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CulturaRevista de História e Teoria das Ideias
vol. 21 | 2005Livro e IconografiaJoão Luís Lisboa (dir.)
Edição electrónicaURL: http://journals.openedition.org/cultura/2772DOI: 10.4000/cultura.2772ISSN: 2183-2021
EditoraCentro de História da Cultura
Edição impressaData de publição: 1 janeiro 2005ISSN: 0870-4546
Refêrencia eletrónica João Luís Lisboa (dir.), Cultura, vol. 21 | 2005, « Livro e Iconografia » [Online], posto online no dia 31julho 2018, consultado a 29 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/cultura/2772 ; DOI :https://doi.org/10.4000/cultura.2772
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© CHAM — Centro de Humanidades / Centre for the Humanities
SUMÁRIO
Ver e lerJoão Luís Lisboa
Encontro sobre História do Livro
L’histoire du livreDe la tentation d’une histoire globale à une réflexion sur les systèmes de communicationHenri-Jean Martin
Histoire du livrePoints de vue sur l’évolution d’une disciplineJean-Dominique Mellot
Iconografia do Livro Impresso
Desencontros entre texto e imagem “ilustrativa”, no Flos Sanctorum de 1513Fr. António-José d'Almeida OP
Poder de convencimento e narração imagética na pintura portuguesa da contra-reformaA influência de um gravado segundo Seghers numa tela do Convento dos Paulistas de PortelVítor Serrão
Pierre-Antoine Quillard (c. 1703-1733)Os livros e a ilustração na gravura joaninaNuno Saldanha
Fontes para a iconografia teresiana no convento do Santíssimo Coração de Jesus à EstrelaSandra Costa Saldanha
As gravuras impressas na Academia dos Humildes e IgnorantesPaulo A. Fonseca
A imagem nos manuais do ensino primário do Estado NovoFilipe Mascarenhas Serra
Paisagens sem rostoPara o estudo da primeira edição ilustrada de A SelvaLiliana Dias Carvalho
Itinerários de Leituras
Lisboa - Rio de Janeiro - FortalezaOs caminhos da coleção Biblioteca do Povo e das Escolas traçados por David Corazzi, Francisco Alves e GualterRodriguesGiselle Martins Venâncio
« Vejo, agora que estou sonhando »O problema do sonho e da visão em comentários seiscentistas às Trovas de BandarraLuís Filipe Silvério Lima
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O ensino e a valorização profissional do jornalismo em portugal (1940/1974)Fernando Correia e Carla Baptista
Diálogos Escritos
História cultural e história das idéiasdiálogos historiográficosJosé D’Assunção Barros
Os alemães e a modernidade(vistos hoje em Portugal)Carlos Leone
A filosofia da existência de Roger GaraudyJosé Mauricio de Carvalho
Edição de Gazetas Manuscritas do Século XVIII
Notícias de mãoAntónio Coimbra Martins
Manual de Edição das Gazetas Manuscritas da Biblioteca Pública de ÉvoraTiago C. P. dos Reis Miranda, Fernanda Olival e João Luís Lisboa
Recensões
Dictionnaire Encyclopédique du Livre. Volumes 1 e II: A-D; E-M. Sous la direction dePascal Fouché, Daniel Péchoin, Philippe Schuwer. Responsabilité scientifique de PascalFouché, Jean-Dominique Mellot, Alain Nave, Martine Poulain, Philippe Schuwer. Préface deHenri-Jean Martin. Paris: Éditions du Cercle de la Librairie, 2002; 2005, XXXIII-900 e XI-1074pp.José Augusto dos Santos Alves
José Gil, Portugal, Hoje: o Medo de Existir, Relógio d'Água, Lisboa, 2004Carlos Leone
Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, As Farpas, coord. Maria Filomena Mónica, Principia, S.João do Estoril, 2004.Carlos Leone
Robert Darnton, George Washington's False Teeth. An Unconventional Guide to theEighteenth Century, Nova Iorque/Londres, W. W. Norton, 2003, 208 pp.João Pedro Rosa Ferreira
João B. Ventura, Bibliotecas e Esfera Pública, Oeiras, Celta, 2002Fernando Pinto dos Santos
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Ver e lerJoão Luís Lisboa
Imagens e textos cruzam-se e encontram-se (ou desencontram-se) de muitas formas.
Tenhamos presente as grandes narrativas que se partilham oralmente e que têm
referentes visuais nos templos, nos palácios e nas ruas, tanto em suportes efémeros, em
festas e procissões, como permanentes. Também nos livros, lugar de letras por
definição, vê-se para além do que se lê. Ou lê-se para além das letras. Lê-se na
composição, na disposição das páginas, na textura do papel ou das peles, no aparato ou
na falta dele, nas gravuras, sejam ornamento ou parte integrante da narrativa.
Porventura essas gravuras reproduzem cenas e personagens que já se conhecem das
igrejas e das ruas. Pensar o livro é, assim, como diz Henri-Jean Martin, pensar uma peça
de um processo de comunicação.
Ao longo dos séculos, e sobretudo a partir de setecentos, à medida que a cultura escrita
sai dos livros e passa a ocupar os espaços urbanos, na identificação dos locais, na
organização do quotidiano, tornando-se necessária, e não um recurso especializado de
quem precisa de exercer certas actividades, a imagem vai ganhando mais espaço no
mundo impresso, equilibrando um estatuto que pertencia sobretudo à palavra.
De que falam as representações que nos aparecem impressas e encadernadas? das
palavras que acompanham? repetem-nas? comentam-nas como um coro que sublinha
certas passagens? Entre os vários olhares possíveis, escolhemos considerá-las na sua
autonomia relativa, corno várias vozes que se encontram para cumprir funções
próprias.
Não pensamos a imagem impressa como subordinada a textos. Mas também não a
vemos como testemunho isolado da evolução de técnicas e valores estéticos. A imagem
faz passar sentido. Tem códigos próprios e assenta num saber fazer (de quem desenha,
grava ou imprime) e num saber ler (do conjunto daqueles a quem se destina). A imagem
existe nos suportes que lhe dão corpo, relacionando-se: (1) com as possibilidades de
leitura que esses suportes permitem ou sugerem; (2) com outras linguagens que lhes
estão próximas; (3) com outras imagens que os leitores viram ou conhecem. A imagem
fixa a atenção em personagens ou episódios. Enfatiza momentos de uma narrativa.
Confere estatuto ao próprio suporte, pela sua elaboração ou riqueza. Finalmente, a
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imagem é feita para causar impressões, para sugestionar, para atrair, para contar de
outro modo.
A imagem ilustra, não necessariamente no sentido que lhe damos hoje, de estampa ou
desenho, associado a um texto, mas no de "tornar claro e evidente" que é o sentido de
Bluteau em 1713. A imagem integra os recursos da retórica, ao "mover afectos" e ao
"tornar inteligível" um discurso. Tem valor enquanto representação,
independentemente de apoiar ou de se apoiar em textos. Implica "decoro" e não
decoração. Que possa ornar no sentido de embelezar é apenas uma das suas funções.
Falamos, assim, de iconografia, e não de ilustração.
O modo como a imagem foi existindo nos livros ou em estampas soltas tem uma história
com referências. As mais importantes continuam a ser os trabalhos de Ernesto Soares. É
de salientar o Dicionário de iconografia portuguesa, em 5 volumes (1947-1960), que
começou a publicar com Henrique Ferreira Lima, entretanto falecido. Hoje, esses
trabalhos, embora manifestamente insuficientes, seja pelas naturais lacunas que o
tempo revela, seja pela sua perspectiva datada, continuam a ser muito úteis. Para além
de extenso inventário, o que devemos reter para os períodos mais remotos? Desde logo,
o facto de a grande maioria das gravuras terem os livros como destino. Também o facto
de quase não haver identificação dos gravadores antes do século XVIII. Finalmente,
Ernesto Soares fornece algumas razões para a diferença entre a produção ibérica e a do
centro e norte da Europa: "a pequena produção do livro, obrigado a ilustração artística,
a escassez de um mercado compensador e, especialmente, o nosso temperamento nada
sujeito a trabalhos, para o que se exigia uma sedentariedade enervante, são motivos
que explicam o atrazo neste ramo da arte" (Evolução da gravura em madeira em Portugal
nos séculos XV a XIX, Lisboa, CML, 1951, p.6). A questão do temperamento do "guerreiro,
navegador e aventureiro" pode hoje provocar um sorriso, mas importa pensar que a
história da gravura é parte da história (social e cultural) mais ampla de como se fazem
circular ideias, sentimentos, narrativas. Nessa história compreendem-se nomes (de
impressores e gravadores, por exemplo), segue-se a transformação de técnicas, gostos,
custos, procura-se o modo como cresce o número de leitores e a variedade das suas
características.
Se nunca existe um leitor abstracto e uniforme de textos idealizados, a diversidade dos
leitores acentua-se com a multiplicação das formas do que se dá a ler, incluindo na
relação entre texto e imagem. No caso dos almanaques de seiscentos e setecentos,
pequenos ícones podem ser o fio condutor do olhar de quem quer perceber as fases da
lua, ou a sucessão zodiacal. Há pois a necessidade de chegar a um público que não
convive quotidianamente com páginas escritas.
Pelo contrário, o aparato da representação do poder nas xilogravuras do De vita Christi
(1495) constitui um discurso paralelo ao do texto, como se se pudesse ler a piedade da
Coroa nas letras, e a devoção do rei nas imagens. Refiro não apenas a representação dos
soberanos em adoração ou as suas divisas, mas todo o cuidado iconográfico que é
condicionado pela encomenda. Pode até considerar-se que não existe uma relação
biunívoca entre as duas linguagens e que, paradoxalmente, uma leitura possível sugere
que é o texto que "ilustra" o que se vê. Na cópia manuscrita do mosteiro de Alcobaça, ou
nos fragmentos em latim que existem em Évora, ambos anteriores em cerca de meio
século ao incunábulo, as iniciais filigranadas a cores e as cercaduras filigranadas
marcam ritmos de leitura e sublinham a importância do livro (como, no impresso, as
capitulares e os sinais de parágrafos), sem introduzir nenhuma interferência no texto
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de Ludolfo de Saxónia. Já o livro impresso vem fazer duas afirmações que são novas
para o tempo em Portugal, ambas ligadas à possibilidade de a tipografia produzir livros
como aqueles que já se conheciam antes. Primeiro, que o livro impresso não é apenas
um expediente de cópia, mas pode ser um cuidadoso objecto de aparato. Segundo, que o
poder se identifica com o novo produto, o usa e nele se revê.
Seguir os impressores do De vita Christi é ver outros usos das mesmas gravuras, como faz
Nicolau de Saxónia ao reproduzir uma excepcional (e possivelmente não produzida em
Portugal) imagem do calvário no Missale Bracharense, em 1498, ou é confirmar a
importância de uma oficina como a de Valentim Fernandes, que multiplica as
xilogravuras nos seus trabalhos posteriores, a começar pelas também excepcionais
representações na Grammatica Pastranae (1497) e na Estoria de muy nobre Vespesiano
(1496). Ainda quanto a esta novela, Artur Anselmo chamou a atenção para a flagrante
semelhança entre uma das suas xilogravuras, relativa ao massacre dos Judeus, e uma
outra publicada poucos anos depois por Pedro Brun, em 1499, em Sevilha, no terceiro
dos incunábulos peninsulares dedicados à novela (História da edição em Portugal, Porto,
Lello & irmão, 1991, pp.168-169).
Bem diferentes (mais simples, menos elaboradas) são as características do gravado em
Evangelhos e epístolas, publicado no Porto em 1497. Mas também aqui há nota de uma
ligação peninsular, neste caso adaptando-se, no Porto, texto e imagens de uma edição
de Salamanca de 1493 (cf. Anselmo, ibidem, pp.172-173).
Para perceber a presença da imagem nos livros, será necessário, assim, seguir um
conjunto de nomes e como evoluem os recursos técnicos. Mas interessa-nos ainda mais
as transformações que se operam nos conceitos, aquilo que eles procuram identificar, o
que numa publicação torna possível que se fale de "livro", de que elementos é
constituído, ou o que leva a que uma publicação seja procurada e apreciada. Ou o que,
sendo inexistente ou extraordinário num dado momento, é indispensável num outro, as
separações gráficas, os índices, a arrumação das páginas, incluindo a sua identificação.
Interessa-nos ainda como essas mudanças correspondem a transformações nas formas
de relacionamento com o leitor que envolvem também a iconografia, seja a que separa
capítulos, a que fecha o volume, a que torna singular uma folha de rosto, ou a que
acompanha os textos. Note-se que a função de separar ou de sublinhar passagens não é
excusiva de tarjas e capitulares. Voltando ao Vespesiano, cinco dos ricos desenhos que
contam a história em imagens aparecem repetidos ao longo do texto, dois deles quatro
vezes. O que aparentemente é a mesma imagem (ou o mesmo tipo de imagem) ganha
sentidos diferentes de acordo com a forma e o tempo da sua publicação.
Nas imagens procuramos quem as faz e quem as vê, ou seja, quem lhes dá sentido e
organiza ou determina os conceitos referidos atrás. De quem são os desenhos que
circulam? Quem os reconhece? Quem grava é alguém que simultaneamente procura e
produz imagens. A oficina terá a propriedade das placas onde os desenhos estão
conservados. Por isso, conhecer os desenhos é também conhecer a oficina e como
evolui. Reproduzem-se motivos, mas as placas são únicas e individualizáveis. Copia-se,
mas nas imagens ficam inscritos traços, sinais de gestos concretos que fazem de cada
gravura um caso distinto, diferenciável de todos os outros, como a cópia manuscrita se
distingue da cópia industrial.
Por exemplo, as diferenças evidentes da gravura da folha de rosto da primeira edição de
Os Lusíadas, em 1572, deram azo a muitas explicações, a mais atraente das quais,
perfilhada por Aquilino Ribeiro, era de que se estava perante uma contrafacção. A
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inversão da posição do pelicano e as diferenças no plinto podiam significar a abertura
de nova gravura a partir de decalque. Hoje sabemos, seja pelo confronto de três dezenas
de exemplares que existem espalhados pelo mundo, feito por K. David Jackson (Camões
and the first edition of The Lusiads, 1572, Univ. Massachusetts Dartmouth, 2003), seja pelo
melhor conhecimento de como decorria um processo de impressão, com modificações
constantes sem que se desaproveitasse o que já estava impresso, que existe apenas uma
edição com muitas pequenas alterações. A folha de rosto e as suas gravuras são, assim,
um exemplo, não da transferência de oficina, mas de um segundo momento da feitura
de uma impressão.
Outro exemplo da singularidade do impressor é a forma como, no início da sua
actividade, em finais do século XVI, Pedro Craesbeeck, não possuindo ricas capitulares,
usava pequenas tarjas envolvendo maiúsculas normais para as substituir, o que
constitui uma marca que o identifica. Este tipo de atenção permite que, numa
circunstância em que não se conhece o impressor, se perceba a quem pertence um
gravado.
Uma imagem pode permitir identificar uma contrafacção, como mostrou Teresa Payan
Martins na sua tese, Livros clandestinos e contrafacções em Portugal no século XVIII (FCSH,
1995), onde se percebe que impressores associados aos poderes políticos e religiosos
participam, por razões várias, nomeadamente de ordem comercial, no mundo da
circulação clandestina.
Uma imagem revela o impressor que se queria discreto, mas mostra também a relação
entre oficinas, as placas que circulam, ou as famílias que se sucedem, quem garante a
continuidade de um património (em tipos e gravuras). As imagens podem ainda dar
uma dimensão do sucesso de uma publicação, como mostra Paulo A. Fonseca ao fazer
um apanhado das diferenças que se detectam nos mesmos fascículos da Academia dos
Humildes e Ignorantes, sobretudo nos seus primeiros anos de existência, entre 1758 e
1760, diferenças que permitem verificar a multiplicação rápida de edições de um
periódico, por vários impressores. Essa multiplicação revela-se em dois tempos. A que
se faz no momento em que o fascículo se esgota e é procurado, a um ritmo semanal. A
que se faz para completar compilações anuais que se vendem também com sucesso.
Uma como outra são localizáveis pelas datas impressas, mas também em parte através
das gravuras que identificam os impressores, e que se repetem noutras publicações das
mesmas oficinas.
Já Pierre-Antoine Quillard, aqui apresentado por Nuno Saldanha na sua obra de
gravador, é um artista de transição, mais conhecido como pintor, mas responsável por
gravuras identificáveis, em livros e em grande formato.
Deste facto decorre o que apenas aparentemente seria uma contradição. Ao longo da
história das imagens, o seu carácter único não se confunde com a busca da
originalidade do que se desenha, mas é relevante como informação sobre um momento
de um processo, de um fazer artesanal. Ou seja, olhamos para as imagens nos livros
anteriores ao século XIX como elementos de cadeias de imagens que as oficinas
reproduzem e não tanto pelo valor que uma mão mais criativa acrescenta e que, mais
tarde, permitirá a distinção pela busca da originalidade. A noção de unicidade só
implica contradição se não se entender aquilo a que se refere, se falamos do produto
enquanto resultado artístico ou do exemplar concreto manufacturado. Este é único,
ainda que reproduzindo ou copiando, não se confundindo com objectos que se
pretendem inimitáveis enquanto concepção. Neste caso, enquanto sobressai uma
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composição, ou um desenho, o trabalho do gravador, integrado em séries, pode ficar
oculto pela qualidade técnica do impresso.
Desta aparente contradição resulta que as perguntas que se fazem e o que se pode
retirar das imagens varia segundo os tempos e as circunstâncias. Que problemas se
podem, então, colocar?
Um é o que segue os encontros e os desencontros de texto e imagem num mesmo livro,
que podem remeter para diferenças de narrativas ou para formas de circulação
separadas que circunstancialmente se encontram numa tipografia. Ou seja, o gravado
não foi realizado a partir da leitura do mesmo texto. Pode até ser anterior e tem, em
qualquer caso, uma existência própria que se encontra circunstancialmente num livro.
É essa divergência (e essa autonomia) que o estudo de Fr. António Almeida, a partir da
análise da edição de 1513 do Flos Sanctorum, aborda.
Outro problema é o da forma como se relacionam suportes diversificados das
representações, transmitindo-se modelos, cruzando sucessivamente, sem uma ordem
pré-definida, pintura, gravura, azulejo ou escultura, por exemplo, e fazendo algumas
imagens viajar milhares de quilómetros. Nestes circuitos, a fixação de imagens em
suportes estáveis pode ser apenas um momento da sua circulação. Painéis pintados
inspiram gravadores, do mesmo modo que artistas recorrem a gravuras para compor os
seus trabalhos. Di-lo Vítor Serrão a propósito de pinturas de uma igreja alentejana e
Sandra Costa mostrando a forma como no azulejo, mas também na pedra esculpida, se
recorre às gravuras como fonte de inspiração para representar a vida de Santa Teresa
de Jesus, em Lisboa. Outros estudos recentes procuraram precisamente seguir as
mesmas pistas. São os casos dos estudos aprofundados de Manuel Batoréo, que
comprova a extensão da presença da imagem gravada pela sua apropriação pela pintura
em todo o país e o de Ana Paula Correia sobre a relação entre azulejo e gravura, ambos
referidos por Vítor Serrão.
Diferentes são as abordagens da imagem em livros do século XX. Apresentamos dois
exemplos diametralmente opostos, não apenas no imaginário que convocam, mas
também na pretensão de originalidade e de diálogo criativo com o texto que
acompanham. Um caso de propaganda, nos manuais escolares, ao lado de exemplos de
recriação artística de um texto literário. A estratégia de convencimento de que fala
Vítor Serrão para o século XVII não se confunde com a propaganda do século XX sobre
que escreve Filipe Serra. E o artista, o editor e o escritor protagonistas do estudo de
Liliana Carvalho não existiam antes do século XIX.
Não se pretende, nas páginas que se seguem, colocar todas as perguntas possíveis à
iconografia do impresso, ou aos modos como as imagens coexistem com os textos, nos
livros. Mas, como terá ficado claro, justifica-se o interesse de um projecto que se
reclama de história das ideias pelo estudo de imagens desenhadas e gravadas. Ao
contrário do que seria a perspectiva de uma Susan Sontag, agastada pelo menosprezo
que a preocupação de interpretar teria pelas formas, o que nos interessa é o sentido das
próprias formas, o que representam em cada momento em que se constituem. O que
implica que não se trata de interpretar para além das formas, mas com elas, e por elas.
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AUTOR
JOÃO LUÍS LISBOA
CHC UNL.
Professor na FCSH, UNL. Director do CHC UNL onde é responsável pelo projecto "Livro e leitura".
Publicou, entre outros trabalhos, Teoria da história em Francisco Manuel de Melo (com Teresa
Amado) [1983], Ciência e política. Ler nos finais do Antigo Regime (1991), Gazetas. A informação política
nos .finais do Antigo Regime (coord.) (2002) e, com Tiago C.P. dos Reis Miranda e Fernanda Olival,
Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora, 2 vols., 2002 e 2005.
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Encontro sobre História do Livro
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L’histoire du livreDe la tentation d’une histoire globale à une réflexion sur les systèmes decommunication
A história do livro: da tentação de uma história global à reflexão sobre os
sistemas de comunicação
Henri-Jean Martin
Le livre a toujours été objet de passions. Dans tous les pays et de tout temps, il est
apparu comme le porteur d'une culture qu'on rêve de posséder. Partout, les princes et
les Grands ont voulu se l'approprier en constituant des collections somptueusement
reliées et classées dans leurs bibliothèques aux livres somptueusement reliés au long de
galeries, selon un ordre qui voulait constituer un programme symbolique. Imprimé, il a
été le vecteur d'idéaux collectifs, de l'humanisme aux Lumières, mais plus encore, des
nationalismes. Mais il a toujours été également objet d'art tenant de par sa forme de
multiples langages. De sorte qu'il constitue la mémoire des civilisations et des nations
qui consacrent à sa sauvegarde de grandes bibliothèques tandis que certains amateurs
le font objet de collection. Aujourd'hui, cependant, sa primauté est remise en cause et
on s'interroge sur son avenir. De sorte que le grand problème est pour les historiens du
livre de comprendre comment il a structuré les esprits et les sociétés, et de s'interroger
sur la place qu'il doit conserver face aux nouveaux médias.
Le rôle joué par le livre a toujours été particulièrement ressenti en Allemagne. On y a
beaucoup discuté sur le rôle qu'il a joué lors de la Réforme du XVI siècle. Surtout, on
considère à juste titre qu'il a assuré du XVe au XIXe siècle à travers un pays morcelé
l'unité et la survie d'une langue et d'une culture communes, grâce à la centralisation de
la distribution à Francfort et surtout à Leipzig, et à la publication de catalogues annuels
des ouvrages mis en vente à travers les pays germaniques. Qu'on ne s'étonne donc pas
si l'histoire du livre se développa précocement dans cette partie de l'Europe, et si elle
fut naturellement centrée sur la glorification de l'oeuvre de Gutenberg, promu héros
national dès le XVIe siècle et célébré chague année en des fêtes de caractère à la fois
professionnel et folklorique – ce qui était l'occasion pour de savants professeurs de
publier des dissertations érudites en l'honneur de l'art typographique. Ce mouvement
culmina entre 1870 et 1914, dans l'Empire allemand reconstruit par la Prusse et baptisé
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à juste titre par Frédéric Barbier « Empire du livre ».1 Et cela en une période où
l'Allemagne, en pleine ascension industrielle, possédait une impressionnante avance
intellectuelle dans tous les domaines de la science. On ne s'étonnera donc pas que
1'Association des libraires allemands ait publié, de 1886 à 1914, quatre gros volumes
d'une très savante histoire de la librairie allemande.2
Ailleurs, les choses furent plus compliquées. En France, dans la monarchie
centralisatrice des XVIe et XVIIe siècles, l'orthographe et la langue écrite avaient été
codifiées par des typographes tels que Robert Estienne, souvent proches du Pouvoir, et
l'Académie française fut créée en 1636 avec la mission d'en réglementer les usages. La
langue et les Lettres devinrent ainsi des instruments de gouvernement régis par l'Etat
qui s'efforçait par ailleurs de contrôler cette production au moyen d'un appareil
complexe et d'une censure, comme toujours en fin de compte impuissante. Cependant,
la passion pour le livre y était grande, notamment à l'époque des Lumières, Les
bibliophiles étaient nombreux et plus encore, les amateurs de lectures « philosophiques
». Les bibliothèques ecclésiastiques étaient bien garnies et les notables possédaient tous
des collections.
Survint alors la Révolution française. Elle était très largement le fait d'hommes nourris
de la littérature des Lumières. On comprend donc qu'après la saisie des biens du clergé
et de ceux des émigrés et condamnés, le pouvoir révolutionnaire ait décidé de mettre
les livres saisis à la disposition de la Nation. Je ne conterai pas ici une fois de plus
comment ces précieuses collections, confondues et déménagées à plusieurs reprises
furent triées par des ignorants et en partie détruites ou revendues. Finalement subsista
seule de ce gâchis la Bibliothèque royale promue tour à tour nationale, royale ou impé
riale au fil des régimes. Elle s'enrichit des dépouilles de nombreux établissements,
tandis que les autres fonds, confiés en province aux municipalités s'endormaient d'un
long sommeil, dans des bibliothèques qui ne recevaient pas les crédits nécessaires pour
se mettre au goüt du jour et n'étaient fréquentées que par un petit nombre de
bibliophiles qui y consacrèrent des études ou des recensements parfois précieux.
Dernier résultat des saisies révolutionnaires, enfin, particulièrement important : tandis
que les fonds des anciennes universités avaient été saisis, on attendit près d'un siècle
avant de doter l'ensemble des universités mises en place par Napoléon de
bibliothèques, si bien que nos établissements d'enseignement supérieur offrent
aujourd'hui encore un singulier contraste avec les vieilles universités voisines comme
celles d'Oxford et Cambridge ou de la Péninsule ibérique , où le livre ancien est
omniprésent.
L'université française se trouvait ainsi mise par Napoléon à l'heure d'une rhétorique
souvent creuse dont la première mission était de glorifier le pouvoir en place. Ainsi,
personne ne réfléchit alors, là comme ailleurs au reste, sur le rôle joué par le livre en
tant qu'instrument de diffusion des cultures, si ce ne fut quelques républicains groupés
autour de du poète Lamartine.3
Il fallut pour que tout cela change, à la fois un bouleversement général de climat tant
économique qu'intellectuel, et l'intervention de nouvelles générations d'intellectuels
désireux d'expliquer le présent à la lumière du passé. Ce mouvement débuta dans les
années 1860, avec la création par Victor Duruy, alors ministre de l'Education nationale,
de l'Ecole pratique des Hautes études dont le but était de rattraper le retard pris par la
France sur l'Allemagne tant dans les domaines des sciences exactes et naturelles que
dans ceux de la philologie et de l'histoire, et d'introduire en France ce qui faisait la
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force de ses voisins, le travail en séminaires. Après la défaite de 1871, la France vaincue,
se mit de plus belle à l'école de la science allemande. Bientôt, les universités françaises
connurent un net renouveau qui se traduisit par la multiplication de publications de
caractère scientifique et la promotion de revues spécialisées dirigées par les maitres les
plus écoutés qui y multipliaient les comptes-rendus comme Valérie Tesnière l'a rappelé
dans un livre récent.4 Cependant l'heure était alors celle du positivisme, et on
entendait, à l'image des Allemands, privilégier l'étude des faits tels qu'en eux-mêmes.
Tout cela cependant se déroulait dans une Europe en pleine expansion, mais qui
connaissait dans tous les domaines un climat d'incertitude et d'interrogation, voire de
crise. Tandis que l'essor de l'industrie engendrait des crises sociales, de nouvelles
manières d'étudier le vivant et l'homme se développaient. Par ailleurs, les intellectuels
et les artistes de ce temps étaient comme inconsciemment sensibles aux
bouleversements scientifiques de l'époque comme l'attestent leurs oeuvres. I1 ne
s'agissait plus, en particulier pour les physiciens, d'expliquer le monde en offrant de lui
une représentation apparemment logique et accessible à l'imagination, mais seulement
en en proposant une description basée sur le langage mathématique. Soit un
mouvement qui aboutit à la découverte de la relativité par Einstein en 1905. Ainsi
l'Europe ne réussissait pas dans les mouvements perpétuels dont elle était le théâtre à
trouver un équilibre. Et, pour donner un seul exemple, les conséquences de tout cela
étaient particulièrement sensibles dans la Vienne du début du XXe siècle on
triomphaient les inquiétantes peintures de Kokoschka tandis que Freud, le père de la
psychanalyse, Wittgenstein, le rénovateur génial de la logique, et un peintre
traditionaliste raté nommé Adolf Hitler pouvaient se croiser dans la rue.
Tout cela explique la révision qui commença alors à s'amorcer parmi les intellectuels,
notamment en France. Nous en retiendrons ici deux dont l'un doit être tenu comme
ayant initié une nouvelle manière de regarder le livre.
Né en 1858, Emile Durkheim, reçu en 1878 à l'Ecole normale supérieure on il fut le
condisciple de Jaurès, le père du parti socialiste français, était très sensible aux
problèmes sociaux de son temps. Admirateur du philosophe Auguste Comte, il suivit en
Allemagne les leçons de Wilhelm Wundt, l'un des créateurs de la psychologie
expérimentale, et voulut faire de la sociologie la science humaine par excellence. Dans
cette perspective, il sut s'imposer comme chef d'école incontesté par l'intermédiaire
d'une revue l'Année sociologique. Cette école continua d'exercer après sa mort (1917) une
influence considérable sous la direction de son neveu Marcel Mauss qui fut son actif
successeur grâce à la collaboration de personnages remarquables comme Ignace
Meyerson, l'auteur de La fonction psychologique et les oeuvres, Maurice Halbwachs, le
spécialiste de la mémoire collective, Henri Hubert, l'historien des Celtes, Louis Gernet,
qui jeta un regard d'anthropologue sur les origines de la pensée grecque, Marcel
Granet, l'historien de la Chine, ou François Simiand, l'historien des cycles économiques.5 Avec ces personnages s'ouvre une ère nouvelle caractérisée en France par une
interrogation des sciences sociales sur I 'homme tel qu'en lui-même, tandis que le
pragmatisme américain s'intéressait au maniement des hommes à travers des études de
psychologie sociale.
Cependant, Durkheim estimait que toutes les sciences humaines, à commencer par
l'histoire, devaient se mettre au service de la sociologie, conçue comme la science de
l'homme par excellence et calquée sur les sciences de la nature. Soit une attitude qu'un
homme en apparence bien seul entendit dépasser. Henri Berr avait été reçu à l'Ecole
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normale supérieure en 1881, deux ans donc après Durkheim auquel il était apparenté. Il
soutint en 1898 une thèse sur L'Avenir de la philosophie. Esquisse d'une synthèse des
connaissances fondée sur l'histoire. Le titre de ce travail résumait la cause qu'il allait
défendre toute sa vie. Et, resté sa vie durant professeur de rhétorique au lycée Henri-
IV, à Paris, il chercha toujours à trouver le juste milieu que les historiens allemands
n'avaient pas su trouver, entre la philosophie et le culte des faits – et cela afin de
reconstituer l'unité morale de son pays comme des autres peuples à travers une
coopération scientifique organisée en vue de déboucher sur des synthèses bien
comprises.6
Je ne l'ai jamais rencontré personnellement, car il est mort au moment oú Lucien
Febvre allait me présenter à lui, mais j'en ai beaucoup entendu parler ceux qui l'ont
connu ont eu l'impression de rencontrer une sorte de Socrate. Multipliant les contacts,
recevant volontiers des visiteurs, il s'avéra en fim de compte un éditeur avisé, un chef
d'entreprise entendu et, par-dessus tout, un animateur et un éveilleur d'esprits hors de
pair.
En témoignent ses créations : d'abord, dès 1900 une revue, baptisée Revue de synthèse
bientôt devenue Revue de Synthése historique qui fit souvent bondir les historiens en
place, par sa prétention à l'universalité. Ensuite vint, conçue en 1914, l'élaboration
d'une collection destinée à devenir célèbre, l'Evolution de l'humanité dont l'objectif était
de donner en cent volumes l'histoire des grands événements de l'histoire humaine.
L'immensité de la tâche qui se prolongea durant 50 ans, exigeait de faire appel à des
historiens de tous bords mais qu'il fallait savoir choisir. Ainsi virent le jour Le langage de
Joseph Vendryès (1923) La Cité antique de Gustave Glotz (1928), Les Celtes de Henri
Hubert (1932) en attendant La société féodale de Marc Bloch (1939) et Rabelais et le
problème de l'Incroyance de Lucien Febvre (1942).
Berr aurait-il pu maintenir longtemps le niveau de ces entreprises sans la collaboration
de Lucien Febvre ? Né à Nancy en 1878, admis à l'Ecole normale supérieure en 1898, il
avait pris contact avec Berr dès 1905, enthousiasmé qu'il était par le ton de la nouvelle
revue. Il était en plein accord avec lui pour ajouter à la sociologie de Durkheim la
géographie de Vidal de La Blache dans l'explication des faits historiques. Et la
correspondance de Febvre avec Berr montre qu'il joua un rôle important dans
l'élaboration du plan même de l'Evolution de l'humanité, dans ses révisions successives, et
surtout dans le choix des auteurs.
Ce fut, semble-t-il, Henri Berr qui prit la décision d'inscrire L'Apparition du livre dans les
cent titres de sa collection. Ce fut Febvre, cependant, qui proposa pour écrire cet
ouvrage, le nom de son camarade et ami Augustin Renaudet.
Reste à savoir si l'heure était venue où un sujet comme celui de l'apparition de
l'imprimerie avec toutes les conséquences psychologiques qu'elle entrainait, pouvait
être traité. Ce que j'ai pu lire de la correspondance de Berr avec Lucien Febvre et
Augustin Renaudet montre que Berr avait demandé à Renaudet de ne pas composer une
histoire érudite et technique des débuts de l'imprimerie – mais d'en indiquer les
conséquences intellectuelles et morales, et de souligner le retentissement psychique de
cette découverte capitale ; ce qui impliquait la comparaison de l'avant et de l' après. Ce à
quoi Renaudet donna son plein accord .7
Il avait, semble-t-il, promis à Febvre de se mettre au travail en 1926. Est-ce la difficulté
du sujet qui le fit reculer ? Il semble en fait qu'il ait réservé la priorité à la publication
de trois manuels parus entre 1929 et 1931 dans la collection Peuples et civilisations
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dirigée par Louis Halphen, lui aussi apparenté à Durkheim. D'où cette remarque
désabusée qu'on trouve d'une lettre de Febvre à Pirenne du 7 janvier 1930 : « Je ne sais
pas pourquoi il s'en était dégoûté [de l'Apparition du livre] et paraissait médiocrement
soucieux de l'écrire ». Ce à quoi Febvre ajoute : « Comme ce magnifique sujet m'a
toujours attiré, je lui ai demandé de me le céder ».8
On sait cependant que le livre prévu resta encore quelque 25 ans à l'état de projet. On
peut certes attribuer ce retard à la surcharge de travail de Lucien Febvre qui n'eut
jamais le temps de s'y consacrer, et à la difficulté de trouver un spécialiste en ce
domaine. Mais pour ma part, j'ai été frappé par le fait qu'il n'était pas question dans la
correspondance que j'ai consultée de l'aspect économique du problème. S'il en allait
ainsi, c'est bien que l'histoire économique était alors à peu près inexistante. Il aurait
donc été psychologiquement difficile à Renaudet de prendre en considération ce qui fit
du livre imprimé une marchandise avec toutes les conséquences que cela comportait.
Par ailleurs, seul un émigré russe nommé Nicolas Roubakine avait consacré en 1922 une
étude à la psychologie bibliologique qui étudiait les rapports de l'auteur avec le lecteur
par l'intermédiaire du texte, et demandé qu'on étudie le livre « comme une sorte
d'engin, d'appareil, d'instrument psychologique destiné à provoquer dans l'être
psychique du lecteur des expériences et déterminations complexes », ceci en recourant
aux méthodes des sciences naturelles.9 Cependant, la primauté du livre n'apparaissait
pas encore menacée et l'étude des communications était encore dans les limbes. Soit
autant de problèmes dont certains étaient plus aisément solubles lorsque j'ai écrit
1'Apparition du livre, tandis que d'autres, repoussés par Lucien Febvre en un second
volume, ne sont pas encore entièrement résolus.
Tout cela montre bien que la recherche historique ne peut progresser, comme Henri
Berr et Lucien Febvre l'avaient bien vu, qu'au rythme de l'ensemble de la recherche
scientifique. Ce qui explique les nouvelles entreprises dans lesquelles l'un et l'autre
s'engagèrent, ensemble ou séparément, à partir de 1920. L'une d'elles est évidemment
le lancement de la revue des Annales par Lucien Febvre et Marc Bloch. Je suppose cette
histoire assez connue pour ne pas y revenir ici. Mais il en est deux autres sur lesquelles
je voudrais insister parce qu'elles me semblent caractéristiques d'une époque et de
formes d'idéologie sur lesquelles il me semble opportun de réfléchir aujourd'hui.
La première est la création par Henri Berr en 1925, d'un Centre international de
synthèse installé deux ans plus tard dans ce qui restait du noble Hôtel de Nevers, à côté
de la Bibliothèque nationale. Berr avait disposé pour cette création de puissants
soutiens politiques, ceux de Paul Doumer, très lié à la franc-maçonnerie, ministre des
finances (1925-1926) et vice Président du Sénat (1927-1931) avant de devenir Président
de la République, ainsi que d'Emile Jeanneney et d'Edouard Herriot qui présideront le
Sénat et la Chambre des députés. A côté d'eux, cependant, le Conseil d'Administration
comportait Einstein, lord Ernst Rutherford, prix Nobel de chimie pour ses travaux sur
la structure de l'atome, et l'anthropologue britannique James Georges Frazer. Il était
partagé en différentes sections réunissant plusieurs dizaines de membres, français et
étrangers, dont celles de synthèse historique dirigée par Berr et Febvre et des sciences
de la nature sous la direction du grand physicien français Paul Langevin, très lié à
Pierre et de Marie Curie, qui avait failli être le premier, selon une déclaration
d'Einstein, à énoncer la théorie de la relativité restreinte. On voit bien là l'intention de
rapprocher scientifiques et littéraires, hommes politiques et universitaires dans une
réflexion commune. Ce travail de fond était rythmé par des semaines de synthèse
traitant des sujets les plus divers10 et dont le résultat le plus marquant fut de favoriser
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le développement en France de travaux d'histoire des sciences, qui aboutirent à la
rédaction d'une Histoire generale des sciences sous la direction de René Taton, sans
cependant faire admettre ce type de recherche de plein droit dans l'université française
toujours conservatrice.
Bientôt cependant, et dans le même esprit, Anatole de Monzie, ministre de l'Education
nationale, prenait la décision de lancer une Encyclopédie ,française selon l'idéologie qui
avait été celle de la Grande Encyclopédie de d'Alembert et Diderot.
J'ai expliqué ailleurs comment Lucien Febvre fut nommé en même temps qu'il était élu
Professeur au Collège de France, secrétaire general, soit en fait directeur de
l'Encyclopédie française qu'il organisa en volumes thématiques et qui réunit quelque 700
auteurs. Malheureusement, celle-ci fut interrompue en 1940 et les derniers volumes
furent achevés après la guerre sous la direction du philosophe Gaston Berger qui fit
largement appel au Prince de Broglie, prix Nobel de Physique.11
On se doute de ce que pouvait représenter pour Febvre la direction d'une telle oeuvre
qui le mettait en contact avec les meilleurs esprits du temps et je puis témoigner, par
les conversations que j'ai eues avec lui, qu'il fut ainsi incité à élargir ses vues au-delà de
la simple histoire, d'autant plus qu'il travaillait en étroite union avec son camarade
Henri Wallon, devenu médecin et spécialiste de la psychologie de l'enfance. Soit des
relations dont il tira à mon sens les meilleures pages de son Rabelais et le problème de
l'incroyance, il posait à travers une étude de vocabulaire, le problème de l'outillage
mental de l'homme et de son évolution selon les époques. Ce qui montre clairement
qu'un historien novateur doit se tenir au courant de la recherche en dehors de sa
propre discipline, surtout lorsqu'il s'occupe de problèmes telles que ceux des
communications.
Par ailleurs, Julien Cain, éminence grise de la République qui avait préparé le Front
populaire en réconciliant Edouard Herriot et Léon Blum avant d'être nommé à la tête
de la Bibliothèque nationale, réclama et obtint qu'un des volumes de l'Encyclopédie fut
consacré au livre et à l'édition de l'époque – soit un travail qui fut particulièrement
stimulant pour moi lorsque je préparais de l'Apparition du livre.
Telles sont les conditions dans lesquelles je me trouvai amené à travailler sous la
direction de Lucien Febvre à l'Apparition du livre qui, commencée en 1953 à partir d'un
plan qu'il m'avait remis, fut publiée un an après sa mort, en 1959.12 Je n'ai point à parler
de cette publication si ce n'est pour rappeler qu'elle avait été relue et approuvée par
Febvre avant sa mort à l'exception du dernier chapitre. Cependant, je dois ajouter qu'il
s'agit d'une entreprise inachevée. J’ai souvent expliqué à ce propos que Febvre avait
prévu deux volumes, le premier intitulé Le livre cette marchandise et second Le livre, ce
ferment. Mais, lorsqu'il avait rédigé le plan qu'il me remit, il s'était arrêté au milieu de la
seconde partie, quand il était arrivé à Descartes, parce que, m'expliqua-t-il « il ne
voyait plus » – ce qui m'amena à me borner à joindre simplement aux chapitres
consacrés au livre cette marchandise, un dernier chapitre intitulé « Le livre ce ferment
» consacré seulement au rôle joué par le livre au XVe et au XVIe siècle.
Lucien Febvre ne m'a jamais expliqué ce qui l'avait arrêté lorsqu'il traitait du « livre ce
ferment ». Cependant, il me l'a fait pressentir en me disant lors d'une de nos dernières
entrevues que j'avais encore beaucoup de progrès à faire et qu'il fallait pour cela que je
commence par lire Condillac. Voilà dons avec quel viatique j 'ai essayé d'aller plus
avant. Ce faisant, j'ai été très influencé par l'exercice de mon métier. Chargé de
construire une grande bibliothèque à Lyon et d'organiser dans cette ville un réseau de
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lecture publique, j'ai dû m'occuper de lecture vraiment populaire et faire face à une
demande croissante de lecture, je tiens à souligner ce point à l'intention de ceux qui
annoncent la mort du livre ; j 'ai donc dirigé des enquêtes de caractère
psychosociologique sur la lecture et je me suis vu un temps chargé de responsabilités
concernant l'informatisation des bibliothèques françaises. En même temps j'ai été
chargé d'enseigner l'histoire du livre à l'Ecole nationale des bibliothèques et à l'Ecole
des chartes, ce qui m'a amené à m'initier aux théories de l'information. Comme tous
mes contemporains enfin, j'ai été frappé par l'impact croissant de la télévision et de la
publicité – fruit amer à mês yeux de la psychosociologie à l'américaine.13 Au cours de ce
long parcours, je réalisai qu'on ne peut comprendre une époque que si on prend en
compte l'ensemble des connaissances alors acquises, comme Berr et Febvre avaient
rêvé de le faire. Autrement dit, il faudrait se représenter, en quelque sorte, la
structuration des esprits – et tout particulièrement ce que Popper appelle le monde 3,
celui des idées et des connaissances qui ont en quelque sorte conquis leur autonomie
dans les pensées de chacun, tandis que le Monde 1 est celui des choses et des états
matériels et le Monde 2 celui des perceptions, de la pensée, des émotions ou des
intentions.14 Ainsi, donc, à mesure que j'étais le témoin et participai quelque peu à la
révolution des communications, j'avais de plus en plus le sentiment qu'il serait
essentiel de dégager ce qui pouvait faire la spécificité du livre qui lui permettait de
façonner les sociétés où il était le medium dominant.
Je laisse à Jean-Dominique Mellot le soin de rappeler l'évolution de l'histoire du livre en
France et d'indiquer les perspectives qui lui sont ouvertes aujourd'hui. Je rappellerai
simplement que je n'étais pas le seul désormais à travailler. J'ai bénéficié de l'appui et
de l'amitié de nombreux spécialistes anglais de la bibliographie matérielle, dont l'un,
Don McKenzie, a donné des études exceptionnelles sur la psychologie de la lecture. J'ai
eu la chance d'avoir de nombreux élèves, de travailler en étroite liaison avec Roger
Chartier qui s'est consacré avant tout à la psychologie de la lecture, et avec Daniel
Roche, qui vient d'écrire un beau livre sur l'histoire du vêtement aux XVIIe et XVIIIe
siècles, baptisé La culture des apparences. Et je me réjouis vivement de voir des pays de
vieille tradition comme le Portugal et l'Espagne développer aujourd'hui les études sur
le livre en tant qu'objet patrimonial et instrument de communication.
I1 est enfim deux points sur lesquels je voudrais insister. Le premier concerne mes
travaux, mais aussi ceux de mon ami Paul Saenger, sur les manières de lire. J'avait été
très frappé par le fait que les Anciens, les Grecs et surtout les Latins, avait l'habitude de
lire leurs livres à haute voix. En outre, j'avais constaté que les manuscrits du Haut
Moyen Age que je conservais à Lyon étaient écrits, comme les papyrus anciens, en
écriture continue, autrement dit sans séparation entre les mots et sans alinéas. Je
rencontrai alors Paul Saenger à Chicago et celui-ci m'expliqua que l'examen attentif des
manuscrits écrits entre le VIlle et le XIIe siècle lui avait montré qu'on avait commencé
par découper les syllabes pour les bien prononcer à l'époque carolingienne, mais qu'on
avait commencé à isoler les mots aux Xe-XIe siècles, ce qui ouvrait la porte à la lecture
muette. Dès lors, tout apparaissait clairement et l'organisation des pages ainsi que les
indexations m'ont semblé refléter l'évolution de la pensée à la fin Moyen Age comme je
l'ai signalé dans Histoire et pouvoirs de l'écrit.15 Restait à poursuivre l'enquête. Profitant
de ma retraite, je me suis constitué une base de données de 11.000 vues de pages de
livres antérieurs à la fin du XVIIe siècle, et j'ai essayé de montrer comment la logique
d'une époque correspondant à la naissance du livre moderne, entre le XlVe et le XVIIe
siècle, se manifestait dans la mise en page des textes. Et il m'est apparu avec évidence
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que la révolution cartésienne était étroitement liée à l'adoption systématique d'une
division par paragraphes dont j'ai retracé l'histoire. Soit un changement des
présentations des textes en relations étroites avec de nouvelles manières de penser,
d'écrire et de lire. Il n'est que de songer au passage du roman historique en plusieurs
tomes à pages pleines entrecoupées de conversations, à la nouvelle psychologique de la
fin du XVIle siècle. Soit une évolution qui fit passer les Français d'une littérature
classique largement constituée pour dite à haute voix – qu'il s'agisse des sermons ou
des oraisons funèbres de Bossuet ou des pièces de théâtre de Corneille, Molière et
Racine – la littérature des Lumières conçue pour être lue à voix basse et ressentie d'une
tout autre manière.
Le livre que j'ai consacré à ce sujet est très illustré et se présente comme un livre de
luxe.16 Il n'est donc pas très répandu et il faudra sans doute attendre, mais j'en ai
l'habitude, pour que ces thèses soient adoptées dans le monde universitaire français. A
partir de là cependant, il m'est apparu que le rôle des signes d'écriture, des schémas et
des tableaux dans l'évolution de la recherche scientifique méritait réflexion, tout
autant que les mots et les systèmes de classification. J’ai donc rédigé, à mon intention,
pour éclaircir mes idées en ce domaine, un volume d'histoire des sciences dont j'ai fait
contrôler les assertions par un spécialiste afin de m'en servir dans une publication ulté
rieure. Et, à partir de là, j'ai commencé à rédiger un ouvrage intitulé Pour une histoire de
la civilisation européenne, axé sur les systèmes de communication qui ont conféré à notre
petit continent sa cohérence, ouvrage dont la nécessité me semble aujourd'hui
particulièrement évidente dans le contexte mondial que nous connaissons tous ici. Si
Dieu me prête três longue vie, cette publication comprendra trois volumes. Le premier
qui est en achèvement porte comme sous-titre Les fondements et je me bornerai à
indiquer qu'il part de chapitres consacrés à l'avènemcnt d'Homo sapiens et à l'homme
face à son langage, pour traiter ensuite de la constitution de l'espace européen, de son
peuplement, pour en arriver à une présentation des sociétés orales, de leurs cultures,
de leurs valeurs et de leurs religions, en insistant sur les sociétés de langue indo-
européennes et aboutir aux origines si complexes de l'écriture alphabétique et
comprendre les conséquences psychologique de l'adoption de ce système. Après quoi
suivra un volume déjà bien avancé sur le règne de l'écriture basé sur l'étude des
instruments de communication et des systèmes de pensée dominants durant le Moyen-
Age et les Temps modernes. Puis viendrait, si Dieu me prête toujours vie, un dernier
volume sur l'Europe de la mondialisation au temps de la révolution médiatique, -
ouvrage pour lequel j'espère trouver un collaborateur. J'aurai alors atteint sans nul
doute le niveau de Peter – celui où chacune parvient à son point d'incompétence –
niveau où je me trouvait peut-être déjà en méditant ce projet.
Ainsi, l'histoire du livre, intégrée à une histoire plus générale des communications,
permettrait, me semble-t-il, de mieux comprendre ce que les peuples européens
peuvent avoir de commun et de rappeler la nécessité d'y maintenir une pensée
humaniste informée des différents aspects de la recherche actuelle, et porteuse de ce
que nous sommes, face à tous les utilitarismes.
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NOTES
1. Frédéric Barbier, L'Empire du livre, Paris, Editions du Cerf, 1995.
2. J. Goldfriedrich et F. Kapp, Geschichte des deutschen Buchandels, Leipzig, Verlag des Börsevereins
der deutschen Buchandels, 1886-1903, 4 volumes.
3. Henri-Jean Martin, « Le sacre de Gutenberg », Revue de synthèse, IVe série, janvier-juin 1992, p.
15-27.
4. Valérie Tesnière, Le Quadrige, Un siècle d'édition universitaire, 1860-1968, Paris, Presses
universitaires de France, 2001.
5. J'ai encore travaillé sous la direction de Jean Meuvret dans les cours de François Simiand et je
saisis cette occasion pour regretter que la statistique bibliographique soit autan négligé de nos
jours, sans doute parce que les historiens du livre reculent devant l'effort que tout travail de ce
type implique. En fait, il ne sera par exemple pas possible d'écrire une histoire du livre européen
sans recourir à de telles méthodes et le recours à l'informatique devrait y aider
considérablement. Resterait cependant à procéder à une étude critique préalable faite par des
spécialistes de technique du livre, qui manque de nos jours, pour savoir ce qu'on entend compter
et dans quels buts. Soit un travail collectif qui devrait être encouragé par des institutions
internationales.
6. Voir sur Henri Berr, Henri Berr et la culture du XX e siècle, sous la direction de Agnès Biard,
Dominique Bourel, Eric Briand, Paris, Albin Michel, 1997.
7. Jacqueline Pluet-Despatin, « Henri Berr éditeur », Henri Berr et la culture du XXe siècle, ouvr. cit.,
p. 248 ; Lucien Febvre, Lettres à Henri Berr, présentées et annotées par Jacqueline Pluet et Guies
Candar, Paris, Fayard, 1997, p. 203-206.
8. Jacqueline Pluet-Despatin, « Henri Berr éditeur », Henri Berr et la culture du XXe siècle, ouvr. cit.,
p. 261.
9. Nikolas Roubakine, Introduction à la psychologie bibliologique, Paris, J. Povolosky, 1922, p.; cf.
Robert Escarpit, dir., Le littéraire et le social, Paris, Flammarion, 1970, p. 284-296.
10. A côté de colloques sur la Relativité (1930), la théorie des Quanta (1931) ou l'invention (1937),
je me permettrai de mentionner ici la XXIIe semaine de synthèse sur l'Ecriture et la psychologie des
peuples, tenu en 1960 à la suite de la publication de l'Apparition du livre, Paris, Armand Colin, 1963.
Les actes de ce colloques comptent parmi les trois ouvrages qui ont inspiré à Jacques Derrida la
rédaction de sa fameuse Grammatologie (Paris, Editions de minuit, 1967, p.7) sur laquelle je
partage les réserves de Sylvain Auroux (La révolution technologique de la grammatisation, Paris,
Mardaga, 1994, p.156-158). Ce colloque fut à l'origine d'une série d'autres réunions dirigées par
Anne-Marie Christin qui ont abouti à la publication sous la direction de celle-ci d'une importante
Histoire de l'écriture. De l'idéogramme au multimédia, Paris, Flammarion, 2001.
11. « Esprit de synthèse et encyclopédie. Henri Berr, Anatole de Monzie, Julien Cain, Lucien
Febvre ». Tous les savoirs du monde. Encyclopédies et bibliothèques de Sumer au XXle siècle, dir. Roland
Schaer, Paris, B.N.F.-Flammarion, 1996, p.442-449 ; Valérie Tesnière, Eric Brian et Bertrand
Müller préparent une étude d'ensemble sur l'Encyclopédie française.
12. Voir à ce sujet la Postface de Frédéric Barbier à : Lucien Febvre et Henri-Jean Martin,
L'apparition du livre, 3e éd., Paris, Albin Michel, 1999, p. 539-579.
13. Voir sur ces sujets Henri-Jean Martin, Les Métamorphoses du livre. Entretiens avec Jean-Marc
Chatelain et Christian Jacob, Paris, Albin Michel, 2004.
14. Karl Popper, La connaissance objective, trad. fr. Jean-Jacques Rosat, Paris, Flammarion, 1991 (1e
édition anglaise 1972), notamment p. 138-139, 181-210, 231-236 ; cf. Renée Bouveresse, Karl Popper
ou le rationalisme critique, Paris, Vrin, 1998, p. 110-115.
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18
15. Voir sur ce thème: Henri-Jean Martin, "Pour une histoire de la lecture", Le Débat, 22,
novembre 1982, p. 160-177 ; Paul Saenger, Space between words, the origins of silent reading,
Stanford, Stanford University Press, 1997; Henri-Jean Martin, Histoire et pouvoirs de l'écrit, 2e éd.,
Paris, Albin Michel, 1996 (le éd., Paris, Perrin, 1988).
16. Henri-Jean Martin, La Naissance du livre moderne. Mise en page et mise en texte du livre français
(XlVe-XVIle siècles), avec la collaboration de Jean-Marc Chatelain, Isabelle Diu, Aude Le Dividich et
Laurent Pinon, Paris, Electre, 2000.
ABSTRACTS
A história do livro é uma invenção alemã nascida das celebrações de Gutenberg, festejadas
anualmente naquele país. No último terço do século XIX, em França, Durkheim desenvolveu uma
escola sociológica influente que pretendeu anexar a história. Contra o que se opôs um dos seus
companheiros da Escola superior normal, Henri Berr. Desde logo acompanhado pelo jovem
Lucien Febvre, criou a Revue de synthèse que abriu caminho aos Annales e fundou a colecção da
Evolution de L'Humanité, cujos cem volumes deveriam estudar os grandes momentos da história
humana. De entre os volumes previstos, figurava um dedicado à Apparition du Livre que demorou a
surgir. Paralelamente Berr e Febvre organizaram um trabalho interdisciplinar fecundo, o
primeiro com o Centre de Synthése, o segundo com a publicação de uma Encyclopédie française, o que
renovou a escola histórica francesa. A Apparition du Livre, publicada em 1959, inscreve-se neste
contexto, mas ficou de certa forma incompleta na medida em que se deveria ter inscrito, mais
claramente, no quadro de uma história geral das comunicações que se começa hoje a
desenvolver.
L'histoire du livre est une invention allemande, née des célébrations de Gutenberg feté
annuellement dans ce pays. En France, dans le dernier tiers du XIXe siècle, Durkheim développa
une école sociologique influente qui prétendit annexer l'histoire, ce contre quoi un de ses
camarades de l'Ecole normale supérieure, Henri Berr, s'éleva. Très tôt secondé par le jeune
Lucien Febvre, il créa la Revue de synthèse qui prépara la route aux Annales et fonda la collection de
l'Evolution de l'humanité dont les cent volumes devaient étudier les grands moments de l'histoire
humaine. Parmi les volumes prévus figurait une Apparition du livre qui tarda à voir le jour.
Parallèlement Berr et Febvre organisèrent le premier avec un Centre de synthèse, le second avec la
publication d'une Encyclopédie française, un travail interdisciplinaire fécond qui favorisa le
renouvellement et l'essor de l'école historique française. L'Apparition du livre, publiée en 1959,
s'inscrit dans ce contexte mais elle resta en quelque sorte incomplète dans la mesure oú elle
aurait du s'inscrire plus nettement dans le cadre d'une histoire générale des communications qui
commence seulement à se développer aujourd'hui.
INDEX
Mots-clés: histoire du livre, Henri Berr, Lucien Febvre, histoire des communications
Palavras-chave: história do livro, Henri Berr, Lucien Febvre, história das comunicações
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AUTHOR
HENRI-JEAN MARTIN
EPHE, Paris.
Foi professor na Escola de Chartes e na École Pratique des Hautes Études. Autor de, entre outras
obras, L'apparition du livre (com Lucien Febvre) (1958), Livres, pouvoirs et société à Paris au XVIIe
siècle (1598-1701), 2 vols., (1969); Histoire de l'édition française, (dir. com Roger Chartier) 4 vols.,
(1983-1986); Le livre français sous l'Ancien Régime (1987), Histoire et pouvoirs de l'écrit (1988), Mise en
page et mise en texte du livre français. La naissance du livre moderne (XIVe-XVIIe siècles) (2000), Les
métamorphoses du livre (entrevistas) (2004).
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Histoire du livrePoints de vue sur l’évolution d’une discipline
História do Livro: Pontos de vista sobre a evolução de uma disciplina
Jean-Dominique Mellot
Histoires de livres et « protohistoire du livre »
Le livre et plus généralement l'écrit sont des médias qui imprègnent depuis longtemps
nos sociétés – Henri-Jean Martin vient de le rappeler. De sorte que l'on a longtemps fait
pour ainsi dire de l'histoire du livre « sans le savoir ». Le livre en effet a été d'abord une
évidence sur laquelle l'histoire générale s'est appuyée sans autrement y réfléchir. Puis,
au fil des découvertes, on a étudié les supports livresques successifs : tablettes d'argile
mésopotamiennes, rouleaux de papyrus du Bassin méditerranéen, codices du monde
romain et au-delà, sur parchemin puis sur papier, plus près de nous livres imprimés au
moyen de caractères mobiles de métal, et ainsi de suíte jusqu'aux livres brochés et
imprimés en série, voire aux éditions numériques.
Pour étudier ces types de livres successifs, il a fallu et il faut toujours mettre en oeuvre
des disciplines et des sciences auxiliaires de l'histoire aussi incontournables que
l'archéologie, la papyrologie, la codicologie, la paléographie, l'histoire de la
typographie, etc. – dont chacune apporte sa pierre suivant les périodes et les
géographies concernées.
Mais, au-delà de ces approches compartimentées, à dominante technique et
archéologique, il est apparu peu à peu que l'on devait aussi et surtout envisager le livre,
dans le temps long de son existence, suivant la perspective la plus large et la plus
globale qui soit, en interrogeant ses usages sociaux, les enjeux économiques et
politiques induits, les pratiques culturelles associées...
Cette forme d'approche, large et pluridisciplinaire, est caractéristique de ce que l'on
appelle aujourd'hui l'histoire du livre. C'est cette approche qui façonne notre regard sur
le livre à travers les siècles. C'est elle aussi qui inspire depuis quelques décennies une
foule de recherches sur l'univers du livre et son articulation avec les autres médias.
Mais une telle démarche n'allait pas de soi. Elle supposait un changement de regard et
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une vaste entreprise de décloisonnement. Pour suivre cette démarche et tenter de
comprendre comment l'histoire du livre s'est construite en Occident, je vous propose
donc à présent un aperçu qui se veut à la fois historique et épistémologique. Aperçu qui
sera suivi d'une brève réflexion sur les perspectives offertes aujourd'hui à l'histoire du
livre.
L'Ancien Régime européen, à défaut d'histoire du livre,1 a vu naitre d'abord un intérêt
certain pour l'histoire de l'imprimerie à caractères métalliques mobiles, cet « art divin
» (selon l'expression de l'époque), qui permettait de multiplier notamment les écrits
religieux. Très tôt – dès le début du XVIe siècle – on en a donc commémoré l'«
invention » par Gutenberg.2
Témoin de cet intérêt, 1'Histoire de l'origine et des premiers progrès de l'imprimerie (La Haye,
1740), histoire érudite due à une figure de la « République européenne des lettres », le
libraire protestant français Prosper Marchand, réfugié en Hollande. Parallèlement, on
voit se développer à la même époque l'attrait bibliophilique des éditions incunables
(autrement dit nées au berceau de l'imprimerie, avant 1501), qui jusque-là étaient
souvent qualifiées péjorativement de « gothiques ». Cette nouvelle curiosité stimule les
travaux de bibliographie savante et notamment l'élaboration du premier répertoire
d'incunables, dû au Britannique Michael Maittaire (Annales typographici ab artis inventae
origine..., La Haye – Londres, 1719-1741). Puis, au cours du XVIIIe siècle, l'héritage
imprimé humaniste de la Renaissance retient à son tour l'intérêt des amateurs et des
érudits.
La Révolution française, quant à elle, exalte Gutenberg comme le premier artisan de la
diffusion des Lumières en Europe ; c'est alors qu'on identifie l'imprimerie au «
flambeau de la Liberté » des peuples.
Le XIXe siècle, en revanche, va inspirer une historiographie souvent plus érudite mais
moins universaliste : en Europe, l'histoire de l'imprimerie et de ses premiers
monuments vient alors illustrer l'affirmation des identités nationales – le cas est
particulièrement net en Allemagne, comme vient de le rappeler H.-J. Martin. Mais le
XIXe siècle voit aussi bibliothécaires, libraires, collectionneurs et érudits se lancer dans
des travaux de bibliographie savante, solides,3 qui font nettement progresser la
description et la connaissance des éditions, pour les XVe et XVIe siècles principalement.
Toutes avancées dont l'histoire du livre actuelle peut être, partiellement, considérée
comme l'héritière.
Parmi ces travaux relevant de ce qu'on peut appeler la « protohistoire du livre », deux
champs plus ou moins interpénétrés se détachent donc : celui de l'histoire technique et
professionnelle (typographie et arts graphiques), et surtout celui de la production
imprimée des siècles d'or de la renaissance des lettres en Occident, XVe et XVIe.4
Le problème de ce type d'histoire, c'est qu'il était d'abord affaire de spécialistes, de
professionnels ou d'amateurs du livre tels que libraires, bibliothécaires et bibliophiles.
Lesquels avaient certes un accès aisé aux volumes (à la différence de la plupart des
universitaires français – on vient de le rappeler), mais travaillaient en marge de
l'histoire officielle et de la reconnaissance académique. L'histoire littéraire et l'histoire
intellectuelle étaient alors fondées exclusivement sur l'étude des oeuvres et des auteurs
consacrés, et non sur une approche de l'ensemble de la production livresque, ni encore
moins de l'objet livre. Et on allait se satisfaire longtemps de cette situation de
déconnexion.
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22
L'Apparition du livre : gestation et émergence d'unediscipline aujourd'hui choyée
En revanche, à partir du début du XXe siècle, l'ouverture de l'histoire à la sociologie5 et
la montée en puissance des concepts de « sciences humaines » et d'« interdisciplinarité
» vont contribuer à créer de nouvelles attentes. Ces attentes – cela a été bien rappelé
dans la postface de Frédéric Barbier à la nouvelle édition de L'Apparition du livre, en 1999
– se font jour dans la mouvance de la Revue de synthèse historique, qu'H.-J. Martin vient
d'évoquer, revue fondée en 1900 par Henri Berr (1863-1954) et à laquelle collabore
activement Lucien Febvre (1878-1956). Avec Febvre nait le projet d'explorer la
dimension culturelle de la sociologie historique, et en particulier le concept d'« histoire
des mentalités » qui connaitra au cours du XXe siècle le succès que l'on sait. Lucien
Febvre, dans cette perspective, est persuadé qu'il y aurait beaucoup à tirer d'une
histoire du livre dépassant le champ de l'érudition. Une histoire du livre qui permettrait
d'appréhender une époque en approchant au plus près l'ensemble de son offre de
lectures, et non plus seulement ses oeuvres devenues classiques. Mais en attendant,
rien n'émerge, et Febvre s'indigne dans un texte de 1952 resté célèbre :
« L'histoire du livre, terra incognita. Non que fassent défaut les travaux d'érudition[..] Mais [..] l'histoire de l'imprimerie n'est que trop rarement intégrée à l'histoiregénérale. Des historiens « littéraires » peuvent encore disserter à longueur dejournée sur leurs auteurs sans se poser les mille problèmes de l'impression, de lapublication, de la rémunération, du tirage, de la clandestinité, etc., qui feraientdescendre leurs travaux du ciel sur la terre. »6
Autrement dit, ceux qui alors sont censés être les historiens de la culture se
désintéressent de l'un de ses fondements majeurs, à savoir le livre. Pourquoi ? Parce
que, comme le dira plus tard H.-J. Martin, ils y voient un « objet sans problème sinon
sans histoire ».
Cette situation ne fait que conforter Lucien Febvre dans le projet d'entreprendre un
ouvrage fondateur sur l'histoire du livre. Un ouvrage qui viendrait prendre une place
de choix dans la collection « L'Évolution de l'humanité » – dont la contribution
précédente vient de resituer l'importance. En dépit de son enthousiasme pour ce
nouveau chantier, Febvre, comme on l'a vu, va sans cesse en différer la réalisation.
Faute de pouvoir mener seul le projet à bien, il cherche un collaborateur spécialiste. Il
va le trouver, au début des années 1950, en la personne d'Henri-Jean Martin, jeune
bibliothécaire issu de l'École des chartes et alors en poste à la Réserve de la
Bibliothèque nationale. D'emblée, nos deux auteurs sont d'accord sur le but visé ; il
s'agit de tirer profit des acquis de l'érudition et de la bibliographie accumulés autour
du livre (qu'H.-J. Martin connait bien et dont il mesure aussi les limites), mais de les
intégrer dans le champ beaucoup plus large d'une « histoire sociale du livre ». Le tout
en s'appuyant autant que possible sur les méthodes quantitatives alors en plein essor.
Le pari est relevé entre 1953 et 1958 avec l'élaboration puis la publication de
L'Apparition du livre. Initialement, l'ouvrage devait comprendre deux volumes bien
distincts et complémentaires, « Le Livre, cette marchandise » et « Le Livre, ce ferment
». Comme le résumera plus tard Henri-Jean Martin dans l'article « Histoire du livre » du
Dictionnaire encyclopédique du livre,7 « la rédaction du premier [volume] ne posait pas
trop de problèmes en ces années 1950 : l'acquis érudit était considérable en ce domaine
et [...] l'histoire économique et sociale proposait une problématique. En revanche, la
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23
réflexion sur les communications n'était pas même à ses débuts et Febvre lui-même ne
put esquisser que le début du plan de ce second volume, dont le tiers seulement fut
rédigé... ». Et il est vrai qu'il manquait encore un certain nombre d'outils conceptuels
pour mener à bien de façon satisfaisante l'étude de ce que Lucien Febvre appelait «
l'action culturelle et l'influence du livre ».
Tel quel – et malgré son titre critiquable (de fait, on y traite non pas de l'apparition du
livre mais de celle du livre imprimé) cet ouvrage répondait pourtant à plus d'une attente.
On a relevé à juste titre qu'il n'a pas suscité en France l'intérêt immédiat de la
communauté universitaire. Peu de comptes rendus lui ont été consacrés lors de sa
parution. Toutefois, il a très tôt retenu l'attention d'historiens issus de l'École des
chartes et de professionnels des bibliothèques. Désormais, selon le mot du chartiste
Charles Samaran (1879-1982), l'histoire du livre s'inscrivait « dans le cadre infiniment
plus vaste de l'histoire de la civilisation ».8
Si L'Apparition du livre n'était pas d'emblée consacrée comme un classique de
l'historiographie française, une « histoire globale du livre » émergeait bel et bien. Et
elle avait tout pour séduire d'autres chercheurs à l'étranger, notamment dans le monde
anglophone où les problématiques de la bibliographie matérielle avaient déjà réconcilié
histoire littéraire et bibliographie érudite. Dès 1962, des traductions anglaise et
espagnole étaient publiées, suivies d'éditions italiennes (1977, 1983), japonaise (1985),
portugaise (2000), et tout récemment (2005) chinoise.
L'histoire du livre, en quelques années, avait gagné ses lettres de noblesse. Discipline
reconnue et autonome, elle faisait bientôt l'objet en France d'un enseignement
particulier, tout d'abord à l'École pratique des hautes études et à l'École nationale des
chartes, puis progressivement dans le reste du monde universitaire. Discipline neuve,
elle mobilisait un faisceau d'approches historiennes aussi bien techniques
qu'économiques, sociales, intellectuelles, culturelles ; elle permettait d'investir sans
cesse de nouveaux « territoires » de recherche et suscitait à ce titre la curiosité et
l'enthousiasme de générations d'étudiants à partir des années 1960 et 1970.
Maturité, approfondissements, renouvellements
L'histoire du livre, en multipliant ses centres d'intérêt, ses méthodes, ses sources, ses
périodes et ses géographies de reference, ne perdait cependant pas de vue l'idéal d'une
histoire globale, d'une histoire « totale » lue à travers le prisme du livre. C'est cette
exigence qui a inspiré d'abord une Histoire de l’édition française, publiée sous la direction
d'Henri-Jean Martin et Roger Chartier entre 1982 et 1986 en 4 volumes (réimpr. en
format réduit en 1989-1991), puis différentes entreprises similaires en Espagne, en
Grande-Bretagne, aux Etats-Unis, en Australie, etc. Ensuite dans la même ligne une
Histoire des bibliothèques françaises (1988-1992, 4 vol.). Et tout dernièrement un Dictionnaire
encyclopédique du livre, que je codirige, qu'H.-J. Martin a préfacé, et dont j'ai l'honneur
de présenter ici le tome II, paru cette année (3 vol. sont prévus en tout).
Autrement dit, en synthétisant et en vulgarisant ses acquis, en levant les
cloisonnements inhérents à toute spécialisation, en se remettant constamment en
question,9 l'histoire du livre a su, dans les dernières décennies, démontrer ses capacites
à relever les défis d'une exigence permanente de dépassement.
Et cette dynamique est loin de prendre fin avec les grandes entreprises évoquées à
l'instant. Celles-ci ont au contraire joué et jouent toujours un rôle de tremplin et de
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24
stimulant pour de nouvelles recherches ou pour des remises en perspective. Parmi
d'autres, un certain nombre d'approfondissements – je n'en citerai que quelques-uns –
sont engagés, sur des questions aussi diverses et essentielles que :
– l'histoire des pratiques de lecture, de la réception et de l'appropriation des textes
(courant de recherche impulse par R. Chartier) ;
– la réappréciation du statut du livre à travers une relecture des constructions
institutionnelles qui ont encadré sa production ;
– la collaboration croissante avec les historiens de la presse périodique et du
journalisme, mais aussi avec les codicologues et les spécialistes des manuscrits ;
– le rapprochement prometteur esquisse en direction de l'histoire littéraire, grâce à la
sociologie de la littérature et des textes, à l'exploitation de concepts tels que le «
paratexte » et aux apports de la bibliographie matérielle ;
– le renouveau des études statistiques dans une perspective comparative, grâce à
l'informatisation des catalogues de bibliothèques patrimoniales ;
– de même, des champs plus traditionnels de l'histoire du livre et de l'imprimerie, tels
que l'histoire de l'innovation technique et l'histoire sociale des métiers du livre et de la
presse, ont commencé d'être revisités pour les XIXe et XXe siècles...
Toujours soucieux d'élargir les perspectives, H.-J. Martin lui-même, depuis sa thèse
Livre, pouvoirs et société à Paris au XVIIe siècle (1969, 2 vol.), n'a cessé de prêcher
d'exemple :
– en défrichant de nouveaux territoires par ses travaux sur la morphologie historique
du livre et sur les logiques de sa « mise en texte » du Moyen Âge au XVIIe siècle10 ;
– en appelant aussi la communauté des historiens du livre à cultiver les vertus du
comparatisme11 ;
– ou encore en s'efforçant dans Histoire et pouvoirs de l'écrit de replacer l'histoire du livre
à travers les âges dans une interrogation plus large sur l'écriture et la communication
sociale.12
Histoire du livre et histoire des communications et desmédias : quelle articulation ?
À travers cet ouvrage – Histoire et pouvoirs de l'écrit – s'est exprimée tout
particulièrement l'une des préoccupations majeures et toujours actuelles du fondateur
de l'histoire du livre. Celle de rappeler – je le cite – que « l'histoire du livre constitue,
après tout, un aspect de l'histoire des communications ».13 Et H.-J. Martin d'en appeler
(lors d'une interview accordée au périodique Livres Hebdo l'an dernier) à « un
débordement de la stricte histoire du livre vers une réflexion historique plus generale
sur les rapports entre communication et société ».14
La démarche est louable et même indispensable, au moins depuis la Galaxie Gutenberg de
McLuhan.15 Et le fait que F. Barbier, historien du livre, soit précisément le coauteur
d'une Histoire des médias de Diderot à Internet,16 et qu'il aborde largement la
problématique des concurrences médiatiques dans son manuel d'Histoire du livre,17 doit
nous rassurer sur les capacites qu'a l'histoire du livre à intégrer ces questionnements.
Mais il n'est pas non plus inutile de rappeler que le livre, imprimé ou manuscrit, n'a
jamais été placé, au cours de sa longue existente, en situation de « monopole
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médiatique ».18 L'un des défis fondamentaux qu'ont eu à relever les historiens du livre
dans leur quête d'histoire totale a justement été de chercher à déterminer la « part du
livre » et son influence dans une société donnée – c'est ce que pour ma part j'ai tenté
modestement de faire dans mon travail sur l'édition à Rouen, deuxième ville de France
au XVIIe siècle.19 En effet, même à l'époque où on le dit « triomphant »20 (entre la fim du
XVIIe et le début du XIXe s.), le livre règne sur une société où l'oralité est dominante et
où une partie non négligeable de la population est encore analphabète. Quant aux
lisants, leur premier accès à l'écrit se fait le plus souvent à travers des médias
manuscrits ou imprimés porteurs de messages courts (billets, avis, formulaires,
affiches, feuilles périodiques, nouvelles à la main, chansons, libelles...). Écrits que les
historiens du livre qualifient certes de « non-livres », mais dont ils ne négligent ni
l'importance sociale ni le poids quantitatif, bien que ces supports n'aient été que très
peu conservés.
Il ne faudrait pas oublier non plus que cette « cohabitation médiatique » séculaire a pu
se transformer très tôt en concurrence en temps de crise politique. En France durant la
Ligue (1589-1593), la Fronde (1648-1653), puis surtout la Révolution, on observe
nettement que la production de livres est submergée par une marée de libelles, de
brochures et de feuilles d'information. Pendant la Révolution française, cette
concurrence médiatique devient même idéologique : nombre de journalistes et de chefs
de file politiques proclament en effet que le livre, « article d'Ancien Regime »,
instrument d'une elite aristocratique et cléricale condamnée, doit désormais faire place
aux périodiques et aux brochures d'information « démocratiques » accessibles à tout
citoyen.21 Louis Blanc, dans son Histoire de la Révolution française (1852, 12 vol.),
cautionnera cette vision des choses.
Bien qu'elles n'aient pas donné lieu à une lecture aussi politisée, les vagues successives
de nouveaux médias caractéristiques des deux derniers siècles, qui ont permis de
massifier la circulation des informations, ont été généralement interprétées comme des
concurrences de plus en plus menaçantes pour I'hégémonie supposée22 ou pour la vie
même du livre.
Dans des sociétés de plus en plus alphabétisées et consommatrices, cette vie du livre
s'en est-elle pour autant trouvée atrophiée ? I1 ne semble guère, à première vue.
Elizabeth Eisenstein, ici même à Lisbonne il y a cinq ans, concluait son exposé « Old
media in the new millenium »23 en constatant que l'imprimé n'avait nullement été
supplanté par les nouveaux médias successifs. Il convient même d'observer que les XIXe
et XXe siècles ont été marqués, en Occident en particulier, par une croissance
vertigineuse de la production et de la consommation du livre imprimé. Le livre, Jean-
Yves Mollier l'a encore rappelé dernièrement, a pris toute sa place dans la construction
d'une culture de masse – cela est très net au XIXe siècle. À l'heure actuelle on peut même
dire qu'il ne s'est jamais autant produit et vendu de livres à travers le monde. Jamais
non plus le livre n'a bénéficié d'un public universitaire aussi nombreux et captif. Jamais
il n'a été aussi présent auprès des jeunes enfants, à l'école ou en dehors d'elle. Jamais
les bibliothèques n'ont proposé et prêté autant de livres.24 Jamais le livre n'a bénéficié
de tels moyens de diffusion – n'oublions pas par exemple que les plus importantes
librairies au monde n'exercent que sur Internet...
Il est vrai pourtant que le public, sollicité par d'autres loisirs culturels, consacre
souvent de moins en moins de temps à la lecture de livres, et que le chiffre d'affaires
global du secteur de l'édition reste modeste – en France, il a tout de même été multiplié
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pratiquement par six en un demi-siècle, tandis que la production faisait plus que
quadrupler en nombre de titres.25 De plus, ce secteur, en Occident, se retrouve
aujourd'hui majoritairement entre les moins de grands groupes de communication
(audiovisuel, presse, télécommunications, publicité, divertissement, etc.). Or, pour de
tels groupes, le livre, malgré une importance symbolique certaine, n'est qu'une activité
secondaire, bien moins rentable, bien moins perméable à la publicité et bien moins
stratégique en termes de « médiacratie » que la télévision, la radio, ou même la presse
écrite pourtant en recul dans nos sociétés.
Mais cette situation d'intégration médiatique du livre, voire d'inféodation médiatique
apparente, doit-elle peser sur notre approche scientifique au point que l'on se
demande, comme Martin un jour de doute, lors d'une interview accordée l'an dernier
au Bulletin des bibliothèques de France26 : « Est-ce qu'il y a encore une place pour l'histoire
du livre ? L'histoire du livre doit-elle rester une discipline autonome ou s'intégrer à une
histoire [...] et à une réflexion sur les communications qu'il faudra bien développer un
jour ? »
Retour sur le livre et nouveaux enjeux de son histoire àla lumière des évolutions en cours
L'histoire du livre est-elle autrement dit soluble dans l'histoire des communications et
des médias, de même que l'édition de livres serait promise à se fondre dans la stratégie
capitalistique des grands groupes de communication qui la contrôlent ? Pardonnez-moi
pour ce parallèle, mais en ce qui me concerne, je vois pour le moment à cet «
alignement » de la discipline histoire du livre sur le destin supposé du livre un certain
nombre d'objections dont je souhaiterais vous livrer au moins une partie.
Et tout d'abord du côté de l'histoire même des communications, qui est censée dans
cette optique prendre en charge l'histoire du livre. Les spécialistes de la
communication et des médias font certes constamment référence à Gutenberg. Et j'ai
participé ici même il y a cinq ans, grâce au professeur José Alves, à un remarquable
colloque sur la communication – colloque qui s'était légitimement placé sous
l'invocation liminaire de Gutenberg.27 De même, Régis Debray, par exemple, dans son
intéressant Cours de médiologie générale (1991, nouv. éd. 2001), autrement dit de logique
des médias, a fait un sort au livre, à l'imprimé et à ce qu'il appelle la « graphosphère »
suivant son système de classification des médias. Toutefois, d'une façon générale, les
spécialistes des communications et des médias ont jusqu'à présent développé une
approche qui remonte rarement au-delà du XIXe siècle ou de la Révolution – approche
assez peu attentive, en fim de compte, aux évolutions du livre lui-même. Envisageant
avant tout la mécanique des médias de masse et l'impact d'informations, de messages
brefs et liés à une actualité, ils ont eu tendance à laisser de côté le livre. Voire à le
regarder sous l'angle fixiste d'une sorte d'« archéologie des médias », un peu comme si
l'objet livre et ses usages sociaux avaient été figés une fois pour toutes avant d'être
définitivement et irrémédiablement supplantés par d'autres médias.
Pourquoi cette vision des choses ? Parce que les contenus et l'inscription du livre dans
le temps sont complexes, ses chiffres de tirage relativement modestes, sa diffusion plus
lente, l'investissement de son contenu par la publicité très difficile et son influente sur
la collectivité fort délicate à évaluer dans le court terme, par rapport aux audiences des
grands médias audiovisuels, aux ventes de la presse quotidienne ou aux connexions à
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27
tel ou tel site Internet. Si bien que même l'approche médiologique, pourtant
prometteuse, s'est contentée à cet égard de procéder de seconde main ou par
approximations et conjectures.
Or ce constat d'inadéquation nous amène à une autre série d'objections liées à la
problématique de la définition du livre. Si l'on peut en effet parvenir à identifier ce
qu'est et a été l'objet livre, en Occident et ailleurs, au cours des siècles, il reste à cerner
ce qui fait sa spécificité intellectuelle, voire son caractère irréductible, en quelque
sorte, dans le concert des moyens de communication et dans l'univers de l'écrit
particulièrement.
De fait, tout écrit n'est pas livre. Le contenu d'un livre, objet porteur d'un certain
nombre de signes comme tout écrit, n'est cependant pas réductible à un unique
message ou à un ensemble de données et d'informations isolables et décomposables,
comme celles auxquelles l'univers informatique nous a habitués. Un livre, en théorie de
l'information, comporte même nécessairement du « bruit » le plus souvent en grande
quantité. Car un livre forme un tout, une unité structurée à laquelle aucune partie ne
doit en principe manquer pour qu'il puisse produire tout son sens. II en résulte que
composer un livre, de même que lire un livre, suppose un effort d'une certaine durée.
Effort d'attention et de concentration qui s'applique à un « assez grand nombre de
feuilles » – selon la formule volontairement vague de la définition lexicographique du
livre –, ou en tout cas à un support d'une longueur non négligeable. La lecture d'un
livre (quel que soit son genre) est un exercice généralement solitaire, silencieux et
suivi. Cet effort va rarement permettre une mémorisation exacte, mais il peut en
revanche laisser une trace durable dans l'imagination ou la consciente de son lecteur,
et favoriser ainsi la réflexion ou la mise à distante du contenu.
En tant que tel, le livre apparait investi d'une mission de mémorisation mais aussi de
distanciation vis-à-vis de l'immédiat. Ce médium abstrait et distant ne prend sens que
s'il est approprié à travers l'acte de lecture – acte généralement long et individualisé.
Mais il permet en même temps d'accéder à une dimension collective à travers l'exercice
de mémoire qu'il implique. Et il appartient ainsi, comme l'a rappelé H.-J. Martin en
citant le philosophe Karl Popper (1902-1994),28 à un « troisième monde » culturel, dont
chague « volume qui reproduit un récit ou un discours [...] se révèle destiné à maitriser
le temps [... et] est dès lors détenteur de valeurs symboliques et sacralisantes ».29
Avant d'admettre que le livre soit placé sur le même plan que les autres médias, et que
l'histoire du livre soit intégrée à celle des communications, ne faut-il donc pas se poser
la question de ce qu' implique sa spécificité ? Ne faut-il pas, en raisonnant (pour le
moment) par l'absurde, se demander par exemple ce que perdraient nos sociétés si le
livre ainsi défini, instrument à la fois de la constitution de la conscience collective et de
l'indépendance d'esprit de tout un chacun, venait à disparaitre de notre univers
culturel ?
Plusieurs utopies du XXe siècle ont exploré cette éventualité, notamment deux d'entre
elles particulièrement brillantes et visionnaires, à savoir Le Meilleur des mondes (Brave
New World) d'Aldous Huxley (1932) et Fahrenheit 451 de Ray Bradbury (1953).30 Or il est
intéressant de relever que toutes deux se sont placées dans l'hypothèse de sociétés qui,
à l'image des sociétés occidentales actuelles, sont déjà complètement alphabétisées. Où
l'écrit et les médias de masse de toutes sortes sont omniprésents, mais dont seul le livre
a été délibérément banni. Qu'on le persécute par l'autodafé comme dans Fahrenheit, ou
qu'on en inspire dès l'enfance une haine réflexe comme aux habitants du Meilleur des
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28
mondes, le but poursuivi est en fait le même. Le livre est perçu dans les deux cas comme
le lieu de formation par excellence de la réflexion solitaire, de l'esprit critique, des «
idées générales » (chez Huxley). des débats et controverses, des « pensées inutiles » et
irréalistes (chez Bradbury). Pour toutes ces raisons, il est jugé antisocial et présente un
risque majeur pour des sociétés dont la stabilité, l'uniformité, l'asservissement au
bonheur matériel et au consumérisme dépendent entièrement du conditionnement et
de la « prédestination sociale ». Ces best-sellers de l'anticipation nous ont donc
parfaitement avertis de ce à quoi pourraient aboutir les évolutions présentement à
l'oeuvre sous nos yeux, au moins en Occident. Priver (brutalement ou graduellement)
de livres une société développée et alphabétisée, c'est la rendre disponible pour une
foule d'inforrnations, de modèles et de messages à caractère prescriptif ou publicitaire
; c'est la maintenir sur un horizon collectif d'immédiateté, de volatilité et d'oubli
accéléré. C'est en un mot retirer à une telle société les armes et les repères dont elle
dispose pour éviter l'aliénation par la « contrainte positive » chère à Huxley.
Et je voudrais à ce propos rapporter ici une anecdote qui me semble bien illustrer les
enjeux en presence. Il y a un peu plus de vingt ans, un journaliste cherchant lors d'une
interview télévisée à embarrasser l'ex-président François Mitterrand lui avait demande
ce qu'il entendait quant à lui par le mot galvaudé de « liberté ». Alors le président
français lui avait fait cette réponse, qui en avait décontenancé plus d'un à l'époque : «
Pouvoir lire, un livre, une heure ou deux par jour, il n'y a pas pour moi de plus grande
liberte. » Le message était fort : il nous rappelait que la liberté, comme la lecture d'un
livre, est un choix et un effort d'abord personnels et solitaires – choix et effort d'autant
plus difficiles à assumer pour un homme public surexposé, au milieu du « bruit »
médiatique, de la surinformation et du trop-plein de la vie politique. Mais que cet
exercite silencieux, lent, intime,31 comme hors du monde réel, pouvait nous rendre
paradoxalement plus concernés par ce monde, et qu'il nous permettait d'accéder par là
à une forme supérieure de liberté à travers la conscience collective.32
À cela, me direz-vous, on peut objecter à juste titre que le livre a su se faire aussi par le
passé le vecteur de la propagande, ou de la pensée et de la religion uniques. Il a pu
s'identifier à une sorte de « matérialisation de la vérité » à la fois autoritaire et
totalisante, ainsi que l'a releve Michel Melot.33 En outre, il n'a pas toujours su, loin de
là, échapper à la tentation de la souslittérature.
De nos jours, pourtant, face aux flux croissants de messages, de slogans et
d'informations éphémères, face à la confusion grandissante entre information,
communication, publicité et divertissement, le livre apparait surtout comme le garant
de la distante critique, de l'indépendance d'esprit et de goût, de la portée d'une culture,
et pourquoi pas comme le rempart d'un nouvel humanisme face à l'aliénation et au
consumérisme.
« Aujourd'hui plus que jamais, la culture livresque est un enjeu énorme »,34 a déclaré
l'an dernier H.-J. Martin, à qui ce renforcement tendanciel du statut culturel du livre
n'a certainement pas échappé. Il me semble que nous sommes d'autant plus convaincus
de l'importance de cet enjeu au terme de ce tour d'horizon. Mais reconnaissons alors
qu'il serait d'autant plus dommage que l'histoire du livre, en Occident et ailleurs, se
trompe d'objet. Pour cette discipline pionnière et encore jeune, ce serait une erreur que
de négliger à la fois l'actualité et la portée du livre, de se laisser enfermer dans une «
archéologie des médias », et de se désintéresser de la nouvelle situation de défi de notre
XXIe siècle. Situation où, on le voit bien, le livre, pour continuer à assurer sa mission, à
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29
être « ce ferment », tend d'autant plus à cultiver ses différences et sa spécificité – dans
sa forme comme dans ses contenus – vis-à-vis du reste de l'environnement médiatique.
Et non pas à se fondre complètement dans les contraintes qui régissent l'univers des
communications contemporaines et leur consommation.
Or cette forme d'intérêt, cette capacité à repenser le champ de la recherche pour y
intégrer des situations et des problématiques neuves qui importent à l'histoire des
sociétés – sans pour autant perdre de vue l'objet livre et ses mutations –, n'est-ce pas là
le message principal de l'histoire du livre telle qu'elle s'est constituée en Europe il y a
près d'un demi-siècle ?
On ne peut qu'être d'accord, par conséquent, pour que l'histoire du livre s'articule à
une histoire et à une réflexion plus générale sur les communications – cette
articulation est d'ailleurs, me semble-t-il, le moteur même du développement de la
discipline histoire du livre ; elle ne l'a, je crois, jamais perdue de vue, et c'est dans cette
voie qu'elle a intérêt à poursuivre, à la faveur d'échanges de plus en plus constructifs
avec notamment les spécialistes des médias et de la communication.
Mais à condition de ne pas se laisser cantonner à une approche qui envisagerait
seulement le livre comme un objet figé et comme une sorte d'embryon des mass media.
Le livre en effet ne vaut pas seulement par son passé. Il a aussi une actualité qui nous
importe, parce qu'elle fait sans cesse évoluer le regard que nous portons sur son
histoire et les enseignements que l'on peut en tirer. Pour que l'histoire du livre puisse
éviter la sclérose et tenir toutes ses promesses, il lui faut donc, me semble-t-il et comme
le rappelle F. Barbier dans sa postface à L'Apparition du livre, continuer de « centrer
l'étude sur le [livre] lui-même, mais sans exclusive35 d'école, de période ni de méthode.
En bref, faire du livre, au sens plein du terme, un objet d'histoire ».36
NOTES
1. Voir notamment sur ce point Henri-Jean Martin, « Comment on écrivit l'histoire du livre », Le
Livre français sous l'Ancien Régime, Paris, Promodis – éd. du Cercle de la L'ibrairie, 1987, pp. 11-28.
2. Encore que la paternité de cette invention lui ait été fermement contestée ici et là : en Alsace,
par exemple, les chroniqueurs lui ont longtemps préféré l'imprimeur de Strasbourg Johann
(Jean) Mentelin (1410?-1478) ; aux Pays-Bas et dans plusieurs pays voisins (dont l'Angleterre au
moins jusqu'à la fin du XVIle siècle), on a tenu jusqu'à la seconde moitié du XIX e siècle pour
Laurens Janszoon Coster, imprimeur à Haarlem, avant que l'antériorité de Gutenberg ne soit
établie de façon incontestable.
3. Relevons, dans le cas de la France, les travaux de figures emblématiques appartenant toutes
aux mêmes milieux (bibliothécaires et bibliographes, libraires, collectionneurs) : Antoine-
Alexandre Barbier (1765-1825), Jacques-Charles Brunet (1780-1867), Joseph-Marie Quérard
(1796-1867), Antoine-Augustin Renouard (1765-1853) puis Philippe Renouard (1862-1934), Henri
Baudrier (1815-1884), Anatole Claudin (1833-1906), Paul Delalain (1840-1924)...
4. Cf. la postface de Frédéric Barbier à la nouvelle édition de L'Apparition du livre de Lucien Febvre
et Henri-Jean Martin (Paris, Albin Michel, 1999), notamment pp. 545-546.
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5. « L'histoire n'est pas l'accumulation des événements de toute nature qui se sont produits dans
le passé. Elle est la science des sociétés humaines », résumera Marc Bloch (1886-1944) en citant
Numa-Denis Fustel de Coulanges (1830-1889) dans « Pour une histoire comparée des sociétés
européennes », Revue de synthèse, 1928.
6. Extrait de la note introductive de Lucien Febvre à l'article d'Henri-Jean Martin, « L'édition
parisienne au XVIIe siècle : quelques aspects économiques », Annales ESC, 1952, p. 309.
7. H.-J. Martin, article « Histoire du livre » du Dictionnaire encyclopédique du livre, sous la dir. de P.
Fouché, D. Péchoin, P. Schuwer et la responsabilité scientifique de J.-D. Mellot, A. Nave, M.
Poulain, Paris, éd. du Cerele de la Librairie, 2002-… (t. II, 2005, pp. 476-478).
8. Charles Samaran, « Sur quelques problèmes d'histoire du livre [long compte rendu de
L'Apparition du livre] », Journal des savants, avril-juin 1958, pp. 57-72.
9. Voir en particulier à ce propos Roger Chartier, « De l'histoire du livre à l'histoire de la lecture :
les trajectoires françaises », Histoires du livre, nouvelles orientations. Actes du colloque du 6 et 7
septembre 1990, Göttingen, sous la dir. de H. E. Bödeker, Paris, IMEC éd. – éd. de la Maison des
sciences de l'Homme, 1995, pp. 23-45.
10. Mise en page et mise en texte du livre manuscrit, sous la dir. d'H.-J. Martin et J. Vezin, Paris, éd. du
Cercle de la Librairie – Promodis, 1990, et H.-J. Martin et collab., La Naissance du livre moderne,
XVIe-XVIIe siècle : mise en page et mise en texte du livre français, Paris, éd. du Cercle de la Librairie,
2000.
11. H.-J. Martin, « Pour une histoire comparative du livre. Quelques points de vue », Histoires du
livre, nouvelles orientations..., op. cit., pp. 417-432.
12. H.-J. Martin, avec la collab. de B. Delmas, Histoire et pouvoirs de l'écrit, Paris, Librairie
académique Perrin, 1988 (nouv. éd., Paris, Albin Michel, 1996 ; trad. anglaise sous le titre : The
History and power of writing, Chicago – London, University of Chicago Press, 1994). « [Ce livre] est
aujourd'hui pour moi une étape dans mon effort pour me dégager de l'histoire du livre imprimé
avec ce qu'elle comporte de partiel, pour élargir les horizons », a pu dire de lui son auteur dans
Les Métamorphoses du livre : entretiens avec Jean-Marc Chatelain et Christian Jacob, Paris, Albin Michel,
2004, p. 227.
13. H.-J. Martin, article « Histoire du livre », Dictionnaire encyclopédique du livre, op. cit., t. II, p. 478.
Réflexion reprise, développée et nuancée dans H.-J. Martin, Les Métamorphoses du livre..., op. cit.,
2004, pp. 215-216 : « faudrait replacer l'histoire du livre période par période [...] dans le cadre du
système global de la société correspondante. Peut-être serait-ce même là l'essentiel. Cette
réflexion ne pourrait être strictement historique. Elle devrait faire appel aux spécialistes des
diverses sciences humaines mais aussi aux neurophysiologues... ».
14. Extrait d'une interview accordée à Laurence Santantonios pour le périodique Livres Hebdo, n°
545, 20 février 2004, p. 76.
15. Herbert Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy, the making of typographic man, London,
Routledge & K. Paul, 1962 (trad. française sous le titre : La Galaxie Gutenberg face à l'ère
électronique : les civilisations de l'âge oral à l'imprimerie, Paris, Mame, 1967).
16. F. Barbier, C. Bertho-Lavenir, Histoire des. médias : de Diderot à Internet, Paris, Armand Colin,
1996 (3e éd. rev. et complétée, ibid., 2003). Dans l'introduction de cet ouvrage, la problématique de
l’articulation de l'histoire du livre avec celle des médias, en particulier, est explicitement
envisagée, et sous un angle critique stimulant : « Des questions du type « la fin du livre... ? » sont
au moins mal posées, qui appelleraient une mise en place et une réflexion plus scientifiques :
qu'est-ce que le média livre (qu'il faudrait distinguer de l'imprimé en général) apporte [...] ?
quelles sont les spécificités des nouveaux médias, dans quelle mesure ceux-ci s'insèrent-ils dans
une histoire qui leur préexiste nécessairement mais qu'ils contribuent à dépasser... ? »
17. F. Barbier, Histoire du livre, Paris, Armand Colin, 2000.
18. « Hier comme aujourd'hui, observe à juste titre Daniel Roche, le livre n'est jamais seul [...] il
prend place dans un système général d'information où [sous I'Ancien Régime] l'oralité demeure
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dominante » (« Le livre : un objet de consommation entre économie et lecture », Histoires du livre,
nouvelles orientations..., op. cit., pp. 225-240, notamment pp. 226-228).
19. Rouen, deuxième ville du royaume de France au XVIIe siècle, est alors le principal centre
éditorial provincial, cf. Jean-Dominique Mellot, L'Édition rouennaise et ses marchés (v. 1600 – v. 1730) :
dynamisme provincial et centralisme parisien, Paris, École des chartes (diff., Paris, H. Champion ;
Genève, Droz), 1998.
20. Cf. le tome II de l'Histoire de l'édition française, sous la dir. d'H.-J. Martin et R. Chartier, Paris,
Promodis, 1984: Le Livre triomphant, 1660-1830.
21. Voir notamment sur ce point Jean-Dominique Mellot, Élisabeth Queval, Véronique Sarrazin, «
La liberté et la mort ? Vues sur les métiers du livre parisiens à l'époque révolutionnaire », Revue
de la Bibliothèque nationale, n° 49, automne 1993, pp. 76-85.
22. Parmi d'autres et dans le cadre français, cf. Le Livre:la fin d'un règne, de Fabrice Piault, Paris,
Stock, 1995.
23. Elizabeth L. Eisenstein, « Old media in the new millenium », De Gutenberg ao terceiro milénio :
actas do Congresso internacional de comunicação, 6, 7 e 8 de abril 2000, Lisboa, coord. José Augusto dos
Santos Alves, Lisboa, Universidade autónoma de Lisboa, 2001, pp. 141-150.
24. Sur ces questions, voir par exemple pour un point de vue centré sur la France et l'Europe Où
va le livre ?, sous la dir. de J.-Y. Mollier, 2e éd., Paris, La Dispute, 2002, et Laurence Santantonios,
Tant qu'il y aura des livres, Paris, Bartillat, 2005.
25. Passant de 12 000 titres en 1955 à quelque 55 000 en 2004.
26. En conclusion d'une interview accordée en juin 2004 à Anne-Marie Bertrand et Martine
Poulain pour le Bulletin des bibliothèques de France, t. 49, n° 5, 2004, pp. 21-23.
27. Lors du colloque De Gutenberg ao terceiro milénio : actas do Congresso internacional de comunicação,
6, 7 e 8 de abril 2000, Lisboa, coord. J. A. dos Santos Alves, Lisboa, Universidade autónoma de Lisboa,
2001, l'ouverture à l'univers du livre et de la presse et à leur histoire s'est révélée remarquable,
avec en particulier la conférence précitée d'Elizabeth L. Eisenstein, « Old media in the new
millenium » (pp. 141-150).
28. Karl R. Popper, La Connaissance objective, trad. de l'anglais, Bruxelles, éd. Complexe ; Paris,
Presses universitaires de France, 1978 (1re éd. anglaise, 1972 ; nouv. éd. française, Paris,
Flammarion, 1998).
29. H.-J. Martin, article « Livre », Dictionnaire encyclopédique do livre, op. cit., t. II.
30. II est à noter qu'une autre grande ceuvre d'anticipation de la même époque, 1984 de George
Orwell (1949), sans envisager l'exclusion radicale du livre, met toutefois clairement en scène sa
marginalisation et sa « récupération » au service de l'altération de la mémoire collective, dans un
univers où le libre exercice de la pensée même est proscrit.
31. Rappelons ici avec Philippe Ariès (« Pour une histoire de la vie privée », Histoire de la vie privée,
sous la dir. de P. Ariès et G. Duby, Paris, éd. du Seuil, t. III, 1986, pp. 7-19) que « c'est précisément
la diffusion de la lecture silencieuse, instaurant un rapport intime et secret entre le lecteur et son
livre, qui a permis l'affirmation de la notion même de « privé » ».
32. Un autre plaidoyer pour la liberté de la lecture, particulièrement inspiré, nous est proposé
par exemple dans Comment Pinocchio apprit à lire d'Alberto Manguel (Lausanne, Bibliothèque
cantonale et universitaire, 2003), lui-même auteur par ailleurs d'une stimulante Histoire de la
lecture (Arles, Actes Sud, 1998 ; 1re éd. anglaise, London, Harper Collins publ., 1996).
