslittérature.

De nos jours, pourtant, face aux flux croissants de messages, de slogans et

d'informations éphémères, face à la confusion grandissante entre information,

communication, publicité et divertissement, le livre apparait surtout comme le garant

de la distante critique, de l'indépendance d'esprit et de goût, de la portée d'une culture,

et pourquoi pas comme le rempart d'un nouvel humanisme face à l'aliénation et au

consumérisme.

« Aujourd'hui plus que jamais, la culture livresque est un enjeu énorme »,34 a déclaré

l'an dernier H.-J. Martin, à qui ce renforcement tendanciel du statut culturel du livre

n'a certainement pas échappé. Il me semble que nous sommes d'autant plus convaincus

de l'importance de cet enjeu au terme de ce tour d'horizon. Mais reconnaissons alors

qu'il serait d'autant plus dommage que l'histoire du livre, en Occident et ailleurs, se

trompe d'objet. Pour cette discipline pionnière et encore jeune, ce serait une erreur que

de négliger à la fois l'actualité et la portée du livre, de se laisser enfermer dans une «

archéologie des médias », et de se désintéresser de la nouvelle situation de défi de notre

XXIe siècle. Situation où, on le voit bien, le livre, pour continuer à assurer sa mission, à

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29

Page 31: Livro e Iconografia

être « ce ferment », tend d'autant plus à cultiver ses différences et sa spécificité – dans

sa forme comme dans ses contenus – vis-à-vis du reste de l'environnement médiatique.

Et non pas à se fondre complètement dans les contraintes qui régissent l'univers des

communications contemporaines et leur consommation.

Or cette forme d'intérêt, cette capacité à repenser le champ de la recherche pour y

intégrer des situations et des problématiques neuves qui importent à l'histoire des

sociétés – sans pour autant perdre de vue l'objet livre et ses mutations –, n'est-ce pas là

le message principal de l'histoire du livre telle qu'elle s'est constituée en Europe il y a

près d'un demi-siècle ?

On ne peut qu'être d'accord, par conséquent, pour que l'histoire du livre s'articule à

une histoire et à une réflexion plus générale sur les communications – cette

articulation est d'ailleurs, me semble-t-il, le moteur même du développement de la

discipline histoire du livre ; elle ne l'a, je crois, jamais perdue de vue, et c'est dans cette

voie qu'elle a intérêt à poursuivre, à la faveur d'échanges de plus en plus constructifs

avec notamment les spécialistes des médias et de la communication.

Mais à condition de ne pas se laisser cantonner à une approche qui envisagerait

seulement le livre comme un objet figé et comme une sorte d'embryon des mass media.

Le livre en effet ne vaut pas seulement par son passé. Il a aussi une actualité qui nous

importe, parce qu'elle fait sans cesse évoluer le regard que nous portons sur son

histoire et les enseignements que l'on peut en tirer. Pour que l'histoire du livre puisse

éviter la sclérose et tenir toutes ses promesses, il lui faut donc, me semble-t-il et comme

le rappelle F. Barbier dans sa postface à L'Apparition du livre, continuer de « centrer

l'étude sur le [livre] lui-même, mais sans exclusive35 d'école, de période ni de méthode.

En bref, faire du livre, au sens plein du terme, un objet d'histoire ».36

NOTES

1. Voir notamment sur ce point Henri-Jean Martin, « Comment on écrivit l'histoire du livre », Le

Livre français sous l'Ancien Régime, Paris, Promodis – éd. du Cercle de la L'ibrairie, 1987, pp. 11-28.

2. Encore que la paternité de cette invention lui ait été fermement contestée ici et là : en Alsace,

par exemple, les chroniqueurs lui ont longtemps préféré l'imprimeur de Strasbourg Johann

(Jean) Mentelin (1410?-1478) ; aux Pays-Bas et dans plusieurs pays voisins (dont l'Angleterre au

moins jusqu'à la fin du XVIle siècle), on a tenu jusqu'à la seconde moitié du XIX e siècle pour

Laurens Janszoon Coster, imprimeur à Haarlem, avant que l'antériorité de Gutenberg ne soit

établie de façon incontestable.

3. Relevons, dans le cas de la France, les travaux de figures emblématiques appartenant toutes

aux mêmes milieux (bibliothécaires et bibliographes, libraires, collectionneurs) : Antoine-

Alexandre Barbier (1765-1825), Jacques-Charles Brunet (1780-1867), Joseph-Marie Quérard

(1796-1867), Antoine-Augustin Renouard (1765-1853) puis Philippe Renouard (1862-1934), Henri

Baudrier (1815-1884), Anatole Claudin (1833-1906), Paul Delalain (1840-1924)...

4. Cf. la postface de Frédéric Barbier à la nouvelle édition de L'Apparition du livre de Lucien Febvre

et Henri-Jean Martin (Paris, Albin Michel, 1999), notamment pp. 545-546.

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Page 32: Livro e Iconografia

5. « L'histoire n'est pas l'accumulation des événements de toute nature qui se sont produits dans

le passé. Elle est la science des sociétés humaines », résumera Marc Bloch (1886-1944) en citant

Numa-Denis Fustel de Coulanges (1830-1889) dans « Pour une histoire comparée des sociétés

européennes », Revue de synthèse, 1928.

6. Extrait de la note introductive de Lucien Febvre à l'article d'Henri-Jean Martin, « L'édition

parisienne au XVIIe siècle : quelques aspects économiques », Annales ESC, 1952, p. 309.

7. H.-J. Martin, article « Histoire du livre » du Dictionnaire encyclopédique du livre, sous la dir. de P.

Fouché, D. Péchoin, P. Schuwer et la responsabilité scientifique de J.-D. Mellot, A. Nave, M.

Poulain, Paris, éd. du Cerele de la Librairie, 2002-… (t. II, 2005, pp. 476-478).

8. Charles Samaran, « Sur quelques problèmes d'histoire du livre [long compte rendu de

L'Apparition du livre] », Journal des savants, avril-juin 1958, pp. 57-72.

9. Voir en particulier à ce propos Roger Chartier, « De l'histoire du livre à l'histoire de la lecture :

les trajectoires françaises », Histoires du livre, nouvelles orientations. Actes du colloque du 6 et 7

septembre 1990, Göttingen, sous la dir. de H. E. Bödeker, Paris, IMEC éd. – éd. de la Maison des

sciences de l'Homme, 1995, pp. 23-45.

10. Mise en page et mise en texte du livre manuscrit, sous la dir. d'H.-J. Martin et J. Vezin, Paris, éd. du

Cercle de la Librairie – Promodis, 1990, et H.-J. Martin et collab., La Naissance du livre moderne,

XVIe-XVIIe siècle : mise en page et mise en texte du livre français, Paris, éd. du Cercle de la Librairie,

2000.

11. H.-J. Martin, « Pour une histoire comparative du livre. Quelques points de vue », Histoires du

livre, nouvelles orientations..., op. cit., pp. 417-432.

12. H.-J. Martin, avec la collab. de B. Delmas, Histoire et pouvoirs de l'écrit, Paris, Librairie

académique Perrin, 1988 (nouv. éd., Paris, Albin Michel, 1996 ; trad. anglaise sous le titre : The

History and power of writing, Chicago – London, University of Chicago Press, 1994). « [Ce livre] est

aujourd'hui pour moi une étape dans mon effort pour me dégager de l'histoire du livre imprimé

avec ce qu'elle comporte de partiel, pour élargir les horizons », a pu dire de lui son auteur dans

Les Métamorphoses du livre : entretiens avec Jean-Marc Chatelain et Christian Jacob, Paris, Albin Michel,

2004, p. 227.

13. H.-J. Martin, article « Histoire du livre », Dictionnaire encyclopédique du livre, op. cit., t. II, p. 478.

Réflexion reprise, développée et nuancée dans H.-J. Martin, Les Métamorphoses du livre..., op. cit.,

2004, pp. 215-216 : « faudrait replacer l'histoire du livre période par période [...] dans le cadre du

système global de la société correspondante. Peut-être serait-ce même là l'essentiel. Cette

réflexion ne pourrait être strictement historique. Elle devrait faire appel aux spécialistes des

diverses sciences humaines mais aussi aux neurophysiologues... ».

14. Extrait d'une interview accordée à Laurence Santantonios pour le périodique Livres Hebdo, n°

545, 20 février 2004, p. 76.

15. Herbert Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy, the making of typographic man, London,

Routledge & K. Paul, 1962 (trad. française sous le titre : La Galaxie Gutenberg face à l'ère

électronique : les civilisations de l'âge oral à l'imprimerie, Paris, Mame, 1967).

16. F. Barbier, C. Bertho-Lavenir, Histoire des. médias : de Diderot à Internet, Paris, Armand Colin,

1996 (3e éd. rev. et complétée, ibid., 2003). Dans l'introduction de cet ouvrage, la problématique de

l’articulation de l'histoire du livre avec celle des médias, en particulier, est explicitement

envisagée, et sous un angle critique stimulant : « Des questions du type « la fin du livre... ? » sont

au moins mal posées, qui appelleraient une mise en place et une réflexion plus scientifiques :

qu'est-ce que le média livre (qu'il faudrait distinguer de l'imprimé en général) apporte [...] ?

quelles sont les spécificités des nouveaux médias, dans quelle mesure ceux-ci s'insèrent-ils dans

une histoire qui leur préexiste nécessairement mais qu'ils contribuent à dépasser... ? »

17. F. Barbier, Histoire du livre, Paris, Armand Colin, 2000.

18. « Hier comme aujourd'hui, observe à juste titre Daniel Roche, le livre n'est jamais seul [...] il

prend place dans un système général d'information où [sous I'Ancien Régime] l'oralité demeure

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Page 33: Livro e Iconografia

dominante » (« Le livre : un objet de consommation entre économie et lecture », Histoires du livre,

nouvelles orientations..., op. cit., pp. 225-240, notamment pp. 226-228).

19. Rouen, deuxième ville du royaume de France au XVIIe siècle, est alors le principal centre

éditorial provincial, cf. Jean-Dominique Mellot, L'Édition rouennaise et ses marchés (v. 1600 – v. 1730) :

dynamisme provincial et centralisme parisien, Paris, École des chartes (diff., Paris, H. Champion ;

Genève, Droz), 1998.

20. Cf. le tome II de l'Histoire de l'édition française, sous la dir. d'H.-J. Martin et R. Chartier, Paris,

Promodis, 1984: Le Livre triomphant, 1660-1830.

21. Voir notamment sur ce point Jean-Dominique Mellot, Élisabeth Queval, Véronique Sarrazin, «

La liberté et la mort ? Vues sur les métiers du livre parisiens à l'époque révolutionnaire », Revue

de la Bibliothèque nationale, n° 49, automne 1993, pp. 76-85.

22. Parmi d'autres et dans le cadre français, cf. Le Livre:la fin d'un règne, de Fabrice Piault, Paris,

Stock, 1995.

23. Elizabeth L. Eisenstein, « Old media in the new millenium », De Gutenberg ao terceiro milénio :

actas do Congresso internacional de comunicação, 6, 7 e 8 de abril 2000, Lisboa, coord. José Augusto dos

Santos Alves, Lisboa, Universidade autónoma de Lisboa, 2001, pp. 141-150.

24. Sur ces questions, voir par exemple pour un point de vue centré sur la France et l'Europe Où

va le livre ?, sous la dir. de J.-Y. Mollier, 2e éd., Paris, La Dispute, 2002, et Laurence Santantonios,

Tant qu'il y aura des livres, Paris, Bartillat, 2005.

25. Passant de 12 000 titres en 1955 à quelque 55 000 en 2004.

26. En conclusion d'une interview accordée en juin 2004 à Anne-Marie Bertrand et Martine

Poulain pour le Bulletin des bibliothèques de France, t. 49, n° 5, 2004, pp. 21-23.

27. Lors du colloque De Gutenberg ao terceiro milénio : actas do Congresso internacional de comunicação,

6, 7 e 8 de abril 2000, Lisboa, coord. J. A. dos Santos Alves, Lisboa, Universidade autónoma de Lisboa,

2001, l'ouverture à l'univers du livre et de la presse et à leur histoire s'est révélée remarquable,

avec en particulier la conférence précitée d'Elizabeth L. Eisenstein, « Old media in the new

millenium » (pp. 141-150).

28. Karl R. Popper, La Connaissance objective, trad. de l'anglais, Bruxelles, éd. Complexe ; Paris,

Presses universitaires de France, 1978 (1re éd. anglaise, 1972 ; nouv. éd. française, Paris,

Flammarion, 1998).

29. H.-J. Martin, article « Livre », Dictionnaire encyclopédique do livre, op. cit., t. II.

30. II est à noter qu'une autre grande ceuvre d'anticipation de la même époque, 1984 de George

Orwell (1949), sans envisager l'exclusion radicale du livre, met toutefois clairement en scène sa

marginalisation et sa « récupération » au service de l'altération de la mémoire collective, dans un

univers où le libre exercice de la pensée même est proscrit.

31. Rappelons ici avec Philippe Ariès (« Pour une histoire de la vie privée », Histoire de la vie privée,

sous la dir. de P. Ariès et G. Duby, Paris, éd. du Seuil, t. III, 1986, pp. 7-19) que « c'est précisément

la diffusion de la lecture silencieuse, instaurant un rapport intime et secret entre le lecteur et son

livre, qui a permis l'affirmation de la notion même de « privé » ».

32. Un autre plaidoyer pour la liberté de la lecture, particulièrement inspiré, nous est proposé

par exemple dans Comment Pinocchio apprit à lire d'Alberto Manguel (Lausanne, Bibliothèque

cantonale et universitaire, 2003), lui-même auteur par ailleurs d'une stimulante Histoire de la

lecture (Arles, Actes Sud, 1998 ; 1re éd. anglaise, London, Harper Collins publ., 1996).

33. Voir notamment Michel Melot, « Le livre unique, de la religion du livre à l'idéologie du livre

», Les Trois Révolutions du livre. Catalogue de l'exposition du musée des Arts et métiers [Paris], 8

octobre 2002 – 5 janvier 2003, Paris, Imprimerie nationale éditions, 2002, pp. 407-412. Pour cet

auteur, la « menace de la perte de la forme du livre » vaut surtout « comme remise en cause du

modèle de la révélation comme accès au savoir ».

34. Extrait d'une interview accordée à L. Santantonios pour Livres Hebdo, art. cit., 20 février 2004,

p. 76.

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Page 34: Livro e Iconografia

35. Dans « Le comparatisme comme nécessité heuristique pour l'historien du livre et de la

culture » (Histoires du livre, nouvelles orientations..., op. cit, pp. 433-449), F. Barbier développe cette

caractéristique fondatrice et fondamentale de l'histoire du livre : « Il ne peut y avoir par exemple

une histoire économique de l'imprimerie-librairie qui s'opposerait à une histoire socioculturelle

des livres et à une ethno-histoire des lectures. La cohérence nécessaire de l'objet [...] doit être

conservée dans la démarche méthodologique de la recherche, qui ne doit négliger aucune voie

d'approche. Dès lors que notre objet privilégié, ici le livre ou, plus largement, la chose imprimée,

est dans le même temps une « marchandise », un « ferment », un symbole, un objet matériel, etc.,

il fonctionne comme le point de convergence de logiques multiples et entremêlées – économique,

socioculturelle, politique, artistique, etc. – et dont aucune ne peut être a priori rejetée par le

chercheur ».

36. L'Apparition do livre, postface à la nouvelle édition (Paris, Albin Michel, 1999), p. 579.

RÉSUMÉS

La « protohistoire du livre » et l'histoire de l'imprimerie ont été principalement l'affaire des

bibliophiles, des bibliographes et des historiens de la littérature, autrement dit d'experts

soucieux de défendre et d'illustrer une identité, ou encore de distinguer dans la masse de la

production imprimée au cours des siècles le rare, le monumental, l'anecdotique, le littéraire...

Depuis le milieu du XXe siècle et L'Apparition du livre (1re éd., 1958) de Lucien Febvre et Henri-Jean

Martin, l'histoire du livre, profitant des progrès de la sociologie historique et de concepts comme

l'« histoire des mentalités », s'est constituée en discipline pionnière. À la faveur de travaux de

grande envergure tels que l'Histoire de l'édition française (1982-1986), I'Histoire des bibliothèques

françaises (1988-1992), le Dictionnaire encyclopédique du livre (2002 - ...) et d'autres projets similaires

en Europe et au-delà, elle a entrepris de resituer le livre, sa production et ses pratiques, dans un

vaste contexte économique, social, politique, culturel. Dans le même temps, les interrogations de

l'histoire du livre sont venues rejoindre celles de l'histoire de la communication sociale et des

médias aujourd'hui dominants.

A «proto-história» do livro e a história da imprensa foram sobretudo assuntos dos bibliófilos, dos

bibliográficos e dos historiadores da literatura, ou seja, de especialistas ambicionando defender

uma identidade, ou de distinguir, na massa da produção impressa ao longo dos séculos, o raro, o

monumental, o anedótico, o literário... A partir de meados do século XX c com Apparition du Livre

(1a Ed. 1958) de Lucien Febvre et Henri-Jean Martin, a história do livro, usufruindo dos

desenvolvimentos da sociologia histórica e de conceitos como o de «história das mentalidades»,

constituiu-se como disciplina pioneira. Com trabalhos como Histoire de l'édition française

(1982-1986), Histoire des bibliothèques françaises (1988-1992), Dictionnaire encyclopédique du livre

(2002 - ...) e outros projectos similares quer na Europa, quer além dela, o livro foi reposicionado,

quer quanto à sua produção, quer quanto às práticas associadas, num vasto contexto económico,

social, político e cultural. Ao mesmo tempo, as interrogações levantadas pela história do livro

foram ao encontro da história da comunicação social e dos media, que hoje se tornaram

dominantes.

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Page 35: Livro e Iconografia

INDEX

Palavras-chave : livro, história do livro, história da impressão, história da edição, história dos

meios de comunicação, comunicação social, história cultural, história da leitura, bibliografia,

bibliografia material, morfologia histórica do livro

Mots-clés : livre, histoire du livre, histoire de l'imprimerie, histoire de l'édition, histoire des

médias, communication sociale, histoire culturelle, histoire de la lecture, bibliographie,

bibliographie matérielle, morphologie historique du livre

AUTEUR

JEAN-DOMINIQUE MELLOT

Conservateur en chef à la Bibliothèque nationale de France et chargé de conférences à l’École

pratique des hautes études (EPHE, Paris, Sorbonne).

Conservador na Bibliothèque Nationale de France. Professor na École Pratique des Hautes Études,

(EPHE, Paris, Sorbonne). Co-autor de Diccionaire encyclopédique du livre, 2 volumes de 3, Paris, 2002

e 2005 e o Répertoire d'imprimeurs-libraires (vers 1500-vers 1810), Paris, Bibliothèque nationale de

France, 1997 (nova ed. aumentada 2004). Autor ainda de L'édition rouennaise et ses marchés: vers

1600-vers 1730: dynamisme provincial et centralisme parisien, Paris (1998).

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Page 36: Livro e Iconografia

Iconografia do Livro Impresso

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Page 37: Livro e Iconografia

Desencontros entre texto e imagem“ilustrativa”, no Flos Sanctorum de1513Disagreement between text and illustrated image on Flos Sanctorum of 1513

Fr. António-José d'Almeida OP

O aparecimento da imprensa traz consigo a possibilidade da repetição da mesma

imagem por um processo mecânico. Não é, pois, de admirar que, nos livros impressos,

se assista à reutilização das mesmas matrizes. Pelo que pude observar na investigação

que efectuei a propósito da realização da minha tese de doutoramento, era comum a

utilização de entalhaduras abertas anteriormente para ilustrar obras posteriores,

surgindo mesmo acomodações. Não raro, as imagens contradizem o texto que

pretendem ilustrar. Isto denota um caminho percorrido pelas imagens independente do

dos textos que ilustram. Neste artigo, pretendo mostrar os mais relevantes

desencontros entre texto e imagem num livro do primeiro quartel do século XVI,

impresso em Portugal, que pertence a uma categoria de livros chamados Flos Sanctorum.

Este termo parece designar, na Península ibérica, traduções abreviadas, em vernáculo,

da célebre Legenda Aurea Sanctorum, composta, entre 1252 e 1260, pelo beato dominicano

Fra Jacopo da Varazze (Jacobo ou Tiago de Vorágine), que foi arcebispo de Génova.

Nestas traduções acrescentavam-se legendas de santos locais ou de outros não incluídos

anteriormente, formando o que era apelidado de Santos Extravagantes.

Proponho-me, pois, neste artigo, tratar dos desencontros entre o texto literário e as

imagens que o pretendem ilustrar, no Flos Sanctorum em linguagem português [Fig.1],

acabado de imprimir em Lisboa, por Hermão de Campos & Roberto Rabelo, a 15 de

Março de 1513 (Ans. 443), como consta do cólofon (f. 267r.):

"Aqui se acaba a leenda dos sanctos tresladada em lingoagem portugues. aqual sechama ystorea lombarda. pero comuũmente se chama flos sanctorum porque emella se contem a flor das vidas dos sanctos com diligençia corregida & ẽmendada& acreçcntada de duas vidas louuauees .s. de sancta Anna & sam Erasmo: que porgrande negligençia forom esqueçidas. E nom menosprezando nem esqueçendo osnossos sanctos que nos regnos de portugal resprandeçem per muytos milagres

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acreçentamentos destes aa presente .xix. vidas. Ha qual obra foy feita & tresladada afym que os que a lengua latina nom entendem. nom sejam priuados de tamexçellentes & marauilhosas vidas & exempros. Et por que cada huum estando emsua casa despenda o tempo em leer tam exçellentes & sanctas vidas &exempros que outras ystoreas vaãs ou liuros de pouco fructo. E a sobredicta obrafoy emprimida em a muy nobre & sempre leal cidade de Lisboa. Com preuilegio delRey nosso senhor: per Herman de campis bombardero del rey. & Roberte rabelo. A.xv. dias de Março de mil quinhentos & treze."1

Fig. 1: Flos Sanctorum de 1513, folha-de-rosto (238x154 mm.).

(Fonte: Anselmo, A. J., 1926, p. 121).

Deste livro só se conhece um exemplar, conservado na Biblioteca Nacional, em Lisboa,

com a cota: RES. 157 A. Este é proveniente, ao que parece (Sobral, 2000, p. 34), de uma

casa da Ordem dos Pregadores.

Da parceria de impressores Hermão de Campos & Roberto Rabelo só se conhece esta

obra, sendo a única de Roberto Rabelo. Hermão de Campos é o nome aportuguesado de

"Herman de kempis alemã", como figura na primeira obra que imprime em Portugal,

neste caso em Setúbal, em 1509, a Regra: statutos: & diffinçoẽs: da ordem de Sanctiaguo (Ans.

434).

Algum material iconográfico utilizado na presente obra será retomado posteriormente

por Gemião Galhardo, como é o caso da imagem de São Jerónimo, que aqui analisarei

em último lugar.

Esta versão portuguesa não foi feita sobre o original latino, mas sobre urna edição em

castelhano. São de notar, a este respeito, os vários castelhanismos que se encontram

nesta obra em português. O texto da 'legenda' do Natal, a que a seguir me referirei,

difere do de Fr. Jacopo da Varazze, mas é igual ao de uma edição em castelhano,

preparada ao que tudo indica pelo cisterciense aragonês Fr. Gauberto Fabricio de Vagad

(Martins, M., 1960, e 1969, pp. 255-280; Colomer Amat, 1999, pp. 12/120-15/123).

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Page 39: Livro e Iconografia

Além de vários autores que já se referiram a este livro, ele foi objecto de três teses de

doutoramento: a de Maria Clara de Almeida Lucas, em Teoria da Literatura (Lucas,

1988); a de Cristina Sobral, em Literatura Portuguesa (Sobral, 2000); e a minha, em

História da Arte (Almeida, A.J., 2005). Esta última debruçou-se especificamente sobre a

problemática da sua ilustração.

Retomo neste artigo um dos aspectos que tratei na minha tese de doutoramento, já

referida, intitulada Imagens de Papel,2 defendida a 30 de Novembro de 2005 na Faculdade

de Letras da Universidade do Porto. É este um aspecto importante, na hora de analisar a

ilustração de um livro impresso, porém não tido em conta mesmo por grandes

investigadores (vd. Almeida, A.J., 2004)

1 - Utilização acomodatícia

Começarei pela apresentação de três imagens, nas quais é nítida a utilização

acomodatícia feita em relação aos textos que pretendem 'ilustrar'. Chamo-lhe

acomodatícia, porque a imagem refere-se a outro personagem ou, no caso da primeira,

a outra invocação de Nossa Senhora.

I. 1 - Imagem de Na Sa do Rosário, utilizada como imagem genéricade Nossa Senhora

Já me referi, noutro local, à primeira destas imagens (Almeida, A.J., 2004-05), tendo aí

abordado o seu aspecto iconográfico. Mas aqui retomo-a sob uma perspectiva diferente,

a da adequação entre texto e imagem.

Refiro-me à representação de Nossa Senhora do Rosário. Esta estampa [Fig. 2] aparece,

no nosso livro, na segunda coluna (b) do fólio 221, onde, na primeira coluna (a), se lê o

incipit: "Seguese ho millagre pollo qual se çelebra ha festa de sancta maria das neues."

Trata-se, pois, nitidamente de uma acomodação. A imagem da Virgem, sustentando o

Filho nos braços, é rodeada por um contador de orações, cujas contas redondas são

separadas de vez em quando por uma flor. Estamos sem sombra de dúvida perante a

representação de uma parte do Rosário de Nossa Senhora, mais concretamente o

tradicional Terço. Sobre as imagens coetâneas semelhantes a esta, já escrevi um artigo

na revista Leituras, da Biblioteca Nacional, para o qual remeto o leitor interessado

(Almeida, A.J., 2004-05). A imagem específica da invocação de Nossa Senhora do Rosário

foi transformada em imagem comum da mesma Senhora, ilustrando aqui outra

invocação da Virgem Santa Maria, a de Nossa Senhora das Neves.

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Page 40: Livro e Iconografia

Fig. 2: Nossa Senhora do Rosário (66x44 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 221 b.

(Fonte: Flos Sanctorum, 1988, extratexto face à p. 130)

1. 2 - Adaptações engenhosas

Vejamos agora duas imagens, cuja adaptação é bem mais engenhosa, dado tratar-se em

ambos os casos de personagens diferentes daqueles que elas pretendem ilustrar. Nisto

diferem do caso anterior, em que a personagem era a mesma, embora sob outra

invocação.

1. 2. 1- Job, 'ilustrando' São Julião

Não me foi fácil identificar a personagem representada na pequena estampa que orna a

primeira coluna (a) do fólio 23 do Flos Sanctorum de 1513 [Fig. 3]. Julgo tratar-se da

figura de Job troçado pelos amigos. Se a figura masculina nua sentada, que ocupa o

triângulo inferior direito do quadro, podia sugerir a figura de Job, os outros dois

personagens na sua frente, tocando instrumentos musicais, não se coadunam com o

relato bíblico veterotestamentário do Livro de Job. A justificação para a presença destes

personagens, encontrei-a na obra de Louis Réau (1996, tomo 1/ vol. 1, p. 367), onde ele

afirma que numa misericórdia do cadeiral do século XV do coro da igreja de Champeaux

(em França) está representada a cena dos amigos de Job a fazerem pouco dele, tocando

flauta. Esta cena, diz o mesmo autor, terá tido origem no teatro dos Mistérios.

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Page 41: Livro e Iconografia

Fig. 3: Job (34x26 mm.) Flos Sanctorum de 1513, fólio 23 a.3

Esta estampinha pretende ilustrar a 'legenda' intitulada "A vida de outro julliã que

matou seu padre & sua madre."

Nesta estampa de pequenas dimensões, parece-me ver, como atrás afirmei, Job nu

sentado e, na frente dele, dois músicos: um tocador de gaita-de-foles e outro tocando

uma buzina ou trompa de caça. Parece, pois, ser este um caso de adaptação de uma

imagem, criada para outro fim, no sentido de ilustrar outra história.

Mas qual a razão de esta estampa ilustrar a referida 'legenda' do chamado Édipo

cristão? Julgo que a razão desta escolha se deva ao facto de nela estar representado um

homem tocando uma trompa. Isto reporta-nos ao mundo da caça, e foi durante urna

caçada que Julião teve o vaticínio através de uma corça (qual esfinge) de que iria ser o

assassino de seus pais. Ao organizador da ilustração bastou ler as primeiras linhas da

'legenda' para escolher, de entre as matrizes que tinha à mão, uma para ilustrar a

'legenda' em questão.

Vemos, pois, até onde pode chegar o recurso à adaptação das xilogravuras a novos

contextos, com algum ligeiro ponto de contacto.

I. 2. 2 - São Nicolau, 'ilustrando' Santo Ildefonso

Um outro caso é o de uma outra xilogravura pequena (34x25 mm.) [Fig. 4] que

encontramos estampada neste Flos Sanctorum de 1513 por duas vezes: uma, no cimo da

portada que orna a folha-de-rosto, à esquerda [Fig. 1]; e outra, no fólio 78 c, ilustrando

a 'legenda' da trasladação do corpo de Santo Ildefonso de Toledo. Representa o bispo de

Mira São Nicolau, cujas relíquias se guardam em Bari, no tradicional acto de abençoar

três crianças, de que só se vêem duas, dentro de uma barrica. Sobre a túnica vislumbra-

se a estola por baixo da capa de asperges colocada sobre os ombros e apertada à frente

por um grande firmal oblongo. A mitra cobre-lhe a cabeça e segura na mão direita o

báculo pastoral.

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Page 42: Livro e Iconografia

O episódio figurado é o da lenda da ressuscitação de três meninos clérigos. Conta esta

lenda que, num tempo de fome, um estalajadeiro roubou três meninos que matou,

esquartejou, e meteu os bocados dos corpos dentro de uma barrica com sal para servir a

sua carne aos hóspedes. O santo bispo, traçando o sinal da cruz, fez com que voltassem

à vida e inteiros.

Roger Wieck (1997, p. 115) afirma que esta estória parece ter tido a sua origem em

França, pertencendo ao século XII a sua mais antiga referência, embora seja sem dúvida

mais antiga. Segundo este mesmo autor, ela terá derivado de uma má leitura das três

bolas amarelas que são atributo do Santo, confundidas com três cabeças. Ora as três

bolas douradas representam as três bolsas de dinheiro que serviram de dote a três

moças votadas à prostituição.

Conta assim este episódio o nosso livro (f. 10 a):

"E despoys que ho pay & a may forom mortos [Saam nicholao] começou decuydar em que maneyra despenderia as riquezas que lhe leyxarõ nõ em louuor dopouoo mas a seruiço de deos. E neste tempo huũ seu vezynho assaz fidalgo tynhatres filhas dõzelas virgẽs & por rezã da proueza en que era: as queria fazermaas molheres porque se podesse gouernar & manteer com o ganho dellas. Edespoys que o soube sam nicolao aborreçeo este pecado: & de noyte e emescõdido tomou hũa massa de ouro emborulhada em huũ pano & deytoulho emcasa per hũa fresta & foysse. E ho boo homẽ leuantouse polia manhaã & achou oouro: & deu graças a deos & casou a filha mayor. E despoys de hy a pouco tẽpo hoseruo de deos fez outro tanto como a primeyra vez. E despoys que aquelle homẽysto vyo começou de louuar muyto a deos & a marauilharse & espreytou por veerquẽ era aquelle que lhe acorria a tã grande coyta & mingoa. E despojs a poucotempo deytou outra massa dobrada em sua casa: & o boõ homê acordou ao golpe doouro & foy apos sam nicolao, & des que ho conheçeo deytouse a seus pees & quiseralhos beijar: mas elle nõ lho quis cõsentir: ãtes lhe rogou que o nõ descobrisse em suavida."4

Porém Émile Mâle (1968, vol. 2, pp. 271-272), seguido por Metford (1983, p. 181; embora

não o cite), faz derivar a lenda de outro episódio da vida do Santo, que o nosso livro (f.

10 c-d) relata do seguinte modo:

"o emperador (...) mãdou que os [tres prinçipes. neponçiano. & vrsu & apilone]metessem em huũ ca.çere.[sic] & que os matassem aquella noyte (...) e elles|estãdo assy em oraçõ aquella noyte, apareçeo sã nicolao ao emperador (...) Eassy mesmo espantou ao prefeto que era juiz mayor que acõselhara ao emperador(...) E o emperador (...) disselhes: hydevos & agradeçey a deos que vos liurou pellorogo de satn nicolao. (...)"

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Fig.4: São Nicolau (34x25 mm.). Flos Sanctorum de 1513, rosto*e fólio 78 c.5

Fig.5: São Nicolau (75x69 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 9 d.

A entalhadura que serviu de matriz a esta estampa foi copiada em espelho, como se

pode verificar pelo facto de o bispo abençoar com a mão esquerda, quando

habitualmente o faz com a direita, como, aliás, se verifica na estampa com a mesma

temática, mas de grandeza média (75x69 mm.), inserida no fólio 9 d desta obra [Fig. 5],

que ilustra precisamente a 'legenda' de São Nicolau. Era muito frequente o entalhador

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de uma matriz xilográfica se esquecer de virar o desenho no momento de fazer a

entalhadura, especialmente quando se tratava de cópia de outra estampa, realizada

mediante decalque.6 Erro semelhante é corrente hoje em dia quando se imprime uma

imagem a partir de um slide: é frequente sair invertida em relação ao original. Trata-se

pois de um erro frequente em trabalhos tipográficos.

No nosso livro, a pequena xilogravura de São Nicolau que aparece no rosto [Fig. 4]

ilustra também, no fólio 78 c, a 'legenda' da Trasladação do corpo de Santo Ildefonso de

Toledo, intitulada: "Da trasladaçom & achamento do bemauenturado senhor sancto

yllefonso arçebispo de toledo & em que maneira foy achado o seu corpo em çamora."

Terá o tipógrafo entendido salmoura ou jogado maliciosamente com as palavras?

II - 'Textos' paralelos

Os exemplos seguintes são de casos em que a Tradição iconográfica não concorda com o

Texto que 'ilustra'. Podemos falar de dois 'textos' paralelos: o iconográfico e o literário.

II. 1 - Nascimento de Jesus Cristo

A xilogravura [Fig. 9] impressa na primeira coluna (a) do fólio 14 do nosso livro, no

início da 'legenda' intitulada "Do nasçimento de nosso senhor Jhesu christo",

representa a cena do parto virginal de Jesus. Esta passa-se num estábulo, ao ar livre, só

com uma cobertura de madeira e colmo, o tugúrio debaixo do qual se encontra a

manjedoura junto da qual estão a asna e o boi. A razão de ser da presença dos dois

animais é dito no texto7 inspirar-se em dois textos não canónicos:

"Agora vos queremos dizer outra razã deste nascimento que achamos en ho liuroque fez Santiago ho menor8: que foy bispo de jherusalem. & en outro liuro quechamã dos nazarenos9: & dizem assy. Que quando se hyã joseph & sancta maria poraquella estrada que hia de na-|zared pera bethleem leuauã com sigo huum boy peravender pera pagar aquella peita: & huũ[sic] asna em que hya sancta maria (...) & fezentrar sancta maria em hũa daquellas couas na mays escura & mais temerosa quehy estaua & nõ auia hy lume nenhuum. E entonçe como entrou sancta maria foyloguo ally tã grande a craridade como se ally esteuesse ho sol ao meyo dia quandohe mays craro. (...) a virgem sancta maria: em tanto pario ella sen door nem trabalho nenhuum. & assy nasçeeo della seu filho nosso senhor jhesu christo deos &homem verdadeyro: & ella nõ ho sentio senã quando ella vyo ante sy: naado hominino: & ficou ella virgem como era dantes. E esto por muytos pro-|phetas foyprofetizado os quaaes souberõ a poridade de deos. (...) E diz agora aquelle euangelhode sam lucas [Lc 2,7] que despoys que sancta maria pario seu filho. que ho enuolueoem huns panezinhos & o pos em hũa manjadoyra. & aquella manjadoyra era huumpouco longa & a huum cabo della comia ha asna em que andaua sancta maria &ho boy ao outro. (...) E como paryo porque nõ achou lugar mays molle poseo emhuum pouco de feno enuolto em huuns panos & ho boy & a asna como ho sentirõleyxarõlhe toda a manjadoyra & tirarõse a fora & abayxarõ as cabeças atee a terra adorando. & esto da asna & do boy foy assy feyto porque se comprisse hapropheçia que muyto tempo antes dissera o propheta jsayas. que escreueo estapallaura. Conheçeo ho boy cujo era & ha asna a manjadoyra do seu senhor [Is 1,3]. Eoutro propheta que ouue nome abacuh escreueo esta outra propheçia. Em meyo dedous animaes sera conhecido [Hab 3,210]. & esto nos diz o euangelho." (Flos Sanctorumde 1513, ff. 14 c – 15 a, negrito e itálico nossos)

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Fig. 6: Parto da Virgem. Rogier Van der Weyden, Paine

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Fig. 7: Parto da Virgem. (40,8x32,2 cm). Anónimo flamengo, Natividade (post.1440)

(Fonte: No Tempo das Feitorias, 1992, vol. I, p. [117]).

Fig. 8: Parto da Virgem. Biblia Pauperum em alemão Bamberg 1462, fólio 1 v° (Fonte: TIB 80, p. 41, fig.1462/57 (Schramm 1.170).

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Fig. 9: Parto da Virgem (85x56 mm.). Flos Sanctorum de 1513 fólio 14 a (Fonte: Frazão, M.L., 1998,vol. II, fig. 209).

Contrariamente ao texto, que fala de uma cova, a cena passa-se no pátio de um

estábulo, ao ar livre, mas de acordo com uma tradição iconográfica iniciada no séc. XV

com o chamado 'estilo internacional', o Menino está deitado no chão do pátio, com um

nimbo à volta da cabeça e auréola envolvendo o corpo,11 já que, segundo as visões

místicas de Santa Brígida, todo Ele irradiava luz. (Almeida, C. A., 1983, p. 138/4 b)

Este tipo de imagens ilustra o momento do parto da Virgem Maria, de acordo com as

Revelações de Santa Brígida da Suécia, compostas à volta de 1360-70 (Panofsky, E., 1998,

p. 52): a Virgem, com os cabelos soltos sobre os ombros, adora, de joelhos, o Menino

Jesus. Este, nuzinho, está colocado no chão, espargindo raios de luz ("iacentem in terra

nudum et nitidissimum"12). Sentado, abençoa com a dextra. A Virgem Sua mãe, com os

cabelos soltos apanhados por uma fita com uma jóia sobre a testa13 e a cabeça cercada

por um nimbo, contempla-O ajoelhada. Quanto a José, não tem a cabeça nimbada;

genuflecte e segura uma vela com a mão direita, enquanto a esquerda protege a chama

do vento. Uma estrela se ergue no céu por sobre a cabeça do patriarca, alusiva ao

episódio da visita dos Magos [Mt 2,9 b].

Podemos ver uma origem remota da nossa xilogravura em imagens flamengas e de

modo particular no painel central do 'Retábulo de Peter Bladelin', obra documentada

começada a pintar por Rogier van der Weyden, a óleo sobre madeira, não muito depois

de 1452 (Panofsky, E., 1998, p. 273), e que hoje se encontra na Gemäldegalerie, do

Berlin-Dahlem Museum [Fig. 6]. Temos no nosso país urna pintura flamenga da

Natividade, não documentada, datável pelos especialistas dos anos subsequentes a 1440,

mas com nítida afinidade com a do retábulo de Bladelin, corno o reconheceu Pedro

Dias.14 Esta tábua pintada pertenceu seguramente a uma instituição religiosa

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portuguesa, e conserva-se hoje no Museu Nacional de Arte Antiga, com o Inv. n° 1243

(Dias, P., 1992). [Fig. 7]

Neste campo, com traço muito simplificado, mas por isso mesmo muito legível,

encontramos uma representação muito semelhante à destas pinturas, mas com o

Menino colocado no chão, numa estampa da Biblia Pauperum em alemão [Fig. 8],

impressa em Bamberg, por Albrecht Pfister, por volta de 1462, no verso do fólio 1

(Schramm 1.170) e reestampada pelo mesmo impressor, pensa-se que no ano seguinte,

na edição latina do mesmo livro (TIB, vol. 80, p. 54). Nesta estampa vemos praticamente

todos os elementos da nossa [Fig. 9], menos a paisagem e a estrela. A Senhora tem as

mãos postas voltadas para cima, ao contrário da nossa que, como nos quadros atrás

referidos, as tem voltadas para baixo; e sobre os ombros tem um manto, ausente da

nossa estampa, tal como no retábulo Bladelin de Rogier van der Weyden [Fig. 6].

Podemos ver, por estes exemplos, como os modelos iconográficos viajavam, não

estando vinculados a um texto.

II. 2 - Imagens de santos

Desta imagem de um episódio do Novo Testamento, passemos a imagens de Santos. A

sua apresentação segue, neste artigo, a ordem tradicional das ladainhas, dado as ter

retirado do seu contexto, em que ilustram as 'legendas' correspondentes aos dias do

ano em que comemora a sua respectiva festa litúrgica.

II. 2. 1 - Apóstolos

Os apóstolos são os santos que foram enviados por Cristo ressuscitado a pregar o

Evangelho a todos os povos. O atributo iconográfico que identifica cada um deles está

relacionado com o tipo de martírio que cada um sofreu.

Vejamos o caso da representação de dois apóstolos e os seus respectivos atributos

identificativos, que estão de acordo com a tradição iconográfica, mas não têm relação

directa com o texto que 'ilustram'.

Santo André

O apóstolo Santo André é identificado, na imagem do fólio 5 a do Flos Sanctorum de 1513

[Fig. 10], pelo seu atributo pessoal, que é uma cruz aspada (em X), isto por, segundo a

tradição, ter sido crucificado na Acaia. Porém, o texto não refere o género de cruz em

que Santo André foi crucificado. Vemos, pois, que existem dois textos paralelos: o

literário e o iconográfico. A cruz em X só aparece associada a Santo André, no

Ocidente, a partir do século XIV e na arte do ducado da Borgonha (Duchet-Suchaux &

Pastoureau, 1990, p. 23), de cuja casa reinante era o padroeiro (Molanus, 1996, I, p.

[463], nota I).

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Fig. 10: Santo André (76x70mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 5 a.

São Tomé

No caso seguinte, o texto contradiz a imagem. Situações como esta serão as três que a

seguir a esta apresentarei, e com as quais concluirei este meu pequeno estudo.

Vejamos a estampa que, no Flos Sanctorum de 1513, no fólio 12 b [Fig. 11], representa

um Santo com barbas ajoelhado, trespassado por lança, frente a um ídolo quebrado.

Trata-se da representação do martírio do apóstolo São Tomé, cuja 'legenda' ilustra. No

texto (f. 13 d) podemos ler:

"o apostollo posese em giolhos & disse Adoro mas nõ a este ydollo nẽ a este cobre masadoro ao meu senhor jhesu christo. & da sua parte mãdo eu a este diabo que quebre aquellecobre & ho derreta como çera. & loguo assy foy fecto. (...) & o bispo do tẽplo alçou ocuitello & matou o apostollo".

Este texto, tradução da Legenda Áurea,15 fala de "cuitello" (ou espada) e não de lança, e

diz que é "o bispo" (ou pontífice) do templo quem mata o apóstolo. Por aqui vemos

como a iconografia não está baseada no texto da Legenda Áurea, como tantas vezes

se afirma, mas tem formação independente, como já acontecia com a iconografia de

Santo André, anteriormente apresentado.

O atributo habitual de São Tomé é precisamente a lança (ApostolosCappadona, 1995, p.

320 a). Mas, no nosso livro, encontramos mais à frente, no fólio 49 a, uma estampa [Fig.

12] em que está representado um apóstolo empunhando uma lança com a mão direita,

ilustrando, porém, a 'legenda' intitulada "Da vida de sam mathias aplło." Ora São

Matias, que foi escolhido para integrar o colégio dos Doze depois da morte de Judas

lscariotes, parece ter sido decapitado com um machado (Apostolos-Cappadona, 1995, p.

238 a), depois de apedrejado (Sarmento, 1789, t. I, p. 211). Estamos, pois, perante o

aproveitamento de uma imagem icónica de São Tomé para 'ilustrar' a história da vida

de outro apóstolo.

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Fig. 11: Martírio de São Tomé (75x70 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 12 b.

Fig. 12: S. Tomé (76x70 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 49 a.

A relação desta imagem de um apóstolo empunhando uma lança com São Tomé está

relacionada com a forma habitual de representar o seu martírio com uma lançada,

como vimos atrás [Fig. 11]. Há portanto, no nosso livro, uma duplicação das imagens de

São Tomé, a narrativa do martírio e a icónica. Esta segunda [Fig. 12] é aplicada a outro

santo apóstolo, aproveitando-se assim uma xilogravura disponível.

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Page 51: Livro e Iconografia

II.2.2. Mártires

O mártir, no Cristianismo, é aquele que se deixa antes matar do que renegar a fé em

Cristo. Assim dá testemunho até ao sangue. Estes são os segundos, na hierarquia dos

santos cristãos, após os apóstolos.

Nos dois casos seguintes, assistimos à representação de martírios que diferem da

narrativa que pretendem ilustrar.

Martírio de São Crisanto e de Santa Daria

Na estampa do fólio 7 c do Flos Sanctorum de 1513 [Fig. 13], os dois santos estão

representados dentro de uma casa, à qual um soldado lança fogo. Porém, o texto

literário mais uma vez não é concorde com o iconográfico:

Fig. 13 : Martírio de São Crisanto e de Santa Daria (76x76 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 7 c.

"[S]Am crisãto foy filho de apoio de apolonia: & despois que soube a ffe de jhesuchristo nõ o podia leuar seu pay aos ydollos: pollo qual ho mãdou emçerrar em hũacamara: & meteo cõ elle çinco moças galãtes porque o ẽganassem por seus afagos. &elle rogaua a deos que o nõ vẽçessem hos desejos da carne. & adormeçerõse logo asmoças em maneyra que nõ comiã nê bebiã na camara & se as tirauã logo comiã. Eemtõ rogarom a daria virgẽ muy emtẽdida que ẽtrasse cõ elle & o tornasse aosdeoses (...)| & crisanto (...) a cõuerteo: & ambos (...) cõuertiã muytos a ffe de christo:(...) & mãdarom poer a crisanto ẽ huũ caçere[sic] & a daria que a leuassẽ ao lugardas maas molheres: mas huũ lyã fugio do paço de seu senhor & fezse seu porteirodeste lugar. (... ) E logo mãdou o adiãtado poer muy grãde fogo a porta ondeestaua o lyã pera que ardessẽ o lyã & daria dẽtro na casa . (...) mas ẽ fimmãdouos ambos marido & molher guardar sua virgĩdade & fezeos meter ẽ hũacoua viuos: & mãdou cobrijr de pedras & de terra: & assy forõ martires de jhesuchristo." (Flos Sanctorum de 1513, f. 7 c-d)16

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Não aparece na imagem o leão, que guarda Daria. Terá o inventor da cena iconográfica

confundido o animal com um homem de nome Leão? O casal, na imagem, é colocado

numa casa e não numa cova, como no final da 'legenda'.

Martírio de Santa Luzia

Na estampa do fólio 11 c do Flos Sanctorum de 1513 [Fig. 14], vê-se Santa Luzia em cima

de uma tábua puxada por uma parelha de cavalos, conduzidos por um homem de

calções às riscas, que empunha um chicote na mão direita. Os cavalos passam por baixo

da porta de uma cidade, só se lhes vendo os traseiros. A imagem relaciona-se com o

seguinte episódio, assim narrado no nosso livro (f. 12 a):

Fig. 14: Martírio de Santa Luzia (75x69 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 11 c.

Entõçe pascoal mandou vijr os reffiões & disselhes: cõvidae todo ho pouoo pera ella:& tanto ha escarneçe atee que ha matees E elles quiserõna leuar ao lugar das maasmolheres mas nõ poderõ. que ho espirito sancto ha fazia pesada por que ha nõpodessẽ leuar. E fez loguo vijr muytos homẽs & a mãdou atar dos pees & dasmaãos: mas nõ a poderõ mouer tã pouco como dantes:ca ho espiritu sancto aguardaua & lhe deffẽdia sua castidade E pascoal fez trazer muytos boys jũguidos.& tã pouco a poderõ mouer tã soomẽte. & mãdou vijr os encãtadores que amouessẽ cõ seus encãtamãtos: mais nõ poderõ.

Contrariamente ao texto que acabo de transcrever,17 em que são mencionados bois, na

imagem ilustrativa aparecem, como referi atrás, os traseiros de equídeos.

II. 2. 3 - Confessor

Finalmente, vejamos o caso da representação de um santo confessor, isto é, de alguém

cujo testemunho ou confissão de fé em Cristo não chegou, como no caso dos mártires,

até ao derramamento de sangue.

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Page 53: Livro e Iconografia

São Jerónimo

Uma xilogravura [Fig. 15], estampada na primeira coluna (a) do fólio 201 do nosso Flos

Sanctorum de 1513, representa São Jerónimo, vestido de cardeal, retirando o espinho da

pata de um leão ferido. A fábula do leão e São Jerónimo provém18 da estória de São

Gerásimo, devido a uma confusão derivada da semelhança entre os nomes. Diz o texto

(f. 201 c-d):19

"huũ dia como esteuesse assentado ouuindo a sagrada liçã| cõ os religiosos entrousupitamẽte no mosteiro huũ lyõ manquejando de hũa perna o qual visto osreligiosos fogirõ: & sam jheronimo foyse pera elle como a hospede. & como o lyõ lhemostrou o pee danado chamou os frades & lhe mãdou lauar os pees: & quebuscassem onde tinha o mal: & acharõ que tinha a palma do pee toda ferida dosespinhos. em fim posta nelle bõa diligẽçcia foy saão & morou antre elles como huũdomestico animal."

São Jerónimo é assimilado, na iconografia, a um evangelista sentado a uma estante

(Réau, 1996, t. 2/vol. 4, p. 146), como aliás acontece com os outros doutores da Igreja,

em especial os quatro grandes doutores da Igreja latina, dos quais ele é um. Na imagem

é o próprio São Jerónimo que trata do animal, não saindo do seu local de trabalho. Isso,

pois, não está de acordo, mais uma vez, com o texto.

Fig.15: São Jerónimo (76x68 mm.). Flos Sanctoruni de 1513, fólio 201 a.

Esta xilogravura foi reestampada no livro intitulado Contra os Juízos dos Astrólogos, da

autoria do monge jerónimo Fr. António de Beja. Neste livro, impresso em Lisboa, por

Germão Galharde, em 1523, a referida xilogravura está estampada no verso da folha-de-

rosto. A razão da sua presença neste livro é revelada pela frase colocada ao seu lado

direito e esquerdo, que diz: "Ora pro nobis| Beate pater hieronime." A estampa está

relacionada com o autor da obra, já que a inscrição apelida São Jerónimo "Bem-

aventurado Pai", devido a Fr. António de Beja pertencer à ordem religiosa que tem São

Jerónimo corno padroeiro. À presente impressão da referida xilogravura já se referiram

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Pina Martins (1972, pp. 97 e 99) e Artur Anselmo (1991, pp. 232-234). Porém, nenhum

destes autores refere a sua anterior presença no Flos Sanctorum de 1513.

Além do fenómeno da repetição dos modelos iconográficos, vemos como a adequação

entre o texto e a imagem não são sempre tidos em conta por parte do 'ilustrador' do

livro impresso. Este, vimo-lo no caso do Flos Sanctorum de 1513, aproveita o material já

existente, por vezes desajeitadamente. Este facto, como tive ocasião de verificar por

experiência própria, dificulta a tarefa do investigador, mas, por outro lado, torna-a

mais entusiasmante: descobrir aquilo a que chamei os desencontros entre dois textos, o

literário e o iconográfico. Lembremos que os iconódulos do tempo da iconomaquia no

mundo bizantino tinham consciência de que as imagens eram um verdadeiro texto,

chamando, ao artista que faz os ícones, iconógrafo (à letra, aquele que escreve

imagens).

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NOTAS

1. Tanto o negrito como o itálico, nas citações do livro, são sempre da minha autoria.

2. IMAGENS DE PAPEL. O Flos Sanctorum em linguagem português, de 1513, e as edições quinhentistas

do de Fr. Diogo do Rosário OP - A problemática da sua ilustração xilográfica.

3. Quando a fonte da figura do Flos Sanctorum de 1513 não é indicada é porque se extraiu do

microfilme da Biblioteca Nacional, em Lisboa: F. 1426.

4. O episódio dos três dotes é anterior a S. Nicolau ser bispo, o que se pode ver num quadro do

ciclo da vida deste santo pintado pelo Beato Fra Angelico, que neste episódio o figura jovem com

traje civil (Baldini, 1973, PL. XX-XXI).

5. O asterisco indica o lugar no livro donde foi tirada a figura.

6. Devo esta informação a Artur Anselmo, em conversa pessoal.

7. Diferente, como disse atrás, do da Legenda Áurea de Fr. Jacopo da Varazze OP, e possivelmente

da autoria de Fr. Gauberto Fabricio de Vagad OCist.

8. Trata-se do Proto-Evangelho de Tiago, um apócrifo ortodoxo (ou seja, não gnóstico ou esotérico).

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Page 57: Livro e Iconografia

9. Certamente, o chamado Evangelho do Pseudo Mateus, outro apócrifo ortodoxo, de grande voga no

Ocidente medieval (vd. Santos Otero, 2003, pp. 171-172).

10. Na versão dos LXX ou Septuaginta.

11. Ver distinção entre Nimbo, Auréola e Glória num artigo de Fausto S. Martins (2003, pp.

271-278).

12. Revelationes de Santa Brígida da Suécia, VII, 21 (apud Panofsky, E., 1998, p. 52).

13. A mesma forma de apanhar os cabelos pode ver-se, por exemplo: na imagem do Natal da Biblia

Pauperum de ca. 1462, como a seguir refiro; e na representação de Santa Eulália no Retablo de la

Virgen de los Consejeros, realizado por Luís Dalmau em 1445, e conservado no Museo Nacional de

Arte de Cataluña (Duchet-Suchaux & Pastoureau, 2001, p. 161).

14. P[edro] D[ias] - "Natividade" (in No Tempo das Feitorias, 1992, vol. 1, cat. n° 1, p. 116), onde

refere, como Bibliografia, o livro a seguir referido nesta nossa nota. Em 1967, Ignace Vandevivere,

professor na Universidade Católica de Lovaina, atribuía-lhe a data de finais do séc. XV (Lievens-

De Waegh, 1991, p. 39 e p. 44, n° 6).

15. Veja-se a tradução recente em português da edição crítica do texto original latino (Varazze, J.,

2004, t. 1, pp. 70-71).

16. Tirado da Legenda Aurea (cf. Varazze, J, 2000, t. 2, p. 238).

17. Tirado da Legenda Aurea (cf. Varazze, J, 2000, t. 1, p. 62 b e p. 66 a).

18. Segundo Réau (1996, t. 2/vol. 4, pp. 21-22 e 144).

19. Tirado da Legenda Aurea (cf. Varazze, J, 2000, t. 2, p. 202).

RESUMOS

Nos livros impressos, nem sempre as imagens estão de acordo com os textos que deveriam

ilustrar. Neste artigo, o autor analisa algumas estampas xilográficas que estão em desacordo com

os textos que 'ilustram', em O Flos Sanctorum em linguagem português, impresso em Lisboa, por

Hermão de Campos & Roberto Rabelo, em 1513.

In printed books, not always the images agree with the texts they are supposed to illustrate. In

this paper, the author analyses some woodcut prints that are in disagreement with the texts they

'illustrate', in O Flos Sanctorum em linguagem português, printed at Lisbon, by Hermão de

Campos & Roberto Rabelo, in 1513.

ÍNDICE

Keywords: illustrated book, religious images

Palavras-chave: livro ilustrado, imagens religiosas

AUTOR

FR. ANTÓNIO-JOSÉ D'ALMEIDA OP

Convento de Cristo Rei, Porto.

Bacharel (1975) e Licenciado (1978) em História, pela Faculdade de Letras da Universidade do

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Page 58: Livro e Iconografia

Porto; Licenciado em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, em 1984; Mestre em

História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1999; Doutor em História

da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 2005, com urna dissertação

intitulada Imagens de Papel. O “Flos Sanctorum em linguagem português”, de 1513, e as edições

quinhentistas do de Fr. Diogo do Rosário.

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Page 59: Livro e Iconografia

Poder de convencimento e narraçãoimagética na pintura portuguesa dacontra-reformaA influência de um gravado segundo Seghers numa tela do Convento dosPaulistas de Portel

The power of persuasion and images narrative in counter-reformation

Portuguese painting: the influente of an engraving following Seghers in a canvas

of the Paulistas Monastery at Portel

Vítor Serrão

1.

A História da Arte reconhece hoje o papel muito destacado que foi assumido pela

imagem gravada nos sucessivos processos de evolução artística. Não é mais possível

tentar compreender-se, hoje, o sentido das obras de arte – como sejam as produzidas

em fases históricas tais como o final da Idade Média ou o Renascimento e o Maneirismo,

por exemplo – se ignorarmos os interstícios da concepção e da produção à luz de

categorias operativas e de constrangimentos ideológicos que envolvem sempre os

clientes, os artistas e os públicos.

É por isso que o estudo da fonte gravada como referência ilustrativa do fazer das obras

de arte se multiplicou ao longo dos últimos anos, em dimensão meramente iconográfica

ou, também, no quadro mais vasto e mais interessante de um enfoque iconológico.1 A

análise das fontes imagéticas disponíveis em cada época, sejam as estampas de livro ou

as gravuras avulsas, explica-nos alguma coisa sobre fontes poderosas de conhecimento

e, muitas vezes também, de inovação que envolvem o acto criativo, do mais erudito ao

de dimensão periférica.2 O valioso papel assumido pela arte da ilustração como

instrumento cognitivo da memória imagética, quer em termos de manutenção de

códigos formais, quer da sua cíclica renovação em determinados períodos, começa a ser

melhor percebido pelos historiadores de arte, permitindo dialogar melhor com as

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Page 60: Livro e Iconografia

formas enquanto parcelas de um programa consistentemente elaborado, caracterizar

os códigos artísticos enquanto testemunhos eloquentes e trans-contextuais, entender

as flutuações de gosto e de estilo mais ou menos perceptíveis num corte diacrónico de

existências patrimoniais, e deslindar os níveis de correspondência que (como se atesta

com clareza na pintura e em outras artes dos séculos XVI e XVII) cumprem esse desejo

de assimilar e unificar tipos de linguagem diversos com o objectivo de globalizar formas

mais complexas de comunicação.3 Intimamente ligada, sempre, a fontes literárias de

conhecimento (poesia, oratória, parenética, sermonologia, tratadística, literatura de

viagens, etc), a arte da gravura, nas suas vertentes mais decorativas ou simbólicas

(como a emblemática, o grotesco romano e outras formas all'antico), cumpre um papel

singular na busca de unidades de significação de uma determinada fase artística ou

época histórica, como reforço de conhecimento.4 E é interessante verificarmos que,

tanto no centro artístico do momento como num determinado foco periférico, a

novidade de uma fonte gravada possa assumir um papel de atracção e modernidade;

esse papel é de tal modo actuante na memória, na sensibilidade e no gosto dos

mercados envolvidos que a originalidade do fazer, derivada de fontes ilustradas de

vanguarda, pode superar os modelos iconográficos impostos e abrir o mundo da

produção artística local a novos desafios.5

Como se sabe, a crescente importância da ilustração livresca e da estampa solta na

cultura portuguesa da Idade Moderna, sobretudo com a Contra-Reforma, criou formas

de comportamento diversificado por parte dos artistas, muitos deles utilizando a fonte

gravada com estrita dependência formal, quando não sem consciência memorizável da

sua origem, havendo outros casos, porém, em que a estampa era, para o artista, mais

que um referencial temático ou formal, um instrumento de renovação, marcado pela

intencionalidade dos tipos iconográficos. Já tivemos oportunidade de destacar, na arte

portuguesa do tempo da Contra-Reforma, época em que abundou a presença da

estampa de importação italo-flamenga, inúmeros testemunhos de uma e outra atitude

na pintura, na iluminura e na escultura.6 Uma das vias em que a novidade do gravado se

expressou foi na divulgação de originais de grandes mestres italianos, flamengos e

franceses que, a par das estampas de ornamento (brutesco, etc.), se imiscui

profundamente no gosto dos nossos artistas, internacionalizando-lhes as referências e

atenuando, em muitos casos, a falta de contactos artísticos além-fronteiras. Durante o

século XVII, época de particular isolamento e dificuldades intestinas, esse papel da

ilustração estrangeira assumiu proporções assaz interessantes que explicam, em parte,

a originalidade e diversidade dos processos criativos dos nossos pintores.

Não é demais realçar a desatenção com que, pese o esforço recente da História da Arte,

alguns períodos da cultura artística portuguesa têm sido avaliados, em cores de injusta

menorização. À medida, porém, que as metodologias de abordagem globalizante e o

recenseamento de espécimes no terreno forem sendo cumpridos, o conhecimento sobre

a realidade da nossa produção irá permitir revalorizar esses e outros acervos,

apreciando-os na exacta medida do contexto em que foram concebidos e produzidos.

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Page 61: Livro e Iconografia

Fig. 1. Cristo perante Caifás e negação de Pedro, tela atribuída ao pintor João da Cunha, de cerca de1660-70, num altar da igreja do Convento paulista de Nossa Senhora do Socorro, de Portel.

2.

O caso do painel seiscentista alentejano que elegemos para melhor se exemplificar esta

análise ligada ao uso da gravura em tempo de Contra-Reforma é, sob todos os pontos de

vista, singular.

Existe no Convento dos frades paulistas de Nossa Senhora do Socorro, na vila alentejana

de Portel, uma grande tela penumbrista que chama a atenção dos visitantes. A

estrutura compositiva permite atestar o modo consciente, e consequente, como certos

artistas do século XVII, mesmo limitados a uma curva de actuação periférica, recorriam

às fontes disponíveis e as sabiam usar, dentro das dificuldades e do controle vigentes,

como verdadeiras experiências de liberdade criativa. Esse quadro decora um altar da

banda esquerda da nave dessa igreja, preenchendo o vão central do respectivo retábulo.

Trata-se de um painel retabular que se impõe pela intrínseca qualidade de execução

plástica e pelo estudado poder de convencimento que, através de uma bem articulada

narração policénica, o seu discurso imagético propõe ao olhar dos visitantes mais

atentos, ao mesmo tempo que tenta gravar como legado aos públicos futuros uma

imagem aberta de comunicação.7

À primeira vista, parece tratar-se de mais um testemunho plástico (conquanto

particularmente acima da mediania), daquele tipo de pintura de convencimento em que

a arte portuguesa sob signo do Concílio de Trento foi tão fértil, com peças muitas vezes

de uma confrangedora repetitividade formal, onde era exclusivo o objectivo da

catequização das populações.8 Dentro dos princípios contra-reformistas à época

dominantes, antes de mais, estamos perante uma obra concebida e executada segundo o

conceito romano tridentino da arte senza tempo,9 com acento numa imagem didascálica

em que a representação iconográfica, o jogo de claro-escuro, as poses articuladas das

figuras e grupos, a modelação claro-escurista e os trechos de enquadramento

cenográfico, se complementam face ao objectivo de catequizar através do olhar dos fiéis

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Page 62: Livro e Iconografia

e impressionar o espectador para os mistérios da fé católica. De facto, a peça segue

fielmente os princípios de nihil profanum, nihil inhonestum prescritos pelos teólogos

tridentinos em relação às «imagens sagradas» e que produziu tantas centenas de peças,

muitas vezes convencionalizadas e sem chama, aptas a funcionar tão-só num amplo

processo de legitimação de princípios.10

Vendo-se a tela seiscentista do convento de paulistas de Portel com a devida e

justificada demora, verificamos que, bem ao contrário, ela superou esses objectivos

primeiros e se soube deleitar numa construção imagética mais sedutora e complexa. O

artista visava, sem dúvida, tornar a sua composição bíblica mais atractiva, cruzando no

seu tecido duas ou mais «histórias» a fim de dinamizar o seu sentido pedagógico – e,

também, o seu sabor artístico. Trata-se de um grande quadro do ciclo proto-barroco,

pintado a óleo sobre tela, medindo 1 m, 600 de alto por lm, 900 de largura, que

representa a cena evangélica de Jesus Cristo perante Caifás, um episódio muito corrente

nas figurações da Paixão de Cristo e que mereceu ao pintor um tratamento cenográfico

bastante eficaz e, de certa maneira, original, na medida em que explorou – caso raro

entre nós – certas derivas do «caravagismo» italiano.

Por um lado, o pintor juntou na cena o passo de Jesus Cristo perante Caifás ao da Negação

de São Pedro. Por outro, desdobrou a composição em dois registos de narração

complementares e interligados, tendo o superior, ao centro, a figura de Jesus, de pé e

num recorte luminoso, rodeado por soldados romanos em ambiência penumbrista,

junto a um trono onde o sacerdote Caifás, acompanhado por fariseus que com ele

dialogam, se apresta a julgar o cativo; à esquerda, em plano afastado, vemos a figura de

São Pedro, de mãos postas, numa pose atormentada depois da tripla negação, assistindo

ao julgamento; enfim, no registo inferior, em ambiência iluminada a la candela, algumas

figuras de assistentes jogam cartas e gesticulam em surdo diálogo, com uma esbelta

figura feminina em contrapposto e outras personagens ataviadas ao gosto seiscentista,

numa espécie de «quadro de género» que se configura algo à margem do drama que se

desenrola no registo cimeiro.

Estamos perante um painel de merecimento, executado a óleo sobre tela no último

terço do século XVII para decoração de um altar (hoje de invocação de São Luís, Rei de

França), o segundo da banda da Epístola, no corpo da igreja do Convento de Nossa

Senhora do Socorro. Além da grande tela que centra o altar, existe uma outra, Cristo com

a cruz às costas, no remate, mas de qualidade inferior e de cronologia mais recente,

coeva da remodelação barroco-joanina do altar.11 Este convento, de frades eremitas da

ordem paulista, fora fundado na vila de Portel pelo sétimo Duque de Bragança D.

Teodósio II (1583-1630) no princípio do século XVII.12 Aliás, existira já em Portel, antes,

um eremitério dos monges paulistas, filiados na Casa da Serra d'Ossa, que remonta a

1420, quando esta ordem dispôs de ermida no sítio do Corte de Agua dos Infantes, no

termo da vila, mas foi por iniciativa do culto Duque D. Teodósio II, que a comunidade de

frades eremitas se mudou provisoriamente, em 1598, para a Ermida de São Luís, Rei da

França, erguida no Rossio da vila, sendo reitor Frei Pedro de Jesus, enquanto a sede

definitiva se não acabava de construir. Findas as obras de construção da nova igreja-

sede, o cenóbio, provavelmente devido a traças de Pêro Vaz Pereira (c. 1570-1643), o

arquitecto do Duque, seria sagrado, finalmente, em 1607, antecedido de solene

procissão em honra de Nossa Senhora do Socorro. Trata-se de um templo de severo

«estilo chão», dentro do gosto de austeridade vigente nas construções da ordem

paulista.

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Page 63: Livro e Iconografia

Fig. 2. Pormenor da tela Cristo perante Caifás e negação de Pedro, de João da Cunha (?), cerca de1660-70. Igreja do Convento de Nossa Senhora do Socorro, de Portel.

3.

Olhemos mais demoradamente a tela que nos ocupa: apesar do deplorável estado de

conservação em que a tela se encontra, a justificar urgente restauro, ela revela

qualidades plásticas acima da mediania, ainda que dentro do quadro da pintura

regional, pois atesta uma visão pictural agitada e nervosa, atenta às dinâmicas da

cenografia barroca portuguesa da segunda metade de Seiscentos, que se destaca pela

cuidada ciência compositiva de que o artista deu mostras. Ao contrário do que foi

tendência comum na produção pictural destes anos, servida quase sempre por

propósitos didascálicos de grande clareza e simplicidade (no caso, através dos gravados

dos irmãos Wierix divulgados na obra do Padre Jerónimo Nadal, S.J., Evangelicae

Historiae Imagines, saída em Antuérpia em 1593), este painel da igreja dos frades

paulistas de Portel procurou servir com outra complexidade e recursos plásticos a

comunicabilidade com os fiéis. De facto, não é comum, na nossa produção de imagens

do século XVII, encontrar peças artísticas onde a dimensão humana e a dramaticidade

espiritual da cena de convencimento se desdobrem em níveis policénicos de

narratividade dual, muito sugestivos pelo seu "atestado de veracidade".

A cena inferior, na sua evidenciada derivação caravagesca, de todo inesperada no

contexto da pintura proto-barroca alentejana, remete para o conhecimento de uma

fonte gravada precisa, conquanto rara: a estampa com a cena da Negação de São Pedro

aberta pelo célebre gravador nórdico Schelte à Bolswert,13 baseada por seu turno numa

pintura do caravagesco Gerard Seghers que se expõe no North Carolina Museum of Art,

em Raleigh, nos Estados Unidos da América.14 Esse artista, nascido e morto em

Antuérpia (1591-1651), foi um dos poucos flamengos a entender e explorar as novidades

revolucionárias de Caravaggio, cujas obras teve oportunidade de estudar em Roma,

onde viveu durante o segundo decénio do século XVII, aí tendo seguido, também, as

experiências tenebristas de Manfredi e de Honthstorst, antes de se converter, após o

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Page 64: Livro e Iconografia

regresso, à influência dominante dos modelos de Rubens. A tela da Negação de São

Pedro data de cerca de 1625 e deveu-se a uma encomenda do escultor André de Nolle,

de Antuérpia.15 Desta tela de Seghers existem outras versões de época, algumas delas

réplicas da própria oficina,16 mas não é de supor que alguma delas chegasse na época ao

mercado português, sendo mais provável que aqui fosse conhecida, sim, a gravura de

Schelte a Bolswert (1586-1659), utilizada pelo pintor do quadro de Portel.

Em termos de «quadro de género», esta deliciosa e rara evocação caravagesca, pintada

no século XVII, em Portel, por um discreto artista alentejano formado dentro dos

cânones proto-barrocos, sob o magno tema clássico da Negação de Pedro, representado à

hora da prisão de Jesus, mostra-se, como tivemos já oportunidade de observar,

derivações do célebre quadro de Michelangelo Merisi, o Caravaggio, a Vocação de São

Mateus da igreja de San Luigi dei Francesi de Roma,17 no que concerne ao grupo de

assistentes ao milagre. Modesta, e tardiamente, mas com as suas potencialidades que

não são de desmerecer enquanto documento artístico de uma estratégia

comunicacional, a pintura de Portel assume-se como testemunho vivo desse fascínio

internacional pela arte dos caravagescos, glosado dentro das suas possibilidades e

recursos num quadro que, seguramente, se impôs, ao tempo, muito acima da mediania.18

Fig. 3. Pormenor da tela Cristo perante Caifás e negação de Pedro, de João da Cunha (?), c. 1660-70.Igreja do Convento de Nossa Senhora do Socorro, Portel.

O pintor desta tela seiscentista portelense é conhecido, ainda que, dado o grande

desconhecimento que existe sobre as bolsas periféricas, o seu nome pouco signifique no

panorama das histórias da arte portuguesa que focam o tempo do nosso Barroco.

A crer na análise estilística, e confrontando a tela da igreja paulista com algumas outras

telas conhecidas desse artista, trata-se de João da Cunha, um pintor de óleo morador

em Beja, onde diversa documentação o referencia entre o ano de 1640 (ligado então à

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Page 65: Livro e Iconografia

Santa Casa da Misericórdia local) e 1681 (ano em que pagava foro ao Senado Municipal

por casas na Rua da Capelinha, na freguesia de Santa Maria).19 Em 1663, este João da

Cunha pintou três telas para o altar da Capela de São José, na Quinta do General, em

Borba (uma delas assinada e datada), e são-lhe também atribuídas quatro Bandeiras

processionais com passos da Paixão de Cristo na Igreja da Misericórdia de Vila Nova de

Baronia (Alvito), e as telas de um altar no claustro do Mosteiro da Conceição, em Beja.

Em Junho de 1674, o pintor João da Cunha aparece citado num arrendamento de terras

ao Convento de Santa Clara de Beja.20 E pouco mais se apurou, até hoje, a seu respeito.

Trata-se de um secundário produtor de imagens, praticante, como era usual à época na

região, quer da modalidade de óleo quer da de dourado e policromia de escultura,

homem quase de certeza pouco culto e com mera educação plástica a sequenciar a

modesta tradição local,21 que se constitui um exemplo típico de uma conjuntura em que

a arte da Pintura, em contexto regional e em fase de isolamento político, quase se

resumia a cumprir objectivos de propaganda didascálica para casas religiosas e

confrarias, clientelas essas pobres de recursos e sempre muito convencionalizadas de

gosto. Ao tempo, trabalhava em Beja, também, o pintor de óleo, dourado e brutesco

Manuel da Costa Mourato, autor dos retratos dos Duques de Beja D. Fernando e D.

Brites, no Museu Regional, e responsável, juntamente com João da Cunha, pelo maior

acervo de intervenções para igrejas, conventos e irmandades do aro bejense.

João da Cunha, segundo o pouco que da sua obra remanesce, parece que seguia as mais

popularizadas fontes gravadas que a clientela beata lhe recomendava para melhor

servir os desígnios da propaganda católica (como sucede nas telas citadas da Quinta do

General em Borba, inspiradas em estampas de Lucas Vorstermann II segundo

conhecidos modelos de Rubens, e nas do referido altar de Beja, onde se inspirou, entre

outros modelos, nos de gravuras maneiristas correntes, de Cornelis Cort aos irmãos

Wierix, por exemplo). A tela de Portel, obra mais conseguida (mercê, também, do modo

como a gravura foi, neste caso, um eloquente sinal de aberturas plásticas), é um caso

especial de inteligente transposição das capacidades informativas de uma fonte

ilustrada, que usou (por sua iniciativa ou por sugestão dos seus clientes, os monges

paulistas) com extremos de perícia e imaginação. O uso de um modelo caravagesco de

Gerard Seghers, ainda que a meio século de distância, foi pretexto para que o artista da

tela de Portel transformasse o convencionalismo de uma cena da Paixão num exercício

muito interessante de imagética sacra.

Só este quadro do Jesus Cristo perante Caifás de Portel – a ser dele, como parece por

razões de estilo dever atribuir-se22 – assume um caso evidentemente à-parte, pelo que

revela de maior modernidade na 'citação' imagética realizada. De facto, o pintor serviu-

se da gravura nórdica segundo a complexa composição de Gerard Seghers para animar

a sua tela retabular, recriando o espaço plástico, multiplicando os pólos de narração

policénica, animando os agrupamentos e poses de figura e tomando em si – ainda que

por momentos e sem sequência visível no seu percurso ulterior – um sopro de inovação

italianizante, numa longínqua interpretação livre do mundo caravagesco, sempre

avesso do referencial dos nossos pintores do século XVII... Se o desenho é fruste e a

modelação trai limites de uma formação empírica, o pintor da tela de Portel tem

imaginação suficiente para, de acordo com quem lhe encomendou a tela, animar a

composição bíblica com uma transposição livre do tema sugerido pela estampa. Ao

retirar São Pedro do grupo de jogadores junto dos quais negou fidelidade a Jesus Cristo

após a prisão, colocando-o no registo cimeiro, no mesmo plano de Caifás e dos soldados

romanos, e ao reorganizar o espaço do registo inferior distribuindo as figuras profanas

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Page 66: Livro e Iconografia

que jogam e dialogam seguindo o seu próprio sentido de narração credível, o pintor

mostrou aquilo que no seu tempo era apanágio, tão-só, dos grandes pintores – casos de

Baltazar Gomes Figueira, em Óbidos, ou de Bento Coelho da Silveira e de António de

Oliveira Bernardes, em Lisboa –, para quem a informação trazida pela gravura era não

só um indicador temático mas, sobretudo, um mundo de multiplicadas referências

plásticas que abriam grandes possibilidades de inovação.

O estudo da influência das fontes gravadas na arte portuguesa deve acertar o passo com

a análise integrada das formas e comportamentos dos mercados de produção, a fim de

apurar a razão por que se utilizam tanto estampas arcaizantes (o caso de edições do Flos

Sanctorum, ou da Pequena Paixão de Dürer, em obras já do século XVII...) como, ao mesmo

tempo, correm estampas de artistas de vanguarda, do mesmo modo que importa

analisar bem os modos de apropriação da imagem ilustrada, ora como réplica integral,

ora como informações pontualizadas, criticamente reconvertidas pelo artista em

função de outros temas, espaços ou necessidades de encomenda.

Há que lembrar sempre, por ser comum à actividade de todos os artistas peninsulares

do século XVII, dos mais eruditos aos de actividade regional, que com o início da

Contra-Reforma a Igreja Católica desenvolveu uma formidável campanha de

propaganda a fim de controlar os excessos das imagens expostas em lugares de culto e

de regulamentar o seu uso. O livro do padre Jerónimo Nadal, Evangelicae Historiae

Imagines (Antuérpia, 1593), já atrás citado, com gravuras dos irmãos Wierix, foi dos mais

populares para redefinir uma iconografia credível e impôr urna «arte correcta». Do

mesmo modo, a Orbita Probitatis e o Veridicus Christianus de Johannes David eram

conceitos formulados em obras muito popularizadas nos mercados da Europa contra-

reformada e chegaram a Portugal, onde grangearam natural sucesso, influenciando

clientes e artistas. Estas e outras obras de elogio da imagem, então dadas à estampa,

como o livro de Jacques Sucquet Via Vitae Aeternae, editada em Antuérpia em 1620,

propunham-se combater o «dogma errado», a «formosura dissoluta», os desvios ao

dogma e a violência contra as «imagens sagradas», em nome do Decorum e da «verdade

cristã».23

No livro de Sucquet, que conheceu diversas edições, o autor defendia (mais que a

qualidade inventiva das obras de arte sacra, ainda que esta seja estimulada como forma

de garantir um nível didascálico mais elevado) aquilo a que chamava a eloquência das

imagens que, aliadas ao seu sentido moral, deviam servir sempre de apoio ao acto da

meditação: «meditar é considerar na mente, e pintar com o coração, o mistério das

doutrinas da Sagrada Religião, por meio da representação das circunstâncias reais:

pessoas, acções, palavras, lugares e tempo», a fim de ascender as «coisas terrenas» à

esfera do divino. Por isso o livro desse artista-escritor nórdico, e as gravuras que o

ilustram, se desdobram num discurso de justificação do fio de conduta moral e do

rigorismo no exercício tridentino de representar visando o combate ao «falso dogma».

Todas essas características estruturadas de narração para serviço do convencimento

explicam a qualidade marcante de um quadro de devoção monacal como é o Jesus Cristo

perante Caifás (com Negação de São Pedro) do convento dos frades paulistas de Portel,

inspirado em modelo tenebrista de Gerard Seghers, com o seu dinâmico grupo de

figuras a la candela, e reforçam a necessidade do seu urgente restauro. Testemunha-se,

assim, um caso de encomenda religiosa seiscentista que, apesar do seu grau aparente de

vulgaridade, assume afinal a experiência da inovação permitida e as possibilidades da

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reconversão imagética do modelo, a fim de melhor servir o rigorismo do seu impacto

visual.

Fig. 4. Gerard Seghers, Negação de Pedro, c. 1620-25.Raleigh, North Carolina Museum of Art.

NOTAS

1. Vejam-se a este propósito as recentes teses de doutoramento universitário de Ana Paula Rebelo

Correia, Histoires en Azulejos, Miroir et Mémoire de la Gravure Européenne. Azulejos baroques à thème

mythologique dans l'architecture civile de Lisbonne, Université Libre de Louvain-la-Neuve, 2005; de

Manuel Batoréo, Moda, Modelo, Molde. A gravura na pintura portuguesa do Renascimento (c. 1500-1540),

Faculdade de Letras de Lisboa, 2005, e de Frei António José de Almeida, OP., Imagens de Papel. O

'Flos Sanctorum em linguagem português', de 1513, e as edições quinhentistas do de Fr. Diogo do Rosário,

OP, Faculdade de Letras do Porto, 2005.

2. A esse respeito importa lembrar a importância (e grande actualidade, como livro de referência)

do ensaio de David Freedberg The Power of Images: Studies in the History and Theory of Response,

Paperback, 1991 (ed. espanhola, El Poder de Ias Imágenes, éd. Cátedra, Madrid, 1991).

3. Juan Martínez Moro, «La ilustración como categoria: dos episódios sobre arte y conocimiento»,

Trasdós – revista del Museo de Bellas Artes de Santander, n° 2, 2000, pp. 83-84.

4. Veja-se o caso do Barroco castelhano e andaluz: cfr. Julián Gállego, Visión y Símbolos en la Pintura

Española del Siglo de Oro, éd. Cátedra, Madrid, 1974.

5. Carlo Ginsburg e Enrico Castelnuovo, A Micro-História e outros Ensaios (trad. portuguesa), ed.

Difel, Lisboa, 1991; e C. Ginsburg, Mitos, Emblemas, Sinais. Morfologia e História, ed. Companhia das

Letras, S. Paulo, 1991.

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6. Vítor Serrão, A Pintura Proto-Barroca em Portugal. O triunfo do Naturalismo e do Tenebrismo, tese de

doutoramento, dois volumes, Universidade de Coimbra, 1992 (publicado parcialmente o 1° vol.,

ed. Colibri, Lisboa, 2000).

7. Sobre esta tela, cfr. refª em Vitor Serrão, A Pintura Proto-Barroca em Portugal. O triunfo do

Naturalismo e do Tenebrismo, cit., vol. II (polic.), p. 847.

8. Flávio Gonçalves, Iconografia da Pintura Religiosa em Portugal, sep. da revista Belas-Artes,

Academia Nacional de Belas-Artes, 2ª série, Lisboa, 1973.

9. Federico Zeri, Pittura e Controriforma. L'«arte senza tempo» di Scipione da Gaeta, Torino, Einaudi,

1957 (2a ed. Vicenza, Neri Pozza, 1997).

10. Vítor Serrão, «Pintura e Propaganda em Évora nos alvores do século XVII. Um panfleto contra

a iconoclastia e três casos de repressão», Actas do Congresso da Inquisição, Lisboa, 2004, no prelo.

11. Uma lápide de 1676 encontra-se no supedâneo pavimentar deste altar e atesta a época precisa

da sua fundação: OMNIA SVB LE / GES MORS VO / CAT ATRA SVAS / ET TANDEM OM / NES

LOCVM PR / OPERA MVS AD ISTVM 1676 / ANNOS.

12. Sobre esta casa religiosa, cfr. Túlio Espanca, «Convento de Nossa Senhora do Socorro da vila

de Portel», A Cidade de Évora, n° 59, 1976, pp. 243-255; idem, Inventário Artístico de Portugal. VIII.

Distrito de Évora – Zona Sul, Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa, 1978, pp. 209-217; e Ana

Pagará, «O Convento da Ordem de São Paulo, em Portel», Conversas à Volta dos Conventos, Évora,

Casa do Sul Editora, 2002, pp. 207-227.

13. Richard E. Spear, Caravaggio and his Followers, Icon Edition, Harper & Row Publishers, New

York-Evanston-San Francisco-London, 1975, pp. 162-63.

14. Idem, op. cit., n° 61 e p. 163.

15. Idem, ibidem.

16. A tela da Colecção de Lord Mansfield é autografa, assim como a do Museu do Hermitage, em S.

Petesburg. A versão da Walker Art Gallery de Minneapolis é da oficina de Gerard Seghers. As

versões das colecções P. Fonsbech (Copenhaga), Delia Tally (Los Angeles), J. E. Davies (Little

Bringston, Northsmpton) e Bobber (New York), serão também réplicas de oficina, ou epigonais.

Na Colecção Theodore Cornely em Aachen, e na Catedral de Namur, existem telas com a Negação

de Pedro segundo Seghers, mas com a composição invertida, o que parece indiciar reutilização da

fonte gravada de Schelte a Bolswert.

17. A origem artística da composição de Seghers no Museu de Raleigh radica no chamado

Manfrediano methodus de iluminação concentrada e de claro-escuro sem excrescências, segundo

estudo dos originais de Caravaggio.

18. Em Portugal, não existiram obras de Caravaggio e é rara a influência dos seus modelos

realistas e dos processos luminosos de definição em claro-escuro, salvo em certas obras de André

Reinoso, de Josefa de Ayala e de Marcos da Cruz. No coro baixo do Mosteiro da Madre de Deus

existem duas telas caravagescas (Negação de Pedro, segundo o modelo de Seghers, e Tributo de

César), peças seiscentistas importadas, a merecerem um estudo de pormenor: ref.ª em João Miguel

Simões, Arte e Sociedade na Lisboa de D. Pedro II. Ambiente de trabalho e mecânicas de Mecenato, tese de

Mestrado, Faculdade de Letras de Lisboa, 2003.

19. Vítor Serrão, A Pintura Proto-Barroca..., cit., vol. II, pp. 843-844.

20. Arquivo Distrital de Beja, L° 17 de Notas de Manuel Marfins da Fonseca, fls. 135 v° a 136 v°.

Inédito.

21. Idem, «Uma sociedade de pintores em Beja no fim do século XVI: os maneiristas António de

Oliveira e Júlo Dinis de Carvo», revista Museu, IV série, 2003, nº 11, pp. 35-75.

22. A verdade é que a documentação existente sobre o Convento dos paulistas de Portel não

esclarece o assunto. Além de João da Cunha, cuja presença em Portel é presumida, sabemos dos

nomes de outros pintores que trabalham para esta vila no século XVII, a saber: o castelhano

Bartolomeu Sánchez, em 1627, veio de Evora pintar o quadro da Visitação da igreja da

Misericórdia, ainda existente (V. Serrão, A Pintura Proto-Barroca, cit., Coimbra, 1992, vol. II, pp.

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701-711); em 1646, o pintor de óleo, fresco e dourado Pedro López Vállejo fez o retábulo e

decoração fresquista da Capela de Santo António, na vila, obra desaparecida (Arquivo Distrital de

Evora, Lº 8 de Notas de Gaspar de Chaves e Rui de Pina Ravasco, fls. 125-126); e, entre 1673 e 1687, vivia

em Portel um pintor de nome Manuel Cardim, que parece andar ligado a obras na Ermida de São

Pedro (idem, Lº 14 de Notas de Diogo Boto de Aguiar e Francisco Gavião Cardoso, fls. 186-187 e 191-192; e

Lº 23 de Notas de Diogo Velho de Carvalho, fls. 51-52).

23. David Freedberg, The Power of Images: Studies in the History and Theory of Response, cit.

RESUMOS

A linguagem de comunicabilidade da imagética barroca expressa-se com inesperado ênfase no

caso de uma desconhecida tela que representa Jesus Cristo perante Caifás e a negação de S. Pedro,

num altar do Convento dos frades eremitas paulistas da vila de Portel. Pintada cerca de 1660, essa

tela, que se inspira numa estampa nórdica de Schelte a Bolswert segundo modelo caravagesco de

Gerard Seghers, leva a colocar a questão do papel assumido pela gravura italoflamenga (a

estampa solta e a estampa de livro) na construção de uma imagética contra-reformista ao serviço

da militância católica e do convencimento das populações em larga escala. A peça, que é devida,

segundo se crê, a um secundário pintor proto-barroco de nome João da Cunha, morador em Beja,

reforça a ideia do interesse da nossa pintura regional por cânones de influência caravagesca, uma

tendência quase ignorada na arte portuguesa do século XVII. A pintura de Portel mostra uma

narração para serviço do convencimento e revela-se um qualificado painel de devoção, inspirado

em modelo tenebrista de Seghers, com o seu dinâmico grupo de figuras a la candela que assiste ao

trecho bíblico. Testemunha-se um caso de encomenda religiosa periférica que, apesar do seu grau

aparente de vulgaridade, assume, através da utilização de uma estampa de sinal erudito, a

experiência da inovação possível e as possibilidades da reconversão imagética do modelo, a fim

de melhor servir o rigorismo do seu impacto visual.

The language of baroque images expresses with unexpected emphasis in the case of an unknown

canvas representing Jesus Christ before Caifás and the denial of St. Peter, on an altar at the

monastery of Paulists eremite monks at the town of Portel. Painted around 1660, this canvas,

which is inspired in an Nordic engraving made by Schelte a Bolswert following the caravagesque

model of Gerard Seghers, raises the question of the role of the Italian Flemish engraving (in

books or in its sheets) in building a counter-reformation imagery at the service of the catholic

militancy and the large scale persuasion of the masses. The painting, which is believed to have

been made by a secondary proto-baroque painter named João da Cunha, from Beja, reinforces the

idea of the interest our regional painting showed to canons of caravagesque influence, an almost

ignored tendency in the seventeenth century Portuguese art. The Portel painting shows a

narrative with the scope of convincing and appears to be a notorious devotional panel, inspired

by the tenebrist model of Seghers, with its dinamic group of characters "a la candela" attending a

biblical passage. We may witness here a peripherical case of religious commission which, in spite

of seeming vulgar, assumes, by using an erudite engraving, the experiente of the possible

innovation and the possibilities of the imagery model transformation, in order to better serve the

austerity of its visual impact.

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Page 70: Livro e Iconografia

ÍNDICE

Keywords: counter-reformation, persuasion power, narrative image, Paulistas monastery of

Portel

Palavras-chave: contra-reforma, poder de convencimento, imagens narrativas, imagética

barroca, Convento dos Paulistas de Portel

AUTOR

VÍTOR SERRÃO

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Historiador de Arte e Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa. Presidente do

Departamento de História. Director da revista Artis. Autor de, entre outros livros, O maneirismo e

o estatuto social dos pintores portugueses, (1983); Estudos de pintura maneirista e barroca,

(1989); André de Padilha e a pintura quinhentista entre o Minho e a Galiza, (1998); Temas de

Cripto-História da Arte (2000); A pintura protobarroca em Portugal 1612-1657, (2000); O Barroco

(2002).

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Pierre-Antoine Quillard (c.1703-1733)Os livros e a ilustração na gravura joanina

Pierre-Antoine Quillard (c. 1703-1733) – Books and illustration in "João Vth's"

etching

Nuno Saldanha

Relembrando Quillard

1 Apesar de algum reconhecimento e divulgação inesperadas nas primeiras décadas do

século XX, a fama de Quillard, construída sobretudo a propósito da atribuição de obras

dadas anteriormente a Watteau, parece ter desaparecido com a mesma rapidez com que

surgiu.

2 Isto não significa necessariamente que o pintor tenha regressado ao esquecimento.

Felizmente, embora de uma forma demasiado incipiente, a sua obra tem estado

presente nalgumas exposições internacionais sobre Pintura e Desenho na França do

século XVIII, quase sempre dedicadas a Watteau.

3 Assinale-se o caso da exposição Watteau and His World: French Drawing from 1700 to 1750,

uma interessante mostra da The Frick Collection, em Nova Iorque, que esteve aberta ao

público entre Outubro de 1999 e Janeiro de 2000. Esta exposição contava com cerca de

65 desenhos de colecções públicas e privadas norte-americanas, seleccionadas pelo

comissário Alan P. Wintermute, especialista em mestres de Pintura Antiga da Christie's,

e anterior director da Galeria Colnaghi, naquela cidade. Um dos núcleos, intitulado

precisamente "Watteau's Followers", incluía obras de outros artistas que se dedicaram

ao género da fête galante, tal como os seus amigos Jean-Baptiste Pater e Nicolas Lancret,

ou seus seguidores e imitadores, Pierre-Antoine Quillard e Jacques-André Portail.

4 Mais recentemente, a exposição Visions of the South – French Baroque and Rococo Painters in

Italy, que esteve patente na Residenzgalerie em Salzburgo, de Novembro de 2002 a

Fevereiro de 2003, contava também com um núcleo especial, French Paintings from the

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Stock of the Residenzgalerie, constituído apenas com peças do acervo daquele museu,

onde, para além de obras de François Boucher, Charles Le Brun, Eustache Le Sueur,

Jean-Baptiste Pater, Sebastien Stosskopff, Pierre Subleyras, e Claude Vignon, também

Quillard se encontrava ali representado.

5 No ano passado, e talvez a mais importante destas últimas, teve lugar uma exposição no

Museu de Belas Artes de Valenciennes, Watteau et la fête galante, entre Março e Junho de

2004, comissariada por Patrick Ramade, director do respectivo museu, e por Martin

Eidelberg, o conhecido historiador de arte americano, e precisamente o principal

estudioso, a nível internacional, da obra de Quillard fora de Portugal, graças aos seus

importantes e significativos estudos que lhe dedicou, mormente sobre os seus

desenhos.1

6 Ao mesmo tempo, as instituições internacionais não têm deixado de olhar com atenção

para este pequeno mestre, o que se patenteia na aquisição de algumas das suas obras,

corno foi o caso de um desenho a sanguínea Fête Galante dans un parc, adquirido pela

National Gallery of Canada, em 1999 (inv. no. 40095). [fig.1]

Fig. 1.- Pierre Antoine Quillard, Fête Galante, c. 1725

7 No entanto, apesar destas simples presenças em certames expositivos internacionais,

estamos longe das polémicas surgidas em torno da sua figura, quando a fama de

Quillard foi crescendo à custa de Watteau, assistindo-se a um paralelo aumento da sua

obra conhecida, através de novas atribuições. No nosso país, pelo contrário, os estudos

de Ayres de Carvalho sobre o pintor saboiano Domenico Duprá,2 retiravam-lhe a autoria

de várias outras a ele atribuídas, como os vários retratos dos Duques de Bragança,

existentes no Paço de Vila Viçosa.

8 Em Portugal, contudo, o panorama tem-se revelado bastante mais pobre. Desde há

quase uma década, altura em que publicámos o nosso ultimo estudo sobre este pintor,3

pouco ou nada tem sido adiantado no sentido de se conhecer de forma mais

desenvolvida a vida e obra de Pierre-Antoine Quillard, nos poucos anos em que esteve

no nosso país, e onde viria a falecer prematuramente.

9 E talvez por este mesmo motivo, a historiografia internacional permaneça totalmente

alheia ao que por cá se tem feito neste sentido, ignorando sistematicamente os diversos

trabalhos que durante mais de meio século se publicaram em Portugal, desde Ernesto

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Page 73: Livro e Iconografia

Soares (facto de que já se queixava este autor) a Agostinho Araújo, passando por Xavier

da Costa, ou Aires de Carvalho.

10 Ora, o desconhecimento da obra realizada por Quillard no nosso país, impede

precisamente que o artista possa ser estudado de uma forma séria e global, pelo que os

estudos realizados lá fora, caem sistematicamente numa visão parcial, truncada, e

necessariamente inconsequente.

11 Só com a análise da obra realizada em Portugal, se poderá realmente conhecer o artista

na sua fase de plena maturidade, daí que os estudiosos estrangeiros sacrificam

frequentemente páginas e páginas a polémicas sem sentido – a dependência ou

independência de Quillard face a Watteau, e a eventual relação discípulo-mestre entre

os dois.

12 Se na verdade é ainda escasso o conhecimento das célebres Cenas galantes, que

demarcaram a obra de Quillard na fase inicial da sua carreira (e sem dúvida marcadas

pela influência – directa ou não – de Watteau),4 o facto é que apenas aqui se conhecem

obras de temática religiosa, ou de retrato, géneros aos quais o artista se dedicou

activamente no nosso país. Por outro lado, a sua obra gráfica, tanto de estampa avulsa,

como de gravuras e cabeções feitos para ilustração de livros, tem aqui uma expressão

sem paralelo. E é precisamente este aspecto da sua produção, que iremos agora tratar

neste pequeno estudo.

A Vinda para Portugal

13 As principais fontes para o estudo da vida e actividade de Quillard no nosso país,

continuam a ser as informações referidas pelos seus biógrafos de Setecentos, e inícios

do século XIX. O principal foi sem dúvida o veneziano Pietro Guarienti, que esteve em

Portugal no ano em que Quillard faleceu, isto é, em 1733, e que nos fornece alguns

dados biográficos particulares, embora com alguns erros (o pintor morre apenas quatro

meses após a chegada do veneziano). Confundido por vezes com Antonio Orlandi, de

cujo Abecedario Pittorico viria a fazer uma versão aumentada e corrigida, publicada em

Veneza em 1753, Guarienti é ainda hoje a fonte mais seguida na elaboração de trabalhos

sobre o artista parisiense.5

14 De facto, o pequeno apontamento biográfico sobre Quillard foi sucessivamente copiado,

traduzido, interpretado e alterado, desde o século XVIII até aos dias de hoje,6 pelo que

achamos interessante incluir aqui a transcrição integral do texto em que fala de

Quillard.7

15 O Abade de Fontenay, cerca de vinte anos depois, pouco mais fez do que traduzir

Guarienti,8 o Padre João Battista de Castro (1745-1758), assim como o conhecido pintor e

teórico Cyrillo Volkmar Machado,9 embora venham a adicionar mais alguns breves

dados, no essencial seguiram Guarienti, como posteriormente sucederá com o Cardeal

Saraiva, ou Athanazius Raczynski,10 e por aí adiante, até Luís Xavier da Costa, 11 ou

Fernando de Pamplona.12

16 Será a partir da década de 60 do século XX, que a historiografia portuguesa começará a

mudar significativamente, aportando novas contribuições para o seu estudo, de que

teremos naturalmente de destacar os trabalhos de Ayres de Carvalho.13

17 Mais recentemente, de especial interesse se revestem os estudos desenvolvidos por

Agostinho Araújo, autor que revela um profundo conhecimento sobre quase tudo o que

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Page 74: Livro e Iconografia

se escrevera sobre o pintor até aquela data, e onde dá especial realce à importância da

sua obra no desenvolvimento inicial do nosso paisagismo.14

18 Basicamente, Quillard teve uma curta carreira de pouco mais de vinte anos,

permanecendo praticamente desconhecido até muito recentemente, facto que começa

logo com a sistemática confusão acerca do seu nome, aparecendo-nos referido como

Tillard, Tilliard, Julliard, Juliart, Guillard (especialmente em Portugal) ou Quigliard.

19 Associado a Watteau, Lemoyne, Lancret, Pater e até mesmo Jean Restout, também a sua

obra carece ainda de uma definição mais precisa, com a qual se possam basear futuras

atribuições.

20 O seu nascimento permanece ainda obscuro. Parece ter ocorrido em Paris, na "Rue du

Temple", frente ao "Hôtel du Grand-Prieur du Temple", em data ainda por precisar,

mas que deve ter ocorrido entre 1701 e 1704,15 sendo filho de um marceneiro, Etiénne

Quillard, e de sua mulher, Marie Madeleine Grellet, e era também bisneto do conhecido

escritor Pierre Quillard.

21 Ainda bastante jovem (não ultrapassando portanto a idade de 11 anos, consoante refere

Guarienti), o Abade de Fontenay (e não o próprio Quillard, como habitualmente se

contava), terá levado alguns dos seus desenhos ao Cardeal André Hercule de Fleury.