33. Voir notamment Michel Melot, « Le livre unique, de la religion du livre à l'idéologie du livre
», Les Trois Révolutions du livre. Catalogue de l'exposition du musée des Arts et métiers [Paris], 8
octobre 2002 – 5 janvier 2003, Paris, Imprimerie nationale éditions, 2002, pp. 407-412. Pour cet
auteur, la « menace de la perte de la forme du livre » vaut surtout « comme remise en cause du
modèle de la révélation comme accès au savoir ».
34. Extrait d'une interview accordée à L. Santantonios pour Livres Hebdo, art. cit., 20 février 2004,
p. 76.
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35. Dans « Le comparatisme comme nécessité heuristique pour l'historien du livre et de la
culture » (Histoires du livre, nouvelles orientations..., op. cit, pp. 433-449), F. Barbier développe cette
caractéristique fondatrice et fondamentale de l'histoire du livre : « Il ne peut y avoir par exemple
une histoire économique de l'imprimerie-librairie qui s'opposerait à une histoire socioculturelle
des livres et à une ethno-histoire des lectures. La cohérence nécessaire de l'objet [...] doit être
conservée dans la démarche méthodologique de la recherche, qui ne doit négliger aucune voie
d'approche. Dès lors que notre objet privilégié, ici le livre ou, plus largement, la chose imprimée,
est dans le même temps une « marchandise », un « ferment », un symbole, un objet matériel, etc.,
il fonctionne comme le point de convergence de logiques multiples et entremêlées – économique,
socioculturelle, politique, artistique, etc. – et dont aucune ne peut être a priori rejetée par le
chercheur ».
36. L'Apparition do livre, postface à la nouvelle édition (Paris, Albin Michel, 1999), p. 579.
RÉSUMÉS
La « protohistoire du livre » et l'histoire de l'imprimerie ont été principalement l'affaire des
bibliophiles, des bibliographes et des historiens de la littérature, autrement dit d'experts
soucieux de défendre et d'illustrer une identité, ou encore de distinguer dans la masse de la
production imprimée au cours des siècles le rare, le monumental, l'anecdotique, le littéraire...
Depuis le milieu du XXe siècle et L'Apparition du livre (1re éd., 1958) de Lucien Febvre et Henri-Jean
Martin, l'histoire du livre, profitant des progrès de la sociologie historique et de concepts comme
l'« histoire des mentalités », s'est constituée en discipline pionnière. À la faveur de travaux de
grande envergure tels que l'Histoire de l'édition française (1982-1986), I'Histoire des bibliothèques
françaises (1988-1992), le Dictionnaire encyclopédique du livre (2002 - ...) et d'autres projets similaires
en Europe et au-delà, elle a entrepris de resituer le livre, sa production et ses pratiques, dans un
vaste contexte économique, social, politique, culturel. Dans le même temps, les interrogations de
l'histoire du livre sont venues rejoindre celles de l'histoire de la communication sociale et des
médias aujourd'hui dominants.
A «proto-história» do livro e a história da imprensa foram sobretudo assuntos dos bibliófilos, dos
bibliográficos e dos historiadores da literatura, ou seja, de especialistas ambicionando defender
uma identidade, ou de distinguir, na massa da produção impressa ao longo dos séculos, o raro, o
monumental, o anedótico, o literário... A partir de meados do século XX c com Apparition du Livre
(1a Ed. 1958) de Lucien Febvre et Henri-Jean Martin, a história do livro, usufruindo dos
desenvolvimentos da sociologia histórica e de conceitos como o de «história das mentalidades»,
constituiu-se como disciplina pioneira. Com trabalhos como Histoire de l'édition française
(1982-1986), Histoire des bibliothèques françaises (1988-1992), Dictionnaire encyclopédique du livre
(2002 - ...) e outros projectos similares quer na Europa, quer além dela, o livro foi reposicionado,
quer quanto à sua produção, quer quanto às práticas associadas, num vasto contexto económico,
social, político e cultural. Ao mesmo tempo, as interrogações levantadas pela história do livro
foram ao encontro da história da comunicação social e dos media, que hoje se tornaram
dominantes.
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INDEX
Palavras-chave : livro, história do livro, história da impressão, história da edição, história dos
meios de comunicação, comunicação social, história cultural, história da leitura, bibliografia,
bibliografia material, morfologia histórica do livro
Mots-clés : livre, histoire du livre, histoire de l'imprimerie, histoire de l'édition, histoire des
médias, communication sociale, histoire culturelle, histoire de la lecture, bibliographie,
bibliographie matérielle, morphologie historique du livre
AUTEUR
JEAN-DOMINIQUE MELLOT
Conservateur en chef à la Bibliothèque nationale de France et chargé de conférences à l’École
pratique des hautes études (EPHE, Paris, Sorbonne).
Conservador na Bibliothèque Nationale de France. Professor na École Pratique des Hautes Études,
(EPHE, Paris, Sorbonne). Co-autor de Diccionaire encyclopédique du livre, 2 volumes de 3, Paris, 2002
e 2005 e o Répertoire d'imprimeurs-libraires (vers 1500-vers 1810), Paris, Bibliothèque nationale de
France, 1997 (nova ed. aumentada 2004). Autor ainda de L'édition rouennaise et ses marchés: vers
1600-vers 1730: dynamisme provincial et centralisme parisien, Paris (1998).
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Iconografia do Livro Impresso
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Desencontros entre texto e imagem“ilustrativa”, no Flos Sanctorum de1513Disagreement between text and illustrated image on Flos Sanctorum of 1513
Fr. António-José d'Almeida OP
O aparecimento da imprensa traz consigo a possibilidade da repetição da mesma
imagem por um processo mecânico. Não é, pois, de admirar que, nos livros impressos,
se assista à reutilização das mesmas matrizes. Pelo que pude observar na investigação
que efectuei a propósito da realização da minha tese de doutoramento, era comum a
utilização de entalhaduras abertas anteriormente para ilustrar obras posteriores,
surgindo mesmo acomodações. Não raro, as imagens contradizem o texto que
pretendem ilustrar. Isto denota um caminho percorrido pelas imagens independente do
dos textos que ilustram. Neste artigo, pretendo mostrar os mais relevantes
desencontros entre texto e imagem num livro do primeiro quartel do século XVI,
impresso em Portugal, que pertence a uma categoria de livros chamados Flos Sanctorum.
Este termo parece designar, na Península ibérica, traduções abreviadas, em vernáculo,
da célebre Legenda Aurea Sanctorum, composta, entre 1252 e 1260, pelo beato dominicano
Fra Jacopo da Varazze (Jacobo ou Tiago de Vorágine), que foi arcebispo de Génova.
Nestas traduções acrescentavam-se legendas de santos locais ou de outros não incluídos
anteriormente, formando o que era apelidado de Santos Extravagantes.
Proponho-me, pois, neste artigo, tratar dos desencontros entre o texto literário e as
imagens que o pretendem ilustrar, no Flos Sanctorum em linguagem português [Fig.1],
acabado de imprimir em Lisboa, por Hermão de Campos & Roberto Rabelo, a 15 de
Março de 1513 (Ans. 443), como consta do cólofon (f. 267r.):
"Aqui se acaba a leenda dos sanctos tresladada em lingoagem portugues. aqual sechama ystorea lombarda. pero comuũmente se chama flos sanctorum porque emella se contem a flor das vidas dos sanctos com diligençia corregida & ẽmendada& acreçcntada de duas vidas louuauees .s. de sancta Anna & sam Erasmo: que porgrande negligençia forom esqueçidas. E nom menosprezando nem esqueçendo osnossos sanctos que nos regnos de portugal resprandeçem per muytos milagres
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acreçentamentos destes aa presente .xix. vidas. Ha qual obra foy feita & tresladada afym que os que a lengua latina nom entendem. nom sejam priuados de tamexçellentes & marauilhosas vidas & exempros. Et por que cada huum estando emsua casa despenda o tempo em leer tam exçellentes & sanctas vidas &exempros que outras ystoreas vaãs ou liuros de pouco fructo. E a sobredicta obrafoy emprimida em a muy nobre & sempre leal cidade de Lisboa. Com preuilegio delRey nosso senhor: per Herman de campis bombardero del rey. & Roberte rabelo. A.xv. dias de Março de mil quinhentos & treze."1
Fig. 1: Flos Sanctorum de 1513, folha-de-rosto (238x154 mm.).
(Fonte: Anselmo, A. J., 1926, p. 121).
Deste livro só se conhece um exemplar, conservado na Biblioteca Nacional, em Lisboa,
com a cota: RES. 157 A. Este é proveniente, ao que parece (Sobral, 2000, p. 34), de uma
casa da Ordem dos Pregadores.
Da parceria de impressores Hermão de Campos & Roberto Rabelo só se conhece esta
obra, sendo a única de Roberto Rabelo. Hermão de Campos é o nome aportuguesado de
"Herman de kempis alemã", como figura na primeira obra que imprime em Portugal,
neste caso em Setúbal, em 1509, a Regra: statutos: & diffinçoẽs: da ordem de Sanctiaguo (Ans.
434).
Algum material iconográfico utilizado na presente obra será retomado posteriormente
por Gemião Galhardo, como é o caso da imagem de São Jerónimo, que aqui analisarei
em último lugar.
Esta versão portuguesa não foi feita sobre o original latino, mas sobre urna edição em
castelhano. São de notar, a este respeito, os vários castelhanismos que se encontram
nesta obra em português. O texto da 'legenda' do Natal, a que a seguir me referirei,
difere do de Fr. Jacopo da Varazze, mas é igual ao de uma edição em castelhano,
preparada ao que tudo indica pelo cisterciense aragonês Fr. Gauberto Fabricio de Vagad
(Martins, M., 1960, e 1969, pp. 255-280; Colomer Amat, 1999, pp. 12/120-15/123).
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Além de vários autores que já se referiram a este livro, ele foi objecto de três teses de
doutoramento: a de Maria Clara de Almeida Lucas, em Teoria da Literatura (Lucas,
1988); a de Cristina Sobral, em Literatura Portuguesa (Sobral, 2000); e a minha, em
História da Arte (Almeida, A.J., 2005). Esta última debruçou-se especificamente sobre a
problemática da sua ilustração.
Retomo neste artigo um dos aspectos que tratei na minha tese de doutoramento, já
referida, intitulada Imagens de Papel,2 defendida a 30 de Novembro de 2005 na Faculdade
de Letras da Universidade do Porto. É este um aspecto importante, na hora de analisar a
ilustração de um livro impresso, porém não tido em conta mesmo por grandes
investigadores (vd. Almeida, A.J., 2004)
1 - Utilização acomodatícia
Começarei pela apresentação de três imagens, nas quais é nítida a utilização
acomodatícia feita em relação aos textos que pretendem 'ilustrar'. Chamo-lhe
acomodatícia, porque a imagem refere-se a outro personagem ou, no caso da primeira,
a outra invocação de Nossa Senhora.
I. 1 - Imagem de Na Sa do Rosário, utilizada como imagem genéricade Nossa Senhora
Já me referi, noutro local, à primeira destas imagens (Almeida, A.J., 2004-05), tendo aí
abordado o seu aspecto iconográfico. Mas aqui retomo-a sob uma perspectiva diferente,
a da adequação entre texto e imagem.
Refiro-me à representação de Nossa Senhora do Rosário. Esta estampa [Fig. 2] aparece,
no nosso livro, na segunda coluna (b) do fólio 221, onde, na primeira coluna (a), se lê o
incipit: "Seguese ho millagre pollo qual se çelebra ha festa de sancta maria das neues."
Trata-se, pois, nitidamente de uma acomodação. A imagem da Virgem, sustentando o
Filho nos braços, é rodeada por um contador de orações, cujas contas redondas são
separadas de vez em quando por uma flor. Estamos sem sombra de dúvida perante a
representação de uma parte do Rosário de Nossa Senhora, mais concretamente o
tradicional Terço. Sobre as imagens coetâneas semelhantes a esta, já escrevi um artigo
na revista Leituras, da Biblioteca Nacional, para o qual remeto o leitor interessado
(Almeida, A.J., 2004-05). A imagem específica da invocação de Nossa Senhora do Rosário
foi transformada em imagem comum da mesma Senhora, ilustrando aqui outra
invocação da Virgem Santa Maria, a de Nossa Senhora das Neves.
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Fig. 2: Nossa Senhora do Rosário (66x44 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 221 b.
(Fonte: Flos Sanctorum, 1988, extratexto face à p. 130)
1. 2 - Adaptações engenhosas
Vejamos agora duas imagens, cuja adaptação é bem mais engenhosa, dado tratar-se em
ambos os casos de personagens diferentes daqueles que elas pretendem ilustrar. Nisto
diferem do caso anterior, em que a personagem era a mesma, embora sob outra
invocação.
1. 2. 1- Job, 'ilustrando' São Julião
Não me foi fácil identificar a personagem representada na pequena estampa que orna a
primeira coluna (a) do fólio 23 do Flos Sanctorum de 1513 [Fig. 3]. Julgo tratar-se da
figura de Job troçado pelos amigos. Se a figura masculina nua sentada, que ocupa o
triângulo inferior direito do quadro, podia sugerir a figura de Job, os outros dois
personagens na sua frente, tocando instrumentos musicais, não se coadunam com o
relato bíblico veterotestamentário do Livro de Job. A justificação para a presença destes
personagens, encontrei-a na obra de Louis Réau (1996, tomo 1/ vol. 1, p. 367), onde ele
afirma que numa misericórdia do cadeiral do século XV do coro da igreja de Champeaux
(em França) está representada a cena dos amigos de Job a fazerem pouco dele, tocando
flauta. Esta cena, diz o mesmo autor, terá tido origem no teatro dos Mistérios.
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Fig. 3: Job (34x26 mm.) Flos Sanctorum de 1513, fólio 23 a.3
Esta estampinha pretende ilustrar a 'legenda' intitulada "A vida de outro julliã que
matou seu padre & sua madre."
Nesta estampa de pequenas dimensões, parece-me ver, como atrás afirmei, Job nu
sentado e, na frente dele, dois músicos: um tocador de gaita-de-foles e outro tocando
uma buzina ou trompa de caça. Parece, pois, ser este um caso de adaptação de uma
imagem, criada para outro fim, no sentido de ilustrar outra história.
Mas qual a razão de esta estampa ilustrar a referida 'legenda' do chamado Édipo
cristão? Julgo que a razão desta escolha se deva ao facto de nela estar representado um
homem tocando uma trompa. Isto reporta-nos ao mundo da caça, e foi durante urna
caçada que Julião teve o vaticínio através de uma corça (qual esfinge) de que iria ser o
assassino de seus pais. Ao organizador da ilustração bastou ler as primeiras linhas da
'legenda' para escolher, de entre as matrizes que tinha à mão, uma para ilustrar a
'legenda' em questão.
Vemos, pois, até onde pode chegar o recurso à adaptação das xilogravuras a novos
contextos, com algum ligeiro ponto de contacto.
I. 2. 2 - São Nicolau, 'ilustrando' Santo Ildefonso
Um outro caso é o de uma outra xilogravura pequena (34x25 mm.) [Fig. 4] que
encontramos estampada neste Flos Sanctorum de 1513 por duas vezes: uma, no cimo da
portada que orna a folha-de-rosto, à esquerda [Fig. 1]; e outra, no fólio 78 c, ilustrando
a 'legenda' da trasladação do corpo de Santo Ildefonso de Toledo. Representa o bispo de
Mira São Nicolau, cujas relíquias se guardam em Bari, no tradicional acto de abençoar
três crianças, de que só se vêem duas, dentro de uma barrica. Sobre a túnica vislumbra-
se a estola por baixo da capa de asperges colocada sobre os ombros e apertada à frente
por um grande firmal oblongo. A mitra cobre-lhe a cabeça e segura na mão direita o
báculo pastoral.
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O episódio figurado é o da lenda da ressuscitação de três meninos clérigos. Conta esta
lenda que, num tempo de fome, um estalajadeiro roubou três meninos que matou,
esquartejou, e meteu os bocados dos corpos dentro de uma barrica com sal para servir a
sua carne aos hóspedes. O santo bispo, traçando o sinal da cruz, fez com que voltassem
à vida e inteiros.
Roger Wieck (1997, p. 115) afirma que esta estória parece ter tido a sua origem em
França, pertencendo ao século XII a sua mais antiga referência, embora seja sem dúvida
mais antiga. Segundo este mesmo autor, ela terá derivado de uma má leitura das três
bolas amarelas que são atributo do Santo, confundidas com três cabeças. Ora as três
bolas douradas representam as três bolsas de dinheiro que serviram de dote a três
moças votadas à prostituição.
Conta assim este episódio o nosso livro (f. 10 a):
"E despoys que ho pay & a may forom mortos [Saam nicholao] começou decuydar em que maneyra despenderia as riquezas que lhe leyxarõ nõ em louuor dopouoo mas a seruiço de deos. E neste tempo huũ seu vezynho assaz fidalgo tynhatres filhas dõzelas virgẽs & por rezã da proueza en que era: as queria fazermaas molheres porque se podesse gouernar & manteer com o ganho dellas. Edespoys que o soube sam nicolao aborreçeo este pecado: & de noyte e emescõdido tomou hũa massa de ouro emborulhada em huũ pano & deytoulho emcasa per hũa fresta & foysse. E ho boo homẽ leuantouse polia manhaã & achou oouro: & deu graças a deos & casou a filha mayor. E despoys de hy a pouco tẽpo hoseruo de deos fez outro tanto como a primeyra vez. E despoys que aquelle homẽysto vyo começou de louuar muyto a deos & a marauilharse & espreytou por veerquẽ era aquelle que lhe acorria a tã grande coyta & mingoa. E despojs a poucotempo deytou outra massa dobrada em sua casa: & o boõ homê acordou ao golpe doouro & foy apos sam nicolao, & des que ho conheçeo deytouse a seus pees & quiseralhos beijar: mas elle nõ lho quis cõsentir: ãtes lhe rogou que o nõ descobrisse em suavida."4
Porém Émile Mâle (1968, vol. 2, pp. 271-272), seguido por Metford (1983, p. 181; embora
não o cite), faz derivar a lenda de outro episódio da vida do Santo, que o nosso livro (f.
10 c-d) relata do seguinte modo:
"o emperador (...) mãdou que os [tres prinçipes. neponçiano. & vrsu & apilone]metessem em huũ ca.çere.[sic] & que os matassem aquella noyte (...) e elles|estãdo assy em oraçõ aquella noyte, apareçeo sã nicolao ao emperador (...) Eassy mesmo espantou ao prefeto que era juiz mayor que acõselhara ao emperador(...) E o emperador (...) disselhes: hydevos & agradeçey a deos que vos liurou pellorogo de satn nicolao. (...)"
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Fig.4: São Nicolau (34x25 mm.). Flos Sanctorum de 1513, rosto*e fólio 78 c.5
Fig.5: São Nicolau (75x69 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 9 d.
A entalhadura que serviu de matriz a esta estampa foi copiada em espelho, como se
pode verificar pelo facto de o bispo abençoar com a mão esquerda, quando
habitualmente o faz com a direita, como, aliás, se verifica na estampa com a mesma
temática, mas de grandeza média (75x69 mm.), inserida no fólio 9 d desta obra [Fig. 5],
que ilustra precisamente a 'legenda' de São Nicolau. Era muito frequente o entalhador
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de uma matriz xilográfica se esquecer de virar o desenho no momento de fazer a
entalhadura, especialmente quando se tratava de cópia de outra estampa, realizada
mediante decalque.6 Erro semelhante é corrente hoje em dia quando se imprime uma
imagem a partir de um slide: é frequente sair invertida em relação ao original. Trata-se
pois de um erro frequente em trabalhos tipográficos.
No nosso livro, a pequena xilogravura de São Nicolau que aparece no rosto [Fig. 4]
ilustra também, no fólio 78 c, a 'legenda' da Trasladação do corpo de Santo Ildefonso de
Toledo, intitulada: "Da trasladaçom & achamento do bemauenturado senhor sancto
yllefonso arçebispo de toledo & em que maneira foy achado o seu corpo em çamora."
Terá o tipógrafo entendido salmoura ou jogado maliciosamente com as palavras?
II - 'Textos' paralelos
Os exemplos seguintes são de casos em que a Tradição iconográfica não concorda com o
Texto que 'ilustra'. Podemos falar de dois 'textos' paralelos: o iconográfico e o literário.
II. 1 - Nascimento de Jesus Cristo
A xilogravura [Fig. 9] impressa na primeira coluna (a) do fólio 14 do nosso livro, no
início da 'legenda' intitulada "Do nasçimento de nosso senhor Jhesu christo",
representa a cena do parto virginal de Jesus. Esta passa-se num estábulo, ao ar livre, só
com uma cobertura de madeira e colmo, o tugúrio debaixo do qual se encontra a
manjedoura junto da qual estão a asna e o boi. A razão de ser da presença dos dois
animais é dito no texto7 inspirar-se em dois textos não canónicos:
"Agora vos queremos dizer outra razã deste nascimento que achamos en ho liuroque fez Santiago ho menor8: que foy bispo de jherusalem. & en outro liuro quechamã dos nazarenos9: & dizem assy. Que quando se hyã joseph & sancta maria poraquella estrada que hia de na-|zared pera bethleem leuauã com sigo huum boy peravender pera pagar aquella peita: & huũ[sic] asna em que hya sancta maria (...) & fezentrar sancta maria em hũa daquellas couas na mays escura & mais temerosa quehy estaua & nõ auia hy lume nenhuum. E entonçe como entrou sancta maria foyloguo ally tã grande a craridade como se ally esteuesse ho sol ao meyo dia quandohe mays craro. (...) a virgem sancta maria: em tanto pario ella sen door nem trabalho nenhuum. & assy nasçeeo della seu filho nosso senhor jhesu christo deos &homem verdadeyro: & ella nõ ho sentio senã quando ella vyo ante sy: naado hominino: & ficou ella virgem como era dantes. E esto por muytos pro-|phetas foyprofetizado os quaaes souberõ a poridade de deos. (...) E diz agora aquelle euangelhode sam lucas [Lc 2,7] que despoys que sancta maria pario seu filho. que ho enuolueoem huns panezinhos & o pos em hũa manjadoyra. & aquella manjadoyra era huumpouco longa & a huum cabo della comia ha asna em que andaua sancta maria &ho boy ao outro. (...) E como paryo porque nõ achou lugar mays molle poseo emhuum pouco de feno enuolto em huuns panos & ho boy & a asna como ho sentirõleyxarõlhe toda a manjadoyra & tirarõse a fora & abayxarõ as cabeças atee a terra adorando. & esto da asna & do boy foy assy feyto porque se comprisse hapropheçia que muyto tempo antes dissera o propheta jsayas. que escreueo estapallaura. Conheçeo ho boy cujo era & ha asna a manjadoyra do seu senhor [Is 1,3]. Eoutro propheta que ouue nome abacuh escreueo esta outra propheçia. Em meyo dedous animaes sera conhecido [Hab 3,210]. & esto nos diz o euangelho." (Flos Sanctorumde 1513, ff. 14 c – 15 a, negrito e itálico nossos)
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Fig. 6: Parto da Virgem. Rogier Van der Weyden, Paine
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Fig. 7: Parto da Virgem. (40,8x32,2 cm). Anónimo flamengo, Natividade (post.1440)
(Fonte: No Tempo das Feitorias, 1992, vol. I, p. [117]).
Fig. 8: Parto da Virgem. Biblia Pauperum em alemão Bamberg 1462, fólio 1 v° (Fonte: TIB 80, p. 41, fig.1462/57 (Schramm 1.170).
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Fig. 9: Parto da Virgem (85x56 mm.). Flos Sanctorum de 1513 fólio 14 a (Fonte: Frazão, M.L., 1998,vol. II, fig. 209).
Contrariamente ao texto, que fala de uma cova, a cena passa-se no pátio de um
estábulo, ao ar livre, mas de acordo com uma tradição iconográfica iniciada no séc. XV
com o chamado 'estilo internacional', o Menino está deitado no chão do pátio, com um
nimbo à volta da cabeça e auréola envolvendo o corpo,11 já que, segundo as visões
místicas de Santa Brígida, todo Ele irradiava luz. (Almeida, C. A., 1983, p. 138/4 b)
Este tipo de imagens ilustra o momento do parto da Virgem Maria, de acordo com as
Revelações de Santa Brígida da Suécia, compostas à volta de 1360-70 (Panofsky, E., 1998,
p. 52): a Virgem, com os cabelos soltos sobre os ombros, adora, de joelhos, o Menino
Jesus. Este, nuzinho, está colocado no chão, espargindo raios de luz ("iacentem in terra
nudum et nitidissimum"12). Sentado, abençoa com a dextra. A Virgem Sua mãe, com os
cabelos soltos apanhados por uma fita com uma jóia sobre a testa13 e a cabeça cercada
por um nimbo, contempla-O ajoelhada. Quanto a José, não tem a cabeça nimbada;
genuflecte e segura uma vela com a mão direita, enquanto a esquerda protege a chama
do vento. Uma estrela se ergue no céu por sobre a cabeça do patriarca, alusiva ao
episódio da visita dos Magos [Mt 2,9 b].
Podemos ver uma origem remota da nossa xilogravura em imagens flamengas e de
modo particular no painel central do 'Retábulo de Peter Bladelin', obra documentada
começada a pintar por Rogier van der Weyden, a óleo sobre madeira, não muito depois
de 1452 (Panofsky, E., 1998, p. 273), e que hoje se encontra na Gemäldegalerie, do
Berlin-Dahlem Museum [Fig. 6]. Temos no nosso país urna pintura flamenga da
Natividade, não documentada, datável pelos especialistas dos anos subsequentes a 1440,
mas com nítida afinidade com a do retábulo de Bladelin, corno o reconheceu Pedro
Dias.14 Esta tábua pintada pertenceu seguramente a uma instituição religiosa
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portuguesa, e conserva-se hoje no Museu Nacional de Arte Antiga, com o Inv. n° 1243
(Dias, P., 1992). [Fig. 7]
Neste campo, com traço muito simplificado, mas por isso mesmo muito legível,
encontramos uma representação muito semelhante à destas pinturas, mas com o
Menino colocado no chão, numa estampa da Biblia Pauperum em alemão [Fig. 8],
impressa em Bamberg, por Albrecht Pfister, por volta de 1462, no verso do fólio 1
(Schramm 1.170) e reestampada pelo mesmo impressor, pensa-se que no ano seguinte,
na edição latina do mesmo livro (TIB, vol. 80, p. 54). Nesta estampa vemos praticamente
todos os elementos da nossa [Fig. 9], menos a paisagem e a estrela. A Senhora tem as
mãos postas voltadas para cima, ao contrário da nossa que, como nos quadros atrás
referidos, as tem voltadas para baixo; e sobre os ombros tem um manto, ausente da
nossa estampa, tal como no retábulo Bladelin de Rogier van der Weyden [Fig. 6].
Podemos ver, por estes exemplos, como os modelos iconográficos viajavam, não
estando vinculados a um texto.
II. 2 - Imagens de santos
Desta imagem de um episódio do Novo Testamento, passemos a imagens de Santos. A
sua apresentação segue, neste artigo, a ordem tradicional das ladainhas, dado as ter
retirado do seu contexto, em que ilustram as 'legendas' correspondentes aos dias do
ano em que comemora a sua respectiva festa litúrgica.
II. 2. 1 - Apóstolos
Os apóstolos são os santos que foram enviados por Cristo ressuscitado a pregar o
Evangelho a todos os povos. O atributo iconográfico que identifica cada um deles está
relacionado com o tipo de martírio que cada um sofreu.
Vejamos o caso da representação de dois apóstolos e os seus respectivos atributos
identificativos, que estão de acordo com a tradição iconográfica, mas não têm relação
directa com o texto que 'ilustram'.
Santo André
O apóstolo Santo André é identificado, na imagem do fólio 5 a do Flos Sanctorum de 1513
[Fig. 10], pelo seu atributo pessoal, que é uma cruz aspada (em X), isto por, segundo a
tradição, ter sido crucificado na Acaia. Porém, o texto não refere o género de cruz em
que Santo André foi crucificado. Vemos, pois, que existem dois textos paralelos: o
literário e o iconográfico. A cruz em X só aparece associada a Santo André, no
Ocidente, a partir do século XIV e na arte do ducado da Borgonha (Duchet-Suchaux &
Pastoureau, 1990, p. 23), de cuja casa reinante era o padroeiro (Molanus, 1996, I, p.
[463], nota I).
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Fig. 10: Santo André (76x70mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 5 a.
São Tomé
No caso seguinte, o texto contradiz a imagem. Situações como esta serão as três que a
seguir a esta apresentarei, e com as quais concluirei este meu pequeno estudo.
Vejamos a estampa que, no Flos Sanctorum de 1513, no fólio 12 b [Fig. 11], representa
um Santo com barbas ajoelhado, trespassado por lança, frente a um ídolo quebrado.
Trata-se da representação do martírio do apóstolo São Tomé, cuja 'legenda' ilustra. No
texto (f. 13 d) podemos ler:
"o apostollo posese em giolhos & disse Adoro mas nõ a este ydollo nẽ a este cobre masadoro ao meu senhor jhesu christo. & da sua parte mãdo eu a este diabo que quebre aquellecobre & ho derreta como çera. & loguo assy foy fecto. (...) & o bispo do tẽplo alçou ocuitello & matou o apostollo".
Este texto, tradução da Legenda Áurea,15 fala de "cuitello" (ou espada) e não de lança, e
diz que é "o bispo" (ou pontífice) do templo quem mata o apóstolo. Por aqui vemos
como a iconografia não está baseada no texto da Legenda Áurea, como tantas vezes
se afirma, mas tem formação independente, como já acontecia com a iconografia de
Santo André, anteriormente apresentado.
O atributo habitual de São Tomé é precisamente a lança (ApostolosCappadona, 1995, p.
320 a). Mas, no nosso livro, encontramos mais à frente, no fólio 49 a, uma estampa [Fig.
12] em que está representado um apóstolo empunhando uma lança com a mão direita,
ilustrando, porém, a 'legenda' intitulada "Da vida de sam mathias aplło." Ora São
Matias, que foi escolhido para integrar o colégio dos Doze depois da morte de Judas
lscariotes, parece ter sido decapitado com um machado (Apostolos-Cappadona, 1995, p.
238 a), depois de apedrejado (Sarmento, 1789, t. I, p. 211). Estamos, pois, perante o
aproveitamento de uma imagem icónica de São Tomé para 'ilustrar' a história da vida
de outro apóstolo.
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Fig. 11: Martírio de São Tomé (75x70 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 12 b.
Fig. 12: S. Tomé (76x70 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 49 a.
A relação desta imagem de um apóstolo empunhando uma lança com São Tomé está
relacionada com a forma habitual de representar o seu martírio com uma lançada,
como vimos atrás [Fig. 11]. Há portanto, no nosso livro, uma duplicação das imagens de
São Tomé, a narrativa do martírio e a icónica. Esta segunda [Fig. 12] é aplicada a outro
santo apóstolo, aproveitando-se assim uma xilogravura disponível.
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II.2.2. Mártires
O mártir, no Cristianismo, é aquele que se deixa antes matar do que renegar a fé em
Cristo. Assim dá testemunho até ao sangue. Estes são os segundos, na hierarquia dos
santos cristãos, após os apóstolos.
Nos dois casos seguintes, assistimos à representação de martírios que diferem da
narrativa que pretendem ilustrar.
Martírio de São Crisanto e de Santa Daria
Na estampa do fólio 7 c do Flos Sanctorum de 1513 [Fig. 13], os dois santos estão
representados dentro de uma casa, à qual um soldado lança fogo. Porém, o texto
literário mais uma vez não é concorde com o iconográfico:
Fig. 13 : Martírio de São Crisanto e de Santa Daria (76x76 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 7 c.
"[S]Am crisãto foy filho de apoio de apolonia: & despois que soube a ffe de jhesuchristo nõ o podia leuar seu pay aos ydollos: pollo qual ho mãdou emçerrar em hũacamara: & meteo cõ elle çinco moças galãtes porque o ẽganassem por seus afagos. &elle rogaua a deos que o nõ vẽçessem hos desejos da carne. & adormeçerõse logo asmoças em maneyra que nõ comiã nê bebiã na camara & se as tirauã logo comiã. Eemtõ rogarom a daria virgẽ muy emtẽdida que ẽtrasse cõ elle & o tornasse aosdeoses (...)| & crisanto (...) a cõuerteo: & ambos (...) cõuertiã muytos a ffe de christo:(...) & mãdarom poer a crisanto ẽ huũ caçere[sic] & a daria que a leuassẽ ao lugardas maas molheres: mas huũ lyã fugio do paço de seu senhor & fezse seu porteirodeste lugar. (... ) E logo mãdou o adiãtado poer muy grãde fogo a porta ondeestaua o lyã pera que ardessẽ o lyã & daria dẽtro na casa . (...) mas ẽ fimmãdouos ambos marido & molher guardar sua virgĩdade & fezeos meter ẽ hũacoua viuos: & mãdou cobrijr de pedras & de terra: & assy forõ martires de jhesuchristo." (Flos Sanctorum de 1513, f. 7 c-d)16
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Não aparece na imagem o leão, que guarda Daria. Terá o inventor da cena iconográfica
confundido o animal com um homem de nome Leão? O casal, na imagem, é colocado
numa casa e não numa cova, como no final da 'legenda'.
Martírio de Santa Luzia
Na estampa do fólio 11 c do Flos Sanctorum de 1513 [Fig. 14], vê-se Santa Luzia em cima
de uma tábua puxada por uma parelha de cavalos, conduzidos por um homem de
calções às riscas, que empunha um chicote na mão direita. Os cavalos passam por baixo
da porta de uma cidade, só se lhes vendo os traseiros. A imagem relaciona-se com o
seguinte episódio, assim narrado no nosso livro (f. 12 a):
Fig. 14: Martírio de Santa Luzia (75x69 mm.). Flos Sanctorum de 1513, fólio 11 c.
Entõçe pascoal mandou vijr os reffiões & disselhes: cõvidae todo ho pouoo pera ella:& tanto ha escarneçe atee que ha matees E elles quiserõna leuar ao lugar das maasmolheres mas nõ poderõ. que ho espirito sancto ha fazia pesada por que ha nõpodessẽ leuar. E fez loguo vijr muytos homẽs & a mãdou atar dos pees & dasmaãos: mas nõ a poderõ mouer tã pouco como dantes:ca ho espiritu sancto aguardaua & lhe deffẽdia sua castidade E pascoal fez trazer muytos boys jũguidos.& tã pouco a poderõ mouer tã soomẽte. & mãdou vijr os encãtadores que amouessẽ cõ seus encãtamãtos: mais nõ poderõ.
Contrariamente ao texto que acabo de transcrever,17 em que são mencionados bois, na
imagem ilustrativa aparecem, como referi atrás, os traseiros de equídeos.
II. 2. 3 - Confessor
Finalmente, vejamos o caso da representação de um santo confessor, isto é, de alguém
cujo testemunho ou confissão de fé em Cristo não chegou, como no caso dos mártires,
até ao derramamento de sangue.
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São Jerónimo
Uma xilogravura [Fig. 15], estampada na primeira coluna (a) do fólio 201 do nosso Flos
Sanctorum de 1513, representa São Jerónimo, vestido de cardeal, retirando o espinho da
pata de um leão ferido. A fábula do leão e São Jerónimo provém18 da estória de São
Gerásimo, devido a uma confusão derivada da semelhança entre os nomes. Diz o texto
(f. 201 c-d):19
"huũ dia como esteuesse assentado ouuindo a sagrada liçã| cõ os religiosos entrousupitamẽte no mosteiro huũ lyõ manquejando de hũa perna o qual visto osreligiosos fogirõ: & sam jheronimo foyse pera elle como a hospede. & como o lyõ lhemostrou o pee danado chamou os frades & lhe mãdou lauar os pees: & quebuscassem onde tinha o mal: & acharõ que tinha a palma do pee toda ferida dosespinhos. em fim posta nelle bõa diligẽçcia foy saão & morou antre elles como huũdomestico animal."
São Jerónimo é assimilado, na iconografia, a um evangelista sentado a uma estante
(Réau, 1996, t. 2/vol. 4, p. 146), como aliás acontece com os outros doutores da Igreja,
em especial os quatro grandes doutores da Igreja latina, dos quais ele é um. Na imagem
é o próprio São Jerónimo que trata do animal, não saindo do seu local de trabalho. Isso,
pois, não está de acordo, mais uma vez, com o texto.
Fig.15: São Jerónimo (76x68 mm.). Flos Sanctoruni de 1513, fólio 201 a.
Esta xilogravura foi reestampada no livro intitulado Contra os Juízos dos Astrólogos, da
autoria do monge jerónimo Fr. António de Beja. Neste livro, impresso em Lisboa, por
Germão Galharde, em 1523, a referida xilogravura está estampada no verso da folha-de-
rosto. A razão da sua presença neste livro é revelada pela frase colocada ao seu lado
direito e esquerdo, que diz: "Ora pro nobis| Beate pater hieronime." A estampa está
relacionada com o autor da obra, já que a inscrição apelida São Jerónimo "Bem-
aventurado Pai", devido a Fr. António de Beja pertencer à ordem religiosa que tem São
Jerónimo corno padroeiro. À presente impressão da referida xilogravura já se referiram
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Pina Martins (1972, pp. 97 e 99) e Artur Anselmo (1991, pp. 232-234). Porém, nenhum
destes autores refere a sua anterior presença no Flos Sanctorum de 1513.
Além do fenómeno da repetição dos modelos iconográficos, vemos como a adequação
entre o texto e a imagem não são sempre tidos em conta por parte do 'ilustrador' do
livro impresso. Este, vimo-lo no caso do Flos Sanctorum de 1513, aproveita o material já
existente, por vezes desajeitadamente. Este facto, como tive ocasião de verificar por
experiência própria, dificulta a tarefa do investigador, mas, por outro lado, torna-a
mais entusiasmante: descobrir aquilo a que chamei os desencontros entre dois textos, o
literário e o iconográfico. Lembremos que os iconódulos do tempo da iconomaquia no
mundo bizantino tinham consciência de que as imagens eram um verdadeiro texto,
chamando, ao artista que faz os ícones, iconógrafo (à letra, aquele que escreve
imagens).
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York: George Braziller & The Pierpont Morgan Library, 1997. ISBN 0-8076-1419-X.
NOTAS
1. Tanto o negrito como o itálico, nas citações do livro, são sempre da minha autoria.
2. IMAGENS DE PAPEL. O Flos Sanctorum em linguagem português, de 1513, e as edições quinhentistas
do de Fr. Diogo do Rosário OP - A problemática da sua ilustração xilográfica.
3. Quando a fonte da figura do Flos Sanctorum de 1513 não é indicada é porque se extraiu do
microfilme da Biblioteca Nacional, em Lisboa: F. 1426.
4. O episódio dos três dotes é anterior a S. Nicolau ser bispo, o que se pode ver num quadro do
ciclo da vida deste santo pintado pelo Beato Fra Angelico, que neste episódio o figura jovem com
traje civil (Baldini, 1973, PL. XX-XXI).
5. O asterisco indica o lugar no livro donde foi tirada a figura.
6. Devo esta informação a Artur Anselmo, em conversa pessoal.
7. Diferente, como disse atrás, do da Legenda Áurea de Fr. Jacopo da Varazze OP, e possivelmente
da autoria de Fr. Gauberto Fabricio de Vagad OCist.
8. Trata-se do Proto-Evangelho de Tiago, um apócrifo ortodoxo (ou seja, não gnóstico ou esotérico).
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9. Certamente, o chamado Evangelho do Pseudo Mateus, outro apócrifo ortodoxo, de grande voga no
Ocidente medieval (vd. Santos Otero, 2003, pp. 171-172).
10. Na versão dos LXX ou Septuaginta.
11. Ver distinção entre Nimbo, Auréola e Glória num artigo de Fausto S. Martins (2003, pp.
271-278).
12. Revelationes de Santa Brígida da Suécia, VII, 21 (apud Panofsky, E., 1998, p. 52).
13. A mesma forma de apanhar os cabelos pode ver-se, por exemplo: na imagem do Natal da Biblia
Pauperum de ca. 1462, como a seguir refiro; e na representação de Santa Eulália no Retablo de la
Virgen de los Consejeros, realizado por Luís Dalmau em 1445, e conservado no Museo Nacional de
Arte de Cataluña (Duchet-Suchaux & Pastoureau, 2001, p. 161).
14. P[edro] D[ias] - "Natividade" (in No Tempo das Feitorias, 1992, vol. 1, cat. n° 1, p. 116), onde
refere, como Bibliografia, o livro a seguir referido nesta nossa nota. Em 1967, Ignace Vandevivere,
professor na Universidade Católica de Lovaina, atribuía-lhe a data de finais do séc. XV (Lievens-
De Waegh, 1991, p. 39 e p. 44, n° 6).
15. Veja-se a tradução recente em português da edição crítica do texto original latino (Varazze, J.,
2004, t. 1, pp. 70-71).
16. Tirado da Legenda Aurea (cf. Varazze, J, 2000, t. 2, p. 238).
17. Tirado da Legenda Aurea (cf. Varazze, J, 2000, t. 1, p. 62 b e p. 66 a).
18. Segundo Réau (1996, t. 2/vol. 4, pp. 21-22 e 144).
19. Tirado da Legenda Aurea (cf. Varazze, J, 2000, t. 2, p. 202).
RESUMOS
Nos livros impressos, nem sempre as imagens estão de acordo com os textos que deveriam
ilustrar. Neste artigo, o autor analisa algumas estampas xilográficas que estão em desacordo com
os textos que 'ilustram', em O Flos Sanctorum em linguagem português, impresso em Lisboa, por
Hermão de Campos & Roberto Rabelo, em 1513.
In printed books, not always the images agree with the texts they are supposed to illustrate. In
this paper, the author analyses some woodcut prints that are in disagreement with the texts they
'illustrate', in O Flos Sanctorum em linguagem português, printed at Lisbon, by Hermão de
Campos & Roberto Rabelo, in 1513.
ÍNDICE
Keywords: illustrated book, religious images
Palavras-chave: livro ilustrado, imagens religiosas
AUTOR
FR. ANTÓNIO-JOSÉ D'ALMEIDA OP
Convento de Cristo Rei, Porto.
Bacharel (1975) e Licenciado (1978) em História, pela Faculdade de Letras da Universidade do
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Porto; Licenciado em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, em 1984; Mestre em
História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1999; Doutor em História
da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 2005, com urna dissertação
intitulada Imagens de Papel. O “Flos Sanctorum em linguagem português”, de 1513, e as edições
quinhentistas do de Fr. Diogo do Rosário.
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Poder de convencimento e narraçãoimagética na pintura portuguesa dacontra-reformaA influência de um gravado segundo Seghers numa tela do Convento dosPaulistas de Portel
The power of persuasion and images narrative in counter-reformation
Portuguese painting: the influente of an engraving following Seghers in a canvas
of the Paulistas Monastery at Portel
Vítor Serrão
1.
A História da Arte reconhece hoje o papel muito destacado que foi assumido pela
imagem gravada nos sucessivos processos de evolução artística. Não é mais possível
tentar compreender-se, hoje, o sentido das obras de arte – como sejam as produzidas
em fases históricas tais como o final da Idade Média ou o Renascimento e o Maneirismo,
por exemplo – se ignorarmos os interstícios da concepção e da produção à luz de
categorias operativas e de constrangimentos ideológicos que envolvem sempre os
clientes, os artistas e os públicos.
É por isso que o estudo da fonte gravada como referência ilustrativa do fazer das obras
de arte se multiplicou ao longo dos últimos anos, em dimensão meramente iconográfica
ou, também, no quadro mais vasto e mais interessante de um enfoque iconológico.1 A
análise das fontes imagéticas disponíveis em cada época, sejam as estampas de livro ou
as gravuras avulsas, explica-nos alguma coisa sobre fontes poderosas de conhecimento
e, muitas vezes também, de inovação que envolvem o acto criativo, do mais erudito ao
de dimensão periférica.2 O valioso papel assumido pela arte da ilustração como
instrumento cognitivo da memória imagética, quer em termos de manutenção de
códigos formais, quer da sua cíclica renovação em determinados períodos, começa a ser
melhor percebido pelos historiadores de arte, permitindo dialogar melhor com as
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formas enquanto parcelas de um programa consistentemente elaborado, caracterizar
os códigos artísticos enquanto testemunhos eloquentes e trans-contextuais, entender
as flutuações de gosto e de estilo mais ou menos perceptíveis num corte diacrónico de
existências patrimoniais, e deslindar os níveis de correspondência que (como se atesta
com clareza na pintura e em outras artes dos séculos XVI e XVII) cumprem esse desejo
de assimilar e unificar tipos de linguagem diversos com o objectivo de globalizar formas
mais complexas de comunicação.3 Intimamente ligada, sempre, a fontes literárias de
conhecimento (poesia, oratória, parenética, sermonologia, tratadística, literatura de
viagens, etc), a arte da gravura, nas suas vertentes mais decorativas ou simbólicas
(como a emblemática, o grotesco romano e outras formas all'antico), cumpre um papel
singular na busca de unidades de significação de uma determinada fase artística ou
época histórica, como reforço de conhecimento.4 E é interessante verificarmos que,
tanto no centro artístico do momento como num determinado foco periférico, a
novidade de uma fonte gravada possa assumir um papel de atracção e modernidade;
esse papel é de tal modo actuante na memória, na sensibilidade e no gosto dos
mercados envolvidos que a originalidade do fazer, derivada de fontes ilustradas de
vanguarda, pode superar os modelos iconográficos impostos e abrir o mundo da
produção artística local a novos desafios.5
Como se sabe, a crescente importância da ilustração livresca e da estampa solta na
cultura portuguesa da Idade Moderna, sobretudo com a Contra-Reforma, criou formas
de comportamento diversificado por parte dos artistas, muitos deles utilizando a fonte
gravada com estrita dependência formal, quando não sem consciência memorizável da
sua origem, havendo outros casos, porém, em que a estampa era, para o artista, mais
que um referencial temático ou formal, um instrumento de renovação, marcado pela
intencionalidade dos tipos iconográficos. Já tivemos oportunidade de destacar, na arte
portuguesa do tempo da Contra-Reforma, época em que abundou a presença da
estampa de importação italo-flamenga, inúmeros testemunhos de uma e outra atitude
na pintura, na iluminura e na escultura.6 Uma das vias em que a novidade do gravado se
expressou foi na divulgação de originais de grandes mestres italianos, flamengos e
franceses que, a par das estampas de ornamento (brutesco, etc.), se imiscui
profundamente no gosto dos nossos artistas, internacionalizando-lhes as referências e
atenuando, em muitos casos, a falta de contactos artísticos além-fronteiras. Durante o
século XVII, época de particular isolamento e dificuldades intestinas, esse papel da
ilustração estrangeira assumiu proporções assaz interessantes que explicam, em parte,
a originalidade e diversidade dos processos criativos dos nossos pintores.
Não é demais realçar a desatenção com que, pese o esforço recente da História da Arte,
alguns períodos da cultura artística portuguesa têm sido avaliados, em cores de injusta
menorização. À medida, porém, que as metodologias de abordagem globalizante e o
recenseamento de espécimes no terreno forem sendo cumpridos, o conhecimento sobre
a realidade da nossa produção irá permitir revalorizar esses e outros acervos,
apreciando-os na exacta medida do contexto em que foram concebidos e produzidos.
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Fig. 1. Cristo perante Caifás e negação de Pedro, tela atribuída ao pintor João da Cunha, de cerca de1660-70, num altar da igreja do Convento paulista de Nossa Senhora do Socorro, de Portel.
2.
O caso do painel seiscentista alentejano que elegemos para melhor se exemplificar esta
análise ligada ao uso da gravura em tempo de Contra-Reforma é, sob todos os pontos de
vista, singular.
Existe no Convento dos frades paulistas de Nossa Senhora do Socorro, na vila alentejana
de Portel, uma grande tela penumbrista que chama a atenção dos visitantes. A
estrutura compositiva permite atestar o modo consciente, e consequente, como certos
artistas do século XVII, mesmo limitados a uma curva de actuação periférica, recorriam
às fontes disponíveis e as sabiam usar, dentro das dificuldades e do controle vigentes,
como verdadeiras experiências de liberdade criativa. Esse quadro decora um altar da
banda esquerda da nave dessa igreja, preenchendo o vão central do respectivo retábulo.
Trata-se de um painel retabular que se impõe pela intrínseca qualidade de execução
plástica e pelo estudado poder de convencimento que, através de uma bem articulada
narração policénica, o seu discurso imagético propõe ao olhar dos visitantes mais
atentos, ao mesmo tempo que tenta gravar como legado aos públicos futuros uma
imagem aberta de comunicação.7
À primeira vista, parece tratar-se de mais um testemunho plástico (conquanto
particularmente acima da mediania), daquele tipo de pintura de convencimento em que
a arte portuguesa sob signo do Concílio de Trento foi tão fértil, com peças muitas vezes
de uma confrangedora repetitividade formal, onde era exclusivo o objectivo da
catequização das populações.8 Dentro dos princípios contra-reformistas à época
dominantes, antes de mais, estamos perante uma obra concebida e executada segundo o
conceito romano tridentino da arte senza tempo,9 com acento numa imagem didascálica
em que a representação iconográfica, o jogo de claro-escuro, as poses articuladas das
figuras e grupos, a modelação claro-escurista e os trechos de enquadramento
cenográfico, se complementam face ao objectivo de catequizar através do olhar dos fiéis
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e impressionar o espectador para os mistérios da fé católica. De facto, a peça segue
fielmente os princípios de nihil profanum, nihil inhonestum prescritos pelos teólogos
tridentinos em relação às «imagens sagradas» e que produziu tantas centenas de peças,
muitas vezes convencionalizadas e sem chama, aptas a funcionar tão-só num amplo
processo de legitimação de princípios.10
Vendo-se a tela seiscentista do convento de paulistas de Portel com a devida e
justificada demora, verificamos que, bem ao contrário, ela superou esses objectivos
primeiros e se soube deleitar numa construção imagética mais sedutora e complexa. O
artista visava, sem dúvida, tornar a sua composição bíblica mais atractiva, cruzando no
seu tecido duas ou mais «histórias» a fim de dinamizar o seu sentido pedagógico – e,
também, o seu sabor artístico. Trata-se de um grande quadro do ciclo proto-barroco,
pintado a óleo sobre tela, medindo 1 m, 600 de alto por lm, 900 de largura, que
representa a cena evangélica de Jesus Cristo perante Caifás, um episódio muito corrente
nas figurações da Paixão de Cristo e que mereceu ao pintor um tratamento cenográfico
bastante eficaz e, de certa maneira, original, na medida em que explorou – caso raro
entre nós – certas derivas do «caravagismo» italiano.
Por um lado, o pintor juntou na cena o passo de Jesus Cristo perante Caifás ao da Negação
de São Pedro. Por outro, desdobrou a composição em dois registos de narração
complementares e interligados, tendo o superior, ao centro, a figura de Jesus, de pé e
num recorte luminoso, rodeado por soldados romanos em ambiência penumbrista,
junto a um trono onde o sacerdote Caifás, acompanhado por fariseus que com ele
dialogam, se apresta a julgar o cativo; à esquerda, em plano afastado, vemos a figura de
São Pedro, de mãos postas, numa pose atormentada depois da tripla negação, assistindo
ao julgamento; enfim, no registo inferior, em ambiência iluminada a la candela, algumas
figuras de assistentes jogam cartas e gesticulam em surdo diálogo, com uma esbelta
figura feminina em contrapposto e outras personagens ataviadas ao gosto seiscentista,
numa espécie de «quadro de género» que se configura algo à margem do drama que se
desenrola no registo cimeiro.
Estamos perante um painel de merecimento, executado a óleo sobre tela no último
terço do século XVII para decoração de um altar (hoje de invocação de São Luís, Rei de
França), o segundo da banda da Epístola, no corpo da igreja do Convento de Nossa
Senhora do Socorro. Além da grande tela que centra o altar, existe uma outra, Cristo com
a cruz às costas, no remate, mas de qualidade inferior e de cronologia mais recente,
coeva da remodelação barroco-joanina do altar.11 Este convento, de frades eremitas da
ordem paulista, fora fundado na vila de Portel pelo sétimo Duque de Bragança D.
Teodósio II (1583-1630) no princípio do século XVII.12 Aliás, existira já em Portel, antes,
um eremitério dos monges paulistas, filiados na Casa da Serra d'Ossa, que remonta a
1420, quando esta ordem dispôs de ermida no sítio do Corte de Agua dos Infantes, no
termo da vila, mas foi por iniciativa do culto Duque D. Teodósio II, que a comunidade de
frades eremitas se mudou provisoriamente, em 1598, para a Ermida de São Luís, Rei da
França, erguida no Rossio da vila, sendo reitor Frei Pedro de Jesus, enquanto a sede
definitiva se não acabava de construir. Findas as obras de construção da nova igreja-
sede, o cenóbio, provavelmente devido a traças de Pêro Vaz Pereira (c. 1570-1643), o
arquitecto do Duque, seria sagrado, finalmente, em 1607, antecedido de solene
procissão em honra de Nossa Senhora do Socorro. Trata-se de um templo de severo
«estilo chão», dentro do gosto de austeridade vigente nas construções da ordem
paulista.
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Fig. 2. Pormenor da tela Cristo perante Caifás e negação de Pedro, de João da Cunha (?), cerca de1660-70. Igreja do Convento de Nossa Senhora do Socorro, de Portel.
3.
Olhemos mais demoradamente a tela que nos ocupa: apesar do deplorável estado de
conservação em que a tela se encontra, a justificar urgente restauro, ela revela
qualidades plásticas acima da mediania, ainda que dentro do quadro da pintura
regional, pois atesta uma visão pictural agitada e nervosa, atenta às dinâmicas da
cenografia barroca portuguesa da segunda metade de Seiscentos, que se destaca pela
cuidada ciência compositiva de que o artista deu mostras. Ao contrário do que foi
tendência comum na produção pictural destes anos, servida quase sempre por
propósitos didascálicos de grande clareza e simplicidade (no caso, através dos gravados
dos irmãos Wierix divulgados na obra do Padre Jerónimo Nadal, S.J., Evangelicae
Historiae Imagines, saída em Antuérpia em 1593), este painel da igreja dos frades
paulistas de Portel procurou servir com outra complexidade e recursos plásticos a
comunicabilidade com os fiéis. De facto, não é comum, na nossa produção de imagens
do século XVII, encontrar peças artísticas onde a dimensão humana e a dramaticidade
espiritual da cena de convencimento se desdobrem em níveis policénicos de
narratividade dual, muito sugestivos pelo seu "atestado de veracidade".
A cena inferior, na sua evidenciada derivação caravagesca, de todo inesperada no
contexto da pintura proto-barroca alentejana, remete para o conhecimento de uma
fonte gravada precisa, conquanto rara: a estampa com a cena da Negação de São Pedro
aberta pelo célebre gravador nórdico Schelte à Bolswert,13 baseada por seu turno numa
pintura do caravagesco Gerard Seghers que se expõe no North Carolina Museum of Art,
em Raleigh, nos Estados Unidos da América.14 Esse artista, nascido e morto em
Antuérpia (1591-1651), foi um dos poucos flamengos a entender e explorar as novidades
revolucionárias de Caravaggio, cujas obras teve oportunidade de estudar em Roma,
onde viveu durante o segundo decénio do século XVII, aí tendo seguido, também, as
experiências tenebristas de Manfredi e de Honthstorst, antes de se converter, após o
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regresso, à influência dominante dos modelos de Rubens. A tela da Negação de São
Pedro data de cerca de 1625 e deveu-se a uma encomenda do escultor André de Nolle,
de Antuérpia.15 Desta tela de Seghers existem outras versões de época, algumas delas
réplicas da própria oficina,16 mas não é de supor que alguma delas chegasse na época ao
mercado português, sendo mais provável que aqui fosse conhecida, sim, a gravura de
Schelte a Bolswert (1586-1659), utilizada pelo pintor do quadro de Portel.
Em termos de «quadro de género», esta deliciosa e rara evocação caravagesca, pintada
no século XVII, em Portel, por um discreto artista alentejano formado dentro dos
cânones proto-barrocos, sob o magno tema clássico da Negação de Pedro, representado à
hora da prisão de Jesus, mostra-se, como tivemos já oportunidade de observar,
derivações do célebre quadro de Michelangelo Merisi, o Caravaggio, a Vocação de São
Mateus da igreja de San Luigi dei Francesi de Roma,17 no que concerne ao grupo de
assistentes ao milagre. Modesta, e tardiamente, mas com as suas potencialidades que
não são de desmerecer enquanto documento artístico de uma estratégia
comunicacional, a pintura de Portel assume-se como testemunho vivo desse fascínio
internacional pela arte dos caravagescos, glosado dentro das suas possibilidades e
recursos num quadro que, seguramente, se impôs, ao tempo, muito acima da mediania.18
Fig. 3. Pormenor da tela Cristo perante Caifás e negação de Pedro, de João da Cunha (?), c. 1660-70.Igreja do Convento de Nossa Senhora do Socorro, Portel.
O pintor desta tela seiscentista portelense é conhecido, ainda que, dado o grande
desconhecimento que existe sobre as bolsas periféricas, o seu nome pouco signifique no
panorama das histórias da arte portuguesa que focam o tempo do nosso Barroco.
A crer na análise estilística, e confrontando a tela da igreja paulista com algumas outras
telas conhecidas desse artista, trata-se de João da Cunha, um pintor de óleo morador
em Beja, onde diversa documentação o referencia entre o ano de 1640 (ligado então à
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Santa Casa da Misericórdia local) e 1681 (ano em que pagava foro ao Senado Municipal
por casas na Rua da Capelinha, na freguesia de Santa Maria).19 Em 1663, este João da
Cunha pintou três telas para o altar da Capela de São José, na Quinta do General, em
Borba (uma delas assinada e datada), e são-lhe também atribuídas quatro Bandeiras
processionais com passos da Paixão de Cristo na Igreja da Misericórdia de Vila Nova de
Baronia (Alvito), e as telas de um altar no claustro do Mosteiro da Conceição, em Beja.
Em Junho de 1674, o pintor João da Cunha aparece citado num arrendamento de terras
ao Convento de Santa Clara de Beja.20 E pouco mais se apurou, até hoje, a seu respeito.
Trata-se de um secundário produtor de imagens, praticante, como era usual à época na
região, quer da modalidade de óleo quer da de dourado e policromia de escultura,
homem quase de certeza pouco culto e com mera educação plástica a sequenciar a
modesta tradição local,21 que se constitui um exemplo típico de uma conjuntura em que
a arte da Pintura, em contexto regional e em fase de isolamento político, quase se
resumia a cumprir objectivos de propaganda didascálica para casas religiosas e
confrarias, clientelas essas pobres de recursos e sempre muito convencionalizadas de
gosto. Ao tempo, trabalhava em Beja, também, o pintor de óleo, dourado e brutesco
Manuel da Costa Mourato, autor dos retratos dos Duques de Beja D. Fernando e D.
Brites, no Museu Regional, e responsável, juntamente com João da Cunha, pelo maior
acervo de intervenções para igrejas, conventos e irmandades do aro bejense.
João da Cunha, segundo o pouco que da sua obra remanesce, parece que seguia as mais
popularizadas fontes gravadas que a clientela beata lhe recomendava para melhor
servir os desígnios da propaganda católica (como sucede nas telas citadas da Quinta do
General em Borba, inspiradas em estampas de Lucas Vorstermann II segundo
conhecidos modelos de Rubens, e nas do referido altar de Beja, onde se inspirou, entre
outros modelos, nos de gravuras maneiristas correntes, de Cornelis Cort aos irmãos
Wierix, por exemplo). A tela de Portel, obra mais conseguida (mercê, também, do modo
como a gravura foi, neste caso, um eloquente sinal de aberturas plásticas), é um caso
especial de inteligente transposição das capacidades informativas de uma fonte
ilustrada, que usou (por sua iniciativa ou por sugestão dos seus clientes, os monges
paulistas) com extremos de perícia e imaginação. O uso de um modelo caravagesco de
Gerard Seghers, ainda que a meio século de distância, foi pretexto para que o artista da
tela de Portel transformasse o convencionalismo de uma cena da Paixão num exercício
muito interessante de imagética sacra.
Só este quadro do Jesus Cristo perante Caifás de Portel – a ser dele, como parece por
razões de estilo dever atribuir-se22 – assume um caso evidentemente à-parte, pelo que
revela de maior modernidade na 'citação' imagética realizada. De facto, o pintor serviu-
se da gravura nórdica segundo a complexa composição de Gerard Seghers para animar
a sua tela retabular, recriando o espaço plástico, multiplicando os pólos de narração
policénica, animando os agrupamentos e poses de figura e tomando em si – ainda que
por momentos e sem sequência visível no seu percurso ulterior – um sopro de inovação
italianizante, numa longínqua interpretação livre do mundo caravagesco, sempre
avesso do referencial dos nossos pintores do século XVII... Se o desenho é fruste e a
modelação trai limites de uma formação empírica, o pintor da tela de Portel tem
imaginação suficiente para, de acordo com quem lhe encomendou a tela, animar a
composição bíblica com uma transposição livre do tema sugerido pela estampa. Ao
retirar São Pedro do grupo de jogadores junto dos quais negou fidelidade a Jesus Cristo
após a prisão, colocando-o no registo cimeiro, no mesmo plano de Caifás e dos soldados
romanos, e ao reorganizar o espaço do registo inferior distribuindo as figuras profanas
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que jogam e dialogam seguindo o seu próprio sentido de narração credível, o pintor
mostrou aquilo que no seu tempo era apanágio, tão-só, dos grandes pintores – casos de
Baltazar Gomes Figueira, em Óbidos, ou de Bento Coelho da Silveira e de António de
Oliveira Bernardes, em Lisboa –, para quem a informação trazida pela gravura era não
só um indicador temático mas, sobretudo, um mundo de multiplicadas referências
plásticas que abriam grandes possibilidades de inovação.
O estudo da influência das fontes gravadas na arte portuguesa deve acertar o passo com
a análise integrada das formas e comportamentos dos mercados de produção, a fim de
apurar a razão por que se utilizam tanto estampas arcaizantes (o caso de edições do Flos
Sanctorum, ou da Pequena Paixão de Dürer, em obras já do século XVII...) como, ao mesmo
tempo, correm estampas de artistas de vanguarda, do mesmo modo que importa
analisar bem os modos de apropriação da imagem ilustrada, ora como réplica integral,
ora como informações pontualizadas, criticamente reconvertidas pelo artista em
função de outros temas, espaços ou necessidades de encomenda.
Há que lembrar sempre, por ser comum à actividade de todos os artistas peninsulares
do século XVII, dos mais eruditos aos de actividade regional, que com o início da
Contra-Reforma a Igreja Católica desenvolveu uma formidável campanha de
propaganda a fim de controlar os excessos das imagens expostas em lugares de culto e
de regulamentar o seu uso. O livro do padre Jerónimo Nadal, Evangelicae Historiae
Imagines (Antuérpia, 1593), já atrás citado, com gravuras dos irmãos Wierix, foi dos mais
populares para redefinir uma iconografia credível e impôr urna «arte correcta». Do
mesmo modo, a Orbita Probitatis e o Veridicus Christianus de Johannes David eram
conceitos formulados em obras muito popularizadas nos mercados da Europa contra-
reformada e chegaram a Portugal, onde grangearam natural sucesso, influenciando
clientes e artistas. Estas e outras obras de elogio da imagem, então dadas à estampa,
como o livro de Jacques Sucquet Via Vitae Aeternae, editada em Antuérpia em 1620,
propunham-se combater o «dogma errado», a «formosura dissoluta», os desvios ao
dogma e a violência contra as «imagens sagradas», em nome do Decorum e da «verdade
cristã».23
No livro de Sucquet, que conheceu diversas edições, o autor defendia (mais que a
qualidade inventiva das obras de arte sacra, ainda que esta seja estimulada como forma
de garantir um nível didascálico mais elevado) aquilo a que chamava a eloquência das
imagens que, aliadas ao seu sentido moral, deviam servir sempre de apoio ao acto da
meditação: «meditar é considerar na mente, e pintar com o coração, o mistério das
doutrinas da Sagrada Religião, por meio da representação das circunstâncias reais:
pessoas, acções, palavras, lugares e tempo», a fim de ascender as «coisas terrenas» à
esfera do divino. Por isso o livro desse artista-escritor nórdico, e as gravuras que o
ilustram, se desdobram num discurso de justificação do fio de conduta moral e do
rigorismo no exercício tridentino de representar visando o combate ao «falso dogma».
Todas essas características estruturadas de narração para serviço do convencimento
explicam a qualidade marcante de um quadro de devoção monacal como é o Jesus Cristo
perante Caifás (com Negação de São Pedro) do convento dos frades paulistas de Portel,
inspirado em modelo tenebrista de Gerard Seghers, com o seu dinâmico grupo de
figuras a la candela, e reforçam a necessidade do seu urgente restauro. Testemunha-se,
assim, um caso de encomenda religiosa seiscentista que, apesar do seu grau aparente de
vulgaridade, assume afinal a experiência da inovação permitida e as possibilidades da
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reconversão imagética do modelo, a fim de melhor servir o rigorismo do seu impacto
visual.
Fig. 4. Gerard Seghers, Negação de Pedro, c. 1620-25.Raleigh, North Carolina Museum of Art.
NOTAS
1. Vejam-se a este propósito as recentes teses de doutoramento universitário de Ana Paula Rebelo
Correia, Histoires en Azulejos, Miroir et Mémoire de la Gravure Européenne. Azulejos baroques à thème
mythologique dans l'architecture civile de Lisbonne, Université Libre de Louvain-la-Neuve, 2005; de
Manuel Batoréo, Moda, Modelo, Molde. A gravura na pintura portuguesa do Renascimento (c. 1500-1540),
Faculdade de Letras de Lisboa, 2005, e de Frei António José de Almeida, OP., Imagens de Papel. O
'Flos Sanctorum em linguagem português', de 1513, e as edições quinhentistas do de Fr. Diogo do Rosário,
OP, Faculdade de Letras do Porto, 2005.
2. A esse respeito importa lembrar a importância (e grande actualidade, como livro de referência)
do ensaio de David Freedberg The Power of Images: Studies in the History and Theory of Response,
Paperback, 1991 (ed. espanhola, El Poder de Ias Imágenes, éd. Cátedra, Madrid, 1991).
3. Juan Martínez Moro, «La ilustración como categoria: dos episódios sobre arte y conocimiento»,
Trasdós – revista del Museo de Bellas Artes de Santander, n° 2, 2000, pp. 83-84.
4. Veja-se o caso do Barroco castelhano e andaluz: cfr. Julián Gállego, Visión y Símbolos en la Pintura
Española del Siglo de Oro, éd. Cátedra, Madrid, 1974.
5. Carlo Ginsburg e Enrico Castelnuovo, A Micro-História e outros Ensaios (trad. portuguesa), ed.
Difel, Lisboa, 1991; e C. Ginsburg, Mitos, Emblemas, Sinais. Morfologia e História, ed. Companhia das
Letras, S. Paulo, 1991.
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6. Vítor Serrão, A Pintura Proto-Barroca em Portugal. O triunfo do Naturalismo e do Tenebrismo, tese de
doutoramento, dois volumes, Universidade de Coimbra, 1992 (publicado parcialmente o 1° vol.,
ed. Colibri, Lisboa, 2000).
7. Sobre esta tela, cfr. refª em Vitor Serrão, A Pintura Proto-Barroca em Portugal. O triunfo do
Naturalismo e do Tenebrismo, cit., vol. II (polic.), p. 847.
8. Flávio Gonçalves, Iconografia da Pintura Religiosa em Portugal, sep. da revista Belas-Artes,
Academia Nacional de Belas-Artes, 2ª série, Lisboa, 1973.
9. Federico Zeri, Pittura e Controriforma. L'«arte senza tempo» di Scipione da Gaeta, Torino, Einaudi,
1957 (2a ed. Vicenza, Neri Pozza, 1997).
10. Vítor Serrão, «Pintura e Propaganda em Évora nos alvores do século XVII. Um panfleto contra
a iconoclastia e três casos de repressão», Actas do Congresso da Inquisição, Lisboa, 2004, no prelo.
11. Uma lápide de 1676 encontra-se no supedâneo pavimentar deste altar e atesta a época precisa
da sua fundação: OMNIA SVB LE / GES MORS VO / CAT ATRA SVAS / ET TANDEM OM / NES
LOCVM PR / OPERA MVS AD ISTVM 1676 / ANNOS.
12. Sobre esta casa religiosa, cfr. Túlio Espanca, «Convento de Nossa Senhora do Socorro da vila
de Portel», A Cidade de Évora, n° 59, 1976, pp. 243-255; idem, Inventário Artístico de Portugal. VIII.
Distrito de Évora – Zona Sul, Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa, 1978, pp. 209-217; e Ana
Pagará, «O Convento da Ordem de São Paulo, em Portel», Conversas à Volta dos Conventos, Évora,
Casa do Sul Editora, 2002, pp. 207-227.
13. Richard E. Spear, Caravaggio and his Followers, Icon Edition, Harper & Row Publishers, New
York-Evanston-San Francisco-London, 1975, pp. 162-63.
14. Idem, op. cit., n° 61 e p. 163.
15. Idem, ibidem.
16. A tela da Colecção de Lord Mansfield é autografa, assim como a do Museu do Hermitage, em S.
Petesburg. A versão da Walker Art Gallery de Minneapolis é da oficina de Gerard Seghers. As
versões das colecções P. Fonsbech (Copenhaga), Delia Tally (Los Angeles), J. E. Davies (Little
Bringston, Northsmpton) e Bobber (New York), serão também réplicas de oficina, ou epigonais.
Na Colecção Theodore Cornely em Aachen, e na Catedral de Namur, existem telas com a Negação
de Pedro segundo Seghers, mas com a composição invertida, o que parece indiciar reutilização da
fonte gravada de Schelte a Bolswert.
17. A origem artística da composição de Seghers no Museu de Raleigh radica no chamado
Manfrediano methodus de iluminação concentrada e de claro-escuro sem excrescências, segundo
estudo dos originais de Caravaggio.
18. Em Portugal, não existiram obras de Caravaggio e é rara a influência dos seus modelos
realistas e dos processos luminosos de definição em claro-escuro, salvo em certas obras de André
Reinoso, de Josefa de Ayala e de Marcos da Cruz. No coro baixo do Mosteiro da Madre de Deus
existem duas telas caravagescas (Negação de Pedro, segundo o modelo de Seghers, e Tributo de
César), peças seiscentistas importadas, a merecerem um estudo de pormenor: ref.ª em João Miguel
Simões, Arte e Sociedade na Lisboa de D. Pedro II. Ambiente de trabalho e mecânicas de Mecenato, tese de
Mestrado, Faculdade de Letras de Lisboa, 2003.
19. Vítor Serrão, A Pintura Proto-Barroca..., cit., vol. II, pp. 843-844.
20. Arquivo Distrital de Beja, L° 17 de Notas de Manuel Marfins da Fonseca, fls. 135 v° a 136 v°.
Inédito.
21. Idem, «Uma sociedade de pintores em Beja no fim do século XVI: os maneiristas António de
Oliveira e Júlo Dinis de Carvo», revista Museu, IV série, 2003, nº 11, pp. 35-75.
22. A verdade é que a documentação existente sobre o Convento dos paulistas de Portel não
esclarece o assunto. Além de João da Cunha, cuja presença em Portel é presumida, sabemos dos
nomes de outros pintores que trabalham para esta vila no século XVII, a saber: o castelhano
Bartolomeu Sánchez, em 1627, veio de Evora pintar o quadro da Visitação da igreja da
Misericórdia, ainda existente (V. Serrão, A Pintura Proto-Barroca, cit., Coimbra, 1992, vol. II, pp.
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701-711); em 1646, o pintor de óleo, fresco e dourado Pedro López Vállejo fez o retábulo e
decoração fresquista da Capela de Santo António, na vila, obra desaparecida (Arquivo Distrital de
Evora, Lº 8 de Notas de Gaspar de Chaves e Rui de Pina Ravasco, fls. 125-126); e, entre 1673 e 1687, vivia
em Portel um pintor de nome Manuel Cardim, que parece andar ligado a obras na Ermida de São
Pedro (idem, Lº 14 de Notas de Diogo Boto de Aguiar e Francisco Gavião Cardoso, fls. 186-187 e 191-192; e
Lº 23 de Notas de Diogo Velho de Carvalho, fls. 51-52).
23. David Freedberg, The Power of Images: Studies in the History and Theory of Response, cit.
RESUMOS
A linguagem de comunicabilidade da imagética barroca expressa-se com inesperado ênfase no
caso de uma desconhecida tela que representa Jesus Cristo perante Caifás e a negação de S. Pedro,
num altar do Convento dos frades eremitas paulistas da vila de Portel. Pintada cerca de 1660, essa
tela, que se inspira numa estampa nórdica de Schelte a Bolswert segundo modelo caravagesco de
Gerard Seghers, leva a colocar a questão do papel assumido pela gravura italoflamenga (a
estampa solta e a estampa de livro) na construção de uma imagética contra-reformista ao serviço
da militância católica e do convencimento das populações em larga escala. A peça, que é devida,
segundo se crê, a um secundário pintor proto-barroco de nome João da Cunha, morador em Beja,
reforça a ideia do interesse da nossa pintura regional por cânones de influência caravagesca, uma
tendência quase ignorada na arte portuguesa do século XVII. A pintura de Portel mostra uma
narração para serviço do convencimento e revela-se um qualificado painel de devoção, inspirado
em modelo tenebrista de Seghers, com o seu dinâmico grupo de figuras a la candela que assiste ao
trecho bíblico. Testemunha-se um caso de encomenda religiosa periférica que, apesar do seu grau
aparente de vulgaridade, assume, através da utilização de uma estampa de sinal erudito, a
experiência da inovação possível e as possibilidades da reconversão imagética do modelo, a fim
de melhor servir o rigorismo do seu impacto visual.
The language of baroque images expresses with unexpected emphasis in the case of an unknown
canvas representing Jesus Christ before Caifás and the denial of St. Peter, on an altar at the
monastery of Paulists eremite monks at the town of Portel. Painted around 1660, this canvas,
which is inspired in an Nordic engraving made by Schelte a Bolswert following the caravagesque
model of Gerard Seghers, raises the question of the role of the Italian Flemish engraving (in
books or in its sheets) in building a counter-reformation imagery at the service of the catholic
militancy and the large scale persuasion of the masses. The painting, which is believed to have
been made by a secondary proto-baroque painter named João da Cunha, from Beja, reinforces the
idea of the interest our regional painting showed to canons of caravagesque influence, an almost
ignored tendency in the seventeenth century Portuguese art. The Portel painting shows a
narrative with the scope of convincing and appears to be a notorious devotional panel, inspired
by the tenebrist model of Seghers, with its dinamic group of characters "a la candela" attending a
biblical passage. We may witness here a peripherical case of religious commission which, in spite
of seeming vulgar, assumes, by using an erudite engraving, the experiente of the possible
innovation and the possibilities of the imagery model transformation, in order to better serve the
austerity of its visual impact.
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ÍNDICE
Keywords: counter-reformation, persuasion power, narrative image, Paulistas monastery of
Portel
Palavras-chave: contra-reforma, poder de convencimento, imagens narrativas, imagética
barroca, Convento dos Paulistas de Portel
AUTOR
VÍTOR SERRÃO
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Historiador de Arte e Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa. Presidente do
Departamento de História. Director da revista Artis. Autor de, entre outros livros, O maneirismo e
o estatuto social dos pintores portugueses, (1983); Estudos de pintura maneirista e barroca,
(1989); André de Padilha e a pintura quinhentista entre o Minho e a Galiza, (1998); Temas de
Cripto-História da Arte (2000); A pintura protobarroca em Portugal 1612-1657, (2000); O Barroco
(2002).
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Pierre-Antoine Quillard (c.1703-1733)Os livros e a ilustração na gravura joanina
Pierre-Antoine Quillard (c. 1703-1733) – Books and illustration in "João Vth's"
etching
Nuno Saldanha
Relembrando Quillard
1 Apesar de algum reconhecimento e divulgação inesperadas nas primeiras décadas do
século XX, a fama de Quillard, construída sobretudo a propósito da atribuição de obras
dadas anteriormente a Watteau, parece ter desaparecido com a mesma rapidez com que
surgiu.
2 Isto não significa necessariamente que o pintor tenha regressado ao esquecimento.
Felizmente, embora de uma forma demasiado incipiente, a sua obra tem estado
presente nalgumas exposições internacionais sobre Pintura e Desenho na França do
século XVIII, quase sempre dedicadas a Watteau.
3 Assinale-se o caso da exposição Watteau and His World: French Drawing from 1700 to 1750,
uma interessante mostra da The Frick Collection, em Nova Iorque, que esteve aberta ao
público entre Outubro de 1999 e Janeiro de 2000. Esta exposição contava com cerca de
65 desenhos de colecções públicas e privadas norte-americanas, seleccionadas pelo
comissário Alan P. Wintermute, especialista em mestres de Pintura Antiga da Christie's,
e anterior director da Galeria Colnaghi, naquela cidade. Um dos núcleos, intitulado
precisamente "Watteau's Followers", incluía obras de outros artistas que se dedicaram
ao género da fête galante, tal como os seus amigos Jean-Baptiste Pater e Nicolas Lancret,
ou seus seguidores e imitadores, Pierre-Antoine Quillard e Jacques-André Portail.
4 Mais recentemente, a exposição Visions of the South – French Baroque and Rococo Painters in
Italy, que esteve patente na Residenzgalerie em Salzburgo, de Novembro de 2002 a
Fevereiro de 2003, contava também com um núcleo especial, French Paintings from the
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Stock of the Residenzgalerie, constituído apenas com peças do acervo daquele museu,
onde, para além de obras de François Boucher, Charles Le Brun, Eustache Le Sueur,
Jean-Baptiste Pater, Sebastien Stosskopff, Pierre Subleyras, e Claude Vignon, também
Quillard se encontrava ali representado.
5 No ano passado, e talvez a mais importante destas últimas, teve lugar uma exposição no
Museu de Belas Artes de Valenciennes, Watteau et la fête galante, entre Março e Junho de
2004, comissariada por Patrick Ramade, director do respectivo museu, e por Martin
Eidelberg, o conhecido historiador de arte americano, e precisamente o principal
estudioso, a nível internacional, da obra de Quillard fora de Portugal, graças aos seus
importantes e significativos estudos que lhe dedicou, mormente sobre os seus
desenhos.1
6 Ao mesmo tempo, as instituições internacionais não têm deixado de olhar com atenção
para este pequeno mestre, o que se patenteia na aquisição de algumas das suas obras,
corno foi o caso de um desenho a sanguínea Fête Galante dans un parc, adquirido pela
National Gallery of Canada, em 1999 (inv. no. 40095). [fig.1]
Fig. 1.- Pierre Antoine Quillard, Fête Galante, c. 1725
7 No entanto, apesar destas simples presenças em certames expositivos internacionais,
estamos longe das polémicas surgidas em torno da sua figura, quando a fama de
Quillard foi crescendo à custa de Watteau, assistindo-se a um paralelo aumento da sua
obra conhecida, através de novas atribuições. No nosso país, pelo contrário, os estudos
de Ayres de Carvalho sobre o pintor saboiano Domenico Duprá,2 retiravam-lhe a autoria
de várias outras a ele atribuídas, como os vários retratos dos Duques de Bragança,
existentes no Paço de Vila Viçosa.
8 Em Portugal, contudo, o panorama tem-se revelado bastante mais pobre. Desde há
quase uma década, altura em que publicámos o nosso ultimo estudo sobre este pintor,3
pouco ou nada tem sido adiantado no sentido de se conhecer de forma mais
desenvolvida a vida e obra de Pierre-Antoine Quillard, nos poucos anos em que esteve
no nosso país, e onde viria a falecer prematuramente.
9 E talvez por este mesmo motivo, a historiografia internacional permaneça totalmente
alheia ao que por cá se tem feito neste sentido, ignorando sistematicamente os diversos
trabalhos que durante mais de meio século se publicaram em Portugal, desde Ernesto
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Soares (facto de que já se queixava este autor) a Agostinho Araújo, passando por Xavier
da Costa, ou Aires de Carvalho.
10 Ora, o desconhecimento da obra realizada por Quillard no nosso país, impede
precisamente que o artista possa ser estudado de uma forma séria e global, pelo que os
estudos realizados lá fora, caem sistematicamente numa visão parcial, truncada, e
necessariamente inconsequente.
11 Só com a análise da obra realizada em Portugal, se poderá realmente conhecer o artista
na sua fase de plena maturidade, daí que os estudiosos estrangeiros sacrificam
frequentemente páginas e páginas a polémicas sem sentido – a dependência ou
independência de Quillard face a Watteau, e a eventual relação discípulo-mestre entre
os dois.
12 Se na verdade é ainda escasso o conhecimento das célebres Cenas galantes, que
demarcaram a obra de Quillard na fase inicial da sua carreira (e sem dúvida marcadas
pela influência – directa ou não – de Watteau),4 o facto é que apenas aqui se conhecem
obras de temática religiosa, ou de retrato, géneros aos quais o artista se dedicou
activamente no nosso país. Por outro lado, a sua obra gráfica, tanto de estampa avulsa,
como de gravuras e cabeções feitos para ilustração de livros, tem aqui uma expressão
sem paralelo. E é precisamente este aspecto da sua produção, que iremos agora tratar
neste pequeno estudo.
A Vinda para Portugal
13 As principais fontes para o estudo da vida e actividade de Quillard no nosso país,
continuam a ser as informações referidas pelos seus biógrafos de Setecentos, e inícios
do século XIX. O principal foi sem dúvida o veneziano Pietro Guarienti, que esteve em
Portugal no ano em que Quillard faleceu, isto é, em 1733, e que nos fornece alguns
dados biográficos particulares, embora com alguns erros (o pintor morre apenas quatro
meses após a chegada do veneziano). Confundido por vezes com Antonio Orlandi, de
cujo Abecedario Pittorico viria a fazer uma versão aumentada e corrigida, publicada em
Veneza em 1753, Guarienti é ainda hoje a fonte mais seguida na elaboração de trabalhos
sobre o artista parisiense.5
14 De facto, o pequeno apontamento biográfico sobre Quillard foi sucessivamente copiado,
traduzido, interpretado e alterado, desde o século XVIII até aos dias de hoje,6 pelo que
achamos interessante incluir aqui a transcrição integral do texto em que fala de
Quillard.7
15 O Abade de Fontenay, cerca de vinte anos depois, pouco mais fez do que traduzir
Guarienti,8 o Padre João Battista de Castro (1745-1758), assim como o conhecido pintor e
teórico Cyrillo Volkmar Machado,9 embora venham a adicionar mais alguns breves
dados, no essencial seguiram Guarienti, como posteriormente sucederá com o Cardeal
Saraiva, ou Athanazius Raczynski,10 e por aí adiante, até Luís Xavier da Costa, 11 ou
Fernando de Pamplona.12
16 Será a partir da década de 60 do século XX, que a historiografia portuguesa começará a
mudar significativamente, aportando novas contribuições para o seu estudo, de que
teremos naturalmente de destacar os trabalhos de Ayres de Carvalho.13
17 Mais recentemente, de especial interesse se revestem os estudos desenvolvidos por
Agostinho Araújo, autor que revela um profundo conhecimento sobre quase tudo o que
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se escrevera sobre o pintor até aquela data, e onde dá especial realce à importância da
sua obra no desenvolvimento inicial do nosso paisagismo.14
18 Basicamente, Quillard teve uma curta carreira de pouco mais de vinte anos,
permanecendo praticamente desconhecido até muito recentemente, facto que começa
logo com a sistemática confusão acerca do seu nome, aparecendo-nos referido como
Tillard, Tilliard, Julliard, Juliart, Guillard (especialmente em Portugal) ou Quigliard.
19 Associado a Watteau, Lemoyne, Lancret, Pater e até mesmo Jean Restout, também a sua
obra carece ainda de uma definição mais precisa, com a qual se possam basear futuras
atribuições.
20 O seu nascimento permanece ainda obscuro. Parece ter ocorrido em Paris, na "Rue du
Temple", frente ao "Hôtel du Grand-Prieur du Temple", em data ainda por precisar,
mas que deve ter ocorrido entre 1701 e 1704,15 sendo filho de um marceneiro, Etiénne
Quillard, e de sua mulher, Marie Madeleine Grellet, e era também bisneto do conhecido
escritor Pierre Quillard.
21 Ainda bastante jovem (não ultrapassando portanto a idade de 11 anos, consoante refere
Guarienti), o Abade de Fontenay (e não o próprio Quillard, como habitualmente se
contava), terá levado alguns dos seus desenhos ao Cardeal André Hercule de Fleury.
Este, impressionado com o seu valor artístico, apresenta os mesmos desenhos a Luís XV,
que lhe concede uma pensão de 200 liras, depois aumentada para 300 liras (embora
posteriormente reduzida para apenas 100 libras).
22 Devem datar desta época, os três desenhos actualmente na colecção Duke of
Devonshire, os dois da colecção Chatsworth, assim como outros dois, na posse de
colecções privadas de Londres e Paris. Têm em comum o facto de se tratar de cópias, ou
variações de trabalhos de Watteau, o que justificaria pelo menos um contacto próximo
com o mestre de Valenciennes.
23 De sucesso em sucesso, o precoce artista recebe em 1723, com perto de dezanove anos, a
medalha de Prata dos Prix des Quartiers, o que naturalmente o incentivou a concorrer no
ano seguinte ao Prix de Rome da Academia, degrau indispensável aos artistas do seu
tempo, com a correspondente e ambicionada viagem de estágio à Academia Francesa
em Roma. Malogradamente, o seu quadro "Evilmerodaque, filho de Nabucodonosor,
libertando Joaquim", atingiu apenas o segundo lugar, em favor de um outro elaborado por
um jovem colega que futuramente daria bastante que falar – François Boucher. Não
perdendo o ânimo, concorre novamente em 1725, agora com um quadro cujo tema era
"Jacob purificando a casa", mas perde novamente o primeiro lugar, que será ganho então
por Van Loo.
24 Desanimado, dado que as perspectivas não se mostram favoráveis, nomeadamente
tendo em conta a situação precária dos artistas excluídos do proteccionismo régio, ou
aristocrático, e com a crise alargada da bancarrota de Law de 1720, Quillard parece ter
pensado na sua vinda a Portugal, à semelhança com o que estava a suceder com tantos
outros artistas franceses, italianos, flamengos ou holandeses.
25 Segundo refere Guarienti, tradição seguida por quase todos os historiadores até muito
recentemente, e cuja ideia os trabalhos de Ayres de Carvalho (1962) ajudaram a
fomentar, Quillard teria vindo em 1726 na companhia do naturalista suíço Charles
Frederick Merveilleux, que aqui se deslocou por algumas vezes, com o pretexto de
escrever uma História Natural do Reino.
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26 Esta questão, como já tivemos oportunidade de salientar,16 ainda é bastante
controversa, dado que muitas daquelas hipóteses permanecem por confirmar. Primeiro,
a da própria vinda de Merveilleux em 1726 (apenas a vinda de 1724 está confirmada),
segundo, que as memórias publicadas anonimamente em Amesterdão, em 1738, sejam
de facto do naturalista de Neuchate1,17 terceiro, que o pintor mencionado pelo autor
das memórias seja de facto Quillard, dado que o seu nome nunca é referido e, por outro
lado, a última vez em que se menciona o "jovem pintor" é em Talavera (Espanha),
portanto, não tendo este, acompanhado o escritor até Portugal.
27 Parece-nos mais provável a hipótese, que o artista tenha vindo por via marítima,
ajudado pelo enviado na Haia, Diogo de Mendonça Corte-Real, na companhia do
gravador flamengo Theodor Andreas Harrwyn e de sua mulher Maria Catarina
Previgny, em Junho de 1726. Quillard ter-se-ia então colocado sob a protecção do
soberano português, D. João V, o que acontecia frequentemente com muitos outros
artistas, que iam chegando de toda a Europa.
28 Quillard seria assim o pintor mencionado por Corte-Real numa carta enviada para
Lisboa, a 13 de Junho desse ano, dando notícia da partida de André Harrwyn: "Com este
Abridor vay hum bom Pintor ao qual não dey nada do Dinheiro de Sua Magestade por querer ir
por seu gosto, e só lhe farei algum presente para lhe pagar a passage daqui até Lisboa, o que será
da minha bolsa". Justificar-se-ia assim a sua vinda, portanto por mar e a despesas do
enviado, bem como a sua apresentação na corte do Magnífico, através do seu homónimo,
o Secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte-Real, de quem Quillard faria o retrato,
e para quem viria igualmente a trabalhar na decoração do seu palácio à Junqueira.
Quillard em Portugal: o gravador
29 Diversamente do que sucedeu em estudos anteriores, iremos aqui debruçar-nos apenas
sobre a obra gravada de Quillard, dadas as dimensões do texto, deixando para posterior
publicação outros dados acerca da sua actividade como pintor.
30 Para além do interessante trabalho que o artista desenvolveu no nosso país, como
pintor de retratos, de composições religiosas, Cenas Galantes ou de Género, a actividade
como gravador foi sem dúvida uma das mais marcantes. Embora raramente atingindo
os níveis de um Harrewyn, Le Bouteaux, ou De Rochefort, a sua obra é marcada por uma
grande originalidade e delicadeza do talhe, como já o notara Ernesto Soares,
produzindo algumas chapas que se podem considerar modelares entre a história da
gravura portuguesa. Segundo referia Soares, "a sua maneira é diferente da de todos os
artistas que aqui se encontravam na época e afora Bouteaux, nenhum outro se lhe pode
assemelhar e esse mesmo nunca no arrojo da concepção ou na delicadeza e graciosidade
da execução".18
31 Pouco se sabe ainda sobre os primeiros anos de actividade de Quillard no nosso país,
entre 1726 e 1727, mas parece que ela começou precisamente com a gravura. Os
conhecimentos travados durante a sua viagem para Lisboa com T. André Harrwyn,
devem-lhe ter proporcionado a abertura ao mercado português pela via da gravura,
uma das artes em plena ascensão na década de 20, mormente pela criação de D. João V,
da Academia Real de História, e pelas sucessivas encomendas e compras de gravuras
europeias, como é do conhecimento geral. Será igualmente Harrewyn quem, por outro
lado, fará a impressão de grande parte das gravuras elaboradas pelo artista parisiense.
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32 Também segundo o biógrafo veneziano, o jovem pintor, que contava entretanto com
cerca de 23 anos de idade, terá apresentado um quadro a D. João V (de que se
desconhece o tema), em 1727 ou 1728, cuja satisfação levara o soberano a conceder-lhe
uma tensa mensal de 60 000 reis.19 A nomeação como desenhador da Academia Real de
História também referida, e depois seguida por outros autores, parece tratar-se de
outro engano de Guarienti, consoante referia Ernesto Soares, dado o seu nome não
constar de qualquer registo nos livros de despesa, conhecidos até à data, e porque os
trabalhos de Quillard eram pagos à parte, procedimento habitual para os pintores
régios.
33 Parecendo confirmar esta nomeação como pintor régio, é a assinatura que o pintor
coloca numa das suas mais interessantes gravuras, e precisamente a mais antiga que se
conhece – Lançamento da Nau Lampadosa, que representa o solene acontecimento de 30
de Setembro de 1727, dedicada ao rei, e onde ali assina como "humilde e muito
obediente servidor Antoine Quillard".
34 Trata-se de uma magnífica composição comemorativa, de grandes dimensões, que
revela a plena maturidade do artista na técnica da água-forte. [fig. 2] Dela nos dava
conta Cirillo Volkmar Machado, referindo-se aquela gravura como "huma náo que foi
ao mar em 1727 com todo o povo dentro, e fora della, e o mesmo Rei, a quem a dedicou.
Era gravada no estilo de le Clerc."20
Fig.2 - Pierre Antoine Quillard, Lançamento da Nau Lampadosa, 1727
35 No ano seguinte, no entanto, numa das duas gravuras de Arquitectura efémera com Fogo
de Artifício, onde se festejavam as celebrações dos contratos nupciais dos príncipes
portugueses e espanhóis, já se intitula pintor régio e gravador (Sculptor).
36 Embora apenas uma delas esteja assinada por Quillard, a que representa o Tempo de
Júpiter, é provável que ambas sejam de sua mão, pelas afinidades de técnica e estilo,
sendo ambas impressas por T. Andreas Harrwyn.
37 Trata-se da representação de duas máquinas cenográficas pirotécnicas, que foram
montadas no Terreiro do Paço, por ocasião das festividades do duplo casamento dos
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príncipes e princesas de Portugal e Espanha, em Janeiro de 1728, consoante foi
amplamente divulgado na época (Conde de Ericeira, Marquês de Valença, Frei José da
Natividade, Jozé de Matos Rocha, Gazeta de Lisboa, etc.). Mais uma vez, Quillard mostra-
se um exímio mestre do talhe a água-forte, em duas complexas composições de caracter
documental tendo novamente a história contemporânea como base da sua temática.
Fig. 3 – P. A. Quillard, Máquina pirotécnica c/ Templo de Júpiter, 1728.
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Fig. 4 – P. A. Quillard, Máquina pirotécnica c/ Templo de Diana, 1728.
38 A primeira, representa uma arquitectura efémera tendo ao centro a figura de Júpiter
lançando raios, coroado pela figura da Fama, naturalmente uma composição alegórica
em honra ao príncipe D. Fernando de Espanha e de Maria Bárbara de Bragança,
conforme refere a respectiva legenda. [fig. 3]. A segunda, representava o templo de
Diana, com a deusa na parte central, frente a um jardim, e igualmente coroada pela
Fama, naturalmente em homenagem ao consórcio entre o Príncipe D. José de Bragança,
e Maria Anna Vitória. [fig.4]. Embora a mesma não tenha qualquer legenda, esse facto é
confirmado pela descrição de Joze de Matos da Rocha: "Este fingido Templo de Diana,
que ardeu do vosso Paço do Terreiro, quando Lisboa festejou ufana de vossas bodas o
rumor primeiro."21 Provavelmente estas duas máquinas pirotécnicas estavam colocadas
no centro do Terreiro do Paço, local de onde podiam ser observadas pelas janelas do
Paço Real, e à volta das quais o povo podia assistir ao espectáculo, conforme se observa
nas gravuras delineadas por Quillard.
39 Ao mesmo tempo, parece ter iniciado a sua actividade como retratista, pintando a efígie
do Engenheiro-mor do Reino, Manuel de Azevedo Fortes, e que serviu de base à gravura
de Rochefort que abre a importante obra O Engenheiro Portuguêz (Lisboa, 2 vols.,
1728-1729), bem como o seu retrato de D. José, actualmente numa das dependências do
Palácio de Mafra.
40 A partir desta data, Quillard terá terminado repentinamente a sua actividade para o rei
como gravador. Efectivamente, para além da decoração da antecâmara dos aposentos
da rainha, no Palácio Real (e que arderam no incêndio de 1745), da menos importante
participação na decoração de algumas das dependências do convento de Mafra, e de
alguns retratos de D. João V, que ocuparão a sua actividade como pintor a partir de
1730, os seus trabalhos, a partir desta data, serão sobretudo vocacionados para a Alta
Aristocracia de corte.22 Talvez daí derive o facto de o artista nunca ter feito parte do
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grupo de gravadores que trabalharam para a Real Academia de História, nem ter
participado na ilustração das obras produzidas pela Impressão Régia daquela academia.
41 Será também em 1728 que o artista inicia o seu trabalho como ilustrador, ornando
livros com diversos cabeções, vinhetas e letras iniciais. Nesse ano, sai a público o
primeiro tomo (e único) da obra do padre oratoriano António dos Reis, Joanni V
Epigrammatum, cuja ilustração (7 gravuras) esteve a cargo de Quillard.23 Para o mesmo
autor viria também a ilustrar mais tarde (7 gravuras) a Epistola ad Jametem Ducem
Cadavalensis, de 1731. Estes epigramas dedicados a D. João V, são ilustrados com algumas
curiosas gravuras, mais uma vez de carácter histórico-documental, representando
alguns acontecimentos marcantes das leis, obras públicas, e batalhas, dos inícios
daquele reinado, como o desvio das águas do Tejo que se iniciou em 1715, a lei que
proibiu o uso de armas curtas [fig. 5], a Batalha de Matapan contra os Turcos (única
composição do género deste artista) [fig. 6], ou a desobstrução do canal do Tejo.
Fig.5 - P. A. Quillard, Destruição das armas curtas, 1728
Fig.6 - P. A. Quillard, Batalha do Cabo Matapan, 1728
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As encomendas para a casa Cadaval
42 Entre 1730 e 1731, a actividade de Quillard, sobretudo como gravador, coloca-se ao
serviço do 2° Duque de Cadaval, D. Jaime de Mello. Um pouco antes daquele ano, parece
ter começado o trabalho para as Ultimas acçõens do Duque D. Nuno Álvares Pereira de Melo,24 uma das suas obras mais importantes como desenhador e abridor de chapas (as 15
principais, mais alguns cabeções, escudetes e ornamentações – as finais são de Vitorino
José da Serra), onde se reúnem exemplares de excepcional qualidade e detalhe.
Fig.7 – P. A. Quillard, Retrato do Duque do Cadaval, 1730
43 A temática das composições é bastante variada, que vai desde a alegoria, ao retrato [fig.
7], à religiosa e histórica. As mais interessantes são sem dúvida estas últimas,
nomeadamente aquelas que fazem uma descrição das exéquias fúnebres do Duque,
desde o imponente cortejo, à da representação dos altares e decorações da Igreja de
Santa Justa em Lisboa, em 1727 (desaparecida com o incêndio que deflagrou após o
Terramoto de 1755).
44 Em 1732, ainda em vida de Quillard, Jaime de la Te e Sagau, no seu Prefácio à obra de
João Tavares de Vellez Guerreiro, Jornada que António de Albuquerque Coelho..., fazia um
elogio a D. Jaime de Mello, a propósito desta obra, mencionando a excepcional
qualidade em todos os aspectos, referindo-se também em particular às estampas de
Quillard, "dextro no pincel e no buril que abrisse em planchas de cobre tudo o que fosse
preciso para o ornato do livro, o que ele executou com suma perfeição, pois não falando
em vinhetas, letras iniciais e remates, abrio para o principio da obra uma estampa de
admirável ideia, a que se segue outra o retrato do duque sumamente semelhante. No
meio se vê outra que representa a pompa militar do enterro e no fim trinta e três que
mostram o magnifico mausoléu e todos os adornos fúnebres de que se vestiu a Igreja de
Santa Justa...".25
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45 Ernesto Soares, e também Aires de Carvalho, consideram estas, "peças ímpares na nossa
História da Gravura e que nunca mais nenhum artista português conseguiria igualar e
muito menos superar.".26
46 A grande água-forte que representa o Cortejo Fúnebre, [fig. 8] é certamente uma das
obras mais notáveis do artista, bem como de toda a gravura portuguesa do período
joanino, não só pela qualidade do talhe, como pela complexidade e particularidade da
composição.
Fig.8 - Pierre Antoine Quillard, Cortejo fúnebre do Duque do Cadaval, 1730
47 É certo que podemos ainda aqui antever algumas afinidades com a obra de Watteau, em
particular com a pintura Cavaleiros e soldados em marcha (aka Defillé), executada c.
1709-1710, para Jean Jullienne, e posteriormente gravada por J. Moyreau em 1730 [fig.
9]. No entanto, neste caso, a obra do mestre de Valenciennes fica bastante aquém da de
Quillard.
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Fig. 9 – Antoine Watteau, Defillé, c. 1709-10
48 Outras das pranchas mais relevantes, são as grandes folhas desdobráveis que figuram os
diversos altares da Igreja de Santa Justa (os da nave e o do altar-mor). Nela se
representam diversas pinturas de temática religiosa, com cenas da Vida de Cristo, de
Nossa Senhora, dos apóstolos e santos. No altar-mor estava representada uma grande
tela com urna Coroação de Nossa Senhora pela Santíssima Trindade, tendo na cimalha um
retrato do duque, e que apresenta diversas semelhanças com o quadro sobre o mesmo
tema que o pintor realizou para Mafra, mormente nas figuras do Cristo de perfil, e de
Nossa Senhora (na posição inversa à da gravura, claro está).27
49 Os painéis dos altares laterais, [figs.10-11] representavam cenas com Anunciação,
Sermão da Montanha, Cristo perante Caifás, Cristo perante Pilatos, e muitos outros pequenos
painéis com um S. João, outros apóstolos, como um pequeno quadro figurando S. Lucas
retratando a Virgem, à semelhança da gravura que Quillard fizera para a Irmandade de S.
Lucas, para as patentes daquela irmandade, conforme referia Cirillo, ou para uma
simples folha solta votiva, de acordo com Ernesto Soares, impressa por André Harrwyn.