Este, impressionado com o seu valor artístico, apresenta os mesmos desenhos a Luís XV,

que lhe concede uma pensão de 200 liras, depois aumentada para 300 liras (embora

posteriormente reduzida para apenas 100 libras).

22 Devem datar desta época, os três desenhos actualmente na colecção Duke of

Devonshire, os dois da colecção Chatsworth, assim como outros dois, na posse de

colecções privadas de Londres e Paris. Têm em comum o facto de se tratar de cópias, ou

variações de trabalhos de Watteau, o que justificaria pelo menos um contacto próximo

com o mestre de Valenciennes.

23 De sucesso em sucesso, o precoce artista recebe em 1723, com perto de dezanove anos, a

medalha de Prata dos Prix des Quartiers, o que naturalmente o incentivou a concorrer no

ano seguinte ao Prix de Rome da Academia, degrau indispensável aos artistas do seu

tempo, com a correspondente e ambicionada viagem de estágio à Academia Francesa

em Roma. Malogradamente, o seu quadro "Evilmerodaque, filho de Nabucodonosor,

libertando Joaquim", atingiu apenas o segundo lugar, em favor de um outro elaborado por

um jovem colega que futuramente daria bastante que falar – François Boucher. Não

perdendo o ânimo, concorre novamente em 1725, agora com um quadro cujo tema era

"Jacob purificando a casa", mas perde novamente o primeiro lugar, que será ganho então

por Van Loo.

24 Desanimado, dado que as perspectivas não se mostram favoráveis, nomeadamente

tendo em conta a situação precária dos artistas excluídos do proteccionismo régio, ou

aristocrático, e com a crise alargada da bancarrota de Law de 1720, Quillard parece ter

pensado na sua vinda a Portugal, à semelhança com o que estava a suceder com tantos

outros artistas franceses, italianos, flamengos ou holandeses.

25 Segundo refere Guarienti, tradição seguida por quase todos os historiadores até muito

recentemente, e cuja ideia os trabalhos de Ayres de Carvalho (1962) ajudaram a

fomentar, Quillard teria vindo em 1726 na companhia do naturalista suíço Charles

Frederick Merveilleux, que aqui se deslocou por algumas vezes, com o pretexto de

escrever uma História Natural do Reino.

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Page 75: Livro e Iconografia

26 Esta questão, como já tivemos oportunidade de salientar,16 ainda é bastante

controversa, dado que muitas daquelas hipóteses permanecem por confirmar. Primeiro,

a da própria vinda de Merveilleux em 1726 (apenas a vinda de 1724 está confirmada),

segundo, que as memórias publicadas anonimamente em Amesterdão, em 1738, sejam

de facto do naturalista de Neuchate1,17 terceiro, que o pintor mencionado pelo autor

das memórias seja de facto Quillard, dado que o seu nome nunca é referido e, por outro

lado, a última vez em que se menciona o "jovem pintor" é em Talavera (Espanha),

portanto, não tendo este, acompanhado o escritor até Portugal.

27 Parece-nos mais provável a hipótese, que o artista tenha vindo por via marítima,

ajudado pelo enviado na Haia, Diogo de Mendonça Corte-Real, na companhia do

gravador flamengo Theodor Andreas Harrwyn e de sua mulher Maria Catarina

Previgny, em Junho de 1726. Quillard ter-se-ia então colocado sob a protecção do

soberano português, D. João V, o que acontecia frequentemente com muitos outros

artistas, que iam chegando de toda a Europa.

28 Quillard seria assim o pintor mencionado por Corte-Real numa carta enviada para

Lisboa, a 13 de Junho desse ano, dando notícia da partida de André Harrwyn: "Com este

Abridor vay hum bom Pintor ao qual não dey nada do Dinheiro de Sua Magestade por querer ir

por seu gosto, e só lhe farei algum presente para lhe pagar a passage daqui até Lisboa, o que será

da minha bolsa". Justificar-se-ia assim a sua vinda, portanto por mar e a despesas do

enviado, bem como a sua apresentação na corte do Magnífico, através do seu homónimo,

o Secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte-Real, de quem Quillard faria o retrato,

e para quem viria igualmente a trabalhar na decoração do seu palácio à Junqueira.

Quillard em Portugal: o gravador

29 Diversamente do que sucedeu em estudos anteriores, iremos aqui debruçar-nos apenas

sobre a obra gravada de Quillard, dadas as dimensões do texto, deixando para posterior

publicação outros dados acerca da sua actividade como pintor.

30 Para além do interessante trabalho que o artista desenvolveu no nosso país, como

pintor de retratos, de composições religiosas, Cenas Galantes ou de Género, a actividade

como gravador foi sem dúvida uma das mais marcantes. Embora raramente atingindo

os níveis de um Harrewyn, Le Bouteaux, ou De Rochefort, a sua obra é marcada por uma

grande originalidade e delicadeza do talhe, como já o notara Ernesto Soares,

produzindo algumas chapas que se podem considerar modelares entre a história da

gravura portuguesa. Segundo referia Soares, "a sua maneira é diferente da de todos os

artistas que aqui se encontravam na época e afora Bouteaux, nenhum outro se lhe pode

assemelhar e esse mesmo nunca no arrojo da concepção ou na delicadeza e graciosidade

da execução".18

31 Pouco se sabe ainda sobre os primeiros anos de actividade de Quillard no nosso país,

entre 1726 e 1727, mas parece que ela começou precisamente com a gravura. Os

conhecimentos travados durante a sua viagem para Lisboa com T. André Harrwyn,

devem-lhe ter proporcionado a abertura ao mercado português pela via da gravura,

uma das artes em plena ascensão na década de 20, mormente pela criação de D. João V,

da Academia Real de História, e pelas sucessivas encomendas e compras de gravuras

europeias, como é do conhecimento geral. Será igualmente Harrewyn quem, por outro

lado, fará a impressão de grande parte das gravuras elaboradas pelo artista parisiense.

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Page 76: Livro e Iconografia

32 Também segundo o biógrafo veneziano, o jovem pintor, que contava entretanto com

cerca de 23 anos de idade, terá apresentado um quadro a D. João V (de que se

desconhece o tema), em 1727 ou 1728, cuja satisfação levara o soberano a conceder-lhe

uma tensa mensal de 60 000 reis.19 A nomeação como desenhador da Academia Real de

História também referida, e depois seguida por outros autores, parece tratar-se de

outro engano de Guarienti, consoante referia Ernesto Soares, dado o seu nome não

constar de qualquer registo nos livros de despesa, conhecidos até à data, e porque os

trabalhos de Quillard eram pagos à parte, procedimento habitual para os pintores

régios.

33 Parecendo confirmar esta nomeação como pintor régio, é a assinatura que o pintor

coloca numa das suas mais interessantes gravuras, e precisamente a mais antiga que se

conhece – Lançamento da Nau Lampadosa, que representa o solene acontecimento de 30

de Setembro de 1727, dedicada ao rei, e onde ali assina como "humilde e muito

obediente servidor Antoine Quillard".

34 Trata-se de uma magnífica composição comemorativa, de grandes dimensões, que

revela a plena maturidade do artista na técnica da água-forte. [fig. 2] Dela nos dava

conta Cirillo Volkmar Machado, referindo-se aquela gravura como "huma náo que foi

ao mar em 1727 com todo o povo dentro, e fora della, e o mesmo Rei, a quem a dedicou.

Era gravada no estilo de le Clerc."20

Fig.2 - Pierre Antoine Quillard, Lançamento da Nau Lampadosa, 1727

35 No ano seguinte, no entanto, numa das duas gravuras de Arquitectura efémera com Fogo

de Artifício, onde se festejavam as celebrações dos contratos nupciais dos príncipes

portugueses e espanhóis, já se intitula pintor régio e gravador (Sculptor).

36 Embora apenas uma delas esteja assinada por Quillard, a que representa o Tempo de

Júpiter, é provável que ambas sejam de sua mão, pelas afinidades de técnica e estilo,

sendo ambas impressas por T. Andreas Harrwyn.

37 Trata-se da representação de duas máquinas cenográficas pirotécnicas, que foram

montadas no Terreiro do Paço, por ocasião das festividades do duplo casamento dos

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príncipes e princesas de Portugal e Espanha, em Janeiro de 1728, consoante foi

amplamente divulgado na época (Conde de Ericeira, Marquês de Valença, Frei José da

Natividade, Jozé de Matos Rocha, Gazeta de Lisboa, etc.). Mais uma vez, Quillard mostra-

se um exímio mestre do talhe a água-forte, em duas complexas composições de caracter

documental tendo novamente a história contemporânea como base da sua temática.

Fig. 3 – P. A. Quillard, Máquina pirotécnica c/ Templo de Júpiter, 1728.

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Fig. 4 – P. A. Quillard, Máquina pirotécnica c/ Templo de Diana, 1728.

38 A primeira, representa uma arquitectura efémera tendo ao centro a figura de Júpiter

lançando raios, coroado pela figura da Fama, naturalmente uma composição alegórica

em honra ao príncipe D. Fernando de Espanha e de Maria Bárbara de Bragança,

conforme refere a respectiva legenda. [fig. 3]. A segunda, representava o templo de

Diana, com a deusa na parte central, frente a um jardim, e igualmente coroada pela

Fama, naturalmente em homenagem ao consórcio entre o Príncipe D. José de Bragança,

e Maria Anna Vitória. [fig.4]. Embora a mesma não tenha qualquer legenda, esse facto é

confirmado pela descrição de Joze de Matos da Rocha: "Este fingido Templo de Diana,

que ardeu do vosso Paço do Terreiro, quando Lisboa festejou ufana de vossas bodas o

rumor primeiro."21 Provavelmente estas duas máquinas pirotécnicas estavam colocadas

no centro do Terreiro do Paço, local de onde podiam ser observadas pelas janelas do

Paço Real, e à volta das quais o povo podia assistir ao espectáculo, conforme se observa

nas gravuras delineadas por Quillard.

39 Ao mesmo tempo, parece ter iniciado a sua actividade como retratista, pintando a efígie

do Engenheiro-mor do Reino, Manuel de Azevedo Fortes, e que serviu de base à gravura

de Rochefort que abre a importante obra O Engenheiro Portuguêz (Lisboa, 2 vols.,

1728-1729), bem como o seu retrato de D. José, actualmente numa das dependências do

Palácio de Mafra.

40 A partir desta data, Quillard terá terminado repentinamente a sua actividade para o rei

como gravador. Efectivamente, para além da decoração da antecâmara dos aposentos

da rainha, no Palácio Real (e que arderam no incêndio de 1745), da menos importante

participação na decoração de algumas das dependências do convento de Mafra, e de

alguns retratos de D. João V, que ocuparão a sua actividade como pintor a partir de

1730, os seus trabalhos, a partir desta data, serão sobretudo vocacionados para a Alta

Aristocracia de corte.22 Talvez daí derive o facto de o artista nunca ter feito parte do

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grupo de gravadores que trabalharam para a Real Academia de História, nem ter

participado na ilustração das obras produzidas pela Impressão Régia daquela academia.

41 Será também em 1728 que o artista inicia o seu trabalho como ilustrador, ornando

livros com diversos cabeções, vinhetas e letras iniciais. Nesse ano, sai a público o

primeiro tomo (e único) da obra do padre oratoriano António dos Reis, Joanni V

Epigrammatum, cuja ilustração (7 gravuras) esteve a cargo de Quillard.23 Para o mesmo

autor viria também a ilustrar mais tarde (7 gravuras) a Epistola ad Jametem Ducem

Cadavalensis, de 1731. Estes epigramas dedicados a D. João V, são ilustrados com algumas

curiosas gravuras, mais uma vez de carácter histórico-documental, representando

alguns acontecimentos marcantes das leis, obras públicas, e batalhas, dos inícios

daquele reinado, como o desvio das águas do Tejo que se iniciou em 1715, a lei que

proibiu o uso de armas curtas [fig. 5], a Batalha de Matapan contra os Turcos (única

composição do género deste artista) [fig. 6], ou a desobstrução do canal do Tejo.

Fig.5 - P. A. Quillard, Destruição das armas curtas, 1728

Fig.6 - P. A. Quillard, Batalha do Cabo Matapan, 1728

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As encomendas para a casa Cadaval

42 Entre 1730 e 1731, a actividade de Quillard, sobretudo como gravador, coloca-se ao

serviço do 2° Duque de Cadaval, D. Jaime de Mello. Um pouco antes daquele ano, parece

ter começado o trabalho para as Ultimas acçõens do Duque D. Nuno Álvares Pereira de Melo,24 uma das suas obras mais importantes como desenhador e abridor de chapas (as 15

principais, mais alguns cabeções, escudetes e ornamentações – as finais são de Vitorino

José da Serra), onde se reúnem exemplares de excepcional qualidade e detalhe.

Fig.7 – P. A. Quillard, Retrato do Duque do Cadaval, 1730

43 A temática das composições é bastante variada, que vai desde a alegoria, ao retrato [fig.

7], à religiosa e histórica. As mais interessantes são sem dúvida estas últimas,

nomeadamente aquelas que fazem uma descrição das exéquias fúnebres do Duque,

desde o imponente cortejo, à da representação dos altares e decorações da Igreja de

Santa Justa em Lisboa, em 1727 (desaparecida com o incêndio que deflagrou após o

Terramoto de 1755).

44 Em 1732, ainda em vida de Quillard, Jaime de la Te e Sagau, no seu Prefácio à obra de

João Tavares de Vellez Guerreiro, Jornada que António de Albuquerque Coelho..., fazia um

elogio a D. Jaime de Mello, a propósito desta obra, mencionando a excepcional

qualidade em todos os aspectos, referindo-se também em particular às estampas de

Quillard, "dextro no pincel e no buril que abrisse em planchas de cobre tudo o que fosse

preciso para o ornato do livro, o que ele executou com suma perfeição, pois não falando

em vinhetas, letras iniciais e remates, abrio para o principio da obra uma estampa de

admirável ideia, a que se segue outra o retrato do duque sumamente semelhante. No

meio se vê outra que representa a pompa militar do enterro e no fim trinta e três que

mostram o magnifico mausoléu e todos os adornos fúnebres de que se vestiu a Igreja de

Santa Justa...".25

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45 Ernesto Soares, e também Aires de Carvalho, consideram estas, "peças ímpares na nossa

História da Gravura e que nunca mais nenhum artista português conseguiria igualar e

muito menos superar.".26

46 A grande água-forte que representa o Cortejo Fúnebre, [fig. 8] é certamente uma das

obras mais notáveis do artista, bem como de toda a gravura portuguesa do período

joanino, não só pela qualidade do talhe, como pela complexidade e particularidade da

composição.

Fig.8 - Pierre Antoine Quillard, Cortejo fúnebre do Duque do Cadaval, 1730

47 É certo que podemos ainda aqui antever algumas afinidades com a obra de Watteau, em

particular com a pintura Cavaleiros e soldados em marcha (aka Defillé), executada c.

1709-1710, para Jean Jullienne, e posteriormente gravada por J. Moyreau em 1730 [fig.

9]. No entanto, neste caso, a obra do mestre de Valenciennes fica bastante aquém da de

Quillard.

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Fig. 9 – Antoine Watteau, Defillé, c. 1709-10

48 Outras das pranchas mais relevantes, são as grandes folhas desdobráveis que figuram os

diversos altares da Igreja de Santa Justa (os da nave e o do altar-mor). Nela se

representam diversas pinturas de temática religiosa, com cenas da Vida de Cristo, de

Nossa Senhora, dos apóstolos e santos. No altar-mor estava representada uma grande

tela com urna Coroação de Nossa Senhora pela Santíssima Trindade, tendo na cimalha um

retrato do duque, e que apresenta diversas semelhanças com o quadro sobre o mesmo

tema que o pintor realizou para Mafra, mormente nas figuras do Cristo de perfil, e de

Nossa Senhora (na posição inversa à da gravura, claro está).27

49 Os painéis dos altares laterais, [figs.10-11] representavam cenas com Anunciação,

Sermão da Montanha, Cristo perante Caifás, Cristo perante Pilatos, e muitos outros pequenos

painéis com um S. João, outros apóstolos, como um pequeno quadro figurando S. Lucas

retratando a Virgem, à semelhança da gravura que Quillard fizera para a Irmandade de S.

Lucas, para as patentes daquela irmandade, conforme referia Cirillo, ou para uma

simples folha solta votiva, de acordo com Ernesto Soares, impressa por André Harrwyn.

50 Desse período parecem datar também as suas primeiras "cenas galantes" produzidas

em Portugal, que pertenceram à colecção do Duque de Cadaval, de quem Quillard

pintou, em colaboração com Duprá, o magnífico retrato equestre.28

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Fig.10 - Pierre Antoine Quillard, Altares da Igreja de Santa Justa, 1730

Fig.11 - Pierre Antoine Quillard, Altares da Igreja de Santa Justa, 1730

51 Também as outras cenas galantes da Colecção Cadaval (adquiridas pelo 3° duque D.

Jaime de Melo), bem como a Quermesse ou Festa num Parque, actualmente no Museu

Nacional de Arte Antiga,29 devem datar desta época. De referir ainda uma outra cena

galante pintada por Quillard em Portugal, adquirida pelo pintor Zuloaga, e que foi parar

à colecção Jules Strauss em Paris. A série das "Quatro Estações", actualmente na

colecção Thyssen, e que em 1928 estiveram expostas no Musée Carnavalet em Paris,

pertencendo então a M. Paraf, são muito possivelmente as que pertenciam à colecção

da Casa de Aveiro, vendidas em 1759.

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Page 84: Livro e Iconografia

52 Também as duas telas intituladas Assemblée prés de la statue de Neptune (ou Les Jardins de

Saint Claude), e Le Contrat de Mariage, actualmente no Museu do Prado, anteriormente

atribuídas a Watteau, podem perfeitamente incluir-se neste grupo. A sua presença na

colecção de Isabel Farnésio, mãe de Mariana Vitória, no Palácio de San Idelfonso em La

Granja, em 1746 (passando depois para o Palácio de Aranjuez em 1789), e

posteriormente incluídas no Palácio Real de Madrid, permite concluir uma possível

proveniência portuguesa, dados os contactos directos entre a princesa real e Quillard,

bem como a referência ao pintor nas cartas à sua mãe, bem como o usual envio de

diversas obras para a corte espanhola. Veja-se, por exemplo, o que a ainda princesa

escreve numa carta enviada a Isabel Farnésio, em 1734, e que é elucidativa do apreço

que tinha por Quillard, bem como do hábito de lhe enviar pinturas executadas em

Portugal: "O pintor que fez o meu retrato e que eu vos enviei morreu e não há neste momento

nenhum bom, mas se quer que algum dos maus o faça...".30

53 Em 1731, o artista produz uma série de nove gravuras para a obra de António dos Reis, a

que fizemos já referência, Epistola ad Jametem Ducem Cadavalensis..., de temática

sobretudo alegórica, e onde se reproduz novamente o retrato do 1° duque, D. Nuno

Álvares Pereira de Melo [fig. 7].

54 Este aproveitamento de estampas já produzidas anteriormente para outras obras, era

um expediente comum na época, como virá também a suceder com as Imagens

conceituosas dos Epigramas do Reverendo P. M. António dos Reys reduzidas do metro latino ao

metro lusitano... por João de Souza Caria (Lisboa Occidental, Na Officina da Musica,

M.DCC.XXXI), ilustradas com cinco vinhetas utilizadas noutras obras impressas.

Fig.12 – P. A. Quillard/Debrié, Outavado – Dança Portugueza, 1745

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Page 85: Livro e Iconografia

As últimas obras

55 Talvez devido aos seus anteriores contactos em Haia com Diogo de Mendonça Corte

Real, Quillard executou diversas pinturas para a sua recente residência em Lisboa, a

Quinta das Águias na Junqueira, então adquirida pelo enviado em Outubro de 1731. Para

ali parece ter executado três telas para a capela do palácio, entre as quais se encontrava

uma Anunciação, de acordo com a invocação da mesma.31

56 Para além destes contactos prévios, o pintor era também seu vizinho, possuindo

residência e atelier na Travessa dos Algarves, transversal à Rua da Junqueira, frente ao

Tejo, consoante informava Jean Doriot em 1959: "près du quartier de Belem, dans la

ruelle des Algarves".32 Mas as relações com a família não se ficariam por aqui, dado que

nesse ano, faz o retrato do Secretário de Estado, seu homónimo e familiar, que hoje

conhecemos apenas por gravura.

57 Aliás, o ano de 1732 será pontuado pela sua actividade como retratista. Elaborou um

retrato do seu colega André Gonçalves (1685-1762), um dos pintores mais conhecidos da

primeira metade do século XVIII, para além de outros que realizou para a família real,

tais como o do infante D. Carlos, ou de Dona Mariana Vitória (hoje desaparecidos).

Fig.13 – P. A. Quillard, Alegoria a D. João V, s.d.

58 A sua obra como ilustrador é cada vez mais diminuta, a partir desta data, talvez pelo

incremento da sua produção pictórica. Fez um pequeno cabeção com a coroa real,

depois aproveitada para a obra de Bento Morganti, Descripção Fúnebre das exéquias de D.

João V... (Lisboa, 1750), duas vinhetas para a obra do Conde de Vimioso, com epigramas

ao Marquês de Alegrete, Manuel Teles da Silva;33 e ainda uma vinheta para uma obra de

Diogo Fernandes de Almeida, com as armas do autor.34

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Page 86: Livro e Iconografia

59 Acrescente-se ainda neste ano, a belíssima Outavado-Dança Portugueza, [fig. 12] curiosa

obra do artista dentro da pintura de género, temática que viria na segunda metade do

século a ganhar sucessivos praticantes. Gravada posteriormente a buril por G. François

Debrié, em 1745, esta gravura apresenta ainda muitas afinidades com o estilo de

Watteau, nomeadamente com a Festa Báquica, realizada para as decorações do Hotel

Chauvelin, o então presidente do Parlamento de Paris, por volta de 1710-20, e depois

passada a gravura por J. Moyreau em 1731. Segundo Ernesto Soares, Quillard não teria

terminado a obra por sua morte, tendo a chapa passado para a posse de Debrié, que a

concluiria posteriormente.35

60 Para além desta, conhecem-se ainda algumas gravuras soltas, das quais desconhecemos

a origem, e o emprego, como uma Alegoria a D. João V, com os continentes, e o Rio Tejo

[fig. 13]; as Quatro Idades do Homem, que ilustra versos do Padre Oratoriano Manuel

Monteiro; e uma Santa Rita de Cássia, gravada por Charles de Rochefort [fig. 14].

Fig.14 – P. A. Quillard, Santa Rita de Cássia, s.d.

61 Em 1733, a sua breve carreira chega ao fim, morrendo repentinamente a 25 de

Novembro, como refere a sua certidão de óbito,36 na sua residência no Vale das Chagas,

freguesia de Santa Catarina do Monte Sinai, sendo sepultado em campa rasa na Igreja

das Chagas, com grande pranto dos amigos e colegas, consoante relatava o biógrafo

veneziano.

62 Referências da época dão-nos também esse testemunho do grande apreço, e estima que

gozou entre os seus contemporâneos e clientes, como o do Conde de Ericeira, no seu

diário, logo em Dezembro desse ano,37 ou o de Dona Mariana Vitória, em Janeiro do ano

seguinte – "Le pauvre Quillard est mort".

63 O rol das colecções onde a sua obra se encontrava figurada, é por outro lado bastante

representativa do agrado e da popularidade que a sua pintura tinha adquirido,

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Page 87: Livro e Iconografia

mormente entre a alta aristocracia, apesar da estética oficial joanina considerar ainda

como inferior aquele género temático.38

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NOTAS

1. Veja-se a bibliografia no final deste trabalho.

2. Vejam-se sobretudo os artigos publicados no Diário de Lisboa, entre 1954 (7/5, 19/7, 27/7, 2/9,

24/12) e 1955 (16/5, e 2/7), e depois recompilados no estudo, Ayres de Carvalho, "Domenico

Duprà (1689-1770) Royal Portrait-Painter to various European Courts", The Connoisseur Year Book,

1958, XLIII, pp. 78-85.

3. Nuno Saldanha, "Pierre-Antoine Quillard", Jean Pillement (1728-1808) e o paisagismo em Portugal no

século XVIII, Lisboa, F.R.E.S.S., 1997.

4. Pelo menos no tocante às obras conhecidas até à data. No entanto, não podemos deixar de

considerar também aquelas que aqui foram pintadas e depois levadas para o estrangeiro, a que já

fizemos referência em estudos anteriores, para além daquelas que entretanto desapareceram ou

que permanecem por identificar.

5. Já em trabalhos anteriores fizemos referência a esta confusão, esclarecendo que Guarienti vem

precisamente completar, e corrigir, o célebre Abecedario Pittorico del peregrino Antonio Orlandi. A

versão acrescentada de Guarienti viria a ser publicada em 1753 (Veneza). O livro de Orlandi,

publicado pela primeira vez em Bolonha, em 1704, e posteriormente em 1719, numa versão

aumentada, reeditada depois em Florença, em 1731, vinha sendo alvo de diversas críticas. Veja-se

a carta de Mariette a Gaburri, onde o mesmo afirma a propósito que il P. Orlandi nel suo Alfabeto

Pittorico há imbrogliato tutta questa cosa. Francesco G. tentou depois convencer Gaburri a aceitar a

tarefa de o emendar, depois de uma tentativa gorada de o traduzir para francês: "Sarebbe in

veritá molto opportuno che una persona intelligente come voi, si pigliasse la cura d’una nuova

edizione dell'Abecedario Pittorico del P. Orlandi. Questo è un libro utile, ma che è tanto pieno di

Sbagli, che non se ne puó fare uso nessuno... Gli estratti, che egli ne dà, sono per la maggiore

parte infideli, e tronchi; e inoltre vi manca un infinitá di cose.". (Paris, Junho de 1733).

6. Veja-se os apontamentos biográficos de Alan Wintermute, « Le Pélerinage à Watteau – An

Introduction to the Drawings of Watteau and his Circle", Watteau and his World, French Drawing

from 1700 to 1750, Nova Iorque, 1999, pp. 38-39.

7. "Pietro Antonio Quillard overo Quigliard (p. 415). Nacque in Parigi da Steffano Quillard di

professione Falegname, et di Maria Madalena Grellet. In età ancor tenera, che non oltrepassava

l'anno undecimo, fece alcuni disegni, che furono stimati di tanta perfezione, ch'essendo

presentati dall'Abbate di Fleury ora cardinale al re Luigi XV quel giovane monarca li ebbe cotanto

grati, che accordó a Quilard una pensione di lire ducento, quale fu accresciuta poi fin'a trecento.

Indi datosi più a conoscere, vi fu un certo medico Svizzero da Naufchastel nommato Marveilleux,

il quale volendo passare in Lisbona incaricato di diversi progetti solto il pretesto di scrivere

l'istoria naturale di Portogallo, ebbe la possanza di persuadere Quigliard ad accompagnarlo per

disegnare le piante, alberi, radici, etc. Laonde venuto in questa capitale, ed essendo presentato al

re non so che quadro di sua mano, piacque tanto a sua Maestà buon gusto di Quigliard, che si

degnò di prenderlo per suo pittore, e disegnatore insieme della reale Accademia di Lisbona con lo

stipendio d'ottanta piastre il mese, ed in questo esercizio visse alcuni anni, finchè sopragiunto

infelicemente da una colica con poso tempo d'infermità pianto da'virtuosi, e dagli amici se ne

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Page 90: Livro e Iconografia

mori a Lisbona il 25 novembre 1733. Fra gli altri lavori di questo virtuoso vi sono in Portogallo le

soffitte delle anticamere della regina etc., e nel palazzo del Eccellentissimo signor duca di

Cadaval vi sono molti suoi quadri dipinti e disegnati. Questo pittore seguiva la maniera di Wattò,

e pare sia stato suo discepolo. Monsieur Mangiè coniatore della zecca reale di Lisbona possiede

diversi quadri di esso autore; cosi nella racolta singolare del marchese Allegretti, e in quella delli

signori Conti de Évicera si vedono opere belle di questo autore." Cit. por Athanase Raczinsky,

Treizième Lettre – Appendice, Les Arts en Portugal, Paris, Jules Renouard et Cie, 1846, pp. 326-327.

8. Abbé de Fontenay, Dictionnaire des Artistes, 2 vols., Paris, L. A. Bonafons, 1776.

9. Cyrillo Volkmar Machado, Collecção de memorias relativas ás vidas dos pintores, e escultores,

architectos, e gravadores portuguezes..., Lisboa, Imp. de Victorino Rodrigues da Silva, 1823 (escrito

entre 1780 e 1794).

10. Cardeal Saraiva (Frei Francisco de S. Luís), Lista de Alguns Artistas Portugueses, Lisboa, 1839, pp.

344-346; Athanazius Raczynski, op. cit.

11. Luís Xavier da Costa, As Belas-Artes Plásticas em Portugal no séc. XVIII, Lisboa, 1935.

12. Fernando de Pamplona, Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses, vol. IV, Lisboa, 1974.

13. Apesar do importantíssimo contributo deste autor, não concordamos naturalmente com

algumas das suas hipóteses, mormente a de apontar para 1711 o nascimento de Quillard. Veja-se

Ayres de Carvalho, op. cit.; idem, D. João V e a Arte do seu tempo, Lisboa, 1960-62; idem, Presença de

alguns artistas franceses em Portugal no século XVIII, Catálogo, Lisboa, F.R.E.S.S., 1982; e idem,

Artistas e Gravadores Franceses, Coimbra, M.N.M.C., 1984.

14. Veja-se Agostinho R. Marques de Araújo, Experiência da Natureza e Sensibilidade Pré-Romântica

em Portugal – Temas de pintura e seu consumo (1780-1825), Porto, 1991 (dissertação de Doutoramento

em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto); e idem,

"Pierre-Antoine Quillard", Joanni V Magnifico – A Pintura em Portugal ao tempo de D. João V, Lisboa,

IPPAR, 1994, pp. 261-267.

15. A data mais provável do seu nascimento, parece ser posterior a 1703, dado que a apresentação

ao jovem Luís XV por Hercule de Fleury não pode ter sucedido antes de 1714, data em que este

último é nomeado preceptor do soberano. Afastam-se assim as hipóteses de 1701 (Wildenstein);

sobretudo a de 1711, como defendia Ayres de Carvalho, entre outros; e mesmo a mais recente

suposição que apontava para 1704, consoante refere Martin Eidelberg, que o dava como discípulo

de Watteau entre 1712 e 1714 (hipótese essa que também carece de confirmação).

16. Nuno Saldanha, op. cit., 1997.

17. Memoires Instructifs pour un voyageur dans les divers Etats de l’Europe: contenant des Anecdotes

curieuses, trés propres à éclaircir l’Histoire du Tems; avec des Remarques sur le Commerce et l'Histoire

Naturelle, Editado por H. Du Sauzet, Amesterdão, 1738. Sobre esta obra veja-se Ayres de Carvalho,

D. João V e a Arte do seu tempo, 2 vols., Lisboa, 1960-62.

18. Ernesto Soares, « Quillard (Pierre Antoine) », História da Gravura Artística em Portugal – Os

artistas e as suas obras, vol. II, Lisboa, Livraria Samcarlos, 1971, p. 494.

19. Ou de 80 piastras, consoante refere Guarienti. Para termos alguns termos de comparação,

Merveilleux recebera 80 000 reis pela Casa da Moeda; mas Vieira Lusitano, que substituiria

Quillard após 1733, receberia exactamente o mesmo ordenado.

20. Cirillo Volkmar Machado, op. cit., p. 282.

21. Joze Matos da Rocha, Epithalamio nas Augustas Vodas do Sereníssimo Príncipe do Brasil o Senhor D.

José, com a Sereníssima Infanta de Hespanha a Senhora D. Maria Anna Victoria, Lisboa Occidental, na

Officina da Musica, 1729.

22. Os anos de 1730-1731 foram sobretudo marcados pela pintura sacra de altar. Embora Quillard

não tivesse sido convidado a participar na decoração da Igreja, cujo programa foi entregue

exclusivamente a pintores italianos, a sua presença no grandioso projecto de Mafra, ficou

marcada por uma Coroação de Nossa Senhora, e por um Lava-Pés, colocados na portaria do convento,

por uma Última Ceia, na capela do Campo Santo (em colaboração com André Gonçalves), e talvez

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Page 91: Livro e Iconografia

ainda um S. Paulo pregando, telas que marcam a sua estreia no campo da temática religiosa. Veja-

se Nuno Saldanha (Comiss.), Joanni V Magnifico – A Pintura em Portugal ao tempo de D. João V, Lisboa,

IPPAR, 1994.

23. Joanni V. Epigrammatum libri quinque authore P. Antonio dos Reys Lusitano, Congregationis Oratorii

Ulissiponensis... Tomos Prior Ulyssipone Occidentali, Ex praelo Josephi Antonii a Sylva...

MDCC.XXVIII.

24. Ultimas Acçoens do Duque D. Nuno Alvares Pereira de Melo. Relação do seu enterro e das Exequias que

se lhe fizerão em Lisboa e nas terras de que era donatário... Escritas... Pelo Duque Dom Jayme de Mello seu

Estribeiro...Na Officina da Musica. Lisboa 1730.

25. João Tavares de Vellez Guerreiro, Jornada que António de Albuquerque Coelho, Governador e

Capitão General da Cidade do Nome de Deos de Macao na China fez de Goa até chegar à dita cidade no anho

de 1718: dividida em duas partes. Lisboa Occidental, Officina da Musica, 1732. (1ª ed. 1718). Cit. por

Ernesto Soares, op. cit., p. 494.

26. Aires de Carvalho, Artistas e Gravadores Franceses – De Callot a Quillard, Coimbra, M.N.M.C., 1984,

p. 17.

27. O mesmo tema seria executado por Quillard para a grande tela que decora uma das paredes

laterais da Igreja de São Pedro de Alcântara, em Lisboa, por volta de 1731. Veja-se Nuno Saldanha,

op. cit, 1994, p. 268. Esta tela deriva provavelmente dos benefícios que D. João V realizou para

aquele lugar, entre Maio e Outubro, conforme relata o Conde de Ericeira no seu diário: "El Rey

tem dado a S. Pedro de Alcântara riquíssimos ornamentos, e dizem que quer fazer mayor a jgreja,

e convento.". Diário de 22 de Mayo de 1731. Veja-se João Luís Lisboa, et allie, Gazetas manuscritas

da Biblioteca Pública de Évora, Vol. 1 (1729-1731), Lisboa, Edições Colibri, 2002, p. 129.

28. Veja-se Nuno Saldanha, op. cit., 1994.

29. Existe a tradição de que este quadro, também chamado Festa na Aldeia, adquirido por José de

Figueiredo em 1921 à colecção Ameal, seja uma obra inacabada, datando-a assim do último ano da

sua vida, ou seja, 1733. Este erro tem sido repetido sucessivamente até há bem pouco tempo,

quando na realidade, apenas sucede o quadro encontrar-se bastante desgastado na camada

cromática, dando-lhe essa aparência de esboço. De qualquer modo, um entendimento da técnica

de Quillard na composição dos seus quadros, aplicando as figuras já depois de totalmente

composta a paisagem, permitiria imediatamente constatar-se a impossibilidade de um esquisso,

até porque a parte superior da tela, num estado de conservação bastante melhor, está

inteiramente acabada.

30. Caetano Beirão, Cartas da Rainha D. Mariana Vitória para a Sua Família de Espanha, t. I

(1721-1748), Lisboa, 1936.

31. As três obras mencionadas são referidas em Luiz Bonifácio, "Quillard em Lisboa", Olisipo, Ano

XXII, n.° 87, Lisboa, Julho de 1959, p. 126, mas sem descriminar os temas, ou apresentar quaisquer

fundamentos para a sua atribuição. Por uma fotografia antiga, sabemos que havia também uma

Imaculada Conceição. Infelizmente, já em 1997, a quinta se encontrava num estado lastimável de

abandono, mas foi-nos possível encontrar o paradeiro da Anunciação, que tivemos oportunidade

de publicar em Nuno Saldanha, op. cit., 1997.

32. Esta Ruela ou Travessa, também aparece referida como Beco dos Algarves, e ficava junto aos

Escaleres Reais, e à Cordoaria, junto à praia da Junqueira. Desconhecemos no entanto, os

fundamentos documentais para esta afirmação do pintor suíço.

33. Praeclarissimo Viro Emmanueli Tellesio Sílvio Marchioni Alegretensi Epigrammatum Liber unus,

authore D. Josepho Michaele Joanne Portugallensi Comité Vimiosensi, Regiae Academiae Sócio-

Ulissipone Occidentali Ex Proelo Michelis Rodrigues, M.DCCXXXII.

34. Dissertação Histórica Jurídica e Apologética que na Conferencia da Academia Real da Historia

Portuguesa de 14 de Fevereiro de 1732 leu D. Diogo Fernandes de Almeida, Lisboa, M.DCCXXXII.

35. Ernesto Soares, op. cit., p. 235. O mesmo se terá passado com a gravura Quatro Idades do Homem.

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Page 92: Livro e Iconografia

36. Transcrevemos aqui em primeira-mão a respectiva certidão: A.N.T.T., Lisboa, Livros das

Freguesias de Lisboa, S.ta Catarina do Monte Sinai, Livro de Óbitos, n.° 8, fol. 119 v.°: "Novembro

de 1733.

P.° An.to Quillard. Em vinte e Sinco de Novembro de mil setecentos e trinta e tres faleceu Sem

Sacramentos, porq repentinamente, no Valle das Chagas desta freguesia, Pedro Antonio Quillard

natural da Corte de Paris, solteiro, pintor, e foi sepultado nesta Igreja. Não se lhe achou

testamento. O P.e Cura Antonio da Cruz e Abreu."

37. Veja-se Eduardo Brasão, "Diário do 4° Conde de Ericeira D. Francisco Manuel de Meneses",

Biblos, vol. XVIII, tomo II, Coimbra, 1943.

38. Vejam-se as colecções do Marquês de Valença, Duque do Cadaval, Marquês de Alegrete, Conde

de Ericeira, Conde de Atalaia e Marquês de Tancos (2 cobres com paizes e animais), Duques de

Aveiro ("seis painéis com paizes e figuras); vendidos em 1759 a Lucas Foreman; Marqueses de

Penalva/Tarouca ("bambuchata campestre de Monsu Guillard; Ninfa Sirix e Pan), ou na dos

artistas António Mengin (diversos quadros) ou António Joaquim Padrão (várias gravuras

actualmente na colecção da Biblioteca Pública de Évora). Também o Abade Castro e Sousa, em

1851, possuía uma Cena campestre atribuída a este pintor.

RESUMOS

Quillard tem sido um artista frequentemente esquecido pela nossa historiografia, apesar de

Portugal ter exercido uma importância considerável no desenvolvimento da sua carreira. Depois

de um período de estreita aproximação ao estilo de Watteau, será aqui que o artista parisiense

dará início a um novo estilo, mais maduro, e a novas temáticas na sua obra, tanto na Pintura

como na Gravura, mormente no desenvolvimento da arte do Retrato, na temática religiosa,

histórica e alegórica, mais de acordo com o gosto e o mercado nacional. As referências da época

dão-nos testemunho do grande apreço e estima que gozou entre colegas e clientes, e o rol das

colecções onde a sua obra se encontrava figurada, é por si bastante representativa do agrado e da

popularidade que ela tinha adquirido, sobretudo entre a alta aristocracia, apesar da estética

oficial joanina considerar como inferior aquele género temático. Um dos aspectos mais

significativos da sua obra foi precisamente o seu trabalho como gravador, e ilustrador de obras,

actividade que desenvolveu em larga medida, apesar da concorrência dos gravadores da Real

Academia de História, fundada por D. João V em 1720.

Quillard has been usually forgotten by our scholars, although Portugal has a considerable

importance in the progress of his career. In fact, after a brief period of close relations with the

work of Antoine Watteau in Paris, it is in Lisbon that the artist will develop a new style, more

mature, and widen new genders in painting and etching, mainly in the art of Portrait, Religious

themes, historical and allegorical subjects, according with the taste and the Portuguese market.

The referentes to the artist witness the considerable appreciation and the positive reception of

his work among other artists and patrons. Largely represented in several collections of that time,

witch evidences his popularity, mostly amongst the aristocracy, despite the disapproval of such

modern tendencies by official aesthetics. One of the most important aspects of his work, it's

precisely his particular skill on etching and illustration, regularly developed along his short

career, openly challenging the engravers of the Royal Academy of History, founded by king João

Vth in 1720.

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Page 93: Livro e Iconografia

ÍNDICE

Keywords: Pierre-Antoine Quillard, portuguese etching, eighteenth century art

Palavras-chave: Pierre-Antoine Quillard, gravura em Portugal, arte do século XVIII

AUTOR

NUNO SALDANHA

(CHC UNL).

Licenciado em História da Arte, Mestre em História Cultural e Política (área Ideias Estéticas).

Investigador do CHC. Académico da Academia Nacional de Belas Artes. Docente da Universidade

Católica Portuguesa e Escola Superior de Design. Publicou, entre outros trabalhos, Poéticas da

imagem. A pintura nas ideias estéticas da idade moderna (1995); Artistas, imagens e ideias na pintura do

século XVIII (1995); O Tesouro das Imagens (1996); além de catálogos como comissário, e artigos

sobre História da Arte, Crítica, Teoria da Arte e Iconografia (sécs. XVII a XIX).

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Page 94: Livro e Iconografia

Fontes para a iconografia teresianano convento do Santíssimo Coraçãode Jesus à EstrelaTheresian Iconography on the convent of the Holy Heart of Jesus in Lisbon

Sandra Costa Saldanha

O antigo convento carmelita do Santíssimo Coração de Jesus à Estrela encerra um

interessante conjunto de painéis de azulejos alusivos à vida de Santa Teresa de Jesus,

cujas composições foram concebidas a partir da cópia directa de dez gravuras do álbum

Vita S. Virginis Teresiae a Iesv.

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Page 95: Livro e Iconografia

1. Joaquim Machado de Castro, Santa Teresa deÁvila, c. 1783

Obra integrada na iconografia geral do edifício, os principais assuntos ilustrados no

complexo dividem-se, basicamente, em quatro tipos: temática alusiva à Ordem

Carmelita, onde se incluem sobretudo passos da vida de Teresa de Ávila; temas

relacionados com a devoção e encomenda do templo e convento, com representações

da rainha, do Santíssimo Coração de Jesus e de religiosos carmelitas; e outros assuntos

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Page 96: Livro e Iconografia

de cariz religioso, onde se integram temas que não cabem no propósito essencial da

construção, como cenas da vida de Cristo, da Virgem e de outros santos.1

Quanto às principais representações de Santa Teresa, merece destaque especial a

composição escultórica da fachada da basílica, executada por dois dos ajudantes de

Joaquim Machado de Castro (1731-1822), Alexandre Gomes e João José Elveni. Obra

integrada no programa iconográfico inicial do templo, que contemplava alguns dos

principais santos carmelitas,2 Teresa de Jesus surgia no modelo original representada

com três livros, símbolo da sua condição de escritora, reformadora e doutora da igreja.

Em termos compositivos, é sintomático reconhecer que a obra se filia na célebre

escultura com o mesmo tema do florentino Filipo della Valle (1697-1768). Colocada num

dos nichos da nave da basílica de São Pedro, um anjo semi-nu acompanha a Santa,

segurando nas mãos um dardo e o coração em chamas, alusivos à célebre passagem

biográfica da Transverberação. Colaborando na realização da série de estátuas de santos

fundadores de ordens religiosas, a importância do projecto do Vaticano, que Della Valle

concluiu em 1754, assim como o factor propagandístico que lhe estava inerente,

favoreceu naturalmente a divulgação de tais obras. Como era frequente em

empreendimentos de vulto, também a imagem dessa estátua seria gravada, pelo

italiano Silvio Pomarede (act. 1736-1768), conservando-se um exemplar no convento

feminino de carmelitas da cidade espanhola de Valladolid.3

Na basílica da Estrela, o espaço onde se encontra o maior conjunto de representações de

Santa Teresa de Ávila é o antecoro da igreja. Com um programa iconográfico bastante

coerente, subordinado a temas da vida da Reformadora do Carmo, observa-se, ao nível

do tecto, a Transverberação e, nas paredes, seis telas com passos da sua vida, a saber:

Santa Teresa com São Pedro e São Paulo, Esponsais místicos, Santa Teresa fundadora

acompanhada por dois anjos, Imposição do colar e Santa Teresa perante o Ecce Homo.4

Paralelamente, a especificidade do convento da Estrela, nomeadamente as

circunstâncias da sua encomenda e construção, determinaram a execução de obras

especialmente adequadas ao edifício. É disso exemplo uma das obras da autoria de

Pompeo Batoni (1708-1787): Santa Teresa a receber as ofertas da rainha de Portugal na

presença das freiras carmelitas, pintura integrada numa segunda etapa do trabalho deste

artista romano para a Estrela, arrematada em 1782 e terminada em 1784.

No mesmo contexto, cabe ainda referir o tecto da denominada sala da rainha, com a

figuração da Rainha doando os planos da Basílica a Santa Teresa de Jesus, obra atribuível a

Cirilo Volkmar Machado (1748-1823), e integrável numa campanha decorativa que

situámos nas últimas duas décadas do século XVIII.5

Vita S. Virginis Teresiae a Iesu – um livro em imagens

Vita S. Virginis Teresiae a Iesu Ordinis Carmelitarum Excalceatorum Piae Restauratricis é o

título de um conjunto de vinte e cinco estampas numeradas, editadas pela primeira vez

em 1613 sob a forma de álbum, mas que podem também encontrar-se avulsas,

agrupadas em séries ou integradas em livros.

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Page 97: Livro e Iconografia

2. Portada de Vita S. Virginis Teresiae a Iesu, 1630

A publicação da obra ficou a dever-se à iniciativa de madre Ana de Jesus (1545-1621),

discípula de Santa Teresa que fez parte do grupo de religiosas que ingressaram no

primeiro mosteiro da Reforma, o convento de São José em Ávila (1562). Conhecida por

ter acompanhado a Santa em diversas das suas Fundações, foi também priora-

fundadora dos conventos de Beas de Segura (1575), de Granada (1582), de Madrid (1586)

e de Salamanca (1596).6 Em 1604, juntamente com Ana de São Bartolomeu (1549-1626),7

fundadora do mosteiro de Amberes, deslocou-se a França, onde inaugurou vários

conventos e, posteriormente, à Flandres onde desde 1607 exerceu funções de priora, no

Carmelo Real de Bruxelas.

Desempenhando um papel fundamental na divulgação da vida e da actividade de Teresa

de Jesus, promoveu em França e na Flandres, por encargo do

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Page 98: Livro e Iconografia

definitório geral da Ordem, a tradução para francês, flamengo e latim de algumas das

suas obras.

3. Transverberação de Santa Teresa

Aguardando a beatificação da Reformadora, Ana de Jesus foi também a responsável pela

realização de uma série biográfica de estampas, representativas de uma parte da vida

de Santa Teresa. A primeira edição foi impressa em Amberes, em 1613, e da sua realiza

ção foram incumbidos os gravadores Adriaen Collaert (1560-1618) e Cornelis Galle

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Page 99: Livro e Iconografia

(1576-1650), autores consagrados pelas composições de reconhecida qualidade técnica,

especialmente naquelas dedicadas à vida de santos.8

Editado em álbum nas vésperas da beatificação de Santa Teresa (1614), o conjunto de

gravuras foi dedicada a D. Rodrigo Lasso Nino, conde de Hanover, ecónomo do

arquiduque Alberto e marido da infanta Isabel Clara Eugénia, governadora dos Países

Baixos e amiga de Ana de Jesus que, como vimos, foi a principal promotora da

iniciativa.

Da série de 1613, conservam-se exemplares completos nos conventos femininos de São

José, de Ávila e de Medina del Campo, assim como na secção de iconografia da

Biblioteca Nacional de Madrid.9 Após a primeira edição, volta a ser publicada em

Amberes uma segunda série, ainda nesse ano, e em 1630 uma terceira, da qual existe na

Biblioteca Nacional de Lisboa um exemplar.10

Apesar da primeira série não ter sido superada tecnicamente por nenhuma das

posteriores, são no entanto de assinalar ligeiras diferenças entre elas, subtilezas

fundamentais dado que se confundem por diversas vezes, nomeadamente quando

usadas para a análise iconográfica de obras de arte.11 Mais recentemente, a obra de

Collaert e Galle mereceu várias edições fac-símile, como é o caso das que foram

publicadas em Montreui-Sur-Mer (1896), Gante (1929, com dupla edição em flamengo e

francês) e Madrid (1914, no centenário da beatificação de Santa Teresa; e 1962, no

centenário da Reforma da Ordem do Carmo).

Os temas

Certamente imbuída da atmosfera contra-reformista que se respirava então, coube a

Ana de Jesus a responsabilidade de seleccionar os momentos biográficos que deveriam

ser fixados pelos artistas de Amberes. Com o auxílio de Ana de São Bartolomeu, as duas

religiosas basearam-se essencialmente no legado escrito de Teresa de Ávila, em especial

no Livro da Vida e no Livro das Fundações.

4. Santa Teresa perante a Trindade

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Page 100: Livro e Iconografia

Apesar da conhecida vocação literária de Teresa de Jesus se ter manifestado

precocemente, foi no decorrer da ampla actividade como fundadora que escreveu o

maior número das suas obras, todas elas a instâncias dos seus superiores e directores

espirituais. Estes livros, cujo âmbito era normalmente de carácter biográfico, conselhos,

normas da vida espiritual e religiosa, acabariam por se converter em textos doutrinais.

No intuito de promover um sistema de pensamento, no seio dos conventos que ia

fundando sob os princípios da sua Reforma, alguns desses escritos alicerçaram também

os principais temas ilustrados nas gravuras de Antuérpia. Com efeito, a difusão da obra

literária, sobretudo dos títulos de carácter biográfico e as descrições de experiências

místicas contribuíram, logo após a canonização (1622), para a definição de uma parte

significativa da sua iconografia.

5. Santa Teresa coroada por Cristo

O Livro da Vida, primeira e mais extensa obra da autora, foi redigido pela primeira vez

em 1562, por ordem do seu confessor, o padre Domingo Báñez, e dividido em capítulos

em 1565, por imposição do padre Garcia de Toledo. Além de um relato autobiográfico da

infância e juventude, Teresa de Jesus narra ainda nessa obra as suas experiências

místicas e relata a história da fundação do convento de São José de Ávila.12

A redacção do Livro das Fundações, composto por ordem do padre Jerónimo Ripalda

iniciou-se em 1573, em Salamanca, e foi completada em Burgos passados dez anos.

Escrito durante a caminhada da Santa, à medida que se foi expandindo a Reforma e

foram surgindo novos conventos, ele relata a história e a origem das diversas

Fundações. O texto repete os temas habituais, de espiritualidade e conselhos para a

direcção das religiosas.

Será então, sobretudo baseadas nestas fontes, mas também no contacto pessoal de que

haviam desfrutado, que Ana de Jesus e Ana de São Bartolomeu procederam à selecção

dos assuntos. Evidenciando claramente a intenção de exaltar e enaltecer as virtudes e

graças de que havia gozado a sua Mestra, os episódios seleccionados destacam em

particular aspectos místicos e ascéticos da existência de Santa Teresa. Prevalecem em

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Page 101: Livro e Iconografia

especial as suas célebres visões, êxtases e contemplações, em detrimento de outros

passos da sua vida, como é o caso da juventude e das Fundações.

Com um total de vinte e cinco gravuras, o álbum em análise é composto por portada,

seguida de vinte e quatro estampas seriadas e legendadas em latim. A sequência inicia-

se no número dois e termina no número vinte e cinco, apresentando as seguintes

representações:13 2 - efígie de Santa Teresa; 3 - Santa Teresa e o irmão caminhando para

a terra dos mouros; 4 - Ingresso de Santa Teresa no convento de Ávila; 5 - Santa Teresa

enferma; 6 - Santa Teresa orando diante do Ecce Homo; 7 - Santa Teresa penitenciando-

se das tentações do demónio; 8 - Transverberação de Santa Teresa; 9 - Santa Teresa com

São Pedro e São Paulo; 10 - Filia tota mea es et ego totus tuus; 11 - Santa Teresa perante a

Trindade; 12 - Santa Teresa superando as tentações do demónio; 13 - Esponsais místicos

de Santa Teresa; 14 - Imposição do colar e do manto a Santa Teresa; 15 - Santa Teresa

devolvendo a vida ao sobrinho; 16 - Santa Teresa coroada por Cristo; 17 - Levitação de

Santa Teresa perante a Eucaristia; 18 - Santa Teresa com São João da Cruz e António de

Jesus; 19 - Santa Teresa protectora dos carmelitas; 20 - Viagem de Santa Teresa a

Salamanca; 21 - Tentações de um sacerdote; 22 - Santa Teresa com São João da Cruz; 23 -

Santa Teresa escritora inspirada pelo Espírito Santo; 24 - Morte de Santa Teresa; e 25 -

Santa Teresa benzendo os carmelitas.

6. Santa Teresa protectora dos carmelitas

A divulgação

Época propícia para a disseminação das doutrinas teresianas, também a série de

Amberes conheceu logo após a sua publicação uma enorme expansão, favorecida que foi

pela atitude adoptada pela Igreja Católica após o Concílio de Trento. Pela importância

que assumia a exaltação e o exemplo da vida dos santos, assiste-se então a uma

popularização, sobretudo de índole didáctica e devocional, das suas representações.

Neste contexto, gera-se um enorme consumo de imagens, galvanizado ainda pela

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possibilidade que a gravura oferecia de obter cópias em massa, que rápida e

eficazmente podiam ser distribuídas nos principais circuitos comerciais do tempo.

7. Morte de Santa Teresa

Incontroverso o facto de se ter constituído como um dos mais importantes veículos

para a divulgação da vida dos santos, entre outras finalidades, a alusão aos episódios

mais célebres da existência de Santa Teresa visava instruir os fiéis em diversos aspectos

piedosos e devocionais. Sabe-se, por exemplo, que no convento carmelita de Medina del

Campo, as vinte e quatro gravuras que constituem a série foram fixadas sobre tábuas,

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configurando uma narração sequencial com a qual as noviças do carmelo se instruíam

acerca dos principais acontecimentos da vida da madre Fundadora. Além deste

objectivo pedagógico, algumas séries serviam simplesmente para ornamentar as

dependências conventuais.

Porém, o êxito de tais composições seria sobretudo visível quando estas se convertem

num modelo corrente para inúmeras obras de arte, especialmente no domínio da

pintura e da azulejaria. Com uma importância decisiva na fixação e desenvolvimento de

parte da iconografia teresiana, as estampas de Amberes constituíram-se, desde logo,

como um eficaz veículo para a rápida difusão da sua biografia.

Decorando o interior de inúmeros carmelos espalhados por todo o mundo, a verdade é

que a série, completa ou incompleta, acabava também por essa via, por cumprir a sua

função didáctica primordial. Com efeito, vários artistas se inspiraram na gravuras de

Collaert e Galle, que foram, nalguns casos, rigorosamente copiadas.14

O enorme sucesso da edição de Antuérpia abre assim portas à publicação de diversas

outras séries gravadas da vida de Santa Teresa, desde a cópia integral até às versões

mais abreviadas. Apesar das semelhanças com as gravuras originais, o seu

conhecimento assume especial importância, na medida em que foi por vezes nestas

obras posteriores, e não nas primeiras, que se inspiraram diversos artistas plásticos ao

longo dos tempos. Entre essas, foram especialmente divulgadas as seguintes:

Giovanni Giacomo Rossi (1640-1690), Sanctissimae Matris Dei Monte Carmelo Beatae Teresiae

humilis filiae ac devotae famulae effigies, 1622. Série publicada como original, composta de

portada e vinte e quatro gravuras. Foi dedicada ao cardeal I Garsia Millino, vigário do Papa e

protector do carmelo da antiga observância. Trata-se de uma cópia da série de Collaert e

Galle, mas assinada por loannes Eillart Frisius, da qual existe em Portugal um exemplar na

Biblioteca da Ajuda.15

Isabella Duca, S. Teresa virgo fratrum Carmelitarum discalceatorum et monialium fundatrix relata

intersanctos A. S. D. N. Gregório XV die 12 martii 1622 Romae, c. 1622. Versão simplificada da série

de Antuérpia, trata-se de uma biografia de Santa Teresa, ilustrada com doze gravuras,

claramente inspiradas no conjunto de Amberes, ainda que realizadas com diferentes

critérios estilísticos e noutro formato. Sem data de edição, vieram à luz por ocasião da

canonização de Santa Teresa (1622).

Daniel a Virgine Maria, Konste der konsten ghebedt: oft maniere om wel te bidden besonderlijck

ghetrocken uijt de schriften van de H. moeder Teresa de Iesu, Amberes, 1646. Incluindo doze

gravuras biográficas anónimas, revela já uma influência mais exígua da série de Antuérpia.

Para consumo devocional claro, em 1711, também em Amberes, sairá uma terceira edição

desta obra.16

Claudine Brunand, Vie de la Séraphique Mère Sainte Thérèse de Jésus, Fondatrice des Carmes

Dechaussez et des Carmélites, en figures et en vers français et latins, Lyon, Antoine Jullieron

imprimeur et Libraire du Roi, 1670. Com um conjunto de cinquenta e cinco gravuras, trata-se

de uma obra dedicada à rainha Maria Teresa de Austria.17

Arnold van Westerhout (1651-1725), Vita Effigiata Della Serafica Vergine S. Teresa di Gesú,

Romae, Westerhout, 1716. Obra dedicada a Francesco Farnese (1679-1730/1), duque de

Parma, apresenta um total de setenta estampas a buril (176 x 125 mm), incluindo um retrato

de Santa Teresa e sessenta e sete cenas numeradas da sua vida. Todas as representações

apresentam inscrições em latim, e são assinadas pelo gravador Arnold van Westerhout.18

Anastasio de la Cruz, Vita S. V. Et M. Theresiae a Iesu solis zodiaco parallela, Augsbourgo, 1750-60.

Com treze gravuras da autoria de C. Klauber Cath. (1740-1760).

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A sala de Santa Teresa

É na denominada sala de Santa Teresa, que mais claramente se individualiza a

iconografia teresiana no convento do Santíssimo Coração de Jesus. Local que

funcionava em tempos de clausura como portaria, é aí que se encontra a representação

de alguns dos principais passos da sua vida, visões e experiências místicas. De exíguas

dimensões, trata-se de um espaço decorado por um silhar de azulejos, marcado por uma

linguagem estilística tardia e assinalado por cercaduras policromas de feição Rocaille.

Obra integrada numa primeira campanha ornamental levada a cabo no edifício, que

datámos entre 1780 e 1790,19 as composições dos dez painéis figurativos foram

concebidas a partir da cópia de dez das gravuras do álbum Vita S. Virginis Teresiae a Iesv.

Com as características próprias da habitual ingenuidade, patente na pintura de azulejo,

a série de Amberes teve no convento do Santíssimo Coração de Jesus uma das suas

réplicas mais expressivas.

Como é sabido, também em Portugal a circulação de livros de gravuras com temas

religiosos era frequente, bem como a sua utilização por artífices e pintores. Com uma

função devocional e didáctica, as estampas com episódios da vida de Santa Teresa,

deverão também ter chegado ao carmelo da Estrela. Normalmente cedidas pelo próprio

encomendador, muitas dessas composições eram copiadas integral ou parcialmente,

sobretudo por questões de correcção iconográfica, mas também para obedecer ao gosto

do promotor da obra. Talvez por via do convento de Santa Teresa em Carnide, de onde

provinham as madres fundadoras, ou simplesmente facultadas ao artífice para que

pudesse realizar o seu trabalho, à escolha dos temas presidiram critérios definidos.

No programa iconográfico seleccionado para esta dependência do convento da Estrela,

reconhece-se que ficaram de lado representações tão importantes quanto a

Transverberação (grav. n.° 8), os Esponsais Místicos (grav. n.° 13), a Coroação (grav. n.°

16) ou a Morte (grav. n.° 24). Assuntos habitualmente representados noutros conventos

da Ordem, e presença obrigatória nas principais narrativas gráficas teresianas, esta

ausência pode ser explicada pelo facto dos mesmos episódios se encontrarem ilustrados

noutras zonas do cenóbio. Por outro lado, dadas as exíguas dimensões da portaria, a

eleição de alguns dos temas pode também ter sido norteada pelo objectivo de adequar

mais eficazmente os painéis ao espaço. Ocasionando a representação de episódios pouco

habituais, entre a rica e vasta iconografia de Santa Teresa, reconhece-se ainda que os

assuntos foram agrupados de acordo com a sequência cronológica dos acontecimentos,

aspecto que de resto se verifica naturalmente nas gravuras de Antuérpia.

Quanto à adaptação das fontes ao azulejo, reconhece-se que os artistas alteraram as

estampas em função do espaço disponível, aumentando ou diminuindo os painéis de

acordo com a morfologia e dimensão da superfície a revestir. Procedimento habitual em

azulejaria, na portaria da Estrela, o silhar desenvolve-se em torno da sala, iniciando-se

a leitura narrativa a partir da porta de acesso. Mantendo sempre intactas as cenas

principais, aquilo que por norma se modificou foram os enquadramentos. Deste modo,

foram abreviados os painéis correspondentes às gravuras n.° 7, 14 e 15, e ampliado o

que reproduz a gravura n.° 6, pelo acréscimo de elementos arquitectónicos,

inexistentes na estampa e derivados, muito provavelmente, da imaginação do

executante.

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Se, em verdade, o artista opera algumas transformações, o facto é que tal sucede quase

sempre para efeitos de adequação da estampa à superfície a decorar. Com composições

que raramente derivam da sua própria interpretação pessoal, mais seguramente, as

variações se explicam pela existência de fontes diversas, nomeadamente em termos

estilísticos, compositivos e de tratamento temático.

No caso do conjunto dos Cardaes, José Meco reconhece a liberdade apócrifa do pintor,

pela inclusão de personagens sem relação com os episódios narrados, assim como pelo

facto da concepção geral e organização plástica de cada cena ter ficado ao critério do

artista.20 A conjugação de temas alheios à iconografia geral do espaço, sintomática de

uma intervenção bastante mais activa, reflecte também o recurso a fontes diversas.

Apesar de se encontrar na Estrela uma parte bastante significativa da iconografia de

Santa Teresa, nomeadamente cenas da vida e visões da mística de Ávila, não devemos

deixar de assinalar ainda o importante conjunto de três painéis de azulejos da antiga

casa do capítulo do convento de Santa Marta em Lisboa, de religiosas clarissas, que se

baseia também directamente no álbum de Amberes.21

8. Azulejos da antiga casa do capítulo, Convento de Santa Marta, Lisboa

Com efeito, a iconografia de Teresa de Jesus, sobretudo representada nos diversos

conventos das carmelitas, estendeu-se igualmente a outros locais, onde se podem

também encontrar cenas narrativas da sua vida. A hegemonia da Santa de Ávila em

domínios diversos, explica a presença da sua iconografia em conventos de outras

ordens religiosas.

A sua qualidade de Reformadora, determinante como é sabido para o aspecto eremítico

da Ordem Carmelita Descalça, serviu também de pretexto para diversas representações

suas em cenóbios dessa natureza, de que é exemplo o convento alentejano de São Paulo

da Serra de Ossa.22

Também pelo facto de ter sido madre superiora de uma comunidade feminina,

contribuiu para que tivesse sido tema de eleição na decoração de diversas outras casas

religiosas, figurando nesses casos, com as insígnias próprias do cargo, um anel e uma

cruz peitoral. Enquanto escritora, foi representada com vários instrumentos de escrita,

nomeadamente o tinteiro, o livro, a pena e a ampulheta, assim como a pomba do

Espírito Santo, símbolo da inspiração e sublimidade dos seus escritos.

Mas foram as suas experiências místicas, sobretudo as visões e os êxtases, que mais

inspiraram os artistas e que maior número de temas ocasionaram, distinguindo-se

como principais atributos um anjo serafim com uma flecha flamejante, um coração em

chamas ou radiante, trespassado ou não, um manto protector e um colar.

Porém, será nos conventos de carmelitas descalças que se encontra a mais vasta e rica

iconografia de Teresa de Jesus, de que são exemplos célebres: o conjunto de pinturas do

extinto cenóbio de Cascais, realizado por Josefa de Óbidos em 1672;23 os revestimentos

azulejares do convento dos Cardaes24 e de Carnide, ambos em Lisboa; assim como os

painéis da capela de Santa Teresa, em Caldas de Monchique.

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No tocante ainda à série de Amberes, José Meco aponta afinidades estilísticas entre os

painéis do coro-alto da já referida igreja dos Cardaes e os três painéis do convento de

Santa Marta, assinalando a influência da série de 1613. Considerando terem sido usadas

parcialmente, indica ainda como fonte as gravuras realizadas em 1716 por Arnold van

Westerhout e a conhecida estampa de Wierix para o painel da Transverberação.25

Apesar de terem, sem qualquer dúvida, desempenhado um papel determinante na

iconografia de Santa Teresa de Ávila, as gravuras de Collaert e Galle impulsionaram,

como vimos, a produção de outros conjuntos de estampas, que oscilaram entre as doze

e as setenta gravuras no total.

As subtilezas que as distinguem, por vezes através da simplificação das composições, da

supressão de alguns elementos ou por divergências ao nível dos cenários, determinam

todavia inspirações diversas. Exigindo por isso um cotejo mais rigoroso, entre as obras

de arte e as suas hipotéticas fontes, é precipitado, por vezes até desacertado, o uso

sistemático da série de Amberes para base de inúmeras obras alusivas a Santa Teresa.

Normalmente apontadas como a principal fonte de inspiração das representações

relativas à sua vida, por serem, com efeito, a sua mais divulgada e célebre biografia

gravada, essa insistência conduz por vezes à errada comparação de modelos que, em

verdade, não se relacionam com as obras em análise.

Santa Teresa e o irmão caminham para a terra dos mouros

Gravura n.° 3, Silhar de 5 x 15 azulejos (excluindo cercadura)

9. Santa Teresa e o irmão caminham para a terra dos mouros

Ainda sem ter completado sete anos de idade, Teresa foge com o seu irmão Rodrigo

para a terra dos Mouros. A cena representada ilustra o momento em que o pai os

descobre durante essa caminhada, fazendo-os voltar para casa. Episódio relacionado

com a sua infância, é curioso notar que no coro-alto do convento dos Cardaes os dois

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irmãos sejam representados, não como crianças mas como adolescentes. O episódio é

descrito por Teresa de Jesus no Livro da Vida:

"Meus irmãos em coisa alguma me desajudavam a servir a Deus. Tinha um, quase daminha idade, que era aquele a quem eu mais queria embora a todos tivesse grandeamor e eles a mim. (...) Combinámos ir a terra de mouros, esmolando por amor deDeus, para que lá nos decapitassem; e parece-me que nos dava o Senhor ânimo emtão tenra idade, se víssemos algum meio; mas o termos pais parecia-nos o maiorembaraço."26

Ingresso de Santa Teresa no mosteiro de Ávila

Gravura n.° 4, Silhar de 5 x 12 azulejos (excluindo cercadura)

10. Ingresso de Santa Teresa no mosteiro de Ávila

Ilustra a passagem de Teresa de Jesus para a vida cenobítica. Com dezanove anos, na

companhia do irmão António e sem que seu pai soubesse, ingressa no mosteiro

carmelita de Ávila. Momento autobiográfico da Santa, o episódio foi uma vez mais

narrado pela autora, que recorda:

“Nestes dias em que andava com estas determinações havia persuadido a um irmãomeu a que se fizesse frade, falando-lhe da vaidade do mundo. E combinámos entrenós, ir um dia, muito de manhã, ao mosteiro onde estava aquela minha amiga aquem eu tinha muita afeição. Nesta minha última determinação já eu estava demodo que iria para qualquer convento onde pensasse servir mais a Deus ou que meupai quisesse. (...) Recordo-me (...) que quando saí de casa de meu pai foi tal a afliçãoque não creio será maior quando eu morrer. (...) se o Senhor não me ajudara, nãoteriam bastado as minhas considerações para ir por diante. Aqui deu-me o Senhorânimo contra mim, de maneira que o pus por obra. Em tomando o Hábito, logo oSenhor me deu a entender como favorece aos que se esforçam para O servir.”27

Santa Teresa orando diante do Ecce Homo

Gravura n.° 6, Silhar de 5 x 12 azulejos (excluindo cercadura)

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11. Santa Teresa orando diante do Ecce Homo

Representa uma das experiências místicas de Santa Teresa que, rezando diante da

imagem de Cristo com as chagas intumescidas, consegue a graça pedida e, poucos dias

depois, ouve a voz de Deus que lhe diz: daqui em diante viverás com os anjos:

"Aconteceu-me que, entrando eu um dia no oratório, vi uma imagem, que para alitrouxeram a guardar (...). Era a de Cristo muito chagado e tão devota que, ao pôrnela os olhos toda eu me perturbei por O ver assim (...). Foi tanto o que senti por tãomal Lhe ter agradecido aquelas chagas, que o coração, me parece, se me partia earrojei-me junto d'Ele com grandíssimo derramamento de lágrimas, suplicando-Lheme fortalecesse de uma vez para sempre para não O ofender."28

Santa Teresa penitencia-se das tentações do demónio

Gravura n.° 7, Silhar de 5 x 5 azulejos (excluindo cercadura)

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12. Santa Teresa penitencia-se das tentações do demónio

Episódio autobiográfico relatado por Santa Teresa enquanto freira, representa o

momento em que esta se penitencia violentamente com chaves, urtigas e outros cilí

cios:

"Parece-me bem falar de algumas tentações que tenho visto haver de principio –algumas tenho-as eu tido (...) Pensar que nos podemos esforçar com o favor de Deusa ter um grande desprezo do mundo, a não estimar honras, nem estar atido àfazenda. Temos uns corações tão apertados, que parece nos há-de faltar a terra emquerendo-nos descuidar um pouco do corpo para darmos ao espírito. (...) A mim,isto me pesa; termos tão pouca confiança em Deus e tanto amor próprio, que nosinquiete este cuidado. (...) Parece-me agora a mim, esta maneira de caminhar umquerer conciliar corpo e alma para não perder cá na terra o descanso e gozar lá noCéu de Deus."29

Santa Teresa com São Pedro e São Paulo

Gravura n.° 9, Silhar de 5 x 8 azulejos (excluindo cercadura)

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13. Santa Teresa com São Pedro e São Paulo

Trata-se de uma representação que ilustra a visão de São Pedro e São Paulo, que

prometem a Santa Teresa auxílio contra as ilusões tentadoras do demónio. No corpo da

gravura lê-se confia porque de modo nenhum serás enganada pelo demónio. Porque as suas

visões eram excessivas, um dos seus confessores fala-lhe sobre a influência do demónio.

"Suplicava muito ao Senhor que me livrasse de ser enganada (...) e pedia a S. Pedro ea S. Paulo porque o Senhor me disse (...) que eles me guardariam para que não fosseenganada. E assim os via muitas vezes ao meu lado esquerdo muito claramente,embora não por visão imaginária. Eram estes gloriosos santos muito meussenhores."30

Santa Teresa supera as tentações do demónio

Gravura n.° 12, Silhar de 5 x 8 azulejos (excluindo cercadura)

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14. Santa Teresa supera as tentações do demónio

Representa outra das suas visões na qual, contemplada pelas inúmeras graças de Deus,

ultrapassou a própria natureza com a abundância dos favores divinos. Impávida, e

empunhando um crucifixo, alcançou várias vitórias sobre os demónios. Relatanto este

episódio, Santa Teresa escreve:

“(…) vi ao pé de mim um negrito muito abominável, raivando como desesperadoporque perdia onde pretendia ganhar. Eu, quando o vi, ri-me e não tive medo. (…)De muitas outras vezes tenho experiência que não há coisa de que eles fujam mais epara não voltar. Da cruz também fogem, mas voltam.”31

Imposição do colar e do manto a Santa Teresa

Gravura n.° 14, Silhar de 5 x 5 azulejos (excluindo cercadura)

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Page 112: Livro e Iconografia

15. Imposição do colar e do manto a Santa Teresa

De acordo com a descrição de Teresa de Jesus, esta visão teve lugar em 1561, no dia de

N. S. da Assunção, na igreja de São Tomás de Avila. Esforçando-se por restabelecer no

primitivo vigor a antiga regra das Carmelitas, esta representação assinala o momento

em que São José a cobre com um manto branco, a Virgem lhe entrega um colar de ouro,

e ambos lhe prometem assistência. Trata-se de uma das suas visões mais célebres,

fundamental para a Ordem Carmelita Descalça, pois afiança em Teresa de Jesus o

empenho de reformar a Ordem. Encontrando-se então na igreja do convento

dominicano referido:

"Parecia-me, estando assim, que me via vestir de uma veste de muita brancura eclaridade. A princípio não via quem ma vestia; depois vi a Nossa Senhora a meu ladodireito e a meu Pai S. José à esquerda, que me vestiam aquela roupa. Deu-se-me aentender que já estava limpa de meus pecados. Acabada de vestir (...) logo mepareceu Nossa Senhora pegar-me nas mãos. Disse-me que Lhe dava muito gostosendo devota do glorioso S. José; que tivesse por certo o que eu pretendia domosteiro se havia de fazer e nele se serviria muito o Senhor e a eles ambos; que nãotemesse que nisto houvesse jamais quebra, embora a obediência que dava não fossea meu gosto. Eles nos guardariam e já Seu Filho nos tinha prometido andarconnosco. Para sinal de que isto se cumpriria dava-se aquela jóia. Pareceu-me entãoque me tinha deitado ao pescoço um colar de ouro muito formoso e preso a ele umacruz de muito valor. (...)"32

Santa Teresa devolve a vida ao sobrinho

Gravura n.° 15, Silhar de 5 x 6 azulejos (excluindo cercadura)

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16. Santa Teresa devolve a vida ao sobrinho

Representa um outro momento da vida da Santa, que teve lugar logo no início das suas

Fundações. Apressando-se na construção do primeiro mosteiro da Reforma (São José), a

queda de uma parede provocaria a asfixia do seu pequeno sobrinho Gonzalo Ovalle,

filho de sua irmã Juana de Ahumada. Voltando imediatamente à vida, reconforta a

triste mãe que assiste. As representações deste tema seguem com fidelidade as suas

narrações, ao relatar a fundação do mosteiro de São José:

"Outra vez estava uma pessoa muito mal de uma enfermidade muito penosa (...). Eracoisa incomportável o que padecia havia já dois meses. Estava num tormento que sedespedaçava. Foi vê-la o meu confessor (...) e causou-lhe grande lástima e disse-meque de todo o modo a fosse ver, pois era pessoa a quem o podia fazer, por ser meuparente. Fui e comovi-me a ponto de ter tanta compaixão dele, que comecei a pedirimportunamente a sua saúde ao Senhor. Nisto vi claramente, sem me ficar qualquerdúvida, a mercê que me fez; porque logo no outro dia estava de todo bom daquelador."33

• Santa Teresa com São João da Cruz e António de Jesus

Gravura n.° 18, Silhar de 5 x 8 azulejos (excluindo cercadura)

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17. Santa Teresa com São João da Cruz e António de Jesus

Trata-se de um episódio associado já ao período da Reforma, ocorrido antes da

fundação do convento de Nossa Senhora do Carmo de Valladolid, em 1568. Encorajada

pelo primitivo projecto do Carmelo, esta representação ilustra o momento em que

Santa Teresa fala com São João da Cruz e o Padre António de Jesus, incumbindo-os de

urna série de tarefas. De acordo com o seu relato:

"Ainda antes de ir para a fundação de Valhadolid, tinha combinado (...) com o PadreFrei António de Jesus (...) e com Frei João da Cruz, que seriam eles os primeiros aentrar, no caso de se fazer mosteiro de Descalços da Regra Primitiva; (...)encarreguei o Padre Frei António de angariar qualquer coisa para a casa e parti comFrei João da Cruz para a dita fundação de Valhadolid. Estivemos alguns dias semclausura para que os operários fizessem o que era exigido para o recolhimento dacasa. Assim, havia ocasião de informar Frei João da Cruz acerca de toda a nossamaneira de proceder, para que levasse bem entendidas todas as coisas (...)."34

Santa Teresa escritora inspirada pelo Espírito Santo

Gravura n.° 23, Silhar de 5 x 8 azulejos (excluindo cercadura)

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Page 115: Livro e Iconografia

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Page 116: Livro e Iconografia

18. Santa Teresa escritora inspirada pelo Espírito Santo

A representação mais frequente de Teresa de Jesus é a que faz referência à sua condição

de escritora. Na cena em questão, que não alude a nenhuma passagem concreta da sua

vida, a presença da pomba do Espírito Santo figura como a fonte de inspiração da

mística escritora, como a luz divina que a envolvia quando escrevia as suas obras. O

Espírito Santo, atributo frequente na iconografia cristã, caracteriza os doutores da

igreja. No caso de Santa Teresa é também uma alusão directa às suas diferentes visões,

invocada diversas vezes nos seus próprios escritos:

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Page 117: Livro e Iconografia

"Estando nesta consideração, deu-me um ímpeto grande sem entender o motivo;(...) Era ímpeto tão excessivo, que eu não o podia reprimir, (...) Nem entendia o quetinha a alma nem o que queria, que tão alterada estava. (...) Estando nisto, vejosobre minha cabeça uma pomba, bem diferente das de cá, porque não tinha penas,senão que as asas eram de umas conchinhas que despediam de si grande resplendor(...). Certo é, Senhor meu e glória minha, que estou em dizer que, nestas grandesaflições que sente a minha alma, eu tenho de certo modo feito alguma coisa emVosso serviço. Ai que já não sei o que digo, pois quase já não sou eu a falar aoescrever isto!"35

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SALDANHA, Sandra Costa, A Basílica da Estrela: Real Fábrica do Santíssimo Coração de Jesus, Lisboa,

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SANZ, Carlos, (Publ. por), Estampas de la vida de la Santa Madre Teresa de Jesús, Madrid, s. ed., 1962

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SOBRAL, Luís de Moura, "Josefa d'Óbidos e as Gravuras: problemas de estilo e de iconografia",

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NOTAS

1. Veja o desenvolvimento desde assunto em Sandra Costa Saldanha, A Basílica da Estrela: Real

Fábrica do Santíssimo Coração de Jesus, Lisboa, Livros Horizonte, 2006 (no prelo).

2. Além de Santa Teresa de Ávila, esse programa inclui ainda as representações de Santo Elias, São

João da Cruz e Santa Maria Madalena de Pazzi.

Cultura, vol. 21 | 2005

117

Page 119: Livro e Iconografia

3. Segundo Jesús Urrea, esta gravura terá servido de base à realização de uma escultura em barro,

de artista anónimo, existente numa colecção particular da cidade de Valladolid. Jesús Urrea,

Homenaje a Santa Teresa en el IV Centenario de su Muerte, Valladolid, Caja de Abonos Popular, 1982.

4. A estas obras juntam-se duas outras telas, cuja temática não cabe no programa decorativo

inicial, com as representações de Nossa Senhora com o menino e Santo António e de São Filipe de Neri.

5. Cf. Sandra Costa Saldanha, op. cit.

6. Sobre Ana de Jesus veja-se artigo recentemente publicado por Maria del Puerto Alonso

Fernández, "Ana de Jesús, profeta de ayer y hoy", Revista de Espiritualidad, vol. 63, Madrid, Padres

Carmelitas Descalços, 2004, pp. 251-299.

7. Sobre Ana de São Bartolomeu veja-se Belén Yuste y Sonnia L. Rivas-Caballero, "Ana de San

Bartolomé y la expansión del Carmelo Descalzo", Revista de Espiritualidad, vol. 63, Madrid, Padres

Carmelitas Descalços, 2004, pp. 301-345.

8. A portada e as gravuras com os números 6-10, 12, 18, 21 e 23 não são assinadas; a número 2 é

assinada por Galle; e as restantes por Collaert.

9. Biblioteca Nacional de Madrid, ER/1638. A edição de Ambers de 1613 foi publicada em fac-

símile por Carlos Sanz, Estampas de la vida de la Santa Madre Teresa de Jesús, Madrid, s. ed., 1962.

10. Adriaen Collaert, Cornelis Galle, Vila S. Virginis Teresiae a Iesu Ordinis Carmelitarum

Excalceatorum piae restauratricis, Antuérpia, Apud Ioannem Galleum, 1630. Biblioteca Nacional de

Lisboa, Secção de Iconografia, E.A. 14P, fls 138 - 162.

11. Vejam-se as diferenças apontadas entre as edições de 1613 e 1630 por Santiago Sebastián,

Contrarreforma y Barroco: Lecturas iconográficas e iconológicas, 3ª ed., Madrid, Alianza Editorial, 1989.

12. Sobre a influência exercida por esta obra na arquitectura carmelita veja-se o interessante

texto de Dolores Garcia Hinajeros, "Las Ideas Arquitectonicas de Santa Teresa de Jesus", I Congreso

Internacional del Monacato Femenino en España, Portugal y America – 1492-1992, vol. I, Leon,

Universidade de Leon, 1993, p. 250.

13. Com as dimensões de 184 x 220 mm em folha de 216 x 252 mm.

14. É, por exemplo, o caso das quatro telas existentes sob o retábulo-mór da igreja de Santa

Teresa em Ávila, da autoria de Gregório Fernandez.

15. Biblioteca da Ajuda, 21-IX-11. Série referida por Luísa Arruda e Teresa Campos Coelho,

Convento de S. Paulo da Serra de Ossa, Lisboa, Edições Inapa, 2004.

16. 2ª edição, de 1669, existente na Konsinklijke Bibliotheek (Holanda).

17. Desta edição conhecem-se dois exemplares, respectivamente, na Biblioteca Municipal de

Lyon, 811178 e na Mediateca Jean Jaurés, R 8-106. Em 1678 é publicada uma 2ª edição da obra,

revista aumentada e corrigida, da qual existe um exemplar na Biblioteca Nacional de Paris,

16-0C-3929.

18. BNM, ER/1619.

19. Sandra Costa Saldanha, op. cit.

20. José Meco, "A Divina Cintilação: talha, azulejos, mármores, chinoiseries", Convento dos Cardaes:

Veio da Memória, Lisboa, Quetzal Editores, 2003, pp. 123, 125.

21. Painéis estudados por Fernando Ponce de León, "Os painéis de azulejo sobre Santa Teresa de

Jesus, no convento de Santa Marta de Lisboa", Museu, IV série, n.° 1, 1993, pp. 161-181.

22. Cuja azulejaria foi estudada por Luísa Arruda e Teresa Campos Coelho, op. cit.

23. Veja-se análise de Luís de Moura Sobral, "Josefa d'Óbidos e as Gravuras: problemas de estilo e

de iconografia", Josefa de Óbidos e o tempo Barroco. Lisboa, T.L.P., 1991, pp. 51-69.

24. Localizados, respectivamente, na nave da igreja e no coro-alto. Com características

compositivas e estilísticas diversas, foram elaborados em épocas distintas.

25. José Meco, op. cit.

26. Santa Teresa de Jesus, "Livro da Vida", Obras Completas, cap. I, ed., Oeiras, Edições Carmelo,

1994, p. 5.

27. Idem, Ibidem, cap. IV, pp. 16-17.

Cultura, vol. 21 | 2005

118

Page 120: Livro e Iconografia

28. Idem, Ibidem, cap. IX, p. 61.

29. Idem, Ibidem, cap. XIII, pp. 88-90.

30. Idem, Ibidem, cap. XXIX, pp. 241-242.

31. Idem, Ibidem, cap. XXXI, p. 262.

32. Idem, Ibidem, cap. XXXIII, pp. 296-297.

33. Idem, Ibidem, cap. XXXIX, p. 362.

34. Santa Teresa de Jesus, "Fundações", Obras Completas, cap. I, 3ª ed., Oeiras, Edições Carmelo,

1994, pp. 1048-1051.

35. Santa Teresa de Jesus, "Livro da Vida", (...), pp. 350-356.

RESUMOS

O antigo convento do Santíssimo Coração de Jesus à Estrela encerra um interessante conjunto de

painéis de azulejos alusivos à vida de Santa Teresa de Jesus, cujas composições foram concebidas

a partir da cópia directa de dez gravuras do álbum Vita S. Virginis Teresiae a Iesv. Série

biográfica impressa pela primeira vez em Amberes em 1613, a sua concretização coube aos

célebres gravadores Adriaen Collaert e Cornelis Galle. Convertidas num modelo corrente para

inúmeras obras de arte ao longo dos tempos, assumiram urna importância capital na fixação e

desenvolvimento de parte da iconografia teresiana, constituindo-se como um eficaz veículo para

a rápida difusão da sua biografia.

The old convent of the Holy Heart of Jesus in Lisbon has an interesting set of tile paneis, which

compositions had been made directly from Vita S. Virginis Teresiae a Iesv album. Biographical

series print in Ambers in 1613, the execution had been charged to the celebrated engravers

Adriaen Collaert and Cornelis Galle. Converted in a common model for numerous works of art,

they assumed a capital meaning in the development of theresian iconography.

ÍNDICE

Keywords: Basílica da Estrela, Saint Theresa of Ávila, carmelites, iconography, etching

Palavras-chave: Basílica da Estrela, Santa Teresa de Ávila, carmelitas, iconografia, gravura

AUTOR

SANDRA COSTA SALDANHA

Mestre em História da Arte e docente da Escola Superior de Design, tem publicado alguns estudos

relativos à Arte e Iconografia Portuguesa dos séculos XVIII a XX, desenvolvendo actualmente um

trabalho de investigação subordinado à Escultura Portuguesa do Século XIX.

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Page 121: Livro e Iconografia

As gravuras impressas na Academiados Humildes e IgnorantesThe engravings of «Academia dos Humildes e Ignorantes»

Paulo A. Fonseca

As publicações periódicas informativas e culturais, em meados do século XVIII, não têm

normalmente ilustração. Contudo, ainda assim, o estudo das poucas gravuras que

publicam pode ajudar-nos a perceber como evoluíram, na sua concepção e no seu

contacto com os leitores.

Analisemos concretamente um periódico, a Academia dos Humildes e Ignorantes, que teve

uma larga difusão entre 1758 e 1770. As gravuras que aí encontramos são de dois tipos.

As mais frequentes são utilizadas como forma de decoração no final de alguns números.

Já na última série desta obra, impressa por Miguel Manescal da Costa, impressor do

Santo Oficio, os números têm impressos um cabeçalho decorado, uma capitular e uma

gravura no final do tomo.

Mas as gravuras que são objecto desta análise são as que são impressas nas conferências

(fascículos) que vão de 1758 a 1762, pelo que nos dizem, seja da forma como os números

individuais tiveram sucesso e foram reeditados, seja pela forma como percebemos a

relação entre os vários impressores que foi tendo este periódico.

Desde cedo se percebeu a importância do recurso à estampa ou gravura impressa nos

livros. Com a fundação da Impressão Régia e o estabelecimento da primeira aula de

gravura ficará regulamentado, pelo alvará de 24 de Dezembro de 1768, no parágrafo II,

o seguinte:

"Sendo presentemente necessário que no corpo de uma Impressão Régia não faltequalquer circunstância que a faça defeituosa: e sendo um dos ornatos da Impressão,as estampas, ou para demonstração ou para outros muitos utilíssimos fins, terá amesma Impressão um Abridor de estampas, conhecidamente perito, o qual terá aobrigação de abrir todas as que forem necessárias para a Impressão, e se lhespagarão pelo seu justo valor."1

Não é aqui o lugar para desenvolver uma História da Gravura, mas apenas fornecer

alguns elementos que podem ajudar a compreender o contexto em que a imagem é

usada, pela mesma época, na Academia dos Humildes e Ignorantes. Consideramos útil, até

Cultura, vol. 21 | 2005

120

Page 122: Livro e Iconografia

tendo em conta o material que encontrámos, recorrer a Ernesto Soares que, sobre o

assunto, é uma referência essencial:

"O uso da gravura de madeira no nosso país acentua-se logo aos primeiros alvoresda tipografia; as primeiras obras conhecidas aparecem ilustradas profusamente; e,se umas apenas reproduzem desenhos de assunto indeterminado que em nada seharmoniza com o da obra, outras são belas composições nas quais se revela a mãohábil do artista e onde se começam a notar, embora levemente, os primeiros traçosde sombra.Naquelas o assunto é, como já dissemos, popular e por vezes infantil; animais,plantas, aves, o sol, a lua, as estrelas, demónios de expressões insofridas e homensde desmesurados troncos e diminutos membros inferiores. Mas quantosensinamentos para o estudo da indumentária e dos costumes desses séculos.Nas outras composições mais apuradas revela-se o artista, rasgando a madeira commão firme e definindo todo o pensamento do debuxador; são quase sempre assuntosde carácter religioso os inspiradores desses trabalhos. Influências estrangeirasacentuam o vigor do desenho e a execução da gravura. Vêm elas até nós daAlemanha ou da Itália. trazidas pelos primeiros impressores oriundos dessasnações."2

As gravuras que surgem impressas na Academia dos Humildes e Ignorantes incluem-se no

primeiro grupo referido por Ernesto Soares. Nas gravuras impressas nesta obra

predominam, de facto, plantas e animais, sendo que não existe qualquer relação entre

as gravuras utilizadas e os textos dos artigos do periódico que estamos a analisar,

artigos a que o autor chama conferências já que estão inseridas numa "Academia".

As gravuras aparecem no final das conferências, transmitindo a ideia de que o

impressor pretendia preencher os espaços que ficavam vagos. No entanto não se segue

uma norma rígida, pois são mais as conferências que têm espaço em branco no final,

chegando algumas a ter uma página em branco, sem que tenha sido impressa qualquer

gravura, mesmo em reedições de números que, nos mesmos espaços, ostentavam uma

imagem. O que de facto levanta o problema de não podermos definir com rigor qual o

princípio seguido, se é que terá existido algum.

No conjunto dos fascículos trabalhados identificamos dezassete gravuras diferentes,

gravuras que vão surgindo e se repetem de uma forma aleatória, durante o período de

vida da obra. No conjunto destas gravuras podemos distinguir três tipos. A maioria

obedece a um mesmo princípio de composição. Apresentam uma moldura ornamental

muito preenchida onde predominam os temas florais, envolvendo ou rodeando objectos

como figuras humanas, taças, flores, frutos e animais. Neste grupo podemos destacar

algumas gravuras que se diferenciam por não serem tão preenchidas e por recorrerem

a uma composição mais discreta na utilização dos ramos e das folhagens, partindo a

gravura de uma moldura de forma mais geométrica em torno da qual se dispõem com

maior economia os restantes elementos. Por outro lado, temos um terceiro grupo que

se diferencia na sua composição geral. Neste grupo consideramos três gravuras que se

distinguem pela utilização, em proporções equivalentes, tanto de tamanho como de

disposição, de imagens de flores e animais. Finalmente, podemos separar uma gravura

das restantes, pela sua unidade representativa, por ser unicamente composta por urna

taça cheia de frutos e verduras.

Estas imagens aparecem impressas e repetem-se ao longo do período de vida da obra

em análise. A apresentação das gravuras, para lá do seu aspecto artístico e do

contributo que possa ter para enriquecer qualquer futuro trabalho sobre o recurso à

iconografia na tipografia setecentista, é para nós uma fonte de informação valiosa. Não

Cultura, vol. 21 | 2005

121

Page 123: Livro e Iconografia

temos a intenção de desenvolver uma abordagem iconográfica3 destas gravuras. O que

nos leva a dedicar a nossa atenção a estas gravuras é o poder recolher informações

sobre o periódico, os seus impressores e o acolhimento do público, informações a que

de outro modo não teríamos acesso, mesmo sem pretender aprofundar uma

arqueologia do livro.

Antes de entrarmos na análise propriamente dita da ocorrência das gravuras, cumpre

relembrar algumas breves noções identificativas da obra em análise. A Academia dos

Humildes e Ignorantes é publicada semanalmente em conferências constituídas por oito

páginas, perfazendo anualmente cinquenta e duas conferências (52) que depois de

encadernadas são ordenadas por tomos. No período que medeia entre 1758 e 1762 esta

estrutura é constante, perfazendo um total de seis tomos. Neste período, a utilização de

gravuras é meramente ornamental. Já nos tomos VI, VII e VIII, as conferências

individualmente não apresentam qualquer imagem.

As diferenças encontradas entre edições de cada número, e a forma como essas

diferenças se repercutem e multiplicam ao fim de um ano (52 semanas), obrigavam-nos

a consultar várias colecções. Após uma pesquisa bibliográfica, decidimos trabalhar sete

(7) colecções desta obra existentes em Lisboa. Três (3) pertencem ao acervo da

Biblioteca Nacional de Lisboa, uma (1) pertence à Biblioteca Universitária João Paulo II,

da Universidade Católica Portuguesa, uma (1) colecção, composta pelos cinco primeiros

tomos, encontra-se depositada na Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa e,

finalmente, duas (2) são colecções particulares. Na totalidade das sete colecções

encontradas e consultadas, confirmou-se a existência de dezassete (17) gravuras,

distribuídas entre o Tomo I e o Tomo V, que é o intervalo considerado para a análise

que se segue.

Atribuímos a cada uma dessas dezassete gravuras uma letra do alfabeto, de modo a

permitir a construção de tabelas de ocorrência de cada uma delas nos vários

exemplares consultados da obra. Em anexo, no final, listamos e identificamos as

imagens, e apresentamos o conjunto das tabelas resultantes do levantamento feito para

os vários tornos. Deste modo é mais fácil acompanhar e constatar as ocorrências. Do

levantamento realizado, são possíveis várias leituras em paralelo. Começando pelo

levantamento das ocorrências das gravuras.

1. Das gravuras:

Do levantamento das imagens, ao longo dos vários exemplares existentes, constata-se o

seguinte:4

A imagem A, ocorre uma (1) vez, no tomo I, na primeira conferência, sem indicação do

impressor, do ano de 1758.

A imagem B, ocorre duas (2) vezes, ambas no Tomo I.

1a- Na segunda conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.

2a- Na terceira conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.

A Imagem C, ocorre:

No Tomo I, duas (2) vezes:

1a- Na primeira conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.

2ª- Na terceira conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.

Cultura, vol. 21 | 2005

122

Page 124: Livro e Iconografia

No Tomo II, uma (1) vez, na sexta conferência em impressão de Inácio Nogueira Xisto,

ano de 1759.

No Tomo III, três (3) vezes:

1a- Na trigésima sexta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

2ª- Na quadragésima primeira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano

de 1760;

3a- Na quinquagésima segunda conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano

de 1760;

No Tomo IV, quatro (4) vezes:

1a- Na quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

2a- Na sexta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

3a- Na oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

4a- Na décima primeira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1760;

No Tomo V, uma (1) vez, na nona conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto,

ano de 1761.

A Imagem D, ocorre duas (2) vezes, ambas no Tomo I, em edições diferentes da décima

conferência:

1a- Na décima conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758;

2a- Na décima conferência, sem indicação do impressor, ano de 1759.

A Imagem E, ocorre duas (2) vezes, ambas no Tomo I.

1ª- Na segunda conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.

2a- Na sexta conferência sem indicação do impressor, ano de 1758.

A Imagem F, ocorre duas (2) vezes, ambas no tomo I.

1ª- Na quarta conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.

2a- Na nona conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.

A Imagem G, ocorre duas (2) vezes, ambas no Tomo I.

1ª- Na primeira conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.

2a- Na décima conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.

A Imagem H, ocorre:

No Tomo I, duas (2) vezes:

la- Na primeira conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.

2a- Na trigésima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1760.

No Tomo II, duas (2) vezes:

1a- Na sexta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1759.

2ª- Na sexta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1761.

No Tomo III, duas (2) vezes:

1a- Na trigésima terceira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1760.

Cultura, vol. 21 | 2005

123

Page 125: Livro e Iconografia

2a- Na quinquagésima primeira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto,

ano de 1760.

No Tomo IV, três (3) vezes:

1a- Na décima segunda conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1760;

2a- Na trigésima sétima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1760;

3a- Na quadragésima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1760;

No Tomo V, quatro (4) vezes:

1a- Na oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1761;

2a- Na décima oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1762;

3a- Na vigésima primeira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1762;

4a- Na trigésima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1762;

A Imagem I, ocorre:

No Tomo I, aparece uma (1) vez, na segunda conferência, em impressão de Inácio

Nogueira Xisto, ano de 1760.

No Tomo III, três (3) vezes:

1ª- Na vigésima sexta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760.

2a- Na trigésima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1760.

3a- Na quinquagésima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

No Tomo IV, seis (6) vezes:

1a- Na quinta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

2a- Na sétima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

3a- Na décima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

4ª- Na décima terceira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

5a- Na décima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

6a- Na décima oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

No Tomo V, duas (2) vezes:

1a- Na décima primeira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1761;

2a- Na vigésima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1762;

A Imagem J, ocorre:

No Tomo I, duas (2) vezes:

1a- Na sexta conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.

2a- Na décima conferência, sem indicação do impressor, ano de 1759.

No Tomo II, aparece uma (1) vez, na quarta conferência, em impressão de Inácio

Nogueira Xisto, ano de 1759.

No Tomo IV, duas (2) vezes:

Cultura, vol. 21 | 2005

124

Page 126: Livro e Iconografia

1a- Na vigésima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1760;

2a- Na quadragésima sétima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1760;

No Tomo V, aparece uma (1) vez, na décima conferência, em impressão de Inácio

Nogueira Xisto, ano de 1761;

A Imagem K, ocorre uma (1) vez, no Tomo I, na segunda conferência, sem indicação do

impressor, ano de 1758.

A Imagem L, ocorre, uma (1) vez, no Tomo II. Na oitava conferência, em impressão de

Inácio Nogueira Xisto, ano de 1759.

A Imagem M, ocorre:

No Tomo II, duas (2) vezes:

la- Na quinta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1759.

2a- Na oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1759.

No Tomo IV, aparece uma (1) vez, na vigésima quinta conferência, em impressão de

Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;

No Tomo V, aparece uma (1) vez, na sétima conferência, em impressão de Inácio

Nogueira Xisto, ano de 1761;

A Imagem N, ocorre:

No Tomo III, aparece uma (1) vez, na décima quarta conferência, em impressão de

Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760.

No Tomo IV, aparece uma (1) vez, na vigésima segunda conferência, em impressão de

Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760.

A Imagem O, aparece uma (1) vez no Tomo IV. Na trigésima quarta conferência, em

impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760.

A Imagem P, aparece duas (2) vezes no Tomo IV.

1a- Na trigésima oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1760.

2a- Na quadragésima quinta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de

1760.

A Imagem Q, aparece uma (1) vez no Tomo I. Na nona conferência, sem indicação do

impressor, ano de 1758.

De forma a tornar possível uma perspectiva global da ocorrência das imagens ao longo

dos vários tomos fizemos uma tabela que expressa o resultado do levantamento geral.