50 Desse período parecem datar também as suas primeiras "cenas galantes" produzidas
em Portugal, que pertenceram à colecção do Duque de Cadaval, de quem Quillard
pintou, em colaboração com Duprá, o magnífico retrato equestre.28
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Fig.10 - Pierre Antoine Quillard, Altares da Igreja de Santa Justa, 1730
Fig.11 - Pierre Antoine Quillard, Altares da Igreja de Santa Justa, 1730
51 Também as outras cenas galantes da Colecção Cadaval (adquiridas pelo 3° duque D.
Jaime de Melo), bem como a Quermesse ou Festa num Parque, actualmente no Museu
Nacional de Arte Antiga,29 devem datar desta época. De referir ainda uma outra cena
galante pintada por Quillard em Portugal, adquirida pelo pintor Zuloaga, e que foi parar
à colecção Jules Strauss em Paris. A série das "Quatro Estações", actualmente na
colecção Thyssen, e que em 1928 estiveram expostas no Musée Carnavalet em Paris,
pertencendo então a M. Paraf, são muito possivelmente as que pertenciam à colecção
da Casa de Aveiro, vendidas em 1759.
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52 Também as duas telas intituladas Assemblée prés de la statue de Neptune (ou Les Jardins de
Saint Claude), e Le Contrat de Mariage, actualmente no Museu do Prado, anteriormente
atribuídas a Watteau, podem perfeitamente incluir-se neste grupo. A sua presença na
colecção de Isabel Farnésio, mãe de Mariana Vitória, no Palácio de San Idelfonso em La
Granja, em 1746 (passando depois para o Palácio de Aranjuez em 1789), e
posteriormente incluídas no Palácio Real de Madrid, permite concluir uma possível
proveniência portuguesa, dados os contactos directos entre a princesa real e Quillard,
bem como a referência ao pintor nas cartas à sua mãe, bem como o usual envio de
diversas obras para a corte espanhola. Veja-se, por exemplo, o que a ainda princesa
escreve numa carta enviada a Isabel Farnésio, em 1734, e que é elucidativa do apreço
que tinha por Quillard, bem como do hábito de lhe enviar pinturas executadas em
Portugal: "O pintor que fez o meu retrato e que eu vos enviei morreu e não há neste momento
nenhum bom, mas se quer que algum dos maus o faça...".30
53 Em 1731, o artista produz uma série de nove gravuras para a obra de António dos Reis, a
que fizemos já referência, Epistola ad Jametem Ducem Cadavalensis..., de temática
sobretudo alegórica, e onde se reproduz novamente o retrato do 1° duque, D. Nuno
Álvares Pereira de Melo [fig. 7].
54 Este aproveitamento de estampas já produzidas anteriormente para outras obras, era
um expediente comum na época, como virá também a suceder com as Imagens
conceituosas dos Epigramas do Reverendo P. M. António dos Reys reduzidas do metro latino ao
metro lusitano... por João de Souza Caria (Lisboa Occidental, Na Officina da Musica,
M.DCC.XXXI), ilustradas com cinco vinhetas utilizadas noutras obras impressas.
Fig.12 – P. A. Quillard/Debrié, Outavado – Dança Portugueza, 1745
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As últimas obras
55 Talvez devido aos seus anteriores contactos em Haia com Diogo de Mendonça Corte
Real, Quillard executou diversas pinturas para a sua recente residência em Lisboa, a
Quinta das Águias na Junqueira, então adquirida pelo enviado em Outubro de 1731. Para
ali parece ter executado três telas para a capela do palácio, entre as quais se encontrava
uma Anunciação, de acordo com a invocação da mesma.31
56 Para além destes contactos prévios, o pintor era também seu vizinho, possuindo
residência e atelier na Travessa dos Algarves, transversal à Rua da Junqueira, frente ao
Tejo, consoante informava Jean Doriot em 1959: "près du quartier de Belem, dans la
ruelle des Algarves".32 Mas as relações com a família não se ficariam por aqui, dado que
nesse ano, faz o retrato do Secretário de Estado, seu homónimo e familiar, que hoje
conhecemos apenas por gravura.
57 Aliás, o ano de 1732 será pontuado pela sua actividade como retratista. Elaborou um
retrato do seu colega André Gonçalves (1685-1762), um dos pintores mais conhecidos da
primeira metade do século XVIII, para além de outros que realizou para a família real,
tais como o do infante D. Carlos, ou de Dona Mariana Vitória (hoje desaparecidos).
Fig.13 – P. A. Quillard, Alegoria a D. João V, s.d.
58 A sua obra como ilustrador é cada vez mais diminuta, a partir desta data, talvez pelo
incremento da sua produção pictórica. Fez um pequeno cabeção com a coroa real,
depois aproveitada para a obra de Bento Morganti, Descripção Fúnebre das exéquias de D.
João V... (Lisboa, 1750), duas vinhetas para a obra do Conde de Vimioso, com epigramas
ao Marquês de Alegrete, Manuel Teles da Silva;33 e ainda uma vinheta para uma obra de
Diogo Fernandes de Almeida, com as armas do autor.34
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59 Acrescente-se ainda neste ano, a belíssima Outavado-Dança Portugueza, [fig. 12] curiosa
obra do artista dentro da pintura de género, temática que viria na segunda metade do
século a ganhar sucessivos praticantes. Gravada posteriormente a buril por G. François
Debrié, em 1745, esta gravura apresenta ainda muitas afinidades com o estilo de
Watteau, nomeadamente com a Festa Báquica, realizada para as decorações do Hotel
Chauvelin, o então presidente do Parlamento de Paris, por volta de 1710-20, e depois
passada a gravura por J. Moyreau em 1731. Segundo Ernesto Soares, Quillard não teria
terminado a obra por sua morte, tendo a chapa passado para a posse de Debrié, que a
concluiria posteriormente.35
60 Para além desta, conhecem-se ainda algumas gravuras soltas, das quais desconhecemos
a origem, e o emprego, como uma Alegoria a D. João V, com os continentes, e o Rio Tejo
[fig. 13]; as Quatro Idades do Homem, que ilustra versos do Padre Oratoriano Manuel
Monteiro; e uma Santa Rita de Cássia, gravada por Charles de Rochefort [fig. 14].
Fig.14 – P. A. Quillard, Santa Rita de Cássia, s.d.
61 Em 1733, a sua breve carreira chega ao fim, morrendo repentinamente a 25 de
Novembro, como refere a sua certidão de óbito,36 na sua residência no Vale das Chagas,
freguesia de Santa Catarina do Monte Sinai, sendo sepultado em campa rasa na Igreja
das Chagas, com grande pranto dos amigos e colegas, consoante relatava o biógrafo
veneziano.
62 Referências da época dão-nos também esse testemunho do grande apreço, e estima que
gozou entre os seus contemporâneos e clientes, como o do Conde de Ericeira, no seu
diário, logo em Dezembro desse ano,37 ou o de Dona Mariana Vitória, em Janeiro do ano
seguinte – "Le pauvre Quillard est mort".
63 O rol das colecções onde a sua obra se encontrava figurada, é por outro lado bastante
representativa do agrado e da popularidade que a sua pintura tinha adquirido,
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mormente entre a alta aristocracia, apesar da estética oficial joanina considerar ainda
como inferior aquele género temático.38
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NOTAS
1. Veja-se a bibliografia no final deste trabalho.
2. Vejam-se sobretudo os artigos publicados no Diário de Lisboa, entre 1954 (7/5, 19/7, 27/7, 2/9,
24/12) e 1955 (16/5, e 2/7), e depois recompilados no estudo, Ayres de Carvalho, "Domenico
Duprà (1689-1770) Royal Portrait-Painter to various European Courts", The Connoisseur Year Book,
1958, XLIII, pp. 78-85.
3. Nuno Saldanha, "Pierre-Antoine Quillard", Jean Pillement (1728-1808) e o paisagismo em Portugal no
século XVIII, Lisboa, F.R.E.S.S., 1997.
4. Pelo menos no tocante às obras conhecidas até à data. No entanto, não podemos deixar de
considerar também aquelas que aqui foram pintadas e depois levadas para o estrangeiro, a que já
fizemos referência em estudos anteriores, para além daquelas que entretanto desapareceram ou
que permanecem por identificar.
5. Já em trabalhos anteriores fizemos referência a esta confusão, esclarecendo que Guarienti vem
precisamente completar, e corrigir, o célebre Abecedario Pittorico del peregrino Antonio Orlandi. A
versão acrescentada de Guarienti viria a ser publicada em 1753 (Veneza). O livro de Orlandi,
publicado pela primeira vez em Bolonha, em 1704, e posteriormente em 1719, numa versão
aumentada, reeditada depois em Florença, em 1731, vinha sendo alvo de diversas críticas. Veja-se
a carta de Mariette a Gaburri, onde o mesmo afirma a propósito que il P. Orlandi nel suo Alfabeto
Pittorico há imbrogliato tutta questa cosa. Francesco G. tentou depois convencer Gaburri a aceitar a
tarefa de o emendar, depois de uma tentativa gorada de o traduzir para francês: "Sarebbe in
veritá molto opportuno che una persona intelligente come voi, si pigliasse la cura d’una nuova
edizione dell'Abecedario Pittorico del P. Orlandi. Questo è un libro utile, ma che è tanto pieno di
Sbagli, che non se ne puó fare uso nessuno... Gli estratti, che egli ne dà, sono per la maggiore
parte infideli, e tronchi; e inoltre vi manca un infinitá di cose.". (Paris, Junho de 1733).
6. Veja-se os apontamentos biográficos de Alan Wintermute, « Le Pélerinage à Watteau – An
Introduction to the Drawings of Watteau and his Circle", Watteau and his World, French Drawing
from 1700 to 1750, Nova Iorque, 1999, pp. 38-39.
7. "Pietro Antonio Quillard overo Quigliard (p. 415). Nacque in Parigi da Steffano Quillard di
professione Falegname, et di Maria Madalena Grellet. In età ancor tenera, che non oltrepassava
l'anno undecimo, fece alcuni disegni, che furono stimati di tanta perfezione, ch'essendo
presentati dall'Abbate di Fleury ora cardinale al re Luigi XV quel giovane monarca li ebbe cotanto
grati, che accordó a Quilard una pensione di lire ducento, quale fu accresciuta poi fin'a trecento.
Indi datosi più a conoscere, vi fu un certo medico Svizzero da Naufchastel nommato Marveilleux,
il quale volendo passare in Lisbona incaricato di diversi progetti solto il pretesto di scrivere
l'istoria naturale di Portogallo, ebbe la possanza di persuadere Quigliard ad accompagnarlo per
disegnare le piante, alberi, radici, etc. Laonde venuto in questa capitale, ed essendo presentato al
re non so che quadro di sua mano, piacque tanto a sua Maestà buon gusto di Quigliard, che si
degnò di prenderlo per suo pittore, e disegnatore insieme della reale Accademia di Lisbona con lo
stipendio d'ottanta piastre il mese, ed in questo esercizio visse alcuni anni, finchè sopragiunto
infelicemente da una colica con poso tempo d'infermità pianto da'virtuosi, e dagli amici se ne
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mori a Lisbona il 25 novembre 1733. Fra gli altri lavori di questo virtuoso vi sono in Portogallo le
soffitte delle anticamere della regina etc., e nel palazzo del Eccellentissimo signor duca di
Cadaval vi sono molti suoi quadri dipinti e disegnati. Questo pittore seguiva la maniera di Wattò,
e pare sia stato suo discepolo. Monsieur Mangiè coniatore della zecca reale di Lisbona possiede
diversi quadri di esso autore; cosi nella racolta singolare del marchese Allegretti, e in quella delli
signori Conti de Évicera si vedono opere belle di questo autore." Cit. por Athanase Raczinsky,
Treizième Lettre – Appendice, Les Arts en Portugal, Paris, Jules Renouard et Cie, 1846, pp. 326-327.
8. Abbé de Fontenay, Dictionnaire des Artistes, 2 vols., Paris, L. A. Bonafons, 1776.
9. Cyrillo Volkmar Machado, Collecção de memorias relativas ás vidas dos pintores, e escultores,
architectos, e gravadores portuguezes..., Lisboa, Imp. de Victorino Rodrigues da Silva, 1823 (escrito
entre 1780 e 1794).
10. Cardeal Saraiva (Frei Francisco de S. Luís), Lista de Alguns Artistas Portugueses, Lisboa, 1839, pp.
344-346; Athanazius Raczynski, op. cit.
11. Luís Xavier da Costa, As Belas-Artes Plásticas em Portugal no séc. XVIII, Lisboa, 1935.
12. Fernando de Pamplona, Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses, vol. IV, Lisboa, 1974.
13. Apesar do importantíssimo contributo deste autor, não concordamos naturalmente com
algumas das suas hipóteses, mormente a de apontar para 1711 o nascimento de Quillard. Veja-se
Ayres de Carvalho, op. cit.; idem, D. João V e a Arte do seu tempo, Lisboa, 1960-62; idem, Presença de
alguns artistas franceses em Portugal no século XVIII, Catálogo, Lisboa, F.R.E.S.S., 1982; e idem,
Artistas e Gravadores Franceses, Coimbra, M.N.M.C., 1984.
14. Veja-se Agostinho R. Marques de Araújo, Experiência da Natureza e Sensibilidade Pré-Romântica
em Portugal – Temas de pintura e seu consumo (1780-1825), Porto, 1991 (dissertação de Doutoramento
em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto); e idem,
"Pierre-Antoine Quillard", Joanni V Magnifico – A Pintura em Portugal ao tempo de D. João V, Lisboa,
IPPAR, 1994, pp. 261-267.
15. A data mais provável do seu nascimento, parece ser posterior a 1703, dado que a apresentação
ao jovem Luís XV por Hercule de Fleury não pode ter sucedido antes de 1714, data em que este
último é nomeado preceptor do soberano. Afastam-se assim as hipóteses de 1701 (Wildenstein);
sobretudo a de 1711, como defendia Ayres de Carvalho, entre outros; e mesmo a mais recente
suposição que apontava para 1704, consoante refere Martin Eidelberg, que o dava como discípulo
de Watteau entre 1712 e 1714 (hipótese essa que também carece de confirmação).
16. Nuno Saldanha, op. cit., 1997.
17. Memoires Instructifs pour un voyageur dans les divers Etats de l’Europe: contenant des Anecdotes
curieuses, trés propres à éclaircir l’Histoire du Tems; avec des Remarques sur le Commerce et l'Histoire
Naturelle, Editado por H. Du Sauzet, Amesterdão, 1738. Sobre esta obra veja-se Ayres de Carvalho,
D. João V e a Arte do seu tempo, 2 vols., Lisboa, 1960-62.
18. Ernesto Soares, « Quillard (Pierre Antoine) », História da Gravura Artística em Portugal – Os
artistas e as suas obras, vol. II, Lisboa, Livraria Samcarlos, 1971, p. 494.
19. Ou de 80 piastras, consoante refere Guarienti. Para termos alguns termos de comparação,
Merveilleux recebera 80 000 reis pela Casa da Moeda; mas Vieira Lusitano, que substituiria
Quillard após 1733, receberia exactamente o mesmo ordenado.
20. Cirillo Volkmar Machado, op. cit., p. 282.
21. Joze Matos da Rocha, Epithalamio nas Augustas Vodas do Sereníssimo Príncipe do Brasil o Senhor D.
José, com a Sereníssima Infanta de Hespanha a Senhora D. Maria Anna Victoria, Lisboa Occidental, na
Officina da Musica, 1729.
22. Os anos de 1730-1731 foram sobretudo marcados pela pintura sacra de altar. Embora Quillard
não tivesse sido convidado a participar na decoração da Igreja, cujo programa foi entregue
exclusivamente a pintores italianos, a sua presença no grandioso projecto de Mafra, ficou
marcada por uma Coroação de Nossa Senhora, e por um Lava-Pés, colocados na portaria do convento,
por uma Última Ceia, na capela do Campo Santo (em colaboração com André Gonçalves), e talvez
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ainda um S. Paulo pregando, telas que marcam a sua estreia no campo da temática religiosa. Veja-
se Nuno Saldanha (Comiss.), Joanni V Magnifico – A Pintura em Portugal ao tempo de D. João V, Lisboa,
IPPAR, 1994.
23. Joanni V. Epigrammatum libri quinque authore P. Antonio dos Reys Lusitano, Congregationis Oratorii
Ulissiponensis... Tomos Prior Ulyssipone Occidentali, Ex praelo Josephi Antonii a Sylva...
MDCC.XXVIII.
24. Ultimas Acçoens do Duque D. Nuno Alvares Pereira de Melo. Relação do seu enterro e das Exequias que
se lhe fizerão em Lisboa e nas terras de que era donatário... Escritas... Pelo Duque Dom Jayme de Mello seu
Estribeiro...Na Officina da Musica. Lisboa 1730.
25. João Tavares de Vellez Guerreiro, Jornada que António de Albuquerque Coelho, Governador e
Capitão General da Cidade do Nome de Deos de Macao na China fez de Goa até chegar à dita cidade no anho
de 1718: dividida em duas partes. Lisboa Occidental, Officina da Musica, 1732. (1ª ed. 1718). Cit. por
Ernesto Soares, op. cit., p. 494.
26. Aires de Carvalho, Artistas e Gravadores Franceses – De Callot a Quillard, Coimbra, M.N.M.C., 1984,
p. 17.
27. O mesmo tema seria executado por Quillard para a grande tela que decora uma das paredes
laterais da Igreja de São Pedro de Alcântara, em Lisboa, por volta de 1731. Veja-se Nuno Saldanha,
op. cit, 1994, p. 268. Esta tela deriva provavelmente dos benefícios que D. João V realizou para
aquele lugar, entre Maio e Outubro, conforme relata o Conde de Ericeira no seu diário: "El Rey
tem dado a S. Pedro de Alcântara riquíssimos ornamentos, e dizem que quer fazer mayor a jgreja,
e convento.". Diário de 22 de Mayo de 1731. Veja-se João Luís Lisboa, et allie, Gazetas manuscritas
da Biblioteca Pública de Évora, Vol. 1 (1729-1731), Lisboa, Edições Colibri, 2002, p. 129.
28. Veja-se Nuno Saldanha, op. cit., 1994.
29. Existe a tradição de que este quadro, também chamado Festa na Aldeia, adquirido por José de
Figueiredo em 1921 à colecção Ameal, seja uma obra inacabada, datando-a assim do último ano da
sua vida, ou seja, 1733. Este erro tem sido repetido sucessivamente até há bem pouco tempo,
quando na realidade, apenas sucede o quadro encontrar-se bastante desgastado na camada
cromática, dando-lhe essa aparência de esboço. De qualquer modo, um entendimento da técnica
de Quillard na composição dos seus quadros, aplicando as figuras já depois de totalmente
composta a paisagem, permitiria imediatamente constatar-se a impossibilidade de um esquisso,
até porque a parte superior da tela, num estado de conservação bastante melhor, está
inteiramente acabada.
30. Caetano Beirão, Cartas da Rainha D. Mariana Vitória para a Sua Família de Espanha, t. I
(1721-1748), Lisboa, 1936.
31. As três obras mencionadas são referidas em Luiz Bonifácio, "Quillard em Lisboa", Olisipo, Ano
XXII, n.° 87, Lisboa, Julho de 1959, p. 126, mas sem descriminar os temas, ou apresentar quaisquer
fundamentos para a sua atribuição. Por uma fotografia antiga, sabemos que havia também uma
Imaculada Conceição. Infelizmente, já em 1997, a quinta se encontrava num estado lastimável de
abandono, mas foi-nos possível encontrar o paradeiro da Anunciação, que tivemos oportunidade
de publicar em Nuno Saldanha, op. cit., 1997.
32. Esta Ruela ou Travessa, também aparece referida como Beco dos Algarves, e ficava junto aos
Escaleres Reais, e à Cordoaria, junto à praia da Junqueira. Desconhecemos no entanto, os
fundamentos documentais para esta afirmação do pintor suíço.
33. Praeclarissimo Viro Emmanueli Tellesio Sílvio Marchioni Alegretensi Epigrammatum Liber unus,
authore D. Josepho Michaele Joanne Portugallensi Comité Vimiosensi, Regiae Academiae Sócio-
Ulissipone Occidentali Ex Proelo Michelis Rodrigues, M.DCCXXXII.
34. Dissertação Histórica Jurídica e Apologética que na Conferencia da Academia Real da Historia
Portuguesa de 14 de Fevereiro de 1732 leu D. Diogo Fernandes de Almeida, Lisboa, M.DCCXXXII.
35. Ernesto Soares, op. cit., p. 235. O mesmo se terá passado com a gravura Quatro Idades do Homem.
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36. Transcrevemos aqui em primeira-mão a respectiva certidão: A.N.T.T., Lisboa, Livros das
Freguesias de Lisboa, S.ta Catarina do Monte Sinai, Livro de Óbitos, n.° 8, fol. 119 v.°: "Novembro
de 1733.
P.° An.to Quillard. Em vinte e Sinco de Novembro de mil setecentos e trinta e tres faleceu Sem
Sacramentos, porq repentinamente, no Valle das Chagas desta freguesia, Pedro Antonio Quillard
natural da Corte de Paris, solteiro, pintor, e foi sepultado nesta Igreja. Não se lhe achou
testamento. O P.e Cura Antonio da Cruz e Abreu."
37. Veja-se Eduardo Brasão, "Diário do 4° Conde de Ericeira D. Francisco Manuel de Meneses",
Biblos, vol. XVIII, tomo II, Coimbra, 1943.
38. Vejam-se as colecções do Marquês de Valença, Duque do Cadaval, Marquês de Alegrete, Conde
de Ericeira, Conde de Atalaia e Marquês de Tancos (2 cobres com paizes e animais), Duques de
Aveiro ("seis painéis com paizes e figuras); vendidos em 1759 a Lucas Foreman; Marqueses de
Penalva/Tarouca ("bambuchata campestre de Monsu Guillard; Ninfa Sirix e Pan), ou na dos
artistas António Mengin (diversos quadros) ou António Joaquim Padrão (várias gravuras
actualmente na colecção da Biblioteca Pública de Évora). Também o Abade Castro e Sousa, em
1851, possuía uma Cena campestre atribuída a este pintor.
RESUMOS
Quillard tem sido um artista frequentemente esquecido pela nossa historiografia, apesar de
Portugal ter exercido uma importância considerável no desenvolvimento da sua carreira. Depois
de um período de estreita aproximação ao estilo de Watteau, será aqui que o artista parisiense
dará início a um novo estilo, mais maduro, e a novas temáticas na sua obra, tanto na Pintura
como na Gravura, mormente no desenvolvimento da arte do Retrato, na temática religiosa,
histórica e alegórica, mais de acordo com o gosto e o mercado nacional. As referências da época
dão-nos testemunho do grande apreço e estima que gozou entre colegas e clientes, e o rol das
colecções onde a sua obra se encontrava figurada, é por si bastante representativa do agrado e da
popularidade que ela tinha adquirido, sobretudo entre a alta aristocracia, apesar da estética
oficial joanina considerar como inferior aquele género temático. Um dos aspectos mais
significativos da sua obra foi precisamente o seu trabalho como gravador, e ilustrador de obras,
actividade que desenvolveu em larga medida, apesar da concorrência dos gravadores da Real
Academia de História, fundada por D. João V em 1720.
Quillard has been usually forgotten by our scholars, although Portugal has a considerable
importance in the progress of his career. In fact, after a brief period of close relations with the
work of Antoine Watteau in Paris, it is in Lisbon that the artist will develop a new style, more
mature, and widen new genders in painting and etching, mainly in the art of Portrait, Religious
themes, historical and allegorical subjects, according with the taste and the Portuguese market.
The referentes to the artist witness the considerable appreciation and the positive reception of
his work among other artists and patrons. Largely represented in several collections of that time,
witch evidences his popularity, mostly amongst the aristocracy, despite the disapproval of such
modern tendencies by official aesthetics. One of the most important aspects of his work, it's
precisely his particular skill on etching and illustration, regularly developed along his short
career, openly challenging the engravers of the Royal Academy of History, founded by king João
Vth in 1720.
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ÍNDICE
Keywords: Pierre-Antoine Quillard, portuguese etching, eighteenth century art
Palavras-chave: Pierre-Antoine Quillard, gravura em Portugal, arte do século XVIII
AUTOR
NUNO SALDANHA
(CHC UNL).
Licenciado em História da Arte, Mestre em História Cultural e Política (área Ideias Estéticas).
Investigador do CHC. Académico da Academia Nacional de Belas Artes. Docente da Universidade
Católica Portuguesa e Escola Superior de Design. Publicou, entre outros trabalhos, Poéticas da
imagem. A pintura nas ideias estéticas da idade moderna (1995); Artistas, imagens e ideias na pintura do
século XVIII (1995); O Tesouro das Imagens (1996); além de catálogos como comissário, e artigos
sobre História da Arte, Crítica, Teoria da Arte e Iconografia (sécs. XVII a XIX).
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Fontes para a iconografia teresianano convento do Santíssimo Coraçãode Jesus à EstrelaTheresian Iconography on the convent of the Holy Heart of Jesus in Lisbon
Sandra Costa Saldanha
O antigo convento carmelita do Santíssimo Coração de Jesus à Estrela encerra um
interessante conjunto de painéis de azulejos alusivos à vida de Santa Teresa de Jesus,
cujas composições foram concebidas a partir da cópia directa de dez gravuras do álbum
Vita S. Virginis Teresiae a Iesv.
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1. Joaquim Machado de Castro, Santa Teresa deÁvila, c. 1783
Obra integrada na iconografia geral do edifício, os principais assuntos ilustrados no
complexo dividem-se, basicamente, em quatro tipos: temática alusiva à Ordem
Carmelita, onde se incluem sobretudo passos da vida de Teresa de Ávila; temas
relacionados com a devoção e encomenda do templo e convento, com representações
da rainha, do Santíssimo Coração de Jesus e de religiosos carmelitas; e outros assuntos
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de cariz religioso, onde se integram temas que não cabem no propósito essencial da
construção, como cenas da vida de Cristo, da Virgem e de outros santos.1
Quanto às principais representações de Santa Teresa, merece destaque especial a
composição escultórica da fachada da basílica, executada por dois dos ajudantes de
Joaquim Machado de Castro (1731-1822), Alexandre Gomes e João José Elveni. Obra
integrada no programa iconográfico inicial do templo, que contemplava alguns dos
principais santos carmelitas,2 Teresa de Jesus surgia no modelo original representada
com três livros, símbolo da sua condição de escritora, reformadora e doutora da igreja.
Em termos compositivos, é sintomático reconhecer que a obra se filia na célebre
escultura com o mesmo tema do florentino Filipo della Valle (1697-1768). Colocada num
dos nichos da nave da basílica de São Pedro, um anjo semi-nu acompanha a Santa,
segurando nas mãos um dardo e o coração em chamas, alusivos à célebre passagem
biográfica da Transverberação. Colaborando na realização da série de estátuas de santos
fundadores de ordens religiosas, a importância do projecto do Vaticano, que Della Valle
concluiu em 1754, assim como o factor propagandístico que lhe estava inerente,
favoreceu naturalmente a divulgação de tais obras. Como era frequente em
empreendimentos de vulto, também a imagem dessa estátua seria gravada, pelo
italiano Silvio Pomarede (act. 1736-1768), conservando-se um exemplar no convento
feminino de carmelitas da cidade espanhola de Valladolid.3
Na basílica da Estrela, o espaço onde se encontra o maior conjunto de representações de
Santa Teresa de Ávila é o antecoro da igreja. Com um programa iconográfico bastante
coerente, subordinado a temas da vida da Reformadora do Carmo, observa-se, ao nível
do tecto, a Transverberação e, nas paredes, seis telas com passos da sua vida, a saber:
Santa Teresa com São Pedro e São Paulo, Esponsais místicos, Santa Teresa fundadora
acompanhada por dois anjos, Imposição do colar e Santa Teresa perante o Ecce Homo.4
Paralelamente, a especificidade do convento da Estrela, nomeadamente as
circunstâncias da sua encomenda e construção, determinaram a execução de obras
especialmente adequadas ao edifício. É disso exemplo uma das obras da autoria de
Pompeo Batoni (1708-1787): Santa Teresa a receber as ofertas da rainha de Portugal na
presença das freiras carmelitas, pintura integrada numa segunda etapa do trabalho deste
artista romano para a Estrela, arrematada em 1782 e terminada em 1784.
No mesmo contexto, cabe ainda referir o tecto da denominada sala da rainha, com a
figuração da Rainha doando os planos da Basílica a Santa Teresa de Jesus, obra atribuível a
Cirilo Volkmar Machado (1748-1823), e integrável numa campanha decorativa que
situámos nas últimas duas décadas do século XVIII.5
Vita S. Virginis Teresiae a Iesu – um livro em imagens
Vita S. Virginis Teresiae a Iesu Ordinis Carmelitarum Excalceatorum Piae Restauratricis é o
título de um conjunto de vinte e cinco estampas numeradas, editadas pela primeira vez
em 1613 sob a forma de álbum, mas que podem também encontrar-se avulsas,
agrupadas em séries ou integradas em livros.
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2. Portada de Vita S. Virginis Teresiae a Iesu, 1630
A publicação da obra ficou a dever-se à iniciativa de madre Ana de Jesus (1545-1621),
discípula de Santa Teresa que fez parte do grupo de religiosas que ingressaram no
primeiro mosteiro da Reforma, o convento de São José em Ávila (1562). Conhecida por
ter acompanhado a Santa em diversas das suas Fundações, foi também priora-
fundadora dos conventos de Beas de Segura (1575), de Granada (1582), de Madrid (1586)
e de Salamanca (1596).6 Em 1604, juntamente com Ana de São Bartolomeu (1549-1626),7
fundadora do mosteiro de Amberes, deslocou-se a França, onde inaugurou vários
conventos e, posteriormente, à Flandres onde desde 1607 exerceu funções de priora, no
Carmelo Real de Bruxelas.
Desempenhando um papel fundamental na divulgação da vida e da actividade de Teresa
de Jesus, promoveu em França e na Flandres, por encargo do
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definitório geral da Ordem, a tradução para francês, flamengo e latim de algumas das
suas obras.
3. Transverberação de Santa Teresa
Aguardando a beatificação da Reformadora, Ana de Jesus foi também a responsável pela
realização de uma série biográfica de estampas, representativas de uma parte da vida
de Santa Teresa. A primeira edição foi impressa em Amberes, em 1613, e da sua realiza
ção foram incumbidos os gravadores Adriaen Collaert (1560-1618) e Cornelis Galle
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(1576-1650), autores consagrados pelas composições de reconhecida qualidade técnica,
especialmente naquelas dedicadas à vida de santos.8
Editado em álbum nas vésperas da beatificação de Santa Teresa (1614), o conjunto de
gravuras foi dedicada a D. Rodrigo Lasso Nino, conde de Hanover, ecónomo do
arquiduque Alberto e marido da infanta Isabel Clara Eugénia, governadora dos Países
Baixos e amiga de Ana de Jesus que, como vimos, foi a principal promotora da
iniciativa.
Da série de 1613, conservam-se exemplares completos nos conventos femininos de São
José, de Ávila e de Medina del Campo, assim como na secção de iconografia da
Biblioteca Nacional de Madrid.9 Após a primeira edição, volta a ser publicada em
Amberes uma segunda série, ainda nesse ano, e em 1630 uma terceira, da qual existe na
Biblioteca Nacional de Lisboa um exemplar.10
Apesar da primeira série não ter sido superada tecnicamente por nenhuma das
posteriores, são no entanto de assinalar ligeiras diferenças entre elas, subtilezas
fundamentais dado que se confundem por diversas vezes, nomeadamente quando
usadas para a análise iconográfica de obras de arte.11 Mais recentemente, a obra de
Collaert e Galle mereceu várias edições fac-símile, como é o caso das que foram
publicadas em Montreui-Sur-Mer (1896), Gante (1929, com dupla edição em flamengo e
francês) e Madrid (1914, no centenário da beatificação de Santa Teresa; e 1962, no
centenário da Reforma da Ordem do Carmo).
Os temas
Certamente imbuída da atmosfera contra-reformista que se respirava então, coube a
Ana de Jesus a responsabilidade de seleccionar os momentos biográficos que deveriam
ser fixados pelos artistas de Amberes. Com o auxílio de Ana de São Bartolomeu, as duas
religiosas basearam-se essencialmente no legado escrito de Teresa de Ávila, em especial
no Livro da Vida e no Livro das Fundações.
4. Santa Teresa perante a Trindade
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Apesar da conhecida vocação literária de Teresa de Jesus se ter manifestado
precocemente, foi no decorrer da ampla actividade como fundadora que escreveu o
maior número das suas obras, todas elas a instâncias dos seus superiores e directores
espirituais. Estes livros, cujo âmbito era normalmente de carácter biográfico, conselhos,
normas da vida espiritual e religiosa, acabariam por se converter em textos doutrinais.
No intuito de promover um sistema de pensamento, no seio dos conventos que ia
fundando sob os princípios da sua Reforma, alguns desses escritos alicerçaram também
os principais temas ilustrados nas gravuras de Antuérpia. Com efeito, a difusão da obra
literária, sobretudo dos títulos de carácter biográfico e as descrições de experiências
místicas contribuíram, logo após a canonização (1622), para a definição de uma parte
significativa da sua iconografia.
5. Santa Teresa coroada por Cristo
O Livro da Vida, primeira e mais extensa obra da autora, foi redigido pela primeira vez
em 1562, por ordem do seu confessor, o padre Domingo Báñez, e dividido em capítulos
em 1565, por imposição do padre Garcia de Toledo. Além de um relato autobiográfico da
infância e juventude, Teresa de Jesus narra ainda nessa obra as suas experiências
místicas e relata a história da fundação do convento de São José de Ávila.12
A redacção do Livro das Fundações, composto por ordem do padre Jerónimo Ripalda
iniciou-se em 1573, em Salamanca, e foi completada em Burgos passados dez anos.
Escrito durante a caminhada da Santa, à medida que se foi expandindo a Reforma e
foram surgindo novos conventos, ele relata a história e a origem das diversas
Fundações. O texto repete os temas habituais, de espiritualidade e conselhos para a
direcção das religiosas.
Será então, sobretudo baseadas nestas fontes, mas também no contacto pessoal de que
haviam desfrutado, que Ana de Jesus e Ana de São Bartolomeu procederam à selecção
dos assuntos. Evidenciando claramente a intenção de exaltar e enaltecer as virtudes e
graças de que havia gozado a sua Mestra, os episódios seleccionados destacam em
particular aspectos místicos e ascéticos da existência de Santa Teresa. Prevalecem em
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especial as suas célebres visões, êxtases e contemplações, em detrimento de outros
passos da sua vida, como é o caso da juventude e das Fundações.
Com um total de vinte e cinco gravuras, o álbum em análise é composto por portada,
seguida de vinte e quatro estampas seriadas e legendadas em latim. A sequência inicia-
se no número dois e termina no número vinte e cinco, apresentando as seguintes
representações:13 2 - efígie de Santa Teresa; 3 - Santa Teresa e o irmão caminhando para
a terra dos mouros; 4 - Ingresso de Santa Teresa no convento de Ávila; 5 - Santa Teresa
enferma; 6 - Santa Teresa orando diante do Ecce Homo; 7 - Santa Teresa penitenciando-
se das tentações do demónio; 8 - Transverberação de Santa Teresa; 9 - Santa Teresa com
São Pedro e São Paulo; 10 - Filia tota mea es et ego totus tuus; 11 - Santa Teresa perante a
Trindade; 12 - Santa Teresa superando as tentações do demónio; 13 - Esponsais místicos
de Santa Teresa; 14 - Imposição do colar e do manto a Santa Teresa; 15 - Santa Teresa
devolvendo a vida ao sobrinho; 16 - Santa Teresa coroada por Cristo; 17 - Levitação de
Santa Teresa perante a Eucaristia; 18 - Santa Teresa com São João da Cruz e António de
Jesus; 19 - Santa Teresa protectora dos carmelitas; 20 - Viagem de Santa Teresa a
Salamanca; 21 - Tentações de um sacerdote; 22 - Santa Teresa com São João da Cruz; 23 -
Santa Teresa escritora inspirada pelo Espírito Santo; 24 - Morte de Santa Teresa; e 25 -
Santa Teresa benzendo os carmelitas.
6. Santa Teresa protectora dos carmelitas
A divulgação
Época propícia para a disseminação das doutrinas teresianas, também a série de
Amberes conheceu logo após a sua publicação uma enorme expansão, favorecida que foi
pela atitude adoptada pela Igreja Católica após o Concílio de Trento. Pela importância
que assumia a exaltação e o exemplo da vida dos santos, assiste-se então a uma
popularização, sobretudo de índole didáctica e devocional, das suas representações.
Neste contexto, gera-se um enorme consumo de imagens, galvanizado ainda pela
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possibilidade que a gravura oferecia de obter cópias em massa, que rápida e
eficazmente podiam ser distribuídas nos principais circuitos comerciais do tempo.
7. Morte de Santa Teresa
Incontroverso o facto de se ter constituído como um dos mais importantes veículos
para a divulgação da vida dos santos, entre outras finalidades, a alusão aos episódios
mais célebres da existência de Santa Teresa visava instruir os fiéis em diversos aspectos
piedosos e devocionais. Sabe-se, por exemplo, que no convento carmelita de Medina del
Campo, as vinte e quatro gravuras que constituem a série foram fixadas sobre tábuas,
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configurando uma narração sequencial com a qual as noviças do carmelo se instruíam
acerca dos principais acontecimentos da vida da madre Fundadora. Além deste
objectivo pedagógico, algumas séries serviam simplesmente para ornamentar as
dependências conventuais.
Porém, o êxito de tais composições seria sobretudo visível quando estas se convertem
num modelo corrente para inúmeras obras de arte, especialmente no domínio da
pintura e da azulejaria. Com uma importância decisiva na fixação e desenvolvimento de
parte da iconografia teresiana, as estampas de Amberes constituíram-se, desde logo,
como um eficaz veículo para a rápida difusão da sua biografia.
Decorando o interior de inúmeros carmelos espalhados por todo o mundo, a verdade é
que a série, completa ou incompleta, acabava também por essa via, por cumprir a sua
função didáctica primordial. Com efeito, vários artistas se inspiraram na gravuras de
Collaert e Galle, que foram, nalguns casos, rigorosamente copiadas.14
O enorme sucesso da edição de Antuérpia abre assim portas à publicação de diversas
outras séries gravadas da vida de Santa Teresa, desde a cópia integral até às versões
mais abreviadas. Apesar das semelhanças com as gravuras originais, o seu
conhecimento assume especial importância, na medida em que foi por vezes nestas
obras posteriores, e não nas primeiras, que se inspiraram diversos artistas plásticos ao
longo dos tempos. Entre essas, foram especialmente divulgadas as seguintes:
Giovanni Giacomo Rossi (1640-1690), Sanctissimae Matris Dei Monte Carmelo Beatae Teresiae
humilis filiae ac devotae famulae effigies, 1622. Série publicada como original, composta de
portada e vinte e quatro gravuras. Foi dedicada ao cardeal I Garsia Millino, vigário do Papa e
protector do carmelo da antiga observância. Trata-se de uma cópia da série de Collaert e
Galle, mas assinada por loannes Eillart Frisius, da qual existe em Portugal um exemplar na
Biblioteca da Ajuda.15
Isabella Duca, S. Teresa virgo fratrum Carmelitarum discalceatorum et monialium fundatrix relata
intersanctos A. S. D. N. Gregório XV die 12 martii 1622 Romae, c. 1622. Versão simplificada da série
de Antuérpia, trata-se de uma biografia de Santa Teresa, ilustrada com doze gravuras,
claramente inspiradas no conjunto de Amberes, ainda que realizadas com diferentes
critérios estilísticos e noutro formato. Sem data de edição, vieram à luz por ocasião da
canonização de Santa Teresa (1622).
Daniel a Virgine Maria, Konste der konsten ghebedt: oft maniere om wel te bidden besonderlijck
ghetrocken uijt de schriften van de H. moeder Teresa de Iesu, Amberes, 1646. Incluindo doze
gravuras biográficas anónimas, revela já uma influência mais exígua da série de Antuérpia.
Para consumo devocional claro, em 1711, também em Amberes, sairá uma terceira edição
desta obra.16
Claudine Brunand, Vie de la Séraphique Mère Sainte Thérèse de Jésus, Fondatrice des Carmes
Dechaussez et des Carmélites, en figures et en vers français et latins, Lyon, Antoine Jullieron
imprimeur et Libraire du Roi, 1670. Com um conjunto de cinquenta e cinco gravuras, trata-se
de uma obra dedicada à rainha Maria Teresa de Austria.17
Arnold van Westerhout (1651-1725), Vita Effigiata Della Serafica Vergine S. Teresa di Gesú,
Romae, Westerhout, 1716. Obra dedicada a Francesco Farnese (1679-1730/1), duque de
Parma, apresenta um total de setenta estampas a buril (176 x 125 mm), incluindo um retrato
de Santa Teresa e sessenta e sete cenas numeradas da sua vida. Todas as representações
apresentam inscrições em latim, e são assinadas pelo gravador Arnold van Westerhout.18
Anastasio de la Cruz, Vita S. V. Et M. Theresiae a Iesu solis zodiaco parallela, Augsbourgo, 1750-60.
Com treze gravuras da autoria de C. Klauber Cath. (1740-1760).
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A sala de Santa Teresa
É na denominada sala de Santa Teresa, que mais claramente se individualiza a
iconografia teresiana no convento do Santíssimo Coração de Jesus. Local que
funcionava em tempos de clausura como portaria, é aí que se encontra a representação
de alguns dos principais passos da sua vida, visões e experiências místicas. De exíguas
dimensões, trata-se de um espaço decorado por um silhar de azulejos, marcado por uma
linguagem estilística tardia e assinalado por cercaduras policromas de feição Rocaille.
Obra integrada numa primeira campanha ornamental levada a cabo no edifício, que
datámos entre 1780 e 1790,19 as composições dos dez painéis figurativos foram
concebidas a partir da cópia de dez das gravuras do álbum Vita S. Virginis Teresiae a Iesv.
Com as características próprias da habitual ingenuidade, patente na pintura de azulejo,
a série de Amberes teve no convento do Santíssimo Coração de Jesus uma das suas
réplicas mais expressivas.
Como é sabido, também em Portugal a circulação de livros de gravuras com temas
religiosos era frequente, bem como a sua utilização por artífices e pintores. Com uma
função devocional e didáctica, as estampas com episódios da vida de Santa Teresa,
deverão também ter chegado ao carmelo da Estrela. Normalmente cedidas pelo próprio
encomendador, muitas dessas composições eram copiadas integral ou parcialmente,
sobretudo por questões de correcção iconográfica, mas também para obedecer ao gosto
do promotor da obra. Talvez por via do convento de Santa Teresa em Carnide, de onde
provinham as madres fundadoras, ou simplesmente facultadas ao artífice para que
pudesse realizar o seu trabalho, à escolha dos temas presidiram critérios definidos.
No programa iconográfico seleccionado para esta dependência do convento da Estrela,
reconhece-se que ficaram de lado representações tão importantes quanto a
Transverberação (grav. n.° 8), os Esponsais Místicos (grav. n.° 13), a Coroação (grav. n.°
16) ou a Morte (grav. n.° 24). Assuntos habitualmente representados noutros conventos
da Ordem, e presença obrigatória nas principais narrativas gráficas teresianas, esta
ausência pode ser explicada pelo facto dos mesmos episódios se encontrarem ilustrados
noutras zonas do cenóbio. Por outro lado, dadas as exíguas dimensões da portaria, a
eleição de alguns dos temas pode também ter sido norteada pelo objectivo de adequar
mais eficazmente os painéis ao espaço. Ocasionando a representação de episódios pouco
habituais, entre a rica e vasta iconografia de Santa Teresa, reconhece-se ainda que os
assuntos foram agrupados de acordo com a sequência cronológica dos acontecimentos,
aspecto que de resto se verifica naturalmente nas gravuras de Antuérpia.
Quanto à adaptação das fontes ao azulejo, reconhece-se que os artistas alteraram as
estampas em função do espaço disponível, aumentando ou diminuindo os painéis de
acordo com a morfologia e dimensão da superfície a revestir. Procedimento habitual em
azulejaria, na portaria da Estrela, o silhar desenvolve-se em torno da sala, iniciando-se
a leitura narrativa a partir da porta de acesso. Mantendo sempre intactas as cenas
principais, aquilo que por norma se modificou foram os enquadramentos. Deste modo,
foram abreviados os painéis correspondentes às gravuras n.° 7, 14 e 15, e ampliado o
que reproduz a gravura n.° 6, pelo acréscimo de elementos arquitectónicos,
inexistentes na estampa e derivados, muito provavelmente, da imaginação do
executante.
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Se, em verdade, o artista opera algumas transformações, o facto é que tal sucede quase
sempre para efeitos de adequação da estampa à superfície a decorar. Com composições
que raramente derivam da sua própria interpretação pessoal, mais seguramente, as
variações se explicam pela existência de fontes diversas, nomeadamente em termos
estilísticos, compositivos e de tratamento temático.
No caso do conjunto dos Cardaes, José Meco reconhece a liberdade apócrifa do pintor,
pela inclusão de personagens sem relação com os episódios narrados, assim como pelo
facto da concepção geral e organização plástica de cada cena ter ficado ao critério do
artista.20 A conjugação de temas alheios à iconografia geral do espaço, sintomática de
uma intervenção bastante mais activa, reflecte também o recurso a fontes diversas.
Apesar de se encontrar na Estrela uma parte bastante significativa da iconografia de
Santa Teresa, nomeadamente cenas da vida e visões da mística de Ávila, não devemos
deixar de assinalar ainda o importante conjunto de três painéis de azulejos da antiga
casa do capítulo do convento de Santa Marta em Lisboa, de religiosas clarissas, que se
baseia também directamente no álbum de Amberes.21
8. Azulejos da antiga casa do capítulo, Convento de Santa Marta, Lisboa
Com efeito, a iconografia de Teresa de Jesus, sobretudo representada nos diversos
conventos das carmelitas, estendeu-se igualmente a outros locais, onde se podem
também encontrar cenas narrativas da sua vida. A hegemonia da Santa de Ávila em
domínios diversos, explica a presença da sua iconografia em conventos de outras
ordens religiosas.
A sua qualidade de Reformadora, determinante como é sabido para o aspecto eremítico
da Ordem Carmelita Descalça, serviu também de pretexto para diversas representações
suas em cenóbios dessa natureza, de que é exemplo o convento alentejano de São Paulo
da Serra de Ossa.22
Também pelo facto de ter sido madre superiora de uma comunidade feminina,
contribuiu para que tivesse sido tema de eleição na decoração de diversas outras casas
religiosas, figurando nesses casos, com as insígnias próprias do cargo, um anel e uma
cruz peitoral. Enquanto escritora, foi representada com vários instrumentos de escrita,
nomeadamente o tinteiro, o livro, a pena e a ampulheta, assim como a pomba do
Espírito Santo, símbolo da inspiração e sublimidade dos seus escritos.
Mas foram as suas experiências místicas, sobretudo as visões e os êxtases, que mais
inspiraram os artistas e que maior número de temas ocasionaram, distinguindo-se
como principais atributos um anjo serafim com uma flecha flamejante, um coração em
chamas ou radiante, trespassado ou não, um manto protector e um colar.
Porém, será nos conventos de carmelitas descalças que se encontra a mais vasta e rica
iconografia de Teresa de Jesus, de que são exemplos célebres: o conjunto de pinturas do
extinto cenóbio de Cascais, realizado por Josefa de Óbidos em 1672;23 os revestimentos
azulejares do convento dos Cardaes24 e de Carnide, ambos em Lisboa; assim como os
painéis da capela de Santa Teresa, em Caldas de Monchique.
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No tocante ainda à série de Amberes, José Meco aponta afinidades estilísticas entre os
painéis do coro-alto da já referida igreja dos Cardaes e os três painéis do convento de
Santa Marta, assinalando a influência da série de 1613. Considerando terem sido usadas
parcialmente, indica ainda como fonte as gravuras realizadas em 1716 por Arnold van
Westerhout e a conhecida estampa de Wierix para o painel da Transverberação.25
Apesar de terem, sem qualquer dúvida, desempenhado um papel determinante na
iconografia de Santa Teresa de Ávila, as gravuras de Collaert e Galle impulsionaram,
como vimos, a produção de outros conjuntos de estampas, que oscilaram entre as doze
e as setenta gravuras no total.
As subtilezas que as distinguem, por vezes através da simplificação das composições, da
supressão de alguns elementos ou por divergências ao nível dos cenários, determinam
todavia inspirações diversas. Exigindo por isso um cotejo mais rigoroso, entre as obras
de arte e as suas hipotéticas fontes, é precipitado, por vezes até desacertado, o uso
sistemático da série de Amberes para base de inúmeras obras alusivas a Santa Teresa.
Normalmente apontadas como a principal fonte de inspiração das representações
relativas à sua vida, por serem, com efeito, a sua mais divulgada e célebre biografia
gravada, essa insistência conduz por vezes à errada comparação de modelos que, em
verdade, não se relacionam com as obras em análise.
Santa Teresa e o irmão caminham para a terra dos mouros
Gravura n.° 3, Silhar de 5 x 15 azulejos (excluindo cercadura)
9. Santa Teresa e o irmão caminham para a terra dos mouros
Ainda sem ter completado sete anos de idade, Teresa foge com o seu irmão Rodrigo
para a terra dos Mouros. A cena representada ilustra o momento em que o pai os
descobre durante essa caminhada, fazendo-os voltar para casa. Episódio relacionado
com a sua infância, é curioso notar que no coro-alto do convento dos Cardaes os dois
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irmãos sejam representados, não como crianças mas como adolescentes. O episódio é
descrito por Teresa de Jesus no Livro da Vida:
"Meus irmãos em coisa alguma me desajudavam a servir a Deus. Tinha um, quase daminha idade, que era aquele a quem eu mais queria embora a todos tivesse grandeamor e eles a mim. (...) Combinámos ir a terra de mouros, esmolando por amor deDeus, para que lá nos decapitassem; e parece-me que nos dava o Senhor ânimo emtão tenra idade, se víssemos algum meio; mas o termos pais parecia-nos o maiorembaraço."26
Ingresso de Santa Teresa no mosteiro de Ávila
Gravura n.° 4, Silhar de 5 x 12 azulejos (excluindo cercadura)
10. Ingresso de Santa Teresa no mosteiro de Ávila
Ilustra a passagem de Teresa de Jesus para a vida cenobítica. Com dezanove anos, na
companhia do irmão António e sem que seu pai soubesse, ingressa no mosteiro
carmelita de Ávila. Momento autobiográfico da Santa, o episódio foi uma vez mais
narrado pela autora, que recorda:
“Nestes dias em que andava com estas determinações havia persuadido a um irmãomeu a que se fizesse frade, falando-lhe da vaidade do mundo. E combinámos entrenós, ir um dia, muito de manhã, ao mosteiro onde estava aquela minha amiga aquem eu tinha muita afeição. Nesta minha última determinação já eu estava demodo que iria para qualquer convento onde pensasse servir mais a Deus ou que meupai quisesse. (...) Recordo-me (...) que quando saí de casa de meu pai foi tal a afliçãoque não creio será maior quando eu morrer. (...) se o Senhor não me ajudara, nãoteriam bastado as minhas considerações para ir por diante. Aqui deu-me o Senhorânimo contra mim, de maneira que o pus por obra. Em tomando o Hábito, logo oSenhor me deu a entender como favorece aos que se esforçam para O servir.”27
Santa Teresa orando diante do Ecce Homo
Gravura n.° 6, Silhar de 5 x 12 azulejos (excluindo cercadura)
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11. Santa Teresa orando diante do Ecce Homo
Representa uma das experiências místicas de Santa Teresa que, rezando diante da
imagem de Cristo com as chagas intumescidas, consegue a graça pedida e, poucos dias
depois, ouve a voz de Deus que lhe diz: daqui em diante viverás com os anjos:
"Aconteceu-me que, entrando eu um dia no oratório, vi uma imagem, que para alitrouxeram a guardar (...). Era a de Cristo muito chagado e tão devota que, ao pôrnela os olhos toda eu me perturbei por O ver assim (...). Foi tanto o que senti por tãomal Lhe ter agradecido aquelas chagas, que o coração, me parece, se me partia earrojei-me junto d'Ele com grandíssimo derramamento de lágrimas, suplicando-Lheme fortalecesse de uma vez para sempre para não O ofender."28
Santa Teresa penitencia-se das tentações do demónio
Gravura n.° 7, Silhar de 5 x 5 azulejos (excluindo cercadura)
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12. Santa Teresa penitencia-se das tentações do demónio
Episódio autobiográfico relatado por Santa Teresa enquanto freira, representa o
momento em que esta se penitencia violentamente com chaves, urtigas e outros cilí
cios:
"Parece-me bem falar de algumas tentações que tenho visto haver de principio –algumas tenho-as eu tido (...) Pensar que nos podemos esforçar com o favor de Deusa ter um grande desprezo do mundo, a não estimar honras, nem estar atido àfazenda. Temos uns corações tão apertados, que parece nos há-de faltar a terra emquerendo-nos descuidar um pouco do corpo para darmos ao espírito. (...) A mim,isto me pesa; termos tão pouca confiança em Deus e tanto amor próprio, que nosinquiete este cuidado. (...) Parece-me agora a mim, esta maneira de caminhar umquerer conciliar corpo e alma para não perder cá na terra o descanso e gozar lá noCéu de Deus."29
Santa Teresa com São Pedro e São Paulo
Gravura n.° 9, Silhar de 5 x 8 azulejos (excluindo cercadura)
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13. Santa Teresa com São Pedro e São Paulo
Trata-se de uma representação que ilustra a visão de São Pedro e São Paulo, que
prometem a Santa Teresa auxílio contra as ilusões tentadoras do demónio. No corpo da
gravura lê-se confia porque de modo nenhum serás enganada pelo demónio. Porque as suas
visões eram excessivas, um dos seus confessores fala-lhe sobre a influência do demónio.
"Suplicava muito ao Senhor que me livrasse de ser enganada (...) e pedia a S. Pedro ea S. Paulo porque o Senhor me disse (...) que eles me guardariam para que não fosseenganada. E assim os via muitas vezes ao meu lado esquerdo muito claramente,embora não por visão imaginária. Eram estes gloriosos santos muito meussenhores."30
Santa Teresa supera as tentações do demónio
Gravura n.° 12, Silhar de 5 x 8 azulejos (excluindo cercadura)
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14. Santa Teresa supera as tentações do demónio
Representa outra das suas visões na qual, contemplada pelas inúmeras graças de Deus,
ultrapassou a própria natureza com a abundância dos favores divinos. Impávida, e
empunhando um crucifixo, alcançou várias vitórias sobre os demónios. Relatanto este
episódio, Santa Teresa escreve:
“(…) vi ao pé de mim um negrito muito abominável, raivando como desesperadoporque perdia onde pretendia ganhar. Eu, quando o vi, ri-me e não tive medo. (…)De muitas outras vezes tenho experiência que não há coisa de que eles fujam mais epara não voltar. Da cruz também fogem, mas voltam.”31
Imposição do colar e do manto a Santa Teresa
Gravura n.° 14, Silhar de 5 x 5 azulejos (excluindo cercadura)
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15. Imposição do colar e do manto a Santa Teresa
De acordo com a descrição de Teresa de Jesus, esta visão teve lugar em 1561, no dia de
N. S. da Assunção, na igreja de São Tomás de Avila. Esforçando-se por restabelecer no
primitivo vigor a antiga regra das Carmelitas, esta representação assinala o momento
em que São José a cobre com um manto branco, a Virgem lhe entrega um colar de ouro,
e ambos lhe prometem assistência. Trata-se de uma das suas visões mais célebres,
fundamental para a Ordem Carmelita Descalça, pois afiança em Teresa de Jesus o
empenho de reformar a Ordem. Encontrando-se então na igreja do convento
dominicano referido:
"Parecia-me, estando assim, que me via vestir de uma veste de muita brancura eclaridade. A princípio não via quem ma vestia; depois vi a Nossa Senhora a meu ladodireito e a meu Pai S. José à esquerda, que me vestiam aquela roupa. Deu-se-me aentender que já estava limpa de meus pecados. Acabada de vestir (...) logo mepareceu Nossa Senhora pegar-me nas mãos. Disse-me que Lhe dava muito gostosendo devota do glorioso S. José; que tivesse por certo o que eu pretendia domosteiro se havia de fazer e nele se serviria muito o Senhor e a eles ambos; que nãotemesse que nisto houvesse jamais quebra, embora a obediência que dava não fossea meu gosto. Eles nos guardariam e já Seu Filho nos tinha prometido andarconnosco. Para sinal de que isto se cumpriria dava-se aquela jóia. Pareceu-me entãoque me tinha deitado ao pescoço um colar de ouro muito formoso e preso a ele umacruz de muito valor. (...)"32
Santa Teresa devolve a vida ao sobrinho
Gravura n.° 15, Silhar de 5 x 6 azulejos (excluindo cercadura)
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16. Santa Teresa devolve a vida ao sobrinho
Representa um outro momento da vida da Santa, que teve lugar logo no início das suas
Fundações. Apressando-se na construção do primeiro mosteiro da Reforma (São José), a
queda de uma parede provocaria a asfixia do seu pequeno sobrinho Gonzalo Ovalle,
filho de sua irmã Juana de Ahumada. Voltando imediatamente à vida, reconforta a
triste mãe que assiste. As representações deste tema seguem com fidelidade as suas
narrações, ao relatar a fundação do mosteiro de São José:
"Outra vez estava uma pessoa muito mal de uma enfermidade muito penosa (...). Eracoisa incomportável o que padecia havia já dois meses. Estava num tormento que sedespedaçava. Foi vê-la o meu confessor (...) e causou-lhe grande lástima e disse-meque de todo o modo a fosse ver, pois era pessoa a quem o podia fazer, por ser meuparente. Fui e comovi-me a ponto de ter tanta compaixão dele, que comecei a pedirimportunamente a sua saúde ao Senhor. Nisto vi claramente, sem me ficar qualquerdúvida, a mercê que me fez; porque logo no outro dia estava de todo bom daquelador."33
• Santa Teresa com São João da Cruz e António de Jesus
Gravura n.° 18, Silhar de 5 x 8 azulejos (excluindo cercadura)
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17. Santa Teresa com São João da Cruz e António de Jesus
Trata-se de um episódio associado já ao período da Reforma, ocorrido antes da
fundação do convento de Nossa Senhora do Carmo de Valladolid, em 1568. Encorajada
pelo primitivo projecto do Carmelo, esta representação ilustra o momento em que
Santa Teresa fala com São João da Cruz e o Padre António de Jesus, incumbindo-os de
urna série de tarefas. De acordo com o seu relato:
"Ainda antes de ir para a fundação de Valhadolid, tinha combinado (...) com o PadreFrei António de Jesus (...) e com Frei João da Cruz, que seriam eles os primeiros aentrar, no caso de se fazer mosteiro de Descalços da Regra Primitiva; (...)encarreguei o Padre Frei António de angariar qualquer coisa para a casa e parti comFrei João da Cruz para a dita fundação de Valhadolid. Estivemos alguns dias semclausura para que os operários fizessem o que era exigido para o recolhimento dacasa. Assim, havia ocasião de informar Frei João da Cruz acerca de toda a nossamaneira de proceder, para que levasse bem entendidas todas as coisas (...)."34
Santa Teresa escritora inspirada pelo Espírito Santo
Gravura n.° 23, Silhar de 5 x 8 azulejos (excluindo cercadura)
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18. Santa Teresa escritora inspirada pelo Espírito Santo
A representação mais frequente de Teresa de Jesus é a que faz referência à sua condição
de escritora. Na cena em questão, que não alude a nenhuma passagem concreta da sua
vida, a presença da pomba do Espírito Santo figura como a fonte de inspiração da
mística escritora, como a luz divina que a envolvia quando escrevia as suas obras. O
Espírito Santo, atributo frequente na iconografia cristã, caracteriza os doutores da
igreja. No caso de Santa Teresa é também uma alusão directa às suas diferentes visões,
invocada diversas vezes nos seus próprios escritos:
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"Estando nesta consideração, deu-me um ímpeto grande sem entender o motivo;(...) Era ímpeto tão excessivo, que eu não o podia reprimir, (...) Nem entendia o quetinha a alma nem o que queria, que tão alterada estava. (...) Estando nisto, vejosobre minha cabeça uma pomba, bem diferente das de cá, porque não tinha penas,senão que as asas eram de umas conchinhas que despediam de si grande resplendor(...). Certo é, Senhor meu e glória minha, que estou em dizer que, nestas grandesaflições que sente a minha alma, eu tenho de certo modo feito alguma coisa emVosso serviço. Ai que já não sei o que digo, pois quase já não sou eu a falar aoescrever isto!"35
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NOTAS
1. Veja o desenvolvimento desde assunto em Sandra Costa Saldanha, A Basílica da Estrela: Real
Fábrica do Santíssimo Coração de Jesus, Lisboa, Livros Horizonte, 2006 (no prelo).
2. Além de Santa Teresa de Ávila, esse programa inclui ainda as representações de Santo Elias, São
João da Cruz e Santa Maria Madalena de Pazzi.
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3. Segundo Jesús Urrea, esta gravura terá servido de base à realização de uma escultura em barro,
de artista anónimo, existente numa colecção particular da cidade de Valladolid. Jesús Urrea,
Homenaje a Santa Teresa en el IV Centenario de su Muerte, Valladolid, Caja de Abonos Popular, 1982.
4. A estas obras juntam-se duas outras telas, cuja temática não cabe no programa decorativo
inicial, com as representações de Nossa Senhora com o menino e Santo António e de São Filipe de Neri.
5. Cf. Sandra Costa Saldanha, op. cit.
6. Sobre Ana de Jesus veja-se artigo recentemente publicado por Maria del Puerto Alonso
Fernández, "Ana de Jesús, profeta de ayer y hoy", Revista de Espiritualidad, vol. 63, Madrid, Padres
Carmelitas Descalços, 2004, pp. 251-299.
7. Sobre Ana de São Bartolomeu veja-se Belén Yuste y Sonnia L. Rivas-Caballero, "Ana de San
Bartolomé y la expansión del Carmelo Descalzo", Revista de Espiritualidad, vol. 63, Madrid, Padres
Carmelitas Descalços, 2004, pp. 301-345.
8. A portada e as gravuras com os números 6-10, 12, 18, 21 e 23 não são assinadas; a número 2 é
assinada por Galle; e as restantes por Collaert.
9. Biblioteca Nacional de Madrid, ER/1638. A edição de Ambers de 1613 foi publicada em fac-
símile por Carlos Sanz, Estampas de la vida de la Santa Madre Teresa de Jesús, Madrid, s. ed., 1962.
10. Adriaen Collaert, Cornelis Galle, Vila S. Virginis Teresiae a Iesu Ordinis Carmelitarum
Excalceatorum piae restauratricis, Antuérpia, Apud Ioannem Galleum, 1630. Biblioteca Nacional de
Lisboa, Secção de Iconografia, E.A. 14P, fls 138 - 162.
11. Vejam-se as diferenças apontadas entre as edições de 1613 e 1630 por Santiago Sebastián,
Contrarreforma y Barroco: Lecturas iconográficas e iconológicas, 3ª ed., Madrid, Alianza Editorial, 1989.
12. Sobre a influência exercida por esta obra na arquitectura carmelita veja-se o interessante
texto de Dolores Garcia Hinajeros, "Las Ideas Arquitectonicas de Santa Teresa de Jesus", I Congreso
Internacional del Monacato Femenino en España, Portugal y America – 1492-1992, vol. I, Leon,
Universidade de Leon, 1993, p. 250.
13. Com as dimensões de 184 x 220 mm em folha de 216 x 252 mm.
14. É, por exemplo, o caso das quatro telas existentes sob o retábulo-mór da igreja de Santa
Teresa em Ávila, da autoria de Gregório Fernandez.
15. Biblioteca da Ajuda, 21-IX-11. Série referida por Luísa Arruda e Teresa Campos Coelho,
Convento de S. Paulo da Serra de Ossa, Lisboa, Edições Inapa, 2004.
16. 2ª edição, de 1669, existente na Konsinklijke Bibliotheek (Holanda).
17. Desta edição conhecem-se dois exemplares, respectivamente, na Biblioteca Municipal de
Lyon, 811178 e na Mediateca Jean Jaurés, R 8-106. Em 1678 é publicada uma 2ª edição da obra,
revista aumentada e corrigida, da qual existe um exemplar na Biblioteca Nacional de Paris,
16-0C-3929.
18. BNM, ER/1619.
19. Sandra Costa Saldanha, op. cit.
20. José Meco, "A Divina Cintilação: talha, azulejos, mármores, chinoiseries", Convento dos Cardaes:
Veio da Memória, Lisboa, Quetzal Editores, 2003, pp. 123, 125.
21. Painéis estudados por Fernando Ponce de León, "Os painéis de azulejo sobre Santa Teresa de
Jesus, no convento de Santa Marta de Lisboa", Museu, IV série, n.° 1, 1993, pp. 161-181.
22. Cuja azulejaria foi estudada por Luísa Arruda e Teresa Campos Coelho, op. cit.
23. Veja-se análise de Luís de Moura Sobral, "Josefa d'Óbidos e as Gravuras: problemas de estilo e
de iconografia", Josefa de Óbidos e o tempo Barroco. Lisboa, T.L.P., 1991, pp. 51-69.
24. Localizados, respectivamente, na nave da igreja e no coro-alto. Com características
compositivas e estilísticas diversas, foram elaborados em épocas distintas.
25. José Meco, op. cit.
26. Santa Teresa de Jesus, "Livro da Vida", Obras Completas, cap. I, ed., Oeiras, Edições Carmelo,
1994, p. 5.
27. Idem, Ibidem, cap. IV, pp. 16-17.
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28. Idem, Ibidem, cap. IX, p. 61.
29. Idem, Ibidem, cap. XIII, pp. 88-90.
30. Idem, Ibidem, cap. XXIX, pp. 241-242.
31. Idem, Ibidem, cap. XXXI, p. 262.
32. Idem, Ibidem, cap. XXXIII, pp. 296-297.
33. Idem, Ibidem, cap. XXXIX, p. 362.
34. Santa Teresa de Jesus, "Fundações", Obras Completas, cap. I, 3ª ed., Oeiras, Edições Carmelo,
1994, pp. 1048-1051.
35. Santa Teresa de Jesus, "Livro da Vida", (...), pp. 350-356.
RESUMOS
O antigo convento do Santíssimo Coração de Jesus à Estrela encerra um interessante conjunto de
painéis de azulejos alusivos à vida de Santa Teresa de Jesus, cujas composições foram concebidas
a partir da cópia directa de dez gravuras do álbum Vita S. Virginis Teresiae a Iesv. Série
biográfica impressa pela primeira vez em Amberes em 1613, a sua concretização coube aos
célebres gravadores Adriaen Collaert e Cornelis Galle. Convertidas num modelo corrente para
inúmeras obras de arte ao longo dos tempos, assumiram urna importância capital na fixação e
desenvolvimento de parte da iconografia teresiana, constituindo-se como um eficaz veículo para
a rápida difusão da sua biografia.
The old convent of the Holy Heart of Jesus in Lisbon has an interesting set of tile paneis, which
compositions had been made directly from Vita S. Virginis Teresiae a Iesv album. Biographical
series print in Ambers in 1613, the execution had been charged to the celebrated engravers
Adriaen Collaert and Cornelis Galle. Converted in a common model for numerous works of art,
they assumed a capital meaning in the development of theresian iconography.
ÍNDICE
Keywords: Basílica da Estrela, Saint Theresa of Ávila, carmelites, iconography, etching
Palavras-chave: Basílica da Estrela, Santa Teresa de Ávila, carmelitas, iconografia, gravura
AUTOR
SANDRA COSTA SALDANHA
Mestre em História da Arte e docente da Escola Superior de Design, tem publicado alguns estudos
relativos à Arte e Iconografia Portuguesa dos séculos XVIII a XX, desenvolvendo actualmente um
trabalho de investigação subordinado à Escultura Portuguesa do Século XIX.
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As gravuras impressas na Academiados Humildes e IgnorantesThe engravings of «Academia dos Humildes e Ignorantes»
Paulo A. Fonseca
As publicações periódicas informativas e culturais, em meados do século XVIII, não têm
normalmente ilustração. Contudo, ainda assim, o estudo das poucas gravuras que
publicam pode ajudar-nos a perceber como evoluíram, na sua concepção e no seu
contacto com os leitores.
Analisemos concretamente um periódico, a Academia dos Humildes e Ignorantes, que teve
uma larga difusão entre 1758 e 1770. As gravuras que aí encontramos são de dois tipos.
As mais frequentes são utilizadas como forma de decoração no final de alguns números.
Já na última série desta obra, impressa por Miguel Manescal da Costa, impressor do
Santo Oficio, os números têm impressos um cabeçalho decorado, uma capitular e uma
gravura no final do tomo.
Mas as gravuras que são objecto desta análise são as que são impressas nas conferências
(fascículos) que vão de 1758 a 1762, pelo que nos dizem, seja da forma como os números
individuais tiveram sucesso e foram reeditados, seja pela forma como percebemos a
relação entre os vários impressores que foi tendo este periódico.
Desde cedo se percebeu a importância do recurso à estampa ou gravura impressa nos
livros. Com a fundação da Impressão Régia e o estabelecimento da primeira aula de
gravura ficará regulamentado, pelo alvará de 24 de Dezembro de 1768, no parágrafo II,
o seguinte:
"Sendo presentemente necessário que no corpo de uma Impressão Régia não faltequalquer circunstância que a faça defeituosa: e sendo um dos ornatos da Impressão,as estampas, ou para demonstração ou para outros muitos utilíssimos fins, terá amesma Impressão um Abridor de estampas, conhecidamente perito, o qual terá aobrigação de abrir todas as que forem necessárias para a Impressão, e se lhespagarão pelo seu justo valor."1
Não é aqui o lugar para desenvolver uma História da Gravura, mas apenas fornecer
alguns elementos que podem ajudar a compreender o contexto em que a imagem é
usada, pela mesma época, na Academia dos Humildes e Ignorantes. Consideramos útil, até
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120
tendo em conta o material que encontrámos, recorrer a Ernesto Soares que, sobre o
assunto, é uma referência essencial:
"O uso da gravura de madeira no nosso país acentua-se logo aos primeiros alvoresda tipografia; as primeiras obras conhecidas aparecem ilustradas profusamente; e,se umas apenas reproduzem desenhos de assunto indeterminado que em nada seharmoniza com o da obra, outras são belas composições nas quais se revela a mãohábil do artista e onde se começam a notar, embora levemente, os primeiros traçosde sombra.Naquelas o assunto é, como já dissemos, popular e por vezes infantil; animais,plantas, aves, o sol, a lua, as estrelas, demónios de expressões insofridas e homensde desmesurados troncos e diminutos membros inferiores. Mas quantosensinamentos para o estudo da indumentária e dos costumes desses séculos.Nas outras composições mais apuradas revela-se o artista, rasgando a madeira commão firme e definindo todo o pensamento do debuxador; são quase sempre assuntosde carácter religioso os inspiradores desses trabalhos. Influências estrangeirasacentuam o vigor do desenho e a execução da gravura. Vêm elas até nós daAlemanha ou da Itália. trazidas pelos primeiros impressores oriundos dessasnações."2
As gravuras que surgem impressas na Academia dos Humildes e Ignorantes incluem-se no
primeiro grupo referido por Ernesto Soares. Nas gravuras impressas nesta obra
predominam, de facto, plantas e animais, sendo que não existe qualquer relação entre
as gravuras utilizadas e os textos dos artigos do periódico que estamos a analisar,
artigos a que o autor chama conferências já que estão inseridas numa "Academia".
As gravuras aparecem no final das conferências, transmitindo a ideia de que o
impressor pretendia preencher os espaços que ficavam vagos. No entanto não se segue
uma norma rígida, pois são mais as conferências que têm espaço em branco no final,
chegando algumas a ter uma página em branco, sem que tenha sido impressa qualquer
gravura, mesmo em reedições de números que, nos mesmos espaços, ostentavam uma
imagem. O que de facto levanta o problema de não podermos definir com rigor qual o
princípio seguido, se é que terá existido algum.
No conjunto dos fascículos trabalhados identificamos dezassete gravuras diferentes,
gravuras que vão surgindo e se repetem de uma forma aleatória, durante o período de
vida da obra. No conjunto destas gravuras podemos distinguir três tipos. A maioria
obedece a um mesmo princípio de composição. Apresentam uma moldura ornamental
muito preenchida onde predominam os temas florais, envolvendo ou rodeando objectos
como figuras humanas, taças, flores, frutos e animais. Neste grupo podemos destacar
algumas gravuras que se diferenciam por não serem tão preenchidas e por recorrerem
a uma composição mais discreta na utilização dos ramos e das folhagens, partindo a
gravura de uma moldura de forma mais geométrica em torno da qual se dispõem com
maior economia os restantes elementos. Por outro lado, temos um terceiro grupo que
se diferencia na sua composição geral. Neste grupo consideramos três gravuras que se
distinguem pela utilização, em proporções equivalentes, tanto de tamanho como de
disposição, de imagens de flores e animais. Finalmente, podemos separar uma gravura
das restantes, pela sua unidade representativa, por ser unicamente composta por urna
taça cheia de frutos e verduras.
Estas imagens aparecem impressas e repetem-se ao longo do período de vida da obra
em análise. A apresentação das gravuras, para lá do seu aspecto artístico e do
contributo que possa ter para enriquecer qualquer futuro trabalho sobre o recurso à
iconografia na tipografia setecentista, é para nós uma fonte de informação valiosa. Não
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temos a intenção de desenvolver uma abordagem iconográfica3 destas gravuras. O que
nos leva a dedicar a nossa atenção a estas gravuras é o poder recolher informações
sobre o periódico, os seus impressores e o acolhimento do público, informações a que
de outro modo não teríamos acesso, mesmo sem pretender aprofundar uma
arqueologia do livro.
Antes de entrarmos na análise propriamente dita da ocorrência das gravuras, cumpre
relembrar algumas breves noções identificativas da obra em análise. A Academia dos
Humildes e Ignorantes é publicada semanalmente em conferências constituídas por oito
páginas, perfazendo anualmente cinquenta e duas conferências (52) que depois de
encadernadas são ordenadas por tomos. No período que medeia entre 1758 e 1762 esta
estrutura é constante, perfazendo um total de seis tomos. Neste período, a utilização de
gravuras é meramente ornamental. Já nos tomos VI, VII e VIII, as conferências
individualmente não apresentam qualquer imagem.
As diferenças encontradas entre edições de cada número, e a forma como essas
diferenças se repercutem e multiplicam ao fim de um ano (52 semanas), obrigavam-nos
a consultar várias colecções. Após uma pesquisa bibliográfica, decidimos trabalhar sete
(7) colecções desta obra existentes em Lisboa. Três (3) pertencem ao acervo da
Biblioteca Nacional de Lisboa, uma (1) pertence à Biblioteca Universitária João Paulo II,
da Universidade Católica Portuguesa, uma (1) colecção, composta pelos cinco primeiros
tomos, encontra-se depositada na Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa e,
finalmente, duas (2) são colecções particulares. Na totalidade das sete colecções
encontradas e consultadas, confirmou-se a existência de dezassete (17) gravuras,
distribuídas entre o Tomo I e o Tomo V, que é o intervalo considerado para a análise
que se segue.
Atribuímos a cada uma dessas dezassete gravuras uma letra do alfabeto, de modo a
permitir a construção de tabelas de ocorrência de cada uma delas nos vários
exemplares consultados da obra. Em anexo, no final, listamos e identificamos as
imagens, e apresentamos o conjunto das tabelas resultantes do levantamento feito para
os vários tornos. Deste modo é mais fácil acompanhar e constatar as ocorrências. Do
levantamento realizado, são possíveis várias leituras em paralelo. Começando pelo
levantamento das ocorrências das gravuras.
1. Das gravuras:
Do levantamento das imagens, ao longo dos vários exemplares existentes, constata-se o
seguinte:4
A imagem A, ocorre uma (1) vez, no tomo I, na primeira conferência, sem indicação do
impressor, do ano de 1758.
A imagem B, ocorre duas (2) vezes, ambas no Tomo I.
1a- Na segunda conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.
2a- Na terceira conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.
A Imagem C, ocorre:
No Tomo I, duas (2) vezes:
1a- Na primeira conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.
2ª- Na terceira conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.
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No Tomo II, uma (1) vez, na sexta conferência em impressão de Inácio Nogueira Xisto,
ano de 1759.
No Tomo III, três (3) vezes:
1a- Na trigésima sexta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
2ª- Na quadragésima primeira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano
de 1760;
3a- Na quinquagésima segunda conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano
de 1760;
No Tomo IV, quatro (4) vezes:
1a- Na quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
2a- Na sexta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
3a- Na oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
4a- Na décima primeira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1760;
No Tomo V, uma (1) vez, na nona conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto,
ano de 1761.
A Imagem D, ocorre duas (2) vezes, ambas no Tomo I, em edições diferentes da décima
conferência:
1a- Na décima conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758;
2a- Na décima conferência, sem indicação do impressor, ano de 1759.
A Imagem E, ocorre duas (2) vezes, ambas no Tomo I.
1ª- Na segunda conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.
2a- Na sexta conferência sem indicação do impressor, ano de 1758.
A Imagem F, ocorre duas (2) vezes, ambas no tomo I.
1ª- Na quarta conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.
2a- Na nona conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.
A Imagem G, ocorre duas (2) vezes, ambas no Tomo I.
1ª- Na primeira conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.
2a- Na décima conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.
A Imagem H, ocorre:
No Tomo I, duas (2) vezes:
la- Na primeira conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.
2a- Na trigésima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1760.
No Tomo II, duas (2) vezes:
1a- Na sexta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1759.
2ª- Na sexta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1761.
No Tomo III, duas (2) vezes:
1a- Na trigésima terceira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1760.
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2a- Na quinquagésima primeira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto,
ano de 1760.
No Tomo IV, três (3) vezes:
1a- Na décima segunda conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1760;
2a- Na trigésima sétima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1760;
3a- Na quadragésima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1760;
No Tomo V, quatro (4) vezes:
1a- Na oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1761;
2a- Na décima oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1762;
3a- Na vigésima primeira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1762;
4a- Na trigésima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1762;
A Imagem I, ocorre:
No Tomo I, aparece uma (1) vez, na segunda conferência, em impressão de Inácio
Nogueira Xisto, ano de 1760.
No Tomo III, três (3) vezes:
1ª- Na vigésima sexta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760.
2a- Na trigésima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1760.
3a- Na quinquagésima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
No Tomo IV, seis (6) vezes:
1a- Na quinta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
2a- Na sétima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
3a- Na décima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
4ª- Na décima terceira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
5a- Na décima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
6a- Na décima oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
No Tomo V, duas (2) vezes:
1a- Na décima primeira conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1761;
2a- Na vigésima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1762;
A Imagem J, ocorre:
No Tomo I, duas (2) vezes:
1a- Na sexta conferência, sem indicação do impressor, ano de 1758.
2a- Na décima conferência, sem indicação do impressor, ano de 1759.
No Tomo II, aparece uma (1) vez, na quarta conferência, em impressão de Inácio
Nogueira Xisto, ano de 1759.
No Tomo IV, duas (2) vezes:
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1a- Na vigésima quarta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1760;
2a- Na quadragésima sétima conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1760;
No Tomo V, aparece uma (1) vez, na décima conferência, em impressão de Inácio
Nogueira Xisto, ano de 1761;
A Imagem K, ocorre uma (1) vez, no Tomo I, na segunda conferência, sem indicação do
impressor, ano de 1758.
A Imagem L, ocorre, uma (1) vez, no Tomo II. Na oitava conferência, em impressão de
Inácio Nogueira Xisto, ano de 1759.
A Imagem M, ocorre:
No Tomo II, duas (2) vezes:
la- Na quinta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1759.
2a- Na oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1759.
No Tomo IV, aparece uma (1) vez, na vigésima quinta conferência, em impressão de
Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760;
No Tomo V, aparece uma (1) vez, na sétima conferência, em impressão de Inácio
Nogueira Xisto, ano de 1761;
A Imagem N, ocorre:
No Tomo III, aparece uma (1) vez, na décima quarta conferência, em impressão de
Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760.
No Tomo IV, aparece uma (1) vez, na vigésima segunda conferência, em impressão de
Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760.
A Imagem O, aparece uma (1) vez no Tomo IV. Na trigésima quarta conferência, em
impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de 1760.
A Imagem P, aparece duas (2) vezes no Tomo IV.
1a- Na trigésima oitava conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1760.
2a- Na quadragésima quinta conferência, em impressão de Inácio Nogueira Xisto, ano de
1760.
A Imagem Q, aparece uma (1) vez no Tomo I. Na nona conferência, sem indicação do
impressor, ano de 1758.
De forma a tornar possível uma perspectiva global da ocorrência das imagens ao longo
dos vários tomos fizemos uma tabela que expressa o resultado do levantamento geral.
Imagem Tomo I Tomo II Tomo III Tomo IV Tomo V Total
A 1 0 0 0 0 1
B 2 0 0 0 0 2
C 2 1 3 4 1 11
D 2 0 0 0 0 2
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125
E 2 0 0 0 0 2
F 2 0 0 0 0 2
G 2 0 0 0 0 2
H 2 2 2 3 4 13
I 1 0 3 6 2 12
J 2 1 0 2 1 6
K 1 0 0 0 0 1
L 0 1 0 0 0 1
M 0 2 0 1 1 4
N 0 0 1 1 0 2
O 0 0 0 1 0 1
P 0 0 0 2 0 2
Q 1 0 0 0 0 1
Constata-se que, destas dezassete gravuras, apenas cinco são muito usadas, sobretudo a
gravura H que é utilizada nos vários tomos treze (13) vezes. No entanto, temos outras
gravuras que se repetem nos vários tomos, como por exemplo: a gravura I, com doze
(12) ocorrências, a gravura C, com onze (11) ocorrências, a gravura J, com seis (6)
ocorrências e a gravura M, com quatro (4) ocorrências. Todas as restantes gravuras têm
apenas duas (2) e urna (1) ocorrência nesta colecção, embora possam ter sido usadas
pelo impressor noutros seus trabalhos.
2. Das edições:
Procedemos ao confronto dos exemplares localizados, tendo verificado que nas
conferências em que houve recurso à impressão de gravuras existem diferenças nítidas.
Encontramos conferências do mesmo número e do mesmo tomo com várias reedições,
usando-se de cada vez gravuras diferentes ou mesmo não usando qualquer gravura.
Esta constatação levou a que desejássemos saber quantas edições diferentes poderíamos
localizar das mesmas conferências. Desta pesquisa resultou o levantamento exaustivo
de todos os exemplares, que se encontra expresso nas tabelas anexas.
TOMO I
Conferência Edições
1ª 4
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126
2ª 4
3ª 3
4ª 2
6ª 3
9ª 3
10ª 5
34ª 2
TOMO II
Conferência Edições
4ª 2
5ª 2
6ª 2
8ª 2
TOMO III
Conferência Edições
14ª 2
26ª 2
33ª 2
34ª 2
36ª 2
41ª 2
50ª 2
51ª 2
52ª 2
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127
No Tomo IV, temos apenas uma edição de todas as conferências em que houve
impressão de imagens.
TOMO V
Conferência Edições
7ª 1
8ª 2
9ª 2
10ª 1
11ª 1
18ª 1
20ª 1
21ª 1
34ª 2
Estes dados permitem constatar que o maior número de edições diferentes de algumas
conferências se verificou no primeiro ano da obra, existindo no Tomo I, entre cinco e
duas edições diferentes das mesmas conferências.
Quanto aos Tomos II e III , podem-se encontrar duas edições diferentes de algumas
conferências.
No Tomo IV, apenas se identificou a existência de uma edição.
No Tomo V, nota-se uma certa oscilação entre uma e duas edições diferentes em
algumas conferências.
Vemos assim a procura de exemplares do primeiro tomo provoca a sua reprodução
sucessiva ainda nos anos seguintes, o que leva a que um tomo, com uma data no rosto,
possa ter várias datas diferentes nos fascículos que o compõem. Era claramente uma
obra com grande procura o que é ainda reforçado pelo facto de a ela terem estado
associados, nessa primeira fase, pelo menos dois impressores diferentes. Além de
fascículos que não fazem menção à oficina onde foram produzidos, há aqueles que
trazem os nomes de Inácio Nogueira Xisto ou de Francisco Borges de Sousa. Nos tomos
seguintes encontramos ainda com frequência duas edições diferentes. Num período de
tempo em que se vêem nascer e desaparecer tantas outras obras periódicas do mesmo
género cultural e informativo, esta obra conseguir sobreviver, e ainda ter procura
suficiente que justifique a existência de edições diferentes faz dela um caso muito
particular no panorama editorial português desse tempo.
Cultura, vol. 21 | 2005
128
3. Dos impressores:
Como se disse, esta obra foi impressa por três impressores identificáveis: Inácio
Nogueira Xisto, livreiro e impressor em cuja oficina tipográfica foram impressas obras
desde 1759 a 1774,5 com loja na Rua das Arcadas, junto ao Pátio da Comédia;6 Francisco
Borges de Souza, que tinha oficina tipográfica situada no Poço do Borratém,7 ou na
Bemposta Pequena.8 Era por volta de 1768 uma das oficinas mais importantes de Lisboa,
a sua actividade estendeu-se de 1757 a 1792;9 e, finalmente, Miguel Manescal da Costa,
impressor do Santo Ofício, com oficina às Pedras Negras,10 que imprimiu apenas o
sétimo e o oitavo tomo da Academia, já a partir de 1763.
No entanto, é necessário esclarecer que as primeiras catorze conferências do primeiro
tomo não têm indicação de impressor. Também para a possível identificação dos
impressores as gravuras impressas podem ser úteis ou, pelo menos, dar algumas pistas
sobre quem tinha as gravuras que eram usadas.
Com o objectivo de tentar descobrir se as conferências impressas sem
a indicação do impressor corresponderiam a algum dos impressores conhecidos da
obra, decidimos fazer um breve levantamento de outras obras destes impressores.
Restringimos a nossa pesquisa a obras impressas no ano anterior, no mesmo ano e no
ano seguinte ao das conferências de que não se sabe a identidade do impressor. A
intenção era partir das gravuras impressas nas conferências da Academia não
identificadas, tentando localizá-las noutras obras.
Constatamos que houve de facto um certo padrão de utilização de algu‑mas imagens
por parte do impressor Inácio Nogueira Xisto. No decurso deste levantamento
acabamos por descobrir que para além deste impressor, houve um outro, Domingos
Rodrigues, que terá exercido a sua actividade entre 1743 e 1757,11 que utilizou e
imprimiu em outras obras algumas gravuras presentes na Academia. Também neste caso
a visualização das relações estabelecidas é possível numa tabela onde se compilou a
totalidade das gravuras impressas na Academia, e as mesmas gravuras impressas
noutras obras. Para simplificar a identificação dos impressores, a sua indicação será
feita recorrendo às iniciais dos seus nomes: Desconhecido (Desc.); Inácio Nogueira Xisto
(I.N.X.); Domingos Rodrigues (D.R.) e Francisco Borges de Sousa (F.B.S.).
Academia dos H. Ignorantes Outras Obras
Grav. Impr. Impr. Impr. Impr. Impr. Impr.
A DESC. I.N.X.
B DESC. DESC.
C DESC. I.N.X. D.R. DESC.
D DESC.
E DESC.
F DESC.
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129
G DESC.
H DESC. I.N.X. D.R.
I I.N.X. D.R. I.N.X.
J DESC. I.N.X. D.R. I.N.X.
K DESC. DESC.
L I.N.X.
M I.N.X. D.R. I.N.X.
N I.N.X.
O I.N.X.
P I.N.X.
Q DESC. DESC. F.B.S.
Da análise dos resultados obtidos relativamente à Academia, podemos constatar o
seguinte: verifica-se que as imagens A, B, C, D, E, F, G, H, J, K e Q aparecem impressas em
conferências das quais não se sabe quem é o impressor. Destas, três delas (C, H e J),
aparecem também em fascículos identificados por Inácio Nogueira Xisto que publica
também as imagens I, L, M, N, O, P.
Confrontando as ocorrências das gravuras impressas na Academia e a sua utilização em
algumas outras obras (de que se junta em anexo o título) percebe-se que o impressor
Domingos Rodrigues já utilizara algumas das gravuras impressas na Academia por Inácio
Nogueira Xisto, nomeadamente as gravuras C, H, I, J, e M. Por outro lado constatou-se
que as gravuras B, C, K e Q aparecem impressas noutras obras onde também não é feita
referência ao impressor.
Já o impressor Francisco Borges de Sousa, que em nenhum dos fascículos da Academia
que trazem o seu nome publicara qualquer imagem, utiliza a gravura Q numa outra
obra sua. Convém informar que este impressor intervém na impressão desta obra
apenas no primeiro tomo, abandonando a sua impressão, desconhecendo-se a razão do
seu afastamento. No entanto, sabemos que este impressor irá produzir outras obras de
conteúdo semelhante ao da Academia dos Humildes e Ignorantes, como é exemplo a obra
Palestra Admirável, Conversação Proveitosa e Noticia Universal do Mundo,12 bem como outras
obras de difusão cultural.
O impressor Inácio Nogueira Xisto, imprime noutras obras as gravuras, I, J e M.,
gravuras que já usou na Academia. Imprime ainda a gravura A numa outra obra, gravura
esta que surge na Academia sem indicação do impressor.
Quanto ao impressor Miguel Manescal da Costa, a sua participação como impressor
nesta obra acaba por estar circunscrita apenas aos dois últimos tomos. No período em
que participa na sua impressão dá-se uma alteração substancial no projecto da obra, de
que se pode destacar para exemplo o facto de as conferências deixarem de ser de oito
(8) páginas, para passarem a ser de doze (12), e que em lugar das quatrocentas e
Cultura, vol. 21 | 2005
130
dezasseis (416) páginas por tomo e das cinquenta e duas (52) conferências, passamos a
ter quatrocentas e oitenta (480) páginas e quarenta (40) conferências. Neste período, o
recurso à utilização de gravuras limita-se, como já referimos, à utilização de um
cabeçalho decorado, uma capitular e uma gravura no final do tomo, e nenhuma a
acompanhar os fascículos.13
Da comparação das gravuras resulta claro que as gravuras B, D, E, F, G, e K, apenas
foram impressas pelo impressor de que não se conhece a identidade, não se localizando
nas obras consultadas dos outros impressores da Academia.
A tabela seguinte mostra o número de ocorrências das gravuras da Academia impressas
em outras obras:
Imagem Outras obras
A 2
B 1
C 5
H 2
I 2
J 5
K 1
M 5
Q 2
Embora o âmbito restrito desta comparação não permita tirar conclusões, vemos que a
frequência no uso das imagens não é o mesmo, na Academia e nas outras obras dos
mesmos impressores. Ou seja, os mesmos impressores escolhiam de forma diferente as
imagens a usar. Se tínhamos constatado que na Academia, as gravuras mais utilizadas
foram a C, H e a I, no breve levantamento que realizámos, encontrámos o uso repetido
da C, mas também das gravuras J e M.14
Estes são alguns elementos que passam normalmente despercebidos. São, em todo o
caso, pistas para uma melhor compreensão da tipografia em Portugal no século XVIII e,
neste caso, para um quadro do recurso à ilustração por parte dos impressores neste
género novo que era o das publicações periódicas de conteúdo cultural e informativo.
Gravuras impressas em Academia dos Humildes e Ignorantes
do primeiro ao quinto tomo.
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131
A
B
C
D
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132
E
F
G
H
Cultura, vol. 21 | 2005
133
I
J
K
Cultura, vol. 21 | 2005
134
L
M
N
Cultura, vol. 21 | 2005
135
O
P
Q
Gravuras impressas por Miguel Manescal da Costa,
tomos 7 e 8
Cultura, vol. 21 | 2005
136
Cabeçalho decorado
Capitular existente no início da primeira conferência
Gravura impressa no final do tomo
Cultura, vol. 21 | 2005
137
ANEXOS
Tabelas de ocorrência das gravuras nas várias conferências dos vários tornos
TOMO I TOMO I TOMO I
B. Nacional Lisboa
Cota P.3178 P.
B. Nacional Lisboa
Cota L.53014 P.
B. Nacional Lisboa
Cota P.540 P.
Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano
1 8 A Desc. 1758 1 8 C Desc. 1758 1 8 H Desc. 1758
2 16 E Desc. 1758
3 23 B Desc. 1758 3 23 B Desc. 1758 3 23 I INX 1760
6 48 C Desc. 1758 6 48 C Desc. 1758 6 48 J Desc. 1758
9 71 F Desc. 1758
10 79 D Desc. 1758 10 79 G Desc. 1758
34 272 H INX 1760
TOMO I TOMO I
B. Universitária João Paulo II
COTA MC-1
B. Academia das Ciências de Lisboa
COTA BACL 11 765 5/I-V
Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano
1 8 A Desc. 1758 1 8 H Desc. 1758
2 16 B Desc. 1758
3 23 I INX 1760
6 48 C Desc. 1758 6 48 J Desc. 1758
Cultura, vol. 21 | 2005
138
10 79 G Desc. 1758 10 79 D Desc. 1759
34 272 H INX 1760
TOMO I TOMO I
Colecção particular 1 Colecção particular 2
Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano
1 8 H Desc. 1758 1 8 G Desc. 1758
2 16 K Desc. 1758 2 16 K Desc. 1758
3 23 I INX 1760 3 23 B Desc. 1758
4 32 F Desc. 1758
6 48 E Desc. 1758 6 48 E Desc. 1758
9 71 Q Desc. 1758
10 79 J Desc. 1759 10 79 G Desc. 1758
34 272 H INX 1760
TOMO II TOMO II
B. Nacional Lisboa –
Cota P.3179 P.
Colecção particular 1
Colecção particular 2
B. Nacional Lisboa –
Cota L.53015 P.
B. Nacional Lisboa –
Cota P.541 P.
B.U. João Paulo II –
Cota MC-1
B.A. Ciências de Lisboa –
Cota BACL 11 765 5/II-V
Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano
4 32 J INX 1759
5 40 C INX 1759 5 40 M INX 1759
6 48 H INX 1759 6 48 H INX 1761
8 64 L INX 1759 8 64 M INX 1759
Cultura, vol. 21 | 2005
139
TOMO III TOMO III
B. Nacional Lisboa –
Cota P.3180 P.
B. Nacional Lisboa –
Cota P.542 P.
B.U. João Paulo II –
Cota MC-1
B.A. Ciências de Lisboa –
Cota – BACL 11 765/III-V
Colecção particular 1 e 2
B. Nacional Lisboa –
Cota L.53016 P.
Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano
14 112 N INX 1760
Este exemplar não tem nenhuma imagem
26 208 I INX 1760
33 264 H INX 1760
34 272 I INX 1760
36 288 C INX 1760
41 328 C INX 1760
50 400 I INX 1760
51 408 H INX 1760
52 416 C INX 1760
TOMO IV
B. Nacional Lisboa – Cota P.3181 P.
B. Nacional Lisboa – Cota L.53017 P.
B. Nacional Lisboa – Cota P.543 P.
B.U. João Paulo II – Cota MC-1
B.A. Ciências de Lisboa – Cota BACL 11 765 5/IV-V
Colecção particular 1 e 2
Conf. Pág. Imag. Imp. Ano
4 31 C INX 1760
5 40 I INX 1760
Cultura, vol. 21 | 2005
140
6 48 C INX 1760
7 56 I INX 1760
8 64 C INX 1760
10 80 I INX 1760
11 88 C INX 1760
12 96 H INX 1760
13 104 I INX 1760
14 112 I INX 1760
18 144 I INX 1760
22 175 N INX 1760
24 191 J INX 1760
25 199 M INX 1760
34 271 O INX 1760
37 296 H INX 1760
38 304 P INX 1760
42 335 H INX 1760
44 352 H INX 1760
45 360 P INX 1760
47 366 J INX 1760
TOMO V TOMO V
B. Nacional Lisboa –
Cota P.3182 P.
B. Nacional Lisboa –
Cota P.543 P.
B.U. João Paulo II –
Cota MC-1
B.A. Ciências de Lisboa –
Cota BACL 11 765 5/II-V
B. Nacional Lisboa –
Cota L.53018 P.
Colecção particular 1 e 2
Cultura, vol. 21 | 2005
141
Conf. Pág. Imag. Imp. Ano Conf. Pág. Imag. Imp. Ano
7 56 M INX 1761 7 56 M INX 1761
8 64 H INX 1761
9 72 C INX 1761
10 80 J INX 1761 10 80 J INX 1761
11 88 I INX 1761 11 88 I INX 1761
18 144 H INX 1762 18 144 H INX 1762
20 160 I INX 1762 20 160 I INX 1762
21 168 H INX 1762 21 188 H INX 1762
34 272 H INX 1762
Lista de ocorrência das gravuras impressas em outras obras
Gravura A:
Relação verdadeira, e curiosa da admiravel Batalha, que alcançaram os Austriacos contra os
Prussianos.(...), Lisboa, na oficina de Ignacio Nogueira Xisto, 1759.
Relação da batalha alcançada pelos Hespanhoes contra os Mouros. (...), Lisboa, na oficina de
Ignacio Nogueira Xisto, 1759.
Gravura B:
Noticia verdadeira da grande Batalha naval que no Canal de Malta houve entre Hum
navio Inglez, e outro Francez, (..), Jorge Bing, e noticia do formidavel exercito, que de
França passa a Alemanha, Lisboa, 1757.
Gravura C:
Relaçam da tragica morte do novo Rei de Tunes, e seu filho e da grande batalha, que tiverão os
Maltezes com os Mouros nas costas de Tunes, Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues,
1757.
Relaçam da victoria que tiverão os Austriacos, contra os Prussianos na Lusacia, onde lhe tomarão
a Cidade de Hirschsel, Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1757.
Novo Theator de dezemganos. Onde falam a Sciencia, e a Ignorancia, Lisboa, 1757.
Copia dos Manifestos, que s. Magestade a Imperatriz da Russia, tem feito publicar contra o
serenissimo Rei de Prussia, (..) e Noticia da Batalha que entre os Moscovitas, e Prussianos houve
ultimamente, por Jozé Chistovão, Lisboa, 1757.
Noticia certa da grande preza, que os Hespanhoes fizeram aos Mouros, (...), Lisboa, 1757.
Gravura H:
Noticia da Festividade que na Ilha de Malta se celebrou no baptismo do Rei de Tunes, (...),
Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1757.
Cultura, vol. 21 | 2005
142
Verdadeira Noticia de hum horroroso caso, succedido no Reino de França, que referido em huma
carta se communicou a Corte de madrid, e daqui se remetteo a esta de Lisboa; traduzido tudo da
lingoa Franceza po J. L. da C. e S., Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1757.
Gravura I:
Relaçam de hum caso notavel, espantoso, e horrivel, novamente succedido em a Provincia de
alem-tejo (...) cujas noticias forão communicadas por pessoas fidedignas. Lisboa, na oficina de
Domingos Rodrigues, 1756.
Noticia da grande batalha naval, que no dia 17 do mez de Agosto do presente ano, se deo entra as
esquadras Franceza, e Ingleza,(...). Lisboa, na oficina de Ignacio Nogueira Xisto, 1759.
Gravura J:
Noticia e relaçam de hum sucesso, novamente acontecido em Galiza (...). Lisboa, na
oficina de Domingos Rodrigues, 1757.
Relaçam verdadeira, em que se dam a ler as victorias dos portuguezes contra os Gentios, e
levantados, alcançadas por Gomes Freire de Andrade (...). Lisboa, na oficina de Domingos
Rodrigues, 1757.
Noticia do grande combate, que junto ao estreito de Gibraltar tiverão duas Náos de Guarda Costa
de Hespanha contra os Mouros, e Piratas (...). Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues,
1757.
Sermão em acçam de graças pela celebração do capitulo provincial da provincia de S.t° António
do Reino de Portugal, (...). Lisboa, na oficina de Ignacio Nogueira Xisto, 1758.
Relação da batalha alcançada pelos Hespanhoes contra os Mouros.(...). Lisboa, na oficina
de Ignacio Nogueira Xisto, 1759.
Gravura K:
Noticia do feliz successo das armas Austriacas, na supreza da Villa de Gabel,
pertencente ao Rei da Prussia,(...). Lisboa, 1757.
Gravura M:
Arestos, rescriptos, e declaraçoens do serenissimo Rei da Prussia contra a corte de
Ungria.(...). Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1756.
Relaçam ou Juizo Politico de Hum sucesso, novamente acontecido na cidade do Porto,
Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1757.
Rescripto ou carta circular, que o serenissimo Imperador de Alemanha fez publicar contra sua
Magestade o Rei de Prussia.(...). Lisboa, na oficina de Domingos Rodrigues, 1757.
Vida, ultimas acções, e morte de Manoel Coelho, procurador de causas nesta corte. Lisboa, na
oficina de Ignacio Nogueira Xisto, 1760.
Historia Universal Antiga, e Moderna, Geografica, Corografica, Topografica, Politica,
Literaria, Critica, Chronologica, e Ecclesiastica de todos os Imperios, Reinos, e Cidades,
que tem havido, e á prezentemente no mundo, (..). para instrucçam dos curiosos
portugueses, que desejarem em breve tempo, e com muita facilidade alcançar uma
perfeita noticia da Historia Universal, por J.J.L., Lisboa, na oficina de Ignacio Nogueira
Xisto, 1760.
Cultura, vol. 21 | 2005
143
Gravura Q:
Noticia verdadeira da grande Batalha naval que no Canal de Malta houve entre Hum
navio Inglez, e outro Francez, (..), Jorge Bing, e noticia do formidavel exercito, que de
França passa a Alemanha, Lisboa, 1757.
Breve discurso sobre os Cometas, em que se mostra a sua natureza, sua duração, seu movimento,
sua influencia, e a sua região &c. escrito por B.M., Lisboa, na oficina de Francisco Borges
de Sousa, 1757.
NOTAS
1. Texto citado por: Ernesto Soares, História da Gravura Artística em Portugal, 1971, Livraria
Samcarlos, Lisboa, p. 22.
2. Ernesto Soares, História da Gravura Artística em Portugal, 1971, Livraria Samcarlos, Lisboa, p. 8.
3. "Todas as imagens podem ser classificadas, apreciadas e estudadas nas condições expostas, sem
limitação alguma de qualidade, espécie, tempo ou material, (...) O estudo das imagens plásticas
nestas condições consideramo-lo o objecto da ciência designada por Iconografia. Esta é, portanto,
a ciência que descreve, estuda e explica as imagens plásticas, as relaciona e sistematiza sob o
ponto de vista da forma que reproduzem ou representam, e tem por fim a determinação do seu
valor documental ou representativo." In Que é iconografia? António de Aguiar, Lisboa, Livraria
Ferin, 1963, p. 69.
4. Consultar as tabelas constantes em anexo.
5. Angela Maria Barcelos Gama, Livreiros, editores e impressores em Lisboa no século XVIII, (exemplar
fotocopiado), Coimbra, 1967, p. 79.
6. Maria Isabel Martins, Inventário dos livreiros, impressores e mercadores de livros de Lisboa, no século
XVIII, citados na Gazeta de Lisboa, (texto policopiado), Lisboa, 1985, p. 25.
7. Angela Maria Barcelos Gama, Op. Cit., p. 73.
8. Maria Isabel Martins, Op. Cit., p. 18.
9. Angela Maria Barcelos Gama, Op. Cit., p. 73.
10. Maria Isabel Martins, Op. Cit., p. 48.
11. Angela Maria Barcelos Gama, Op. Cit., p. 60.
12. José Maregelo de Osan [José Álvaro de Morais], Palestra Admirável, Conversação Proveitosa e
Noticia Universal do Mundo, Lisboa, na oficina de Francisco Borges de Sousa, 1759.
13. Ver as imagens constantes na lista em anexo.
14. Ver lista de obras em anexo.
RESUMOS
As gravuras impressas no periódico setecentista Academia dos Humildes e Ignorantes são, neste
estudo, fonte para procurar saber quem eram os seus impressores, quantas edições se podem
localizar desta obra e qual era o acolhimento por parte do público. As gravuras, sendo um
elemento informativo que passa normalmente despercebido, permitem conhecer melhor o
próprio periódico onde são publicadas e, assim, perceber o modo como se afirma esse género
Cultura, vol. 21 | 2005
144
novo que era o das publicações periódicas de conteúdo cultural e informativo e o papel que estas
publicações têm no desenvolvimento da tipografia em Portugal no século XVIII.
The engravings printed in the eighteenth century periodical named Academia dos Humildes e
Ignorantes (Academy of the Humble and Ignorant) are, in this paper, a source that allow us to look for
its printers, how many editions they made of each joumal, and how the public received this
publication. As an informative element the engraving is usually forgotten, but it allows us to
know better the periodical where it was published and how this new kind of periodical press with
cultural and informative purposes affirms itself and finally, the role they had in the press
development in Portugal in the XVIII century.
ÍNDICE
Palavras-chave: gravura, impressores, periódicos, tipografias, Academia dos Humildes e
Ignorantes
Keywords: Engraving, printers, periodical press, Academia dos Humildes e Ignorantes
AUTOR
PAULO A. FONSECA
Mestrando de História Cultural e Política FCSH UNL.
Licenciado em Filosofia (variante de História das Ideias) pela FCSH, tendo apresentado um
trabalho final sobre a Gazeta Literária (1761-1762). Prepara actualmente uma dissertação de
Mestrado em História Cultural e Política sobre a imprensa cultural no século XVIII (1758-1770).
Cultura, vol. 21 | 2005
145
A imagem nos manuais do ensinoprimário do Estado NovoImage on primary learning books of «Estado Novo»
Filipe Mascarenhas Serra
A ligação entre a Imagem e o Poder sempre foi tema apetecível. Este Poder, visto
essencialmente no contexto do mundo contemporâneo (leia-se século XX) e no plano
dos regimes ditatoriais lato sensu, equivale a dizer regimes autoritários e totalitários
cuja distinção de conceitos, como é reconhecido, nem sempre tem sido tarefa fácil para
analistas e historiadores. Muito mais do que uma questão semântica ou ideológica, a
esta dicotomia é muitas vezes atribuído um carácter formal ou, mais precisamente,
jurídico-formal bem como metodológico. Os regimes autoritários respeitariam a
legalidade por si próprios criada (como defendia Salazar), ao contrário do Estado
totalitário que não seria sequer capaz de garantir a observância do seu próprio sistema
legal, ficando este relativizado. Obviamente que esta diferenciação, muito linear, acaba
bastas vezes por esbarrar em contradições várias quando nos propomos proceder a uma
análise aprofundada das ditaduras do século anterior, sobretudo em matérias muito
práticas e objectivas.
Desta forma, torna-se manifesto que estes regimes, independentemente da sua
configuração, precisariam sempre de uma forte componente de propaganda que
conferisse a necessária respeitabilidade, sustentabilidade e, acima de tudo,
legitimidade. É, assim, muito curioso verificar como a propaganda funcionava não
apenas ao nível da imposição de ideias, modelos e procedimentos mas também como
um mecanismo de afirmação perante uma opinião pública manietada e diminuída no
seu grau mais elementar de informação e livre expressão.
Aliás, a propaganda só fazia sentido se alicerçada num outro pilar consistente como
viria a ser a censura. Juntando a estas uma polícia política atenta, eficaz e repressiva,
encontrávamos os suportes essenciais dos regimes e da sua penetração social,
consolidação e, repita-se, legitimação. Assim, podemos dizer que a propaganda fornecia
o oxigénio, criava a ilusão, a coreografia, a imagem, a lavagem ao cérebro, em suma,
tornava-se no rosto mais vivo, colorido e, pretensamente, mais consistente, desta
Cultura, vol. 21 | 2005
146
tipologia de regimes. Em bom rigor, poderemos dizer que se constituía como a grande
montra ideológica destes novos regimes absolutos. E isto porque a propaganda se
transformava num puro exercício de marketing político, mais ou menos eficaz,
produzindo, divulgando e impondo os ícones adequados.
Assim, torna-se fácil estabelecer uma ponte entre a propaganda e a imagem, através da
utilização dos canais disponíveis na época, conduzindo-nos, em última instância, a uma
verdadeira iconografia do regime. Através desta, dava-se forma, letra e cor aos
princípios ideológicos basilares, descodificando-os, tornando-os de leitura fácil,
imediata e acessível, sem especiais preocupações de aprofundamentos. Deste ponto de
vista, os regimes em análise primavam, quase sempre, pela ausência de subtileza. Ao
invés, o objectivo seria o de chegar rapidamente e de forma primária, ao inconsciente
colectivo.
Verificados estes pressupostos e um primeiro traço comum, despertou-nos interesse
interpretar um pouco a utilização da imagem ligada ao Estado Novo. Cedo concluímos
que se tratava de um tema vasto, muito genérico ou, numa palavra, demasiado
ambicioso. A começar, no que diz respeito aos principais períodos temporais do regime,
colocou-se uma primeira dificuldade: qual Estado Novo? O do pós-1926, na primeira fase
de apuramento ideológico de Salazar? Ou o do pós-Guerra e dos anos 50, conciliando
um esboço quase ridículo de uma democracia dita "orgânica" com o reforço da
repressão e da defesa dos valores ideológicos fundamentais? Ou o dos anos 60, com o
agravamento da questão colonial, o início do declínio e, pior ainda, com o
enfraquecimento e a perda de eficácia dos sinais da propaganda (apesar da crescente
influência de um meio emergente como era a televisão)? Ou já o das tímidas reformas
marcelistas?
Por outro lado e como segunda dificuldade, tornou-se evidente que seria igualmente
ambicioso querer tratar o desenvolvimento da imagem do regime em todas as áreas de
intervenção, ou seja, nas de carácter político, económico, social, educacional ou
cultural. Tornou-se imperioso, assim, circunscrever um vector concreto onde a imagem
funcionasse como guarda avançada da propaganda, salientando os ideais, os valores, as
idiossincrasias ou, no fundo, os pilares que suportavam a arquitectura ideológica do
Estado Novo, se é que esta existia. Como é sabido, muitos defendem ainda que o Estado
Novo não teria tido rigorosamente uma ideologia mas antes uma amálgama de
referenciais adaptados à realidade portuguesa de então e uma forte componente de
poder unipessoal.
Voltando ao tema central do trabalho e confirmando a necessidade de circunscrever
um conjunto homogéneo de imagens, sem grandes dispersões, acabámos por escolher
os manuais escolares. E, de entre eles, vários manuais do ensino primário. Porquê estes?
Primeiro, porque no âmbito da política do livro único, os manuais escolares
perduravam no tempo do que resultava uma grande estabilidade nos textos e nas
ilustrações, o mesmo é dizer, nas intenções e nos objectivos subjacentes. Por vezes, era
apenas alterada a capa, a dimensão das páginas, a qualidade do papel ou era dada cor ao
preto e branco. Contudo, os textos seleccionados e grande parte das ilustrações
mantinham-se rigorosamente inalterados. Por exemplo, um dos manuais de leitura
consultado, original de 1931, surgiria na 132ª edição, em 1967.
Em segundo lugar, tratando-se de livros destinados a uma faixa etária baixa (6-10 anos),
as ilustrações denunciavam os principais propósitos do regime, eram de grande
simplicidade formal, demasiado óbvios, mas nem por isso inocentes. Os grandes valores
Cultura, vol. 21 | 2005
147
do salazarismo e os seus símbolos incontomáveis estão presentes e, por isso mesmo,
não serão menos interessantes. O objectivo primordial seria, seguramente, o de incutir
nas crianças em idade escolar as grandes linhas políticas e sociológicas do Estado Novo
(através de um método tentacular, esse sim, mais subtil): a família, o império colonial, a
sã convivência das classes sociais e das raças, as grandes obras públicas, o brilho da
História de Portugal ou o culto do Passado de um povo cheio de qualidades, a cultura
popular em torno do tradicional, as lendas, o Cristianismo (apesar das ambiguidades)
ou ainda a presença das organizações do regime, como a Mocidade Portuguesa.
Em todas as ilustrações, encontramos uma enorme e única preocupação: enfatizar uma
perspectiva moralista e fazer passar e impor a imagem de um país feliz, equilibrado,
patriótico, orgulhoso da sua História, imperial, saudável e em paz. Tudo isto na nossa
justa medida, ou seja, de acordo com uma bitola pequena e humilde, muito longe do
aparato, da exuberância e da qualidade da propaganda de outros regimes, mormente, a
do nacional-socialismo alemão ou até a do estalinismo soviético.
Digamos que a iconografia ideológica do Estado Novo, mesmo a que não figurava nos
manuais escolares, acabava sempre, a nosso ver, por resultar em imitações, por vezes
medíocres, das principais movimentações de propaganda desses outros regimes e,
portanto, sem o mesmo rigor e impacto estéticos. Excepcionam-se, talvez, as paradas no
Terreiro do Paço, a inauguração do Estádio Nacional ou, sobretudo, a Exposição do
Mundo Português em 1940.
Detendo-nos, portanto, nos manuais escolares do ensino primário que vigoravam anos
a fio, é interessante verificar que o Estado Novo, ao contrário do que era
propagandeado, só a partir dos anos 40 manifestou algum interesse numa verdadeira
política de ensino. O analfabetismo foi combatido inicialmente sem grande convicção,
para depois, nos anos 50, se registar uma descida mais expressiva no fenómeno
(teimando, todavia, em níveis inaceitáveis como se verificava já em plena década de 70).
De resto, um povo instruído, apesar do dirigismo pedagógico, conduziria a um povo
mais informado e essa não era, seguramente, uma prioridade do regime.
Criado em Setembro de 1933, o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) teria, como
primeiro pressuposto, a necessidade de mostrar as realizações da "Revolução Nacional".
O imperativo era o de mostrar as verdades do regime, dar a conhecer as novas
realidades, mostrar as obras realizadas para que não ficassem ignoradas, informar
sobre o progresso da Nação, em suma, fazer evidenciar os grandes objectivos do Estado
Novo. O SPN, assumido desde o início como instrumento de governo (e não do governo),
tinha como missão essencial, informar. No discurso alusivo à sua criação, Salazar deixa
muito claras as principais ideias: - "(...) politicamente só existe o que o público sabe
(...)"; - "(...) a ignorância das realidades, (...), é causa de descontentamento, (...), de falta
de orgulho patriótico, de não haver confiança, alegria de viver."; - "Além da função
informativa, o Secretariado tem por missão elevar o espírito da gente portuguesa no
conhecimento do que realmente é e vale (...)"; - "É necessário que se esclareça a Nação
para que ela não tenha ideias falsas.".
A máquina de propaganda estava encontrada. Faltava apenas actuar. Para dirigir o
importante organismo, António Ferro fora o eleito. Culto e pragmático, viria a conduzir
habilmente a prática do SPN. A orientação era claramente ideológica. A mensagem seria
a de enaltecer o ressurgimento de Portugal. O trabalho era, portanto, essencialmente
político. A revista "A Esfera", em 1943, elogiava o SPN, salientando que um dos
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objectivos seria o de "(...) lutar contra os boatos e a louvável preocupação de mostrar
Portugal aos portugueses ".
Com o avançar do tempo, o Secretariado viria a alargar competências e preocupações.
Em Fevereiro de 1944, é com naturalidade que o SPN passa a Secretariado Nacional de
Informação, Cultura Popular e Turismo. Com este leque de atribuições, o novo SNI
mantinha o controlo das informações e da propaganda nos serviços públicos,
controlava as relações entre o Governo e a imprensa, organizava o turismo e a cultura
popular. Esta dizia sobretudo respeito ao folclore, à etnografia, à tradição e ao
regionalismo. O modelo era claramente o de uma cultura popular de raiz ruralista e
nacionalista, baseada nas tradições. Ainda assim e curiosamente, o associativismo
popular acabaria por resistir, de alguma forma, a este dirigismo autoritário e redutor.
Neste último capítulo, o objectivo era o de elevar o nível moral do povo e valorizar a
sua individualidade nacional.
Há quem defenda que, a partir de 1944, com esta reestruturação, o Secretariado teria
perdido a sua função inicial, mais política, ficando virado para vertentes ligadas às
realizações culturais. Dito de outra forma, o SNI passaria a existir como organismo de
informação e não tanto de propaganda. Admitindo este entendimento, constata-se,
ainda assim, que a propaganda continuaria sempre presente e activa e acompanharia o
regime até ao fim. Marcello Caetano viria, por exemplo, a compreender as
potencialidades da televisão, tentando explorá-las em beneficio da sua imagem. As
"Conversas em família" viriam a constituir a expressão dessa última tentativa de
segurar o regime junto da opinião pública. Note-se que a União Nacional e a Legião
Portuguesa, criadas nos anos 30, se encarregariam igualmente de alimentar a máquina
de propaganda, dando o seu contributo para o fortalecimento inicial do Estado Novo.
Também estas organizações viriam gradualmente a perder força. Ou seja, talvez
possamos considerar que, num contexto de propaganda, as imagem básicas e não muito
tratadas do ponto de vista estético, seriam tidas como suficientes numa economia
austera de meios e numa relação de eficácia face aos objectivos.
Aliás e a este propósito, é no mínimo interessante verificar que, dos diversos manuais
consultados, apesar das reedições destinadas a sucessivos períodos escolares, não
constam muitas vezes, quer o ano da 1ª edição (ou da reedição), quer os autores de
muitos dos textos, quer a orientação pedagógica do manual, quer ainda, justamente, os
autores das ilustrações. Este anonimato acaba afinal por reforçar o carácter espartano
dos livros, não só na sua apresentação visual como nos seus conteúdos.
Finalmente, caberá dar uma breve explicação do critério que presidiu à sistematização
do presente trabalho. Com efeito, depois de se ter procedido a uma primeira selecção
das ilustrações, superando as expectativas iniciais, entendemos agrupá-las por grandes
temas, encontrando naturalmente um fio condutor que os fundamenta, a saber: A - O
Regime e a Ideologia, a Pátria, a História; B - O Império; C - A Família; D - A Escola; E -
Aspectos sociais e morais; F - Aspectos económicos; G - A presença cristã.
De acordo com esta divisão, procederemos à nossa leitura de cada ilustração,
essencialmente descritiva, interpretando e contextualizando do ponto de vista
histórico e ideológico. A este propósito, não deixaríamos de fazer uma advertência
última: os nossos comentários não pretendem traduzir uma crítica primária ao regime
como também não serão apologéticos nem deverão ser entendidos como um mero
exercício de ironia. Tentaremos ser objectivos, com o distanciamento possível, embora
admitamos algum tom crítico que nos parece inevitável.
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Naturalmente que, com o século XXI a despontar, pareceria já um absurdo que em
algum ponto deste planeta um regime absoluto plasmasse a sua ideologia nos livros
escolares. Infelizmente, essa é ainda uma realidade. Em nome da democracia e da
tolerância, alguns "muros" foram derrubados nas últimas décadas. Novos "muros"
ameaçam surgir, todavia, perigosos e perversos. Que as crianças deste mundo possam
crescer em ambiente de liberdade, respeitadas, informadas, com acesso à cultura e,
sobretudo, sem cartilhas ideológicas. Estaremos, seguramente, a preparar melhores
Cidadãos e a garantir mais qualidade de vida aos vindouros. Fica assim, neste trabalho,
uma breve visita ao Estado Novo, despretensiosa e pessoal.
"A batalha que o Secretariado vai travar contra o erro, a mentira, a calúnia ou a simples
ignorância, de dentro ou de fora, há-de ser travada à sombra desta bandeira ( a verdade e a
justiça )." – discurso de Salazar no acto de inauguração do Secretariado de Propaganda
Nacional.
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A efígie de Salazar,
transmitindo um perfil de homem determinado, queixo saliente, com o olhar vigilante
no futuro e o sobrolho ligeiramente carregado, de quem tem preocupações que
coexistem com a missão histórica, e não tanto divina , de proteger o povo português.
Note-se que estamos perante um Salazar ainda jovem embora o desenho, ao mesmo
tempo, pudesse corresponder a um homem mais velho. Talvez se projectasse já a
imagem da longevidade do regime.
Salazar chega ao Governo em 1928, no contexto da ditadura militar resultante do 28 de
Maio de 1926. Restaurar as finanças e combater a "desordem" eram os seus desígnios
mais imediatos. Em 1930, surge a União Nacional com uma nova ideologia que Salazar
prepara com passos seguros: o Estado Novo. A Constituição de 1933 consagraria as
linhas-força do novo regime: a doutrina integralista, algumas influências do fascismo
italiano, o abandono da ideia de uma suposta recuperação da monarquia e um forte
sentido de nacionalismo. O Estado Novo chegara para ficar.
"Nós, os que defendemos a nossa Ordem, a Ordem do Estado Novo, continuamos a ser contrários
ao comunismo."; "(...) eis o que é Portugal com Estado Novo, o Portugal anti-comunista e anti-
democrático. Só cegos ou idiotas o não vêem." - "A Esfera", n.º 102, 5 de Novembro de 1944.
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Em ilustração de Emérico Hartwich Nunes (1888-1965) estamos perante uma complexa e
ambiciosa ilustração, com uma preocupação manifesta de se apresentar quase como
que exaustiva. A ocupação da mancha gráfica não podia ser mais completa.
Curiosamente e apesar disso, as figuras humanas conseguem respirar graças também a
um jogo equilibrado de cores e tonalidades. O escudo ao centro, irradia; a História na
faixa superior, enquadrando personagens e património: a Sé de Lisboa, o Castelo de
Guimarães e a Custódia de Belém; Camões, Nuno Álvares Pereira, D. Afonso Henriques.
Na faixa lateral esquerda, a implantação da República e a 1ª Grande Guerra. Segue-se
uma grande parte da faixa inferior com alusões à agricultura e suas riquezas (trigo,
uvas), a junta de bois, uma torre sineira e o campanário. Avultam sobretudo o ceifeiro e
a mulher, igualmente camponesa, carinhosa, com um filho ao colo e o cesto da merenda
ao lado. Descortina-se ainda um moinho, quase imperceptível, que completaria a ideia
do aproveitamento do trigo.
Toda a faixa lateral direita, ocupando 1/3 do total, é dedicada aos Descobrimentos, com
as figuras mais emblemáticas, a Cruz de Cristo bem apelativa e a afirmação da presença
colonial portuguesa através do Poder (padrão) da Fé cristã (missionação). O quadro é
ainda completado com duas pombas brancas que podem, naturalmente, representar a
Paz. Em suma, estamos perante uma composição rica que poderia servir de ilustração a
um conjunto alargado de textos, combinando o orgulho no passado e um presente de
trabalho, sereno e seguro.
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O desenho representa a Assembleia Nacional, símbolo maior do poder político, no plano
formal, ilustrando um capítulo dedicado aos deveres do homem face a Deus, à Família e
à Pátria. Digamos que se encontra um pouco deslocada visto que o capítulo do manual
relativo à organização política do Estado, só aparece três páginas depois.
A Assembleia surge na ilustração com uma escala um pouco desproporcionada (quase
como banda desenhada), tentando realçar, parece, a imponência e a relevância política
do espaço, o que é igualmente contraditório se pensarmos que aquele órgão não era
mais do que uma fachada e uma caixa de ressonância das orientações políticas do chefe
do Governo. Como escreveria Marcello Caetano, assistíamos a um verdadeiro
"presidencialismo do Presidente do Conselho". Ao poder legislativo cabia um papel
quase decorativo. Diríamos, tão decorativo como a ilustração em apreço.
Ainda assim, passa a imagem de um forum activo, onde os deputados trabalham,
zelando pelos destinos da Nação. Ao contrário e na realidade, estes deputados
raramente tinham iniciativa de apresentar propostas de leis e, portanto, acabavam
também por ser meros figurantes do regime.
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Nesta ilustração, cuja assinatura de autoria não se torna perceptível, a representação de
um tribunal surge igualmente como bastante elucidativa. Falamos do mesmo manual
escolar (Moral e Educação Cívica), desta feita bem encaixada no texto, dedicado
precisamente ao poder judicial.
Trata-se de uma cena de julgamento em curso, com o delegado do Ministério Público a
usar da palavra (o gesto assim o indica), a presença dos agentes policiais fardados e um
juiz, sobrelevado (com algum exagero), de rosto austero e severo.
Ou seja, o espaço onde se exerce a Justiça aparece minimalista (paredes nuas e
mobiliário simples) contrabalançando as fisionomias graves e até solenes dos
circunstantes. Os tribunais seriam dignos e sérios, era essa a imagem a transmitir.
Mas o mais interessante acaba por ser a representação dos acusados: o homem, em pé e
de perfil, parece arrependido, de olhos baixos; a mulher, sentada e curvada, humilde,
com uma posição do corpo a sugerir uma atitude de profunda derrota ou, de outro
modo, esmagada pela mão pesada da Justiça.
O crime não compensaria porque o Estado era forte.
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Estas diversas ilustrações, todas relativas à Mocidade Portuguesa, merecem uma
apreciação conjunta um pouco mais alargada. Em primeiro lugar, refira-se que as
mesmas constavam do manual de leitura da 1ª classe, traduzindo uma precoce tentativa
de aliciamento e recrutamento. Embora não haja uma menção expressa, o objectivo
seria claramente o de passar a imagem de crianças bem comportadas e felizes,
envergando orgulhosamente as fardas da Mocidade Portuguesa. Aliás, note-se que as
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ilustrações em causa surgem a propósito (ou antes, a despropósito) de exemplos muito
elementares relativos ao ensino das letras e dos sons e também da aritmética.
Em segundo lugar, convém notar que a qualidade dos desenhos é um pouco mais
cuidada, num estilo entre os anos 30 e os anos 40, ajudada pela introdução da cor. Os
três irmãos aparecem com ar interessado num livro, bem dispostos e com as fardas
imaculadamente apresentadas. Há um lado clean que resulta bem.
Numa outra ilustração, surge um coro feminino, cantando um hino, "Arraial", na
sequência do estudo da letra "h". As raparigas aparecem fardadas, bem penteadas,
compenetradas (nenhuma sorri), considerando que se encontravam a cantar um hino
patriótico. É também curioso verificar que os rostos não são portugueses, de todo, e
fazem sugerir, nitidamente, fotografias de coros infantis alemães. Ora, esta propaganda
germânica (nazi, mais concretamente) está presente na ilustração seguinte em que os
rapazes fazem saudação romana, convictos, ilustrando a expressão "tanta mão".
A Mocidade Portuguesa, organização obrigatória para os mais novos, surge em 1936 e
era claramente de inspiração fascista. De resto, pretendia-se que o modelo de
funcionamento tivesse um referencial como a Juventude Hitleriana. Pretendia-se,
sobretudo, que se constituísse como mais um pilar do Estado Novo.
Numa reportagem fotográfica sobre o Dia da Independência Nacional, publicada na
revista "A Esfera", comemorado justamente pela Mocidade Portuguesa (1º de Dezembro
de 1942), encontramos os adolescentes a desfilar nos Restauradores e na Rua Augusta,
todos de braço estendido e regressando, no fim da parada, ao Palácio da Independência.
Uma das legendas diz: "Rapazes da M.P. desfilam, cheios de garbo, perante o Comissário
Nacional, Dr. Marcello Caetano e o Adjunto, Dr. Soares Franco". Numa outra fotografia,
Marcello Caetano conversa com um elemento da M. P. Colonial (apresentando um
ligeira diferença na farda: calções claros e não calças, e um capacete colonial).
A bandeira adoptada pela M.P. baseava-se na de D. João I, usada, tanto como se sabe,
como o primeiro brasão nacional. De qualquer modo, as quinas aparecem mais
estilizadas, bastante sob influência do estilo arte nova e do chamado "modernismo
fascista" do Estado Novo.
A Mocidade Portuguesa, acolhida de início com grande interesse e fervor, viria a decair
ao longo dos anos. Criada originalmente como uma organização para-militar, seria de
alistamento obrigatório para toda a juventude escolar, desde o ensino primário à
Universidade. Mas esta obrigatoriedade cedo viria a circunscrever-se aos pré-
adolescentes (entre os 10 e os 14 anos). Não só se inspirava como copiava
descaradamente toda a estética e a prática das organizações congéneres fascistas: o
fardamento verde, a saudação romana, a organização interna e os objectivos,
misturando princípios de doutrina ideológica com doutrina religiosa e ainda do
movimento escutista. De qualquer modo, os objectivos ideológicos centrais da M.P.
(como, aliás, os da Legião Portuguesa) seriam os de estimular a devoção à Pátria,
cultivando os valores da ordem, da disciplina e do dever militar.
Após o fim da 2ª Guerra Mundial muitas destas práticas seriam banidas. A Mocidade
Portuguesa viria a perder progressivamente, quer impacto, quer importância política,
chegando à década de 60 como uma organização descaracterizada e enfraquecida. Por
outro lado, o próprio carácter compulsivo do recrutamento não era já muitas vezes
respeitado. De resto, as designadas actividades "circum-escolares" da M. P., geralmente
previstas para as manhãs de sábado nas escolas primárias, não passavam justamente do
papel. Como, aliás, falhara redondamente a tentativa de criar núcleos da M.P. no
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interior das universidades. Repare-se ainda na última ilustração seleccionada,
aproveitando-se para incluir mais uma criança fardada, executando um toque
militarizado, com a presença de um pendão das cinco quinas, isto a propósito de sons e
da letra " t ".
"Temos de reagir pela verdade da vida, que é trabalho, que é sacrificio, que é luta, que é dor, mas
que é também triunfo, glória, alegria, céu azul, almas lavadas e corações puros, e dar aos
portugueses, pela disciplina da cultura física, o segredo de fazer duradoira a sua Mocidade, em
benefício de Portugal." - Salazar.
Sobre a História de Portugal, as ilustrações abundam e são, geralmente, muito óbvias.
Pretendem apenas, na maioria dos casos, descrever visualmente os episódios mais
heróicos e gloriosos, marcando e transmitindo, com clareza, a ideia de que o passado do
País seria um simples somatório de grandes feitos e nunca o resultado de grandezas e
misérias como sucede com a História de qualquer povo.
Como exemplo, escolhemos um único desenho, de E. Jacinto Nunes, considerando a
ocupação também exaustiva da mancha gráfica e o excesso de representação. Trata-se
de ilustrar o reinado de D. Dinis com um lettering imitativo da grafia gótica germânica,
como aliás acontecia quase sempre em temas de carácter histórico, sobretudo os
relacionados com a era medieval. Elabora-se uma composição em que o rei surge como
um homem culto, sensato e bom administrador (note-se a cabeça apoiada no
antebraço).
Surge igualmente a Rainha Santa Isabel, dando um pão a um pobre, de forma
dissimulada, numa clara alusão à lenda. Apresenta-se depois uma espécie de expositor,
como que no próprio soalho, onde não faltam todos os elementos representativos do
monarca e do reinado em causa: os pães e as rosas (e a lenda, portanto); a espada, como
símbolo da defesa do território conquistado; a enxada, representando a política de
fomento agrícola; os livros, como símbolo da cultura e do ensino; o trigo, relacionado
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ainda com a agricultura; as pinhas, pensando-se naturalmente no pinhal de Leiria; um
foral... Ou seja, numa simples ilustração, qual programa iconográfico, é quase
transmitida uma aula sobre a obra de um rei. Através desta carga intensa de
representações visuais fica retratado um pedaço importante da História de Portugal. O
papel da imagem é assim, neste exemplo, tornar-se numa chave que ajuda a decifrar
rapidamente não só o texto como todo um período histórico.
Encontramos depois referências expressas ao Património ou, mais propriamente, ao
Património Edificado. O objectivo seria o de mostrar os testemunhos em pedra dos
diversos períodos históricos, estabelecendo uma ligação entre os imóveis e os feitos de
que todos se deveriam orgulhar. Tratava-se, pois, de uma leitura muito primária da
função e do papel desse património, não se deixando de salientar que essas construções,
imponentes ou modestas, estariam sempre ligadas à "devoção patriótica". Como
habitualmente, temos a presença da componente do Nacionalismo que o regime
cultivou até à exaustão.
Curiosa é a cartela que se coloca sob o desenho da Sé de Lisboa, com um lettering dos
anos 40, reproduzindo um slogan simples mas eficaz: "O que dizem os nossos
monumentos". A ideia não poderia ser mais contemporânea. No século XVIII,
Montfaucon escrevera que os conhecimentos que se retiravam dos monumentos eram
muito mais seguros do que aquilo que se aprendia nos livros. Vincar a convicção de que
os monumentos falam por si, poderia ter hoje uma interpretação actualista e ajustar-se
de alguma forma a modernas correntes de defesa e salvaguarda do Património. Na
época, defendê-lo seria, acima de tudo, defender a Pátria.
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Na sequência da ilustração anterior surgem outras, com assinatura ilegível de autoria, a
propósito de um texto sobre os monumentos nacionais, com um carácter mais
descritivo do que propriamente ideológico.
A ilustração segue o mesmo critério como se se tratasse quase de um pequeno roteiro
turístico, apresentando os principais mosteiros e as ruínas do Carmo. Figuram, ainda, o
Rei D. João I e D. Nuno Álvares Pereira, fazendo-se uma composição com a
representação de diversos elementos decorativos em pedra, nos quais predomina o
estilo manuelino. Estes surgem a marcar uma esquadria para que não restassem
dúvidas de que se tratava de grandes monumentos nacionais, não faltando o escudo no
lugar cimeiro. Presente estava, como diz o texto, "o espírito cristão, patriótico e
artístico dos nossos maiores!". Na mesma linha, surge a ilustração dedicada aos
Castelos. Segue-se um modelo idêntico embora se coloque uma coroa de três hastes
sobre o escudo, mantendo-se a escolha de cinco construções exemplificativas.
Torna-se curiosa esta divisão de textos entre os "Monumentos Nacionais" e os "Castelos
de Portugal", embora a propósito destes se insista no heroísmo das lutas subjacentes à
formação da nacionalidade. Os castelos aparecem assim com uma carga de patriotismo
ainda mais expressiva, escolhidos como se fossem os melhores entre os melhores
monumentos históricos. Não há aqui a componente da devoção religiosa, ficando a ideia
de que, para o regime, os castelos seriam monumentos nacionais especialmente
privilegiados no campo da propaganda.
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Enfim, uma ilustração puramente figurativa (e um tanto fantasiosa, do ponto de vista
formal) mas representativa da defesa de Lisboa, militar e religiosa. A capital aparece
cercada de muralhas encostadas ao Tejo, com uma cruz gigante, radiosa, no alto da
"torre mais alta" e, de ambos os lados, pequenos montes, arredondados e
absolutamente iguais, encimados por moinhos. A ideia parece ser, claramente, a de
realçar o papel da Igreja na conquista e na preservação da cidade, na sua mais dura e
incondicional defesa. Note-se a total simetria da composição e alguma confusão na
representação das sombras.
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De
qualquer modo, a ilustração aparece bastante dominada pela cruz que surge como fonte
de luz e, naturalmente, de salvação e agradecimento pela conquista aos infiéis.
Uma outra ilustração escolhida, dedicada ao Império, ainda de E. Jacinto Nunes,
representa a ocupação e o referido papel civilizacional. Coloca-se o padrão como
afirmação do domínio territorial e político e um missionário avança, à frente do
descobridor, empunhando a cruz e a Bíblia na mão.
O Portugal cristão chegara para cumprir um papel histórico, um desígnio divino e uma
missão cultural.
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A pequena ilustração que se segue confirma a posterior penetração dos portugueses no
interior de África. Estamos já no século XIX e retrata-se o explorador Silva Porto. O
mais interessante é a relação paternal face ao indígena. Silva Porto ensina-o a ler e o
negro, de joelhos, tenta aprender, com olhar interessado. Assim se cumpria a acção
humanitária e se desenvolvia o espírito de progresso. Assim se afirmava a
superioridade cultural de Portugal.
Confirmando que todos eram portugueses, insistindo na ideia de fraternidade e de
igualdade de oportunidades e direitos, surgem duas ilustrações distintas para um
mesmo texto, correspondendo portanto a edições de anos diferentes. Ainda assim, a
imagem é básica, colocando dois colegas de escola, um branco e um negro, como
portugueses iguais, apesar da diferença racial.
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Na primeira ilustração, o professor exerce o seu papel pedagógico, explicando que não
existem distinções, independentemente do local de nascimento. O rapaz branco ouve,
atento, parando até de jogar, mas não parece, muito convencido. O professor, pelo
contrário, é apresentado descontraído, abordando o assunto com naturalidade.
Na segunda ilustração, o rapaz branco surge agora feliz, risonho, talvez mais convicto e
o rapaz negro satisfeito com a explicação e com uma atitude de igual para igual.
Curiosamente, em ambas as ilustrações, não há um abraço ou um cumprimento. O
ilustrador não terá querido ir tão longe. Verifica-se ainda no texto que se atribui
inteligência a dois mulatos e classifica-se o aluno negro como "de cor". A palavra negro,
de resto, não aparece uma única vez, mesmo no resto do texto que não se encontra
reproduzido. O Portugal colonial seria, portanto, uma nação una, sem racismo ou
discriminações de qualquer ordem, embora os próprios brancos nascidos em África
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fossem muitas vezes designados, na linguagem corrente, como "portugueses de
segunda".
Escolhemos estas ilustrações por respeitarem mais concretamente à figura da Mãe. Na
primeira, surge uma mãe abraçada aos filhos em grande momento de amor e ternura,
de acordo com o texto que enaltece a qualidades maternais. De alguma forma, a Mãe
aparece como contraponto ao Pai, em matéria de direitos e obrigações: ao Pai, deve-se
obediência, como chefe; à Mãe, deve-se amor, carinho e auxílio.
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O papel da mulher,
dedicada à família, boa mãe, boa esposa, corresponde claramente aos desígnios do
regime. A Mãe funcionava como um pilar de sensibilidade, aliado à vertente de
disciplina e autoridade do Pai, surgindo depois a Família, vista esta igualmente como
um suporte político e organizacional do Estado Novo. Por outro lado, também incumbia
à Família contribuir para a sociedade civil com a sua moral, consistência e coesão.
Recorde-se a criação de "A Obra das Mães pela Educação Nacional", que visava orientar
as mães na sua acção educativa ("nobre missão"), em articulação com a escola e,
inevitavelmente, com a Família.
Na ilustração seguinte, de novo do ilustrador já mencionado E. Jacinto Nunes, a
pretexto do aniversário da mãe, retrata-se agora o ambiente de uma família rural. Os
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anos da mãe são devidamente assinalados, sempre com espírito de felicidade e boa
harmonia, a que não faltam o cão e o gato. As prendas são evidentemente caseiras
(rendas, flores e um cordeiro para o jantar). Note-se que o rapaz mais velho, apesar de
se encontrar ainda, supostamente, em idade escolar, já trabalha com uma junta de bois,
envergando um fato igual ao do pai. Recorde-se também que, nesta fase, a escolaridade
obrigatória se reduzia apenas a três anos.
A figura da Mãe é assim homenageada, em clima de amor recíproco e boa convivência
familiar.
A sociedade rural, dominante até à década de 70, representava cerca de 40% da
população activa dependente assim das actividades agrícolas. Para este segmento
predominante haviam sido criadas as Casas do Povo, quase 550 em meados dos anos 40,
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embora um terço delas só existisse no papel. Os recursos financeiros eram escassos,
reconhecia-se, e por isso viria a ser criado o "Fundo Comum das Casas do Povo", tendo
em vista cobrir as chamadas "obras de assistência".
Faz-se notar que o abono de família, criado e reforçado nos anos 40, surgia como uma
vertente da "Revolução Nacional" e apresentava-se como uma doutrina de
fortalecimento da família, dando-se preferência às famílias numerosas na protecção do
Estado. Em 1945, com grande aparato, é publicada legislação que alarga o âmbito de
aplicação deste tipo de abono, inserindo-o num sentido de justiça social do Estado Novo
e considerando-o como um verdadeiro "subsídio de família".
Na última ilustração escolhida,
alusiva ainda ao mesmo tema, surge-nos uma família humilde de pescadores (a
propósito de uma lição de aritmética relativa ao número quatro). O ambiente é,
naturalmente, uma praia, e retrata um almoço com a família envergando fatos
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tradicionais ligados à actividade piscatória. O clima volta a ser de grande harmonia,
com a mãe servindo uma refeição frugal, de sopa e pão. Curioso é precisamente o
desenho da mãe: o sorriso e a posição do lenço na cabeça, bem como a respectiva
inclinação, quase fazem sugerir Nossa Senhora. A composição é ainda equilibrada com
um barco de pesca em fundo e artefactos, e a faixa de mar remata a ilustração, tendo
tudo um sentido claramente cénico. O décor é simples e eficaz.
As "Casas dos Pescadores", instituídas em 1937, haviam sido também uma criação do
regime, às quais se dava grande relevância social e económica. Nos anos 40, eram
mesmo apelidadas de "admiráveis". Consideradas como um "Elemento Primário" da
organização corporativa, eram associações da população ligada ao mar, incluindo os
empresários, na perspectiva do interesse comum, bem ao estilo do modelo fascista. As
corporações propriamente ditas de pesca e conservas de peixe só viriam a ser
regulamentadas nos anos 50, embora já sem grande eficácia.
A pesca, actividade incluída num sector primário predominante, aparecia geralmente
como enaltecida pelo regime, quer no plano mais imediato da economia, quer no plano
social, quer ainda num plano psicológico. Representava, deste ponto de vista, uma
vigorosa ligação ao mar e a nossa vocação atlântica. No fundo, os pescadores, mantendo
forte a tradição (nos usos, nas roupas, nos hábitos, no folclore), eram tidos como heróis
numa luta desigual contra a grande força da Natureza, reencarnando o espírito dos
gloriosos marinheiros das Descobertas.
Entrando no capítulo dedicado à Escola, a ilustração faz alusão ao início do novo ano
escolar que, durante muito tempo, tinha início em 7 de Outubro. Pretende-se retratar
uma sala da 4ª classe, de forma tosca. E isto porque, com falta de espaço na mancha
gráfica, o ilustrador (aqui identificado com assinatura de difícil percepção), optou por
encavalitar os alunos, dando quase o efeito de uma fotomontagem. As crianças
aparecem, como sempre, atentas e felizes. O quadro negro surge numa posição lateral,
improvável, e não se esquece um globo terrestre para completar a composição. As
palavras do professor são as esperadas e reconduzem-se ao princípio ideológico básico:
a utilidade da instrução para a Pátria.
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Note-se que, num outro manual, faz-se referência a uma escola primária onde existia
uma cantina para crianças pobres, sustentada por "senhoras caritativas" da freguesia.
As crianças nestas condições teriam direito a uma refeição, mas quanto ao material
escolar (livros, papel, penas, tinta e lápis) este só seria fornecido se a criança se
comportasse bem e fosse aplicada.
A este propósito, saliente-se que Leite Pinto, Ministro da Educação Nacional entre 1955
e 1961, reconhecia o elevado grau de abandono escolar no ensino primário, justamente
em consequência da pressão das famílias pobres, sobretudo rurais. As crianças eram
tiradas à escola para tratar do gado, da criação, levar o almoço aos pais e avós,
cumprindo missões de equilíbrio familiar (do ponto de vista dos pais). Este mesmo
Ministro, ainda assim, tinha o cuidado de defender que o analfabetismo não era
resultado directo da luta de classes. Todavia, as primeiras e verdadeiras reformas no
ensino acabariam por ser protagonizadas por Inocêncio Galvão Teles, titular da pasta
entre 1962 e 1968, por coincidência (ou não), o período de declínio de Salazar à frente
do Governo, com o despoletar daquele que viria a ser o problema sem solução: a guerra
colonial.
Para este capítulo escolhemos ainda duas ilustrações, talvez de Milly Possoz (?), que se
encontravam colocadas junto às capa e contra-capa, denunciando de forma pouco subtil
uma mentalidade e uma atitude sócio-política perante a educação e os hábitos do
segmento infanto-juvenil.
Assim, as raparigas surgem a praticar as actividades que eram consideradas femininas
e, portanto, ligadas às lides domésticas e à educação: cozinhar, lavar, passar a ferro,
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limpar, ajudar os irmãos, regar as flores, a que acresciam os designados trabalhos de
lavores. As raparigas eram, assim, preparadas para desempenhar o papel de boas
esposas, boas mães, boas donas de casa porque era essa a sua função social. A
composição tem desenho de qualidade, apresenta-se bem arrumada do ponto de vista
gráfico e é inequívoca quanto aos objectivos. Vincando bem a distinção entre raparigas
e rapazes, estes aparecem na outra ilustração, igualmente equilibrada, entregues a
tarefas diferentes, aquelas que eram consideradas, obviamente, masculinas:
jardinagem, agricultura, trabalhos manuais e oficinais, pesca e, o mais extraordinário, a
actividade artística. Um rapaz pinta e outro toca flauta.
As actividades de criação artística seriam, portanto, destinadas aos rapazes. As
raparigas não seriam criadores. Este é, aliás, o aspecto mais chocante da confrontação
entre as ilustrações. A comparação resulta, assim, numa divisão de tarefas que era, ela
mesma, um pressuposto de métodos educativos, num mundo ideal e de
complementaridade entre o elemento masculino e o feminino, tão ao gosto da época e
tão ao gosto do Estado Novo. De resto, representava também uma matriz sociológica
que perdurava no estado adulto. Muitas profissões acabavam por ser vedadas às
mulheres, que deveriam manter-se, preferencialmente, em casa, sempre em nome da
harmonia familiar e do equilíbrio social.
A ilustração seguinte diz respeito a um
texto sobre os ricos e os pobres. A rapariga, bem vestida e composta, é a rica; o rapaz,
apesar de não andrajoso, mas descalço, é o pobre. O texto é delicioso do ponto de vista
sociológico. O Estado Corporativo agrupava interesses contraditórios que se
harmonizariam em organizações económicas, sociais, morais e culturais. O interesse
nacional, o bem comum, teriam de se sobrepor a quaisquer diferenças e conflitos.
Inspirado pelas teses do Integralismo (anos 10), corrente filosófico-política elitista,
Salazar afastava totalmente qualquer conceito de luta entre as classes, considerando-a
incompatível com a pretensa ideologia do Estado Novo. Num discurso de Maio de 1931,
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Salazar defende que "(...) nenhum interesse individual ou local ou de classe prevalece
sobre o interesse da colectividade."
Voltando ao texto, estes princípios estão presentes de forma inequívoca e traduzem um
olhar hoje chocante sobre as diferenças sociais ao nível dos comportamentos e das
maneiras de estar, embora com uma visão crítica dos ricos, também ela, por sua vez,
paternalista e moralista. Assim, os ricos não precisariam de trabalhar e sem eles, os
pobres morreriam. Passa-se depois para um conceito de interdependência e conclui-se
por uma apologia da pobreza. Os pobres a trabalhar (na terra, claro) seriam uns entes
muito mais bonitos do que os ricos, estes destinados simplesmente a comer aquilo que
outros produziam. Ficava, portanto, uma visão maniqueísta segundo a qual a pobreza, a
humildade e o trabalho eram dignos e, os pobres, uns seres privilegiados, enquanto os
ricos seriam uns parasitas.
Na obsessão da luta contra a "desordem", política, financeira e económica, Salazar
defenderia sempre uma política de sacrifício a bem do interesse nacional, à qual o povo
deveria sujeitar-se e conformar-se.
Continuando com a caridade, encontramos uma ilustração em que um professor leva
um aluno a uma casa pobre a fim de prestar assistência a uma mulher numa enxerga. A
ilustração, de Alfredo Miguéis (1883-1943) ou de Alfredo Morais (1872-1971), e o texto
propriamente, parecem querer traduzir da parte do professor, uma espécie de aula
prática sobre os pobres, a caridade e o amor de Deus. A deslocação a um lar humilde
seria, pois, uma visita de estudo.
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Diz-se, mais adiante, no mesmo texto, que a Caridade deveria exercer-se de preferência
com os "inferiores", ou seja, socorrer "os pobres e desgraçados", consolar os que sofrem
e ajudar os fracos e os enfermos. A terminologia não poderia ser mais clara.
Curiosamente, faz-se depois uma ligação ao conceito de Justiça, consistindo esta em dar
a cada um o que lhe é devido e ao conceito de solidariedade, esta interpretada no
sentido de cooperação e de auxílio mútuo entre todos. Eram assim enaltecidos os
sentidos mais nobres, muito ao jeito de Salazar.
Finalmente, escolhemos uma ilustração elucidativa para terminar este levantamento de
aspectos sociais e morais. Trata-se de uma cena alusiva a uma situação profissional. Os
patrões surgem com ar bem instalado (hoje não poderia estar a fumar) e confiante face
a uma atitude de humildade do jovem adolescente em busca de um primeiro emprego.
Faz-se notar a naturalidade com que se colocavam anúncios de recrutamento
destinados a rapazes dos 14 aos 16 anos. As funções eram habitualmente as de
escriturário ou de paquete. De resto, a ilustração retrata um ambiente urbano, podendo
representar não apenas um escritório de uma qualquer firma comercial (como era o
caso), como o de um banco, de uma companhia de seguros, de uma repartição pública
ou o de uma companhia de navegação, por exemplo.
O jovem assume o comportamento normal na situação-tipo em causa: bem apresentado,
asseado, humilde, respeitador, segurando o boné de forma tímida e colocando-se
inteiramente nas mãos do potencial empregador. Este desvaloriza as cartas de
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recomendação e, ao invés, dá maior importância justamente à atitude do candidato.
Aliás, o texto (na parte não reproduzida) vem a concluir que a apresentação e o
comportamento na entrevista eram mais decisivos do que uma eventual recomendação.
Acrescente-se que o jovem, reunindo tantas qualidades, à vista, conseguiria o emprego.
Podemos imaginar facilmente que iria às "sortes" (não estalara ainda a guerra colonial),
acabaria por casar, manter-se-ia na firma por uma longa carreira, com pequenos
aumentos de ordenado e promoções espaçadas. Chegaria talvez a chefe do escritório e
diria sempre com orgulho: "Comecei a trabalhar aos 14 anos e subi a pulso."
Este era também um homem-tipo português do Estado Novo.
A primeira ilustração escolhida para o capítulo dedicado aos aspectos económicos, de
Ardial (?), faz uma apresentação daquele que foi sempre um dos mais obsessivos
objectos da propaganda do Estado Novo: as obras públicas, as grandes realizações, as
grandes construções, vistas como sinal de desenvolvimento e só possíveis graças ao
saneamento financeiro empreendido por Salazar.
A composição, enquadrada por duas colunas de pedra de capitéis jónicos, encimadas pelos escudos
das cinco quinas, mostra-nos, num painel de azulejos, as diversas áreas de intervenção do Governo.
A cons‑
A composição, enquadrada por duas colunas de pedra de capitéis jónicos, encimadas
pelos escudos das cinco quinas, mostra-nos, num painel de azulejos, as diversas áreas
de intervenção do Governo. A construção de estádios, barragens, escolas, pontes, a
construção naval, os transportes aéreos, em suma, todos os sinais dinâmicos de um país
em progresso. A ilustração aparece-nos ao melhor estilo do marketing político e
poderia, nos nossos dias, funcionar, por exemplo, como outdoor. De resto, diríamos que
a intenção e o espírito mantêm-se vivos e actuais junto de alguns políticos da nova
geração do regime democrático.
Num registo político de neo-fontismo (de que Duarte Pacheco seria o protagonista),
Salazar daria especial atenção às obras públicas e faria delas uma cruzada ideológica,
privilegiada nas acções de propaganda. O novo país era o país das obras, das infra-
estruturas, da fachada de desenvolvimento, que o regime cultivaria até ao limite. Por
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outro lado, do ponto de vista económico, a política de Salazar nesta matéria viria a ser,
até muito tarde, a de canalizar investimentos públicos, contribuindo ao mesmo tempo
para o crescimento do produto e para a criação de emprego (qual New Deal à
portuguesa).
O último conjunto de ilustrações diz respeito à presença da Igreja nos manuais
escolares, presença essa de indiscutível expressão, gráfica e textual, e intencionalidade.
A primeira das seleccionadas diz respeito a Maria, Mãe de Deus, vincando o princípio de
que seria também a "Santa Mãe de todos nós". O desenho e a cartela constitui uma
composição simples, predominando o azul em fundo e nas vestes de Nossa Senhora com
um Jesus-Menino ao colo, louro e um pouco rechonchudo. O rosto de Nossa Senhora
foge, de alguma forma, à figuração habitual.
Na ilustração seguinte (constante do livro de leitura da primeira classe), surge-nos de
novo Maria Imaculada dando tema a uma composição aparentemente confusa do ponto
de vista da leitura visual: a ilustração surge ao centro, como um eixo, alargando para a
base, mostrando um altar mariano e duas crianças, ajoelhadas, em oração e veneração.
Pelas roupas, parece que o objectivo seria o de mostrar duas raparigas oriundas de
meios diferentes: rural e urbano, pobre e rico. O texto, partindo de um título comum,
com dois tipos de lettering, corre nas faixas laterais, dando lugar a frases diferentes:
"Mês de Maio, Mês dos lírios e das rosas, Mês de Maria" e "Coração de Maria, dai-nos o
vosso santo amor, Santa Maria".
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A referência ao mês de Maio poderá traduzir uma alusão a Fátima, podendo ser
coincidência ou não a colocação, do mesmo lado, da rapariga que poderia justamente
representar uma das pastorinhas ligada às aparições.
Estas primeiras ilustrações introduzem igualmente a necessidade de uma pequena
reflexão sobre o relacionamento entre o Estado Novo e a Igreja Católica ao longo das
décadas do regime, nem sempre linear, nem sempre
pacífico,
embora de grande colaboração e, por vezes, de promiscuidade.
De qualquer modo, a forte presença da doutrina e da iconografia cristãs nos manuais
escolares esteve sempre assegurada, na perspectiva de uma manifesta catequização da
população escolar.
Com efeito, o próprio Salazar tinha estado inicialmente ligado a grupos católicos, na
década de 20, como o Centro Católico ou o Centro Académico de Democracia Cristã. A
identificação destes grupos com a direita política era evidente e não deixariam de
influenciar o futuro Chefe do Estado Novo. Mais tarde, com a Constituição de 1933, a
Igreja teria direito a representantes na Câmara Corporativa embora esta sempre tivesse
tido um papel decorativo. Por outro lado, o partido do regime, a União Nacional, veria
católicos conhecidos na suas fileiras, mesmo como dirigentes.
O papel da Igreja no Estado Novo, num âmbito mais institucional e doutrinário, viria a
ser defendido por Salazar, embora sem evidenciar expressamente qualquer vontade de
que esse papel pudesse representar um protagonismo excessivo para os dignatários da
Igreja Católica portuguesa. As intervenções públicas de Salazar em matérias religiosas
nunca mostrariam o mesmo radicalismo que resultava, por exemplo, da mensagem
anti-comunista. A Concordata, assinada em 1940, deixava da parte de Salazar, um sinal
claro de que não seriam permitidas influências da Igreja no regime e, muito menos,
qualquer participação política. Sem denunciar uma atitude anti-Igreja, a preocupação
era a de marcar terreno e circunscrever a instituição à sua função doutrinária e
estritamente religiosa. A Concordata, de resto, acabaria por tender para uma noção de
um Estado laico, muito mais ao gosto de Salazar para quem a Igreja não poderia
representar qualquer ameaça ao seu poder, embora formalmente e ao mesmo tempo,
tivesse travado o espírito dos movimentos anti-clericais que vinham do século XIX e da
1ª República. Ainda assim e apesar de a Constituição de 1933 consagrar a separação
entre o Estado e a Igreja, esta conseguiu, já nos anos 50, que a religião católica se
tornasse na religião oficial do País. De qualquer modo, a Salazar interessava
essencialmente, do ponto de vista ideológico, associar o Cristianismo à Civilização
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Ocidental, tendo esta que resistir à ameaça comunista, leia-se, soviética. Aliás, esse terá
sido, provavelmente, o único leit-motif que persistiu durante a totalidade da vigência do
regime.
"Portugal nasceu à sombra da Igreja", era esta uma das frases-chave usadas pelo Estado
Novo como justificação para o traço dominante do carácter dos portugueses. Seria
também esse o argumento para defender a unidade moral da Nação. A Santa Sé, por sua
vez, daria inúmeros passos de bom relacionamento com Portugal, quer propriamente
com a Igreja, quer com o regime. O Papa Pio XII, através de diversos actos ao longo das
décadas de 40 e 50, mostraria sempre com clareza esse apoio e criaria um clima
favorável, de harmonia e reconhecimento. Só a visita do Papa Paulo VI a Fátima, em
1967, viria a azedar as relações com o Vaticano, já sem grande efeito. Salazar, de
qualquer forma, estaria prestes a cair de uma cadeira de jardim e da cadeira do Poder.
"Com maior ou menor fervor, cultura mais ou menos basta e profunda, maior ou menosesplendor do culto, podemos apresentar perante o mundo, ao lado da identidade defronteiras históricas, o exemplo raro de identidade de consciência religiosa: beneficioextraordinário em cuja consecução se empenhou uma política previdente." – Salazar, emMaio de 1949, perante a Assembleia Nacional, sobre a Concordata.
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Esta última ilustração, ainda de
E. Jacinto Nunes, surgia a acompanhar um poema e não, portanto, no contexto das
anteriores. De qualquer modo, é bastante sintomática, sobretudo pela colocação do
crucifixo inclinado, ao fundo da cama, irradiando a forte luz divina perante um
camponês ajoelhado, quase esmagado e intimidado com a aparição. Esta seria afinal a
imagem da profunda devoção e, ao mesmo tempo, da ideia de submissão que se
pretendia transmitir às crianças nestes manuais escolares.
A presença da Igreja Católica era assim forte, dominadora e impositiva. As alternativas
não existiam. Não há referências a outras religiões (a não ser aos Mouros e à sua
"infidelidade"), nem sequer a outras confissões cristãs. Estas, apesar de toleradas
oficialmente, nunca seriam encorajadas pelo regime que, ao invés, sempre dificultou a
sua acção.
RESUMOS
A empatia entre a Imagem e o Poder nunca escapou à especial atenção dos autocratas. Salazar
não foi excepção. Nos manuais do ensino primário, o Estado Novo estaria presente com grande
simplicidade formal mas nem por isso inocente: a família, o império colonial, a sã convivência das
classes sociais e das raças, as grandes obras públicas, o culto do Passado, o Cristianismo, a cultura
popular ou ainda a propaganda das organizações do regime, como a Mocidade Portuguesa. Em
todas as ilustrações, uma forte e única preocupação: enfatizar uma perspectiva moralista e fazer
passar e impor a imagem de um país feliz, equilibrado, patriótico, orgulhoso da sua História,
imperial, saudável e em paz.
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The empathy between Image and Power never escaped to the special attention of the autocrats.
And Salazar was not an exception. In the primary-school manuais, the "Estado Novo"("A New
State") was present with great formal simplicity but yet not innocent: the family, the colonial
empire, the healthily sociability of classes and rates, the big public works, the devotion to the
Past, the Christianity, the popular culture and still the propaganda from the organizations
belonging to the political regime, such as the "Mocidade Portuguesa"("Portuguese Youth"). In
every illustration there was a strong and unique preoccupation to emphasize a moralistic
perspective and to pass and impose the image of a happy, patriotic, historically proud, imperial,
healthy and peaceful country.
ÍNDICE
Keywords: learning books, illustration, image and power, Estado Novo
Palavras-chave: manuais escolares, ilustração, imagem e poder, Estado Novo
AUTOR
FILIPE MASCARENHAS SERRA
Licenciado em Direito (FDL), Mestre em Património Cultural pela Universidade Católica
Portuguesa (Tese: Práticas de gestão administrativa nos museus portugueses). Assessor de carreira do
IPPAR. Docente da Universidade Católica Portuguesa onde é coordenador-adjunto da Pós-
Graduação em Comunicação Cultural.
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Paisagens sem rostoPara o estudo da primeira edição ilustrada de A Selva
Faceless landscapes
Liliana Dias Carvalho
Este é um trecho das muitas cartas trocadas entre Ferreira de Castro e Roberto Nobre a
propósito da edição ilustrada de A Selva, realizada em 1939 pela Empresa Nacional de
Publicidade.
A edição, ilustrada por oito pintores contemporâneos, tinha como encomenda este
tema genérico: De que modo os pintores portugueses vêm a Selva, depois de terem lido
o romance de Ferreira de Castro. Roberto Nobre, coordenador gráfico da edição,
incumbiu aos ilustradores — Alberto de Sousa, António Soares, Carlos Reis, Dórdio
Gomes, Jorge Barradas, Manuel Lapa, Manuel Lima e Martins Barata —, que
encontrassem o "rosto" da Selva, tal como Ferreira de Castro a descreve.
Esta encomenda passou por alguns sobressaltos, tendo sido necessário alterar o leque
de ilustradores convidados, uma vez que parte do grupo inicial não conseguiu "agarrar"
o romance. Os artistas revelaram alguma dificuldade em traduzir um cenário que
desconheciam, não conseguindo sair do papel de intérpretes gráficos do romance. A
situação em que foram colocados os pintores deriva da concepção que o encomendador
e coordenador gráfico da edição — Roberto Nobre —, tem de ilustração. No Inquérito ao
Livro em Portugal, coordenado por Irene Lisboa, Nobre defende que «em teoria, o
ilustrador não deve ter personalidade própria e sim estar pronto a adaptar-se aos temas
que surgem. (...) No nosso meio o ilustrador tem, em geral, uma personalidade muito
vincada, cheia de carácter, o que muito o honra como artista, mas que lhe limita o
campo de acção. O ilustrador é um intérprete e, como um executante em música, não
deve sobrepor-se à obra de origem. O artista português, em geral, não tem esse espírito
de abdicação. Quase sempre (falo nos que têm talento e personalidade) é levado não a
ilustrar, mas a ilustrar-se, não a interpretar, mas a interpretar-se, não a prolongar
apenas e com humildade junto do leitor a emoção colhida na leitura, mas impor uma
versão sua, original e diferenciada. (...) O pintor e o escultor, quanto mais
personalidade, quanto mais carácter e individualidade, melhor. O ilustrador, mesmo
quando subjectivo, não pode esquecer-se de que é um intérprete.»2
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Trazendo esta concepção de ilustração para o livro de Ferreira de Castro, surgem
problemas prévios: se o livro remete para determinada paisagem, ou paisagens, como é
que o ilustrador interpreta um território que, para si, é branco? Continuando, será
possível estruturar picturalmente uma geografia imaginária sem ter uma memória
afectiva do lugar ou, sem a possibilidade de ver a ilustração como algo que está para
além de paráfrase do texto? Poderemos encarar o papel do ilustrador tal como Nobre o
descreve? Se assim for, como classificar as ilustrações de Portinari para o mesmo
romance, em 1955?
Recordemos que Nobre se referiu aos quadros do pintor brasileiro como tendo valor
próprio como pintura, «em vez de usuais ilustrações».3 Para o coordenador da edição de
39, Portinari «não se aproveitou do mais fácil recurso decorativo da paisagem e antes se
ocupou do que de humano se encontra naquele punhado de entes sofredores que a
floresta tropical esmaga e tortura, mantendo-lhe o sentido estranho, o vigor, o carácter
singular, que predominam e fizeram êxito na obra literária a que se destinam».4
O que Nobre não diz, mas podemos concluir das suas palavras, é que Portinari revela
picturalmente um outro entendimento da ilustração e do papel do ilustrador. Vemos
nas ilustrações de Portinari não paráfrases ou metonímias do livro de Castro, mas sim
imagens que acompanham um texto, e que lhe servem de complemento coerente – não
traduções pictóricas, até porque há a consciência de que, na "tradução", muita coisa se
perderia e, uma delas seria evidentemente a identidade artística da ilustração e, lato
sensu, do ilustrador. Acrescentamos aqui também que a edição ilustrada de 55, bem
como a de 49 e de 74, de Machado da Luz e de Júlio Pomar, respectivamente,
correspondem a um projecto relacional de um para um – um romance e um ilustrador
–, ao passo que a edição de 39 tem uma relação de um romance para oito ilustradores.
Arriscamos dizer que um projecto de edição de luxo, como foi esta, acabou por se
tornar numa edição marginal. A Guimarães Editores só a refere em 1949 como sendo a
11ª, sem indicação de data.
No romance de Ferreira de Castro, o campo semântico da palavra selva é bastante
abrangente: num sentido mais literal designa a floresta amazónica – um local
geograficamente tipificado e delimitado –, mas é também uma ideia – uma entidade
relacional –, e uma história sobre o Homem e os seus limites. A selva, diz-nos o
narrador « dominava tudo. Não era o segundo reenvio, era o primeiro em força e
categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o homem, simples transeunde
no plano do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo. O
animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante,
forçoso se lhe tornava vestir pele de fera. A árvore solitária, que borda
melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça e romântica
sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia
que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de
todos os lados. Nada a assemelhava às últimas florestas do velho mundo, onde o espírito
busca enlevo e o corpo frescura; assustava com o seu segredo, com o seu mistério
flutuante e as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso anseio de fuga.»5 No
romance de Castro, o nome selva torna-se atributo das coisas e dos seres em relação à
paisagem envolvente. Portinari (1955) entendeu bem esta abertura de significados.
Ora, seguindo a definição de ilustração que Nobre nos dá, será que uma obra aberta a tal
multiplicidade, encontra uma boa tradução pictural em quadros fechados no tema
floresta? Ou melhor, no tema floresta desconhecida pelos ilustradores?
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Em 1795, François-René de Chateaubriand escreve a sua Lettre Sur le Paysage en Peinture.6
Neste texto, Chateaubriand critica o facto de, nos finais de século XVIII, a maioria dos
paisagistas conhecerem pouco a paisagem que pintam e caracterizam. Por isso o autor
alerta para a necessidade de os estudantes de pintura começarem a estudar
verdadeiramente a natureza, saindo do atelier e observando os movimentos da
paisagem. Sem um estudo baseado na experiência e na relação afectiva entre a memória
do pintor e a paisagem não existe arte da paisagem — reproduzem-se tão somente
traços da natureza que não têm a identidade própria de um lugar. Continuando com a
lição de Chateaubriand, se o pintor que se ocupa da natureza humana deve estudar as
suas emoções para depois compreender as suas feições, o paisagista, tal como o poeta,
só poderá ocupar-se da natureza se a estudar localmente, sabendo dela os seus cheiros,
tonalidades e movimentos. Deste modo, o paisagista captará a influência dos diversos
horizontes/ambientes da tela que pinta.
A modernidade do texto de Chateaubriand advém justamente do facto de o autor não
reivindicar uma memória empírica, mas sim uma memória afectiva, o que nos permite
convocar o texto setecentista para este projecto de ilustração de A Selva, pois é essa a
sua falha – a falta de uma memória afectiva (e aqui, temos de o dizer, também a
inexistência de uma memória empírica). Abel Manta, um dos ilustradores convidados
para a edição, desistiu dizendo que só indo à Amazónia conseguiria ilustrar o romance.
Dos restantes quadros, temos a descrição que Nobre vai dando a Castro: «Meu caro
Castro: V. deixou-me com uma bela herança. A Selva tem-me dado água pela barba. Em
primeiro lugar os meus colegas. O Barradas apresenta-me uma floresta de pinheiros da
Suécia, em tons suaves, estilo nevoeiro, tudo vago e pálido. Ele foi o primeiro a dizer-me
que de facto aquilo não era a "Selva". Prometeu-me modificar. Mas até hoje não o
arranjou. O Sousa Lopes não pode aceitar. O Abel Manta disse entusiasticamente que
sim, tornou a ler o livro e convenceu-se que só indo lá é que conseguiria fazer alguma
coisa. O Varela Aldemira tentou, não gostou do que fez e escreveu-me a dizer que o
prazo era curto, tinha exames etc[.], o assunto difícil e que desistia. Enfim, isto é uma
amostra.
(...) Julgo que V. ficará contente com as vinhetas que tenho feito e que têm aqui
agradado às pessoas a que tenho mostrado.
O quadro do António Soares é bonito como cor mas confuso.
O Dórdio Gomes mandou uma mancha forte, violenta que o Dr. Magnus acha o melhor
do que tem visto sobre «A Selva». Não estou tão optimista mas julgo que depois de
alguns retoques do "gravador" ficará bem. O resto tem sido uma dificuldade medonha.
O Lino António deve entregar amanhã. Já está pronto. Os outros... vamos a ver quando
se conseguirá arrancar-lhe [s] os trabalhos.»7
Noutra carta, continuando o relato da edição: «V. tem toda a razão para estranhar a
minha falta de notícias.
Mas a publicação do seu livro tem sido uma tragédia tão grande que a falta de notícias
ainda é para si um mal menor do que se V. fosse posto dia a dia a corrente dos
dissabores e arrelias que têm surgido!
(...)
Posto aqui este desabafo vamos ao assunto: Depois das sete pragas do Egipto, são os
pintores a pior praga que existe. Uma calamidade. Se V. soubesse o que apareceu entre
as "selvas" pintadas! Dos meus convidados pessoais o Lino António parece que
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endoideceu. Tive que recusar os dois trabalhos que apresentou e, vendo que o segundo
era ainda pior do que o primeiro, tive de desistir dele, pois deram-lhe explicações
pormenorizadas do que se pretendia. Está a imitar o Mário Eloy e faz umas coisas que
parecem uma palete borrada, não se entendendo nada daquelas pinceladas todas. Além
de tudo o mais absolutamente feio e irritante. V. verá quando cá chegar. Para V. avaliar
o que sofri com o Lino António basta dizer-lhe que para lhe arrancar aqueles dois
trabalhos lhe telefonei dezoito vezes. Para não complicar a questão e de combinação
com o Dr. Magnus resolvemos pagar-lhe e não publicar. O Guilherme Filipe disse-me
que sim e levou mês e meio para responder sequer às minhas repetidas cartas. Tivemos
que eliminá-lo.
Em substituição destes dois o Dr. Magnus deseja colocar jarrões da velha guarda com os
amigos particulares dele Armando Lucena e... Alfredo Morais!
Ora eu estava ainda sob a terrível impressão do quadro de Carlos Reis... que até leões
metia. Se algum daqueles fosse fazer os quadros, metia com certeza o jardim zoológico.
Preferi ir buscar novos, mesmo com nome menor. Escrevi a dois pintores da geração a
seguir à nossa, de cujos trabalhos eu gostava. Um deles nem conhecia pessoalmente.
Falei-lhes em tom confidencial e incitei-lhes o brio. Consegui assim que um deles fizesse
para mim o melhor quadro que vem no livro, o de Manuel Lapa.8 É um pintor de mérito.
O do outro pintor, Manuel Lima, não é tão bom, mas é cheio de cor e bonito. Está isto
fora do nosso critério inicial, que era um ramalhete de nomes consagrados, mas, se V.
cá estivesse teria feito outro tanto. Mesmo assim, V. verá o que Alberto de Sousa,
Martins Barata e Carlos Reis mandaram! Este senhor é "tabu" para o Diário de Notícias.
Por vontade minha teria corrido com ele. Ao menos o nome dele serve de cartaz. Mas
ele pintou uma horta com um leão e uma serpente e supõe que isto é a "Selva"... leões
no Brasil! Isto é que é cultura! Ao gravar, matamos-lhe o leão... O Dr. Magnus preferiu
isto a recusar o trabalho de S. Majestade.
Isto é o drama pictural. O drama tipográfico ainda é mais longo. Fica para outra carta.»9
Com excertos destas duas cartas de 1938, temos o retrato dos primeiros ilustradores de
A Selva: duas gerações – sendo a dominante a que transita do século XIX para o século
XX e tem Carlos Reis (1863-1940) como figura cimeira –, uma naturalista e outra ligada
ao segundo Modernismo (em que se insere também Roberto Nobre) que não traduzem
ou complementam a obra de Castro, criando cenas que não se identificam com o
Naturalismo – pois são paisagens imaginadas, criadas em atelier – , nem com o
Modernismo – uma vez que não conseguem criar um universo hipersinestésico, numa
palavra, baudelaireano, onde todas as cores, sons e perfumes, tal como as artes, se
correspondem.
As florestas pintadas pelos artistas portugueses são também destituídas de título. Um
nome que poderia dar às ilustrações um rosto, um perfil de leitura pictural do romance,
como acontece com as ilustrações de Portinari. E assim, temos umas florestas que não
têm lugar no mundo, são de uma neutralidade que não encontra correspondência nas
descrições que surgem no romance, tão cheias de vida. Para responder às questões que
fomos enunciando, dizemos que a edição ilustrada de 1939 não cria uma relação de
coerência relacional com o livro.
Entrando no domínio da pura conjectura, podemos dizer que, para o estudo desta
edição ilustrada, seria proveitosa a existência de um outro contrato com estes
ilustradores, formulado nestes termos: qual a ideia que os pintores portugueses têm de
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A Selva antes de lerem o livro de Castro e que transformação pictural conseguem operar
depois da sua leitura. É claro que aqui entramos num registo quase ficcional, impossível
de verificar com dados materiais. No entanto, permite-nos pensar se essas primeiras
ilustrações, antes da leitura do romance, seriam muito diferentes daquelas que
encontramos nesta edição...
A Selva, edição de 1939.
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Alberto de Sousa.
António Soares.
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Dórdio Gomes.
Carlos Reis.
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Jorge Barradas.
Manuel Lapa.
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Martins Barata.
Manuel Lima.
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187
A Selva, edição de 1955.
Boi no Guindaste.
Cultura, vol. 21 | 2005
188
O Seringueiro.
Os Brabos.
Cultura, vol. 21 | 2005
189
A Rede.
A Inspecção.
Cultura, vol. 21 | 2005
190
Os Retirantes.
A Clareira.
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191
A Onça.
O Índio Morto.
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192
O Cemitério.
Os Índios.
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193
O Incêndio.
NOTAS
2. Cf. «A Ilustração do Livro», Roberto Nobre In LISBOA, Irene (Dir.). Inquérito ao Livro em Portugal.
Lisboa: Seara Nova. 1ª Ed., 1946. PP. 74-80.
3. Cf. «A Exposição de Portinari» NOBRE, Roberto. In Ecos de O Primeiro de Janeiro, 18 de Maio de
1955.
4. Idem.
5. CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa: Ed. Guimarães, 39ª Edição, p. 88.
6. CHATEAUBRIAND, F.-R. Lettre Sur Le Paysage en Peinture. [1ª Ed., 1830] Ed. Ut.: Ed. Rumeur des
Ages, 1993.
7. In ALVES, Ricardo António. Op. cit., pp. 64-65.
8. A ilustração preferida por Roberto Nobre denota um envolvimento do pintor pela pintura,
como se a ilustração se transformasse em Floresta.
9. Idem, pp. 71-72.
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RESUMOS
O romance A Selva contou com quatro edições ilustradas: A de 1939, coordenada por Roberto
Nobre, a de 1949, realizada por Machado da Luz, a de 1955, realizada por Cândido Portinari e uma
última em 1974 realizada por Júlio Pomar. A primeira edição ilustrada correspondeu a um
projecto de encomenda diferente das edições seguintes, nomeadamente da que serve aqui de
termo de comparação, a de Portinari (1955). Roberto Nobre pretendia que oito ilustradores
traduzissem picturalmente A Selva a partir de uma geografia imaginária que o livro lhes desse a
ver. Sendo a Selva um território estranho para os pintores desta edição, fica deste projecto uma
tradução pela ilustração de paisagens sem identidade pictural – lugares brancos no conjunto das
edições ilustradas do romance de Ferreira de Castro.
The novel A Selva has had four illustrations: being the first coordinated by Roberto Nobre (1939),
the second by Machado da Luz (1974), the third by Cândido Portinari (1955) and the latest one by
Júlio Pomar (1974). The first illustrated edition versed a different project from the further ones
especially from the one which meant to be the comparison, the one by Portinari (1955). Roberto
Nobre wanted eight illustrators to translate pictorially based on an imaginary geography
pictured in the book. Although A Selva was an unknown ground for the painters of this same
edition, there is a remarkable translation/understanding managed through the illustration of
landscapes lacking pictorial identity – the very same vague places in the set of illustrated
editions in Ferreira de Castro's novel.
ÍNDICE
Palavras-chave: Nobre, Roberto (1903-1969), Castro, Ferreira de (1898-1974), ilustração, Arte em
Portugal no século XX, naturalismo, modernismo
Keywords: Nobre, Roberto (1903-1969), Castro, Ferreira de (1898-1974), illustration, Art on
Portugal at XX Century, naturalism, modernism
AUTOR
LILIANA DIAS CARVALHO
Colégio Integrado Monte Maior (Montemor, Loures)
Instituto de História da Arte – Núcleo de Estudos de Arte Contemporânea (UNL-FCSH)
Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses e Pós-Graduada em História
da Arte pela UNL-FCSH. Professora de Língua Portuguesa do ensino básico e secundário no
Colégio Integrado Monte Maior (Loures). A convite da Cinemateca coordena a edição das obras de
crítica cinematográfica de Roberto Nobre (Horizontes de Cinema, O Fundo, Singularidades do Cinema
Português e textos dispersos). Desde 2005, é colaboradora da revista Atlântida do Instituto
Açoriano de Cultura e da revista Castriana.
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Itinerários de Leituras
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Lisboa - Rio de Janeiro - FortalezaOs caminhos da coleção Biblioteca do Povo e das Escolas traçados porDavid Corazzi, Francisco Alves e Gualter Rodrigues
Lisbon - Rio de Janeiro - Fortaleza: the paths of the collection "Biblioteca do Povo
e das Escolas" on the hands of David Corazzi, Francisco Alves and Gualter
Rodrigues
Giselle Martins Venâncio
1 A história que vai ser contada aqui narra a trajetória de três homens. Eles nasceram na
mesma época mas viveram cada um em uma cidade distinta. Um morava em Fortaleza,
no Ceará, outro em Lisboa e o terceiro no Rio de Janeiro. O que os unia? Livros. Os três
tiveram suas vidas marcadas pela edição, impressão e comercialização de livros e
relacionadas, particularmente, pela publicação e comercialização de uma coleção de
livros: a Biblioteca do Povo e das Escolas. É dessa coleção e de como ela se associa à vida
desses três homens que esse texto trata. É uma história que liga Lisboa, Rio de Janeiro e
Fortaleza e que mostra que ainda há muito a se descobrir e percorrer nos caminhos dos
livros no século XIX.
Era uma vez um livreiro cearense: Gualter Rodriguesda Silva ...
2 Gualter Rodrigues da Silva chegou a Fortaleza, vindo de Quixeramobim onde nasceu,
provavelmente, em 1865, data que consta de sua matrícula como aluno do Liceu do
Ceará.
3 O Liceu, estabelecimento educacional fundado em 1845, tinha como objetivo educar os
rapazes cearenses principalmente os filhos da elite da Província. A criação do Liceu
estabeleceu os parâmetros iniciais da formação intelectual da elite local, possibilitando
a ampliação do ingresso e participação de seus membros no universo da política
provincial e mesmo imperial.1 É certo que no momento em que Gualter tornou-se aluno
do Liceu o número de alunos matriculados no estabelecimento decrescia visto que a
maior parte dos pais que podia pagar dava preferência às escolas privadas que vinham
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sendo criadas na cidade. A culpa pelo esvaziamento do estabelecimento público recaía
no sistema de ensino que tinha um caráter seriado e de duração considerada muito
longa: de cinco a seis anos. Além disso, nas novas escolas privadas, como o Atheneu
Cearense inaugurado em 1863, havia o regime de internato, o que facilitava o
atendimento aos alunos que vinham do interior da Província. Mas apesar do
esvaziamento em termos quantitativos, o Liceu permaneceu como referência inconteste
na formação das elites cearenses ao longo do século XIX. Lá, provavelmente, Gualter
começou a urdir uma rede de sociabilidade que lhe seria bastante útil durante sua vida
profissional e a construir sua auto-representação como livreiro-impressor-editor.2
4 No momento em que Gualter ainda se sentava nos bancos escolares do Liceu, a cidade
de Fortaleza possuía pouquíssimos estabelecimentos comerciais que pudessem ser
reconhecidos como livrarias. Celeste Cordeiro3 afirma que a primeira livraria da cidade
foi criada pelo comerciante português Manuel Antonio da Rocha Junior, em 1849, mas
essa data e esse estabelecimento não são reconhecidos por todos os autores como
pioneiros do comércio livreiro. Há quem afirme que esse comércio foi fundado por
Antonio Ildefonso de Araújo que, em 1856, estabeleceu-se num velho sobrado, na Praça
do Ferreira, ao lado da Intendência Municipal. A livraria funcionava
"(...) num prédio de três portas de frente, no qual ele levantou prateleiras e umpequeno balcão e distribuiu oadeiras no recinto, num de cujos lados estava umamesa, sobre a qual espalhava papel, caneta e tinta, blocos para telegramas ecatálogos de livrarias brasileiras e de outros países, transformando assim oambiente num centro de interesse dos intelectuais da terra. Folheando os catálogos,estes iam encomendando, por seu intermédio, os livros desejados".4
5 Embora possuíssem catálogos de diversas livrarias e possibilitassem aos leitores locais a
compra de livros, esses estabelecimentos não se destinavam exclusivamente à venda de
livros. Eram, ao contrário, locais de comércio de produtos variados. Assim também
foram as livrarias inauguradas ao longo dos anos 80 dos oitocentos, quando houve uma
maior expansão do comércio livreiro em Fortaleza. Entre essas estavam as casas
comerciais daqueles que viriam a ser reconhecidos como os dois maiores livreiros da
cidade no século XIX: Joaquim José de Oliveira e Gualter Rodrigues Silva, este último um
dos principais personagens da história aqui narrada.
6 Suas livrarias, bem como as demais existentes nesse período em Fortaleza, faziam
publicar nos principais jornais anúncios nos quais proclamavam os produtos vendidos.
Através de tais anúncios, pode-se notar que esses estabelecimentos vendiam periódicos
como a Gazeta Jurídica, a Revista Jurídica, a Correspondência de Portugal, O Cultivador, entre
outros. Num reclame no jornal O Cearense, Joaquim José de Oliveira chegava a afirmar
que poderia encarregar-se de quaisquer jornais de outra província, assim como da
Europa, mediante, claro, "módica comissão".
7 Além dos jornais e revistas, eles anunciavam também outros produtos como as "famosas
tintas Monteiro", para as quais a livraria Oliveira era o único depósito da província.
"Folhinhas" contendo abordagens sobre os mais variados assuntos, religiosos,
anedóticos, comerciais, de guerras e outros tantos. E ainda partituras musicais,5 álbuns
para retratos e materiais de escritórios.6
8 Além dos anúncios de jornais, a variedade de mercadorias presente nos
estabelecimentos comerciais desses livreiros pode ser investigada por meio de seus
inventários que se encontram depositados no Arquivo Público do Estado do Ceará e cuja
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leitura permite que se tenha claramente um dimensionamento da composição e acervo
de uma livraria em fins do século XIX.
9 Os inventários de Alexandrina de Oliveira – esposa de Joaquim José de Oliveira – e
Gualter Silva são datados, respectivamente, de 1870 e 1892. Nesses documentos há, além
de livros, uma relação de materiais para escritórios e escolas, evidenciando o ecletismo
e amplo âmbito de atuação dessas casas comerciais. Na lista de produtos postos a venda,
estão presentes mercadorias como "Água Balsâmica para dentes de montonac", "Água de
toilette phenicado do Dr. Lamaire", "Ácido carbosótico", "Pílulas de Santa Maria", "Pomada
Rondesicus", "Sabão de Alcatrão", "Pomada Mágica" e "Pós Dentifrícios".
10 Muitas gravuras também compunham as prateleiras das livrarias. Havia retratos de
eminentes religiosos e políticos, e quadros importantes, representando, algumas vezes,
acontecimentos históricos.
11 O fato dos livreiros da cidade negociarem uma extensa variedade de produtos parece
seguir uma tradição que já vinha de longa data. Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva,
desde o período colonial o comércio de livros, no Brasil, "(...) extravasava o grupo restrito
dos livreiros (organizados ou não em corporações) para se concentrar nas mãos daqueles que
negociavam com vários tipos de mercadorias".7 Na opinião dessa mesma autora, a chegada
da corte ao Rio de Janeiro marcou um momento de transformação, significando uma
maior especialização do comércio livreiro nessa cidade. Mas este não parece ter sido o
destino dos comerciantes das Províncias. Ao menos na Província do Ceará, bastante
distante da corte, os comerciantes de livros continuaram dedicando-se, ao longo de
todo o século XIX, ao comércio de mercadorias variadas.
12 Se por um lado, o comércio de livros na Província do Ceará e, particularmente, em
Fortaleza, era pouco especializado, por outro, essa posição de vendedores e
importadores de produtos diversos propiciava aos livreiros da cidade contato com
outros grandes comerciantes, ao mesmo tempo em que os colocava em íntima relação
com professores, profissionais liberais e intelectuais. A visão comercial, aliada aos laços
de amizade urdidos com "pessoas ilustres" da época, tornava bem sucedidos os negócios
dos livreiros-impressores e editores.
13 Gualter Rodrigues Silva construiu assim, em torno de si, uma rede de amigos que o
levou a ocupar um lugar de destaque na sociedade fortalezense. Na festa de
inauguração de sua chácara, em 1888, é possível perceber a rede de sociabilidade tecida
por esse livreiro. A foto, tirada no momento da festa, revela a relação estabelecida com
intelectuais, políticos e comerciantes locais do período. Verifica-se, na imagem, a
presença do presidente da província, Caio Prado, além de literatos como Antônio Sales,
Antônio Martins, Antônio Bezerra, Oliveira Paiva, João Lopes e o maestro Alberto
Nepomuceno, denunciando que livreiros-impressores buscavam, através de laços de
amizade, construir "boas relações para ter privilégios e permissões".8
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14 Assim, os livreiros da cidade estabeleciam uma prática que os colocava entre os mais
importantes representantes do comércio local, bem como elaborava uma auto-
representação que os inseria como membros participantes dos grupos intelectuais da
época. A construção dessa representação dos livreiros como intelectuais e homens de
letras foi reforçada, no caso do Gualter, quando, por ocasião de sua morte, sua família
optou por ornamentar seu túmulo com livros. Este foi considerado por um estudioso do
tema, "(...) o mais significativo jazigo do [cemitério] São João Batista, com as características de
uma cruz fincada em um monte de pedras, adornada por livros (…)".9
15 A construção dessa representação se dava também e, principalmente, por meio da ação
empreendida pelos próprios livreiros, no sentido de sugerir aos leitores o que se podia
considerar a "boa leitura", inserido-se, assim, no esforço "civilizador" e educacional
que se processava na Província do Ceará, na segunda metade do século XIX. Pelos
anúncios de jornais, pode-se perceber o desejo desses agentes de guiar "seus" leitores
de forma a fazê-los perceber que sua ação era imprescindível, uma vez que eram eles os
mais aptos a indicar leituras que seriam fundamentais para a formação de intelectuais
eruditos. Os anunciantes procuravam criar vínculos e uma proximidade com os leitores,
objetivando estruturar um sentimento de reciprocidade em que o cerne seria a
lealdade. Havia uma tentativa de construção de uma maior intimidade que visava
consolidar a cumplicidade presente, por exemplo, nas preocupações com a idoneidade
de quem escrevia os livros destinados tanto aos leitores como a seus filhos.
16 Os livreiros viam a necessidade de, para determinadas obras, mencionar a legitimidade
ou oficialidade que atestava a qualidade e responsabilidade dos textos apresentados,
corroborando, então, com um perfil honesto, responsável e leal dos comerciantes de
livros. Em um anúncio, no dia 25 de março de 1874, o jornal O Cearense propagava o livro
de lições práticas de ortografia escrito pelo professor J. Matta Araújo. No texto,
chamava-se a atenção para o fato de a obra ter sido aprovada pelos Conselhos de
Instrução Pública da Corte, de Pernambuco e do Ceará, e que ela seria adotada pelo
governo provincial para as escolas de ensino primário. O anúncio exibia um trecho
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destacado no qual dizia: "... Há muito sentião as aulas falta deste livrinho". Mais uma vez é
perceptível a tentativa desses comerciantes de se posicionarem como indivíduos
capazes de orientar as leituras de seus fregueses assim como a íntima relação que
possuía grande parte dos títulos, em circulação na cidade, com as leituras exigidas pelos
programas escolares, daí o fato dos livreiros, constantemente, fazerem anunciar a
qualidade moral e educacional de seus produtos.
17 Assim como os demais livreiros, Gualter Silva também fazia questão de possuir, em seu
acervo, livros educativos e instrutivos. No rol de títulos que compõe o seu inventário,
podemos encontrar diversos exemplos de livros escolares ou destinados, de forma mais
ampla, à instrução popular. Entre esses, destacam-se os livros de uma colecção
portuguesa que se auto-definia como "a propaganda de instrução para portugueses e
brasileiros". Essa coleção, intitulada Biblioteca do Povo e das Escolas, começou a ser
publicada no ano de 1881 por uma editora portuguesa chamada David Corazzi, e
caracterizava-se por ser composta exclusivamente de livros de divulgação científica.
... e uma coleção de livros...
18 No inventário do livreiro Gualter, que data de 1892, são listados 38 títulos da coleção
Biblioteca do Povo e das Escolas, num total de 1415 exemplares presentes na livraria
cearense. Os livros postos à venda seguiam uma tendência do mercado editorial
europeu da época que buscava expandir o número de leitores através da criação de
coleções populares. Instrumentos de vulgarização científica, esses livros inseriam-se no
grande fenômeno editorial europeu, do século XIX: coleções10 voltadas principalmente
para um público mais abrangente e menos erudito.
19 A criação de coleções na Europa, nesse momento, inclui-se no processo de afirmação da
figura moderna do grande editor que se distinguia dos livreiros e impressores. As
coleções criadas pelas casas editoriais européias podem ser consideradas o principal
instrumento de afirmação do poder dos editores marcando uma verdadeira ruptura no
processo de publicação de livros desenvolvido até então. A criação de coleções
populares foi, justamente, o que permitiu aos editores o estabelecimento de um
comando editorial através do qual eles passaram a estabelecer as normas do mercado.
Na organização das coleções, os editores mudaram sua ação, deixando de comprar
manuscritos propostos pelos autores, e passando, por meio de uma produção
planificada, metódica e racional, a solicitar e fazer com que os autores produzissem
textos que atendessem aos seus interesses. Por esse motivo, Jean Yves Mollier considera
que a criação das coleções foi uma das chaves do sucesso da autonomização dos
editores.11
20 Entre as coleções portáteis e baratas criadas pelos editores europeus do século XIX,
destacava-se um tipo que se tornou bastante comum: as coleções de divulgação
científica. Essas surgiram com o objetivo de promover a vulgarização dos
conhecimentos científicos para o maior número possível de pessoas. Acreditava-se que
os livros dessas coleções deveriam ser concisos e pouco volumosos mas teriam que
conter o essencial do que havia sido produzido pelos conhecimentos humanos e ser,
pelo seu preço, acessível a todos.
21 Para que a produção desses livros baratos fosse economicamente interessante para os
editores, ela deveria basear-se em grandes tiragens e todos os aspectos dos livros
teriam que ser "desprovidos de pretensões".12 As coleções deveriam ser compostas por
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livros não "(...) apenas de bom mercado, mas o melhor mercado possível (..) onde todos os
detalhes manifestassem economia".13 Esse aspecto – do baixo custo – orientava escolhas
estéticas e editoriais como tipo de papel, uniformidade da capa, similaridade entre os
volumes, tiragem e periodicidade da publicação. Tal aspecto, finalmente, determinava o
caráter popular das coleções que visavam conquistar um público amplo.
22 A Biblioteca do Povo e das Escolas obedecia ao modelo de coleção de vulgarização científica
citado acima. Seus volumes – ao menos nos primeiros anos14 – eram publicados, com
regularidade quinzenal, nos dias 10 e 25 de cada mês,15 em idêntico formato 15,5X 10cm
e possuíam rigorosamente 64 páginas. As capas eram perfeitamente iguais e os volumes
eram impressos em papel barato. Para completar o aspecto econômico dos livros eles
portavam na capa o preço de cada exemplar: 50 réis.16
23 Para compensar um preço unitário tão baixo, a Biblioteca do Povo e das Escolas foi
publicada com uma tiragem inicial de seis mil exemplares, passando, a partir do
terceiro volume, para 12 mil exemplares, e, saltando, no volume 10, para 15 mil
exemplares.17
24 Seguindo também uma tendência do mercado editorial da época, a coleção era
intitulada Biblioteca. Isabelle Olivero aponta que, apesar da utilização do termo biblioteca
para definir uma coleção ser bastante antiga na Europa, é, somente, no século XIX que
ele adquire o sentido de coleção como a compreendemos hoje, consagrando o papel do
editor e sua estratégia editorial. Desde o século XVII até os primeiros anos do século XX,
o termo biblioteca designava uma coleção composta da reedição de textos já publicados.
É no Dictionnaire Universel, no século XIX, que o termo ganha a definição de uma
coleção de obras publicadas por uma casa editorial possuindo características comuns.
Passa-se, segundo a citada autora, "da idéia de uma compilação de diversos autores para
aquela de se seriar obras reagrupadas para um leitor particular, um conjunto adequado
escolhido na totalidade dos livros disponíveis".18
25 A Biblioteca do Povo e das Escolas tinha um público leitor claramente definido. Era uma
coleção popular. Era essa estratégia editorial, previamente determinada, que
conformava todos os aspectos da coleção: da escolha dos textos e dos autores à
organização da distribuição e venda.19
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26 Essa coleção pode ser considerada a primeira experiência portuguesa de livro "popular
de massas". Obedecia, como afirmou-se anteriormente, a uma tendência do mercado
editorial, mas também à ampliação dos meios de divulgação científica e tecnológica que
se desenvolvia em Portugal no século XIX. Segundo Ana Maria Cardoso Matos, a partir
do final dos anos 30 dos oitocentos, assistiu-se, em Portugal, ao
"(...) surgimento de sociedades cujo principal objetivo era a divulgação deconhecimentos científicos e técnicos, como foi o caso da Sociedade Propagadora deConhecimentos Úteis, instituída em 1837, e da Sociedade Promotora dos InteressesMateriais da Nação, estabelecida em 1841".20
27 Essas sociedades criaram periódicos que divulgavam os conhecimentos científicos que,
na opinião dos membros da associação, poderiam ser úteis a um grupo ampliado da
população. Assim, surgiu, por exemplo, a revista O Panorama através da qual se
pretendia fazer "descer a variada ciência até os últimos degraus da escala social".21
28 Ao longo dos anos 40, outras publicações com os mesmos objetivos foram surgindo,
como por exemplo, os Almanaques Populares, publicados por Felippe Folque, Fradesso
da Silveira e Francisco Ângelo de Almeida Pereira e Sousa entre os anos de 1848 e 1851.
O Almanaque Popular pretendia ser o "livro de todos para todos", colocando ao alcance
do maior número de pessoas "conhecimentos úteis e alguma informação científica
redigida numa linguagem acessível".22 Esses almanaques eram vendidos por 160 réis e
chegaram a exibir uma tiragem de 6.000 exemplares.
29 Formava-se assim, através dessas publicações, o caminho que viria a ser seguido pela
Biblioteca do Povo e das Escolas. Essa coleção, surgida na década de 80, ligava-se,
provavelmente a outro acontecimento importante: a publicação do decreto de 02 de
agosto de 1870 que determinava a criação de bibliotecas populares em cada capital de
concelho. Essas bibliotecas que, na opinião de Ana Cardoso, "(...) deviam ser o
complemento das escolas populares, abrangiam duas classes de obras, as que se
ocupavam dos conhecimentos gerais e as que se ocupavam de cada uma das profissões,
agrícola, industrial, comercial e artística, inventos, aplicações e modelos".23 Parece que
estava aí apresentado o formato que passou a orientar os livretos da Biblioteca do Povo
e das Escolas, coleção que vai ser publicada durante 32 anos e que vai circular, com
grandes tiragens, tanto em Portugal quanto no Brasil.
30 Seus títulos abrangeram, ao mesmo tempo, um público alargado e estratos específicos
de profissionais. Títulos como Química, Física, Aritmética, Invertebrados, Calor,
Zoologia, Anatomia, o Mar, Mineralogia, Receitas úteis... destinavam-se, possivelmente,
a um público escolar ou a um público mais amplo. Mas havia também outros como
Manual do Carpinteiro e Manual do Maquinista, destinados a profissionais e ofícios
específicos.
31 Nos primeiros dez anos de publicação — 1881/1891 – a direção da coleção coube a
Xavier da Cunha, um médico que, antes de se formar, havia freqüentado a Escola
Politécnica e que tinha desenvolvido a atividade literária paralelamente à atividade
médica, desde muito cedo. Escreveu folhetins e versos no Archivo Pittoresco, no Diário
de Notícias e na Gazeta de Portugal, bem como colaborou no Dicionário Popular e fez
traduções da obra de Julio Verne.24 A arquitetura da coleção organizada pelo diretor
objetivava, nas suas próprias palavras,
"(…) ir pouco a pouco preparando o espirito do leitor a passar dos estudos maissimples para os complexos e de simultaneamente lhe ir inoculando conhecimentosvários nos diversos ramos do saber humano, para que reciprocamente auxiliados efecundados [pudessem] (...) esses conhecimentos tornar-se mais proveitosos, – a
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"Biblioteca do Povo e das Escolas", (..) logra o júbilo de tornar mais suave e maisamena a aquisição de semelhantes noções pela variedade com que as vaiministrando".25
32 Assim, Xavier da Cunha constituiu, inicialmente, um programa de publicação que
abarcaria "sete grandes ramos de capital importância": educação corporal, zoologia, física,
história, literatura, jurisprudência e lingüística. No entanto, à medida que os títulos iam
sendo editados, tornava-se cada vez mais difícil enquadrá-los neste esquema original.
Esse esboço que, na opinião de Manuela Domingos, era "coerente com o horizonte mental
da época",26 foi sendo pouco a pouco substituído por temáticas mais abrangentes que
pudessem abarcar todos os conhecimentos científicos e profissionais que a coleção se
propunha a popularizar.
33 Quanto aos autores dos livros, segundo Jorge Nascimento, estes foram em número de
91, englobando profissionais de ofícios diversos:
34 "dois eram engenheiros agrônomos, dois tipógrafos, cinco médicos, 22 oficiais militares do
exército e da marinha, um comerciário, três estudantes de direito, um farmacêutico, um
estudante de letras, 18 professores, um telegrafista, um ator, quatro funcionários públicos, três
escritores, um naturalista, um advogado, três estudantes de artes industriais e comerciais, um
poeta, um botânico, dois sacerdotes, um cenógrafo, um estudante de agronomia, dois jornalistas
e um estudante de medicina".27
35 A diversidade de autores, temas e títulos, aliada a grandes tiragens de cada título,
demonstra, claramente, o que era um dos principais objetivos das coleções européias de
divulgação científica: o desejo de difusão de todos os saberes e de todos os
conhecimentos humanos para o maior número possível de leitores.28
36 Com o objetivo ainda de atrair novos leitores e de instruir um número cada vez maior
de indivíduos, a Biblioteca do Povo e das Escolas tinha outra grande preocupação: tornar os
textos mais compreensíveis por meio de ilustrações e imagens. Para que a transmissão
do conhecimento fosse mais facilmente absorvida pela população leiga ou com pouco
conhecimento científico, as descrições técnico-científicas eram acompanhadas de
imagens que ilustravam os processos e aparelhos descritos, tornando os livros "além de
úteis, apreciáveis".
37 Por todas as suas características, a Biblioteca do Povo e das Escolas, demonstra uma
preocupação dominante com a instrução popular. Inicialmente, uma instrução para
todos, posteriormente, uma instrução profissionalizante. Basicamente, é o ideal de
instruir, formar e educar um número abrangente de pessoas – o objetivo que está na
raiz do projeto da coleção –, o que explica o fato de vários volumes terem sido adotados
pelo governo português em diversos graus de ensino.29
38 A causa da instrução popular mobilizava, em meados do século XIX, em Portugal, não
apenas os membros do governo. Segundo Manuela Domingos,
"(...) a meados do século, ações concretas e marcantes para os anos seguintes foramlevadas a cabo por um grupo de personalidades empenhadas em modernizar asociedade portuguesa, a partir de dentro, para construir uma civilização burguesa,erguer um povo de cidadãos".30
39 Intelectuais, livreiros e editores participaram do esforço de construir uma nova
sociedade por meio da educação de seus cidadãos. Muitos livros e manuais foram
escritos, editados e vendidos com o objetivo precípuo de ampliar a instrução popular.
Entre os editores que se engajaram nesse processo, um nome se destaca: David Corazzi.
Considerado "benemérito e patriota", justamente pelo fato de ter-se dedicado à causa
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da instrução popular.31 Foi ele o editor responsável pela Biblioteca do Povo e das Escolas,
coleção que, pelos seus méritos na divulgação científica, chegou a ser premiada com
Medalha de Ouro, na Exposição do Rio de Janeiro de 1881, consolidando a participação
de sua editora tanto no mercado português quanto brasileiro da época.
... e seu editor português: David Corazzi
40 David Corazzi ficou órfão de pai aos quinze anos e com poucos recursos. Tornou-se,
mais tarde, funcionário público e, com vistas a obter um pequeno capital com o qual
pudesse dar início a um negócio próprio, lançou-se à venda dos direitos de um livro de
seu pai, o médico cirurgião David Antonio Caetano Corazzi.