Imagem Tomo I Tomo II Tomo III Tomo IV Tomo V Total

A 1 0 0 0 0 1

B 2 0 0 0 0 2

C 2 1 3 4 1 11

D 2 0 0 0 0 2

Cultura, vol. 21 | 2005

125

Page 127: Livro e Iconografia

E 2 0 0 0 0 2

F 2 0 0 0 0 2

G 2 0 0 0 0 2

H 2 2 2 3 4 13

I 1 0 3 6 2 12

J 2 1 0 2 1 6

K 1 0 0 0 0 1

L 0 1 0 0 0 1

M 0 2 0 1 1 4

N 0 0 1 1 0 2

O 0 0 0 1 0 1

P 0 0 0 2 0 2

Q 1 0 0 0 0 1

Constata-se que, destas dezassete gravuras, apenas cinco são muito usadas, sobretudo a

gravura H que é utilizada nos vários tomos treze (13) vezes. No entanto, temos outras

gravuras que se repetem nos vários tomos, como por exemplo: a gravura I, com doze

(12) ocorrências, a gravura C, com onze (11) ocorrências, a gravura J, com seis (6)

ocorrências e a gravura M, com quatro (4) ocorrências. Todas as restantes gravuras têm

apenas duas (2) e urna (1) ocorrência nesta colecção, embora possam ter sido usadas

pelo impressor noutros seus trabalhos.

2. Das edições:

Procedemos ao confronto dos exemplares localizados, tendo verificado que nas

conferências em que houve recurso à impressão de gravuras existem diferenças nítidas.

Encontramos conferências do mesmo número e do mesmo tomo com várias reedições,

usando-se de cada vez gravuras diferentes ou mesmo não usando qualquer gravura.

Esta constatação levou a que desejássemos saber quantas edições diferentes poderíamos

localizar das mesmas conferências. Desta pesquisa resultou o levantamento exaustivo

de todos os exemplares, que se encontra expresso nas tabelas anexas.

TOMO I

Conferência Edições

1ª 4

Cultura, vol. 21 | 2005

126

Page 128: Livro e Iconografia

2ª 4

3ª 3

4ª 2

6ª 3

9ª 3

10ª 5

34ª 2

TOMO II

Conferência Edições

4ª 2

5ª 2

6ª 2

8ª 2

TOMO III

Conferência Edições

14ª 2

26ª 2

33ª 2

34ª 2

36ª 2

41ª 2

50ª 2

51ª 2

52ª 2

Cultura, vol. 21 | 2005

127

Page 129: Livro e Iconografia

No Tomo IV, temos apenas uma edição de todas as conferências em que houve

impressão de imagens.

TOMO V

Conferência Edições

7ª 1

8ª 2

9ª 2

10ª 1

11ª 1

18ª 1

20ª 1

21ª 1

34ª 2

Estes dados permitem constatar que o maior número de edições diferentes de algumas

conferências se verificou no primeiro ano da obra, existindo no Tomo I, entre cinco e

duas edições diferentes das mesmas conferências.

Quanto aos Tomos II e III , podem-se encontrar duas edições diferentes de algumas

conferências.

No Tomo IV, apenas se identificou a existência de uma edição.

No Tomo V, nota-se uma certa oscilação entre uma e duas edições diferentes em

algumas conferências.

Vemos assim a procura de exemplares do primeiro tomo provoca a sua reprodução

sucessiva ainda nos anos seguintes, o que leva a que um tomo, com uma data no rosto,

possa ter várias datas diferentes nos fascículos que o compõem. Era claramente uma

obra com grande procura o que é ainda reforçado pelo facto de a ela terem estado

associados, nessa primeira fase, pelo menos dois impressores diferentes. Além de

fascículos que não fazem menção à oficina onde foram produzidos, há aqueles que

trazem os nomes de Inácio Nogueira Xisto ou de Francisco Borges de Sousa. Nos tomos

seguintes encontramos ainda com frequência duas edições diferentes. Num período de

tempo em que se vêem nascer e desaparecer tantas outras obras periódicas do mesmo

género cultural e informativo, esta obra conseguir sobreviver, e ainda ter procura

suficiente que justifique a existência de edições diferentes faz dela um caso muito

particular no panorama editorial português desse tempo.

Cultura, vol. 21 | 2005

128

Page 130: Livro e Iconografia

3. Dos impressores:

Como se disse, esta obra foi impressa por três impressores identificáveis: Inácio

Nogueira Xisto, livreiro e impressor em cuja oficina tipográfica foram impressas obras

desde 1759 a 1774,5 com loja na Rua das Arcadas, junto ao Pátio da Comédia;6 Francisco

Borges de Souza, que tinha oficina tipográfica situada no Poço do Borratém,7 ou na

Bemposta Pequena.8 Era por volta de 1768 uma das oficinas mais importantes de Lisboa,

a sua actividade estendeu-se de 1757 a 1792;9 e, finalmente, Miguel Manescal da Costa,

impressor do Santo Ofício, com oficina às Pedras Negras,10 que imprimiu apenas o

sétimo e o oitavo tomo da Academia, já a partir de 1763.

No entanto, é necessário esclarecer que as primeiras catorze conferências do primeiro

tomo não têm indicação de impressor. Também para a possível identificação dos

impressores as gravuras impressas podem ser úteis ou, pelo menos, dar algumas pistas

sobre quem tinha as gravuras que eram usadas.

Com o objectivo de tentar descobrir se as conferências impressas sem

a indicação do impressor corresponderiam a algum dos impressores conhecidos da

obra, decidimos fazer um breve levantamento de outras obras destes impressores.

Restringimos a nossa pesquisa a obras impressas no ano anterior, no mesmo ano e no

ano seguinte ao das conferências de que não se sabe a identidade do impressor. A

intenção era partir das gravuras impressas nas conferências da Academia não

identificadas, tentando localizá-las noutras obras.

Constatamos que houve de facto um certo padrão de utilização de algu‑mas imagens

por parte do impressor Inácio Nogueira Xisto. No decurso deste levantamento

acabamos por descobrir que para além deste impressor, houve um outro, Domingos

Rodrigues, que terá exercido a sua actividade entre 1743 e 1757,11 que utilizou e

imprimiu em outras obras algumas gravuras presentes na Academia. Também neste caso

a visualização das relações estabelecidas é possível numa tabela onde se compilou a

totalidade das gravuras impressas na Academia, e as mesmas gravuras impressas

noutras obras. Para simplificar a identificação dos impressores, a sua indicação será

feita recorrendo às iniciais dos seus nomes: Desconhecido (Desc.); Inácio Nogueira Xisto

(I.N.X.); Domingos Rodrigues (D.R.) e Francisco Borges de Sousa (F.B.S.).

Academia dos H. Ignorantes Outras Obras

Grav. Impr. Impr. Impr. Impr. Impr. Impr.

A DESC. I.N.X.

B DESC. DESC.

C DESC. I.N.X. D.R. DESC.

D DESC.

E DESC.

F DESC.

Cultura, vol. 21 | 2005

129

Page 131: Livro e Iconografia

G DESC.

H DESC. I.N.X. D.R.

I I.N.X. D.R. I.N.X.

J DESC. I.N.X. D.R. I.N.X.

K DESC. DESC.

L I.N.X.

M I.N.X. D.R. I.N.X.

N I.N.X.

O I.N.X.

P I.N.X.

Q DESC. DESC. F.B.S.

Da análise dos resultados obtidos relativamente à Academia, podemos constatar o

seguinte: verifica-se que as imagens A, B, C, D, E, F, G, H, J, K e Q aparecem impressas em

conferências das quais não se sabe quem é o impressor. Destas, três delas (C, H e J),

aparecem também em fascículos identificados por Inácio Nogueira Xisto que publica

também as imagens I, L, M, N, O, P.

Confrontando as ocorrências das gravuras impressas na Academia e a sua utilização em

algumas outras obras (de que se junta em anexo o título) percebe-se que o impressor

Domingos Rodrigues já utilizara algumas das gravuras impressas na Academia por Inácio

Nogueira Xisto, nomeadamente as gravuras C, H, I, J, e M. Por outro lado constatou-se

que as gravuras B, C, K e Q aparecem impressas noutras obras onde também não é feita

referência ao impressor.

Já o impressor Francisco Borges de Sousa, que em nenhum dos fascículos da Academia

que trazem o seu nome publicara qualquer imagem, utiliza a gravura Q numa outra

obra sua. Convém informar que este impressor intervém na impressão desta obra

apenas no primeiro tomo, abandonando a sua impressão, desconhecendo-se a razão do

seu afastamento. No entanto, sabemos que este impressor irá produzir outras obras de

conteúdo semelhante ao da Academia dos Humildes e Ignorantes, como é exemplo a obra

Palestra Admirável, Conversação Proveitosa e Noticia Universal do Mundo,12 bem como outras

obras de difusão cultural.

O impressor Inácio Nogueira Xisto, imprime noutras obras as gravuras, I, J e M.,

gravuras que já usou na Academia. Imprime ainda a gravura A numa outra obra, gravura

esta que surge na Academia sem indicação do impressor.

Quanto ao impressor Miguel Manescal da Costa, a sua participação como impressor

nesta obra acaba por estar circunscrita apenas aos dois últimos tomos. No período em

que participa na sua impressão dá-se uma alteração substancial no projecto da obra, de

que se pode destacar para exemplo o facto de as conferências deixarem de ser de oito

(8) páginas, para passarem a ser de doze (12), e que em lugar das quatrocentas e

Cultura, vol. 21 | 2005

130

Page 132: Livro e Iconografia

dezasseis (416) páginas por tomo e das cinquenta e duas (52) conferências, passamos a

ter quatrocentas e oitenta (480) páginas e quarenta (40) conferências. Neste período, o

recurso à utilização de gravuras limita-se, como já referimos, à utilização de um

cabeçalho decorado, uma capitular e uma gravura no final do tomo, e nenhuma a

acompanhar os fascículos.13

Da comparação das gravuras resulta claro que as gravuras B, D, E, F, G, e K, apenas

foram impressas pelo impressor de que não se conhece a identidade, não se localizando

nas obras consultadas dos outros impressores da Academia.

A tabela seguinte mostra o número de ocorrências das gravuras da Academia impressas

em outras obras:

Imagem Outras obras

A 2

B 1

C 5

H 2

I 2

J 5

K 1

M 5

Q 2

Embora o âmbito restrito desta comparação não permita tirar conclusões, vemos que a

frequência no uso das imagens não é o mesmo, na Academia e nas outras obras dos

mesmos impressores. Ou seja, os mesmos impressores escolhiam de forma diferente as

imagens a usar. Se tínhamos constatado que na Academia, as gravuras mais utilizadas

foram a C, H e a I, no breve levantamento que realizámos, encontrámos o uso repetido

da C, mas também das gravuras J e M.14

Estes são alguns elementos que passam normalmente despercebidos. São, em todo o

caso, pistas para uma melhor compreensão da tipografia em Portugal no século XVIII e,

neste caso, para um quadro do recurso à ilustração por parte dos impressores neste

género novo que era o das publicações periódicas de conteúdo cultural e informativo.

Gravuras impressas em Academia dos Humildes e Ignorantes

do primeiro ao quinto tomo.

Cultura, vol. 21 | 2005

131

Page 133: Livro e Iconografia

A

B

C

D

Cultura, vol. 21 | 2005

132

Page 134: Livro e Iconografia

E

F

G

H

Cultura, vol. 21 | 2005

133

Page 135: Livro e Iconografia

I

J

K

Cultura, vol. 21 | 2005

134

Page 136: Livro e Iconografia

L

M

N

Cultura, vol. 21 | 2005

135

Page 137: Livro e Iconografia

O

P

Q

Gravuras impressas por Miguel Manescal da Costa,

tomos 7 e 8

Cultura, vol. 21 | 2005

136

Page 138: Livro e Iconografia

Cabeçalho decorado

Capitular existente no início da primeira conferência

Gravura impressa no final do tomo

Cultura, vol. 21 | 2005

137

Page 139: Livro e Iconografia

ANEXOS

Tabelas de ocorrência das gravuras nas várias conferências dos vários tornos

TOMO I TOMO I TOMO I

B. Nacional Lisboa

Cota P.3178 P.

B. Nacional Lisboa

Cota L.53014 P.

B. Nacional Lisboa

Cota P.540 P.

Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano

1 8 A Desc. 1758 1 8 C Desc. 1758 1 8 H Desc. 1758

2 16 E Desc. 1758

3 23 B Desc. 1758 3 23 B Desc. 1758 3 23 I INX 1760

6 48 C Desc. 1758 6 48 C Desc. 1758 6 48 J Desc. 1758

9 71 F Desc. 1758

10 79 D Desc. 1758 10 79 G Desc. 1758

34 272 H INX 1760

TOMO I TOMO I

B. Universitária João Paulo II

COTA MC-1

B. Academia das Ciências de Lisboa

COTA BACL 11 765 5/I-V

Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano

1 8 A Desc. 1758 1 8 H Desc. 1758

2 16 B Desc. 1758

3 23 I INX 1760

6 48 C Desc. 1758 6 48 J Desc. 1758

Cultura, vol. 21 | 2005

138

Page 140: Livro e Iconografia

10 79 G Desc. 1758 10 79 D Desc. 1759

34 272 H INX 1760

TOMO I TOMO I

Colecção particular 1 Colecção particular 2

Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano

1 8 H Desc. 1758 1 8 G Desc. 1758

2 16 K Desc. 1758 2 16 K Desc. 1758

3 23 I INX 1760 3 23 B Desc. 1758

4 32 F Desc. 1758

6 48 E Desc. 1758 6 48 E Desc. 1758

9 71 Q Desc. 1758

10 79 J Desc. 1759 10 79 G Desc. 1758

34 272 H INX 1760

TOMO II TOMO II

B. Nacional Lisboa –

Cota P.3179 P.

Colecção particular 1

Colecção particular 2

B. Nacional Lisboa –

Cota L.53015 P.

B. Nacional Lisboa –

Cota P.541 P.

B.U. João Paulo II –

Cota MC-1

B.A. Ciências de Lisboa –

Cota BACL 11 765 5/II-V

Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano

4 32 J INX 1759

5 40 C INX 1759 5 40 M INX 1759

6 48 H INX 1759 6 48 H INX 1761

8 64 L INX 1759 8 64 M INX 1759

Cultura, vol. 21 | 2005

139

Page 141: Livro e Iconografia

TOMO III TOMO III

B. Nacional Lisboa –

Cota P.3180 P.

B. Nacional Lisboa –

Cota P.542 P.

B.U. João Paulo II –

Cota MC-1

B.A. Ciências de Lisboa –

Cota – BACL 11 765/III-V

Colecção particular 1 e 2

B. Nacional Lisboa –

Cota L.53016 P.

Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano

14 112 N INX 1760

Este exemplar não tem nenhuma imagem

26 208 I INX 1760

33 264 H INX 1760

34 272 I INX 1760

36 288 C INX 1760

41 328 C INX 1760

50 400 I INX 1760

51 408 H INX 1760

52 416 C INX 1760

TOMO IV

B. Nacional Lisboa – Cota P.3181 P.

B. Nacional Lisboa – Cota L.53017 P.

B. Nacional Lisboa – Cota P.543 P.

B.U. João Paulo II – Cota MC-1

B.A. Ciências de Lisboa – Cota BACL 11 765 5/IV-V

Colecção particular 1 e 2

Conf. Pág. Imag. Imp. Ano

4 31 C INX 1760

5 40 I INX 1760

Cultura, vol. 21 | 2005

140

Page 142: Livro e Iconografia

6 48 C INX 1760

7 56 I INX 1760

8 64 C INX 1760

10 80 I INX 1760

11 88 C INX 1760

12 96 H INX 1760

13 104 I INX 1760

14 112 I INX 1760

18 144 I INX 1760

22 175 N INX 1760

24 191 J INX 1760

25 199 M INX 1760

34 271 O INX 1760

37 296 H INX 1760

38 304 P INX 1760

42 335 H INX 1760

44 352 H INX 1760

45 360 P INX 1760

47 366 J INX 1760

TOMO V TOMO V

B. Nacional Lisboa –

Cota P.3182 P.

B. Nacional Lisboa –

Cota P.543 P.

B.U. João Paulo II –

Cota MC-1

B.A. Ciências de Lisboa –

Cota BACL 11 765 5/II-V

B. Nacional Lisboa –

Cota L.53018 P.

Colecção particular 1 e 2

Cultura, vol. 21 | 2005

141

Page 143: Livro e Iconografia

Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano

7 56 M INX 1761 7 56 M INX 1761

8 64 H INX 1761

9 72 C INX 1761

10 80 J INX 1761 10 80 J INX 1761

11 88 I INX 1761 11 88 I INX 1761

18 144 H INX 1762 18 144 H INX 1762

20 160 I INX 1762 20 160 I INX 1762

21 168 H INX 1762 21 188 H INX 1762

34 272 H INX 1762

Lista de ocorrência das gravuras impressas em outras obras

Gravura A:

Relação verdadeira, e curiosa da admiravel Batalha, que alcançaram os Austriacos contra os

Prussianos.(...), Lisboa, na oficina de Ignacio Nogueira Xisto, 1759.

Relação da batalha alcançada pelos Hespanhoes contra os Mouros. (...), Lisboa, na oficina de

Ignacio Nogueira Xisto, 1759.

Gravura B:

Noticia verdadeira da grande Batalha naval que no Canal de Malta houve entre Hum

navio Inglez, e outro Francez, (..), Jorge Bing, e noticia do formidavel exercito, que de

França passa a Alemanha, Lisboa, 1757.

Gravura C:

Relaçam da tragica morte do novo Rei de Tunes, e seu filho e da grande batalha, que tiverão os

Maltezes com os Mouros nas costas de Tunes, Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues,

1757.

Relaçam da victoria que tiverão os Austriacos, contra os Prussianos na Lusacia, onde lhe tomarão

a Cidade de Hirschsel, Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1757.

Novo Theator de dezemganos. Onde falam a Sciencia, e a Ignorancia, Lisboa, 1757.

Copia dos Manifestos, que s. Magestade a Imperatriz da Russia, tem feito publicar contra o

serenissimo Rei de Prussia, (..) e Noticia da Batalha que entre os Moscovitas, e Prussianos houve

ultimamente, por Jozé Chistovão, Lisboa, 1757.

Noticia certa da grande preza, que os Hespanhoes fizeram aos Mouros, (...), Lisboa, 1757.

Gravura H:

Noticia da Festividade que na Ilha de Malta se celebrou no baptismo do Rei de Tunes, (...),

Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1757.

Cultura, vol. 21 | 2005

142

Page 144: Livro e Iconografia

Verdadeira Noticia de hum horroroso caso, succedido no Reino de França, que referido em huma

carta se communicou a Corte de madrid, e daqui se remetteo a esta de Lisboa; traduzido tudo da

lingoa Franceza po J. L. da C. e S., Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1757.

Gravura I:

Relaçam de hum caso notavel, espantoso, e horrivel, novamente succedido em a Provincia de

alem-tejo (...) cujas noticias forão communicadas por pessoas fidedignas. Lisboa, na oficina de

Domingos Rodrigues, 1756.

Noticia da grande batalha naval, que no dia 17 do mez de Agosto do presente ano, se deo entra as

esquadras Franceza, e Ingleza,(...). Lisboa, na oficina de Ignacio Nogueira Xisto, 1759.

Gravura J:

Noticia e relaçam de hum sucesso, novamente acontecido em Galiza (...). Lisboa, na

oficina de Domingos Rodrigues, 1757.

Relaçam verdadeira, em que se dam a ler as victorias dos portuguezes contra os Gentios, e

levantados, alcançadas por Gomes Freire de Andrade (...). Lisboa, na oficina de Domingos

Rodrigues, 1757.

Noticia do grande combate, que junto ao estreito de Gibraltar tiverão duas Náos de Guarda Costa

de Hespanha contra os Mouros, e Piratas (...). Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues,

1757.

Sermão em acçam de graças pela celebração do capitulo provincial da provincia de S.t° António

do Reino de Portugal, (...). Lisboa, na oficina de Ignacio Nogueira Xisto, 1758.

Relação da batalha alcançada pelos Hespanhoes contra os Mouros.(...). Lisboa, na oficina

de Ignacio Nogueira Xisto, 1759.

Gravura K:

Noticia do feliz successo das armas Austriacas, na supreza da Villa de Gabel,

pertencente ao Rei da Prussia,(...). Lisboa, 1757.

Gravura M:

Arestos, rescriptos, e declaraçoens do serenissimo Rei da Prussia contra a corte de

Ungria.(...). Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1756.

Relaçam ou Juizo Politico de Hum sucesso, novamente acontecido na cidade do Porto,

Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1757.

Rescripto ou carta circular, que o serenissimo Imperador de Alemanha fez publicar contra sua

Magestade o Rei de Prussia.(...). Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1757.

Vida, ultimas acções, e morte de Manoel Coelho, procurador de causas nesta corte. Lisboa, na

oficina de Ignacio Nogueira Xisto, 1760.

Historia Universal Antiga, e Moderna, Geografica, Corografica, Topografica, Politica,

Literaria, Critica, Chronologica, e Ecclesiastica de todos os Imperios, Reinos, e Cidades,

que tem havido, e á prezentemente no mundo, (..). para instrucçam dos curiosos

portugueses, que desejarem em breve tempo, e com muita facilidade alcançar uma

perfeita noticia da Historia Universal, por J.J.L., Lisboa, na oficina de Ignacio Nogueira

Xisto, 1760.

Cultura, vol. 21 | 2005

143

Page 145: Livro e Iconografia

Gravura Q:

Noticia verdadeira da grande Batalha naval que no Canal de Malta houve entre Hum

navio Inglez, e outro Francez, (..), Jorge Bing, e noticia do formidavel exercito, que de

França passa a Alemanha, Lisboa, 1757.

Breve discurso sobre os Cometas, em que se mostra a sua natureza, sua duração, seu movimento,

sua influencia, e a sua região &c. escrito por B.M., Lisboa, na oficina de Francisco Borges

de Sousa, 1757.

NOTAS

1. Texto citado por: Ernesto Soares, História da Gravura Artística em Portugal, 1971, Livraria

Samcarlos, Lisboa, p. 22.

2. Ernesto Soares, História da Gravura Artística em Portugal, 1971, Livraria Samcarlos, Lisboa, p. 8.

3. "Todas as imagens podem ser classificadas, apreciadas e estudadas nas condições expostas, sem

limitação alguma de qualidade, espécie, tempo ou material, (...) O estudo das imagens plásticas

nestas condições consideramo-lo o objecto da ciência designada por Iconografia. Esta é, portanto,

a ciência que descreve, estuda e explica as imagens plásticas, as relaciona e sistematiza sob o

ponto de vista da forma que reproduzem ou representam, e tem por fim a determinação do seu

valor documental ou representativo." In Que é iconografia? António de Aguiar, Lisboa, Livraria

Ferin, 1963, p. 69.

4. Consultar as tabelas constantes em anexo.

5. Angela Maria Barcelos Gama, Livreiros, editores e impressores em Lisboa no século XVIII, (exemplar

fotocopiado), Coimbra, 1967, p. 79.

6. Maria Isabel Martins, Inventário dos livreiros, impressores e mercadores de livros de Lisboa, no século

XVIII, citados na Gazeta de Lisboa, (texto policopiado), Lisboa, 1985, p. 25.

7. Angela Maria Barcelos Gama, Op. Cit., p. 73.

8. Maria Isabel Martins, Op. Cit., p. 18.

9. Angela Maria Barcelos Gama, Op. Cit., p. 73.

10. Maria Isabel Martins, Op. Cit., p. 48.

11. Angela Maria Barcelos Gama, Op. Cit., p. 60.

12. José Maregelo de Osan [José Álvaro de Morais], Palestra Admirável, Conversação Proveitosa e

Noticia Universal do Mundo, Lisboa, na oficina de Francisco Borges de Sousa, 1759.

13. Ver as imagens constantes na lista em anexo.

14. Ver lista de obras em anexo.

RESUMOS

As gravuras impressas no periódico setecentista Academia dos Humildes e Ignorantes são, neste

estudo, fonte para procurar saber quem eram os seus impressores, quantas edições se podem

localizar desta obra e qual era o acolhimento por parte do público. As gravuras, sendo um

elemento informativo que passa normalmente despercebido, permitem conhecer melhor o

próprio periódico onde são publicadas e, assim, perceber o modo como se afirma esse género

Cultura, vol. 21 | 2005

144

Page 146: Livro e Iconografia

novo que era o das publicações periódicas de conteúdo cultural e informativo e o papel que estas

publicações têm no desenvolvimento da tipografia em Portugal no século XVIII.

The engravings printed in the eighteenth century periodical named Academia dos Humildes e

Ignorantes (Academy of the Humble and Ignorant) are, in this paper, a source that allow us to look for

its printers, how many editions they made of each joumal, and how the public received this

publication. As an informative element the engraving is usually forgotten, but it allows us to

know better the periodical where it was published and how this new kind of periodical press with

cultural and informative purposes affirms itself and finally, the role they had in the press

development in Portugal in the XVIII century.

ÍNDICE

Palavras-chave: gravura, impressores, periódicos, tipografias, Academia dos Humildes e

Ignorantes

Keywords: Engraving, printers, periodical press, Academia dos Humildes e Ignorantes

AUTOR

PAULO A. FONSECA

Mestrando de História Cultural e Política FCSH UNL.

Licenciado em Filosofia (variante de História das Ideias) pela FCSH, tendo apresentado um

trabalho final sobre a Gazeta Literária (1761-1762). Prepara actualmente uma dissertação de

Mestrado em História Cultural e Política sobre a imprensa cultural no século XVIII (1758-1770).

Cultura, vol. 21 | 2005

145

Page 147: Livro e Iconografia

A imagem nos manuais do ensinoprimário do Estado NovoImage on primary learning books of «Estado Novo»

Filipe Mascarenhas Serra

A ligação entre a Imagem e o Poder sempre foi tema apetecível. Este Poder, visto

essencialmente no contexto do mundo contemporâneo (leia-se século XX) e no plano

dos regimes ditatoriais lato sensu, equivale a dizer regimes autoritários e totalitários

cuja distinção de conceitos, como é reconhecido, nem sempre tem sido tarefa fácil para

analistas e historiadores. Muito mais do que uma questão semântica ou ideológica, a

esta dicotomia é muitas vezes atribuído um carácter formal ou, mais precisamente,

jurídico-formal bem como metodológico. Os regimes autoritários respeitariam a

legalidade por si próprios criada (como defendia Salazar), ao contrário do Estado

totalitário que não seria sequer capaz de garantir a observância do seu próprio sistema

legal, ficando este relativizado. Obviamente que esta diferenciação, muito linear, acaba

bastas vezes por esbarrar em contradições várias quando nos propomos proceder a uma

análise aprofundada das ditaduras do século anterior, sobretudo em matérias muito

práticas e objectivas.

Desta forma, torna-se manifesto que estes regimes, independentemente da sua

configuração, precisariam sempre de uma forte componente de propaganda que

conferisse a necessária respeitabilidade, sustentabilidade e, acima de tudo,

legitimidade. É, assim, muito curioso verificar como a propaganda funcionava não

apenas ao nível da imposição de ideias, modelos e procedimentos mas também como

um mecanismo de afirmação perante uma opinião pública manietada e diminuída no

seu grau mais elementar de informação e livre expressão.

Aliás, a propaganda só fazia sentido se alicerçada num outro pilar consistente como

viria a ser a censura. Juntando a estas uma polícia política atenta, eficaz e repressiva,

encontrávamos os suportes essenciais dos regimes e da sua penetração social,

consolidação e, repita-se, legitimação. Assim, podemos dizer que a propaganda fornecia

o oxigénio, criava a ilusão, a coreografia, a imagem, a lavagem ao cérebro, em suma,

tornava-se no rosto mais vivo, colorido e, pretensamente, mais consistente, desta

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tipologia de regimes. Em bom rigor, poderemos dizer que se constituía como a grande

montra ideológica destes novos regimes absolutos. E isto porque a propaganda se

transformava num puro exercício de marketing político, mais ou menos eficaz,

produzindo, divulgando e impondo os ícones adequados.

Assim, torna-se fácil estabelecer uma ponte entre a propaganda e a imagem, através da

utilização dos canais disponíveis na época, conduzindo-nos, em última instância, a uma

verdadeira iconografia do regime. Através desta, dava-se forma, letra e cor aos

princípios ideológicos basilares, descodificando-os, tornando-os de leitura fácil,

imediata e acessível, sem especiais preocupações de aprofundamentos. Deste ponto de

vista, os regimes em análise primavam, quase sempre, pela ausência de subtileza. Ao

invés, o objectivo seria o de chegar rapidamente e de forma primária, ao inconsciente

colectivo.

Verificados estes pressupostos e um primeiro traço comum, despertou-nos interesse

interpretar um pouco a utilização da imagem ligada ao Estado Novo. Cedo concluímos

que se tratava de um tema vasto, muito genérico ou, numa palavra, demasiado

ambicioso. A começar, no que diz respeito aos principais períodos temporais do regime,

colocou-se uma primeira dificuldade: qual Estado Novo? O do pós-1926, na primeira fase

de apuramento ideológico de Salazar? Ou o do pós-Guerra e dos anos 50, conciliando

um esboço quase ridículo de uma democracia dita "orgânica" com o reforço da

repressão e da defesa dos valores ideológicos fundamentais? Ou o dos anos 60, com o

agravamento da questão colonial, o início do declínio e, pior ainda, com o

enfraquecimento e a perda de eficácia dos sinais da propaganda (apesar da crescente

influência de um meio emergente como era a televisão)? Ou já o das tímidas reformas

marcelistas?

Por outro lado e como segunda dificuldade, tornou-se evidente que seria igualmente

ambicioso querer tratar o desenvolvimento da imagem do regime em todas as áreas de

intervenção, ou seja, nas de carácter político, económico, social, educacional ou

cultural. Tornou-se imperioso, assim, circunscrever um vector concreto onde a imagem

funcionasse como guarda avançada da propaganda, salientando os ideais, os valores, as

idiossincrasias ou, no fundo, os pilares que suportavam a arquitectura ideológica do

Estado Novo, se é que esta existia. Como é sabido, muitos defendem ainda que o Estado

Novo não teria tido rigorosamente uma ideologia mas antes uma amálgama de

referenciais adaptados à realidade portuguesa de então e uma forte componente de

poder unipessoal.

Voltando ao tema central do trabalho e confirmando a necessidade de circunscrever

um conjunto homogéneo de imagens, sem grandes dispersões, acabámos por escolher

os manuais escolares. E, de entre eles, vários manuais do ensino primário. Porquê estes?

Primeiro, porque no âmbito da política do livro único, os manuais escolares

perduravam no tempo do que resultava uma grande estabilidade nos textos e nas

ilustrações, o mesmo é dizer, nas intenções e nos objectivos subjacentes. Por vezes, era

apenas alterada a capa, a dimensão das páginas, a qualidade do papel ou era dada cor ao

preto e branco. Contudo, os textos seleccionados e grande parte das ilustrações

mantinham-se rigorosamente inalterados. Por exemplo, um dos manuais de leitura

consultado, original de 1931, surgiria na 132ª edição, em 1967.

Em segundo lugar, tratando-se de livros destinados a uma faixa etária baixa (6-10 anos),

as ilustrações denunciavam os principais propósitos do regime, eram de grande

simplicidade formal, demasiado óbvios, mas nem por isso inocentes. Os grandes valores

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Page 149: Livro e Iconografia

do salazarismo e os seus símbolos incontomáveis estão presentes e, por isso mesmo,

não serão menos interessantes. O objectivo primordial seria, seguramente, o de incutir

nas crianças em idade escolar as grandes linhas políticas e sociológicas do Estado Novo

(através de um método tentacular, esse sim, mais subtil): a família, o império colonial, a

sã convivência das classes sociais e das raças, as grandes obras públicas, o brilho da

História de Portugal ou o culto do Passado de um povo cheio de qualidades, a cultura

popular em torno do tradicional, as lendas, o Cristianismo (apesar das ambiguidades)

ou ainda a presença das organizações do regime, como a Mocidade Portuguesa.

Em todas as ilustrações, encontramos uma enorme e única preocupação: enfatizar uma

perspectiva moralista e fazer passar e impor a imagem de um país feliz, equilibrado,

patriótico, orgulhoso da sua História, imperial, saudável e em paz. Tudo isto na nossa

justa medida, ou seja, de acordo com uma bitola pequena e humilde, muito longe do

aparato, da exuberância e da qualidade da propaganda de outros regimes, mormente, a

do nacional-socialismo alemão ou até a do estalinismo soviético.

Digamos que a iconografia ideológica do Estado Novo, mesmo a que não figurava nos

manuais escolares, acabava sempre, a nosso ver, por resultar em imitações, por vezes

medíocres, das principais movimentações de propaganda desses outros regimes e,

portanto, sem o mesmo rigor e impacto estéticos. Excepcionam-se, talvez, as paradas no

Terreiro do Paço, a inauguração do Estádio Nacional ou, sobretudo, a Exposição do

Mundo Português em 1940.

Detendo-nos, portanto, nos manuais escolares do ensino primário que vigoravam anos

a fio, é interessante verificar que o Estado Novo, ao contrário do que era

propagandeado, só a partir dos anos 40 manifestou algum interesse numa verdadeira

política de ensino. O analfabetismo foi combatido inicialmente sem grande convicção,

para depois, nos anos 50, se registar uma descida mais expressiva no fenómeno

(teimando, todavia, em níveis inaceitáveis como se verificava já em plena década de 70).

De resto, um povo instruído, apesar do dirigismo pedagógico, conduziria a um povo

mais informado e essa não era, seguramente, uma prioridade do regime.

Criado em Setembro de 1933, o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) teria, como

primeiro pressuposto, a necessidade de mostrar as realizações da "Revolução Nacional".

O imperativo era o de mostrar as verdades do regime, dar a conhecer as novas

realidades, mostrar as obras realizadas para que não ficassem ignoradas, informar

sobre o progresso da Nação, em suma, fazer evidenciar os grandes objectivos do Estado

Novo. O SPN, assumido desde o início como instrumento de governo (e não do governo),

tinha como missão essencial, informar. No discurso alusivo à sua criação, Salazar deixa

muito claras as principais ideias: - "(...) politicamente só existe o que o público sabe

(...)"; - "(...) a ignorância das realidades, (...), é causa de descontentamento, (...), de falta

de orgulho patriótico, de não haver confiança, alegria de viver."; - "Além da função

informativa, o Secretariado tem por missão elevar o espírito da gente portuguesa no

conhecimento do que realmente é e vale (...)"; - "É necessário que se esclareça a Nação

para que ela não tenha ideias falsas.".

A máquina de propaganda estava encontrada. Faltava apenas actuar. Para dirigir o

importante organismo, António Ferro fora o eleito. Culto e pragmático, viria a conduzir

habilmente a prática do SPN. A orientação era claramente ideológica. A mensagem seria

a de enaltecer o ressurgimento de Portugal. O trabalho era, portanto, essencialmente

político. A revista "A Esfera", em 1943, elogiava o SPN, salientando que um dos

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objectivos seria o de "(...) lutar contra os boatos e a louvável preocupação de mostrar

Portugal aos portugueses ".

Com o avançar do tempo, o Secretariado viria a alargar competências e preocupações.

Em Fevereiro de 1944, é com naturalidade que o SPN passa a Secretariado Nacional de

Informação, Cultura Popular e Turismo. Com este leque de atribuições, o novo SNI

mantinha o controlo das informações e da propaganda nos serviços públicos,

controlava as relações entre o Governo e a imprensa, organizava o turismo e a cultura

popular. Esta dizia sobretudo respeito ao folclore, à etnografia, à tradição e ao

regionalismo. O modelo era claramente o de uma cultura popular de raiz ruralista e

nacionalista, baseada nas tradições. Ainda assim e curiosamente, o associativismo

popular acabaria por resistir, de alguma forma, a este dirigismo autoritário e redutor.

Neste último capítulo, o objectivo era o de elevar o nível moral do povo e valorizar a

sua individualidade nacional.

Há quem defenda que, a partir de 1944, com esta reestruturação, o Secretariado teria

perdido a sua função inicial, mais política, ficando virado para vertentes ligadas às

realizações culturais. Dito de outra forma, o SNI passaria a existir como organismo de

informação e não tanto de propaganda. Admitindo este entendimento, constata-se,

ainda assim, que a propaganda continuaria sempre presente e activa e acompanharia o

regime até ao fim. Marcello Caetano viria, por exemplo, a compreender as

potencialidades da televisão, tentando explorá-las em beneficio da sua imagem. As

"Conversas em família" viriam a constituir a expressão dessa última tentativa de

segurar o regime junto da opinião pública. Note-se que a União Nacional e a Legião

Portuguesa, criadas nos anos 30, se encarregariam igualmente de alimentar a máquina

de propaganda, dando o seu contributo para o fortalecimento inicial do Estado Novo.

Também estas organizações viriam gradualmente a perder força. Ou seja, talvez

possamos considerar que, num contexto de propaganda, as imagem básicas e não muito

tratadas do ponto de vista estético, seriam tidas como suficientes numa economia

austera de meios e numa relação de eficácia face aos objectivos.

Aliás e a este propósito, é no mínimo interessante verificar que, dos diversos manuais

consultados, apesar das reedições destinadas a sucessivos períodos escolares, não

constam muitas vezes, quer o ano da 1ª edição (ou da reedição), quer os autores de

muitos dos textos, quer a orientação pedagógica do manual, quer ainda, justamente, os

autores das ilustrações. Este anonimato acaba afinal por reforçar o carácter espartano

dos livros, não só na sua apresentação visual como nos seus conteúdos.

Finalmente, caberá dar uma breve explicação do critério que presidiu à sistematização

do presente trabalho. Com efeito, depois de se ter procedido a uma primeira selecção

das ilustrações, superando as expectativas iniciais, entendemos agrupá-las por grandes

temas, encontrando naturalmente um fio condutor que os fundamenta, a saber: A - O

Regime e a Ideologia, a Pátria, a História; B - O Império; C - A Família; D - A Escola; E -

Aspectos sociais e morais; F - Aspectos económicos; G - A presença cristã.

De acordo com esta divisão, procederemos à nossa leitura de cada ilustração,

essencialmente descritiva, interpretando e contextualizando do ponto de vista

histórico e ideológico. A este propósito, não deixaríamos de fazer uma advertência

última: os nossos comentários não pretendem traduzir uma crítica primária ao regime

como também não serão apologéticos nem deverão ser entendidos como um mero

exercício de ironia. Tentaremos ser objectivos, com o distanciamento possível, embora

admitamos algum tom crítico que nos parece inevitável.

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Naturalmente que, com o século XXI a despontar, pareceria já um absurdo que em

algum ponto deste planeta um regime absoluto plasmasse a sua ideologia nos livros

escolares. Infelizmente, essa é ainda uma realidade. Em nome da democracia e da

tolerância, alguns "muros" foram derrubados nas últimas décadas. Novos "muros"

ameaçam surgir, todavia, perigosos e perversos. Que as crianças deste mundo possam

crescer em ambiente de liberdade, respeitadas, informadas, com acesso à cultura e,

sobretudo, sem cartilhas ideológicas. Estaremos, seguramente, a preparar melhores

Cidadãos e a garantir mais qualidade de vida aos vindouros. Fica assim, neste trabalho,

uma breve visita ao Estado Novo, despretensiosa e pessoal.

"A batalha que o Secretariado vai travar contra o erro, a mentira, a calúnia ou a simples

ignorância, de dentro ou de fora, há-de ser travada à sombra desta bandeira ( a verdade e a

justiça )." – discurso de Salazar no acto de inauguração do Secretariado de Propaganda

Nacional.

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Page 152: Livro e Iconografia

A efígie de Salazar,

transmitindo um perfil de homem determinado, queixo saliente, com o olhar vigilante

no futuro e o sobrolho ligeiramente carregado, de quem tem preocupações que

coexistem com a missão histórica, e não tanto divina , de proteger o povo português.

Note-se que estamos perante um Salazar ainda jovem embora o desenho, ao mesmo

tempo, pudesse corresponder a um homem mais velho. Talvez se projectasse já a

imagem da longevidade do regime.

Salazar chega ao Governo em 1928, no contexto da ditadura militar resultante do 28 de

Maio de 1926. Restaurar as finanças e combater a "desordem" eram os seus desígnios

mais imediatos. Em 1930, surge a União Nacional com uma nova ideologia que Salazar

prepara com passos seguros: o Estado Novo. A Constituição de 1933 consagraria as

linhas-força do novo regime: a doutrina integralista, algumas influências do fascismo

italiano, o abandono da ideia de uma suposta recuperação da monarquia e um forte

sentido de nacionalismo. O Estado Novo chegara para ficar.

"Nós, os que defendemos a nossa Ordem, a Ordem do Estado Novo, continuamos a ser contrários

ao comunismo."; "(...) eis o que é Portugal com Estado Novo, o Portugal anti-comunista e anti-

democrático. Só cegos ou idiotas o não vêem." - "A Esfera", n.º 102, 5 de Novembro de 1944.

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Em ilustração de Emérico Hartwich Nunes (1888-1965) estamos perante uma complexa e

ambiciosa ilustração, com uma preocupação manifesta de se apresentar quase como

que exaustiva. A ocupação da mancha gráfica não podia ser mais completa.

Curiosamente e apesar disso, as figuras humanas conseguem respirar graças também a

um jogo equilibrado de cores e tonalidades. O escudo ao centro, irradia; a História na

faixa superior, enquadrando personagens e património: a Sé de Lisboa, o Castelo de

Guimarães e a Custódia de Belém; Camões, Nuno Álvares Pereira, D. Afonso Henriques.

Na faixa lateral esquerda, a implantação da República e a 1ª Grande Guerra. Segue-se

uma grande parte da faixa inferior com alusões à agricultura e suas riquezas (trigo,

uvas), a junta de bois, uma torre sineira e o campanário. Avultam sobretudo o ceifeiro e

a mulher, igualmente camponesa, carinhosa, com um filho ao colo e o cesto da merenda

ao lado. Descortina-se ainda um moinho, quase imperceptível, que completaria a ideia

do aproveitamento do trigo.

Toda a faixa lateral direita, ocupando 1/3 do total, é dedicada aos Descobrimentos, com

as figuras mais emblemáticas, a Cruz de Cristo bem apelativa e a afirmação da presença

colonial portuguesa através do Poder (padrão) da Fé cristã (missionação). O quadro é

ainda completado com duas pombas brancas que podem, naturalmente, representar a

Paz. Em suma, estamos perante uma composição rica que poderia servir de ilustração a

um conjunto alargado de textos, combinando o orgulho no passado e um presente de

trabalho, sereno e seguro.

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O desenho representa a Assembleia Nacional, símbolo maior do poder político, no plano

formal, ilustrando um capítulo dedicado aos deveres do homem face a Deus, à Família e

à Pátria. Digamos que se encontra um pouco deslocada visto que o capítulo do manual

relativo à organização política do Estado, só aparece três páginas depois.

A Assembleia surge na ilustração com uma escala um pouco desproporcionada (quase

como banda desenhada), tentando realçar, parece, a imponência e a relevância política

do espaço, o que é igualmente contraditório se pensarmos que aquele órgão não era

mais do que uma fachada e uma caixa de ressonância das orientações políticas do chefe

do Governo. Como escreveria Marcello Caetano, assistíamos a um verdadeiro

"presidencialismo do Presidente do Conselho". Ao poder legislativo cabia um papel

quase decorativo. Diríamos, tão decorativo como a ilustração em apreço.

Ainda assim, passa a imagem de um forum activo, onde os deputados trabalham,

zelando pelos destinos da Nação. Ao contrário e na realidade, estes deputados

raramente tinham iniciativa de apresentar propostas de leis e, portanto, acabavam

também por ser meros figurantes do regime.

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Nesta ilustração, cuja assinatura de autoria não se torna perceptível, a representação de

um tribunal surge igualmente como bastante elucidativa. Falamos do mesmo manual

escolar (Moral e Educação Cívica), desta feita bem encaixada no texto, dedicado

precisamente ao poder judicial.

Trata-se de uma cena de julgamento em curso, com o delegado do Ministério Público a

usar da palavra (o gesto assim o indica), a presença dos agentes policiais fardados e um

juiz, sobrelevado (com algum exagero), de rosto austero e severo.

Ou seja, o espaço onde se exerce a Justiça aparece minimalista (paredes nuas e

mobiliário simples) contrabalançando as fisionomias graves e até solenes dos

circunstantes. Os tribunais seriam dignos e sérios, era essa a imagem a transmitir.

Mas o mais interessante acaba por ser a representação dos acusados: o homem, em pé e

de perfil, parece arrependido, de olhos baixos; a mulher, sentada e curvada, humilde,

com uma posição do corpo a sugerir uma atitude de profunda derrota ou, de outro

modo, esmagada pela mão pesada da Justiça.

O crime não compensaria porque o Estado era forte.

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Page 156: Livro e Iconografia

Estas diversas ilustrações, todas relativas à Mocidade Portuguesa, merecem uma

apreciação conjunta um pouco mais alargada. Em primeiro lugar, refira-se que as

mesmas constavam do manual de leitura da 1ª classe, traduzindo uma precoce tentativa

de aliciamento e recrutamento. Embora não haja uma menção expressa, o objectivo

seria claramente o de passar a imagem de crianças bem comportadas e felizes,

envergando orgulhosamente as fardas da Mocidade Portuguesa. Aliás, note-se que as

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Page 157: Livro e Iconografia

ilustrações em causa surgem a propósito (ou antes, a despropósito) de exemplos muito

elementares relativos ao ensino das letras e dos sons e também da aritmética.

Em segundo lugar, convém notar que a qualidade dos desenhos é um pouco mais

cuidada, num estilo entre os anos 30 e os anos 40, ajudada pela introdução da cor. Os

três irmãos aparecem com ar interessado num livro, bem dispostos e com as fardas

imaculadamente apresentadas. Há um lado clean que resulta bem.

Numa outra ilustração, surge um coro feminino, cantando um hino, "Arraial", na

sequência do estudo da letra "h". As raparigas aparecem fardadas, bem penteadas,

compenetradas (nenhuma sorri), considerando que se encontravam a cantar um hino

patriótico. É também curioso verificar que os rostos não são portugueses, de todo, e

fazem sugerir, nitidamente, fotografias de coros infantis alemães. Ora, esta propaganda

germânica (nazi, mais concretamente) está presente na ilustração seguinte em que os

rapazes fazem saudação romana, convictos, ilustrando a expressão "tanta mão".

A Mocidade Portuguesa, organização obrigatória para os mais novos, surge em 1936 e

era claramente de inspiração fascista. De resto, pretendia-se que o modelo de

funcionamento tivesse um referencial como a Juventude Hitleriana. Pretendia-se,

sobretudo, que se constituísse como mais um pilar do Estado Novo.

Numa reportagem fotográfica sobre o Dia da Independência Nacional, publicada na

revista "A Esfera", comemorado justamente pela Mocidade Portuguesa (1º de Dezembro

de 1942), encontramos os adolescentes a desfilar nos Restauradores e na Rua Augusta,

todos de braço estendido e regressando, no fim da parada, ao Palácio da Independência.

Uma das legendas diz: "Rapazes da M.P. desfilam, cheios de garbo, perante o Comissário

Nacional, Dr. Marcello Caetano e o Adjunto, Dr. Soares Franco". Numa outra fotografia,

Marcello Caetano conversa com um elemento da M. P. Colonial (apresentando um

ligeira diferença na farda: calções claros e não calças, e um capacete colonial).

A bandeira adoptada pela M.P. baseava-se na de D. João I, usada, tanto como se sabe,

como o primeiro brasão nacional. De qualquer modo, as quinas aparecem mais

estilizadas, bastante sob influência do estilo arte nova e do chamado "modernismo

fascista" do Estado Novo.

A Mocidade Portuguesa, acolhida de início com grande interesse e fervor, viria a decair

ao longo dos anos. Criada originalmente como uma organização para-militar, seria de

alistamento obrigatório para toda a juventude escolar, desde o ensino primário à

Universidade. Mas esta obrigatoriedade cedo viria a circunscrever-se aos pré-

adolescentes (entre os 10 e os 14 anos). Não só se inspirava como copiava

descaradamente toda a estética e a prática das organizações congéneres fascistas: o

fardamento verde, a saudação romana, a organização interna e os objectivos,

misturando princípios de doutrina ideológica com doutrina religiosa e ainda do

movimento escutista. De qualquer modo, os objectivos ideológicos centrais da M.P.

(como, aliás, os da Legião Portuguesa) seriam os de estimular a devoção à Pátria,

cultivando os valores da ordem, da disciplina e do dever militar.

Após o fim da 2ª Guerra Mundial muitas destas práticas seriam banidas. A Mocidade

Portuguesa viria a perder progressivamente, quer impacto, quer importância política,

chegando à década de 60 como uma organização descaracterizada e enfraquecida. Por

outro lado, o próprio carácter compulsivo do recrutamento não era já muitas vezes

respeitado. De resto, as designadas actividades "circum-escolares" da M. P., geralmente

previstas para as manhãs de sábado nas escolas primárias, não passavam justamente do

papel. Como, aliás, falhara redondamente a tentativa de criar núcleos da M.P. no

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interior das universidades. Repare-se ainda na última ilustração seleccionada,

aproveitando-se para incluir mais uma criança fardada, executando um toque

militarizado, com a presença de um pendão das cinco quinas, isto a propósito de sons e

da letra " t ".

"Temos de reagir pela verdade da vida, que é trabalho, que é sacrificio, que é luta, que é dor, mas

que é também triunfo, glória, alegria, céu azul, almas lavadas e corações puros, e dar aos

portugueses, pela disciplina da cultura física, o segredo de fazer duradoira a sua Mocidade, em

benefício de Portugal." - Salazar.

Sobre a História de Portugal, as ilustrações abundam e são, geralmente, muito óbvias.

Pretendem apenas, na maioria dos casos, descrever visualmente os episódios mais

heróicos e gloriosos, marcando e transmitindo, com clareza, a ideia de que o passado do

País seria um simples somatório de grandes feitos e nunca o resultado de grandezas e

misérias como sucede com a História de qualquer povo.

Como exemplo, escolhemos um único desenho, de E. Jacinto Nunes, considerando a

ocupação também exaustiva da mancha gráfica e o excesso de representação. Trata-se

de ilustrar o reinado de D. Dinis com um lettering imitativo da grafia gótica germânica,

como aliás acontecia quase sempre em temas de carácter histórico, sobretudo os

relacionados com a era medieval. Elabora-se uma composição em que o rei surge como

um homem culto, sensato e bom administrador (note-se a cabeça apoiada no

antebraço).

Surge igualmente a Rainha Santa Isabel, dando um pão a um pobre, de forma

dissimulada, numa clara alusão à lenda. Apresenta-se depois uma espécie de expositor,

como que no próprio soalho, onde não faltam todos os elementos representativos do

monarca e do reinado em causa: os pães e as rosas (e a lenda, portanto); a espada, como

símbolo da defesa do território conquistado; a enxada, representando a política de

fomento agrícola; os livros, como símbolo da cultura e do ensino; o trigo, relacionado

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Page 159: Livro e Iconografia

ainda com a agricultura; as pinhas, pensando-se naturalmente no pinhal de Leiria; um

foral... Ou seja, numa simples ilustração, qual programa iconográfico, é quase

transmitida uma aula sobre a obra de um rei. Através desta carga intensa de

representações visuais fica retratado um pedaço importante da História de Portugal. O

papel da imagem é assim, neste exemplo, tornar-se numa chave que ajuda a decifrar

rapidamente não só o texto como todo um período histórico.

Encontramos depois referências expressas ao Património ou, mais propriamente, ao

Património Edificado. O objectivo seria o de mostrar os testemunhos em pedra dos

diversos períodos históricos, estabelecendo uma ligação entre os imóveis e os feitos de

que todos se deveriam orgulhar. Tratava-se, pois, de uma leitura muito primária da

função e do papel desse património, não se deixando de salientar que essas construções,

imponentes ou modestas, estariam sempre ligadas à "devoção patriótica". Como

habitualmente, temos a presença da componente do Nacionalismo que o regime

cultivou até à exaustão.

Curiosa é a cartela que se coloca sob o desenho da Sé de Lisboa, com um lettering dos

anos 40, reproduzindo um slogan simples mas eficaz: "O que dizem os nossos

monumentos". A ideia não poderia ser mais contemporânea. No século XVIII,

Montfaucon escrevera que os conhecimentos que se retiravam dos monumentos eram

muito mais seguros do que aquilo que se aprendia nos livros. Vincar a convicção de que

os monumentos falam por si, poderia ter hoje uma interpretação actualista e ajustar-se

de alguma forma a modernas correntes de defesa e salvaguarda do Património. Na

época, defendê-lo seria, acima de tudo, defender a Pátria.

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Page 160: Livro e Iconografia

Na sequência da ilustração anterior surgem outras, com assinatura ilegível de autoria, a

propósito de um texto sobre os monumentos nacionais, com um carácter mais

descritivo do que propriamente ideológico.

A ilustração segue o mesmo critério como se se tratasse quase de um pequeno roteiro

turístico, apresentando os principais mosteiros e as ruínas do Carmo. Figuram, ainda, o

Rei D. João I e D. Nuno Álvares Pereira, fazendo-se uma composição com a

representação de diversos elementos decorativos em pedra, nos quais predomina o

estilo manuelino. Estes surgem a marcar uma esquadria para que não restassem

dúvidas de que se tratava de grandes monumentos nacionais, não faltando o escudo no

lugar cimeiro. Presente estava, como diz o texto, "o espírito cristão, patriótico e

artístico dos nossos maiores!". Na mesma linha, surge a ilustração dedicada aos

Castelos. Segue-se um modelo idêntico embora se coloque uma coroa de três hastes

sobre o escudo, mantendo-se a escolha de cinco construções exemplificativas.

Torna-se curiosa esta divisão de textos entre os "Monumentos Nacionais" e os "Castelos

de Portugal", embora a propósito destes se insista no heroísmo das lutas subjacentes à

formação da nacionalidade. Os castelos aparecem assim com uma carga de patriotismo

ainda mais expressiva, escolhidos como se fossem os melhores entre os melhores

monumentos históricos. Não há aqui a componente da devoção religiosa, ficando a ideia

de que, para o regime, os castelos seriam monumentos nacionais especialmente

privilegiados no campo da propaganda.

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Page 161: Livro e Iconografia

Enfim, uma ilustração puramente figurativa (e um tanto fantasiosa, do ponto de vista

formal) mas representativa da defesa de Lisboa, militar e religiosa. A capital aparece

cercada de muralhas encostadas ao Tejo, com uma cruz gigante, radiosa, no alto da

"torre mais alta" e, de ambos os lados, pequenos montes, arredondados e

absolutamente iguais, encimados por moinhos. A ideia parece ser, claramente, a de

realçar o papel da Igreja na conquista e na preservação da cidade, na sua mais dura e

incondicional defesa. Note-se a total simetria da composição e alguma confusão na

representação das sombras.

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Page 162: Livro e Iconografia

De

qualquer modo, a ilustração aparece bastante dominada pela cruz que surge como fonte

de luz e, naturalmente, de salvação e agradecimento pela conquista aos infiéis.

Uma outra ilustração escolhida, dedicada ao Império, ainda de E. Jacinto Nunes,

representa a ocupação e o referido papel civilizacional. Coloca-se o padrão como

afirmação do domínio territorial e político e um missionário avança, à frente do

descobridor, empunhando a cruz e a Bíblia na mão.

O Portugal cristão chegara para cumprir um papel histórico, um desígnio divino e uma

missão cultural.

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Page 163: Livro e Iconografia

A pequena ilustração que se segue confirma a posterior penetração dos portugueses no

interior de África. Estamos já no século XIX e retrata-se o explorador Silva Porto. O

mais interessante é a relação paternal face ao indígena. Silva Porto ensina-o a ler e o

negro, de joelhos, tenta aprender, com olhar interessado. Assim se cumpria a acção

humanitária e se desenvolvia o espírito de progresso. Assim se afirmava a

superioridade cultural de Portugal.

Confirmando que todos eram portugueses, insistindo na ideia de fraternidade e de

igualdade de oportunidades e direitos, surgem duas ilustrações distintas para um

mesmo texto, correspondendo portanto a edições de anos diferentes. Ainda assim, a

imagem é básica, colocando dois colegas de escola, um branco e um negro, como

portugueses iguais, apesar da diferença racial.

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Page 164: Livro e Iconografia

Na primeira ilustração, o professor exerce o seu papel pedagógico, explicando que não

existem distinções, independentemente do local de nascimento. O rapaz branco ouve,

atento, parando até de jogar, mas não parece, muito convencido. O professor, pelo

contrário, é apresentado descontraído, abordando o assunto com naturalidade.

Na segunda ilustração, o rapaz branco surge agora feliz, risonho, talvez mais convicto e

o rapaz negro satisfeito com a explicação e com uma atitude de igual para igual.

Curiosamente, em ambas as ilustrações, não há um abraço ou um cumprimento. O

ilustrador não terá querido ir tão longe. Verifica-se ainda no texto que se atribui

inteligência a dois mulatos e classifica-se o aluno negro como "de cor". A palavra negro,

de resto, não aparece uma única vez, mesmo no resto do texto que não se encontra

reproduzido. O Portugal colonial seria, portanto, uma nação una, sem racismo ou

discriminações de qualquer ordem, embora os próprios brancos nascidos em África

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Page 165: Livro e Iconografia

fossem muitas vezes designados, na linguagem corrente, como "portugueses de

segunda".

Escolhemos estas ilustrações por respeitarem mais concretamente à figura da Mãe. Na

primeira, surge uma mãe abraçada aos filhos em grande momento de amor e ternura,

de acordo com o texto que enaltece a qualidades maternais. De alguma forma, a Mãe

aparece como contraponto ao Pai, em matéria de direitos e obrigações: ao Pai, deve-se

obediência, como chefe; à Mãe, deve-se amor, carinho e auxílio.

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Page 166: Livro e Iconografia

O papel da mulher,

dedicada à família, boa mãe, boa esposa, corresponde claramente aos desígnios do

regime. A Mãe funcionava como um pilar de sensibilidade, aliado à vertente de

disciplina e autoridade do Pai, surgindo depois a Família, vista esta igualmente como

um suporte político e organizacional do Estado Novo. Por outro lado, também incumbia

à Família contribuir para a sociedade civil com a sua moral, consistência e coesão.

Recorde-se a criação de "A Obra das Mães pela Educação Nacional", que visava orientar

as mães na sua acção educativa ("nobre missão"), em articulação com a escola e,

inevitavelmente, com a Família.

Na ilustração seguinte, de novo do ilustrador já mencionado E. Jacinto Nunes, a

pretexto do aniversário da mãe, retrata-se agora o ambiente de uma família rural. Os

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Page 167: Livro e Iconografia

anos da mãe são devidamente assinalados, sempre com espírito de felicidade e boa

harmonia, a que não faltam o cão e o gato. As prendas são evidentemente caseiras

(rendas, flores e um cordeiro para o jantar). Note-se que o rapaz mais velho, apesar de

se encontrar ainda, supostamente, em idade escolar, já trabalha com uma junta de bois,

envergando um fato igual ao do pai. Recorde-se também que, nesta fase, a escolaridade

obrigatória se reduzia apenas a três anos.

A figura da Mãe é assim homenageada, em clima de amor recíproco e boa convivência

familiar.

A sociedade rural, dominante até à década de 70, representava cerca de 40% da

população activa dependente assim das actividades agrícolas. Para este segmento

predominante haviam sido criadas as Casas do Povo, quase 550 em meados dos anos 40,

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Page 168: Livro e Iconografia

embora um terço delas só existisse no papel. Os recursos financeiros eram escassos,

reconhecia-se, e por isso viria a ser criado o "Fundo Comum das Casas do Povo", tendo

em vista cobrir as chamadas "obras de assistência".

Faz-se notar que o abono de família, criado e reforçado nos anos 40, surgia como uma

vertente da "Revolução Nacional" e apresentava-se como uma doutrina de

fortalecimento da família, dando-se preferência às famílias numerosas na protecção do

Estado. Em 1945, com grande aparato, é publicada legislação que alarga o âmbito de

aplicação deste tipo de abono, inserindo-o num sentido de justiça social do Estado Novo

e considerando-o como um verdadeiro "subsídio de família".

Na última ilustração escolhida,

alusiva ainda ao mesmo tema, surge-nos uma família humilde de pescadores (a

propósito de uma lição de aritmética relativa ao número quatro). O ambiente é,

naturalmente, uma praia, e retrata um almoço com a família envergando fatos

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Page 169: Livro e Iconografia

tradicionais ligados à actividade piscatória. O clima volta a ser de grande harmonia,

com a mãe servindo uma refeição frugal, de sopa e pão. Curioso é precisamente o

desenho da mãe: o sorriso e a posição do lenço na cabeça, bem como a respectiva

inclinação, quase fazem sugerir Nossa Senhora. A composição é ainda equilibrada com

um barco de pesca em fundo e artefactos, e a faixa de mar remata a ilustração, tendo

tudo um sentido claramente cénico. O décor é simples e eficaz.

As "Casas dos Pescadores", instituídas em 1937, haviam sido também uma criação do

regime, às quais se dava grande relevância social e económica. Nos anos 40, eram

mesmo apelidadas de "admiráveis". Consideradas como um "Elemento Primário" da

organização corporativa, eram associações da população ligada ao mar, incluindo os

empresários, na perspectiva do interesse comum, bem ao estilo do modelo fascista. As

corporações propriamente ditas de pesca e conservas de peixe só viriam a ser

regulamentadas nos anos 50, embora já sem grande eficácia.

A pesca, actividade incluída num sector primário predominante, aparecia geralmente

como enaltecida pelo regime, quer no plano mais imediato da economia, quer no plano

social, quer ainda num plano psicológico. Representava, deste ponto de vista, uma

vigorosa ligação ao mar e a nossa vocação atlântica. No fundo, os pescadores, mantendo

forte a tradição (nos usos, nas roupas, nos hábitos, no folclore), eram tidos como heróis

numa luta desigual contra a grande força da Natureza, reencarnando o espírito dos

gloriosos marinheiros das Descobertas.

Entrando no capítulo dedicado à Escola, a ilustração faz alusão ao início do novo ano

escolar que, durante muito tempo, tinha início em 7 de Outubro. Pretende-se retratar

uma sala da 4ª classe, de forma tosca. E isto porque, com falta de espaço na mancha

gráfica, o ilustrador (aqui identificado com assinatura de difícil percepção), optou por

encavalitar os alunos, dando quase o efeito de uma fotomontagem. As crianças

aparecem, como sempre, atentas e felizes. O quadro negro surge numa posição lateral,

improvável, e não se esquece um globo terrestre para completar a composição. As

palavras do professor são as esperadas e reconduzem-se ao princípio ideológico básico:

a utilidade da instrução para a Pátria.

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Page 170: Livro e Iconografia

Note-se que, num outro manual, faz-se referência a uma escola primária onde existia

uma cantina para crianças pobres, sustentada por "senhoras caritativas" da freguesia.

As crianças nestas condições teriam direito a uma refeição, mas quanto ao material

escolar (livros, papel, penas, tinta e lápis) este só seria fornecido se a criança se

comportasse bem e fosse aplicada.

A este propósito, saliente-se que Leite Pinto, Ministro da Educação Nacional entre 1955

e 1961, reconhecia o elevado grau de abandono escolar no ensino primário, justamente

em consequência da pressão das famílias pobres, sobretudo rurais. As crianças eram

tiradas à escola para tratar do gado, da criação, levar o almoço aos pais e avós,

cumprindo missões de equilíbrio familiar (do ponto de vista dos pais). Este mesmo

Ministro, ainda assim, tinha o cuidado de defender que o analfabetismo não era

resultado directo da luta de classes. Todavia, as primeiras e verdadeiras reformas no

ensino acabariam por ser protagonizadas por Inocêncio Galvão Teles, titular da pasta

entre 1962 e 1968, por coincidência (ou não), o período de declínio de Salazar à frente

do Governo, com o despoletar daquele que viria a ser o problema sem solução: a guerra

colonial.

Para este capítulo escolhemos ainda duas ilustrações, talvez de Milly Possoz (?), que se

encontravam colocadas junto às capa e contra-capa, denunciando de forma pouco subtil

uma mentalidade e uma atitude sócio-política perante a educação e os hábitos do

segmento infanto-juvenil.

Assim, as raparigas surgem a praticar as actividades que eram consideradas femininas

e, portanto, ligadas às lides domésticas e à educação: cozinhar, lavar, passar a ferro,

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Page 171: Livro e Iconografia

limpar, ajudar os irmãos, regar as flores, a que acresciam os designados trabalhos de

lavores. As raparigas eram, assim, preparadas para desempenhar o papel de boas

esposas, boas mães, boas donas de casa porque era essa a sua função social. A

composição tem desenho de qualidade, apresenta-se bem arrumada do ponto de vista

gráfico e é inequívoca quanto aos objectivos. Vincando bem a distinção entre raparigas

e rapazes, estes aparecem na outra ilustração, igualmente equilibrada, entregues a

tarefas diferentes, aquelas que eram consideradas, obviamente, masculinas:

jardinagem, agricultura, trabalhos manuais e oficinais, pesca e, o mais extraordinário, a

actividade artística. Um rapaz pinta e outro toca flauta.

As actividades de criação artística seriam, portanto, destinadas aos rapazes. As

raparigas não seriam criadores. Este é, aliás, o aspecto mais chocante da confrontação

entre as ilustrações. A comparação resulta, assim, numa divisão de tarefas que era, ela

mesma, um pressuposto de métodos educativos, num mundo ideal e de

complementaridade entre o elemento masculino e o feminino, tão ao gosto da época e

tão ao gosto do Estado Novo. De resto, representava também uma matriz sociológica

que perdurava no estado adulto. Muitas profissões acabavam por ser vedadas às

mulheres, que deveriam manter-se, preferencialmente, em casa, sempre em nome da

harmonia familiar e do equilíbrio social.

A ilustração seguinte diz respeito a um

texto sobre os ricos e os pobres. A rapariga, bem vestida e composta, é a rica; o rapaz,

apesar de não andrajoso, mas descalço, é o pobre. O texto é delicioso do ponto de vista

sociológico. O Estado Corporativo agrupava interesses contraditórios que se

harmonizariam em organizações económicas, sociais, morais e culturais. O interesse

nacional, o bem comum, teriam de se sobrepor a quaisquer diferenças e conflitos.

Inspirado pelas teses do Integralismo (anos 10), corrente filosófico-política elitista,

Salazar afastava totalmente qualquer conceito de luta entre as classes, considerando-a

incompatível com a pretensa ideologia do Estado Novo. Num discurso de Maio de 1931,

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Page 172: Livro e Iconografia

Salazar defende que "(...) nenhum interesse individual ou local ou de classe prevalece

sobre o interesse da colectividade."

Voltando ao texto, estes princípios estão presentes de forma inequívoca e traduzem um

olhar hoje chocante sobre as diferenças sociais ao nível dos comportamentos e das

maneiras de estar, embora com uma visão crítica dos ricos, também ela, por sua vez,

paternalista e moralista. Assim, os ricos não precisariam de trabalhar e sem eles, os

pobres morreriam. Passa-se depois para um conceito de interdependência e conclui-se

por uma apologia da pobreza. Os pobres a trabalhar (na terra, claro) seriam uns entes

muito mais bonitos do que os ricos, estes destinados simplesmente a comer aquilo que

outros produziam. Ficava, portanto, uma visão maniqueísta segundo a qual a pobreza, a

humildade e o trabalho eram dignos e, os pobres, uns seres privilegiados, enquanto os

ricos seriam uns parasitas.

Na obsessão da luta contra a "desordem", política, financeira e económica, Salazar

defenderia sempre uma política de sacrifício a bem do interesse nacional, à qual o povo

deveria sujeitar-se e conformar-se.

Continuando com a caridade, encontramos uma ilustração em que um professor leva

um aluno a uma casa pobre a fim de prestar assistência a uma mulher numa enxerga. A

ilustração, de Alfredo Miguéis (1883-1943) ou de Alfredo Morais (1872-1971), e o texto

propriamente, parecem querer traduzir da parte do professor, uma espécie de aula

prática sobre os pobres, a caridade e o amor de Deus. A deslocação a um lar humilde

seria, pois, uma visita de estudo.

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Page 173: Livro e Iconografia

Diz-se, mais adiante, no mesmo texto, que a Caridade deveria exercer-se de preferência

com os "inferiores", ou seja, socorrer "os pobres e desgraçados", consolar os que sofrem

e ajudar os fracos e os enfermos. A terminologia não poderia ser mais clara.

Curiosamente, faz-se depois uma ligação ao conceito de Justiça, consistindo esta em dar

a cada um o que lhe é devido e ao conceito de solidariedade, esta interpretada no

sentido de cooperação e de auxílio mútuo entre todos. Eram assim enaltecidos os

sentidos mais nobres, muito ao jeito de Salazar.

Finalmente, escolhemos uma ilustração elucidativa para terminar este levantamento de

aspectos sociais e morais. Trata-se de uma cena alusiva a uma situação profissional. Os

patrões surgem com ar bem instalado (hoje não poderia estar a fumar) e confiante face

a uma atitude de humildade do jovem adolescente em busca de um primeiro emprego.

Faz-se notar a naturalidade com que se colocavam anúncios de recrutamento

destinados a rapazes dos 14 aos 16 anos. As funções eram habitualmente as de

escriturário ou de paquete. De resto, a ilustração retrata um ambiente urbano, podendo

representar não apenas um escritório de uma qualquer firma comercial (como era o

caso), como o de um banco, de uma companhia de seguros, de uma repartição pública

ou o de uma companhia de navegação, por exemplo.

O jovem assume o comportamento normal na situação-tipo em causa: bem apresentado,

asseado, humilde, respeitador, segurando o boné de forma tímida e colocando-se

inteiramente nas mãos do potencial empregador. Este desvaloriza as cartas de

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Page 174: Livro e Iconografia

recomendação e, ao invés, dá maior importância justamente à atitude do candidato.

Aliás, o texto (na parte não reproduzida) vem a concluir que a apresentação e o

comportamento na entrevista eram mais decisivos do que uma eventual recomendação.

Acrescente-se que o jovem, reunindo tantas qualidades, à vista, conseguiria o emprego.

Podemos imaginar facilmente que iria às "sortes" (não estalara ainda a guerra colonial),

acabaria por casar, manter-se-ia na firma por uma longa carreira, com pequenos

aumentos de ordenado e promoções espaçadas. Chegaria talvez a chefe do escritório e

diria sempre com orgulho: "Comecei a trabalhar aos 14 anos e subi a pulso."

Este era também um homem-tipo português do Estado Novo.

A primeira ilustração escolhida para o capítulo dedicado aos aspectos económicos, de

Ardial (?), faz uma apresentação daquele que foi sempre um dos mais obsessivos

objectos da propaganda do Estado Novo: as obras públicas, as grandes realizações, as

grandes construções, vistas como sinal de desenvolvimento e só possíveis graças ao

saneamento financeiro empreendido por Salazar.

A composição, enquadrada por duas colunas de pedra de capitéis jónicos, encimadas pelos escudos

das cinco quinas, mostra-nos, num painel de azulejos, as diversas áreas de intervenção do Governo.

A cons‑

A composição, enquadrada por duas colunas de pedra de capitéis jónicos, encimadas

pelos escudos das cinco quinas, mostra-nos, num painel de azulejos, as diversas áreas

de intervenção do Governo. A construção de estádios, barragens, escolas, pontes, a

construção naval, os transportes aéreos, em suma, todos os sinais dinâmicos de um país

em progresso. A ilustração aparece-nos ao melhor estilo do marketing político e

poderia, nos nossos dias, funcionar, por exemplo, como outdoor. De resto, diríamos que

a intenção e o espírito mantêm-se vivos e actuais junto de alguns políticos da nova

geração do regime democrático.

Num registo político de neo-fontismo (de que Duarte Pacheco seria o protagonista),

Salazar daria especial atenção às obras públicas e faria delas uma cruzada ideológica,

privilegiada nas acções de propaganda. O novo país era o país das obras, das infra-

estruturas, da fachada de desenvolvimento, que o regime cultivaria até ao limite. Por

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Page 175: Livro e Iconografia

outro lado, do ponto de vista económico, a política de Salazar nesta matéria viria a ser,

até muito tarde, a de canalizar investimentos públicos, contribuindo ao mesmo tempo

para o crescimento do produto e para a criação de emprego (qual New Deal à

portuguesa).

O último conjunto de ilustrações diz respeito à presença da Igreja nos manuais

escolares, presença essa de indiscutível expressão, gráfica e textual, e intencionalidade.

A primeira das seleccionadas diz respeito a Maria, Mãe de Deus, vincando o princípio de

que seria também a "Santa Mãe de todos nós". O desenho e a cartela constitui uma

composição simples, predominando o azul em fundo e nas vestes de Nossa Senhora com

um Jesus-Menino ao colo, louro e um pouco rechonchudo. O rosto de Nossa Senhora

foge, de alguma forma, à figuração habitual.

Na ilustração seguinte (constante do livro de leitura da primeira classe), surge-nos de

novo Maria Imaculada dando tema a uma composição aparentemente confusa do ponto

de vista da leitura visual: a ilustração surge ao centro, como um eixo, alargando para a

base, mostrando um altar mariano e duas crianças, ajoelhadas, em oração e veneração.

Pelas roupas, parece que o objectivo seria o de mostrar duas raparigas oriundas de

meios diferentes: rural e urbano, pobre e rico. O texto, partindo de um título comum,

com dois tipos de lettering, corre nas faixas laterais, dando lugar a frases diferentes:

"Mês de Maio, Mês dos lírios e das rosas, Mês de Maria" e "Coração de Maria, dai-nos o

vosso santo amor, Santa Maria".

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Page 176: Livro e Iconografia

A referência ao mês de Maio poderá traduzir uma alusão a Fátima, podendo ser

coincidência ou não a colocação, do mesmo lado, da rapariga que poderia justamente

representar uma das pastorinhas ligada às aparições.

Estas primeiras ilustrações introduzem igualmente a necessidade de uma pequena

reflexão sobre o relacionamento entre o Estado Novo e a Igreja Católica ao longo das

décadas do regime, nem sempre linear, nem sempre

pacífico,

embora de grande colaboração e, por vezes, de promiscuidade.

De qualquer modo, a forte presença da doutrina e da iconografia cristãs nos manuais

escolares esteve sempre assegurada, na perspectiva de uma manifesta catequização da

população escolar.

Com efeito, o próprio Salazar tinha estado inicialmente ligado a grupos católicos, na

década de 20, como o Centro Católico ou o Centro Académico de Democracia Cristã. A

identificação destes grupos com a direita política era evidente e não deixariam de

influenciar o futuro Chefe do Estado Novo. Mais tarde, com a Constituição de 1933, a

Igreja teria direito a representantes na Câmara Corporativa embora esta sempre tivesse

tido um papel decorativo. Por outro lado, o partido do regime, a União Nacional, veria

católicos conhecidos na suas fileiras, mesmo como dirigentes.

O papel da Igreja no Estado Novo, num âmbito mais institucional e doutrinário, viria a

ser defendido por Salazar, embora sem evidenciar expressamente qualquer vontade de

que esse papel pudesse representar um protagonismo excessivo para os dignatários da

Igreja Católica portuguesa. As intervenções públicas de Salazar em matérias religiosas

nunca mostrariam o mesmo radicalismo que resultava, por exemplo, da mensagem

anti-comunista. A Concordata, assinada em 1940, deixava da parte de Salazar, um sinal

claro de que não seriam permitidas influências da Igreja no regime e, muito menos,

qualquer participação política. Sem denunciar uma atitude anti-Igreja, a preocupação

era a de marcar terreno e circunscrever a instituição à sua função doutrinária e

estritamente religiosa. A Concordata, de resto, acabaria por tender para uma noção de

um Estado laico, muito mais ao gosto de Salazar para quem a Igreja não poderia

representar qualquer ameaça ao seu poder, embora formalmente e ao mesmo tempo,

tivesse travado o espírito dos movimentos anti-clericais que vinham do século XIX e da

1ª República. Ainda assim e apesar de a Constituição de 1933 consagrar a separação

entre o Estado e a Igreja, esta conseguiu, já nos anos 50, que a religião católica se

tornasse na religião oficial do País. De qualquer modo, a Salazar interessava

essencialmente, do ponto de vista ideológico, associar o Cristianismo à Civilização

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Page 177: Livro e Iconografia

Ocidental, tendo esta que resistir à ameaça comunista, leia-se, soviética. Aliás, esse terá

sido, provavelmente, o único leit-motif que persistiu durante a totalidade da vigência do

regime.

"Portugal nasceu à sombra da Igreja", era esta uma das frases-chave usadas pelo Estado

Novo como justificação para o traço dominante do carácter dos portugueses. Seria

também esse o argumento para defender a unidade moral da Nação. A Santa Sé, por sua

vez, daria inúmeros passos de bom relacionamento com Portugal, quer propriamente

com a Igreja, quer com o regime. O Papa Pio XII, através de diversos actos ao longo das

décadas de 40 e 50, mostraria sempre com clareza esse apoio e criaria um clima

favorável, de harmonia e reconhecimento. Só a visita do Papa Paulo VI a Fátima, em

1967, viria a azedar as relações com o Vaticano, já sem grande efeito. Salazar, de

qualquer forma, estaria prestes a cair de uma cadeira de jardim e da cadeira do Poder.

"Com maior ou menor fervor, cultura mais ou menos basta e profunda, maior ou menosesplendor do culto, podemos apresentar perante o mundo, ao lado da identidade defronteiras históricas, o exemplo raro de identidade de consciência religiosa: beneficioextraordinário em cuja consecução se empenhou uma política previdente." – Salazar, emMaio de 1949, perante a Assembleia Nacional, sobre a Concordata.

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Page 178: Livro e Iconografia

Esta última ilustração, ainda de

E. Jacinto Nunes, surgia a acompanhar um poema e não, portanto, no contexto das

anteriores. De qualquer modo, é bastante sintomática, sobretudo pela colocação do

crucifixo inclinado, ao fundo da cama, irradiando a forte luz divina perante um

camponês ajoelhado, quase esmagado e intimidado com a aparição. Esta seria afinal a

imagem da profunda devoção e, ao mesmo tempo, da ideia de submissão que se

pretendia transmitir às crianças nestes manuais escolares.

A presença da Igreja Católica era assim forte, dominadora e impositiva. As alternativas

não existiam. Não há referências a outras religiões (a não ser aos Mouros e à sua

"infidelidade"), nem sequer a outras confissões cristãs. Estas, apesar de toleradas

oficialmente, nunca seriam encorajadas pelo regime que, ao invés, sempre dificultou a

sua acção.

RESUMOS

A empatia entre a Imagem e o Poder nunca escapou à especial atenção dos autocratas. Salazar

não foi excepção. Nos manuais do ensino primário, o Estado Novo estaria presente com grande

simplicidade formal mas nem por isso inocente: a família, o império colonial, a sã convivência das

classes sociais e das raças, as grandes obras públicas, o culto do Passado, o Cristianismo, a cultura

popular ou ainda a propaganda das organizações do regime, como a Mocidade Portuguesa. Em

todas as ilustrações, uma forte e única preocupação: enfatizar uma perspectiva moralista e fazer

passar e impor a imagem de um país feliz, equilibrado, patriótico, orgulhoso da sua História,

imperial, saudável e em paz.

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Page 179: Livro e Iconografia

The empathy between Image and Power never escaped to the special attention of the autocrats.

And Salazar was not an exception. In the primary-school manuais, the "Estado Novo"("A New

State") was present with great formal simplicity but yet not innocent: the family, the colonial

empire, the healthily sociability of classes and rates, the big public works, the devotion to the

Past, the Christianity, the popular culture and still the propaganda from the organizations

belonging to the political regime, such as the "Mocidade Portuguesa"("Portuguese Youth"). In

every illustration there was a strong and unique preoccupation to emphasize a moralistic

perspective and to pass and impose the image of a happy, patriotic, historically proud, imperial,

healthy and peaceful country.

ÍNDICE

Keywords: learning books, illustration, image and power, Estado Novo

Palavras-chave: manuais escolares, ilustração, imagem e poder, Estado Novo

AUTOR

FILIPE MASCARENHAS SERRA

Licenciado em Direito (FDL), Mestre em Património Cultural pela Universidade Católica

Portuguesa (Tese: Práticas de gestão administrativa nos museus portugueses). Assessor de carreira do

IPPAR. Docente da Universidade Católica Portuguesa onde é coordenador-adjunto da Pós-

Graduação em Comunicação Cultural.

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Page 180: Livro e Iconografia

Paisagens sem rostoPara o estudo da primeira edição ilustrada de A Selva

Faceless landscapes

Liliana Dias Carvalho

Este é um trecho das muitas cartas trocadas entre Ferreira de Castro e Roberto Nobre a

propósito da edição ilustrada de A Selva, realizada em 1939 pela Empresa Nacional de

Publicidade.

A edição, ilustrada por oito pintores contemporâneos, tinha como encomenda este

tema genérico: De que modo os pintores portugueses vêm a Selva, depois de terem lido

o romance de Ferreira de Castro. Roberto Nobre, coordenador gráfico da edição,

incumbiu aos ilustradores — Alberto de Sousa, António Soares, Carlos Reis, Dórdio

Gomes, Jorge Barradas, Manuel Lapa, Manuel Lima e Martins Barata —, que

encontrassem o "rosto" da Selva, tal como Ferreira de Castro a descreve.

Esta encomenda passou por alguns sobressaltos, tendo sido necessário alterar o leque

de ilustradores convidados, uma vez que parte do grupo inicial não conseguiu "agarrar"

o romance. Os artistas revelaram alguma dificuldade em traduzir um cenário que

desconheciam, não conseguindo sair do papel de intérpretes gráficos do romance. A

situação em que foram colocados os pintores deriva da concepção que o encomendador

e coordenador gráfico da edição — Roberto Nobre —, tem de ilustração. No Inquérito ao

Livro em Portugal, coordenado por Irene Lisboa, Nobre defende que «em teoria, o

ilustrador não deve ter personalidade própria e sim estar pronto a adaptar-se aos temas

que surgem. (...) No nosso meio o ilustrador tem, em geral, uma personalidade muito

vincada, cheia de carácter, o que muito o honra como artista, mas que lhe limita o

campo de acção. O ilustrador é um intérprete e, como um executante em música, não

deve sobrepor-se à obra de origem. O artista português, em geral, não tem esse espírito

de abdicação. Quase sempre (falo nos que têm talento e personalidade) é levado não a

ilustrar, mas a ilustrar-se, não a interpretar, mas a interpretar-se, não a prolongar

apenas e com humildade junto do leitor a emoção colhida na leitura, mas impor uma

versão sua, original e diferenciada. (...) O pintor e o escultor, quanto mais

personalidade, quanto mais carácter e individualidade, melhor. O ilustrador, mesmo

quando subjectivo, não pode esquecer-se de que é um intérprete.»2

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Page 181: Livro e Iconografia

Trazendo esta concepção de ilustração para o livro de Ferreira de Castro, surgem

problemas prévios: se o livro remete para determinada paisagem, ou paisagens, como é

que o ilustrador interpreta um território que, para si, é branco? Continuando, será

possível estruturar picturalmente uma geografia imaginária sem ter uma memória

afectiva do lugar ou, sem a possibilidade de ver a ilustração como algo que está para

além de paráfrase do texto? Poderemos encarar o papel do ilustrador tal como Nobre o

descreve? Se assim for, como classificar as ilustrações de Portinari para o mesmo

romance, em 1955?

Recordemos que Nobre se referiu aos quadros do pintor brasileiro como tendo valor

próprio como pintura, «em vez de usuais ilustrações».3 Para o coordenador da edição de

39, Portinari «não se aproveitou do mais fácil recurso decorativo da paisagem e antes se

ocupou do que de humano se encontra naquele punhado de entes sofredores que a

floresta tropical esmaga e tortura, mantendo-lhe o sentido estranho, o vigor, o carácter

singular, que predominam e fizeram êxito na obra literária a que se destinam».4

O que Nobre não diz, mas podemos concluir das suas palavras, é que Portinari revela

picturalmente um outro entendimento da ilustração e do papel do ilustrador. Vemos

nas ilustrações de Portinari não paráfrases ou metonímias do livro de Castro, mas sim

imagens que acompanham um texto, e que lhe servem de complemento coerente – não

traduções pictóricas, até porque há a consciência de que, na "tradução", muita coisa se

perderia e, uma delas seria evidentemente a identidade artística da ilustração e, lato

sensu, do ilustrador. Acrescentamos aqui também que a edição ilustrada de 55, bem

como a de 49 e de 74, de Machado da Luz e de Júlio Pomar, respectivamente,

correspondem a um projecto relacional de um para um – um romance e um ilustrador

–, ao passo que a edição de 39 tem uma relação de um romance para oito ilustradores.

Arriscamos dizer que um projecto de edição de luxo, como foi esta, acabou por se

tornar numa edição marginal. A Guimarães Editores só a refere em 1949 como sendo a

11ª, sem indicação de data.

No romance de Ferreira de Castro, o campo semântico da palavra selva é bastante

abrangente: num sentido mais literal designa a floresta amazónica – um local

geograficamente tipificado e delimitado –, mas é também uma ideia – uma entidade

relacional –, e uma história sobre o Homem e os seus limites. A selva, diz-nos o

narrador « dominava tudo. Não era o segundo reenvio, era o primeiro em força e

categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o homem, simples transeunde

no plano do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo. O

animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante,

forçoso se lhe tornava vestir pele de fera. A árvore solitária, que borda

melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça e romântica

sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia

que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de

todos os lados. Nada a assemelhava às últimas florestas do velho mundo, onde o espírito

busca enlevo e o corpo frescura; assustava com o seu segredo, com o seu mistério

flutuante e as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso anseio de fuga.»5 No

romance de Castro, o nome selva torna-se atributo das coisas e dos seres em relação à

paisagem envolvente. Portinari (1955) entendeu bem esta abertura de significados.

Ora, seguindo a definição de ilustração que Nobre nos dá, será que uma obra aberta a tal

multiplicidade, encontra uma boa tradução pictural em quadros fechados no tema

floresta? Ou melhor, no tema floresta desconhecida pelos ilustradores?

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Em 1795, François-René de Chateaubriand escreve a sua Lettre Sur le Paysage en Peinture.6

Neste texto, Chateaubriand critica o facto de, nos finais de século XVIII, a maioria dos

paisagistas conhecerem pouco a paisagem que pintam e caracterizam. Por isso o autor

alerta para a necessidade de os estudantes de pintura começarem a estudar

verdadeiramente a natureza, saindo do atelier e observando os movimentos da

paisagem. Sem um estudo baseado na experiência e na relação afectiva entre a memória

do pintor e a paisagem não existe arte da paisagem — reproduzem-se tão somente

traços da natureza que não têm a identidade própria de um lugar. Continuando com a

lição de Chateaubriand, se o pintor que se ocupa da natureza humana deve estudar as

suas emoções para depois compreender as suas feições, o paisagista, tal como o poeta,

só poderá ocupar-se da natureza se a estudar localmente, sabendo dela os seus cheiros,

tonalidades e movimentos. Deste modo, o paisagista captará a influência dos diversos

horizontes/ambientes da tela que pinta.

A modernidade do texto de Chateaubriand advém justamente do facto de o autor não

reivindicar uma memória empírica, mas sim uma memória afectiva, o que nos permite

convocar o texto setecentista para este projecto de ilustração de A Selva, pois é essa a

sua falha – a falta de uma memória afectiva (e aqui, temos de o dizer, também a

inexistência de uma memória empírica). Abel Manta, um dos ilustradores convidados

para a edição, desistiu dizendo que só indo à Amazónia conseguiria ilustrar o romance.

Dos restantes quadros, temos a descrição que Nobre vai dando a Castro: «Meu caro

Castro: V. deixou-me com uma bela herança. A Selva tem-me dado água pela barba. Em

primeiro lugar os meus colegas. O Barradas apresenta-me uma floresta de pinheiros da

Suécia, em tons suaves, estilo nevoeiro, tudo vago e pálido. Ele foi o primeiro a dizer-me

que de facto aquilo não era a "Selva". Prometeu-me modificar. Mas até hoje não o

arranjou. O Sousa Lopes não pode aceitar. O Abel Manta disse entusiasticamente que

sim, tornou a ler o livro e convenceu-se que só indo lá é que conseguiria fazer alguma

coisa. O Varela Aldemira tentou, não gostou do que fez e escreveu-me a dizer que o

prazo era curto, tinha exames etc[.], o assunto difícil e que desistia. Enfim, isto é uma

amostra.

(...) Julgo que V. ficará contente com as vinhetas que tenho feito e que têm aqui

agradado às pessoas a que tenho mostrado.

O quadro do António Soares é bonito como cor mas confuso.

O Dórdio Gomes mandou uma mancha forte, violenta que o Dr. Magnus acha o melhor

do que tem visto sobre «A Selva». Não estou tão optimista mas julgo que depois de

alguns retoques do "gravador" ficará bem. O resto tem sido uma dificuldade medonha.

O Lino António deve entregar amanhã. Já está pronto. Os outros... vamos a ver quando

se conseguirá arrancar-lhe [s] os trabalhos.»7

Noutra carta, continuando o relato da edição: «V. tem toda a razão para estranhar a

minha falta de notícias.

Mas a publicação do seu livro tem sido uma tragédia tão grande que a falta de notícias

ainda é para si um mal menor do que se V. fosse posto dia a dia a corrente dos

dissabores e arrelias que têm surgido!

(...)

Posto aqui este desabafo vamos ao assunto: Depois das sete pragas do Egipto, são os

pintores a pior praga que existe. Uma calamidade. Se V. soubesse o que apareceu entre

as "selvas" pintadas! Dos meus convidados pessoais o Lino António parece que

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Page 183: Livro e Iconografia

endoideceu. Tive que recusar os dois trabalhos que apresentou e, vendo que o segundo

era ainda pior do que o primeiro, tive de desistir dele, pois deram-lhe explicações

pormenorizadas do que se pretendia. Está a imitar o Mário Eloy e faz umas coisas que

parecem uma palete borrada, não se entendendo nada daquelas pinceladas todas. Além

de tudo o mais absolutamente feio e irritante. V. verá quando cá chegar. Para V. avaliar

o que sofri com o Lino António basta dizer-lhe que para lhe arrancar aqueles dois

trabalhos lhe telefonei dezoito vezes. Para não complicar a questão e de combinação

com o Dr. Magnus resolvemos pagar-lhe e não publicar. O Guilherme Filipe disse-me

que sim e levou mês e meio para responder sequer às minhas repetidas cartas. Tivemos

que eliminá-lo.

Em substituição destes dois o Dr. Magnus deseja colocar jarrões da velha guarda com os

amigos particulares dele Armando Lucena e... Alfredo Morais!

Ora eu estava ainda sob a terrível impressão do quadro de Carlos Reis... que até leões

metia. Se algum daqueles fosse fazer os quadros, metia com certeza o jardim zoológico.

Preferi ir buscar novos, mesmo com nome menor. Escrevi a dois pintores da geração a

seguir à nossa, de cujos trabalhos eu gostava. Um deles nem conhecia pessoalmente.

Falei-lhes em tom confidencial e incitei-lhes o brio. Consegui assim que um deles fizesse

para mim o melhor quadro que vem no livro, o de Manuel Lapa.8 É um pintor de mérito.

O do outro pintor, Manuel Lima, não é tão bom, mas é cheio de cor e bonito. Está isto

fora do nosso critério inicial, que era um ramalhete de nomes consagrados, mas, se V.

cá estivesse teria feito outro tanto. Mesmo assim, V. verá o que Alberto de Sousa,

Martins Barata e Carlos Reis mandaram! Este senhor é "tabu" para o Diário de Notícias.

Por vontade minha teria corrido com ele. Ao menos o nome dele serve de cartaz. Mas

ele pintou uma horta com um leão e uma serpente e supõe que isto é a "Selva"... leões

no Brasil! Isto é que é cultura! Ao gravar, matamos-lhe o leão... O Dr. Magnus preferiu

isto a recusar o trabalho de S. Majestade.

Isto é o drama pictural. O drama tipográfico ainda é mais longo. Fica para outra carta.»9

Com excertos destas duas cartas de 1938, temos o retrato dos primeiros ilustradores de

A Selva: duas gerações – sendo a dominante a que transita do século XIX para o século

XX e tem Carlos Reis (1863-1940) como figura cimeira –, uma naturalista e outra ligada

ao segundo Modernismo (em que se insere também Roberto Nobre) que não traduzem

ou complementam a obra de Castro, criando cenas que não se identificam com o

Naturalismo – pois são paisagens imaginadas, criadas em atelier – , nem com o

Modernismo – uma vez que não conseguem criar um universo hipersinestésico, numa

palavra, baudelaireano, onde todas as cores, sons e perfumes, tal como as artes, se

correspondem.

As florestas pintadas pelos artistas portugueses são também destituídas de título. Um

nome que poderia dar às ilustrações um rosto, um perfil de leitura pictural do romance,

como acontece com as ilustrações de Portinari. E assim, temos umas florestas que não

têm lugar no mundo, são de uma neutralidade que não encontra correspondência nas

descrições que surgem no romance, tão cheias de vida. Para responder às questões que

fomos enunciando, dizemos que a edição ilustrada de 1939 não cria uma relação de

coerência relacional com o livro.

Entrando no domínio da pura conjectura, podemos dizer que, para o estudo desta

edição ilustrada, seria proveitosa a existência de um outro contrato com estes

ilustradores, formulado nestes termos: qual a ideia que os pintores portugueses têm de

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A Selva antes de lerem o livro de Castro e que transformação pictural conseguem operar

depois da sua leitura. É claro que aqui entramos num registo quase ficcional, impossível

de verificar com dados materiais. No entanto, permite-nos pensar se essas primeiras

ilustrações, antes da leitura do romance, seriam muito diferentes daquelas que

encontramos nesta edição...

A Selva, edição de 1939.

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Alberto de Sousa.

António Soares.

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Dórdio Gomes.

Carlos Reis.

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Jorge Barradas.

Manuel Lapa.

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Martins Barata.

Manuel Lima.

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A Selva, edição de 1955.

Boi no Guindaste.

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O Seringueiro.

Os Brabos.

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A Rede.

A Inspecção.

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Os Retirantes.

A Clareira.

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Page 193: Livro e Iconografia

A Onça.

O Índio Morto.

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O Cemitério.

Os Índios.

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O Incêndio.

NOTAS

2. Cf. «A Ilustração do Livro», Roberto Nobre In LISBOA, Irene (Dir.). Inquérito ao Livro em Portugal.

Lisboa: Seara Nova. 1ª Ed., 1946. PP. 74-80.

3. Cf. «A Exposição de Portinari» NOBRE, Roberto. In Ecos de O Primeiro de Janeiro, 18 de Maio de

1955.

4. Idem.

5. CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa: Ed. Guimarães, 39ª Edição, p. 88.

6. CHATEAUBRIAND, F.-R. Lettre Sur Le Paysage en Peinture. [1ª Ed., 1830] Ed. Ut.: Ed. Rumeur des

Ages, 1993.

7. In ALVES, Ricardo António. Op. cit., pp. 64-65.

8. A ilustração preferida por Roberto Nobre denota um envolvimento do pintor pela pintura,

como se a ilustração se transformasse em Floresta.

9. Idem, pp. 71-72.

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Page 196: Livro e Iconografia

RESUMOS

O romance A Selva contou com quatro edições ilustradas: A de 1939, coordenada por Roberto

Nobre, a de 1949, realizada por Machado da Luz, a de 1955, realizada por Cândido Portinari e uma

última em 1974 realizada por Júlio Pomar. A primeira edição ilustrada correspondeu a um

projecto de encomenda diferente das edições seguintes, nomeadamente da que serve aqui de

termo de comparação, a de Portinari (1955). Roberto Nobre pretendia que oito ilustradores

traduzissem picturalmente A Selva a partir de uma geografia imaginária que o livro lhes desse a

ver. Sendo a Selva um território estranho para os pintores desta edição, fica deste projecto uma

tradução pela ilustração de paisagens sem identidade pictural – lugares brancos no conjunto das

edições ilustradas do romance de Ferreira de Castro.

The novel A Selva has had four illustrations: being the first coordinated by Roberto Nobre (1939),

the second by Machado da Luz (1974), the third by Cândido Portinari (1955) and the latest one by

Júlio Pomar (1974). The first illustrated edition versed a different project from the further ones

especially from the one which meant to be the comparison, the one by Portinari (1955). Roberto

Nobre wanted eight illustrators to translate pictorially based on an imaginary geography

pictured in the book. Although A Selva was an unknown ground for the painters of this same

edition, there is a remarkable translation/understanding managed through the illustration of

landscapes lacking pictorial identity – the very same vague places in the set of illustrated

editions in Ferreira de Castro's novel.

ÍNDICE

Palavras-chave: Nobre, Roberto (1903-1969), Castro, Ferreira de (1898-1974), ilustração, Arte em

Portugal no século XX, naturalismo, modernismo

Keywords: Nobre, Roberto (1903-1969), Castro, Ferreira de (1898-1974), illustration, Art on

Portugal at XX Century, naturalism, modernism

AUTOR

LILIANA DIAS CARVALHO

Colégio Integrado Monte Maior (Montemor, Loures)

Instituto de História da Arte – Núcleo de Estudos de Arte Contemporânea (UNL-FCSH)

Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses e Pós-Graduada em História

da Arte pela UNL-FCSH. Professora de Língua Portuguesa do ensino básico e secundário no

Colégio Integrado Monte Maior (Loures). A convite da Cinemateca coordena a edição das obras de

crítica cinematográfica de Roberto Nobre (Horizontes de Cinema, O Fundo, Singularidades do Cinema

Português e textos dispersos). Desde 2005, é colaboradora da revista Atlântida do Instituto

Açoriano de Cultura e da revista Castriana.

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Itinerários de Leituras

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Lisboa - Rio de Janeiro - FortalezaOs caminhos da coleção Biblioteca do Povo e das Escolas traçados porDavid Corazzi, Francisco Alves e Gualter Rodrigues

Lisbon - Rio de Janeiro - Fortaleza: the paths of the collection "Biblioteca do Povo

e das Escolas" on the hands of David Corazzi, Francisco Alves and Gualter

Rodrigues

Giselle Martins Venâncio

1 A história que vai ser contada aqui narra a trajetória de três homens. Eles nasceram na

mesma época mas viveram cada um em uma cidade distinta. Um morava em Fortaleza,

no Ceará, outro em Lisboa e o terceiro no Rio de Janeiro. O que os unia? Livros. Os três

tiveram suas vidas marcadas pela edição, impressão e comercialização de livros e

relacionadas, particularmente, pela publicação e comercialização de uma coleção de

livros: a Biblioteca do Povo e das Escolas. É dessa coleção e de como ela se associa à vida

desses três homens que esse texto trata. É uma história que liga Lisboa, Rio de Janeiro e

Fortaleza e que mostra que ainda há muito a se descobrir e percorrer nos caminhos dos

livros no século XIX.

Era uma vez um livreiro cearense: Gualter Rodriguesda Silva ...

2 Gualter Rodrigues da Silva chegou a Fortaleza, vindo de Quixeramobim onde nasceu,

provavelmente, em 1865, data que consta de sua matrícula como aluno do Liceu do

Ceará.