41 Com o capital arrecadado, David Corazzi criou a Empresa Horas Românticas dando início à
publicação de romances em fascículos. O primeiro romance publicado por ele foi Les
chevaliers de la nuit de Ponson du Terrail. Algum tempo depois, David Corazzi publicaria
o texto que mudaria a sua vida. Ao tomar conhecimento da publicação do livro de
Fernandes y Gonzáles, El Rei Maldito, em Madrid, Corazzi decidiu editá-lo, em Portugal,
num formato novo que se tornaria revolucionário: em fascículos de 8 páginas e
gravuras que seriam vendidos a 10 réis. Na opinião de Manuela Domingos, "a viragem da
sua vida foi completa: em menos de um mês o editor ganhava imenso dinheiro, ampliava
"instalações" (...) outros romances se seguiram, com idêntico esquema de publicação. Assim
nasceu a Casa Editora David Corazzi".32
42 A editora de David Corrazi não se dedicou apenas à publicação de romances. Novos
projetos também voltados para um público mais amplo começaram a ser desenvolvidos
pela empresa, entre eles a coleção Biblioteca do Povo e das Escolas. Nas palavras do editor,
essa coleção deveria formar uma "enciclopédia de conhecimentos humanos, uma biblioteca
ao alcance de todas as bolsas e de todas as inteligências, um repositório onde os indoutos
[pudessem] (...) aprender e os doutos se não se [enfastiassem] (...) de recordar".33
43 A coleção que, no seu primeiro volume – História de Portugal –, ainda registrava na capa o
nome da empresa – Horas Românticas –, tornou-se um grande sucesso ganhando grande
mercado também no Brasil. Corazzi criou uma filial na cidade do Rio de Janeiro, de
onde, possivelmente, distribuía para as demais províncias do Império, como o Ceará.
44 Ao longo dos anos 80, as empresas David Corazzi prosperaram bastante criando urna
variada gama de serviços tais como oficina de composição, impressão e estereotipia,
oficina de alçado, dobragem e brochura, oficina de encadernação e depósito para as
suas publicações.34
45 No final dos anos 80, por motivo de doença, David Corazzi foi obrigado a abandonar os
trabalhos nas suas empresas, tendo sido substituído em suas funções por Justiniano
Guedes. A partir da saída de Corazzi, a empresa responsável pela publicação da coleção
passa a ser a Companhia Nacional Editora que, mais tarde e ainda com Justiniano
Guedes à frente, passa a ter a denominação de A Editora. O ritmo de publicação dos
volumes da Biblioteca do Povo e das Escolas diminui sensivelmente. A periodicidade
quinzenal apresentada nos primeiros anos já não consegue mais ser cumprida. Nos
primeiros anos do século XX, a publicação dos exemplares da coleção tornou-se ainda
mais esparsa, sendo editados apenas 8 volumes entre os anos de 1906 e 1913, o que leva
Manuela Domingos a afirmar que "(...) a liquidação do projeto ambicioso e da profícua
realidade de três décadas atrás estava consumada".35
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46 Foi exatamente neste período que entrou em cena o terceiro personagem dessa
história: Francisco Alves. Foi este livreiro-editor português, estabelecido no Brasil, que,
em 1913, comprou A Editora Limitada, empresa na qual havia se transformado a antiga
editora fundada por David Corazzi e deu continuidade à publicação dos volumes da
Biblioteca do Povo e das Escolas.
E um português que se torna livreiro e editor no Brasil:Francisco Alves
47 No momento em que Francisco Alves entra nessa história, suas empresas no Rio de
Janeiro prosperavam de forma tão intensa que, invertendo o percurso trilhado por
outros editores, ele havia passado a comprar editoras européias. Em 1913, Alves já tinha
comprado parte da francesa Aillaud e a portuguesa Bertrand, tornando-se, então,
proprietário d’A Editora.
48 Francisco Alves havia, desde as últimas décadas do século XIX, cumprido uma trajetória
de sucesso no espaço livreiro e editorial brasileiro. Nascido em Portugal, Alves tornou-
se cidadão brasileiro, contribuindo de forma definitiva para a criação de um mercado
editorial no Brasil. Ao narrar sua trajetória profissional, Aníbal Bragança destaca o fato
de que, ao contrário de outros editores europeus que se estabeleceram no Rio de
Janeiro, no século XIX, Francisco Alves não criou no Brasil uma empresa "satélite"
representante de interesses estrangeiros. Segundo o citado autor,
"A história de Francisco Alves de Oliveira é outra. Nascido em Portugal, chegou aoBrasil com quinze anos, trabalhou em outro ramo de comércio antes de se iniciar nosetor livreiro como alfarrabista. Formou-se livreiro no Brasil. Após regressar à terranatal, foi chamado de volta por seu tio Nicolau Antonio Alves, dono da LivrariaClássica, fundada na Corte em 1854. Veio, então, definitivamente instalar-se no Riode Janeiro. Logo requereu cidadania brasileira. Após poucos anos, em 1883, assumiua direção da empresa, já conhecida como Livraria Alves. Em 13 de setembro de 1897,com a retirada do tio, a livraria passou a denominar-se simplesmente "FranciscoAlves"".36
49 A actuação de Francisco Alves no mercado livreiro foi marcada por sua ação como
editor literário, destacando-se, entre os autores publicados por ele: Raul Pompéia,
Olavo Bilac, Euclides da Cunha e outros. Mas foram os livros escolares que marcaram
definitivamente o lugar desse editor no mundo do livro. Aníbal Bragança afirma que
"Francisco Alves lançou as bases modernas da edição escolar no Brasil. Fez fortuna e chegou a ser
reconhecido como o "Rei do Livro" (...)".37 Talvez tenha sido seu empenho pelas publicações
voltadas para a instrução popular que o tenha feito interessar-se pela A Editora e sua
Biblioteca do Povo e das Escolas. Não foi apenas essa coleção portuguesa com projeto de
educação popular que Alves adquiriu. Ele comprou também Biblioteca de Instrução
Profissional, coleção que havia sido criada na esteira do sucesso da Biblioteca do Povo e das
Escolas.
50 Também impressa em A Editora, a Biblioteca de Instrução Profissional foi criada, em
1904, por Thomaz Bordallo Pinheiro com um grupo de professores do ensino industrial
e técnico e, ainda, profissionais de diversos setores. Inicialmente a coleção foi publicada
também em fascículos passando, mais tarde, a ser editada em volumes completos.
Segundo Manuela Domingos,
"(...) a coleção teve o mérito de fornecer textos para as escolas industriais ecomerciais, exército, marinha, etc., continuando a ação pioneira da "BPE" nesses
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domínios, adaptando-se às exigências da formação profissional de quadros técnicosmédios que o país requeria. Não concorrente com a "BPE", mas herdeira atualizadado seu espírito. Prova disso, o fato de finalmente, também ter chegado a serdistribuída e editada por Aillaud, Alves e Ca".38
51 As coleções de divulgação científica e instrução popular eram, portanto, de grande
interesse de Francisco Alves, editor que se consagrou, como se afirmou anteriormente,
por meio da produção e comercialização de livros escolares.
52 Com a compra da Biblioteca do Povo e das Escolas por Alves, dois novos fascículos desta
coleção foram editados e comercializados no Brasil. Podemos supor que Alves manteve
também, e, quem sabe, veio até a ampliar, os correspondentes que eram utilizados pela
editora portuguesa para distribuir os volumes da coleção. Dentre esse grupo de
correspondentes, muito provavelmente, faziam parte os herdeiros do livreiro cearense
Gualter Rodrigues, com quem começamos a contar esta história.
Voltando ao início da história
53 Quando Gualter Rodrigues morreu em 1892, a coleção Biblioteca do Povo e das Escolas
contava com 197 títulos já publicados. Sua livraria possuía 38 desses títulos como
podemos observar no quadro abaixo:
Número de
exemplaresTítulo Autor
152 Química Orgânica José Maria Greenfield de Mello
100 Aritmética José Maria Greenfield de Mello
86 Topografia Carlos Adolfo Marques Leitão
81 Geometria1
74 Eletricidade Guilherme Luiz dos Santos
68 Calor Julio Leitão
48 Invertebrados Vitor Ribeiro
47 Zoologia Francisco Guilherme de Souza
45 Acústica João Feliciano Marques Pereira
45 Geologia João Maria Jalles
45 Pedagogia Henrique Freire
45Introdução às Ciências Físicas e
NaturaisJoão Cesário de Lacerda
43 Desenho Linear Carlos Adolfo Leitão
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43 Mineralogia João Maria Jalles
42 Astronomia2 José de Mello
40 O Mar Vicente de Moura Coutinho d’Almeida Eça
39 Anatomia João Cesário de Lacerda
38 Hidrostática Julio Leitão
38 Manual do Carpinteiro Francisco Adolfo Celestino Soares
36 Manual do Maquinista3 Carlos Bandeira Mello
30 Física José Maria Greenfield de Mello
20 Manual do Ferrador D. Antonio José de Mello
19 Natal4 Olympio de Freitas
18 Manual do Fabricante5 J. M. Marques Pereira
18 Moral Augusto Baratados Santos Martins
18 Música6 José Timóteo da Silva Bastos
17 Tipografia7
16 Gravidade João Maria Jalles
15 Vidro João Feliciano Marques Pereira
15 Máquinas de Vapor Manuel Rodrigues de Oliveira
14 Fisiologia Humana João Cesário de Lacerda
14 Trigonometria João Maria Jalles
12 Mecânica João Maria Jalles
11 Esgrima Francisco Adolfo Celestino Soares
09 Celebridades Femininas8 Xavier da Cunha
07 Botânica Francisco Guilherme de Souza
04 Código Português9 João Cesário de Lacerda
03 Receitas ÚteisJoão Bastos Pereira da Costa e Manuel
Diogo de Valadares
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54 Os dois títulos com maior número de exemplares presentes na livraria cearense eram
Química Orgânica e Aritmética, ambos de autoria de José Maria Greenfield de Mello,
militar de carreira e grande colaborador da coleção.
55 O indivíduo com maior número de títulos postos à venda na livraria cearense era João
Maria Jalles, também militar de carreira, que escreveu, entre outos volumes, Geologia,
Mineralogia, Gravidade, Trigonometria e Mecânica. Em segundo lugar, no número de títulos
postos à venda na livraria cearense, aparecia José Cesário de Lacerda que escreveu os
volumes intitulados Introdução às Ciências Físicas e Naturais, Anatomia, Fisiologia Humana e
Código Civil Portuguez.
56 Esses três autores foram grandes colaboradores da coleção. Dois deles, João Maria Jalles
e João Cesário de Lacerda, juntamente com o diretor da coleção – Xavier da Cunha – e
com Julio Arthur Lopes Cardoso foram responsáveis por 38 % do total de obras editadas
pela coleção Biblioteca do Povo e das Escolas.39
57 Entre os títulos postos à venda, a maioria referia-se a temas relacionados com o ensino
secundário, como Aritmética, Geometria, Invertebrados, Eletricidade, Calor e Física, outros
ligavam-se a ofícios mais específicos tais como Manual do Maquinista, do ferrador, do
fabricante de verniz e do carpinteiro, outros ainda tratavam de assuntos menos associados
a questões escolares ou de formação profissional tais como Natal, Celebridades Femininas
e Receitas Úteis.
58 Embora tratassem de assuntos diversos – muitos dos quais não diretamente
relacionados à questão da instrução pública –, a presença de tais exemplares no
estabelecimento comercial cearense denuncia um crescimento, no mercado livreiro,
dos títulos destinados à leitura popular. Apesar do Ceará ser, na segunda metade do
século XIX, uma província profundamente iletrada, a presença de uma quantidade
significativa de livros d'A Biblioteca do Povo e das Escolas pode nos sugerir uma maior
preocupação com a ampliação dos processos educativos e com uma crescente
divulgação dos conhecimentos científicos e profissionais destinados a um público mais
amplo.
59 Assim é que, por meio dos caminhos trilhados pela coleção Biblioteca do Povo e das Escolas
– desde de sua concepção e edição em Lisboa, pela empresa de David Corazzi, anos mais
tarde adquirida por Francisco Alves, até a sua comercialização por Gualter Rodrigues
em locais distantes e pouco letrados como Fortaleza – podemos conhecer aspectos da
história dos livros, desvendando, pelo menos em parte, a dinâmica cultural que se
estabelecia entre a Europa e as diversas regiões do Brasil no século XIX.
BIBLIOGRAFIA
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Brasil". In: Márcia Abreu (org.). Leitura, História e História da leitura. Campinas: Mercado de Letras,
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GIRÃO, Raimundo e SOUSA, Maria da Conceição. Dicionário da Literatura Cearense. Fortaleza:
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NOTAS
1. Almir Leal de Oliveira. "Universo letrado em Fortaleza na década de 1870". In: Simone de Souza
e Frederico de Castro Neves. Intelectuais. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002, p. 18-19.
2. Anibal Bragança estabelece uma tipologia dos agentes do mercado editorial brasileiro. Ele
considera que há três tipos distintos de editores. O impressor-editor, o livreiro-editor e o editor
stricto sensu. Mas, este mesmo autor chama a atenção para o fato de que "a realidade histórica
apresenta múltiplas combinações" e que "devemos atentar para o eixo central" de atividade do
indivíduo em questão. No caso de Gualter Rodrigues da Silva, considerou-se que este era um
livreiro-impressor-editor pois apesar de ser o oficio de livreiro sua principal atividade, ele
também desempenhou, de forma simultânea, os ofícios de impressor e editor. Ver a respeito da
tipologia citada, Aníbal Bragança. "Uma introdução à história editorial brasileira". Cultura, 14,
2002, pp. 57-83.
3. Celeste Cordeiro. "O Ceará na segunda metade do século XIX". In: Simone de Souza. A nova
história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, p. 149.
4. GIRÃO, Raimundo e SOUSA, Maria da Conceição. Dicionário da Literatura Cearense. Fortaleza:
Imprensa Oficial, 1987.
5. Em 4 de abril de 1872, no jornal Pedro II, músicas novas eram mencionadas como recém
chegadas no último vapor. Joaquim José de Oliveira fazia questão de detalhar a mercadoria: "(...)
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A Lisbonense, Polka por Pinheiro – Minha Estrella, valsa por Rente, Hymno Nacional, por F. Manoel da
Silva."
6. Em 28 de maio de 1872, no jornal Pedro II, o mesmo livreiro anunciava: "bonitos álbuns para
retratos com lindas músicas modernas: chegarão à livraria de J.J. d'Oliveira & C.ª assim como muitos objetos
d'escritório, entre elles lindas pastas, facas de marfim, lacres de diversas cores, tintas de várias qualidades,
papel de phantasia, dito de cores, dito para música, área preta e de cores, tintas de diversas cores, dita
americana para imprimir, etc, etc."
7. Maria Beatriz Nizza da Silva. "História da leitura luso-brasileira: balanços e perspectivas". In:
Márcia Abreu (org.). Leitura, História e História da Leitura. São Paulo: Fapesp, Campinas: Mercado
das Letras, 1999, p. 153.
8. Anibal Bragança chama a atenção para o fato de que as relações de amizade entre editores e
pessoas ilustres é uma das características fundamentais do mercado editorial brasileiro. Ver
Aníbal Bragança. "Uma introdução à história editorial brasileira". Cultura – Revista de História e
Teorias das Idéias. II série, vol XIV / 2002.
9. Henrique Sérgio de Araújo Batista. Assim na morte como na vida. Arte e sociedade no cemitério
São João Batista (1866-1915). Museu do Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto, 2002, p. 87.
10. A respeito da publicação de coleções populares na Europa ao longo do século XIX, ver Isabelle
Olivero. L'invention de la collection. Paris: IMEC/Maison des sciences de l'Homme, 1999.
11. Jean Yves Mollier. "L'évolution du système editorial français depuis l'Enciclopedie de
Diderot". In: Jean Yves Mollier (dir.). Où va le livre?. Paris: La Dispute, 2000, p. 22.
12. Isabelle Olivero. op.cit. p. 29.
13. Idem.
14. Manuela Domingos assinala que a Biblioteca do povo e das escolas só cumpriu a periodicidade
quinzenal nos cinco primeiros anos de sua publicação. Esse período – de 1891 a 1896 – é o período
de apogeu da coleção, tendo esta sido "profusamente elogiada pela imprensa (...) Logo o período
seguinte – 1886/91 –, a sua periodicidade média passa a ser mensal. A partir daí, a coleção já não voltará
nunca a ser o que era: arrasta-se penosamente, ao longo dos anos, com abundância de interrupções,
editoras e, quem sabe de direções". Manuela Domingos. Estudos de Sociologia da Cultura. Livros e leitores
no século XIX. Lisboa: Instituto Português de Ensino a Distância, 1985, p. 28.
15. Jorge Carvalho do Nascimento. "Nota prévia sobre a palavra impressa no Brasil do século XIX:
a biblioteca do povo e das escolas". Horizontes. Bragança Paulista, vol. 19, pp. 11-27, jan/dez. 2001,
p. 13.
16. É importante considerar, a título de comparação, que um jornal como O Cearense era vendido,
nessa mesma época, a 200 réis o exemplar.
17. Jorge Carvalho do Nascimento. op. cit. p. 13.
18. Isabelle Olivero. op.cit. p. 16.
19. Manuela Domingos destaca o fato da editora David Corazzi possuir uma extensa rede de
distribuição de seus livros. Segundo ela, a editora possuía 217 correspondentes (incluindo o
Brasil, África e China, além da Europa). O Catálogo da editora, datado de 1884, define
correspondente como sendo "(...) em qualquer localidade, todas as pessoas que se responsabilizem por um
certo número de assinaturas de cuja distribuição se encarreguem e dêem a esta Casa garantia de sua boa
vontade, honradez e zelo". A autora destaca ainda o fato de que a editora dava a seus
correspondentes, em contrapartida, 15% de comissão nas vendas. Ver Manuela Domingos. op. cit.
p. 66.
20. Ana Cardoso de Matos. "Os agentes e os meios de divulgação científica e tecnológica em
Portugal no século XIX". Scripta Nova.
21. Citado por Ana Cardoso de Matos. op. cit.
22. Ana Cardoso de Matos. op. cit.
23. Ana Cardoso de Matos. op. cit.
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24. Manuela Domingos. Estudos de Sociologia da Cultura. Livros e leitores no século XIX. Lisboa:
Instituto Português de Ensino a Distância, 1985, p. 27.
25. Prefácio de Xavier da Cunha. Biblioteca do Povo e das Escolas, 8ª série, 1883. Citado por
Manuela Domingos. op. cit. p. 46.
26. Manuela Domingos. op. cit. p. 49.
27. Jorge Carvalho do Nascimento. op. cit. p. 16.
28. Ver a esse respeito: Isabelle Olivero. "Instruction pour tous et savoir utile". in: L'Invention de la
collection. Paris: IMEC/ Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme, 1999, pp. 170-181.
29. Manuela Domingos cita, em seu estudo, os diversos títulos que foram utilizados pelo governo
português tanto no ensino normal quanto no nível elementar de ensino. Ver: Manuela Domingos.
op. cit. p. 51.
30. Manuela Domingos. op. cit. p. 15.
31. Manuela Domingos. op. cit. p. 21.
32. Manuela Domingos. op. cit. p. 22.
33. Prospecto da BPE, citado por Manuela Domingos. op.cit. p. 25.
34. Catálogo de 1884 da Editora David Corazzi, citado por Manuela Domingos. op. cit. p. 64-65.
35. Manuela Domingos. op. cit. p. 91.
36. Aníbal Bragança. "A política editorial de Francisco Alves e a profissionalização do escritor no
Brasil". In: Márcia Abreu (org.) Leitura, História e História da leitura. Campinas: Mercado de Letras,
2000, p. 453.
37. Aníbal Bragança. "Uma introdução à história editorial brasileira". Cultura, 14, 2002, p. 76.
38. Manuela Domingos. op. cit., p. 93.
39. Manuela Domingos. op. cit., p. 34.
RESUMOS
O presente texto refere-se à trajetória de três homens. Eles nasceram na mesma época, mas
viveram cada um em uma cidade distinta. Um morava em Fortaleza, no Ceará, outro em Lisboa e
o terceiro no Rio de Janeiro. O que os unia? Livros. Os três tiveram suas vidas marcadas pela
edição, impressão e comercialização de livros e relacionadas, particularmente, pela publicação de
uma coleção de livros: a Biblioteca do Povo e das Escolas. É dessa coleção e de como ela se associa
à vida desses três homens que este texto trata. É urna história que liga Lisboa, Rio de Janeiro e
Fortaleza e que mostra que ainda há muito a se descobrir e percorrer nos caminhos dos livros no
século XIX.
This paper refers to three men's lifes. They all lived around the same time, but each in a different
city. On of them lived in Fortaleza, capital city of Ceará State, northeastern Brazil. The other one
was from Lisbon, Portugal. The last one was bom in Rio de Janeiro, Brazil. What would link these
men? Books. All three of them had their lives marked by publishing, printing and
commercialization of books, and furthermore, they were deeply related by one specific book
collection: Biblioteca do Povo e das Escolas. It's about this collection and how it associates the
lifes of these three men that this paper is about. It's a story that connects Lisbon, Rio de Janeiro
and Fortaleza showing that there's still a lot to explore and discover about the paths through
which books circulated in the XIX century.
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ÍNDICE
Keywords: Biblioteca do Povo e das Escolas, collections, David Corazzi, Francisco Alves
Palavras-chave: Biblioteca do Povo e das Escolas, coleções, David Corazzi, Francisco Alves
AUTOR
GISELLE MARTINS VENÂNCIO
Doutora em História Social pela Univ. Federal do Rio de Janeiro. Pós-doutoranda na Universidade
Federal de Minas Gerais.
Graduada em História pela Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestre em História
pela Universidade Federal Fluminense e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em
2000/2001, com uma bolsa da Capes, trabalhou com Roger Chartier na École des Hautes Etudes en
Sciences Sociales, em Paris. Actualmente, desenvolve um projecto de pós-doutoramento
intitulado "Ciência para todos: circulação e edição de coleções de divulgação científica no Brasil
(1881-1946)", na Universidade Federal de Minas Gerais.
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« Vejo, agora que estou sonhando »O problema do sonho e da visão em comentários seiscentistas às Trovasde Bandarra
"Vejo, agora que estou sonhando": The problem of dreaming and seeing in the
17th Century commentaries of Bandarra's Trovas
Luís Filipe Silvério Lima
NOTA DO AUTOR
Uma primeira versão deste texto foi apresentada no Centro de História da Cultura, da
Universidade Nova de Lisboa, em 12 de dezembro de 2003, quando realizava estágio
doutoral no Centro de História da Cultura, sob patrocínio da Cátedra Jaime Cortesão/
Instituto Camões. Desenvolvida, tornou-se parte da tese de doutorado, Império dos
sonhos. Narrativas proféticas, sebastianismo, messianismo brigantino, defendida na
Universidade de São Paulo, em setembro de 2005. O resultado apresentado aqui deve em
grande parte aos comentários e críticas feitas naquela ocasião no Centro de História da
Cultura, em especial, a: João Francisco Marques, José Esteves Pereira, João Luís Lisboa,
António Camões Gouveia, bem como a Ana Paula Megiani, Iris Kantor, Vera Lucia
Amaral Ferlini, e aos colegas Evandro Domingues, Patrícia Valim e Luciana
Gandelmann. Gostaria de agradecer, em particular, a Tiago C. P. dos Reis Miranda, não
só por ter orientado a pesquisa quando da minha estada em Portugal, mas por toda a
dedicação e amizade com que tem lido e discutido minhas idéias e acompanhado meu
trabalho. Esta pesquisa contou também com o apoio da Fapesp.
como que em sonhos lhe,forão feitas as visoens.
D. João de Castro, Da quinta e última monarquia
futura.
É com a proximidade das diferenças e a semelhança das distâncias entre ver e sonhar
que começa o "Sonho primeiro" das Trovas de Bandarra:
Veio veio, direi veioAgora que estou sonhando,
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Semente del Rey Fernando Fazer um grande despeio,E seguir com graõ deseio, E deixar a sua uinha,E diser, esta caza he minha Agora, que cá me ueio.
Nessas quadras, que "deram lugar aos comentários mais diversos",1 estão presentes dois
elementos que foram amplamente discutidos no XVII e XVIII: o lugar das Trovas entre
sonho, visão e profecia; e o sujeito desses sonhos. Mais do que isso, em torno das Trovas
e do seu autor, Bandarra, configurou-se uma narrativa desde o XVII, mais ou menos
comum aos seus diversos comentadores. As Trovas teriam sido escritas por volta de 1540
por Gonçalo Annes Bandarra, sapateiro da Vila de Trancoso. Oficial pobre e simples,
sem instrução, iletrado ou mesmo analfabeto, "idiota sem saber ler nem escrever";2
enfim, um rústico que ao cantar seus versos reunia à sua volta as mais diversas pessoas.3 Segundo seus exaltadores, como simples, o conhecimento de Bandarra da matéria
sagrada só poderia advir de uma graça divina, pela intercessão do Espírito Santo, que o
tinha, portanto e sem margem de dúvida, iluminado com o dom da Profecia por meio de
seus sonhos. Segundo Vieira:
se esta graça da interpretação das escrituras em qualquer outro homem seriaverdadeiro espírito de profecia, quanto mais em Bandarra, um homem tão idiotaque não sabia ler nem escrever, e muito menos a língua latina, e as outras em queestão escritos os Profetas e seus verdadeiros sentidos, que verdadeiramente se estávendo não podia ser senão com luz sobrenatural, e divina.4
Para seus detratores, pelo contrário, usou de artifícios e do conhecimento de outras
profecias para compor as suas,5 e seus sonhos, menos do que visões, foram imaginados e
impressos, com vivacidade, em uma alma simples, e por isso mesmo impressionável.
Alguns destacavam a repercussão que seus vaticínios tiveram, tanto pela repetição oral
de seus versos quanto pela proliferação de cópias manuscritas, invariavelmente
comentadas como corruptas e precisando ser corrigidas ou emendadas. Sinal dessa
circulação, decorar as Trovas teria sido um meio de ensinar às crianças as primeiras
letras.6 Independente da fidedignidade do retrato para com o retratado, que, a se fiar no
processo inquisitorial de 1541, sofreu de algum exagero nas cores e proporções,7
importa neste momento perceber a figura construída ao longo do seiscentos – em
especial, a panegírica. Um profeta rústico inspirado divinamente, enquanto dormia, que
contava ou cantava seus sonhos, oralmente, em forma de trova, para uma vasta e
diversa audiência, acreditado pelo povo e pelos cristãos-novos, mas também por
fidalgos e eclesiásticos, que o consultavam em assuntos graves.8 Esses últimos, junto aos
cristãos-novos, responsáveis pelas primeiras cópias manuscritas que depois se
multiplicaram e espalharam a verdade da profecia por todos os espaços do reino, da
conquista e fora deles,9 em conjunto à memorização dos versos e sua recitação,
atingindo assim tanto os letrados quanto os idiotas.
Os testemunhos manuscritos variavam entre si, e nessas variações permitiam diferentes
leituras e interpretações. Mesmo após o estabelecimento da primeira versão impressa,
mas incompleta, pela Paraphrase et Concordancia de D. João de Castro, em Paris (1603), ou
da primeira edição completa, levada à estampa durante a Restauração (1644), mas ainda
em tipografia fora de Portugal, também francesa, agora em Nantes. Tanto Castro
quanto o editor das Trovas de 1644 preocuparam-se em advertir o leitor da diversidade
entre os manuscritos e em afirmar que a sua versão era a mais fiel aos vaticínios
originais e que, por conseqüência, sua interpretação era a mais acurada.10 O exemplo
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mais conhecido é o do D. Foão, "alguém", "qualquer pessoa", na edição de Castro, e que
foi supostamente corrigido, pois se confundira I com F, em 1644, para D. João, evidência
clara de que o Encoberto seria o rei brigantino recém-entronado.11
Saya, Saya, esse Infante
Bem andante,
O seu nome he Dom I0AM
Tire, leue o pendaõ
E o guiaõ,
Poderoso, e triunfante.
(edição de 1644)
Algo parecido, ainda que sem a disputa filológica, ocorreu com as leituras daquelas duas
quadras, em especial, da primeira, que iniciam o "Sonho" de abertura das Trovas. A
repetição dos "vejo" e, menos evidente, dos "agora", a presença afirmativa (em algumas
versões, interrogativa) do "direi", a declaração de estar "sonhando" eram chaves
essenciais para definir corretamente qual era o "despejo", a "casa" e a "semente de D.
Fernando". Além disso, eram lugares recorrentes no restante das Trovas, e, por essas
repetições, entendidas nas exegeses como sinais da sua matéria profética.12 Enfim,
partindo da exegese seiscentista e tentando traçar os debates e as disputas entre as
diferentes interpretações das duas quadras, os "sonhos", os "vejo", os "agora", os
"direi" permitem perceber as apropriações e usos dos sonhos de Bandarra ao longo do
século XVII. As duas quadras iniciais urdiram o artigo, cozendo de maneira quase
cronológica os diferentes comentários de autores, anônimos ou não, das trovas do
sapateiro; ao fim, foram amarradas pelo fio dos debates em torno das leituras do jesuíta
Antonio Vieira.
Variações sobre um mesmo mote Comentário de Covarrubias
O primeiro comentário identificado sobre as duas quadras iniciais foi feito no Tratado de
la verdadeira y falsa prophecia, impresso em 1588, em Segóvia. Escrito pelo arcediago de
Segóvia, Juan de Orozco y Covarrubias, o Tratado se pretendia como compêndio que
resumia, na primeira parte, a teoria sobre visões proféticas, e descrevia, na segunda,
todas as formas de adivinhação, diferenciando-as das visões verdadeiras, como no
capítulo "De la interpretacion de los sueños y diferencia dellos", que distancia o sonho
profético da arte perigosa de prever pelos sonhos. Para além de um tratado, foi pensado
também como um manual, escrito em vernáculo, tanto para o rebanho cristão como
para seus pastores eclesiásticos, para ajudar no discernimento entre a visão verdadeira
e falsa, e divulgar com clareza aquilo que havia sido dito com obscuridade. Sua fonte de
inspiração era o concílio de Trento. Uma das preocupações centrais era advertir o fiel
da facilidade de ser enganado pela aparência de substância de algumas previsões
mentirosas, e dar instrumentos – acessíveis e fáceis – para essa posição de alerta e
constante vigilância.
No capítulo 24 da primeira parte, intitulado ilustrativamente de "Que el demonio en los
oraculos, o en su prophetas falsos puede acertar en algumas cosas que estan por venir",
discorreu sobre as formas pelas quais, por observação, dedução ou inteligência das
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coisas, mesmo as sobrenaturais, o diabo e seus falsos profetas, como os adivinhos,
enganavam as pessoas, fingindo possuir espírito profético. Um dos meios era dizer, de
outro modo, coisas previstas em antigas profecias verdadeiras. O caso com o qual ele
exemplifica é o "de vn çapatero en Portugal que fue tenido por propheta" que havia
lido "alguns prophecias, como las de san Isidoro", e, a partir disso, previsto – não por
verdadeiro espírito profético, mas por tradução de outros vaticínios – coisas que, de
fato, ocorreram. Entre elas, Covarrubias notou uma passagem em particular na qual ele
identificava "el auer dejuntarse aquel Reyno de Portugal con el nuestro cõ harta
particularidad".13 Em nota à margem, ele explica quem é o sapateiro e traduz para o
castelhano os versos:
Este çapatero de Portugal fue, en Trancoso, dicho Bandarra, y aura este ano de 88,quarenta y seys que murio, y dixo assi en sus trobas.Vejo vejo do Rey vejo, vejo o estoy soñando simiente do Rey Fernãdo fazer vn fortedespejo, e seguir gran desejo.dexar a ca sua viñae dezierta casa a mina.en que agora acame sejo.14
Na tradução de Covarrubias, o sapateiro está incerto se sonha ou se vê: "vejo o estoy
soñando". Não diz os seus sonhos que vê – "vejo vejo, direi vejo" na edição de 1644 –,
somente vê a semente "do Rey", sem saber ao certo se é sonho delirante ou visão
verdadeira aquilo que vê. Problema do testemunho ou da tradução, não deixa de ser
curioso notar nessa versão que o trovador fica em dúvida se de fato teve uma visão
verdadeira ou se simplesmente são imagens de um sonho. Indefinição que, como o
tratadista expôs no capítulo dedicado aos sonhos, era um indício considerável de que
não tinha havido inspiração divina. Ainda que o arcediago duvidasse ser Bandarra
"verdadeiro profeta" – como afirmará Vieira depois –, suas trovas predisseram
corretamente a união das coroas, porque se basearam em profecias verdadeiras, como
as atribuídas a Santo Isidoro. A descrição de Bandarra, leitor dos vaticínios de Santo
Isidoro, transferia a autoridade da vila de Trancoso para Sevilha. De um sapateiro
português para um santo padre "castelhano".
A Santo Isidoro foram ligadas, apocrifamente, uma série de previsões, em parte depois
organizadas e divulgadas em verso pelo cartuxo castelhano Pedro Frias, quando do
casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Tais anúncios se configuraram
como uma das fontes principais da idéia de Encoberto. Nessa linhagem de visões, de
predominância castelhana-espanhola, Bandarra, ao invés de arauto da separação das
coroas e da supremacia portuguesa, era entendido pelo arcediago espanhol como
tradutor do anúncio da junção dos reinos.
Após a Restauração e separação de Castela, com o Duque de Bragança no trono, saiu em
Lisboa o Restauração de Portugal Prodigiosa, em 1643, um extenso arrolar de sinais,
profecias, visões, vaticínios, prodígios, como o Milagre de Ourique, os sonhos de Esdras,
as visões do Ermitão de Monserrate, e as "vulgarmente chamadas 'profecias' de Gonçalo
Anes Bandarra" que tratavam da "aclamação de El-Rei nosso Senhor".15 O suposto autor
Gregório de Almeida, pseudônimo provável do jesuíta João de Vasconcelos, procurou
desfazer a leitura das Trovas dos "apaixonados do Sereníssimo Rei. D. Sebastião", que
viam o Encoberto como o rei desaparecido em Alcácer-Quibir, e mostrar que D. João IV
era o Infante previsto nos versos do sapateiro de Trancoso. No caso do mote do
presente texto, foi além do combate aos sebastianistas, e começou o seu capítulo 24, "De
outros lugares, em que Gonçalo Anes Bandarra falou do ano de 1640 e dos sucessos de
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1641", refutando a leitura de Orozco y Covarrubias. Transcreve-a quase integralmente,
para concluir que os sucessos e o tempo são os melhores intérpretes das profecias:
De crer é que, se êste autor [Orozco y Covarrubias] escrevera nêstes tempos, assimcomo entendeu êstes versos da sujeição de Portugal a El-Rei D. Filipe o Prudente,por a ver executada, entendera mais facilmente, os que alegamos das felicidadespresentes da aclamação de El-Rei nosso Senhor D. João, pois dêle fala [Bandarra]com tanta clareza e particularidade, como temos visto.16
A menção a Covarrubias, citado como D. João de Horosco, não foi feita somente para
corrigir sua interpretação e mostrar, em reverso, com que propriedade se poderia ligar
os versos do sapateiro aos acontecimentos de 1640 e 1641. Menos ainda para discutir
sua versão das quadras para o espanhol, pois o jesuíta Vasconcelos (re)traduziu-a para o
português, sem confrontá-la com outros "translados, mui autênticos e antigos, destas
obras de Bandarra", como fez no caso da passagem do Foão para João.17 Ao trazer à baila
Covarrubias, mostrava que "A fama do nosso Bandarra não se limitou a Portugal,
também se estendeu aos Castelhanos"18 e desse modo conferia autoridade e
reconhecimento às profecias de Bandarra. Não mencionava o contexto no qual
Covarrubias inseria as Trovas, exemplo de como se pode prever o futuro sem ter a graça
do conhecimento profético, e revertia o efeito construído pelo arcediago de Sevilha, no
qual Bandarra se limitava a glosador de Santo Isidoro. Bandarra era, para os fins
encomiásticos do Restauração de Portugal Prodigiosa, reconhecido como profeta mesmo
pelos Castelhanos, apesar de, por não repararem bem nos tempos, terem errado a
interpretação das Trovas.
No Livro Anteprimeiro da História do Futuro, déc. 1660, padre Antonio Vieira escreveu que,
pelo contrário, a leitura de Covarrubias estava certa. Tanto ressaltando o caso da
filiação das quadras às profecias de Santo Isidoro, quanto reafirmando a exegese feita
pelo arcediago. Partindo do mesmo mote que seu confrade João de Vasconcelos de que
não eram "novas e desconhecidas em Castela as profecias ou esperanças de Portugal",
Vieira introduz os comentários de Covarrubias, transcrevendo-os também quase
integralmente no capítulo VIII, ao tratar das utilidades da História do Futuro para os
inimigos; entre elas, mostrar a origem, razão e efeito das profecias. O reparo que fez à
leitura do arcediago, com ironia, foi quanto à tradução dos versos: "não muito limadas".
Apesar da ressalva, Vieira completou afirmando que "a explicação [de Covarrubias dos
versos] é muito própria, muito acomodada e muito bem deduzida", pois sendo o começo
da primeira trova é "muito conveniente à ordem dos mesmos sucessos começar (...) pela
sujeição do mesmo Reino a Castela e pela entrada dos reis castelhanos em Portugal". Ao
iniciar pela sujeição, as trovas seguiam a ordem dos acontecimentos para anunciar o
evento principal, a matéria das próprias trovas: a Restauração. Abrir com a "entrada
dos reis castelhanos" era anunciar a saída desses mesmos reis. Vieira referendou a
interpretação castelhana das trovas, aceitou a junção dos reinos como algo profetizado,
para, engenhosamente, realçar tanto o absurdo da tomada do reino por Filipe II quanto
a força da Restauração portuguesa.
Quanto à autoria, ao invés de desdizer Covarrubias, o jesuíta afirmou que se fossem de
Santo Isidoro e não de Bandarra, "tanto melhor, porque temos mais qualificado autor e
mais autorizado profeta".19 Para o Santo Ofício dar a licença, em 1709, à impressão do
Livro anteprimeiro em 1718, as menções ao sapateiro foram cortadas, inclusive esta,
porém, não a menção às trovas nem às suas profecias, ficando o trecho assim: "E se o
verdadeiro profeta e primeiro autor desta profecia é Santo Isidoro, e não outro,20 tanto
melhor, porque temos mais qualificado autor e mais autorizado profeta". Embora
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proibidas as Trovas – pela terceira vez – em 1665, bastava retirar o nome de Bandarra.
Mesmo porque Vieira, a partir dessa indicação de autoria anterior e mais qualificada,
passou a tratar os versos como sendo de Santo Isidoro, e não mais de Bandarra.
Tendo transformado a desqualificação de Bandarra por Covarrubias em justamente
naquilo que qualificava e autorizava os versos como profecia, perguntou enfim o que
queria dizer Santo Isidoro com o despejo. Assumindo serem os versos originalmente em
"bom castelhano", pois do bispo de Sevilha, e abdicando de lê-los como tradução, leu
despejo como "desverguenza" – ausência de pudor – do rei espanhol, Filipe II, que se
chamava de Católico, em retirar de modo "forte", pelas armas, o trono a quem era de
direito, a Duquesa de Bragança. Diante de "uma tal ação", tão imprópria para um rei
católico, Santo Isidoro, na interpretação do pregador, teria dúvidas sobre sua própria
visão, se a via com espírito profético. Então se pergunta "se era visão ou sonho: Vejo,
vejo, do rei vejo, vejo, ou estou sonhando?". O sonho, nesse caso, apareceu como contrário
de visão, e precisava por isso ser definido e distinguido o que eram imagens produzidas
por uma inspiração verdadeira e o que eram imagens produzidas pelas atividades
anímicas noturnas. Vieira resolveu a dúvida do santo bispo: não era fruto noturno da
imaginação, pois "o efeito mostrou que não era sonho, senão visão verdadeira, posto
que visão de um caso tão dificultoso de crer". E Vieira rematou, ao desvelar, com
engenho, o sentido duplo de despejar,21 que na atitude desenvergonhada de Filipe II
estava contida a expulsão vergonhosa de seus descendentes: "E pois o meterem se os
Castelhanos em Portugal foi despejo, razão foi também que os fizessem despejar." Do
mesmo modo, por considerarem a primeira parte do despejo, da profecia verdadeira,
"os Horozcos e Covarruvias castelhanos" deveriam considerar a segunda, pois estava
também prevista nas trovas. Por validar a interpretação de Covarrubias, Vieira
validaria a sua – ambas leituras de uma verdadeira profecia – e obrigaria aos inimigos,
os castelhanos, a crerem na sua História do Futuro.
Ao se basear no que seriam as profecias de Santo Isidoro glosadas por Bandarra, Vieira
distinguiu sonho de visão e afirmou que as "profecias e esperanças de Portugal" foram
vistas e não sonhadas. Por caminhos diferentes, chegou a um resultado similar na sua
defesa do processo inquisitorial ao afirmar justamente que o sonho era visão
verdadeira. O caminho optado por Vieira como réu do Santo Ofício retomava, não
explicitamente, o trilhado pelo primeiro comentário mais completo feito às trovas, a
Paraphrase et Concordancia (1603), do "apaixonado do [...] D. Sebastião", D. João de
Castro.
Vejo e sonho
Escrita durante o reinado de Filipe II de Portugal, no exílio de D. João de Castro em
Paris, a Paraphrase et concordancia de algvas propheçias de Bandarra, çapateiro de Trancoso
foi uma das poucas obras suas impressas, entre os 22 tomos que deixou manuscritos,
compostos contra a dinastia filipina, em defesa da causa sebastianista e para a
construção da Quinta Monarquia lusitana.22 Na Paraphrase, Castro buscava, na leitura
exegética das "propheçias de Bandarra", mostrar que era D. Sebastião a semente de D.
Fernando, e que ele voltaria e reassumiria o trono português, e expulsaria os infiéis
castelhanos de seus reinos. Na sua versão das quadras, mais próxima da edição
posterior de 1644 do que da tradução de Covarrubias, o sonho vira uma afirmação,
embora a interrogação permaneça em outro lugar – no dizer:
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Vejo: vejo: direi? Veio,/ Veio que estou sonhando Semente del Rey Fernando Fazer hum grande despejoE seguir com gram deseio, E deixar a sua uinha:E dizer: Esta Casa he minha, Agora que ca me sejo.23
O comentário aos versos se iniciava afirmando que as visões de Bandarra foram
chamadas "cõmumente o seu sonho". No tratado manuscrito "Da Quinta & ultima
monarchia futura", escrito pela mesma época (1597-1606), Castro afirmara que o
próprio Bandarra chamou as suas trovas de sonho, pois: "sellando elle tudo quanto
disse & remetendo suas trouas com as nomear por prophecias. & intitulando as de
sonho, como que em sonhos lhe forão feitas as visoens."24 A opção por chamar de sonhos
era, portanto, uma escolha de figuras adequadas às suas trovas:
Porque não tem palaura que sobeja nem fora de seu lugar, ou consoante que se sinta:sendo muy faceis & correntes de muy excellente linguagem muy cortesa dita;ornada de mil figuras da eloquencia: de modo que em semelhante sogeito & metroso o Espirito que por elle as faz & não outrem as podera quando quizer fazer.25
Na Paraphrase, complementou a nomeação por sonhos, retomando a classificação
agostiniana das visões.26 Explicou que Deus por "tres maneiras costume descobrir seus
segredos & fazer suas visoens aos homens: conuem a saber por sinais visiueis: em
sonhos: & no entendimento". E que, por causa dessa distinção:
Bandarra (...) mostra como lhe forã estas visoens de Deos, feytas em sonhos: dasquaes porque ninguem duuide, affirma quatro vezes que as ve, pera mostrar acerteza dellas, & que he Propheta, a que antigamente chamauam Vidente.27
Visão e profecia eram sinônimos, e o sonho, uma de suas manifestações; porém,
precisava ser distinguido das imagens noturnas comuns. Por isso, "affirma quatro vezes
que as ve, pera mostrar a certeza dellas, & que he Profeta".
Repetir o "vejo" servia para afirmar ser o sonho verdadeiro, mas, também, para
responder à pergunta: "direi?" (ao invés do "do rei", na versão de Covarrubias). Recorre
a tópica do espanto, que foi evocada mais tarde por Vieira, pois Bandarra "nota a
grandeza das coisas & a incredulidade que auia de auer dellas", e por isso fica na dúvida
se diz o que viu – resolvendo o impasse ao reiterar o "vejo". Ainda os quatros "vejo"
possuíam um significado numérico, pois o número quatro ("Quaternario") era repleto
de mistério.28 Era a soma de um "Deus Trino & vno", e, na economia dos sonhos
proféticos, Castro insinuava que chegava a termo o tempo das quatro monarquias,
substituídas pela última e quinta, capitaneada por D. Sebastião, "que ha de fazer grande
Conquista" e fará guerra "contra os immigos de Christo". Essa conquista era profetizada
no "gram despejo".
Castro deu o sentido duplo da palavra despejo e as interpretações que decorrem dos
"diuersos sentidos" que existem na língua portuguesa – e não só em bom castelhano,
como quis depois Vieira no Livro Anteprimeiro.29 Enquanto desenvoltura ou,
negativamente, falta de vergonha, pelo que, erroneamente, queriam alguns significar a
entrada e tomada do reino de Portugal por Filipe II. E, o sentido correto, segundo o
comentarista, enquanto verbo despejar ("despejaram os paços, casas, çidades"), que
anunciaria que D. Sebastião desapossará os infiéis de seus reinos.30
Vieira não fez referências a D. João de Castro ou a seus escritos, mas muitos argumentos
eram comuns e até o método exegético, semelhante – ainda que para chegar, muitas
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vezes, a conclusões diferentes, como no caso do despejo. Não é possível afirmar se
Vieira leu ou teve contato com a obra do sebastianista ou de seus seguidores, como
Sebastião de Paiva, mas as aproximações permitem, pelo menos, pensar um substrato
comum de leituras e discussões, para além daquelas relativas às profecias e vaticínios
do Encoberto. Os lugares referentes ao sonho, à profecia, e, mais interessantemente,
sua aplicação na leitura das Trovas geraram formulações parecidas na demonstração de
dois projetos para o reino Português. Um dos casos foi a justificativa do sonho como
visão, uma tópica recorrente tanto na Paráfrase quanto nos textos produzidos por Vieira
durante o processo inquisitorial.
Vieira, na condição de processado pelo Santo Ofício, durante a década de 1660, escreveu
a Apologia e a Defesa para responder às perguntas e esclarecer aos inquisidores as bases
do seu projeto do Quinto Império e de sua interpretação de Bandarra na carta
"Esperanças de Portugal Quinto Império do Mundo Primeira e Segunda Vida del-Rei D.
João o Quarto Escritas por Gonçaleannes Bandarra". Nessa carta, escrita em 1659, no
Maranhão, "em uma canoa que vou navegando no rio das Almazonas",31 para o Bispo do
Japão, confessor da rainha recém viúva, Vieira afirmava que D. João IV iria ressuscitar
para ser a cabeça temporal do último Império na terra partindo do pressuposto que
Bandarra era verdadeiro profeta.
Enquanto em 1643 era autorizado legitimar a Restauração de Portugal prodigiosa a partir
dos versos do sapateiro; nos anos de 1660, com a aclamação do depois qualificado
inepto D. Afonso VI, a saída da regente-mãe e o afastamento dos joanistas da corte, não
era mais. Muito menos supor a ressurreição de um rei, o advento de um reino de Cristo
terreno ou assumir que os versos do sapateiro eram profecias absolutas – assuntos que,
na percepção do Santo Ofício, sabiam a heréticos e judaizantes. Ainda mais se
proferidas ou escritas por um jesuíta que antes atacara os procedimentos inquisitoriais
e o confisco dos bens dos réus cristãos-novos pelo tribunal, e defendera relações
comerciais entre a coroa de Portugal e os judeus. Se antes Vieira estava protegido pelas
suas relações com a corte e com o casal real, e apoiado na veneração ao Bandarra como
profeta da Restauração, a mudança da coroa (e do grupo em torno dela, centrado agora
no valido Castelo-Melhor) e o fortalecimento da Inquisição, solapavam seus alicerces de
segurança – prejudicados ainda pela fracassada missão no Estado do Maranhão. As
desconfianças quanto às suas proposições, somadas a denúncias diversas colhidas desde
1649 e mesmo a censura a alguns de seus sermões foram mais que suficientes para se
instaurar o processo em 1660. Tendo como peça justificadora as "Esperanças de
Portugal", foi finalmente chamado a depor a partir de 1663 para explicar sua crença nas
Trovas e no Quinto Império.32
Assumidas as Trovas como falsas e errôneas, os inquisidores questionaram Vieira: "Que
maior razão, ou motivo tem ele declarante, ou teve, para não crer antes, que Bandarra
fingia, ou sonhava, como ele às vezes diz, as ditas visões, ou que as coisas de que nelas
tratava (...) as via, e eram verdadeiras Profecias."33
A pergunta do tribunal, feita no 22º exame, em 1667, provavelmente foi motivada pela
própria Defesa escrita por Vieira em duas "Representações", entregues em 1666, e pelos
rascunhos da Apologia, confiscada em 1665. Em ambos, o jesuíta se reportou ao
problema ao refutar as proposições contra a veracidade das profecias de Bandarra –
proposições que foram depois usadas pelo inquisidor Alexandre da Silva para
interrogar Vieira.34 Na Apologia, a "dúvida e o argumento contrários" levantados às suas
proposições, muito similares à indagação posterior da mesa inquisitorial, viram-se
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descritos como: "as coisas que se escrevem no livro de Bandarra não foram revelações,
senão sonhos, como ele [Bandarra] mesmo lhe [o livro] chama em tantos lugares, e
assim intitula quase todas as partes do dito livro: logo não são profecias".
A essa dúvida, Vieira respondeu afirmando que:
Bandarra chama suas trovas de profecia, inclusive antes de chamá-las de sonho, portanto
eram sonho e profecia;
uma das formas de Deus comunicar seus desígnios é pelos sonhos, inclusive uma das
melhores, pois apareceu mais aos velhos e sábios (Nm), e, para tanto, Vieira arrolou
exemplos bíblicos e citou as definições das Etimologias de Santo Isidoro;
e o sapateiro, ao dizer, em alguns passos, que via e, em outros, que sonhava, quis mostrar
que Deus revelou "as coisas futuras (...) de ambos estes modos (...) a Bandarra".
Por isso, teria dado o "princípio às suas profecias, começando na primeira trova delas:
'vejo, vejo, direi vejo agora que estou sonhando'." O "direi", seguindo a edição de 1644, longe
de uma interrogação, como na versão de Castro, era uma asserção de que viu e sonhou;
desse modo, Bandarra "em muitos lugares diz que sonhava, que são os sonhos, assim
também em outros muitos diz que via, que são as visões". Somado ao fato de afirmar, de
dizer, a repetição dos "vejo", mais adiante, foi advogada como demonstração de que
Bandarra tinha conhecimento do que presenciava, e via "por conhecimento claro", e
não "por instinto escuro", o que indicava ser sua visão de qualidade superior, pois
recebia de modo direto, pela graça, o dom do conhecimento das coisas futuras. 35 Mais
para frente, ao refutar que as Trovas poderiam ter sido escritas sem espírito profético,
Vieira afirmou que Bandarra usou "o mesmo estilo" dos profetas canônicos de
explicitarem suas profecias ao intitulá-las de visões, "chamando Sonhos a cada um dos
livros em que repartiu as suas obras, que foi o mesmo que chamar-lhe visões". Isso
porque "em frase profética a palavra Sonho é sinónimo de visão, ou revelação de
Deus."
Na "Primeira representação", ao dispor os termos da sua Defesa, substituiu os
"argumentos contrários" por "objeções", detalhando mais as questões e as respostas,
mas mantendo as matérias tanto das dúvidas, quanto das refutações. A argumentação
era, de modo geral, a mesma, somente a demonstração dos princípios estava estendida,
em parte, pelo aumento de exemplos e de autoridades. A objeção era:
Bandarra chamou Sonhos à sua obra, e em muitas partes dela diz que sonhou o queescrevia: logo, não teve próprio e verdadeiro conhecimento do que predisse, como onão temos das cousas que sonhamos.36
Ao que Vieira na sua Defesa respondeu:
que é certo e de fé haver sonhos proféticos e serem os ditos sonhos verdadeira erigorosa profecia. (...) Um dos modos com que Deus fala aos seus verdadeirosprofetas é em sonhos: (...) abaixo das visões e ilustrações meramente intelectuais, asde mais perfeito conhecimento são as que Deus (...) costuma comunicar em sonhos.37
E arrematou o argumento, citando a mesma passagem e o mesmo mote:
Assi que bem podia ser mostrado em sonhos a Bandarra o que escreveu, e ele ver econhecer e distinguir, e entender muito claramente o que se lhe mostrava. E estessão os mesmos termos por onde ele explica o seu modo de sonhar quando começadizendo: Vejo vejo direi vejo agora que estou sonhando semente d'el-ReiFernando fazer um grande despejo etc.38
Importava dizer que não era sonho ordinário, mas também afirmar que era uma
profecia de "imóvel verdade", não condicional. E, novamente, os três "vejo" (um a
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menos que a versão de Castro) e sua repetição ao longo do poema cumpriam um papel
importante:
Veja-se agora o estilo com que escreve Bandarra, e achar-se-á que não só nas cousasque até o presente têm sucedido, senão nas que estão por suceder, e nas principais emaiores delas usa frequentissimamente da palavra vejo, a qual também é a primeirapor onde começa todas as suas predições, repetindo-a três vezes: Vejo vejo direi vejoetc. Donde se segue, com a maior clareza que pode ser, que fala absoluta e nãocondicionalmente.39
Para além disso, o sentido da visão como fonte de certeza foi o que permitiu a Bandarra
dizer suas profecias:
O termo vejo vejo, que tantas vezes repete, é o mais significativo de certeza esegurança; porque de nenhuma verdade estamos naturalmente mais certos eseguros que daquela que vimos com nossos olhos, e ainda mais da queactualmente estamos vendo. E como se actualmente estivera vendo as cousas, assias vai referindo Bandarra, dizendo que já sucede esta, já aquela, não pondo dúvidaem alguma.40
Bandarra, para o inaciano, diz como se "actualmente estivera vendo as cousas", pois o
"hemisfério escuro" do futuro lhe foi revelado no seu presente, o que é uma
característica dos profetas: iluminar o obscuro com a luz do conhecimento, dom
concedido graciosamente por Deus. Como podem ver esse futuro, e para os outros resta
a cegueira, os profetas foram chamados de videntes, tanto por Santo Agostinho quanto
por São Tomás. Na Apologia, o "vejo, vejo" era sinal dessa vidência:
A esta evidência do que lemos, e vemos nos seus versos se acrescenta o testemunhode sua própria confissão (...), em que tão repetidamente se explica pelo termo «vejo,vejo»; e donde se vê, o que se diz por termos claros e não metafóricos não podefaltar inteligência e conhecimento; antes este conhecimento e inteligência é o quese chama vista, como notou Santo Agostinho.Do que tudo, e doutros muitos lugares que se podem ver no mesmo Bandarra, e daasseveração e firmeza com que vai contando os sucessos futuros, e da expressãocom que tão repetidamente diz que os via (que é a razão, como diz São Tomás eSanto Agostinho, porque os Profetas antigos se chamavam videntes), se vêclaramente que Bandarra em todo o seu livro, e não só nas coisas passadas, senãonas que estão ainda por vir, fala pelo mesmo estilo, com os mesmos termos, com amesma certeza, com o mesmo Espírito, e por conseguinte com a mesma verdade.41
Exceto pelo número dos "vejo", o argumento era quase idêntico ao de João de Castro, na
Paraphrase: "affirma quatro vezes que as ve, pera mostrar a certeza dellas, & que he
Propheta, a que antigamente chamauam Vidente".
O profeta é aquele que vê. No caso de Bandarra, além de ver claramente, pelo seu estilo,
ele teria dito que via e o que via, e insistido que seus sonhos eram visões. Tanto para D.
João de Castro quanto para P. Antonio Vieira essa preocupação do sapateiro
evidenciada nas suas Trovas era uma prova da verdade de suas profecias.
Contra as Esperanças
A resposta de Vieira aos inquisidores no 22º exame foi praticamente a mesma que havia
desenvolvido em sua Defesa escrita e nos rascunhos da Apologia. Concedeu algumas
posições, relativizou outras, mas não se afastou dos argumentos, matérias e autoridades
levantadas nos dois escritos.
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Fica a dúvida de até que ponto os escritos vieirenses induziram a inquirição do tribunal,
ou se as objeções e argumentos contrários refutados nos textos representavam uma
dúvida mais geral sobre as Trovas e o projeto do último reino na terra, seja
sebastianista, seja joanista. Vieira poderia ter antecipado com alguma facilidade o
interrogatório, baseando-se tanto nos primeiros exames do processo quanto na postura
de defesa da ortodoxia pelo Santo Ofício. Mais importante, talvez, como ressaltou Adma
Fadul Muhana,42 as duas "Representações" foram pensadas como Defesa escrita das suas
idéias, entregues – ainda que sob protestos do réu – ao tribunal para leitura, qualifica
ção e argüição. Em outras palavras, entre os exames 10 e 27, a matéria principal do
processo não seria mais a carta "Esperanças de Portugal", mas a Defesa e, em parte, a
Apologia.43 Nesse sentido, as perguntas dos inquisidores, com algumas exceções, se
refeririam à qualificação das proposições contidas nos textos, portanto, não iriam
muito além de formular questões que remetessem ao texto.
A estrutura adotada na Defesa indica também uma opção de Vieira em seguir as regras
da tratadística especulativa escolástica. Os papéis de Vieira levantaram e elencaram as
objeções supostas e sabidas, e, seguindo o modelo escolástico, por meio da refutação,
mostravam a verdade defendida.44 Ao optar pela disposição por problema, resposta
contrária, argumento de autoridade e refutação característica da quaestio,45 houve a
repetição no momento do processo de muitas das perguntas feitas por Vieira na sua
Defesa. Sua defesa, portanto, se reduziu, em parte, a repetir oralmente o que havia dito
por escrito de modo mais elaborado e engenhoso, seguindo as preceptivas dos textos de
disputa e sumas.46 Algumas das dúvidas e perguntas quanto ao Bandarra e às Trovas,
descritas por Vieira em seus textos, foram formuladas a partir das afirmações presentes
nas "Esperanças de Portugal",47 mas também poderiam ter saído de outros textos, como
os de D. João de Castro, ou a Restauração de Portugal Prodigioso. Outras, porém, partiram
provavelmente dos primeiros exames do processo; outras ainda, da percepção de Vieira
dos pontos de desconfiança quanto às profecias de Bandarra e às idéias do Quinto
Império. Generalizando a construção de Vieira, as objeções por ele levantadas podem
ser vistas como as possivelmente levantadas por setores da sociedade portuguesa, entre
elas, a Inquisição.
De certo, as perguntas dos inquisidores refletem uma postura recorrente do Santo
Ofício de ceticismo diante dos sonhos, que pode ser vista em diversos processos,48 mas
também condensa as posições contra a crença nas Trovas. O fato de serem sonhos e,
portanto, frutos da imaginação corroborava um entendimento de Bandarra como
rústico, simples, e, por isso, suscetível a delírios e enganos. Em complemento, o sabor
judaizante das Trovas, indicado na volta dos judeus e no reino messiânico na terra, mais
o distúrbio que causavam à paz do reino e da igreja, declarado no edital de proibição de
1665, confirmando uma semente maléfica dos versos heterodoxos. A partir deles, como
está no edital, se montavam "fabricas vans, escandalosas, & totalmente reprouadas".
Fábricas vãs, como eram vãs as façanhas "sonhadas fabulosas", "fantasticas, fingidas,
mentirosas", dos outros poemas heróicos em comparação com os feitos lusíadas.49 Ou
como eram "vãs e mentirosas", segundo o Eclesiástico, as esperanças "para o homem
insensato", como sonhos que "dão asas aos estultos", coragem e ânimo aos
imprudentes.50 Bandarra, como simples, era insensato, imprudente, porque não tinha as
potências do discernimento e da inteligência cultivadas, deixando-se influenciar pela
fantasia dos sonhos – se não os tivesse, ainda por cima, inventado, fingido
intencionalmente. A suspeita de uma ancestralidade judaica ou mesmo a boa recepção
entre os cristãos-novos adicionavam, de chofre, uma mácula de pecado a essa
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predisposição anímica. O que se comprovaria pela alteração em muitos que a leitura de
seus versos ocasionava, podendo resultar em "grandissima pertubação no espiritual, &
temporal".51
O problema da Inquisição era com a veiculação das Trovas e suas interpretações, mas
partia da figura desautorizada de Bandarra. Os versos do sapateiro, independentemente
da versão, seriam sonhos imaginados e tomados como verdadeiros ou fingidos para
serem ditos como verdadeiros. Em qualquer um dos casos, estavam longe de ser
profecia ou visão. A figura de Bandarra, um oficial rude, simples, processado pelo Santo
Ofício, com suspeita de cripto-judaísmo, não condizia com a de um vidente inspirado
por Deus. Faltava-lhe a santidade ou a autoridade para justificar uma iluminação divina
em tempos posteriores à Revelação, momento a partir do qual a época dos profetas do
Antigo Testamento foi encerrada com a boa nova da vinda de Cristo. Além de sua
pessoa, suas proposições lidas e interpretadas por muitos geravam "fábricas vãs" como
seus sonhos. Fábricas que propunham um último reino na terra, crença hetedoroxa,
milenarista e o pior talvez: judaizante. Afirmar, portanto, que Bandarra era verdadeiro
profeta e suas trovas profecias propriamente, como fez Vieira nas "Esperanças de
Portugal", era "temerário".
Partindo do mesmo pressuposto do tribunal do Santo Ofício, de que Bandarra era um
falso profeta, foi produzido um manuscrito anônimo intitulado "Ante-Vieira", que
rebatia as proposições mostradas na carta do jesuíta de 1659 – a carta que iniciou o
processo inquisitorial – para evidenciar, entretanto, que o Encoberto era D. Sebastião e
não D. João IV. Escrito, segundo Basselaar, em 1661, dois anos após a correspondência
de Vieira, teve cópias até o XVIII. Todas deixando claro, desde o longo título, o objetivo
polemista e de refutação do manuscrito: "Ante-Vieira nas Esperanças do Quinto Impé
rio fundadas na primeira e segunda vida de el-Rei Dom João o Quarto, que Deus tem,
acomodadas pelo Padre António Vieira a Gonçalo Anes Bandarra e respondidas por um
Anônimo Curioso – 1661".52 O "Anônimo Curioso", que dominava o discurso teológico,
buscou desmontar o silogismo das "Esperanças de Portugal" nas suas premissas maior e
menor.
Quais as premissas das "Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo", de Vieira?
A maior, "O Bandarra é verdadeiro profeta"; a menor, "O Bandarra profetizou que el-
Rei D. João Quarto há-de obrar muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar
senão ressuscitado". Por conseqüência, Vieira deduziu que: "Logo, el-Rei D. João o
Quarto há-de ressuscitar".53 Entre as coisas que o Restaurador havia de obrar – e por
isso voltaria dos mortos –, estava a conquista de Jerusalém. A conquista da Santa Casa
estaria expressa nos versos iniciais do "Sonho primeiro", não em duas quadras, como
na edição de 1644, mas transcritos em uma oitava única:
Vejo, vejo, direi, vejoagora que estou sonhando semente del-Rei Fernando fazer um grande despejo, e sair com grão desejo,e deixar a sua vinha,e dizer: "Esta casa é minha agora que cá me vejo.54
A semente era D. João IV, "quarto neto del-Rei Fernando". O despejo, nas "Esperanças",
seria o resultado da saída para a conquista da Terra Santa, porque o rei levaria "consigo
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tudo o que nele houver de homens que possam tomar armas", "deixando o Reino
totalmente despejado".
O "Anônimo Curioso" duvidava, contudo, da exegese e das premissas de Vieira.
Primeiro, porque partia do princípio que Bandarra não fora verdadeiro profeta,
estatuto reservado aos profetas bíblicos e concedido, mas não absolutamente, aos
santos canônicos. Mesmo que, como quisera Vieira, pessoas tivessem previsto
acertadamente alguns futuros contingentes, isso não os permitia serem chamados "com
tanta propriedade, como o Padre quer, profetas verdadeiros", pois "temos profetas
falsos que disseram futuros verdadeiros, e também profetas verdadeiros e aprovados
por Deus, que anunciaram cousas vindouras não cumpridas".55 Segundo, porque, ainda
que aceitando ter Bandarra predito com verdade, seria muito mais fácil voltar um rei
ausente e, possivelmente, vivo, D. Sebastião, do que ressuscitar um morto, D. João IV.
Por fim, a leitura de Vieira das Trovas poderia estar equivocada, porque ele mesmo teria
admitido nas "Esperanças de Portugal" que muitos duvidavam da sua interpretação.
Portanto, "a sua explicação [de Vieira] não é mais que sua, e às mesmas trovas dão
outros outras mui diferentes e que parece vêm nascendo delas".
Tantas leituras diferentes e discordantes não só atenuariam a força dos argumentos de
Vieira, mas a própria substância profética dos sonhos do sapateiro. Isso ficaria evidente
nos comentários à trova iniciada pelo "Vejo, vejo, direi vejo".
O "Anônimo Curioso", ao transcrever os versos em oitava, como nas "Esperanças de
Portugal", sem confrontá-los com outras lições que possuía, resumiu a leitura de Vieira,
"comentador de el-Rei, que Deus tem", sobre a conquista da Terra Santa por D. João IV
(semente e quarto neto "de el-rei Fernando") e reino despejado com a saída de todos.
Em seguida, contudo, afirmou que outros "dizem que isto se entende de el-Rei Filipe
Terceiro de Castela, na expulsão que fez dos Mouriscos de Granada" o qual era "também
semente de el-Rei Fernando e mais chegado a ele que el-Rei D. João, pois era seu
terceiro neto". E, por fim, encerrou mostrando que a explicação de Vieira "também se
poder apropriar a el-Rei Dom Sebastião, por terceiro neto do mesmo Rei Fernando o
Católico".56 Mesmo que concordasse, enfim, com Vieira sobre o significado do "despejo"
e da "casa", o autor do "Ante-Vieira" duvidava da conclusão do "comentador de el-Rei",
pois outros poderiam, de modo mais acomodado, ser a "semente" – em especial, D.
Sebastião, que quisera conquistar a Terra Santa. Além do mais, outras profecias, mais
acertadas e autorizadas que as de Bandarra, como de Santo Isidoro, Abade Joaquim e P.
José de Anchieta, indicavam que o rei Encoberto estava vivo, não morto, e que D.
Sebastião não perecera na batalha de Alcácer Quibir. Nunca se assumindo propriamente
como sebastianista, pelo contrário, se referindo aos "sebastianistas" na terceira pessoa,57 arrolou, após refutar passo a passo a leitura de Vieira, vaticínios e visões para
mostrar que quem iria voltar seria D. Sebastião e que as trovas de Bandarra eram
imprecisas e incompletas.
Talvez por uma precaução para com o Santo Ofício, ainda que o texto fosse anônimo,
ou, mais verossimilmente, por familiaridade com a ortodoxia romana e os
procedimentos inquisitoriais, alguns termos e o estilo do "Ante-Vieira" se aproximaram
em muitos pontos do processo contra o jesuíta. Nessa direção, talvez possa se explicar a
opção por se referenciar aos sebastianistas e não se assumir como um, e a escolha por
não só negar a leitura de Vieira mas também duvidar da iluminação de Bandarra e
presciência nas Trovas.
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Em tom por vezes mais jocoso, menos rígido na argumentação que o "Ante-Vieira",
circulou outro papel também anônimo e manuscrito que refutava as "Esperanças de
Portugal". A data indicada por Besselaar para a redação desse texto é a mesma que a do
escrito pelo "Anônimo Curioso", 1661, e, se for possível se fiar no manuscrito, foi
produzido no recôncavo baiano: "indo em uma canoa, não navegando o grande rio do
Amazonas, mas um dos muitos que cortam e retalham este Recôncavo da Baía". Apesar
da modéstia afetada expressa na anteposição do "grande rio" amazônico, portanto
singular, porque único, versus "um dos muitos" rios baianos, portanto vulgar, porque
múltiplo e ordinário, dissimulou um mesmo estado do que o de Vieira, que escrevera
"Esperanças de Portugal", supostamente, navegando em uma canoa no Amazonas, no
Estado do Maranhão e, num desfecho irônico, justificou a contraposição entre canoas e
rios, afirmando que: "a cunha melhor há-de ser do mesmo pau", ou seja, para refutar
Vieira, usou do mesmo material.
Na forma de uma resposta encomendada à carta de Vieira, o título variou conforme os
diferentes testemunhos:58
"Opinião contrária à da Ressureyção delRey Dom João IV";59
"Papel que se fes na Bahia contra outro, que no Maranhão fes o Padre Antonio Vieyra, em
que mostrava que El Rey Dom João 4º havia ressuscitar, colhendo esta concequencia das
Trovas de Gonçaleannes Bandarra, mas este Author incognito as aplica a El Rey Dom
Sebastião";60
"Satisfação apologetica contra a idea mais politica do Salamão. Da Ley da Graça Credito da
Nação Luzitana o Pe. Antonio Vieira Sobre o Vatecinio da ressureição Del Rey D. João o 4º.
Mostrace com evidencia ser outro o Lusitano Encuberto ou Portugues Ridivivo que Hade
illustrar este Reyno, quando o premitir o alvedrio divº. pª. dezempº. do profetizado. anº. de
1723".61
Sob esse último e longo título, o papel foi copiado num volume de "papeis duvidozos"
de Vieira, como, por exemplo, uma carta dirigida aos "Amantes do Encuberto" que
atualizava as profecias e comentários para o ano de 1723.62 Na carta, a pessoa de D.
Afonso VI foi substituída por D. João V, enquanto rei português que ajudaria D.
Sebastião a realizar a Quinta Monarquia.
Mesmo que concluísse ser Sebastião o último e quinto monarca da Terra, o autor
também não se assumia como sebastianista. Mais explicitamente do que o "Anônimo
Curioso" do "Ante-Vieira", se escusava de acreditar no que o vulgo chamava profecias,
das quais nunca fez "mais caso que como das histórias de varinha de condão e três
cidras de amor".63 Sendo Vieira, porém, "um varão tão religioso e tão douto, que a nossa
idade venera como portento", resolveu ler "o Bandarra e outros que cita". Feita a
ressalva, concede, porque "lhe quero conceder", à "voz do Cisne dos nossos tempos" a
primeira proposição de sua carta, de que Bandarra era verdadeiro profeta, mas discorda
de seu entendimento das profecias. Em outras palavras, a autoridade das Trovas não
advém de Bandarra, como profeta, ou dos versos, como visões verdadeiras; é externa,
foi concedida pelo seu comentador, Vieira, cisne e portento da época, varão tão
religioso e tão douto. Ironicamente, a autoridade que dá suporte às profecias do
sapateiro errou na interpretação das mesmas. O "canto do Cisne" foi superado pelo
"grasnar do ganso", como se apresentou o autor no início, afetando modéstia.
Após definir seu intento no exórdio e conceder a primeira premissa, o papel seguiu
acompanhando os comentários às trovas do "autor da ressurreição" às trovas,
refutando-os e mostrando que não era em todos os passos que Bandarra tratava de D.
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João IV, pois o verdadeiro Encoberto era D. Sebastião. Fez o mesmo ao chegar à leitura
dos versos iniciais do "Sonho primeiro". Transcreveu-os, seguindo a disposição em
oitava das "Esperanças de Portugal", resumiu o comentário do jesuíta, para dizer que
havia nas Trovas, além da "diversidade de pessoas" – João e Sebastião –, "diversidade do
tempo". Diversidade expressa pelos dois "agora". O primeiro, "Vejo, vejo, direi, vejo,
agora que estou sonhando", se referia a "esta grande maravilha que há-de haver no ano
de 40" com D. João IV. O segundo, "Esta casa é minha, agora que cá me vejo", porém, se
referia à "semente de D. Fernando", D. Sebastião. Essa atenção para com o "agora"
partia do pressuposto de que, sendo verdadeiro Profeta, nenhuma palavra do Bandarra
era ociosa, e por isso "os dois agora não foram para encher o verso, mas por um alto
mistério".
Ao contrário de separar a atividade poética da profética, porém, o "agora" foi
justificado pela poesia, mostrando que o "agora" de Bandarra era o mesmo de Virgílio
do início da Eneida. Porque:
Os profetas em Latim se chamam vates, e vates no mesmo idioma quer dizer,profeta: os profetas vaticinam como poetas, e os poetas talvez escrevam como[profetas].64 Assim o diz um deles (...) que Deus move o espírito do poeta.65
Virgílio e Bandarra podiam ser aproximados, e as Trovas, remetidas à Eneida, porque
ambos foram movidos no espírito por intercessão divina. O vaticinar era comum à
prática profética como à poética.66 Em um "ut pictura poesis" adaptado, profecia era
poesia, e vice-versa. Logo, poderiam ser analisadas pelos mesmos princípios, pela
mesma leitura exegética e arte poético-retórica.
O verso de Bandarra, "Esta casa é minha, agora que cá me vejo", poderia ser adjetivado
de "conceituoso", engenhoso,67 ou como em Castro, lido o dizer que está sonhando pelas
"figuras da eloquencia", ou como em Vieira, observado a repetição dos "vejo" como seu
estilo. De qualquer lado, porém, a disposição e a eloqüência dos versos eram sinais do
mistério, nada poderia ser tido como ocioso, sem sentido. Para definir a "semente" e o
"despejo", era preciso passar por todos os pontos do "vejo, vejo, direi, vejo/ agora que
estou sonhando" (e suas variantes); e descobri-los, cuidá-los, construí-los. O profeta que
vê, como vidente, ou que vaticina, como vates, precisa dizer a sua profecia; e o como ele
diz as matérias deve ser objeto de consideração.
Livre da definição de quem seria o Encoberto profetizado, se D. Sebastião, D. João IV ou
outro rei brigantino – ou mesmo Filipe II e Afonso Henriques68 – , os comentadores
bandarristas concordavam em muitos passos na exegese dos versos, como observou
Besselaar. Quanto à matéria das Trovas, Bandarra haveria, de fato, em suas quadras ou
oitavas profetizado o futuro de Portugal. Um futuro de restauração de um destino
anunciado desde Ourique, como cabeça do reino de Cristo na Terra. Mesmo entre os que
não criam ou desconfiavam da presciência do sapateiro, no caso dos manuscritos contra
as "Esperanças", havia pouca discordância quanto à missão lusitana – exceto pelo Santo
Ofício, que ortodoxamente considerava a proposta temerária. Isso, porém, era possível
porque os comentadores partilhavam de um repertório teológico-retórico-político e de
uma "forma mentis"69 ou "gramática"70 profético-onirológica com os quais realizavam a
leitura das Trovas. No embate entre Vieira e os inquisidores, ainda que partindo de
premissas, numa primeira vista, antinômicas e de interesses conflitantes, a disputa se
deu sobre os mesmos termos, inclusive alguns determinados pelo próprio réu que
dominava a disposição, as tópicas, os lugares e as figuras da prática discursiva no qual o
processo decorreu. Menos do que uma opção puramente pragmática de estilo de defesa
para escapar da condenação, o centro articulador dessas práticas retóricas era a idéia
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de Deus como Causa Primeira, cujos efeitos análogos no orbe tinham a Igreja romana
como tradutora. Por meio dessa tradução, resultante em uma hierarquia organizadora,
a Igreja funcionava como ordenadora do rebanho, e a monarquia lusitana, enquanto
reino católico, como instrumento temporal de suporte para manutenção e divulgação
da Palavra. A junção do domínio – engenhoso, agudo, preciso, espantoso – das práticas e
conceitos a um substrato básico comum permitiu a Vieira sair vivo do longo
julgamento, ainda que condenado ao silêncio – algo que conseguiu reverter poucos anos
depois junto ao Papa, em Roma.
Nessa economia discursiva e teológica, não se separa da matéria da profecia a sua
enunciação sonhada e versificada, pelo poeta sapateiro que diz. A concordância em
vários aspectos entre os comentadores começava no uso de um mesmo método
empregado para a exegese das Trovas, no qual a colocação e o formato das palavras e
figuras atribuíam – porque o possuíam como reflexo da Palavra71 – sentido a si mesmas
e ao todo enunciado. As discordâncias eram, por sua vez, resultado das conclusões
alcançadas por meio desse método, mesmo nas objeções supostas por Vieira e feitas
pelos inquisidores no processo. Como o sonho, o estar sonhando. Ora o sonho foi
contraposto à visão como imagens ilegítimas, ora serviu para atestar a visão e, pelo
contrário, legitimá-la. Ora foi colocado como dúvida, ora foi visto como profecia. A
dúvida se era sonho confirmava o inaudito do revelado, do mesmo modo que sua
certeza era prova de presciência. O argumento de serem sonhos servia tanto para dizer
que as profecias eram falsas quanto verdadeiras. Por isso, era preciso circunstanciar os
sonhos e alinhá-los às outras partes dos versos, e vice-versa, numa operação constante
de desmontagem e remontagem da palavra. Por isso, conforme o sentido do sonho
variava o significado da semente e do despejo. Defender e descobrir os sonhos de
Bandarra passava pelo entender por que as Trovas estavam em sonhos e por que se
definiam e afirmavam como tal. Nesse sentido, as variantes e a opção por um ou outro
traslado das Trovas supunham leituras diferentes. As múltiplas transcrições e as
interpretações dos versos e das palavras apontavam possibilidades de exegese da
matéria profética, que não podiam ser elaboradas em separado. A matéria e a sua
enunciação estavam intrinsecamente relacionadas, e a mudança desta acarretava a
mudança daquela. No palco dessas ligações móveis, desvendar o sentido de uma palavra
era ajudar a compreender o sentido do que se representava. Desvelar o sonho, evento,
manifestação, figura, era desvelar o teatro do mundo e o futuro de Portugal e da
Cristandade.
NOTAS
1. BESSELAAR, J. Sebastianismo – uma história sumária. Lisboa: ICALP, 1987, p. 56.
2. CASTRO, J. "De quinta e ultima monarchia futura com muitas outras cousas admiraueis do
nosso tempo", BNL, Reservados, Cód. 4371, f. 6a.
3. Na Bibliotheca lusitana, ainda mantém-se essa idéia: "como não soubesse ler nem escrever se
valia da mão alhea para as divulgar." MACHADO, D.B. Bibliotheca Lusitana. Lisboa: CNCDP, s/d, CD-
Rom, verbete "Gonçalo Annes Bandarra".
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4. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas (ed. Adma Fadul Muhana) Lisboa: Cotovia, 1994, cap.
"Responde-se às dúvidas e argumentos em contrário"; cf. CASTRO, J. Paraphrase et concordancia, de
algvas propheçias de Bandarra, çapateiro de Trancoso. (Fac-símile da edição de 1603) Porto: Lopes da
Silva, 1942; CASTRO, J. "De quinta e ultima monarchia futura", op. cit., f. 6a.
5. HOROZCO Y COVARRUBIAS, J. Tratado de la verdadera e falsa prophecia. Segovia: of. De Juan de La
Costa, 1588.
6. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas. op. cit. cap. "Provas-se directamente que Bandarra
escreveu com verdadeiro espírito profético".
7. Bandarra sabia ler, tinha acesso a uma Bíblia em vulgar, como também escrever, bem como não
era um homem pobre. Além disso, se o processo começou em 1541, muito possivelmente as Trovas
foram compostas antes, entre 1520 e 1530. Para a caracterização de Bandarra no processo ver, em
especial: AZEVEDO, J.L. A evolução do sebastianismo. Lisboa: Presença, 1990; BESSELAAR, J.V.D.
Sebastianismo – uma história sumária. Lisboa: ILCP, 1987; MAGALHÃES, L.H. Poder e sociedade no reino
de Portugal no século XVI: as Trovas de Bandarra. Tese de Doutorado, História, UFPR, 2004. O processo
foi só conhecido no XIX, com o fim do Santo Ofício. No vol. III do Inocêncio, está que os detalhes
do processo foram publicados em 1851, num artigo da revista "A semana", mas não dá o autor.
Diccionario Bibliographico Portuguez. vol. III e IX, em ambos: verbete "Gonçalo Anes Bandarra".
8. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas, idem.
9. Vieira inclusive defendeu que o fato de haver essa proliferação de testemunhos, que, apesar
das corrupções, concordavam no essencial, era evidência de que a matéria das Trovas era, de fato,
verdadeira, pois assim se mantinha a mensagem que queria passar – e o mesmo teria ocorrido
com os judeus e a divulgação das Escrituras. cf. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas, op. cit.
10. Sobre a importância das variações nos manuscritos (e mesmo nos impressos) durante o
Antigo Regime, ver: BOUZA, F. Corre manuscrito. Una historia cultural del Siglo de Oro. Madri: Marcial
Pons, 2001, cap. 1.
11. Mesmo antes da edição de 1644, essa passagem de I para J estava estabelecida. Um ano antes,
no Restauração de Portugal Prodigiosa, se fazia essa emenda: "nem se pode crer que dissesse «Dom
foam», porque nesta forma nada mostrava do que vaticinava, e assim se há-de ler «Dom João»,
porque se há-de presumir que foi êrro no transladar, em se fazer F do J, grandes, o que os
apaixonados do Sereníssimo Rei D. Sebastião mudariam, por lhes fazer assim mais a seu caso,
porquanto pessoas de muito crédito nos certificaram que viram translados, mui autênticos e
antigos, destas obras de Bandarra, ainda no tempo de El-Rei D. Sebastião, e diziam: «o seu nome é
D. João»." Gregório de Almeida (pseud.), Restauração de Portugal Prodigiosa, 1643-4, 2v. (re-ed.
Barcelos, Cia. Editora do Minho, 1939, 4v) 3v, p. 54.
12. Supostas como estilo dos "sonhos de Bandarra", foram repetidas no chamado 'terceiro corpo"
das Trovas, de 1729, como que para indicar sua autenticidade pela semelhança.
13. HOROZCO Y COVARRUBIAS, J. op. cit., p. 38.
14. Idem, p. 38-39 (à margem).
15. Gregório de Almeida (pseud.), Restauração de Portugal Prodigiosa, op. cit.
16. Ibidem, p. 66.
17. Idem, p. 54.
18. Idem, p. 65.
19. Além disso, Vieira partia do pressuposto que a simples interpretação correta de visões seria
característica de um verdadeiro profeta, cf. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas., op. cit.
20. Na edição crítica de Besselaar: "E se o verdadeiro profeta e primeiro autor desta profecia não
é Bandarra, senão Santo Isidoro". VIEIRA, A. Livro anteprimeiro da História do Futuro. (ed. Crítica de
José Van Den Besselaar) Lisboa: Biblioteca Nacional, 1990, p. 84.
21. Para outros exemplos desse "discurso engenhoso" a partir das palavras, ver: SARAIVA, J.A. O
discurso engenhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.
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22. Para uma visão geral da obra impressa e manuscrita de Castro, ver: AZEVEDO, J.L. A evolução
do Sebastianismo, op. cit. Para a biografia, além de Azevedo, ver: HERMANN, J. No reino do desejado. A
construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998;
BERCÉ, Y.M. O rei oculto. Bauru: Edusc, 2003.
23. CASTRO, J. Paraphrase et concordancia de algvas prophecias de Bandarra, çapateiro de Trancoso.
[Paris]: s/e, 1603, p. 21-22.
24. CASTRO, J. "Da Quinta & ultima Monarchia futura", op. cit., f. 6v.
25. Idem, f. 7.
26. AGOSTINHO. De genese ad litteram. Liv. XII.
27. Castro retomou esse argumento quase no final da obra: "o qual porque se nam enganasse
alguem com ellas, cuidando que eram sonhos ordinarios, & nam visoens Diuinas, por dizer: Vejo
que estou sonhando : porisso neste remate de todas, as nomea pello seu proprio nome de
Propheçias, amoestãdo com efficacia que as notem bem, como quem via nellas o seu grãde
thesouro & sua grandissima importancia: e iuntamente a igual difficuldade em sua intelligençia,
& o pouco caso que dellas se auia de fazer." Paraphrase et concordancia de algvas propheçias de
Bandarra, çapateiro de Trancoso, por Dom Ioam de Castro (Fac-símile da edição de 1603) Porto, Lopes
da Silva, 1942.
28. No Capitulo Oitavo, ele retomou a questão numérica dos "vejo", porém, agora falando do
número três, da repetição dos "vejo" no primeiro verso e sua relação com os versos "Que assi faz
o conto cheo./ Hum dos tres que vem arreo" e a determinação dos tempos: "Ora huma das
considerações desta profeçia he que o Espirito serue nella de tres ternarios compostos de dezes,
que sam perfeitissimos, pera contar o tempo determinado: correspondendo a qui o numero Trino
tam perfeyto, com o que vsou no principio do seu sonho, dizendo: Vejo: Vejo: direi? Vejo..." f. 64.
29. No Bluteau, na segunda acepção de despejo, há duas citações de Francisco Manuel de Melo
(Carta do guia dos casados) e Rodrigues Lobo (Corte na aldeia), contemporâneos mais de Vieira do
que Castro, que gravam o sentido ambíguo e a influência negativa do castelhano: "Na carta de
guia &c. P. 86, diz D. Franc. Man. Faz grande dano huma maldita palavra, que se nos pegou de
Castella, a que chamaõ Despejo, de que muytas molheres se prezaõ [ou seja, no sentido de
desenvoltura], & certo he, que em bom Portuguez, Despejo, he descompostura. Outra explicaçaõ lhe
ia em dar, mas esta baste; E claro está que o Despejo he cousa ruim, porque o pejo [embaraço] era
cousa boa. Agora sera Despejo a minha ousadia. Lobo Corte na Aldea, 206" BLUTEAU, Raphael.
Vocabulario Portuguez & Latino. Coimbra: no Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1713, v.
3, p. 163-164.
30. CASTRO, J. Paraphrase et concordancia, op. cit, p. 23-24. No "Comento de alguas trovas de
Bandarra", que segue uma cópia das Trovas no "Jardim Ameno", a versão é a de D. João de Castro,
porém o comentário optou pelo sentido considerado enganoso pelo sebastianista: "Falla aqui o
Bandarra de Phellippe 2°. Rey de Castella, bisneto del Rey Dom Fernando, o qal. fes hum grande
despejo em seus Reynos, eleuado de cobiça, e ambiçaõ, deixou a sua uinha, que era Castella, e se
entroduzio com promessas, traças, e inuençõis, no Rn°. de Portugal, que naõ lhe pertencia, por
muitas e exclusiuas, como consta das Cortes de Lamego. E o Reyno de Portugal, ser de iure,
patrimonio da Senhora Dona Catherina Duqueza de Bragança, a voô del Rey Dom João quoarto
Nosso Snôr." In: "Jardim Ameno", ANTT, Manuscrito da Livraria, Cód. 774, f. 55v-56f.
31. Estou usando a edição crítica e comentada feita por José Van Den Besselaar. VIEIRA, A.
"Esperanças de Portugal. Quinto Império do Mundo. Primeira e segunda Vida del-Rei D. João o
Quarto Escritas por Gonçaleanes Bandarra" in: BESSELAAR, J.V. Antônio Vieira. Profecia e polêmica.
Rio de Janeiro: EdUerj, 2002, p. 49.
32. MUHANA, A.F. "O processo inquisitorial de Vieira: aspectos profético-argumentativos"
Semear, 2, 1997, cf. PÉCORA, A. "Vieira, a Inquisição e o capital" Topoi, 1, 2000, p. 178-196. (cf.
particularmente o artigo de Pécora para uma rápida idéia do momento, dos antecedentes e da
estrutura do processo).
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231
33. Os autos do processo de Vieira na Inquisição (org. Adma Fadul Muhana). São Paulo: Unesp, 1995, p.
248.
34. No exame, o inquisidor Alexandre da Silva fez perguntas sobre as "Representações" e a
Apologia, possivelmente destacando a partir da qualificação feita da leitura dos manuscritos
tomados de Vieira. Entre elas, uma que diz respeito diretamente ao ponto discutido aqui:
"Perguntado se está ele declarante lembrado de haver dito, ou escrito, em algum dos papéis, que
apresentou nesta Mesa, que de Bandarra dizer dezoito vezes, que via as coisas futuras (...)", Autos
do processo, op. cit, p. 250. O inquisidor se refere à passagem do capítulo da Apologia, intitulado
"Prova-se que do discurso passado se infere bem haverem-se de cumprir todas as coisas que nos
escritos do Bandarra estão preditas.", no qual está: "Sobretudo se deve muito advertir que
dezoito vezes repetidamente diz Bandarra que via as sobreditas coisas, e sendo certo que as via, é
também certo que não podem deixar de suceder, porque ainda que algumas de sua natureza
fossem condicionais, suposto que foram vistas, segue-se que não interveio a condição, e que hão
de ter efeito absoluto, porque doutra maneira não podiam ser vistas". VIEIRA, A. Apologia, op. cit.,
cf. nos Autos do processo, a qualificação dos textos vieirenses, p. 423.
35. Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Pte. 1ª. Q. 12, A. 11, cf. Pte. 2ª-2ª. Q. 174, a.2.
36. VIEIRA, A. Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício. Salvador: Livraria Progresso, 1957, t. 1, p.
136, § 211 (grifos meus).
37. Idem, p. 136-127, § 212.
38. Idem, p. 138, § 213 (grifos meus).
39. VIEIRA, A. Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício, Salvador: Progresso, 1957, § 274.
40. Idem, § 202.
41. VIEIRA, A. Apologia das coisas profetizadas, op. cit.
42. MUHANA, A.F. "Introdução" in: Autos do processo de Antonio Vieira, op. cit.; MUHANA, A.F. "O
processo inquisitorial de Vieira: aspectos profético-argumentativos", op. cit.
43. MUHANA, A.F. "Introdução", Autos do Processo, p. 28.
44. Cf. MUHANA, A.F. "Introdução", Autos, p. 23-24.
45. Cf. MARENBON, J. Later Medieval Philosophy. 1150-1350: An Introduction. Londres: Routledge, 1996,
p. 12-14,19-20, e espec. 27ss.
46. Segundo Janice Theodoro da Silva, a estratégia adotada por Vieira na sua Defesa teria sido
abandonar o "discurso engenhoso", que seria a marca da inversão libertária barroca, por uma
retórica similar à do inquisidor. Como mostrou Margarida Vieira Mendes, porém, o estilo de
Vieira na Defesa e nos textos produzidos durante o processo seguiu as preceptivas da oratória
barroca que conduziam os sermões, pelas quais "o verossímil prevalece sobre a verdade e a
intenção de movere sobre a de docere" e "há menos declaração de convicções e mais utilização
suasória das idéias expostas e também do modo de as expor". MENDES, M.V. "Comportamento
Profético e comportamento retórico em Vieira" Semear 2; SILVA, J.T. "A retórica do cativo" In:
América Barroca, São Paulo: Edusp, 1992, cap. 8 (versão eletrônica consultada no site http://
www.ffich.usp.br/dh/ceveh). Para os modelos discursivos, ver: MARENBON, J. op. cit.
47. Adma Muhana mostra isso na sua Introdução, a partir dos Autos.
48. "Sentença do P.e Matheus Francisco da Companhia de Jesus, o qual saiu segunda vez no Auto-
de-Fé, que se celebrou em Goa no anno de 1664", In: RÊGO, Y.C. Feiticeiros, profetas e visionários.
Lisboa: Biblioteca Nacional, 1987, p. 57-76; Processo de "Maria de Macedo", ANTT/Inquisição de
Lisboa, Processo nº 4404; proc. de Francisco Barbosa ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. Nº 8052
citado por PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem 'caça às bruxas'. Lisboa, Notícias,
1997, p. 121; "Processo de Luísa Pereira da Silva" ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. Nº 1515, fl.
37v-38.
49. Os Lusíadas, Canto 1, 10.
50. Eclo, 34:1. A tradução da Bíblia de Jerusalém é muito análoga à Vulgata, no primeiro verso,
porém, no segundo, a Vulgata traz uma versão que se coaduna melhor com a oposição entre
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rústicos e letrados, pela imprudência: "Vana spes et rnendax viro insensato,/et somnia extollunt
imprudentes".
51. "Edital Impresso do Conselho geral do Santo Officio em que prohibe a liçaõ das obras do
Bandarra, dada em Lisboa em 1665. folha gr." Academia de Ciências de Lisboa, Série Vermelha,
Cód. 459.
52. Para esse artigo, foi utilizada a edição crítica de Besselaar do "Ante-Vieira", In: BESSELAAR,
J.V.D. Antônio Vieira – profecia e polêmica, op. cit. Besselaar tomou por base para sua edição um
testemunho das primeiras décadas do século XVIII, existente na Academia de Ciências de Lisboa:
"Ante=Vieira. Nas Esperanças Do Quinto Império Portuguez Fundadas na primeira, e segunda
vidas Do Senhor Rey Dom Joaõ IV. Accommodadas Pelo Padre Antonio Vieira A Gonçalo Annes
Bandarra Respondidas Por hum Anonymo Curioso Anno de 1661.", ACL, Série Azul, Cód. 1118A.
53. VIEIRA, A. "Esperanças de Portugal" In: BESSELAAR, J.V.D. Antônio Vieira – profecia e polêmica,
op. cit., p. 49.
54. Idem, p. 64. Besselaar demonstra que Vieira, no Maranhão, devia ter uma lição manuscrita das
Trovas, por algumas variantes em relação à edição de 1644. Contudo, durante o processo, quando
escreve a Defesa, se reporta à versão de Nantes, de memória.
55. "Ante-Vieira", p. 149.
56. Idem, p. 164-5.
57. Idem, p. 148, 185.
58. Para uma apreciação não só sobre os diferentes títulos, mas sobre as diferenças entre os
testemunhos, ver: BESSELAAR, op. cit., p. 223, 226. Como no caso da carta "Esperanças de
Portugal" e do "Ante-Vieira", seguiremos a edição crítica de Besselaar, salvo indicação em
contrário.
59. ANTT, Manuscritos da Livraria, Cód. 382.
60. BNL, Reservados, Cód. 2674.
61. No volume manuscrito: "Obras do Pe. Antonio Vieyra da Companhia de Jezuz tom 3. Papeis
Duvidozos", ANTT, Manuscritos da Livraria, Cód. 1172, s/f.
62. Idem.
63. "Opinião contrária" In: BESSELAR, op. cit, p. 231.
64. Na edição de Besselaar, por um erro tipográfico, está "poetas" ao invés de "profetas". No
manuscrito da Torre do Tombo, a passagem está assim: "Os Poetas em Latim se chamam =Vates=,
e Vates= no mesmo idioma quer dizer profeta: os profetas vaticinaraõ, como Poetas, e os Poetas
talvez escrevem como profetas, assim o diz hum delles = est Deus in nobis agitante calescimus illo
= dis, que Deus moue o espírito do Poeta", "Satisfaçao apologética", s/f.
65. "Opinião contrária", In: BESSELAAR, J. op. cit., p. 241.
66. Sobre as relações entre poesia e profecia na literatura ocidental, houve um seminário em
Harvard, em 1986: KUGEL, J. (ed.) Poetry and prophecy. The beginnings of a literary tradition. Cornell
University Press, 1991.
67. "Opinião contrária", p. 248.
68. Besselaar transcreveu uma confutação anônima das "Esperanças de Portugal", que foi escrita
por um copista setecentista da carta. Nela, o anônimo, admirador de Vieira, discordava da
exegese das Trovas num só ponto: se o poder de Deus era infinito, e podia rescussitar qualquer
um, fazia mais sentido trazer de volta dos mortos o rei Afonso Henriques, que tinha expulso os
mouros de Portugal, fundado o reino e era favorecido do céu. BESSELAAR, J.V. Antonio Vieira –
profecia e polêmica. op. cit, p. 345-347 (o manuscrito está no códice 400 da BN-Lisboa. Cf. Inventario.
Secção XIII – Manuscriptos. Lisboa: [Biblioteca Nacional de Lisboa], 1896).
69. HANSEN, J.A. "Notas sobre o 'Barroco'", Revista do IFAC, 4, dez. 1997.
70. Para o conceito de gramática de Wittgenstein, pensado para o estudo de história moderna
ver: CLARK, S. "French historians and early modern popular culture". Past and Present, 100, 1983;
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cf. CLARK, S. Thinking with demons. The idea of witchcraft in early modern Europe. Oxford: Oxford
University Press, 1997; cf. PÉCORA, A. Máquina de Gêneros. São Paulo: Edusp, 2001.
71. António José Saraiva pôs essa relação em termos do par significante-significado, na qual o
significante teria significado e vice-versa. Ainda que como "tradução" o modelo descritivo do
Saraiva tenha sua eficácia, prefiro pensar a relação menos como dicotômica (e, por isso,
aparentemente contraditória) e mais como fruto da idéia de analogia da Palavra divina, no qual
tudo conteria uma centelha do Verbo criador e por isso poderia ser analisado nessa esfera que
hoje dividimos entre forma e conteúdo, significante e significado. Para uma discussão da
proposta de Saraiva, ver: PÉCORA, A. Teatro do sacramento. op. cit.
RESUMOS
A proposta desse artigo é analisar as diferentes apropriações e entendimentos das Trovas de
Bandarra no século XVII, a partir das tópicas do "sonhar" e "ver", que estruturam o poema
profético. Identificando algumas estrofes recorrentes nos comentários seiscentistas, pretende-se
discutir as polêmicas surgidas em torno dos "Sonhos" do sapateiro de Trancoso e como estas
permitem identificar posições frente ao problema do sonho profético e de seu uso nas leituras do
destino e futuro português. A estrutura do texto é dada pelo passo das polêmicas em torno dos
comentários às passagens selecionadas, com especial destaque para a figura do jesuíta Antonio
Vieira e as disputas envolvendo seus textos na segunda metade do século XVII.
The proposal of this article is to analyze the different uses and perceptions of Bandarra's Trovas
in the 17th Century, observing the structural topics of "dreaming" and "seeing". Through the
identification of some recurrent verses in 17th Century commentaries, we intend to understand
the controversies around the "Dreams" of the shoemaker of Trancoso and how they allow us to
identify opposite positions towards the problem of prophetic dream and its uses in
interpretations about the Portuguese destiny and future. The text follows the controversies
around the verses commentaries, with special attention to the figure of the Jesuit Antonio Vieira
and the disputes involving his texts in the second half of 17th century.
ÍNDICE
Palavras-chave: Trovas de Bandarra, sonhos, visão, poema profético, Antonio Vieira
Keywords: Bandarra's Trovas, prophetic dream, Portuguese destiny, Antonio Vieira
AUTOR
LUÍS FILIPE SILVÉRIO LIMA
Universidade Federal do Paraná. Cátedra Jaime Cortesão, Universidade de São Paulo
Professor Pro-Doc/Capes junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Paraná, e pesquisador da Cátedra Jaime Cortesão, Universidade de São Paulo. Autor do
livro Padre Vieira: profecias oníricas, sonhos proféticos. O tempo do Quinto Império nos Sermões
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de Xavier Dormindo (São Paulo: Humanitas, 2004) e do artigo "Sonho e pecado: visões oníricas e
oniromancia dos 'índios' e 'gentios' na catequese jesuítica na América Portuguesa (1549-1618)",
Revista de História (USP), n. 149, 2°. Semestre, 2003, p. 139-180.
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O ensino e a valorização profissionaldo jornalismo em portugal(1940/1974)Education and Professional Valorisation of Journalism in Portugal (1940/1974)
Fernando Correia e Carla Baptista
1. I Curso de Jornalismo de 1968/69
1 Uma iniciativa "útil e oportuna". Foi assim que a separata Jornalismo,1 editada pelo
Sindicato Nacional dos Jornalistas (SNJ), se referiu à inauguração do I Curso de
Jornalismo, no dia 21 de Novembro de 1968. As aulas iniciaram-se pouco depois, a 25 de
Novembro, na sede do Sindicato Nacional dos Caixeiros, que cedeu o seu "vasto salão"
para albergar os cerca de 200 inscritos.
2 Ao fim de 28 anos de reivindicações, "após porfiadas e várias tentativas infrutíferas",2 o
SNJ conseguia, por fim, o seu intento: realizar um curso de jornalismo, com a duração
de quatro meses, quatro dias por semana, em horário pós-laboral, com duas sessões de
50 minutos cada.
3 Embora de gestação muito lenta, o curso foi um sucesso. Em carta3 dirigida aos
directores dos jornais diários de Lisboa e do Porto, a quem solicitava um depoimento
sobre "as vantagens ou desvantagens do curso para arquivar nas colunas do nosso
boletim, Nuno Rocha, responsável por aquela publicação, descrevia assim o evento: "o
êxito da iniciativa excedeu as expectativas do sindicato e exprime-se no número de
adesões: estão inscritos mais de duas centenas de sócios do organismo (160 em Lisboa e
no Porto) e algumas dezenas de universitários".
4 No dia 14 de Novembro de 1968, a poucos dias, portanto, do início das aulas, um ofício
do SNJ fazia o balanço dos inscritos. De um total de 160 inscrições, 48 eram de
profissionais e 112 de não jornalistas, designados por particulares. Dos profissionais, 47
eram homens e apenas uma era mulher;4 dos particulares, 87 eram do sexo masculino e
27 do sexo feminino.
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2. Mesas redondas no Sindicato Nacional dosJornalistas
5 A ideia de lançar o I Curso de Jornalismo era já antiga mas começou a fervilhar com
maior intensidade durante a realização, entre 12 de Junho e 24 de Julho de 1967, na sede
do SNJ, de uma série de mesas redondas dedicadas à temática da "situação do jornalista
profissional português", organizadas conjuntamente com a Casa de Imprensa.
6 Os quatro debates, destinados a "elucidar a direcção do Sindicato quanto ao
pensamento da classe acerca dos seus problemas",5 contaram com intervenções dos
jornalistas César Afonso, sobre formação profissional; Manuel de Azevedo, que se
ocupou da posição social do jornalista; José Carneiro da Costa Carvalho, que falou da
remuneração material e Leopoldo Nunes, que tratou da deontologia profissional.
7 César Afonso resumiu as principais dificuldades: "salários irrisórios, que obriga a
maioria a procurar fora da profissão o complemento necessário para se manter
dignamente; burocratização da informação que deu como resultado a burocratização do
noticiário, tornando-se geral o recurso ao corte e cola; falta de cultura de base e de
especialização".6
8 O SNJ levou a sério uma das recomendações saídas destas mesas redondas: "promover,
imediatamente, a realização de cursos de formação e aperfeiçoamento destinados aos
jornalistas profissionais e organizados, tanto quanto possível, por jornalistas".7
9 Foi nomeada uma comissão formada por César Afonso, José Manuel Pereira da Costa
(presidente do SNJ), Manuel de Azevedo e José Rodrigo da Costa Carvalho, que logo
começou a trabalhar no sentido de desenhar o esquema do curso e encontrar o
financiamento necessário.
10 Num oficio enviado aos sócios, o projecto do futuro curso é apresentado da seguinte
forma: "As lições serão seguidas de debate. Resolveu-se que este curso não será
anunciado na imprensa e será limitado, tanto quanto possível, a jornalistas
profissionais".8
11 Os participantes pagariam uma pequena inscrição recebendo, no final, as lições
impressas. Estava previsto que o curso decorresse na sede do sindicato, durante três
meses.
12 O tema geral era "A informação e as suas técnicas" e tinha um carácter eminentemente
técnico, sendo leccionado por jornalistas: Redondo Júnior (Como se faz uma notícia);
Urbano Carrasco (Processos de fazer uma reportagem); José de Freitas (O interesse da
entrevista no jornal); Urbano Tavares Rodrigues (Como se faz uma entrevista); Dutra
Faria (A informação que o jornal recebe); Fernando Teixeira (A informação que o jornal
procura); Pinto Bastos (As fontes de informação); Manuel Rodrigues (As fontes que o
jornal utiliza no noticiário internacional); Ayala Monteiro (Artigo e comentário);
Manuela de Azevedo (O papel do crítico); Nuno Vieira (Título, gravura, legenda); César
Afonso (O jornal perante os outros órgãos de informação) e José Tengarrinha (A
Imprensa e a publicidade).
13 Em Julho de 1968, o projecto já tinha evoluído para um formato diferente: contemplaria
aulas teóricas e práticas e, apesar de se destinar essencialmente ao aperfeiçoamento e
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formação profissional dos sócios do SNJ, ficava também "aberto aos que desejem
iniciar-se na profissão".9
14 Ganhou força uma pretensão anterior, igualmente expressa pelos sócios durante a
realização das referidas mesas redondas: que o Sindicato estudasse "a criação de uma
escola de Jornalismo, pois se reconhece como indiscutível a sua vantagem".
15 O modelo adoptado, um curso de quatro meses, com aulas de ensino geral e de teoria e
prática da informação, seguiu uma orientação claramente pré-universitária. As
matérias e respectivos professores incluíram Língua Portuguesa (José Manuel Tavares);
História Contemporânea (Joel Serrão); Doutrinas Filosóficas (Luís Ardissson Pereira);
Direito (Nogueira de Brito); Economia (Xavier Pintado); História da Imprensa (José
Manuel Tengarrinha); A Comunicação e os seus Meios (Navarro de Andrade); Prática da
Comunicação (João Gomes); Sociologia da Comunicação (José Júlio Gonçalves); Técnicas
Gráficas (Vítor da Silva); Panorâmica da Imprensa Estrangeira e Análise de Conteúdo
(José Lechner).
16 A maioria dos formadores eram professores universitários e liceais. Apenas dois (João
Gomes e José Lechner) eram jornalistas, recém-licenciados pela Escola Superior de
Jornalismo de Lille, em França. O curso contemplou ainda várias palestras, a título de
aulas extraordinárias, incluindo de estrangeiros.
17 Os jornalistas beneficiaram de prioridade e desconto na inscrição, pagando apenas
metade (duas prestações de 300$00) do total da propina (duas prestações de 600$00),
"que se destinam às despesas com as sebentas das lições".10
18 Os candidatos não jornalistas deviam possuir o 7º ano dos liceus e ficaram sujeitos a
uma selecção, devido à enorme afluência de interessados. No final, foi concedido um
diploma, meramente indicativo, aqueles que realizaram um exame.
19 A enchente de candidatos obrigou a criar uma modalidade por correspondência, para os
que estavam impedidos de assistir às lições por se encontrarem fora de Lisboa, e acabou
por complicar a organização do curso. A logística tomou-se complexa, obrigando a
pedir ao Sindicato dos Caixeiros a cedência das instalações e perdeu-se a ligação mais
estreita com o meio profissional.
20 João Gomes, um dos dois jornalistas/professores, confessou ao Diário Popular as
dificuldades em lidar com uma audiência tão heterogénea, onde existiam jornalistas,
bancários, uma hospedeira da TAP, um comissário de bordo, funcionários públicos,
empregados de escritório, estudantes universitários, tradutores, oficiais milicianos, um
padre, advogados, um controlador de tráfego aéreo, um meteorologista, um
profissional de hotelaria, engenheiros, bibliotecários: "Devia haver cursos para os não
profissionais e, para os jornalistas, estágios adaptados a pessoas que já exercem a
profissão. Os não profissionais estão ávidos de conhecimentos práticos que não podem
ministrar-se num curso em que já estão profissionais, pois esses conhecimentos –
rudimentares – são de todos estes por demais conhecidos".11
21 Outra consequência importante foi o endividamento do SNJ. Apesar de ter obtido do
Ministério das Corporações e da Previdência Social12 um subsídio de 100 000$00, ao
abrigo do Fundo para o Desenvolvimento da Mão de Obra, as despesas previstas pelo
SNJ, ainda em Julho, antes do número de inscrições ter disparado, foram calculadas em
200 600$00.13
22 Em Março, o SNJ apelou a José Azeredo Perdigão, administrador da Fundação
Gulbenkian:14 "Devido à inesperada amplitude tomada pelo curso, vê-se agora este
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sindicato perante a perspectiva de não poder prosseguir, pois a verba de cem mil
escudos concedida pelo Ministério das Corporações esgota-se, sendo necessário renová-
la ou interromper o curso em meio".15
23 Mas foi o Ministério das Corporações que acabou por responder positivamente e com
celeridade à carta em que a direcção expunha as suas razões: "A direcção deste
sindicato vê-se a braços com um deficit de 40 000$00 pois a verba que Vossa Excelência
tão generosamente nos concedeu ficou muito aquém das despesas que tivemos de
enfrentar. É pois a Vossa Excelência que mais uma vez nos dirigimos, no sentido de nos
ser atribuído um subsídio suplementar para compensar o referido deficit.".16
24 Apenas um dia depois, o ministro Gonçalves Proença autorizou a atribuição de "mais
um subsídio de 40 000$00 para despesas extraordinárias".17
25 No solene discurso da sessão de abertura, aquele responsável, secundado pelo
secretário de Estado da Informação, César Moreira Baptista, afirmou-se "convencido
que se trata apenas de uma primeira experiência susceptível de facilitar o lançamento
de uma iniciativa que verdadeiramente interessa à formação dos jornalistas: a criação
entre nós de um órgão que a tal formação se destine por forma institucionalizada e
permanente".18
26 Também o presidente do sindicato, no seu discurso inaugural, aludiu a essa lacuna
"incompreensível, injustificável e inadmissível. Falo, evidentemente, da ausência de
uma escola de Jornalismo". Pereira da Costa referiu-se um dado novo que tornava ainda
mais premente a necessidade de uma tal escola: "O amadorismo e o empirismo, factores
dominantes num género de jornalismo até à data recente observado entre nós,
desaparecem rapidamente da imprensa. O jornalista português (uma informação: vinte
por cento dos profissionais admitidos nos últimos dois anos são universitários) atingiu
maioridade bem patente no progresso dos principais órgãos de informação. Ninguém
acredita hoje que o talento e uma experiência mais ou menos profunda sejam
suficientes para o profissional desempenhar cabalmente a missão que lhe incumbe".19
27 No âmbito da cobertura jornalística da sessão final, a Vida Mundial publicou o seguinte
balanço: "Escolas, prática, melhor formação, nada disto bastará para um melhor
jornalismo: para tal precisa o profissional de liberdade. Liberdade para aceder a toda a
informação, liberdade para a dar, liberdade para assumir a responsabilidade que lhe
cabe, como homem, como jornalista".20
28 E a Censura, desta vez, não cortou.
3. Primeira tentativa de realizar um Curso deFormação Jornalística em 1941
29 O desejo de promover um curso de jornalismo datava já dos anos 40. No dia 8 de
Fevereiro de 1941, Luís Teixeira, então presidente da Comissão Administrativa do
Sindicato, entregou ao subsecretário de Estado da Educação Nacional o texto do
projecto do Curso de Formação Jornalística (CFJ), que veio publicada no número I do
Boletim do SNJ, de Maio de 1941.
30 No boletim Jornalismo número 8, de Novembro de 1968, o SNJ voltou a publicar esse
texto, em jeito de homenagem irónica, escrevendo que "essa tentativa de valorização
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profissional dos jornalistas não encontrou então o apoio necessário junto das entidades
oficiais – situação que se mantém, decorridos 28 anos".21
31 A proposta liderada por Luís Teixeira era já muito consistente e bem estruturada. Prova
disso é que o curso de 1968/69 retomou grande parte da sua formulação, embora com
alterações.
32 O objectivo do Curso de Formação Jornalística (CFJ) era "preparar, através de ensino
teórico e prático, o exercício da profissão de jornalista".22
33 No projecto apresentado ao subsecretário de Estado da Educação Nacional, Luís Teixeira
enuncia os objectivos da criação daquele curso: "promover a valorização profissional
dos jornalistas; elevar o nível de cultura até aos limites exigidos pela missão que
desempenham na vida portuguesa e dignificação da imprensa no nosso país".23
34 Justificando a necessidade da iniciativa, argumenta da seguinte forma: "O recrutamento
do pessoal dos quadros redactoriais dos nossos diários faz-se por tentativas de
experiência, incertas e pouco seguras nos seus resultados. A carreira profissional do
jornalista começa com base em indícios nítidos de vocação e tendência natural e
desenvolve-se sempre ao sabor da revelação de espontâneas qualidades pessoais. Falta o
encaminhamento necessário que oriente e aproveite para uma finalidade justa o
esforço do autodidacta que faz do jornalismo o seu modo de vida".24
35 O CFJ foi uma tentativa (falhada) de orientar e sistematizar a vocação e o
autodidactismo que, até aí e durante muitos anos vindouros, funcionaram como
habilitação principal para o exercício da profissão, colocando os candidatos a
jornalistas na dependência de juízos muitas vezes arbitrários, fruto das suas melhores
ou piores relações pessoais dentro do meio profissional.
36 Foi também reveladora de um desejo de promoção intelectual da profissão, dotando-a
de um conjunto de conhecimentos bastante exigente, como veremos adiante, e
reconhecendo-lhe competências específicas, nomeadamente a capacidade de
seleccionar o mais relevante segundo critérios jornalísticos e de narrar essas escolhas
usando as regras da linguagem jornalística.
37 O articulado do projecto de criação do CFJ estipulava que se podiam inscrever, "até ao
limite de 30 anualmente, os indivíduos de nacionalidade portuguesa que pretendam
dedicar-se ao profissionalismo jornalístico, desde que possuam as habilitações mínimas
equivalentes ao 5º ano dos liceus ou que, por certidão passada pelo SNJ, provem exercer
a profissão há mais de um ano".
38 O curso compunha-se de cadeiras teóricas, conferências livres e exercícios práticos,
estando igualmente previstas visitas de estudo às redacções e oficinais gráficas mais
importantes.
39 Sete cadeiras completavam a bagagem teórica do curso, que se deveria estender por
dois anos: "A formação profissional do jornalista", "A educação política e histórica do
jornalista", "Os estados modernos e o direito internacional público", "Os grandes
problemas económicos actuais", "História geral da Imprensa", "Formação e evolução do
jornalismo profissional em Portugal" e "Legislação da Imprensa".
40 Os exercícios práticos, reservados para o segundo ano, tinham por fim "iniciar os
alunos na vida profissional, proporcionando-lhes os conhecimentos basilares das
línguas portuguesa e francesa e de estenografia e, através de cursos de aplicação,
orientando-os nas modalidades da actividade jornalística".25
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41 O CFJ tentava reunir académicos e profissionais em torno de uma ideia bastante
alargada das competências que um jornalista deveria possuir: por um lado, uma sólida
cultura geral; por outro, conhecimentos de géneros jornalísticos e de técnicas de
redacção, bem como dos aspectos práticos ligados à elaboração dos jornais, incluindo
artes gráficas.
42 A fina flor dos profissionais ligados aos principais jornais fazia parte do rol de
professores convidados a ministrar, em 30 lições bissemanais, a disciplina de Formação
Profissional do Jornalista. Nomes como Acúrsio Pereira, chefe de redacção de "O
Século"; Aprígio Mafra e Jaime Leitão, respectivamente chefe e sub-chefe de redacção
do "Diário de Notícias" e Norberto Lopes, chefe de redacção do "Diário de Lisboa",
figuravam ao lado de outros como Abel Moutinho, chefe dos Serviços de Propaganda e
Províncias do "Diário de Notícias", Norberto de Araújo, Braz de Medeiros,
administrador do "Diário Popular", Augusto de Castro, director do "Diário de Notícias"
e o próprio António Ferro.
43 O descritivo desta disciplina reflecte bem o ambiente fabril que se vivia nos grandes
jornais nacionais, leia-se, de Lisboa e do Porto, com uma rígida compartimentação das
tarefas e uma relativa estabilização dos géneros jornalísticos em torno de fórmulas
vigorosas.
44 Depois de uma introdução sobre o papel da imprensa na sociedade moderna, os alunos
avançavam para a organização técnica geral, incluindo as funções do chefe de redacção,
do redactor e do repórter; familiarizavam-se com os vários departamentos existentes
dentro da empresa, como a secretaria de redacção, os serviços de informação no
estrangeiro e os serviços de informação geral e, finalmente, aprendiam a técnica
profissional. Este ponto incluía: paginação, provas emendadas, títulos, medida do
interesse do assunto jornalístico em referência ao relevo que o seu registo deve ter.
Arquivo. A Primeira Página. As "últimas notícias".
45 É curioso ver como dois aspectos centrais do exercício da profissão durante os anos 40 e
que se prolongaram até muito mais tarde, se reflectem nestes itens: por um lado, o peso
das rotinas produtivas (um vai e vem de provas entre os vários membros do processo,
que incluía redactores, chefias de redacção, linotipistas, tipógrafos e censores); por
outro, a importância do desenho (manual) do jornal, que transformava a tipografia num
sector absolutamente central na feitura das publicações.
46 Estava previsto que os alunos que viessem a frequentar o CFJ aprendessem os "limites
da reportagem; a crónica sangrenta; a notícia falsa; a crónica dos tribunais e recursos
de improvisação",26 bem como os vários tipos de crítica, desde a teatral, passando pela
musical, cinematográfica, literária, desportiva e de artes plásticas. Os nomes dos
professores convidados são bem ilustrativos da importância que este género assumia
nos jornais da altura, funcionando como um escape para o espartilho da censura. Luís
de Freitas Branco, crítico musical, Diogo de Macedo, crítico de Artes Plásticas, Ricardo
Ornelas, crítico desportivo, Eduardo Scarlati, crítico teatral ou António Lopes Ribeiro,
crítico cinematográfico, não só eram já profissionais reconhecidos, como colaboravam
regularmente com vários jornais, assinando texto de opinião.
47 Os exercícios práticos de jornalismo, designados por "cursos de aplicação", deviam
incidir sobre géneros como a reportagem, a entrevista, o editorial, a crónica, os
inquéritos, a biografia, os ecos e a secção de Cidade.
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48 Trata-se de uma divisão que reflecte o horizonte de expressão existente nos jornais: o
editorial era um género importante, que vincava fortemente a posição do jornal e
sedimentava a sua identidade; as pequenas notícias da Cidade mereciam uma secção,
das poucas claramente definidas como tal nesta altura; ecos, biografias e crónicas
resultavam da inspiração no modelo jornalístico francês; reportagens e entrevistas
eram bastante raras mas, todavia, apreciadas e valorizadas como géneros jornalísticos
reservados aos mais credíveis e talentosos na profissão.
49 Acabou tudo por ficar "em águas de bacalhau". Só duas décadas depois, em 1962, o
assunto voltou ao debate público, com a realização, no Instituto Superior de Estudos
Ultramarinos, de uma série de palestras dedicadas a temas ligados à comunicação que,
novamente, pretenderam funcionar como embrião para um futuro curso de jornalismo.
4. Conferências no Instituto de Estudos Ultramarinosem 1962
50 Durante o período que nos ocupa não é fácil encontrar livros ou conjuntos de textos
editados de natureza teórica sobre jornalismo. Se, por motivos óbvios, isto se
compreende em relação a autores pertencentes à oposição, a verdade é que igualmente
se aplica aos que estavam do lado do regime, o que parece dar razão aos que defendem
o desinteresse do fascismo português pela imprensa, ou pelo menos o seu entendimento
de que os jornais, não obstante terem um papel a desempenhar no controlo da opinião
pública, estavam longe de exercer a importante função de propaganda e promoção do
regime que – a par de outros meios – lhes era atribuída pelo nazismo e pelo fascismo
italiano.
51 Revela-se por isso de particular interesse a edição pela Junta de Investigação do
Ultramar, na sua colecção de "Estudos de Ciências Políticas e Sociais", de um volume de
200 páginas intitulado Curso de Jornalismo,27 onde se reúnem os textos de um conjunto de
conferências promovido pelo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos em 1962 e
patrocinado pelo Centro de Estudos Políticos e Sociais da referida Junta.
52 O director do Instituto e do Centro era o então ministro do Ultramar, Adriano Moreira,
o qual, segundo A. da Silva Rego nas "Palavras de Abertura" ao volume, "já há anos
vinha manifestando o desejo da possível organização dum curso deste género,
destinado a chamar a atenção do público em geral para os problemas da imprensa".
Silva Rego afirma ainda supor ser o primeiro curso com esta temática a realizar-se em
Portugal, e lembra outro facto inovador, a crédito do mesmo inspirador tutelar, que foi
a introdução, na última reforma de estudos do Instituto, de uma cadeira de Sociologia
da Informação.
53 Estes elementos são importantes para a contextualização não só da realização do curso
– ou, mais modestamente, do ciclo de conferências28 – mas também para a edição do
livro e mesmo, como veremos, para algumas das posições defendidas pelos palestrantes,
que apesar da pertença, na maioria dos casos em cargos de responsabilidade, a órgãos
de informação do regime ou próximos dele, não se coibiram, por vezes, de afirmações
que não podemos deixar de considerar algo surpreendentes, vindas de quem vinham.
54 E quem eram e sobre que falaram eles? Pela ordem em que figuram na publicação, e tal
como são apresentados, temos Pedro Correia Marques, director de A Voz, "Técnicas de
direcção, edição e preparação de jornais"; Prof. Doutor Jacinto Ferreira, director de O
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Debate, "Órgãos de opinião e órgãos de informação"; Dr. Barradas de Oliveira, director
do Diário da Manhã, "Ética e responsabilidade no jornalismo"; João Coito, do Diário de
Notícias, "Tendências actuais da imprensa"; Doutor Almerindo Leça, director da Semana
Médica, "A imprensa científica"; Adolfo Simões Muller, director dos jornais infantis
Zorro e João Ratão; Trabucho Alexandre, chefe de redacção do Diário Ilustrado, "Métodos e
problemas do jornalismo desportivo"; Eng.º Silva Dias, director dos Serviços de
Programas da Emissora Nacional, "Técnicas de jornalismo falado"; Monsenhor António
Avelino Gonçalves, director do diário Novidades, "Algumas considerações sobre o regime
jurídico da imprensa"; Eng.º Barradas da Silva, director-geral da Radiotelevisão
Portuguesa, "O jornalismo e os modernos meios audiovisuais".
55 Na maneira como é abordada pelos conferencistas, directa ou indirectamente, a
concepção das funções do jornalismo, podemos descortinar duas tendências, cuja
existência reflecte o período de transição vivido neste início da década de 60 em
Portugal. Por um lado a orientação, enraizada na imprensa doutrinária do início do
século XIX, e cujos resquícios se mostravam, e mostrariam, ainda bem vivos nos fundos
(artigos de opinião publicados na primeira página); por outro, a informação, com origens
na segunda metade desse século mas que nesta década dava sinais de revitalização.
56 Nas palavras, por exemplo, de Jacinto Ferreira,29 existem dois tipos de órgãos: o de
opinião, cuja "finalidade fundamental consiste em difundir um conjunto de princípios
religiosos, morais, políticos, etc., e fazer deles a máxima propaganda possível", e o de
informação, que "movido apenas pela intenção do lucro, do negócio, se estabelece como
uma indústria, procurando vender cada vez mais papel impresso, isto é, aumentar a sua
tiragem".
57 Adivinha-se na forma como esta distinção é formulada uma mal disfarçada
desvalorização do jornalismo de informação, reforçada pelo elogio feito aos escritores e
intelectuais do século XIX que escreveram para a imprensa, esses sim, "autênticos
jornalistas",30 segundo a definição de Sainte-Beuve retomada pelo autor:
58 "Não se pode chamar jornalista a qualquer homem que escreve em jornais. O
verdadeiro jornalista é só aquele que está habilitado, pelo seu saber, pela sua arte, pelos
seus dotes de escritor, pela sua cultura enfim, a tratar e a desenvolver prontamente
qualquer assunto, qualquer caso, qualquer questão, seja de que natureza for, que
porventura surja na tela do debate". Para o director de O Debate, "o público é o grande
intoxicado pelo veneno noticioso dos casos de rua e das agências", é "o assíduo leitor,
que as empresas dos jornais de informação deseducam e desvirilizam com a sua prosa
anónima e neutralista, com receio de lhe serem desagradáveis e perderem a venda".31
59 Revela-se nesta apreciação ao jornalismo de informação uma crítica a um certo tipo de
sensacionalismo que se compreende por parte do autor, responsável por um órgão
doutrinário identificado com a hierarquia da Igreja Católica, cuja aliança com o
salazarismo era ostensiva. Mas, ainda que noutras passagens da sua palestra Jacinto
Ferreira, como adiante veremos, mostre compreender que algo de novo estava a
acontecer no jornalismo português, é possível descortinar na sua posição a defesa de
uma imprensa não só, por um lado, ciosa de não se afastar das velhas tradições do velho
jornalismo doutrinário, mas também, simultaneamente, de manter uma certa distancia
em relação às realidades concretas do dia a dia, pouco condizentes com as apregoadas
vantagens para o povo da política do regime.
60 Posição esta que a valorização durante a década de 60 de géneros como a reportagem –
que perdera força com a implantação da Censura, primeiro em 1926 e depois, com
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redobrado poder, a partir de 1933 – vem, precisamente, pôr em causa. Não significando
isto que durante esse período não tivessem existido alguns grandes repórteres, como
foi o caso de José de Freitas ou de Urbano Carrasco (o primeiro, simpatizante do
comunismo, o segundo, próximo do salazarismo), que para a jovem geração surgida nos
fins dos anos 50 constituíam exemplo e fonte inspiradora.
61 Opinião diferente da de Jacinto Ferreira tinha João Coito, nascido e criado como
jornalista num Diário de Notícias que, independentemente da sua natureza de órgão
oficioso do regime (o órgão oficial, o Diário da Manhã, era jornalisticamente muito pobre
e pouco ambicioso), ostentava uma prosperidade e uma capacidade de concorrência que
faziam dele um dos mais importantes e influentes matutinos nacionais. Ao lê-lo sobre
"as tendências actuais da imprensa" deparamos com uma caracterização que se
distancia claramente do jornalismo do passado e mostra como neste período se assiste
já a uma teorização e a uma prática que têm muito a ver com o jornalismo que se
desenvolveria nas décadas seguintes. Nessas tendências ele inclui a "concisão", a
"objectividade", a "velocidade" e a "clareza".
62 Escreve João Coito: "O desejo de ser conciso não prejudica a riqueza e a objectividade do
relato jornalístico, da informação. O instinto do jornalista melhora quando ele é
obrigado a escrever dentro das medidas exigidas pelo espaço. O limite certo obriga-o a
esquematizar as ideias e os factos. Muitas vezes temos de escrever contra relógio e não
nos sobra tempo para uma revisão cuidada ou para o corte das palavras inúteis: não
temos tempo de ser breves".32
63 Nesta altura colocavam-se já, de forma evidente, os constrangimentos resultantes não
só da pressão da falta de tempo para cumprir os horários apertados inerentes à
fabricação de um diário, mas também a necessidade, imposta pela paginação, de limitar
os textos a determinados espaços – ainda que isto sem prejuízo de, em determinadas
circunstâncias, se pedir ao jornalista que estendesse a prosa, de modo a encher o espaço
deixado livre por ausência de outras notícias ou de publicidade.
64 No contexto invocado, a referência de João Coito à "objectividade" assume um
significado preciso: trata-se de contrapor a objectividade aos "tempos em que a
informação era emoldurada em estilo pretensioso, pintada e repintada, de modo que o
trágico se diluísse em cores de romantismo e o imoral quase se desculpasse de ser
imoral."33
65 Era o dobre de finados do velho jornalismo, que já não correspondia às exigências do
novo tipo de leitor que entretanto se ia consolidando na sociedade portuguesa: "O
público de hoje não tempo de ler. Os nossos avós que liam as gazetas de fio a pavio,
incluindo os anúncios (aliás um magnífico panorama da vida social), já há muito que
rezam por nós junto de Deus. A vida de hoje é velocidade e vertigem. O nosso tempo
está ocupado por mil obrigações e outras tantas diversões. O leitor de hoje é apressado.
Lê os títulos. Quer mastigada em poucas linhas a notícia mais sensacional."34
66 Mas a objectividade levanta um problema a que João Coito chama "de natureza moral",
mas que, no fundo, tem a ver com a deontologia – termo que, na altura, não entrara
ainda no vocabulário das salas de redacção. Interroga ele: "Todas as informações devem
ser publicadas, mesmo as que ofendam os costumes e a moral pública, mesmo as que
influam perigosamente, pelo contágio que possam exercer na conduta social do
leitor?"35 A resposta é clara: "Se os factos são sagrados, todos os factos devem ser
publicados, e deverão sê-lo desde que interessem verdadeiramente ao leitor e possam
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contribuir para que ele conheça o seu tempo e a sociedade em que vive. Não há facto
imoral em si mesmo, mas pode ser imoral o modo de o relatar ao público."36
67 Não há, pois, limites temáticos para as abordagens jornalísticas – o que implica,
obviamente, uma tomada de posição perante a Censura, a que mais à frente faremos
referência. O que é preciso evitar são os exageros: "Nem oito nem oitenta. Nem uma
sociedade apresentada como um covil de ladrões e assassinos, nem uma sociedade
constituída por anjos e querubins. O pecado é excepção, mas a excepção é notícia".37
68 A terceira tendência retida por João Coito é a "velocidade" na transmissão da
informação, passando por cima da necessária fase da confirmação das fontes. A causa
apontada não difere da que ainda hoje é invocada: "Não devemos esquecer que os
jornais são empresas comerciais. Esta ânsia de levar mais depressa a notícia ao leitor do
que o jornal do vizinho é responsável por muitos erros lamentáveis".38
69 Finalmente, o jornalista do Diário de Notícias aponta o "estilo simples, claro e acessível"
necessário à transmissão de uma informação, tendo ela que "ser redigida em termos
que todos compreendam, sem o recurso de palavras rebuscadas que possam
comprometer a sua autenticidade. É uma espécie de código, de conjunto de normas a
que todos quantos trabalham dentro da informação se devem submeter".39
70 Conclui João Coito que "não é fácil escrever para um jornal. É uma qualidade inata e um
jeito adquirido pela prática das redacções".40 Nas suas palavras finais percebe-se a
intenção de afirmar a identidade própria da profissão, perante uma sociedade e um
poder que não conferiam aos jornalistas a importância e a dignidade compatíveis com a
sua função social. Os jornalistas, mesmo os que estavam próximos e trabalhavam na
imprensa afecta ao regime, estavam longe de ter um estatuto social de recorte elitista.
71 Na concepção destes jornalistas, de que João Coito surge aqui como um exemplo, não
haveria, no fundo, uma contraposição entre "orientação" e "informação". Tratava-se,
sim, de tentar mostrar ao poder político que não se podiam ignorar as novas exigências
postas ao jornalismo pela evolução social – que muitos, neste início dos anos 60, "na
hora que vivemos, que é a hora do ultramar",41 viam mais como uma ameaçadora
convulsão. As palavras finais da palestra de João Coito são esclarecedoras: "Dêem aos
jornalistas todos os meios e exija-se-lhes depois. Eles dão tudo! Quase nada receberam
ou recebem. Uma sociedade civilizada não pode descurar capítulo tão fundamental
como este da orientação da opinião pública pela informação".42
5. Curso de Iniciação Jornalística do Diário Popularem 1966 - uma iniciativa inovadora
72 Realizado Abril e Maio de 1966, o I Curso de Iniciação Jornalística do "D.P." foi a
primeira iniciativa deste tipo realizada em Portugal. A análise da documentação que lhe
deu suporte (objectivos, condições de acesso, plano curricular, corpo docente) dá-nos
uma ideia precisa de diversos aspectos relativos à situação do jornalismo nestes meados
da década e, nomeadamente, das necessidades e exigências sentidas e apontadas, no
plano jornalístico, por aquela que era considerada, principalmente desde o início dos
anos 60, uma das empresas mais modernas e dinâmicas do sector.
73 Segundo um documento dactilografado e disponibilizado aos interessados na
frequência do curso, este "destina-se essencialmente a resolver o problema do
recrutamento de jornalistas para o próprio jornal", e isto devido a duas ordens de
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razões: "ser difícil encontrar, noutros órgãos de informação, jornalistas profissionais
que correspondam aos requisitos, de ordem vária, exigidos pelo Diário Popular"; e "ser
arriscado admitir jovens sem qualquer experiência, os quais, apesar da sua boa vontade,
não possuem a bagagem mínima de conhecimentos especializados, indispensáveis a
quem principia a trabalhar na Redacção de um grande jornal".
74 Era particularmente a estes últimos que o curso de pretendia dirigir, "na convicção de
que, no jornalismo como em qualquer outra profissão, para além dos aspectos
vocacionais, é necessária uma aprendizagem técnica e cultural".
75 Partindo destes objectivos, o curso foi construído tendo em conta duas vertentes
essenciais:
76 – Uma I Parte, com 15 dias de aulas, dedicada à imprensa em geral: "A Imprensa como
actividade sócio-cultural e profissional, nas suas relações, mais ou menos íntimas, com
outras realidades: a Opinião Pública, e os Governantes, a Economia e a Política, a
Psicologia e a Sociologia, o Indivíduo e as Colectividades, etc."
77 – Uma II Parte, com 5 dias de aulas, dedicada ao Diário Popular: "sua história, suas
características, seus objectivos".
78 A frequência do curso, cujas aulas decorreram na própria sala de redacção do
vespertino, foi limitada, por razões de eficácia pedagógica, a 25 alunos, "rigorosamente
seleccionados" entre as dezenas de candidatos inscritos. Os critérios de selecção
obedeceram às seguintes condições:
79 “1. Essenciais: a) Menos de 30 anos; b) 7º anos dos liceus ou equivalente; c) Poder assistir
a todas as aulas; d) Comprometer-se a prestar todas as provas, escritas e orais, incluídas
no curso, quer no decorrer das aulas quer na fase dos exames finais; e) Encarar como
viável a hipótese de ficar a trabalhar na Redacção do 'D.P.'.
80 “2. Preferenciais: a) Falar e escrever correctamente uma ou mais línguas estrangeiras;
b) Serviço militar cumprido; c) Curso universitário; d) Alguma experiência jornalística
(jornais, revistas, rádio ou TV); e) Saber dactilografar com rapidez."
81 Os professores eram todos "pessoas que trabalham no 'Diário Popular', quer nos
sectores directivo e redactorial, quer nos sectores administrativo, tipográfico,
publicitário". Na I Parte do curso participaram, nomeadamente, e à medida em que os
seus nomes foram aparecendo no programa (ver Quadro com horário) os jornalistas
Abel Pereira (sub-chefe de Redacção), dr. Fernando Teixeira (chefe de Redacção),
Urbano Carrasco (chefe da secção de Cidade), Armando Baptista Bastos, Bernardino
Coelho (sub-chefe da secção de Cidade), dr. Jacinto Baptista (sub-chefe de Redacção),
Botelho da Silva, Paulo Medeiros, dr. Manuel Magro (chefe da secção de Política e
Economia), José de Freitas (redactor-principal), Mário Rocha (chefe da secção de
Província), dr. Manuel Agrela (chefe da secção de Estrangeiro), Mário Henriques e José
de Lemos (ilustrador); os membros da Administração dr. Ranito Balthazar, dr.
Guilherme Brás Medeiros e dr. Francisco C.P. Balsemão; Conselheiro Dr. Emídio Pires da
Cruz, jurista da empresa; Alberto Jerónimo, chefe da secção de Revisão; e Prof. Dr.
Martinho Nobre de Mello, director do jornal.
82 As aulas decorreram diariamente, excepto domingos, entre as 20 e as 24 horas. Fora do
tempo lectivo realizaram-se exercícios escritos, quer "de secretária" quer "de rua".
Logo no dia inaugural foi marcado o primeiro trabalho de casa: um resumo e uma
apreciação ao que se passara precisamente nesse primeiro dia do curso.
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83 Os exames finais ocuparam quatro dias, dois de provas escritas e dois de provas orais,
tendo os alunos sido agrupados em três grupos: os "Muito Aptos", os "Aptos" e os "Não
Aptos". Dentro de cada grupo foi atribuída uma ordem de mérito – primeiro, segundo,
etc. Estava previsto que os três primeiros entre os "Muito Aptos" fossem convidados a
integrar a Redacção do jornal, mas acabaram por ser quatro: Botelho Tomé, José
Manuel Teixeira, Silas de Oliveira e Fernando Correia (segundo a ordem da
classificação). Entre as preocupações dos promotores do curso – entre os quais se deve
destacar Francisco Balsemão, autor da ideia e principal dinamizador da iniciativa – é
evidente a intenção de rejuvenescer e procurar melhorar a qualidade do quadro
redactorial. Do quadro do Diário Popular já faziam parte alguns jovens repórteres com
nome feito, e posteriormente reforçado no jornalismo e na literatura, como era o caso
de Baptista Bastos e Mário Ventura Henriques, assim como outros profissionais menos
jovens, como Urbano Carrasco e José de Freitas.
84 Era patente a convicção, que ao tempo estava longe de ser pacífica, nomeadamente
entre os profissionais mais antigos, de que a vocação não bastava para fazer um bom
jornalista, ou que, pelo menos, de que uma boa preparação cultural, resultante de uma
escolaridade elevada, poderia ser importante para um início de carreira auspicioso.
85 Estas ideias ressaltam claramente das "condições" para a frequência do curso,
demonstrando até que ponto, neste período, se sentia a necessidade de dar resposta a
novas exigências colocadas perante o jornalismo português. Exigências impostas pelo
público e pela concorrência, mas também pela progressiva introdução nas salas de
redacção de "novas tecnologias", como a máquina de escrever – de que os jornalistas do
Diário Popular dispunham desde o início da década mas que noutros importantes diários
só anos mais tarde se generalizaria.
86 É também interessante verificar o manifesto desejo de alimentar uma identidade
própria do Popular, no quadro da preocupação das "empresas familiares", então
dominantes, em cultivar os chamados "hábitos da casa", visíveis na referência sibilina,
nos objectivos do curso, aos "requisitos de ordem vária" exigidos a quem trabalhava no
jornal; no facto de todas as aulas, sem excepção, estarem a cargo de quadros da
empresa; e na importância e no tempo substancial dedicados à "história",
"características" e "objectivos" do Diário Popular.
87 Num tempo em que a imprensa se desenvolvia, aumentava as tiragens e procurava
ocupar um espaço próprio entre a oferta existente, a ambição dos responsáveis,
nomeadamente os mais directamente ligados à produção da informação, era ter sob o
seu comando jornalistas não vindos de outros jornais, já com "vícios" (era mesmo esta a
expressão utilizada) adquiridos noutras formas de trabalhar, mas sim jovens feitos e
afeitos aos "hábitos da casa".
6. Projecto de Ensino de Jornalismo em Portugal /1970
88 Depois do "calo" adquirido com as experiências de 1941 (falhada) e 1968 (concretizada),
o Sindicato Nacional dos Jornalistas chegou a 1970 com a determinação suficiente para
apresentar um "Projecto de Ensino de Jornalismo em Portugal", aprovado pela
assembleia geral em 10 de Dezembro desse ano.
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89 Esse documento,43 de 19 páginas, resultou do trabalho de uma comissão nomeada em 6
de Maio de 1970, composta pelos jornalistas Manuel da Silva Costa (presidente do SNJ),
Jacinto Baptista, João Gomes e Cáceres Monteiro (secretário), José Lechner, Oliveira
Figueiredo, e Carlos Ponte Leça. Os três últimos foram convidados na qualidade de
"conselheiros técnicos" porque eram os únicos formados no estrangeiro,
respectivamente na Escola de Jornalismo de Lille, na Escola de Jornalismo da Igreja, de
Madrid e na Escola de Jornalismo da Universidade de Navarra, além de António dos
Reis, diplomado pela Escola de Jornalismo da Universidade Internacional Pro Deo, em
Roma.
90 O que diferencia este projecto dos anteriores é, por um lado, a sua maturidade e, por
outro, a preocupação de o filiar nas experiências de ensino do jornalismo que se
praticavam no estrangeiro. A primeira fase dos trabalhos desta comissão consistiu em
reunir ampla informação sobre os cursos de jornalismo existentes lá fora para depois
traçar uma visão geral do que se passava no mundo.
91 O relatório produzido apontava o dolorosamente óbvio: Portugal era dos raros países do
mundo onde não existia uma escola de comunicação social. "O jornalismo é
actualmente em Portugal a única actividade profissional de carácter intelectual para
cujo exercício não se exige uma formação específica sancionada em termos legais. A
necessidade de dotar o jornalismo das mesmas garantias exigidas às demais profissões
intelectuais é tanto mais premente quanto é certo incumbir em grande parte aos
jornalistas a formação da opinião pública".44
92 Quanto ao modo e ao conteúdos do ensino a ministrar, a comissão assinalou a
"tendência quase universal para integrar os cursos de jornalismo na universidade"45 e
propunha a designação mais geral de Ciências da Informação.
93 A visão do jornalista aqui apontada afasta-se milhas da sua representação enquanto
técnico de redacção, propondo-se que seja antes "um professor e um intérprete".46 A
comissão definiu as "vastas e exigentes" exigências de formação do jornalista: "Requer
preparação que permita o entendimento de uma ampla problemática suscitada pela
informação escrita e audiovisual – o que determina um nível de abstracção e uma
compreensão dos fenómenos humanos que só podem ser alcançados no ambiente
pautado pela exigência científica e pela formação do espírito critico próprio da
Universidade. O jornalismo supõe conhecimento profundo das ciências e técnicas de
informação, o que implica, naturalmente, uma aprendizagem em ordem ao exercício da
profissão".47
94 Segundo este projecto, o jornalista devia basear a sua cultura nas "matérias
humanísticas" porque só assim seria capaz de entender "o conjunto da problemática
contemporânea".
95 A proposta da SNJ foi a criação de um Instituto Superior de Ciências da Informação
(ISCI), que concedesse três graus académicos: Bacharel (três anos); Licenciado (cinco
anos) e Doutor (regime idêntico ao estabelecido no Decreto-Lei nº 388/70).
96 O acesso seria idêntico ao de qualquer outro curso universitário. Para os profissionais
de jornalismo com mais de 25 anos, exigia-se o exercício da profissão há mais de cinco
anos.
97 O plano de estudos apontava para três primeiros anos de carácter mais geral, incluindo
matérias como Sociologia, Economia, História Contemporânea, Linguística e Ciência
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Politica e os dois últimos anos mais especializados, contemplando disciplinas como
Sociologia da Informação, Jornalismo Comparado, Metodologia da Pesquisa Social.
98 Entre as disciplinas de especialização, os estudantes poderiam optar por cadeiras
relativas ao noticiário internacional (por exemplo, politica económica internacional,
movimentos sociais ou relações diplomáticas), nacional (por exemplo, direito
constitucional, direito criminal ou politica ultramarina), assuntos económicos e sociais
(por exemplo, correntes económico-sociais, educação e ensino ou estatística) ou
actividades lúdicas (por exemplo, artes, espectáculos ou desportos); e frequentar
seminários de especialização em ciências da informação (entre outros, história do
jornalismo, análise de conteúdo, economia dos meios colectivos de informação),
técnicas de informação (incluindo técnicas de recolha, de tratamento, de difusão ou de
documentação), meios de informação (aqui se contemplavam jornalismo,
radiojornalismo, telejornalismo e cinejornalismo) ou relações com sectores afins (por
exemplo, publicidade, relações públicas e artes gráficas".48
99 Para o financiamento do referido instituto, o SNJ propunha uma solução tripartida: O
Estado, entidades privadas idóneas (a título, por exemplo, de subsidiar a investigação,
que será uma das finalidades principais do Instituto), empresas de informação e o
próprio sindicato, "a título simbólico".49
100 A proposta debruçava-se ainda sobre o recrutamento do pessoal docente necessário, a
existência de manuais didácticos adequados e as necessidades de equipamento técnico.
Neste ponto, vale a pena destacar o que então se considerava fundamental para o
arranque do ISCI: "biblioteca; arquivos gerais e de informação; hemeroteca; jornal-
laboratório (com tipografia e oficina de fotogravura), estúdio-laboratório de fotografia;
estúdio-laboratório de televisão e cinema (com circuito fechado de TV, projector,
pantalha, moviola, truca cinematográfica, etc); estúdio-laboratório de rádio, além de
material auxiliar como fotocopiador, duplicador, telescritores, receptores de rádio e
TV".50
101 Terá sido o excesso de ambição que fez perder este projecto? Porque, mais uma vez,
apesar da conclusão do documento – "Nada parece obstar à introdução do ensino do
jornalismo em Portugal. Pelo contrário: tal ensino é necessário, é possível e é condição
imprescindível para que o povo português disponha da informação a que tem direito e
que o progresso do país não pode dispensar"51 – não se concretizou.
102 A intenção do SNJ encontrou oposição em praticamente todo o lado. Entre os
jornalistas, muitos não se reconheciam na visão do jornalismo como profissão
intelectual. Num dossier dedicado ao tema, publicado na revista CF, escreveu-se: "Não
será isto denunciador da ideologia desta proposta e dos fins que objectivamente serve –
a constituição de uma espécie de feudo ou mandarinato da informação a que só os
"doutores", os "bacharéis" ou os "licenciados" terão direito de acesso? Nós, os
jornalistas "especializados" que sabemos, somos os professores da opinião pública,
temos o segredo da informação – os outros só têm de ouvir caladinhos as nossas
verdades universitárias".52
103 O governo, liderado por Marcelo Caetano, perdia-se já naquelas tibiezas, hesitações e
recuos que caracterizam o Marcelismo e não estava objectivamente interessado em
viabilizar a ideia nem a dar-lhe celeridade. Chegou a criar-se, em Janeiro de 1973 (três
anos depois!) um "grupo de trabalho para o estudo e emissão de propostas sobre a
criação, a nível oficial, de um Instituto Superior de Ciências da Informação, o qual será
constituído por representantes do Ministério da Educação Nacional e de vários
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organismos que têm demonstrado interesse pelo assunto ou directamente ligados à
actividade informativa".53
104 Esta diligência foi alvo de cobertura jornalística por parte dos jornais da época. O Século,
por exemplo, informou que, "para dar cumprimento ao preceito da Lei de Imprensa,
que obriga o Estado a criar um ISCI, acaba de ser constituído, por despacho do ministro
da Educação, o grupo de trabalho para estudar a sua criação. Sendo o referido instituto
uma etapa decisiva no reconhecimento da importância de uma profissão que nem
sempre goza das prerrogativas a que tem direito, O Século regozija-se de poder dar, em
primeira mão,54 a notícia da criação de um grupo que irá, concretizar, esperemos que
muito brevemente, uma justa e antiga aspiração dos profissionais da informação".55
105 A partir da apresentação do projecto, em 1970, o SNJ desencadeia um
106 a verdadeira "ofensiva diplomática" para o levar por diante. O ministro da Educação
Nacional, Veiga Simão, recebeu pelo menos dois ofícios daquele sindicato, em 3 de
Dezembro de 1971 e em 26 de Outubro de 1972, recordando que "a Base XII da Lei de
Imprensa comete ao governo o encargo de organizar o ensino do jornalismo".56
107 Na missiva de 26 de Outubro, o Sindicato procurou mesmo pressionar Veiga Simão:
"Não tendo entrado ainda em funções o grupo de trabalho cuja formação foi
superiormente prevista por Vossa Excelência, a direcção do sindicato apenas tem
conhecimento, obtido pelo primeiro dos signatários em conversa pessoal com Sua
Excelência o senhor Presidente do Conselho, de que está nas mãos de Vossa Excelência
a promoção do ensino do Jornalismo – cometida ao Governo na Base XII da Lei de
Imprensa".57
108 Muito inflamado é também o discurso de Silva Costa, no acto da entrega do projecto ao
ministro da Educação Nacional (4 de Novembro de 1971 às 11 e 30 h): "Terá chegado a
vez de Portugal possuir ensino do jornalismo a nível universitário? Correu mundo a
falsa ideia de que o jornalista nasce, não se faz. Os jornalistas portugueses, pelo
contrário, negam-se a confiar a métodos empíricos a formação dos futuros
profissionais".58
109 Estas e outras corajosas palavras que citámos ao longo deste capítulo demonstram
como os jornalistas portugueses tinham já ganho uma batalha decisiva: não tinham
medo. Mas faltava, porventura, o mais importante, descrito numa nota do Diário de
Lisboa intitulada A dignidade de uma profissão: "Pede-se ao jornalista que seja um
homem íntegro ao serviço do bem comum. Para ele corresponder ao que se lhe exige,
haverá que facultar-lhe meios que presentemente não dispõe em toda a desejada
amplitude: o acesso às fontes de informação, a liberdade de expressão inerente a
qualquer tentativa de consciencialização da opinião pública, o ambiente propício à
institucionalização do diálogo e também uma situação material que lhe permita
dedicar-se inteiramente e com dignidade à sua profissão".59
7. A primeira escola de jornalismo em Portugal
110 Embora o SNP tenha sido pioneiro a estruturar um projecto para a criação de um curso
universitário de Jornalismo, a concretização coube ao Instituto de Línguas e
Administração (ISLA), a primeira instituição portuguesa de ensino superior particular,
fundada em 1962.
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250
111 Em 17 de Agosto de 1970, o ISLA solicitou ao Ministério da Educação Nacional aprovação
para abertura da "Escola Superior de Meios de Comunicação Social" (ESMC), que
ministraria quatro cursos de três anos – Jornalismo, Relações Públicas, Publicidade,
Rádio e Televisão.
112 Ao contrário da iniciativa do SNP, que só encontrou resistências e protelamentos
políticos, a ESMC foi acolhida tão favoravelmente que começou a funcionar logo no ano
lectivo de 1971/72, antes mesmo de obtida a autorização oficial pela Junta Nacional de
Investigação, cujo parecer favorável só foi homologado em Março de 1971.
113 Era, de resto, uma iniciativa sólida e com tudo para "ganhar". Tinha sustentação
jurídica (a própria Base XII da Lei de Imprensa recentemente aprovada reconhecia a
necessidade do ensino do jornalismo e previa que o governo promovesse a sua
organização) e económica, através do patrocínio do Banco Borges&Irmão, um dos
maiores grupos capitalistas portugueses, dirigido por Miguel Quina, já ligado ao negócio
da comunicação, pois detinha as duas empresas editoras do Diário Popular e do Jornal do
Comércio, além da agência de publicidade Latina.
114 José Lechner, um dos consultores do SNJ para a elaboração do projecto de ensino
universitário do jornalismo e antigo docente na ESMCS, diz que "todas as peças do
puzzle estavam completas". Para director da escola, foi escolhido o director do Diário
Popular, embaixador Martinho Nobre de Melo, uma figura que expressa bem o conjunto
de forças poderosas que sustentavam esta iniciativa privada: dava garantias que era
inofensiva politicamente e robusta financeiramente. Também foi hábil do ponto de
vista diplomático pois procurou captar o apoio dos SNJ, apesar de lhe ter tomado a
dianteira.
115 Fernando Cascais relata que, em 25 de Novembro de 1971, o director da ESMCS
convidou o presidente do SNJ, Manuel da Silva Costa, para integrar o seu conselho
orientador, sublinhando o benefício da "inestimável ligação entre as actividades
docentes e as exigências da prática. O convite foi aceite. A direcção do SNJ considerou
do maior interesse a criação de um estabelecimento de ensino superior particular de
Jornalismo, Relações Públicas e Publicidade, sem prejuízo do projecto de um Instituto
Superior de Ciências da Informação, aprovado em assembleia geral deste organismo em
10 de Dezembro de 1970".60
116 Aparentemente, a direcção do SNJ acreditou que o seu projecto de criação de um ensino
superior público na área da Informação não ficava comprometido pela abertura de uma
escola privada com objectivos transdisciplinares.
117 A ESMCS porém, nunca foi um projecto bem sucedido, talvez porque não teve tempo
para se afirmar. A banca foi nacionalizada na sequência do 25 de Abril de 1974, e a
escola agonizou durante alguns anos até ser extinta na década de 80.
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NOTAS
1. Jornalismo, número 8/Novembro 1968.
2. Carta a José Azeredo Perdigão, 17 Fevereiro de 1969, Arquivo do Sindicato Nacional dos
Jornalistas (SNJ).
3. Carta de Nuno Rocha, secretário de redacção da separata Jornalismo, aos directores dos jornais
diários de Lisboa, 23 de Outubro de 1968.
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4. Velma de Carvalho, directora da revista Casa e Decoração, colaborava em vários jornais e foi a
única mulher jornalista sindicalizada inscrita no curso.
5. Jornalismo, número 7/Outubro 1968.
6. Idem, ibidem, p. 10.
7. Idem, ibidem, p. 10.
8. Oficio do SNJ, sem data.
9. Circular do SNJ, Julho/1969.
10. Idem.
11. Diário Popular, 6 de Março de 1969.
12. A carta do ministro Gonçalves Proença foi enviada no dia 27 de Agosto de 1968: "Tenho a
honra de informar V. Excelência de que por despacho de sua Excelência o ministro das
Corporações e Previdência Social de 9 do corrente mês, foi autorizada a concessão de um subsídio
de 100 000 $00 da conta do orçamento deste Fundo [de Desenvolvimento da Mão de Obra] do
Ministério das Corporações e Previdência Social – Direcção Geral do Trabalho e Corporações –
para a realização de um curso que esse organismo pretende levar a efeito especialmente
destinado ao aperfeiçoamento e formação profissional dos seus sócios. Nos termos do mesmo
despacho, a entrega daquele subsídio fica condicionada à aprovação do elenco de colaboradores
que, no referido curso, tomarão parte", Arquivo do SNJ.
13. Estimativa de Orçamento apresentada pelo SNJ, Julho de 1968, Arquivo do SNJ. Incluía o
pagamento a 13 professores (36 6000$00), aquisição de bibliografia (10 000 $00); vencimento de
um secretário geral (48 000$00) e de dois funcionários encarregues da dactilografia e tiragem de
stencils (36 000$00), despesas de tipografia (50 000$00) e diversos (convites a professores
extraordinários, material de correio e expedição no valor de 20 000$00).
14. José Manuel Pereira da Costa justificava-se assim a José Azeredo Perdigão, em carta datada de
11 de Março de 1968, Arquivo do SNJ: "Tão grande interesse despertou o curso, nomeadamente
entre os estudantes universitários e os profissionais de Imprensa – registando-se cerca de 200
inscrições em Lisboa – que foi necessário abrir nova modalidade, por correspondência, para
atender duas centenas de inscritos, no Porto, em Angola, Moçambique e noutros pontos do país.
O facto obrigou o sindicato a ampliar os planos primitivos, quer através de lições extraordinárias
a cargo de professores e jornalistas nacionais e estrangeiros expressamente convidados, quer
através da publicação dos textos das lições normais, entregues a professores universitários e
liceais que houve necessidade de remunerar".
15. Idem.
16. Idem.
17. Carta de Gonçalves Pereira à direcção do SNJ, 12 de Março de 1968, Arquivo do Sindicato.
18. Discurso de Gonçalves Pereira, ministro das Corporações e da Previdência Social, na sessão
inaugural do I Curso de Jornalismo, 25 de Novembro, 1968, Sede do Sindicato Nacional dos
Caixeiros, Lisboa, Arquivo do SNJ.
19. Discurso de Pereira da Costa, presidente do SNJ, na sessão inaugural do I Curso de Jornalismo,
25 de Novembro, 1968, Sede do Sindicato Nacional dos Caixeiros, Lisboa, Arquivo do SNJ.
20. Vida Mundial, 30 de Maio de 1969.
21. Jornalismo, número 8, Novembro/1968.
22. Oficio de Luís Teixeira, presidente da comissão administrativa do SNJ, ao subsecretário de
Estado da Informação, datado de 8 de Fevereiro de 1941, Arquivo do SNJ.
23. Projecto de criação do Curso de Formação Jornalística, policopiado, 8 de Fevereiro de 1941,
Arquivo do SNJ. A título de curiosidade, refira-se que o SNJ estimou em 15 000$00 as receitas
previstas (resultantes de selos nos certificados de aproveitamento) e em 19 810$00 as despesas
previstas, resultantes do pagamento aos regentes das cadeiras e a remuneração do delegado do
ministério da Educação Nacional (Instituto para a Alta Cultura) encarregado de dirigir o curso).
24. Idem.
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25. Idem.
26. Descritivo da Cadeira A – "A Formação Profissional dos Jornalistas", projecto de criação do
Curso de Formação Jornalística, 8 de Fevereiro de 1941, Arquivo do SNJ.
27. Curso de Jornalismo, Junta de Investigação do Ultramar, Estudos de Ciências Políticas e Sociais,
nº 60, Lisboa, 1963.
28. Depois de elogiar a iniciativa, diz um dos oradores convidados, Trabucho Alexandre: "Só um
reparo, e faço-o com a maior sinceridade: considero demasiado ambiciosa a classificação de curso
de jornalismo, e isto porque, efectivamente, não é. Chamemos-lhe ciclo de conferências sobre
jornalismo, e talvez, sem diminuirmos o seu mérito, tenhamos encontrado a designação justa".
29. Ibidem, p. 43.
30. Ibidem, p. 39.
31. Ibidem, pp. 44 e 45.
32. Ibidem, p. 80.
33. Ibidem, p. 81.
34. Ibidem, pp. 81 e 82.
35. Ibidem, p. 82.
36. Ibidem, p. 82.
37. Ibidem, p. 82.
38. Ibidem, p. 83.
39. Ibidem, p. 85.
40. Ibidem, p. 85.
41. Ibidem, p. 86.
42. Ibidem, p. 87.
43. Separata do nº 4 — II Série do boletim Jornalismo, 20 Novembro 1970.
44. Idem, p. 5.
45. Idem, p. 9.
46. Idem, p. 9.
47. Idem, p. 9.
48. O plano de estudos é detalhado nas páginas 10/11 do projecto.
49. Idem, p. 13.
50. Idem, p. 14.
51. Idem.
52. Reis, Miguel, "Jornalismo, uma iniciativa vital?", CF, Fevereiro, 1973.
53. Carta de Manuel da Silva Costa, presidente do SNJ, ao presidente do Gabinete de Estudos e
Planeamento da Acção Educativa, congratulando-se pela criação do referido grupo de trabalho,
na dependência directa daquele responsável, e nomeando Jacinto Baptista como representante do
sindicato, 18 Janeiro, 1973.
54. Este "em primeira mão" não corresponde à verdade. Pelo menos o "Diário de Lisboa" deu
igualmente esta notícia, no dia 5 de Março de 1973.
55. A notícia de O Século especifica a constituição exacta do grupo de trabalho: "A este grupo, que
funciona sob a dependência do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Educação
(GEP), preside o prof. Fraústo da Silva, director do GEP. Faltando apenas designar o representante
do Grémio Nacional das Actividades Publicitárias, a comissão ficará assim constituída: dr. Ramiro
Valadão, representante da Secretaria de Estado da Informação; Manuel Maria da Silva Costa, pela
Corporação da Imprensa e Artes Gráficas; eng. Adriano Mário da Cunha Lucas, pelo Grémio
Nacional da Imprensa Diária; Gentil Marques, pelo Grémio Nacional da Imprensa Não-Diária, Dra.
Maria Isabel Beja Saraiva, pela Direcção Geral do Ensino Superior; dr. Jacinto Baptista, pelo
Sindicato Nacional dos Jornalistas Portugueses, O Século, 5 Março de 1973.
56. Exposição do Sindicato dos Jornalistas ao ministro da Educação Nacional sobre o Projecto do
Ensino do ensino das Ciências da Informação, 3 de Dezembro de 1971, Arquivo do SNJ.
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57. Carta do SNJ a Veiga Simão, de 26 de Outubro 1972, assinada por Manuel da Silva Costa
(presidente), Maria Manuel Alves (secretária) e Torquato da Luz (tesoureiro), arquivo do SNJ.
58. Discurso de Silva Costa a Veiga Simão na entrega do projecto de ensino do Jornalismo, 4 de
Novembro de 1971, Arquivo do SNJ.
59. Diário de Lisboa, 23 de Novembro de 1968.
60. Idem, Ibidem.
RESUMOS
O ensino do jornalismo em Portugal é uma aspiração que remonta aos anos 40, embora só em
1979 tenha aberto, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a
primeira licenciatura em Comunicação Social. Pelo meio, existiram várias iniciativas de que
damos conta neste artigo: uma série de palestras sobre temas ligados à comunicação que
decorreram no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos em 1962; um curso de formação
profissional organizado pelo Diário Popular em 1966; o I Curso de Jornalismo, promovido pelo
Sindicato Nacional dos Jornalistas em 1968; a Escola Superior de Meios de Comunicação Social
onde, em 1971, se iniciou um curso de Jornalismo de três anos.
In Portugal, the Journalism teaching is an aspiration that comes from the Forties, although the
first degree in Social Communication only started in 1979, at the Faculty of Human and Social
Sciences from New University of Lisbon. In between, several initiatives took place, that
constitutes the centre of this article: several conferences about Communication issues in 1962 at
the Superior Institute of Ultramarine Studies; a professional course organized by the newspaper
Diário Popular in 1962; the First Journalism Course patronized by the National Union of
Journalists in 1968; the Superior School of Social Communication where, in 1971, started a three
year Journalism course.
ÍNDICE
Keywords: journalism teaching, journalism history, joumalists professional formation
Palavras-chave: ensino do jornalismo, história do jornalismo, formação profissional de
jornalistas
AUTORES
FERNANDO CORREIA
Univ. Lusófona.
Mestre em Ciências da Comunicação pelo ISCTE, licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras
de Lisboa. Professor Associado Convidado na Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias e no ISCTE nas áreas de Comunicação e Jornalismo. Estuda Jornalismo, Media,
História e Identidade Profissional dos Jornalistas.
Publicou Os Jornalistas e as Noticias. A Autonomia jornalística em Questão, Lisboa: Ed. Caminho, (1ª ed.
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1997), 2003; Jornalismo e Sociedade, Lisboa: Ed. Avante, (4ª edição) 2000; Jornalismo, Grupos
Económicos e Democracia, Ed. Caminho, 2006.
CARLA BAPTISTA
FCSH UNL
Doutoranda em Ciências da Comunicação na FCSH-UNL, mestre em Estudos Africanos pelo ISCTE,
licenciada em Ciências da Comunicação pela FCSH-UNL. Assistente no Departamento de Ciências
da Comunicação e da Linguagem da FCSH, UNL. Ocupa-se de Sociologia do Jornalismo, História do
Jornalismo, Ética e Deontologia do Jornalismo. Publicou Portugal no olhar de Angola, Coimbra,
Minerva Coimbra, 2002.
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Diálogos Escritos
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História cultural e história dasidéiasdiálogos historiográficos
Cultural History and History of the Ideas – Historical Dialogues
José D’Assunção Barros
NOTA DO AUTOR
O presente artigo remete, como referência principal, a um livro publicado
recentemente pelo autor, e que se refere a um estudo das várias modalidades da
História. Referências: José D'Assunção Barros, O Campo da História – Especialidades e
Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004, 222 pp.
Entre as várias modalidades historiográficas que foram se consolidando no decurso do
século XX, algumas têm primado pela riqueza de possibilidades que abrem aos
historiadores que as praticam. A História Cultural – campo historiográfico que se torna
mais preciso e evidente a partir das últimas décadas do século XX, mas que tem claros
antecedentes desde o início do século – é entre estas particularmente rica no sentido de
abrigar no seu seio diferentes possibilidades de tratamento e âmbitos temáticos. Nosso
objetivo aqui será o de elaborar um pequeno panorama inicial das principais tendências
que se têm projetado no campo da História Cultural e, na segunda parte deste ensaio,
discutir mais aprofundadamente a História das Idéias como um dos domínios mais
significativos da História Cultural.
Para introduzir um universo comum a todas as tendências de aqui falaremos,
consideraremos que a História Cultural é aquele campo do saber historiográfico
atravessado pela noção de "cultura" (da mesma maneira que a História Política é o
campo atravessado pela noção de "poder", ou que a História Demográfica funda-se
essencialmente sobre o conceito de "população", e assim por diante).1 Cultura, contudo,
é um conceito extremamente polissêmico, notando-se ainda que o século XX trouxe-lhe
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novas redefinições e abordagens em relação ao que se pensava no século XIX como um
âmbito cultural digno de ser investigado pelos historiadores.
Orientando-se em geral por uma noção muito restrita de "cultura", os historiadores do
século XIX costumavam passar ao largo das manifestações culturais de todos os tipos
que aparecem através da cultura popular, além de também ignorarem que qualquer
objeto material produzido pelo homem faz também parte da cultura – da cultura
material, mais especificamente. Além disto, negligenciava-se o fato de que toda a vida
cotidiana está inquestionavelmente mergulhada no mundo da cultura através dos
modos de vida, das práticas culturais e das representações. De fato, ao existir qualquer
indivíduo já está automaticamente produzindo cultura, sem que para isto seja preciso
ser um artista, um intelectual, ou um artesão. A própria linguagem, e as práticas
discursivas que constituem a substância da vida social, embasam esta noção mais ampla
de Cultura. "Comunicar" é produzir Cultura, e de saída isto já implica na duplicidade
reconhecida entre Cultura Oral e Cultura Escrita (sem falar que o ser humano também
se comunica através dos gestos, do corpo, e da sua maneira de estar no mundo social,
isto é, do seu 'modo de vida').
Apenas para exemplificar com uma situação significativa, tornemos um "livro", este
objeto cultural reconhecido por todos os que até hoje se debruçaram sobre os
problemas culturais. Ao escrever um livro, o seu autor está incorporando o papel de um
produtor cultural. Isto todos reconhecem. O que foi acrescentado pelas mais modernas
teorias da comunicação é que, ao ler este livro, um leitor comum também está
produzindo cultura. A leitura, enfim, é prática criadora – tão importante quanto o gesto
da escritura do livro. Pode-se dizer, ainda, que cada leitor recria o texto original de uma
nova maneira – isto de acordo com os seus âmbitos de "competência textual" e com as
suas especificidades (inclusive a sua capacidade de comparar o texto com outros que
leu, e que podem não ter sido previstos ou sequer conhecidos pelo autor do texto
original que está se prestando à leitura). Desta forma, uma prática cultural não é
constituída apenas no momento da produção de um texto ou de qualquer outro objeto
cultural, ela também se constitui no momento da recepção. Este exemplo, aqui o
evocamos com o fito de destacar a complexidade que envolve qualquer prática cultural
(e elas são de número indefinido).
Desde já, para aproveitar o exemplo acima discutido, poderemos evocar uma
delimitação já moderna de História Cultural elaborada por Georges Duby.2 Para o
historiador francês, este campo historiográfico estudaria dentro de um contexto social
os "mecanismos de produção dos objetos culturais" (aqui entendidos como quaisquer
objetos culturais, e não apenas as obras-primas oficialmente reconhecidas). O exemplo
acima proposto autoriza-nos a acrescentar algo. A História Cultural enfoca não apenas
os mecanismos de produção dos objetos culturais, como também os seus mecanismos de
recepção (e já vimos que, de um modo ou de outro, a recepção é também uma forma de
produção). Estabelecido isto, retomemos a comparação entre os atuais tratamentos
historiográficos da Cultura e aqueles que eram tão típicos do século XIX.
Ao ignorar a inevitável complexidade da noção básica que a fundamentava, a História
da Cultura tal como era praticada nos tempos antigos era uma história elitizada, tanto
nos sujeitos como nos objetos estudados. A noção de "cultura" que a perpassava era
uma noção demasiado restrita, que os avanços da reflexão antropológica vieram
desautorizar. Não que as produções culturais que as várias épocas reconhecem como
"alta cultura", ou que a produção artística que está hoje sacramentada pela prática
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museológica tenham perdido interesse para os historiadores. Ao contrário, estuda-se
Arte e Literatura do ponto de vista historiográfico muito mais do que nos séculos
anteriores ao século XX. Apenas que a estes interesses mais restritos acrescentou-se
uma infinidade de outros. Tal parece ter sido a principal contribuição do último século
para a História Cultural. Para além disto, passou-se a avaliar a Cultura também como
processo comunicativo, e não como a totalidade dos bens culturais produzidos pelo
homem. Este aspecto, para o qual confluíram as contribuições advindas das teorias
semióticas da cultura, também representou um passo decisivo.
As noções que se acoplam mais habitualmente à de "cultura" para constituir um
universo de abrangência da História Cultural são as de "linguagem" (ou comunicação),
"representações", e de "práticas" (práticas culturais, realizadas por seres humanos em
relação uns com os outros e na sua relação com o mundo, o que em última instância
inclui tanto as 'práticas discursivas' como as 'práticas não-discursivas'). Para além
disto, a tendência nas ciências humanas de hoje é muito mais a de falar em uma
'pluralidade de culturas' do que em uma única Cultura tomada de forma generalizada.
Em nosso caso, como estamos empregando a História Cultural como um dos enfoques
possíveis para o historiador que se depara com uma realidade social a ser decifrada,
utilizaremos em algumas ocasiões a expressão empregada no singular como ordenadora
desta dimensão complexa da vida humana. Trata-se no entanto de uma dimensão
múltipla, plural, complexa, e que pode gerar diversas aproximações diferenciadas.
Os objetos de interesse da História Cultural, face à noção complexa de cultura que hoje
predomina nos meios da historiografia profissional, são inúmeros. A começar pelos
objetos de interesse que já faziam parte dos antigos estudos historiográficos da Cultura,
e que se referem ao campo das expressões artísticas, continuaremos mencionando o
âmbito das Artes, da Literatura e da Ciência – campo já de si multi-diversificado, no
qual podem ser observadas desde as imagens que o homem produz de si mesmo, da
sociedade em que vive e do mundo que o cerca, até as condições sociais de produção e
circulação dos objetos de arte e literatura. Fora estes objetos culturais já de há muito
reconhecidos, e que de resto sintonizam com a "cultura letrada", incluiremos todos os
objetos da 'cultura material' e os materiais (concretos ou não) oriundos da "cultura
popular" produzida ao nível da vida cotidiana através de atores de diferentes
especificidades sociais.
De igual maneira, uma nova História Cultural interessar-se-á simultaneamente pelos
sujeitos produtores e receptores de cultura – o que abarca tanto a função social dos
'intelectuais' de todos os tipos (no sentido amplo, conforme veremos adiante), até o
público receptor, o leitor comum, ou as massas capturadas modernamente pela
chamada "indústria cultural" (esta que, aliás, também pode ser relacionada como uma
agência produtora e difusora de cultura). Agências de produção e difusão cultural
também se encontram no âmbito institucional: os Sistemas Educativos, a Imprensa, os
meios de comunicação, as organizações socioculturais e religiosas.
Para além dos sujeitos e agências que produzem a cultura, estudam-se os meios através
dos quais esta se produz e se transmite: as práticas e os processos. Por fim, a 'matéria-
prima' cultural propriamente dita (os padrões que estão por trás dos objetos culturais
produzidos): as visões de mundo e representações, os sistemas de valores, os sistemas
normativos que constrangem os indivíduos, os 'modos de vida' relacionados aos vários
grupos sociais, as concepções relativas a estes vários grupos sociais, as idéias
disseminadas através de correntes e movimentos de diversos tipos. Com um
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investimento mais próximo à História das Mentalidades, podem ser estudados ainda os
modos de pensar e de sentir tomados coletivamente (na verdade, o que hoje é chamado
de História das Mentalidades desdobrou-se originalmente do âmbito da História
Cultural, e em um futuro contexto pode retornar a este âmbito em um novo giro
historiográfico).
Estes inúmeros objetos de interesse da História Cultural têm constituído um foco
especial de interesses da parte de vários historiadores do século XX. Um esquema sobre
os vários âmbitos possíveis da História Cultural pode combinar quatro dos elementos
fundamentais acima citados (objetos culturais, sujeitos, sistemas, processos) com
quatro dimensões essenciais que se multiplicam logo a seguir: as práticas, as
representações, as visões de mundo, as expressões.
Clarifiquemos o esquema proposto. Tudo o que o homem faz em termos de cultura pode
ser referido às funções fundamentais que estão à direita – dentro dos triângulos
maiores – e que correspondem a quatro gestos culturais essenciais: as práticas
relacionam-se ao "fazer"; as representações relacionam-se ao "representar"; as visões de
mundo relacionam-se ao "ver" (no sentido de conceber), e as expressões relacionam-se ao
impulso do ser humano de se "expressar" de maneiras diversas. Essas funções
fundamentais correspondem cada qual a muitos desdobramentos possíveis.
Assim, as práticas podem se referir aos 'modos de vida' (a vida em um grande centro
urbano ou a vida recolhida em um mosteiro, por exemplo), aos 'comportamentos' dos
homens nas suas relações mútuas ou nas suas relações com a Natureza, aos 'sistemas
normativos' que regem os relacionamentos sociais e funcionais (as normas de
convivência, os papéis partilhados nas relações de gêneros e nas relações de
parentesco, os sistemas de repressão ou de imposição hierárquica), às 'técnicas'
(procedimentos para produzir objetos culturais, ou também para utilizá-los com vista à
feitura de algo), ou a `práticas culturais específicas' (a leitura de um livro, a escrita, o
ato de orar, a realização de um jogo).
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Em diversas ocasiões, os 'sistemas normativos' que foram indicados no âmbito das
práticas podem se associar às 'representações sociais' (pode-se dar como exemplo a
trifuncionalidade medieval, que dividia a sociedade nos ordos dos oratores, laboratores e
bellatores). Aqui já estaremos adentrando o âmbito das representações, que para além das
'representações sociais' propriamente ditas também pode se referir a 'imagens' (tanto
às reproduções e reelaborações de imagens percebidas como às imagens imaginadas ou
produzidas pela mente), e por fim aos 'símbolos', que correspondem à possibilidade de
associar uma imagem a um conceito. Nestes casos, a História Cultural interconecta-se
diretamente com a História do Imaginário, uma dimensão historiográfica que na
verdade se desdobrou mais recentemente da História Cultural em sentido mais amplo.
Ainda com relação às representações sociais, estas podem também estar associadas à
produção de 'ideologias'. A Ideologia, conforme veremos mais adiante, é um fenômeno
complexo. A meio caminho entre as representações e as visões de mundo, o ideológico
produz a interação de subconjuntos coerentes de representações sociais com
comportamentos específicos (portanto, produz uma interação entre representações e
práticas sociais). Mas seria mais adequado situar as 'ideologias' no âmbito das visões de
mundo, no qual localizaremos os valores, as idéias e as teorias. Esse campo da História
Cultural, desde já podemos notar, sintoniza-se diretamente com o domínio da História
das Idéias. Entre outras possibilidades, pode-se estudar por exemplo as idéias políticas
(a Democracia, o Estado Absoluto, as diversas trajetórias da noção de Liberdade ou de
Igualdade nos vários períodos históricos), ou conjuntos teóricos mais abrangentes e
acabados como o Positivismo. E vale ainda lembrar que as idéias podem ser examinadas
pelo historiador no âmbito das produções individuais (uma História Intelectual
propriamente dita) ou no âmbito de correntes de pensamento para as quais
contribuíram grupos de indivíduos (o Iluminismo, o Liberalismo, o Socialismo). Mas
quando começa a se aproximar de uma dimensão coletiva mais abrangente, no limite
possível chegando a determinada visão de mundo que corresponda ou afete a toda uma
coletividade (e não mais apenas a indivíduos ou grupos de indivíduos) o historiador
pode principiar a perceber também certos 'modos de pensar e de sentir' que em muitos
casos podem ser também objetos de uma História das Mentalidades. Aqui, o objeto de
estudo e as fontes históricas estarão particularmente endereçadas com vistas a
capturar o homem comum – que por não possuir uma vida excepcional pode por isso
mesmo oferecer um melhor acesso ao fundo mental coletivo – ou para as grandes
massas de indivíduos passíveis de serem capturadas, no que se refere às permanências e
variações em seus modos de pensar e de sentir, pelas grandes séries documentais por
vezes examinadas em longa duração.
É também com uma preocupação em compreender mais de perto o homem comum,
fazendo incidir sobre ele uma História Vista de Baixo, que alguns historiadores –
bastante eficazes em estabelecer uma firme conexão entre História Cultural, História
Social e História Política – mostram-se particularmente interessados em examinar
temas como os protestos populares, os charivari, a música rústica das manifestações, e
diversas outras formas de 'expressões coletivas'.3 Aqui estaremos entrando no último
âmbito de desdobramentos que se abre para os historiadores da cultura: as expressões
culturais.
O âmbito das expressões prossegue com este que é talvez o mais tradicional dos objetos
de interesse da História Cultural, e que corresponde às diversas expressões artísticas –
as Artes Visuais, a Música, o Cinema, o Teatro, a Literatura – mas cumprindo notar que
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não teremos mais aqui apenas aquela que já foi chamada de "alta cultura", já que nos
dias de hoje os historiadores voltam-se também com especial interesse para a Cultura
Popular. E, por fim, constituem objeto de profundo interesse da História Cultural a
própria linguagem, os modos de comunicação e os discursos – aqui se entendendo
"discurso" tanto no sentido mais amplo que se refere aos discursos científicos e
multidisciplinares (o discurso jurídico, o discurso político, o discurso dos historiadores
de determinado período), como também no sentido mais restrito que se refere à
materialização específica de um discurso em forma de texto escrito ou na forma de
enunciação através da oralidade.
Conforme se vê, estamos aqui um quadro bastante amplo mas que ainda deve ser
acrescido de uma complexidade adicional. Tal como se disse, a História Cultural pode se
preocupar com estudo de objetos culturais, sujeitos, sistemas e processos (lado esquerdo do
quadro) – elementos que podem perpassar as diversas dimensões enunciadas e também
dialogarem uns com os outros. Se estudo um determinado Sistema Religioso – e a
História Religiosa é um domínio que se sintoniza bastante com a dimensão da História
Cultural, embora também com a História Social e em muitos casos com a História Polí
tica – estarei preocupado com determinados sujeitos e agentes (os sacerdotes, os
praticantes, e a própria Igreja como uma agência maior) e possivelmente deverei me
familiarizar com determinados objetos culturais que são os objetos de culto, a
indumentária eclesiástica, e assim por diante. Mas da mesma forma estarei circulando
entre as práticas e representações acima mencionadas, investigando as visões de mundo
que amparam tal sistema religioso, e muito possivelmente examinando as expressões
culturais que se associam a este sistema religioso, o que pode incluir desde as formas
arquitetônicas de uma Catedral até os discursos que se concretizam nos sermões e bulas
papais.
O exame de um determinado processo cultural – como por exemplo a aculturação de
uma tribo indígena ou a apropriação do Cinema para determinadas finalidades políticas
– implica também em conhecer os sujeitos envolvidos e em compreender como estes se
relacionam com as práticas e representações envolvidas neste processo. O estudo da
apropriação política do Cinema – objeto possível a uma conexão entre a História
Cultural e a História Política – implica em que o historiador conheça a fundo esta forma
de expressão artística que é o Cinema e a sua linguagem específica, e além disto ele
provavelmente terá entre suas fontes não apenas o filme propriamente dito (um objeto
cultural que materializa representações de todos os tipos) como também os próprios
discursos dos cineastas e outros agentes envolvidos com a produção, crítica, difusão e
consumo do Cinema.
Desta maneira, um esquema completo que se proponha a mostrar a abrangência da
História Cultural com relação a seus objetos de estudo e de interesse deve trabalhar
com estas complexidades. Práticas, Representações, Visões de Mundo e Expressões
Culturais estão constantemente se interpenetrando na constituição de um determinado
'sistema' ou desenrolar de um determinado 'processo' cultural, e ao mesmo tempo
sempre envolverão 'sujeitos' e 'objetos culturais' específicos.
Em função do quadro acima levantado, será imprescindível clarificar, neste passo,
algumas das principais noções que amparam o trabalho historiador da Cultura, a
começar pelas próprias noções de práticas e representações.
O que são as "práticas culturais"? Antes de mais nada, e acompanhando o que já foi
exposto, convém ter em vista que esta noção deve ser pensada não apenas em relação
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às instâncias oficiais de produção cultural, às instituições várias, às técnicas e às
realizações (por exemplo os objetos culturais produzidos por uma sociedade), mas
também em relação aos usos e costumes que caracterizam a sociedade examinada pelo
historiador. São práticas culturais não apenas a feitura de um livro, uma técnica
artística ou uma modalidade de ensino, mas também os modos como, em uma dada
sociedade, os homens falam e se calam, comem e bebem, sentam-se e andam,
conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se, morrem ou adoecem, tratam
seus loucos ou recebem os estrangeiros.
Será possível compreender isto a partir de um exemplo concreto. Para este fim,
acompanharemos as "práticas culturais" (e neste caso as "práticas sociais"), que se
entreteceram no Ocidente Europeu durante um período situado entre a Idade Média e o
período Moderno com relação à aceitação ou rejeição da figura do "mendigo".
Entre o fim do século XI e o início do século XIII, o pobre, e entre os vários tipos de
pobres o mendigo, desempenhava um papel vital e orgânico nas sociedades cristãs do
Ocidente Europeu. A sua existência social era justificada como sendo primordial para a
"salvação do rico".4 Conseqüentemente, o mendigo – pelo menos o mendigo conhecido
– era bem acolhido na sociedade medieval. Toda comunidade, cidade ou mosteiro
queria ter os seus mendigos, pois eles eram vistos como laços entre o céu e a terra –
instrumentos através dos quais os ricos poderiam exercer a caridade para expiar os
seus pecados. Esta visão do pobre como 'instrumento de salvação para o rico',
antecipemos desde já, é uma 'representação cultural'.
A postura medieval em relação aos mendigos gerava 'práticas', mais especificamente
costumes e modos de convivência. Tal como mencionamos atrás, fazem parte do
conjunto das "práticas culturais" de uma sociedade também os 'modos de vida', as
'atitudes' (acolhimento, hostilidade, desconfiança), ou as normas de convivência
(caridade, discriminação, repúdio). Tudo isto, conforme veremos, são práticas culturais
que, além de gerarem eventualmente produtos culturais no sentido literário e artístico,
geram também padrões de vida cotidiana ("cultura" no moderno sentido
antropológico).
No século XIII, com as ordens mendicantes inauguradas por São Francisco de Assis, a
valorização do pedinte pobre recebe ainda um novo impulso. Antes ainda havia aquela
visão amplamente difundida de que, embora o pobre fosse instrumento de salvação
necessário para o rico, o mendigo em si mesmo estaria naquela condição como
resultado de um pecado. O seu sofrimento pessoal, enfim, não era gratuito, mas
resultado de uma determinação oriunda do plano espiritual. Os franciscanos apressam-
se em desfazer esta 'representação'. Seus esforços atuam no sentido de produzir um
discurso de reabilitação da imagem do pobre, e mais especificamente do mendigo. O
pobre deveria ser estimado pelo seu valor humano, e não apenas por desempenhar este
importante papel na economia de salvação das almas. O mendigo não deveria ser mais
visto em associação a um estado pecaminoso, embora útil.
Estas 'representações' medievais do pobre, com seus sutis deslocamentos, são
complementares a inúmeras 'práticas'. Desenvolvem-se as instituições hospitalares, os
projetos de educação para os pobres, as caridades paroquiais, as esmolarias de
príncipes. A literatura dos romances, os dramas litúrgicos, as iconografias das igrejas e
a arte dos trovadores difundem, em meio a suas práticas, representações do pobre que
lhe dão um lugar relativamente confortável na sociedade. Havia os pobres locais, que
eram praticamente adotados pela sociedade na qual se inseriam, e os "pobres de
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passagem" – os mendigos forasteiros que, se não eram acolhidos em definitivo, pelo
menos recebiam alimentação e cuidados por um certo período antes de serem
convidados a seguir viagem.
Daremos agora um salto no tempo para verificar como se transformaram estas práticas
e representações com a passagem para a Idade Moderna. No século XVI, o mendigo
forasteiro será recebido com extrema desconfiança. Ele passa a ser visto de maneira
cada vez mais excludente. Suas 'representações', em geral, tendem a estar inseridas no
âmbito da marginalidade. Pergunta-se que doenças estará prestes a transmitir, se não
será um bandido, por que razões não permaneceu no seu lugar de origem, por que não
tem uma ocupação qualquer. Assim mesmo, quando um mendigo forasteiro aparecia em
uma cidade, no século XVI ele ainda era tratado e alimentado antes de ser expulso. Já
no século XVII, ele teria a sua cabeça raspada (um sinal representativo de exclusão),
algumas décadas depois ele passaria a ser açoitado, e já no fim deste século a
mendicidade implicaria na condenação.5
O mendigo, que na Idade Média beneficiara-se de uma representação que o redefinia
"instrumento necessário para a salvação do rico", era agora penalizado por se mostrar
aos poderes dominantes como uma ameaça contra o sistema de trabalho assalariado do
Capitalismo, que não podia desprezar braços humanos de custo barato para pôr em
movimento suas máquinas e teares, e nem permitir que se difundissem exemplos e
modelos inspiradores de vadiagem. O mendigo passava a ser representado então como
um desocupado, um estorvo que ameaçava a sociedade (e não mais como um ser
merecedor de caridade). Ele passa a ser então assimilado aos marginais, aos criminosos
– sua representação mais comum é a do vagabundo. Algumas canções e obras literárias
irão representá-lo com alguma freqüência desta nova maneira, os discursos jurídicos e
policiais farão isto sempre. As novas tecnologias de poder passariam a visar a sua
reeducação, e quando isto não fosse possível a sua punição exemplar. Novas práticas
irão substituir as antigas, consolidando novos costumes.
O exemplo discutido acima, embora tenha requerido uma digressão de alguns
parágrafos, pretende contribuir para uma melhor compreensão destes dois conceitos
que são tão falados, mas nem sempre tão bem compreendidos. Chama atenção para a
complementaridade das "práticas e representações", e para a extensão de cada uma
destas noções. As práticas relativas aos mendigos forasteiros geram representações, e
as suas representações geram práticas, em um emaranhado de atitudes e gestos no qual
não é possível distinguir onde estão os começos (se em determinadas práticas, se em
determinadas representações).
Poderemos dar outros exemplos mais breves. Um livro é um objeto cultural bem
conhecido no nosso tipo de sociedade. Para a sua produção, são movimentadas
determinadas práticas culturais e também representações, sem contar que o próprio
livro, depois de produzido, irá difundir novas representações e contribuir para a
produção de novas práticas.
As práticas culturais que aparecem na construção do livro são tanto de ordem autoral
(modos de escrever, de pensar ou expor o que será escrito), como editoriais (reunir o que
foi escrito para constituí-lo em livro), ou ainda artesanais (a construção do livro na sua
materialidade, dependendo de estarmos na era dos manuscritos ou da impressão). Da
mesma forma, quando um autor se põe a escrever um livro, ele se conforma a
determinadas representações do que deve ser um livro, a certas representações
concernentes ao gênero literário no qual se inscreverá a sua obra (o que já nos remete
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ao campo das expressões culturais), a representações concernentes aos temas por ela
desenvolvidos. Este autor também poderá se tornar criador de novas representações,
que encontrarão no devido tempo uma ressonância maior ou menor no circuito leitor
ou na sociedade mais ampla.
Com relação a este último aspecto, já vimos que a leitura de um livro também gera
práticas criadoras, podendo produzir concomitantemente práticas sociais. Será o livro
lido em leitura silenciosa, em recinto privado, em uma biblioteca, em praça pública?
Sabemos que sua leitura poderá ser individual ou coletiva (um letrado, por exemplo,
pode ler o livro para uma multidão de não-letrados), e que o seu conteúdo poderá ser
imposto ou rediscutido. Por fim, a partir da leitura e difusão do conteúdo do livro,
poderão ser geradas inúmeras representações novas sobre os temas que o atravessam,
que em alguns casos poderão passar a fazer parte das representações coletivas.
A produção de um bem cultural, como um livro ou qualquer outro, está
necessariamente inscrita em um universo regido por estes dois pólos que são as
práticas e as representações. Para além disto, um livro pode ser o veículo de
determinadas expressões culturais, conforme seja uma obra literária ou ensaística, e seu
discurso pode ensejar certa visão de mundo, o que interliga as quatro funções culturais
anteriormente expostas no nosso esquema sobre a História Cultural. Os exemplos são
indefinidos. Cantar músicas em um sarau era uma forma de expressão cultural e uma
prática cultural da qual participavam os trovadores medievais, que desta forma
contribuíam para elaborar através de suas canções uma série de representações a serem
reforçadas ou difundidas (o Amor Cortês, a vida cavaleiresca). Um sistema educativo
inscreve-se em uma prática cultural, e ao mesmo tempo inculca naqueles que a ele se
submetem determinadas representações destinadas a moldar certos padrões de caráter
e a viabilizar um determinado repertório lingüístico e comunicativo que será vital para
a vida social, pelo menos tal como a concebem os poderes dominantes. Em todos estes
casos, como também no exemplo do mendigo desenvolvido mais acima, as práticas e
representações são sempre resultado de determinadas motivações e necessidades
sociais.
As noções complementares de "praticas e representações" são bastante úteis, porque
através delas podemos examinar tanto os objetos culturais produzidos, os sujeitos
produtores e receptores de cultura, como também os processos que envolvem a
produção e difusão cultural, os sistemas que dão suporte a estes processos e sujeitos, e
por fim as normas a que se conformam as sociedades através da consolidação de seus
costumes. Dependendo de meu objeto de estudo, estarei também abordando as visões
de mundo e as expressões culturais – estas últimas referindo-se tanto ao aspecto
estético trazido pelas expressões artísticas como aos discursos que se materializam a
todo instante em textos ou a partir de outros sistemas de comunicação que não
necessariamente a escrita.
De alguma maneira, a noção de 'representação', em associação com alguns dos
desdobramentos que vimos associados à noção de 'visão de mundo', pretende corrigir
aspectos lacunares que aparecem em noções mais ambíguas, como por exemplo a de
"mentalidades". Vimos através dos exemplos acima que as representações podem –
através da interação com visões de mundo específicas – estar associadas aos modos de
pensar e de sentir, inclusive coletivos, embora as representações não se restrinjam
apenas a esses modos de pensar e de sentir. Para evocar algumas associações entre
'representações' e 'expressões culturais', podemos ter em vista que quando um pintor
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produz a sua representação de uma catedral, com tela e tintas, ou quando um escritor
descreve ou inventa uma catedral através de um poema ou de um romance, temos em
ambos os casos representações, embora não coletivas. Tal como assevera Jacques Le
Goff (1985), o campo das representações "engloba todas e quaisquer traduções mentais
de uma realidade exterior percebida", e está ligado ao processo de abstração.6 O âmbito
das representações, ainda conforme Le Goff, também pode abarcar elementos
associados ao Imaginário. As representações do poder – como por exemplo a associação
do poder absoluto ao Rei-Sol, a visualização deste poder em termos de centro a ser
ocupado ou de cume a ser atingido – associam-se a um determinado imaginário político.
Deve-se ter notado que – ao nos referirmos atrás a "representações", "práticas",
"mentalidades", "imaginário" – em todos estes casos preferimos utilizar a expressão
"noção" ao invés de "conceito". As "noções" são 'quase conceitos', mas ainda funcionam
como tateamentos na elaboração do conhecimento científico, atuando à maneira de
imagens de aproximação de um determinado objeto de conhecimento (imagens que,
rigorosamente, ainda não se acham suficientemente delimitadas). Muitas vezes as
noções são resultados de uma descoberta progressiva, de experiências, de
investimentos criativos de um ou mais autores que podem ou não ser incorporados
mais regularmente pela comunidade científica. Mentalidades, Imaginário e
Representações são noções que ainda estão sendo experimentadas no campo das
ciências humanas – na História, estas expressões fizeram a sua entrada a apenas
algumas poucas décadas ("mentalidades" é expressão forjada a partir da historiografia
francesa da década de 1960; "imaginário" é uma palavra que apenas recentemente
migrou para o campo histórico, importada de campos como a psicologia e a
fenomenologia).
Com o tempo uma "noção" pode ir se transformando em "conceito", à medida que
adquire uma maior delimitação e em que uma comunidade científica desenvolve uma
consciência maior dos seus limites, da extensão de objetos à qual se aplica. Os
"conceitos", pode-se dizer, são instrumentos de conhecimento mais elaborados,
longamente amadurecidos, o que não impede que existam conceitos com grande
margem de polissemismo (como o conceito de "ideologia" ou, tal como já dissemos,
como o próprio conceito de "cultura").
"Práticas" e "representações" são ainda noções que estão sendo elaboradas no campo
da História Cultural. Mas, tal como já ressaltamos, elas têm possibilitado novas
perspectivas para o estudo historiográfico da Cultura, porque juntas permitem abarcar
um conjunto maior de fenômenos culturais, além de chamarem atenção para o
dinamismo destes fenômenos. Por outro lado, citamos atrás algumas 'representações do
poder' que produzem associações com um determinado imaginário político
(centralização, periferia, marginalização). Quando uma representação liga-se a um
circuito de significados fora de si e já bem entronizado em uma determinada
'comunidade discursiva', esta representação começa a se avizinhar de outra categoria
da História Cultural que é o "símbolo".
"Símbolo" é uma categoria teórica já há muito tempo amadurecida no seio das ciências
humanas – seja na História, na Antropologia, na Sociologia ou na Psicologia. Não é mais
uma 'noção', mas sim um 'conceito' que pode ser empregado "quando o objeto
considerado é remetido para um sistema de valores subjacente, histórico ou ideal".7
Alguns símbolos podem ser polivalentes. A serpente, por exemplo, pode ser empregada
como símbolo do ciclo, da renovação (sentido inspirado pela mudança de peles que
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ocorre ciclicamente no animal serpente), mas também pode ser empregado como
símbolo da astúcia, da maldade (sentidos que remetem ao universo bíblico). Aquilo que
os historiadores da cultura têm chamado de campo das representações pode abarcar
tanto as representações produzidas ao nível individual (as representações artísticas,
por exemplo), como as representações coletivas, certos elementos que já fazem parte
do âmbito do imaginário e, com especial importância, os "símbolos", que constituem
um dos recursos mais importantes da comunicação humana.
As representações podem ainda ser apropriadas ou imprimidas de uma direção
socialmente motivada, situação que remete a outro conceito fundamental para a
História Cultural, que é o de "ideologia" – e que já apontamos atrás como um dos
desdobramentos possíveis a serem associados à categoria maior das 'visões de mundo'.
A Ideologia, de fato, é produzida a partir da interação de subconjuntos coerentes de
representações e de comportamentos que passam a reger as atitudes e as tomadas de
posição dos homens nos seus inter-relacionamentos sociais e políticos. No exemplo do
mendigo, vimos como as suas representações sociais e deslocamentos no universo
mental dos homens medievais atendiam a determinados interesses sociais ou a
determinadas motivações coletivas. Podemos dizer que aquelas representações estavam
sendo apropriadas ideologicamente. A difusão de uma franca hostilidade com relação
ao mendigo do período moderno e a impregnação de novas tecnologias de exclusão nos
discursos que o tomam como objeto (a sua classificação como vagabundo, a raspagem
da cabeça) acabam fazendo com que sem querer a maioria das pessoas da sociedade
industrial comecem a pressionar todos os seus membros a encontrarem uma ocupação
no sistema capitalista de trabalho. Isto é um processo ideológico.
Por vezes, a ideologia aparece como um projeto de agir sobre determinado circuito de
representações no intuito de produzir determinados resultados sociais. Georges Duby,
por exemplo, examina em uma de suas obras como uma antiga representação do mundo
social em três ordens – oratores, bellatores, laboratores – é reapropriada ideologicamente a
determinada altura da sociedade feudal, sendo possível identificar as primeiras
produções culturais da Idade Média em que aparece este novo sentido ideológico
acoplado ao circuito de representações da sociedade tripartida.8
A ideologia aparece, desta forma, como um projeto de agir sobre a sociedade (este é,
aliás, um outro sentido empregado para 'ideologia', que, conforme veremos adiante, é
um conceito extremamente polissêmico). Outros exemplos similares ao estudado por
Georges Duby são propostos por Jacques Le Goff para o mesmo período, conforme
poderemos examinar na passagem reproduzida abaixo:9
"Quando os clérigos da Idade Média exprimem a estrutura da sociedade terrenapela imagem dos dois gládios – o do temporal e o do espiritual, o do poder real e odo poder pontifical – não descrevem a sociedade: impõem-lhe uma imagemdestinada a separar nitidamente os clérigos dos leigos e a estabelecer entre elesuma hierarquia, pois o gládio espiritual é superior ao gládio material. Quando estesmesmos clérigos distinguem nos comportamentos humanos sete pecados capitais, oque eles fazem não é a descrição dos maus comportamentos, mas sim a construçãode um instrumento adequado ao combate contra os vícios em nome da ideologiacristã"
A ideologia, poderíamos dizer, corresponde a uma determinada forma de construir
representações ou de organizar representações já existentes para atingir determinados
objetivos ou reforçar determinados interesses. É uma visão de mundo que se impõe, de
modo a cumprir determinado projeto social ou a atender certos interesses políticos e,
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por trás destes, econômicos. O nível de consciência ou de automatismo como isto é feito
é questão aberta, e que dificilmente poderá ser um dia encerrada. Também se discute se
ideologia é uma dimensão que se refere à totalidade social (uma instância ideológica)
ou se existem ideologias associadas a determinados grupos ou classes sociais (ideologia
burguesa, ideologia proletária). Na verdade, ideologia é um conceito que tem sido
empregado por autores distintos com inúmeros sentidos no campo das ciências
humanas, e por isto um historiador que pretenda utilizar este conceito deve se apressar
a definir com bastante clareza o sentido com o qual o está utilizando. Na acepção mais
restrita que empregamos acima, a ideologia está sempre associada a um determinado
sistema de valores. A ideologia, de acordo com este uso, tem a ver com 'poder', com
'controle social' exercido sobre os membros de uma sociedade, geralmente sem que
estes tenham consciência disto e muitas vezes sem que os próprios agentes implicados
na produção e difusão de imagens que alimentam o âmbito ideológico tenham eles
mesmos uma consciência mais clara dos modos como o poder está sendo exercido.
Cabe precisamente aos historiadores da cultura examinar estas relações ideológicas,
para que não realizem uma História Cultural meramente descritiva, como aquela que
propunha Huizinga em um famoso ensaio do início do século XX ao afirmar que o
objetivo fundamental da História Cultural é meramente morfológico, "ou seja, a
descrição de padrões de cultura ou, por outras palavras ainda, pensamentos,
sentimentos e a sua expressão em obras de arte e de literatura".10 É também este
mesmo tipo de História da Cultura o que foi realizado por Jacob Burckhardt no século
XIX, ao procurar recuperar aquilo que chamou de "espírito da época" na sociedade
renascentista.
Esclarecidos os conceitos fundamentais que acabam permeando boa parte das reflexões
encaminhadas pela História Cultural – ideologia, símbolo, representação, prática –
poderemos exemplificar com um horizonte teórico inaugurado por Chartier (1980)
dentro do enfoque histórico-cultural, e que tem precisamente na noção de
"representação" um dos seus alicerces fundamentais.11 De fato, a História Cultural, tal
como a entende o historiador francês, "tem por principal objeto identificar o modo
como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade cultural é
construída, pensada, dada a ler".
As representações, acrescenta Chartier, inserem-se "em um campo de concorrências e
de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação" – em
outras palavras, são produzidas aqui verdadeiras "lutas de representações".12 E estas
lutas geram inúmeras 'apropriações' possíveis das representações, de acordo com os
interesses sociais, com as imposições e resistências políticas, com as motivações e
necessidades que se confrontam no mundo humano. Estamos aqui bem longe do modelo
de História da Cultura proposto por Huizinga. O modelo cultural de Chartier é
claramente atravessado pela noção de "poder" (o que, de certa forma, faz dele também
um modelo de História Política).
Para encaminhar esta interação entre cultura e poder, tem a sua entrada uma outra
noção primordial. "Apropriação", conjuntamente com as noções de "representação" e
de "prática", constitui precisamente a terceira noção fundamental que conforma a
perspectiva de História Cultural desenvolvida por Roger Chartier – esta perspectiva
que, nos dizeres do próprio historiador francês, procura compreender as práticas que
constroem o mundo como representação''.13
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A perspectiva cultural desenvolvida por autores como Roger Chartier e Michel de
Certeau, enfim, constitui um dos três eixos mais influentes para o atual
desenvolvimento de uma História Cultural, ao lado de outras perspectivas
importantíssimas como aquelas que são trazidas no âmbito do materialismo histórico
pela Escola Inglesa (Thompson) e pela abordagem polifônica da cultura (Bakhtin e
Ginzburg).
É imprescindível remarcar ainda a presença, na História Cultural e suas adjacências, de
todo um grupo de historiadores que toma para objeto o discurso científico, e o discurso
historiográfico em particular, consolidando uma linha de reflexões que teve alguns de
seus textos pioneiros com Michel Foucault, notadamente a partir de A Arqueologia do
Saber (1969).14 Herdeiros desta nova perspectiva que desloca o olhar de uma pretensa
realidade social para o campo dos discursos, aparecem aqui as análises de Hayden
White (1973) e Dominick LaCapra (1985) a respeito da História como uma forma de
narrativa como todas as outras, a incluir componentes de retórica, estilo e imaginação
literária que devem ser decifradas pelos analistas do discurso historiográfico.15 Ocorre
aqui uma conexão entre a História Cultural ('dimensão' examinada pelo historiador) e
uma História do Discurso ('abordagem', aqui entendida como o campo histórico que
examina o discurso a partir de técnicas diversas como a semiótica e a análise do
discurso propriamente dita).
Por fim, há aqueles historiadores da cultura que se especializaram em certos 'domínios'
da História, como por exemplo Gombrich e Giulio Carlo Argan para o caso da História
da Arte – este último um historiador associado à perspectiva marxista (à qual
deveremos aliás acrescentar os trabalhos de Arnold Hauser, particularmente
preocupado em constituir uma História Social da Arte e uma História Social da Cultura).