3 O Liceu, estabelecimento educacional fundado em 1845, tinha como objetivo educar os

rapazes cearenses principalmente os filhos da elite da Província. A criação do Liceu

estabeleceu os parâmetros iniciais da formação intelectual da elite local, possibilitando

a ampliação do ingresso e participação de seus membros no universo da política

provincial e mesmo imperial.1 É certo que no momento em que Gualter tornou-se aluno

do Liceu o número de alunos matriculados no estabelecimento decrescia visto que a

maior parte dos pais que podia pagar dava preferência às escolas privadas que vinham

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Page 199: Livro e Iconografia

sendo criadas na cidade. A culpa pelo esvaziamento do estabelecimento público recaía

no sistema de ensino que tinha um caráter seriado e de duração considerada muito

longa: de cinco a seis anos. Além disso, nas novas escolas privadas, como o Atheneu

Cearense inaugurado em 1863, havia o regime de internato, o que facilitava o

atendimento aos alunos que vinham do interior da Província. Mas apesar do

esvaziamento em termos quantitativos, o Liceu permaneceu como referência inconteste

na formação das elites cearenses ao longo do século XIX. Lá, provavelmente, Gualter

começou a urdir uma rede de sociabilidade que lhe seria bastante útil durante sua vida

profissional e a construir sua auto-representação como livreiro-impressor-editor.2

4 No momento em que Gualter ainda se sentava nos bancos escolares do Liceu, a cidade

de Fortaleza possuía pouquíssimos estabelecimentos comerciais que pudessem ser

reconhecidos como livrarias. Celeste Cordeiro3 afirma que a primeira livraria da cidade

foi criada pelo comerciante português Manuel Antonio da Rocha Junior, em 1849, mas

essa data e esse estabelecimento não são reconhecidos por todos os autores como

pioneiros do comércio livreiro. Há quem afirme que esse comércio foi fundado por

Antonio Ildefonso de Araújo que, em 1856, estabeleceu-se num velho sobrado, na Praça

do Ferreira, ao lado da Intendência Municipal. A livraria funcionava

"(...) num prédio de três portas de frente, no qual ele levantou prateleiras e umpequeno balcão e distribuiu oadeiras no recinto, num de cujos lados estava umamesa, sobre a qual espalhava papel, caneta e tinta, blocos para telegramas ecatálogos de livrarias brasileiras e de outros países, transformando assim oambiente num centro de interesse dos intelectuais da terra. Folheando os catálogos,estes iam encomendando, por seu intermédio, os livros desejados".4

5 Embora possuíssem catálogos de diversas livrarias e possibilitassem aos leitores locais a

compra de livros, esses estabelecimentos não se destinavam exclusivamente à venda de

livros. Eram, ao contrário, locais de comércio de produtos variados. Assim também

foram as livrarias inauguradas ao longo dos anos 80 dos oitocentos, quando houve uma

maior expansão do comércio livreiro em Fortaleza. Entre essas estavam as casas

comerciais daqueles que viriam a ser reconhecidos como os dois maiores livreiros da

cidade no século XIX: Joaquim José de Oliveira e Gualter Rodrigues Silva, este último um

dos principais personagens da história aqui narrada.

6 Suas livrarias, bem como as demais existentes nesse período em Fortaleza, faziam

publicar nos principais jornais anúncios nos quais proclamavam os produtos vendidos.

Através de tais anúncios, pode-se notar que esses estabelecimentos vendiam periódicos

como a Gazeta Jurídica, a Revista Jurídica, a Correspondência de Portugal, O Cultivador, entre

outros. Num reclame no jornal O Cearense, Joaquim José de Oliveira chegava a afirmar

que poderia encarregar-se de quaisquer jornais de outra província, assim como da

Europa, mediante, claro, "módica comissão".

7 Além dos jornais e revistas, eles anunciavam também outros produtos como as "famosas

tintas Monteiro", para as quais a livraria Oliveira era o único depósito da província.

"Folhinhas" contendo abordagens sobre os mais variados assuntos, religiosos,

anedóticos, comerciais, de guerras e outros tantos. E ainda partituras musicais,5 álbuns

para retratos e materiais de escritórios.6

8 Além dos anúncios de jornais, a variedade de mercadorias presente nos

estabelecimentos comerciais desses livreiros pode ser investigada por meio de seus

inventários que se encontram depositados no Arquivo Público do Estado do Ceará e cuja

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Page 200: Livro e Iconografia

leitura permite que se tenha claramente um dimensionamento da composição e acervo

de uma livraria em fins do século XIX.

9 Os inventários de Alexandrina de Oliveira – esposa de Joaquim José de Oliveira – e

Gualter Silva são datados, respectivamente, de 1870 e 1892. Nesses documentos há, além

de livros, uma relação de materiais para escritórios e escolas, evidenciando o ecletismo

e amplo âmbito de atuação dessas casas comerciais. Na lista de produtos postos a venda,

estão presentes mercadorias como "Água Balsâmica para dentes de montonac", "Água de

toilette phenicado do Dr. Lamaire", "Ácido carbosótico", "Pílulas de Santa Maria", "Pomada

Rondesicus", "Sabão de Alcatrão", "Pomada Mágica" e "Pós Dentifrícios".

10 Muitas gravuras também compunham as prateleiras das livrarias. Havia retratos de

eminentes religiosos e políticos, e quadros importantes, representando, algumas vezes,

acontecimentos históricos.

11 O fato dos livreiros da cidade negociarem uma extensa variedade de produtos parece

seguir uma tradição que já vinha de longa data. Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva,

desde o período colonial o comércio de livros, no Brasil, "(...) extravasava o grupo restrito

dos livreiros (organizados ou não em corporações) para se concentrar nas mãos daqueles que

negociavam com vários tipos de mercadorias".7 Na opinião dessa mesma autora, a chegada

da corte ao Rio de Janeiro marcou um momento de transformação, significando uma

maior especialização do comércio livreiro nessa cidade. Mas este não parece ter sido o

destino dos comerciantes das Províncias. Ao menos na Província do Ceará, bastante

distante da corte, os comerciantes de livros continuaram dedicando-se, ao longo de

todo o século XIX, ao comércio de mercadorias variadas.

12 Se por um lado, o comércio de livros na Província do Ceará e, particularmente, em

Fortaleza, era pouco especializado, por outro, essa posição de vendedores e

importadores de produtos diversos propiciava aos livreiros da cidade contato com

outros grandes comerciantes, ao mesmo tempo em que os colocava em íntima relação

com professores, profissionais liberais e intelectuais. A visão comercial, aliada aos laços

de amizade urdidos com "pessoas ilustres" da época, tornava bem sucedidos os negócios

dos livreiros-impressores e editores.

13 Gualter Rodrigues Silva construiu assim, em torno de si, uma rede de amigos que o

levou a ocupar um lugar de destaque na sociedade fortalezense. Na festa de

inauguração de sua chácara, em 1888, é possível perceber a rede de sociabilidade tecida

por esse livreiro. A foto, tirada no momento da festa, revela a relação estabelecida com

intelectuais, políticos e comerciantes locais do período. Verifica-se, na imagem, a

presença do presidente da província, Caio Prado, além de literatos como Antônio Sales,

Antônio Martins, Antônio Bezerra, Oliveira Paiva, João Lopes e o maestro Alberto

Nepomuceno, denunciando que livreiros-impressores buscavam, através de laços de

amizade, construir "boas relações para ter privilégios e permissões".8

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Page 201: Livro e Iconografia

14 Assim, os livreiros da cidade estabeleciam uma prática que os colocava entre os mais

importantes representantes do comércio local, bem como elaborava uma auto-

representação que os inseria como membros participantes dos grupos intelectuais da

época. A construção dessa representação dos livreiros como intelectuais e homens de

letras foi reforçada, no caso do Gualter, quando, por ocasião de sua morte, sua família

optou por ornamentar seu túmulo com livros. Este foi considerado por um estudioso do

tema, "(...) o mais significativo jazigo do [cemitério] São João Batista, com as características de

uma cruz fincada em um monte de pedras, adornada por livros (…)".9

15 A construção dessa representação se dava também e, principalmente, por meio da ação

empreendida pelos próprios livreiros, no sentido de sugerir aos leitores o que se podia

considerar a "boa leitura", inserido-se, assim, no esforço "civilizador" e educacional

que se processava na Província do Ceará, na segunda metade do século XIX. Pelos

anúncios de jornais, pode-se perceber o desejo desses agentes de guiar "seus" leitores

de forma a fazê-los perceber que sua ação era imprescindível, uma vez que eram eles os

mais aptos a indicar leituras que seriam fundamentais para a formação de intelectuais

eruditos. Os anunciantes procuravam criar vínculos e uma proximidade com os leitores,

objetivando estruturar um sentimento de reciprocidade em que o cerne seria a

lealdade. Havia uma tentativa de construção de uma maior intimidade que visava

consolidar a cumplicidade presente, por exemplo, nas preocupações com a idoneidade

de quem escrevia os livros destinados tanto aos leitores como a seus filhos.

16 Os livreiros viam a necessidade de, para determinadas obras, mencionar a legitimidade

ou oficialidade que atestava a qualidade e responsabilidade dos textos apresentados,

corroborando, então, com um perfil honesto, responsável e leal dos comerciantes de

livros. Em um anúncio, no dia 25 de março de 1874, o jornal O Cearense propagava o livro

de lições práticas de ortografia escrito pelo professor J. Matta Araújo. No texto,

chamava-se a atenção para o fato de a obra ter sido aprovada pelos Conselhos de

Instrução Pública da Corte, de Pernambuco e do Ceará, e que ela seria adotada pelo

governo provincial para as escolas de ensino primário. O anúncio exibia um trecho

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Page 202: Livro e Iconografia

destacado no qual dizia: "... Há muito sentião as aulas falta deste livrinho". Mais uma vez é

perceptível a tentativa desses comerciantes de se posicionarem como indivíduos

capazes de orientar as leituras de seus fregueses assim como a íntima relação que

possuía grande parte dos títulos, em circulação na cidade, com as leituras exigidas pelos

programas escolares, daí o fato dos livreiros, constantemente, fazerem anunciar a

qualidade moral e educacional de seus produtos.

17 Assim como os demais livreiros, Gualter Silva também fazia questão de possuir, em seu

acervo, livros educativos e instrutivos. No rol de títulos que compõe o seu inventário,

podemos encontrar diversos exemplos de livros escolares ou destinados, de forma mais

ampla, à instrução popular. Entre esses, destacam-se os livros de uma colecção

portuguesa que se auto-definia como "a propaganda de instrução para portugueses e

brasileiros". Essa coleção, intitulada Biblioteca do Povo e das Escolas, começou a ser

publicada no ano de 1881 por uma editora portuguesa chamada David Corazzi, e

caracterizava-se por ser composta exclusivamente de livros de divulgação científica.

... e uma coleção de livros...

18 No inventário do livreiro Gualter, que data de 1892, são listados 38 títulos da coleção

Biblioteca do Povo e das Escolas, num total de 1415 exemplares presentes na livraria

cearense. Os livros postos à venda seguiam uma tendência do mercado editorial

europeu da época que buscava expandir o número de leitores através da criação de

coleções populares. Instrumentos de vulgarização científica, esses livros inseriam-se no

grande fenômeno editorial europeu, do século XIX: coleções10 voltadas principalmente

para um público mais abrangente e menos erudito.

19 A criação de coleções na Europa, nesse momento, inclui-se no processo de afirmação da

figura moderna do grande editor que se distinguia dos livreiros e impressores. As

coleções criadas pelas casas editoriais européias podem ser consideradas o principal

instrumento de afirmação do poder dos editores marcando uma verdadeira ruptura no

processo de publicação de livros desenvolvido até então. A criação de coleções

populares foi, justamente, o que permitiu aos editores o estabelecimento de um

comando editorial através do qual eles passaram a estabelecer as normas do mercado.

Na organização das coleções, os editores mudaram sua ação, deixando de comprar

manuscritos propostos pelos autores, e passando, por meio de uma produção

planificada, metódica e racional, a solicitar e fazer com que os autores produzissem

textos que atendessem aos seus interesses. Por esse motivo, Jean Yves Mollier considera

que a criação das coleções foi uma das chaves do sucesso da autonomização dos

editores.11

20 Entre as coleções portáteis e baratas criadas pelos editores europeus do século XIX,

destacava-se um tipo que se tornou bastante comum: as coleções de divulgação

científica. Essas surgiram com o objetivo de promover a vulgarização dos

conhecimentos científicos para o maior número possível de pessoas. Acreditava-se que

os livros dessas coleções deveriam ser concisos e pouco volumosos mas teriam que

conter o essencial do que havia sido produzido pelos conhecimentos humanos e ser,

pelo seu preço, acessível a todos.

21 Para que a produção desses livros baratos fosse economicamente interessante para os

editores, ela deveria basear-se em grandes tiragens e todos os aspectos dos livros

teriam que ser "desprovidos de pretensões".12 As coleções deveriam ser compostas por

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Page 203: Livro e Iconografia

livros não "(...) apenas de bom mercado, mas o melhor mercado possível (..) onde todos os

detalhes manifestassem economia".13 Esse aspecto – do baixo custo – orientava escolhas

estéticas e editoriais como tipo de papel, uniformidade da capa, similaridade entre os

volumes, tiragem e periodicidade da publicação. Tal aspecto, finalmente, determinava o

caráter popular das coleções que visavam conquistar um público amplo.

22 A Biblioteca do Povo e das Escolas obedecia ao modelo de coleção de vulgarização científica

citado acima. Seus volumes – ao menos nos primeiros anos14 – eram publicados, com

regularidade quinzenal, nos dias 10 e 25 de cada mês,15 em idêntico formato 15,5X 10cm

e possuíam rigorosamente 64 páginas. As capas eram perfeitamente iguais e os volumes

eram impressos em papel barato. Para completar o aspecto econômico dos livros eles

portavam na capa o preço de cada exemplar: 50 réis.16

23 Para compensar um preço unitário tão baixo, a Biblioteca do Povo e das Escolas foi

publicada com uma tiragem inicial de seis mil exemplares, passando, a partir do

terceiro volume, para 12 mil exemplares, e, saltando, no volume 10, para 15 mil

exemplares.17

24 Seguindo também uma tendência do mercado editorial da época, a coleção era

intitulada Biblioteca. Isabelle Olivero aponta que, apesar da utilização do termo biblioteca

para definir uma coleção ser bastante antiga na Europa, é, somente, no século XIX que

ele adquire o sentido de coleção como a compreendemos hoje, consagrando o papel do

editor e sua estratégia editorial. Desde o século XVII até os primeiros anos do século XX,

o termo biblioteca designava uma coleção composta da reedição de textos já publicados.

É no Dictionnaire Universel, no século XIX, que o termo ganha a definição de uma

coleção de obras publicadas por uma casa editorial possuindo características comuns.

Passa-se, segundo a citada autora, "da idéia de uma compilação de diversos autores para

aquela de se seriar obras reagrupadas para um leitor particular, um conjunto adequado

escolhido na totalidade dos livros disponíveis".18

25 A Biblioteca do Povo e das Escolas tinha um público leitor claramente definido. Era uma

coleção popular. Era essa estratégia editorial, previamente determinada, que

conformava todos os aspectos da coleção: da escolha dos textos e dos autores à

organização da distribuição e venda.19

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26 Essa coleção pode ser considerada a primeira experiência portuguesa de livro "popular

de massas". Obedecia, como afirmou-se anteriormente, a uma tendência do mercado

editorial, mas também à ampliação dos meios de divulgação científica e tecnológica que

se desenvolvia em Portugal no século XIX. Segundo Ana Maria Cardoso Matos, a partir

do final dos anos 30 dos oitocentos, assistiu-se, em Portugal, ao

"(...) surgimento de sociedades cujo principal objetivo era a divulgação deconhecimentos científicos e técnicos, como foi o caso da Sociedade Propagadora deConhecimentos Úteis, instituída em 1837, e da Sociedade Promotora dos InteressesMateriais da Nação, estabelecida em 1841".20

27 Essas sociedades criaram periódicos que divulgavam os conhecimentos científicos que,

na opinião dos membros da associação, poderiam ser úteis a um grupo ampliado da

população. Assim, surgiu, por exemplo, a revista O Panorama através da qual se

pretendia fazer "descer a variada ciência até os últimos degraus da escala social".21

28 Ao longo dos anos 40, outras publicações com os mesmos objetivos foram surgindo,

como por exemplo, os Almanaques Populares, publicados por Felippe Folque, Fradesso

da Silveira e Francisco Ângelo de Almeida Pereira e Sousa entre os anos de 1848 e 1851.

O Almanaque Popular pretendia ser o "livro de todos para todos", colocando ao alcance

do maior número de pessoas "conhecimentos úteis e alguma informação científica

redigida numa linguagem acessível".22 Esses almanaques eram vendidos por 160 réis e

chegaram a exibir uma tiragem de 6.000 exemplares.

29 Formava-se assim, através dessas publicações, o caminho que viria a ser seguido pela

Biblioteca do Povo e das Escolas. Essa coleção, surgida na década de 80, ligava-se,

provavelmente a outro acontecimento importante: a publicação do decreto de 02 de

agosto de 1870 que determinava a criação de bibliotecas populares em cada capital de

concelho. Essas bibliotecas que, na opinião de Ana Cardoso, "(...) deviam ser o

complemento das escolas populares, abrangiam duas classes de obras, as que se

ocupavam dos conhecimentos gerais e as que se ocupavam de cada uma das profissões,

agrícola, industrial, comercial e artística, inventos, aplicações e modelos".23 Parece que

estava aí apresentado o formato que passou a orientar os livretos da Biblioteca do Povo

e das Escolas, coleção que vai ser publicada durante 32 anos e que vai circular, com

grandes tiragens, tanto em Portugal quanto no Brasil.

30 Seus títulos abrangeram, ao mesmo tempo, um público alargado e estratos específicos

de profissionais. Títulos como Química, Física, Aritmética, Invertebrados, Calor,

Zoologia, Anatomia, o Mar, Mineralogia, Receitas úteis... destinavam-se, possivelmente,

a um público escolar ou a um público mais amplo. Mas havia também outros como

Manual do Carpinteiro e Manual do Maquinista, destinados a profissionais e ofícios

específicos.

31 Nos primeiros dez anos de publicação — 1881/1891 – a direção da coleção coube a

Xavier da Cunha, um médico que, antes de se formar, havia freqüentado a Escola

Politécnica e que tinha desenvolvido a atividade literária paralelamente à atividade

médica, desde muito cedo. Escreveu folhetins e versos no Archivo Pittoresco, no Diário

de Notícias e na Gazeta de Portugal, bem como colaborou no Dicionário Popular e fez

traduções da obra de Julio Verne.24 A arquitetura da coleção organizada pelo diretor

objetivava, nas suas próprias palavras,

"(…) ir pouco a pouco preparando o espirito do leitor a passar dos estudos maissimples para os complexos e de simultaneamente lhe ir inoculando conhecimentosvários nos diversos ramos do saber humano, para que reciprocamente auxiliados efecundados [pudessem] (...) esses conhecimentos tornar-se mais proveitosos, – a

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"Biblioteca do Povo e das Escolas", (..) logra o júbilo de tornar mais suave e maisamena a aquisição de semelhantes noções pela variedade com que as vaiministrando".25

32 Assim, Xavier da Cunha constituiu, inicialmente, um programa de publicação que

abarcaria "sete grandes ramos de capital importância": educação corporal, zoologia, física,

história, literatura, jurisprudência e lingüística. No entanto, à medida que os títulos iam

sendo editados, tornava-se cada vez mais difícil enquadrá-los neste esquema original.

Esse esboço que, na opinião de Manuela Domingos, era "coerente com o horizonte mental

da época",26 foi sendo pouco a pouco substituído por temáticas mais abrangentes que

pudessem abarcar todos os conhecimentos científicos e profissionais que a coleção se

propunha a popularizar.

33 Quanto aos autores dos livros, segundo Jorge Nascimento, estes foram em número de

91, englobando profissionais de ofícios diversos:

34 "dois eram engenheiros agrônomos, dois tipógrafos, cinco médicos, 22 oficiais militares do

exército e da marinha, um comerciário, três estudantes de direito, um farmacêutico, um

estudante de letras, 18 professores, um telegrafista, um ator, quatro funcionários públicos, três

escritores, um naturalista, um advogado, três estudantes de artes industriais e comerciais, um

poeta, um botânico, dois sacerdotes, um cenógrafo, um estudante de agronomia, dois jornalistas

e um estudante de medicina".27

35 A diversidade de autores, temas e títulos, aliada a grandes tiragens de cada título,

demonstra, claramente, o que era um dos principais objetivos das coleções européias de

divulgação científica: o desejo de difusão de todos os saberes e de todos os

conhecimentos humanos para o maior número possível de leitores.28

36 Com o objetivo ainda de atrair novos leitores e de instruir um número cada vez maior

de indivíduos, a Biblioteca do Povo e das Escolas tinha outra grande preocupação: tornar os

textos mais compreensíveis por meio de ilustrações e imagens. Para que a transmissão

do conhecimento fosse mais facilmente absorvida pela população leiga ou com pouco

conhecimento científico, as descrições técnico-científicas eram acompanhadas de

imagens que ilustravam os processos e aparelhos descritos, tornando os livros "além de

úteis, apreciáveis".

37 Por todas as suas características, a Biblioteca do Povo e das Escolas, demonstra uma

preocupação dominante com a instrução popular. Inicialmente, uma instrução para

todos, posteriormente, uma instrução profissionalizante. Basicamente, é o ideal de

instruir, formar e educar um número abrangente de pessoas – o objetivo que está na

raiz do projeto da coleção –, o que explica o fato de vários volumes terem sido adotados

pelo governo português em diversos graus de ensino.29

38 A causa da instrução popular mobilizava, em meados do século XIX, em Portugal, não

apenas os membros do governo. Segundo Manuela Domingos,

"(...) a meados do século, ações concretas e marcantes para os anos seguintes foramlevadas a cabo por um grupo de personalidades empenhadas em modernizar asociedade portuguesa, a partir de dentro, para construir uma civilização burguesa,erguer um povo de cidadãos".30

39 Intelectuais, livreiros e editores participaram do esforço de construir uma nova

sociedade por meio da educação de seus cidadãos. Muitos livros e manuais foram

escritos, editados e vendidos com o objetivo precípuo de ampliar a instrução popular.

Entre os editores que se engajaram nesse processo, um nome se destaca: David Corazzi.

Considerado "benemérito e patriota", justamente pelo fato de ter-se dedicado à causa

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da instrução popular.31 Foi ele o editor responsável pela Biblioteca do Povo e das Escolas,

coleção que, pelos seus méritos na divulgação científica, chegou a ser premiada com

Medalha de Ouro, na Exposição do Rio de Janeiro de 1881, consolidando a participação

de sua editora tanto no mercado português quanto brasileiro da época.

... e seu editor português: David Corazzi

40 David Corazzi ficou órfão de pai aos quinze anos e com poucos recursos. Tornou-se,

mais tarde, funcionário público e, com vistas a obter um pequeno capital com o qual

pudesse dar início a um negócio próprio, lançou-se à venda dos direitos de um livro de

seu pai, o médico cirurgião David Antonio Caetano Corazzi.

41 Com o capital arrecadado, David Corazzi criou a Empresa Horas Românticas dando início à

publicação de romances em fascículos. O primeiro romance publicado por ele foi Les

chevaliers de la nuit de Ponson du Terrail. Algum tempo depois, David Corazzi publicaria

o texto que mudaria a sua vida. Ao tomar conhecimento da publicação do livro de

Fernandes y Gonzáles, El Rei Maldito, em Madrid, Corazzi decidiu editá-lo, em Portugal,

num formato novo que se tornaria revolucionário: em fascículos de 8 páginas e

gravuras que seriam vendidos a 10 réis. Na opinião de Manuela Domingos, "a viragem da

sua vida foi completa: em menos de um mês o editor ganhava imenso dinheiro, ampliava

"instalações" (...) outros romances se seguiram, com idêntico esquema de publicação. Assim

nasceu a Casa Editora David Corazzi".32

42 A editora de David Corrazi não se dedicou apenas à publicação de romances. Novos

projetos também voltados para um público mais amplo começaram a ser desenvolvidos

pela empresa, entre eles a coleção Biblioteca do Povo e das Escolas. Nas palavras do editor,

essa coleção deveria formar uma "enciclopédia de conhecimentos humanos, uma biblioteca

ao alcance de todas as bolsas e de todas as inteligências, um repositório onde os indoutos

[pudessem] (...) aprender e os doutos se não se [enfastiassem] (...) de recordar".33

43 A coleção que, no seu primeiro volume – História de Portugal –, ainda registrava na capa o

nome da empresa – Horas Românticas –, tornou-se um grande sucesso ganhando grande

mercado também no Brasil. Corazzi criou uma filial na cidade do Rio de Janeiro, de

onde, possivelmente, distribuía para as demais províncias do Império, como o Ceará.

44 Ao longo dos anos 80, as empresas David Corazzi prosperaram bastante criando urna

variada gama de serviços tais como oficina de composição, impressão e estereotipia,

oficina de alçado, dobragem e brochura, oficina de encadernação e depósito para as

suas publicações.34

45 No final dos anos 80, por motivo de doença, David Corazzi foi obrigado a abandonar os

trabalhos nas suas empresas, tendo sido substituído em suas funções por Justiniano

Guedes. A partir da saída de Corazzi, a empresa responsável pela publicação da coleção

passa a ser a Companhia Nacional Editora que, mais tarde e ainda com Justiniano

Guedes à frente, passa a ter a denominação de A Editora. O ritmo de publicação dos

volumes da Biblioteca do Povo e das Escolas diminui sensivelmente. A periodicidade

quinzenal apresentada nos primeiros anos já não consegue mais ser cumprida. Nos

primeiros anos do século XX, a publicação dos exemplares da coleção tornou-se ainda

mais esparsa, sendo editados apenas 8 volumes entre os anos de 1906 e 1913, o que leva

Manuela Domingos a afirmar que "(...) a liquidação do projeto ambicioso e da profícua

realidade de três décadas atrás estava consumada".35

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46 Foi exatamente neste período que entrou em cena o terceiro personagem dessa

história: Francisco Alves. Foi este livreiro-editor português, estabelecido no Brasil, que,

em 1913, comprou A Editora Limitada, empresa na qual havia se transformado a antiga

editora fundada por David Corazzi e deu continuidade à publicação dos volumes da

Biblioteca do Povo e das Escolas.

E um português que se torna livreiro e editor no Brasil:Francisco Alves

47 No momento em que Francisco Alves entra nessa história, suas empresas no Rio de

Janeiro prosperavam de forma tão intensa que, invertendo o percurso trilhado por

outros editores, ele havia passado a comprar editoras européias. Em 1913, Alves já tinha

comprado parte da francesa Aillaud e a portuguesa Bertrand, tornando-se, então,

proprietário d’A Editora.

48 Francisco Alves havia, desde as últimas décadas do século XIX, cumprido uma trajetória

de sucesso no espaço livreiro e editorial brasileiro. Nascido em Portugal, Alves tornou-

se cidadão brasileiro, contribuindo de forma definitiva para a criação de um mercado

editorial no Brasil. Ao narrar sua trajetória profissional, Aníbal Bragança destaca o fato

de que, ao contrário de outros editores europeus que se estabeleceram no Rio de

Janeiro, no século XIX, Francisco Alves não criou no Brasil uma empresa "satélite"

representante de interesses estrangeiros. Segundo o citado autor,

"A história de Francisco Alves de Oliveira é outra. Nascido em Portugal, chegou aoBrasil com quinze anos, trabalhou em outro ramo de comércio antes de se iniciar nosetor livreiro como alfarrabista. Formou-se livreiro no Brasil. Após regressar à terranatal, foi chamado de volta por seu tio Nicolau Antonio Alves, dono da LivrariaClássica, fundada na Corte em 1854. Veio, então, definitivamente instalar-se no Riode Janeiro. Logo requereu cidadania brasileira. Após poucos anos, em 1883, assumiua direção da empresa, já conhecida como Livraria Alves. Em 13 de setembro de 1897,com a retirada do tio, a livraria passou a denominar-se simplesmente "FranciscoAlves"".36

49 A actuação de Francisco Alves no mercado livreiro foi marcada por sua ação como

editor literário, destacando-se, entre os autores publicados por ele: Raul Pompéia,

Olavo Bilac, Euclides da Cunha e outros. Mas foram os livros escolares que marcaram

definitivamente o lugar desse editor no mundo do livro. Aníbal Bragança afirma que

"Francisco Alves lançou as bases modernas da edição escolar no Brasil. Fez fortuna e chegou a ser

reconhecido como o "Rei do Livro" (...)".37 Talvez tenha sido seu empenho pelas publicações

voltadas para a instrução popular que o tenha feito interessar-se pela A Editora e sua

Biblioteca do Povo e das Escolas. Não foi apenas essa coleção portuguesa com projeto de

educação popular que Alves adquiriu. Ele comprou também Biblioteca de Instrução

Profissional, coleção que havia sido criada na esteira do sucesso da Biblioteca do Povo e das

Escolas.

50 Também impressa em A Editora, a Biblioteca de Instrução Profissional foi criada, em

1904, por Thomaz Bordallo Pinheiro com um grupo de professores do ensino industrial

e técnico e, ainda, profissionais de diversos setores. Inicialmente a coleção foi publicada

também em fascículos passando, mais tarde, a ser editada em volumes completos.

Segundo Manuela Domingos,

"(...) a coleção teve o mérito de fornecer textos para as escolas industriais ecomerciais, exército, marinha, etc., continuando a ação pioneira da "BPE" nesses

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domínios, adaptando-se às exigências da formação profissional de quadros técnicosmédios que o país requeria. Não concorrente com a "BPE", mas herdeira atualizadado seu espírito. Prova disso, o fato de finalmente, também ter chegado a serdistribuída e editada por Aillaud, Alves e Ca".38

51 As coleções de divulgação científica e instrução popular eram, portanto, de grande

interesse de Francisco Alves, editor que se consagrou, como se afirmou anteriormente,

por meio da produção e comercialização de livros escolares.

52 Com a compra da Biblioteca do Povo e das Escolas por Alves, dois novos fascículos desta

coleção foram editados e comercializados no Brasil. Podemos supor que Alves manteve

também, e, quem sabe, veio até a ampliar, os correspondentes que eram utilizados pela

editora portuguesa para distribuir os volumes da coleção. Dentre esse grupo de

correspondentes, muito provavelmente, faziam parte os herdeiros do livreiro cearense

Gualter Rodrigues, com quem começamos a contar esta história.

Voltando ao início da história

53 Quando Gualter Rodrigues morreu em 1892, a coleção Biblioteca do Povo e das Escolas

contava com 197 títulos já publicados. Sua livraria possuía 38 desses títulos como

podemos observar no quadro abaixo:

Número de

exemplaresTítulo Autor

152 Química Orgânica José Maria Greenfield de Mello

100 Aritmética José Maria Greenfield de Mello

86 Topografia Carlos Adolfo Marques Leitão

81 Geometria1

74 Eletricidade Guilherme Luiz dos Santos

68 Calor Julio Leitão

48 Invertebrados Vitor Ribeiro

47 Zoologia Francisco Guilherme de Souza

45 Acústica João Feliciano Marques Pereira

45 Geologia João Maria Jalles

45 Pedagogia Henrique Freire

45Introdução às Ciências Físicas e

NaturaisJoão Cesário de Lacerda

43 Desenho Linear Carlos Adolfo Leitão

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43 Mineralogia João Maria Jalles

42 Astronomia2 José de Mello

40 O Mar Vicente de Moura Coutinho d’Almeida Eça

39 Anatomia João Cesário de Lacerda

38 Hidrostática Julio Leitão

38 Manual do Carpinteiro Francisco Adolfo Celestino Soares

36 Manual do Maquinista3 Carlos Bandeira Mello

30 Física José Maria Greenfield de Mello

20 Manual do Ferrador D. Antonio José de Mello

19 Natal4 Olympio de Freitas

18 Manual do Fabricante5 J. M. Marques Pereira

18 Moral Augusto Baratados Santos Martins

18 Música6 José Timóteo da Silva Bastos

17 Tipografia7

16 Gravidade João Maria Jalles

15 Vidro João Feliciano Marques Pereira

15 Máquinas de Vapor Manuel Rodrigues de Oliveira

14 Fisiologia Humana João Cesário de Lacerda

14 Trigonometria João Maria Jalles

12 Mecânica João Maria Jalles

11 Esgrima Francisco Adolfo Celestino Soares

09 Celebridades Femininas8 Xavier da Cunha

07 Botânica Francisco Guilherme de Souza

04 Código Português9 João Cesário de Lacerda

03 Receitas ÚteisJoão Bastos Pereira da Costa e Manuel

Diogo de Valadares

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54 Os dois títulos com maior número de exemplares presentes na livraria cearense eram

Química Orgânica e Aritmética, ambos de autoria de José Maria Greenfield de Mello,

militar de carreira e grande colaborador da coleção.

55 O indivíduo com maior número de títulos postos à venda na livraria cearense era João

Maria Jalles, também militar de carreira, que escreveu, entre outos volumes, Geologia,

Mineralogia, Gravidade, Trigonometria e Mecânica. Em segundo lugar, no número de títulos

postos à venda na livraria cearense, aparecia José Cesário de Lacerda que escreveu os

volumes intitulados Introdução às Ciências Físicas e Naturais, Anatomia, Fisiologia Humana e

Código Civil Portuguez.

56 Esses três autores foram grandes colaboradores da coleção. Dois deles, João Maria Jalles

e João Cesário de Lacerda, juntamente com o diretor da coleção – Xavier da Cunha – e

com Julio Arthur Lopes Cardoso foram responsáveis por 38 % do total de obras editadas

pela coleção Biblioteca do Povo e das Escolas.39

57 Entre os títulos postos à venda, a maioria referia-se a temas relacionados com o ensino

secundário, como Aritmética, Geometria, Invertebrados, Eletricidade, Calor e Física, outros

ligavam-se a ofícios mais específicos tais como Manual do Maquinista, do ferrador, do

fabricante de verniz e do carpinteiro, outros ainda tratavam de assuntos menos associados

a questões escolares ou de formação profissional tais como Natal, Celebridades Femininas

e Receitas Úteis.

58 Embora tratassem de assuntos diversos – muitos dos quais não diretamente

relacionados à questão da instrução pública –, a presença de tais exemplares no

estabelecimento comercial cearense denuncia um crescimento, no mercado livreiro,

dos títulos destinados à leitura popular. Apesar do Ceará ser, na segunda metade do

século XIX, uma província profundamente iletrada, a presença de uma quantidade

significativa de livros d'A Biblioteca do Povo e das Escolas pode nos sugerir uma maior

preocupação com a ampliação dos processos educativos e com uma crescente

divulgação dos conhecimentos científicos e profissionais destinados a um público mais

amplo.

59 Assim é que, por meio dos caminhos trilhados pela coleção Biblioteca do Povo e das Escolas

– desde de sua concepção e edição em Lisboa, pela empresa de David Corazzi, anos mais

tarde adquirida por Francisco Alves, até a sua comercialização por Gualter Rodrigues

em locais distantes e pouco letrados como Fortaleza – podemos conhecer aspectos da

história dos livros, desvendando, pelo menos em parte, a dinâmica cultural que se

estabelecia entre a Europa e as diversas regiões do Brasil no século XIX.

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1. Almir Leal de Oliveira. "Universo letrado em Fortaleza na década de 1870". In: Simone de Souza

e Frederico de Castro Neves. Intelectuais. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002, p. 18-19.

2. Anibal Bragança estabelece uma tipologia dos agentes do mercado editorial brasileiro. Ele

considera que há três tipos distintos de editores. O impressor-editor, o livreiro-editor e o editor

stricto sensu. Mas, este mesmo autor chama a atenção para o fato de que "a realidade histórica

apresenta múltiplas combinações" e que "devemos atentar para o eixo central" de atividade do

indivíduo em questão. No caso de Gualter Rodrigues da Silva, considerou-se que este era um

livreiro-impressor-editor pois apesar de ser o oficio de livreiro sua principal atividade, ele

também desempenhou, de forma simultânea, os ofícios de impressor e editor. Ver a respeito da

tipologia citada, Aníbal Bragança. "Uma introdução à história editorial brasileira". Cultura, 14,

2002, pp. 57-83.

3. Celeste Cordeiro. "O Ceará na segunda metade do século XIX". In: Simone de Souza. A nova

história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, p. 149.

4. GIRÃO, Raimundo e SOUSA, Maria da Conceição. Dicionário da Literatura Cearense. Fortaleza:

Imprensa Oficial, 1987.

5. Em 4 de abril de 1872, no jornal Pedro II, músicas novas eram mencionadas como recém

chegadas no último vapor. Joaquim José de Oliveira fazia questão de detalhar a mercadoria: "(...)

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A Lisbonense, Polka por Pinheiro – Minha Estrella, valsa por Rente, Hymno Nacional, por F. Manoel da

Silva."

6. Em 28 de maio de 1872, no jornal Pedro II, o mesmo livreiro anunciava: "bonitos álbuns para

retratos com lindas músicas modernas: chegarão à livraria de J.J. d'Oliveira & C.ª assim como muitos objetos

d'escritório, entre elles lindas pastas, facas de marfim, lacres de diversas cores, tintas de várias qualidades,

papel de phantasia, dito de cores, dito para música, área preta e de cores, tintas de diversas cores, dita

americana para imprimir, etc, etc."

7. Maria Beatriz Nizza da Silva. "História da leitura luso-brasileira: balanços e perspectivas". In:

Márcia Abreu (org.). Leitura, História e História da Leitura. São Paulo: Fapesp, Campinas: Mercado

das Letras, 1999, p. 153.

8. Anibal Bragança chama a atenção para o fato de que as relações de amizade entre editores e

pessoas ilustres é uma das características fundamentais do mercado editorial brasileiro. Ver

Aníbal Bragança. "Uma introdução à história editorial brasileira". Cultura – Revista de História e

Teorias das Idéias. II série, vol XIV / 2002.

9. Henrique Sérgio de Araújo Batista. Assim na morte como na vida. Arte e sociedade no cemitério

São João Batista (1866-1915). Museu do Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto, 2002, p. 87.

10. A respeito da publicação de coleções populares na Europa ao longo do século XIX, ver Isabelle

Olivero. L'invention de la collection. Paris: IMEC/Maison des sciences de l'Homme, 1999.

11. Jean Yves Mollier. "L'évolution du système editorial français depuis l'Enciclopedie de

Diderot". In: Jean Yves Mollier (dir.). Où va le livre?. Paris: La Dispute, 2000, p. 22.

12. Isabelle Olivero. op.cit. p. 29.

13. Idem.

14. Manuela Domingos assinala que a Biblioteca do povo e das escolas só cumpriu a periodicidade

quinzenal nos cinco primeiros anos de sua publicação. Esse período – de 1891 a 1896 – é o período

de apogeu da coleção, tendo esta sido "profusamente elogiada pela imprensa (...) Logo o período

seguinte – 1886/91 –, a sua periodicidade média passa a ser mensal. A partir daí, a coleção já não voltará

nunca a ser o que era: arrasta-se penosamente, ao longo dos anos, com abundância de interrupções,

editoras e, quem sabe de direções". Manuela Domingos. Estudos de Sociologia da Cultura. Livros e leitores

no século XIX. Lisboa: Instituto Português de Ensino a Distância, 1985, p. 28.

15. Jorge Carvalho do Nascimento. "Nota prévia sobre a palavra impressa no Brasil do século XIX:

a biblioteca do povo e das escolas". Horizontes. Bragança Paulista, vol. 19, pp. 11-27, jan/dez. 2001,

p. 13.

16. É importante considerar, a título de comparação, que um jornal como O Cearense era vendido,

nessa mesma época, a 200 réis o exemplar.

17. Jorge Carvalho do Nascimento. op. cit. p. 13.

18. Isabelle Olivero. op.cit. p. 16.

19. Manuela Domingos destaca o fato da editora David Corazzi possuir uma extensa rede de

distribuição de seus livros. Segundo ela, a editora possuía 217 correspondentes (incluindo o

Brasil, África e China, além da Europa). O Catálogo da editora, datado de 1884, define

correspondente como sendo "(...) em qualquer localidade, todas as pessoas que se responsabilizem por um

certo número de assinaturas de cuja distribuição se encarreguem e dêem a esta Casa garantia de sua boa

vontade, honradez e zelo". A autora destaca ainda o fato de que a editora dava a seus

correspondentes, em contrapartida, 15% de comissão nas vendas. Ver Manuela Domingos. op. cit.

p. 66.

20. Ana Cardoso de Matos. "Os agentes e os meios de divulgação científica e tecnológica em

Portugal no século XIX". Scripta Nova.

21. Citado por Ana Cardoso de Matos. op. cit.

22. Ana Cardoso de Matos. op. cit.

23. Ana Cardoso de Matos. op. cit.

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24. Manuela Domingos. Estudos de Sociologia da Cultura. Livros e leitores no século XIX. Lisboa:

Instituto Português de Ensino a Distância, 1985, p. 27.

25. Prefácio de Xavier da Cunha. Biblioteca do Povo e das Escolas, 8ª série, 1883. Citado por

Manuela Domingos. op. cit. p. 46.

26. Manuela Domingos. op. cit. p. 49.

27. Jorge Carvalho do Nascimento. op. cit. p. 16.

28. Ver a esse respeito: Isabelle Olivero. "Instruction pour tous et savoir utile". in: L'Invention de la

collection. Paris: IMEC/ Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme, 1999, pp. 170-181.

29. Manuela Domingos cita, em seu estudo, os diversos títulos que foram utilizados pelo governo

português tanto no ensino normal quanto no nível elementar de ensino. Ver: Manuela Domingos.

op. cit. p. 51.

30. Manuela Domingos. op. cit. p. 15.

31. Manuela Domingos. op. cit. p. 21.

32. Manuela Domingos. op. cit. p. 22.

33. Prospecto da BPE, citado por Manuela Domingos. op.cit. p. 25.

34. Catálogo de 1884 da Editora David Corazzi, citado por Manuela Domingos. op. cit. p. 64-65.

35. Manuela Domingos. op. cit. p. 91.

36. Aníbal Bragança. "A política editorial de Francisco Alves e a profissionalização do escritor no

Brasil". In: Márcia Abreu (org.) Leitura, História e História da leitura. Campinas: Mercado de Letras,

2000, p. 453.

37. Aníbal Bragança. "Uma introdução à história editorial brasileira". Cultura, 14, 2002, p. 76.

38. Manuela Domingos. op. cit., p. 93.

39. Manuela Domingos. op. cit., p. 34.

RESUMOS

O presente texto refere-se à trajetória de três homens. Eles nasceram na mesma época, mas

viveram cada um em uma cidade distinta. Um morava em Fortaleza, no Ceará, outro em Lisboa e

o terceiro no Rio de Janeiro. O que os unia? Livros. Os três tiveram suas vidas marcadas pela

edição, impressão e comercialização de livros e relacionadas, particularmente, pela publicação de

uma coleção de livros: a Biblioteca do Povo e das Escolas. É dessa coleção e de como ela se associa

à vida desses três homens que este texto trata. É urna história que liga Lisboa, Rio de Janeiro e

Fortaleza e que mostra que ainda há muito a se descobrir e percorrer nos caminhos dos livros no

século XIX.

This paper refers to three men's lifes. They all lived around the same time, but each in a different

city. On of them lived in Fortaleza, capital city of Ceará State, northeastern Brazil. The other one

was from Lisbon, Portugal. The last one was bom in Rio de Janeiro, Brazil. What would link these

men? Books. All three of them had their lives marked by publishing, printing and

commercialization of books, and furthermore, they were deeply related by one specific book

collection: Biblioteca do Povo e das Escolas. It's about this collection and how it associates the

lifes of these three men that this paper is about. It's a story that connects Lisbon, Rio de Janeiro

and Fortaleza showing that there's still a lot to explore and discover about the paths through

which books circulated in the XIX century.

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Page 214: Livro e Iconografia

ÍNDICE

Keywords: Biblioteca do Povo e das Escolas, collections, David Corazzi, Francisco Alves

Palavras-chave: Biblioteca do Povo e das Escolas, coleções, David Corazzi, Francisco Alves

AUTOR

GISELLE MARTINS VENÂNCIO

Doutora em História Social pela Univ. Federal do Rio de Janeiro. Pós-doutoranda na Universidade

Federal de Minas Gerais.

Graduada em História pela Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestre em História

pela Universidade Federal Fluminense e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em

2000/2001, com uma bolsa da Capes, trabalhou com Roger Chartier na École des Hautes Etudes en

Sciences Sociales, em Paris. Actualmente, desenvolve um projecto de pós-doutoramento

intitulado "Ciência para todos: circulação e edição de coleções de divulgação científica no Brasil

(1881-1946)", na Universidade Federal de Minas Gerais.

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« Vejo, agora que estou sonhando »O problema do sonho e da visão em comentários seiscentistas às Trovasde Bandarra

"Vejo, agora que estou sonhando": The problem of dreaming and seeing in the

17th Century commentaries of Bandarra's Trovas

Luís Filipe Silvério Lima

NOTA DO AUTOR

Uma primeira versão deste texto foi apresentada no Centro de História da Cultura, da

Universidade Nova de Lisboa, em 12 de dezembro de 2003, quando realizava estágio

doutoral no Centro de História da Cultura, sob patrocínio da Cátedra Jaime Cortesão/

Instituto Camões. Desenvolvida, tornou-se parte da tese de doutorado, Império dos

sonhos. Narrativas proféticas, sebastianismo, messianismo brigantino, defendida na

Universidade de São Paulo, em setembro de 2005. O resultado apresentado aqui deve em

grande parte aos comentários e críticas feitas naquela ocasião no Centro de História da

Cultura, em especial, a: João Francisco Marques, José Esteves Pereira, João Luís Lisboa,

António Camões Gouveia, bem como a Ana Paula Megiani, Iris Kantor, Vera Lucia

Amaral Ferlini, e aos colegas Evandro Domingues, Patrícia Valim e Luciana

Gandelmann. Gostaria de agradecer, em particular, a Tiago C. P. dos Reis Miranda, não

só por ter orientado a pesquisa quando da minha estada em Portugal, mas por toda a

dedicação e amizade com que tem lido e discutido minhas idéias e acompanhado meu

trabalho. Esta pesquisa contou também com o apoio da Fapesp.

como que em sonhos lhe,forão feitas as visoens.

D. João de Castro, Da quinta e última monarquia

futura.

É com a proximidade das diferenças e a semelhança das distâncias entre ver e sonhar

que começa o "Sonho primeiro" das Trovas de Bandarra:

Veio veio, direi veioAgora que estou sonhando,

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Semente del Rey Fernando Fazer um grande despeio,E seguir com graõ deseio, E deixar a sua uinha,E diser, esta caza he minha Agora, que cá me ueio.

Nessas quadras, que "deram lugar aos comentários mais diversos",1 estão presentes dois

elementos que foram amplamente discutidos no XVII e XVIII: o lugar das Trovas entre

sonho, visão e profecia; e o sujeito desses sonhos. Mais do que isso, em torno das Trovas

e do seu autor, Bandarra, configurou-se uma narrativa desde o XVII, mais ou menos

comum aos seus diversos comentadores. As Trovas teriam sido escritas por volta de 1540

por Gonçalo Annes Bandarra, sapateiro da Vila de Trancoso. Oficial pobre e simples,

sem instrução, iletrado ou mesmo analfabeto, "idiota sem saber ler nem escrever";2

enfim, um rústico que ao cantar seus versos reunia à sua volta as mais diversas pessoas.3 Segundo seus exaltadores, como simples, o conhecimento de Bandarra da matéria

sagrada só poderia advir de uma graça divina, pela intercessão do Espírito Santo, que o

tinha, portanto e sem margem de dúvida, iluminado com o dom da Profecia por meio de

seus sonhos. Segundo Vieira:

se esta graça da interpretação das escrituras em qualquer outro homem seriaverdadeiro espírito de profecia, quanto mais em Bandarra, um homem tão idiotaque não sabia ler nem escrever, e muito menos a língua latina, e as outras em queestão escritos os Profetas e seus verdadeiros sentidos, que verdadeiramente se estávendo não podia ser senão com luz sobrenatural, e divina.4

Para seus detratores, pelo contrário, usou de artifícios e do conhecimento de outras

profecias para compor as suas,5 e seus sonhos, menos do que visões, foram imaginados e

impressos, com vivacidade, em uma alma simples, e por isso mesmo impressionável.

Alguns destacavam a repercussão que seus vaticínios tiveram, tanto pela repetição oral

de seus versos quanto pela proliferação de cópias manuscritas, invariavelmente

comentadas como corruptas e precisando ser corrigidas ou emendadas. Sinal dessa

circulação, decorar as Trovas teria sido um meio de ensinar às crianças as primeiras

letras.6 Independente da fidedignidade do retrato para com o retratado, que, a se fiar no

processo inquisitorial de 1541, sofreu de algum exagero nas cores e proporções,7

importa neste momento perceber a figura construída ao longo do seiscentos – em

especial, a panegírica. Um profeta rústico inspirado divinamente, enquanto dormia, que

contava ou cantava seus sonhos, oralmente, em forma de trova, para uma vasta e

diversa audiência, acreditado pelo povo e pelos cristãos-novos, mas também por

fidalgos e eclesiásticos, que o consultavam em assuntos graves.8 Esses últimos, junto aos

cristãos-novos, responsáveis pelas primeiras cópias manuscritas que depois se

multiplicaram e espalharam a verdade da profecia por todos os espaços do reino, da

conquista e fora deles,9 em conjunto à memorização dos versos e sua recitação,

atingindo assim tanto os letrados quanto os idiotas.

Os testemunhos manuscritos variavam entre si, e nessas variações permitiam diferentes

leituras e interpretações. Mesmo após o estabelecimento da primeira versão impressa,

mas incompleta, pela Paraphrase et Concordancia de D. João de Castro, em Paris (1603), ou

da primeira edição completa, levada à estampa durante a Restauração (1644), mas ainda

em tipografia fora de Portugal, também francesa, agora em Nantes. Tanto Castro

quanto o editor das Trovas de 1644 preocuparam-se em advertir o leitor da diversidade

entre os manuscritos e em afirmar que a sua versão era a mais fiel aos vaticínios

originais e que, por conseqüência, sua interpretação era a mais acurada.10 O exemplo

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mais conhecido é o do D. Foão, "alguém", "qualquer pessoa", na edição de Castro, e que

foi supostamente corrigido, pois se confundira I com F, em 1644, para D. João, evidência

clara de que o Encoberto seria o rei brigantino recém-entronado.11

Saya, Saya, esse Infante

Bem andante,

O seu nome he Dom I0AM

Tire, leue o pendaõ

E o guiaõ,

Poderoso, e triunfante.

(edição de 1644)

Algo parecido, ainda que sem a disputa filológica, ocorreu com as leituras daquelas duas

quadras, em especial, da primeira, que iniciam o "Sonho" de abertura das Trovas. A

repetição dos "vejo" e, menos evidente, dos "agora", a presença afirmativa (em algumas

versões, interrogativa) do "direi", a declaração de estar "sonhando" eram chaves

essenciais para definir corretamente qual era o "despejo", a "casa" e a "semente de D.

Fernando". Além disso, eram lugares recorrentes no restante das Trovas, e, por essas

repetições, entendidas nas exegeses como sinais da sua matéria profética.12 Enfim,

partindo da exegese seiscentista e tentando traçar os debates e as disputas entre as

diferentes interpretações das duas quadras, os "sonhos", os "vejo", os "agora", os

"direi" permitem perceber as apropriações e usos dos sonhos de Bandarra ao longo do

século XVII. As duas quadras iniciais urdiram o artigo, cozendo de maneira quase

cronológica os diferentes comentários de autores, anônimos ou não, das trovas do

sapateiro; ao fim, foram amarradas pelo fio dos debates em torno das leituras do jesuíta

Antonio Vieira.

Variações sobre um mesmo mote Comentário de Covarrubias

O primeiro comentário identificado sobre as duas quadras iniciais foi feito no Tratado de

la verdadeira y falsa prophecia, impresso em 1588, em Segóvia. Escrito pelo arcediago de

Segóvia, Juan de Orozco y Covarrubias, o Tratado se pretendia como compêndio que

resumia, na primeira parte, a teoria sobre visões proféticas, e descrevia, na segunda,

todas as formas de adivinhação, diferenciando-as das visões verdadeiras, como no

capítulo "De la interpretacion de los sueños y diferencia dellos", que distancia o sonho

profético da arte perigosa de prever pelos sonhos. Para além de um tratado, foi pensado

também como um manual, escrito em vernáculo, tanto para o rebanho cristão como

para seus pastores eclesiásticos, para ajudar no discernimento entre a visão verdadeira

e falsa, e divulgar com clareza aquilo que havia sido dito com obscuridade. Sua fonte de

inspiração era o concílio de Trento. Uma das preocupações centrais era advertir o fiel

da facilidade de ser enganado pela aparência de substância de algumas previsões

mentirosas, e dar instrumentos – acessíveis e fáceis – para essa posição de alerta e

constante vigilância.

No capítulo 24 da primeira parte, intitulado ilustrativamente de "Que el demonio en los

oraculos, o en su prophetas falsos puede acertar en algumas cosas que estan por venir",

discorreu sobre as formas pelas quais, por observação, dedução ou inteligência das

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Page 218: Livro e Iconografia

coisas, mesmo as sobrenaturais, o diabo e seus falsos profetas, como os adivinhos,

enganavam as pessoas, fingindo possuir espírito profético. Um dos meios era dizer, de

outro modo, coisas previstas em antigas profecias verdadeiras. O caso com o qual ele

exemplifica é o "de vn çapatero en Portugal que fue tenido por propheta" que havia

lido "alguns prophecias, como las de san Isidoro", e, a partir disso, previsto – não por

verdadeiro espírito profético, mas por tradução de outros vaticínios – coisas que, de

fato, ocorreram. Entre elas, Covarrubias notou uma passagem em particular na qual ele

identificava "el auer dejuntarse aquel Reyno de Portugal con el nuestro cõ harta

particularidad".13 Em nota à margem, ele explica quem é o sapateiro e traduz para o

castelhano os versos:

Este çapatero de Portugal fue, en Trancoso, dicho Bandarra, y aura este ano de 88,quarenta y seys que murio, y dixo assi en sus trobas.Vejo vejo do Rey vejo, vejo o estoy soñando simiente do Rey Fernãdo fazer vn fortedespejo, e seguir gran desejo.dexar a ca sua viñae dezierta casa a mina.en que agora acame sejo.14

Na tradução de Covarrubias, o sapateiro está incerto se sonha ou se vê: "vejo o estoy

soñando". Não diz os seus sonhos que vê – "vejo vejo, direi vejo" na edição de 1644 –,

somente vê a semente "do Rey", sem saber ao certo se é sonho delirante ou visão

verdadeira aquilo que vê. Problema do testemunho ou da tradução, não deixa de ser

curioso notar nessa versão que o trovador fica em dúvida se de fato teve uma visão

verdadeira ou se simplesmente são imagens de um sonho. Indefinição que, como o

tratadista expôs no capítulo dedicado aos sonhos, era um indício considerável de que

não tinha havido inspiração divina. Ainda que o arcediago duvidasse ser Bandarra

"verdadeiro profeta" – como afirmará Vieira depois –, suas trovas predisseram

corretamente a união das coroas, porque se basearam em profecias verdadeiras, como

as atribuídas a Santo Isidoro. A descrição de Bandarra, leitor dos vaticínios de Santo

Isidoro, transferia a autoridade da vila de Trancoso para Sevilha. De um sapateiro

português para um santo padre "castelhano".

A Santo Isidoro foram ligadas, apocrifamente, uma série de previsões, em parte depois

organizadas e divulgadas em verso pelo cartuxo castelhano Pedro Frias, quando do

casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Tais anúncios se configuraram

como uma das fontes principais da idéia de Encoberto. Nessa linhagem de visões, de

predominância castelhana-espanhola, Bandarra, ao invés de arauto da separação das

coroas e da supremacia portuguesa, era entendido pelo arcediago espanhol como

tradutor do anúncio da junção dos reinos.

Após a Restauração e separação de Castela, com o Duque de Bragança no trono, saiu em

Lisboa o Restauração de Portugal Prodigiosa, em 1643, um extenso arrolar de sinais,

profecias, visões, vaticínios, prodígios, como o Milagre de Ourique, os sonhos de Esdras,

as visões do Ermitão de Monserrate, e as "vulgarmente chamadas 'profecias' de Gonçalo

Anes Bandarra" que tratavam da "aclamação de El-Rei nosso Senhor".15 O suposto autor

Gregório de Almeida, pseudônimo provável do jesuíta João de Vasconcelos, procurou

desfazer a leitura das Trovas dos "apaixonados do Sereníssimo Rei. D. Sebastião", que

viam o Encoberto como o rei desaparecido em Alcácer-Quibir, e mostrar que D. João IV

era o Infante previsto nos versos do sapateiro de Trancoso. No caso do mote do

presente texto, foi além do combate aos sebastianistas, e começou o seu capítulo 24, "De

outros lugares, em que Gonçalo Anes Bandarra falou do ano de 1640 e dos sucessos de

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Page 219: Livro e Iconografia

1641", refutando a leitura de Orozco y Covarrubias. Transcreve-a quase integralmente,

para concluir que os sucessos e o tempo são os melhores intérpretes das profecias:

De crer é que, se êste autor [Orozco y Covarrubias] escrevera nêstes tempos, assimcomo entendeu êstes versos da sujeição de Portugal a El-Rei D. Filipe o Prudente,por a ver executada, entendera mais facilmente, os que alegamos das felicidadespresentes da aclamação de El-Rei nosso Senhor D. João, pois dêle fala [Bandarra]com tanta clareza e particularidade, como temos visto.16

A menção a Covarrubias, citado como D. João de Horosco, não foi feita somente para

corrigir sua interpretação e mostrar, em reverso, com que propriedade se poderia ligar

os versos do sapateiro aos acontecimentos de 1640 e 1641. Menos ainda para discutir

sua versão das quadras para o espanhol, pois o jesuíta Vasconcelos (re)traduziu-a para o

português, sem confrontá-la com outros "translados, mui autênticos e antigos, destas

obras de Bandarra", como fez no caso da passagem do Foão para João.17 Ao trazer à baila

Covarrubias, mostrava que "A fama do nosso Bandarra não se limitou a Portugal,

também se estendeu aos Castelhanos"18 e desse modo conferia autoridade e

reconhecimento às profecias de Bandarra. Não mencionava o contexto no qual

Covarrubias inseria as Trovas, exemplo de como se pode prever o futuro sem ter a graça

do conhecimento profético, e revertia o efeito construído pelo arcediago de Sevilha, no

qual Bandarra se limitava a glosador de Santo Isidoro. Bandarra era, para os fins

encomiásticos do Restauração de Portugal Prodigiosa, reconhecido como profeta mesmo

pelos Castelhanos, apesar de, por não repararem bem nos tempos, terem errado a

interpretação das Trovas.

No Livro Anteprimeiro da História do Futuro, déc. 1660, padre Antonio Vieira escreveu que,

pelo contrário, a leitura de Covarrubias estava certa. Tanto ressaltando o caso da

filiação das quadras às profecias de Santo Isidoro, quanto reafirmando a exegese feita

pelo arcediago. Partindo do mesmo mote que seu confrade João de Vasconcelos de que

não eram "novas e desconhecidas em Castela as profecias ou esperanças de Portugal",

Vieira introduz os comentários de Covarrubias, transcrevendo-os também quase

integralmente no capítulo VIII, ao tratar das utilidades da História do Futuro para os

inimigos; entre elas, mostrar a origem, razão e efeito das profecias. O reparo que fez à

leitura do arcediago, com ironia, foi quanto à tradução dos versos: "não muito limadas".

Apesar da ressalva, Vieira completou afirmando que "a explicação [de Covarrubias dos

versos] é muito própria, muito acomodada e muito bem deduzida", pois sendo o começo

da primeira trova é "muito conveniente à ordem dos mesmos sucessos começar (...) pela

sujeição do mesmo Reino a Castela e pela entrada dos reis castelhanos em Portugal". Ao

iniciar pela sujeição, as trovas seguiam a ordem dos acontecimentos para anunciar o

evento principal, a matéria das próprias trovas: a Restauração. Abrir com a "entrada

dos reis castelhanos" era anunciar a saída desses mesmos reis. Vieira referendou a

interpretação castelhana das trovas, aceitou a junção dos reinos como algo profetizado,

para, engenhosamente, realçar tanto o absurdo da tomada do reino por Filipe II quanto

a força da Restauração portuguesa.

Quanto à autoria, ao invés de desdizer Covarrubias, o jesuíta afirmou que se fossem de

Santo Isidoro e não de Bandarra, "tanto melhor, porque temos mais qualificado autor e

mais autorizado profeta".19 Para o Santo Ofício dar a licença, em 1709, à impressão do

Livro anteprimeiro em 1718, as menções ao sapateiro foram cortadas, inclusive esta,

porém, não a menção às trovas nem às suas profecias, ficando o trecho assim: "E se o

verdadeiro profeta e primeiro autor desta profecia é Santo Isidoro, e não outro,20 tanto

melhor, porque temos mais qualificado autor e mais autorizado profeta". Embora

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proibidas as Trovas – pela terceira vez – em 1665, bastava retirar o nome de Bandarra.

Mesmo porque Vieira, a partir dessa indicação de autoria anterior e mais qualificada,

passou a tratar os versos como sendo de Santo Isidoro, e não mais de Bandarra.

Tendo transformado a desqualificação de Bandarra por Covarrubias em justamente

naquilo que qualificava e autorizava os versos como profecia, perguntou enfim o que

queria dizer Santo Isidoro com o despejo. Assumindo serem os versos originalmente em

"bom castelhano", pois do bispo de Sevilha, e abdicando de lê-los como tradução, leu

despejo como "desverguenza" – ausência de pudor – do rei espanhol, Filipe II, que se

chamava de Católico, em retirar de modo "forte", pelas armas, o trono a quem era de

direito, a Duquesa de Bragança. Diante de "uma tal ação", tão imprópria para um rei

católico, Santo Isidoro, na interpretação do pregador, teria dúvidas sobre sua própria

visão, se a via com espírito profético. Então se pergunta "se era visão ou sonho: Vejo,

vejo, do rei vejo, vejo, ou estou sonhando?". O sonho, nesse caso, apareceu como contrário

de visão, e precisava por isso ser definido e distinguido o que eram imagens produzidas

por uma inspiração verdadeira e o que eram imagens produzidas pelas atividades

anímicas noturnas. Vieira resolveu a dúvida do santo bispo: não era fruto noturno da

imaginação, pois "o efeito mostrou que não era sonho, senão visão verdadeira, posto

que visão de um caso tão dificultoso de crer". E Vieira rematou, ao desvelar, com

engenho, o sentido duplo de despejar,21 que na atitude desenvergonhada de Filipe II

estava contida a expulsão vergonhosa de seus descendentes: "E pois o meterem se os

Castelhanos em Portugal foi despejo, razão foi também que os fizessem despejar." Do

mesmo modo, por considerarem a primeira parte do despejo, da profecia verdadeira,

"os Horozcos e Covarruvias castelhanos" deveriam considerar a segunda, pois estava

também prevista nas trovas. Por validar a interpretação de Covarrubias, Vieira

validaria a sua – ambas leituras de uma verdadeira profecia – e obrigaria aos inimigos,

os castelhanos, a crerem na sua História do Futuro.

Ao se basear no que seriam as profecias de Santo Isidoro glosadas por Bandarra, Vieira

distinguiu sonho de visão e afirmou que as "profecias e esperanças de Portugal" foram

vistas e não sonhadas. Por caminhos diferentes, chegou a um resultado similar na sua

defesa do processo inquisitorial ao afirmar justamente que o sonho era visão

verdadeira. O caminho optado por Vieira como réu do Santo Ofício retomava, não

explicitamente, o trilhado pelo primeiro comentário mais completo feito às trovas, a

Paraphrase et Concordancia (1603), do "apaixonado do [...] D. Sebastião", D. João de

Castro.

Vejo e sonho

Escrita durante o reinado de Filipe II de Portugal, no exílio de D. João de Castro em

Paris, a Paraphrase et concordancia de algvas propheçias de Bandarra, çapateiro de Trancoso

foi uma das poucas obras suas impressas, entre os 22 tomos que deixou manuscritos,

compostos contra a dinastia filipina, em defesa da causa sebastianista e para a

construção da Quinta Monarquia lusitana.22 Na Paraphrase, Castro buscava, na leitura

exegética das "propheçias de Bandarra", mostrar que era D. Sebastião a semente de D.

Fernando, e que ele voltaria e reassumiria o trono português, e expulsaria os infiéis

castelhanos de seus reinos. Na sua versão das quadras, mais próxima da edição

posterior de 1644 do que da tradução de Covarrubias, o sonho vira uma afirmação,

embora a interrogação permaneça em outro lugar – no dizer:

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Vejo: vejo: direi? Veio,/ Veio que estou sonhando Semente del Rey Fernando Fazer hum grande despejoE seguir com gram deseio, E deixar a sua uinha:E dizer: Esta Casa he minha, Agora que ca me sejo.23

O comentário aos versos se iniciava afirmando que as visões de Bandarra foram

chamadas "cõmumente o seu sonho". No tratado manuscrito "Da Quinta & ultima

monarchia futura", escrito pela mesma época (1597-1606), Castro afirmara que o

próprio Bandarra chamou as suas trovas de sonho, pois: "sellando elle tudo quanto

disse & remetendo suas trouas com as nomear por prophecias. & intitulando as de

sonho, como que em sonhos lhe forão feitas as visoens."24 A opção por chamar de sonhos

era, portanto, uma escolha de figuras adequadas às suas trovas:

Porque não tem palaura que sobeja nem fora de seu lugar, ou consoante que se sinta:sendo muy faceis & correntes de muy excellente linguagem muy cortesa dita;ornada de mil figuras da eloquencia: de modo que em semelhante sogeito & metroso o Espirito que por elle as faz & não outrem as podera quando quizer fazer.25

Na Paraphrase, complementou a nomeação por sonhos, retomando a classificação

agostiniana das visões.26 Explicou que Deus por "tres maneiras costume descobrir seus

segredos & fazer suas visoens aos homens: conuem a saber por sinais visiueis: em

sonhos: & no entendimento". E que, por causa dessa distinção:

Bandarra (...) mostra como lhe forã estas visoens de Deos, feytas em sonhos: dasquaes porque ninguem duuide, affirma quatro vezes que as ve, pera mostrar acerteza dellas, & que he Propheta, a que antigamente chamauam Vidente.27

Visão e profecia eram sinônimos, e o sonho, uma de suas manifestações; porém,

precisava ser distinguido das imagens noturnas comuns. Por isso, "affirma quatro vezes

que as ve, pera mostrar a certeza dellas, & que he Profeta".

Repetir o "vejo" servia para afirmar ser o sonho verdadeiro, mas, também, para

responder à pergunta: "direi?" (ao invés do "do rei", na versão de Covarrubias). Recorre

a tópica do espanto, que foi evocada mais tarde por Vieira, pois Bandarra "nota a

grandeza das coisas & a incredulidade que auia de auer dellas", e por isso fica na dúvida

se diz o que viu – resolvendo o impasse ao reiterar o "vejo". Ainda os quatros "vejo"

possuíam um significado numérico, pois o número quatro ("Quaternario") era repleto

de mistério.28 Era a soma de um "Deus Trino & vno", e, na economia dos sonhos

proféticos, Castro insinuava que chegava a termo o tempo das quatro monarquias,

substituídas pela última e quinta, capitaneada por D. Sebastião, "que ha de fazer grande

Conquista" e fará guerra "contra os immigos de Christo". Essa conquista era profetizada

no "gram despejo".

Castro deu o sentido duplo da palavra despejo e as interpretações que decorrem dos

"diuersos sentidos" que existem na língua portuguesa – e não só em bom castelhano,

como quis depois Vieira no Livro Anteprimeiro.29 Enquanto desenvoltura ou,

negativamente, falta de vergonha, pelo que, erroneamente, queriam alguns significar a

entrada e tomada do reino de Portugal por Filipe II. E, o sentido correto, segundo o

comentarista, enquanto verbo despejar ("despejaram os paços, casas, çidades"), que

anunciaria que D. Sebastião desapossará os infiéis de seus reinos.30

Vieira não fez referências a D. João de Castro ou a seus escritos, mas muitos argumentos

eram comuns e até o método exegético, semelhante – ainda que para chegar, muitas

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vezes, a conclusões diferentes, como no caso do despejo. Não é possível afirmar se

Vieira leu ou teve contato com a obra do sebastianista ou de seus seguidores, como

Sebastião de Paiva, mas as aproximações permitem, pelo menos, pensar um substrato

comum de leituras e discussões, para além daquelas relativas às profecias e vaticínios

do Encoberto. Os lugares referentes ao sonho, à profecia, e, mais interessantemente,

sua aplicação na leitura das Trovas geraram formulações parecidas na demonstração de

dois projetos para o reino Português. Um dos casos foi a justificativa do sonho como

visão, uma tópica recorrente tanto na Paráfrase quanto nos textos produzidos por Vieira

durante o processo inquisitorial.

Vieira, na condição de processado pelo Santo Ofício, durante a década de 1660, escreveu

a Apologia e a Defesa para responder às perguntas e esclarecer aos inquisidores as bases

do seu projeto do Quinto Império e de sua interpretação de Bandarra na carta

"Esperanças de Portugal Quinto Império do Mundo Primeira e Segunda Vida del-Rei D.

João o Quarto Escritas por Gonçaleannes Bandarra". Nessa carta, escrita em 1659, no

Maranhão, "em uma canoa que vou navegando no rio das Almazonas",31 para o Bispo do

Japão, confessor da rainha recém viúva, Vieira afirmava que D. João IV iria ressuscitar

para ser a cabeça temporal do último Império na terra partindo do pressuposto que

Bandarra era verdadeiro profeta.

Enquanto em 1643 era autorizado legitimar a Restauração de Portugal prodigiosa a partir

dos versos do sapateiro; nos anos de 1660, com a aclamação do depois qualificado

inepto D. Afonso VI, a saída da regente-mãe e o afastamento dos joanistas da corte, não

era mais. Muito menos supor a ressurreição de um rei, o advento de um reino de Cristo

terreno ou assumir que os versos do sapateiro eram profecias absolutas – assuntos que,

na percepção do Santo Ofício, sabiam a heréticos e judaizantes. Ainda mais se

proferidas ou escritas por um jesuíta que antes atacara os procedimentos inquisitoriais

e o confisco dos bens dos réus cristãos-novos pelo tribunal, e defendera relações

comerciais entre a coroa de Portugal e os judeus. Se antes Vieira estava protegido pelas

suas relações com a corte e com o casal real, e apoiado na veneração ao Bandarra como

profeta da Restauração, a mudança da coroa (e do grupo em torno dela, centrado agora

no valido Castelo-Melhor) e o fortalecimento da Inquisição, solapavam seus alicerces de

segurança – prejudicados ainda pela fracassada missão no Estado do Maranhão. As

desconfianças quanto às suas proposições, somadas a denúncias diversas colhidas desde

1649 e mesmo a censura a alguns de seus sermões foram mais que suficientes para se

instaurar o processo em 1660. Tendo como peça justificadora as "Esperanças de

Portugal", foi finalmente chamado a depor a partir de 1663 para explicar sua crença nas

Trovas e no Quinto Império.32

Assumidas as Trovas como falsas e errôneas, os inquisidores questionaram Vieira: "Que

maior razão, ou motivo tem ele declarante, ou teve, para não crer antes, que Bandarra

fingia, ou sonhava, como ele às vezes diz, as ditas visões, ou que as coisas de que nelas

tratava (...) as via, e eram verdadeiras Profecias."33

A pergunta do tribunal, feita no 22º exame, em 1667, provavelmente foi motivada pela

própria Defesa escrita por Vieira em duas "Representações", entregues em 1666, e pelos

rascunhos da Apologia, confiscada em 1665. Em ambos, o jesuíta se reportou ao

problema ao refutar as proposições contra a veracidade das profecias de Bandarra –

proposições que foram depois usadas pelo inquisidor Alexandre da Silva para

interrogar Vieira.34 Na Apologia, a "dúvida e o argumento contrários" levantados às suas

proposições, muito similares à indagação posterior da mesa inquisitorial, viram-se

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descritos como: "as coisas que se escrevem no livro de Bandarra não foram revelações,

senão sonhos, como ele [Bandarra] mesmo lhe [o livro] chama em tantos lugares, e

assim intitula quase todas as partes do dito livro: logo não são profecias".

A essa dúvida, Vieira respondeu afirmando que:

Bandarra chama suas trovas de profecia, inclusive antes de chamá-las de sonho, portanto

eram sonho e profecia;

uma das formas de Deus comunicar seus desígnios é pelos sonhos, inclusive uma das

melhores, pois apareceu mais aos velhos e sábios (Nm), e, para tanto, Vieira arrolou

exemplos bíblicos e citou as definições das Etimologias de Santo Isidoro;

e o sapateiro, ao dizer, em alguns passos, que via e, em outros, que sonhava, quis mostrar

que Deus revelou "as coisas futuras (...) de ambos estes modos (...) a Bandarra".

Por isso, teria dado o "princípio às suas profecias, começando na primeira trova delas:

'vejo, vejo, direi vejo agora que estou sonhando'." O "direi", seguindo a edição de 1644, longe

de uma interrogação, como na versão de Castro, era uma asserção de que viu e sonhou;

desse modo, Bandarra "em muitos lugares diz que sonhava, que são os sonhos, assim

também em outros muitos diz que via, que são as visões". Somado ao fato de afirmar, de

dizer, a repetição dos "vejo", mais adiante, foi advogada como demonstração de que

Bandarra tinha conhecimento do que presenciava, e via "por conhecimento claro", e

não "por instinto escuro", o que indicava ser sua visão de qualidade superior, pois

recebia de modo direto, pela graça, o dom do conhecimento das coisas futuras. 35 Mais

para frente, ao refutar que as Trovas poderiam ter sido escritas sem espírito profético,

Vieira afirmou que Bandarra usou "o mesmo estilo" dos profetas canônicos de

explicitarem suas profecias ao intitulá-las de visões, "chamando Sonhos a cada um dos

livros em que repartiu as suas obras, que foi o mesmo que chamar-lhe visões". Isso

porque "em frase profética a palavra Sonho é sinónimo de visão, ou revelação de

Deus."

Na "Primeira representação", ao dispor os termos da sua Defesa, substituiu os

"argumentos contrários" por "objeções", detalhando mais as questões e as respostas,

mas mantendo as matérias tanto das dúvidas, quanto das refutações. A argumentação

era, de modo geral, a mesma, somente a demonstração dos princípios estava estendida,

em parte, pelo aumento de exemplos e de autoridades. A objeção era:

Bandarra chamou Sonhos à sua obra, e em muitas partes dela diz que sonhou o queescrevia: logo, não teve próprio e verdadeiro conhecimento do que predisse, como onão temos das cousas que sonhamos.36

Ao que Vieira na sua Defesa respondeu:

que é certo e de fé haver sonhos proféticos e serem os ditos sonhos verdadeira erigorosa profecia. (...) Um dos modos com que Deus fala aos seus verdadeirosprofetas é em sonhos: (...) abaixo das visões e ilustrações meramente intelectuais, asde mais perfeito conhecimento são as que Deus (...) costuma comunicar em sonhos.37

E arrematou o argumento, citando a mesma passagem e o mesmo mote:

Assi que bem podia ser mostrado em sonhos a Bandarra o que escreveu, e ele ver econhecer e distinguir, e entender muito claramente o que se lhe mostrava. E estessão os mesmos termos por onde ele explica o seu modo de sonhar quando começadizendo: Vejo vejo direi vejo agora que estou sonhando semente d'el-ReiFernando fazer um grande despejo etc.38

Importava dizer que não era sonho ordinário, mas também afirmar que era uma

profecia de "imóvel verdade", não condicional. E, novamente, os três "vejo" (um a

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menos que a versão de Castro) e sua repetição ao longo do poema cumpriam um papel

importante:

Veja-se agora o estilo com que escreve Bandarra, e achar-se-á que não só nas cousasque até o presente têm sucedido, senão nas que estão por suceder, e nas principais emaiores delas usa frequentissimamente da palavra vejo, a qual também é a primeirapor onde começa todas as suas predições, repetindo-a três vezes: Vejo vejo direi vejoetc. Donde se segue, com a maior clareza que pode ser, que fala absoluta e nãocondicionalmente.39

Para além disso, o sentido da visão como fonte de certeza foi o que permitiu a Bandarra

dizer suas profecias:

O termo vejo vejo, que tantas vezes repete, é o mais significativo de certeza esegurança; porque de nenhuma verdade estamos naturalmente mais certos eseguros que daquela que vimos com nossos olhos, e ainda mais da queactualmente estamos vendo. E como se actualmente estivera vendo as cousas, assias vai referindo Bandarra, dizendo que já sucede esta, já aquela, não pondo dúvidaem alguma.40

Bandarra, para o inaciano, diz como se "actualmente estivera vendo as cousas", pois o

"hemisfério escuro" do futuro lhe foi revelado no seu presente, o que é uma

característica dos profetas: iluminar o obscuro com a luz do conhecimento, dom

concedido graciosamente por Deus. Como podem ver esse futuro, e para os outros resta

a cegueira, os profetas foram chamados de videntes, tanto por Santo Agostinho quanto

por São Tomás. Na Apologia, o "vejo, vejo" era sinal dessa vidência:

A esta evidência do que lemos, e vemos nos seus versos se acrescenta o testemunhode sua própria confissão (...), em que tão repetidamente se explica pelo termo «vejo,vejo»; e donde se vê, o que se diz por termos claros e não metafóricos não podefaltar inteligência e conhecimento; antes este conhecimento e inteligência é o quese chama vista, como notou Santo Agostinho.Do que tudo, e doutros muitos lugares que se podem ver no mesmo Bandarra, e daasseveração e firmeza com que vai contando os sucessos futuros, e da expressãocom que tão repetidamente diz que os via (que é a razão, como diz São Tomás eSanto Agostinho, porque os Profetas antigos se chamavam videntes), se vêclaramente que Bandarra em todo o seu livro, e não só nas coisas passadas, senãonas que estão ainda por vir, fala pelo mesmo estilo, com os mesmos termos, com amesma certeza, com o mesmo Espírito, e por conseguinte com a mesma verdade.41

Exceto pelo número dos "vejo", o argumento era quase idêntico ao de João de Castro, na

Paraphrase: "affirma quatro vezes que as ve, pera mostrar a certeza dellas, & que he

Propheta, a que antigamente chamauam Vidente".

O profeta é aquele que vê. No caso de Bandarra, além de ver claramente, pelo seu estilo,

ele teria dito que via e o que via, e insistido que seus sonhos eram visões. Tanto para D.

João de Castro quanto para P. Antonio Vieira essa preocupação do sapateiro

evidenciada nas suas Trovas era uma prova da verdade de suas profecias.

Contra as Esperanças

A resposta de Vieira aos inquisidores no 22º exame foi praticamente a mesma que havia

desenvolvido em sua Defesa escrita e nos rascunhos da Apologia. Concedeu algumas

posições, relativizou outras, mas não se afastou dos argumentos, matérias e autoridades

levantadas nos dois escritos.

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Fica a dúvida de até que ponto os escritos vieirenses induziram a inquirição do tribunal,

ou se as objeções e argumentos contrários refutados nos textos representavam uma

dúvida mais geral sobre as Trovas e o projeto do último reino na terra, seja

sebastianista, seja joanista. Vieira poderia ter antecipado com alguma facilidade o

interrogatório, baseando-se tanto nos primeiros exames do processo quanto na postura

de defesa da ortodoxia pelo Santo Ofício. Mais importante, talvez, como ressaltou Adma

Fadul Muhana,42 as duas "Representações" foram pensadas como Defesa escrita das suas

idéias, entregues – ainda que sob protestos do réu – ao tribunal para leitura, qualifica

ção e argüição. Em outras palavras, entre os exames 10 e 27, a matéria principal do

processo não seria mais a carta "Esperanças de Portugal", mas a Defesa e, em parte, a

Apologia.43 Nesse sentido, as perguntas dos inquisidores, com algumas exceções, se

refeririam à qualificação das proposições contidas nos textos, portanto, não iriam

muito além de formular questões que remetessem ao texto.

A estrutura adotada na Defesa indica também uma opção de Vieira em seguir as regras

da tratadística especulativa escolástica. Os papéis de Vieira levantaram e elencaram as

objeções supostas e sabidas, e, seguindo o modelo escolástico, por meio da refutação,

mostravam a verdade defendida.44 Ao optar pela disposição por problema, resposta

contrária, argumento de autoridade e refutação característica da quaestio,45 houve a

repetição no momento do processo de muitas das perguntas feitas por Vieira na sua

Defesa. Sua defesa, portanto, se reduziu, em parte, a repetir oralmente o que havia dito

por escrito de modo mais elaborado e engenhoso, seguindo as preceptivas dos textos de

disputa e sumas.46 Algumas das dúvidas e perguntas quanto ao Bandarra e às Trovas,

descritas por Vieira em seus textos, foram formuladas a partir das afirmações presentes

nas "Esperanças de Portugal",47 mas também poderiam ter saído de outros textos, como

os de D. João de Castro, ou a Restauração de Portugal Prodigioso. Outras, porém, partiram

provavelmente dos primeiros exames do processo; outras ainda, da percepção de Vieira

dos pontos de desconfiança quanto às profecias de Bandarra e às idéias do Quinto

Império. Generalizando a construção de Vieira, as objeções por ele levantadas podem

ser vistas como as possivelmente levantadas por setores da sociedade portuguesa, entre

elas, a Inquisição.

De certo, as perguntas dos inquisidores refletem uma postura recorrente do Santo

Ofício de ceticismo diante dos sonhos, que pode ser vista em diversos processos,48 mas

também condensa as posições contra a crença nas Trovas. O fato de serem sonhos e,

portanto, frutos da imaginação corroborava um entendimento de Bandarra como

rústico, simples, e, por isso, suscetível a delírios e enganos. Em complemento, o sabor

judaizante das Trovas, indicado na volta dos judeus e no reino messiânico na terra, mais

o distúrbio que causavam à paz do reino e da igreja, declarado no edital de proibição de

1665, confirmando uma semente maléfica dos versos heterodoxos. A partir deles, como

está no edital, se montavam "fabricas vans, escandalosas, & totalmente reprouadas".

Fábricas vãs, como eram vãs as façanhas "sonhadas fabulosas", "fantasticas, fingidas,

mentirosas", dos outros poemas heróicos em comparação com os feitos lusíadas.49 Ou

como eram "vãs e mentirosas", segundo o Eclesiástico, as esperanças "para o homem

insensato", como sonhos que "dão asas aos estultos", coragem e ânimo aos

imprudentes.50 Bandarra, como simples, era insensato, imprudente, porque não tinha as

potências do discernimento e da inteligência cultivadas, deixando-se influenciar pela

fantasia dos sonhos – se não os tivesse, ainda por cima, inventado, fingido

intencionalmente. A suspeita de uma ancestralidade judaica ou mesmo a boa recepção

entre os cristãos-novos adicionavam, de chofre, uma mácula de pecado a essa

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predisposição anímica. O que se comprovaria pela alteração em muitos que a leitura de

seus versos ocasionava, podendo resultar em "grandissima pertubação no espiritual, &

temporal".51

O problema da Inquisição era com a veiculação das Trovas e suas interpretações, mas

partia da figura desautorizada de Bandarra. Os versos do sapateiro, independentemente

da versão, seriam sonhos imaginados e tomados como verdadeiros ou fingidos para

serem ditos como verdadeiros. Em qualquer um dos casos, estavam longe de ser

profecia ou visão. A figura de Bandarra, um oficial rude, simples, processado pelo Santo

Ofício, com suspeita de cripto-judaísmo, não condizia com a de um vidente inspirado

por Deus. Faltava-lhe a santidade ou a autoridade para justificar uma iluminação divina

em tempos posteriores à Revelação, momento a partir do qual a época dos profetas do

Antigo Testamento foi encerrada com a boa nova da vinda de Cristo. Além de sua

pessoa, suas proposições lidas e interpretadas por muitos geravam "fábricas vãs" como

seus sonhos. Fábricas que propunham um último reino na terra, crença hetedoroxa,

milenarista e o pior talvez: judaizante. Afirmar, portanto, que Bandarra era verdadeiro

profeta e suas trovas profecias propriamente, como fez Vieira nas "Esperanças de

Portugal", era "temerário".

Partindo do mesmo pressuposto do tribunal do Santo Ofício, de que Bandarra era um

falso profeta, foi produzido um manuscrito anônimo intitulado "Ante-Vieira", que

rebatia as proposições mostradas na carta do jesuíta de 1659 – a carta que iniciou o

processo inquisitorial – para evidenciar, entretanto, que o Encoberto era D. Sebastião e

não D. João IV. Escrito, segundo Basselaar, em 1661, dois anos após a correspondência

de Vieira, teve cópias até o XVIII. Todas deixando claro, desde o longo título, o objetivo

polemista e de refutação do manuscrito: "Ante-Vieira nas Esperanças do Quinto Impé

rio fundadas na primeira e segunda vida de el-Rei Dom João o Quarto, que Deus tem,

acomodadas pelo Padre António Vieira a Gonçalo Anes Bandarra e respondidas por um

Anônimo Curioso – 1661".52 O "Anônimo Curioso", que dominava o discurso teológico,

buscou desmontar o silogismo das "Esperanças de Portugal" nas suas premissas maior e

menor.

Quais as premissas das "Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo", de Vieira?

A maior, "O Bandarra é verdadeiro profeta"; a menor, "O Bandarra profetizou que el-

Rei D. João Quarto há-de obrar muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar

senão ressuscitado". Por conseqüência, Vieira deduziu que: "Logo, el-Rei D. João o

Quarto há-de ressuscitar".53 Entre as coisas que o Restaurador havia de obrar – e por

isso voltaria dos mortos –, estava a conquista de Jerusalém. A conquista da Santa Casa

estaria expressa nos versos iniciais do "Sonho primeiro", não em duas quadras, como

na edição de 1644, mas transcritos em uma oitava única:

Vejo, vejo, direi, vejoagora que estou sonhando semente del-Rei Fernando fazer um grande despejo, e sair com grão desejo,e deixar a sua vinha,e dizer: "Esta casa é minha agora que cá me vejo.54

A semente era D. João IV, "quarto neto del-Rei Fernando". O despejo, nas "Esperanças",

seria o resultado da saída para a conquista da Terra Santa, porque o rei levaria "consigo

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tudo o que nele houver de homens que possam tomar armas", "deixando o Reino

totalmente despejado".

O "Anônimo Curioso" duvidava, contudo, da exegese e das premissas de Vieira.

Primeiro, porque partia do princípio que Bandarra não fora verdadeiro profeta,

estatuto reservado aos profetas bíblicos e concedido, mas não absolutamente, aos

santos canônicos. Mesmo que, como quisera Vieira, pessoas tivessem previsto

acertadamente alguns futuros contingentes, isso não os permitia serem chamados "com

tanta propriedade, como o Padre quer, profetas verdadeiros", pois "temos profetas

falsos que disseram futuros verdadeiros, e também profetas verdadeiros e aprovados

por Deus, que anunciaram cousas vindouras não cumpridas".55 Segundo, porque, ainda

que aceitando ter Bandarra predito com verdade, seria muito mais fácil voltar um rei

ausente e, possivelmente, vivo, D. Sebastião, do que ressuscitar um morto, D. João IV.

Por fim, a leitura de Vieira das Trovas poderia estar equivocada, porque ele mesmo teria

admitido nas "Esperanças de Portugal" que muitos duvidavam da sua interpretação.

Portanto, "a sua explicação [de Vieira] não é mais que sua, e às mesmas trovas dão

outros outras mui diferentes e que parece vêm nascendo delas".

Tantas leituras diferentes e discordantes não só atenuariam a força dos argumentos de

Vieira, mas a própria substância profética dos sonhos do sapateiro. Isso ficaria evidente

nos comentários à trova iniciada pelo "Vejo, vejo, direi vejo".

O "Anônimo Curioso", ao transcrever os versos em oitava, como nas "Esperanças de

Portugal", sem confrontá-los com outras lições que possuía, resumiu a leitura de Vieira,

"comentador de el-Rei, que Deus tem", sobre a conquista da Terra Santa por D. João IV

(semente e quarto neto "de el-rei Fernando") e reino despejado com a saída de todos.

Em seguida, contudo, afirmou que outros "dizem que isto se entende de el-Rei Filipe

Terceiro de Castela, na expulsão que fez dos Mouriscos de Granada" o qual era "também

semente de el-Rei Fernando e mais chegado a ele que el-Rei D. João, pois era seu

terceiro neto". E, por fim, encerrou mostrando que a explicação de Vieira "também se

poder apropriar a el-Rei Dom Sebastião, por terceiro neto do mesmo Rei Fernando o

Católico".56 Mesmo que concordasse, enfim, com Vieira sobre o significado do "despejo"

e da "casa", o autor do "Ante-Vieira" duvidava da conclusão do "comentador de el-Rei",

pois outros poderiam, de modo mais acomodado, ser a "semente" – em especial, D.

Sebastião, que quisera conquistar a Terra Santa. Além do mais, outras profecias, mais

acertadas e autorizadas que as de Bandarra, como de Santo Isidoro, Abade Joaquim e P.

José de Anchieta, indicavam que o rei Encoberto estava vivo, não morto, e que D.

Sebastião não perecera na batalha de Alcácer Quibir. Nunca se assumindo propriamente

como sebastianista, pelo contrário, se referindo aos "sebastianistas" na terceira pessoa,57 arrolou, após refutar passo a passo a leitura de Vieira, vaticínios e visões para

mostrar que quem iria voltar seria D. Sebastião e que as trovas de Bandarra eram

imprecisas e incompletas.

Talvez por uma precaução para com o Santo Ofício, ainda que o texto fosse anônimo,

ou, mais verossimilmente, por familiaridade com a ortodoxia romana e os

procedimentos inquisitoriais, alguns termos e o estilo do "Ante-Vieira" se aproximaram

em muitos pontos do processo contra o jesuíta. Nessa direção, talvez possa se explicar a

opção por se referenciar aos sebastianistas e não se assumir como um, e a escolha por

não só negar a leitura de Vieira mas também duvidar da iluminação de Bandarra e

presciência nas Trovas.

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Em tom por vezes mais jocoso, menos rígido na argumentação que o "Ante-Vieira",

circulou outro papel também anônimo e manuscrito que refutava as "Esperanças de

Portugal". A data indicada por Besselaar para a redação desse texto é a mesma que a do

escrito pelo "Anônimo Curioso", 1661, e, se for possível se fiar no manuscrito, foi

produzido no recôncavo baiano: "indo em uma canoa, não navegando o grande rio do

Amazonas, mas um dos muitos que cortam e retalham este Recôncavo da Baía". Apesar

da modéstia afetada expressa na anteposição do "grande rio" amazônico, portanto

singular, porque único, versus "um dos muitos" rios baianos, portanto vulgar, porque

múltiplo e ordinário, dissimulou um mesmo estado do que o de Vieira, que escrevera

"Esperanças de Portugal", supostamente, navegando em uma canoa no Amazonas, no

Estado do Maranhão e, num desfecho irônico, justificou a contraposição entre canoas e

rios, afirmando que: "a cunha melhor há-de ser do mesmo pau", ou seja, para refutar

Vieira, usou do mesmo material.

Na forma de uma resposta encomendada à carta de Vieira, o título variou conforme os

diferentes testemunhos:58

"Opinião contrária à da Ressureyção delRey Dom João IV";59

"Papel que se fes na Bahia contra outro, que no Maranhão fes o Padre Antonio Vieyra, em

que mostrava que El Rey Dom João 4º havia ressuscitar, colhendo esta concequencia das

Trovas de Gonçaleannes Bandarra, mas este Author incognito as aplica a El Rey Dom

Sebastião";60

"Satisfação apologetica contra a idea mais politica do Salamão. Da Ley da Graça Credito da

Nação Luzitana o Pe. Antonio Vieira Sobre o Vatecinio da ressureição Del Rey D. João o 4º.

Mostrace com evidencia ser outro o Lusitano Encuberto ou Portugues Ridivivo que Hade

illustrar este Reyno, quando o premitir o alvedrio divº. pª. dezempº. do profetizado. anº. de

1723".61

Sob esse último e longo título, o papel foi copiado num volume de "papeis duvidozos"

de Vieira, como, por exemplo, uma carta dirigida aos "Amantes do Encuberto" que

atualizava as profecias e comentários para o ano de 1723.62 Na carta, a pessoa de D.

Afonso VI foi substituída por D. João V, enquanto rei português que ajudaria D.

Sebastião a realizar a Quinta Monarquia.

Mesmo que concluísse ser Sebastião o último e quinto monarca da Terra, o autor

também não se assumia como sebastianista. Mais explicitamente do que o "Anônimo

Curioso" do "Ante-Vieira", se escusava de acreditar no que o vulgo chamava profecias,

das quais nunca fez "mais caso que como das histórias de varinha de condão e três

cidras de amor".63 Sendo Vieira, porém, "um varão tão religioso e tão douto, que a nossa

idade venera como portento", resolveu ler "o Bandarra e outros que cita". Feita a

ressalva, concede, porque "lhe quero conceder", à "voz do Cisne dos nossos tempos" a

primeira proposição de sua carta, de que Bandarra era verdadeiro profeta, mas discorda

de seu entendimento das profecias. Em outras palavras, a autoridade das Trovas não

advém de Bandarra, como profeta, ou dos versos, como visões verdadeiras; é externa,

foi concedida pelo seu comentador, Vieira, cisne e portento da época, varão tão

religioso e tão douto. Ironicamente, a autoridade que dá suporte às profecias do

sapateiro errou na interpretação das mesmas. O "canto do Cisne" foi superado pelo

"grasnar do ganso", como se apresentou o autor no início, afetando modéstia.

Após definir seu intento no exórdio e conceder a primeira premissa, o papel seguiu

acompanhando os comentários às trovas do "autor da ressurreição" às trovas,

refutando-os e mostrando que não era em todos os passos que Bandarra tratava de D.

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João IV, pois o verdadeiro Encoberto era D. Sebastião. Fez o mesmo ao chegar à leitura

dos versos iniciais do "Sonho primeiro". Transcreveu-os, seguindo a disposição em

oitava das "Esperanças de Portugal", resumiu o comentário do jesuíta, para dizer que

havia nas Trovas, além da "diversidade de pessoas" – João e Sebastião –, "diversidade do

tempo". Diversidade expressa pelos dois "agora". O primeiro, "Vejo, vejo, direi, vejo,

agora que estou sonhando", se referia a "esta grande maravilha que há-de haver no ano

de 40" com D. João IV. O segundo, "Esta casa é minha, agora que cá me vejo", porém, se

referia à "semente de D. Fernando", D. Sebastião. Essa atenção para com o "agora"

partia do pressuposto de que, sendo verdadeiro Profeta, nenhuma palavra do Bandarra

era ociosa, e por isso "os dois agora não foram para encher o verso, mas por um alto

mistério".

Ao contrário de separar a atividade poética da profética, porém, o "agora" foi

justificado pela poesia, mostrando que o "agora" de Bandarra era o mesmo de Virgílio

do início da Eneida. Porque:

Os profetas em Latim se chamam vates, e vates no mesmo idioma quer dizer,profeta: os profetas vaticinam como poetas, e os poetas talvez escrevam como[profetas].64 Assim o diz um deles (...) que Deus move o espírito do poeta.65

Virgílio e Bandarra podiam ser aproximados, e as Trovas, remetidas à Eneida, porque

ambos foram movidos no espírito por intercessão divina. O vaticinar era comum à

prática profética como à poética.66 Em um "ut pictura poesis" adaptado, profecia era

poesia, e vice-versa. Logo, poderiam ser analisadas pelos mesmos princípios, pela

mesma leitura exegética e arte poético-retórica.

O verso de Bandarra, "Esta casa é minha, agora que cá me vejo", poderia ser adjetivado

de "conceituoso", engenhoso,67 ou como em Castro, lido o dizer que está sonhando pelas

"figuras da eloquencia", ou como em Vieira, observado a repetição dos "vejo" como seu

estilo. De qualquer lado, porém, a disposição e a eloqüência dos versos eram sinais do

mistério, nada poderia ser tido como ocioso, sem sentido. Para definir a "semente" e o

"despejo", era preciso passar por todos os pontos do "vejo, vejo, direi, vejo/ agora que

estou sonhando" (e suas variantes); e descobri-los, cuidá-los, construí-los. O profeta que

vê, como vidente, ou que vaticina, como vates, precisa dizer a sua profecia; e o como ele

diz as matérias deve ser objeto de consideração.

Livre da definição de quem seria o Encoberto profetizado, se D. Sebastião, D. João IV ou

outro rei brigantino – ou mesmo Filipe II e Afonso Henriques68 – , os comentadores

bandarristas concordavam em muitos passos na exegese dos versos, como observou

Besselaar. Quanto à matéria das Trovas, Bandarra haveria, de fato, em suas quadras ou

oitavas profetizado o futuro de Portugal. Um futuro de restauração de um destino

anunciado desde Ourique, como cabeça do reino de Cristo na Terra. Mesmo entre os que

não criam ou desconfiavam da presciência do sapateiro, no caso dos manuscritos contra

as "Esperanças", havia pouca discordância quanto à missão lusitana – exceto pelo Santo

Ofício, que ortodoxamente considerava a proposta temerária. Isso, porém, era possível

porque os comentadores partilhavam de um repertório teológico-retórico-político e de

uma "forma mentis"69 ou "gramática"70 profético-onirológica com os quais realizavam a

leitura das Trovas. No embate entre Vieira e os inquisidores, ainda que partindo de

premissas, numa primeira vista, antinômicas e de interesses conflitantes, a disputa se

deu sobre os mesmos termos, inclusive alguns determinados pelo próprio réu que

dominava a disposição, as tópicas, os lugares e as figuras da prática discursiva no qual o

processo decorreu. Menos do que uma opção puramente pragmática de estilo de defesa

para escapar da condenação, o centro articulador dessas práticas retóricas era a idéia

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de Deus como Causa Primeira, cujos efeitos análogos no orbe tinham a Igreja romana

como tradutora. Por meio dessa tradução, resultante em uma hierarquia organizadora,

a Igreja funcionava como ordenadora do rebanho, e a monarquia lusitana, enquanto

reino católico, como instrumento temporal de suporte para manutenção e divulgação

da Palavra. A junção do domínio – engenhoso, agudo, preciso, espantoso – das práticas e

conceitos a um substrato básico comum permitiu a Vieira sair vivo do longo

julgamento, ainda que condenado ao silêncio – algo que conseguiu reverter poucos anos

depois junto ao Papa, em Roma.

Nessa economia discursiva e teológica, não se separa da matéria da profecia a sua

enunciação sonhada e versificada, pelo poeta sapateiro que diz. A concordância em

vários aspectos entre os comentadores começava no uso de um mesmo método

empregado para a exegese das Trovas, no qual a colocação e o formato das palavras e

figuras atribuíam – porque o possuíam como reflexo da Palavra71 – sentido a si mesmas

e ao todo enunciado. As discordâncias eram, por sua vez, resultado das conclusões

alcançadas por meio desse método, mesmo nas objeções supostas por Vieira e feitas

pelos inquisidores no processo. Como o sonho, o estar sonhando. Ora o sonho foi

contraposto à visão como imagens ilegítimas, ora serviu para atestar a visão e, pelo

contrário, legitimá-la. Ora foi colocado como dúvida, ora foi visto como profecia. A

dúvida se era sonho confirmava o inaudito do revelado, do mesmo modo que sua

certeza era prova de presciência. O argumento de serem sonhos servia tanto para dizer

que as profecias eram falsas quanto verdadeiras. Por isso, era preciso circunstanciar os

sonhos e alinhá-los às outras partes dos versos, e vice-versa, numa operação constante

de desmontagem e remontagem da palavra. Por isso, conforme o sentido do sonho

variava o significado da semente e do despejo. Defender e descobrir os sonhos de

Bandarra passava pelo entender por que as Trovas estavam em sonhos e por que se

definiam e afirmavam como tal. Nesse sentido, as variantes e a opção por um ou outro

traslado das Trovas supunham leituras diferentes. As múltiplas transcrições e as

interpretações dos versos e das palavras apontavam possibilidades de exegese da

matéria profética, que não podiam ser elaboradas em separado. A matéria e a sua

enunciação estavam intrinsecamente relacionadas, e a mudança desta acarretava a

mudança daquela. No palco dessas ligações móveis, desvendar o sentido de uma palavra

era ajudar a compreender o sentido do que se representava. Desvelar o sonho, evento,

manifestação, figura, era desvelar o teatro do mundo e o futuro de Portugal e da

Cristandade.

NOTAS

1. BESSELAAR, J. Sebastianismo – uma história sumária. Lisboa: ICALP, 1987, p. 56.

2. CASTRO, J. "De quinta e ultima monarchia futura com muitas outras cousas admiraueis do

nosso tempo", BNL, Reservados, Cód. 4371, f. 6a.

3. Na Bibliotheca lusitana, ainda mantém-se essa idéia: "como não soubesse ler nem escrever se

valia da mão alhea para as divulgar." MACHADO, D.B. Bibliotheca Lusitana. Lisboa: CNCDP, s/d, CD-

Rom, verbete "Gonçalo Annes Bandarra".

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Page 231: Livro e Iconografia

4. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas (ed. Adma Fadul Muhana) Lisboa: Cotovia, 1994, cap.

"Responde-se às dúvidas e argumentos em contrário"; cf. CASTRO, J. Paraphrase et concordancia, de

algvas propheçias de Bandarra, çapateiro de Trancoso. (Fac-símile da edição de 1603) Porto: Lopes da

Silva, 1942; CASTRO, J. "De quinta e ultima monarchia futura", op. cit., f. 6a.

5. HOROZCO Y COVARRUBIAS, J. Tratado de la verdadera e falsa prophecia. Segovia: of. De Juan de La

Costa, 1588.

6. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas. op. cit. cap. "Provas-se directamente que Bandarra

escreveu com verdadeiro espírito profético".

7. Bandarra sabia ler, tinha acesso a uma Bíblia em vulgar, como também escrever, bem como não

era um homem pobre. Além disso, se o processo começou em 1541, muito possivelmente as Trovas

foram compostas antes, entre 1520 e 1530. Para a caracterização de Bandarra no processo ver, em

especial: AZEVEDO, J.L. A evolução do sebastianismo. Lisboa: Presença, 1990; BESSELAAR, J.V.D.

Sebastianismo – uma história sumária. Lisboa: ILCP, 1987; MAGALHÃES, L.H. Poder e sociedade no reino

de Portugal no século XVI: as Trovas de Bandarra. Tese de Doutorado, História, UFPR, 2004. O processo

foi só conhecido no XIX, com o fim do Santo Ofício. No vol. III do Inocêncio, está que os detalhes

do processo foram publicados em 1851, num artigo da revista "A semana", mas não dá o autor.

Diccionario Bibliographico Portuguez. vol. III e IX, em ambos: verbete "Gonçalo Anes Bandarra".

8. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas, idem.

9. Vieira inclusive defendeu que o fato de haver essa proliferação de testemunhos, que, apesar

das corrupções, concordavam no essencial, era evidência de que a matéria das Trovas era, de fato,

verdadeira, pois assim se mantinha a mensagem que queria passar – e o mesmo teria ocorrido

com os judeus e a divulgação das Escrituras. cf. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas, op. cit.

10. Sobre a importância das variações nos manuscritos (e mesmo nos impressos) durante o

Antigo Regime, ver: BOUZA, F. Corre manuscrito. Una historia cultural del Siglo de Oro. Madri: Marcial

Pons, 2001, cap. 1.

11. Mesmo antes da edição de 1644, essa passagem de I para J estava estabelecida. Um ano antes,

no Restauração de Portugal Prodigiosa, se fazia essa emenda: "nem se pode crer que dissesse «Dom

foam», porque nesta forma nada mostrava do que vaticinava, e assim se há-de ler «Dom João»,

porque se há-de presumir que foi êrro no transladar, em se fazer F do J, grandes, o que os

apaixonados do Sereníssimo Rei D. Sebastião mudariam, por lhes fazer assim mais a seu caso,

porquanto pessoas de muito crédito nos certificaram que viram translados, mui autênticos e

antigos, destas obras de Bandarra, ainda no tempo de El-Rei D. Sebastião, e diziam: «o seu nome é

D. João»." Gregório de Almeida (pseud.), Restauração de Portugal Prodigiosa, 1643-4, 2v. (re-ed.

Barcelos, Cia. Editora do Minho, 1939, 4v) 3v, p. 54.

12. Supostas como estilo dos "sonhos de Bandarra", foram repetidas no chamado 'terceiro corpo"

das Trovas, de 1729, como que para indicar sua autenticidade pela semelhança.

13. HOROZCO Y COVARRUBIAS, J. op. cit., p. 38.

14. Idem, p. 38-39 (à margem).

15. Gregório de Almeida (pseud.), Restauração de Portugal Prodigiosa, op. cit.

16. Ibidem, p. 66.

17. Idem, p. 54.

18. Idem, p. 65.

19. Além disso, Vieira partia do pressuposto que a simples interpretação correta de visões seria

característica de um verdadeiro profeta, cf. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas., op. cit.

20. Na edição crítica de Besselaar: "E se o verdadeiro profeta e primeiro autor desta profecia não

é Bandarra, senão Santo Isidoro". VIEIRA, A. Livro anteprimeiro da História do Futuro. (ed. Crítica de

José Van Den Besselaar) Lisboa: Biblioteca Nacional, 1990, p. 84.

21. Para outros exemplos desse "discurso engenhoso" a partir das palavras, ver: SARAIVA, J.A. O

discurso engenhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.

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230

Page 232: Livro e Iconografia

22. Para uma visão geral da obra impressa e manuscrita de Castro, ver: AZEVEDO, J.L. A evolução

do Sebastianismo, op. cit. Para a biografia, além de Azevedo, ver: HERMANN, J. No reino do desejado. A

construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998;

BERCÉ, Y.M. O rei oculto. Bauru: Edusc, 2003.

23. CASTRO, J. Paraphrase et concordancia de algvas prophecias de Bandarra, çapateiro de Trancoso.

[Paris]: s/e, 1603, p. 21-22.

24. CASTRO, J. "Da Quinta & ultima Monarchia futura", op. cit., f. 6v.

25. Idem, f. 7.

26. AGOSTINHO. De genese ad litteram. Liv. XII.

27. Castro retomou esse argumento quase no final da obra: "o qual porque se nam enganasse

alguem com ellas, cuidando que eram sonhos ordinarios, & nam visoens Diuinas, por dizer: Vejo

que estou sonhando : porisso neste remate de todas, as nomea pello seu proprio nome de

Propheçias, amoestãdo com efficacia que as notem bem, como quem via nellas o seu grãde

thesouro & sua grandissima importancia: e iuntamente a igual difficuldade em sua intelligençia,

& o pouco caso que dellas se auia de fazer." Paraphrase et concordancia de algvas propheçias de

Bandarra, çapateiro de Trancoso, por Dom Ioam de Castro (Fac-símile da edição de 1603) Porto, Lopes

da Silva, 1942.

28. No Capitulo Oitavo, ele retomou a questão numérica dos "vejo", porém, agora falando do

número três, da repetição dos "vejo" no primeiro verso e sua relação com os versos "Que assi faz

o conto cheo./ Hum dos tres que vem arreo" e a determinação dos tempos: "Ora huma das

considerações desta profeçia he que o Espirito serue nella de tres ternarios compostos de dezes,

que sam perfeitissimos, pera contar o tempo determinado: correspondendo a qui o numero Trino

tam perfeyto, com o que vsou no principio do seu sonho, dizendo: Vejo: Vejo: direi? Vejo..." f. 64.

29. No Bluteau, na segunda acepção de despejo, há duas citações de Francisco Manuel de Melo

(Carta do guia dos casados) e Rodrigues Lobo (Corte na aldeia), contemporâneos mais de Vieira do

que Castro, que gravam o sentido ambíguo e a influência negativa do castelhano: "Na carta de

guia &c. P. 86, diz D. Franc. Man. Faz grande dano huma maldita palavra, que se nos pegou de

Castella, a que chamaõ Despejo, de que muytas molheres se prezaõ [ou seja, no sentido de

desenvoltura], & certo he, que em bom Portuguez, Despejo, he descompostura. Outra explicaçaõ lhe

ia em dar, mas esta baste; E claro está que o Despejo he cousa ruim, porque o pejo [embaraço] era

cousa boa. Agora sera Despejo a minha ousadia. Lobo Corte na Aldea, 206" BLUTEAU, Raphael.

Vocabulario Portuguez & Latino. Coimbra: no Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1713, v.

3, p. 163-164.

30. CASTRO, J. Paraphrase et concordancia, op. cit, p. 23-24. No "Comento de alguas trovas de

Bandarra", que segue uma cópia das Trovas no "Jardim Ameno", a versão é a de D. João de Castro,

porém o comentário optou pelo sentido considerado enganoso pelo sebastianista: "Falla aqui o

Bandarra de Phellippe 2°. Rey de Castella, bisneto del Rey Dom Fernando, o qal. fes hum grande

despejo em seus Reynos, eleuado de cobiça, e ambiçaõ, deixou a sua uinha, que era Castella, e se

entroduzio com promessas, traças, e inuençõis, no Rn°. de Portugal, que naõ lhe pertencia, por

muitas e exclusiuas, como consta das Cortes de Lamego. E o Reyno de Portugal, ser de iure,

patrimonio da Senhora Dona Catherina Duqueza de Bragança, a voô del Rey Dom João quoarto

Nosso Snôr." In: "Jardim Ameno", ANTT, Manuscrito da Livraria, Cód. 774, f. 55v-56f.

31. Estou usando a edição crítica e comentada feita por José Van Den Besselaar. VIEIRA, A.

"Esperanças de Portugal. Quinto Império do Mundo. Primeira e segunda Vida del-Rei D. João o

Quarto Escritas por Gonçaleanes Bandarra" in: BESSELAAR, J.V. Antônio Vieira. Profecia e polêmica.

Rio de Janeiro: EdUerj, 2002, p. 49.

32. MUHANA, A.F. "O processo inquisitorial de Vieira: aspectos profético-argumentativos"

Semear, 2, 1997, cf. PÉCORA, A. "Vieira, a Inquisição e o capital" Topoi, 1, 2000, p. 178-196. (cf.

particularmente o artigo de Pécora para uma rápida idéia do momento, dos antecedentes e da

estrutura do processo).

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Page 233: Livro e Iconografia

33. Os autos do processo de Vieira na Inquisição (org. Adma Fadul Muhana). São Paulo: Unesp, 1995, p.

248.

34. No exame, o inquisidor Alexandre da Silva fez perguntas sobre as "Representações" e a

Apologia, possivelmente destacando a partir da qualificação feita da leitura dos manuscritos

tomados de Vieira. Entre elas, uma que diz respeito diretamente ao ponto discutido aqui:

"Perguntado se está ele declarante lembrado de haver dito, ou escrito, em algum dos papéis, que

apresentou nesta Mesa, que de Bandarra dizer dezoito vezes, que via as coisas futuras (...)", Autos

do processo, op. cit, p. 250. O inquisidor se refere à passagem do capítulo da Apologia, intitulado

"Prova-se que do discurso passado se infere bem haverem-se de cumprir todas as coisas que nos

escritos do Bandarra estão preditas.", no qual está: "Sobretudo se deve muito advertir que

dezoito vezes repetidamente diz Bandarra que via as sobreditas coisas, e sendo certo que as via, é

também certo que não podem deixar de suceder, porque ainda que algumas de sua natureza

fossem condicionais, suposto que foram vistas, segue-se que não interveio a condição, e que hão

de ter efeito absoluto, porque doutra maneira não podiam ser vistas". VIEIRA, A. Apologia, op. cit.,

cf. nos Autos do processo, a qualificação dos textos vieirenses, p. 423.

35. Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Pte. 1ª. Q. 12, A. 11, cf. Pte. 2ª-2ª. Q. 174, a.2.

36. VIEIRA, A. Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício. Salvador: Livraria Progresso, 1957, t. 1, p.

136, § 211 (grifos meus).

37. Idem, p. 136-127, § 212.

38. Idem, p. 138, § 213 (grifos meus).

39. VIEIRA, A. Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício, Salvador: Progresso, 1957, § 274.

40. Idem, § 202.

41. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas, op. cit.

42. MUHANA, A.F. "Introdução" in: Autos do processo de Antonio Vieira, op. cit.; MUHANA, A.F. "O

processo inquisitorial de Vieira: aspectos profético-argumentativos", op. cit.

43. MUHANA, A.F. "Introdução", Autos do Processo, p. 28.

44. Cf. MUHANA, A.F. "Introdução", Autos, p. 23-24.

45. Cf. MARENBON, J. Later Medieval Philosophy. 1150-1350: An Introduction. Londres: Routledge, 1996,

p. 12-14,19-20, e espec. 27ss.

46. Segundo Janice Theodoro da Silva, a estratégia adotada por Vieira na sua Defesa teria sido

abandonar o "discurso engenhoso", que seria a marca da inversão libertária barroca, por uma

retórica similar à do inquisidor. Como mostrou Margarida Vieira Mendes, porém, o estilo de

Vieira na Defesa e nos textos produzidos durante o processo seguiu as preceptivas da oratória

barroca que conduziam os sermões, pelas quais "o verossímil prevalece sobre a verdade e a

intenção de movere sobre a de docere" e "há menos declaração de convicções e mais utilização

suasória das idéias expostas e também do modo de as expor". MENDES, M.V. "Comportamento

Profético e comportamento retórico em Vieira" Semear 2; SILVA, J.T. "A retórica do cativo" In:

América Barroca, São Paulo: Edusp, 1992, cap. 8 (versão eletrônica consultada no site http://

www.ffich.usp.br/dh/ceveh). Para os modelos discursivos, ver: MARENBON, J. op. cit.

47. Adma Muhana mostra isso na sua Introdução, a partir dos Autos.

48. "Sentença do P.e Matheus Francisco da Companhia de Jesus, o qual saiu segunda vez no Auto-

de-Fé, que se celebrou em Goa no anno de 1664", In: RÊGO, Y.C. Feiticeiros, profetas e visionários.

Lisboa: Biblioteca Nacional, 1987, p. 57-76; Processo de "Maria de Macedo", ANTT/Inquisição de

Lisboa, Processo nº 4404; proc. de Francisco Barbosa ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. Nº 8052

citado por PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem 'caça às bruxas'. Lisboa, Notícias,

1997, p. 121; "Processo de Luísa Pereira da Silva" ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. Nº 1515, fl.

37v-38.

49. Os Lusíadas, Canto 1, 10.

50. Eclo, 34:1. A tradução da Bíblia de Jerusalém é muito análoga à Vulgata, no primeiro verso,

porém, no segundo, a Vulgata traz uma versão que se coaduna melhor com a oposição entre

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Page 234: Livro e Iconografia

rústicos e letrados, pela imprudência: "Vana spes et rnendax viro insensato,/et somnia extollunt

imprudentes".

51. "Edital Impresso do Conselho geral do Santo Officio em que prohibe a liçaõ das obras do

Bandarra, dada em Lisboa em 1665. folha gr." Academia de Ciências de Lisboa, Série Vermelha,

Cód. 459.

52. Para esse artigo, foi utilizada a edição crítica de Besselaar do "Ante-Vieira", In: BESSELAAR,

J.V.D. Antônio Vieira – profecia e polêmica, op. cit. Besselaar tomou por base para sua edição um

testemunho das primeiras décadas do século XVIII, existente na Academia de Ciências de Lisboa:

"Ante=Vieira. Nas Esperanças Do Quinto Império Portuguez Fundadas na primeira, e segunda

vidas Do Senhor Rey Dom Joaõ IV. Accommodadas Pelo Padre Antonio Vieira A Gonçalo Annes

Bandarra Respondidas Por hum Anonymo Curioso Anno de 1661.", ACL, Série Azul, Cód. 1118A.

53. VIEIRA, A. "Esperanças de Portugal" In: BESSELAAR, J.V.D. Antônio Vieira – profecia e polêmica,

op. cit., p. 49.

54. Idem, p. 64. Besselaar demonstra que Vieira, no Maranhão, devia ter uma lição manuscrita das

Trovas, por algumas variantes em relação à edição de 1644. Contudo, durante o processo, quando

escreve a Defesa, se reporta à versão de Nantes, de memória.

55. "Ante-Vieira", p. 149.

56. Idem, p. 164-5.

57. Idem, p. 148, 185.

58. Para uma apreciação não só sobre os diferentes títulos, mas sobre as diferenças entre os

testemunhos, ver: BESSELAAR, op. cit., p. 223, 226. Como no caso da carta "Esperanças de

Portugal" e do "Ante-Vieira", seguiremos a edição crítica de Besselaar, salvo indicação em

contrário.

59. ANTT, Manuscritos da Livraria, Cód. 382.

60. BNL, Reservados, Cód. 2674.

61. No volume manuscrito: "Obras do Pe. Antonio Vieyra da Companhia de Jezuz tom 3. Papeis

Duvidozos", ANTT, Manuscritos da Livraria, Cód. 1172, s/f.

62. Idem.

63. "Opinião contrária" In: BESSELAR, op. cit, p. 231.

64. Na edição de Besselaar, por um erro tipográfico, está "poetas" ao invés de "profetas". No

manuscrito da Torre do Tombo, a passagem está assim: "Os Poetas em Latim se chamam =Vates=,

e Vates= no mesmo idioma quer dizer profeta: os profetas vaticinaraõ, como Poetas, e os Poetas

talvez escrevem como profetas, assim o diz hum delles = est Deus in nobis agitante calescimus illo

= dis, que Deus moue o espírito do Poeta", "Satisfaçao apologética", s/f.

65. "Opinião contrária", In: BESSELAAR, J. op. cit., p. 241.

66. Sobre as relações entre poesia e profecia na literatura ocidental, houve um seminário em

Harvard, em 1986: KUGEL, J. (ed.) Poetry and prophecy. The beginnings of a literary tradition. Cornell

University Press, 1991.

67. "Opinião contrária", p. 248.

68. Besselaar transcreveu uma confutação anônima das "Esperanças de Portugal", que foi escrita

por um copista setecentista da carta. Nela, o anônimo, admirador de Vieira, discordava da

exegese das Trovas num só ponto: se o poder de Deus era infinito, e podia rescussitar qualquer

um, fazia mais sentido trazer de volta dos mortos o rei Afonso Henriques, que tinha expulso os

mouros de Portugal, fundado o reino e era favorecido do céu. BESSELAAR, J.V. Antonio Vieira –

profecia e polêmica. op. cit, p. 345-347 (o manuscrito está no códice 400 da BN-Lisboa. Cf. Inventario.

Secção XIII – Manuscriptos. Lisboa: [Biblioteca Nacional de Lisboa], 1896).

69. HANSEN, J.A. "Notas sobre o 'Barroco'", Revista do IFAC, 4, dez. 1997.

70. Para o conceito de gramática de Wittgenstein, pensado para o estudo de história moderna

ver: CLARK, S. "French historians and early modern popular culture". Past and Present, 100, 1983;

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Page 235: Livro e Iconografia

cf. CLARK, S. Thinking with demons. The idea of witchcraft in early modern Europe. Oxford: Oxford

University Press, 1997; cf. PÉCORA, A. Máquina de Gêneros. São Paulo: Edusp, 2001.

71. António José Saraiva pôs essa relação em termos do par significante-significado, na qual o

significante teria significado e vice-versa. Ainda que como "tradução" o modelo descritivo do

Saraiva tenha sua eficácia, prefiro pensar a relação menos como dicotômica (e, por isso,

aparentemente contraditória) e mais como fruto da idéia de analogia da Palavra divina, no qual

tudo conteria uma centelha do Verbo criador e por isso poderia ser analisado nessa esfera que

hoje dividimos entre forma e conteúdo, significante e significado. Para uma discussão da

proposta de Saraiva, ver: PÉCORA, A. Teatro do sacramento. op. cit.

RESUMOS

A proposta desse artigo é analisar as diferentes apropriações e entendimentos das Trovas de

Bandarra no século XVII, a partir das tópicas do "sonhar" e "ver", que estruturam o poema

profético. Identificando algumas estrofes recorrentes nos comentários seiscentistas, pretende-se

discutir as polêmicas surgidas em torno dos "Sonhos" do sapateiro de Trancoso e como estas

permitem identificar posições frente ao problema do sonho profético e de seu uso nas leituras do

destino e futuro português. A estrutura do texto é dada pelo passo das polêmicas em torno dos

comentários às passagens selecionadas, com especial destaque para a figura do jesuíta Antonio

Vieira e as disputas envolvendo seus textos na segunda metade do século XVII.

The proposal of this article is to analyze the different uses and perceptions of Bandarra's Trovas

in the 17th Century, observing the structural topics of "dreaming" and "seeing". Through the

identification of some recurrent verses in 17th Century commentaries, we intend to understand

the controversies around the "Dreams" of the shoemaker of Trancoso and how they allow us to

identify opposite positions towards the problem of prophetic dream and its uses in

interpretations about the Portuguese destiny and future. The text follows the controversies

around the verses commentaries, with special attention to the figure of the Jesuit Antonio Vieira

and the disputes involving his texts in the second half of 17th century.

ÍNDICE

Palavras-chave: Trovas de Bandarra, sonhos, visão, poema profético, Antonio Vieira

Keywords: Bandarra's Trovas, prophetic dream, Portuguese destiny, Antonio Vieira

AUTOR

LUÍS FILIPE SILVÉRIO LIMA

Universidade Federal do Paraná. Cátedra Jaime Cortesão, Universidade de São Paulo

Professor Pro-Doc/Capes junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Federal do Paraná, e pesquisador da Cátedra Jaime Cortesão, Universidade de São Paulo. Autor do

livro Padre Vieira: profecias oníricas, sonhos proféticos. O tempo do Quinto Império nos Sermões

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de Xavier Dormindo (São Paulo: Humanitas, 2004) e do artigo "Sonho e pecado: visões oníricas e

oniromancia dos 'índios' e 'gentios' na catequese jesuítica na América Portuguesa (1549-1618)",

Revista de História (USP), n. 149, 2°. Semestre, 2003, p. 139-180.

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Page 237: Livro e Iconografia

O ensino e a valorização profissionaldo jornalismo em portugal(1940/1974)Education and Professional Valorisation of Journalism in Portugal (1940/1974)

Fernando Correia e Carla Baptista

1. I Curso de Jornalismo de 1968/69

1 Uma iniciativa "útil e oportuna". Foi assim que a separata Jornalismo,1 editada pelo

Sindicato Nacional dos Jornalistas (SNJ), se referiu à inauguração do I Curso de

Jornalismo, no dia 21 de Novembro de 1968. As aulas iniciaram-se pouco depois, a 25 de

Novembro, na sede do Sindicato Nacional dos Caixeiros, que cedeu o seu "vasto salão"

para albergar os cerca de 200 inscritos.

2 Ao fim de 28 anos de reivindicações, "após porfiadas e várias tentativas infrutíferas",2 o

SNJ conseguia, por fim, o seu intento: realizar um curso de jornalismo, com a duração

de quatro meses, quatro dias por semana, em horário pós-laboral, com duas sessões de

50 minutos cada.

3 Embora de gestação muito lenta, o curso foi um sucesso. Em carta3 dirigida aos

directores dos jornais diários de Lisboa e do Porto, a quem solicitava um depoimento

sobre "as vantagens ou desvantagens do curso para arquivar nas colunas do nosso

boletim, Nuno Rocha, responsável por aquela publicação, descrevia assim o evento: "o

êxito da iniciativa excedeu as expectativas do sindicato e exprime-se no número de

adesões: estão inscritos mais de duas centenas de sócios do organismo (160 em Lisboa e

no Porto) e algumas dezenas de universitários".

4 No dia 14 de Novembro de 1968, a poucos dias, portanto, do início das aulas, um ofício

do SNJ fazia o balanço dos inscritos. De um total de 160 inscrições, 48 eram de

profissionais e 112 de não jornalistas, designados por particulares. Dos profissionais, 47

eram homens e apenas uma era mulher;4 dos particulares, 87 eram do sexo masculino e

27 do sexo feminino.

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Page 238: Livro e Iconografia

2. Mesas redondas no Sindicato Nacional dosJornalistas

5 A ideia de lançar o I Curso de Jornalismo era já antiga mas começou a fervilhar com

maior intensidade durante a realização, entre 12 de Junho e 24 de Julho de 1967, na sede

do SNJ, de uma série de mesas redondas dedicadas à temática da "situação do jornalista

profissional português", organizadas conjuntamente com a Casa de Imprensa.

6 Os quatro debates, destinados a "elucidar a direcção do Sindicato quanto ao

pensamento da classe acerca dos seus problemas",5 contaram com intervenções dos

jornalistas César Afonso, sobre formação profissional; Manuel de Azevedo, que se

ocupou da posição social do jornalista; José Carneiro da Costa Carvalho, que falou da

remuneração material e Leopoldo Nunes, que tratou da deontologia profissional.

7 César Afonso resumiu as principais dificuldades: "salários irrisórios, que obriga a

maioria a procurar fora da profissão o complemento necessário para se manter

dignamente; burocratização da informação que deu como resultado a burocratização do

noticiário, tornando-se geral o recurso ao corte e cola; falta de cultura de base e de

especialização".6

8 O SNJ levou a sério uma das recomendações saídas destas mesas redondas: "promover,

imediatamente, a realização de cursos de formação e aperfeiçoamento destinados aos

jornalistas profissionais e organizados, tanto quanto possível, por jornalistas".7

9 Foi nomeada uma comissão formada por César Afonso, José Manuel Pereira da Costa

(presidente do SNJ), Manuel de Azevedo e José Rodrigo da Costa Carvalho, que logo

começou a trabalhar no sentido de desenhar o esquema do curso e encontrar o

financiamento necessário.

10 Num oficio enviado aos sócios, o projecto do futuro curso é apresentado da seguinte

forma: "As lições serão seguidas de debate. Resolveu-se que este curso não será

anunciado na imprensa e será limitado, tanto quanto possível, a jornalistas

profissionais".8

11 Os participantes pagariam uma pequena inscrição recebendo, no final, as lições

impressas. Estava previsto que o curso decorresse na sede do sindicato, durante três

meses.

12 O tema geral era "A informação e as suas técnicas" e tinha um carácter eminentemente

técnico, sendo leccionado por jornalistas: Redondo Júnior (Como se faz uma notícia);

Urbano Carrasco (Processos de fazer uma reportagem); José de Freitas (O interesse da

entrevista no jornal); Urbano Tavares Rodrigues (Como se faz uma entrevista); Dutra

Faria (A informação que o jornal recebe); Fernando Teixeira (A informação que o jornal

procura); Pinto Bastos (As fontes de informação); Manuel Rodrigues (As fontes que o

jornal utiliza no noticiário internacional); Ayala Monteiro (Artigo e comentário);

Manuela de Azevedo (O papel do crítico); Nuno Vieira (Título, gravura, legenda); César

Afonso (O jornal perante os outros órgãos de informação) e José Tengarrinha (A

Imprensa e a publicidade).

13 Em Julho de 1968, o projecto já tinha evoluído para um formato diferente: contemplaria

aulas teóricas e práticas e, apesar de se destinar essencialmente ao aperfeiçoamento e

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Page 239: Livro e Iconografia

formação profissional dos sócios do SNJ, ficava também "aberto aos que desejem

iniciar-se na profissão".9

14 Ganhou força uma pretensão anterior, igualmente expressa pelos sócios durante a

realização das referidas mesas redondas: que o Sindicato estudasse "a criação de uma

escola de Jornalismo, pois se reconhece como indiscutível a sua vantagem".

15 O modelo adoptado, um curso de quatro meses, com aulas de ensino geral e de teoria e

prática da informação, seguiu uma orientação claramente pré-universitária. As

matérias e respectivos professores incluíram Língua Portuguesa (José Manuel Tavares);

História Contemporânea (Joel Serrão); Doutrinas Filosóficas (Luís Ardissson Pereira);

Direito (Nogueira de Brito); Economia (Xavier Pintado); História da Imprensa (José

Manuel Tengarrinha); A Comunicação e os seus Meios (Navarro de Andrade); Prática da

Comunicação (João Gomes); Sociologia da Comunicação (José Júlio Gonçalves); Técnicas

Gráficas (Vítor da Silva); Panorâmica da Imprensa Estrangeira e Análise de Conteúdo

(José Lechner).

16 A maioria dos formadores eram professores universitários e liceais. Apenas dois (João

Gomes e José Lechner) eram jornalistas, recém-licenciados pela Escola Superior de

Jornalismo de Lille, em França. O curso contemplou ainda várias palestras, a título de

aulas extraordinárias, incluindo de estrangeiros.

17 Os jornalistas beneficiaram de prioridade e desconto na inscrição, pagando apenas

metade (duas prestações de 300$00) do total da propina (duas prestações de 600$00),

"que se destinam às despesas com as sebentas das lições".10

18 Os candidatos não jornalistas deviam possuir o 7º ano dos liceus e ficaram sujeitos a

uma selecção, devido à enorme afluência de interessados. No final, foi concedido um

diploma, meramente indicativo, aqueles que realizaram um exame.

19 A enchente de candidatos obrigou a criar uma modalidade por correspondência, para os

que estavam impedidos de assistir às lições por se encontrarem fora de Lisboa, e acabou

por complicar a organização do curso. A logística tomou-se complexa, obrigando a

pedir ao Sindicato dos Caixeiros a cedência das instalações e perdeu-se a ligação mais

estreita com o meio profissional.

20 João Gomes, um dos dois jornalistas/professores, confessou ao Diário Popular as

dificuldades em lidar com uma audiência tão heterogénea, onde existiam jornalistas,

bancários, uma hospedeira da TAP, um comissário de bordo, funcionários públicos,

empregados de escritório, estudantes universitários, tradutores, oficiais milicianos, um

padre, advogados, um controlador de tráfego aéreo, um meteorologista, um

profissional de hotelaria, engenheiros, bibliotecários: "Devia haver cursos para os não

profissionais e, para os jornalistas, estágios adaptados a pessoas que já exercem a

profissão. Os não profissionais estão ávidos de conhecimentos práticos que não podem

ministrar-se num curso em que já estão profissionais, pois esses conhecimentos –

rudimentares – são de todos estes por demais conhecidos".11

21 Outra consequência importante foi o endividamento do SNJ. Apesar de ter obtido do

Ministério das Corporações e da Previdência Social12 um subsídio de 100 000$00, ao

abrigo do Fundo para o Desenvolvimento da Mão de Obra, as despesas previstas pelo

SNJ, ainda em Julho, antes do número de inscrições ter disparado, foram calculadas em

200 600$00.13

22 Em Março, o SNJ apelou a José Azeredo Perdigão, administrador da Fundação

Gulbenkian:14 "Devido à inesperada amplitude tomada pelo curso, vê-se agora este

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Page 240: Livro e Iconografia

sindicato perante a perspectiva de não poder prosseguir, pois a verba de cem mil

escudos concedida pelo Ministério das Corporações esgota-se, sendo necessário renová-

la ou interromper o curso em meio".15

23 Mas foi o Ministério das Corporações que acabou por responder positivamente e com

celeridade à carta em que a direcção expunha as suas razões: "A direcção deste

sindicato vê-se a braços com um deficit de 40 000$00 pois a verba que Vossa Excelência

tão generosamente nos concedeu ficou muito aquém das despesas que tivemos de

enfrentar. É pois a Vossa Excelência que mais uma vez nos dirigimos, no sentido de nos

ser atribuído um subsídio suplementar para compensar o referido deficit.".16

24 Apenas um dia depois, o ministro Gonçalves Proença autorizou a atribuição de "mais

um subsídio de 40 000$00 para despesas extraordinárias".17

25 No solene discurso da sessão de abertura, aquele responsável, secundado pelo

secretário de Estado da Informação, César Moreira Baptista, afirmou-se "convencido

que se trata apenas de uma primeira experiência susceptível de facilitar o lançamento

de uma iniciativa que verdadeiramente interessa à formação dos jornalistas: a criação

entre nós de um órgão que a tal formação se destine por forma institucionalizada e

permanente".18

26 Também o presidente do sindicato, no seu discurso inaugural, aludiu a essa lacuna

"incompreensível, injustificável e inadmissível. Falo, evidentemente, da ausência de

uma escola de Jornalismo". Pereira da Costa referiu-se um dado novo que tornava ainda

mais premente a necessidade de uma tal escola: "O amadorismo e o empirismo, factores

dominantes num género de jornalismo até à data recente observado entre nós,

desaparecem rapidamente da imprensa. O jornalista português (uma informação: vinte

por cento dos profissionais admitidos nos últimos dois anos são universitários) atingiu

maioridade bem patente no progresso dos principais órgãos de informação. Ninguém

acredita hoje que o talento e uma experiência mais ou menos profunda sejam

suficientes para o profissional desempenhar cabalmente a missão que lhe incumbe".19

27 No âmbito da cobertura jornalística da sessão final, a Vida Mundial publicou o seguinte

balanço: "Escolas, prática, melhor formação, nada disto bastará para um melhor

jornalismo: para tal precisa o profissional de liberdade. Liberdade para aceder a toda a

informação, liberdade para a dar, liberdade para assumir a responsabilidade que lhe

cabe, como homem, como jornalista".20

28 E a Censura, desta vez, não cortou.

3. Primeira tentativa de realizar um Curso deFormação Jornalística em 1941

29 O desejo de promover um curso de jornalismo datava já dos anos 40. No dia 8 de

Fevereiro de 1941, Luís Teixeira, então presidente da Comissão Administrativa do

Sindicato, entregou ao subsecretário de Estado da Educação Nacional o texto do

projecto do Curso de Formação Jornalística (CFJ), que veio publicada no número I do

Boletim do SNJ, de Maio de 1941.

30 No boletim Jornalismo número 8, de Novembro de 1968, o SNJ voltou a publicar esse

texto, em jeito de homenagem irónica, escrevendo que "essa tentativa de valorização

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profissional dos jornalistas não encontrou então o apoio necessário junto das entidades

oficiais – situação que se mantém, decorridos 28 anos".21

31 A proposta liderada por Luís Teixeira era já muito consistente e bem estruturada. Prova

disso é que o curso de 1968/69 retomou grande parte da sua formulação, embora com

alterações.

32 O objectivo do Curso de Formação Jornalística (CFJ) era "preparar, através de ensino

teórico e prático, o exercício da profissão de jornalista".22

33 No projecto apresentado ao subsecretário de Estado da Educação Nacional, Luís Teixeira

enuncia os objectivos da criação daquele curso: "promover a valorização profissional

dos jornalistas; elevar o nível de cultura até aos limites exigidos pela missão que

desempenham na vida portuguesa e dignificação da imprensa no nosso país".23

34 Justificando a necessidade da iniciativa, argumenta da seguinte forma: "O recrutamento

do pessoal dos quadros redactoriais dos nossos diários faz-se por tentativas de

experiência, incertas e pouco seguras nos seus resultados. A carreira profissional do

jornalista começa com base em indícios nítidos de vocação e tendência natural e

desenvolve-se sempre ao sabor da revelação de espontâneas qualidades pessoais. Falta o

encaminhamento necessário que oriente e aproveite para uma finalidade justa o

esforço do autodidacta que faz do jornalismo o seu modo de vida".24

35 O CFJ foi uma tentativa (falhada) de orientar e sistematizar a vocação e o

autodidactismo que, até aí e durante muitos anos vindouros, funcionaram como

habilitação principal para o exercício da profissão, colocando os candidatos a

jornalistas na dependência de juízos muitas vezes arbitrários, fruto das suas melhores

ou piores relações pessoais dentro do meio profissional.

36 Foi também reveladora de um desejo de promoção intelectual da profissão, dotando-a

de um conjunto de conhecimentos bastante exigente, como veremos adiante, e

reconhecendo-lhe competências específicas, nomeadamente a capacidade de

seleccionar o mais relevante segundo critérios jornalísticos e de narrar essas escolhas

usando as regras da linguagem jornalística.

37 O articulado do projecto de criação do CFJ estipulava que se podiam inscrever, "até ao

limite de 30 anualmente, os indivíduos de nacionalidade portuguesa que pretendam

dedicar-se ao profissionalismo jornalístico, desde que possuam as habilitações mínimas

equivalentes ao 5º ano dos liceus ou que, por certidão passada pelo SNJ, provem exercer

a profissão há mais de um ano".

38 O curso compunha-se de cadeiras teóricas, conferências livres e exercícios práticos,

estando igualmente previstas visitas de estudo às redacções e oficinais gráficas mais

importantes.

39 Sete cadeiras completavam a bagagem teórica do curso, que se deveria estender por

dois anos: "A formação profissional do jornalista", "A educação política e histórica do

jornalista", "Os estados modernos e o direito internacional público", "Os grandes

problemas económicos actuais", "História geral da Imprensa", "Formação e evolução do

jornalismo profissional em Portugal" e "Legislação da Imprensa".

40 Os exercícios práticos, reservados para o segundo ano, tinham por fim "iniciar os

alunos na vida profissional, proporcionando-lhes os conhecimentos basilares das

línguas portuguesa e francesa e de estenografia e, através de cursos de aplicação,

orientando-os nas modalidades da actividade jornalística".25

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41 O CFJ tentava reunir académicos e profissionais em torno de uma ideia bastante

alargada das competências que um jornalista deveria possuir: por um lado, uma sólida

cultura geral; por outro, conhecimentos de géneros jornalísticos e de técnicas de

redacção, bem como dos aspectos práticos ligados à elaboração dos jornais, incluindo

artes gráficas.

42 A fina flor dos profissionais ligados aos principais jornais fazia parte do rol de

professores convidados a ministrar, em 30 lições bissemanais, a disciplina de Formação

Profissional do Jornalista. Nomes como Acúrsio Pereira, chefe de redacção de "O

Século"; Aprígio Mafra e Jaime Leitão, respectivamente chefe e sub-chefe de redacção

do "Diário de Notícias" e Norberto Lopes, chefe de redacção do "Diário de Lisboa",

figuravam ao lado de outros como Abel Moutinho, chefe dos Serviços de Propaganda e

Províncias do "Diário de Notícias", Norberto de Araújo, Braz de Medeiros,

administrador do "Diário Popular", Augusto de Castro, director do "Diário de Notícias"

e o próprio António Ferro.

43 O descritivo desta disciplina reflecte bem o ambiente fabril que se vivia nos grandes

jornais nacionais, leia-se, de Lisboa e do Porto, com uma rígida compartimentação das

tarefas e uma relativa estabilização dos géneros jornalísticos em torno de fórmulas

vigorosas.

44 Depois de uma introdução sobre o papel da imprensa na sociedade moderna, os alunos

avançavam para a organização técnica geral, incluindo as funções do chefe de redacção,

do redactor e do repórter; familiarizavam-se com os vários departamentos existentes

dentro da empresa, como a secretaria de redacção, os serviços de informação no

estrangeiro e os serviços de informação geral e, finalmente, aprendiam a técnica

profissional. Este ponto incluía: paginação, provas emendadas, títulos, medida do

interesse do assunto jornalístico em referência ao relevo que o seu registo deve ter.

Arquivo. A Primeira Página. As "últimas notícias".

45 É curioso ver como dois aspectos centrais do exercício da profissão durante os anos 40 e

que se prolongaram até muito mais tarde, se reflectem nestes itens: por um lado, o peso

das rotinas produtivas (um vai e vem de provas entre os vários membros do processo,

que incluía redactores, chefias de redacção, linotipistas, tipógrafos e censores); por

outro, a importância do desenho (manual) do jornal, que transformava a tipografia num

sector absolutamente central na feitura das publicações.

46 Estava previsto que os alunos que viessem a frequentar o CFJ aprendessem os "limites

da reportagem; a crónica sangrenta; a notícia falsa; a crónica dos tribunais e recursos

de improvisação",26 bem como os vários tipos de crítica, desde a teatral, passando pela

musical, cinematográfica, literária, desportiva e de artes plásticas. Os nomes dos

professores convidados são bem ilustrativos da importância que este género assumia

nos jornais da altura, funcionando como um escape para o espartilho da censura. Luís

de Freitas Branco, crítico musical, Diogo de Macedo, crítico de Artes Plásticas, Ricardo

Ornelas, crítico desportivo, Eduardo Scarlati, crítico teatral ou António Lopes Ribeiro,

crítico cinematográfico, não só eram já profissionais reconhecidos, como colaboravam

regularmente com vários jornais, assinando texto de opinião.

47 Os exercícios práticos de jornalismo, designados por "cursos de aplicação", deviam

incidir sobre géneros como a reportagem, a entrevista, o editorial, a crónica, os

inquéritos, a biografia, os ecos e a secção de Cidade.

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Page 243: Livro e Iconografia

48 Trata-se de uma divisão que reflecte o horizonte de expressão existente nos jornais: o

editorial era um género importante, que vincava fortemente a posição do jornal e

sedimentava a sua identidade; as pequenas notícias da Cidade mereciam uma secção,

das poucas claramente definidas como tal nesta altura; ecos, biografias e crónicas

resultavam da inspiração no modelo jornalístico francês; reportagens e entrevistas

eram bastante raras mas, todavia, apreciadas e valorizadas como géneros jornalísticos

reservados aos mais credíveis e talentosos na profissão.

49 Acabou tudo por ficar "em águas de bacalhau". Só duas décadas depois, em 1962, o

assunto voltou ao debate público, com a realização, no Instituto Superior de Estudos

Ultramarinos, de uma série de palestras dedicadas a temas ligados à comunicação que,

novamente, pretenderam funcionar como embrião para um futuro curso de jornalismo.

4. Conferências no Instituto de Estudos Ultramarinosem 1962

50 Durante o período que nos ocupa não é fácil encontrar livros ou conjuntos de textos

editados de natureza teórica sobre jornalismo. Se, por motivos óbvios, isto se

compreende em relação a autores pertencentes à oposição, a verdade é que igualmente

se aplica aos que estavam do lado do regime, o que parece dar razão aos que defendem

o desinteresse do fascismo português pela imprensa, ou pelo menos o seu entendimento

de que os jornais, não obstante terem um papel a desempenhar no controlo da opinião

pública, estavam longe de exercer a importante função de propaganda e promoção do

regime que – a par de outros meios – lhes era atribuída pelo nazismo e pelo fascismo

italiano.

51 Revela-se por isso de particular interesse a edição pela Junta de Investigação do

Ultramar, na sua colecção de "Estudos de Ciências Políticas e Sociais", de um volume de

200 páginas intitulado Curso de Jornalismo,27 onde se reúnem os textos de um conjunto de

conferências promovido pelo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos em 1962 e

patrocinado pelo Centro de Estudos Políticos e Sociais da referida Junta.

52 O director do Instituto e do Centro era o então ministro do Ultramar, Adriano Moreira,

o qual, segundo A. da Silva Rego nas "Palavras de Abertura" ao volume, "já há anos

vinha manifestando o desejo da possível organização dum curso deste género,

destinado a chamar a atenção do público em geral para os problemas da imprensa".

Silva Rego afirma ainda supor ser o primeiro curso com esta temática a realizar-se em

Portugal, e lembra outro facto inovador, a crédito do mesmo inspirador tutelar, que foi

a introdução, na última reforma de estudos do Instituto, de uma cadeira de Sociologia

da Informação.

53 Estes elementos são importantes para a contextualização não só da realização do curso

– ou, mais modestamente, do ciclo de conferências28 – mas também para a edição do

livro e mesmo, como veremos, para algumas das posições defendidas pelos palestrantes,

que apesar da pertença, na maioria dos casos em cargos de responsabilidade, a órgãos

de informação do regime ou próximos dele, não se coibiram, por vezes, de afirmações

que não podemos deixar de considerar algo surpreendentes, vindas de quem vinham.

54 E quem eram e sobre que falaram eles? Pela ordem em que figuram na publicação, e tal

como são apresentados, temos Pedro Correia Marques, director de A Voz, "Técnicas de

direcção, edição e preparação de jornais"; Prof. Doutor Jacinto Ferreira, director de O

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Page 244: Livro e Iconografia

Debate, "Órgãos de opinião e órgãos de informação"; Dr. Barradas de Oliveira, director

do Diário da Manhã, "Ética e responsabilidade no jornalismo"; João Coito, do Diário de

Notícias, "Tendências actuais da imprensa"; Doutor Almerindo Leça, director da Semana

Médica, "A imprensa científica"; Adolfo Simões Muller, director dos jornais infantis

Zorro e João Ratão; Trabucho Alexandre, chefe de redacção do Diário Ilustrado, "Métodos e

problemas do jornalismo desportivo"; Eng.º Silva Dias, director dos Serviços de

Programas da Emissora Nacional, "Técnicas de jornalismo falado"; Monsenhor António

Avelino Gonçalves, director do diário Novidades, "Algumas considerações sobre o regime

jurídico da imprensa"; Eng.º Barradas da Silva, director-geral da Radiotelevisão

Portuguesa, "O jornalismo e os modernos meios audiovisuais".

55 Na maneira como é abordada pelos conferencistas, directa ou indirectamente, a

concepção das funções do jornalismo, podemos descortinar duas tendências, cuja

existência reflecte o período de transição vivido neste início da década de 60 em

Portugal. Por um lado a orientação, enraizada na imprensa doutrinária do início do

século XIX, e cujos resquícios se mostravam, e mostrariam, ainda bem vivos nos fundos

(artigos de opinião publicados na primeira página); por outro, a informação, com origens

na segunda metade desse século mas que nesta década dava sinais de revitalização.

56 Nas palavras, por exemplo, de Jacinto Ferreira,29 existem dois tipos de órgãos: o de

opinião, cuja "finalidade fundamental consiste em difundir um conjunto de princípios

religiosos, morais, políticos, etc., e fazer deles a máxima propaganda possível", e o de

informação, que "movido apenas pela intenção do lucro, do negócio, se estabelece como

uma indústria, procurando vender cada vez mais papel impresso, isto é, aumentar a sua

tiragem".

57 Adivinha-se na forma como esta distinção é formulada uma mal disfarçada

desvalorização do jornalismo de informação, reforçada pelo elogio feito aos escritores e

intelectuais do século XIX que escreveram para a imprensa, esses sim, "autênticos

jornalistas",30 segundo a definição de Sainte-Beuve retomada pelo autor:

58 "Não se pode chamar jornalista a qualquer homem que escreve em jornais. O

verdadeiro jornalista é só aquele que está habilitado, pelo seu saber, pela sua arte, pelos

seus dotes de escritor, pela sua cultura enfim, a tratar e a desenvolver prontamente

qualquer assunto, qualquer caso, qualquer questão, seja de que natureza for, que

porventura surja na tela do debate". Para o director de O Debate, "o público é o grande

intoxicado pelo veneno noticioso dos casos de rua e das agências", é "o assíduo leitor,

que as empresas dos jornais de informação deseducam e desvirilizam com a sua prosa

anónima e neutralista, com receio de lhe serem desagradáveis e perderem a venda".31

59 Revela-se nesta apreciação ao jornalismo de informação uma crítica a um certo tipo de

sensacionalismo que se compreende por parte do autor, responsável por um órgão

doutrinário identificado com a hierarquia da Igreja Católica, cuja aliança com o

salazarismo era ostensiva. Mas, ainda que noutras passagens da sua palestra Jacinto

Ferreira, como adiante veremos, mostre compreender que algo de novo estava a

acontecer no jornalismo português, é possível descortinar na sua posição a defesa de

uma imprensa não só, por um lado, ciosa de não se afastar das velhas tradições do velho

jornalismo doutrinário, mas também, simultaneamente, de manter uma certa distancia

em relação às realidades concretas do dia a dia, pouco condizentes com as apregoadas

vantagens para o povo da política do regime.

60 Posição esta que a valorização durante a década de 60 de géneros como a reportagem –

que perdera força com a implantação da Censura, primeiro em 1926 e depois, com

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redobrado poder, a partir de 1933 – vem, precisamente, pôr em causa. Não significando

isto que durante esse período não tivessem existido alguns grandes repórteres, como

foi o caso de José de Freitas ou de Urbano Carrasco (o primeiro, simpatizante do

comunismo, o segundo, próximo do salazarismo), que para a jovem geração surgida nos

fins dos anos 50 constituíam exemplo e fonte inspiradora.

61 Opinião diferente da de Jacinto Ferreira tinha João Coito, nascido e criado como

jornalista num Diário de Notícias que, independentemente da sua natureza de órgão

oficioso do regime (o órgão oficial, o Diário da Manhã, era jornalisticamente muito pobre

e pouco ambicioso), ostentava uma prosperidade e uma capacidade de concorrência que

faziam dele um dos mais importantes e influentes matutinos nacionais. Ao lê-lo sobre

"as tendências actuais da imprensa" deparamos com uma caracterização que se

distancia claramente do jornalismo do passado e mostra como neste período se assiste

já a uma teorização e a uma prática que têm muito a ver com o jornalismo que se

desenvolveria nas décadas seguintes. Nessas tendências ele inclui a "concisão", a

"objectividade", a "velocidade" e a "clareza".

62 Escreve João Coito: "O desejo de ser conciso não prejudica a riqueza e a objectividade do

relato jornalístico, da informação. O instinto do jornalista melhora quando ele é

obrigado a escrever dentro das medidas exigidas pelo espaço. O limite certo obriga-o a

esquematizar as ideias e os factos. Muitas vezes temos de escrever contra relógio e não

nos sobra tempo para uma revisão cuidada ou para o corte das palavras inúteis: não

temos tempo de ser breves".32

63 Nesta altura colocavam-se já, de forma evidente, os constrangimentos resultantes não

só da pressão da falta de tempo para cumprir os horários apertados inerentes à

fabricação de um diário, mas também a necessidade, imposta pela paginação, de limitar

os textos a determinados espaços – ainda que isto sem prejuízo de, em determinadas

circunstâncias, se pedir ao jornalista que estendesse a prosa, de modo a encher o espaço

deixado livre por ausência de outras notícias ou de publicidade.

64 No contexto invocado, a referência de João Coito à "objectividade" assume um

significado preciso: trata-se de contrapor a objectividade aos "tempos em que a

informação era emoldurada em estilo pretensioso, pintada e repintada, de modo que o

trágico se diluísse em cores de romantismo e o imoral quase se desculpasse de ser

imoral."33

65 Era o dobre de finados do velho jornalismo, que já não correspondia às exigências do

novo tipo de leitor que entretanto se ia consolidando na sociedade portuguesa: "O

público de hoje não tempo de ler. Os nossos avós que liam as gazetas de fio a pavio,

incluindo os anúncios (aliás um magnífico panorama da vida social), já há muito que

rezam por nós junto de Deus. A vida de hoje é velocidade e vertigem. O nosso tempo

está ocupado por mil obrigações e outras tantas diversões. O leitor de hoje é apressado.

Lê os títulos. Quer mastigada em poucas linhas a notícia mais sensacional."34

66 Mas a objectividade levanta um problema a que João Coito chama "de natureza moral",

mas que, no fundo, tem a ver com a deontologia – termo que, na altura, não entrara

ainda no vocabulário das salas de redacção. Interroga ele: "Todas as informações devem

ser publicadas, mesmo as que ofendam os costumes e a moral pública, mesmo as que

influam perigosamente, pelo contágio que possam exercer na conduta social do

leitor?"35 A resposta é clara: "Se os factos são sagrados, todos os factos devem ser

publicados, e deverão sê-lo desde que interessem verdadeiramente ao leitor e possam

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contribuir para que ele conheça o seu tempo e a sociedade em que vive. Não há facto

imoral em si mesmo, mas pode ser imoral o modo de o relatar ao público."36

67 Não há, pois, limites temáticos para as abordagens jornalísticas – o que implica,

obviamente, uma tomada de posição perante a Censura, a que mais à frente faremos

referência. O que é preciso evitar são os exageros: "Nem oito nem oitenta. Nem uma

sociedade apresentada como um covil de ladrões e assassinos, nem uma sociedade

constituída por anjos e querubins. O pecado é excepção, mas a excepção é notícia".37

68 A terceira tendência retida por João Coito é a "velocidade" na transmissão da

informação, passando por cima da necessária fase da confirmação das fontes. A causa

apontada não difere da que ainda hoje é invocada: "Não devemos esquecer que os

jornais são empresas comerciais. Esta ânsia de levar mais depressa a notícia ao leitor do

que o jornal do vizinho é responsável por muitos erros lamentáveis".38

69 Finalmente, o jornalista do Diário de Notícias aponta o "estilo simples, claro e acessível"

necessário à transmissão de uma informação, tendo ela que "ser redigida em termos

que todos compreendam, sem o recurso de palavras rebuscadas que possam

comprometer a sua autenticidade. É uma espécie de código, de conjunto de normas a

que todos quantos trabalham dentro da informação se devem submeter".39

70 Conclui João Coito que "não é fácil escrever para um jornal. É uma qualidade inata e um

jeito adquirido pela prática das redacções".40 Nas suas palavras finais percebe-se a

intenção de afirmar a identidade própria da profissão, perante uma sociedade e um

poder que não conferiam aos jornalistas a importância e a dignidade compatíveis com a

sua função social. Os jornalistas, mesmo os que estavam próximos e trabalhavam na

imprensa afecta ao regime, estavam longe de ter um estatuto social de recorte elitista.

71 Na concepção destes jornalistas, de que João Coito surge aqui como um exemplo, não

haveria, no fundo, uma contraposição entre "orientação" e "informação". Tratava-se,

sim, de tentar mostrar ao poder político que não se podiam ignorar as novas exigências

postas ao jornalismo pela evolução social – que muitos, neste início dos anos 60, "na

hora que vivemos, que é a hora do ultramar",41 viam mais como uma ameaçadora

convulsão. As palavras finais da palestra de João Coito são esclarecedoras: "Dêem aos

jornalistas todos os meios e exija-se-lhes depois. Eles dão tudo! Quase nada receberam

ou recebem. Uma sociedade civilizada não pode descurar capítulo tão fundamental

como este da orientação da opinião pública pela informação".42

5. Curso de Iniciação Jornalística do Diário Popularem 1966 - uma iniciativa inovadora

72 Realizado Abril e Maio de 1966, o I Curso de Iniciação Jornalística do "D.P." foi a

primeira iniciativa deste tipo realizada em Portugal. A análise da documentação que lhe

deu suporte (objectivos, condições de acesso, plano curricular, corpo docente) dá-nos

uma ideia precisa de diversos aspectos relativos à situação do jornalismo nestes meados

da década e, nomeadamente, das necessidades e exigências sentidas e apontadas, no

plano jornalístico, por aquela que era considerada, principalmente desde o início dos

anos 60, uma das empresas mais modernas e dinâmicas do sector.

73 Segundo um documento dactilografado e disponibilizado aos interessados na

frequência do curso, este "destina-se essencialmente a resolver o problema do

recrutamento de jornalistas para o próprio jornal", e isto devido a duas ordens de

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razões: "ser difícil encontrar, noutros órgãos de informação, jornalistas profissionais

que correspondam aos requisitos, de ordem vária, exigidos pelo Diário Popular"; e "ser

arriscado admitir jovens sem qualquer experiência, os quais, apesar da sua boa vontade,

não possuem a bagagem mínima de conhecimentos especializados, indispensáveis a

quem principia a trabalhar na Redacção de um grande jornal".

74 Era particularmente a estes últimos que o curso de pretendia dirigir, "na convicção de

que, no jornalismo como em qualquer outra profissão, para além dos aspectos

vocacionais, é necessária uma aprendizagem técnica e cultural".

75 Partindo destes objectivos, o curso foi construído tendo em conta duas vertentes

essenciais:

76 – Uma I Parte, com 15 dias de aulas, dedicada à imprensa em geral: "A Imprensa como

actividade sócio-cultural e profissional, nas suas relações, mais ou menos íntimas, com

outras realidades: a Opinião Pública, e os Governantes, a Economia e a Política, a

Psicologia e a Sociologia, o Indivíduo e as Colectividades, etc."

77 – Uma II Parte, com 5 dias de aulas, dedicada ao Diário Popular: "sua história, suas

características, seus objectivos".

78 A frequência do curso, cujas aulas decorreram na própria sala de redacção do

vespertino, foi limitada, por razões de eficácia pedagógica, a 25 alunos, "rigorosamente

seleccionados" entre as dezenas de candidatos inscritos. Os critérios de selecção

obedeceram às seguintes condições:

79 “1. Essenciais: a) Menos de 30 anos; b) 7º anos dos liceus ou equivalente; c) Poder assistir

a todas as aulas; d) Comprometer-se a prestar todas as provas, escritas e orais, incluídas

no curso, quer no decorrer das aulas quer na fase dos exames finais; e) Encarar como

viável a hipótese de ficar a trabalhar na Redacção do 'D.P.'.

80 “2. Preferenciais: a) Falar e escrever correctamente uma ou mais línguas estrangeiras;

b) Serviço militar cumprido; c) Curso universitário; d) Alguma experiência jornalística

(jornais, revistas, rádio ou TV); e) Saber dactilografar com rapidez."

81 Os professores eram todos "pessoas que trabalham no 'Diário Popular', quer nos

sectores directivo e redactorial, quer nos sectores administrativo, tipográfico,

publicitário". Na I Parte do curso participaram, nomeadamente, e à medida em que os

seus nomes foram aparecendo no programa (ver Quadro com horário) os jornalistas

Abel Pereira (sub-chefe de Redacção), dr. Fernando Teixeira (chefe de Redacção),

Urbano Carrasco (chefe da secção de Cidade), Armando Baptista Bastos, Bernardino

Coelho (sub-chefe da secção de Cidade), dr. Jacinto Baptista (sub-chefe de Redacção),

Botelho da Silva, Paulo Medeiros, dr. Manuel Magro (chefe da secção de Política e

Economia), José de Freitas (redactor-principal), Mário Rocha (chefe da secção de

Província), dr. Manuel Agrela (chefe da secção de Estrangeiro), Mário Henriques e José

de Lemos (ilustrador); os membros da Administração dr. Ranito Balthazar, dr.

Guilherme Brás Medeiros e dr. Francisco C.P. Balsemão; Conselheiro Dr. Emídio Pires da

Cruz, jurista da empresa; Alberto Jerónimo, chefe da secção de Revisão; e Prof. Dr.

Martinho Nobre de Mello, director do jornal.

82 As aulas decorreram diariamente, excepto domingos, entre as 20 e as 24 horas. Fora do

tempo lectivo realizaram-se exercícios escritos, quer "de secretária" quer "de rua".

Logo no dia inaugural foi marcado o primeiro trabalho de casa: um resumo e uma

apreciação ao que se passara precisamente nesse primeiro dia do curso.

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83 Os exames finais ocuparam quatro dias, dois de provas escritas e dois de provas orais,

tendo os alunos sido agrupados em três grupos: os "Muito Aptos", os "Aptos" e os "Não

Aptos". Dentro de cada grupo foi atribuída uma ordem de mérito – primeiro, segundo,

etc. Estava previsto que os três primeiros entre os "Muito Aptos" fossem convidados a

integrar a Redacção do jornal, mas acabaram por ser quatro: Botelho Tomé, José

Manuel Teixeira, Silas de Oliveira e Fernando Correia (segundo a ordem da

classificação). Entre as preocupações dos promotores do curso – entre os quais se deve

destacar Francisco Balsemão, autor da ideia e principal dinamizador da iniciativa – é

evidente a intenção de rejuvenescer e procurar melhorar a qualidade do quadro

redactorial. Do quadro do Diário Popular já faziam parte alguns jovens repórteres com

nome feito, e posteriormente reforçado no jornalismo e na literatura, como era o caso

de Baptista Bastos e Mário Ventura Henriques, assim como outros profissionais menos

jovens, como Urbano Carrasco e José de Freitas.

84 Era patente a convicção, que ao tempo estava longe de ser pacífica, nomeadamente

entre os profissionais mais antigos, de que a vocação não bastava para fazer um bom

jornalista, ou que, pelo menos, de que uma boa preparação cultural, resultante de uma

escolaridade elevada, poderia ser importante para um início de carreira auspicioso.

85 Estas ideias ressaltam claramente das "condições" para a frequência do curso,

demonstrando até que ponto, neste período, se sentia a necessidade de dar resposta a

novas exigências colocadas perante o jornalismo português. Exigências impostas pelo

público e pela concorrência, mas também pela progressiva introdução nas salas de

redacção de "novas tecnologias", como a máquina de escrever – de que os jornalistas do

Diário Popular dispunham desde o início da década mas que noutros importantes diários

só anos mais tarde se generalizaria.

86 É também interessante verificar o manifesto desejo de alimentar uma identidade

própria do Popular, no quadro da preocupação das "empresas familiares", então

dominantes, em cultivar os chamados "hábitos da casa", visíveis na referência sibilina,

nos objectivos do curso, aos "requisitos de ordem vária" exigidos a quem trabalhava no

jornal; no facto de todas as aulas, sem excepção, estarem a cargo de quadros da

empresa; e na importância e no tempo substancial dedicados à "história",

"características" e "objectivos" do Diário Popular.

87 Num tempo em que a imprensa se desenvolvia, aumentava as tiragens e procurava

ocupar um espaço próprio entre a oferta existente, a ambição dos responsáveis,

nomeadamente os mais directamente ligados à produção da informação, era ter sob o

seu comando jornalistas não vindos de outros jornais, já com "vícios" (era mesmo esta a

expressão utilizada) adquiridos noutras formas de trabalhar, mas sim jovens feitos e

afeitos aos "hábitos da casa".

6. Projecto de Ensino de Jornalismo em Portugal /1970

88 Depois do "calo" adquirido com as experiências de 1941 (falhada) e 1968 (concretizada),

o Sindicato Nacional dos Jornalistas chegou a 1970 com a determinação suficiente para

apresentar um "Projecto de Ensino de Jornalismo em Portugal", aprovado pela

assembleia geral em 10 de Dezembro desse ano.

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Page 249: Livro e Iconografia

89 Esse documento,43 de 19 páginas, resultou do trabalho de uma comissão nomeada em 6

de Maio de 1970, composta pelos jornalistas Manuel da Silva Costa (presidente do SNJ),

Jacinto Baptista, João Gomes e Cáceres Monteiro (secretário), José Lechner, Oliveira

Figueiredo, e Carlos Ponte Leça. Os três últimos foram convidados na qualidade de

"conselheiros técnicos" porque eram os únicos formados no estrangeiro,

respectivamente na Escola de Jornalismo de Lille, na Escola de Jornalismo da Igreja, de

Madrid e na Escola de Jornalismo da Universidade de Navarra, além de António dos

Reis, diplomado pela Escola de Jornalismo da Universidade Internacional Pro Deo, em

Roma.

90 O que diferencia este projecto dos anteriores é, por um lado, a sua maturidade e, por

outro, a preocupação de o filiar nas experiências de ensino do jornalismo que se

praticavam no estrangeiro. A primeira fase dos trabalhos desta comissão consistiu em

reunir ampla informação sobre os cursos de jornalismo existentes lá fora para depois

traçar uma visão geral do que se passava no mundo.

91 O relatório produzido apontava o dolorosamente óbvio: Portugal era dos raros países do

mundo onde não existia uma escola de comunicação social. "O jornalismo é

actualmente em Portugal a única actividade profissional de carácter intelectual para

cujo exercício não se exige uma formação específica sancionada em termos legais. A

necessidade de dotar o jornalismo das mesmas garantias exigidas às demais profissões

intelectuais é tanto mais premente quanto é certo incumbir em grande parte aos

jornalistas a formação da opinião pública".44

92 Quanto ao modo e ao conteúdos do ensino a ministrar, a comissão assinalou a

"tendência quase universal para integrar os cursos de jornalismo na universidade"45 e

propunha a designação mais geral de Ciências da Informação.

93 A visão do jornalista aqui apontada afasta-se milhas da sua representação enquanto

técnico de redacção, propondo-se que seja antes "um professor e um intérprete".46 A

comissão definiu as "vastas e exigentes" exigências de formação do jornalista: "Requer

preparação que permita o entendimento de uma ampla problemática suscitada pela

informação escrita e audiovisual – o que determina um nível de abstracção e uma

compreensão dos fenómenos humanos que só podem ser alcançados no ambiente

pautado pela exigência científica e pela formação do espírito critico próprio da

Universidade. O jornalismo supõe conhecimento profundo das ciências e técnicas de

informação, o que implica, naturalmente, uma aprendizagem em ordem ao exercício da

profissão".47

94 Segundo este projecto, o jornalista devia basear a sua cultura nas "matérias

humanísticas" porque só assim seria capaz de entender "o conjunto da problemática

contemporânea".

95 A proposta da SNJ foi a criação de um Instituto Superior de Ciências da Informação

(ISCI), que concedesse três graus académicos: Bacharel (três anos); Licenciado (cinco

anos) e Doutor (regime idêntico ao estabelecido no Decreto-Lei nº 388/70).

96 O acesso seria idêntico ao de qualquer outro curso universitário. Para os profissionais

de jornalismo com mais de 25 anos, exigia-se o exercício da profissão há mais de cinco

anos.

97 O plano de estudos apontava para três primeiros anos de carácter mais geral, incluindo

matérias como Sociologia, Economia, História Contemporânea, Linguística e Ciência

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Politica e os dois últimos anos mais especializados, contemplando disciplinas como

Sociologia da Informação, Jornalismo Comparado, Metodologia da Pesquisa Social.

98 Entre as disciplinas de especialização, os estudantes poderiam optar por cadeiras

relativas ao noticiário internacional (por exemplo, politica económica internacional,

movimentos sociais ou relações diplomáticas), nacional (por exemplo, direito

constitucional, direito criminal ou politica ultramarina), assuntos económicos e sociais

(por exemplo, correntes económico-sociais, educação e ensino ou estatística) ou

actividades lúdicas (por exemplo, artes, espectáculos ou desportos); e frequentar

seminários de especialização em ciências da informação (entre outros, história do

jornalismo, análise de conteúdo, economia dos meios colectivos de informação),

técnicas de informação (incluindo técnicas de recolha, de tratamento, de difusão ou de

documentação), meios de informação (aqui se contemplavam jornalismo,

radiojornalismo, telejornalismo e cinejornalismo) ou relações com sectores afins (por

exemplo, publicidade, relações públicas e artes gráficas".48

99 Para o financiamento do referido instituto, o SNJ propunha uma solução tripartida: O

Estado, entidades privadas idóneas (a título, por exemplo, de subsidiar a investigação,

que será uma das finalidades principais do Instituto), empresas de informação e o

próprio sindicato, "a título simbólico".49

100 A proposta debruçava-se ainda sobre o recrutamento do pessoal docente necessário, a

existência de manuais didácticos adequados e as necessidades de equipamento técnico.

Neste ponto, vale a pena destacar o que então se considerava fundamental para o

arranque do ISCI: "biblioteca; arquivos gerais e de informação; hemeroteca; jornal-

laboratório (com tipografia e oficina de fotogravura), estúdio-laboratório de fotografia;

estúdio-laboratório de televisão e cinema (com circuito fechado de TV, projector,

pantalha, moviola, truca cinematográfica, etc); estúdio-laboratório de rádio, além de

material auxiliar como fotocopiador, duplicador, telescritores, receptores de rádio e

TV".50

101 Terá sido o excesso de ambição que fez perder este projecto? Porque, mais uma vez,

apesar da conclusão do documento – "Nada parece obstar à introdução do ensino do

jornalismo em Portugal. Pelo contrário: tal ensino é necessário, é possível e é condição

imprescindível para que o povo português disponha da informação a que tem direito e

que o progresso do país não pode dispensar"51 – não se concretizou.

102 A intenção do SNJ encontrou oposição em praticamente todo o lado. Entre os

jornalistas, muitos não se reconheciam na visão do jornalismo como profissão

intelectual. Num dossier dedicado ao tema, publicado na revista CF, escreveu-se: "Não

será isto denunciador da ideologia desta proposta e dos fins que objectivamente serve –

a constituição de uma espécie de feudo ou mandarinato da informação a que só os

"doutores", os "bacharéis" ou os "licenciados" terão direito de acesso? Nós, os

jornalistas "especializados" que sabemos, somos os professores da opinião pública,

temos o segredo da informação – os outros só têm de ouvir caladinhos as nossas

verdades universitárias".52

103 O governo, liderado por Marcelo Caetano, perdia-se já naquelas tibiezas, hesitações e

recuos que caracterizam o Marcelismo e não estava objectivamente interessado em

viabilizar a ideia nem a dar-lhe celeridade. Chegou a criar-se, em Janeiro de 1973 (três

anos depois!) um "grupo de trabalho para o estudo e emissão de propostas sobre a

criação, a nível oficial, de um Instituto Superior de Ciências da Informação, o qual será

constituído por representantes do Ministério da Educação Nacional e de vários

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Page 251: Livro e Iconografia

organismos que têm demonstrado interesse pelo assunto ou directamente ligados à

actividade informativa".53

104 Esta diligência foi alvo de cobertura jornalística por parte dos jornais da época. O Século,

por exemplo, informou que, "para dar cumprimento ao preceito da Lei de Imprensa,

que obriga o Estado a criar um ISCI, acaba de ser constituído, por despacho do ministro

da Educação, o grupo de trabalho para estudar a sua criação. Sendo o referido instituto

uma etapa decisiva no reconhecimento da importância de uma profissão que nem

sempre goza das prerrogativas a que tem direito, O Século regozija-se de poder dar, em

primeira mão,54 a notícia da criação de um grupo que irá, concretizar, esperemos que

muito brevemente, uma justa e antiga aspiração dos profissionais da informação".55

105 A partir da apresentação do projecto, em 1970, o SNJ desencadeia um

106 a verdadeira "ofensiva diplomática" para o levar por diante. O ministro da Educação

Nacional, Veiga Simão, recebeu pelo menos dois ofícios daquele sindicato, em 3 de

Dezembro de 1971 e em 26 de Outubro de 1972, recordando que "a Base XII da Lei de

Imprensa comete ao governo o encargo de organizar o ensino do jornalismo".56

107 Na missiva de 26 de Outubro, o Sindicato procurou mesmo pressionar Veiga Simão:

"Não tendo entrado ainda em funções o grupo de trabalho cuja formação foi

superiormente prevista por Vossa Excelência, a direcção do sindicato apenas tem

conhecimento, obtido pelo primeiro dos signatários em conversa pessoal com Sua

Excelência o senhor Presidente do Conselho, de que está nas mãos de Vossa Excelência

a promoção do ensino do Jornalismo – cometida ao Governo na Base XII da Lei de

Imprensa".57

108 Muito inflamado é também o discurso de Silva Costa, no acto da entrega do projecto ao

ministro da Educação Nacional (4 de Novembro de 1971 às 11 e 30 h): "Terá chegado a

vez de Portugal possuir ensino do jornalismo a nível universitário? Correu mundo a

falsa ideia de que o jornalista nasce, não se faz. Os jornalistas portugueses, pelo

contrário, negam-se a confiar a métodos empíricos a formação dos futuros

profissionais".58

109 Estas e outras corajosas palavras que citámos ao longo deste capítulo demonstram

como os jornalistas portugueses tinham já ganho uma batalha decisiva: não tinham

medo. Mas faltava, porventura, o mais importante, descrito numa nota do Diário de

Lisboa intitulada A dignidade de uma profissão: "Pede-se ao jornalista que seja um

homem íntegro ao serviço do bem comum. Para ele corresponder ao que se lhe exige,

haverá que facultar-lhe meios que presentemente não dispõe em toda a desejada

amplitude: o acesso às fontes de informação, a liberdade de expressão inerente a

qualquer tentativa de consciencialização da opinião pública, o ambiente propício à

institucionalização do diálogo e também uma situação material que lhe permita

dedicar-se inteiramente e com dignidade à sua profissão".59

7. A primeira escola de jornalismo em Portugal

110 Embora o SNP tenha sido pioneiro a estruturar um projecto para a criação de um curso

universitário de Jornalismo, a concretização coube ao Instituto de Línguas e

Administração (ISLA), a primeira instituição portuguesa de ensino superior particular,

fundada em 1962.

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Page 252: Livro e Iconografia

111 Em 17 de Agosto de 1970, o ISLA solicitou ao Ministério da Educação Nacional aprovação

para abertura da "Escola Superior de Meios de Comunicação Social" (ESMC), que

ministraria quatro cursos de três anos – Jornalismo, Relações Públicas, Publicidade,

Rádio e Televisão.

112 Ao contrário da iniciativa do SNP, que só encontrou resistências e protelamentos

políticos, a ESMC foi acolhida tão favoravelmente que começou a funcionar logo no ano

lectivo de 1971/72, antes mesmo de obtida a autorização oficial pela Junta Nacional de

Investigação, cujo parecer favorável só foi homologado em Março de 1971.

113 Era, de resto, uma iniciativa sólida e com tudo para "ganhar". Tinha sustentação

jurídica (a própria Base XII da Lei de Imprensa recentemente aprovada reconhecia a

necessidade do ensino do jornalismo e previa que o governo promovesse a sua

organização) e económica, através do patrocínio do Banco Borges&Irmão, um dos

maiores grupos capitalistas portugueses, dirigido por Miguel Quina, já ligado ao negócio

da comunicação, pois detinha as duas empresas editoras do Diário Popular e do Jornal do

Comércio, além da agência de publicidade Latina.

114 José Lechner, um dos consultores do SNJ para a elaboração do projecto de ensino

universitário do jornalismo e antigo docente na ESMCS, diz que "todas as peças do

puzzle estavam completas". Para director da escola, foi escolhido o director do Diário

Popular, embaixador Martinho Nobre de Melo, uma figura que expressa bem o conjunto

de forças poderosas que sustentavam esta iniciativa privada: dava garantias que era

inofensiva politicamente e robusta financeiramente. Também foi hábil do ponto de

vista diplomático pois procurou captar o apoio dos SNJ, apesar de lhe ter tomado a

dianteira.

115 Fernando Cascais relata que, em 25 de Novembro de 1971, o director da ESMCS

convidou o presidente do SNJ, Manuel da Silva Costa, para integrar o seu conselho

orientador, sublinhando o benefício da "inestimável ligação entre as actividades

docentes e as exigências da prática. O convite foi aceite. A direcção do SNJ considerou

do maior interesse a criação de um estabelecimento de ensino superior particular de

Jornalismo, Relações Públicas e Publicidade, sem prejuízo do projecto de um Instituto

Superior de Ciências da Informação, aprovado em assembleia geral deste organismo em

10 de Dezembro de 1970".60

116 Aparentemente, a direcção do SNJ acreditou que o seu projecto de criação de um ensino

superior público na área da Informação não ficava comprometido pela abertura de uma

escola privada com objectivos transdisciplinares.

117 A ESMCS porém, nunca foi um projecto bem sucedido, talvez porque não teve tempo

para se afirmar. A banca foi nacionalizada na sequência do 25 de Abril de 1974, e a

escola agonizou durante alguns anos até ser extinta na década de 80.

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1. Jornalismo, número 8/Novembro 1968.

2. Carta a José Azeredo Perdigão, 17 Fevereiro de 1969, Arquivo do Sindicato Nacional dos

Jornalistas (SNJ).

3. Carta de Nuno Rocha, secretário de redacção da separata Jornalismo, aos directores dos jornais

diários de Lisboa, 23 de Outubro de 1968.

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4. Velma de Carvalho, directora da revista Casa e Decoração, colaborava em vários jornais e foi a

única mulher jornalista sindicalizada inscrita no curso.

5. Jornalismo, número 7/Outubro 1968.

6. Idem, ibidem, p. 10.

7. Idem, ibidem, p. 10.

8. Oficio do SNJ, sem data.

9. Circular do SNJ, Julho/1969.

10. Idem.

11. Diário Popular, 6 de Março de 1969.

12. A carta do ministro Gonçalves Proença foi enviada no dia 27 de Agosto de 1968: "Tenho a

honra de informar V. Excelência de que por despacho de sua Excelência o ministro das

Corporações e Previdência Social de 9 do corrente mês, foi autorizada a concessão de um subsídio

de 100 000 $00 da conta do orçamento deste Fundo [de Desenvolvimento da Mão de Obra] do

Ministério das Corporações e Previdência Social – Direcção Geral do Trabalho e Corporações –

para a realização de um curso que esse organismo pretende levar a efeito especialmente

destinado ao aperfeiçoamento e formação profissional dos seus sócios. Nos termos do mesmo

despacho, a entrega daquele subsídio fica condicionada à aprovação do elenco de colaboradores

que, no referido curso, tomarão parte", Arquivo do SNJ.

13. Estimativa de Orçamento apresentada pelo SNJ, Julho de 1968, Arquivo do SNJ. Incluía o

pagamento a 13 professores (36 6000$00), aquisição de bibliografia (10 000 $00); vencimento de

um secretário geral (48 000$00) e de dois funcionários encarregues da dactilografia e tiragem de

stencils (36 000$00), despesas de tipografia (50 000$00) e diversos (convites a professores

extraordinários, material de correio e expedição no valor de 20 000$00).

14. José Manuel Pereira da Costa justificava-se assim a José Azeredo Perdigão, em carta datada de

11 de Março de 1968, Arquivo do SNJ: "Tão grande interesse despertou o curso, nomeadamente

entre os estudantes universitários e os profissionais de Imprensa – registando-se cerca de 200

inscrições em Lisboa – que foi necessário abrir nova modalidade, por correspondência, para

atender duas centenas de inscritos, no Porto, em Angola, Moçambique e noutros pontos do país.

O facto obrigou o sindicato a ampliar os planos primitivos, quer através de lições extraordinárias

a cargo de professores e jornalistas nacionais e estrangeiros expressamente convidados, quer

através da publicação dos textos das lições normais, entregues a professores universitários e

liceais que houve necessidade de remunerar".

15. Idem.

16. Idem.

17. Carta de Gonçalves Pereira à direcção do SNJ, 12 de Março de 1968, Arquivo do Sindicato.

18. Discurso de Gonçalves Pereira, ministro das Corporações e da Previdência Social, na sessão

inaugural do I Curso de Jornalismo, 25 de Novembro, 1968, Sede do Sindicato Nacional dos

Caixeiros, Lisboa, Arquivo do SNJ.

19. Discurso de Pereira da Costa, presidente do SNJ, na sessão inaugural do I Curso de Jornalismo,

25 de Novembro, 1968, Sede do Sindicato Nacional dos Caixeiros, Lisboa, Arquivo do SNJ.

20. Vida Mundial, 30 de Maio de 1969.

21. Jornalismo, número 8, Novembro/1968.

22. Oficio de Luís Teixeira, presidente da comissão administrativa do SNJ, ao subsecretário de

Estado da Informação, datado de 8 de Fevereiro de 1941, Arquivo do SNJ.

23. Projecto de criação do Curso de Formação Jornalística, policopiado, 8 de Fevereiro de 1941,

Arquivo do SNJ. A título de curiosidade, refira-se que o SNJ estimou em 15 000$00 as receitas

previstas (resultantes de selos nos certificados de aproveitamento) e em 19 810$00 as despesas

previstas, resultantes do pagamento aos regentes das cadeiras e a remuneração do delegado do

ministério da Educação Nacional (Instituto para a Alta Cultura) encarregado de dirigir o curso).

24. Idem.

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Page 255: Livro e Iconografia

25. Idem.

26. Descritivo da Cadeira A – "A Formação Profissional dos Jornalistas", projecto de criação do

Curso de Formação Jornalística, 8 de Fevereiro de 1941, Arquivo do SNJ.

27. Curso de Jornalismo, Junta de Investigação do Ultramar, Estudos de Ciências Políticas e Sociais,

nº 60, Lisboa, 1963.

28. Depois de elogiar a iniciativa, diz um dos oradores convidados, Trabucho Alexandre: "Só um

reparo, e faço-o com a maior sinceridade: considero demasiado ambiciosa a classificação de curso

de jornalismo, e isto porque, efectivamente, não é. Chamemos-lhe ciclo de conferências sobre

jornalismo, e talvez, sem diminuirmos o seu mérito, tenhamos encontrado a designação justa".

29. Ibidem, p. 43.

30. Ibidem, p. 39.

31. Ibidem, pp. 44 e 45.

32. Ibidem, p. 80.

33. Ibidem, p. 81.

34. Ibidem, pp. 81 e 82.

35. Ibidem, p. 82.

36. Ibidem, p. 82.

37. Ibidem, p. 82.

38. Ibidem, p. 83.

39. Ibidem, p. 85.

40. Ibidem, p. 85.

41. Ibidem, p. 86.

42. Ibidem, p. 87.

43. Separata do nº 4 — II Série do boletim Jornalismo, 20 Novembro 1970.

44. Idem, p. 5.

45. Idem, p. 9.

46. Idem, p. 9.

47. Idem, p. 9.

48. O plano de estudos é detalhado nas páginas 10/11 do projecto.

49. Idem, p. 13.

50. Idem, p. 14.

51. Idem.

52. Reis, Miguel, "Jornalismo, uma iniciativa vital?", CF, Fevereiro, 1973.

53. Carta de Manuel da Silva Costa, presidente do SNJ, ao presidente do Gabinete de Estudos e

Planeamento da Acção Educativa, congratulando-se pela criação do referido grupo de trabalho,

na dependência directa daquele responsável, e nomeando Jacinto Baptista como representante do

sindicato, 18 Janeiro, 1973.

54. Este "em primeira mão" não corresponde à verdade. Pelo menos o "Diário de Lisboa" deu

igualmente esta notícia, no dia 5 de Março de 1973.

55. A notícia de O Século especifica a constituição exacta do grupo de trabalho: "A este grupo, que

funciona sob a dependência do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Educação

(GEP), preside o prof. Fraústo da Silva, director do GEP. Faltando apenas designar o representante

do Grémio Nacional das Actividades Publicitárias, a comissão ficará assim constituída: dr. Ramiro

Valadão, representante da Secretaria de Estado da Informação; Manuel Maria da Silva Costa, pela

Corporação da Imprensa e Artes Gráficas; eng. Adriano Mário da Cunha Lucas, pelo Grémio

Nacional da Imprensa Diária; Gentil Marques, pelo Grémio Nacional da Imprensa Não-Diária, Dra.

Maria Isabel Beja Saraiva, pela Direcção Geral do Ensino Superior; dr. Jacinto Baptista, pelo

Sindicato Nacional dos Jornalistas Portugueses, O Século, 5 Março de 1973.

56. Exposição do Sindicato dos Jornalistas ao ministro da Educação Nacional sobre o Projecto do

Ensino do ensino das Ciências da Informação, 3 de Dezembro de 1971, Arquivo do SNJ.

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57. Carta do SNJ a Veiga Simão, de 26 de Outubro 1972, assinada por Manuel da Silva Costa

(presidente), Maria Manuel Alves (secretária) e Torquato da Luz (tesoureiro), arquivo do SNJ.

58. Discurso de Silva Costa a Veiga Simão na entrega do projecto de ensino do Jornalismo, 4 de

Novembro de 1971, Arquivo do SNJ.

59. Diário de Lisboa, 23 de Novembro de 1968.

60. Idem, Ibidem.

RESUMOS

O ensino do jornalismo em Portugal é uma aspiração que remonta aos anos 40, embora só em

1979 tenha aberto, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a

primeira licenciatura em Comunicação Social. Pelo meio, existiram várias iniciativas de que

damos conta neste artigo: uma série de palestras sobre temas ligados à comunicação que

decorreram no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos em 1962; um curso de formação

profissional organizado pelo Diário Popular em 1966; o I Curso de Jornalismo, promovido pelo

Sindicato Nacional dos Jornalistas em 1968; a Escola Superior de Meios de Comunicação Social

onde, em 1971, se iniciou um curso de Jornalismo de três anos.

In Portugal, the Journalism teaching is an aspiration that comes from the Forties, although the

first degree in Social Communication only started in 1979, at the Faculty of Human and Social

Sciences from New University of Lisbon. In between, several initiatives took place, that

constitutes the centre of this article: several conferences about Communication issues in 1962 at

the Superior Institute of Ultramarine Studies; a professional course organized by the newspaper

Diário Popular in 1962; the First Journalism Course patronized by the National Union of

Journalists in 1968; the Superior School of Social Communication where, in 1971, started a three

year Journalism course.

ÍNDICE

Keywords: journalism teaching, journalism history, joumalists professional formation

Palavras-chave: ensino do jornalismo, história do jornalismo, formação profissional de

jornalistas

AUTORES

FERNANDO CORREIA

Univ. Lusófona.

Mestre em Ciências da Comunicação pelo ISCTE, licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras

de Lisboa. Professor Associado Convidado na Universidade Lusófona de Humanidades e

Tecnologias e no ISCTE nas áreas de Comunicação e Jornalismo. Estuda Jornalismo, Media,

História e Identidade Profissional dos Jornalistas.

Publicou Os Jornalistas e as Noticias. A Autonomia jornalística em Questão, Lisboa: Ed. Caminho, (1ª ed.

Cultura, vol. 21 | 2005

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Page 257: Livro e Iconografia

1997), 2003; Jornalismo e Sociedade, Lisboa: Ed. Avante, (4ª edição) 2000; Jornalismo, Grupos

Económicos e Democracia, Ed. Caminho, 2006.

CARLA BAPTISTA

FCSH UNL

Doutoranda em Ciências da Comunicação na FCSH-UNL, mestre em Estudos Africanos pelo ISCTE,

licenciada em Ciências da Comunicação pela FCSH-UNL. Assistente no Departamento de Ciências

da Comunicação e da Linguagem da FCSH, UNL. Ocupa-se de Sociologia do Jornalismo, História do

Jornalismo, Ética e Deontologia do Jornalismo. Publicou Portugal no olhar de Angola, Coimbra,

Minerva Coimbra, 2002.

Cultura, vol. 21 | 2005

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Page 258: Livro e Iconografia

Diálogos Escritos

Cultura, vol. 21 | 2005

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História cultural e história dasidéiasdiálogos historiográficos

Cultural History and History of the Ideas – Historical Dialogues

José D’Assunção Barros

NOTA DO AUTOR

O presente artigo remete, como referência principal, a um livro publicado

recentemente pelo autor, e que se refere a um estudo das várias modalidades da

História. Referências: José D'Assunção Barros, O Campo da História – Especialidades e

Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004, 222 pp.

Entre as várias modalidades historiográficas que foram se consolidando no decurso do

século XX, algumas têm primado pela riqueza de possibilidades que abrem aos

historiadores que as praticam. A História Cultural – campo historiográfico que se torna

mais preciso e evidente a partir das últimas décadas do século XX, mas que tem claros

antecedentes desde o início do século – é entre estas particularmente rica no sentido de

abrigar no seu seio diferentes possibilidades de tratamento e âmbitos temáticos. Nosso

objetivo aqui será o de elaborar um pequeno panorama inicial das principais tendências

que se têm projetado no campo da História Cultural e, na segunda parte deste ensaio,

discutir mais aprofundadamente a História das Idéias como um dos domínios mais

significativos da História Cultural.

Para introduzir um universo comum a todas as tendências de aqui falaremos,

consideraremos que a História Cultural é aquele campo do saber historiográfico

atravessado pela noção de "cultura" (da mesma maneira que a História Política é o

campo atravessado pela noção de "poder", ou que a História Demográfica funda-se

essencialmente sobre o conceito de "população", e assim por diante).1 Cultura, contudo,

é um conceito extremamente polissêmico, notando-se ainda que o século XX trouxe-lhe

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258

Page 260: Livro e Iconografia

novas redefinições e abordagens em relação ao que se pensava no século XIX como um

âmbito cultural digno de ser investigado pelos historiadores.

Orientando-se em geral por uma noção muito restrita de "cultura", os historiadores do

século XIX costumavam passar ao largo das manifestações culturais de todos os tipos

que aparecem através da cultura popular, além de também ignorarem que qualquer

objeto material produzido pelo homem faz também parte da cultura – da cultura

material, mais especificamente. Além disto, negligenciava-se o fato de que toda a vida

cotidiana está inquestionavelmente mergulhada no mundo da cultura através dos

modos de vida, das práticas culturais e das representações. De fato, ao existir qualquer

indivíduo já está automaticamente produzindo cultura, sem que para isto seja preciso

ser um artista, um intelectual, ou um artesão. A própria linguagem, e as práticas

discursivas que constituem a substância da vida social, embasam esta noção mais ampla

de Cultura. "Comunicar" é produzir Cultura, e de saída isto já implica na duplicidade

reconhecida entre Cultura Oral e Cultura Escrita (sem falar que o ser humano também

se comunica através dos gestos, do corpo, e da sua maneira de estar no mundo social,

isto é, do seu 'modo de vida').

Apenas para exemplificar com uma situação significativa, tornemos um "livro", este

objeto cultural reconhecido por todos os que até hoje se debruçaram sobre os

problemas culturais. Ao escrever um livro, o seu autor está incorporando o papel de um

produtor cultural. Isto todos reconhecem. O que foi acrescentado pelas mais modernas

teorias da comunicação é que, ao ler este livro, um leitor comum também está

produzindo cultura. A leitura, enfim, é prática criadora – tão importante quanto o gesto

da escritura do livro. Pode-se dizer, ainda, que cada leitor recria o texto original de uma

nova maneira – isto de acordo com os seus âmbitos de "competência textual" e com as

suas especificidades (inclusive a sua capacidade de comparar o texto com outros que

leu, e que podem não ter sido previstos ou sequer conhecidos pelo autor do texto

original que está se prestando à leitura). Desta forma, uma prática cultural não é

constituída apenas no momento da produção de um texto ou de qualquer outro objeto

cultural, ela também se constitui no momento da recepção. Este exemplo, aqui o

evocamos com o fito de destacar a complexidade que envolve qualquer prática cultural

(e elas são de número indefinido).

Desde já, para aproveitar o exemplo acima discutido, poderemos evocar uma

delimitação já moderna de História Cultural elaborada por Georges Duby.2 Para o

historiador francês, este campo historiográfico estudaria dentro de um contexto social

os "mecanismos de produção dos objetos culturais" (aqui entendidos como quaisquer

objetos culturais, e não apenas as obras-primas oficialmente reconhecidas). O exemplo

acima proposto autoriza-nos a acrescentar algo. A História Cultural enfoca não apenas

os mecanismos de produção dos objetos culturais, como também os seus mecanismos de

recepção (e já vimos que, de um modo ou de outro, a recepção é também uma forma de

produção). Estabelecido isto, retomemos a comparação entre os atuais tratamentos

historiográficos da Cultura e aqueles que eram tão típicos do século XIX.

Ao ignorar a inevitável complexidade da noção básica que a fundamentava, a História

da Cultura tal como era praticada nos tempos antigos era uma história elitizada, tanto

nos sujeitos como nos objetos estudados. A noção de "cultura" que a perpassava era

uma noção demasiado restrita, que os avanços da reflexão antropológica vieram

desautorizar. Não que as produções culturais que as várias épocas reconhecem como

"alta cultura", ou que a produção artística que está hoje sacramentada pela prática

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259

Page 261: Livro e Iconografia

museológica tenham perdido interesse para os historiadores. Ao contrário, estuda-se

Arte e Literatura do ponto de vista historiográfico muito mais do que nos séculos

anteriores ao século XX. Apenas que a estes interesses mais restritos acrescentou-se

uma infinidade de outros. Tal parece ter sido a principal contribuição do último século

para a História Cultural. Para além disto, passou-se a avaliar a Cultura também como

processo comunicativo, e não como a totalidade dos bens culturais produzidos pelo

homem. Este aspecto, para o qual confluíram as contribuições advindas das teorias

semióticas da cultura, também representou um passo decisivo.

As noções que se acoplam mais habitualmente à de "cultura" para constituir um

universo de abrangência da História Cultural são as de "linguagem" (ou comunicação),

"representações", e de "práticas" (práticas culturais, realizadas por seres humanos em

relação uns com os outros e na sua relação com o mundo, o que em última instância

inclui tanto as 'práticas discursivas' como as 'práticas não-discursivas'). Para além

disto, a tendência nas ciências humanas de hoje é muito mais a de falar em uma

'pluralidade de culturas' do que em uma única Cultura tomada de forma generalizada.

Em nosso caso, como estamos empregando a História Cultural como um dos enfoques

possíveis para o historiador que se depara com uma realidade social a ser decifrada,

utilizaremos em algumas ocasiões a expressão empregada no singular como ordenadora

desta dimensão complexa da vida humana. Trata-se no entanto de uma dimensão

múltipla, plural, complexa, e que pode gerar diversas aproximações diferenciadas.

Os objetos de interesse da História Cultural, face à noção complexa de cultura que hoje

predomina nos meios da historiografia profissional, são inúmeros. A começar pelos

objetos de interesse que já faziam parte dos antigos estudos historiográficos da Cultura,

e que se referem ao campo das expressões artísticas, continuaremos mencionando o

âmbito das Artes, da Literatura e da Ciência – campo já de si multi-diversificado, no

qual podem ser observadas desde as imagens que o homem produz de si mesmo, da

sociedade em que vive e do mundo que o cerca, até as condições sociais de produção e

circulação dos objetos de arte e literatura. Fora estes objetos culturais já de há muito

reconhecidos, e que de resto sintonizam com a "cultura letrada", incluiremos todos os

objetos da 'cultura material' e os materiais (concretos ou não) oriundos da "cultura

popular" produzida ao nível da vida cotidiana através de atores de diferentes

especificidades sociais.

De igual maneira, uma nova História Cultural interessar-se-á simultaneamente pelos

sujeitos produtores e receptores de cultura – o que abarca tanto a função social dos

'intelectuais' de todos os tipos (no sentido amplo, conforme veremos adiante), até o

público receptor, o leitor comum, ou as massas capturadas modernamente pela

chamada "indústria cultural" (esta que, aliás, também pode ser relacionada como uma

agência produtora e difusora de cultura). Agências de produção e difusão cultural

também se encontram no âmbito institucional: os Sistemas Educativos, a Imprensa, os

meios de comunicação, as organizações socioculturais e religiosas.

Para além dos sujeitos e agências que produzem a cultura, estudam-se os meios através

dos quais esta se produz e se transmite: as práticas e os processos. Por fim, a 'matéria-

prima' cultural propriamente dita (os padrões que estão por trás dos objetos culturais

produzidos): as visões de mundo e representações, os sistemas de valores, os sistemas

normativos que constrangem os indivíduos, os 'modos de vida' relacionados aos vários

grupos sociais, as concepções relativas a estes vários grupos sociais, as idéias

disseminadas através de correntes e movimentos de diversos tipos. Com um

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Page 262: Livro e Iconografia

investimento mais próximo à História das Mentalidades, podem ser estudados ainda os

modos de pensar e de sentir tomados coletivamente (na verdade, o que hoje é chamado

de História das Mentalidades desdobrou-se originalmente do âmbito da História

Cultural, e em um futuro contexto pode retornar a este âmbito em um novo giro

historiográfico).

Estes inúmeros objetos de interesse da História Cultural têm constituído um foco

especial de interesses da parte de vários historiadores do século XX. Um esquema sobre

os vários âmbitos possíveis da História Cultural pode combinar quatro dos elementos

fundamentais acima citados (objetos culturais, sujeitos, sistemas, processos) com

quatro dimensões essenciais que se multiplicam logo a seguir: as práticas, as

representações, as visões de mundo, as expressões.

Clarifiquemos o esquema proposto. Tudo o que o homem faz em termos de cultura pode

ser referido às funções fundamentais que estão à direita – dentro dos triângulos

maiores – e que correspondem a quatro gestos culturais essenciais: as práticas

relacionam-se ao "fazer"; as representações relacionam-se ao "representar"; as visões de

mundo relacionam-se ao "ver" (no sentido de conceber), e as expressões relacionam-se ao

impulso do ser humano de se "expressar" de maneiras diversas. Essas funções

fundamentais correspondem cada qual a muitos desdobramentos possíveis.

Assim, as práticas podem se referir aos 'modos de vida' (a vida em um grande centro

urbano ou a vida recolhida em um mosteiro, por exemplo), aos 'comportamentos' dos

homens nas suas relações mútuas ou nas suas relações com a Natureza, aos 'sistemas

normativos' que regem os relacionamentos sociais e funcionais (as normas de

convivência, os papéis partilhados nas relações de gêneros e nas relações de

parentesco, os sistemas de repressão ou de imposição hierárquica), às 'técnicas'

(procedimentos para produzir objetos culturais, ou também para utilizá-los com vista à

feitura de algo), ou a `práticas culturais específicas' (a leitura de um livro, a escrita, o

ato de orar, a realização de um jogo).

Cultura, vol. 21 | 2005

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Page 263: Livro e Iconografia

Em diversas ocasiões, os 'sistemas normativos' que foram indicados no âmbito das

práticas podem se associar às 'representações sociais' (pode-se dar como exemplo a

trifuncionalidade medieval, que dividia a sociedade nos ordos dos oratores, laboratores e

bellatores). Aqui já estaremos adentrando o âmbito das representações, que para além das

'representações sociais' propriamente ditas também pode se referir a 'imagens' (tanto

às reproduções e reelaborações de imagens percebidas como às imagens imaginadas ou

produzidas pela mente), e por fim aos 'símbolos', que correspondem à possibilidade de

associar uma imagem a um conceito. Nestes casos, a História Cultural interconecta-se

diretamente com a História do Imaginário, uma dimensão historiográfica que na

verdade se desdobrou mais recentemente da História Cultural em sentido mais amplo.