Domínios ainda mais específicos têm se constituído em especialidades dos historiadores
da cultura, como é o caso do historiador francês Paul Zumthor que tem se dedicado
incisivamente à literatura medieval, e ainda mais especificamente à poesia
trovadoresca.
Seria também importante lembrar que, para além das variedades de História Cultural já
mencionadas, a História Antropológica também enfoca a 'Cultura', mas mais
particularmente nos seu sentidos antropológicos. Privilegia problemas relativos à
'alteridade', e interessa-se especialmente pelos povos ágrafos, pelas minorias, pelos
modos de comportamento não-convencionais, pela organização familiar, pelas
estruturas de parentesco. Em alguns de seus interesses, irmana-se com a Etno-História,
por vezes assimilando esta última categoria histórica aos seus quadros.
De certo modo, o que funda a História Antropológica como um campo novo, mais
específico que a História Cultural, é a utilização da antropologia como modelo, mais do
que os objetos antropológicos propriamente ditos. Os historiadores descobriram nas
últimas décadas do século XX a possibilidade de uso de conceitos e procedimentos
oriundos tanto da vertente antropológica representada por autores como Clifford
Geertz (1973) – com sua técnica da "descrição densa" – como da vertente que trata as
culturas como sistemas de signos, e que ficou conhecida como Antropologia Estrutural,
tendo em Lévi Strauss e Marshall Sahlins os seus principais representantes.
Um bom trabalho de História Antropológica foi o que fez Le Roy Ladurie em Montaillou,
uma vila occitânica.16 Nesta obra, o historiador francês procura recuperar a vida
comunitária de uma aldeia entre o final do século XIII e o início do século XIV. Os
interesses do autor voltam-se precisamente para estes objetos tão caros à antropologia:
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270
a vida familiar, a sexualidade, as práticas matrimoniais, a rede de micropoderes que
afetam a comunidade, o âmbito das crenças religiosas e das práticas de magia natural.
Na verdade, temos aqui uma história antropológica que também entra pelos caminhos
de uma História da Cultura Material, embora esta cultura material seja percebida
essencialmente a partir de uma documentação escrita formada pelos registros
inquisitoriais (a aldeia em questão deixou vestígios precisamente por ter acolhido em
seu seio a heresia cátara com o conseqüente processo de Inquisição instalado pela
Igreja). É a partir destas fontes que Laduric logra obter traços da vida cotidiana. Neste
sentido, Montaillou acha-se em uma rica conexão de História Antropológica, História da
Cultura Material, História do Cotidiano e História Local (já que, neste último caso, atém-
se a limites espaciais bem precisos).
Em linhas gerais, e deixando de fora muitas obras e autores igualmente significativos
mas que não poderiam ser abordados neste breve panorama, eis aqui um panorama de
algumas das tendências mais basilares da História Cultural no decurso do século XX,
todas deixando importantes heranças historiográficas para o século XXI. O nosso
objetivo a seguir, para finalizar este ensaio, será examinar um dos domínios da história
que tem se associado mais freqüentemente à dimensão da História Cultural: a História
das Idéias.
A História das Idéias deve ser classificada como uma modalidade historiográfica
relacionada aos domínios da História – isto é, a um tipo de subdivisão da História que se
refere a um campo temático mais específico. Valerá lembrar aqui uma proposta recente
para compreender mais sistematicamente os critérios que presidiriam a divisão do
saber historiográfico nas suas diversas modalidades.17 Falaremos aqui de três tipos
fundamentais de critérios geradores de modalidades historiográficas: as dimensões, as
abordagens, e os domínios.
O primeiro critério gerador de divisões da história em modalidades mais específicas
refere-se ao que chamaremos de dimensões, correspondendo àquilo que o historiador
traz para primeiro plano no seu exame de uma determinada sociedade: a Política, a
Cultura, a Economia, a Demografia, e assim por diante. Desta maneira, teríamos na
História Econômica, na História Política, ou na História das Mentalidades campos do
saber histórico relativos às dimensões ou aos enfoques priorizados pelo historiador.
Vimos na primeira parte deste ensaio que um historiador cultural estuda em primeiro
plano os fatos da cultura, na mesma medida em que um historiador político estuda o
poder nas suas múltiplas formas e um historiador demográfico orienta o seu trabalho
em tomo da noção que lhe é central de "população". Desta maneira, a História Cultural
– com toda a amplitude de possibilidades de que já foi tratada no início deste ensaio –
deve ser mais adequadamente localizada no campo das dimensões historiográficas.
Um segundo grupo de critérios para estabelecer divisões no saber histórico é aquele
que chamamos de abordagens, referindo-se aos métodos e modos de fazer a História, aos
tipos de fontes e também às formas de tratamento de fontes com os quais lida o
historiador. São divisões da História relativas a abordagens a História Oral, a História
Serial, a Micro-História e tantas outras. A História Oral, por exemplo, lida com fontes
orais e depende de técnicas como a das entrevistas; a História Serial trabalha com
fontes seriadas – documentação que apresente um determinado tipo de homogeneidade
e que possa ser analisada sistematicamente pelo historiador. A Micro-História refere-se
a abordagens que reduzem a escala de observação do historiador, procurando captar
em uma sociedade aquilo que habitualmente escapa aos historiadores que trabalham
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com um ponto de vista mais panorâmico, mais generalista ou mais distanciado.
Também a História Regional poderia ser classificada como modalidade historiográfica
ligada a uma abordagem, no sentido de que elege um campo de observação específico
para a construção da sua reflexão ao construir ou encontrar historiograficamente uma
"região". Examinando um espaço de atuação onde os homens desenvolvem suas
relações sociais, políticas e culturais, a História Regional viabiliza através de sua
abordagem um tipo de saber historiográfico que permite estudar uma ou mais
dimensões nesta região que pode ser analisada tanto no que concerne a
desenvolvimentos internos, como no que se refere à inserção em universos mais
amplos.
Para além das modalidades relacionadas a dimensões e abordagens, podemos pensar
finalmente nas divisões da História que chamaremos de domínios, e que se referem a
campos temáticos privilegiados pelos historiadores. Vários domínios da História têm
surgido e mesmo desaparecido no horizonte de saber desta complexa disciplina que é a
História. Estaremos falando de domínios quando nos referimos a uma História da
Mulher, a uma História do Direito, a uma História de Sexualidade, a uma História Rural.
Os domínios da História são na verdade de número indefinido. Alguns domínios podem
se referir aos 'agentes históricos' que eventualmente são examinados (a mulher, o
marginal, o jovem, o trabalhador, as massas anônimas), outros aos 'ambientes sociais'
(rural, urbano, vida privada), outros aos 'âmbitos de estudo' (arte, direito, religiosidade,
sexualidade), e a outras tantas possibilidades. Os exemplos sugeridos são apenas
indicativos de uma quantidade de campos que não teria fim, e qualquer um poderá
começar a pensar por conta própria as inúmeras possibilidades.
Tal como dissemos, os critérios de classificação que estabelecem domínios da História
referem-se primordialmente às temáticas (ou campos temáticos) escolhidas pelos
historiadores. São já áreas de estudo mais específicas, dentro das quais se inscreverá a
problemática constituída pelo ato historiográfico. A maioria dos domínios históricos
sintoniza-se com os trabalhos que se referem às diferentes dimensões históricas, e
certamente abre-se às várias abordagens. Mas existem domínios que têm mais afinidade
com determinada dimensão, dada a natureza dos temas por eles abarcados. Assim, a
História da Arte ou a História da Literatura podem ser eventualmente consideradas
subespecialidades da História Cultural (embora se deva chamar atenção para uma
História Social da Arte, ou uma História Social da Literatura, que não deixam de ser
possibilidades dentro da História Social).
Alguns domínios surgem e desaparecem ao sabor das modas historiográficas –
motivados por eventos sociais e políticos, ou mesmo por ditames editoriais e tendências
de mercado. Outros surgem quando para eles se mostra preparada a sociedade na qual
se insere a comunidade de historiadores (por exemplo, uma 'História da Sexualidade'
não poderia surgir na Inglaterra Puritanista, e uma 'História da Mulher' não poderia
surgir senão quando, no século XX, a mulher começa a conquistar o mercado de
trabalho e surgem os movimentos feministas e de valorização social da mulher). Outros
domínios, por fim, são quase tão antigos quanto a própria História – como é o caso da
História Religiosa e da História Militar – e tendem a ser perenes na sua durabilidade.
A História das Idéias é um domínio que conquistou a sua perenidade desde o princípio
do século XX. Passou por variações no que se refere às concepções das diversas
gerações de historiadores das idéias, mas sem sombra de dúvida conquistou o seu lugar
no Campo da História. Assim, no decorrer século XX foi possível assistir ao desenrolar
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de uma rica trajetória que partiu da História das Idéias desencarnada de um contexto
social – e que atinge a sua proeminência entre as décadas de 1940 e 1950 – a uma
verdadeira História Social das Idéias, onde é tarefa primordial do historiador
compreender e constituir um contexto social adequado antes de se tornar íntimo das
idéias que pretende examinar.
O nosso objetivo nesta segunda parte do ensaio não será o de recuperar esta trajetória
historiográfica, pontuando-a com exemplos exaustivos, mas sim vislumbrar os diálogos
deste domínio que é chamada de História das Idéias com outros campos históricos –
sejam eles dimensões, abordagens ou domínios históricos. Naturalmente que, dada a
natureza dos seus objetos, a História das Idéias sintoniza francamente com a História
Cultural, sendo este o principal campo histórico que se coloca aqui em diálogo. Às vezes
esse diálogo é tão intenso que a História das Idéias dá a impressão de ser mesmo um
domínio que se desdobra desta dimensão que é habitualmente denominada História
Cultural, e cujas inúmeras possibilidades de objetos já examinamos na primeira parte
deste ensaio.
Por outro lado, a História das Idéias é um campo histórico que através dos seus objetos
pode se mostrar sintonizada não apenas com a História Cultural, como também com
outras dimensões historiográficas como a História Política (basta pensar nos trabalhos
que investigam as idéias políticas, entre outros). Um diálogo mais intenso com a
História Cultural ou com a História Política, ou com ambas, aparece bem explicitamente
no primeiro dos limiares possíveis para a História das Idéias: aquele em que são
examinadas as idéias relacionadas ao pensamento sistematizado de indivíduos
específicos (por exemplo, os tratados filosóficos, as teorias políticas escritas por
grandes ou pequenos pensadores políticos, ou as concepções estéticas dos artistas e
literatos de diversos tipos e níveis). O mesmo ocorre quando a História das Idéias volta-
se para o estudo de movimentos literários e filosóficos tratando-os como tendências
que abrangem grupos mais amplos de pensadores (o Verismo na Literatura, ou o
Iluminismo na política) e também quando são examinadas as flutuações de pensamento
ou opinião em torno de idéias mais específicas como a "república", a "democracia", a
"liberdade" (ou quaisquer outras). Até este limiar, tem-se um domínio que muitos
preferem também chamar de História Intelectual.18
Prosseguindo em seu campo de possibilidades, no momento em que passa a investir em
uma preocupação mais sistemática de examinar as ideologias e a difusão de idéias, a
História das Idéias começa a se interconectar não apenas com a História Cultural como
também com a História Social em seu sentido mais stricto. Muitos preferem falar aqui de
algo mais específico como uma História Social das Idéias, mas é importante ressaltar que –
se estivermos empregando aquele sentido mais amplo de "História Social" onde toda
História nos dias de hoje é uma "história social" – teremos por força de considerar que
toda boa história das idéias, tal como a entende a moderna historiografia profissional, é
uma História Social das Idéias. A propósito disto, é bom ressaltar que, nos dias de hoje –
mesmo quando examina as idéias estéticas de um artista ou literato – é muito raro que
algum historiador profissional se proponha a empreender aquele já mencionado tipo de
História das Idéias que as concebe desencarnadas de seu contexto social, tal como a
fizeram muitos historiadores na primeira metade do século XX.
A partir do limiar em que o Historiador das Idéias avança pela investigação de idéias
que já se apresentam desencarnadas de autoria – ou porque estão mergulhadas na
chamada cultura popular, ou porque se referem à coletividade em sentido mais amplo –
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sua prática historiográfica começa a se inserir em um proficuo diálogo com aqueles
setores da História Cultural que investigam as visões de mundo, representações e
expressões coletivas. Também aqui, na medida em que estas idéias começam a tocar em
algo como as mentalidades ou o "inconsciente coletivo", poderemos começar a
vislumbrar os diálogos da História das Idéias com dimensões como a História das
Mentalidades ou como a Psico-História.
Um esquema complexo poderá ajudar a apreender o campo das possibilidades
temáticas pertinentes com a História das Idéias:
Foram situados esquematicamente os diversos objetos de interesse antes citados. Da
esquerda para a direita – sugerindo uma direção do mais concreto e singular ao âmbito
mais coletivo – teríamos os estudos de idéias específicas, no sentido transversal.19 Pode-
se estudar as variações na percepção das idéias de Igualdade ou Liberdade, por
exemplo, ou ainda relações entre duas ou mais idéias, como seria o caso de um estudo
relacionando as relações entre os conceitos de 'igualdade' e 'diferença'. Ao mesmo
tempo, pode-se examinar tanto estas idéias em um contexto específico como
percorrendo vários contextos históricos (o que irá requerer uma abordagem
comparativa), da mesma forma em que também será possível examiná-las nos âmbitos
do intratexto e do intertexto. Sobre a análise intratextual e intertextual das idéias, num
caso o historiador das idéias estará trabalhando com textos singulares e específicos (ao
nível do intratexto), e no outro caso estará examinando dois ou mais textos em relação
intertextual. Em ambas as situações, recairemos em um estudo dos discursos para o
qual o historiador das idéias poderá se valer de diversificados métodos que vão desde as
técnicas de análise de discurso até as abordagens semióticas e lingüísticas destinadas a
captar a significação estrutural dos textos. No esquema proposto, assinalamos campos
separados para o estudo das idéias em si mesmas e para os estudos em que estas idéias
estarão sendo analisadas em articulação às expressões culturais que as animam – como
por exemplo o estudo de uma idéia em um texto literário ou ensaístico específico, em
uma obra dramatúrgica, em um ciclo de canções, e assim por diante.
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Das idéias tomadas singularmente, passamos em seguida aos sistemas de pensamento
mais amplos – aqueles que se verificam ao nível do 'pensamento sistematizado' de um
autor, e aqueles que já correspondem aos grandes movimentos – tudo isto se abrindo a
possibilidades de abordagens relacionadas às idéias políticas, filosóficas, estéticas ou
científicas.20 Em um nível maior de abrangência, poderiam ser citadas inúmeras obras
que buscam trazer dentro de algum contexto específico um panorama de idéias
relacionadas a uma determinada dimensão (política, filosófica, estética), como fez
Quentin Skinner – um dos mais destacados historiadores das idéias – para o estudo das
idéias políticas.21 O estudo dos grandes paradigmas científicos, na inter conexão da
História das Idéias com o domínio da História das Ciências – e também no seu diálogo
interdisciplinar com a Filosofia da Ciência – vem a seguir. Para este caso, é relevante
mencionar contribuições que vão das análises do "paradigma científico" em sentido
mais amplo (Gaston Bachelard, Thomas Khun)22 aos paradigmas disciplinares, jurídicos,
normativos, repressivos, tal como nos oferece em diversas de suas obras Michel
Foucault.23 Entre os estudos sobre as idéias inseridas em campos disciplinares
específicos, podem ser citados por exemplo os próprios estudos de historiografia onde
são discutidas as diversas idéias de história, seja no âmbito da produção específica de
um autor ou no âmbito de correntes historiográficas mais amplas – cumprindo notar
que existem também os estudos que investigam a interação entre as idéias
historiográficas e os estilos narrativos.24
O campo dedicado ao estudo das Ideologias e da difusão de idéias, bem como o campo
seguinte, já referido às idéias coletivas de longa duração – mas também às idéias que
circulam em articulação a todo um âmbito de práticas culturais que escapam ao
universo da cultura letrada – já começam a posicionar a História das Idéias diante de
possíveis diálogos com a História das Mentalidades, que é segundo nossa classificação
uma 'dimensão histórica'. A História das Mentalidades, por outro lado, não deve ser
confundida com a História das Idéias, ainda que entre elas haja uma possibilidade de
intersecção – mais especificamente nas proximidades do limiar que assinala o âmbito
dos inconscientes coletivos. Na verdade, a História das Mentalidades também se abre
para possibilidades que vão muito além do domínio da História das Idéias,
particularmente nas suas investigações relativas aos modos de pensar e de sentir no
sentido mais abstrato,25 bem como na possibilidade de utilizar fontes seriais para
verificar as lentas variações históricas em certos padrões mentais.26 Ao mesmo tempo,
tal como já vimos, a maior parte dos estudos ambientados na História das Idéias
relaciona-se a idéias que se concretizam de alguma forma em discursos, sistemas de
pensamento, sistemas normativos, paradigmas interdisciplinares, e movimentos
políticos ou de qualquer outra ordem.
Com relação às abordagens possíveis aos historiadores das idéias – aos seus métodos e
fontes históricas possíveis – são empregadas as mais diversas abordagens, indo das
variadas possibilidades de análise do discurso aos variados aportes trazidos pelos
desenvolvimentos da Lingüística e da Semiótica. Mas um giro metodológico
fundamental, certamente, terá sido aquele que – nos anos 1970 – relegou ao passado da
historiografia a História das Idéias descarnada e descontextualizada que ainda podia ser
vista nos anos 1940 e 1950. Foi com os "contextualistas" ingleses – sobretudo com os
trabalhos de História das Idéias Políticas desenvolvidos por Quentin Skinner, John Dunn
e John Pocock – que surge a proposta de que as idéias deveriam ser sempre e
necessariamente relacionadas diretamente aos seus contextos de enunciação, uma vez
que os ambientes históricos e culturais sempre influenciam extraordinariamente a
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escolha das questões a serem estudadas e, sobretudo, a formatação da própria
linguagem mais específica dentro da qual um debate de idéias se realiza.
Desta maneira, seria tarefa primordial do historiador das idéias trazer à luz a
linguagem original de um determinado circuito de idéias – evitando o anacronismo e
aprofundando-se na adequada compreensão de suas sutilezas de significação – impondo
deste modo a necessidade de recriar a temporalidade e o contexto inerente à própria
obra. Trata-se, assim, para nos atermos ainda ao caso dos estudos sobre as idéias
políticas, de ultrapassar a perspectiva intemporal que às vezes pode ser notada nas
obras de historiadores das idéias e cientistas políticos das décadas anteriores, como
ocorre por exemplo nas obras de Hannah Arendt. Ressalte-se ainda que, para o novo
padrão de História das Idéias consolidado a partir dos contextualistas ingleses, seria
importante não apenas reconstituir uma adequada relação entre texto e contexto como
também situar a análise dentro de uma perspectiva de que as estruturas lingüísticas são
fundamentais para a construção do pensamento de qualquer sujeito histórico – o que
portanto coloca o historiador das idéias diante do desafio de que não é possível
compreender uma idéia sem a plena consciência do momentum lingüístico dentro do
qual esta idéia foi formulada.
Não menos importante para o historiador das idéias é perceber e dar a perceber a rede
dentro da qual está inserido determinado autor "produtor de idéias" – investigando
dentro desta rede tanto as influências que o autor recebe como a recepção de suas
idéias pelos seus diversos contemporâneos. Importante examinar, ainda, os diálogos do
"produtor de idéias" com toda uma rede intertextual que remonta à tradição dentro da
qual seu pensamento se inscreve ou que, também de modo contrário, o contrasta com
as tradições contra as quais as idéias do autor estabelecem uma relação de ruptura.
Em que pese a importância dos aportes metodológicos oferecidos pela corrente
contextualista à História das Idéias, também não deixaram de ser criticados os exageros
da crença de que seria rigorosamente possível recuperar o sentido original de uma
obra, particularmente chamando-se atenção para o fato de que a interpretação dos
textos e idéias de uma época não deixam de ser guiadas em alguma instância pelos
valores do presente do próprio historiador que empreende a análise. Desta maneira,
pairando criticamente entre a antiga ilusão de neutralidade e o permanente estado de
alerta diante dos perigos do anacronismo, o historiador das idéias deveria se habilitar a
trabalhar concedendo um espaço às vozes do passado sem pretender sufocar
inutilmente a sua própria voz. Ao mesmo tempo, entre as impossibilidades de um mais-
que-perfeito "contextualismo" e as pretensões de um "internalismo" que investe nas
possibilidades de buscar exclusivamente dentro de um texto os seus significados –
geralmente à luz das metodologias semióticas de origem estruturalista – o historiador
das idéias deve fazer as suas escolhas possíveis.
A História das Idéias, enfim, tem se revelado um dos mais produtivos domínios
historiográficos, desenvolvendo importantes diálogos com dimensões historiográficas
como a História Cultural, a História Social, a História das Mentalidades e a História
Política, e também estabelecendo as suas conexões com inúmeros domínios
historiográficos que vão da História das Ciências à História da Literatura, além de
encampar as mais diversas abordagens disponíveis para uma análise de suas fontes e
contextos históricos. Dentro deste rico quadro de diálogos intradisciplinares e
interdisciplinares, o seu interesse tende a se renovar incorporando os demais
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276
progressos e novidades que se dão no seio da historiografia e das demais ciências
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NOTAS
1. Remetemos aqui a uma obra recentemente publicada, na qual elaboramos um panorama
sistemático das várias modalidades em que hoje se divide o campo da História. Ali foi proposta a
idéia de que algumas das modalidades da História são definidas pelas dimensões que são
examinadas em primeiro plano pelo historiador (entre outras, a História Cultural, a História
Política, a História Demográfica), outras pelas abordagens e caminhos metodológicos que as
definem (como a História Oral, a História Serial, e assim por diante), e por fim aquelas
modalidades que são definidas por inúmeros domínios temáticos mais específicos (a História da
Mulher, a História Rural, a História do Direito, e tantas outras). BARROS, José D'Assunção, O
Campo da História, Petrópolis, Vozes, 2004.
2. DUBY, Georges. "Problemas e Métodos em História Cultural" in Idade Média, Idade dos Homens –
do Amor e outros ensaios. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 125-130.
3. Teremos aqui, como vanguarda destes campos de estudos, os trabalhos que surgem a partir dos
anos 1960 com a chamada Escola Inglesa constituída por historiadores marxistas como Edward
Thompson, Eric Hobsbawm e Christopher Hill.
4. MOLLAT, Michel. O pobre na Idade Média, Rio de Janeiro, Campus, 1989, p.73 [original: 1978].
5. Estas mudanças de práticas foram examinadas por Michel Foucault em obras como O
Nascimento da Clinica (1977) e Vigiar e Punir (1980), e Fernando Braudel as sintetiza em um passo de
Civilização Material, Economia e Capitalismo (1997). Em O Capital, Marx também examina as rigorosas
leis contra a pobreza 'não inserida' no novo sistema de trabalho assalariado produzido pelo
capitalismo.
6. LE GOFF, Jacques, O Imaginário Medieval, Lisboa, Estampa, 1994, p. 11.
7. LE GOFF, Jacques, O Imaginário Medieval, idem, p. 12.
8. DUBY, Georges, As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo, Lisboa, Edições 70, 1971.
9. LE GOFF, Jacques, O Imaginário Medieval, idem, p. 12.
10. Conforme BURKE, Peter, "História Cultural: passado, presente e futuro" In O Mundo como
Teatro, São Paulo, DIFEL, 1992, p. 15 [original da colet.: 1991].
11. CHARTIER, Roger, "Por uma sociologia histórica das práticas culturais" In A História Cultural –
entre práticas e representações, Lisboa, DIFEL, 1990.
12. CHARTIER, Roger, op.cit., p. 17.
13. CHARTIER, Roger, op.cit., p. 27-28.
14. FOUCAULT, Michel, A Arqueologia do Saber, Petrópolis, Vozes, 1972.
15. WHITE, Hayden, A Meta-História, São Paulo, EDUSP, 1992 e LaCAPRA, Dominick, Rethinking
History: Texts, Contexts Language, Nova York, Ithaca, 1983.
16. LADURIE, Emmanuel Le Roy, Montaillou, village occitan. Paris, Gallimard, 1975 [São Paulo,
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17. José D'Assunção BARROS, O Campo da História, Petrópolis, Vozes, 2004.
Cultura, vol. 21 | 2005
278
18. É esta a proposta de Robert Darnton em um ensaio sobre a História Intelectual, que foi
posteriormente inserido na coletânea O Beijo de Lamourette – mídia, cultura e revolução (São Paulo,
Companhia das Letras, pp. 175-197).
19. Nestas situações, o trabalho do historiador das idéias pode dialogar intensamente com outras
áreas do conhecimento humano, como a Filosofia ou a Ciência Política. Os cientistas políticos, por
exemplo, encontram-se com os historiadores das idéias quando estendem seu olhar sobre os
vários planos de temporalidade na busca de compreender idéias ou conceitos específicos dentro
do universo de significação de cada época. Por outro lado, não é dificil encontrar também aqueles
– entre cientistas políticos e historiadores das idéias políticas – que parecem pretender imaginar
um diálogo de idéias através dos tempos onde pouco se percebe como cada contexto histórico-
social afeta uma idéia. Na contra-corrente desta tendência, destaque-se a importância
fundamental de três historiadores das idéias políticas que na Inglaterra dos anos 70 e 80
chamaram atenção para a importância que deve ser conferida ao "contextualismo": John Dunn,
John Pocock, e Quentin Skinner.
20. Apenas para mencionar dois exemplos de estudos sobre o pensamento sistematizado de um
autor, citaremos as obras de John Dunn e John Pocock sobre os pensamentos políticos de Locke e
Maquiavel: (1) John DUNN, The political thought of John Locke (Cambridge 1969); (2) J.G. POCOCK,
The machiavellian moment: florentine political thought and the Atlantic republican tradition (Princeton:
1975). Note-se, ainda, que a fusão dos 'estudos sobre pensamentos sistematizados' com o domínio
da Biografia Histórica tem dado origem a diversas biografias intelectuais importantes.
21. SKINNER, Quentin, As Fundações do Pensamento Político Moderno, São Paulo, Companhia das
Letras, 1996.
22. Gaston BACHELARD, que escreve do ponto de vista de um epistemólogo e não de um
historiador, trouxe uma importante contribuição ao estudo dos paradigmas com seu ensaio Um
Novo Paradigma Científico (São Paulo: Nova Cultural, 1998). Enquanto isso, o físico Thomas Khun
celebrizou-se por A Estrutura das Revoluções Cientificas (São Paulo: Perspectiva, 1988).
23. Entre outras obras importantes de Michel FOUCAULT neste sentido, poderemos destacar A
Arqueologia do Saber (Petrópolis: Vozes, 1972), O Nascimento da Clínica (Rio de Janeiro, Forense-
Universitária, 1980) e Vigiar e Punir – história da violência nas prisões (Petrópolis: Vozes, 1977).
24. Neste particular, um dos exemplos mais marcantes das últimas décadas foi a obra Meta-
História, de Hayden White (São Paulo: EDUSP, 1992).
25. Apenas para dar um exemplo, o Medo é um sentimento, e não uma idéia ou um conceito
(embora o "medo" possa ser conceituado filosoficamente, se for o caso). Neste sentido, deve ser
classificado como um trabalho de História das Mentalidades o livro de Jean Delumeau intitulado
História do Medo no Ocidente (São Paulo: Companhia das Letras, 1989).
26. A 'História das Mentalidades' pode utilizar tanto abordagens qualitativas a partir de fontes
diversificadas, como ocorre com o trabalho de Philippe Ariès sobre a História da Morte (O Homem
diante da Morte, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, 2 vol), como abordagens seriais, a exemplo
do que fez Michel Vovelle em seus estudos sobre o mesmo tema (Piétè baroque et déchristianisation,
les atitudes devant la mort en Provence au XVIII siècle (Paris: Le Seuil, 1978).
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RESUMOS
Este artigo busca elaborar em sua parte inicial uma visão panorâmica sobre a História Cultural,
esclarecendo e discutindo alguns aspectos relacionados a esta modalidade da História. Na sua
segunda parte, a História das Idéias é apresentada em suas relações dialógicas com a História
Cultural e outras modalidades historiográficas. No decorrer do texto, são discutidos diversos dos
conceitos envolvidos na perspectiva da História Cultural e da História das Idéias, a partir de uma
produção historiográfica diversificada que se desenvolveu ao longo do século XX. O artigo remete
a obra recentemente publicada pelo autor deste texto, cujo principal objetivo é o de elaborar uma
visão panorâmica das diversas modalidades da História nos dias de hoje.
This article attempts to elaborate in its first part a panoramic view about Cultural History,
clarifying and discussing some aspects related to this modality of History. In the second part, the
History of Ideas is presented in dialogical relations with Cultural History and other
historiographical modalities. Along the text, several aspects are discussed concerning to the
historiographer production developed by the Cultural History and History of Ideas along de
twenty century. The article refers to a recently publicized work of the author of this text, which
principal subject was to elaborate a panoramic view of the various fields in which the historical
knowledge is divided nowadays.
ÍNDICE
Keywords: fields of history, historical methodology, historical writing
Palavras-chave: campos da história, metodologia da história, escrita da história
AUTOR
JOSÉ D’ASSUNÇÃO BARROS
Doutor em História Social pela UFF, USS.
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor da
Universidade Severino Sombra (USS) de Vassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduação em
História, onde leciona disciplinas ligadas ao campo da Teoria e Metodologia da História. Escreveu
O Campo da História – Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004.
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Os alemães e a modernidade(vistos hoje em Portugal)
German and the modernity (Portuguese's point of view)
Carlos Leone
Retomando o título de um célebre trabalho de Norbert Elias, este artigo discute algumas
variantes de relevo na língua alemã de crítica à modernidade. Em rigor, discute-as na
sua pertinência actual, tal como se deixa ver em dois trabalhos recentes de autores
portugueses, Rafael Gomes Filipe e Alexandre Franco de Sá. O nó-górdio da questão
encontra-se na caracterização da modernidade através da elaboração de uma filosofia
da História, problema que sobressai na análise de Nietzsche e Weber por Gomes Filipe e
no ensaio schmittiano de Franco de Sá. Naturalmente, este artigo pressupõe alguma
familiaridade do leitor com o tema da leitura filosófica da história em outros autores
alemães (Kant e Hegel, sobretudo), mas essa não é uma condição de leitura – tal como
não deve ser para a de ambas as obras.
I
Originalmente uma dissertação de doutoramento apresentada à UNL/ FCSH (aprovada
em 2003), esta investigação de Rafael Gomes Filipe insere-se num trabalho já longo de
tradução e pesquisa do autor no campo da filosofia e da cultura alemãs
contemporâneas, nos quais avultam traduções de Nietzsche e Weber mas também de
Kleist, entre outros, e em particular a sua dissertação de mestrado Modernidade, Crítica
da Modernidade e Ironia Epistemológica em Max Weber (também ed. Piaget, 2001). Esta
publicação beneficia de um acréscimo, em notas, na já rica informação bibliográfica e
confirma os méritos do trabalho original, grandes quer na recolha de materiais, quer na
sua análise, quer, por fim, na sua apresentação literária. É, neste momento, o estado da
arte na investigação weberiana em Portugal e, talvez, em Português.
Os cuidados expressos no título, e logo justificados no texto primordialmente
metodológico da Introdução (pp. 31-33), compreendem-se: à falta de uma vinculação
explícita por parte de Weber à Obra de Nietzsche, ou se cai na recolha de traços comuns
(vestígios de Nietzsche em Weber, como Gomes Filipe não ignora nem menospreza) ou
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se opta pela detecção nesses vestígios de uma afinidade congenial dos autores, fazendo
da hermenêutica textual (por vezes em close reading) o veículo para dar ao leitor a
imagem weberiana de Nietzsche e, com ela, a marca de Nietzsche (qual amigo defunto)
na Obra de Weber. Escolhendo a segunda via de forma mais sistemática e premeditada
do que até aqui alguém tinha feito, Rafael Gomes Filipe confronta-se desde o início até
ao fim do seu estudo com a limitação que lhe é inevitável: como manter a relação entre
Weber e Nietzsche de forma nítida aos olhos do leitor, sem incorrer na remissão para
Nietzsche da originalidade weberiana (ou inversamente, fazer de Weber um "corrector"
de Nietzsche) e, mais importante ainda, sem forçar a letra ou o espírito de modo a
explicitar de modo mais claro a afinidade realmente existente e, além do mais, nítida?
Para além da referência biográfica que Gomes Filipe relata a partir de E. Baumgarten
(Weber referiu publicamente que Marx e Nietzsche são os dois autores face aos quais
qualquer autor contemporâneo vê a sua honestidade testada pela relação que adopte
com eles), o próprio Weber é muito parco em referências úteis, pelo menos directas.
Uma carta a Edgar Jaffé contém a observação de, em seu entender, aquilo que de mais
duradouro se encontra nas obras de Nietzsche ser a moral da nobreza. É certo que nas
obras finais da sua vida (vide A ciência como profissão) há menções explícitas a Nietzsche
mas são pontuais. A primeira solução para esta dificuldade encontra-se na estrutura do
trabalho de Rafael Gomes Filipe: uma primeira parte, dedicada a questões e textos de
carácter metodológico e conceptual; uma segunda parte, central, toma a questão
religiosa no pensamento de Nietzsche e Weber como local ideal para surpreender
aquela afinidade electiva, mais a mais enriquecida pelos matizes introduzidos por
Weber em algumas teses nietzscheanas; por fim, e como não declarada conclusão, uma
terceira parte, dedicada à dimensão política dos elementos compulsados antes, a nosso
ver o momento mais sugestivo de todo o trabalho.
Desta terceira podemos citar de imediato a abertura do seu primeiro capítulo, de modo
a esclarecer a imbricação de todos estes planos. Referindo-se à leitura de Weber por
Eugène Fleischmann, Gomes Filipe anota: "No que diz respeito à teoria weberiana da
história, o método comportaria um dualismo – ou até mesmo um ecletismo – que teria
forçosamente de se tornar insustentável. Mais cedo ou mais tarde, ele teria de escolher
entre uma história como encadeamento causal a partir de ou em direcção à infra-
estrutura económica e uma outra história, reconstituível a partir de acções razoáveis
('sensíveis') do homem, ou seja, a partir da luta 'politeísta' entre os valores. No
entender de Fleischmann, a primeira posição, que traduz a influência de Marx sobre
Weber, irá perdendo força, quer devido às decepções políticas de Weber com o
socialismo, quer devido à convicção ideológica de Weber de que é a luta entre os
homens e não o ideal filosófico abstracto de um estado feliz e pacífico da sociedade que
explica a realidade humana como ela é. Sem este cunho heraclitiano inerente ao
pensamento de Weber, a aproximação com Nietzsche poderia não ser mais do que uma
simples coincidência." (p. 379/80). Assim se explica não porque é que Weber nunca
desenvolve uma filosofia da história mas sim uma teoria das ciências sociais e, como
Gomes Filipe anota no mesmo passo, prolonga a teoria nietzscheana da vontade de
poder em direcção a uma sociologia das formas de dominação social. A preponderância
em Nietzsche e em Weber (como em Maquiavel e, noutro registo, em Freud) da vontade
como forma irredutível de causalidade, afinal a vontade como realidade derradeira,
torna no entanto problemática a obsessão de Nietzsche e de Weber com o "destino" do
Ocidente; como explicar uma fórmula tão conservadora e acientífica como esta de fado
enquanto modo de interrogar o real em dois autores tão radicais e insensíveis ao
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grande guardião da tradição que é a religião (Weber chega mesmo a dizer-se imune à
sensibilidade de tipo religioso, algo que não seria estranho a Nietzsche; cf. p. ex. as
notas 10 e 37 da Parte II deste trabalho.)
Uma resposta imediata encontra-se no final da nota 47 da Parte II: "a ideia de que o
resultado final de uma acção ultrapassa em geral os limites da intenção dos actores é
ilustrada por abundantes exemplos em toda a Religionssociologie de Weber, bem como
nos seus escritos políticos. Contrariamente às formas de optimismo racionalista de
cunho iluminista, é mesmo esta ideia que, como procuraremos demonstrar, preside à
weberiana reintrodução da dimensão trágica na história e que explica, em última
análise, a mais profunda afinidade espiritual entre Weber e Nietzsche." (p. 328). Ainda
assim, é mediante a argumentação desenvolvida por Gomes Filipe no conjunto do seu
estudo que a dificuldade quanto ao sentido (da vontade, do poder, da dominação,
apetece destrinçar) se deixa compreender.
Fazendo da Parte I do seu trabalho uma discussão teórica e metodológica da afinidade
entre os dois autores, Rafael Gomes Filipe estabelece, como seria de esperar, o nexo
entre o perspectivismo nietzscheano e a ciência da realidade (empírica, social) de
Weber através do problema da objectividade. Reduzida por Nietzsche desde muito cedo
a uma forma de ilusão do eu (e um encanto não pequeno deste trabalho é devolver um
Nietzsche muitas vezes pouco citado, em especial o de Aurora), a objectividade é
pensada por Weber de forma muito similar. Ao renunciar à objectividade nas ciências
sociais em favor de uma subjectividade ciente de si (no que seria, ainda, apenas pós-
kantiano), Weber antecipa teses que só durante o século XX, em particular na sua
segunda metade, conhecerão curso sem o estigma de escândalo, em particular no
domínio da moral e da política. Como escreve Rafael Gomes Filipe: "O sacrificio da
objectividade é feito sem qualquer relutância, pois liberta a ciência do peso de tradições
gastas para as possibilidades mais exigentes do seu tempo; porque mantém o sentido da
ciência, apesar da pluralidade ilimitada e da mudança permanente dos pontos de vista;
finalmente, porque, dados os pressupostos da neutralidade axiológica (Wertfreiheit) e o
pluralismo de valores da sociedade, ele se afigura ser a única oportunidade de defender
uma ciência comprometida com pontos de vista de valor. Uma vez que a cultura /
civilização é explicada como sendo um conceito subjectivo, a ciência da cultura só
poderá ser subjectiva." (p. 64). Através da concepção de "tipos ideais" Weber preservará
do arbitrário anárquico este sentido subjectivo, sujeitando a validade do conhecimento
científico a um teste empírico quanto aos resultados obtidos a partir do seu uso
(contudo, a afinidade nietzscheana não sai em nada diminuída, como a citação de
Weber incluída na nota 245 desta Parte I bem demonstra). Deste modo, e antecipando o
aspecto construtivista desta linha de pensamento que mais nitidamente se revela nas
partes II e III, a influência de Simmel na recepção de Nietzsche por Weber é de tal modo
relevante que, ao mesmo título que os dois autores maiores do estudo, também dele se
poderia falar como um intelectual de segunda geração (i.e., pós-iluminista) de igual
estatuto. Nas páginas deste trabalho sobre Simmel (e, em menor número, sobre Freud e
Hegel, além de muitos cientistas sociais contemporâneos de Weber, sobretudo Dilthey)
sobressai a cultura germanista de Rafael Gomes Filipe, deixando perceber como foi
comum a quase todos a preocupação com "a preservação e defesa não só da liberdade
exterior, mas sobretudo da liberdade interior do ser humano no mundo moderno" (p.
69).
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Na relação entre o destino do mundo moderno e a liberdade interior que o ser humano
nele adquire, sem surpresa ganha relevância o tema do construtivismo (tanto neste
ponto como nas notas 108 e 111 da Parte III o construtivismo de ambos os autores é
evidente). Este é inerente ao que Weber qualifica como o dom da eterna juventude das
ciências sociais, apresentado por Gomes Filipe nestes termos: "A verdadeira tarefa da
ciência social consiste, assim, exclusivamente, em contribuir – pelo trabalho de
construção e de crítica dos conceitos, entre outros – 'para o conhecimento da
significação cultural de relações históricas concretas'. Nada mais, mas também nada menos."
(p. 81). Com efeito, esse trabalho de construção racional não é apenas normativo (como
pretende um seu crítico, Hayek) mas igualmente reflexivo, crítico. Este ponto salienta-o
igualmente Gomes Filipe mais tarde: "para Weber, a realidade é tão-só uma construção,
efectuada com base na rejeição do aleatório e na selecção do que é 'importante para
nós', o qual é depois objecto de uma representação inteligível mediante o recurso a
ideias de valor empiricamente dadas que orientam a cultura." (p. 134). Deste modo,
quer a caracterização da modernidade (o "mundo desencantado") quer a caracterização
da liberdade que resta ao homem moderno (o "politeísmo de valores") não repetem
Nietzsche, pois (cf. p. 128) Weber não partilha com este a convicção numa superação
redentora do mundo moderno. Mas, sem dúvida, parte do seu pressuposto (o fim da
transcendência) e desenvolve o seu método perspectivista.
Na segunda parte do seu estudo Rafael Gomes Filipe explora a genealogia nietzscheana
e a sociologia weberiana no terreno comum, religioso, no qual as afinidades até aqui
estritamente metodológicas adquirem um sentido compaginável. Ao focar a dimensão
da conduta pessoal de vida como central no projecto de sociologia compreensiva
weberiana (p. 212), Rafael Gomes Filipe lança a base para articular não só com a
genealogia de Nietzsche mas também com as noções de domínio, liberdade e vontade a
reflexão de Weber sobre o fenómeno religioso. Estreita também, assim, a malha
conceptual própria daquele sentimento de trágico na história comum a Nietzsche e
Weber. A conduta de vida é a designação de Weber para o tipo ideal apropriado ao
estudo da acção sub specie religiosa, e de facto bem afim ao recurso de Nietzsche à
fórmula "ideal ascético". Qualquer cultura surge como uma conduta de vida individual
tornada colectiva, sendo que enquanto cultura visa escapar ao fim natural da vida
individual; assim a questão do sentido é inescapável para qualquer cultura,
especialmente a moderna, reflexiva por excelência mas especializada, logo
insusceptível de poder responder de forma completa ao problema do sentido, como é
possível fazer do ponto de vista religioso. Pior: a actividade imanente, mundana, pode
ser percepcionada como dispersiva, autocontraditória, sem valor. Nesta sequência (cf.
p. 302), Weber nota como, e aqui Gomes Filipe sintetiza: "à medida que a reflexão sobre
o sentido do mundo se foi tornando mais sistemática, que o mundo foi racionalizado na
sua organização externa, que era sublimada a experiência consciente dos seus
conteúdos irracionais, também o que constituía o conteúdo específico do religioso
começou a tornar-se irreal e a afastar-se de toda e qualquer vida organizada." O
problema do destino da nossa cultura impõe-se assim, e em Weber ainda mais do que
em Nietzsche (pois ao sociólogo faltam as esperanças do filósofo na transmutação de
valores), por força da impossibilidade de recuperar um sentido pré-científico para o
problema cujo sentido a ciência moderna não pode solucionar (nem, sequer,
verdadeiramente colocar): o sentido da existência.
Neste ponto é na terceira parte deste trabalho que já nos encontramos. Aqui, as
diferenças entre Weber e Nietzsche agudizam-se: mesmo qualificando de voluntarista o
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liberalismo de Weber, ele persiste num liberalismo (céptico, resignado, preocupado,
mas um liberalismo); ora Nietzsche não desce aos mesquinhos problemas da
modernidade política senão por via histórica e antropológica, recorrendo sempre a
vastas generalizações que estão metodologicamente nos antípodas do empirismo
weberiano. Este entende, nas palavras de Gomes Filipe, que "a característica maior da
modernidade consiste no avanço inexorável das forças da racionalização e do
'desencantamento' cujo efeito combinado não poderia deixar de minar ou corroer
aquelas crenças que, durante tanto tempo, estiveram na base das ideias de legitimidade
e de legitimação." (p. 405). Surge o problema da vontade individual na sua forma mais
crua, a da liberdade interior e simetricamente a da dominação social. Ora, não é preciso
assentir na caracterização do contratualismo como mero jurisdicismo apolítico (o medo
e o desejo de segurança como incitadores ao contrato foram bem evidenciados tanto
por Hobbes como por Espinosa) para reconhecer na posição weberiana, uma defesa do
parlamentarismo como modo de gerar chefias carismáticas em sistemas burocráticos e,
assim, manter uma margem de liberdade individual na conduta política, capaz de gerar
um sentido específico, próprio, para a existência pessoal e social, como uma evolução
face à posição irredentista de Nietzsche face ao Estado e à política modernos. Evolução
enquadrada, aliás, por Rafael Gomes Filipe numa tradição que parte de Maquiavel e
passa por Rousseau e Tocqueville, além de Nietzsche e Weber. Pense-se o que se pensar
sobre a consistência interna desta tradição (que relembra as que I. Berlin traça nos seus
ensaios) composta de tantos contextos diversos, Weber surge, de facto, como um
abnegado da acção no panorama do pensamento político contemporâneo (como diz
Gomes Filipe, cf. p. 420). E, como a sua defesa do parlamentarismo deixa claro, como
defensor das instituições modernas enquanto sede própria para o exercício da
actividade política. Ora, opor ao destino o carisma (cf. p. 409) significa reconhecer
virtude (força) na realidade. Isto é: não apenas reconhecer a razão na realidade (e não
em algum sentido transcendente) mas além disso reconhecer valor (possibilidade de
sentido) nesta política moderna. Mas, ao terminar, é impossível não dar conta da
dissonância entre esta perspectiva weberiana e anotações dispersas do autor, como o
parágrafo final da nota 2 da parte II ou, mais nitidamente, o sublinhado com que fecha a
nota 94 da parte III. Em passagens como essas é já a voz de Carl Schmitt que parece
falar. Aqui não será o destino da cultura que se joga, mas é já outra hermenêutica, outro
sentido ou outra vontade de poder que se exprime, em qualquer caso insusceptível de
ofuscar a força e originalidade deste trabalho – provavelmente o melhor de ciências
sociais publicado em Portugal durante 2004.
II
Não pretendemos com isto, portanto, fazer derivar para a análise da obra de Carl
Schmitt o juízo sobre a cultura ocidental elaborado, de modos diversos por Nietzsche e
Weber. Na verdade, a aproximação dos dois autores e o reconhecimento do liberalismo
do segundo permite mesmo desfazer um tópico comum às leituras enviesadas de
Nietzsche, o de um pretenso totalitarismo inevitável. Além de factualmente
indemonstrável, esta leitura sobrevaloriza um aspecto do pensamento de Nietzsche que
é, tudo visto e revisto, quase incipiente, a reflexão política. Contudo, algo que não
sucede com Weber (tal como não sucede com Simmel ou Freud) verifica-se com Schmitt
(mais do que em Heidegger ou em Löwith): existe de facto a radicalização política da
leitura anti-moderna da modernidade. Vendo a modernidade como uma secularização
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voluntária, Nietzsche podia permanecer apolítico por força da sua concepção de uma
transmutação de todos os valores; vendo na modernidade uma secularização disfarçada,
Schmitt exacerba o significado político do processo através de uma filosofia da História
que enuncia a auto-subversão de todas as metamorfoses do mundo moderno. E uma boa
apresentação desta perspectiva é o livro de Alexandre Franco de Sá, Metamorfose do
Poder.
Este livro, que se poderia intitular Democracia, distopia, diatribe antimoderna, reúne
ensaios do autor sobre Carl Schmitt publicados nos últimos anos, deixando perceber a
unidade e a intencionalidade de cada um e sobretudo do seu conjunto. O subtítulo é
bem explícito: "prolegómenos schmittianos a toda a sociedade futura". Além disso, no
que tem de autoral, o conjunto indica claramente a afinidade (patente no seu trabalho
de tradutor) de Alexandre Franco de Sá com um pensamento alemão veementemente
contestatário de muitas, senão todas, as premissas da modernidade (afinidade já
patente no artigo que Franco de Sá escreveu, sobre Heidegger e a Universidade, para
uma revista também recente, Metacrítica, cf. n°1, Outubro de 2002, Edições
Universitárias Lusófona, Lisboa). Desde o início, o tom conjuga reprovação, acusação e
denúncia, um modo de ressentimento que ressurge a todas as épocas como se se
tratasse de algo novo. A crítica à 'tagarelice' incessante e ao desinteresse geral; à
'massa' e ao isolamento individualista; à irresponsabilidade inconsciente e ao fanatismo
grupal. Tudo em simultâneo, pretendendo ser uma caracterização da vida
contemporânea, quando, afinal, em todas as épocas se encontra (desde Platão, pelo
menos). Bem escrito e bem fundamentado no que toca ao pendor schmittiano, o livro
declara que em política faltam as perguntas e, pretendendo ser provocador, esclarece
de imediato que há uma "proibição de perguntar" própria da política moderna, hoje a
sofrer inconscientemente os efeitos desse seu vício original (cf. Introdução). Com este
ponto de partida não surpreende que as perguntas sejam sempre contra (sic, p. 17) as
sociedades modernas e que na sua base esteja uma teoria conspirativa que vê, velada
pela inconsciência, uma inevitável evolução totalitária daquele que é hoje "um
pensamento dominante" (idem), a saber, o liberalismo político. Este, e a sua tradição da
liberdade, são assim intimados a responder perante aqueles sujeitos livres (é necessário
um, e basta um, como adverte a epígrafe ao livro) que subsistem e persistem em pensar
a política como um problema em aberto, sem fim da história, só com metamorfoses. A
metamorfose do título é a que, inadvertidamente, o liberalismo política gera e, mais
schmittianamente do que o próprio Schmitt (pois o seu pensamento é hoje ainda mais
actual do que à data da sua formulação), Alexandre Franco de Sá desvela.
Os problemas começam, contudo, com os próprios termos, pois este pensamento
dominante não se deixa fixar: apesar de citar Mill, Tocqueville, Arendt, Habermas e
Rawls (Constant e Berlin são omitidos), nunca se determina em que consiste este
pensamento único do liberalismo. Identificam-se, é certo, teses (individualismo,
associativismo livre, pacifismo), mas teses com as quais nenhum pensamento liberal
pode ser, sem mais, identificado. Simplesmente "um pensamento dominante" não
existe, esse liberalismo (dominante, de facto) é demasiado variado para poder ser
subsumido numa grande amálgama susceptível de ser criticada em conjunto. Existem
doutrinas liberais, no plural, e nenhuma delas, aliás, susceptível de uma única
interpretação. Mais: nenhuma delas determina ou reflecte na perfeição a vida social e a
condução dos assuntos públicos. A própria linguagem de Franco de Sá, referindo-se a
pressupostos "fundamentais", a realidades "puras e simples", etc., exprime bem a
desadequação entre a realidade empiricamente verificável e a perspectiva crítica que
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sobre ela é lançada como crítica: ao tomar a nuvem (as nuvens) por Juno, deplora
realidades que, em rigor, não existem.
Deste modo, não surpreende que logo no primeiro ensaio se esclareça (p. 25) que a
perspectiva schmittiana é dominada por uma filosofia da história (e a referência a
Heidegger não é acidental; poder-se-ia discutir aqui, contra Schmitt e Heidegger, acerca
da impossível distanciação entre filosofia história). É baseada nessa filosofia da história
que se discute "aquilo a que chamamos a auto-interpretação política do nosso tempo"
(idem). Desta perspectiva, amplas generalizações são produzidas, sem preocupação com
a identificação de instâncias que as demonstrem (o que tanto serve para singularizar o
'jus belli' moderno como se o tirano antigo não fosse um predecessor seu como para
referir um "puro princípio da representação próprio da monarquia absoluta", que, com
propriedade histórica nunca existiu, cf. p. 29). Para os leitores de Schmitt, nada disto é
invulgar; mesmo reconhecendo o génio (e o mesmo se pode dizer de Heidegger), as
torções conceptuais ao 'meramente' histórico são frequentes e, em rigor,
indispensáveis. A redução da soberania através do primado da lei a uma "soberania da
ausência de soberano" ou a redução da neutralidade ideológica a uma passividade
política em nome de uma anomia axiológica (cf., p. ex., p. 31) são mais do que excessos
de expressão, são uma necessidade ditada pelo determinismo intrínseco à filosofia da
história que sustenta toda a argumentação. Daí que, a partir do momento em que se
opera (pp. 33ss.) "uma confrontação shmittiana com a nossa contemporaneidade" tudo
se resuma a um cotejo de duas descrições da democracia moderna (uma de Schmitt, a
outra de Derrida) que em comum têm o facto de serem (em termos weberianos) "tipos
ideais", isto é, representações destinadas a tornar inteligível o real mas inencontráveis
em toda a sua exactidão na realidade social. Indiferente a estas mundaneidades, a
perspectiva schmittiana (e derridiana, claro) desenvolve uma crítica a representações
apenas lógicas (sem desprimor), representações heurísticas que não têm como exceder
a sua função instrumental. De um lado, Derrida, a democracia como "desconstrução em
obra"; do outro, Schmitt, "um qualquer grau" de homogeneidade dado como
inevitavelmente presente em "toda e qualquer" democracia. Das democracias
propriamente ditas, nem uma palavra. Desta perspectiva soberana, o jogo dialéctico é
de facto possível, e, com o triunfo da lógica sobre a história normal na filosofia da
história (ironicamente, uma tendência intelectual bem iluminista, mesmo que também
se lhe possa aplicar, até com alguma propriedade, a tese da secularização). No caso,
pergunta-se (p. 35) se "o significado histórico-espiritual" dos totalitarismos se esgotou
com o fim dos regimes que os representaram ou se um "significado profundo se
prolonga hoje, ainda que invisivelmente". A referência inicial ao pensamento
dominante não deixa dúvida quanto à resposta e o restante do livro não desilude. Para
tanto, tem de aderir explicitamente e sem reservas à tese da secularização segundo a
qual o demoliberalismo se baseia num fundamento teológico-político (p. 37). Neste
exercício de 'futurismo do passado', não espanta que seja a fontes pré-modernas que se
recorre para explicar a dinâmica social moderna: Aristóteles surge como fundamento
(ao menos filológico) para se postular a escassez de crítica inevitável em sociedades
individualistas. Que a sociedade pensada por Aristóteles e a moderna sejam
estruturalmente diferentes (e como "crítica" é um conceito em que isso é visível!) e,
portanto, que a "eficácia pública" (p. 41) seja insusceptível de comparações é algo que
nem sequer é considerado. Tal como em Schmitt, tal como em Heidegger (tal como em
Derrida ou em Agamben), a etimologia exerce o seu encanto fetichista. Assim, não deixa
de ser lógica a identificação do escravo em Aristóteles sob a nova "configuração" de
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cidadão demoliberal hodierno (cf. p. 42) – a lógica do jogo de categorias predomina
sobre a atenção ao sentido e ao valor da realidade social. Esta cidadania, aliás, não só é
ingénua como é duplamente ingénua (pp. 44/5), incapaz de vislumbrar como o seu
particularismo intransigente (Franco de Sá não explica como este se coaduna com o
legalismo generalizado, a menos que a ideologia da educação liberal sirva mesmo para
explicar tudo, qual lavagem cerebral sem falhas) se conjuga com a sua desistência cívica
(fazendo do sistema representativo de Constant uma oligarquia com sacrifícios rituais).
Que as descrições de Schmitt dos processos argumentativos em democracia sejam de
uma confrangedora ingenuidade (ainda que simulada) ao imputar à democracia aquilo
que é próprio de toda a luta política não-violenta (como Weber notou em A Política como
Profissão), a saber, o carácter não teorético mas instrumental da discussão pública, não
deve, no entanto, desqualificar os problemas. A atenção ao predomínio da imagem
acrítica sobre a palavra crítica (p. 49 e p. 78) é um daqueles raros momentos em que a
política, como realidade e não como (pré)conceito, chega a ser considerada. Mesmo que
apenas de passagem, é quanto basta para admitir, de facto, potencialidades a uma
perspectiva crítica da modernidade a partir de uma teoria decisionista da política.
O segundo ensaio tenta desenvolvê-la, ao sugerir uma actualização da teologia política
(mais política do que teológica) como modo de questionar o mundo actual. Num
primeiro momento, descrevendo através de cinco características a política moderna na
sua correspondência com uma estrutura metafísica de matriz teológica (subjectividade;
liberdade; igualdade; a-teleologia; intimidade). Depois, explicitando o conteúdo desta
caracterização como sendo crítica (contrária) ao liberalismo político: aqui, de novo, o
grau de generalização é tão amplo que permite tudo, mesmo dar como exemplares do
demoliberalismo autores (Krabbe e Kelsen) que representam apenas uma variante
construtivista deste, isto é, uma forma de positivismo jurídico que pretende (sobretudo
Kelsen, como notou em tempos o liberal Hayek) prescindir de tudo o que é da ordem do
social, não científico, em favor de uma normatividade política irrestrita, desnecessária
ao Direito e à política. Que as teses de Kelsen e Krabbe nunca tenham originado
movimentos sociais e políticos relevantes, que nunca tenham sido dominantes nem
sequer no pensamento jurídico (pese a sua relevância histórica, mérito intrínseco, etc.),
enfim, que estas posições não possam ser dadas como dominantes é silenciado. Pois é
necessário apresentá-las como se o quadro jurídico e a prática legal das democracias
não passasse de uma aplicação integral e inalterada das obras do positivismo jurídico –
só assim o liberalismo político pode ser superado (hegelianamente) pela sua 'crítica'
schmittiana.
Podemos reconhecer, pelo menos, o mérito de esta crítica dizer abertamente ao que
vem, criticando a democracia liberal como ilusória, ao contrário da comunista que
ataca (também com uma filosofia da história determinista) o sistema económico
capitalista para alcançar o mesmo objectivo político. As semelhanças não são
acidentais, são até essenciais, pois a estratégia de recorrer a aventuras dialécticas para
demonstrar o carácter ilusório do demoliberalismo resulta justamente da sua renúncia
em descer ao concreto (das relações de poder, das relações económicas). A acção,
sempre dialéctica e com um significado espiritual que transcende (é o termo) sempre o
'meramente' pragmático, depende sempre de uma abstracção formalista que se dá
como a verdade 'escondida', ocultada pelo pensamento dominante (ideologia). Inverter
esta situação e apresentar um estado liberal como uma auto-imagem de superioridade
moral, como se a auto-imagem não estivesse condicionada pela acção e esta não fosse,
desde sempre, acusada por liberais e anti-liberais de insuficientemente afirmativa
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(ainda hoje), logo decadente, é de facto possível, mas como arma de propaganda, não
como análise crítica. A deficiência de decisionismo na prática política demoliberal, que
poderia ter neste ensaio um terreno fértil, não é explorada. Uma admissão tácita do
decisionismo que, ainda assim, triunfa em tempos de crise nos sistemas demoliberais?
Nada no livro permite supô-lo. Alexandre Franco de Sá vê na sociedade liberal de
sempre, de Locke a Rawls (cf. p. 77), uma autocontradição fatal: requer a discussão mas,
precisamente por querer um Estado neutro (aqui, lembremo-nos, sinónimo de inerte),
impede-a. Donde, o carácter ilusório do liberalismo político, na verdade negando a
escolha, negando a tolerância; negando a liberdade (e, de novo, Heidegger é convocado,
cf. p. 79); negando, por fim, o pacifismo que apregoa (que, apesar deste, nenhum Estado
liberal tenha abdicado do direito de declarar guerra, não incomoda o argumento,
inteiramente lógico).
Mais feliz do que este segundo ensaio, é no terceiro, ao reflectir sobre a criminalização
da guerra, que Alexandre Franco de Sá melhor explora algumas virtualidades da
perspectiva de Schmitt, num confronto com as posições antagónicas de Michael Walzer.
Não é necessário perfilhar a aposta de Schmitt em substituir o 'jus publicum
europaeum' por uma variante da doutrina Monroe (cf p. 99), nem fazer de conta que os
perigos da retórica humanitária começaram com os Modernos (instâncias Antigas e
religiosas seriam ainda mais abundantes), para reconhecer a pertinência da perspectiva
de Schmitt na situação limite por excelência, a guerra. É, com efeito, necessário evitar a
exclusão do inimigo da Humanidade (sob a acusação de monstruosidades,
inumanidades, etc.) se queremos evitar a extensão ilimitada, total, da guerra, em que o
fim (a erradicação do mal contra nós, os humanos legítimos) justifica todos os meios.
Sem a guerra como instrumento político ao legítimo dispor de um Estado, sujeito a leis
da guerra internacionais, como fazê-lo? Ora, justamente, nenhum Estado abdicou desse
instrumento – e nem por isso os conflitos deixam de se produzir de acordo com a
mesma retórica humanista. Seria caso, talvez, para pensar tal retórica não num quadro
político-jurídico mas histórico. Schmitt, aliás, tentou-o em A Era das Despolitizações, não
referido por Franco de Sá, e no qual a rigidez da sua filosofia da história sobressai.
Contudo, aqui Franco de Sá parece estar, também ele, sob o efeito da propaganda
liberal, referindo-se aos ataques de 11 de Setembro a Nova Iorque sem referir o do
Pentágono (p. 104). Uma curiosa despolitização que não retira, no entanto, acuidade ao
ensaio apostado num novo conceito de guerra "em que se insista não tanto sobre
argumentos que justifiquem um ódio persecutório, mas sobre o modo como uma tal
luta se desenrola, e sobre a necessidade de não ver no inimigo um criminoso, alguém
moralmente inferior ou uma pura configuração do mal." (p. 107). Não parece
historicamente acertado afirmar (p. 106) que só no século XVIII tenha surgido a "guerra
humanitariamente justificada por uma superioridade moral", depois de tantos século
de conflito religioso na Europa e fora dela. Mas, enquanto dilema actual, o problema
caro a Schmitt e a Franco de Sá não podia ser mais relevante. Pode haver uma guerra
contra um "eixo do mal" (aqui, sim, uma encenação para abrir alas à invasão de um e
apenas um país)? Com que consequências para a sociedade liberal? Não se vê como o
cuidado, por parte das chefias políticas ocidentais, em distinguir o Islão das suas
variantes terroristas possa ser entendido como "incapacidade das sociedades
despolitizadas para o estabelecimento de distinções no âmbito da inimizade" (p. 120),
muito menos que isso marque de forma fundamental o nosso mais recente percurso
histórico, mas o problema é real e pode agravar-se.
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A terminar, e aproveitando a circunstância do último ensaio (síntese do conjunto) não
responder cabalmente a este problema, note-se como a reinvenção do direito que
Franco de Sá (e Schmitt) entende "necessária" (por uma vez a lógica no seu sítio) não
aparenta poder fazer mais do que reeditar os limites do direito tão menosprezado nesta
perspectiva teológico-política. Quem decide quanto ao modo como a luta se desenrola?
Com que critérios? Quem procede à verificação? Que fazer com os que não
reconhecerem a validade de tais critérios e procedimentos? Ou se aceita o primado da
lei e a sua limitação e falibilidade ou tal direito não é viável. A menos que, afinal, se
procure não um novo direito mas um novo soberano. Geralmente é a segunda, em
particular quando, como no caso, se mitifica o passado para condenar o presente. No
último ensaio, ao contrapor o primado da lei ao papel representativo do soberano,
Franco de Sá reduz o primeiro a um pacifismo, quando na realidade o primado da lei é
criado precisamente por o conflito ser inevitável na interacção social. Por ser imanente
à sociedade e regular a actividade, violenta e pacífica, imanente a esta, é ao Direito que
cabe efectuar aquilo que a (parcialmente mitificada) transcendência do soberano não
pode realizar. Pois, ao pretender situar-se fora da sociedade para mais completamente
a poder dominar e representar, o agente da soberania é tolhido pelo incontornável
dilema do local, da sede, próprio do poder. Se está fora da sociedade, onde está? Onde
pode estar? Um pouco menos de fidelidade a Schmitt, um pouco mais de deliberação
nos casos queridos a Schmitt, talvez tivesse sido útil. Se tomarmos Hobbes como
modelo (teórico, lembremo-nos da recepção desfavorável ao Leviathan), o pormenor que
em A Vontade de Sistema foi realçado por Diogo Pires Aurélio quanto à capa da edição
original é relevante: o corpo do Leviathan é composto por uma imensidade de pequenas
figuras de indivíduos; não só não está fora deles como são eles que compõem, por
dentro (e voluntariamente) o soberano. Só através desta vontade activa da associação
política (e aqui pouco importa que seja o medo a motivá-la) pode o soberano chegar à
existência. Que posteriormente a forma desse poder soberano se metamorfoseie na
menos excitante forma de código legal já está, afinal, inserido numa dinâmica que,
aliás, não exclui o Leviathan. Mesmo decidindo-se por uma guerra, nela também
obedece a leis (ou tenta pelo menos simulá-lo). Longe de uma cesura radical entre
transcendência e imanência, as duas não podem dispensar-se mutuamente. Isso mesmo
resulta de a metamorfose do poder que dá título ao livro, e que configura para
Alexandre Franco de Sá uma passagem do poder absoluto próprio dos soberanos a um
poder total (invisível, sem limites, imanente e incidindo totalmente sobre o indivíduo
atomizado), não poder dispensar ainda assim um discurso público que o afirme perante
a sua (usemos a palavra) vítima. Que a metamorfose do transcendente em imanente não
prescinda de tal discurso será fraco consolo, mas talvez ponha estes prolegómenos sob
uma nova luz. Não assistimos já aqui a uma etapa da luta entre transcendentalistas e
imanentistas diferente da simples desqualificação (ainda presente) da imanência como
pobre e sem valor? Aqui, é já de perigo e de subversão que nos falam. Com o tempo,
talvez a vejam, como normal e inevitável; e, por fim, como a sua própria verdade, da
qual "transcendência" é apenas o 'Ur-nome'. Seria, aliás, mais uma evolução dialéctica
sem falha.
Entretanto, há que considerar problemas aqui aflorados. Noutra perspectiva, de
preferência menos anti-moderna; mas sobretudo numa perspectiva liberal, entendendo
liberalismo como a mundivisão moderna, lógica e historicamente desenvolvida de
forma activa e combativa contra os fanatismos religiosos e políticos, ainda antes da
divisão Esquerda/Direita. Não servirão de muito, assim, leituras conciliadoras entre
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estes prolegómenos schmittianos e a cultura democrática (bastante pobre, admita-se)
hoje comum, como a tentada por António Horta Fernandes no volume XX de Cultura. A
«impressão» final desta leitura é exacta e pretender tomá-la como uma leitura equívoca
desmerece o leitor e, sobretudo, o autor Franco de Sá. Em rigor, e delimitando pelo seu
valor as posições políticas (sem desconsideração pelo valor intelectual na sua defesa),
pode dizer-se que a «banalidade» está nas supostas justificações da soldado England,
enquanto o «mal» está na aparente lógica de Schmitt.
BIBLIOGRAFIA
Alexandre Franco de Sá, Metamorfose do Poder, Coimbra, Ariadne, 2004, 120 pp.
Rafael Gomes Filipe, De Nietzsche a Weber – Hermenêutica de uma afinidade electiva, ed. Piaget, Lisboa,
2004, 455 pp.
RESUMOS
Este artigo discute algumas variantes de relevo na língua alemã na crítica à modernidade. Em
rigor, discute-as na sua pertinência actual, tal como se deixa ver em dois trabalhos recentes de
autores portugueses, Rafael Gomes Filipe e Alexandre Franco de Sá. O nó-górdio da questão
encontra-se na caracterização da modernidade através da elaboração de uma filosofia da
História, problema que sobressai na análise de Nietzsche e Weber por Gomes Filipe e no ensaio
schmittiano de Franco de Sá.
This paper discusses some of the most relevant critics of modernity in Germany as they are
currently portrayed in recent works by Portuguese authors. Rafael Gomes Filipe's study of the
relation of Max Weber with the influence of Nietzsche (first section of this paper) and Alexandre
Franco de Sá's essays following Carl Schmitt's positions (second section of this paper) are the two
cases in point. The key-issue is that of characterizing modernity by elaborating a Philosophy of
History, a strategy pursued, albeit in very distinct forms, by most of the authors considered in
Gomes Filipe's and Franco de Sá's works.
ÍNDICE
Palavras-chave: modernidade, liberalismo, política, Marx Weber, Carl Schmitt
Keywords: modernity, liberalism, politics, Max Weber, Carl Schmitt
AUTOR
CARLOS LEONE
Visiting Scholar, Brown University, BPD/FCT
Doutor em História das Ideias pela UNL/FCSH (2004), trabalha actualmente numa investigação de
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pós-doutoramento na Universidade de Brown, EUA, sobre o tema dos estrangeirados na cultura
portuguesa contemporânea. Além desta área de investigação, ocupa-se de temas de filosofia
moderna e contemporânea. Estes vários aspectos encontram-se reunidos em Portugal
Extemporâneo, 2 vols., INCM, Lisboa, 2005.
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A filosofia da existência de RogerGaraudyThe philosophy of existente of Roger Garaudy
José Mauricio de Carvalho
I. Introdução
Roger Garaudy1 inicia sua vida intelectual como marxista, posição que esclarece em La
théorie matérialiste de la connaissance (1953) e evolui para se apresentar, ao final da vida,
como existencialista e crente, segundo afirma em Promesse de l'islam (1981). Durante
toda vida, mesmo quando se apresentava como marxismo ortodoxo, Garaudy se
mostrou um humanista apaixonado, o que apenas cresceu com o passar dos anos. Dessa
preocupação com o destino humano, são exemplos Grammaire de la liberté (1950) e
Perspective de l’homme (1959), ainda escritos na fase marxista. À medida em que se
afastou do marxismo no início dos anos 70, o filósofo elaborou uma filosofia da
existência aberta à problemática religiosa conforme propôs em Parole d'homme (1975) e
Promesse de l'islam (1981). Embora inicialmente ele não acreditasse ser possível
encontrar numa filosofia da existência os elementos de relação com os outros, aos
poucos mudou de posição. Sua visão existencial preserva a preocupação humanista
somada à crença religiosa. Elaborar um contraponto para a existência pensada
concretamente é uma necessidade dos filósofos da existência porque o mundo de cada
um não é uma subjetividade isolada do que se passa à sua volta. Entre os
existencialistas, não há acordo sobre o sentido de transcendência, há pensadores para
quem a abertura ao mundo cai no social; em outros, vai até Deus.
No tratamento da abertura do mundo pessoal ao transcendente é importante observar
que os autores existencialistas indicam que a condição humana é um encontrar-se entre
coisas e isso tem possibilidades diversas. Pode-se admitir que a vida se passa num
ambiente social onde existir não se resume à facticidade, isto é, a um projeto sem razão,
sem finalidade, absurdo. Para filósofos como Martin Heidegger, um dos iniciadores da
filosofia existencial, ao contrário, a existência não rompe a facticidade.
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A descrição fenomenológica da condição humana assumida pelos existencialistas como
um novo modo de pensar a vida aponta os riscos nascidos da insuperável solidão, da
ameaça de o homem perder dentre as coisas o significado de sua humanidade. Esses
riscos estão aí e são reais, além do que a liberdade de escolher faz do viver uma ameaça
constante, resumida por Martin Heidegger com o conceito de facticidade.
O motivo para não se fechar no desespero, que de fato faz parte da existência de todos
nós, é que viver comporta uma multiplicidade de perspectivas e momentos, não se
fechando na angústia, abismo ou nada. Conforme já comentamos ao estudar a visão
orteguiana da vida;2 caso Heidegger tivesse razão nesse aspecto, nada restaria senão o
suicídio. Existir seria um fardo que todos alegremente rejeitariam.
Investigar o modo que Garaudy tematiza, reconhece a força, mas propõe a superação da
facticidade no âmbito da sua meditação é o que vamos examinar a seguir. A vida
humana encontra consolo na arte de criação e no encontro pessoal com Deus que o
filósofo irá valorizar crescentemente.
II. As filosofias da existência, tentativa decaracterização
O século XXI principia com os atentados de 11 de setembro, ao que se seguiram as
guerras no Afeganistão e Iraque e outros atentados, como os que destruíram as estações
de Madri. Na avaliação de Gilberto de Mello Kujawaki (2003), estamos presenciando em
nosso tempo uma universalização do terror. Ele diz que "a insegurança e a incerteza
infiltraram-se em todas as instâncias, em todos os níveis, em todas as consciências nos
países mais civilizados" (p. 10). Difícil saber se o desamparo e desencanto do homem do
último século continuam ativos em meio a tais acontecimentos e se será nesse clima
que, nos anos que virão, deverá a humanidade encontrar um sentido para viver. Uma
coisa parece certa, o terrorismo, o recrudescimento do fundamentalismo religioso e o
estado de Guerra contra o terror desencadeado pela maior nação do mundo apontam
para um futuro próximo bastante difícil. Embora o cenário não pareça muito distinto
daquele que ocorreu no início do último século, o homem de hoje parece menos iludido
quanto ao que seja viver e do que esperar das relações sociais e políticas. Além disso,
aprendeu a pensar a sua vida a partir da primeira pessoa.
O homem do último século enfrentou o que lhe aparecia como falta de sentido da vida
num contexto de otimismo e esperança de felicidade formulados na segunda metade do
século XIX. O choque entre a crença e a realidade manifesta-se como crise (Carvalho,
1999): "o conhecimento da condição humana se exprimiu numa crise que refletiu a crise
da cultura" (p. 63). A ilusão de que o futuro será necessariamente melhor do que o
passado nós não temos mais, não produz mais a mesma sensação de desalento, de crise.
A compreensão do fundamento tratado pela filosofia também mudou, pois os
existencialistas aprenderam com Husserl, como já mostramos, (2001) "que a procura da
verdade não se separa da historicidade" (p. 25).
O balanço das filosofias da existência do século passado pode ser feito de um modo
tranquilo, embora não sabemos se com o recuo histórico necessário para uma
compreensão adequada do que significaram essas filosofias. Ainda há muito a explorar
sobre o que elas traduzem da vida dos últimos tempos.
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O existencialismo é um movimento multifacetado, ele reúne pensadores com
características distintas. Alguns são paradigmáticos como Karl Jaspers e estão voltados
para uma análise menos sistemática da existência calcada no existente e no plano
concreto da vida; outros, como Martin Heidegger, estão mais preocupados em elaborar
uma nova ontologia. Não se pode imaginar que tal ontologia signifique um retorno à
antiga metafísica, mas é um desenvolvimento da perspectiva transcendental de Kant no
sentido que lhe deu a fenomenologia de Edmund Husserl. "A redução fenomenológica
propicia ir adiante na pergunta pelo papel da egoidade transcendental no ato
cognoscitivo" (Carvalho, 1996. p. 117). Isso resulta, conforme explica Delfim Santos
(1982), numa "forma de pensamento que põe em jogo e permite situar o homem em
nova posição perante si e o mundo" (v. II, p. 80).
Parece difícil chegar a características comuns que alcancem todos os filósofos da
existência, mas podemos tentar perceber algumas. Parece-nos que a primeira dessas
características é que os filósofos normalmente denominados existencialistas
reconhecem o caráter dramático da existência pensada na primeira pessoa e o
traduzem por uma insuperável atmosfera de angústia. A diferença está no contraponto
que criam, se é que admitem, para a abertura da subjetividade ao mundo.
Para Regis Jolivet (1957), o que é comum nas filosofias da existência é que o significado
dramático do viver é avaliado pelo método fenomenológico assumido como
instrumento de reflexão, isto é, adota-se uma "ciência que se firma sobre a
universalidade de ser, valendo, ao mesmo tempo, para a universalidade dos homens"
(p. 11). De fato, os existencialistas não consideram a vida humana como algo do que se
possa abstrair ou conhecer de fora, mas somente desde dentro. Confirma-se, pois, que
se trata de uma nova filosofia que não retorna à metafísica clássica, embora mantenha o
espírito e as preocupações presentes na filosofia desde as suas origens na Antiga Grécia.
Outra característica que ajuda a tipificar os existencialismos é entendê-los como a
resposta de uma geração ao idealismo germânico, sobretudo a Hegel, para quem a vida
do homem se perde na evolução do espírito absoluto. É isto que afirma Brügger (1977),
assistimos à precedência temática da "substantividade e indeduzibilidade do indivíduo
humano concreto" (p. 178) sobre qualquer processo histórico ou social.
Há quem proponha como característica dos filósofos da existência o primado do existir
sobre a essência. Se isso é de fato constatável, não chega, contudo, a ser exclusivo e
diferenciador na corrente existencial, conforme assinala Ferrater Mora (1981). Ele
esclarece que essa compreensão é comum a diversos filósofos contemporâneos, "como
Nietzsche, Dilthey, Bergson, Sartre e até, em certo sentido, Heidegger" (p. 158). É
evidente que nem todos são reconhecidos como existencialistas simplesmente porque
conferem a primazia à existência.
Concluída essa rápida caracterização, podemos examinar como Roger Garaudy evolui
da posição marxista, típica da sua juventude, para uma filosofia existencial assumida na
maturidade.
III O marxismo como projeto moral
No livro Marxismo do século XX, Roger Garaudy (s. d.) explica como entende o marxismo,
uma filosofia humanista capaz de: realizar o propósito moral de construir uma
sociedade justa, cultivar a esperança num futuro melhor para a humanidade, ao mesmo
tempo que efetiva "o empreendimento prometéico de tomar nas mãos o vir-a-ser e
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construir conscientemente o porvir" (p. 2). Para o filósofo, o marxismo significa uma
mudança na forma de fazer filosofia, que deixa de lado o estar acima "das coisas, dos
homens e de sua história" (p. 32). A distância histórica da derrocada do socialismo real
nos permite hoje confiar menos no marxismo como realizador dos ideais éticos do
Ocidente. Contudo, saber que nosso filósofo assim pensava ajuda a entender porque ele
desencantou-se com o marxismo quando descobriu que tal filosofia não era tudo aquilo
que aparentava, não realizava tudo quanto a filosofia busca desde seu aparecimento na
Grécia. Além disso, há em todas as correntes filosóficas desde Kant o empenho de
estruturar nova ontologia, de renovar a metafísica tradicional.
Outra interpretação de Garaudy que hoje não admitimos mais é que o marxismo é "um
método científico para a construção da realidade" (p. 2). Inicialmente, acredita o
filósofo que Lênin traduz corretamente o significado científico do marxismo quando
atribui ao proletariado os instrumentos reais para realizar os sonhos que a moral
ocidental acalenta. Sabemos que as coisas não são assim, além do que os conceitos de
Lênin sobre economia não se mostraram corretos. O próprio papel do proletariado na
sociedade tem mudado muito desde a segunda metade do último século.
Em outro momento de sua reflexão, Garaudy atribui ao marxismo o que só a Filosofia
como produto cultural pode responder com possibilidade de sucesso, a angústia pela
morte mencionada por Hegel na 1a parte da Fenomenologia do Espírito corresponde, na
consciência universal, à falta de compreensão ou à falta de um sentido para viver. Diz o
filósofo textualmente que "o medo da morte para uma alma é o medo da perda de suas
razões de viver e de agir". Essa tarefa da filosofia, a busca de um significado para viver,
é algo que Garaudy irá buscar na filosofia existencial, pois ele conclui que a alternativa
humana é fazer nascer esse sentido no quotidiano da história.
Em que pese tais análises, Garaudy entende que não se justifica o cultivo de uma
verdade absoluta e que é preciso abrir-se ao diálogo, porque obter uma verdade única é
tarefa grande demais para os homens e conduz "a métodos autoritários e prepotentes
que nascem inelutavelmente da necessidade de impor de cima para baixo semelhante
verdade" (p. 8). Esse é um tema caro aos existencialistas, basta lembrar o esforço de
Karl Jaspers para mostrar as diversas formas que a verdade assume, desde a científica
até à existencial.
Naquele momento, Garaudy considerava que os problemas contemporâneos da cultura
pudessem ser respondidos com sucesso pelo marxismo, em que pese a necessidade de
repensá-lo. Tais problemas eram: o vertiginoso desenvolvimento das ciências, a
construção de um socialismo com amplitude mundial e a descolonização da Ásia e da
África. Para Garaudy, o desenvolvimento extraordinário da ciência exige pensar essa
nova circunstância. As mudanças representam uma nova realidade do trabalho
humano, não são só os músculos que a máquina substitui, mas a própria inteligência.
"Os computadores eletrônicos podem fazer, sem erro, milhões de operações complexas,
em um segundo e a unidade de tempo tornou-se a bilionésima parte do segundo" (p.
15). No que tange à expansão do socialismo pelo mundo, Garaudy revela que isso ainda
não significa a implantação de uma sociedade perfeitamente ética "para a qual a
consciência e o estímulo morais são determinantes" (p. 23). Fica claro que o socialismo
mundial é, para o filósofo, um projeto para a sociedade humana, uma tentativa de
formular racionalmente os costumes. O quanto é possível se generalizar tal projeto
entre os homens é difícil saber. No entanto, o filósofo supõe que isso é possível
"mencionando os valores da disciplina e sacrifício" (p. 27). Finalmente, a
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descolonização da África e da Ásia coloca na cena histórica novos agentes e isso
significa que outros grupos se tornavam "elementos criadores de valores, de civilização
e de cultura" (p. 28).
O marxismo, na avaliação de nosso pensador, é o herdeiro contemporâneo da filosofia
moderna no que ela tem de crítica. Ele esclarece que, desde Kant, chama-se de crítica "a
consciência do fato de que tudo aquilo que dizemos da realidade somos nós que o
estamos dizendo" (p. 34). Na formulação dessa nova perspectiva, faltou a Kant a
dimensão histórica que Hegel completou. Assim, o marxismo se vincula não só "a Saint-
Simon, Fourrier e Owen, mas também a Kant, Fichte e Hegel" (p. 35). É com esse espírito
antidogmático e aberto ao diálogo e aos problemas modernos que o filósofo espera
corrigir a visão de natureza posta por Lênin em Materialismo e Empiriocritismo. A
consciência crítica corrige na literatura marxista o que ela reproduz de pré-crítico,
propicia uma aproximação do marxismo com as filosofias contemporâneas. De tal modo
que "as perspectivas abertas à investigação marxista pelo estruturalismo e pela
cibernética afastam as interpretações dogmáticas, mecanicistas, coisistas, do
materialismo; e afastam igualmente as interpretações dogmáticas, especulativas,
teológicas da dialética" (p. 66).
Nessa etapa marxista de sua meditação, Garaudy não aceita o conceito de liberdade
existencialista e avalia que, mesmo quando Sartre se empenha em dar uma
conseqüência histórica à sua reflexão sobre a liberdade, ela "permanece metafísica,
transcendente em relação à história e basicamente individualista" (p. 205). Ele avalia
que o sentido da vida e da história não é uma criação do homem individual, como
sugere o existencialismo, embora não seja também construído numa história que segue
leis próprias e imutáveis. A reflexão que ele realiza sobre a arte e estética
correspondem ao ponto de chegada de sua formulação marxista, pois na arte pode-se
investigar em profundidade "as condições do ato criador em geral e nos permite
distinguir os níveis de conhecimento, levando-nos a não nos instalarmos
dogmaticamente no ser e no conceito que o exprime" (p. 214). Com esses elementos,
Garaudy avança no diálogo com a filosofia existencial.
IV A moral e a vida humana
A relação entre as exigências morais e as da vida em grupo foi aprofundada no ensaio
Por uma discussão sobre o fundamento da moral publicado originalmente pelo Instituto
Gramsci. Nele, Garaudy examina o problema moral que considera imprescindível, isto é,
"o problema moral não pode ser evitado" (p. 5). Quando um filósofo examina problemas
éticos na filosofia contemporânea, ele quer pensar, em especial, a responsabilidade das
pessoas como criadoras da história, porque em outro caso a vida seria resultado de
determinantes que tiram do homem o controle do seu destino e isso não seria mais
admitido em nosso tempo.
Desde que nasce, o homem está inserido numa realidade histórica precisa que os
filósofos existencialistas tematizam bem. Nela, como membro de um grupo, entra em
contato com uma série de valores. O indivíduo não vive só, ele "pertence a uma
sociedade, a uma comunidade histórica e social" (p. 7). Assim, não há como considerar a
vida um drama pessoal, conforme pensam os existencialistas, fora da realidade
histórica em que esse drama é vivido. Até aqui, Garaudy segue os existencialistas e trata
do assunto de modo também parecido com o de Ortega y Gasset. Ele entende que há
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uma distância entre as exigências morais e o modo como a sociedade controla seus
membros através do direito. Garaudy atribui tal distinção a Fichte, embora ela já esteja
presente em Kant. Com Kant, ele admite que a moral nasce na natureza, mas é criação
da cultura. Assim, não há filosofia contemporânea que possa prescindir da dimensão
crítica que Kant lhe dá, nem da distinção entre natureza e cultura que sua filosofia
estabelece.
O existencialismo é capaz de explicar o sentido da responsabilidade pessoal no âmbito
de uma sociedade que cria valores e tem uma história? Garaudy entende que não e vai
buscar resposta para essa questão no marxismo. O filósofo não julga que seja possível
uma combinação das duas correntes, conforme sugere Sartre em O Ser e o Nada e mais
especificamente na Crítica da razão dialética. Por que não? Porque estabelecer o
fundamento da moral significa mostrar como a liberdade expressa a ação e "o
individualismo da Sartre impede tal passagem" (p. 17). O exercício da liberdade exige
um contínuo diálogo com o outro e, no existencialismo, o outro é olhado como objeto.
Visto assim, acaba-se por desrespeitá-lo, ainda que se pretenda o contrário. Fechado
numa existência particular, o homem fica condenado ao solipsismo. Dito isso, conclui o
filósofo, embora o existencialismo ajude a pensar o homem, não consegue resolver as
questões irrecusáveis de natureza moral que povoam a existência.
A justificação ética da vida será construída, para Garaudy, com uma filosofia social de
orientação marxista que nasce do reconhecimento de que a vida humana não é
inicialmente uma subjetividade solitária, mas um nós. Esse ponto é mais um elemento
comum com o raciovitalismo orteguiano. Em seguida, Garaudy conclui que a
consciência subjetiva nasce da presença dos outros e através do trabalho com o qual a
pessoa supera a solidão. O trabalho aparece como elemento circular da cultura. "Em
outros termos, o homem cria os seus valores juntamente com suas necessidades e suas
necessidades juntamente com suas possibilidades" (p. 23). O trabalho, para realizar tal
missão civilizatória, não pode ser alienado, razão pela qual o marxismo, e não o
culturalismo neokantiano, é capaz de tratá-lo corretamente. Outro motivo para a crítica
é que o culturalismo e o neokantismo separam o ser do dever ser. Para Garaudy, essa
dicotomia é uma maneira inadequada de tratar a transcendência.
A tensão que existe entre a pessoa e os outros membros da espécie é que torna possível
aproximar a imanência da transcendência. Essa fórmula Garaudy diz que buscou em
Fichte e entende que ela resolve melhor o problema do que a solução neokantiana.
Numa linguagem atualizada, a transcendência nada tem de teológica ou religiosa, ela
traduz a criação humana que, para ser plena, deve ser realizada numa sociedade
socialista para romper, ao mesmo tempo, com a animalidade e a alienação.
Nessa fase da vida, Garaudy confia no marxismo, para resolver questões morais, mas
aprofunda o diálogo com o existencialismo, posição que aprofundará na fase seguinte
de seu pensamento.
V Os temas do existencialismo segundo Garaudy, adescoberta de uma forma não marxista de se abrir àtranscendência
Na visão de Garaudy, o existencialismo é uma filosofia que procura entender
fundamentalmente a condição humana e incorpora o problema da transcendência. Pelo
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menos na origem do existencialismo, o viver apresenta‑se como abertura para Deus,
bastando lembrar o que a respeito escreveu Sören Kierkegaard. Nicolai Berdiaev nos
explica o sentido disso, conforme transcreveu Garaudy (1966): "a filosofia torna-se cada
vez menos existencial quando o filósofo passa da subjetividade para a objetividade. E
mantém-se existencial se o filósofo passa da subjetividade para a transcendência" (p.
54). A transcendência de que falam Berdiaev e Kierkegaard possui necessariamente o
caráter religioso como eles consideram? Efetivamente não, pois abrir-se para algo
maior que a subjetividade significa reconhecer que a situação do homem é a de viver
em sociedade e de criar a cultura para um significado para sua vida. Garaudy segue,
contudo, a tradição de Kierkegaard e assume que a transcendência tem um sentido
religioso, isso significa que para
ele a criação humana tem algo de divino. Devemos recordar que no início de sua
meditação, ele não admitia que o existencialismo pudesse propor uma transcendência
válida.
Para o filósofo, o existencialismo é uma filosofia que se faz em torno de três temas: a
crise nascida do desaparecimento ou desarticulação de valores historicamente
construídos no Ocidente, a confiança no estabelecimento de um projeto capaz de
oferecer um sentido para se conviver com a angústia e o desespero nascidos dessa crise
e a leitura fenomenológica da existência, que fornece um nexo ao contraponto angústia
e confiança.
A idéia da crise proposta por Garaudy traduz o desencanto dos homens do seu tempo
com os rumos da civilização. Isso ocorre quando a vida já não mais atrai, não cativa,
deixa de seduzir, os dias se tornam então cinzas e tudo parece perder o motivo. A
previsão otimista de enriquecimento crescente, a confiança nos resultados
extraordinários da ciência e a expectativa de uma organização política de liberdade
responsável foram frustradas no mundo destruído pelas duas Guerras Mundiais. A
tristeza ante resultados negativos tão distantes dos sonhos que se acalentavam instaura
um sentimento de crise que afeta a compreensão que o homem tem de si e do mundo,
alcança mesmo o modo como ele entende a história. A vida olhada com a crueza da
descrição fenomenológica revela o desamparo de existir como limitação absoluta,
circunstância expressa pelo conceito de angústia. Tal conceito traduz a condição
humana apresentada por Garaudy (1966), conforme se segue:
"a solidão, a absurdez, a ameaça constante de perder-se nas coisas, de não ser maisque o prolongamento do nosso passado coagulado, ou de ser trazido por esse mundoobjetivo acabado que nos cerca e de converter-se numa engrenagem passiva domesmo, a vertigem de uma liberdade absoluta com a qual nada nem ninguém podeensinar-nos o que temos que fazer, a presença da morte ao final de todos ospossíveis, a ambigüidade de tudo o que me envolve e de tudo o que sou. A coisa sóexiste para uma consciência e a consciência só por sua relação a uma coisa" (p. 56).
A história, ensina Garaudy, não pode fornecer ajuda para melhorar a vida do homem
porque não é ela que carrega o homem; ao contrário, ela é produto do seu viver.
Contudo, a temática da angústia não finaliza a reflexão e nem esgota tudo o que a vida
é. De fato, nós nos rebelamos contra o sofrimento e a consciência da perdição que
aniquila todas as esperanças. Durante parte da vida, Garaudy julgou que a Revolução
Socialista significasse a redenção humana, resposta para seus dramas, isto é, uma vida
mais segura e estável, um futuro de mais confiança. Tratava-se de uma interpretação
algo mística do socialismo com a qual o filósofo concretizava o seu projeto humanista.
Contudo, ele logo desiludiu-se desse caminho e reviu suas idéias abrindo-se para Deus.
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A relação entre as duas temáticas, a consciência da perdição e a possibilidade ilimitada
que ela oferece como alternativa de escolha e esperança, é levada a termo pela
fenomenologia. Com esse conjunto de temas, Garaudy cria as bases de sua filosofia da
existência. Ela incorpora aspectos diversos de uma vida que se nos aparece
multifacetada e cujo nexo só a filosofia é capaz de oferecer.
VI Aprofundando a temática existencial
Vejamos como o filósofo aprofunda os temas que ele considera marcantes de uma
filosofia da existência. Ele fala de viver como uma experiência de renovação, de
transformação do passado. Só faz sentido falar num projeto de vida quando se trata de
realizar algo diferente do que os homens já fizeram em outros tempos. Cada homem é
chamado a construir sua existência renovando o mundo que encontra ao nascer e à
própria natureza que é a base de seu mundo cultural. Garaudy (1975) diz:
"Como é velha esta criança que acaba de nascer: madura como um belo fruto demilhões de anos de história da terra e do homem, ela carrega em si todo o passadoda vida e da espécie. Do útero materno ao vento largo da natureza, seus instintos,seus reflexos, fruições ou cóleras, foram firmados fora dela e sem ela, vindos de bemalto e de bem longe. Fruto maravilhoso e bem-amado de nossa pré-história,saturado de passado ao ponto de nada de novo poder daí nascer" (p. 10).
Ser jovem é um aprendizado difícil, demorado e depende das escolhas fundamentais
que precisamos fazer. A questão é tornar-se jovem, diz o pensador. Assumir a condição
descrita por Heidegger, para quem o homem é o poeta iniciado do universo, é adotar o
risco implícito nas escolhas notáveis, coisa que os melhores homens conseguem
realizar, no máximo, umas cinco vezes em toda a vida. Garaudy afirma que em sua
própria existência "discerne apenas três desses cumes" (p. 12) a partir dos quais pode
falar de um sentido amplo que alcança todo o viver. Nesses momentos especiais, ele
descobre opções que mudaram sua existência.
Das realidades mais magníficas que a vida tem, o amor está entre as maiores. O
problema é que nossas instituições – a família, a escola e a igreja – apontam na direção
oposta às exigências do amor autêntico. A escola que enfatiza a educação sexual
positiva estimula desaprender o amor; a igreja que separa as exigências do espírito das
manifestações sensíveis e promove tal dicotomia não favorece o amor, apenas produz
um discurso abstrato sobre o amor. O amor tem para o filósofo o sentido da abertura
aos outros e da confiança no futuro. Por isso, o amor entre homens e mulheres vivido
na plenitude é tão extraordinário quanto raro. "O amor começa quando preferimos o
outro a nós mesmos, quando aceitamos a diferença e a sua imprescritível liberdade" (p.
35). Quando não se está preparado para os riscos e a partilha, não se ama, torna-se
funcionário do sexo, burocrata do prazer, egoísta e sem alegria.
Entre os temas da existência, a morte é dos mais apaixonantes. Para nosso pensador, a
morte dá à vida alta significação. Garaudy diz que não pode prescindir de abordá-la. Ele
não fala da morte no mesmo sentido que Heidegger, mas a ela se refere como um passo
além das limitações. Quando a morte chega depois de uma vida de trabalho e amor não
é um limite, ela possibilita realizar um projeto maior do que sonharam os existentes.
Garaudy (1975) explica o que quer dizer: "Se eu jamais devesse morrer, então estaria
mutilado dessa dimensão especificamente humana: a transcendência" (p. 38). Foi o
individualismo ocidental que levou a avaliação da morte como absurda, impensável e
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revoltante. Quando o homem participa do ato contínuo da criação, ela ganha sentido e é
o horizonte da velhice.
A existência é uma aventura de construção do significado. Não se trata de uma
estrutura pré-fabricada nem pela história, nem por Deus, nem pela ciência. Isso
significa que ela não é absurda como anunciam alguns filósofos da existência, como as
filosofias de Sartre ou Camus. Por outro lado, não há como fugir à responsabilidade
pelas escolhas que se faz porque ninguém pode subtrair-se à responsabilidade de suas
ações, nem imputar-lhe outro responsável quer seja o destino, ou um superior
hierárquico. "Cada um de nós é pessoalmente responsável pela criação" (p. 56). E se a
criação é que confere o significado à vida, o amor aparece na edificação desse sentido
porque ele só existe pela entrega a uma causa, a uma pessoa. "O sentido da vida não é
exterior ao ato de criar a vida, de fazer emergir em nossa própria vida, e na de todos, o
homem poético" (p. 58). Essa realização é a felicidade possível ao homem.
Uma vida construída diuturnamente no trabalho criador é uma existência que não
acaba na rotina ou na ruína. Essa vida é a jornada de libertação das contingências da
situação. Isso é o mesmo que vencer as circunstâncias no mesmo sentido falado por
Ortega y Gasset. "O trabalho prolonga a criação quando não está alienado" (p. 107), ele
justifica. A adesão ao marxismo feita na juventude se baseava no propósito de defender
a liberdade, o que se compreende na Europa empobrecida do período das duas Guerras
Mundiais. A adesão apaixonada ao marxismo na juventude foi perdendo força;
primeiro, com a descoberta dos males do stalinismo; depois, com as discordâncias das
propostas do PC francês, que culminaram com a sua expulsão do partido.
A filosofia da existência proposta por Garaudy quer superar o subjetivismo exagerado
que vem desde Descartes e permeia toda filosofia moderna. É o que esperam outros
pensadores contemporâneos como Ortega y Gasset. A subjetividade também não se
completa como substância pensante, mas é expressão de um ente que ama, que produz
arte, que se relaciona com o outro, que espera fazer o melhor. Não há como pensar a
subjetividade fora do mundo, não se pode falar do eu sem o mundo nem do mundo sem
o eu, conforme ensina a fenomenologia.
Um aspecto fundamental do existencialismo é a relação com o devir, conforme já
escrevemos certa vez (Carvalho, 1998): "enquanto cria razões para viver, o homem
projeta o futuro e o antecipa sobre si mesmo" (p. 22). Para Garaudy (1975), "tudo na
existência está em função do futuro" (p. 130). Dizer que a existência está voltada para o
futuro é reconhecer nela um feixe de projetos possíveis, de mudanças e de esperanças.
O futuro aberto leva ao entendimento de que o devir não é um prolongamento da
história, não significa a repetição do que ficou para trás. Esse é um aspecto muito
singular do homem porque só ele "se define pelo seu futuro, pelos seus possíveis" (p.
135). O futuro tem muito do que o existente sonha, é preciso imaginá-lo para dar à vida
uma direção que valha a pena. Para mudar o futuro, é preciso o engajamento na
história e, para tanto, é fundamental a inserção social e a participação política. Para o
filósofo, "política é a história se fazendo" (p. 153). A política incorpora os sonhos de
libertação do homem desde Joaquim de Fiore e Thomas Münzer até os marxistas, todos
desejos compreensíveis se reconhecem: "a dimensão fundamental e a mais irrecusável
do homem: a transcendência" (p. 184). A ação política e revolucionária ganha amplitude
no existencialismo de Garaudy ao ser avaliada segundo as exigências da fé. Não se trata
de uma fé cega, um catálogo de verdades prontas, diz o filósofo, mas um abrir-se à vida.
"A fé é o que nos põe em marcha" (p. 186).
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A fé significa para nosso pensador a abertura ao amor, o encontro com Deus a
expressão mais pura da transcendência, o passado comunista, o esforço para dar
esperança aos sonhos de justiça da humanidade. Tais são os contornos gerais da
filosofia da existência elaborada por Garaudy.
VII Considerações finais
Neste estudo, procuramos indicar como o filósofo francês Roger Garaudy concebe uma
filosofia existencial. Verificamos também que ele não abandona os sonhos que o
levaram ainda jovem ao marxismo. O gradual afastamento da filosofia marxista decorre
do amadurecimento de sua reflexão, pois, a um certo tempo, ele não mais encontra no
marxismo resposta para suas dúvidas.
A filosofia da existência formulada por Garaudy tem vínculos profundos com as
principais descobertas da filosofia moderna. Nela, observa-se um diálogo instigante
com a fenomenologia e com os existencialistas franceses Sartre e Camus. Também não
fica fora das suas considerações o legado hermenêutico de Martin Heidegger.
Foi interessante constatar que o filósofo preserva de sua fase marxista os elementos
éticos e as preocupações sociais usados, que ele emprega para resolver os problemas de
uma subjetividade concebida cartesianamente. A subjetividade moderna tornou o eu
grande demais. Diversos autores contemporâneos, como Ortega y Gasset, procuram
fazê-lo voltar a proporções mais justas. No bojo do existencialismo francês, a filosofia
de Garaudy busca o mesmo objetivo.
O diálogo com o marxismo propicia também aprofundar a complementação
representada pela fenomenologia de Husserl à herança kantiana, fornecendo o
raciocínio dialético também reclamado por filósofos culturalistas, como Miguel Reale. A
dialética é importante para superar a posição estática em que Kant e Husserl deixaram
o problema do conhecimento.
A filosofia da existência de Garaudy afirma a responsabilidade humana frente aos
problemas sociais, acompanhando, nesse aspecto, filósofos como Karl Jaspers e Hannah
Arendt. Ao balancear adequadamente as ciências reconhecendo seu valor, mas
situando-a no âmbito cultural identificando nela a dimensão conjectural também
utilizada pela filosofia, Garaudy participa da avaliação contemporânea do principal
problema posto nos tempos modernos: a ciência.
A complexidade dos temas que enfrenta e a criatividade das soluções que formula
fazem da reflexão de Garaudy um dos caminhos fecundos assumidos pela filosofia da
existência.
BIBLIOGRAFIA
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LOGOS, Enciclopédia luso brasileira de filosofia. Lisboa, São Paulo: Editorial Verbo, 1989.
SANTOS, Delfim. Obras Completas. Lisboa: Galouste Gulbenkian, 1982.