Ainda com relação às representações sociais, estas podem também estar associadas à

produção de 'ideologias'. A Ideologia, conforme veremos mais adiante, é um fenômeno

complexo. A meio caminho entre as representações e as visões de mundo, o ideológico

produz a interação de subconjuntos coerentes de representações sociais com

comportamentos específicos (portanto, produz uma interação entre representações e

práticas sociais). Mas seria mais adequado situar as 'ideologias' no âmbito das visões de

mundo, no qual localizaremos os valores, as idéias e as teorias. Esse campo da História

Cultural, desde já podemos notar, sintoniza-se diretamente com o domínio da História

das Idéias. Entre outras possibilidades, pode-se estudar por exemplo as idéias políticas

(a Democracia, o Estado Absoluto, as diversas trajetórias da noção de Liberdade ou de

Igualdade nos vários períodos históricos), ou conjuntos teóricos mais abrangentes e

acabados como o Positivismo. E vale ainda lembrar que as idéias podem ser examinadas

pelo historiador no âmbito das produções individuais (uma História Intelectual

propriamente dita) ou no âmbito de correntes de pensamento para as quais

contribuíram grupos de indivíduos (o Iluminismo, o Liberalismo, o Socialismo). Mas

quando começa a se aproximar de uma dimensão coletiva mais abrangente, no limite

possível chegando a determinada visão de mundo que corresponda ou afete a toda uma

coletividade (e não mais apenas a indivíduos ou grupos de indivíduos) o historiador

pode principiar a perceber também certos 'modos de pensar e de sentir' que em muitos

casos podem ser também objetos de uma História das Mentalidades. Aqui, o objeto de

estudo e as fontes históricas estarão particularmente endereçadas com vistas a

capturar o homem comum – que por não possuir uma vida excepcional pode por isso

mesmo oferecer um melhor acesso ao fundo mental coletivo – ou para as grandes

massas de indivíduos passíveis de serem capturadas, no que se refere às permanências e

variações em seus modos de pensar e de sentir, pelas grandes séries documentais por

vezes examinadas em longa duração.

É também com uma preocupação em compreender mais de perto o homem comum,

fazendo incidir sobre ele uma História Vista de Baixo, que alguns historiadores –

bastante eficazes em estabelecer uma firme conexão entre História Cultural, História

Social e História Política – mostram-se particularmente interessados em examinar

temas como os protestos populares, os charivari, a música rústica das manifestações, e

diversas outras formas de 'expressões coletivas'.3 Aqui estaremos entrando no último

âmbito de desdobramentos que se abre para os historiadores da cultura: as expressões

culturais.

O âmbito das expressões prossegue com este que é talvez o mais tradicional dos objetos

de interesse da História Cultural, e que corresponde às diversas expressões artísticas –

as Artes Visuais, a Música, o Cinema, o Teatro, a Literatura – mas cumprindo notar que

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Page 264: Livro e Iconografia

não teremos mais aqui apenas aquela que já foi chamada de "alta cultura", já que nos

dias de hoje os historiadores voltam-se também com especial interesse para a Cultura

Popular. E, por fim, constituem objeto de profundo interesse da História Cultural a

própria linguagem, os modos de comunicação e os discursos – aqui se entendendo

"discurso" tanto no sentido mais amplo que se refere aos discursos científicos e

multidisciplinares (o discurso jurídico, o discurso político, o discurso dos historiadores

de determinado período), como também no sentido mais restrito que se refere à

materialização específica de um discurso em forma de texto escrito ou na forma de

enunciação através da oralidade.

Conforme se vê, estamos aqui um quadro bastante amplo mas que ainda deve ser

acrescido de uma complexidade adicional. Tal como se disse, a História Cultural pode se

preocupar com estudo de objetos culturais, sujeitos, sistemas e processos (lado esquerdo do

quadro) – elementos que podem perpassar as diversas dimensões enunciadas e também

dialogarem uns com os outros. Se estudo um determinado Sistema Religioso – e a

História Religiosa é um domínio que se sintoniza bastante com a dimensão da História

Cultural, embora também com a História Social e em muitos casos com a História Polí

tica – estarei preocupado com determinados sujeitos e agentes (os sacerdotes, os

praticantes, e a própria Igreja como uma agência maior) e possivelmente deverei me

familiarizar com determinados objetos culturais que são os objetos de culto, a

indumentária eclesiástica, e assim por diante. Mas da mesma forma estarei circulando

entre as práticas e representações acima mencionadas, investigando as visões de mundo

que amparam tal sistema religioso, e muito possivelmente examinando as expressões

culturais que se associam a este sistema religioso, o que pode incluir desde as formas

arquitetônicas de uma Catedral até os discursos que se concretizam nos sermões e bulas

papais.

O exame de um determinado processo cultural – como por exemplo a aculturação de

uma tribo indígena ou a apropriação do Cinema para determinadas finalidades políticas

– implica também em conhecer os sujeitos envolvidos e em compreender como estes se

relacionam com as práticas e representações envolvidas neste processo. O estudo da

apropriação política do Cinema – objeto possível a uma conexão entre a História

Cultural e a História Política – implica em que o historiador conheça a fundo esta forma

de expressão artística que é o Cinema e a sua linguagem específica, e além disto ele

provavelmente terá entre suas fontes não apenas o filme propriamente dito (um objeto

cultural que materializa representações de todos os tipos) como também os próprios

discursos dos cineastas e outros agentes envolvidos com a produção, crítica, difusão e

consumo do Cinema.

Desta maneira, um esquema completo que se proponha a mostrar a abrangência da

História Cultural com relação a seus objetos de estudo e de interesse deve trabalhar

com estas complexidades. Práticas, Representações, Visões de Mundo e Expressões

Culturais estão constantemente se interpenetrando na constituição de um determinado

'sistema' ou desenrolar de um determinado 'processo' cultural, e ao mesmo tempo

sempre envolverão 'sujeitos' e 'objetos culturais' específicos.

Em função do quadro acima levantado, será imprescindível clarificar, neste passo,

algumas das principais noções que amparam o trabalho historiador da Cultura, a

começar pelas próprias noções de práticas e representações.

O que são as "práticas culturais"? Antes de mais nada, e acompanhando o que já foi

exposto, convém ter em vista que esta noção deve ser pensada não apenas em relação

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263

Page 265: Livro e Iconografia

às instâncias oficiais de produção cultural, às instituições várias, às técnicas e às

realizações (por exemplo os objetos culturais produzidos por uma sociedade), mas

também em relação aos usos e costumes que caracterizam a sociedade examinada pelo

historiador. São práticas culturais não apenas a feitura de um livro, uma técnica

artística ou uma modalidade de ensino, mas também os modos como, em uma dada

sociedade, os homens falam e se calam, comem e bebem, sentam-se e andam,

conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se, morrem ou adoecem, tratam

seus loucos ou recebem os estrangeiros.

Será possível compreender isto a partir de um exemplo concreto. Para este fim,

acompanharemos as "práticas culturais" (e neste caso as "práticas sociais"), que se

entreteceram no Ocidente Europeu durante um período situado entre a Idade Média e o

período Moderno com relação à aceitação ou rejeição da figura do "mendigo".

Entre o fim do século XI e o início do século XIII, o pobre, e entre os vários tipos de

pobres o mendigo, desempenhava um papel vital e orgânico nas sociedades cristãs do

Ocidente Europeu. A sua existência social era justificada como sendo primordial para a

"salvação do rico".4 Conseqüentemente, o mendigo – pelo menos o mendigo conhecido

– era bem acolhido na sociedade medieval. Toda comunidade, cidade ou mosteiro

queria ter os seus mendigos, pois eles eram vistos como laços entre o céu e a terra –

instrumentos através dos quais os ricos poderiam exercer a caridade para expiar os

seus pecados. Esta visão do pobre como 'instrumento de salvação para o rico',

antecipemos desde já, é uma 'representação cultural'.

A postura medieval em relação aos mendigos gerava 'práticas', mais especificamente

costumes e modos de convivência. Tal como mencionamos atrás, fazem parte do

conjunto das "práticas culturais" de uma sociedade também os 'modos de vida', as

'atitudes' (acolhimento, hostilidade, desconfiança), ou as normas de convivência

(caridade, discriminação, repúdio). Tudo isto, conforme veremos, são práticas culturais

que, além de gerarem eventualmente produtos culturais no sentido literário e artístico,

geram também padrões de vida cotidiana ("cultura" no moderno sentido

antropológico).

No século XIII, com as ordens mendicantes inauguradas por São Francisco de Assis, a

valorização do pedinte pobre recebe ainda um novo impulso. Antes ainda havia aquela

visão amplamente difundida de que, embora o pobre fosse instrumento de salvação

necessário para o rico, o mendigo em si mesmo estaria naquela condição como

resultado de um pecado. O seu sofrimento pessoal, enfim, não era gratuito, mas

resultado de uma determinação oriunda do plano espiritual. Os franciscanos apressam-

se em desfazer esta 'representação'. Seus esforços atuam no sentido de produzir um

discurso de reabilitação da imagem do pobre, e mais especificamente do mendigo. O

pobre deveria ser estimado pelo seu valor humano, e não apenas por desempenhar este

importante papel na economia de salvação das almas. O mendigo não deveria ser mais

visto em associação a um estado pecaminoso, embora útil.

Estas 'representações' medievais do pobre, com seus sutis deslocamentos, são

complementares a inúmeras 'práticas'. Desenvolvem-se as instituições hospitalares, os

projetos de educação para os pobres, as caridades paroquiais, as esmolarias de

príncipes. A literatura dos romances, os dramas litúrgicos, as iconografias das igrejas e

a arte dos trovadores difundem, em meio a suas práticas, representações do pobre que

lhe dão um lugar relativamente confortável na sociedade. Havia os pobres locais, que

eram praticamente adotados pela sociedade na qual se inseriam, e os "pobres de

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264

Page 266: Livro e Iconografia

passagem" – os mendigos forasteiros que, se não eram acolhidos em definitivo, pelo

menos recebiam alimentação e cuidados por um certo período antes de serem

convidados a seguir viagem.

Daremos agora um salto no tempo para verificar como se transformaram estas práticas

e representações com a passagem para a Idade Moderna. No século XVI, o mendigo

forasteiro será recebido com extrema desconfiança. Ele passa a ser visto de maneira

cada vez mais excludente. Suas 'representações', em geral, tendem a estar inseridas no

âmbito da marginalidade. Pergunta-se que doenças estará prestes a transmitir, se não

será um bandido, por que razões não permaneceu no seu lugar de origem, por que não

tem uma ocupação qualquer. Assim mesmo, quando um mendigo forasteiro aparecia em

uma cidade, no século XVI ele ainda era tratado e alimentado antes de ser expulso. Já

no século XVII, ele teria a sua cabeça raspada (um sinal representativo de exclusão),

algumas décadas depois ele passaria a ser açoitado, e já no fim deste século a

mendicidade implicaria na condenação.5

O mendigo, que na Idade Média beneficiara-se de uma representação que o redefinia

"instrumento necessário para a salvação do rico", era agora penalizado por se mostrar

aos poderes dominantes como uma ameaça contra o sistema de trabalho assalariado do

Capitalismo, que não podia desprezar braços humanos de custo barato para pôr em

movimento suas máquinas e teares, e nem permitir que se difundissem exemplos e

modelos inspiradores de vadiagem. O mendigo passava a ser representado então como

um desocupado, um estorvo que ameaçava a sociedade (e não mais como um ser

merecedor de caridade). Ele passa a ser então assimilado aos marginais, aos criminosos

– sua representação mais comum é a do vagabundo. Algumas canções e obras literárias

irão representá-lo com alguma freqüência desta nova maneira, os discursos jurídicos e

policiais farão isto sempre. As novas tecnologias de poder passariam a visar a sua

reeducação, e quando isto não fosse possível a sua punição exemplar. Novas práticas

irão substituir as antigas, consolidando novos costumes.

O exemplo discutido acima, embora tenha requerido uma digressão de alguns

parágrafos, pretende contribuir para uma melhor compreensão destes dois conceitos

que são tão falados, mas nem sempre tão bem compreendidos. Chama atenção para a

complementaridade das "práticas e representações", e para a extensão de cada uma

destas noções. As práticas relativas aos mendigos forasteiros geram representações, e

as suas representações geram práticas, em um emaranhado de atitudes e gestos no qual

não é possível distinguir onde estão os começos (se em determinadas práticas, se em

determinadas representações).

Poderemos dar outros exemplos mais breves. Um livro é um objeto cultural bem

conhecido no nosso tipo de sociedade. Para a sua produção, são movimentadas

determinadas práticas culturais e também representações, sem contar que o próprio

livro, depois de produzido, irá difundir novas representações e contribuir para a

produção de novas práticas.

As práticas culturais que aparecem na construção do livro são tanto de ordem autoral

(modos de escrever, de pensar ou expor o que será escrito), como editoriais (reunir o que

foi escrito para constituí-lo em livro), ou ainda artesanais (a construção do livro na sua

materialidade, dependendo de estarmos na era dos manuscritos ou da impressão). Da

mesma forma, quando um autor se põe a escrever um livro, ele se conforma a

determinadas representações do que deve ser um livro, a certas representações

concernentes ao gênero literário no qual se inscreverá a sua obra (o que já nos remete

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Page 267: Livro e Iconografia

ao campo das expressões culturais), a representações concernentes aos temas por ela

desenvolvidos. Este autor também poderá se tornar criador de novas representações,

que encontrarão no devido tempo uma ressonância maior ou menor no circuito leitor

ou na sociedade mais ampla.

Com relação a este último aspecto, já vimos que a leitura de um livro também gera

práticas criadoras, podendo produzir concomitantemente práticas sociais. Será o livro

lido em leitura silenciosa, em recinto privado, em uma biblioteca, em praça pública?

Sabemos que sua leitura poderá ser individual ou coletiva (um letrado, por exemplo,

pode ler o livro para uma multidão de não-letrados), e que o seu conteúdo poderá ser

imposto ou rediscutido. Por fim, a partir da leitura e difusão do conteúdo do livro,

poderão ser geradas inúmeras representações novas sobre os temas que o atravessam,

que em alguns casos poderão passar a fazer parte das representações coletivas.

A produção de um bem cultural, como um livro ou qualquer outro, está

necessariamente inscrita em um universo regido por estes dois pólos que são as

práticas e as representações. Para além disto, um livro pode ser o veículo de

determinadas expressões culturais, conforme seja uma obra literária ou ensaística, e seu

discurso pode ensejar certa visão de mundo, o que interliga as quatro funções culturais

anteriormente expostas no nosso esquema sobre a História Cultural. Os exemplos são

indefinidos. Cantar músicas em um sarau era uma forma de expressão cultural e uma

prática cultural da qual participavam os trovadores medievais, que desta forma

contribuíam para elaborar através de suas canções uma série de representações a serem

reforçadas ou difundidas (o Amor Cortês, a vida cavaleiresca). Um sistema educativo

inscreve-se em uma prática cultural, e ao mesmo tempo inculca naqueles que a ele se

submetem determinadas representações destinadas a moldar certos padrões de caráter

e a viabilizar um determinado repertório lingüístico e comunicativo que será vital para

a vida social, pelo menos tal como a concebem os poderes dominantes. Em todos estes

casos, como também no exemplo do mendigo desenvolvido mais acima, as práticas e

representações são sempre resultado de determinadas motivações e necessidades

sociais.

As noções complementares de "praticas e representações" são bastante úteis, porque

através delas podemos examinar tanto os objetos culturais produzidos, os sujeitos

produtores e receptores de cultura, como também os processos que envolvem a

produção e difusão cultural, os sistemas que dão suporte a estes processos e sujeitos, e

por fim as normas a que se conformam as sociedades através da consolidação de seus

costumes. Dependendo de meu objeto de estudo, estarei também abordando as visões

de mundo e as expressões culturais – estas últimas referindo-se tanto ao aspecto

estético trazido pelas expressões artísticas como aos discursos que se materializam a

todo instante em textos ou a partir de outros sistemas de comunicação que não

necessariamente a escrita.

De alguma maneira, a noção de 'representação', em associação com alguns dos

desdobramentos que vimos associados à noção de 'visão de mundo', pretende corrigir

aspectos lacunares que aparecem em noções mais ambíguas, como por exemplo a de

"mentalidades". Vimos através dos exemplos acima que as representações podem –

através da interação com visões de mundo específicas – estar associadas aos modos de

pensar e de sentir, inclusive coletivos, embora as representações não se restrinjam

apenas a esses modos de pensar e de sentir. Para evocar algumas associações entre

'representações' e 'expressões culturais', podemos ter em vista que quando um pintor

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Page 268: Livro e Iconografia

produz a sua representação de uma catedral, com tela e tintas, ou quando um escritor

descreve ou inventa uma catedral através de um poema ou de um romance, temos em

ambos os casos representações, embora não coletivas. Tal como assevera Jacques Le

Goff (1985), o campo das representações "engloba todas e quaisquer traduções mentais

de uma realidade exterior percebida", e está ligado ao processo de abstração.6 O âmbito

das representações, ainda conforme Le Goff, também pode abarcar elementos

associados ao Imaginário. As representações do poder – como por exemplo a associação

do poder absoluto ao Rei-Sol, a visualização deste poder em termos de centro a ser

ocupado ou de cume a ser atingido – associam-se a um determinado imaginário político.

Deve-se ter notado que – ao nos referirmos atrás a "representações", "práticas",

"mentalidades", "imaginário" – em todos estes casos preferimos utilizar a expressão

"noção" ao invés de "conceito". As "noções" são 'quase conceitos', mas ainda funcionam

como tateamentos na elaboração do conhecimento científico, atuando à maneira de

imagens de aproximação de um determinado objeto de conhecimento (imagens que,

rigorosamente, ainda não se acham suficientemente delimitadas). Muitas vezes as

noções são resultados de uma descoberta progressiva, de experiências, de

investimentos criativos de um ou mais autores que podem ou não ser incorporados

mais regularmente pela comunidade científica. Mentalidades, Imaginário e

Representações são noções que ainda estão sendo experimentadas no campo das

ciências humanas – na História, estas expressões fizeram a sua entrada a apenas

algumas poucas décadas ("mentalidades" é expressão forjada a partir da historiografia

francesa da década de 1960; "imaginário" é uma palavra que apenas recentemente

migrou para o campo histórico, importada de campos como a psicologia e a

fenomenologia).

Com o tempo uma "noção" pode ir se transformando em "conceito", à medida que

adquire uma maior delimitação e em que uma comunidade científica desenvolve uma

consciência maior dos seus limites, da extensão de objetos à qual se aplica. Os

"conceitos", pode-se dizer, são instrumentos de conhecimento mais elaborados,

longamente amadurecidos, o que não impede que existam conceitos com grande

margem de polissemismo (como o conceito de "ideologia" ou, tal como já dissemos,

como o próprio conceito de "cultura").

"Práticas" e "representações" são ainda noções que estão sendo elaboradas no campo

da História Cultural. Mas, tal como já ressaltamos, elas têm possibilitado novas

perspectivas para o estudo historiográfico da Cultura, porque juntas permitem abarcar

um conjunto maior de fenômenos culturais, além de chamarem atenção para o

dinamismo destes fenômenos. Por outro lado, citamos atrás algumas 'representações do

poder' que produzem associações com um determinado imaginário político

(centralização, periferia, marginalização). Quando uma representação liga-se a um

circuito de significados fora de si e já bem entronizado em uma determinada

'comunidade discursiva', esta representação começa a se avizinhar de outra categoria

da História Cultural que é o "símbolo".

"Símbolo" é uma categoria teórica já há muito tempo amadurecida no seio das ciências

humanas – seja na História, na Antropologia, na Sociologia ou na Psicologia. Não é mais

uma 'noção', mas sim um 'conceito' que pode ser empregado "quando o objeto

considerado é remetido para um sistema de valores subjacente, histórico ou ideal".7

Alguns símbolos podem ser polivalentes. A serpente, por exemplo, pode ser empregada

como símbolo do ciclo, da renovação (sentido inspirado pela mudança de peles que

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Page 269: Livro e Iconografia

ocorre ciclicamente no animal serpente), mas também pode ser empregado como

símbolo da astúcia, da maldade (sentidos que remetem ao universo bíblico). Aquilo que

os historiadores da cultura têm chamado de campo das representações pode abarcar

tanto as representações produzidas ao nível individual (as representações artísticas,

por exemplo), como as representações coletivas, certos elementos que já fazem parte

do âmbito do imaginário e, com especial importância, os "símbolos", que constituem

um dos recursos mais importantes da comunicação humana.

As representações podem ainda ser apropriadas ou imprimidas de uma direção

socialmente motivada, situação que remete a outro conceito fundamental para a

História Cultural, que é o de "ideologia" – e que já apontamos atrás como um dos

desdobramentos possíveis a serem associados à categoria maior das 'visões de mundo'.

A Ideologia, de fato, é produzida a partir da interação de subconjuntos coerentes de

representações e de comportamentos que passam a reger as atitudes e as tomadas de

posição dos homens nos seus inter-relacionamentos sociais e políticos. No exemplo do

mendigo, vimos como as suas representações sociais e deslocamentos no universo

mental dos homens medievais atendiam a determinados interesses sociais ou a

determinadas motivações coletivas. Podemos dizer que aquelas representações estavam

sendo apropriadas ideologicamente. A difusão de uma franca hostilidade com relação

ao mendigo do período moderno e a impregnação de novas tecnologias de exclusão nos

discursos que o tomam como objeto (a sua classificação como vagabundo, a raspagem

da cabeça) acabam fazendo com que sem querer a maioria das pessoas da sociedade

industrial comecem a pressionar todos os seus membros a encontrarem uma ocupação

no sistema capitalista de trabalho. Isto é um processo ideológico.

Por vezes, a ideologia aparece como um projeto de agir sobre determinado circuito de

representações no intuito de produzir determinados resultados sociais. Georges Duby,

por exemplo, examina em uma de suas obras como uma antiga representação do mundo

social em três ordens – oratores, bellatores, laboratores – é reapropriada ideologicamente a

determinada altura da sociedade feudal, sendo possível identificar as primeiras

produções culturais da Idade Média em que aparece este novo sentido ideológico

acoplado ao circuito de representações da sociedade tripartida.8

A ideologia aparece, desta forma, como um projeto de agir sobre a sociedade (este é,

aliás, um outro sentido empregado para 'ideologia', que, conforme veremos adiante, é

um conceito extremamente polissêmico). Outros exemplos similares ao estudado por

Georges Duby são propostos por Jacques Le Goff para o mesmo período, conforme

poderemos examinar na passagem reproduzida abaixo:9

"Quando os clérigos da Idade Média exprimem a estrutura da sociedade terrenapela imagem dos dois gládios – o do temporal e o do espiritual, o do poder real e odo poder pontifical – não descrevem a sociedade: impõem-lhe uma imagemdestinada a separar nitidamente os clérigos dos leigos e a estabelecer entre elesuma hierarquia, pois o gládio espiritual é superior ao gládio material. Quando estesmesmos clérigos distinguem nos comportamentos humanos sete pecados capitais, oque eles fazem não é a descrição dos maus comportamentos, mas sim a construçãode um instrumento adequado ao combate contra os vícios em nome da ideologiacristã"

A ideologia, poderíamos dizer, corresponde a uma determinada forma de construir

representações ou de organizar representações já existentes para atingir determinados

objetivos ou reforçar determinados interesses. É uma visão de mundo que se impõe, de

modo a cumprir determinado projeto social ou a atender certos interesses políticos e,

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Page 270: Livro e Iconografia

por trás destes, econômicos. O nível de consciência ou de automatismo como isto é feito

é questão aberta, e que dificilmente poderá ser um dia encerrada. Também se discute se

ideologia é uma dimensão que se refere à totalidade social (uma instância ideológica)

ou se existem ideologias associadas a determinados grupos ou classes sociais (ideologia

burguesa, ideologia proletária). Na verdade, ideologia é um conceito que tem sido

empregado por autores distintos com inúmeros sentidos no campo das ciências

humanas, e por isto um historiador que pretenda utilizar este conceito deve se apressar

a definir com bastante clareza o sentido com o qual o está utilizando. Na acepção mais

restrita que empregamos acima, a ideologia está sempre associada a um determinado

sistema de valores. A ideologia, de acordo com este uso, tem a ver com 'poder', com

'controle social' exercido sobre os membros de uma sociedade, geralmente sem que

estes tenham consciência disto e muitas vezes sem que os próprios agentes implicados

na produção e difusão de imagens que alimentam o âmbito ideológico tenham eles

mesmos uma consciência mais clara dos modos como o poder está sendo exercido.

Cabe precisamente aos historiadores da cultura examinar estas relações ideológicas,

para que não realizem uma História Cultural meramente descritiva, como aquela que

propunha Huizinga em um famoso ensaio do início do século XX ao afirmar que o

objetivo fundamental da História Cultural é meramente morfológico, "ou seja, a

descrição de padrões de cultura ou, por outras palavras ainda, pensamentos,

sentimentos e a sua expressão em obras de arte e de literatura".10 É também este

mesmo tipo de História da Cultura o que foi realizado por Jacob Burckhardt no século

XIX, ao procurar recuperar aquilo que chamou de "espírito da época" na sociedade

renascentista.

Esclarecidos os conceitos fundamentais que acabam permeando boa parte das reflexões

encaminhadas pela História Cultural – ideologia, símbolo, representação, prática –

poderemos exemplificar com um horizonte teórico inaugurado por Chartier (1980)

dentro do enfoque histórico-cultural, e que tem precisamente na noção de

"representação" um dos seus alicerces fundamentais.11 De fato, a História Cultural, tal

como a entende o historiador francês, "tem por principal objeto identificar o modo

como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade cultural é

construída, pensada, dada a ler".

As representações, acrescenta Chartier, inserem-se "em um campo de concorrências e

de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação" – em

outras palavras, são produzidas aqui verdadeiras "lutas de representações".12 E estas

lutas geram inúmeras 'apropriações' possíveis das representações, de acordo com os

interesses sociais, com as imposições e resistências políticas, com as motivações e

necessidades que se confrontam no mundo humano. Estamos aqui bem longe do modelo

de História da Cultura proposto por Huizinga. O modelo cultural de Chartier é

claramente atravessado pela noção de "poder" (o que, de certa forma, faz dele também

um modelo de História Política).

Para encaminhar esta interação entre cultura e poder, tem a sua entrada uma outra

noção primordial. "Apropriação", conjuntamente com as noções de "representação" e

de "prática", constitui precisamente a terceira noção fundamental que conforma a

perspectiva de História Cultural desenvolvida por Roger Chartier – esta perspectiva

que, nos dizeres do próprio historiador francês, procura compreender as práticas que

constroem o mundo como representação''.13

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Page 271: Livro e Iconografia

A perspectiva cultural desenvolvida por autores como Roger Chartier e Michel de

Certeau, enfim, constitui um dos três eixos mais influentes para o atual

desenvolvimento de uma História Cultural, ao lado de outras perspectivas

importantíssimas como aquelas que são trazidas no âmbito do materialismo histórico

pela Escola Inglesa (Thompson) e pela abordagem polifônica da cultura (Bakhtin e

Ginzburg).

É imprescindível remarcar ainda a presença, na História Cultural e suas adjacências, de

todo um grupo de historiadores que toma para objeto o discurso científico, e o discurso

historiográfico em particular, consolidando uma linha de reflexões que teve alguns de

seus textos pioneiros com Michel Foucault, notadamente a partir de A Arqueologia do

Saber (1969).14 Herdeiros desta nova perspectiva que desloca o olhar de uma pretensa

realidade social para o campo dos discursos, aparecem aqui as análises de Hayden

White (1973) e Dominick LaCapra (1985) a respeito da História como uma forma de

narrativa como todas as outras, a incluir componentes de retórica, estilo e imaginação

literária que devem ser decifradas pelos analistas do discurso historiográfico.15 Ocorre

aqui uma conexão entre a História Cultural ('dimensão' examinada pelo historiador) e

uma História do Discurso ('abordagem', aqui entendida como o campo histórico que

examina o discurso a partir de técnicas diversas como a semiótica e a análise do

discurso propriamente dita).

Por fim, há aqueles historiadores da cultura que se especializaram em certos 'domínios'

da História, como por exemplo Gombrich e Giulio Carlo Argan para o caso da História

da Arte – este último um historiador associado à perspectiva marxista (à qual

deveremos aliás acrescentar os trabalhos de Arnold Hauser, particularmente

preocupado em constituir uma História Social da Arte e uma História Social da Cultura).

Domínios ainda mais específicos têm se constituído em especialidades dos historiadores

da cultura, como é o caso do historiador francês Paul Zumthor que tem se dedicado

incisivamente à literatura medieval, e ainda mais especificamente à poesia

trovadoresca.

Seria também importante lembrar que, para além das variedades de História Cultural já

mencionadas, a História Antropológica também enfoca a 'Cultura', mas mais

particularmente nos seu sentidos antropológicos. Privilegia problemas relativos à

'alteridade', e interessa-se especialmente pelos povos ágrafos, pelas minorias, pelos

modos de comportamento não-convencionais, pela organização familiar, pelas

estruturas de parentesco. Em alguns de seus interesses, irmana-se com a Etno-História,

por vezes assimilando esta última categoria histórica aos seus quadros.

De certo modo, o que funda a História Antropológica como um campo novo, mais

específico que a História Cultural, é a utilização da antropologia como modelo, mais do

que os objetos antropológicos propriamente ditos. Os historiadores descobriram nas

últimas décadas do século XX a possibilidade de uso de conceitos e procedimentos

oriundos tanto da vertente antropológica representada por autores como Clifford

Geertz (1973) – com sua técnica da "descrição densa" – como da vertente que trata as

culturas como sistemas de signos, e que ficou conhecida como Antropologia Estrutural,

tendo em Lévi Strauss e Marshall Sahlins os seus principais representantes.

Um bom trabalho de História Antropológica foi o que fez Le Roy Ladurie em Montaillou,

uma vila occitânica.16 Nesta obra, o historiador francês procura recuperar a vida

comunitária de uma aldeia entre o final do século XIII e o início do século XIV. Os

interesses do autor voltam-se precisamente para estes objetos tão caros à antropologia:

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Page 272: Livro e Iconografia

a vida familiar, a sexualidade, as práticas matrimoniais, a rede de micropoderes que

afetam a comunidade, o âmbito das crenças religiosas e das práticas de magia natural.

Na verdade, temos aqui uma história antropológica que também entra pelos caminhos

de uma História da Cultura Material, embora esta cultura material seja percebida

essencialmente a partir de uma documentação escrita formada pelos registros

inquisitoriais (a aldeia em questão deixou vestígios precisamente por ter acolhido em

seu seio a heresia cátara com o conseqüente processo de Inquisição instalado pela

Igreja). É a partir destas fontes que Laduric logra obter traços da vida cotidiana. Neste

sentido, Montaillou acha-se em uma rica conexão de História Antropológica, História da

Cultura Material, História do Cotidiano e História Local (já que, neste último caso, atém-

se a limites espaciais bem precisos).

Em linhas gerais, e deixando de fora muitas obras e autores igualmente significativos

mas que não poderiam ser abordados neste breve panorama, eis aqui um panorama de

algumas das tendências mais basilares da História Cultural no decurso do século XX,

todas deixando importantes heranças historiográficas para o século XXI. O nosso

objetivo a seguir, para finalizar este ensaio, será examinar um dos domínios da história

que tem se associado mais freqüentemente à dimensão da História Cultural: a História

das Idéias.

A História das Idéias deve ser classificada como uma modalidade historiográfica

relacionada aos domínios da História – isto é, a um tipo de subdivisão da História que se

refere a um campo temático mais específico. Valerá lembrar aqui uma proposta recente

para compreender mais sistematicamente os critérios que presidiriam a divisão do

saber historiográfico nas suas diversas modalidades.17 Falaremos aqui de três tipos

fundamentais de critérios geradores de modalidades historiográficas: as dimensões, as

abordagens, e os domínios.

O primeiro critério gerador de divisões da história em modalidades mais específicas

refere-se ao que chamaremos de dimensões, correspondendo àquilo que o historiador

traz para primeiro plano no seu exame de uma determinada sociedade: a Política, a

Cultura, a Economia, a Demografia, e assim por diante. Desta maneira, teríamos na

História Econômica, na História Política, ou na História das Mentalidades campos do

saber histórico relativos às dimensões ou aos enfoques priorizados pelo historiador.

Vimos na primeira parte deste ensaio que um historiador cultural estuda em primeiro

plano os fatos da cultura, na mesma medida em que um historiador político estuda o

poder nas suas múltiplas formas e um historiador demográfico orienta o seu trabalho

em tomo da noção que lhe é central de "população". Desta maneira, a História Cultural

– com toda a amplitude de possibilidades de que já foi tratada no início deste ensaio –

deve ser mais adequadamente localizada no campo das dimensões historiográficas.

Um segundo grupo de critérios para estabelecer divisões no saber histórico é aquele

que chamamos de abordagens, referindo-se aos métodos e modos de fazer a História, aos

tipos de fontes e também às formas de tratamento de fontes com os quais lida o

historiador. São divisões da História relativas a abordagens a História Oral, a História

Serial, a Micro-História e tantas outras. A História Oral, por exemplo, lida com fontes

orais e depende de técnicas como a das entrevistas; a História Serial trabalha com

fontes seriadas – documentação que apresente um determinado tipo de homogeneidade

e que possa ser analisada sistematicamente pelo historiador. A Micro-História refere-se

a abordagens que reduzem a escala de observação do historiador, procurando captar

em uma sociedade aquilo que habitualmente escapa aos historiadores que trabalham

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Page 273: Livro e Iconografia

com um ponto de vista mais panorâmico, mais generalista ou mais distanciado.

Também a História Regional poderia ser classificada como modalidade historiográfica

ligada a uma abordagem, no sentido de que elege um campo de observação específico

para a construção da sua reflexão ao construir ou encontrar historiograficamente uma

"região". Examinando um espaço de atuação onde os homens desenvolvem suas

relações sociais, políticas e culturais, a História Regional viabiliza através de sua

abordagem um tipo de saber historiográfico que permite estudar uma ou mais

dimensões nesta região que pode ser analisada tanto no que concerne a

desenvolvimentos internos, como no que se refere à inserção em universos mais

amplos.

Para além das modalidades relacionadas a dimensões e abordagens, podemos pensar

finalmente nas divisões da História que chamaremos de domínios, e que se referem a

campos temáticos privilegiados pelos historiadores. Vários domínios da História têm

surgido e mesmo desaparecido no horizonte de saber desta complexa disciplina que é a

História. Estaremos falando de domínios quando nos referimos a uma História da

Mulher, a uma História do Direito, a uma História de Sexualidade, a uma História Rural.

Os domínios da História são na verdade de número indefinido. Alguns domínios podem

se referir aos 'agentes históricos' que eventualmente são examinados (a mulher, o

marginal, o jovem, o trabalhador, as massas anônimas), outros aos 'ambientes sociais'

(rural, urbano, vida privada), outros aos 'âmbitos de estudo' (arte, direito, religiosidade,

sexualidade), e a outras tantas possibilidades. Os exemplos sugeridos são apenas

indicativos de uma quantidade de campos que não teria fim, e qualquer um poderá

começar a pensar por conta própria as inúmeras possibilidades.

Tal como dissemos, os critérios de classificação que estabelecem domínios da História

referem-se primordialmente às temáticas (ou campos temáticos) escolhidas pelos

historiadores. São já áreas de estudo mais específicas, dentro das quais se inscreverá a

problemática constituída pelo ato historiográfico. A maioria dos domínios históricos

sintoniza-se com os trabalhos que se referem às diferentes dimensões históricas, e

certamente abre-se às várias abordagens. Mas existem domínios que têm mais afinidade

com determinada dimensão, dada a natureza dos temas por eles abarcados. Assim, a

História da Arte ou a História da Literatura podem ser eventualmente consideradas

subespecialidades da História Cultural (embora se deva chamar atenção para uma

História Social da Arte, ou uma História Social da Literatura, que não deixam de ser

possibilidades dentro da História Social).

Alguns domínios surgem e desaparecem ao sabor das modas historiográficas –

motivados por eventos sociais e políticos, ou mesmo por ditames editoriais e tendências

de mercado. Outros surgem quando para eles se mostra preparada a sociedade na qual

se insere a comunidade de historiadores (por exemplo, uma 'História da Sexualidade'

não poderia surgir na Inglaterra Puritanista, e uma 'História da Mulher' não poderia

surgir senão quando, no século XX, a mulher começa a conquistar o mercado de

trabalho e surgem os movimentos feministas e de valorização social da mulher). Outros

domínios, por fim, são quase tão antigos quanto a própria História – como é o caso da

História Religiosa e da História Militar – e tendem a ser perenes na sua durabilidade.

A História das Idéias é um domínio que conquistou a sua perenidade desde o princípio

do século XX. Passou por variações no que se refere às concepções das diversas

gerações de historiadores das idéias, mas sem sombra de dúvida conquistou o seu lugar

no Campo da História. Assim, no decorrer século XX foi possível assistir ao desenrolar

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Page 274: Livro e Iconografia

de uma rica trajetória que partiu da História das Idéias desencarnada de um contexto

social – e que atinge a sua proeminência entre as décadas de 1940 e 1950 – a uma

verdadeira História Social das Idéias, onde é tarefa primordial do historiador

compreender e constituir um contexto social adequado antes de se tornar íntimo das

idéias que pretende examinar.

O nosso objetivo nesta segunda parte do ensaio não será o de recuperar esta trajetória

historiográfica, pontuando-a com exemplos exaustivos, mas sim vislumbrar os diálogos

deste domínio que é chamada de História das Idéias com outros campos históricos –

sejam eles dimensões, abordagens ou domínios históricos. Naturalmente que, dada a

natureza dos seus objetos, a História das Idéias sintoniza francamente com a História

Cultural, sendo este o principal campo histórico que se coloca aqui em diálogo. Às vezes

esse diálogo é tão intenso que a História das Idéias dá a impressão de ser mesmo um

domínio que se desdobra desta dimensão que é habitualmente denominada História

Cultural, e cujas inúmeras possibilidades de objetos já examinamos na primeira parte

deste ensaio.

Por outro lado, a História das Idéias é um campo histórico que através dos seus objetos

pode se mostrar sintonizada não apenas com a História Cultural, como também com

outras dimensões historiográficas como a História Política (basta pensar nos trabalhos

que investigam as idéias políticas, entre outros). Um diálogo mais intenso com a

História Cultural ou com a História Política, ou com ambas, aparece bem explicitamente

no primeiro dos limiares possíveis para a História das Idéias: aquele em que são

examinadas as idéias relacionadas ao pensamento sistematizado de indivíduos

específicos (por exemplo, os tratados filosóficos, as teorias políticas escritas por

grandes ou pequenos pensadores políticos, ou as concepções estéticas dos artistas e

literatos de diversos tipos e níveis). O mesmo ocorre quando a História das Idéias volta-

se para o estudo de movimentos literários e filosóficos tratando-os como tendências

que abrangem grupos mais amplos de pensadores (o Verismo na Literatura, ou o

Iluminismo na política) e também quando são examinadas as flutuações de pensamento

ou opinião em torno de idéias mais específicas como a "república", a "democracia", a

"liberdade" (ou quaisquer outras). Até este limiar, tem-se um domínio que muitos

preferem também chamar de História Intelectual.18

Prosseguindo em seu campo de possibilidades, no momento em que passa a investir em

uma preocupação mais sistemática de examinar as ideologias e a difusão de idéias, a

História das Idéias começa a se interconectar não apenas com a História Cultural como

também com a História Social em seu sentido mais stricto. Muitos preferem falar aqui de

algo mais específico como uma História Social das Idéias, mas é importante ressaltar que –

se estivermos empregando aquele sentido mais amplo de "História Social" onde toda

História nos dias de hoje é uma "história social" – teremos por força de considerar que

toda boa história das idéias, tal como a entende a moderna historiografia profissional, é

uma História Social das Idéias. A propósito disto, é bom ressaltar que, nos dias de hoje –

mesmo quando examina as idéias estéticas de um artista ou literato – é muito raro que

algum historiador profissional se proponha a empreender aquele já mencionado tipo de

História das Idéias que as concebe desencarnadas de seu contexto social, tal como a

fizeram muitos historiadores na primeira metade do século XX.

A partir do limiar em que o Historiador das Idéias avança pela investigação de idéias

que já se apresentam desencarnadas de autoria – ou porque estão mergulhadas na

chamada cultura popular, ou porque se referem à coletividade em sentido mais amplo –

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sua prática historiográfica começa a se inserir em um proficuo diálogo com aqueles

setores da História Cultural que investigam as visões de mundo, representações e

expressões coletivas. Também aqui, na medida em que estas idéias começam a tocar em

algo como as mentalidades ou o "inconsciente coletivo", poderemos começar a

vislumbrar os diálogos da História das Idéias com dimensões como a História das

Mentalidades ou como a Psico-História.

Um esquema complexo poderá ajudar a apreender o campo das possibilidades

temáticas pertinentes com a História das Idéias:

Foram situados esquematicamente os diversos objetos de interesse antes citados. Da

esquerda para a direita – sugerindo uma direção do mais concreto e singular ao âmbito

mais coletivo – teríamos os estudos de idéias específicas, no sentido transversal.19 Pode-

se estudar as variações na percepção das idéias de Igualdade ou Liberdade, por

exemplo, ou ainda relações entre duas ou mais idéias, como seria o caso de um estudo

relacionando as relações entre os conceitos de 'igualdade' e 'diferença'. Ao mesmo

tempo, pode-se examinar tanto estas idéias em um contexto específico como

percorrendo vários contextos históricos (o que irá requerer uma abordagem

comparativa), da mesma forma em que também será possível examiná-las nos âmbitos

do intratexto e do intertexto. Sobre a análise intratextual e intertextual das idéias, num

caso o historiador das idéias estará trabalhando com textos singulares e específicos (ao

nível do intratexto), e no outro caso estará examinando dois ou mais textos em relação

intertextual. Em ambas as situações, recairemos em um estudo dos discursos para o

qual o historiador das idéias poderá se valer de diversificados métodos que vão desde as

técnicas de análise de discurso até as abordagens semióticas e lingüísticas destinadas a

captar a significação estrutural dos textos. No esquema proposto, assinalamos campos

separados para o estudo das idéias em si mesmas e para os estudos em que estas idéias

estarão sendo analisadas em articulação às expressões culturais que as animam – como

por exemplo o estudo de uma idéia em um texto literário ou ensaístico específico, em

uma obra dramatúrgica, em um ciclo de canções, e assim por diante.

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Das idéias tomadas singularmente, passamos em seguida aos sistemas de pensamento

mais amplos – aqueles que se verificam ao nível do 'pensamento sistematizado' de um

autor, e aqueles que já correspondem aos grandes movimentos – tudo isto se abrindo a

possibilidades de abordagens relacionadas às idéias políticas, filosóficas, estéticas ou

científicas.20 Em um nível maior de abrangência, poderiam ser citadas inúmeras obras

que buscam trazer dentro de algum contexto específico um panorama de idéias

relacionadas a uma determinada dimensão (política, filosófica, estética), como fez

Quentin Skinner – um dos mais destacados historiadores das idéias – para o estudo das

idéias políticas.21 O estudo dos grandes paradigmas científicos, na inter conexão da

História das Idéias com o domínio da História das Ciências – e também no seu diálogo

interdisciplinar com a Filosofia da Ciência – vem a seguir. Para este caso, é relevante

mencionar contribuições que vão das análises do "paradigma científico" em sentido

mais amplo (Gaston Bachelard, Thomas Khun)22 aos paradigmas disciplinares, jurídicos,

normativos, repressivos, tal como nos oferece em diversas de suas obras Michel

Foucault.23 Entre os estudos sobre as idéias inseridas em campos disciplinares

específicos, podem ser citados por exemplo os próprios estudos de historiografia onde

são discutidas as diversas idéias de história, seja no âmbito da produção específica de

um autor ou no âmbito de correntes historiográficas mais amplas – cumprindo notar

que existem também os estudos que investigam a interação entre as idéias

historiográficas e os estilos narrativos.24

O campo dedicado ao estudo das Ideologias e da difusão de idéias, bem como o campo

seguinte, já referido às idéias coletivas de longa duração – mas também às idéias que

circulam em articulação a todo um âmbito de práticas culturais que escapam ao

universo da cultura letrada – já começam a posicionar a História das Idéias diante de

possíveis diálogos com a História das Mentalidades, que é segundo nossa classificação

uma 'dimensão histórica'. A História das Mentalidades, por outro lado, não deve ser

confundida com a História das Idéias, ainda que entre elas haja uma possibilidade de

intersecção – mais especificamente nas proximidades do limiar que assinala o âmbito

dos inconscientes coletivos. Na verdade, a História das Mentalidades também se abre

para possibilidades que vão muito além do domínio da História das Idéias,

particularmente nas suas investigações relativas aos modos de pensar e de sentir no

sentido mais abstrato,25 bem como na possibilidade de utilizar fontes seriais para

verificar as lentas variações históricas em certos padrões mentais.26 Ao mesmo tempo,

tal como já vimos, a maior parte dos estudos ambientados na História das Idéias

relaciona-se a idéias que se concretizam de alguma forma em discursos, sistemas de

pensamento, sistemas normativos, paradigmas interdisciplinares, e movimentos

políticos ou de qualquer outra ordem.

Com relação às abordagens possíveis aos historiadores das idéias – aos seus métodos e

fontes históricas possíveis – são empregadas as mais diversas abordagens, indo das

variadas possibilidades de análise do discurso aos variados aportes trazidos pelos

desenvolvimentos da Lingüística e da Semiótica. Mas um giro metodológico

fundamental, certamente, terá sido aquele que – nos anos 1970 – relegou ao passado da

historiografia a História das Idéias descarnada e descontextualizada que ainda podia ser

vista nos anos 1940 e 1950. Foi com os "contextualistas" ingleses – sobretudo com os

trabalhos de História das Idéias Políticas desenvolvidos por Quentin Skinner, John Dunn

e John Pocock – que surge a proposta de que as idéias deveriam ser sempre e

necessariamente relacionadas diretamente aos seus contextos de enunciação, uma vez

que os ambientes históricos e culturais sempre influenciam extraordinariamente a

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Page 277: Livro e Iconografia

escolha das questões a serem estudadas e, sobretudo, a formatação da própria

linguagem mais específica dentro da qual um debate de idéias se realiza.

Desta maneira, seria tarefa primordial do historiador das idéias trazer à luz a

linguagem original de um determinado circuito de idéias – evitando o anacronismo e

aprofundando-se na adequada compreensão de suas sutilezas de significação – impondo

deste modo a necessidade de recriar a temporalidade e o contexto inerente à própria

obra. Trata-se, assim, para nos atermos ainda ao caso dos estudos sobre as idéias

políticas, de ultrapassar a perspectiva intemporal que às vezes pode ser notada nas

obras de historiadores das idéias e cientistas políticos das décadas anteriores, como

ocorre por exemplo nas obras de Hannah Arendt. Ressalte-se ainda que, para o novo

padrão de História das Idéias consolidado a partir dos contextualistas ingleses, seria

importante não apenas reconstituir uma adequada relação entre texto e contexto como

também situar a análise dentro de uma perspectiva de que as estruturas lingüísticas são

fundamentais para a construção do pensamento de qualquer sujeito histórico – o que

portanto coloca o historiador das idéias diante do desafio de que não é possível

compreender uma idéia sem a plena consciência do momentum lingüístico dentro do

qual esta idéia foi formulada.

Não menos importante para o historiador das idéias é perceber e dar a perceber a rede

dentro da qual está inserido determinado autor "produtor de idéias" – investigando

dentro desta rede tanto as influências que o autor recebe como a recepção de suas

idéias pelos seus diversos contemporâneos. Importante examinar, ainda, os diálogos do

"produtor de idéias" com toda uma rede intertextual que remonta à tradição dentro da

qual seu pensamento se inscreve ou que, também de modo contrário, o contrasta com

as tradições contra as quais as idéias do autor estabelecem uma relação de ruptura.

Em que pese a importância dos aportes metodológicos oferecidos pela corrente

contextualista à História das Idéias, também não deixaram de ser criticados os exageros

da crença de que seria rigorosamente possível recuperar o sentido original de uma

obra, particularmente chamando-se atenção para o fato de que a interpretação dos

textos e idéias de uma época não deixam de ser guiadas em alguma instância pelos

valores do presente do próprio historiador que empreende a análise. Desta maneira,

pairando criticamente entre a antiga ilusão de neutralidade e o permanente estado de

alerta diante dos perigos do anacronismo, o historiador das idéias deveria se habilitar a

trabalhar concedendo um espaço às vozes do passado sem pretender sufocar

inutilmente a sua própria voz. Ao mesmo tempo, entre as impossibilidades de um mais-

que-perfeito "contextualismo" e as pretensões de um "internalismo" que investe nas

possibilidades de buscar exclusivamente dentro de um texto os seus significados –

geralmente à luz das metodologias semióticas de origem estruturalista – o historiador

das idéias deve fazer as suas escolhas possíveis.

A História das Idéias, enfim, tem se revelado um dos mais produtivos domínios

historiográficos, desenvolvendo importantes diálogos com dimensões historiográficas

como a História Cultural, a História Social, a História das Mentalidades e a História

Política, e também estabelecendo as suas conexões com inúmeros domínios

historiográficos que vão da História das Ciências à História da Literatura, além de

encampar as mais diversas abordagens disponíveis para uma análise de suas fontes e

contextos históricos. Dentro deste rico quadro de diálogos intradisciplinares e

interdisciplinares, o seu interesse tende a se renovar incorporando os demais

Cultura, vol. 21 | 2005

276

Page 278: Livro e Iconografia

progressos e novidades que se dão no seio da historiografia e das demais ciências

humanas.

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NOTAS

1. Remetemos aqui a uma obra recentemente publicada, na qual elaboramos um panorama

sistemático das várias modalidades em que hoje se divide o campo da História. Ali foi proposta a

idéia de que algumas das modalidades da História são definidas pelas dimensões que são

examinadas em primeiro plano pelo historiador (entre outras, a História Cultural, a História

Política, a História Demográfica), outras pelas abordagens e caminhos metodológicos que as

definem (como a História Oral, a História Serial, e assim por diante), e por fim aquelas

modalidades que são definidas por inúmeros domínios temáticos mais específicos (a História da

Mulher, a História Rural, a História do Direito, e tantas outras). BARROS, José D'Assunção, O

Campo da História, Petrópolis, Vozes, 2004.

2. DUBY, Georges. "Problemas e Métodos em História Cultural" in Idade Média, Idade dos Homens –

do Amor e outros ensaios. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 125-130.

3. Teremos aqui, como vanguarda destes campos de estudos, os trabalhos que surgem a partir dos

anos 1960 com a chamada Escola Inglesa constituída por historiadores marxistas como Edward

Thompson, Eric Hobsbawm e Christopher Hill.

4. MOLLAT, Michel. O pobre na Idade Média, Rio de Janeiro, Campus, 1989, p.73 [original: 1978].

5. Estas mudanças de práticas foram examinadas por Michel Foucault em obras como O

Nascimento da Clinica (1977) e Vigiar e Punir (1980), e Fernando Braudel as sintetiza em um passo de

Civilização Material, Economia e Capitalismo (1997). Em O Capital, Marx também examina as rigorosas

leis contra a pobreza 'não inserida' no novo sistema de trabalho assalariado produzido pelo

capitalismo.

6. LE GOFF, Jacques, O Imaginário Medieval, Lisboa, Estampa, 1994, p. 11.

7. LE GOFF, Jacques, O Imaginário Medieval, idem, p. 12.

8. DUBY, Georges, As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo, Lisboa, Edições 70, 1971.

9. LE GOFF, Jacques, O Imaginário Medieval, idem, p. 12.

10. Conforme BURKE, Peter, "História Cultural: passado, presente e futuro" In O Mundo como

Teatro, São Paulo, DIFEL, 1992, p. 15 [original da colet.: 1991].

11. CHARTIER, Roger, "Por uma sociologia histórica das práticas culturais" In A História Cultural –

entre práticas e representações, Lisboa, DIFEL, 1990.

12. CHARTIER, Roger, op.cit., p. 17.

13. CHARTIER, Roger, op.cit., p. 27-28.

14. FOUCAULT, Michel, A Arqueologia do Saber, Petrópolis, Vozes, 1972.

15. WHITE, Hayden, A Meta-História, São Paulo, EDUSP, 1992 e LaCAPRA, Dominick, Rethinking

History: Texts, Contexts Language, Nova York, Ithaca, 1983.

16. LADURIE, Emmanuel Le Roy, Montaillou, village occitan. Paris, Gallimard, 1975 [São Paulo,

Companhia das Letras, 2000], [original: 1975].

17. José D'Assunção BARROS, O Campo da História, Petrópolis, Vozes, 2004.

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278

Page 280: Livro e Iconografia

18. É esta a proposta de Robert Darnton em um ensaio sobre a História Intelectual, que foi

posteriormente inserido na coletânea O Beijo de Lamourette – mídia, cultura e revolução (São Paulo,

Companhia das Letras, pp. 175-197).

19. Nestas situações, o trabalho do historiador das idéias pode dialogar intensamente com outras

áreas do conhecimento humano, como a Filosofia ou a Ciência Política. Os cientistas políticos, por

exemplo, encontram-se com os historiadores das idéias quando estendem seu olhar sobre os

vários planos de temporalidade na busca de compreender idéias ou conceitos específicos dentro

do universo de significação de cada época. Por outro lado, não é dificil encontrar também aqueles

– entre cientistas políticos e historiadores das idéias políticas – que parecem pretender imaginar

um diálogo de idéias através dos tempos onde pouco se percebe como cada contexto histórico-

social afeta uma idéia. Na contra-corrente desta tendência, destaque-se a importância

fundamental de três historiadores das idéias políticas que na Inglaterra dos anos 70 e 80

chamaram atenção para a importância que deve ser conferida ao "contextualismo": John Dunn,

John Pocock, e Quentin Skinner.

20. Apenas para mencionar dois exemplos de estudos sobre o pensamento sistematizado de um

autor, citaremos as obras de John Dunn e John Pocock sobre os pensamentos políticos de Locke e

Maquiavel: (1) John DUNN, The political thought of John Locke (Cambridge 1969); (2) J.G. POCOCK,

The machiavellian moment: florentine political thought and the Atlantic republican tradition (Princeton:

1975). Note-se, ainda, que a fusão dos 'estudos sobre pensamentos sistematizados' com o domínio

da Biografia Histórica tem dado origem a diversas biografias intelectuais importantes.

21. SKINNER, Quentin, As Fundações do Pensamento Político Moderno, São Paulo, Companhia das

Letras, 1996.

22. Gaston BACHELARD, que escreve do ponto de vista de um epistemólogo e não de um

historiador, trouxe uma importante contribuição ao estudo dos paradigmas com seu ensaio Um

Novo Paradigma Científico (São Paulo: Nova Cultural, 1998). Enquanto isso, o físico Thomas Khun

celebrizou-se por A Estrutura das Revoluções Cientificas (São Paulo: Perspectiva, 1988).

23. Entre outras obras importantes de Michel FOUCAULT neste sentido, poderemos destacar A

Arqueologia do Saber (Petrópolis: Vozes, 1972), O Nascimento da Clínica (Rio de Janeiro, Forense-

Universitária, 1980) e Vigiar e Punir – história da violência nas prisões (Petrópolis: Vozes, 1977).

24. Neste particular, um dos exemplos mais marcantes das últimas décadas foi a obra Meta-

História, de Hayden White (São Paulo: EDUSP, 1992).

25. Apenas para dar um exemplo, o Medo é um sentimento, e não uma idéia ou um conceito

(embora o "medo" possa ser conceituado filosoficamente, se for o caso). Neste sentido, deve ser

classificado como um trabalho de História das Mentalidades o livro de Jean Delumeau intitulado

História do Medo no Ocidente (São Paulo: Companhia das Letras, 1989).

26. A 'História das Mentalidades' pode utilizar tanto abordagens qualitativas a partir de fontes

diversificadas, como ocorre com o trabalho de Philippe Ariès sobre a História da Morte (O Homem

diante da Morte, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, 2 vol), como abordagens seriais, a exemplo

do que fez Michel Vovelle em seus estudos sobre o mesmo tema (Piétè baroque et déchristianisation,

les atitudes devant la mort en Provence au XVIII siècle (Paris: Le Seuil, 1978).

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Page 281: Livro e Iconografia

RESUMOS

Este artigo busca elaborar em sua parte inicial uma visão panorâmica sobre a História Cultural,

esclarecendo e discutindo alguns aspectos relacionados a esta modalidade da História. Na sua

segunda parte, a História das Idéias é apresentada em suas relações dialógicas com a História

Cultural e outras modalidades historiográficas. No decorrer do texto, são discutidos diversos dos

conceitos envolvidos na perspectiva da História Cultural e da História das Idéias, a partir de uma

produção historiográfica diversificada que se desenvolveu ao longo do século XX. O artigo remete

a obra recentemente publicada pelo autor deste texto, cujo principal objetivo é o de elaborar uma

visão panorâmica das diversas modalidades da História nos dias de hoje.

This article attempts to elaborate in its first part a panoramic view about Cultural History,

clarifying and discussing some aspects related to this modality of History. In the second part, the

History of Ideas is presented in dialogical relations with Cultural History and other

historiographical modalities. Along the text, several aspects are discussed concerning to the

historiographer production developed by the Cultural History and History of Ideas along de

twenty century. The article refers to a recently publicized work of the author of this text, which

principal subject was to elaborate a panoramic view of the various fields in which the historical

knowledge is divided nowadays.

ÍNDICE

Keywords: fields of history, historical methodology, historical writing

Palavras-chave: campos da história, metodologia da história, escrita da história

AUTOR

JOSÉ D’ASSUNÇÃO BARROS

Doutor em História Social pela UFF, USS.

Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor da

Universidade Severino Sombra (USS) de Vassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduação em

História, onde leciona disciplinas ligadas ao campo da Teoria e Metodologia da História. Escreveu

O Campo da História – Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004.

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Page 282: Livro e Iconografia

Os alemães e a modernidade(vistos hoje em Portugal)

German and the modernity (Portuguese's point of view)

Carlos Leone

Retomando o título de um célebre trabalho de Norbert Elias, este artigo discute algumas

variantes de relevo na língua alemã de crítica à modernidade. Em rigor, discute-as na

sua pertinência actual, tal como se deixa ver em dois trabalhos recentes de autores

portugueses, Rafael Gomes Filipe e Alexandre Franco de Sá. O nó-górdio da questão

encontra-se na caracterização da modernidade através da elaboração de uma filosofia

da História, problema que sobressai na análise de Nietzsche e Weber por Gomes Filipe e

no ensaio schmittiano de Franco de Sá. Naturalmente, este artigo pressupõe alguma

familiaridade do leitor com o tema da leitura filosófica da história em outros autores

alemães (Kant e Hegel, sobretudo), mas essa não é uma condição de leitura – tal como

não deve ser para a de ambas as obras.

I

Originalmente uma dissertação de doutoramento apresentada à UNL/ FCSH (aprovada

em 2003), esta investigação de Rafael Gomes Filipe insere-se num trabalho já longo de

tradução e pesquisa do autor no campo da filosofia e da cultura alemãs

contemporâneas, nos quais avultam traduções de Nietzsche e Weber mas também de

Kleist, entre outros, e em particular a sua dissertação de mestrado Modernidade, Crítica

da Modernidade e Ironia Epistemológica em Max Weber (também ed. Piaget, 2001). Esta

publicação beneficia de um acréscimo, em notas, na já rica informação bibliográfica e

confirma os méritos do trabalho original, grandes quer na recolha de materiais, quer na

sua análise, quer, por fim, na sua apresentação literária. É, neste momento, o estado da

arte na investigação weberiana em Portugal e, talvez, em Português.

Os cuidados expressos no título, e logo justificados no texto primordialmente

metodológico da Introdução (pp. 31-33), compreendem-se: à falta de uma vinculação

explícita por parte de Weber à Obra de Nietzsche, ou se cai na recolha de traços comuns

(vestígios de Nietzsche em Weber, como Gomes Filipe não ignora nem menospreza) ou

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Page 283: Livro e Iconografia

se opta pela detecção nesses vestígios de uma afinidade congenial dos autores, fazendo

da hermenêutica textual (por vezes em close reading) o veículo para dar ao leitor a

imagem weberiana de Nietzsche e, com ela, a marca de Nietzsche (qual amigo defunto)

na Obra de Weber. Escolhendo a segunda via de forma mais sistemática e premeditada

do que até aqui alguém tinha feito, Rafael Gomes Filipe confronta-se desde o início até

ao fim do seu estudo com a limitação que lhe é inevitável: como manter a relação entre

Weber e Nietzsche de forma nítida aos olhos do leitor, sem incorrer na remissão para

Nietzsche da originalidade weberiana (ou inversamente, fazer de Weber um "corrector"

de Nietzsche) e, mais importante ainda, sem forçar a letra ou o espírito de modo a

explicitar de modo mais claro a afinidade realmente existente e, além do mais, nítida?

Para além da referência biográfica que Gomes Filipe relata a partir de E. Baumgarten

(Weber referiu publicamente que Marx e Nietzsche são os dois autores face aos quais

qualquer autor contemporâneo vê a sua honestidade testada pela relação que adopte

com eles), o próprio Weber é muito parco em referências úteis, pelo menos directas.

Uma carta a Edgar Jaffé contém a observação de, em seu entender, aquilo que de mais

duradouro se encontra nas obras de Nietzsche ser a moral da nobreza. É certo que nas

obras finais da sua vida (vide A ciência como profissão) há menções explícitas a Nietzsche

mas são pontuais. A primeira solução para esta dificuldade encontra-se na estrutura do

trabalho de Rafael Gomes Filipe: uma primeira parte, dedicada a questões e textos de

carácter metodológico e conceptual; uma segunda parte, central, toma a questão

religiosa no pensamento de Nietzsche e Weber como local ideal para surpreender

aquela afinidade electiva, mais a mais enriquecida pelos matizes introduzidos por

Weber em algumas teses nietzscheanas; por fim, e como não declarada conclusão, uma

terceira parte, dedicada à dimensão política dos elementos compulsados antes, a nosso

ver o momento mais sugestivo de todo o trabalho.

Desta terceira podemos citar de imediato a abertura do seu primeiro capítulo, de modo

a esclarecer a imbricação de todos estes planos. Referindo-se à leitura de Weber por

Eugène Fleischmann, Gomes Filipe anota: "No que diz respeito à teoria weberiana da

história, o método comportaria um dualismo – ou até mesmo um ecletismo – que teria

forçosamente de se tornar insustentável. Mais cedo ou mais tarde, ele teria de escolher

entre uma história como encadeamento causal a partir de ou em direcção à infra-

estrutura económica e uma outra história, reconstituível a partir de acções razoáveis

('sensíveis') do homem, ou seja, a partir da luta 'politeísta' entre os valores. No

entender de Fleischmann, a primeira posição, que traduz a influência de Marx sobre

Weber, irá perdendo força, quer devido às decepções políticas de Weber com o

socialismo, quer devido à convicção ideológica de Weber de que é a luta entre os

homens e não o ideal filosófico abstracto de um estado feliz e pacífico da sociedade que

explica a realidade humana como ela é. Sem este cunho heraclitiano inerente ao

pensamento de Weber, a aproximação com Nietzsche poderia não ser mais do que uma

simples coincidência." (p. 379/80). Assim se explica não porque é que Weber nunca

desenvolve uma filosofia da história mas sim uma teoria das ciências sociais e, como

Gomes Filipe anota no mesmo passo, prolonga a teoria nietzscheana da vontade de

poder em direcção a uma sociologia das formas de dominação social. A preponderância

em Nietzsche e em Weber (como em Maquiavel e, noutro registo, em Freud) da vontade

como forma irredutível de causalidade, afinal a vontade como realidade derradeira,

torna no entanto problemática a obsessão de Nietzsche e de Weber com o "destino" do

Ocidente; como explicar uma fórmula tão conservadora e acientífica como esta de fado

enquanto modo de interrogar o real em dois autores tão radicais e insensíveis ao

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Page 284: Livro e Iconografia

grande guardião da tradição que é a religião (Weber chega mesmo a dizer-se imune à

sensibilidade de tipo religioso, algo que não seria estranho a Nietzsche; cf. p. ex. as

notas 10 e 37 da Parte II deste trabalho.)

Uma resposta imediata encontra-se no final da nota 47 da Parte II: "a ideia de que o

resultado final de uma acção ultrapassa em geral os limites da intenção dos actores é

ilustrada por abundantes exemplos em toda a Religionssociologie de Weber, bem como

nos seus escritos políticos. Contrariamente às formas de optimismo racionalista de

cunho iluminista, é mesmo esta ideia que, como procuraremos demonstrar, preside à

weberiana reintrodução da dimensão trágica na história e que explica, em última

análise, a mais profunda afinidade espiritual entre Weber e Nietzsche." (p. 328). Ainda

assim, é mediante a argumentação desenvolvida por Gomes Filipe no conjunto do seu

estudo que a dificuldade quanto ao sentido (da vontade, do poder, da dominação,

apetece destrinçar) se deixa compreender.

Fazendo da Parte I do seu trabalho uma discussão teórica e metodológica da afinidade

entre os dois autores, Rafael Gomes Filipe estabelece, como seria de esperar, o nexo

entre o perspectivismo nietzscheano e a ciência da realidade (empírica, social) de

Weber através do problema da objectividade. Reduzida por Nietzsche desde muito cedo

a uma forma de ilusão do eu (e um encanto não pequeno deste trabalho é devolver um

Nietzsche muitas vezes pouco citado, em especial o de Aurora), a objectividade é

pensada por Weber de forma muito similar. Ao renunciar à objectividade nas ciências

sociais em favor de uma subjectividade ciente de si (no que seria, ainda, apenas pós-

kantiano), Weber antecipa teses que só durante o século XX, em particular na sua

segunda metade, conhecerão curso sem o estigma de escândalo, em particular no

domínio da moral e da política. Como escreve Rafael Gomes Filipe: "O sacrificio da

objectividade é feito sem qualquer relutância, pois liberta a ciência do peso de tradições

gastas para as possibilidades mais exigentes do seu tempo; porque mantém o sentido da

ciência, apesar da pluralidade ilimitada e da mudança permanente dos pontos de vista;

finalmente, porque, dados os pressupostos da neutralidade axiológica (Wertfreiheit) e o

pluralismo de valores da sociedade, ele se afigura ser a única oportunidade de defender

uma ciência comprometida com pontos de vista de valor. Uma vez que a cultura /

civilização é explicada como sendo um conceito subjectivo, a ciência da cultura só

poderá ser subjectiva." (p. 64). Através da concepção de "tipos ideais" Weber preservará

do arbitrário anárquico este sentido subjectivo, sujeitando a validade do conhecimento

científico a um teste empírico quanto aos resultados obtidos a partir do seu uso

(contudo, a afinidade nietzscheana não sai em nada diminuída, como a citação de

Weber incluída na nota 245 desta Parte I bem demonstra). Deste modo, e antecipando o

aspecto construtivista desta linha de pensamento que mais nitidamente se revela nas

partes II e III, a influência de Simmel na recepção de Nietzsche por Weber é de tal modo

relevante que, ao mesmo título que os dois autores maiores do estudo, também dele se

poderia falar como um intelectual de segunda geração (i.e., pós-iluminista) de igual

estatuto. Nas páginas deste trabalho sobre Simmel (e, em menor número, sobre Freud e

Hegel, além de muitos cientistas sociais contemporâneos de Weber, sobretudo Dilthey)

sobressai a cultura germanista de Rafael Gomes Filipe, deixando perceber como foi

comum a quase todos a preocupação com "a preservação e defesa não só da liberdade

exterior, mas sobretudo da liberdade interior do ser humano no mundo moderno" (p.

69).

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Page 285: Livro e Iconografia

Na relação entre o destino do mundo moderno e a liberdade interior que o ser humano

nele adquire, sem surpresa ganha relevância o tema do construtivismo (tanto neste

ponto como nas notas 108 e 111 da Parte III o construtivismo de ambos os autores é

evidente). Este é inerente ao que Weber qualifica como o dom da eterna juventude das

ciências sociais, apresentado por Gomes Filipe nestes termos: "A verdadeira tarefa da

ciência social consiste, assim, exclusivamente, em contribuir – pelo trabalho de

construção e de crítica dos conceitos, entre outros – 'para o conhecimento da

significação cultural de relações históricas concretas'. Nada mais, mas também nada menos."

(p. 81). Com efeito, esse trabalho de construção racional não é apenas normativo (como

pretende um seu crítico, Hayek) mas igualmente reflexivo, crítico. Este ponto salienta-o

igualmente Gomes Filipe mais tarde: "para Weber, a realidade é tão-só uma construção,

efectuada com base na rejeição do aleatório e na selecção do que é 'importante para

nós', o qual é depois objecto de uma representação inteligível mediante o recurso a

ideias de valor empiricamente dadas que orientam a cultura." (p. 134). Deste modo,

quer a caracterização da modernidade (o "mundo desencantado") quer a caracterização

da liberdade que resta ao homem moderno (o "politeísmo de valores") não repetem

Nietzsche, pois (cf. p. 128) Weber não partilha com este a convicção numa superação

redentora do mundo moderno. Mas, sem dúvida, parte do seu pressuposto (o fim da

transcendência) e desenvolve o seu método perspectivista.

Na segunda parte do seu estudo Rafael Gomes Filipe explora a genealogia nietzscheana

e a sociologia weberiana no terreno comum, religioso, no qual as afinidades até aqui

estritamente metodológicas adquirem um sentido compaginável. Ao focar a dimensão

da conduta pessoal de vida como central no projecto de sociologia compreensiva

weberiana (p. 212), Rafael Gomes Filipe lança a base para articular não só com a

genealogia de Nietzsche mas também com as noções de domínio, liberdade e vontade a

reflexão de Weber sobre o fenómeno religioso. Estreita também, assim, a malha

conceptual própria daquele sentimento de trágico na história comum a Nietzsche e

Weber. A conduta de vida é a designação de Weber para o tipo ideal apropriado ao

estudo da acção sub specie religiosa, e de facto bem afim ao recurso de Nietzsche à

fórmula "ideal ascético". Qualquer cultura surge como uma conduta de vida individual

tornada colectiva, sendo que enquanto cultura visa escapar ao fim natural da vida

individual; assim a questão do sentido é inescapável para qualquer cultura,

especialmente a moderna, reflexiva por excelência mas especializada, logo

insusceptível de poder responder de forma completa ao problema do sentido, como é

possível fazer do ponto de vista religioso. Pior: a actividade imanente, mundana, pode

ser percepcionada como dispersiva, autocontraditória, sem valor. Nesta sequência (cf.

p. 302), Weber nota como, e aqui Gomes Filipe sintetiza: "à medida que a reflexão sobre

o sentido do mundo se foi tornando mais sistemática, que o mundo foi racionalizado na

sua organização externa, que era sublimada a experiência consciente dos seus

conteúdos irracionais, também o que constituía o conteúdo específico do religioso

começou a tornar-se irreal e a afastar-se de toda e qualquer vida organizada." O

problema do destino da nossa cultura impõe-se assim, e em Weber ainda mais do que

em Nietzsche (pois ao sociólogo faltam as esperanças do filósofo na transmutação de

valores), por força da impossibilidade de recuperar um sentido pré-científico para o

problema cujo sentido a ciência moderna não pode solucionar (nem, sequer,

verdadeiramente colocar): o sentido da existência.

Neste ponto é na terceira parte deste trabalho que já nos encontramos. Aqui, as

diferenças entre Weber e Nietzsche agudizam-se: mesmo qualificando de voluntarista o

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Page 286: Livro e Iconografia

liberalismo de Weber, ele persiste num liberalismo (céptico, resignado, preocupado,

mas um liberalismo); ora Nietzsche não desce aos mesquinhos problemas da

modernidade política senão por via histórica e antropológica, recorrendo sempre a

vastas generalizações que estão metodologicamente nos antípodas do empirismo

weberiano. Este entende, nas palavras de Gomes Filipe, que "a característica maior da

modernidade consiste no avanço inexorável das forças da racionalização e do

'desencantamento' cujo efeito combinado não poderia deixar de minar ou corroer

aquelas crenças que, durante tanto tempo, estiveram na base das ideias de legitimidade

e de legitimação." (p. 405). Surge o problema da vontade individual na sua forma mais

crua, a da liberdade interior e simetricamente a da dominação social. Ora, não é preciso

assentir na caracterização do contratualismo como mero jurisdicismo apolítico (o medo

e o desejo de segurança como incitadores ao contrato foram bem evidenciados tanto

por Hobbes como por Espinosa) para reconhecer na posição weberiana, uma defesa do

parlamentarismo como modo de gerar chefias carismáticas em sistemas burocráticos e,

assim, manter uma margem de liberdade individual na conduta política, capaz de gerar

um sentido específico, próprio, para a existência pessoal e social, como uma evolução

face à posição irredentista de Nietzsche face ao Estado e à política modernos. Evolução

enquadrada, aliás, por Rafael Gomes Filipe numa tradição que parte de Maquiavel e

passa por Rousseau e Tocqueville, além de Nietzsche e Weber. Pense-se o que se pensar

sobre a consistência interna desta tradição (que relembra as que I. Berlin traça nos seus

ensaios) composta de tantos contextos diversos, Weber surge, de facto, como um

abnegado da acção no panorama do pensamento político contemporâneo (como diz

Gomes Filipe, cf. p. 420). E, como a sua defesa do parlamentarismo deixa claro, como

defensor das instituições modernas enquanto sede própria para o exercício da

actividade política. Ora, opor ao destino o carisma (cf. p. 409) significa reconhecer

virtude (força) na realidade. Isto é: não apenas reconhecer a razão na realidade (e não

em algum sentido transcendente) mas além disso reconhecer valor (possibilidade de

sentido) nesta política moderna. Mas, ao terminar, é impossível não dar conta da

dissonância entre esta perspectiva weberiana e anotações dispersas do autor, como o

parágrafo final da nota 2 da parte II ou, mais nitidamente, o sublinhado com que fecha a

nota 94 da parte III. Em passagens como essas é já a voz de Carl Schmitt que parece

falar. Aqui não será o destino da cultura que se joga, mas é já outra hermenêutica, outro

sentido ou outra vontade de poder que se exprime, em qualquer caso insusceptível de

ofuscar a força e originalidade deste trabalho – provavelmente o melhor de ciências

sociais publicado em Portugal durante 2004.

II

Não pretendemos com isto, portanto, fazer derivar para a análise da obra de Carl

Schmitt o juízo sobre a cultura ocidental elaborado, de modos diversos por Nietzsche e

Weber. Na verdade, a aproximação dos dois autores e o reconhecimento do liberalismo

do segundo permite mesmo desfazer um tópico comum às leituras enviesadas de

Nietzsche, o de um pretenso totalitarismo inevitável. Além de factualmente

indemonstrável, esta leitura sobrevaloriza um aspecto do pensamento de Nietzsche que

é, tudo visto e revisto, quase incipiente, a reflexão política. Contudo, algo que não

sucede com Weber (tal como não sucede com Simmel ou Freud) verifica-se com Schmitt

(mais do que em Heidegger ou em Löwith): existe de facto a radicalização política da

leitura anti-moderna da modernidade. Vendo a modernidade como uma secularização

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voluntária, Nietzsche podia permanecer apolítico por força da sua concepção de uma

transmutação de todos os valores; vendo na modernidade uma secularização disfarçada,

Schmitt exacerba o significado político do processo através de uma filosofia da História

que enuncia a auto-subversão de todas as metamorfoses do mundo moderno. E uma boa

apresentação desta perspectiva é o livro de Alexandre Franco de Sá, Metamorfose do

Poder.

Este livro, que se poderia intitular Democracia, distopia, diatribe antimoderna, reúne

ensaios do autor sobre Carl Schmitt publicados nos últimos anos, deixando perceber a

unidade e a intencionalidade de cada um e sobretudo do seu conjunto. O subtítulo é

bem explícito: "prolegómenos schmittianos a toda a sociedade futura". Além disso, no

que tem de autoral, o conjunto indica claramente a afinidade (patente no seu trabalho

de tradutor) de Alexandre Franco de Sá com um pensamento alemão veementemente

contestatário de muitas, senão todas, as premissas da modernidade (afinidade já

patente no artigo que Franco de Sá escreveu, sobre Heidegger e a Universidade, para

uma revista também recente, Metacrítica, cf. n°1, Outubro de 2002, Edições

Universitárias Lusófona, Lisboa). Desde o início, o tom conjuga reprovação, acusação e

denúncia, um modo de ressentimento que ressurge a todas as épocas como se se

tratasse de algo novo. A crítica à 'tagarelice' incessante e ao desinteresse geral; à

'massa' e ao isolamento individualista; à irresponsabilidade inconsciente e ao fanatismo

grupal. Tudo em simultâneo, pretendendo ser uma caracterização da vida

contemporânea, quando, afinal, em todas as épocas se encontra (desde Platão, pelo

menos). Bem escrito e bem fundamentado no que toca ao pendor schmittiano, o livro

declara que em política faltam as perguntas e, pretendendo ser provocador, esclarece

de imediato que há uma "proibição de perguntar" própria da política moderna, hoje a

sofrer inconscientemente os efeitos desse seu vício original (cf. Introdução). Com este

ponto de partida não surpreende que as perguntas sejam sempre contra (sic, p. 17) as

sociedades modernas e que na sua base esteja uma teoria conspirativa que vê, velada

pela inconsciência, uma inevitável evolução totalitária daquele que é hoje "um

pensamento dominante" (idem), a saber, o liberalismo político. Este, e a sua tradição da

liberdade, são assim intimados a responder perante aqueles sujeitos livres (é necessário

um, e basta um, como adverte a epígrafe ao livro) que subsistem e persistem em pensar

a política como um problema em aberto, sem fim da história, só com metamorfoses. A

metamorfose do título é a que, inadvertidamente, o liberalismo política gera e, mais

schmittianamente do que o próprio Schmitt (pois o seu pensamento é hoje ainda mais

actual do que à data da sua formulação), Alexandre Franco de Sá desvela.

Os problemas começam, contudo, com os próprios termos, pois este pensamento

dominante não se deixa fixar: apesar de citar Mill, Tocqueville, Arendt, Habermas e

Rawls (Constant e Berlin são omitidos), nunca se determina em que consiste este

pensamento único do liberalismo. Identificam-se, é certo, teses (individualismo,

associativismo livre, pacifismo), mas teses com as quais nenhum pensamento liberal

pode ser, sem mais, identificado. Simplesmente "um pensamento dominante" não

existe, esse liberalismo (dominante, de facto) é demasiado variado para poder ser

subsumido numa grande amálgama susceptível de ser criticada em conjunto. Existem

doutrinas liberais, no plural, e nenhuma delas, aliás, susceptível de uma única

interpretação. Mais: nenhuma delas determina ou reflecte na perfeição a vida social e a

condução dos assuntos públicos. A própria linguagem de Franco de Sá, referindo-se a

pressupostos "fundamentais", a realidades "puras e simples", etc., exprime bem a

desadequação entre a realidade empiricamente verificável e a perspectiva crítica que

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sobre ela é lançada como crítica: ao tomar a nuvem (as nuvens) por Juno, deplora

realidades que, em rigor, não existem.

Deste modo, não surpreende que logo no primeiro ensaio se esclareça (p. 25) que a

perspectiva schmittiana é dominada por uma filosofia da história (e a referência a

Heidegger não é acidental; poder-se-ia discutir aqui, contra Schmitt e Heidegger, acerca

da impossível distanciação entre filosofia história). É baseada nessa filosofia da história

que se discute "aquilo a que chamamos a auto-interpretação política do nosso tempo"

(idem). Desta perspectiva, amplas generalizações são produzidas, sem preocupação com

a identificação de instâncias que as demonstrem (o que tanto serve para singularizar o

'jus belli' moderno como se o tirano antigo não fosse um predecessor seu como para

referir um "puro princípio da representação próprio da monarquia absoluta", que, com

propriedade histórica nunca existiu, cf. p. 29). Para os leitores de Schmitt, nada disto é

invulgar; mesmo reconhecendo o génio (e o mesmo se pode dizer de Heidegger), as

torções conceptuais ao 'meramente' histórico são frequentes e, em rigor,

indispensáveis. A redução da soberania através do primado da lei a uma "soberania da

ausência de soberano" ou a redução da neutralidade ideológica a uma passividade

política em nome de uma anomia axiológica (cf., p. ex., p. 31) são mais do que excessos

de expressão, são uma necessidade ditada pelo determinismo intrínseco à filosofia da

história que sustenta toda a argumentação. Daí que, a partir do momento em que se

opera (pp. 33ss.) "uma confrontação shmittiana com a nossa contemporaneidade" tudo

se resuma a um cotejo de duas descrições da democracia moderna (uma de Schmitt, a

outra de Derrida) que em comum têm o facto de serem (em termos weberianos) "tipos

ideais", isto é, representações destinadas a tornar inteligível o real mas inencontráveis

em toda a sua exactidão na realidade social. Indiferente a estas mundaneidades, a

perspectiva schmittiana (e derridiana, claro) desenvolve uma crítica a representações

apenas lógicas (sem desprimor), representações heurísticas que não têm como exceder

a sua função instrumental. De um lado, Derrida, a democracia como "desconstrução em

obra"; do outro, Schmitt, "um qualquer grau" de homogeneidade dado como

inevitavelmente presente em "toda e qualquer" democracia. Das democracias

propriamente ditas, nem uma palavra. Desta perspectiva soberana, o jogo dialéctico é

de facto possível, e, com o triunfo da lógica sobre a história normal na filosofia da

história (ironicamente, uma tendência intelectual bem iluminista, mesmo que também

se lhe possa aplicar, até com alguma propriedade, a tese da secularização). No caso,

pergunta-se (p. 35) se "o significado histórico-espiritual" dos totalitarismos se esgotou

com o fim dos regimes que os representaram ou se um "significado profundo se

prolonga hoje, ainda que invisivelmente". A referência inicial ao pensamento

dominante não deixa dúvida quanto à resposta e o restante do livro não desilude. Para

tanto, tem de aderir explicitamente e sem reservas à tese da secularização segundo a

qual o demoliberalismo se baseia num fundamento teológico-político (p. 37). Neste

exercício de 'futurismo do passado', não espanta que seja a fontes pré-modernas que se

recorre para explicar a dinâmica social moderna: Aristóteles surge como fundamento

(ao menos filológico) para se postular a escassez de crítica inevitável em sociedades

individualistas. Que a sociedade pensada por Aristóteles e a moderna sejam

estruturalmente diferentes (e como "crítica" é um conceito em que isso é visível!) e,

portanto, que a "eficácia pública" (p. 41) seja insusceptível de comparações é algo que

nem sequer é considerado. Tal como em Schmitt, tal como em Heidegger (tal como em

Derrida ou em Agamben), a etimologia exerce o seu encanto fetichista. Assim, não deixa

de ser lógica a identificação do escravo em Aristóteles sob a nova "configuração" de

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cidadão demoliberal hodierno (cf. p. 42) – a lógica do jogo de categorias predomina

sobre a atenção ao sentido e ao valor da realidade social. Esta cidadania, aliás, não só é

ingénua como é duplamente ingénua (pp. 44/5), incapaz de vislumbrar como o seu

particularismo intransigente (Franco de Sá não explica como este se coaduna com o

legalismo generalizado, a menos que a ideologia da educação liberal sirva mesmo para

explicar tudo, qual lavagem cerebral sem falhas) se conjuga com a sua desistência cívica

(fazendo do sistema representativo de Constant uma oligarquia com sacrifícios rituais).

Que as descrições de Schmitt dos processos argumentativos em democracia sejam de

uma confrangedora ingenuidade (ainda que simulada) ao imputar à democracia aquilo

que é próprio de toda a luta política não-violenta (como Weber notou em A Política como

Profissão), a saber, o carácter não teorético mas instrumental da discussão pública, não

deve, no entanto, desqualificar os problemas. A atenção ao predomínio da imagem

acrítica sobre a palavra crítica (p. 49 e p. 78) é um daqueles raros momentos em que a

política, como realidade e não como (pré)conceito, chega a ser considerada. Mesmo que

apenas de passagem, é quanto basta para admitir, de facto, potencialidades a uma

perspectiva crítica da modernidade a partir de uma teoria decisionista da política.

O segundo ensaio tenta desenvolvê-la, ao sugerir uma actualização da teologia política

(mais política do que teológica) como modo de questionar o mundo actual. Num

primeiro momento, descrevendo através de cinco características a política moderna na

sua correspondência com uma estrutura metafísica de matriz teológica (subjectividade;

liberdade; igualdade; a-teleologia; intimidade). Depois, explicitando o conteúdo desta

caracterização como sendo crítica (contrária) ao liberalismo político: aqui, de novo, o

grau de generalização é tão amplo que permite tudo, mesmo dar como exemplares do

demoliberalismo autores (Krabbe e Kelsen) que representam apenas uma variante

construtivista deste, isto é, uma forma de positivismo jurídico que pretende (sobretudo

Kelsen, como notou em tempos o liberal Hayek) prescindir de tudo o que é da ordem do

social, não científico, em favor de uma normatividade política irrestrita, desnecessária

ao Direito e à política. Que as teses de Kelsen e Krabbe nunca tenham originado

movimentos sociais e políticos relevantes, que nunca tenham sido dominantes nem

sequer no pensamento jurídico (pese a sua relevância histórica, mérito intrínseco, etc.),

enfim, que estas posições não possam ser dadas como dominantes é silenciado. Pois é

necessário apresentá-las como se o quadro jurídico e a prática legal das democracias

não passasse de uma aplicação integral e inalterada das obras do positivismo jurídico –

só assim o liberalismo político pode ser superado (hegelianamente) pela sua 'crítica'

schmittiana.

Podemos reconhecer, pelo menos, o mérito de esta crítica dizer abertamente ao que

vem, criticando a democracia liberal como ilusória, ao contrário da comunista que

ataca (também com uma filosofia da história determinista) o sistema económico

capitalista para alcançar o mesmo objectivo político. As semelhanças não são

acidentais, são até essenciais, pois a estratégia de recorrer a aventuras dialécticas para

demonstrar o carácter ilusório do demoliberalismo resulta justamente da sua renúncia

em descer ao concreto (das relações de poder, das relações económicas). A acção,

sempre dialéctica e com um significado espiritual que transcende (é o termo) sempre o

'meramente' pragmático, depende sempre de uma abstracção formalista que se dá

como a verdade 'escondida', ocultada pelo pensamento dominante (ideologia). Inverter

esta situação e apresentar um estado liberal como uma auto-imagem de superioridade

moral, como se a auto-imagem não estivesse condicionada pela acção e esta não fosse,

desde sempre, acusada por liberais e anti-liberais de insuficientemente afirmativa

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Page 290: Livro e Iconografia

(ainda hoje), logo decadente, é de facto possível, mas como arma de propaganda, não

como análise crítica. A deficiência de decisionismo na prática política demoliberal, que

poderia ter neste ensaio um terreno fértil, não é explorada. Uma admissão tácita do

decisionismo que, ainda assim, triunfa em tempos de crise nos sistemas demoliberais?

Nada no livro permite supô-lo. Alexandre Franco de Sá vê na sociedade liberal de

sempre, de Locke a Rawls (cf. p. 77), uma autocontradição fatal: requer a discussão mas,

precisamente por querer um Estado neutro (aqui, lembremo-nos, sinónimo de inerte),

impede-a. Donde, o carácter ilusório do liberalismo político, na verdade negando a

escolha, negando a tolerância; negando a liberdade (e, de novo, Heidegger é convocado,

cf. p. 79); negando, por fim, o pacifismo que apregoa (que, apesar deste, nenhum Estado

liberal tenha abdicado do direito de declarar guerra, não incomoda o argumento,

inteiramente lógico).

Mais feliz do que este segundo ensaio, é no terceiro, ao reflectir sobre a criminalização

da guerra, que Alexandre Franco de Sá melhor explora algumas virtualidades da

perspectiva de Schmitt, num confronto com as posições antagónicas de Michael Walzer.

Não é necessário perfilhar a aposta de Schmitt em substituir o 'jus publicum

europaeum' por uma variante da doutrina Monroe (cf p. 99), nem fazer de conta que os

perigos da retórica humanitária começaram com os Modernos (instâncias Antigas e

religiosas seriam ainda mais abundantes), para reconhecer a pertinência da perspectiva

de Schmitt na situação limite por excelência, a guerra. É, com efeito, necessário evitar a

exclusão do inimigo da Humanidade (sob a acusação de monstruosidades,

inumanidades, etc.) se queremos evitar a extensão ilimitada, total, da guerra, em que o

fim (a erradicação do mal contra nós, os humanos legítimos) justifica todos os meios.

Sem a guerra como instrumento político ao legítimo dispor de um Estado, sujeito a leis

da guerra internacionais, como fazê-lo? Ora, justamente, nenhum Estado abdicou desse

instrumento – e nem por isso os conflitos deixam de se produzir de acordo com a

mesma retórica humanista. Seria caso, talvez, para pensar tal retórica não num quadro

político-jurídico mas histórico. Schmitt, aliás, tentou-o em A Era das Despolitizações, não

referido por Franco de Sá, e no qual a rigidez da sua filosofia da história sobressai.

Contudo, aqui Franco de Sá parece estar, também ele, sob o efeito da propaganda

liberal, referindo-se aos ataques de 11 de Setembro a Nova Iorque sem referir o do

Pentágono (p. 104). Uma curiosa despolitização que não retira, no entanto, acuidade ao

ensaio apostado num novo conceito de guerra "em que se insista não tanto sobre

argumentos que justifiquem um ódio persecutório, mas sobre o modo como uma tal

luta se desenrola, e sobre a necessidade de não ver no inimigo um criminoso, alguém

moralmente inferior ou uma pura configuração do mal." (p. 107). Não parece

historicamente acertado afirmar (p. 106) que só no século XVIII tenha surgido a "guerra

humanitariamente justificada por uma superioridade moral", depois de tantos século

de conflito religioso na Europa e fora dela. Mas, enquanto dilema actual, o problema

caro a Schmitt e a Franco de Sá não podia ser mais relevante. Pode haver uma guerra

contra um "eixo do mal" (aqui, sim, uma encenação para abrir alas à invasão de um e

apenas um país)? Com que consequências para a sociedade liberal? Não se vê como o

cuidado, por parte das chefias políticas ocidentais, em distinguir o Islão das suas

variantes terroristas possa ser entendido como "incapacidade das sociedades

despolitizadas para o estabelecimento de distinções no âmbito da inimizade" (p. 120),

muito menos que isso marque de forma fundamental o nosso mais recente percurso

histórico, mas o problema é real e pode agravar-se.

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A terminar, e aproveitando a circunstância do último ensaio (síntese do conjunto) não

responder cabalmente a este problema, note-se como a reinvenção do direito que

Franco de Sá (e Schmitt) entende "necessária" (por uma vez a lógica no seu sítio) não

aparenta poder fazer mais do que reeditar os limites do direito tão menosprezado nesta

perspectiva teológico-política. Quem decide quanto ao modo como a luta se desenrola?

Com que critérios? Quem procede à verificação? Que fazer com os que não

reconhecerem a validade de tais critérios e procedimentos? Ou se aceita o primado da

lei e a sua limitação e falibilidade ou tal direito não é viável. A menos que, afinal, se

procure não um novo direito mas um novo soberano. Geralmente é a segunda, em

particular quando, como no caso, se mitifica o passado para condenar o presente. No

último ensaio, ao contrapor o primado da lei ao papel representativo do soberano,

Franco de Sá reduz o primeiro a um pacifismo, quando na realidade o primado da lei é

criado precisamente por o conflito ser inevitável na interacção social. Por ser imanente

à sociedade e regular a actividade, violenta e pacífica, imanente a esta, é ao Direito que

cabe efectuar aquilo que a (parcialmente mitificada) transcendência do soberano não

pode realizar. Pois, ao pretender situar-se fora da sociedade para mais completamente

a poder dominar e representar, o agente da soberania é tolhido pelo incontornável

dilema do local, da sede, próprio do poder. Se está fora da sociedade, onde está? Onde

pode estar? Um pouco menos de fidelidade a Schmitt, um pouco mais de deliberação

nos casos queridos a Schmitt, talvez tivesse sido útil. Se tomarmos Hobbes como

modelo (teórico, lembremo-nos da recepção desfavorável ao Leviathan), o pormenor que

em A Vontade de Sistema foi realçado por Diogo Pires Aurélio quanto à capa da edição

original é relevante: o corpo do Leviathan é composto por uma imensidade de pequenas

figuras de indivíduos; não só não está fora deles como são eles que compõem, por

dentro (e voluntariamente) o soberano. Só através desta vontade activa da associação

política (e aqui pouco importa que seja o medo a motivá-la) pode o soberano chegar à

existência. Que posteriormente a forma desse poder soberano se metamorfoseie na

menos excitante forma de código legal já está, afinal, inserido numa dinâmica que,

aliás, não exclui o Leviathan. Mesmo decidindo-se por uma guerra, nela também

obedece a leis (ou tenta pelo menos simulá-lo). Longe de uma cesura radical entre

transcendência e imanência, as duas não podem dispensar-se mutuamente. Isso mesmo

resulta de a metamorfose do poder que dá título ao livro, e que configura para

Alexandre Franco de Sá uma passagem do poder absoluto próprio dos soberanos a um

poder total (invisível, sem limites, imanente e incidindo totalmente sobre o indivíduo

atomizado), não poder dispensar ainda assim um discurso público que o afirme perante

a sua (usemos a palavra) vítima. Que a metamorfose do transcendente em imanente não

prescinda de tal discurso será fraco consolo, mas talvez ponha estes prolegómenos sob

uma nova luz. Não assistimos já aqui a uma etapa da luta entre transcendentalistas e

imanentistas diferente da simples desqualificação (ainda presente) da imanência como

pobre e sem valor? Aqui, é já de perigo e de subversão que nos falam. Com o tempo,

talvez a vejam, como normal e inevitável; e, por fim, como a sua própria verdade, da

qual "transcendência" é apenas o 'Ur-nome'. Seria, aliás, mais uma evolução dialéctica

sem falha.

Entretanto, há que considerar problemas aqui aflorados. Noutra perspectiva, de

preferência menos anti-moderna; mas sobretudo numa perspectiva liberal, entendendo

liberalismo como a mundivisão moderna, lógica e historicamente desenvolvida de

forma activa e combativa contra os fanatismos religiosos e políticos, ainda antes da

divisão Esquerda/Direita. Não servirão de muito, assim, leituras conciliadoras entre

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estes prolegómenos schmittianos e a cultura democrática (bastante pobre, admita-se)

hoje comum, como a tentada por António Horta Fernandes no volume XX de Cultura. A

«impressão» final desta leitura é exacta e pretender tomá-la como uma leitura equívoca

desmerece o leitor e, sobretudo, o autor Franco de Sá. Em rigor, e delimitando pelo seu

valor as posições políticas (sem desconsideração pelo valor intelectual na sua defesa),

pode dizer-se que a «banalidade» está nas supostas justificações da soldado England,

enquanto o «mal» está na aparente lógica de Schmitt.

BIBLIOGRAFIA

Alexandre Franco de Sá, Metamorfose do Poder, Coimbra, Ariadne, 2004, 120 pp.

Rafael Gomes Filipe, De Nietzsche a Weber – Hermenêutica de uma afinidade electiva, ed. Piaget, Lisboa,

2004, 455 pp.

RESUMOS

Este artigo discute algumas variantes de relevo na língua alemã na crítica à modernidade. Em

rigor, discute-as na sua pertinência actual, tal como se deixa ver em dois trabalhos recentes de

autores portugueses, Rafael Gomes Filipe e Alexandre Franco de Sá. O nó-górdio da questão

encontra-se na caracterização da modernidade através da elaboração de uma filosofia da

História, problema que sobressai na análise de Nietzsche e Weber por Gomes Filipe e no ensaio

schmittiano de Franco de Sá.

This paper discusses some of the most relevant critics of modernity in Germany as they are

currently portrayed in recent works by Portuguese authors. Rafael Gomes Filipe's study of the

relation of Max Weber with the influence of Nietzsche (first section of this paper) and Alexandre

Franco de Sá's essays following Carl Schmitt's positions (second section of this paper) are the two

cases in point. The key-issue is that of characterizing modernity by elaborating a Philosophy of

History, a strategy pursued, albeit in very distinct forms, by most of the authors considered in

Gomes Filipe's and Franco de Sá's works.

ÍNDICE

Palavras-chave: modernidade, liberalismo, política, Marx Weber, Carl Schmitt

Keywords: modernity, liberalism, politics, Max Weber, Carl Schmitt

AUTOR

CARLOS LEONE

Visiting Scholar, Brown University, BPD/FCT

Doutor em História das Ideias pela UNL/FCSH (2004), trabalha actualmente numa investigação de

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pós-doutoramento na Universidade de Brown, EUA, sobre o tema dos estrangeirados na cultura

portuguesa contemporânea. Além desta área de investigação, ocupa-se de temas de filosofia

moderna e contemporânea. Estes vários aspectos encontram-se reunidos em Portugal

Extemporâneo, 2 vols., INCM, Lisboa, 2005.

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Page 294: Livro e Iconografia

A filosofia da existência de RogerGaraudyThe philosophy of existente of Roger Garaudy

José Mauricio de Carvalho

I. Introdução

Roger Garaudy1 inicia sua vida intelectual como marxista, posição que esclarece em La

théorie matérialiste de la connaissance (1953) e evolui para se apresentar, ao final da vida,

como existencialista e crente, segundo afirma em Promesse de l'islam (1981). Durante

toda vida, mesmo quando se apresentava como marxismo ortodoxo, Garaudy se

mostrou um humanista apaixonado, o que apenas cresceu com o passar dos anos. Dessa

preocupação com o destino humano, são exemplos Grammaire de la liberté (1950) e

Perspective de l’homme (1959), ainda escritos na fase marxista. À medida em que se

afastou do marxismo no início dos anos 70, o filósofo elaborou uma filosofia da

existência aberta à problemática religiosa conforme propôs em Parole d'homme (1975) e

Promesse de l'islam (1981). Embora inicialmente ele não acreditasse ser possível

encontrar numa filosofia da existência os elementos de relação com os outros, aos

poucos mudou de posição. Sua visão existencial preserva a preocupação humanista

somada à crença religiosa. Elaborar um contraponto para a existência pensada

concretamente é uma necessidade dos filósofos da existência porque o mundo de cada

um não é uma subjetividade isolada do que se passa à sua volta. Entre os

existencialistas, não há acordo sobre o sentido de transcendência, há pensadores para

quem a abertura ao mundo cai no social; em outros, vai até Deus.

No tratamento da abertura do mundo pessoal ao transcendente é importante observar

que os autores existencialistas indicam que a condição humana é um encontrar-se entre

coisas e isso tem possibilidades diversas. Pode-se admitir que a vida se passa num

ambiente social onde existir não se resume à facticidade, isto é, a um projeto sem razão,

sem finalidade, absurdo. Para filósofos como Martin Heidegger, um dos iniciadores da

filosofia existencial, ao contrário, a existência não rompe a facticidade.

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Page 295: Livro e Iconografia

A descrição fenomenológica da condição humana assumida pelos existencialistas como

um novo modo de pensar a vida aponta os riscos nascidos da insuperável solidão, da

ameaça de o homem perder dentre as coisas o significado de sua humanidade. Esses

riscos estão aí e são reais, além do que a liberdade de escolher faz do viver uma ameaça

constante, resumida por Martin Heidegger com o conceito de facticidade.

O motivo para não se fechar no desespero, que de fato faz parte da existência de todos

nós, é que viver comporta uma multiplicidade de perspectivas e momentos, não se

fechando na angústia, abismo ou nada. Conforme já comentamos ao estudar a visão

orteguiana da vida;2 caso Heidegger tivesse razão nesse aspecto, nada restaria senão o

suicídio. Existir seria um fardo que todos alegremente rejeitariam.

Investigar o modo que Garaudy tematiza, reconhece a força, mas propõe a superação da

facticidade no âmbito da sua meditação é o que vamos examinar a seguir. A vida

humana encontra consolo na arte de criação e no encontro pessoal com Deus que o

filósofo irá valorizar crescentemente.

II. As filosofias da existência, tentativa decaracterização

O século XXI principia com os atentados de 11 de setembro, ao que se seguiram as

guerras no Afeganistão e Iraque e outros atentados, como os que destruíram as estações

de Madri. Na avaliação de Gilberto de Mello Kujawaki (2003), estamos presenciando em

nosso tempo uma universalização do terror. Ele diz que "a insegurança e a incerteza

infiltraram-se em todas as instâncias, em todos os níveis, em todas as consciências nos

países mais civilizados" (p. 10). Difícil saber se o desamparo e desencanto do homem do

último século continuam ativos em meio a tais acontecimentos e se será nesse clima

que, nos anos que virão, deverá a humanidade encontrar um sentido para viver. Uma

coisa parece certa, o terrorismo, o recrudescimento do fundamentalismo religioso e o

estado de Guerra contra o terror desencadeado pela maior nação do mundo apontam

para um futuro próximo bastante difícil. Embora o cenário não pareça muito distinto

daquele que ocorreu no início do último século, o homem de hoje parece menos iludido

quanto ao que seja viver e do que esperar das relações sociais e políticas. Além disso,

aprendeu a pensar a sua vida a partir da primeira pessoa.

O homem do último século enfrentou o que lhe aparecia como falta de sentido da vida

num contexto de otimismo e esperança de felicidade formulados na segunda metade do

século XIX. O choque entre a crença e a realidade manifesta-se como crise (Carvalho,

1999): "o conhecimento da condição humana se exprimiu numa crise que refletiu a crise

da cultura" (p. 63). A ilusão de que o futuro será necessariamente melhor do que o

passado nós não temos mais, não produz mais a mesma sensação de desalento, de crise.

A compreensão do fundamento tratado pela filosofia também mudou, pois os

existencialistas aprenderam com Husserl, como já mostramos, (2001) "que a procura da

verdade não se separa da historicidade" (p. 25).

O balanço das filosofias da existência do século passado pode ser feito de um modo

tranquilo, embora não sabemos se com o recuo histórico necessário para uma

compreensão adequada do que significaram essas filosofias. Ainda há muito a explorar

sobre o que elas traduzem da vida dos últimos tempos.

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O existencialismo é um movimento multifacetado, ele reúne pensadores com

características distintas. Alguns são paradigmáticos como Karl Jaspers e estão voltados

para uma análise menos sistemática da existência calcada no existente e no plano

concreto da vida; outros, como Martin Heidegger, estão mais preocupados em elaborar

uma nova ontologia. Não se pode imaginar que tal ontologia signifique um retorno à

antiga metafísica, mas é um desenvolvimento da perspectiva transcendental de Kant no

sentido que lhe deu a fenomenologia de Edmund Husserl. "A redução fenomenológica

propicia ir adiante na pergunta pelo papel da egoidade transcendental no ato

cognoscitivo" (Carvalho, 1996. p. 117). Isso resulta, conforme explica Delfim Santos

(1982), numa "forma de pensamento que põe em jogo e permite situar o homem em

nova posição perante si e o mundo" (v. II, p. 80).

Parece difícil chegar a características comuns que alcancem todos os filósofos da

existência, mas podemos tentar perceber algumas. Parece-nos que a primeira dessas

características é que os filósofos normalmente denominados existencialistas

reconhecem o caráter dramático da existência pensada na primeira pessoa e o

traduzem por uma insuperável atmosfera de angústia. A diferença está no contraponto

que criam, se é que admitem, para a abertura da subjetividade ao mundo.

Para Regis Jolivet (1957), o que é comum nas filosofias da existência é que o significado

dramático do viver é avaliado pelo método fenomenológico assumido como

instrumento de reflexão, isto é, adota-se uma "ciência que se firma sobre a

universalidade de ser, valendo, ao mesmo tempo, para a universalidade dos homens"

(p. 11). De fato, os existencialistas não consideram a vida humana como algo do que se

possa abstrair ou conhecer de fora, mas somente desde dentro. Confirma-se, pois, que

se trata de uma nova filosofia que não retorna à metafísica clássica, embora mantenha o

espírito e as preocupações presentes na filosofia desde as suas origens na Antiga Grécia.

Outra característica que ajuda a tipificar os existencialismos é entendê-los como a

resposta de uma geração ao idealismo germânico, sobretudo a Hegel, para quem a vida

do homem se perde na evolução do espírito absoluto. É isto que afirma Brügger (1977),

assistimos à precedência temática da "substantividade e indeduzibilidade do indivíduo

humano concreto" (p. 178) sobre qualquer processo histórico ou social.

Há quem proponha como característica dos filósofos da existência o primado do existir

sobre a essência. Se isso é de fato constatável, não chega, contudo, a ser exclusivo e

diferenciador na corrente existencial, conforme assinala Ferrater Mora (1981). Ele

esclarece que essa compreensão é comum a diversos filósofos contemporâneos, "como

Nietzsche, Dilthey, Bergson, Sartre e até, em certo sentido, Heidegger" (p. 158). É

evidente que nem todos são reconhecidos como existencialistas simplesmente porque

conferem a primazia à existência.

Concluída essa rápida caracterização, podemos examinar como Roger Garaudy evolui

da posição marxista, típica da sua juventude, para uma filosofia existencial assumida na

maturidade.

III O marxismo como projeto moral

No livro Marxismo do século XX, Roger Garaudy (s. d.) explica como entende o marxismo,

uma filosofia humanista capaz de: realizar o propósito moral de construir uma

sociedade justa, cultivar a esperança num futuro melhor para a humanidade, ao mesmo

tempo que efetiva "o empreendimento prometéico de tomar nas mãos o vir-a-ser e

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construir conscientemente o porvir" (p. 2). Para o filósofo, o marxismo significa uma

mudança na forma de fazer filosofia, que deixa de lado o estar acima "das coisas, dos

homens e de sua história" (p. 32). A distância histórica da derrocada do socialismo real

nos permite hoje confiar menos no marxismo como realizador dos ideais éticos do

Ocidente. Contudo, saber que nosso filósofo assim pensava ajuda a entender porque ele

desencantou-se com o marxismo quando descobriu que tal filosofia não era tudo aquilo

que aparentava, não realizava tudo quanto a filosofia busca desde seu aparecimento na

Grécia. Além disso, há em todas as correntes filosóficas desde Kant o empenho de

estruturar nova ontologia, de renovar a metafísica tradicional.

Outra interpretação de Garaudy que hoje não admitimos mais é que o marxismo é "um

método científico para a construção da realidade" (p. 2). Inicialmente, acredita o

filósofo que Lênin traduz corretamente o significado científico do marxismo quando

atribui ao proletariado os instrumentos reais para realizar os sonhos que a moral

ocidental acalenta. Sabemos que as coisas não são assim, além do que os conceitos de

Lênin sobre economia não se mostraram corretos. O próprio papel do proletariado na

sociedade tem mudado muito desde a segunda metade do último século.

Em outro momento de sua reflexão, Garaudy atribui ao marxismo o que só a Filosofia

como produto cultural pode responder com possibilidade de sucesso, a angústia pela

morte mencionada por Hegel na 1a parte da Fenomenologia do Espírito corresponde, na

consciência universal, à falta de compreensão ou à falta de um sentido para viver. Diz o

filósofo textualmente que "o medo da morte para uma alma é o medo da perda de suas

razões de viver e de agir". Essa tarefa da filosofia, a busca de um significado para viver,

é algo que Garaudy irá buscar na filosofia existencial, pois ele conclui que a alternativa

humana é fazer nascer esse sentido no quotidiano da história.

Em que pese tais análises, Garaudy entende que não se justifica o cultivo de uma

verdade absoluta e que é preciso abrir-se ao diálogo, porque obter uma verdade única é

tarefa grande demais para os homens e conduz "a métodos autoritários e prepotentes

que nascem inelutavelmente da necessidade de impor de cima para baixo semelhante

verdade" (p. 8). Esse é um tema caro aos existencialistas, basta lembrar o esforço de

Karl Jaspers para mostrar as diversas formas que a verdade assume, desde a científica

até à existencial.

Naquele momento, Garaudy considerava que os problemas contemporâneos da cultura

pudessem ser respondidos com sucesso pelo marxismo, em que pese a necessidade de

repensá-lo. Tais problemas eram: o vertiginoso desenvolvimento das ciências, a

construção de um socialismo com amplitude mundial e a descolonização da Ásia e da

África. Para Garaudy, o desenvolvimento extraordinário da ciência exige pensar essa

nova circunstância. As mudanças representam uma nova realidade do trabalho

humano, não são só os músculos que a máquina substitui, mas a própria inteligência.

"Os computadores eletrônicos podem fazer, sem erro, milhões de operações complexas,

em um segundo e a unidade de tempo tornou-se a bilionésima parte do segundo" (p.

15). No que tange à expansão do socialismo pelo mundo, Garaudy revela que isso ainda

não significa a implantação de uma sociedade perfeitamente ética "para a qual a

consciência e o estímulo morais são determinantes" (p. 23). Fica claro que o socialismo

mundial é, para o filósofo, um projeto para a sociedade humana, uma tentativa de

formular racionalmente os costumes. O quanto é possível se generalizar tal projeto

entre os homens é difícil saber. No entanto, o filósofo supõe que isso é possível

"mencionando os valores da disciplina e sacrifício" (p. 27). Finalmente, a

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descolonização da África e da Ásia coloca na cena histórica novos agentes e isso

significa que outros grupos se tornavam "elementos criadores de valores, de civilização

e de cultura" (p. 28).

O marxismo, na avaliação de nosso pensador, é o herdeiro contemporâneo da filosofia

moderna no que ela tem de crítica. Ele esclarece que, desde Kant, chama-se de crítica "a

consciência do fato de que tudo aquilo que dizemos da realidade somos nós que o

estamos dizendo" (p. 34). Na formulação dessa nova perspectiva, faltou a Kant a

dimensão histórica que Hegel completou. Assim, o marxismo se vincula não só "a Saint-

Simon, Fourrier e Owen, mas também a Kant, Fichte e Hegel" (p. 35). É com esse espírito

antidogmático e aberto ao diálogo e aos problemas modernos que o filósofo espera

corrigir a visão de natureza posta por Lênin em Materialismo e Empiriocritismo. A

consciência crítica corrige na literatura marxista o que ela reproduz de pré-crítico,

propicia uma aproximação do marxismo com as filosofias contemporâneas. De tal modo

que "as perspectivas abertas à investigação marxista pelo estruturalismo e pela

cibernética afastam as interpretações dogmáticas, mecanicistas, coisistas, do

materialismo; e afastam igualmente as interpretações dogmáticas, especulativas,

teológicas da dialética" (p. 66).

Nessa etapa marxista de sua meditação, Garaudy não aceita o conceito de liberdade

existencialista e avalia que, mesmo quando Sartre se empenha em dar uma

conseqüência histórica à sua reflexão sobre a liberdade, ela "permanece metafísica,

transcendente em relação à história e basicamente individualista" (p. 205). Ele avalia

que o sentido da vida e da história não é uma criação do homem individual, como

sugere o existencialismo, embora não seja também construído numa história que segue

leis próprias e imutáveis. A reflexão que ele realiza sobre a arte e estética

correspondem ao ponto de chegada de sua formulação marxista, pois na arte pode-se

investigar em profundidade "as condições do ato criador em geral e nos permite

distinguir os níveis de conhecimento, levando-nos a não nos instalarmos

dogmaticamente no ser e no conceito que o exprime" (p. 214). Com esses elementos,

Garaudy avança no diálogo com a filosofia existencial.

IV A moral e a vida humana

A relação entre as exigências morais e as da vida em grupo foi aprofundada no ensaio

Por uma discussão sobre o fundamento da moral publicado originalmente pelo Instituto

Gramsci. Nele, Garaudy examina o problema moral que considera imprescindível, isto é,

"o problema moral não pode ser evitado" (p. 5). Quando um filósofo examina problemas

éticos na filosofia contemporânea, ele quer pensar, em especial, a responsabilidade das

pessoas como criadoras da história, porque em outro caso a vida seria resultado de

determinantes que tiram do homem o controle do seu destino e isso não seria mais

admitido em nosso tempo.

Desde que nasce, o homem está inserido numa realidade histórica precisa que os

filósofos existencialistas tematizam bem. Nela, como membro de um grupo, entra em

contato com uma série de valores. O indivíduo não vive só, ele "pertence a uma

sociedade, a uma comunidade histórica e social" (p. 7). Assim, não há como considerar a

vida um drama pessoal, conforme pensam os existencialistas, fora da realidade

histórica em que esse drama é vivido. Até aqui, Garaudy segue os existencialistas e trata

do assunto de modo também parecido com o de Ortega y Gasset. Ele entende que há

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uma distância entre as exigências morais e o modo como a sociedade controla seus

membros através do direito. Garaudy atribui tal distinção a Fichte, embora ela já esteja

presente em Kant. Com Kant, ele admite que a moral nasce na natureza, mas é criação

da cultura. Assim, não há filosofia contemporânea que possa prescindir da dimensão

crítica que Kant lhe dá, nem da distinção entre natureza e cultura que sua filosofia

estabelece.

O existencialismo é capaz de explicar o sentido da responsabilidade pessoal no âmbito

de uma sociedade que cria valores e tem uma história? Garaudy entende que não e vai

buscar resposta para essa questão no marxismo. O filósofo não julga que seja possível

uma combinação das duas correntes, conforme sugere Sartre em O Ser e o Nada e mais

especificamente na Crítica da razão dialética. Por que não? Porque estabelecer o

fundamento da moral significa mostrar como a liberdade expressa a ação e "o

individualismo da Sartre impede tal passagem" (p. 17). O exercício da liberdade exige

um contínuo diálogo com o outro e, no existencialismo, o outro é olhado como objeto.

Visto assim, acaba-se por desrespeitá-lo, ainda que se pretenda o contrário. Fechado

numa existência particular, o homem fica condenado ao solipsismo. Dito isso, conclui o

filósofo, embora o existencialismo ajude a pensar o homem, não consegue resolver as

questões irrecusáveis de natureza moral que povoam a existência.

A justificação ética da vida será construída, para Garaudy, com uma filosofia social de

orientação marxista que nasce do reconhecimento de que a vida humana não é

inicialmente uma subjetividade solitária, mas um nós. Esse ponto é mais um elemento

comum com o raciovitalismo orteguiano. Em seguida, Garaudy conclui que a

consciência subjetiva nasce da presença dos outros e através do trabalho com o qual a

pessoa supera a solidão. O trabalho aparece como elemento circular da cultura. "Em

outros termos, o homem cria os seus valores juntamente com suas necessidades e suas

necessidades juntamente com suas possibilidades" (p. 23). O trabalho, para realizar tal

missão civilizatória, não pode ser alienado, razão pela qual o marxismo, e não o

culturalismo neokantiano, é capaz de tratá-lo corretamente. Outro motivo para a crítica

é que o culturalismo e o neokantismo separam o ser do dever ser. Para Garaudy, essa

dicotomia é uma maneira inadequada de tratar a transcendência.

A tensão que existe entre a pessoa e os outros membros da espécie é que torna possível

aproximar a imanência da transcendência. Essa fórmula Garaudy diz que buscou em

Fichte e entende que ela resolve melhor o problema do que a solução neokantiana.

Numa linguagem atualizada, a transcendência nada tem de teológica ou religiosa, ela

traduz a criação humana que, para ser plena, deve ser realizada numa sociedade

socialista para romper, ao mesmo tempo, com a animalidade e a alienação.

Nessa fase da vida, Garaudy confia no marxismo, para resolver questões morais, mas

aprofunda o diálogo com o existencialismo, posição que aprofundará na fase seguinte

de seu pensamento.

V Os temas do existencialismo segundo Garaudy, adescoberta de uma forma não marxista de se abrir àtranscendência

Na visão de Garaudy, o existencialismo é uma filosofia que procura entender

fundamentalmente a condição humana e incorpora o problema da transcendência. Pelo

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menos na origem do existencialismo, o viver apresenta‑se como abertura para Deus,

bastando lembrar o que a respeito escreveu Sören Kierkegaard. Nicolai Berdiaev nos

explica o sentido disso, conforme transcreveu Garaudy (1966): "a filosofia torna-se cada

vez menos existencial quando o filósofo passa da subjetividade para a objetividade. E

mantém-se existencial se o filósofo passa da subjetividade para a transcendência" (p.

54). A transcendência de que falam Berdiaev e Kierkegaard possui necessariamente o

caráter religioso como eles consideram? Efetivamente não, pois abrir-se para algo

maior que a subjetividade significa reconhecer que a situação do homem é a de viver

em sociedade e de criar a cultura para um significado para sua vida. Garaudy segue,

contudo, a tradição de Kierkegaard e assume que a transcendência tem um sentido

religioso, isso significa que para

ele a criação humana tem algo de divino. Devemos recordar que no início de sua

meditação, ele não admitia que o existencialismo pudesse propor uma transcendência

válida.

Para o filósofo, o existencialismo é uma filosofia que se faz em torno de três temas: a

crise nascida do desaparecimento ou desarticulação de valores historicamente

construídos no Ocidente, a confiança no estabelecimento de um projeto capaz de

oferecer um sentido para se conviver com a angústia e o desespero nascidos dessa crise

e a leitura fenomenológica da existência, que fornece um nexo ao contraponto angústia

e confiança.

A idéia da crise proposta por Garaudy traduz o desencanto dos homens do seu tempo

com os rumos da civilização. Isso ocorre quando a vida já não mais atrai, não cativa,

deixa de seduzir, os dias se tornam então cinzas e tudo parece perder o motivo. A

previsão otimista de enriquecimento crescente, a confiança nos resultados

extraordinários da ciência e a expectativa de uma organização política de liberdade

responsável foram frustradas no mundo destruído pelas duas Guerras Mundiais. A

tristeza ante resultados negativos tão distantes dos sonhos que se acalentavam instaura

um sentimento de crise que afeta a compreensão que o homem tem de si e do mundo,

alcança mesmo o modo como ele entende a história. A vida olhada com a crueza da

descrição fenomenológica revela o desamparo de existir como limitação absoluta,

circunstância expressa pelo conceito de angústia. Tal conceito traduz a condição

humana apresentada por Garaudy (1966), conforme se segue:

"a solidão, a absurdez, a ameaça constante de perder-se nas coisas, de não ser maisque o prolongamento do nosso passado coagulado, ou de ser trazido por esse mundoobjetivo acabado que nos cerca e de converter-se numa engrenagem passiva domesmo, a vertigem de uma liberdade absoluta com a qual nada nem ninguém podeensinar-nos o que temos que fazer, a presença da morte ao final de todos ospossíveis, a ambigüidade de tudo o que me envolve e de tudo o que sou. A coisa sóexiste para uma consciência e a consciência só por sua relação a uma coisa" (p. 56).

A história, ensina Garaudy, não pode fornecer ajuda para melhorar a vida do homem

porque não é ela que carrega o homem; ao contrário, ela é produto do seu viver.

Contudo, a temática da angústia não finaliza a reflexão e nem esgota tudo o que a vida

é. De fato, nós nos rebelamos contra o sofrimento e a consciência da perdição que

aniquila todas as esperanças. Durante parte da vida, Garaudy julgou que a Revolução

Socialista significasse a redenção humana, resposta para seus dramas, isto é, uma vida

mais segura e estável, um futuro de mais confiança. Tratava-se de uma interpretação

algo mística do socialismo com a qual o filósofo concretizava o seu projeto humanista.

Contudo, ele logo desiludiu-se desse caminho e reviu suas idéias abrindo-se para Deus.

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A relação entre as duas temáticas, a consciência da perdição e a possibilidade ilimitada

que ela oferece como alternativa de escolha e esperança, é levada a termo pela

fenomenologia. Com esse conjunto de temas, Garaudy cria as bases de sua filosofia da

existência. Ela incorpora aspectos diversos de uma vida que se nos aparece

multifacetada e cujo nexo só a filosofia é capaz de oferecer.

VI Aprofundando a temática existencial

Vejamos como o filósofo aprofunda os temas que ele considera marcantes de uma

filosofia da existência. Ele fala de viver como uma experiência de renovação, de

transformação do passado. Só faz sentido falar num projeto de vida quando se trata de

realizar algo diferente do que os homens já fizeram em outros tempos. Cada homem é

chamado a construir sua existência renovando o mundo que encontra ao nascer e à

própria natureza que é a base de seu mundo cultural. Garaudy (1975) diz:

"Como é velha esta criança que acaba de nascer: madura como um belo fruto demilhões de anos de história da terra e do homem, ela carrega em si todo o passadoda vida e da espécie. Do útero materno ao vento largo da natureza, seus instintos,seus reflexos, fruições ou cóleras, foram firmados fora dela e sem ela, vindos de bemalto e de bem longe. Fruto maravilhoso e bem-amado de nossa pré-história,saturado de passado ao ponto de nada de novo poder daí nascer" (p. 10).

Ser jovem é um aprendizado difícil, demorado e depende das escolhas fundamentais

que precisamos fazer. A questão é tornar-se jovem, diz o pensador. Assumir a condição

descrita por Heidegger, para quem o homem é o poeta iniciado do universo, é adotar o

risco implícito nas escolhas notáveis, coisa que os melhores homens conseguem

realizar, no máximo, umas cinco vezes em toda a vida. Garaudy afirma que em sua

própria existência "discerne apenas três desses cumes" (p. 12) a partir dos quais pode

falar de um sentido amplo que alcança todo o viver. Nesses momentos especiais, ele

descobre opções que mudaram sua existência.

Das realidades mais magníficas que a vida tem, o amor está entre as maiores. O

problema é que nossas instituições – a família, a escola e a igreja – apontam na direção

oposta às exigências do amor autêntico. A escola que enfatiza a educação sexual

positiva estimula desaprender o amor; a igreja que separa as exigências do espírito das

manifestações sensíveis e promove tal dicotomia não favorece o amor, apenas produz

um discurso abstrato sobre o amor. O amor tem para o filósofo o sentido da abertura

aos outros e da confiança no futuro. Por isso, o amor entre homens e mulheres vivido

na plenitude é tão extraordinário quanto raro. "O amor começa quando preferimos o

outro a nós mesmos, quando aceitamos a diferença e a sua imprescritível liberdade" (p.

35). Quando não se está preparado para os riscos e a partilha, não se ama, torna-se

funcionário do sexo, burocrata do prazer, egoísta e sem alegria.

Entre os temas da existência, a morte é dos mais apaixonantes. Para nosso pensador, a

morte dá à vida alta significação. Garaudy diz que não pode prescindir de abordá-la. Ele

não fala da morte no mesmo sentido que Heidegger, mas a ela se refere como um passo

além das limitações. Quando a morte chega depois de uma vida de trabalho e amor não

é um limite, ela possibilita realizar um projeto maior do que sonharam os existentes.

Garaudy (1975) explica o que quer dizer: "Se eu jamais devesse morrer, então estaria

mutilado dessa dimensão especificamente humana: a transcendência" (p. 38). Foi o

individualismo ocidental que levou a avaliação da morte como absurda, impensável e

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revoltante. Quando o homem participa do ato contínuo da criação, ela ganha sentido e é

o horizonte da velhice.

A existência é uma aventura de construção do significado. Não se trata de uma

estrutura pré-fabricada nem pela história, nem por Deus, nem pela ciência. Isso

significa que ela não é absurda como anunciam alguns filósofos da existência, como as

filosofias de Sartre ou Camus. Por outro lado, não há como fugir à responsabilidade

pelas escolhas que se faz porque ninguém pode subtrair-se à responsabilidade de suas

ações, nem imputar-lhe outro responsável quer seja o destino, ou um superior

hierárquico. "Cada um de nós é pessoalmente responsável pela criação" (p. 56). E se a

criação é que confere o significado à vida, o amor aparece na edificação desse sentido

porque ele só existe pela entrega a uma causa, a uma pessoa. "O sentido da vida não é

exterior ao ato de criar a vida, de fazer emergir em nossa própria vida, e na de todos, o

homem poético" (p. 58). Essa realização é a felicidade possível ao homem.

Uma vida construída diuturnamente no trabalho criador é uma existência que não

acaba na rotina ou na ruína. Essa vida é a jornada de libertação das contingências da

situação. Isso é o mesmo que vencer as circunstâncias no mesmo sentido falado por

Ortega y Gasset. "O trabalho prolonga a criação quando não está alienado" (p. 107), ele

justifica. A adesão ao marxismo feita na juventude se baseava no propósito de defender

a liberdade, o que se compreende na Europa empobrecida do período das duas Guerras

Mundiais. A adesão apaixonada ao marxismo na juventude foi perdendo força;

primeiro, com a descoberta dos males do stalinismo; depois, com as discordâncias das

propostas do PC francês, que culminaram com a sua expulsão do partido.

A filosofia da existência proposta por Garaudy quer superar o subjetivismo exagerado

que vem desde Descartes e permeia toda filosofia moderna. É o que esperam outros

pensadores contemporâneos como Ortega y Gasset. A subjetividade também não se

completa como substância pensante, mas é expressão de um ente que ama, que produz

arte, que se relaciona com o outro, que espera fazer o melhor. Não há como pensar a

subjetividade fora do mundo, não se pode falar do eu sem o mundo nem do mundo sem

o eu, conforme ensina a fenomenologia.

Um aspecto fundamental do existencialismo é a relação com o devir, conforme já

escrevemos certa vez (Carvalho, 1998): "enquanto cria razões para viver, o homem

projeta o futuro e o antecipa sobre si mesmo" (p. 22). Para Garaudy (1975), "tudo na

existência está em função do futuro" (p. 130). Dizer que a existência está voltada para o

futuro é reconhecer nela um feixe de projetos possíveis, de mudanças e de esperanças.

O futuro aberto leva ao entendimento de que o devir não é um prolongamento da

história, não significa a repetição do que ficou para trás. Esse é um aspecto muito

singular do homem porque só ele "se define pelo seu futuro, pelos seus possíveis" (p.

135). O futuro tem muito do que o existente sonha, é preciso imaginá-lo para dar à vida

uma direção que valha a pena. Para mudar o futuro, é preciso o engajamento na

história e, para tanto, é fundamental a inserção social e a participação política. Para o

filósofo, "política é a história se fazendo" (p. 153). A política incorpora os sonhos de

libertação do homem desde Joaquim de Fiore e Thomas Münzer até os marxistas, todos

desejos compreensíveis se reconhecem: "a dimensão fundamental e a mais irrecusável

do homem: a transcendência" (p. 184). A ação política e revolucionária ganha amplitude

no existencialismo de Garaudy ao ser avaliada segundo as exigências da fé. Não se trata

de uma fé cega, um catálogo de verdades prontas, diz o filósofo, mas um abrir-se à vida.

"A fé é o que nos põe em marcha" (p. 186).

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A fé significa para nosso pensador a abertura ao amor, o encontro com Deus a

expressão mais pura da transcendência, o passado comunista, o esforço para dar

esperança aos sonhos de justiça da humanidade. Tais são os contornos gerais da

filosofia da existência elaborada por Garaudy.

VII Considerações finais

Neste estudo, procuramos indicar como o filósofo francês Roger Garaudy concebe uma

filosofia existencial. Verificamos também que ele não abandona os sonhos que o

levaram ainda jovem ao marxismo. O gradual afastamento da filosofia marxista decorre

do amadurecimento de sua reflexão, pois, a um certo tempo, ele não mais encontra no

marxismo resposta para suas dúvidas.

A filosofia da existência formulada por Garaudy tem vínculos profundos com as

principais descobertas da filosofia moderna. Nela, observa-se um diálogo instigante

com a fenomenologia e com os existencialistas franceses Sartre e Camus. Também não

fica fora das suas considerações o legado hermenêutico de Martin Heidegger.

Foi interessante constatar que o filósofo preserva de sua fase marxista os elementos

éticos e as preocupações sociais usados, que ele emprega para resolver os problemas de

uma subjetividade concebida cartesianamente. A subjetividade moderna tornou o eu

grande demais. Diversos autores contemporâneos, como Ortega y Gasset, procuram

fazê-lo voltar a proporções mais justas. No bojo do existencialismo francês, a filosofia

de Garaudy busca o mesmo objetivo.

O diálogo com o marxismo propicia também aprofundar a complementação

representada pela fenomenologia de Husserl à herança kantiana, fornecendo o

raciocínio dialético também reclamado por filósofos culturalistas, como Miguel Reale. A

dialética é importante para superar a posição estática em que Kant e Husserl deixaram

o problema do conhecimento.

A filosofia da existência de Garaudy afirma a responsabilidade humana frente aos

problemas sociais, acompanhando, nesse aspecto, filósofos como Karl Jaspers e Hannah

Arendt. Ao balancear adequadamente as ciências reconhecendo seu valor, mas

situando-a no âmbito cultural identificando nela a dimensão conjectural também

utilizada pela filosofia, Garaudy participa da avaliação contemporânea do principal

problema posto nos tempos modernos: a ciência.

A complexidade dos temas que enfrenta e a criatividade das soluções que formula

fazem da reflexão de Garaudy um dos caminhos fecundos assumidos pela filosofia da

existência.

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NOTAS

1. Roger Garaudy, filósofo francês, nasceu em Marselha, no ano de 1913. Doutorou-se em 1953,

ensinou Filosofia nas Universidade de Clermont-Ferrand e Poitiers. Aderiu ao Partido Comunista

em 1933, chegando a fazer parte do Comitê Central e da Comissão Política, donde foi expulso por

revisionismo considerado de direita. Ao final da vida, desenvolveu uma filosofia da existência que se

abre à transcendência. Suas obras mais importantes são: L'Église, le communisme et les chrétiens

(1949); Grammaire de la liberté (1950); Matérialisme de la connaissance (1953); Du surréalisme au monde

réel: L’itinéraire d'Aragon (1961); D'un réalisme sans rivages (1963); Qu'est-ce que la morale marxiste

(1963); Karl Marx (1964); De l'anathème au dialogue (1965); Marxisme du XXe siècle (1966); Lenine

(1967); Le problème chinois (1967); Prague (1968); La liberté en sursis (1968); Le grand tournant du

socialisme (1969); Toute la verité (1970); L'alternative (1972); Donner sa vie (1973); Humanisme marxiste

(1975); Parole d'homme (1975); Appel aux vivants (1979); ll est encore temps de vivre (1980); Promesse de

I 'islam (1981).

2. Refiro-me ao livro Introdução à filosofia da razão vital de Ortega y Gasset, em especial

aos itens XVI e XVII do capítulo III, nos quais examinei a crítica de Ortega a Heidegger.

RESUMOS

Roger Garaudy é um filósofo francês que muda de uma posição inicialmente marxista para outra

existencialista. A sua aproximação com o existencialismo se dá na década de 70 quando o

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pensador foi expulso do Partido Comunista Francês por discordar dos rumos do marxismo de

então. Ao mesmo tempo ele descobre no existencialismo a chave teórica que justifica sua

preocupação humanista. Da fase marxista, o filósofo preserva os elementos éticos e as

preocupações sociais que ele transfere para sua filosofia existencial. Garaudy espera com eles

resolver os problemas de uma subjetividade que cresceu além da conta nos tempos modernos,

questão que lhe parece outros existencialistas não haviam ainda resolvido. Neste texto também

mostramos como o filósofo considera a superação da facticidade, o que dá especificidade à sua

reflexão. A complexidade e criatividade de suas formulações nos mostram uma das muitas

possibilidades do existencialismo, movimento que precisamos bem balancear neste início do

século XXI porque ele traduz as inseguranças e incertezas do homem do último século.

Roger Garaudy is a French philosopher who changes from an originally Marxist position to an

existentialist one. His nearing the existentialism during the seventies followed his expulsion

from the French Communist Party for disagreing on the paths of the Marxism at the period. At

the same time he discovered in existentialism the theoretical key for his humanist concerns.

From the Marxist phase the philosopher preserves the ethical elements and his social concerns

which he transfers to his existentialist philosophy. Garaudy attempts to solve the problems of a

subjectivity that grows considerably in moderns times, question that he considered not yet

solved by others existentialists. In this paper we intent to demonstrate as well how the

philosopher considers the surpass of facts, which is his singularity. The complexity and creativity

of his formulations show us one of several possibilities of existentialism, movement that we need

to discuss in 21st century, as it shows the uncertainties and the unsafeness of the man of the last

century.

ÍNDICE

Keywords: existentialism, marxism, philosophy

Palavras-chave: existencialismo, marxismo, filosofia

AUTOR

JOSÉ MAURICIO DE CARVALHO

Departamento de Filosofia da UFSJ

Graduou-se em Filosofia, Pedagogia e Psicologia pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e

Letras que deu origem à Universidade Federal de São João del-Rei. É Especialista e Mestre em

Filosofia pela UFJF e Doutor em Filosofia pela UGF – Rio. Professor Titular no Departamento de

Filosofia da Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ. Como bolsista da FAPEMIG fez

estágio de Pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa (1994) e na Universidade Federal do Rio

de Janeiro – UFRJ (2000). É membro da Academia de Letras de São João del-Rei, do Instituto

Brasileiro de Filosofia (SP) e do Instituto de Filosofia Luso Brasileira.

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Edição de Gazetas Manuscritas doSéculo XVIII

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Notícias de mãoScribal news

António Coimbra Martins

NOTA DO AUTOR

Texto de apresentação de Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora, Vol. 2

(1732-1734), Lisboa, Edições Colibri/ Centro Interdisciplinar de História, Culturas e

Sociedades da Universidade de Évora/ Centro de História da Cultura da Universidade

Nova de Lisboa, 2005, de João Luís Lisboa, Tiago C. P. dos Reis Miranda e Fernanda

Olival.

Não faltam os Dicionários franceses do séc. XIX que definem as nouvelles à la main –

chamemos-lhes as notícias de mão – como a forma da gazeta que precedeu a imprensa.

O impecável Littré não comete o erro. Mas o seu monumental Dicionário, tão rico e

convincente em abonações, não conforta com uma única a definição certa, que traz, da

expressão que nos ocupa. A situação mudou completamente com a elaboração e

conclusão de trabalhos como o de Françoise Weil em 1982, sobre o jornalismo do Antigo

Regime, e sobretudo com os de François Moureau, em 1982 e 1983, sobre a comunicação

manuscrita no séc. XVIII, publicado pela Fundação Voltaire, sob tutela da Universidade

de Oxford. As notícias de mão na Europa coexistem com as gazetas impressas, com as

relações especiais, com os jornais, durante longos anos dos séculos XVII e XVIII. Ora,

nada do que é europeu deixou de repetir-se em Portugal.

Daí, e neste campo, muitas notícias de mão portuguesa, de que já há exemplo na década

de 60 do séc. XVII. Daí, a colecção de Gazetas à beira da década de 30, e ao longo das

décadas 40 e 50 do século XVIII, reunida em 14 volumes, e conservada na Biblioteca de

Évora, que constitui, sem comparação possível, a mais longa sequência portuguesa

nesta modalidade.

Faltava, quando este género de literatura desperta atenções europeias... faltava passar a

colecção de Évora a letra de forma, em edição que a deixasse plenamente explorar, e

comprovasse a difusão do género.

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Entre os departamentos competentes da Universidade de Évora e da Universidade Nova

assinou-se um protocolo em vista deste objectivo. Os doutores João Luís Lisboa, Reis

Miranda e Fernanda Olival tiveram a coragem de meter mãos à obra. Saiu há dois anos o

primero volume da colecção, que teve a sorte e a honra de ser lançado pelo professor

Hespanha. Hoje cabe ao segundo a pouca sorte de ser apresentado por mim mesmo.

O primeiro abrangia cerca de 50 diários, desde Agosto de 1729 a Dezembro de 1731. O

ano mais representado era este último – 1731. O segundo volume é mais longo: abrange

100 diários, e traz apensa seis cartas familiares do quarto conde da Ericeira, mestre de

obra não declarado, ao conde de Unhão, seu primo, além de uma notícia genealógica

dos descendentes do marquês de Alegrete, Secretário da Academia Real da História, e

outra nota genealógica da Casa de Avintes. Os próprios Diários vão do primeiro de

Janeiro de 1732 a 23 de Março de 1734. Proponham-se ao programa adequado da

televisão: constituem a actualidade de há mais de dois séculos e meio. Vista de cima,

evidentemente, por fidalgos, e sobretudo por aquele grande fidalgo que, desde os seus

verdes anos, se empenhou no noticiarismo: comunicação nacional e internacional,

epistolografia, relações específicas, detecção e inventário das melhores bibliotecas,

intercâmbio académico e bibliográfico, novidades eruditas e literárias, estampas,

colecções de estampas – o que correspondesse em estampa ao melhor gosto europeu.

De tudo um pouco nos nossos 14 volumes. Crónica do que acontece, mas não de quem

reina. Não são diários de corte estas Gazetas de Évora, nem diários íntimos de quem as

redige, ou dirige a redacção. Nem é D. João V que aparece principalmente nas linhas e

entrelinhas: é o seu tempo. Não procuram, estas Gazetas à mão, como já se produzira no

século XVIII, as "monstruosidades do tempo e da fortuna"; antes registam, em

contribuição de cada dia, as novidades ou surpresas ou desastres da fortuna e do tempo.

Como vai a vida...

Não são notícias – que bem se compreenderiam no caso de Lisboa – do movimento de

navios, embora, página aqui, página ali, refiram que chegou a frota da Baía, a frota do

Rio, a frota de Pernambuco, a frota da Índia..., e digam das riquezas que vêm dentro,

muito ouro, pouco ouro...; a parte que compete ao Rei. A Lisboa deste tempo, sobre o

Tejo, é bem ainda a capital do império. Uma vez o cônsul de França admira-se: esta, sim,

é uma das naus mais ricas que têm chegado a salvamento. O filho do conde da Ericeira é

que deixou perder as riquezas e espécies raras que trazia da Índia. O Diário omitirá.

De fora do império, da Europa, também vem muita coisa rica, mas a pagar bem paga. Os

sinos de Mafra, por mais sonante exemplo. De França, muito luxo: vestidos – os de

homem também se chamam vestidos – ornamentos de salão, jóias, pratas, espadins

embutidos, doces ou receitas de doce (como se teriam conservado os doces no alto

mar?). Os objectos de ornamentação contribuem para o atractivo das recepções... O

Diário cala a chegada de livros, embora o Ericeira tivesse traduzido Boileau, tratasse

Boileau de seu ilustre amigo, conhecesse já o Ensaio sobre o poema épico, de Voltaire, que

entre nós faria correr muita tinta, pelo que escreve de Camões. Não. O Diário não é uma

gazeta literária.

Social?... Social de certo modo. Quase popular às vezes. No Hospital de Todos os Santos

organizam-se tômbolas, cujo proveito reverte para obras piedosas ou caritativas; mas

estão a atrair ali cada vez menos gente. O que não quer dizer que aquela espécie de

sorteio deixasse de interessar. Pelo contrário, em Setembro de 32 multiplica-se em

outros pontos de Lisboa. Em São João da Praça, por exemplo, ainda não autorizadas as

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Page 309: Livro e Iconografia

rifas, já o público não falta: cada uma custa um vintém, mas os prémios são modestos:

caixas de prata e salvas, mas também púcaros, garfos, colheres...

Em geral o Diário paira muito mais alto. Dá nota dos casamentos luzidos, das festas, das

ceias, das merendas, das serenatas... A espécie de sorvete, a que chamam neve, é um

pitéu de preço. Aliás rareia, e às vezes vai buscar-se longe. Em Agosto de 34, em carta ao

primo, o Ericeira deixa passar uma censura ao rei: "Aqui se extinguiu a neve, e El-Rei,

com grande despesa, a mandou buscar só para si, vinte léguas dentro de Badajoz".

As serenatas são o fino do fino, mas sobretudo em vozes femininas. Não da rua para a

janela, nem de namorado a pretendida, como no D. João de Mozart. O fino do fino é fora

de portas, ao ar livre, sim, mas em recinto fechado. Por conjuntos orquestrais e vocais.

Entram e gorgeiam senhoras, que os prelados não gostam de ver actuar em comédias.

Em Fevereiro de 32, a marquesa de Fontes dá uma grande festa na sua quinta de

Alcântara, para se fazer admirar em uma serenata nova, ela e as filhas que também

cantam. Só Senhoras, foram 40. Às vezes estas serenatas dão lugar a concursos líricos.

Vinham de Itália, foram cantadas por profissionais: as cantarinas. Fazia-se apreciar,

queremos crer que numa espécie de "meio-mundo", certa Veneziana com crónica e

garganta.

Já as comédias cabem em casas particulares. Relativamente numerosas e cujos títulos

não constam dos repertórios de teatro em Portugal. Aliás, todas espanholas. Patente ao

público, o chamariz dos presépios. Em Dezembro de 1733 são excepcionalmente

concorridos, garante o Diário...

Os bailes, de que fala, todos de música cortesã, gozam de grande prestígio, e têm muitos

amadores. Então se ensaiam novos passos, inculcados como criação de Versalhes. A

Gazeta não discrimina quais. Assegura, em contrapartida, que a Casa das Músicas é

muito frequentada. Pelo contrário, e deploravelmente, o Pátio das Comédias atrai pouca

gente, e ameaça ruína. A vestimenta denota a opulência, e introduz o figurino da

Europa. No baptismo da filha do conde de Vimioso, as damas primaram pela

apresentação. O Diário garante: três das mais vistosas senhoras ostentavam as roupas

justas da nova moda de Paris.

Destas Gazetas tirou Jacqueline Montfort, pioneira, os elementos do seu precioso estudo

sobre a ópera joanina. A indexação dos volumes, que se vão publicando, facilitará o

trabalho de quem lhe seguir a pista.

D. Francisco, o da Casa do Infantado, como também o príncipe D. António, filhos do rei

precedente, preferem à música, aos bailes e às comédias, as artes venatórias. Os grandes

fidalgos oferecem-lhes correntemente porcos bravos para serem lançados nas

respectivas cercas, e mortos à compita. Mais original, o segundo Diário regista a

organização de um combate singular entre um porco especialmente bruto, e um touro

que não prometia menos. Arremeteu o porco, mas logo abandonou o combate.

D. António foi às perdizes na Tapada de Mafra, mas acertou sobretudo nos coelhos. Ele e

os seus próximos mataram 360. Não seria pecado, ali, nas terras sagradas do novo

mosteiro? Não, porque tanto os coelhos como as perdizes ficavam em casa santa para os

frades comerem.

Lisboa fidalga... Lisboa galante, não?... como viria a chamar-lhe outro seu cronista que

seria Fialho de Almeida? Um tanto. Com as suas aberrações... Um fidalgo de 63 anos

casa com uma linda menina de 12. Triste vida a do sexagenário, supomos. Há destas

galanterias... E também regista adultérios, crimes domésticos, crimes passionais... Farta

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do seu legítimo esposo, certa mulher de iniciativa tratou-lhe da saúde, e enterrou-o no

subsolo do seu leito conjugal. Depois dava largas com o amante aos seus amores

correspondidos. Um príncipe mouro rapta uma beleza lisboeta. Consentânea? Quem

sabe? Sabe-se que o príncipe fugiu com ela num navio francês. E vem a saber-se que,

doutro navio, que comunicou com o do raptor, novo galante surgiu, que cortou a cabeça

ao mouro sedutor. Ignora-se a quem foi parar a Lisboeta.

Lisboa insegura. Lisboa violenta. A morte aparece aqui muito integrada no quotidiano.

Morrer é uma banalidade que pode tornar-se sumptuosa. As cerimónias fúnebres,

muito cuidadas, reúnem a fidalguia e inspiram os epicédios. E acontece que se parta

subitamente, imprevistamente, de golpe mortal. Neste tempo de espada cinta, morre-se

muito à faca.

Um ex-corista da Patriarcal aparece morto com oito facadas. A mulher de Alexandre de

Sousa deu uma facada no seu cozinheiro, de que ele está morrendo. Às vezes o remorso

sucede à faca. Diário de 17 de Novembro de 1733: um homem matou outro à facada, com

premeditação; deu-lhe o remorso, e enforcou-se.

O redactor do Diário é prudente: "dizem que há mais de 40 culpados de agressão à

facada"... Prudente neste caso, aliás de interpretação incerta. Prudente por excepção...

De acordo com a regra: um amigo visita outro, que está de cama. Conversa amena. A

certa altura, o visitante diz uma graça que pica o doente. Por graça também, o doente

agarra numa faca, e pica o amigo. O primeiro engraçado morre logo da picada do

segundo.

Acidente. Outras mortes são mais planeadas. Certo vendedor de fazendas dera em

assassino de profissão. Ao medir a fazenda que vendia, accionava secretamente um

alçapão, por onde se sumia o freguês, que era logo enforcado. Mecanismo complicado, o

Diário não perde tempo a explicar minuciosamente... De resto, mata-se por dá cá aquela

palha. Ipsis verbis, em Abril de 1732: "Um homem matou outro em Lisboa, porque lhe

pediu meio tostão que lhe devia". Pedem-nos agora os impostos...

Morre-se muito, adoece-se muito. Na medicina prevalecem as sangrias. O cardeal da

Mota sofre de reumatismo que se agrava. Infligem-lhe seis sangrias. Num doente em

maus lençóis, pratica-se uma sangria jugular; o doente piora; procede-se a segunda

sangria; o doente morre.

Também há curas. Mas acontece duvidar-se: procedem dos remédios como a água de

Inglaterra, de sangria, ou de milagre? A certo doente, administrou-se a água de

Inglaterra; desencadeia-se em consequência uma furiosa diarreia. O doente morre.

Agora veja-se o caso dum grande fidalgo. O Marquês de Valença agoniza. Já se preparam

os funerais. O padre Luís Alves sabe da devoção do Marquês pela capa do padre José

Anchieta. Na Igreja de São Roque impõe as mãos à capa. Depois cozinha um caldo. O

moribundo ingurgita o caldo bento. Logo revive, esperto e saudável.

Lisboa devota; Lisboa das procissões; Lisboa dos autos de fé. Acontece que fiquem os de

Évora a perder de vista. Diário de 30 de Setembro de 1732:

"O auto de fé de Évora teve só 16 pessoas e duas judias" – repare-se bem: 16 pessoas e

duas judias –, além de outros penitentes por casarem três vezes. Figurou nele uma

feiticeira. A feiticeira confessou que adorava o Demónio, mas negou que o fizesse do

coração... Era assim, só carnalmente... O Diabo é a carne.

Em Lisboa, uma semana antes, a lista do auto de fé compreendia uma tal Negrinha que

desunia as famílias. Dela constava mesmo que tinha trato ilícito com o Demónio, de

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quem recebera um utilíssimo presente: uma fava mágica. Respondendo ao comando da

Negrinha, na sua linguagem impenetrável, a feculenta vagem produzia as doenças que

lhe encomendavam; e, em obediência a palavra diversa, curava dessa e doutras

imediatamente. O Demónio quisera casar a sua Negrinha dilecta com marido a gosto

dele, mas a Negrinha preferira continuar fiel ao Mafarrico.

Nesta menção inevitável aos autos de fé, admitir-se-ia que o noticiarista se demarca

algumas vezes do objecto da notícia. Por exemplo, ao registar que o povo aprecia tais

"funestos espectáculos". Funestos espectáculos, diz... Sucedia que, em penitência,

devessem percorrer as ruas públicas pecadoras do sexo feminino, a quem se infligia o

castigo dos açoites. Este género de acção pia assegurava um grande concurso de fiéis.

As procissões eram um dos encantos da cidade. Mas não deixavam de dar ocasião a

distúrbios. Na véspera da do Corpo de Deus, à noite, saíam às ruas do cortejo umas

máscaras, que atacavam quem lhes parecia melhor presa. Era costume. Aliás, fora

destas ocasiões sagradas, acontecia que se formassem ranchos em Lisboa, que eram

ligas de malfeitores. O segundo volume das Gazetas alude várias vezes ao do Chicelo.

Enfim, Lisboa ainda não tremeu. Regista este volume, a certa altura, que foi eleito

académico do número Sebastião José de Carvalho e Melo. Mas não pega na deixa, nem

havia de quê. De resto, estas Gazetas não são, nem por sombras, um diário académico.

Nesse género, imprimiam-se folhetos numerados com resumo de sessões, panegíricos,

inventários de biblioteca preciosos, elaborados aliás pelo conde da Ericeira.

Voltando ao publicado... Como nortear-se neste vasto oceano de informação? Os

editores remediaram a desordem, a falta de classificação, fornecendo um labor, para

cada volume das Gazetas, copiosíssimo e omnímodo. Para além do registo indispensável

das fontes, para além da bibliografia completa, manuscrita e impressa, da inclusão dos

recursos electrónicos, mediante uma indexação, a que nada falta – índice de

personagens nomeadas, índice geográfico, índice temático – juntaram a cada volume a

gazua, suspectível de abrir e facultar cada uma das infinitas figuras do puzzle. Como

vem registado desde a notícia da capa, em final deste segundo volume, ele completa e

ultrapassa o registo de informações, já antes conhecido, mas identificado como Diário

do conde da Ericeira. Do quarto conde. Pela largueza que a informação assume, Reis

Miranda considera que o Conde desempenhou longamente, e diríamos:

espontaneamente, por vocação particular, o papel de cronista informal do Reino.

Permitir-nos-íamos uma distinção: foi mais cronista do acontecido, que panegirista,

qualidade que lhe teria implicitamente imposto o encargo oficial. Cronista do tempo, de

cuja evolução teve a intuição, mesmo se não foi capaz de a enunciar; não cronista do

Rei.

Ao Conde, teve-o sempre o Rei entre os seus grandes, mas julgamos que hesitou em

fazê-lo maior, e, por sinal, não hesitou em fazer-lhe conhecer uma relativa desgraça

passageira, nem em castigar-lhe o filho que fora (e voltaria a ser) Vice-Rei das Índias.

Suavemente, é verdade, mas duravelmente...

Insistimos na indexação, como ela se apresenta. Das figuras, que permite reconstruir ou

descobrir, distinguiremos três, terminando, a propósito da última, com o muito citado

conde da Ericeira.

Primeira figura: o tristíssimo caso, cujas notícias sucessivas, na ordem do acontecido,

dominam as páginas deste volume, ou seja o processo e condenação de Isaac Eliot,

mestre cirurgião do Hospital de Todos os Santos, e talvez nomeadamente a cena da

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privação do hábito de Cristo, de que o penitente era titular, cena à qual é possível que o

próprio D. João V tenha pretendido assistir, mas de maneira que ele mesmo não

pudesse ser visto. O lamentável e macabro final deste processo ocorreu em Janeiro de

1733. Abrangido, portanto, no âmbito do volume.

Quanto aos outros dois casos escolhidos, as presentes notícias de mão não os resolvem.

Dão pistas, estimulam curiosidades, autorizam suposições... Duas achegas, portanto,

mas de respeito.

De Diário em Diário, o infante D. Manuel, irmão mais novo de D. João V, dá sinal de si.

Como se sabe, D. Manuel Bartolomeu escapou-se do Reino sem licença do Rei. O volume

segundo das Gazetas apanha-o sobretudo nas diligências que fez, ou encomendou, no

sentido de vir a beneficiar da coroa electiva da Polónia. Não conseguiu. Demorou-se por

outras capitais, fez simpatias e dívidas em França, regressou a Portugal.

Regresso, constante ainda deste segundo volume. D. João começou por ser magnânimo

com ele: "Ontem – noticia o Ericeira ao primo, em Novembro de 34 – ontem nomeou El-

Rei, para acompanharem o Infante – três gentishomens da Câmara com beneplácito

seu". Depois tudo viria a degradar-se. D. João V fixou uma quinta de Belas como

residência do irmão; a quinta de Belas começou por brilhar como uma segunda corte...

Enfim, o rei adoeceu e acabou por deixar este irmão à míngua. A ponto que veio de

França o padre Delaunay, que tinha sido leitor do Infante, a visitar o seu antigo senhor,

a pedir audiência ao Rei, e a obter edição em Lisboa de uma epístola a D. João V, em

verso alexandrino francês, na qual exproba ao ex-Magnânimo a desconfiança

relativamente ao príncipe, e censura ao próprio Rei a inacção que o faz continuamente

arrastar-se, alheio a tudo, e gemebundo, à l’ombre des autels. À sombra dos altares. Isto

não vem no segundo volume das Gazetas, mas o que vem para lá aponta.

As pessoas sofriam muito, ao tempo, de cataratas. O próprio Ericeira terminaria a sua

carreira terrestre, completamente cego, em 1743, último ano do terceiro período das

Gazetas de Évora. E então para concluir: a sua presença neste volume é dupla: como

uma espécie de chefe de equipa redactorial, e como protagonista de repetidos factos

ocorridos, ou implicado neles. Francisco Xavier de Meneses começou muito cedo, em

1720, ano da fundação da Academia Real, a sua epistolografia internacional pela

tentativa de um estabelecimento de intercâmbio regular com o padre Jean-Paul Bignon,

que fora redactor do célebre Journal des Savants; em 1718 Bignon foi nomeado

bibliotecário do Rei pelo Regente. O Ericeira não o perdeu mais de vista. Ou melhor de

escrita. O doutor Reis Miranda tem razão, como já dissemos. Francisco Xavier de

Meneses viria a desempenhar, sem o possuir, o cargo informal de cronista do Reino. A

consulta da correspondência Ericeira, arquivada na Biblioteca Nacional de França, é de

molde a deixar-nos crer que o Conde teria também aspirado a ver-se guindado à

dignidade de Bibliotecário Real de D. João V. O Bignon português, senão o director de

qualquer Jornal dos Sábios da nossa terra. Os seus inventários, estas Gazetas de Évora

deixam-nos admitir que tais promoções lhe assentassem como luva. Mas, como ele

escreve em carta constante do segundo volume das Gazetas, agora publicado: "estou

acostumado a não conseguir o que mais desejo".

O que mais desejo, destas notícias de mão, Gazetas, cartas familiares da biblioteca de

Évora, é que os empreendedores da publicação tenham em breve que designar o

apresentador competente do 14° volume. Deixando o Ericeira, os seus desgostos, a sua

ênfase, a colecção de Évora são as Minas-Gerais que, sem saber, nos fez legar D. João V:

as últimas minas por descobrir. Não oferecem apenas ouro, mas têm muito ouro. As

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notícias de mão eram – e este caso o demonstra – as mais próximas de uma

comunicação que não transmitia senão o registo do acontecido, ou do supostamente

acontecido, através de uma subjectividade decerto, de um ponto de vista classista, mas

puro de qualquer intenção diversa ou perversa, intrometida no intuito de comunicar.

Lisboa, 22 de Novembro de 2005

RESUMOS

Enquadradas no género das "nouvelles à la main" francesas, as gazetas manuscritas da Biblioteca

Pública de Evora são um enorme repositório de informação para a história do tempo de D. João V.

Nele se encontram notícias de toda a Europa, dos vários governos ultramarinos, do quotidiano

das ruas da corte e, sobretudo, da "primeira nobreza" do Reino. Estas são, assim, as últimas minas

de ouro para o conhecimento do "alvorecer do Iluminismo" em Portugal.

Fitting in the genre of the French "nouvelles à la main", the manuscript gazettes of the Évora

Public Library are an enormous set of references to the history of the times of King John V. We

may find there news from all around Europe, from the several overseas administrations, from the

daily life of the Court streets and, above all, from the high aristocracy of the kingdom. These are,

accordingly, the last gold mines to the knowledge of "the rise of Enlightenment" in Portugal.

ÍNDICE

Keywords: Gazetas, informação, séc. XVIII, D. João V, nobreza

AUTOR

ANTÓNIO COIMBRA MARTINS

Licenciado em Filologia Românica em Lisboa, leccionou nas Universidades de Montpellier, Aix-

Marseille, Paris e Lisboa. Foi director do Centro Cultural Português da Fundação Calouste

Gulbenkian em Paris. Foi embaixador de Portugal em Paris, Ministro da Cultura, deputado na

Assembleia da República e deputado no Parlamento Europeu pelo Partido Socialista.

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Page 314: Livro e Iconografia

Manual de Edição das GazetasManuscritas da Biblioteca Pública deÉvoraEdition handbook of «Gazetas Manuscritas»

Tiago C. P. dos Reis Miranda, Fernanda Olival e João Luís Lisboa

325-361

01/12/2005

30/06/2018

A iniciativa de editar as gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora foi

formalmente acordada em Dezembro de 2001 entre o Centro de História da Cultura da

Universidade Nova de Lisboa e o Centro Interdisciplinar de História, Culturas e

Sociedades da Universidade de Évora (CIDEHUS). Desde então, os códices de folhetos

avulsos do intervalo de 1729 a 1734 deram origem a um par de volumes impressos,

seguindo-se agora o trabalho necessário à publicação dos restantes registos da década

de 1730. Repartem entre si as tarefas em curso os investigadores responsáveis pelo

projecto e dois licenciados na área de História, com pós-graduações em História

Cultural e Política e em Ciências Documentais.

Já nesta fase, o texto editado é um dos maiores e mais relevantes testemunhos

narrativos dos anos de governo de D. João V. Muitos dos elementos que nele se

descobrem dificilmente sobreviveram em outros suportes. E, em certa medida, a

própria existência de uma série contínua de "jornais manuscritos" para um período tão

recuado vem refrescar alguns dos aspectos do velho debate sobre o carácter da

"modernidade" e da "opinião pública" em Portugal no século XVIII.

Só por si, isso seria talvez o bastante para explicar a adopção, no trabalho proposto, de

regras de procedimento e de exigência que geralmente se associam à "edição crítica":

entre elas, o cotejo aturado das várias lições conhecidas, o inventário de trechos citados

na historiografia, a tentativa de elucidar passagens obscuras, o confronto com outros

testemunhos do mesmo período e a elaboração de instrumentos para recuperar com

eficácia a informação registada. Mas a partilha específica de um interesse crescente por

Cultura, vol. 21 | 2005

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Page 315: Livro e Iconografia

temas de história da escrita e da leitura não deixaria também de implicar a necessidade

de assumir um conjunto de encargos mais volumoso que os da usual edição de "fontes

de história"; porque, sob esse enfoque, passam igualmente a ter importância todo o tipo

de indícios que possibilitem melhor entender o processo de elaboração, circulação e

recepção dos textos tratados. Existe portanto uma espécie de virtuosa coincidência

entre as respostas mais adequadas a um rol de problemas tão diferentes, como os

motivos das adesões pessoais ao projecto em questão.

O manual de princípios e normas que aqui se apresenta resulta do facto de se ter vindo

a tomar consciência da complexidade das operações definidas e executadas, nos últimos

anos, sem discordâncias metodológicas substantivas no seio do grupo. Não por acaso, as

dificuldades que desde o começo se foram sentindo de forma mais viva diziam respeito

à delegação de determinadas tarefas a auxiliares, e à explicação do tempo exigido para

as cumprir. Com o esforço que agora se faz, tem-se a esperança de que um próximo

aumento do número de colaboradores possa de facto trazer bons resultados. Espera-se,

ainda, proporcionar elementos para um controlo mais alargardo de todo o trabalho e o

efetivo exercício da crítica de especialistas a pontos concretos e bem definidos.

Este "caderno" assinala, de resto, uma maior coerência das opções adoptadas e um

ajuste bastante mais fino da relação de procedimentos operativos. Não se pretende,

porém, condicionar o contacto com o texto-matriz a uma estrutura que seja tão rija,

que o desrespeite ou que o deforme. Tal como até ao momento, permanece o desejo de

uma atitude de abertura a situações imprevistas. E um dos domínios em que elas

sucedem com mais recorrência é o que se encontra no fim da cadeia que aqui se

descreve: a indexação.

Desde o início, o processo de escolha de termos indexáveis efectuou-se directamente a

partir da leitura das transcrições, sem o auxílio de qualquer tipo de repertório pré-

existente, mas informado pela consulta de obras diversas sobre os princípios de

indexação bibliográfica e arquivística. Nos últimos meses, houve também o cuidado de

aprofundar o estudo das normas ISO sobre o trabalho de construção de tesauros

temáticos – que doravante se irá prosseguir.

Agradeço a José Carlos Sebe Bom Meihy, mestre e amigo de sempre, o interesse com que

interveio na iniciativa que me levou a apresentar um curso de pós-graduação intitulado

"Cultura política e gazetas manuscritas em Portugal no século XVIII" ao Departamento

de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. Agradeço,

igualmente, o acolhimento da Cátedra Jaime Cortesão, dos professores e colegas das

áreas de Ibérica e de Moderna, e dos alunos que me acompanharam nesses mais de dois

meses de longas conversas sobre os "jornais manuscritos" setecentistas e as operações

necessárias à sua edição. Mesmo a propósito, reli nessa altura e indiquei com prazer

trechos da prosa notável de Sérgio Buarque de Holanda, que, num artigo datado de

Julho de 1950, acentuava a ideia de que "a crítica interna, a crítica externa, toilette dos

documentos – tudo, enfim, quanto aprendemos em manuais clássicos – fazem parte da

erudição, e não verdadeiramente da história. Mas não se segue daí que devam ser

desprezados: o que importa é subordiná-los a uma visão ampla e alta" (in: Para uma nova

história, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 131). Com efeito, apesar

das mudanças que ultimamente se verificaram nas apetências dos historiadores e nos

instrumentos de seu campo de acção, nunca é demais referir que a coerência de método

e o rigor crítico são pressupostos fundamentais de todo o trabalho bem feito; não,

propriamente, fins em si mesmos.

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314

Page 316: Livro e Iconografia

Na edição das gazetas, o espaço indicado para sublinhar a importância de determinados

indícios ou debater qualquer um dos temas que elas sugerem, é o das notas de pé de

página e o dos textos introdutórios. A mais concludente medida do interesse da

continuidade deste projecto – pelas ideias que venha a criar – são, no entanto, as

referências de outros leitores, e, em termos precisos, da comunidade académica.

Felizmente, os comentários vindos a público vão-se mostrando auspiciosos.

Renovo o meu muito obrigado aos funcionários das intituições em que encontrei boa

parte da bibliografia citada: a Biblioteca Nacional de Lisboa e a Biblioteca da Ajuda.

Cabe, além disso, registar outra vez o apoio constante das direcções dos centros de

estudos a que pertencem os membros da equipa, e o financiamento dos dois volumes já

publicados, pelo Instituto de Cultura Vasco Vill’Alva e a Direcção Regional de Cultura do

Alentejo.

Sumário

Abreviaturas utilizadas

Transcrição

Objectivos

Princípios gerais

Normas convencionadas

Textos de apresentação

Anotação

Objectivo

Princípios

Normas

Instrumentos bibliográficos de referência

Instrumentos de referência complementares

Indexação

Princípios

Critérios gerais

Índice de autores citados

Índice onomástico

Índice geográfico

Índice temático

Agregação de índices: problemas gerais

Revisão

Erros frequentes

Práticas de revisão

Apêndice: léxico temático

Bibliografia geral

História cultural e história cultural da escrita

Edição de textos e técnicas de paleografia

I.

I.

II.

I.

I.

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315

Page 317: Livro e Iconografia

Princípios de indexação

Nomes, títulos e formas de tratamento

Gazetas manuscritas

Abreviaturas utilizadas

Bibliotecas e Arquivos

ACL Academia das Ciências de Lisboa

BA Biblioteca da Ajuda

BGUC Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

BN Biblioteca Nacional, Lisboa

BPE Biblioteca Pública de Évora

BPMP Biblioteca Pública Municipal do Porto

IAN/TT Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo

HML Hemeroteca Municipal de Lisboa

Outras Abreviaturas

Cf. Conforme

Cód. Códice

Cop. Cópia

Cx. Caixa

Dir. Direcção

Ed. Edição / Edições

fl. Fólio(s)

Mº Maço

n [n] Nota

p./ pp. Página / Páginas

Org./ Orgs. Organização / Organizador / Organizadores

Orig. Original

Rev. Revista

Sel. Selecção

Sep. Separata

Reg. Registo

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Page 318: Livro e Iconografia

T. Tomo

Trad. Tradução

Ttº Título

V. Ver

[n]v Verso

Vol./ Vols. Volume / Volumes

Transcrição

Objectivos

Editar o conjunto de códices factícios de "gazetas manuscritas" da Biblioteca Pública de

Évora, para o poder divulgar, simultaneamente, no meio académico e num círculo mais

alargado de leitores com interesse por temas de história e da literatura.

Completar, na medida do possível, a série de Évora, recorrendo às lições existentes em

outros arquivos.1

Princípios gerais

Adoptar soluções de compromisso entre o respeito pelas normas gerais de transcrição e

publicação de textos medievais e modernos, e o uso intensivo de sinais normativos ou

referentes a incoerências formais do(s) redactor(es) dos folhetos.

Manter e reproduzir os critérios de disposição dos folhetos nos códices factícios, salvo no

caso de quebras de texto.

Considerar em aberto a fixação do texto, até ao fim do processo de elaboração do aparato

crítico de cada volume.

Normas convencionadas

Mantêm-se a ortografia e a pontuação do original, incluindo as marcas que possam ter

resultado de pausas de pena.

Introduz-se o ponto parágrafo quando ele não existe, ou quando ele assume a forma de

vírgula.

Actualiza-se o uso de maiúsculas e de minúsculas, quer no interior, quer no início das

palavras.

"U" com valor de "v" transcreve-se sempre como "v".

Desenvolvem-se as abreviaturas, com base na grafia mais comum no manuscrito e sem

assinalar no texto o respectivo desenvolvimento.

Ao pré-nome "Dom", aos tratamentos "Senhor" e "Senhora", "Padre" e "Frei", e aos

adjectivos "Santo", "São" e Santa", quando abreviados, acrescenta-se um ponto, sempre que

ele não exista no manuscrito.

Texto interpolado assinala-se entre barras invertidas (\ /).

Palavras riscadas registam-se em notas.

Trechos de lições de outras séries são grafados em itálico.

Os números dos fólios transcrevem-se entre barras (/fl. n/).

1.

2.

1.

2.

3.

1.

2.

3.

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9.

10.

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317

Page 319: Livro e Iconografia

Suprimem-se as chamadas de fim de fólio (reclamos) que de facto se desdobrem nos fólios

seguintes.

Desde que identificadas com segurança, assinalam-se à margem, em letras maiúsculas, as

alterações caligráficas que denunciem diferentes copistas.

Todas as outras intervenções editoriais no corpo do texto são assinaladas entre parênteses

rectos ou descritas em notas. Ex.: Os Trinos estavão em tres parçi[a]lidades [...].

II. Textos de apresentação

Cada volume da série editada deve conter uma nota introdutória e um estudo temático.

Incluem-se na primeira:

a cota completa do códice-base.

suas datas extremas.

uma breve descrição material.

referências aos temas mais recorrentes.

a relação de outras lições eventualmente também consultadas.

o conjunto de normas de transcrição.

Os estudos temáticos podem versar de forma mais exaustiva sobre alguns destes pontos

ou abordar problemas diversos; como, por exemplo:

o tipo de papel utilizado, a estrutura dos jogos de cadernos, o número de fólios e a

encadernação.

os ornamentos ou marcas internas (cabeçalhos, capitulares, traços divisórios, marcas de

termo, desenhos, colagens, chancelas e impressões).

as diferentes caligrafias.

a questão da autoria.

a circulação.

as práticas de leitura.

os personagens e os enredos tratados.

as relações existentes com outros suportes de informação.

Anotação

Objectivo

Disponibilizar informações, comentários ou esclarecimentos que enriqueçam a leitura

do texto transcrito e permitam cumprir os critérios de indexação.

Princípios

Indicar as falhas de observância do critério de organização cronológica dos folhetos nos

códices factícios, explicitando ao leitor a ordem correcta.

Assinalar variantes de outras lições conhecidas.

Apontar testemunhos distintos ou discrepantes, sobretudo de documentos afins.

Registar anteriores referências da historiografia aos próprios manuscritos dos códices

factícios ou às versões entretanto editadas.

Esclarecer passagens obscuras e termos caídos em desuso.

11.

12.

13.

1.

2.

3.

4.

5.

6.

1.

2.

3.

4.

5.

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1.

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3.

4.

5.

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318

Page 320: Livro e Iconografia

Destacar a eventual relevância das informações veiculadas.

Explicitar elementos colhidos em outras fontes para cumprir os critérios de indexação.

Procurar ser conciso.

Normas

As chamadas das notas no corpo do texto inserem-se logo depois da "unidade integral de

significação" que se quer comentar.

Entende-se por "unidade integral de significação" todo o conjunto sequencial de

vocábulos e/ou de sinais a que a nota expressamente se refere.

Ex.: [corpo do texto] 50 mil cruzados696.

[nota]696 No DCE, "57 mil cruzados".

[corpo do texto] Que alguns deputados esperarão Valpole que paça pello primeiro

ministro65, e o descompuzerão, e maltratarão [...].

[nota]65 Sir Robert Walpole, chefe do governo britânico.

No confronto com outras lições, não se mencionam pequenas variantes de ortografia ou de

abertura de parágrafos, excepto no caso de eventualmente modificarem o sentido do texto.

Outras lições dos mesmos folhetos e fontes diversas, mas similares, são indicadas por siglas.

Ex.: G – "Addição à Gazeta" (mss. da BPE).

DCE – Diário do Conde da Ericeira.

DCEi – "Diário do Conde da Ericeira" (ed. de Eduardo Brasão).

DCEm – "Diario do Conde da Ericeira" (mss. da BA).

Dp – "Diario" da Colecção Pombalina (mss. da BN).

NL – "Novidades de Lisboa" (mss. da BN).

VN – "Varias Notícias" (mss. da BGUC).

Todos os restantes testemunhos manuscritos referem-se na forma: "título" ou descrição,

local, data (na forma d.m.aaaa), sigla do arquivo ou biblioteca, fundo ou colecção, cota

numérica, fólio(s) ou página(s), Original [Orig.]/ Cópia [Cop.]/ Registo [Reg.].

Ex.: Decreto Régio, Lisboa, 29.1.1732, IAN/TT, Casa de Galveias, M° 34, Pasta "Antonio de

Campos [...] IV", Cop.

As obras impressas referem-se na forma: APELIDO DO AUTOR, aaaa: tomo(s) e/ou volume(s),

fólio(s)/ página(s)/ coluna(s).

Ex.: VARNHAGEN, 1981:2, IV, 104-106.

CUNHA, [1992]: 132, 297 e 477.

a. Quando o(s) autor(es) não é(são) mencionado(s), começa-se a referência pelo título.

Ex.: Lisboa no tempo de D. João V (1689-1750), [1994]: 21.

b. Obras muito volumosas e/ou de difícil utilização tornam aconselháveis referências

relativamente pormenorizadas (entre parânteses) a partes, títulos, capítulos e/ou

parágrafos.

Ex.: GAYO, 1989-1990: IV, 152 (Tt.° de Cunhas, § 5), e VII (Tt.° dos Mendanhas ou

Abemdanhas, § 53).

6.

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1.

2.

1.

1.

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Page 321: Livro e Iconografia

Instrumentos bibliográficos de referência

1. Periódicos impressos, do mesmo período:

a. Gazeta de Lisboa (ACL, BA, BGUC, BN, IAN/TT, HML).

b. Gazette d’Amsterdam (BGUC – colecção incompleta).

c. Gazette de France (BA).

d. Gazette de Utrecht (BGUC – colecção incompleta).

e. London Magazine (BGUC, BPMP).

f. Mercurio Historico, y Politico (BN – de 1738 em diante).

2. Para problemas de vocabulário e/ou etimologia:

a. BLUTEAU, D. Fr. Raphael de, 1713-1728, Vocabulario Portuguez e Latino, 10 Vols.,

Coimbra, No Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu e outros (edição em CD-ROM

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ).

b. HOUAISS, António, 2001, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro,

Objetiva Ltda. (edição em CD-Rom com tábuas de datação de palavras).

c. SILVA, Morais e, 1949-1959, Grande dicionário da língua portuguesa, 10ª ed. rev., 12 Vols.,

Lisboa, Editorial Confluência.

d. Prontuários da língua portuguesa.

3. Para a identificação de obras portuguesas impressas e manuscritas:

a. MACHADO, Diogo Barbosa, 1965-1967, Bibliotheca Lusitana, fac-símile da ed. de

1741-1759, 4 Vols., Coimbra, Atlântida Editora (edição em CD-ROM da Comissão

Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – CNCDP).

b. SILVA, Innocencio Francisco da, 1858-1923, Diccionario Bibliographico Portuguez, 23

Vols. Lisboa, Imprensa Nacional (edição em CD-ROM da CNCDP).

4. Para a identificação de personagens reais e nobres europeus:

a. DEBOIS, Alex, 1770-1786, Dictionnaire de la noblesse, Paris, Chez La Veuve Duchesne.

LOUDA, Jiři, e MACLAGAN, Michael, 1985, Les Dynasties d’Europe. Héraldique et généalogie

des familles impériales et royales, Trad. de Gérard Colson, Paris, Borda.

c. Biografias de reis e Secretários de Estado.

5. Para a identificação de personagens portugueses de estirpe fidalga.

a. CANEDO, Fernando de Castro da Silva, 1945-1946, A descendência portuguesa de el-rei D.

João II, 3 Vols., Lisboa, Edições Gama.

b. FREIRE, Anselmo José Braamcamp, [1996], Brasões da Sala de Sintra, fac-símile da ed.

de 1973, 3 Vols., Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda.

c. GAYO, Manuel José da Costa Felgueiras,1989-1990, Nobiliário de famílias de Portugal,

reimp. da ed. de 1938-42, 12 Vols., Braga, Edições de Carvalho de Basto.

d. SOUSA, D. António Caetano de, 1933, Memórias históricas e genealógicas dos Grandes

de Portugal, 4a ed., Lisboa, Publicações do Arquivo Histórico de Portugal, e 1946-1955,

Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, fac-símile da ed. de 1735-1748, 14 Vols.,

Coimbra, Atlântida – Livraria Editora, L.da.

e. ZÚQUETE, Afonso Duarte Martins (dir.), [2000], Nobreza de Portugal e do Brasil, 3ª ed., 3

Vols., Lisboa, Zairol.

f. Grande Encilopédia Portuguesa e Brasileira.

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Page 322: Livro e Iconografia

Em caso de dúvida, observar a ordem a., b., d., c., e., f.

6. Para a identificação de eclesiásticos, conventos e mosteiros portugueses:

a. ALMEIDA, Fortunato de, 1967-1971, História da Igreja em Portugal, ed. de Damião

Peres, 4 Vols., Porto / Lisboa, Livraria Civilização – Editora.

b. AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.), 2000, Dicionário de História da Igreja, 4 Vols., Lisboa,

Círculo de Leitores, e 2000-2002, História Religiosa de Portugal, 3 Vols., Lisboa, Círculo

de Leitores.

c. BRASÃO, Eduardo, 1943, Subsídios para a história do Patriarcado de Lisboa, Porto,

Livraria Civilização (sobretudo as listagens das pp. 149 e 244-247).

d. Crónicas coevas, das ordens regulares.

7. Para a toponímia de Portugal:

a. CARDOSO, Luiz, 1747-1751, Dicionario geografico, 2 Vols., Lisboa, Na Regia Officina

Sylviana e da Academia Real.

b. COSTA, Américo, 1929-1949, Diccionario Chorographico de Portugal Continental e Insular,

12 Vols., Porto, Tip. Domingos d’Oliveira;

c. COSTA, Padre António Carvalho da, 1707-1712, Corografia Portugueza, 3 Vols., Lisboa,

Na Officina de Valentim da Costa Deslandes (edição em CD-Rom da CNCDP).

d. HENRIQUES, Francisco da Fonseca, 1998, Aquilégio medicinal, fac-símile da ed. de 1726,

Lisboa, Instituto Geográfico e Mineiro.

e. LEAL, Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de Pinho, 1873-1890, Portugal Antigo e

Moderno, 12 Vols., Lisboa, Livraria Editora de Mattos Moreyra & Companhia e outros.

f. Atlas geográficos e atlas históricos de Portugal.

8. Para a toponímia de Lisboa e seu termo:

a. ANDRADE, Ferreira de, 1944-1945, A freguesia de S. Cristóvão, 2 Vols., Lisboa,

Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa; 1948-1949, A freguesia de Santiago,

2 Vols., Lisboa, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, e 1954, A freguesia

de Santa Cruz de Alcáçova de Lisboa, Lisboa, Publicações Culturais da Câmara Municipal de

Lisboa.

b. ARAÚJO, Norberto de, 1938-1939, Peregrinações em Lisboa, 3 Vols., Lisboa, Parceria A.

M. Pereira.

c. BRITO, J. J. Gomes de, 1935, Ruas de Lisboa: notas para a história das vias públicas

lisbonenses, 3 Vols., Lisboa, Livaria Sá da Costa Editora.

d. CASTILHO, Júlio de, 1935-1938, Lisboa Antiga. Bairros Orientais, Lisboa, 2ª ed. rev., 12

Vols., Lisboa, S. Industriais da C.M.L.; 1948-1968, Ribeira de Lisboa, 3ª ed. rev., 5 Vols.,

Lisboa, Câmara Municipal, e 1954-1956, Lisboa Antiga. Bairro Alto, 3ª ed. rev., 5 Vols.,

Lisboa, Oficinas Graficas da C.M.L.

e. Lisboa antes do Terramoto. Grande vista da cidade entre 1700 & 1725, 2004, Introdução de

Paulo Henriques, [Oeiras] / Paris, Gótica / Chandeigne.

f. MACEDO, Luís Pastor de, 1939-1968, Lisboa de lés-a-lés. Subsídios para a história das vias

públicas da cidade, 5 Vols., Lisboa, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa.

g. MATOS, José Sarmento de, e PAULO, Jorge Ferreira, 1999, Caminhos do Oriente (Guia

Histórico I), Lisboa, Livros Horizonte.

h. PORTUGAL, Fernando, e MATOS, Alfredo de, 1974, Lisboa em 1758, Lisboa, Publicações

Culturais da Câmara Municipal de Lisboa.

Cultura, vol. 21 | 2005

321

Page 323: Livro e Iconografia

i. OLIVEIRA, Eduardo Freire de, 1882-1911, Elementos para a história do Município de Lisboa,

17 Vols., Lisboa, Typographia Universal (os índices, em 2 Vols., são datados de

1942-1943).

j. SANTANA, Francisco de, 1974, Índice da Lisboa Antiga e da Ribeira de Lisboa de Júlio de

Castilho e Lisboa na 2.a metade do séc. XVIII, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, e 1987,

Lisboa na 2a metade do séc. XVIII (plantas e descrições das suas freguesias), Lisboa, Edição da

Câmara Municipal de Lisboa.

k. SANTANA, Francisco de, e SUCENA, Eduardo (dir.), 1994, Dicionário da história de

Lisboa, Lisboa, Carlos Quintas & Associados – Consultores, Lda.

l. SEQUEIRA, Gustavo de Matos, 1939-1967, O Carmo e a Trindade, 2ª ed., 3 Vols., Lisboa,

Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, e 1967, Depois do Terramoto.

Subsídios para a história dos bairros ocidentais de Lisboa, 4 Vols., Lisboa, Academia das

Ciências de Lisboa.

m. SILVA, Augusto Vieira da, 1954-1960, Dispersos, Lisboa, Publicações Culturais da

Câmara Municipal de Lisboa; 1987, A cerca .fernandina de Lisboa, 2ª ed., 2 Vols., Lisboa,

Publicações da Câmara Municipal de Lisboa; 1987a, A cêrca moura de Lisboa, 3ª ed., Lisboa,

Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa; 1987b, As muralhas da Ribeira de

Lisboa, 3ª ed., 2 Vols., Lisboa, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa.

n. "Guias Contexto" das freguesias da cidade.

Instrumentos de referência complementares

1. Manuscritos para a identificação de personagens.

Como guia de investigação:

DINIZ-SILVA, Andrée Mansuy, 1979, "Une voie de connaissance pour l’histoire de la société

portugaise au XVIIIe siècle: les micro-biographies (Sources – Méthode – Étude des cas)", Clio,

Vol. I, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, pp. 21-65.

a. Núcleos centrais:

Chancelarias Régias e Registo Geral de Mercês do IAN/TT.

b. Para a identificação de letrados portugueses:

Leitura de Bacharéis do IAN/TT.

"Memorial de Ministros" do Fundo Geral da BN (Cód. 1073-1079 [F 2177, 1238, 1237, 1239,

2176, 2175 e 1240]).

2. Recursos electrónicos:

a. Para a identificação de obras impressas:

Banco de dados PORBASE (<http://www.bn.pt>).

Biblioteca Nacional de Espana (<http://www.bne.es>).

Bibliothèque Nationale de France (<http://www.bnf.fr>).

British Library (<http://www.bl.uk>).

Fundação Biblioteca Nacional (<http://www.bn.br/Script/index. asp>).

The Library of Congress (<http://www.loc.gov>).

b. Sobre temas britânicos:

The British Academy: Early Modern History to c. 1800 (<http://www.britac.ac.uk/portal/

bysection.asp?section=H9>).

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Page 324: Livro e Iconografia

Office-Holders in Modern Britain, Institute of Historical Research (<http://www.history.ac.uk/

office/>).

c. Para a identificação de cardeais:

The Cardinals of the Holy Roman Church, Florida International University (<http://www.fiu.edut/

~mirandas/cardinals.htm>).

d. Para questões de genealogia portuguesa:

Genea Portugal (<http://genealogia.sapo.pt/home/>).

e. Cartografia da Europa:

History and geography of Europe: maps and atlases (<http://www.euratlas.com> e <http://

www.euratlas.com/atlastor. htm>).

Indexação

Princípios

Informada pelas Normas Internacionais ISO 2788 (1974) e 5963 (1985) e pelas Normas

Portuguesas (NP) 3715 (1989) e 4036 (1992).2

Tendencialmente exaustiva, intensiva e relativamente específica.3

Critérios gerais

Emprego de maiúsculas: na abertura de linhas, frases e parênteses.

Emprego de minúsculas: depois de vírgulas, barras e dois-pontos.

Grafia: actualiza-se e uniformiza-se.

Ex.: Luiz Montez Matozo Luís Montês Matoso.

No caso de nomes estrangeiros pouco usuais em Português, adopta-se a forma correcta

original.

Ex.: Artur Start Artur Stert. Piziguitone Pizzighettone.

Nomes de instituições, substantivos comuns, alcunhas e qualificativos em línguas

estrangeiras grafam-se em itálico.

Ex.: Luís, Le Grand Dauphin, 172.

ACADEMIAS [...]. Royal Society, 37.

MÚSICA [...]. Ópera [...]. Castrati, 274.

4. Números de páginas das ocorrências: dispõem-se em ordem crescente, separados por

vírgulas, com um ponto no fim.

Ex.: Índias, 59, 272, 289, 297, 303.

a. As ocorrências singulares que se prolongam por duas ou mais páginas consecutivas

compõem-se de números separados por hífens.

Ex.: FEITIÇARIAS, [...] 230, 233-234, 239 [...].

5. Ordenação: alfabética estrita.

a. São relevantes as conjunções e as preposições.

Ex.: Afonso dos Prazeres [...].

Afonso Manuel de Meneses [...].

6. Remissões:

1.

2.

1.

2.

3.

a.

a.

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323

Page 325: Livro e Iconografia

a. Se associadas a termos que servem somente como indicadores, são antecedidas por

vírgulas e pela forma abreviada de "ver": "v.".

b. Quando encaminham para entradas afins, dispõem-se entre parênteses no fim das

listagens das ocorrências temáticas, com a palavra "também": "(V. também [...])".

7. Dúvidas de leitura ou de identificação assinalam-se com um ponto de interrogação

entre parênteses rectos.

Ex.: Alpejata [?].

Lapua [?].

8. Acrescentos e/ou deduções resultantes do trabalho com volumes anteriores e/ou do

manuseio de fontes complementares não citadas nas notas, figuram igualmente entre

parênteses rectos.

Ex.:

[Vol. 1] [Vol. 2]

Pedro da Cunha de Mendonça, 113 Pedro da Cunha [de Mendonça], 72

Índice de autores citados

Universo: autores, organizadores e tradutores de obras citadas, académicos e/ou

funcionários de arquivos ou bibliotecas, se referidos como autoridades.

Disposição: pelo último apelido, grafado em maiúsculas.

Ex.: OLIVEIRA, Eduardo Freire de.

CASTELO BRANCO, Camilo [apelido composto].

a. Nos autores de língua espanhola, destacam-se os dois últimos apelidos.

Ex.: MARTÍNEZ SHAW, Carlos.

Os tratamentos "Dom" ou "Dona" e as denominações eclesiásticas como "Padre", "Frei" e/ou

"Mestre" são antecedidos por vírgula e dispostos por extenso logo a seguir ao conjunto dos

nomes.

Ex.: MENESES, Francisco Xavier de, Dom.

Os títulos de nobreza reservam-se para entradas remissivas.

Ex.: ERICEIRA, 4.° Conde da, v. MENESES, Francisco Xavier de, Dom.

Autores diferentes, com nomes iguais, são entre si distinguidos pelas datas dos trabalhos

citados, dispostas entre parênteses rectos.

Ex.: AZEVEDO, Pedro de, [1925], 167, 346.

AZEVEDO, Pedro de, [2004], 14, 356.

Em caso de dúvida quanto à grafia dos nomes de autores portugueses, segue-se a forma

adoptada na PORBASE.

Índice onomástico

1. Universo: todos os antropónimos que não pertençam ao Índice de autores.

1.

2.

1.

1.

1.

1.

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Page 326: Livro e Iconografia

2. Disposição: linear, pelos nomes próprios.

Ex.: António de Sousa de Macedo.

3. Títulos de nobreza e títulos reais: dispõem-se logo a seguir aos nomes próprios,

separados por vírgula.

Ex.: Frederico Augusto II, Duque de Saxónia [...].

Números de ordem dos títulos de nobreza: obrigatórios no caso de títulos portugueses, e

referidos na forma "n°".

Sempre que exista mais do que um título por ocorrência, figura primeiro o mais antigo.

Ex.: Ferrão Teles da Silvas, 3° Conde de Vilar Maior e 2° Marquês de Alegrete.

c. Títulos de nobreza de personagens femininas dispensam números de ordem.

4. Os tratamentos "Dom" ou "Dona", os adjectivos "Santo" ou "Santa" e as

denominações eclesiásticas como "Padre" e "Frei" devem ser dispostos no fim, e por

extenso, antes de vírgula.

Ex: Vasco Luís da Gama, 7° Conde da Vidigueira e 3° Marquês de Niza, Dom.

a. Desenvolve-se a forma sincopada "São".

Ex.: Francisco Xavier, Santo.

5. Títulos de reis ou de nobreza e tratamentos só aplicáveis a parte das ocorrências são

referidos no fim, antecedidos por ponto-e-vírgula.

Ex.: Sebastião José de Carvalho e Melo, 32, 189, 286; 1° Conde de Oeiras e 1° Marquês de

Pombal [...].

Vincenzo Bichi, Cardeal, 156; Monsenhor, 167.

Nomes próprios e apelidos pouco frequentes ou não usados no documento transcrito, mas

eventualmente constantes em obras de apoio, podem ser incluídos entre parêntese rectos.

Ex.: Aires de Saldanha [de Albuquerque Coutinho e Noronha].

Dispensa-se o uso de parênteses rectos caso esses nomes figurem em notas de rodapé ou em

anexos explicativos.

Homónimos perfeitos distinguem-se, de preferência, pelos nomes dos pais.

Ex.: Madalena de Bourbon, Dona, filha de Fernão Mascarenhas, 336.

Madalena de Bourbon, Dona, filha do 2° Conde de Avintes, 339, 340.

a. Sendo impossível determinar a identidade de um dos homónimos, apenas se deixa o

seu nome em separado:

Ex.: José Mascarenhas, Dom, 157.

José Mascarenhas, Dom, filho do 3° Conde de Óbidos, 335.

José Mascarenhas, Dom, filho do 3° Marquês de Gouveia, 271.

Personagens citados somente pelo seu nome próprio, identificam-se, quando possível:

1°. pelo nome do pai.

Ex.: Josefa, Dona, filha de Paulo Nogueira de Andrade, 195.

2°. pelo mais próximo laço de parentesco determinado, ou

3°. Pelo cargo, posto ou ocupação referido nas gazetas.

Ex.: Jorge, Dom, capitão de cavalos, 212.

Personagens sobretudo conhecidos pelos seus sobrenomes, e por eles normalmente

mencionadas, têm-nos escritos em letras maiúsculas.

a.

b.

1.

a.

1.

1.

1.

Cultura, vol. 21 | 2005

325

Page 327: Livro e Iconografia

a. Após uma vírgula, podem-se ainda acrescentar informações adicionais que facilitem a

identificação, de acordo com os critérios referidos no ponto anterior.

Ex.: MONRAVÁ, médico.

Alcunhas ou cognomes dão origem a entradas independentes, devendo grafar-se da mesma

forma que os nomes próprios.

Ex.: O Perna de Pau.

Nestes dois últimos casos, é desejável criar remissões para os nomes próprios dos

personagens citados.

Ex.: MONRAVÁ, médico, v. António de Monravá y Roca, Dom.

O Perna de Pau, v. Luís de Abreu, O Perna de Pau.

As ocorrências que se refiram a personagens com títulos nobiliárquicos são remetidas para o

índice temático.

Ex.: Simão Correia da Silva, 6° Conde de Castanheira, v. TITULARES. Condes.

João V, Rei, Dom, v. REI E FAMÍLIA REAL DE PORTUGAL.

São pertinentes e desejáveis entradas que registem formas nominais mais comuns no corpo

da obra, mas diferentes das consagradas em outras fontes.

Ex.: Pedro de Melo, Dom, v. Pedro [José] de Melo [Homem], Dom.

a. A relação das ocorrências segue-se sempre, em exclusivo, ao nome mais completo.

Ex.: Pedro [José] de Melo [Homem], Dom, 57, 87, 130, 165, 173, 205, 230, 241, 257, 301,

342.

Salvo nos casos acima descritos, são de evitar todas as outras formas de identificação

complementar.

Ex.: Manuel de Azevedo Fortes, engenheiro, 34, 78, 257.

Índice geográfico

1. Universo: todos os topónimos não excluídos nos pontos 5 e 6, infra.

2. Disposição: pelos nomes das entidades geográficas.

Ex.: Açores.

Rio de Janeiro.

a. No caso das entidades geográficas não jurisdicionais, os termos genéricos figuram

depois de vírgulas.

Ex.: Príncipe, Ilha do.

Vístula, Rio.

3. Grafias múltiplas: quando existentes, assinalam-se.

Ex.: Dantzig ou Danzig.

Liorne ou Livorno.

a. Sendo muito diversas, criam-se entradas com remissão para os registos mais usuais.

Ex.: El-Araïch, v. Larache.

Gdansk, v. Dantig ou Danzig.

4. Topónimos pouco comuns e/ou que levantem dificuldades (como, por exemplo, por

homonomia) podem ser acrescidos de informações complementares:

1.

1.

1.

1.

1.

Cultura, vol. 21 | 2005

326

Page 328: Livro e Iconografia

a. simplesmente entre vírgulas.

Ex.: Valença, Espanha.

entre parênteses curvos, no caso de serem fórmulas opcionais.

Ex.: Baiona (de França).

Rua do(s) Moinho(s) de Vento.

entre parênteses rectos, no caso previsto no ponto 8 dos Critérios Gerais.

Ex.: Cabeça de Montachique, [Fanhões].

5. Herdades, morgadios, senhorios, bem como imóveis rurais e urbanos vão geralmente

lançados no índice temático.

6. Alusões específicas a mosteiros e conventos, igrejas e santuários, oratórios e ermidas,

irmandades e confrarias vão lançadas no índice temático, como sub-temas. Somente se

lançam no geográfico as ocorrências em que esses nomes sejam tomados de modo geral,

por espaços urbanos, ou quando haja dúvidas a esse respeito.

Ex. de referências gerais:

"[...] jâ se lhe mandarão tomar cazas para morár, e são as de D. Sancho de Faro à S.

Francisco [...]" [Vol. 2, p. 140, n. 396].

"[...] El Rey asestio em S. Domingos, Relação, e no Campo da Forca thé se acabár a

execução [...]" [Vol. 2, p. 116, n. 318].

Assumem-se por limites do termo de Lisboa os das "Memorias Paroquiais" de 1758.

Referências a bairros, freguesias, lugares, sítios, ruas e largos de Lisboa e seu termo são

agrupadas alfabeticamente num parágrafo único, como sub-temas, logo depois das

ocorrências de cunho geral.

Índice temático

1. Universo: matérias escolhidas pela frequência com que aparecem na fonte editada e

eventualmente também pela importância que assumem na historiografia.4

a. A abertura de novos temas e sub-temas deve ser avaliada em conjunto, por todos os

investigadores participantes no projecto, segundo os pressupostos dos trabalhos com

léxicos controlados.

2. Grafia e disposição:

a. temas: grafados em maiúsculas.

b. sub-temas: dispostos em parágrafos contínuos, logo a seguir às ocorrências gerais de

cada tema – à semelhança do já definido no número 6 do índice geográfico.

c. casos ou divisões de sub-temas: dispostos logo a seguir às ocorrências gerais de cada

sub-tema, após um sinal de dois-pontos e separados entre si por ponto-e-vírgula.

Ex.: TITULARES [...] Marquesas: Alegrete, 140; Arronches, 38, 39, 49 [...].

aspas: utilizadas na reprodução de palavras de identificação duvidosa ou de expressões ou

formas verbais dificilmente adaptáveis às regras adiante definidas.

Ex.: "Laasdiz" ou "leesdiz".

"Tomar aço".

e. parênteses curvos: no caso de fórmulas opcionais (como no ponto 4.b. do índice

geográfico) ou havendo interesse de esclarecer o significado de alguns termos.

a.

a.

1.

2.

a.

Cultura, vol. 21 | 2005

327

Page 329: Livro e Iconografia

3. Termos temáticos: nomes ou substantivos preferencialmente simples, empregues nas

gazetas, e grafados no plural.

Ex.: ACADEMIAS.

ALIMENTOS (DIREITO A).

ÁRABES.

Não se utiliza a forma plural no caso de noções abstractas (fenómenos, propriedades,

actividades, disciplinas e crenças), entidades concretas não contáveis e nomes que designem

personagens singulares.

Ex.: CANELA.

COMÉRCIO.

MEDICINA. Anatomia. Cirurgia.

PRÚSSIA. Princesa. Príncipe. Rei.

Sempre que possível, matérias que surjam referidas no texto exclusivamente sob formas

verbais devem dar origem a termos substantivos.

Ex.: Naturalizar/ Naturalizado > NATURALIZAÇÕES.

Acções contrárias originam temas distintos.

Ex.: Desnaturalizar > DESNATURALIZAÇÕES.

Naturalizar > NATURALIZAÇÕES.

4. Quando necessário, admite-se o recurso a termos temáticos formados pela junção de

núcleos substantivos com modificadores simples ou compostos.

Ex.: MISSÕES DIPLOMÁTICAS ESTRANGEIRAS.

MISSÕES DIPLOMÁTICAS PORTUGUESAS.

MISSÕES RELIGIOSAS.

a. Sendo possível escolher entre uma forma adjectiva e uma forma prepositiva, sem

prejuízo da exactidão requerida, deve-se preferir a primeira.

5. Admite-se o uso de termos temáticos resultantes da coordenação de conceitos de um

mesmo domínio semântico.

a. Conceitos equivalentes ou similares: coordenados por barras ou conjunções.

Ex.: CEREAIS/ PÃO.

DUELOS E DESAFIOS.

RENDAS OU RENDIMENTOS.

b. Conceitos agrupáveis sob um único termo genérico – simples ou composto – mas

eventualmente menos exacto, menos expressivo ou não empregue nas próprias gazetas:

coordenados por vírgulas e conjunções aditivas.

Ex.: DOENÇAS E CURAS [> SAÚDE].

LANCHES, MERENDAS, JANTARES E CEIAS [> REFEIÇÕES].

VICE-REIS E GOVERNADORES [> REPRESENTANTES EXECUTIVOS DA AUTORIDADE REAL

NAS CONQUISTAS ULTRAMARINAS].

6. Termos temáticos que guardam entre si relações associativas de polaridade originam

remissões cruzadas.

Ex.: DESNATURALIZAÇÕES [...] (V. também NATURALIZAÇÕES).

a.

a.

a.

Cultura, vol. 21 | 2005

328

Page 330: Livro e Iconografia

NATURALIZAÇÕES [...] (V. também DESNATURALIZAÇÕES).

Grafia de remissões compostas: os termos temáticos simples separam-se por vírgulas; os

termos temáticos compostos ou coordenados com vírgulas, por pontos-e-vírgulas. Grafam-se

em minúsculas as conjunções aditivas finais. A ordem de disposição é sempre alfabética.

Ex.: (V. também CRISTÃOS-NOVOS, HERESIA e JUDAÍSMO).

NOTÍCIAS, v. CORRESPONDÊNCIA; GAZETAS, FOLHETOS E NOTÍCIAS MANUSCRITAS e

RUMORES.

O estabelecimento de grupos de temas e sub-temas parte do suposto da existência de

relações hierárquicas entre termos que indicam actividades ou disciplinas, classes ou

instituições, e termos que indicam objectos, valores, produtos ou substâncias, agentes ou

membros de classe.

Ex.: MERCÊS [...]. Registo: secretário.

PEIXE [...]. Bacalhau.

POESIA [...]. Poetas.

RENDAS OU RENDIMENTOS [...]. Rendeiros.

As ocorrências que se referem a casos ou divisões específicas de sub-temas, mas que se

mostram difíceis de identificar com certeza, são lançadas como ocorrências gerais de sub-

temas.

Ex.: TITULARES. [...] Baronesas, 182, 306: Ilha Grande de Joannes, [...].

Conventos, mosteiros, casas professas, igrejas, santuários, oratórios e ermidas, procissões,

irmandades e confrarias reúnem-se por terras e indexam-se de acordo com os nomes que

mais comummente se usam nas gazetas.

Ex.: IGREJAS E SANTUÁRIOS. [...] Lisboa: [...] Santa Engrácia.

Quando esses nomes são formas contractas ou reduzidas de invocações, as partes que faltam

à formas completas dispõem-se na sequência de vírgulas.

Ex.: CONVENTOS, MOSTEIROS E CASAS PROFESSAS [...]. Carmo, Nossa Senhora do

Vencimento do Monte do; [...] Esperança, Nossa Senhora da.

Quando são formas de origem diversa, demandam remissões.

Ex.: CONVENTOS, MOSTEIROS E CASAS PROFESSAS [...]. Grilo; [...] Monte Olivete, Nossa

Senhora da Conceição do, v. Grilo; [...] Rato; Remédios, Nossa Senhora dos (das trinas),

v. Rato.

Agregação de índices: problemas gerais

1. Necessidade de introdução das correcções indicadas nas erratas aos volumes

anteriores.

2. O crescente universo de ocorrências e a necessidade de referir os volumes em que

cada uma se verifica torna aconselhável um reajuste das normas gráficas dos índices

singulares. Propõe-se o seguinte:

a. introdução de travessões para separar os termos indexados, das ocorrências.

Ex.: SABÃO – 302.

uso de algarismos romanos para os volumes, e pontos-e-vírgulas na separação das séries de

páginas.

1.

1.

1.

1.

a.

a.

a.

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329

Page 331: Livro e Iconografia

Ex.: DESNATURALIZAÇÕES – I, 65, 137; II, 227.

3. A cada novo volume, tende a haver uma afinação dos critérios de escolha termos

indexados, que no índice agregado se deve conservar.

Ex. (aplicação das regras n° 3, 6 e 8 referentes ao Índice temático):

[Vol. 1] [Vol. 2]

NATURALIZAR [...] Desnaturalizar, 65,

137 NATURALIZAR, 48. [...] Desnaturalizar, 227

PROCURADORES/ PROCURAÇÕES, 65,

66, 84, 127, 171

PROCURADORES/ PROCURAÇÕES, 108, 150, 156, 159, 211,

217, 220, 239, 241, 275, 287

[Índice agregado]

DESNATURALIZAÇÕES [...], v. NATURALIZAÇÕES.

NATURALIZAÇÕES [...], v. DESNATURALIZAÇÕES.

PROCURAÇÕES [...]. Procuradores [...].

Para facilitar a recuperação das informações do Índice temático, pode‑-se tornar indicado o desdobramento de entradas muito abrangentes:

Ex.:

[Vols. 1 e 2] [Índice agregado]

ECLESIÁSTICOS [...]

CLERO REGULAR [...]

CLERO SECULAR [...]

ECLESIÁSTICOS, v. CLERO REGULAR e CLERO SECULAR

4. Sobretudo no índice onomástico e na entrada dos "Titulares" do índice temático, faz-

se necessário:

a. despistar as diferenças ocasionadas pela falta de estabilidade dos sobrenomes,

estabelecendo, também, eventuais remissões.

Ex.:

[Vol. 1] [Vol. 2]

Luísa Pereira de Mendonça, Dona, 110 Luísa Vicência [Pereira de Mendonça], Dona, 262

[Índice agregado]

Luisa Pereira de Mendonça, Dona, v. Luisa Vicência Pereira de Mendonça, Dona

a.

Cultura, vol. 21 | 2005

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Page 332: Livro e Iconografia

Luisa Vicência Pereira de Mendonça, Dona – I, 110; 11, 262.

refazer a análise das referências a personagens inicialmente identificados sem precisão.

Ex.:

[Vol. 1] [Vol. 2]

O Chimbali, primo de um frade

franciscano, 58, 77

Francisco, Frei, 66, 74, 84, 119 Francisco, Frei, v. Francisco de Mantona, Frei

Francisco de Mantona, Frei, 90 Francisco de Mantona, Frei, 54, 55, 57, 66, 68, 75, 88, 210.

Francisco [José] de Almada, pai de

Dona Pelágia [de Almada], 49, 77, 94Francisco de Almada, 153.

Vasco Lourenço, 165, 170, 171 Vasco Lourenço, 70, 231, 252.

Condes: [...] Pombeiro, 55, 79, 81, 131,

149, 176

Condes: [...] Pombeiro, 3°, 48, 54, 62, 83, 149, 176 90, 92, 95,

170, 179, 200, 201, 221, 225-226, 233; Pombeiro, 4°, 228.

[Índice agregado]

O Chimbali, v. Gabriel Chimbali, Dom.

Francisco, Frei, [Irmão Leigo], v. Francisco de Mantona ou Menton, Frei

Francisco de Almada, v. Francisco [José] de Almada, Dom, [ filho de D. Bernardo de Noronha].

Francisco de Mantona ou Menton, Frei – I, 66, 74, 84, 90, 119; II, 54, 55, 57, 66, 68, 75, 88, 210.

Francisco [José] de Almada, Dom, [filho de D. Bernardo de Noronha] – I, 49, 77, 94; II – 153.

Gabriel Chimbali, Dom - I, 58, 77.

Vasco Lourenço [Veloso] – I, 165, 170, 171; II, 70, 231, 252.

Condes: [...] Pombeiro, 3° – I, 55, 79, 81, 131, 149, 176; II, 48, 54, 62, 83, 90, 92, 95, 170, 179, 200, 201,

221, 225-226, 233; Pombeiro, 4° – 228.

destacar em negrito a(s) ocorrência(s) que permita(m) uma rápida identificação dos

personagens.

Ex.:

[Vol. 1] [Vol. 2]

João Pedro Soares, [Provedor da

Alfândega], 54, 66, 114

João Pedro Soares de Noronha Coutinho de Avelar Teixeira, 59,

81, 124, 135-136, 152-153, 154, 165, 20, 238, 263, 324.

a.

a.

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331

Page 333: Livro e Iconografia

Luís Castelo Branco, Dom,

Cónego, 170

Luís de Castelo Branco, Dom, 85, 90, 235, 279; 4.° Conde de

Pombeiro, v. TITULARES. Condes.

[Índice agregado]

João Pedro Sares de Noronha Coutinho de Avelar Teixeira – I, 54, 66, 114; II, 59, 81, 124, 135-136,

152-153, 154, 165, 20, 238, 263, 324.

Luís de Castelo Branco, Dom – I, 170; II, 85, 90, 235, 279; 4.° Conde de Pombeiro, v. TITULARES.

Condes.

Revisão

Erros frequentes

Margens incorrectas.

Tamanhos de linhas desiguais.

Espaçamentos irregulares.

Falhas de equivalência entre as chamadas das notas e os textos em rodapé.

Divisões incorrectas de palavras em fim de linha.

Faltas de hífens em palavras compostas.

Incoerências na homogeneização de maiúsculas e minúsculas.

Abreviaturas não desdobradas.

Faltas de pontos de abreviatura nos casos previstos nas Normas de Transcrição.

Práticas de revisão

Todos os revisores devem ter acesso à matriz informática do texto em edição, para

despistarem e corrigirem (através dos comandos de "busca" e "substituição" dos

processadores de texto) eventuais repetições dos erros pontualmente localizados nas provas.

Todas as provas devem ser revistas individualmente pelo menos por dois dos investigadores

do projecto.

As correcções definitivas devem ser acordadas pelo conjunto dos investigadores, e inseridas,

assim que possível, na matriz informática.

Guardam-se as provas revistas, para servirem de base a novos ajustes dos critérios usados.

Apêndice: léxico temático

ACADEMIAS

Real das Ciências, de Tolosa. Real da História: censura; memórias eclesiásticas. Royal

Sociely. São Petersburgo.

AÇÚCAR

(V. também LANCHES, MERENDAS, JANTARES E CEIAS. Doces)

ADVOGADOS, v. JURISTAS / ADVOGADOS.

AGUARDENTE

AJUDAS DE CUSTO

1.

2.

3.

4.

5.

a.

1.

2.

3.

1.

2.

3.

4.

Cultura, vol. 21 | 2005

332

Page 334: Livro e Iconografia

ALCAIDARIAS MORES

ALEMANHA

Alemães. Arquiduquesa. Arquiduquesa, 2ª. Eleitores: de Baviera; de Hanover, v.

INGLATERRA. Reis: de Mogúncia; de Saxónia (V. também TITULARES. Duques). Corte.

Hamburgueses. Imperador. Relações internacionais.

ALFÂNDEGA

ALIMENTOS (DIREITO A)

ALMOXARIFADOS

Almoxarifes.

ANIL

ANIMAIS SELVAGENS

Tigre. Urso.

(V. também CAÇA)

ANIVERSÁRIOS

AQUEDUTO DAS ÁGUAS LIVRES

ÁRABES

Mouros.

ARGEL

Reis (V. também ÁRABES e GUERRA).

ARMAS

Artilharia.

ARQUITETOS E ENGENHEIROS

ARTESÃOS E TRABALHADORES MANUAIS

Aguadeiros. Alfaiates. Arrieiros. Barqueiros / fragateiros. Cabeleireiros. Calceteiros.

Carpinteiros. Cirieiros. Cocheiros. Correeiros. Coveiros. Empreiteiros. Escultores.

Impressores, v. LIVROS. Latoeiros. Linheiras. Ourives. Pedreiros. Pintores, v. PINTURA.

Pintores. Sapateiros. Vidraceiros.

ASTRONOMIA

Cosmógrafo-mor.

ATENTADOS E EMBOSCADAS

ATEÍSMO

AUTOS DA FÉ, v. SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO.

AZEITE

BACALHAU, v. PEIXE.

BAPTISMOS

BENEFÍCIOS ECLESIÁSTICOS

BIBLIOTECAS, v. LIVRARIAS.

BISCOITO

BOTICAS

Boticários.

BULA DA CRUZADA

Cultura, vol. 21 | 2005

333

Page 335: Livro e Iconografia

(V. também SANTA SÉ. Bulas / breves) CAÇA

CACAU/CHOCOLATE

CAFÉ

CAL

CÂMARAS MUNICIPAIS

Lisboa.

CANELA

CARNE

(V. também GADO)

CARTAS DE SEGURO

CARVÃO

CASA DA GALÉ

CASA DA ÍNDIA

CASA DAS RAINHAS

Vedores da Rainha. Camareira-mor.

CASAMENTOS

(V. também DIVÓRCIOS e DOTES)

CASAS

De campo (V. também QUINTAS).

(V. também PALÁCIOS)

CASAS SENHORIAIS E SENHORIOS

Águas Belas. Alcáçovas. Alegrete. Assequins. Arcos. Aveiras. Aveiro. Azambuja. Azurara.

Bairrada. Belmonte. Bragança. Cadaval. Calhariz. Carapito e Codeceiro. Carrillo.

Carvoeira. Cavaleiros. Cotovia. Corte do Serrão. Couto de Mazarefe. Outil. Entre Homem

e Cávado. Ericeira. Ferrazes. Ficalho. Ilhas Desertas. Lafões. Mazarefes. Melo. Mira.

Murça. Nisa. Ota. Pancas. Paio Pires. Pombeiro. Ponte da Barca. Quinta de Colares.

Quintas de Mortanes, Manteigas e Arciprestes. Ribeira Grande. Rohan. Romeira. Rua

Escura. Seixo Amarelo. Sirol. Terlizzi e Castelgaragnone. Torre da Palma. Torre de

Coelheiros. Torre do Outão. Unhão. Vila Flor. Vila Pouca. Vilar de Perdizes.

(V. também MORGADIOS e TITULARES)

CASTELA, v. ESPANHA.

CATIVOS

CAVALOS E BESTAS

Cavalos. Mulas.

CEIAS, v. LANCHES, MERENDAS, JANTARES E CEIAS.

CEILÃO

Cândia: rei.

CENSURA

(V. também ACADEMIAS. Real da História: censura e SANTO OFICIO DA INQUISIÇÃO.

Censura de livros)

CERA

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334

Page 336: Livro e Iconografia

CEREAIS/PÃO

CHÁ

CHINA

CLERO REGULAR

Agostinhas. Agostinhos: agostinhos recoletos; crúzios; gracianos; grilos. Agostinhos

Descalços, v. Agostinhos: Grilos. Barbadinhos. Beneditinos. Bernardos. Caetanos.

Capuchos, v. Franciscanos claustrais. Capuchinhos, v. Barbadinhos. Carmelitas: frades;

freiras. Carmelitas Descalças: albertas (de Santo Alberto). Carmelitas Descalços:

marianos (de Nossa Senhora dos Remédios). Cartuxos. Cistercienses, v. Bernardos.

Clarissas: flamengas (de Nossa Senhora da Quietação, ao Calvário). Congregados do

Oratório de São Filipe de Néri, v. Lóios. Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, v.

Agostinhos: crúzios. Cónegos Seculares do Evangelista, v. Oratorianos. Crúzios, v.

Agostinhos: crúzios. Dominicanas. Dominicanos. Eremitas de Jesus Cristo da Serra de

Ossa, v. Paulistas. Eremitas Descalços de Santo Agostinho, v. Agostinhos: grilos.

Eremitas de Santo Agostinho: v. Agostinhos: gracianos. Franciscanos claustrais:

arrábidos (da Província da Arrábida); xabreganos (do Convento de Santa Maria de Jesus

ou São Francisco de Xabregas, da Província do Algarve). Freiras. Gracianos, v.

Agostinhos: grilos. Jerónimos. Jesuítas. Lazaristas. Lóios. Paulistas. Teatinos, v.

Caetanos. Trinas. Trinos. Trinitários, v. Trinos.

(V. também CONVENTOS, MOSTEIROS E CASAS PROFESSAS; MISSÕES RELIGIOSAS e

ORDENS MILITARES)

CLERO SECULAR

Arcebispos: Baía; Benavento; Évora; Goa; Lacedemónia; Reims; Tarso, v. MISSÕES

DIPLOMÁTICAS ESTRANGEIRAS. Em Portugal: núncios. Bispos: Angola; Angra;

Barcelona; Cabo Verde; Coimbra; Congo; Guarda; Lamego; Leiria; Malaca; Marselha;

Patará; Portalegre; Porto. Cabidos. Cardeais. Cónegos: da Patriarcal; da Sé de Coimbra.

Confessores. Deães: da Patriarcal; da Sé. Patriarca. Prelados / Provinciais das religiões.

Priores: Guimarães; Luz; Santo Estêvão; São Domingos; São Julião; São Nicolau; Santos-

o-Velho. Provisores. Vigário Geral.

CLIMA

Cheias / inundações. Chuvas e tempestades. Frio. Furacões. Neve. Prejuízos causados.

Secas (calmas). Vento.

COCHES, CALECHES, BERLINDAS, LITEIRAS E SEGES

COFRES

COLÉGIOS, v. ENSINO. Colégios.

COMARCAS

Coimbra. Lamego. Portalegre.

COMBOIOS, v. FROTAS E COMBOIOS.

COMENDAS E COMENDADORES, v. ORDENS MILITARES.

COMÉRCIO

Companhias: de Ostende. Feiras. Lojas. Mercadores. Negociantes.

(V. também ESTALAGENS, TAVERNAS E CASAS DE PASTO)

CONFEDERAÇÃO MARATA

Maratas. Reis.

Cultura, vol. 21 | 2005

335

Page 337: Livro e Iconografia

CONFRARIAS, v. IRMANDADES E CONFRARIAS.

CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL

Conselho de Estado: conselheiros. Conselho da Fazenda. Conselho de Guerra: secretário.

Conselho Geral do Santo Oficio. Conselho Ultramarino: conselheiros. Desembargo do

Paço: presidentes. Mesa da Consciência e Ordens: presidentes.

(V. também JUNTAS, JUSTIÇA e SECRETARIA(S) DE ESTADO)

CONSPIRAÇÕES

CÔNSULES

Em Espanha: dos Estados Gerais. Em Portugal: da Inglaterra, dos Estados Gerais.

CONTRABANDO

(V. também TOMADIAS)

CONTRATOS

CONVENTOS, MOSTEIROS E CASAS PROFESSAS

Alcobaça: Santa Maria. Almada: São Paulo. Belém: Jerónimos ou São Jerónimo.

Carnaxide: Boa Viagem, Nossa Senhora da; São José de Ribamar. Castanheira: Santo

António [?]. Caxias, v. Laveiras. Coimbra: Santa Cruz. Évora: Cartuxa; Santo Elói. Goa:

Santa Mónica. Incidentes internos. Laveiras: Cartuxa de São Bruno. Lisboa e seu termo:

Alcântara, v. Flamengas; Anunciada, Nossa Senhora da; Boa Hora; Bom Sucesso;

Calvário, Monte; Cardais, Nossa Senhora da Conceição dos; Carmo, Nossa Senhora do

Vencimento do Monte do; Carnide, Santa Teresa de; Cotovia; Encarnação; Esperança,

Nossa Senhora da; Espírito Santo (da Pedreira); Flamengas (de Nossa Senhora da

Quietação); Graça, Nossa Senhora da; Grilo; Jesus, Santa Maria de, v. São Francisco de

Xabregas; Lóios; Luz, Nossa Senhora da; Madre de Deus; Menino Deus; Marianos, v.

Remédios, Nossa Senhora dos Remédios (dos marianos); Monte Olivete, Nossa Senhora

da Conceição do, v. Grilo; Paulistas; Rato; Remédios, Nossa Senhora dos (das trinas), v.

Rato; Remédios, Nossa Senhora dos (dos marianos); Rilhafoles; Rosa, Nossa Senhora da;

Sacramento, Santíssimo; Santa Clara; Santa Marta; Santa Mónica; Sant’Ana; Santo

Alberto; Santo António ou Santo António dos Capuchos; Santo Elói, v. Lóios; Santos-o-

Novo; São Bento; São Bento dos Lóios ou São Bento de Xabregas; São Domingos; São

Francisco (da Cidade); São Francisco de Xabregas; São Pedro de Alcântara; São Roque;

São Vicente (de Fora); Trinas ou Trinas Recoletas (de Nossa Senhora da Soledade);

Trindade, Santíssima; Xabregas, v. São Francisco de Xabregas. Mafra: Nossa Senhora e

Santo António (V. também MAFRA). Odivelas: São Dinis e São Bernardo. Sobral: Nossa

Senhora dos Anjos. Santarém: São Francisco. Sintra: Pena, Nossa Senhora da. Soveral v.

Sobral. Varatojo: Santo António. Vinhais: Santa Clara.

(V. também CLERO REGULAR e IGREJAS E SANTUÁRIOS)

CORREIOS

Correio da Corte. Postilhões. CORRESPONDÊNCIA

CORSO E PIRATARIA

CORTE DE PORTUGAL

Audiências. Beija-mão. Cerimonial. Damas da Corte.

(V. também PALÁCIOS e REI E FAMÍLIA REAL DE PORTUGAL)

COURO

CRÉDITO

Cultura, vol. 21 | 2005

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Page 338: Livro e Iconografia

Bancos. Credores. Dívidas. Empréstimos. Execuções. Juros.

CRIADORES, v. LAVRADORES E CRIADORES.

CRIADOS / MOCHILAS

Cocheiros. Conserveiras. Cozinheiros. Escudeiros.

CRIMES

Adultérios. Agressões e crimes domésticos ou passionais. Assassinatos.

Envenenamentos. Falsificações (V. também MOEDA. Falsa). Fugas. Parricídios.

(V. também ATENTADOS E EMBOSCADAS e ROUBOS E FURTOS)

CRISTÃOS-NOVOS

DESACATOS E MOTINS

Sacrilégios.

DESCAMINHOS

DESNATURALIZAÇÕES

(V. também NATURALIZAÇÕES)

DIAMANTES, v. METAIS E PEDRAS PRECIOSAS.

DINAMARCA

Rei.

DIPLOMACIA, v. MISSÕES DIPLOMÁTICAS e RELAÇÕES INTERNACIONAIS.

DIVÓRCIOS

DOENÇAS E CURAS

Achaques. Acidentes. Água de Inglaterra (quina quina ou querano). Águas espirituosas.

Aneurismas. Apertos. Apoplexias. Ataques. Banhos (V. também Caldas da Rainha).

Bexigas. Catarros. Cegueira / cataratas / doenças de olhos. Cólicas. Constipações.

Convalescenças e melhorias. Convulsões. Defluxos. Dentes, males de. Dores: de cabeça;

de garganta, v. Esquinências (ou amigdalites); na ilharga. Epidemias. Erisipela.

Escorbuto / "Mal de Luanda". Esquinências (ou amigdalites) e dores de garganta.

Estupores. Fastios. Febres: crescimentos; terçãs. Feridas. Gangrena. Gota. Herpes.

Hidropisia. Icterícia. Inchaços. Insanidade. Melancolia. Mirra da Pérsia. Parôtidas.

Pedras. "Peles de senis". Perfumes. Pestes. Pleuris (ou pleurisia). Pontadas. Purgas.

Quedas. Queixas de peito. Reumatismo. Sangrias. Sarampo. Sezões. Sífilis. Síncopes.

Sono e esquecimentos. "Telícia". Tísica. "Tomar aço". Tosses. Tubérculos (V. também

Inchaços). Tumores. Vágados / vertigens. Vómitos.

DONATÁRIOS / SENHORES DE TERRAS, v. CASAS SENHORIAIS / SENHORIOS.

DOTES

DUAS SICÍLIAS

Rei.

(V. também NÁPOLES)

DUELOS E DESAFIOS

ECLESIÁSTICOS, v. CLERO REGULAR e CLERO SECULAR.

EDITAIS

ENGEITADOS

ENIGMAS

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Page 339: Livro e Iconografia

ENSINO

Colégios: Purificação; Santo Antão; São Paulo; São Pedro. Estudantes. Filosofia. Lentes.

Matemática. Medicina. Mestres de meninos.

ENTRADAS PÚBLICAS

ERMIDAS, v. ORATÓRIOS / ERMIDAS. ESCRAVOS

(V. também NEGROS)

ESMOLAS

ESPANHA

Auditor. Catalães. Corte: audiências. Espanhóis. Infantes: Carlos, Dom (V. também DUAS

SICÍLIAS. Rei); Filipe, Dom; Maria Teresa, Dona. Língua castelhana. Navios. Princesa.

Príncipe. Rainha. Rei. Relações internacionais. Santo Oficio da Inquisição.

ESTADOS GERAIS

Holandeses. Príncipe de Orange-Nassau. Relações internacionais.

ESTALAGENS, TABERNAS E CASAS DE PASTO

Estalajadeiros. Taberneiros.

EXCOMUNHÕES

FÁBRICAS

De Pólvora. De Seda.

(V. também NAVIOS. Estaleiros, PÓLVORA e VESTUÁRIO E TECIDOS)

FACÇÕES, PARCIALIDADES E PARTIDOS

FEITIÇARIAS

Exorcismos.

FESTAS

Bailes. Entrudo. Espírito Santo. Lausperenes. Lava-pés. Natal. Nossa Senhora da

Conceição. Páscoa. Reis / Epifania. Rosário. Santa Ana. Santa Bárbara. Santa Rita. Santo

Agostinho. São Francisco. Tedéuns.

(V. também MÚSICA)

FIANÇAS, v. JUSTIÇA.

FILHAMENTOS

FOGO DE ARTIFÍCIO

FOLHETOS MANUSCRITOS, v. GAZETAS, FOLHETOS E NOTÍCIAS MANUSCRITAS.

FORTES E FORTALEZAS

(V. também TORRES)

FRANÇA

Delfins: Luís, filho de Luís XV; Luís, Le Grand Dauphin. Franceses. Navios. Parlamento.

Reis: Luís XIV; Luís XV. Relações Internacionais.

FREIRÁTICOS

FROTAS E COMBOIOS

(V. também NAVIOS)

GADO

(V. também CARNE)

Cultura, vol. 21 | 2005

338

Page 340: Livro e Iconografia

GALINHAS

GAZETAS, FOLHETOS E NOTÍCIAS MANUSCRITAS

"Addição à Gazeta". Anatomico jocoso. "Anno noticioso e historico". "Diario": autor /

autoria; cópias; falhas ou suspensões de edição. O Anónimo. Censura. "Diario" da

Colecção Pombalina. "Diario de Lisboa" / "Diario de Lisboa Occidental" / "Diario do 4°

Conde da Ericeira": autor / autoria; encadernação (problemas de); falhas ou suspensões

de edição. Folheto de ambas Lisboas. "Folheto de Lisboa". "Folheto de Lisboa Occidental".

Gazeta de Lisboa: gazeteiro. "Gazeta de Pernambuco". "Gazeta em forma de carta".

Gazetas da Restauração. Gazetas europeias. Historia annual. "Mercurio de Lisboa" /

"Mercurio historico de Lisboa". "Monstruosidades do tempo e da fortuna". "Noticia

breve da universal estimação que em Portugal se faz dos folhetos". "Noticias annuais

1740 ate 1749". "Noticias de Portugal". "Novidades de Lisboa". Pasquins. Suplemento da

Gazeta. "Varias noticias de casos".

(V. também CORRESPONDÊNCIA)

GENTIOS

(V. também ÍNDIOS)

GENTIS-HOMENS

Da Câmara Real.

(V. também OFÍCIOS-MORES DA CASA REAL)

GOVERNADORES, v. VICE-REIS E GOVERNADORES.

GUERRA

Cerco de Orão. Direito da. Na Índia. Sucessão da Áustria. Sucessão da Polónia. Sucessão

de Espanha.

HERÁLDICA

HERANÇAS, v. TESTAMENTOS / TESTAMENTARIAS.

HERESIAS

(V. também ATEÍSMO e FEITIÇARIAS)

HOLANDA, v. ESTADOS GERAIS.

HOSPITAIS

Enfermeiro-mor do Hospital de Todos-os-Santos.

IGREJAS E SANTUÁRIOS

Águeda. Braga: Sé. Bucelas: Purificação, Nossa Senhora da. Coimbra: Santiago. Évora: Sé;

Santo Elói. Lisboa: Anjos; Boa Hora; Conceição, Nossa Senhora da, v. Conceição Velha;

Conceição Velha; Encarnação; Espírito Santo (da Pedreira); Graça, Nossa Senhora da;

Jesus, Santa Maria de; Loreto, Nossa Senhora do; Madalena, Santa Maria; Mártires;

Misericórdia; Patriarcal; Paulistas; Sacramento, Santíssimo; Santa Engrácia; Santa Luzia;

Santiago; Santo Amaro, v. ORATÓRIOS E ERMIDAS. Lisboa: Santo Amaro. Santo António

de Lisboa, v. Santo António da Sé; Santo António da Sé; Santo António dos Capuchos;

Santo Estêvão; Santos-o-Velho; São Bento; São Domingos; São Francisco (da Cidade); São

João da Praça; São Luís (dos Franceses); São Martinho; São Pedro de Alcântara; São

Roque; São Vicente (de Fora); Saúde, Nossa Senhora da; Sé ou Sé Oriental; Trinas ou

Trinas Recoletas (de Nossa Senhora da Soledade); Trindade, Santíssima. Odivelas:

Menino Jesus. [Porto]: Loureiro, [São Pedro do]. Sesimbra: Cabo, Nossa Senhora do.

Terceira, Ilha: Sé. Torres Novas. Vila Viçosa: Capela Real.

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Page 341: Livro e Iconografia

(V. também CONVENTOS E MOSTEIROS)

IMPÉRIO, v. ALEMANHA.

IMPÉRIO MONGOL

Grão-Mongol.

IMPOSTOS E TRIBUTOS

Capitação. Décimas. Quintos. Terças. Um por cento.

INCÊNDIOS

ÍNDIOS

(V. também GENTIOS)

INDULGÊNCIAS

INDULTOS

INGLATERRA

Bolsa. Corte: cerimonial. Ingleses: Feitoria de Lisboa. Navios. Parlamento. Reis: Jorge II.

Rainhas: Ana; Carolina. Relações internacionais. Secretários de Estado.

INSULTOS

INTERDITOS

IRLANDA

Irlandeses.

IRMANDADES E ASSOCIAÇÕES CONFRATERNAIS

Lisboa: Passos, Nosso Jesus dos. Santa Engrácia. Santa Justa. Odivelas.

(V. também IGREJAS E SANTUÁRIOS e MISERICÓRDIAS)

ITÁLIA

Genoveses. Italianos ou nação italiana. Rei da Lombardia. Saboiardos.

(V. também NÁPOLES, DUAS SICíLIAS, SANTA SÉ, SARDENHA e TOS-CANA)

JANTARES, v. LANCHES, MERENDAS, JANTARES E CEIAS.

JOGO

JÓIAS

Anéis. Arrecadas. Botões. Braceletes e pulseiras. Brincos. Caixas. Cruzes. Estojos.

Gargantilhas. Insígnias. Paliteiros. Pérolas. Zoomórficas: lagartixa; salmonete.

(V. também METAIS E PEDRAS PRECIOSAS e MÓVEIS)

JUDAÍSMO / JUDEUS

JUNTAS

Conferências. Da Saúde. Do Tabaco: deputados. Dos Três Estados. Na Misericórdia.

(V. também CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL e SECRETARIA(S) DE ESTADO)

JURISTAS /ADVOGADOS

(V. também OFICIAIS E MINISTROS)

JUSTIÇA

Açoites. Adultérios. Agravos. Apelações. "Baraço e pregão". Chancelaria. Culpas.

Degredos e desterros. Demandas intra-familiares. Detenções e presos. Devassas.

Execuções. Fianças. Galés. Perdões. Sentenças. Tratos / tormentos. Tribunais: Relação.

(V. também CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL, OFICIAIS E MINISTROS e PRISÕES)

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Page 342: Livro e Iconografia

LADRÕES, v. ROUBOS E FURTOS.

LANCHES, MERENDAS, JANTARES E CEIAS

Bebidas de neve. Doces.

LATIM

LAVRADORES E CRIADORES

LEGADOS PIOS

Administração. Capelas. Denúncias. LEGISLAÇÃO

LEGITIMAÇÕES, v. FILHAMENTOS.

LÍNGUA PORTUGUESA

LIVRARIAS

LIVROS

Livreiros

LOUÇAS

LUTOS

MADEIRAS

Castanho. Pau-brasil.

MAFRA

Caminhos. Obras. Sinos. Tapada.

(V. também CONVENTOS E MOSTEIROS. Mafra e REI E FAMÍLIA REAL DE PORTUGAL.

João V, Rei, Dom: idas a Mafra)

MALTA

Grão-Mestre. Malteses.

MARFIM

MARINHA

Marinheiros.

MARROCOS

Rei.

MEDICINA

Anatomia. Cirurgia.

MÉDICOS, BARBEIROS, CIRURGIÕES E ALGEBRISTAS

MERCÊS

Capelas. Despachos. Direito a testar. Petições. Registo: secretário. Supervivências.

"Vidas".

METAIS E PEDRAS PRECIOSAS

Águas-marinhas. Carbúnculos. Casas de fundição. Diamantes: minas e mineração.

Esmeraldas. "Laasdiz" ou "leesdiz". Lapis-lazulis. Madrepérola. Mineiros. Ouro: alfaias

de; minas. Prata; alfaias de; minas. Rubis. Safiras.

(V. também JÓIAS)

MILAGRES

(V. também SANTOS, BEATOS E SANTIDADES)

MILITARES E ORDENANÇAS

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Page 343: Livro e Iconografia

Alferes. Almirante. Artilheiros. Batalhões. Brigadeiro. Capitães: da guarda; de cavalos.

Capitães de mar e guerra. Capitães-engenheiros. Capitães-mores. Capitães-tenentes.

Cavalaria. Companhias. Coronéis. Coronéis-engenheiros. Desertores. Esquadrões.

Generais. Governos militares. Granadeiros. Infantaria. Recrutamentos. Regimentos.

Sargentos. Sargentos-mores. Soldados e tropas. Tenentes: da guarda. Tenentes-

coronéis. Tenente-general de artilharia do Reino.

MINAS E MINERAÇÃO, v. METAIS E PEDRAS PRECIOSAS.

MISERICÓRDIAS

MISSÕES DIPLOMÁTICAS ESTRANGEIRAS

Em Espanha: embaixador de França; embaixador extraordinário de Inglaterra; ministro

de Inglaterra; núncio. Em Florença: núncio. Em França: embaixador de Espanha;

embaixador do Império. Em Inglaterra: embaixador de Espanha; embaixador de França.

Na Pérsia: embaixador de Inglaterra. Na Polónia: embaixador do Império. Nas Duas

Sicílias: ministro de Inglaterra. No Mónaco: embaixador de Espanha. Nos Estados Gerais:

embaixador de França; embaixador de Inglaterra. Em Portugal: embaixador de Espanha;

embaixador de França; embaixadores do Surrate; enviado de Inglaterra; ministro do

Império; núncios; residente do Império; residente dos Estados Gerais. Na Santa Sé:

embaixador de Espanha; embaixador do Império. Na Turquia: embaixador de Inglaterra.

MISSÕES DIPLOMÁTICAS PORTUGUESAS

Em Espanha: embaixador extraordinário; ministro plenipotenciário. Na Santa Sé:

embaixador; enviado extraordinário. Nos Estados Gerais: enviado.

MISSÕES RELIGIOSAS

Missionários.

MOEDA

Casa da Moeda: moedeiros; provedor. Correspondência entre moedas. Falsa.

MORGADIOS

(V. também CASAS SENHORIAIS E SENHORIOS)

MORTES

Cadáveres. Enterros e exéquias. "Estar a morrer" ou sacramentado. Infanticídios.

Suicídios: tentativas de.

(V. também TÚMULOS, JAZIGOS E SEPULTURAS)

MOSTEIROS, v. CONVENTOS, MOSTEIROS E CASAS PROFESSAS.

MOTINS, v. DESACATOS E MOTINS.

MÓVEIS

Arcas. Cadeiras. Caixas: de charão. Mesas.

(V. também COFRES, JÓIAS e METAIS E PEDRAS PRECIOSAS)

MULATOS

MULHERES

Abortos. Freiras, v. CLERO REGULAR. Freiras. Gravidez. Partos: parteiras (V. também

NASCIMENTOS, ORDENS MILITARES e TITULARES).

MÚSICA

Músicos: castrati. Ópera.

NÁPOLES

Cultura, vol. 21 | 2005

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Page 344: Livro e Iconografia

Vice-Rei.

(V. também DUAS SICÍLIAS)

NASCIMENTOS

(V. também MULHERES. Partos)

NATURALIZAÇÕES

(V. também DESNATURALIZAÇÕES)

NAVIOS

Escaleres. Estaleiros. Fragatas. Naufrágios.

(V. também FROTAS E COMBOIOS)

NEGROS

NOBREZA, v. CASAS SENHORIAIS, CORTE DE PORTUGAL, FILHAMENTOS e TITULARES.

NOTÁRIOS E TABELIÃES

NOTÍCIAS v. CORRESPONDÊNCIA; GAZETAS, FOLHETOS E NOTÍCIAS MANUSCRITAS e

RUMORES.

OBRAS

"Do Conde de Tarouca". Em caminhos. Em Santo Antão do Tojal. Em Santa Engrácia. Em

São Pedro de Alcântara. No Palácio Real ou da Ribeira. Projectos.

(V. também AQUEDUTO DAS ÁGUAS--LIVRES e MAFRA. Obras)

OFICIAIS e MINISTROS

Auditor geral. Chanceleres: da Índia; do Rio de Janeiro. Contadores: contador-mor.

Corregedores. Desembargadores. Escrivães. Fiscais: da Armada da Índia. Intendentes.

Juiz da Índia e Mina. Juízes conservadores: da nação espanhola; da nação inglesa. Juízes

das propriedades. Juízes do crime. Juízes do povo. Juízes das propriedades. Juízes de

fora. Meirinhos. Ouvidores. Procurador da Coroa. Procurador da Fazenda. Provedores.

Regedor. Superintendentes. Tesoureiros. Vedores: da Fazenda.

(V. também CONSELHOS / SISTEMA POLOSSINODAL)

OFÍCIOS-MORES DA CASA REAL Almotacé-mor. Armeiro-mor. Copeiro-mor. Estribeiro-

mor. Monteiro-mor. Mordomo-mor. Porteiro-mor. Trinchante. (V. também CORTE DE

PORTUGAL e GENTIS-HOMENS. Da Câmara Real)

ORATÓRIOS / ERMIDAS

Lisboa: Santo Amaro; Monte ou Monte Agudo, Nossa Senhora do.

ORDENANÇAS, V. MILITARES E ORDENANÇAS.

ORDENS MILITARES

Avis: comendadeiras (da Encarnação). Bens. Comendas: comendadores. Cristo: hábitos.

Santiago: comendadeiras (de Santos-o-Novo). São Roque. Juiz Geral.

(V. também CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL; MALTA e MERCÊS)

ORDENS RELIGIOSAS, v. CLERO REGULAR.

ÓRFÃOS

OURO, v. METAIS E PEDRAS PRECIOSAS.

PADROADOS

PALÁCIOS

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Page 345: Livro e Iconografia

Aljube. Anunciada. Bemposta. Casa da Pólvora, em Goa. Episcopal, de Évora. Episcopal

de Lisboa, v. Aljube. Lumiar. Real ou da Ribeira (V. também OBRAS. No Palácio Real ou

da Ribeira).

PANEGÍRICOS

PAZ

PEDRAS PRECIOSAS, v. METAIS E PEDRAS PRECIOSAS.

PEIXE

Bacalhau.

PELOURINHOS

Forcas.

PÉRSIA

Persas. Rei.

PESCA

Pescadores.

PIMENTA

PINTURA

PIRATARIA, v. CORSO E PIRATARIA.

POESIA

Poetas.

POLÓNIA

Grão-Duque da Lituânia. Polacos. Reis: Augusto II; Estanislau I. Relações internacionais.

PÓLVORA

PONTES

PORTOS

PRATA, v. METAIS E PEDRAS PRECIOSAS.

PRAZOS

PRECEDÊNCIAS

(V. também CORTE DE PORTUGAL e TRATAMENTOS)

PRESENTES

PRESÉPIOS

PRISÕES

Carcereiros. Limoeiro. Mordomo dos presos. Torre de Belém. Torre do Bugio. Torre

Velha.

(V. também JUSTIÇA e PALÁCIOS. Aljube)

PROCISSÕES

Lisboa: Cinzas; Corpo de Deus; Jesus [?]; Passos, Nosso Senhor dos; Ossos; Redenção.

Mafra: do Corpo de Deus.

PROCURAÇÕES

Procuradores.

PRÚSSIA

Princesa. Príncipe. Rei.

Cultura, vol. 21 | 2005

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Page 346: Livro e Iconografia

QUARESMA

(V. também PROCISSÕES. Lisboa: Cinzas)

QUEIJOS

QUINTAS

Aos Olivais. Da Bugalheira. Da Luz. Da Palhavã. Das Conchas. Das Duas Portas. Das Lapas.

De Alcântara. De Arroios. De Azeitão. De Belém. De Carnide. De Paço de Arcos. De

Pancas. De Santo António do Tojal. [De São João de Bem Casados.] De São José de

Ribamar. De Sete Rios. De Vialonga. Do Botol [?]. Do Campo Grande. Do Lumiar.

(V. também CASAS. De campo)

QUIXOTE, DOM

REI E FAMÍLIA REAL DE PORTUGAL

Afonso VI, Rei, Dom. Alexandre, Infante, Dom. António, Infante, Dom. Carlos, Infante,

Dom. Deslocações. Fernando, Rei, Dom. Francisca, Infanta, Dona. Francisco, Infante,

Dom. João II, Rei, Dom. João IV, Rei, Dom. João V, Rei, Dom: conferências; idas a Mafra;

saúde. José, [Arcebispo de Braga], Dom. José, Príncipe, Dom. Manuel, Infante, Dom.

Maria, Princesa da Beira, Dona; Maria I, Rainha, Dona. Maria Ana de Áustria, Rainha,

Dona. Mariana Vitória, Princesa, Dona. Maria Francisca de Sabóia, Rainha, Dona. Maria

Sofia, Rainha, Dona. Miguel, Infante, Dom. Pedro, Infante, Dom. Pedro II, Rei, Dom.

Sebastião, Rei, Dom.

(V. também CORTE DE PORTUGAL)

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Alianças. Negociações: Congresso de Soissons. Relações de Portugal: com a Espanha;

com a França; com a Inglaterra, com a Santa Sé. Tratados: de Madrid; de Sevilha; de

Viena (o 2°).

(V. também ESPANHA, ESTADOS GERAIS, FRANÇA, INGLATERRA, POLÓNIA, RÚSSIA e

SARDENHA)

RELÍQUIAS

RELÓGIOS

RENDAS OU RENDIMENTOS

Rendeiros.

RENÚNCIAS

RONDAS

ROUBOS E FURTOS

(V. também DESCAMINHOS)

RUMORES.

Da Europa. Desmentidos. Sobre casamentos / separações. Sobre nomeações.

RÚSSIA

Imperadores (ou tsares). Moscovitas. Relações internacionais.

SABÃO

SACRILÉGIOS, v. DESACATOS E MOTINS. Sacrilégios.

SAL

Marinhas.

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Page 347: Livro e Iconografia

SANTA SÉ

Bulas / breves. Corte. Legados a Latere. Papas: Benedito XIII; Clemente XII.

(V. também RELAÇÕES INTERNACIONAIS. Relações de Portugal: com a Santa Sé)

SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO DE PORTUGAL

Autos da Fé: listas; particulares; públicos. Censura de livros (V. também CENSURA).

Comissários. Conselho Geral do Santo Oficio, v. CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL.

Conselho Geral do Santo Ofício. Familiares. Inquisidores e deputados. Juízes do fisco.

Presos. Promotores. Relaxados.

(V. CRISTÃOS-NOVOS, ESPANHA. Santo Oficio da Inquisição, HERESIAS e JUDAÍSMO)

SANTOS, BEATOS E SANTIDADE

Cadáveres incorruptos. Imagens. Mártires.

(V. também VIRTUDES e FEITIÇARIAS)

SANTUÁRIOS, v. IGREJAS E SANTUÁRIOS

SARDENHA

Duque de Sabóia (V. também Reis: Carlos Emanuel III). Reis: Carlos Emanuel III; Victor

Amadeu II. Príncipes. Relações Internacionais.

SECRETARIA(S) DE ESTADO

Secretário(s): Marinhas e Domínios Ultramarinos; Negócios Estrangeiros e Guerra;

Negócios do Reino.

SECRETÁRIOS, v. CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL, MERCÊS e SECRETARIA(S) DE

ESTADO. SERMÕES

Pregadores.

SERTÕES

SISMOS E TERRAMOTOS

SISTEMA POLISSINODAL, v. CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL.

SORTES, v. JOGO.

TABACO

(V. também JUNTAS. Do Tabaco)

TABELIÃES, v. NOTÁRIOS E TABELIÃES

TABERNAS, v. ESTALAGENS, TABERNAS E CASAS DE PASTO.

TEATRO

Comédias. Pátio das Comédias.

TECIDOS, v. VESTUÁRIO E TECIDOS.

TENÇAS

TEOLOGIA

Teólogos.

TESTAMENTOS / TESTAMENTARIAS TITULARES

Arquiduquesa, v. ALEMANHA, Arquiduquesa. Barões: Albrecht; Ilha Grande, 2°; Ilha

Grande de Joanes, 3°; Tinti. Baronesas: Ilha Grande de Joanes. Condes: Albermale; Alva,

1º; Alvor, 2°; Anglesola; Arcos, 3°; Arcos, 5°; Assumar, 1°; Assumar, 2°; Atalaia, 6°;

Atouguia, 10º; Aveiras; Aveiras, 3°; Aveiras, 4°; Aveiras, 5º; Avintes, 1°; Avintes, 2°;

Avintes, 3°; Bobadela, 1°; Bonneval; Calheta, 7°; Canali [?]; Cantanhede, 6°; Castanheira,

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Page 348: Livro e Iconografia

6°; Castelo Melhor, 4°; Clavijo; Clermont; Coculim, 2°; Coculim, 3°; Daun ou Dhaun; Ega,

1°; Ells [?]; Ericeira, 2°; Ericeira, 3°; Ericeira, 4°; Ericeira, 5°; Galveias; Galveias, 1°;

Galveias, 2°; Galveias, 3°; Galveias, 4°; Ilha do Príncipe, 4°; Ilha do Príncipe, 5°;

Königsegg; Lavradio, 1°; Martinic ou Martinitz; Mercy; Miranda [del Castariar];

Monsanto, 10º; Montemar; Montijo; Óbidos, 2°; Óbidos, 3°; Oeiras, 1º; Pombeiro, 3°;

Pombeiro, 4º; Ponte, 3°; Povolide, 10; Povolide, 2°; Prado, 7°; Redondo, 12°; Ribeira

Grande, 3º; Ribeira Grande, 4º; Rio Grande, 1º; Sabugosa, 1°; Sandomil, 1°; Santiago, 2°;

Santiago, 3º; Santistebán del Puerto; Santo Estêvão [ou San Esteban de Gormaz]; São

Miguel, 1°; São Miguel, 3°; São Vicente, 4°; São Vicente, 5°; Sarzedas, 4°; Scheffenberg;

Schwarzenberg; Soure, 4°; Tarouca, 4°; Tarouca, 5°; Tendas; Unhão, 4°; Unhão, 5°;

Valadares, 2°; Valadares, 3º; Valadares, 5°; Vale de Reis: Vale de Reis, 2°; Vale de Reis, 3°;

Vale de Reis, 4°; Vale de Reis, 5°; Verità [?]; Vidigueira, 7°, v. 3° Marquês de Nisa; Vila

Flor, 3º; Vila Flor, 4°; Vila Nova de Portimão, 4°; Vila Nova de Portimão, 5°; Vila Verde,

4º; Vilar Marior, 3°, v. 2° Marquês de Alegrete; Vilar Maior, 4°, v. 3° Marquês de

Alegrete; Vilar Maior, 5°; Vimieiro, 2°; Vimeiro, 3º; Vimioso, 8°, v. 2° Marquês de

Valença; Vimioso, 9°. Conde-Barão de Alvito, 3°. Condessas: Alva; Alvito; Alvor; Arcos;

Assumar; Atalaia; Atouguia; Aveiras; Avintes; Breyner; Calheta; Castelo Melhor;

Coculim; Ericeira; Galveias; Ilha do Príncipe; Lavradio; Óbidos; Pombeiro; Povolide;

Prado; Redondo; Ribeira Grande; Santiago; São Lourenço; São Miguel; São Vicente;

Sarzedas; Scheffenberg; Soure; Taboada; Tarouca; Unhão; Valadares;Vale de Reis; Vila

Flor; Vila Nova de Portimão; Vilar Maior; Vimieiro; Vimioso. Duques: Albuquerque;

Alincourt; Arcos; Atri; Aveiro, 7°; Banhos, v. Aveiro, 7º; Baviera (V. também ALEMANHA.

Eleitores); Béjar; Bedfort; Bourbon; Bragança; Brunswick-Wolfenbüttel; Cadaval, 1°;

Cadaval, 2°; Cadaval, 3°; Florença; Giovinazzo; Infantado; Königsegg; Lafões, 1°; Lafões,

2°; Liria; Lorena; Maine; Modena; Montellano; Nájera; Newcastle; Noailles; Orléans;

Orsana; Osuna; Parma; Retz; Ripperda; Sabóia, v. SARDENHA. Duque de Sabóia; San Blas;

Saint-Aignan; Saxónia, v. ALEMANHA. Eleitores; Somerset; Tallard; Tursi; Uceda;

Veragua; Villeroy. Duquesas: Arcos; Cadaval; Infantado; Lafões; Liria; Ormond; Osuna;

Parma; Picquigny; Populi; São Pedro. Grão-Duque. Marqueses: Abrantes, 1°; Abrantes,

2°; Alegrete, 2°; Alegrete, 3°; Angeja, 2°; Los Balbases; Beuzeville; Cafare [?];

Campoflorido; Capechelatro; Cascais, 3°; Castellar; Cuéllar; Fontes, 4°, e Abrantes, 2°;

Fronteira, 3°; Gouveia, 3°; Gouveia, 4°; Grimaldo; Louriçal, 1°; La Luzerne, v. Beuzeville;

Malespina; Marialva, 3°; Minas, 1°; Minas, 3°; Minas, 4°; Montebelo, 2°; Montemár;

Monti; Nisa: Nisa, 3°; La Paz; Pombal, 1°; Ravara; Santa Cruz [de Marcenado];

Tabuérniga; Távora, 3°; Valença, 2°; Vauban; Villadarias. Marquesas: Abrantes; Alegrete;

Arronches; Cascais; Fontes; Fronteira; Marialva; Niza; Santa Cruz; Távora; Unhão;

Valença. Princesas: Mecklenburgo; Nassau-Siegen; Parma. Príncipes: Baviera (V.

também ALEMANHA. Eleitores); Carpegna; Cellamare; Conty; Lorena, v. Duques: Lorena;

Mortagne; Orange-Nassau, v. ESTADOS GERAIS; Pio de Sabóia; Pons, v. Mortagne;

Rohan; Sabóia; Saxónia; Schwarzenberg, v. Condes. Viscondes: Asseca; Barbacena, 4°;

Ponte de Lima, v. Vila Nova de Cerveira; Del Puerto (V. também Marqueses. Santa Cruz

[de Marcenado]); Torrington; Vila Nova de Cerveira, 10°; Vila Nova de Cerveira, 11°; Vila

Nova de Cerveira, 12°. Viscondessas: Barbacena; Vila Nova de Cerveira.

(V. também CASAS SENHORIAIS, MORGADIOS, NOBREZA e OFÍCIOS--MORES DA CASA

REAL)

TOMADIAS

(V. também CONTRABANDO)

Cultura, vol. 21 | 2005

347

Page 349: Livro e Iconografia

TORRES

Belém. Bugio. São Filipe. Velha (ou de São Sebastião da Caparica).

(V. também PRISÕES)

TOSCANA

Grão-Duque.

TOUROS E TOURADAS

TRATAMENTOS

(V. também CORTE DE PORTUGAL e PRECEDÊNCIAS)

TRIBUNAIS, v. CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL.

TRIBUTOS, v. IMPOSTOS E TRIBUTOS.

TÚMULOS, JAZIGOS E SEPULTURAS

TURQUIA

O Grão Turco. Turcos.

VESTUÁRIO E TECIDOS

Adereços: leques; luvas.

(V. também FÁBRICAS. De Sedas)

VICE-REIS e GOVERNADORES

Angola. Brasil: Maranhão; Minas Gerais; Pernambuco; Paraíba; Rio de Janeiro; São

Paulo. Ilha da Madeira. Ilha de S. Miguel. Índia: Mazagão; Moçambique. Queixas.

VINHAS E VINHO

VIRTUDES

VISITAÇÕES

Visitadores.

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NOTAS

1. Para um último quadro-geral das lições conhecidas, v. Tiago C. P. dos Reis Miranda,

"Historiografia e tradição crítica: novela exemplar dos jornais manuscritos do século XVIII", in:

Rachel Soihet, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Silva Gouvêa (orgs.), Cultura

Política: Interfaces entre História Social, História Política e Ensino de História, Rio de Janeiro, Fundação

de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, p. 160.

2. V. Manuela Santos (org. e sel.), Indexação. Terminologia e controlo de autoridades (Manual), Lisboa,

Biblioteca Nacional, 2003, e Maria Teresa Pinto Mendes e Maria da Graça Simões, "Indexação por

assuntos. Princípios gerais e normas", Páginas a&b, N° 8, Lisboa, Gabinete de Estudos a&b, 2001,

pp. 7-74.

Cultura, vol. 21 | 2005

350

Page 352: Livro e Iconografia

3. Sobre os conceitos de "exaustividade", "especificidade" e "especificidade relativa", no domínio

das Ciências Documentais, v. Rossella Caffo, Analisi e indicizzazione dei documenti. L’acesso per

soggetto dall’informazione, [Milano], Editrice Bibliografica, 1988, pp. 27-35.

4. Definição que se ajusta, em termos gerais, ao primeiro dos quatro procedimentos possíveis

para a escolha e selecção de termos indexáveis, de acordo F. W. Lancaster. V. Rossella Caffo, Op.

cit., p. 75.

RESUMOS

A edição de um maiores testemunhos narrativos do reinado de D. João V impõe a observância de

procedimentos de transcrição, anotação e indexação relativamente complexos. Tendo por meta

consolidar o percurso dos últimos anos e considerando a necessidade de ajustar o trabalho em

equipa, procura-se aqui proceder a um exercício de pormenorização de critérios, com base na

estrutura dos volumes já publicados e num novo contacto com as normas disponíveis sobre a

recuperação de informações bibliográficas e documentais.

Editing one of the largest narrative reports from the reign of D. João V demands the practice of

fairly complex transcription, annotation and indexing procedures. To firm the track that has

been opened in the last few years, and due to the need of making adjustments on team working

rules, this is an essay of establishing a list of detailed criteria, built upon the structure observed

on the volumes already printed, and bearing in mind international normative principles of

accessing documentary and bibliographical information.

ÍNDICE

Keywords: Gazettes, news, scribal news, 18th century, King João V, edition

Palavras-chave: Gazetas, informação, séc. XVIII, D. João V, edição

AUTORES

TIAGO C. P. DOS REIS MIRANDA

Doutor em História pela Universidade de São Paulo, Brasil (1998). Investigador do CHC UNL. Chefe

de Gabinete da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses

(1999-2002). Professor Visitante da Cátedra Jaime Cortesão (2004). Colabora no projecto "Chefes

de missões portuguesas no exterior: 1640-2000", do Instituto Diplomático do Ministério dos

Negócios Estrangeiros. Publicou, com João Luís Lisboa e Fernanda Olival, Gazetas Manuscritas da

Biblioteca Pública de Évora, 2 vols. 2002 e 2005.

FERNANDA OLIVAL

Professora na Universidade de Évora, onde se doutorou (2000). Investigadora do Centro

Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da mesma Universidade. Investiga

temáticas de história político-institucional, história da produção documental e da circulação da

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351

Page 353: Livro e Iconografia

informação. Autora, entre outros, de As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e

venalidade em Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar, 2001 e, com Tiago C.P. dos Reis Miranda e João

Luís Lisboa, Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora, 2 vols. 2002 e 2005.

JOÃO LUÍS LISBOA

Professor na FCSH, UNL. Director do CHC UNL onde é responsável pelo projecto "Livro e leitura".

Publicou, entre outros trabalhos, Teoria da história em Francisco Manuel de Melo (com Teresa

Amado) [1983], Ciência e política. Ler nos finais do Antigo Regime (1991), Gazetas. A informação política

nos .finais do Antigo Regime (coord.) (2002) e, com Tiago C.P. dos Reis Miranda e Fernanda Olival,

Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora, 2 vols., 2002 e 2005.

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352

Page 354: Livro e Iconografia

Recensões

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353

Page 355: Livro e Iconografia

Dictionnaire Encyclopédique du Livre. Volumes 1 e II: A-D; E-M. Sous ladirection de Pascal Fouché, DanielPéchoin, Philippe Schuwer.Responsabilité scientifique de PascalFouché, Jean-Dominique Mellot,Alain Nave, Martine Poulain,Philippe Schuwer. Préface de Henri-Jean Martin. Paris: Éditions duCercle de la Librairie, 2002; 2005,XXXIII-900 e XI-1074 pp.José Augusto dos Santos Alves

REFERÊNCIA

Pascal Fouché, Daniel Péchoin, Philippe Schuver (dirs.) ; Pascal Fouché, Jean-Dominique

Mellot, Alain Nave, Martine Poulain, Philippe Schuwer (resp. scient.); Henri-Jean Martin

(pref.), Dictionnaire Encyclopédique du Livre. Volumes 1 e II: A-D; E-M. Paris: Éditions

du Cercle de la Librairie, XXXIII-900; XI-1074 pp

"Do livro como objecto de paixão" poderia ser perfeitamente o subtítulo deste

Dictionnaire Encyclopédique du Livre. Domínio recente e em pleno desenvolvimento,

Cultura, vol. 21 | 2005

354

Page 356: Livro e Iconografia

numa altura em que, impropriamente, se fala do livro electrónico, a História do Livro

tem nesta obra colectiva uma irrecusável referência para quem, especialistas,

amadores, bibliófilos, professores, estudantes ou grande público, deseje estar a par do

estado dos conhecimentos nesta área do saber.

Na linha pioneira de Henri-Jean Martin, Roger Chartier e outros, o Dictionnaire, longe de

se fechar nos limites do "héxagono" e nas suas fronteiras tradicionais, inova ao abrir-se

à História do Livro de outros países, ganhando em praticar a mistura e as articulações,

ao mesmo tempo que cultiva as interferências e privilegia as circulações. Aposta

transdisciplinar, a obra "viaja" da história aos direitos de autor, das bibliotecas à edição

contemporânea, da arte de fabricar à leitura, na essência, do estatuto de incontestável

produtor de conhecimentos, nas origens do homem moderno, à condição de obra de

arte.

O prefácio de Henri-Jean Martin, ao propor-nos o cruzamento de três noções

(dicionário, enciclopédia e livro), dá-nos, ao mesmo tempo, uma ideia da dimensão de

uma obra colectiva em três volumes, com o primeiro, de A-D, publicado em 2002 e o

segundo, de E-M, divulgado em 2005. A perspectiva do estado dos saberes, fortemente

estimulante nesta área, coloca-nos perante um mundo desconhecido de inovadoras

abordagens, numa época em que, como se disse, a forma tradicional do livro começa a

ser posta em questão.

Obra enorme, exuberante, e minuciosamente recorrente, o Dictionnaire é, em

derradeira instância, uma produção sobre a originalidade do homem, da cultura e da

linguagem humana. Janela sobre os séculos, os seus obreiros contam-nos o tempo dos

livros e o tempo das "novas tecnologias".

A notável e cuidadosa abordagem dos temas, que deixa ver um frente-a-frente dos

autores (algumas centenas) com as temáticas, que com propriedade comunicam, faz

excelente casamento com a riqueza das ilustrações, com o objecto de arte, tornando a

matéria, por vezes austera, reservada a especialistas, numa proposta de "visita"

acolhedora aos leitores menos familiarizados com estas temáticas.

Obra de grande fôlego, em vários andamentos, o Dictionnaire coloca à disposição dos

estudiosos e especialistas uma variada grelha temática, na qual a direcção editorial

(Pascal Fouché, Daniel Péchoin e Philippe Schuwer) e a direcção científica (Jean-

Dominique Mellot, Martine Poulain, Alain Nave, Pascal Fouché e Philippe Schuwer1),

feitas com mão de mestre, tiveram seguramente uma importante e fundamental

actividade na organização dos assuntos, não deixando qualquer pormenor ao acaso,

numa evidente demonstração de quem domina os temas com competência,

empenhamento e "paixão".

Uma observação final: o elevado preço dos dois volumes (178 e 195 €) torna a obra

inacessível a muitas bolsas. Espera-se, apesar da "contenção" financeira em que

vivemos, que a obra fique consultável nas principais Bibliotecas do país, não

obstaculizando, assim, a indispensabilidade de consulta de temáticas de dimensão

universalista para quem deseje estar a par dos últimos desenvolvimentos no sector de

ponta da História do Livro.

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355

Page 357: Livro e Iconografia

NOTAS

1. "Histoire du livre et de l'édition" e colaboração em "Arts et industries graphiques" (Jean-

Dominique Mellot); "Bibliothéconomie et lecture" (Martine Poulain); "Arts et industries

graphiques" (Alain Nave); "Édition contemporaine" (Pascal Fouché; Philippe Schuwer).

AUTORES

JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS ALVES

Doutor e Agregado em História e Teoria das Ideias pela FCSH UNL. Investigador do CHC UNL.

Autor de Ideologia e Política na Imprensa do Exílio: O Portuguez - Londres, 1814-1826 (1992); A opinião

pública em Macau: a imprensa macaense na terceira e quarta décadas do século XIX (2000); A opinião

pública em Portugal (1780-1820) (2000); Comunicação e História das Ideias: A Génese do "Editorial Político"

(2004), O Poder da Comunicação (2005).

Cultura, vol. 21 | 2005

356

Page 358: Livro e Iconografia

José Gil, Portugal, Hoje: o Medo deExistir, Relógio d'Água, Lisboa, 2004Carlos Leone

REFERÊNCIA

José Gil, Portugal, Hoje: o Medo de Existir, Relógio d'Água, Lisboa

Um aspecto poucas vezes (se é que alguma vez) referido a propósito deste livro de José

Gil é o modo como sintetiza tantos aspectos da sua obra anterior. O que é tanto mais

interessante quanto o faz recorrendo quer a noções centrais dela como a aspectos quase

desconhecidos, e isto através de uma reflexão sobre mentalidades que não é muito

frequente destacar-se nos seus trabalhos. Mais ainda do que «a intensidade que uma

relação com este país supõe» (p. 142), que José Gil refere ao terminar, este traço confere

à leitura de Portugal, Hoje um aspecto como que testamental (termo prematuro, quando

a editora anuncia um novo livro seu para breve) relativamente à sua «Obra». É, pelo

menos para os seus leitores habituais, ainda um outro elemento próximo da indiscrição,

a somar a vários outros pequenos apontamentos que, ao terminar, Gil quis diferenciar

de simples estados de alma.

Desde o surgir deste livro no final de 2004, e por motivos que excediam a curiosidade

relativa às páginas (bem poucas, diga-se) sobre a conjuntura política nacional de então,

essa relação com o trabalho anterior de José Gil era fácil de notar. O tema do medo que

o título expõe não é novo no seu trabalho: ele era central já em Salazar: a Retórica da

Invisibilidade (Rd’A, 1995) e surgira também em várias outras ocasiões, das quais será

conveniente relembrar um artigo publicado em 1992, na Revista do Expresso, «A pulsão e

a escala». Conveniente, a nosso ver, por, apesar de nessa altura não ser evidente, era já

para o tema do medo que a argumentação do artigo conduzia (lembre-se que o próprio

artigo surgia como peça polémica, a propósito da tentativa de silenciar um crítico do

jornal, António Guerreiro). Em vários capítulos de Portugal, Hoje encontramos passos

que retomam e desenvolvem a argumentação desse artigo de 1992. Talvez mais ainda

do que sucede com o livro de 1995 sobre a retórica salazarista, e com outros

Cultura, vol. 21 | 2005

357

Page 359: Livro e Iconografia

posteriores, dos quais também José Gil recupera conceitos, é a esse ensaio publicado

num tempo em que à «Imprensa» ainda podia servir o termo «de referência» que vai

buscar muita da sua originalidade, ainda que desenvolvendo-o de modos então

imprevisíveis.

(Neste ponto, uma declaração de interesses impõe-se: já escrevi sobre esse artigo de

José Gil, em Dez Criticas, Colibri, Lisboa, 1999, cf. pp. 119-134. E, depois disso, recuperei o

artigo e também Salazar: a retórica... num capítulo da minha dissertação de

doutoramento, capítulo todo ele dedicado ao tema do medo no século XX português. A

dissertação foi defendida apenas meses antes da publicação deste livro, que muito

gostaria de poder ter citado, mesmo que para discordar dele.)

Sobre o sucesso público e a coincidência da aparição num «ranking» dos pensadores

actuais surgido em França (logo quando neste livro se critica a ideia dos rankings como

modelo de avaliação generalizável), houve sageza do editor ao lançar no mercado este

livro quando o tema do medo se havia instalado no «espaço mediático» (para nos

servirmos de um distinguo em que José Gil insiste e ao qual voltaremos) a propósito de

sucessivos problemas entre o poder Executivo e os meios de comunicação. Mas não só: o

que este sucesso significa, acima de tudo, é a capacidade de entender e pensar a

realidade presente no léxico próprio que Gil foi desenvolvendo, obra após obra, em

trabalhos aparentemente muito distantes deste tema. Que a realidade social e política

não está fora do trabalho anterior de José Gil sabia-se desde há muito (tanto nos seus

projectos individuais como em contributos para outros colectivos, como a Enciclopédia

Einaudi, por exemplo). Mas só agora, e não em colaborações na Imprensa (no Público na

década de 1990 ou, actualmente, no Courrier Internacional), surgiu um «caso de estudo»

no qual José Gil aplica metodicamente uma análise que recorre ao conjunto dos seus

próprios termos. É preciso ter isto presente para que não suceda, como aconteceu num

dos raros artigos dissonantes face à aclamação geral ao livro (surgido no Público e

assinado por um professor da Faculdade de Economia da UNL), vermos na

argumentação desenvolvida apenas mais um caso do mesmo mal que é denunciado. Tal

leitura é possível, em particular nas referências de Gil à Europa (isto é, à União

Europeia) e ao nosso sistema democrático representativo, bem como na ênfase no

salazarismo como responsável directo pelo medo no Portugal de hoje. Mas, não só todas

essas referências são matizadas (num equilíbrio precário que leva o próprio autor a

reconhecer regularmente que há sempre muito que fica por discutir), como essa leitura

do livro contra o autor, digamos assim, só é possível se – como parece ter sido o caso

desse artigo – ignorarmos o trabalho conceptual envolvido na argumentação. Mais do

que «história das mentalidades», como Gil sugere, parece-nos ser um caso de «Filosofia

da Cultura», além de que a oposição, frequente, entre «medo» e «responsabilidade»

evoca irresistivelmente Max Weber.

Enquanto reflexão filosófica sobre a cultura portuguesa actual, então, ao que se assiste

é a uma permanente tentativa de sistematização de psicopatologias da vida nacional

quotidiana: o medo, aliás duplo medo (dado o fenómeno de «duplo esmagamento»); a

inveja e o ressentimento; a irresponsabilidade individual; o colectivo desrespeito da lei,

quer pela pequena tirania quer pela alegre inconsciência; a demissão cívica geral.

Sistematizar estes males enquanto males nacionais leva por várias vezes José Gil a

recorrer ao «evenemencial» e ao anedótico, que não podem colher como tese nem como

prova num esforço de sistematização, claro, mas que deslocam da generalização

máxima (como males humanos) para a generalização sistematizável: males recorrentes

Cultura, vol. 21 | 2005

358

Page 360: Livro e Iconografia

numa cultura como a portuguesa, fechada até ao fim da modernidade e aberta, agora,

com um arcaísmo pós-moderno (bela fórmula, próxima de autores como Boaventura

Sousa Santos e Manuel Villaverde Cabral, e reminiscente de «A pulsão e a escala»).

Destacando o caso português da modernidade europeia (um dos matizes face à Europa),

Gil não obstante serve-se de um aparato teórico desenvolvido a propósito da

Modernidade para estudar o fenómeno arcaico que hoje Portugal representa em tantos

aspectos da pós-modernidade geral. De Arendt a Negri e Hardt, passando pelas

referências usuais nos seus trabalhos a autores de formação psicanalítica e, sobretudo,

Deleuze e Foucault (este «e» sendo aliás bastante problemático, mas isso seria outra

questão). Os críticos do «pensamento 68» e do anti-humanismo teriam aqui muito com

que se entreter. Sucede que, justamente ao articular sobre as realidades paroquiais uma

análise sistematizante (seja ela histórica ou filosófica, agora isso é o menos), revela

sobretudo o escasso conhecimento de José Gil dessa realidade e dos estudos já

elaborados a seu respeito.

É notável como algumas das teses mais fortes deste ensaio lampejam para de imediato

errarem em afirmações genéricas reveladoras de simples desconhecimento. Assim

sucede nas repetidas notas sobre a falta de estudos da realidade portuguesa, e o recurso

a outros modelos para suprir essa falta, como no caso do capítulo «Trauma, terror,

medo»; aí se ignora, para dar apenas um exemplo, Classe, status e poder, de Hermínio

Martins (ICS, Lisboa, 1998), obra que seria muito útil para a análise empreendida por

José Gil (e de um autor que Gil aliás conhece). Como em qualquer trabalho deste tipo, as

referências bibliográficas seriam em qualquer caso inesgotáveis; não se trata de

desinteresse pelo trabalho de outros mas de um trabalho de argumentação que recorre

a umas fontes e não a outras. O problema, contudo, está em supor um conjunto de teses

muito vastas a respeito da cultura portuguesa partindo do princípio de que faltam

estudos que de facto existem. Em rigor, este mal é também uma das causas daquela

faceta sintetizante que Portugal, Hoje encerra, pois permite recuperar materiais de tipo

antropológico e etnográfico, sobre representações do corpo no Portugal efectivamente

arcaico, anteriores ainda a trabalhos sobre o corpo (e a dança) bem mais recentes. O

problema está em, ao fazê-lo, descurar toda a reflexão das ciências sociais e humanas a

respeito da realidade portuguesa (num caso, cf. p. 126, apresenta-se mesmo a «velha

sociedade portuguesa» como solidária, associativa e com espírito de entreajuda, bem o

oposto da mediocridade organizacional de sempre, da qual o corporativismo se fez.

Sintomaticamente, uma crítica que, em conversa pessoal, ouvi ao livro, vinda de um

português radicado nos EUA, foi a ausência da questão da confiança nas relações sociais

de tipo institucional).

O exemplo mais gritante é José Gil escrever todo o seu ensaio quase sem referências à

presença do tema «medo» no pensamento português. Ora, o tema é tudo menos novo, é

até um veio central no século XX, até antes do salazarismo. Mesmo quando, em alguns

momentos, se sente um eco de autores portugueses (o Eduardo Lourenço de O Labirinto

da Saudade, por exemplo), o preço de ignorar a presença desse tema no pensamento

português contemporâneo é cair na ambígua relação com a União Europeia que

atravessa todo este livro. Pois, justamente, foi a Europa (enquanto ideal também ele

sujeito a diversas perspectivas ao longo do século XX) que serviu de norte ao

pensamento português contemporâneo quando este quis cortar com o recurso ao medo

(para falar como José Régio). Ignorar isto é ficar preso a fórmulas como «linhas de fuga

que em certas zonas da cultura e pensamento já se desenham» (p. 142). Pelo contrário:

já se desenharam, há décadas, e foi por esse desenho se ter imposto socialmente que se

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Page 361: Livro e Iconografia

deu o colapso do Estado Novo, e não o inverso, como se pretende ao apresentar o 25 de

Abril de 1974 como um momento mágico do qual ficámos, afinal, aquém. Essa linha de

fuga foi a Europa moderna e o seu sucesso social só se institucionalizou com a adesão à

então CEE, como Gil também reconhece, pese embora os arcaísmos bem reais (e bem

visados por Gil) que permanecem.

Outros exemplos, menos abrangentes, deste distanciamento do autor face ao estudo da

realidade social portuguesa: o recurso à metáfora da doença para explicar os

fenómenos que aborda (medo, inveja, etc.), originando uma profusão de viroses,

cancros, etc., que traz à memória o conselho de Susan Sontag para evitarmos ver na

doença um castigo. Ou a suposição de um mandarinato que vive em circuito fechado,

composto por sujeitos dotados de «autoridade invisível» como economistas, sociólogos,

catedráticos (cf. p. 30; o «catedrático» diferenciado dos outros é curioso, ainda para

mais vindo de um catedrático que honra a Universidade, como é o caso), mas que

permanece sempre por nomear (até ao último capítulo, onde há de facto alguma

nomeação), como se a denúncia genérica não fosse uma falsa maneira de «dar a cara»

no «espaço mediático». E não «espaço público», de facto.

A ênfase de José Gil, quando discute os meios de comunicação social, na televisão não é

deslocada. A televisão, hoje, e não obstante o crescimento da influência da internet

(também notado por Gil), permanece como matriz do modelo dominante de

comunicação social, baseado em imagens e velocidade. Por isso mesmo, o espaço dos

media, suicidariamente reduzido a um modelo (televisivo) cuja lógica imagética é fatal

para órgãos nos quais a palavra e a escrita são imprescindíveis (a Imprensa), é cada vez

mais um espaço mediático e menos um espaço público. Não apenas pelo seu

autofechamento (fenómeno também real mas não suficiente) mas sobretudo pela sua

natureza contrária à vida pública, a qual está ainda antes da publicidade que rege o

espaço público moderno. Algumas das melhores páginas deste ensaio encontram-se,

sem surpresa, na descrição dos processos sociais característicos da vida de uma obra

num espaço público moderno (como professor de Filosofia Moderna José Gil conhece

bem o tema); e, em contraste, o «espaço mediático» é um espaço dos «media» para

autoconsumo, possível pela sua descaracterização em função do modelo imagético

imposto pela lógica televisiva.

Registar apenas o sucesso deste livro no espaço mediático e, através dele, entre o

«grande público», seria incorrer num de dois equívocos. Ou imaginar que o sucesso do

livro significa a «reforma das mentalidades» há tanto esperada (e para sempre por

verificar até se mudarem práticas...), o que seria no mínimo ingénuo, ou imaginar que o

seu sucesso resulta da sua inocuidade e da alienação geral, o que seria uma leitura

demasiado literal de algumas das suas teses. Entre um equívoco e outro, Portugal, Hoje é

já um livro cujo sucesso obscurece a Obra anterior que o possibilitou e sem a qual ele é

muito menos consequente do que pode e merece ser. E assim José Gil permanecerá

estrangeirado, «compatriota exilado, pois, no seu próprio país.» (p. 28). O que não é a

vida.

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Page 362: Livro e Iconografia

Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, As Farpas, coord. Maria FilomenaMónica, Principia, S. João do Estoril,2004.Carlos Leone

REFERÊNCIA

Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, As Farpas, coord. Maria Filomena Mónica, Principia,

S. João do Estoril.

1 Um pouco como sucedeu com Portugal, Hoje de José Gil, esta edição de As Farpas surgiu

num contexto do espaço mediático português muito marcado por um momentâneo

extremar das suas características mais venais, o que, se teve algum proveito em termos

de vendas, contribuiu também para que a recepção imediata desta edição reproduzisse

acriticamente os tropos e os topos do costume sobre Eça (Ramalho é como se nem

estivesse lá...). Sem lamentação nem indignação, não custa compreender que, além das

causas naturais para essa recepção imediata, que sempre se fariam sentir (preguiça,

prosápia, etc.), uma vez dissolvido o contexto de Portugal no final de 2004 esta edição

de As Farpas merece ser criticada.

2 Desde logo pela sua qualidade intrínseca de livro, esteticamente e cientificamente. Fiel

a uma imagem original e tão manuseável quanto é possível ser um volume de quase 650

páginas, em termos estéticos segue e melhora a edição de 2003 de Eça Jornalista (também

na Principia). Também a continuada coordenação da edição por Maria Filomena Mónica

mantém uniformidade nos critérios gerais do trabalho de recolha da colaboração de Eça

na Imprensa regular (trabalho de várias entidades por ocasião do centenário da sua

morte), e se isso limita estas Farpas aos anos de 1871 e 1872, o volume contém ainda

muito mais material de interesse: além de uma «Introdução» sóbria e útil (por M. F.

Mónica), toda uma série de elementos de apoio ao leitor não especializado (cronologia,

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Page 363: Livro e Iconografia

tabela onomástica e glossário, sobretudo); e, mais original do que tudo o resto, o.fac-

simile de Les Guêpes, de Alphonse Karr, modelo seguido por Eça e Ramalho.

3 Quem comparar o modelo e a sua versão portuguesa, como de resto o fez Eça (segundo a

descrição de M. F. Mónica da génese de As Farpas), fica com uma boa medida das limita

ções da empresa de Eça e Ramalho. Que essas limitações sejam hoje ainda mais sensíveis

é, aliás, um bom sinal — pelo menos em alguns aspectos estamos mais próximos do

original do que da sua versão aportuguesada. E isto porque o original era, apesar do seu

estilo satírico, essencialmente tradicional, um produto de uma sociedade moderna, da

dinâmica crítica do espaço público em que as «liberdades dos modernos», mau grado

todas as convulsões, eram reais. Já a «ironia» de Eça e Ramalho está aqui bem visível em

todo o seu curto manancial de recursos (em tempos devidamente comentado pelo Eng°.

Álvaro de Campos, no que a Eça diz respeito — e justamente comparando-o com um

autor francês...). De facto, se comparada com a norma portuguesa de então, a prosa de

Eça e Ramalho distingue-se de quase tudo o resto pela sua superioridade; mas só se nos

limitarmos a isso mesmo, a um sucesso de escândalo em contexto pré-moderno. (Sobre

o possível significado disso relativamente ao seu actual sucesso não curamos aqui.)

4 No contexto de Portugal, século XIX, são ainda hoje legíveis muitas destas páginas.

Contexto marginal ao surgir das ciências sociais modernas, como aliás tanto Eça como

Ramalho bem atestam (de diferentes modos) nas suas Obras individuais, contexto de

crise nacional como hoje nem se sabe o que é (e, não por acaso, contexto de isolamento

face à Europa moderna), contexto de dualidade social aparentemente insuperável.

Escrevendo dentro desse contexto, por mais que escrevessem contra ele numa crítica

apenas aparentemente distanciada, polémicas como as que se repetem com Pinheiro

Chagas ainda são leitura agradável e instrutiva. Menos evidente para o leitor entusiasta

serão talvez páginas como as escritas a respeito da morte de Rebelo da Silva (para dar

apenas um exemplo possível), bem esclarecedoras da tardia pré-modernidade do país

que as tornava possíveis, como já possibilitara a grandeza do próprio Rebelo da Silva. O

louvor desmedido a um autor, e sobretudo a um crítico, meritório mas tão limitado

como Rebelo da Silva (leiam-se os volumes das suas Apreciações Literárias), pode bem

servir de indicador das afinidades afinal demasiado estreitas com aquele mesmo

Portugal que pretendiam criticar.

5 Relendo As Farpas, não espanta que não tenha sido só Pessoa a contestar os méritos

ainda hoje atribuídos quase sem reservas a Eça e, de um modo geral, à Geração de 70.

Muito menos surpreende que tal contestação, ocorrida no século XX, se diferencie do

simples nacionalismo linguístico que reprovara a Eça o estilo afrancesado, e que,

congregando autores tão díspares como sergianos e neo-realistas, vise a inconsequência

dos «Vencidos da Vida», salientando de várias perspectivas a estreiteza metodológica

(ou científica) da sua análise, descrição e tentativa de mudança de Portugal. Lendo As

Farpas numa boa edição como esta, mais notório se torna que Portugal só se tornou

contemporâneo um século depois de Eça e Ramalho terem cessado a pareceria nesta

alegre campanha. Alegre e falhada, hoje algures entre entertenimento e documento.

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Page 364: Livro e Iconografia

Robert Darnton, George Washington'sFalse Teeth. An Unconventional Guideto the Eighteenth Century, NovaIorque/Londres, W. W. Norton,2003, 208 pp.João Pedro Rosa Ferreira

REFERÊNCIA

Robert Darnton, George Washington's False Teeth. An Unconventional Guide to the

Eighteenth Century, Nova Iorque/Londres, W. W. Norton, 208 pp.

1 O título e o pós-título advertem logo à partida o leitor de que está perante um livro

portador de alguma dose de provocação. Em português poderíamos traduzi-lo por Os

Dentes Postiços de George Washington. Um Guia Não convencional do Século XVIII.1 Trata-se de

um conjunto de oito ensaios sobre temas de história das ideias e das mentalidades

setecentistas, a que o autor tem dedicado em exclusivo a sua já longa carreira de

investigador. O objectivo é ao mesmo tempo simples e ambicioso - "abrir linhas de

comunicação com o século XVIII e, ao segui-las até às fontes, compreender o século

'como ele realmente foi', em toda a sua estranheza" (p. xv).

2 Na esteira do título, pode dizer-se que também Robert Darnton é um historiador pouco

convencional, pelo tom irreverente da escrita e pela ironia fina com que "tempera" os

seus trabalhos - quanto ao conteúdo, o conjunto da sua obra assenta numa investigação

original, sustentada por uma sólida erudição que lhe granjeou prestígio internacional.

Nascido em 1939, em Nova Iorque, Darnton estudou na Universidade de Harvard, onde

obteve uma Bolsa Rhodes que lhe permitiu fazer o doutoramento em Oxford, em 1964.

Regressado aos Estados Unidos, trabalhou como jornalista no New York Times e ensinou

nas universidades de Harvard, Stanford e Princeton, além de leccionar sucessivos

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Page 365: Livro e Iconografia

cursos na Europa (Instituto de Altos Estudos, na Holanda; Collège de France; Oxford e

Warwick, em Inglaterra). Foi presidente da American Historical Association e da

Sociedade Internacional de Estudos do Século XVIII. Actualmente, é titular da cátedra

Shelby Collum Davis de História da Europa na Universidade de Princeton.

3 Herdeiro intelectual da escola dos Annales, Robert Darnton reconhece igualmente no

seu trabalho a grande influência da nova história do livro e da leitura, particularmente

os trabalhos de Roger Chartier. Como resultado de 25 anos de "imersão" nos arquivos

da Société Typographique de Nêuchatel, na Suíça, onde foram impressos muitos dos

livros marcantes da época das Luzes, Darnton logrou alcançar uma nova perspectiva

sobre as décadas finais do Antigo Regime. O conjunto da sua obra permite-nos

acompanhar a circulação das ideias na sociedade francesa a partir do estudo da

produção, venda, distribuição e leitura de livros, gazetas, pasquins e folhetos. O seu

objectivo como historiador é, conforme afirmou numa entrevista, "mostrar não só o

que as pessoas liam, mas também como pensavam, como construíam o seu mundo,

como lhe davam significado e lhe infundiam emoções". É autor de dezenas de artigos

científicos e de mais de uma dúzia de livros, entre os quais Mesmerism and the End of the

Enlightenment in France, Cambridge (Massachusetts), Harvard University Press, 1968; The

Literary Underground of the Old Regime, Cambridge (Massachusetts), Harvard University

Press, 1982, traduzido para francês como Bohème littéraire et révolution. Le monde des livres

au XVIIIe siècle, 1983; The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History,

Nova Iorque, Basic Books, 1984 (edição brasileira: O Grande Massacre de Gatos e outros

episódios da história cultural francesa, Rio de Janeiro, Graal, 1986); Edition et sédition.

L’univers de la littérature clandestine au XVIIIe siècle, Paris, Gallimard, 1991; e The Forbidden

Best-Sellers of Prerevolutionary France, W. W. Norton, 1995.

4 O vasto saber acumulado – e partilhado – por Robert Darnton permite-lhe partir para

este seu livro mais recente com uma certeza: "tudo o que diz respeito ao século XVIII é

estranho" (Introdução, p. ix) e "visite o século XVIII e regressará com a cabeça à roda,

porque ele é infinitamente surpreendente, inexaurivelmente interessante e

irresistivelmente estranho" (p. x). Para ilustrar esta premissa, começa por contar que,

ao tomar posse como primeiro Presidente dos Estados Unidos, em 1789, George

Washington tinha um único dente na boca, um bicúspide esquerdo de baixo. Para

colmatar a falta de dentes, o "Pai Fundador" da América tinha uma vasta colecção de

postiços – de marfim de elefante, de presas de morsa e de hipopótamo, além, claro, de

dentes humanos. No entanto, apressa-se a acrescentar Darnton, Washington "não

estava sozinho na luta contra as doenças dos dentes. Os seus contemporâneos,

provavelmente, preocupavam-se mais com as dores nas gengivas do que com a nova

Constituição de 1787" (p. ix).

5 A propósito, ficamos também a saber que a personagem mais famosa da Paris

setecentista (além do carrasco oficial) era um arrancador de dentes conhecido como Le

Grand Thomas, que exercia o ofício na Pont-Neuf. Nem o próprio Rei-Sol era imune às

dores de dentes... e respectivas consequências: os médicos de Luís XIV fracturaram-lhe

o maxilar ao tentarem extrair molares podres.

6 Com estes e outros episódios, aparentemente do âmbito da "petite histoire", o autor

fornece "um guia para o século XVIII, não para todo ele (isso exigiria um tratado em

vários volumes) mas para alguns dos seus cantos mais curiosos e recônditos e também

para a sua questão principal, a causa das Luzes" (p. xi). Ao estudar o mundo mental de

setecentos, Darnton enfrenta um problema: os temas em causa têm, de uma maneira ou

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Page 366: Livro e Iconografia

de outra, afinidades com questões actuais. E se o primeiro mandamento do historiador

é "Não cometerás anacronismo", o perigo do presentismo torna-se insidioso. É que,

explica ele, "Não há acesso ao passado sem intermediários" (p. xii) – e os intermediários

são os nossos próprios olhos. O dilema é incontornável. A citação é longa mas vale a

pena:

"Os historiadores enfrentam este dilema recorrendo a um ethos profissional.Tentam reconstruir o passado 'como ele realmente foi', de acordo com as regrasestabelecidas por Ranke, na senda de Tucídides. Mas este compromisso tem umpreço, pois o historiador profissional tende a ser esotérico e os historiadoresprofissionais, com frequência, escrevem uns para os outros, separados do públicoem geral por um muro de erudição destinado a protegê-los. Este livro tencionaquebrar essa barreira. É escrito para o leitor instruído e pretende dar umaperspectiva histórica a questões actuais, tais como: A adopção do euro veio pôr emcausa noções adquiridas sobre a identidade da Europa? A Internet criou uma novasociedade de informação? A obsessão com a vida privada das figuras públicas podeevidenciar linhas de fractura na cultura política? Ao projectar estas questões contraum pano de fundo do século XVIII, penso ser possível vê-las a uma nova luz,desfrutando, ao mesmo tempo, de uma visão mais fresca do século XVIII.Isto pode parecer um anacronismo desavergonhado. Espero, no entanto, ser capazde enfrentar o elemento presentista implícito em cada imagem do passado pelofacto de o reconhecer e de levá-lo em conta à partida... Fazer o passado parecer umaterra estranha demasiado distante pode cortar-lhe o acesso. Em vez de reificarculturas estranhas na esperança de capturar qualquer coisa que imaginamos ser asua essência, devemos antes interrogá-las. Precisamos aprender a falar as suaslínguas, de fazer as perguntas correctas às fontes relevantes e traduzir as respostaspara um idioma que possa ser compreendido pelos nossos contemporâneos.Não vejo um caminho fácil para contornar o duplo perigo do passéisme e dopresentismo, excepto andar num vai-vem entre os séculos, à procura de novasperspectivas. Mas o valor da história, tal como eu a entendo, é esse: não dar liçõesmas proporcionar perspectiva." (pp. xii-xiii)

7 O melhor fica para o fim: o prazer que dá "viajar" na história, sobretudo (de acordo com

Darnton) para os que se dirigem ao século XVIII. Apesar de muito do que se julgava

certo sobre a época pertencer, afinal, à categoria de mito (por exemplo, que

Washington tinha dentes postiços de madeira), a verdade é que os "mitos deram forma

às mentalidades" (p. xv).

8 O primeiro ensaio, intitulado "Em defesa das Luzes: os dentes postiços de George

Washington" (pp. 3-24), parte do princípio que o conceito de Luzes foi inflacionado,

acabando por ser levado a coincidir praticamente com o de modernidade ou,

genericamente, com a civilização Ocidental. Darnton lança-se à tarefa de o deflacionar,

estabelecendo-lhe balizas cronológicas e conceptuais. Ao libelo acusatório apresentado

contra as Luzes pelo pós-modernismo, o autor responde com uma defesa bastante

convincente, concluindo a favor do progresso ("com p pequeno"), tendo em conta os

ganhos obtidos pelo prazer sobre a dor nos últimos 200 anos e a simpatia que merecem

aqueles que se ergueram em defesa dos direitos humanos contra a desumanidade –

acima de todos, Voltaire.

9 Em "As notícias em Paris: uma sociedade de informação precoce" (pp. 25-75), o autor

contesta a ideia de que a era da informação seja exclusiva da época actual. Defende,

pelo contrário, que por volta de 1750 havia um sistema de comunicações em

funcionamento, cujo centro de difusão era a Árvore de Cracóvia, nos jardins do Palais-

Royal, em Paris. Ali se juntavam os "nouvelistes de bouche" que divulgavam notícias e

boatos, em seguida espalhados pelos jardins e cafés da capital francesa e, a partir daí,

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Page 367: Livro e Iconografia

por todo o país. Além destas notícias orais, as notícias à mão (poemas, cartas, pasquins),

os periódicos e panfletos impressos e os livros completavam o circuito de comunicação

na França de meados do século XVIII.

10 "A unidade da Europa: cultura e boas maneiras" (pp. 76-88) aborda a identidade do

Continente e reflecte sobre a possibilidade de uma integração europeia, desde o mito do

rapto de Europa, filha de Agenor de Tiro, passando pelas conquistas de César, Carlos

Magno, Napoleão e Hitler, pelo cosmopolitismo kantiano e a Declaração dos Direitos do

Homem de 1789 até à adopção do euro como moeda única.

11 "A busca da felicidade: Voltaire e Jefferson" (pp. 89-106) é uma viagem às origens da

ideia de felicidade, um marco da cultura americana, que remonta a Platão e Aristóteles

e também aos epicuristas e aos estóicos. A leitura do autor de Candide teve uma

importância seminal no redactor da Declaração de Independência da América.

12 Rousseau, o romântico, ou Rousseau, o pai do totalitarismo, é a questão central de "A

grande divisão: Rousseau na estrada de Vincennes" (pp. 107-118). Foi no caminho para

casa do seu amigo Diderot, em Vincennes, no Verão de 1749, que Rousseau leu num

jornal o anúncio ao concurso literário promovido pela Academia de Dijon sobre o tema:

"Se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para a purificação dos

costumes". O resultado foi o Discurso sobre as Ciências e as Artes, que ganhou o prémio da

Academia em 1750 e fez a celebridade do cidadão de Genebra.

13 O período que se seguiu à independência dos Estados Unidos assistiu a uma autêntica

Americomania em França. Nos teatros de vaudeville, na pintura, na música, na moda...

não passava um dia em que Le Journal de Paris, o único diário francês da época, não

trouxesse "o último grito" do outro lado do Atlântico. Entre os maiores entusiastas

contavam-se dois vultos que partilhariam o destino trágico dos girondinos na

Revolução que se aproximava. É o tema de "A mania da América: Condorcet e Brissot"

(pp. 119-136).

14 Luzes e especulação — podia ser este o título do ensaio "A busca do lucro: Rousseauismo

na Bolsa" (pp. 137-155), que estuda a derrapagem especulativa da Bolsa de Paris em

1785-87, por acção de Étienne Clavière e de Brissot, que faziam negócios pouco

transparentes ao mesmo tempo que escreviam panfletos citando, de forma apologética,

Rousseau.

15 O último ensaio, "Os esqueletos no armário: como os historiadores se armam em Deus"

(pp. 156-174) é ao mesmo tempo uma estimulante reflexão historiosófica e uma

profissão de fé na humildade científica. "Factos" e "verdade" podem ser palavras muito

pesadas. Darnton conta como descobriu, nos arquivos, as provas de que Marat estava

inocente do roubo de que os seus detractores o acusam. E como as fontes documentais

indiciam que o líder revolucionário (girondino) Brissot terá sido espião da polícia nos

anos que antecederam a tomada da Bastilha. E ainda como uma ordenação diferente dos

documentos permite conclusões factuais diferentes.

"O que estou eu a fazer? O mesmo que todo o historiador: a armar-me em Deus.Como explicou Santo Agostinho, Deus existe fora do tempo. Ele pode repetir ahistória como Lhe aprouver, para trás ou para a frente ou tudo isso ao mesmotempo. Com certeza que o historiador cria vida. Ele sopra vida no barro que escavados arquivos. Ele também julga os mortos." (p. 174).

16 Um pequeno grande livro, a pedir rápida tradução para tornar mais fácil o acesso a

estudantes, professores e, em geral, a todos os curiosos da história das ideias.

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Page 368: Livro e Iconografia

NOTAS

1. As traduções são da responsabilidade do autor da recensão.

AUTORES

JOÃO PEDRO ROSA FERREIRA

Centro de História da Cultura da UNL

Jornalista, Mestre em História Cultural e Política pela FCSH e investigador do CHC UNL. Professor

convidado da European University. Publicou O jornalismo na emigração. Ideologia e política no

«Correio Braziliense» (1807-1822); co-autor com Ferreira Fernandes de Frases que fizeram a História de

Portugal (2006). Foi director da revista Focus.

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Page 369: Livro e Iconografia

João B. Ventura, Bibliotecas e EsferaPública, Oeiras, Celta, 2002Fernando Pinto dos Santos

REFERÊNCIA

João B. Ventura, Bibliotecas e Esfera Pública, Oeiras, Celta

1 No livro de J. B. Ventura, há algumas ideias que nos parece da maior importância reter.

Em primeiro lugar, a de que se alguns aspectos podem ser discutidos na sociedade e

discutíveis por ela, outros há que apresentam um carácter paradoxal e

indiscutivelmente marginal, no sentido de se encontrarem à margem de qualquer

reflexão teórica sobre o papel que desempenham na sociedade. É o que acontece

relativamente às bibliotecas. Recolhendo, organizando e mediatizando o acesso à

informação e a novos conhecimentos, quer com o suporte escrito, quer com o

electrónico, a Biblioteca vê-se numa situação paradoxal.

2 Desenvolvem-se bibliotecas em geral, públicas, universitárias e escolares; a Rede

Nacional de Bibliotecas cresce em todo o País, mostrando ser talvez um dos maiores

projectos culturais existentes. No entanto, situação patologicamente habitual, não há

uma produção teórica que responda a uma tarefa de reflexão. Também a bibliografia

estrangeira, abundante em alguns países (não o diz o autor mas afirmamo-lo nós), como

acontece em Espanha e em França, é no nosso país extremamente reduzida. Considera

assim o autor, nesta espécie de nota introdutória, que é preciso desmarginalizar os

estudos culturais sobre as Bibliotecas.

3 Depois J. B. Ventura parte para a análise de um conceito extremamente complexo, que

assumiu e talvez ainda hoje assuma diferentes interpretações e definições, ao longo da

história e segundo diversos autores: o conceito de "Esfera Pública".

4 Um dos autores que trabalhou bastante este conceito foi Habermas, embora na Grécia e

em Roma já se falasse em público e privado. Na Grécia, o "público" pode ser ligado ao

conceito de democracia da época, ou seja, os homens que exerciam o direito de

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Page 370: Livro e Iconografia

cidadania nos discursos da praça pública e na política, nada tinham a ver com as

mulheres e os escravos a quem estava vedada toda e qualquer participação bem como

todos os direitos. Direitos não tinham, mas em contrapartida tinham o dever de

submissão, dominação, e de se apresentarem como propriedade privada dos poderosos,

a minoria. Em Roma, o direito estabelecia a oposição entre o público e o privado, no

entanto assumindo novos contornos como o da criação da acessibilidade do povo ao

espaço público, do qual faziam parte os caminhos, as praças, as fontes e os rios, "locais

comuns" ou "públicos", deixados fora do domínio da apropriação privada.

5 Continuando o seu roteiro histórico, J. B. Ventura conduz-nos pelos caminhos da Idade

Média, até ao coração da Revolução Francesa, no século XVIII. Na Idade Média, a

oposição entre público e privado mostra-nos as raízes etimológicas de comunidade, isto

é, espaço social que se torna comum e se subtrai à propriedade exclusiva de alguém,

independentemente da classe social a que pertence. No entanto, esta comunidade não

deixa de representar uma elite que, como tal, continua a ser minoritária.

6 A partir do século XV, tudo o que é vida pública sofre uma deslocação da catedral para a

corte, ainda que com o mesmo carácter religioso, em termos simbólicos e de

representação. O palácio, com as suas festas e torneios era o lugar por excelência da

representação, onde se mostrava a grandeza do anfitrião e dos seus convidados. Neste

local o povo já podia entrar, mas só podia limitar-se a ver e ouvir sem falar (participar).

É assim que surge a categoria do espectador. No século XVIII não há uma auto-

representação social mas um conjunto de cidadãos, oriundos da burguesia, arvoram-se

em representantes do povo em geral e dos seus interesses, isto é, do bem comum.

Surge, assim, uma nova visão de "esfera pública", ligada aos debates literários que, com

os ventos da Revolução Francesa a soprarem cada vez mais próximos, se transformava

num lugar de debate de ideias de carácter político.

7 É o que vai acontecer mais tarde, no século XIX com as Bibliotecas, que se transformam

em autênticas tertúlias, locais de confronto e confrontação, algumas vezes, de opiniões.

É nesta visão que se inspira a ideia de "esfera pública" de Habermas.

A Esfera Pública Contemporânea: Novas Perspectiva

8 A maior parte dos autores contemporâneos reconhece, segundo Ventura, que o

conceito de esfera pública de Habermas é indispensável para a teoria crítica social e

para a prática democrática. No entanto, como acontece com todas as teorias, também

esta não se mostrou pacífica, gerando alguma discordância. E o que acontece segundo J.

B. Ventura com Negt e Kluge que, em oposição a Habermas, recusam o ideal normativo

de uma esfera pública burguesa, fundada num princípio abstracto de universalidade,

contrário a qualquer forma de particularismo o que significa que mais do que um

conceito universal, a "esfera pública" é vista como um lugar de encontros e

aprendizagens.

9 Seria manifestamente fastidioso desfilar o rol de autores a favor e contra as teorias de

Habermas ou as mais modernas. Não é esse o nosso objectivo com a indicação da leitura

que fizemos da obra Bibliotecas e Esfera Pública. No entanto, achamos conveniente lançar

uma questão, porventura polémica: em resultado das diversas opiniões dos autores, não

se confundirá esfera pública e debate público?

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10 Talvez possamos responder à questão formulada com uma nova pergunta: em que

medida as Bibliotecas Públicas não podem ser consideradas como esfera pública?

11 Basta olhar para o papel desempenhado pelas Bibliotecas em meados ou finais do século

XIX, para vermos que, com os seus regulamentos, elas acabavam por funcionar quase

como locais de debate cultural, sobretudo ao nível da Literatura e da Política. No século

XIX não se pode falar em Biblioteca sem lhe associar educação e cultura, factores de

progresso e de civilização. Por isso se afirma que a "esfera pública" remete

etimologicamente para um conceito especial, isto é, para um conjunto de lugares de

sociabilização onde se discute e promove a circulação de ideias e assuntos de interesse

comum, como, por exemplo, assuntos da vida local.

Redes Públicas de Bibliotecas

12 É com a consciência da importância desta situação, que em 1994 é elaborado o

MANIFESTO da UNESCO SOBRE BIBLIOTECAS PÚBLICAS que as declara como o centro

local de informação, tornando portanto acessíveis aos seus utilizadores o conhecimento

e a informação de todos os géneros. J. B. Ventura mostra-nos, neste seu livro"

Bibliotecas e Esfera Pública" que a Rede Nacional de Bibliotecas Públicas surge a partir

do MANIFESTO da UNESCO e tem como finalidade permitir uma maior acessibilidade,

não só do ponto de vista espacial como material, a todos os utentes concretamente

prestando serviços gratuitos, independentemente do estatuto social, político,

ideológico, cultural e religioso.

13 Desde 1983, o Programa de Apoio à Rede das Bibliotecas sofreu várias alterações, mas

com o mesmo objectivo: o de mostrar que as Bibliotecas tinham uma grande

responsabilidade na mudança cultural do país, inclusivamente no aprofundamento dos

hábitos de leitura das populações, que os vários estudos existentes mostram

representar uma percentagem muito baixa. A partir de 1987 a Rede Nacional de

Bibliotecas permite um incremento do acesso à cultura e à leitura, quer de textos

impressos quer em suporte electrónico. Esta Rede inscreve-se na lógica da parceria

entre o Estado e as Autarquias, o que apresenta um grande êxito, em muitos casos,

como acontece com iniciativas de recuperação de edifícios, autênticos marcos que

deixaram marcas na história cultural e local, abandonados e degradados, que voltaram

a adquirir a sua dignidade, como o "Diana-Bar", na Póvoa de Varzim, antigo café/

tertúlia de intelectuais, transformado em "Biblioteca de Praia", para dar um exemplo.

AUTORES

FERNANDO PINTO DOS SANTOS

Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica, Faculdade de Filosofia de Braga. Licenciado

em Ensino de Filosofia e Humanidades pela mesma Universidade. Mestre em Ciências da

Educação, Ramo de Especialização em História da Educação e da Pedagogia, pela Universidade do

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Minho, com a Tese: "A Sociedade Martins Sarmento, Espaço Privado de Leitura Pública: A

Importância do Doador na Formação do Leitor". E Professor do Ensino Secundário, em Guimarães.

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