NOTAS
1. Roger Garaudy, filósofo francês, nasceu em Marselha, no ano de 1913. Doutorou-se em 1953,
ensinou Filosofia nas Universidade de Clermont-Ferrand e Poitiers. Aderiu ao Partido Comunista
em 1933, chegando a fazer parte do Comitê Central e da Comissão Política, donde foi expulso por
revisionismo considerado de direita. Ao final da vida, desenvolveu uma filosofia da existência que se
abre à transcendência. Suas obras mais importantes são: L'Église, le communisme et les chrétiens
(1949); Grammaire de la liberté (1950); Matérialisme de la connaissance (1953); Du surréalisme au monde
réel: L’itinéraire d'Aragon (1961); D'un réalisme sans rivages (1963); Qu'est-ce que la morale marxiste
(1963); Karl Marx (1964); De l'anathème au dialogue (1965); Marxisme du XXe siècle (1966); Lenine
(1967); Le problème chinois (1967); Prague (1968); La liberté en sursis (1968); Le grand tournant du
socialisme (1969); Toute la verité (1970); L'alternative (1972); Donner sa vie (1973); Humanisme marxiste
(1975); Parole d'homme (1975); Appel aux vivants (1979); ll est encore temps de vivre (1980); Promesse de
I 'islam (1981).
2. Refiro-me ao livro Introdução à filosofia da razão vital de Ortega y Gasset, em especial
aos itens XVI e XVII do capítulo III, nos quais examinei a crítica de Ortega a Heidegger.
RESUMOS
Roger Garaudy é um filósofo francês que muda de uma posição inicialmente marxista para outra
existencialista. A sua aproximação com o existencialismo se dá na década de 70 quando o
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pensador foi expulso do Partido Comunista Francês por discordar dos rumos do marxismo de
então. Ao mesmo tempo ele descobre no existencialismo a chave teórica que justifica sua
preocupação humanista. Da fase marxista, o filósofo preserva os elementos éticos e as
preocupações sociais que ele transfere para sua filosofia existencial. Garaudy espera com eles
resolver os problemas de uma subjetividade que cresceu além da conta nos tempos modernos,
questão que lhe parece outros existencialistas não haviam ainda resolvido. Neste texto também
mostramos como o filósofo considera a superação da facticidade, o que dá especificidade à sua
reflexão. A complexidade e criatividade de suas formulações nos mostram uma das muitas
possibilidades do existencialismo, movimento que precisamos bem balancear neste início do
século XXI porque ele traduz as inseguranças e incertezas do homem do último século.
Roger Garaudy is a French philosopher who changes from an originally Marxist position to an
existentialist one. His nearing the existentialism during the seventies followed his expulsion
from the French Communist Party for disagreing on the paths of the Marxism at the period. At
the same time he discovered in existentialism the theoretical key for his humanist concerns.
From the Marxist phase the philosopher preserves the ethical elements and his social concerns
which he transfers to his existentialist philosophy. Garaudy attempts to solve the problems of a
subjectivity that grows considerably in moderns times, question that he considered not yet
solved by others existentialists. In this paper we intent to demonstrate as well how the
philosopher considers the surpass of facts, which is his singularity. The complexity and creativity
of his formulations show us one of several possibilities of existentialism, movement that we need
to discuss in 21st century, as it shows the uncertainties and the unsafeness of the man of the last
century.
ÍNDICE
Keywords: existentialism, marxism, philosophy
Palavras-chave: existencialismo, marxismo, filosofia
AUTOR
JOSÉ MAURICIO DE CARVALHO
Departamento de Filosofia da UFSJ
Graduou-se em Filosofia, Pedagogia e Psicologia pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e
Letras que deu origem à Universidade Federal de São João del-Rei. É Especialista e Mestre em
Filosofia pela UFJF e Doutor em Filosofia pela UGF – Rio. Professor Titular no Departamento de
Filosofia da Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ. Como bolsista da FAPEMIG fez
estágio de Pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa (1994) e na Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ (2000). É membro da Academia de Letras de São João del-Rei, do Instituto
Brasileiro de Filosofia (SP) e do Instituto de Filosofia Luso Brasileira.
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Edição de Gazetas Manuscritas doSéculo XVIII
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Notícias de mãoScribal news
António Coimbra Martins
NOTA DO AUTOR
Texto de apresentação de Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora, Vol. 2
(1732-1734), Lisboa, Edições Colibri/ Centro Interdisciplinar de História, Culturas e
Sociedades da Universidade de Évora/ Centro de História da Cultura da Universidade
Nova de Lisboa, 2005, de João Luís Lisboa, Tiago C. P. dos Reis Miranda e Fernanda
Olival.
Não faltam os Dicionários franceses do séc. XIX que definem as nouvelles à la main –
chamemos-lhes as notícias de mão – como a forma da gazeta que precedeu a imprensa.
O impecável Littré não comete o erro. Mas o seu monumental Dicionário, tão rico e
convincente em abonações, não conforta com uma única a definição certa, que traz, da
expressão que nos ocupa. A situação mudou completamente com a elaboração e
conclusão de trabalhos como o de Françoise Weil em 1982, sobre o jornalismo do Antigo
Regime, e sobretudo com os de François Moureau, em 1982 e 1983, sobre a comunicação
manuscrita no séc. XVIII, publicado pela Fundação Voltaire, sob tutela da Universidade
de Oxford. As notícias de mão na Europa coexistem com as gazetas impressas, com as
relações especiais, com os jornais, durante longos anos dos séculos XVII e XVIII. Ora,
nada do que é europeu deixou de repetir-se em Portugal.
Daí, e neste campo, muitas notícias de mão portuguesa, de que já há exemplo na década
de 60 do séc. XVII. Daí, a colecção de Gazetas à beira da década de 30, e ao longo das
décadas 40 e 50 do século XVIII, reunida em 14 volumes, e conservada na Biblioteca de
Évora, que constitui, sem comparação possível, a mais longa sequência portuguesa
nesta modalidade.
Faltava, quando este género de literatura desperta atenções europeias... faltava passar a
colecção de Évora a letra de forma, em edição que a deixasse plenamente explorar, e
comprovasse a difusão do género.
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Entre os departamentos competentes da Universidade de Évora e da Universidade Nova
assinou-se um protocolo em vista deste objectivo. Os doutores João Luís Lisboa, Reis
Miranda e Fernanda Olival tiveram a coragem de meter mãos à obra. Saiu há dois anos o
primero volume da colecção, que teve a sorte e a honra de ser lançado pelo professor
Hespanha. Hoje cabe ao segundo a pouca sorte de ser apresentado por mim mesmo.
O primeiro abrangia cerca de 50 diários, desde Agosto de 1729 a Dezembro de 1731. O
ano mais representado era este último – 1731. O segundo volume é mais longo: abrange
100 diários, e traz apensa seis cartas familiares do quarto conde da Ericeira, mestre de
obra não declarado, ao conde de Unhão, seu primo, além de uma notícia genealógica
dos descendentes do marquês de Alegrete, Secretário da Academia Real da História, e
outra nota genealógica da Casa de Avintes. Os próprios Diários vão do primeiro de
Janeiro de 1732 a 23 de Março de 1734. Proponham-se ao programa adequado da
televisão: constituem a actualidade de há mais de dois séculos e meio. Vista de cima,
evidentemente, por fidalgos, e sobretudo por aquele grande fidalgo que, desde os seus
verdes anos, se empenhou no noticiarismo: comunicação nacional e internacional,
epistolografia, relações específicas, detecção e inventário das melhores bibliotecas,
intercâmbio académico e bibliográfico, novidades eruditas e literárias, estampas,
colecções de estampas – o que correspondesse em estampa ao melhor gosto europeu.
De tudo um pouco nos nossos 14 volumes. Crónica do que acontece, mas não de quem
reina. Não são diários de corte estas Gazetas de Évora, nem diários íntimos de quem as
redige, ou dirige a redacção. Nem é D. João V que aparece principalmente nas linhas e
entrelinhas: é o seu tempo. Não procuram, estas Gazetas à mão, como já se produzira no
século XVIII, as "monstruosidades do tempo e da fortuna"; antes registam, em
contribuição de cada dia, as novidades ou surpresas ou desastres da fortuna e do tempo.
Como vai a vida...
Não são notícias – que bem se compreenderiam no caso de Lisboa – do movimento de
navios, embora, página aqui, página ali, refiram que chegou a frota da Baía, a frota do
Rio, a frota de Pernambuco, a frota da Índia..., e digam das riquezas que vêm dentro,
muito ouro, pouco ouro...; a parte que compete ao Rei. A Lisboa deste tempo, sobre o
Tejo, é bem ainda a capital do império. Uma vez o cônsul de França admira-se: esta, sim,
é uma das naus mais ricas que têm chegado a salvamento. O filho do conde da Ericeira é
que deixou perder as riquezas e espécies raras que trazia da Índia. O Diário omitirá.
De fora do império, da Europa, também vem muita coisa rica, mas a pagar bem paga. Os
sinos de Mafra, por mais sonante exemplo. De França, muito luxo: vestidos – os de
homem também se chamam vestidos – ornamentos de salão, jóias, pratas, espadins
embutidos, doces ou receitas de doce (como se teriam conservado os doces no alto
mar?). Os objectos de ornamentação contribuem para o atractivo das recepções... O
Diário cala a chegada de livros, embora o Ericeira tivesse traduzido Boileau, tratasse
Boileau de seu ilustre amigo, conhecesse já o Ensaio sobre o poema épico, de Voltaire, que
entre nós faria correr muita tinta, pelo que escreve de Camões. Não. O Diário não é uma
gazeta literária.
Social?... Social de certo modo. Quase popular às vezes. No Hospital de Todos os Santos
organizam-se tômbolas, cujo proveito reverte para obras piedosas ou caritativas; mas
estão a atrair ali cada vez menos gente. O que não quer dizer que aquela espécie de
sorteio deixasse de interessar. Pelo contrário, em Setembro de 32 multiplica-se em
outros pontos de Lisboa. Em São João da Praça, por exemplo, ainda não autorizadas as
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rifas, já o público não falta: cada uma custa um vintém, mas os prémios são modestos:
caixas de prata e salvas, mas também púcaros, garfos, colheres...
Em geral o Diário paira muito mais alto. Dá nota dos casamentos luzidos, das festas, das
ceias, das merendas, das serenatas... A espécie de sorvete, a que chamam neve, é um
pitéu de preço. Aliás rareia, e às vezes vai buscar-se longe. Em Agosto de 34, em carta ao
primo, o Ericeira deixa passar uma censura ao rei: "Aqui se extinguiu a neve, e El-Rei,
com grande despesa, a mandou buscar só para si, vinte léguas dentro de Badajoz".
As serenatas são o fino do fino, mas sobretudo em vozes femininas. Não da rua para a
janela, nem de namorado a pretendida, como no D. João de Mozart. O fino do fino é fora
de portas, ao ar livre, sim, mas em recinto fechado. Por conjuntos orquestrais e vocais.
Entram e gorgeiam senhoras, que os prelados não gostam de ver actuar em comédias.
Em Fevereiro de 32, a marquesa de Fontes dá uma grande festa na sua quinta de
Alcântara, para se fazer admirar em uma serenata nova, ela e as filhas que também
cantam. Só Senhoras, foram 40. Às vezes estas serenatas dão lugar a concursos líricos.
Vinham de Itália, foram cantadas por profissionais: as cantarinas. Fazia-se apreciar,
queremos crer que numa espécie de "meio-mundo", certa Veneziana com crónica e
garganta.
Já as comédias cabem em casas particulares. Relativamente numerosas e cujos títulos
não constam dos repertórios de teatro em Portugal. Aliás, todas espanholas. Patente ao
público, o chamariz dos presépios. Em Dezembro de 1733 são excepcionalmente
concorridos, garante o Diário...
Os bailes, de que fala, todos de música cortesã, gozam de grande prestígio, e têm muitos
amadores. Então se ensaiam novos passos, inculcados como criação de Versalhes. A
Gazeta não discrimina quais. Assegura, em contrapartida, que a Casa das Músicas é
muito frequentada. Pelo contrário, e deploravelmente, o Pátio das Comédias atrai pouca
gente, e ameaça ruína. A vestimenta denota a opulência, e introduz o figurino da
Europa. No baptismo da filha do conde de Vimioso, as damas primaram pela
apresentação. O Diário garante: três das mais vistosas senhoras ostentavam as roupas
justas da nova moda de Paris.
Destas Gazetas tirou Jacqueline Montfort, pioneira, os elementos do seu precioso estudo
sobre a ópera joanina. A indexação dos volumes, que se vão publicando, facilitará o
trabalho de quem lhe seguir a pista.
D. Francisco, o da Casa do Infantado, como também o príncipe D. António, filhos do rei
precedente, preferem à música, aos bailes e às comédias, as artes venatórias. Os grandes
fidalgos oferecem-lhes correntemente porcos bravos para serem lançados nas
respectivas cercas, e mortos à compita. Mais original, o segundo Diário regista a
organização de um combate singular entre um porco especialmente bruto, e um touro
que não prometia menos. Arremeteu o porco, mas logo abandonou o combate.
D. António foi às perdizes na Tapada de Mafra, mas acertou sobretudo nos coelhos. Ele e
os seus próximos mataram 360. Não seria pecado, ali, nas terras sagradas do novo
mosteiro? Não, porque tanto os coelhos como as perdizes ficavam em casa santa para os
frades comerem.
Lisboa fidalga... Lisboa galante, não?... como viria a chamar-lhe outro seu cronista que
seria Fialho de Almeida? Um tanto. Com as suas aberrações... Um fidalgo de 63 anos
casa com uma linda menina de 12. Triste vida a do sexagenário, supomos. Há destas
galanterias... E também regista adultérios, crimes domésticos, crimes passionais... Farta
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do seu legítimo esposo, certa mulher de iniciativa tratou-lhe da saúde, e enterrou-o no
subsolo do seu leito conjugal. Depois dava largas com o amante aos seus amores
correspondidos. Um príncipe mouro rapta uma beleza lisboeta. Consentânea? Quem
sabe? Sabe-se que o príncipe fugiu com ela num navio francês. E vem a saber-se que,
doutro navio, que comunicou com o do raptor, novo galante surgiu, que cortou a cabeça
ao mouro sedutor. Ignora-se a quem foi parar a Lisboeta.
Lisboa insegura. Lisboa violenta. A morte aparece aqui muito integrada no quotidiano.
Morrer é uma banalidade que pode tornar-se sumptuosa. As cerimónias fúnebres,
muito cuidadas, reúnem a fidalguia e inspiram os epicédios. E acontece que se parta
subitamente, imprevistamente, de golpe mortal. Neste tempo de espada cinta, morre-se
muito à faca.
Um ex-corista da Patriarcal aparece morto com oito facadas. A mulher de Alexandre de
Sousa deu uma facada no seu cozinheiro, de que ele está morrendo. Às vezes o remorso
sucede à faca. Diário de 17 de Novembro de 1733: um homem matou outro à facada, com
premeditação; deu-lhe o remorso, e enforcou-se.
O redactor do Diário é prudente: "dizem que há mais de 40 culpados de agressão à
facada"... Prudente neste caso, aliás de interpretação incerta. Prudente por excepção...
De acordo com a regra: um amigo visita outro, que está de cama. Conversa amena. A
certa altura, o visitante diz uma graça que pica o doente. Por graça também, o doente
agarra numa faca, e pica o amigo. O primeiro engraçado morre logo da picada do
segundo.
Acidente. Outras mortes são mais planeadas. Certo vendedor de fazendas dera em
assassino de profissão. Ao medir a fazenda que vendia, accionava secretamente um
alçapão, por onde se sumia o freguês, que era logo enforcado. Mecanismo complicado, o
Diário não perde tempo a explicar minuciosamente... De resto, mata-se por dá cá aquela
palha. Ipsis verbis, em Abril de 1732: "Um homem matou outro em Lisboa, porque lhe
pediu meio tostão que lhe devia". Pedem-nos agora os impostos...
Morre-se muito, adoece-se muito. Na medicina prevalecem as sangrias. O cardeal da
Mota sofre de reumatismo que se agrava. Infligem-lhe seis sangrias. Num doente em
maus lençóis, pratica-se uma sangria jugular; o doente piora; procede-se a segunda
sangria; o doente morre.
Também há curas. Mas acontece duvidar-se: procedem dos remédios como a água de
Inglaterra, de sangria, ou de milagre? A certo doente, administrou-se a água de
Inglaterra; desencadeia-se em consequência uma furiosa diarreia. O doente morre.
Agora veja-se o caso dum grande fidalgo. O Marquês de Valença agoniza. Já se preparam
os funerais. O padre Luís Alves sabe da devoção do Marquês pela capa do padre José
Anchieta. Na Igreja de São Roque impõe as mãos à capa. Depois cozinha um caldo. O
moribundo ingurgita o caldo bento. Logo revive, esperto e saudável.
Lisboa devota; Lisboa das procissões; Lisboa dos autos de fé. Acontece que fiquem os de
Évora a perder de vista. Diário de 30 de Setembro de 1732:
"O auto de fé de Évora teve só 16 pessoas e duas judias" – repare-se bem: 16 pessoas e
duas judias –, além de outros penitentes por casarem três vezes. Figurou nele uma
feiticeira. A feiticeira confessou que adorava o Demónio, mas negou que o fizesse do
coração... Era assim, só carnalmente... O Diabo é a carne.
Em Lisboa, uma semana antes, a lista do auto de fé compreendia uma tal Negrinha que
desunia as famílias. Dela constava mesmo que tinha trato ilícito com o Demónio, de
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309
quem recebera um utilíssimo presente: uma fava mágica. Respondendo ao comando da
Negrinha, na sua linguagem impenetrável, a feculenta vagem produzia as doenças que
lhe encomendavam; e, em obediência a palavra diversa, curava dessa e doutras
imediatamente. O Demónio quisera casar a sua Negrinha dilecta com marido a gosto
dele, mas a Negrinha preferira continuar fiel ao Mafarrico.
Nesta menção inevitável aos autos de fé, admitir-se-ia que o noticiarista se demarca
algumas vezes do objecto da notícia. Por exemplo, ao registar que o povo aprecia tais
"funestos espectáculos". Funestos espectáculos, diz... Sucedia que, em penitência,
devessem percorrer as ruas públicas pecadoras do sexo feminino, a quem se infligia o
castigo dos açoites. Este género de acção pia assegurava um grande concurso de fiéis.
As procissões eram um dos encantos da cidade. Mas não deixavam de dar ocasião a
distúrbios. Na véspera da do Corpo de Deus, à noite, saíam às ruas do cortejo umas
máscaras, que atacavam quem lhes parecia melhor presa. Era costume. Aliás, fora
destas ocasiões sagradas, acontecia que se formassem ranchos em Lisboa, que eram
ligas de malfeitores. O segundo volume das Gazetas alude várias vezes ao do Chicelo.
Enfim, Lisboa ainda não tremeu. Regista este volume, a certa altura, que foi eleito
académico do número Sebastião José de Carvalho e Melo. Mas não pega na deixa, nem
havia de quê. De resto, estas Gazetas não são, nem por sombras, um diário académico.
Nesse género, imprimiam-se folhetos numerados com resumo de sessões, panegíricos,
inventários de biblioteca preciosos, elaborados aliás pelo conde da Ericeira.
Voltando ao publicado... Como nortear-se neste vasto oceano de informação? Os
editores remediaram a desordem, a falta de classificação, fornecendo um labor, para
cada volume das Gazetas, copiosíssimo e omnímodo. Para além do registo indispensável
das fontes, para além da bibliografia completa, manuscrita e impressa, da inclusão dos
recursos electrónicos, mediante uma indexação, a que nada falta – índice de
personagens nomeadas, índice geográfico, índice temático – juntaram a cada volume a
gazua, suspectível de abrir e facultar cada uma das infinitas figuras do puzzle. Como
vem registado desde a notícia da capa, em final deste segundo volume, ele completa e
ultrapassa o registo de informações, já antes conhecido, mas identificado como Diário
do conde da Ericeira. Do quarto conde. Pela largueza que a informação assume, Reis
Miranda considera que o Conde desempenhou longamente, e diríamos:
espontaneamente, por vocação particular, o papel de cronista informal do Reino.
Permitir-nos-íamos uma distinção: foi mais cronista do acontecido, que panegirista,
qualidade que lhe teria implicitamente imposto o encargo oficial. Cronista do tempo, de
cuja evolução teve a intuição, mesmo se não foi capaz de a enunciar; não cronista do
Rei.
Ao Conde, teve-o sempre o Rei entre os seus grandes, mas julgamos que hesitou em
fazê-lo maior, e, por sinal, não hesitou em fazer-lhe conhecer uma relativa desgraça
passageira, nem em castigar-lhe o filho que fora (e voltaria a ser) Vice-Rei das Índias.
Suavemente, é verdade, mas duravelmente...
Insistimos na indexação, como ela se apresenta. Das figuras, que permite reconstruir ou
descobrir, distinguiremos três, terminando, a propósito da última, com o muito citado
conde da Ericeira.
Primeira figura: o tristíssimo caso, cujas notícias sucessivas, na ordem do acontecido,
dominam as páginas deste volume, ou seja o processo e condenação de Isaac Eliot,
mestre cirurgião do Hospital de Todos os Santos, e talvez nomeadamente a cena da
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privação do hábito de Cristo, de que o penitente era titular, cena à qual é possível que o
próprio D. João V tenha pretendido assistir, mas de maneira que ele mesmo não
pudesse ser visto. O lamentável e macabro final deste processo ocorreu em Janeiro de
1733. Abrangido, portanto, no âmbito do volume.
Quanto aos outros dois casos escolhidos, as presentes notícias de mão não os resolvem.
Dão pistas, estimulam curiosidades, autorizam suposições... Duas achegas, portanto,
mas de respeito.
De Diário em Diário, o infante D. Manuel, irmão mais novo de D. João V, dá sinal de si.
Como se sabe, D. Manuel Bartolomeu escapou-se do Reino sem licença do Rei. O volume
segundo das Gazetas apanha-o sobretudo nas diligências que fez, ou encomendou, no
sentido de vir a beneficiar da coroa electiva da Polónia. Não conseguiu. Demorou-se por
outras capitais, fez simpatias e dívidas em França, regressou a Portugal.
Regresso, constante ainda deste segundo volume. D. João começou por ser magnânimo
com ele: "Ontem – noticia o Ericeira ao primo, em Novembro de 34 – ontem nomeou El-
Rei, para acompanharem o Infante – três gentishomens da Câmara com beneplácito
seu". Depois tudo viria a degradar-se. D. João V fixou uma quinta de Belas como
residência do irmão; a quinta de Belas começou por brilhar como uma segunda corte...
Enfim, o rei adoeceu e acabou por deixar este irmão à míngua. A ponto que veio de
França o padre Delaunay, que tinha sido leitor do Infante, a visitar o seu antigo senhor,
a pedir audiência ao Rei, e a obter edição em Lisboa de uma epístola a D. João V, em
verso alexandrino francês, na qual exproba ao ex-Magnânimo a desconfiança
relativamente ao príncipe, e censura ao próprio Rei a inacção que o faz continuamente
arrastar-se, alheio a tudo, e gemebundo, à l’ombre des autels. À sombra dos altares. Isto
não vem no segundo volume das Gazetas, mas o que vem para lá aponta.
As pessoas sofriam muito, ao tempo, de cataratas. O próprio Ericeira terminaria a sua
carreira terrestre, completamente cego, em 1743, último ano do terceiro período das
Gazetas de Évora. E então para concluir: a sua presença neste volume é dupla: como
uma espécie de chefe de equipa redactorial, e como protagonista de repetidos factos
ocorridos, ou implicado neles. Francisco Xavier de Meneses começou muito cedo, em
1720, ano da fundação da Academia Real, a sua epistolografia internacional pela
tentativa de um estabelecimento de intercâmbio regular com o padre Jean-Paul Bignon,
que fora redactor do célebre Journal des Savants; em 1718 Bignon foi nomeado
bibliotecário do Rei pelo Regente. O Ericeira não o perdeu mais de vista. Ou melhor de
escrita. O doutor Reis Miranda tem razão, como já dissemos. Francisco Xavier de
Meneses viria a desempenhar, sem o possuir, o cargo informal de cronista do Reino. A
consulta da correspondência Ericeira, arquivada na Biblioteca Nacional de França, é de
molde a deixar-nos crer que o Conde teria também aspirado a ver-se guindado à
dignidade de Bibliotecário Real de D. João V. O Bignon português, senão o director de
qualquer Jornal dos Sábios da nossa terra. Os seus inventários, estas Gazetas de Évora
deixam-nos admitir que tais promoções lhe assentassem como luva. Mas, como ele
escreve em carta constante do segundo volume das Gazetas, agora publicado: "estou
acostumado a não conseguir o que mais desejo".
O que mais desejo, destas notícias de mão, Gazetas, cartas familiares da biblioteca de
Évora, é que os empreendedores da publicação tenham em breve que designar o
apresentador competente do 14° volume. Deixando o Ericeira, os seus desgostos, a sua
ênfase, a colecção de Évora são as Minas-Gerais que, sem saber, nos fez legar D. João V:
as últimas minas por descobrir. Não oferecem apenas ouro, mas têm muito ouro. As
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311
notícias de mão eram – e este caso o demonstra – as mais próximas de uma
comunicação que não transmitia senão o registo do acontecido, ou do supostamente
acontecido, através de uma subjectividade decerto, de um ponto de vista classista, mas
puro de qualquer intenção diversa ou perversa, intrometida no intuito de comunicar.
Lisboa, 22 de Novembro de 2005
RESUMOS
Enquadradas no género das "nouvelles à la main" francesas, as gazetas manuscritas da Biblioteca
Pública de Evora são um enorme repositório de informação para a história do tempo de D. João V.
Nele se encontram notícias de toda a Europa, dos vários governos ultramarinos, do quotidiano
das ruas da corte e, sobretudo, da "primeira nobreza" do Reino. Estas são, assim, as últimas minas
de ouro para o conhecimento do "alvorecer do Iluminismo" em Portugal.
Fitting in the genre of the French "nouvelles à la main", the manuscript gazettes of the Évora
Public Library are an enormous set of references to the history of the times of King John V. We
may find there news from all around Europe, from the several overseas administrations, from the
daily life of the Court streets and, above all, from the high aristocracy of the kingdom. These are,
accordingly, the last gold mines to the knowledge of "the rise of Enlightenment" in Portugal.
ÍNDICE
Keywords: Gazetas, informação, séc. XVIII, D. João V, nobreza
AUTOR
ANTÓNIO COIMBRA MARTINS
Licenciado em Filologia Românica em Lisboa, leccionou nas Universidades de Montpellier, Aix-
Marseille, Paris e Lisboa. Foi director do Centro Cultural Português da Fundação Calouste
Gulbenkian em Paris. Foi embaixador de Portugal em Paris, Ministro da Cultura, deputado na
Assembleia da República e deputado no Parlamento Europeu pelo Partido Socialista.
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312
Manual de Edição das GazetasManuscritas da Biblioteca Pública deÉvoraEdition handbook of «Gazetas Manuscritas»
Tiago C. P. dos Reis Miranda, Fernanda Olival e João Luís Lisboa
325-361
01/12/2005
30/06/2018
A iniciativa de editar as gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora foi
formalmente acordada em Dezembro de 2001 entre o Centro de História da Cultura da
Universidade Nova de Lisboa e o Centro Interdisciplinar de História, Culturas e
Sociedades da Universidade de Évora (CIDEHUS). Desde então, os códices de folhetos
avulsos do intervalo de 1729 a 1734 deram origem a um par de volumes impressos,
seguindo-se agora o trabalho necessário à publicação dos restantes registos da década
de 1730. Repartem entre si as tarefas em curso os investigadores responsáveis pelo
projecto e dois licenciados na área de História, com pós-graduações em História
Cultural e Política e em Ciências Documentais.
Já nesta fase, o texto editado é um dos maiores e mais relevantes testemunhos
narrativos dos anos de governo de D. João V. Muitos dos elementos que nele se
descobrem dificilmente sobreviveram em outros suportes. E, em certa medida, a
própria existência de uma série contínua de "jornais manuscritos" para um período tão
recuado vem refrescar alguns dos aspectos do velho debate sobre o carácter da
"modernidade" e da "opinião pública" em Portugal no século XVIII.
Só por si, isso seria talvez o bastante para explicar a adopção, no trabalho proposto, de
regras de procedimento e de exigência que geralmente se associam à "edição crítica":
entre elas, o cotejo aturado das várias lições conhecidas, o inventário de trechos citados
na historiografia, a tentativa de elucidar passagens obscuras, o confronto com outros
testemunhos do mesmo período e a elaboração de instrumentos para recuperar com
eficácia a informação registada. Mas a partilha específica de um interesse crescente por
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313
temas de história da escrita e da leitura não deixaria também de implicar a necessidade
de assumir um conjunto de encargos mais volumoso que os da usual edição de "fontes
de história"; porque, sob esse enfoque, passam igualmente a ter importância todo o tipo
de indícios que possibilitem melhor entender o processo de elaboração, circulação e
recepção dos textos tratados. Existe portanto uma espécie de virtuosa coincidência
entre as respostas mais adequadas a um rol de problemas tão diferentes, como os
motivos das adesões pessoais ao projecto em questão.
O manual de princípios e normas que aqui se apresenta resulta do facto de se ter vindo
a tomar consciência da complexidade das operações definidas e executadas, nos últimos
anos, sem discordâncias metodológicas substantivas no seio do grupo. Não por acaso, as
dificuldades que desde o começo se foram sentindo de forma mais viva diziam respeito
à delegação de determinadas tarefas a auxiliares, e à explicação do tempo exigido para
as cumprir. Com o esforço que agora se faz, tem-se a esperança de que um próximo
aumento do número de colaboradores possa de facto trazer bons resultados. Espera-se,
ainda, proporcionar elementos para um controlo mais alargardo de todo o trabalho e o
efetivo exercício da crítica de especialistas a pontos concretos e bem definidos.
Este "caderno" assinala, de resto, uma maior coerência das opções adoptadas e um
ajuste bastante mais fino da relação de procedimentos operativos. Não se pretende,
porém, condicionar o contacto com o texto-matriz a uma estrutura que seja tão rija,
que o desrespeite ou que o deforme. Tal como até ao momento, permanece o desejo de
uma atitude de abertura a situações imprevistas. E um dos domínios em que elas
sucedem com mais recorrência é o que se encontra no fim da cadeia que aqui se
descreve: a indexação.
Desde o início, o processo de escolha de termos indexáveis efectuou-se directamente a
partir da leitura das transcrições, sem o auxílio de qualquer tipo de repertório pré-
existente, mas informado pela consulta de obras diversas sobre os princípios de
indexação bibliográfica e arquivística. Nos últimos meses, houve também o cuidado de
aprofundar o estudo das normas ISO sobre o trabalho de construção de tesauros
temáticos – que doravante se irá prosseguir.
Agradeço a José Carlos Sebe Bom Meihy, mestre e amigo de sempre, o interesse com que
interveio na iniciativa que me levou a apresentar um curso de pós-graduação intitulado
"Cultura política e gazetas manuscritas em Portugal no século XVIII" ao Departamento
de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. Agradeço,
igualmente, o acolhimento da Cátedra Jaime Cortesão, dos professores e colegas das
áreas de Ibérica e de Moderna, e dos alunos que me acompanharam nesses mais de dois
meses de longas conversas sobre os "jornais manuscritos" setecentistas e as operações
necessárias à sua edição. Mesmo a propósito, reli nessa altura e indiquei com prazer
trechos da prosa notável de Sérgio Buarque de Holanda, que, num artigo datado de
Julho de 1950, acentuava a ideia de que "a crítica interna, a crítica externa, toilette dos
documentos – tudo, enfim, quanto aprendemos em manuais clássicos – fazem parte da
erudição, e não verdadeiramente da história. Mas não se segue daí que devam ser
desprezados: o que importa é subordiná-los a uma visão ampla e alta" (in: Para uma nova
história, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 131). Com efeito, apesar
das mudanças que ultimamente se verificaram nas apetências dos historiadores e nos
instrumentos de seu campo de acção, nunca é demais referir que a coerência de método
e o rigor crítico são pressupostos fundamentais de todo o trabalho bem feito; não,
propriamente, fins em si mesmos.
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314
Na edição das gazetas, o espaço indicado para sublinhar a importância de determinados
indícios ou debater qualquer um dos temas que elas sugerem, é o das notas de pé de
página e o dos textos introdutórios. A mais concludente medida do interesse da
continuidade deste projecto – pelas ideias que venha a criar – são, no entanto, as
referências de outros leitores, e, em termos precisos, da comunidade académica.
Felizmente, os comentários vindos a público vão-se mostrando auspiciosos.
Renovo o meu muito obrigado aos funcionários das intituições em que encontrei boa
parte da bibliografia citada: a Biblioteca Nacional de Lisboa e a Biblioteca da Ajuda.
Cabe, além disso, registar outra vez o apoio constante das direcções dos centros de
estudos a que pertencem os membros da equipa, e o financiamento dos dois volumes já
publicados, pelo Instituto de Cultura Vasco Vill’Alva e a Direcção Regional de Cultura do
Alentejo.
Sumário
Abreviaturas utilizadas
Transcrição
Objectivos
Princípios gerais
Normas convencionadas
Textos de apresentação
Anotação
Objectivo
Princípios
Normas
Instrumentos bibliográficos de referência
Instrumentos de referência complementares
Indexação
Princípios
Critérios gerais
Índice de autores citados
Índice onomástico
Índice geográfico
Índice temático
Agregação de índices: problemas gerais
Revisão
Erros frequentes
Práticas de revisão
Apêndice: léxico temático
Bibliografia geral
História cultural e história cultural da escrita
Edição de textos e técnicas de paleografia
I.
I.
II.
I.
I.
Cultura, vol. 21 | 2005
315
Princípios de indexação
Nomes, títulos e formas de tratamento
Gazetas manuscritas
Abreviaturas utilizadas
Bibliotecas e Arquivos
ACL Academia das Ciências de Lisboa
BA Biblioteca da Ajuda
BGUC Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
BN Biblioteca Nacional, Lisboa
BPE Biblioteca Pública de Évora
BPMP Biblioteca Pública Municipal do Porto
IAN/TT Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo
HML Hemeroteca Municipal de Lisboa
Outras Abreviaturas
Cf. Conforme
Cód. Códice
Cop. Cópia
Cx. Caixa
Dir. Direcção
Ed. Edição / Edições
fl. Fólio(s)
Mº Maço
n [n] Nota
p./ pp. Página / Páginas
Org./ Orgs. Organização / Organizador / Organizadores
Orig. Original
Rev. Revista
Sel. Selecção
Sep. Separata
Reg. Registo
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316
T. Tomo
Trad. Tradução
Ttº Título
V. Ver
[n]v Verso
Vol./ Vols. Volume / Volumes
Transcrição
Objectivos
Editar o conjunto de códices factícios de "gazetas manuscritas" da Biblioteca Pública de
Évora, para o poder divulgar, simultaneamente, no meio académico e num círculo mais
alargado de leitores com interesse por temas de história e da literatura.
Completar, na medida do possível, a série de Évora, recorrendo às lições existentes em
outros arquivos.1
Princípios gerais
Adoptar soluções de compromisso entre o respeito pelas normas gerais de transcrição e
publicação de textos medievais e modernos, e o uso intensivo de sinais normativos ou
referentes a incoerências formais do(s) redactor(es) dos folhetos.
Manter e reproduzir os critérios de disposição dos folhetos nos códices factícios, salvo no
caso de quebras de texto.
Considerar em aberto a fixação do texto, até ao fim do processo de elaboração do aparato
crítico de cada volume.
Normas convencionadas
Mantêm-se a ortografia e a pontuação do original, incluindo as marcas que possam ter
resultado de pausas de pena.
Introduz-se o ponto parágrafo quando ele não existe, ou quando ele assume a forma de
vírgula.
Actualiza-se o uso de maiúsculas e de minúsculas, quer no interior, quer no início das
palavras.
"U" com valor de "v" transcreve-se sempre como "v".
Desenvolvem-se as abreviaturas, com base na grafia mais comum no manuscrito e sem
assinalar no texto o respectivo desenvolvimento.
Ao pré-nome "Dom", aos tratamentos "Senhor" e "Senhora", "Padre" e "Frei", e aos
adjectivos "Santo", "São" e Santa", quando abreviados, acrescenta-se um ponto, sempre que
ele não exista no manuscrito.
Texto interpolado assinala-se entre barras invertidas (\ /).
Palavras riscadas registam-se em notas.
Trechos de lições de outras séries são grafados em itálico.
Os números dos fólios transcrevem-se entre barras (/fl. n/).
1.
2.
1.
2.
3.
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
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317
Suprimem-se as chamadas de fim de fólio (reclamos) que de facto se desdobrem nos fólios
seguintes.
Desde que identificadas com segurança, assinalam-se à margem, em letras maiúsculas, as
alterações caligráficas que denunciem diferentes copistas.
Todas as outras intervenções editoriais no corpo do texto são assinaladas entre parênteses
rectos ou descritas em notas. Ex.: Os Trinos estavão em tres parçi[a]lidades [...].
II. Textos de apresentação
Cada volume da série editada deve conter uma nota introdutória e um estudo temático.
Incluem-se na primeira:
a cota completa do códice-base.
suas datas extremas.
uma breve descrição material.
referências aos temas mais recorrentes.
a relação de outras lições eventualmente também consultadas.
o conjunto de normas de transcrição.
Os estudos temáticos podem versar de forma mais exaustiva sobre alguns destes pontos
ou abordar problemas diversos; como, por exemplo:
o tipo de papel utilizado, a estrutura dos jogos de cadernos, o número de fólios e a
encadernação.
os ornamentos ou marcas internas (cabeçalhos, capitulares, traços divisórios, marcas de
termo, desenhos, colagens, chancelas e impressões).
as diferentes caligrafias.
a questão da autoria.
a circulação.
as práticas de leitura.
os personagens e os enredos tratados.
as relações existentes com outros suportes de informação.
Anotação
Objectivo
Disponibilizar informações, comentários ou esclarecimentos que enriqueçam a leitura
do texto transcrito e permitam cumprir os critérios de indexação.
Princípios
Indicar as falhas de observância do critério de organização cronológica dos folhetos nos
códices factícios, explicitando ao leitor a ordem correcta.
Assinalar variantes de outras lições conhecidas.
Apontar testemunhos distintos ou discrepantes, sobretudo de documentos afins.
Registar anteriores referências da historiografia aos próprios manuscritos dos códices
factícios ou às versões entretanto editadas.
Esclarecer passagens obscuras e termos caídos em desuso.
11.
12.
13.
1.
2.
3.
4.
5.
6.
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
1.
2.
3.
4.
5.
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318
Destacar a eventual relevância das informações veiculadas.
Explicitar elementos colhidos em outras fontes para cumprir os critérios de indexação.
Procurar ser conciso.
Normas
As chamadas das notas no corpo do texto inserem-se logo depois da "unidade integral de
significação" que se quer comentar.
Entende-se por "unidade integral de significação" todo o conjunto sequencial de
vocábulos e/ou de sinais a que a nota expressamente se refere.
Ex.: [corpo do texto] 50 mil cruzados696.
[nota]696 No DCE, "57 mil cruzados".
[corpo do texto] Que alguns deputados esperarão Valpole que paça pello primeiro
ministro65, e o descompuzerão, e maltratarão [...].
[nota]65 Sir Robert Walpole, chefe do governo britânico.
No confronto com outras lições, não se mencionam pequenas variantes de ortografia ou de
abertura de parágrafos, excepto no caso de eventualmente modificarem o sentido do texto.
Outras lições dos mesmos folhetos e fontes diversas, mas similares, são indicadas por siglas.
Ex.: G – "Addição à Gazeta" (mss. da BPE).
DCE – Diário do Conde da Ericeira.
DCEi – "Diário do Conde da Ericeira" (ed. de Eduardo Brasão).
DCEm – "Diario do Conde da Ericeira" (mss. da BA).
Dp – "Diario" da Colecção Pombalina (mss. da BN).
NL – "Novidades de Lisboa" (mss. da BN).
VN – "Varias Notícias" (mss. da BGUC).
Todos os restantes testemunhos manuscritos referem-se na forma: "título" ou descrição,
local, data (na forma d.m.aaaa), sigla do arquivo ou biblioteca, fundo ou colecção, cota
numérica, fólio(s) ou página(s), Original [Orig.]/ Cópia [Cop.]/ Registo [Reg.].
Ex.: Decreto Régio, Lisboa, 29.1.1732, IAN/TT, Casa de Galveias, M° 34, Pasta "Antonio de
Campos [...] IV", Cop.
As obras impressas referem-se na forma: APELIDO DO AUTOR, aaaa: tomo(s) e/ou volume(s),
fólio(s)/ página(s)/ coluna(s).
Ex.: VARNHAGEN, 1981:2, IV, 104-106.
CUNHA, [1992]: 132, 297 e 477.
a. Quando o(s) autor(es) não é(são) mencionado(s), começa-se a referência pelo título.
Ex.: Lisboa no tempo de D. João V (1689-1750), [1994]: 21.
b. Obras muito volumosas e/ou de difícil utilização tornam aconselháveis referências
relativamente pormenorizadas (entre parânteses) a partes, títulos, capítulos e/ou
parágrafos.
Ex.: GAYO, 1989-1990: IV, 152 (Tt.° de Cunhas, § 5), e VII (Tt.° dos Mendanhas ou
Abemdanhas, § 53).
6.
7.
8.
1.
1.
2.
1.
1.
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Instrumentos bibliográficos de referência
1. Periódicos impressos, do mesmo período:
a. Gazeta de Lisboa (ACL, BA, BGUC, BN, IAN/TT, HML).
b. Gazette d’Amsterdam (BGUC – colecção incompleta).
c. Gazette de France (BA).
d. Gazette de Utrecht (BGUC – colecção incompleta).
e. London Magazine (BGUC, BPMP).
f. Mercurio Historico, y Politico (BN – de 1738 em diante).
2. Para problemas de vocabulário e/ou etimologia:
a. BLUTEAU, D. Fr. Raphael de, 1713-1728, Vocabulario Portuguez e Latino, 10 Vols.,
Coimbra, No Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu e outros (edição em CD-ROM
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ).
b. HOUAISS, António, 2001, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro,
Objetiva Ltda. (edição em CD-Rom com tábuas de datação de palavras).
c. SILVA, Morais e, 1949-1959, Grande dicionário da língua portuguesa, 10ª ed. rev., 12 Vols.,
Lisboa, Editorial Confluência.
d. Prontuários da língua portuguesa.
3. Para a identificação de obras portuguesas impressas e manuscritas:
a. MACHADO, Diogo Barbosa, 1965-1967, Bibliotheca Lusitana, fac-símile da ed. de
1741-1759, 4 Vols., Coimbra, Atlântida Editora (edição em CD-ROM da Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – CNCDP).
b. SILVA, Innocencio Francisco da, 1858-1923, Diccionario Bibliographico Portuguez, 23
Vols. Lisboa, Imprensa Nacional (edição em CD-ROM da CNCDP).
4. Para a identificação de personagens reais e nobres europeus:
a. DEBOIS, Alex, 1770-1786, Dictionnaire de la noblesse, Paris, Chez La Veuve Duchesne.
LOUDA, Jiři, e MACLAGAN, Michael, 1985, Les Dynasties d’Europe. Héraldique et généalogie
des familles impériales et royales, Trad. de Gérard Colson, Paris, Borda.
c. Biografias de reis e Secretários de Estado.
5. Para a identificação de personagens portugueses de estirpe fidalga.
a. CANEDO, Fernando de Castro da Silva, 1945-1946, A descendência portuguesa de el-rei D.
João II, 3 Vols., Lisboa, Edições Gama.
b. FREIRE, Anselmo José Braamcamp, [1996], Brasões da Sala de Sintra, fac-símile da ed.
de 1973, 3 Vols., Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda.
c. GAYO, Manuel José da Costa Felgueiras,1989-1990, Nobiliário de famílias de Portugal,
reimp. da ed. de 1938-42, 12 Vols., Braga, Edições de Carvalho de Basto.
d. SOUSA, D. António Caetano de, 1933, Memórias históricas e genealógicas dos Grandes
de Portugal, 4a ed., Lisboa, Publicações do Arquivo Histórico de Portugal, e 1946-1955,
Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, fac-símile da ed. de 1735-1748, 14 Vols.,
Coimbra, Atlântida – Livraria Editora, L.da.
e. ZÚQUETE, Afonso Duarte Martins (dir.), [2000], Nobreza de Portugal e do Brasil, 3ª ed., 3
Vols., Lisboa, Zairol.
f. Grande Encilopédia Portuguesa e Brasileira.
Cultura, vol. 21 | 2005
320
Em caso de dúvida, observar a ordem a., b., d., c., e., f.
6. Para a identificação de eclesiásticos, conventos e mosteiros portugueses:
a. ALMEIDA, Fortunato de, 1967-1971, História da Igreja em Portugal, ed. de Damião
Peres, 4 Vols., Porto / Lisboa, Livraria Civilização – Editora.
b. AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.), 2000, Dicionário de História da Igreja, 4 Vols., Lisboa,
Círculo de Leitores, e 2000-2002, História Religiosa de Portugal, 3 Vols., Lisboa, Círculo
de Leitores.
c. BRASÃO, Eduardo, 1943, Subsídios para a história do Patriarcado de Lisboa, Porto,
Livraria Civilização (sobretudo as listagens das pp. 149 e 244-247).
d. Crónicas coevas, das ordens regulares.
7. Para a toponímia de Portugal:
a. CARDOSO, Luiz, 1747-1751, Dicionario geografico, 2 Vols., Lisboa, Na Regia Officina
Sylviana e da Academia Real.
b. COSTA, Américo, 1929-1949, Diccionario Chorographico de Portugal Continental e Insular,
12 Vols., Porto, Tip. Domingos d’Oliveira;
c. COSTA, Padre António Carvalho da, 1707-1712, Corografia Portugueza, 3 Vols., Lisboa,
Na Officina de Valentim da Costa Deslandes (edição em CD-Rom da CNCDP).
d. HENRIQUES, Francisco da Fonseca, 1998, Aquilégio medicinal, fac-símile da ed. de 1726,
Lisboa, Instituto Geográfico e Mineiro.
e. LEAL, Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de Pinho, 1873-1890, Portugal Antigo e
Moderno, 12 Vols., Lisboa, Livraria Editora de Mattos Moreyra & Companhia e outros.
f. Atlas geográficos e atlas históricos de Portugal.
8. Para a toponímia de Lisboa e seu termo:
a. ANDRADE, Ferreira de, 1944-1945, A freguesia de S. Cristóvão, 2 Vols., Lisboa,
Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa; 1948-1949, A freguesia de Santiago,
2 Vols., Lisboa, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, e 1954, A freguesia
de Santa Cruz de Alcáçova de Lisboa, Lisboa, Publicações Culturais da Câmara Municipal de
Lisboa.
b. ARAÚJO, Norberto de, 1938-1939, Peregrinações em Lisboa, 3 Vols., Lisboa, Parceria A.
M. Pereira.
c. BRITO, J. J. Gomes de, 1935, Ruas de Lisboa: notas para a história das vias públicas
lisbonenses, 3 Vols., Lisboa, Livaria Sá da Costa Editora.
d. CASTILHO, Júlio de, 1935-1938, Lisboa Antiga. Bairros Orientais, Lisboa, 2ª ed. rev., 12
Vols., Lisboa, S. Industriais da C.M.L.; 1948-1968, Ribeira de Lisboa, 3ª ed. rev., 5 Vols.,
Lisboa, Câmara Municipal, e 1954-1956, Lisboa Antiga. Bairro Alto, 3ª ed. rev., 5 Vols.,
Lisboa, Oficinas Graficas da C.M.L.
e. Lisboa antes do Terramoto. Grande vista da cidade entre 1700 & 1725, 2004, Introdução de
Paulo Henriques, [Oeiras] / Paris, Gótica / Chandeigne.
f. MACEDO, Luís Pastor de, 1939-1968, Lisboa de lés-a-lés. Subsídios para a história das vias
públicas da cidade, 5 Vols., Lisboa, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa.
g. MATOS, José Sarmento de, e PAULO, Jorge Ferreira, 1999, Caminhos do Oriente (Guia
Histórico I), Lisboa, Livros Horizonte.
h. PORTUGAL, Fernando, e MATOS, Alfredo de, 1974, Lisboa em 1758, Lisboa, Publicações
Culturais da Câmara Municipal de Lisboa.
Cultura, vol. 21 | 2005
321
i. OLIVEIRA, Eduardo Freire de, 1882-1911, Elementos para a história do Município de Lisboa,
17 Vols., Lisboa, Typographia Universal (os índices, em 2 Vols., são datados de
1942-1943).
j. SANTANA, Francisco de, 1974, Índice da Lisboa Antiga e da Ribeira de Lisboa de Júlio de
Castilho e Lisboa na 2.a metade do séc. XVIII, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, e 1987,
Lisboa na 2a metade do séc. XVIII (plantas e descrições das suas freguesias), Lisboa, Edição da
Câmara Municipal de Lisboa.
k. SANTANA, Francisco de, e SUCENA, Eduardo (dir.), 1994, Dicionário da história de
Lisboa, Lisboa, Carlos Quintas & Associados – Consultores, Lda.
l. SEQUEIRA, Gustavo de Matos, 1939-1967, O Carmo e a Trindade, 2ª ed., 3 Vols., Lisboa,
Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, e 1967, Depois do Terramoto.
Subsídios para a história dos bairros ocidentais de Lisboa, 4 Vols., Lisboa, Academia das
Ciências de Lisboa.
m. SILVA, Augusto Vieira da, 1954-1960, Dispersos, Lisboa, Publicações Culturais da
Câmara Municipal de Lisboa; 1987, A cerca .fernandina de Lisboa, 2ª ed., 2 Vols., Lisboa,
Publicações da Câmara Municipal de Lisboa; 1987a, A cêrca moura de Lisboa, 3ª ed., Lisboa,
Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa; 1987b, As muralhas da Ribeira de
Lisboa, 3ª ed., 2 Vols., Lisboa, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa.
n. "Guias Contexto" das freguesias da cidade.
Instrumentos de referência complementares
1. Manuscritos para a identificação de personagens.
Como guia de investigação:
DINIZ-SILVA, Andrée Mansuy, 1979, "Une voie de connaissance pour l’histoire de la société
portugaise au XVIIIe siècle: les micro-biographies (Sources – Méthode – Étude des cas)", Clio,
Vol. I, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, pp. 21-65.
a. Núcleos centrais:
Chancelarias Régias e Registo Geral de Mercês do IAN/TT.
b. Para a identificação de letrados portugueses:
Leitura de Bacharéis do IAN/TT.
"Memorial de Ministros" do Fundo Geral da BN (Cód. 1073-1079 [F 2177, 1238, 1237, 1239,
2176, 2175 e 1240]).
2. Recursos electrónicos:
a. Para a identificação de obras impressas:
Banco de dados PORBASE (<http://www.bn.pt>).
Biblioteca Nacional de Espana (<http://www.bne.es>).
Bibliothèque Nationale de France (<http://www.bnf.fr>).
British Library (<http://www.bl.uk>).
Fundação Biblioteca Nacional (<http://www.bn.br/Script/index. asp>).
The Library of Congress (<http://www.loc.gov>).
b. Sobre temas britânicos:
The British Academy: Early Modern History to c. 1800 (<http://www.britac.ac.uk/portal/
bysection.asp?section=H9>).
•
•
•
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•
•
•
•
•
•
•
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322
Office-Holders in Modern Britain, Institute of Historical Research (<http://www.history.ac.uk/
office/>).
c. Para a identificação de cardeais:
The Cardinals of the Holy Roman Church, Florida International University (<http://www.fiu.edut/
~mirandas/cardinals.htm>).
d. Para questões de genealogia portuguesa:
Genea Portugal (<http://genealogia.sapo.pt/home/>).
e. Cartografia da Europa:
History and geography of Europe: maps and atlases (<http://www.euratlas.com> e <http://
www.euratlas.com/atlastor. htm>).
Indexação
Princípios
Informada pelas Normas Internacionais ISO 2788 (1974) e 5963 (1985) e pelas Normas
Portuguesas (NP) 3715 (1989) e 4036 (1992).2
Tendencialmente exaustiva, intensiva e relativamente específica.3
Critérios gerais
Emprego de maiúsculas: na abertura de linhas, frases e parênteses.
Emprego de minúsculas: depois de vírgulas, barras e dois-pontos.
Grafia: actualiza-se e uniformiza-se.
Ex.: Luiz Montez Matozo Luís Montês Matoso.
No caso de nomes estrangeiros pouco usuais em Português, adopta-se a forma correcta
original.
Ex.: Artur Start Artur Stert. Piziguitone Pizzighettone.
Nomes de instituições, substantivos comuns, alcunhas e qualificativos em línguas
estrangeiras grafam-se em itálico.
Ex.: Luís, Le Grand Dauphin, 172.
ACADEMIAS [...]. Royal Society, 37.
MÚSICA [...]. Ópera [...]. Castrati, 274.
4. Números de páginas das ocorrências: dispõem-se em ordem crescente, separados por
vírgulas, com um ponto no fim.
Ex.: Índias, 59, 272, 289, 297, 303.
a. As ocorrências singulares que se prolongam por duas ou mais páginas consecutivas
compõem-se de números separados por hífens.
Ex.: FEITIÇARIAS, [...] 230, 233-234, 239 [...].
5. Ordenação: alfabética estrita.
a. São relevantes as conjunções e as preposições.
Ex.: Afonso dos Prazeres [...].
Afonso Manuel de Meneses [...].
6. Remissões:
•
•
•
•
1.
2.
1.
2.
3.
a.
a.
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323
a. Se associadas a termos que servem somente como indicadores, são antecedidas por
vírgulas e pela forma abreviada de "ver": "v.".
b. Quando encaminham para entradas afins, dispõem-se entre parênteses no fim das
listagens das ocorrências temáticas, com a palavra "também": "(V. também [...])".
7. Dúvidas de leitura ou de identificação assinalam-se com um ponto de interrogação
entre parênteses rectos.
Ex.: Alpejata [?].
Lapua [?].
8. Acrescentos e/ou deduções resultantes do trabalho com volumes anteriores e/ou do
manuseio de fontes complementares não citadas nas notas, figuram igualmente entre
parênteses rectos.
Ex.:
[Vol. 1] [Vol. 2]
Pedro da Cunha de Mendonça, 113 Pedro da Cunha [de Mendonça], 72
Índice de autores citados
Universo: autores, organizadores e tradutores de obras citadas, académicos e/ou
funcionários de arquivos ou bibliotecas, se referidos como autoridades.
Disposição: pelo último apelido, grafado em maiúsculas.
Ex.: OLIVEIRA, Eduardo Freire de.
CASTELO BRANCO, Camilo [apelido composto].
a. Nos autores de língua espanhola, destacam-se os dois últimos apelidos.
Ex.: MARTÍNEZ SHAW, Carlos.
Os tratamentos "Dom" ou "Dona" e as denominações eclesiásticas como "Padre", "Frei" e/ou
"Mestre" são antecedidos por vírgula e dispostos por extenso logo a seguir ao conjunto dos
nomes.
Ex.: MENESES, Francisco Xavier de, Dom.
Os títulos de nobreza reservam-se para entradas remissivas.
Ex.: ERICEIRA, 4.° Conde da, v. MENESES, Francisco Xavier de, Dom.
Autores diferentes, com nomes iguais, são entre si distinguidos pelas datas dos trabalhos
citados, dispostas entre parênteses rectos.
Ex.: AZEVEDO, Pedro de, [1925], 167, 346.
AZEVEDO, Pedro de, [2004], 14, 356.
Em caso de dúvida quanto à grafia dos nomes de autores portugueses, segue-se a forma
adoptada na PORBASE.
Índice onomástico
1. Universo: todos os antropónimos que não pertençam ao Índice de autores.
1.
2.
1.
1.
1.
1.
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324
2. Disposição: linear, pelos nomes próprios.
Ex.: António de Sousa de Macedo.
3. Títulos de nobreza e títulos reais: dispõem-se logo a seguir aos nomes próprios,
separados por vírgula.
Ex.: Frederico Augusto II, Duque de Saxónia [...].
Números de ordem dos títulos de nobreza: obrigatórios no caso de títulos portugueses, e
referidos na forma "n°".
Sempre que exista mais do que um título por ocorrência, figura primeiro o mais antigo.
Ex.: Ferrão Teles da Silvas, 3° Conde de Vilar Maior e 2° Marquês de Alegrete.
c. Títulos de nobreza de personagens femininas dispensam números de ordem.
4. Os tratamentos "Dom" ou "Dona", os adjectivos "Santo" ou "Santa" e as
denominações eclesiásticas como "Padre" e "Frei" devem ser dispostos no fim, e por
extenso, antes de vírgula.
Ex: Vasco Luís da Gama, 7° Conde da Vidigueira e 3° Marquês de Niza, Dom.
a. Desenvolve-se a forma sincopada "São".
Ex.: Francisco Xavier, Santo.
5. Títulos de reis ou de nobreza e tratamentos só aplicáveis a parte das ocorrências são
referidos no fim, antecedidos por ponto-e-vírgula.
Ex.: Sebastião José de Carvalho e Melo, 32, 189, 286; 1° Conde de Oeiras e 1° Marquês de
Pombal [...].
Vincenzo Bichi, Cardeal, 156; Monsenhor, 167.
Nomes próprios e apelidos pouco frequentes ou não usados no documento transcrito, mas
eventualmente constantes em obras de apoio, podem ser incluídos entre parêntese rectos.
Ex.: Aires de Saldanha [de Albuquerque Coutinho e Noronha].
Dispensa-se o uso de parênteses rectos caso esses nomes figurem em notas de rodapé ou em
anexos explicativos.
Homónimos perfeitos distinguem-se, de preferência, pelos nomes dos pais.
Ex.: Madalena de Bourbon, Dona, filha de Fernão Mascarenhas, 336.
Madalena de Bourbon, Dona, filha do 2° Conde de Avintes, 339, 340.
a. Sendo impossível determinar a identidade de um dos homónimos, apenas se deixa o
seu nome em separado:
Ex.: José Mascarenhas, Dom, 157.
José Mascarenhas, Dom, filho do 3° Conde de Óbidos, 335.
José Mascarenhas, Dom, filho do 3° Marquês de Gouveia, 271.
Personagens citados somente pelo seu nome próprio, identificam-se, quando possível:
1°. pelo nome do pai.
Ex.: Josefa, Dona, filha de Paulo Nogueira de Andrade, 195.
2°. pelo mais próximo laço de parentesco determinado, ou
3°. Pelo cargo, posto ou ocupação referido nas gazetas.
Ex.: Jorge, Dom, capitão de cavalos, 212.
Personagens sobretudo conhecidos pelos seus sobrenomes, e por eles normalmente
mencionadas, têm-nos escritos em letras maiúsculas.
a.
b.
1.
a.
1.
1.
1.
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325
a. Após uma vírgula, podem-se ainda acrescentar informações adicionais que facilitem a
identificação, de acordo com os critérios referidos no ponto anterior.
Ex.: MONRAVÁ, médico.
Alcunhas ou cognomes dão origem a entradas independentes, devendo grafar-se da mesma
forma que os nomes próprios.
Ex.: O Perna de Pau.
Nestes dois últimos casos, é desejável criar remissões para os nomes próprios dos
personagens citados.
Ex.: MONRAVÁ, médico, v. António de Monravá y Roca, Dom.
O Perna de Pau, v. Luís de Abreu, O Perna de Pau.
As ocorrências que se refiram a personagens com títulos nobiliárquicos são remetidas para o
índice temático.
Ex.: Simão Correia da Silva, 6° Conde de Castanheira, v. TITULARES. Condes.
João V, Rei, Dom, v. REI E FAMÍLIA REAL DE PORTUGAL.
São pertinentes e desejáveis entradas que registem formas nominais mais comuns no corpo
da obra, mas diferentes das consagradas em outras fontes.
Ex.: Pedro de Melo, Dom, v. Pedro [José] de Melo [Homem], Dom.
a. A relação das ocorrências segue-se sempre, em exclusivo, ao nome mais completo.
Ex.: Pedro [José] de Melo [Homem], Dom, 57, 87, 130, 165, 173, 205, 230, 241, 257, 301,
342.
Salvo nos casos acima descritos, são de evitar todas as outras formas de identificação
complementar.
Ex.: Manuel de Azevedo Fortes, engenheiro, 34, 78, 257.
Índice geográfico
1. Universo: todos os topónimos não excluídos nos pontos 5 e 6, infra.
2. Disposição: pelos nomes das entidades geográficas.
Ex.: Açores.
Rio de Janeiro.
a. No caso das entidades geográficas não jurisdicionais, os termos genéricos figuram
depois de vírgulas.
Ex.: Príncipe, Ilha do.
Vístula, Rio.
3. Grafias múltiplas: quando existentes, assinalam-se.
Ex.: Dantzig ou Danzig.
Liorne ou Livorno.
a. Sendo muito diversas, criam-se entradas com remissão para os registos mais usuais.
Ex.: El-Araïch, v. Larache.
Gdansk, v. Dantig ou Danzig.
4. Topónimos pouco comuns e/ou que levantem dificuldades (como, por exemplo, por
homonomia) podem ser acrescidos de informações complementares:
1.
1.
1.
1.
1.
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326
a. simplesmente entre vírgulas.
Ex.: Valença, Espanha.
entre parênteses curvos, no caso de serem fórmulas opcionais.
Ex.: Baiona (de França).
Rua do(s) Moinho(s) de Vento.
entre parênteses rectos, no caso previsto no ponto 8 dos Critérios Gerais.
Ex.: Cabeça de Montachique, [Fanhões].
5. Herdades, morgadios, senhorios, bem como imóveis rurais e urbanos vão geralmente
lançados no índice temático.
6. Alusões específicas a mosteiros e conventos, igrejas e santuários, oratórios e ermidas,
irmandades e confrarias vão lançadas no índice temático, como sub-temas. Somente se
lançam no geográfico as ocorrências em que esses nomes sejam tomados de modo geral,
por espaços urbanos, ou quando haja dúvidas a esse respeito.
Ex. de referências gerais:
"[...] jâ se lhe mandarão tomar cazas para morár, e são as de D. Sancho de Faro à S.
Francisco [...]" [Vol. 2, p. 140, n. 396].
"[...] El Rey asestio em S. Domingos, Relação, e no Campo da Forca thé se acabár a
execução [...]" [Vol. 2, p. 116, n. 318].
Assumem-se por limites do termo de Lisboa os das "Memorias Paroquiais" de 1758.
Referências a bairros, freguesias, lugares, sítios, ruas e largos de Lisboa e seu termo são
agrupadas alfabeticamente num parágrafo único, como sub-temas, logo depois das
ocorrências de cunho geral.
Índice temático
1. Universo: matérias escolhidas pela frequência com que aparecem na fonte editada e
eventualmente também pela importância que assumem na historiografia.4
a. A abertura de novos temas e sub-temas deve ser avaliada em conjunto, por todos os
investigadores participantes no projecto, segundo os pressupostos dos trabalhos com
léxicos controlados.
2. Grafia e disposição:
a. temas: grafados em maiúsculas.
b. sub-temas: dispostos em parágrafos contínuos, logo a seguir às ocorrências gerais de
cada tema – à semelhança do já definido no número 6 do índice geográfico.
c. casos ou divisões de sub-temas: dispostos logo a seguir às ocorrências gerais de cada
sub-tema, após um sinal de dois-pontos e separados entre si por ponto-e-vírgula.
Ex.: TITULARES [...] Marquesas: Alegrete, 140; Arronches, 38, 39, 49 [...].
aspas: utilizadas na reprodução de palavras de identificação duvidosa ou de expressões ou
formas verbais dificilmente adaptáveis às regras adiante definidas.
Ex.: "Laasdiz" ou "leesdiz".
"Tomar aço".
e. parênteses curvos: no caso de fórmulas opcionais (como no ponto 4.b. do índice
geográfico) ou havendo interesse de esclarecer o significado de alguns termos.
a.
a.
1.
2.
a.
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327
3. Termos temáticos: nomes ou substantivos preferencialmente simples, empregues nas
gazetas, e grafados no plural.
Ex.: ACADEMIAS.
ALIMENTOS (DIREITO A).
ÁRABES.
Não se utiliza a forma plural no caso de noções abstractas (fenómenos, propriedades,
actividades, disciplinas e crenças), entidades concretas não contáveis e nomes que designem
personagens singulares.
Ex.: CANELA.
COMÉRCIO.
MEDICINA. Anatomia. Cirurgia.
PRÚSSIA. Princesa. Príncipe. Rei.
Sempre que possível, matérias que surjam referidas no texto exclusivamente sob formas
verbais devem dar origem a termos substantivos.
Ex.: Naturalizar/ Naturalizado > NATURALIZAÇÕES.
Acções contrárias originam temas distintos.
Ex.: Desnaturalizar > DESNATURALIZAÇÕES.
Naturalizar > NATURALIZAÇÕES.
4. Quando necessário, admite-se o recurso a termos temáticos formados pela junção de
núcleos substantivos com modificadores simples ou compostos.
Ex.: MISSÕES DIPLOMÁTICAS ESTRANGEIRAS.
MISSÕES DIPLOMÁTICAS PORTUGUESAS.
MISSÕES RELIGIOSAS.
a. Sendo possível escolher entre uma forma adjectiva e uma forma prepositiva, sem
prejuízo da exactidão requerida, deve-se preferir a primeira.
5. Admite-se o uso de termos temáticos resultantes da coordenação de conceitos de um
mesmo domínio semântico.
a. Conceitos equivalentes ou similares: coordenados por barras ou conjunções.
Ex.: CEREAIS/ PÃO.
DUELOS E DESAFIOS.
RENDAS OU RENDIMENTOS.
b. Conceitos agrupáveis sob um único termo genérico – simples ou composto – mas
eventualmente menos exacto, menos expressivo ou não empregue nas próprias gazetas:
coordenados por vírgulas e conjunções aditivas.
Ex.: DOENÇAS E CURAS [> SAÚDE].
LANCHES, MERENDAS, JANTARES E CEIAS [> REFEIÇÕES].
VICE-REIS E GOVERNADORES [> REPRESENTANTES EXECUTIVOS DA AUTORIDADE REAL
NAS CONQUISTAS ULTRAMARINAS].
6. Termos temáticos que guardam entre si relações associativas de polaridade originam
remissões cruzadas.
Ex.: DESNATURALIZAÇÕES [...] (V. também NATURALIZAÇÕES).
a.
a.
a.
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328
NATURALIZAÇÕES [...] (V. também DESNATURALIZAÇÕES).
Grafia de remissões compostas: os termos temáticos simples separam-se por vírgulas; os
termos temáticos compostos ou coordenados com vírgulas, por pontos-e-vírgulas. Grafam-se
em minúsculas as conjunções aditivas finais. A ordem de disposição é sempre alfabética.
Ex.: (V. também CRISTÃOS-NOVOS, HERESIA e JUDAÍSMO).
NOTÍCIAS, v. CORRESPONDÊNCIA; GAZETAS, FOLHETOS E NOTÍCIAS MANUSCRITAS e
RUMORES.
O estabelecimento de grupos de temas e sub-temas parte do suposto da existência de
relações hierárquicas entre termos que indicam actividades ou disciplinas, classes ou
instituições, e termos que indicam objectos, valores, produtos ou substâncias, agentes ou
membros de classe.
Ex.: MERCÊS [...]. Registo: secretário.
PEIXE [...]. Bacalhau.
POESIA [...]. Poetas.
RENDAS OU RENDIMENTOS [...]. Rendeiros.
As ocorrências que se referem a casos ou divisões específicas de sub-temas, mas que se
mostram difíceis de identificar com certeza, são lançadas como ocorrências gerais de sub-
temas.
Ex.: TITULARES. [...] Baronesas, 182, 306: Ilha Grande de Joannes, [...].
Conventos, mosteiros, casas professas, igrejas, santuários, oratórios e ermidas, procissões,
irmandades e confrarias reúnem-se por terras e indexam-se de acordo com os nomes que
mais comummente se usam nas gazetas.
Ex.: IGREJAS E SANTUÁRIOS. [...] Lisboa: [...] Santa Engrácia.
Quando esses nomes são formas contractas ou reduzidas de invocações, as partes que faltam
à formas completas dispõem-se na sequência de vírgulas.
Ex.: CONVENTOS, MOSTEIROS E CASAS PROFESSAS [...]. Carmo, Nossa Senhora do
Vencimento do Monte do; [...] Esperança, Nossa Senhora da.
Quando são formas de origem diversa, demandam remissões.
Ex.: CONVENTOS, MOSTEIROS E CASAS PROFESSAS [...]. Grilo; [...] Monte Olivete, Nossa
Senhora da Conceição do, v. Grilo; [...] Rato; Remédios, Nossa Senhora dos (das trinas),
v. Rato.
Agregação de índices: problemas gerais
1. Necessidade de introdução das correcções indicadas nas erratas aos volumes
anteriores.
2. O crescente universo de ocorrências e a necessidade de referir os volumes em que
cada uma se verifica torna aconselhável um reajuste das normas gráficas dos índices
singulares. Propõe-se o seguinte:
a. introdução de travessões para separar os termos indexados, das ocorrências.
Ex.: SABÃO – 302.
uso de algarismos romanos para os volumes, e pontos-e-vírgulas na separação das séries de
páginas.
1.
1.
1.
1.
a.
a.
a.
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329
Ex.: DESNATURALIZAÇÕES – I, 65, 137; II, 227.
3. A cada novo volume, tende a haver uma afinação dos critérios de escolha termos
indexados, que no índice agregado se deve conservar.
Ex. (aplicação das regras n° 3, 6 e 8 referentes ao Índice temático):
[Vol. 1] [Vol. 2]
NATURALIZAR [...] Desnaturalizar, 65,
137 NATURALIZAR, 48. [...] Desnaturalizar, 227
PROCURADORES/ PROCURAÇÕES, 65,
66, 84, 127, 171
PROCURADORES/ PROCURAÇÕES, 108, 150, 156, 159, 211,
217, 220, 239, 241, 275, 287
[Índice agregado]
DESNATURALIZAÇÕES [...], v. NATURALIZAÇÕES.
NATURALIZAÇÕES [...], v. DESNATURALIZAÇÕES.
PROCURAÇÕES [...]. Procuradores [...].
Para facilitar a recuperação das informações do Índice temático, pode‑-se tornar indicado o desdobramento de entradas muito abrangentes:
Ex.:
[Vols. 1 e 2] [Índice agregado]
ECLESIÁSTICOS [...]
CLERO REGULAR [...]
CLERO SECULAR [...]
ECLESIÁSTICOS, v. CLERO REGULAR e CLERO SECULAR
4. Sobretudo no índice onomástico e na entrada dos "Titulares" do índice temático, faz-
se necessário:
a. despistar as diferenças ocasionadas pela falta de estabilidade dos sobrenomes,
estabelecendo, também, eventuais remissões.
Ex.:
[Vol. 1] [Vol. 2]
Luísa Pereira de Mendonça, Dona, 110 Luísa Vicência [Pereira de Mendonça], Dona, 262
[Índice agregado]
Luisa Pereira de Mendonça, Dona, v. Luisa Vicência Pereira de Mendonça, Dona
a.
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330
Luisa Vicência Pereira de Mendonça, Dona – I, 110; 11, 262.
refazer a análise das referências a personagens inicialmente identificados sem precisão.
Ex.:
[Vol. 1] [Vol. 2]
O Chimbali, primo de um frade
franciscano, 58, 77
Francisco, Frei, 66, 74, 84, 119 Francisco, Frei, v. Francisco de Mantona, Frei
Francisco de Mantona, Frei, 90 Francisco de Mantona, Frei, 54, 55, 57, 66, 68, 75, 88, 210.
Francisco [José] de Almada, pai de
Dona Pelágia [de Almada], 49, 77, 94Francisco de Almada, 153.
Vasco Lourenço, 165, 170, 171 Vasco Lourenço, 70, 231, 252.
Condes: [...] Pombeiro, 55, 79, 81, 131,
149, 176
Condes: [...] Pombeiro, 3°, 48, 54, 62, 83, 149, 176 90, 92, 95,
170, 179, 200, 201, 221, 225-226, 233; Pombeiro, 4°, 228.
[Índice agregado]
O Chimbali, v. Gabriel Chimbali, Dom.
Francisco, Frei, [Irmão Leigo], v. Francisco de Mantona ou Menton, Frei
Francisco de Almada, v. Francisco [José] de Almada, Dom, [ filho de D. Bernardo de Noronha].
Francisco de Mantona ou Menton, Frei – I, 66, 74, 84, 90, 119; II, 54, 55, 57, 66, 68, 75, 88, 210.
Francisco [José] de Almada, Dom, [filho de D. Bernardo de Noronha] – I, 49, 77, 94; II – 153.
Gabriel Chimbali, Dom - I, 58, 77.
Vasco Lourenço [Veloso] – I, 165, 170, 171; II, 70, 231, 252.
Condes: [...] Pombeiro, 3° – I, 55, 79, 81, 131, 149, 176; II, 48, 54, 62, 83, 90, 92, 95, 170, 179, 200, 201,
221, 225-226, 233; Pombeiro, 4° – 228.
destacar em negrito a(s) ocorrência(s) que permita(m) uma rápida identificação dos
personagens.
Ex.:
[Vol. 1] [Vol. 2]
João Pedro Soares, [Provedor da
Alfândega], 54, 66, 114
João Pedro Soares de Noronha Coutinho de Avelar Teixeira, 59,
81, 124, 135-136, 152-153, 154, 165, 20, 238, 263, 324.
a.
a.
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331
Luís Castelo Branco, Dom,
Cónego, 170
Luís de Castelo Branco, Dom, 85, 90, 235, 279; 4.° Conde de
Pombeiro, v. TITULARES. Condes.
[Índice agregado]
João Pedro Sares de Noronha Coutinho de Avelar Teixeira – I, 54, 66, 114; II, 59, 81, 124, 135-136,
152-153, 154, 165, 20, 238, 263, 324.
Luís de Castelo Branco, Dom – I, 170; II, 85, 90, 235, 279; 4.° Conde de Pombeiro, v. TITULARES.
Condes.
Revisão
Erros frequentes
Margens incorrectas.
Tamanhos de linhas desiguais.
Espaçamentos irregulares.
Falhas de equivalência entre as chamadas das notas e os textos em rodapé.
Divisões incorrectas de palavras em fim de linha.
Faltas de hífens em palavras compostas.
Incoerências na homogeneização de maiúsculas e minúsculas.
Abreviaturas não desdobradas.
Faltas de pontos de abreviatura nos casos previstos nas Normas de Transcrição.
Práticas de revisão
Todos os revisores devem ter acesso à matriz informática do texto em edição, para
despistarem e corrigirem (através dos comandos de "busca" e "substituição" dos
processadores de texto) eventuais repetições dos erros pontualmente localizados nas provas.
Todas as provas devem ser revistas individualmente pelo menos por dois dos investigadores
do projecto.
As correcções definitivas devem ser acordadas pelo conjunto dos investigadores, e inseridas,
assim que possível, na matriz informática.
Guardam-se as provas revistas, para servirem de base a novos ajustes dos critérios usados.
Apêndice: léxico temático
ACADEMIAS
Real das Ciências, de Tolosa. Real da História: censura; memórias eclesiásticas. Royal
Sociely. São Petersburgo.
AÇÚCAR
(V. também LANCHES, MERENDAS, JANTARES E CEIAS. Doces)
ADVOGADOS, v. JURISTAS / ADVOGADOS.
AGUARDENTE
AJUDAS DE CUSTO
1.
2.
3.
4.
5.
a.
1.
2.
3.
1.
2.
3.
4.
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332
ALCAIDARIAS MORES
ALEMANHA
Alemães. Arquiduquesa. Arquiduquesa, 2ª. Eleitores: de Baviera; de Hanover, v.
INGLATERRA. Reis: de Mogúncia; de Saxónia (V. também TITULARES. Duques). Corte.
Hamburgueses. Imperador. Relações internacionais.
ALFÂNDEGA
ALIMENTOS (DIREITO A)
ALMOXARIFADOS
Almoxarifes.
ANIL
ANIMAIS SELVAGENS
Tigre. Urso.
(V. também CAÇA)
ANIVERSÁRIOS
AQUEDUTO DAS ÁGUAS LIVRES
ÁRABES
Mouros.
ARGEL
Reis (V. também ÁRABES e GUERRA).
ARMAS
Artilharia.
ARQUITETOS E ENGENHEIROS
ARTESÃOS E TRABALHADORES MANUAIS
Aguadeiros. Alfaiates. Arrieiros. Barqueiros / fragateiros. Cabeleireiros. Calceteiros.
Carpinteiros. Cirieiros. Cocheiros. Correeiros. Coveiros. Empreiteiros. Escultores.
Impressores, v. LIVROS. Latoeiros. Linheiras. Ourives. Pedreiros. Pintores, v. PINTURA.
Pintores. Sapateiros. Vidraceiros.
ASTRONOMIA
Cosmógrafo-mor.
ATENTADOS E EMBOSCADAS
ATEÍSMO
AUTOS DA FÉ, v. SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO.
AZEITE
BACALHAU, v. PEIXE.
BAPTISMOS
BENEFÍCIOS ECLESIÁSTICOS
BIBLIOTECAS, v. LIVRARIAS.
BISCOITO
BOTICAS
Boticários.
BULA DA CRUZADA
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333
(V. também SANTA SÉ. Bulas / breves) CAÇA
CACAU/CHOCOLATE
CAFÉ
CAL
CÂMARAS MUNICIPAIS
Lisboa.
CANELA
CARNE
(V. também GADO)
CARTAS DE SEGURO
CARVÃO
CASA DA GALÉ
CASA DA ÍNDIA
CASA DAS RAINHAS
Vedores da Rainha. Camareira-mor.
CASAMENTOS
(V. também DIVÓRCIOS e DOTES)
CASAS
De campo (V. também QUINTAS).
(V. também PALÁCIOS)
CASAS SENHORIAIS E SENHORIOS
Águas Belas. Alcáçovas. Alegrete. Assequins. Arcos. Aveiras. Aveiro. Azambuja. Azurara.
Bairrada. Belmonte. Bragança. Cadaval. Calhariz. Carapito e Codeceiro. Carrillo.
Carvoeira. Cavaleiros. Cotovia. Corte do Serrão. Couto de Mazarefe. Outil. Entre Homem
e Cávado. Ericeira. Ferrazes. Ficalho. Ilhas Desertas. Lafões. Mazarefes. Melo. Mira.
Murça. Nisa. Ota. Pancas. Paio Pires. Pombeiro. Ponte da Barca. Quinta de Colares.
Quintas de Mortanes, Manteigas e Arciprestes. Ribeira Grande. Rohan. Romeira. Rua
Escura. Seixo Amarelo. Sirol. Terlizzi e Castelgaragnone. Torre da Palma. Torre de
Coelheiros. Torre do Outão. Unhão. Vila Flor. Vila Pouca. Vilar de Perdizes.
(V. também MORGADIOS e TITULARES)
CASTELA, v. ESPANHA.
CATIVOS
CAVALOS E BESTAS
Cavalos. Mulas.
CEIAS, v. LANCHES, MERENDAS, JANTARES E CEIAS.
CEILÃO
Cândia: rei.
CENSURA
(V. também ACADEMIAS. Real da História: censura e SANTO OFICIO DA INQUISIÇÃO.
Censura de livros)
CERA
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334
CEREAIS/PÃO
CHÁ
CHINA
CLERO REGULAR
Agostinhas. Agostinhos: agostinhos recoletos; crúzios; gracianos; grilos. Agostinhos
Descalços, v. Agostinhos: Grilos. Barbadinhos. Beneditinos. Bernardos. Caetanos.
Capuchos, v. Franciscanos claustrais. Capuchinhos, v. Barbadinhos. Carmelitas: frades;
freiras. Carmelitas Descalças: albertas (de Santo Alberto). Carmelitas Descalços:
marianos (de Nossa Senhora dos Remédios). Cartuxos. Cistercienses, v. Bernardos.
Clarissas: flamengas (de Nossa Senhora da Quietação, ao Calvário). Congregados do
Oratório de São Filipe de Néri, v. Lóios. Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, v.
Agostinhos: crúzios. Cónegos Seculares do Evangelista, v. Oratorianos. Crúzios, v.
Agostinhos: crúzios. Dominicanas. Dominicanos. Eremitas de Jesus Cristo da Serra de
Ossa, v. Paulistas. Eremitas Descalços de Santo Agostinho, v. Agostinhos: grilos.
Eremitas de Santo Agostinho: v. Agostinhos: gracianos. Franciscanos claustrais:
arrábidos (da Província da Arrábida); xabreganos (do Convento de Santa Maria de Jesus
ou São Francisco de Xabregas, da Província do Algarve). Freiras. Gracianos, v.
Agostinhos: grilos. Jerónimos. Jesuítas. Lazaristas. Lóios. Paulistas. Teatinos, v.
Caetanos. Trinas. Trinos. Trinitários, v. Trinos.
(V. também CONVENTOS, MOSTEIROS E CASAS PROFESSAS; MISSÕES RELIGIOSAS e
ORDENS MILITARES)
CLERO SECULAR
Arcebispos: Baía; Benavento; Évora; Goa; Lacedemónia; Reims; Tarso, v. MISSÕES
DIPLOMÁTICAS ESTRANGEIRAS. Em Portugal: núncios. Bispos: Angola; Angra;
Barcelona; Cabo Verde; Coimbra; Congo; Guarda; Lamego; Leiria; Malaca; Marselha;
Patará; Portalegre; Porto. Cabidos. Cardeais. Cónegos: da Patriarcal; da Sé de Coimbra.
Confessores. Deães: da Patriarcal; da Sé. Patriarca. Prelados / Provinciais das religiões.
Priores: Guimarães; Luz; Santo Estêvão; São Domingos; São Julião; São Nicolau; Santos-
o-Velho. Provisores. Vigário Geral.
CLIMA
Cheias / inundações. Chuvas e tempestades. Frio. Furacões. Neve. Prejuízos causados.
Secas (calmas). Vento.
COCHES, CALECHES, BERLINDAS, LITEIRAS E SEGES
COFRES
COLÉGIOS, v. ENSINO. Colégios.
COMARCAS
Coimbra. Lamego. Portalegre.
COMBOIOS, v. FROTAS E COMBOIOS.
COMENDAS E COMENDADORES, v. ORDENS MILITARES.
COMÉRCIO
Companhias: de Ostende. Feiras. Lojas. Mercadores. Negociantes.
(V. também ESTALAGENS, TAVERNAS E CASAS DE PASTO)
CONFEDERAÇÃO MARATA
Maratas. Reis.
Cultura, vol. 21 | 2005
335
CONFRARIAS, v. IRMANDADES E CONFRARIAS.
CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL
Conselho de Estado: conselheiros. Conselho da Fazenda. Conselho de Guerra: secretário.
Conselho Geral do Santo Oficio. Conselho Ultramarino: conselheiros. Desembargo do
Paço: presidentes. Mesa da Consciência e Ordens: presidentes.
(V. também JUNTAS, JUSTIÇA e SECRETARIA(S) DE ESTADO)
CONSPIRAÇÕES
CÔNSULES
Em Espanha: dos Estados Gerais. Em Portugal: da Inglaterra, dos Estados Gerais.
CONTRABANDO
(V. também TOMADIAS)
CONTRATOS
CONVENTOS, MOSTEIROS E CASAS PROFESSAS
Alcobaça: Santa Maria. Almada: São Paulo. Belém: Jerónimos ou São Jerónimo.
Carnaxide: Boa Viagem, Nossa Senhora da; São José de Ribamar. Castanheira: Santo
António [?]. Caxias, v. Laveiras. Coimbra: Santa Cruz. Évora: Cartuxa; Santo Elói. Goa:
Santa Mónica. Incidentes internos. Laveiras: Cartuxa de São Bruno. Lisboa e seu termo:
Alcântara, v. Flamengas; Anunciada, Nossa Senhora da; Boa Hora; Bom Sucesso;
Calvário, Monte; Cardais, Nossa Senhora da Conceição dos; Carmo, Nossa Senhora do
Vencimento do Monte do; Carnide, Santa Teresa de; Cotovia; Encarnação; Esperança,
Nossa Senhora da; Espírito Santo (da Pedreira); Flamengas (de Nossa Senhora da
Quietação); Graça, Nossa Senhora da; Grilo; Jesus, Santa Maria de, v. São Francisco de
Xabregas; Lóios; Luz, Nossa Senhora da; Madre de Deus; Menino Deus; Marianos, v.
Remédios, Nossa Senhora dos Remédios (dos marianos); Monte Olivete, Nossa Senhora
da Conceição do, v. Grilo; Paulistas; Rato; Remédios, Nossa Senhora dos (das trinas), v.
Rato; Remédios, Nossa Senhora dos (dos marianos); Rilhafoles; Rosa, Nossa Senhora da;
Sacramento, Santíssimo; Santa Clara; Santa Marta; Santa Mónica; Sant’Ana; Santo
Alberto; Santo António ou Santo António dos Capuchos; Santo Elói, v. Lóios; Santos-o-
Novo; São Bento; São Bento dos Lóios ou São Bento de Xabregas; São Domingos; São
Francisco (da Cidade); São Francisco de Xabregas; São Pedro de Alcântara; São Roque;
São Vicente (de Fora); Trinas ou Trinas Recoletas (de Nossa Senhora da Soledade);
Trindade, Santíssima; Xabregas, v. São Francisco de Xabregas. Mafra: Nossa Senhora e
Santo António (V. também MAFRA). Odivelas: São Dinis e São Bernardo. Sobral: Nossa
Senhora dos Anjos. Santarém: São Francisco. Sintra: Pena, Nossa Senhora da. Soveral v.
Sobral. Varatojo: Santo António. Vinhais: Santa Clara.
(V. também CLERO REGULAR e IGREJAS E SANTUÁRIOS)
CORREIOS
Correio da Corte. Postilhões. CORRESPONDÊNCIA
CORSO E PIRATARIA
CORTE DE PORTUGAL
Audiências. Beija-mão. Cerimonial. Damas da Corte.
(V. também PALÁCIOS e REI E FAMÍLIA REAL DE PORTUGAL)
COURO
CRÉDITO
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336
Bancos. Credores. Dívidas. Empréstimos. Execuções. Juros.
CRIADORES, v. LAVRADORES E CRIADORES.
CRIADOS / MOCHILAS
Cocheiros. Conserveiras. Cozinheiros. Escudeiros.
CRIMES
Adultérios. Agressões e crimes domésticos ou passionais. Assassinatos.
Envenenamentos. Falsificações (V. também MOEDA. Falsa). Fugas. Parricídios.
(V. também ATENTADOS E EMBOSCADAS e ROUBOS E FURTOS)
CRISTÃOS-NOVOS
DESACATOS E MOTINS
Sacrilégios.
DESCAMINHOS
DESNATURALIZAÇÕES
(V. também NATURALIZAÇÕES)
DIAMANTES, v. METAIS E PEDRAS PRECIOSAS.
DINAMARCA
Rei.
DIPLOMACIA, v. MISSÕES DIPLOMÁTICAS e RELAÇÕES INTERNACIONAIS.
DIVÓRCIOS
DOENÇAS E CURAS
Achaques. Acidentes. Água de Inglaterra (quina quina ou querano). Águas espirituosas.
Aneurismas. Apertos. Apoplexias. Ataques. Banhos (V. também Caldas da Rainha).
Bexigas. Catarros. Cegueira / cataratas / doenças de olhos. Cólicas. Constipações.
Convalescenças e melhorias. Convulsões. Defluxos. Dentes, males de. Dores: de cabeça;
de garganta, v. Esquinências (ou amigdalites); na ilharga. Epidemias. Erisipela.
Escorbuto / "Mal de Luanda". Esquinências (ou amigdalites) e dores de garganta.
Estupores. Fastios. Febres: crescimentos; terçãs. Feridas. Gangrena. Gota. Herpes.
Hidropisia. Icterícia. Inchaços. Insanidade. Melancolia. Mirra da Pérsia. Parôtidas.
Pedras. "Peles de senis". Perfumes. Pestes. Pleuris (ou pleurisia). Pontadas. Purgas.
Quedas. Queixas de peito. Reumatismo. Sangrias. Sarampo. Sezões. Sífilis. Síncopes.
Sono e esquecimentos. "Telícia". Tísica. "Tomar aço". Tosses. Tubérculos (V. também
Inchaços). Tumores. Vágados / vertigens. Vómitos.
DONATÁRIOS / SENHORES DE TERRAS, v. CASAS SENHORIAIS / SENHORIOS.
DOTES
DUAS SICÍLIAS
Rei.
(V. também NÁPOLES)
DUELOS E DESAFIOS
ECLESIÁSTICOS, v. CLERO REGULAR e CLERO SECULAR.
EDITAIS
ENGEITADOS
ENIGMAS
Cultura, vol. 21 | 2005
337
ENSINO
Colégios: Purificação; Santo Antão; São Paulo; São Pedro. Estudantes. Filosofia. Lentes.
Matemática. Medicina. Mestres de meninos.
ENTRADAS PÚBLICAS
ERMIDAS, v. ORATÓRIOS / ERMIDAS. ESCRAVOS
(V. também NEGROS)
ESMOLAS
ESPANHA
Auditor. Catalães. Corte: audiências. Espanhóis. Infantes: Carlos, Dom (V. também DUAS
SICÍLIAS. Rei); Filipe, Dom; Maria Teresa, Dona. Língua castelhana. Navios. Princesa.
Príncipe. Rainha. Rei. Relações internacionais. Santo Oficio da Inquisição.
ESTADOS GERAIS
Holandeses. Príncipe de Orange-Nassau. Relações internacionais.
ESTALAGENS, TABERNAS E CASAS DE PASTO
Estalajadeiros. Taberneiros.
EXCOMUNHÕES
FÁBRICAS
De Pólvora. De Seda.
(V. também NAVIOS. Estaleiros, PÓLVORA e VESTUÁRIO E TECIDOS)
FACÇÕES, PARCIALIDADES E PARTIDOS
FEITIÇARIAS
Exorcismos.
FESTAS
Bailes. Entrudo. Espírito Santo. Lausperenes. Lava-pés. Natal. Nossa Senhora da
Conceição. Páscoa. Reis / Epifania. Rosário. Santa Ana. Santa Bárbara. Santa Rita. Santo
Agostinho. São Francisco. Tedéuns.
(V. também MÚSICA)
FIANÇAS, v. JUSTIÇA.
FILHAMENTOS
FOGO DE ARTIFÍCIO
FOLHETOS MANUSCRITOS, v. GAZETAS, FOLHETOS E NOTÍCIAS MANUSCRITAS.
FORTES E FORTALEZAS
(V. também TORRES)
FRANÇA
Delfins: Luís, filho de Luís XV; Luís, Le Grand Dauphin. Franceses. Navios. Parlamento.
Reis: Luís XIV; Luís XV. Relações Internacionais.
FREIRÁTICOS
FROTAS E COMBOIOS
(V. também NAVIOS)
GADO
(V. também CARNE)
Cultura, vol. 21 | 2005
338
GALINHAS
GAZETAS, FOLHETOS E NOTÍCIAS MANUSCRITAS
"Addição à Gazeta". Anatomico jocoso. "Anno noticioso e historico". "Diario": autor /
autoria; cópias; falhas ou suspensões de edição. O Anónimo. Censura. "Diario" da
Colecção Pombalina. "Diario de Lisboa" / "Diario de Lisboa Occidental" / "Diario do 4°
Conde da Ericeira": autor / autoria; encadernação (problemas de); falhas ou suspensões
de edição. Folheto de ambas Lisboas. "Folheto de Lisboa". "Folheto de Lisboa Occidental".
Gazeta de Lisboa: gazeteiro. "Gazeta de Pernambuco". "Gazeta em forma de carta".
Gazetas da Restauração. Gazetas europeias. Historia annual. "Mercurio de Lisboa" /
"Mercurio historico de Lisboa". "Monstruosidades do tempo e da fortuna". "Noticia
breve da universal estimação que em Portugal se faz dos folhetos". "Noticias annuais
1740 ate 1749". "Noticias de Portugal". "Novidades de Lisboa". Pasquins. Suplemento da
Gazeta. "Varias noticias de casos".
(V. também CORRESPONDÊNCIA)
GENTIOS
(V. também ÍNDIOS)
GENTIS-HOMENS
Da Câmara Real.
(V. também OFÍCIOS-MORES DA CASA REAL)
GOVERNADORES, v. VICE-REIS E GOVERNADORES.
GUERRA
Cerco de Orão. Direito da. Na Índia. Sucessão da Áustria. Sucessão da Polónia. Sucessão
de Espanha.
HERÁLDICA
HERANÇAS, v. TESTAMENTOS / TESTAMENTARIAS.
HERESIAS
(V. também ATEÍSMO e FEITIÇARIAS)
HOLANDA, v. ESTADOS GERAIS.
HOSPITAIS
Enfermeiro-mor do Hospital de Todos-os-Santos.
IGREJAS E SANTUÁRIOS
Águeda. Braga: Sé. Bucelas: Purificação, Nossa Senhora da. Coimbra: Santiago. Évora: Sé;
Santo Elói. Lisboa: Anjos; Boa Hora; Conceição, Nossa Senhora da, v. Conceição Velha;
Conceição Velha; Encarnação; Espírito Santo (da Pedreira); Graça, Nossa Senhora da;
Jesus, Santa Maria de; Loreto, Nossa Senhora do; Madalena, Santa Maria; Mártires;
Misericórdia; Patriarcal; Paulistas; Sacramento, Santíssimo; Santa Engrácia; Santa Luzia;
Santiago; Santo Amaro, v. ORATÓRIOS E ERMIDAS. Lisboa: Santo Amaro. Santo António
de Lisboa, v. Santo António da Sé; Santo António da Sé; Santo António dos Capuchos;
Santo Estêvão; Santos-o-Velho; São Bento; São Domingos; São Francisco (da Cidade); São
João da Praça; São Luís (dos Franceses); São Martinho; São Pedro de Alcântara; São
Roque; São Vicente (de Fora); Saúde, Nossa Senhora da; Sé ou Sé Oriental; Trinas ou
Trinas Recoletas (de Nossa Senhora da Soledade); Trindade, Santíssima. Odivelas:
Menino Jesus. [Porto]: Loureiro, [São Pedro do]. Sesimbra: Cabo, Nossa Senhora do.
Terceira, Ilha: Sé. Torres Novas. Vila Viçosa: Capela Real.
Cultura, vol. 21 | 2005
339
(V. também CONVENTOS E MOSTEIROS)
IMPÉRIO, v. ALEMANHA.
IMPÉRIO MONGOL
Grão-Mongol.
IMPOSTOS E TRIBUTOS
Capitação. Décimas. Quintos. Terças. Um por cento.
INCÊNDIOS
ÍNDIOS
(V. também GENTIOS)
INDULGÊNCIAS
INDULTOS
INGLATERRA
Bolsa. Corte: cerimonial. Ingleses: Feitoria de Lisboa. Navios. Parlamento. Reis: Jorge II.
Rainhas: Ana; Carolina. Relações internacionais. Secretários de Estado.
INSULTOS
INTERDITOS
IRLANDA
Irlandeses.
IRMANDADES E ASSOCIAÇÕES CONFRATERNAIS
Lisboa: Passos, Nosso Jesus dos. Santa Engrácia. Santa Justa. Odivelas.
(V. também IGREJAS E SANTUÁRIOS e MISERICÓRDIAS)
ITÁLIA
Genoveses. Italianos ou nação italiana. Rei da Lombardia. Saboiardos.
(V. também NÁPOLES, DUAS SICíLIAS, SANTA SÉ, SARDENHA e TOS-CANA)
JANTARES, v. LANCHES, MERENDAS, JANTARES E CEIAS.
JOGO
JÓIAS
Anéis. Arrecadas. Botões. Braceletes e pulseiras. Brincos. Caixas. Cruzes. Estojos.
Gargantilhas. Insígnias. Paliteiros. Pérolas. Zoomórficas: lagartixa; salmonete.
(V. também METAIS E PEDRAS PRECIOSAS e MÓVEIS)
JUDAÍSMO / JUDEUS
JUNTAS
Conferências. Da Saúde. Do Tabaco: deputados. Dos Três Estados. Na Misericórdia.
(V. também CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL e SECRETARIA(S) DE ESTADO)
JURISTAS /ADVOGADOS
(V. também OFICIAIS E MINISTROS)
JUSTIÇA
Açoites. Adultérios. Agravos. Apelações. "Baraço e pregão". Chancelaria. Culpas.
Degredos e desterros. Demandas intra-familiares. Detenções e presos. Devassas.
Execuções. Fianças. Galés. Perdões. Sentenças. Tratos / tormentos. Tribunais: Relação.
(V. também CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL, OFICIAIS E MINISTROS e PRISÕES)
Cultura, vol. 21 | 2005
340
LADRÕES, v. ROUBOS E FURTOS.
LANCHES, MERENDAS, JANTARES E CEIAS
Bebidas de neve. Doces.
LATIM
LAVRADORES E CRIADORES
LEGADOS PIOS
Administração. Capelas. Denúncias. LEGISLAÇÃO
LEGITIMAÇÕES, v. FILHAMENTOS.
LÍNGUA PORTUGUESA
LIVRARIAS
LIVROS
Livreiros
LOUÇAS
LUTOS
MADEIRAS
Castanho. Pau-brasil.
MAFRA
Caminhos. Obras. Sinos. Tapada.
(V. também CONVENTOS E MOSTEIROS. Mafra e REI E FAMÍLIA REAL DE PORTUGAL.
João V, Rei, Dom: idas a Mafra)
MALTA
Grão-Mestre. Malteses.
MARFIM
MARINHA
Marinheiros.
MARROCOS
Rei.
MEDICINA
Anatomia. Cirurgia.
MÉDICOS, BARBEIROS, CIRURGIÕES E ALGEBRISTAS
MERCÊS
Capelas. Despachos. Direito a testar. Petições. Registo: secretário. Supervivências.
"Vidas".
METAIS E PEDRAS PRECIOSAS
Águas-marinhas. Carbúnculos. Casas de fundição. Diamantes: minas e mineração.
Esmeraldas. "Laasdiz" ou "leesdiz". Lapis-lazulis. Madrepérola. Mineiros. Ouro: alfaias
de; minas. Prata; alfaias de; minas. Rubis. Safiras.
(V. também JÓIAS)
MILAGRES
(V. também SANTOS, BEATOS E SANTIDADES)
MILITARES E ORDENANÇAS
Cultura, vol. 21 | 2005
341
Alferes. Almirante. Artilheiros. Batalhões. Brigadeiro. Capitães: da guarda; de cavalos.
Capitães de mar e guerra. Capitães-engenheiros. Capitães-mores. Capitães-tenentes.
Cavalaria. Companhias. Coronéis. Coronéis-engenheiros. Desertores. Esquadrões.
Generais. Governos militares. Granadeiros. Infantaria. Recrutamentos. Regimentos.
Sargentos. Sargentos-mores. Soldados e tropas. Tenentes: da guarda. Tenentes-
coronéis. Tenente-general de artilharia do Reino.
MINAS E MINERAÇÃO, v. METAIS E PEDRAS PRECIOSAS.
MISERICÓRDIAS
MISSÕES DIPLOMÁTICAS ESTRANGEIRAS
Em Espanha: embaixador de França; embaixador extraordinário de Inglaterra; ministro
de Inglaterra; núncio. Em Florença: núncio. Em França: embaixador de Espanha;
embaixador do Império. Em Inglaterra: embaixador de Espanha; embaixador de França.
Na Pérsia: embaixador de Inglaterra. Na Polónia: embaixador do Império. Nas Duas
Sicílias: ministro de Inglaterra. No Mónaco: embaixador de Espanha. Nos Estados Gerais:
embaixador de França; embaixador de Inglaterra. Em Portugal: embaixador de Espanha;
embaixador de França; embaixadores do Surrate; enviado de Inglaterra; ministro do
Império; núncios; residente do Império; residente dos Estados Gerais. Na Santa Sé:
embaixador de Espanha; embaixador do Império. Na Turquia: embaixador de Inglaterra.
MISSÕES DIPLOMÁTICAS PORTUGUESAS
Em Espanha: embaixador extraordinário; ministro plenipotenciário. Na Santa Sé:
embaixador; enviado extraordinário. Nos Estados Gerais: enviado.
MISSÕES RELIGIOSAS
Missionários.
MOEDA
Casa da Moeda: moedeiros; provedor. Correspondência entre moedas. Falsa.
MORGADIOS
(V. também CASAS SENHORIAIS E SENHORIOS)
MORTES
Cadáveres. Enterros e exéquias. "Estar a morrer" ou sacramentado. Infanticídios.
Suicídios: tentativas de.
(V. também TÚMULOS, JAZIGOS E SEPULTURAS)
MOSTEIROS, v. CONVENTOS, MOSTEIROS E CASAS PROFESSAS.
MOTINS, v. DESACATOS E MOTINS.
MÓVEIS
Arcas. Cadeiras. Caixas: de charão. Mesas.
(V. também COFRES, JÓIAS e METAIS E PEDRAS PRECIOSAS)
MULATOS
MULHERES
Abortos. Freiras, v. CLERO REGULAR. Freiras. Gravidez. Partos: parteiras (V. também
NASCIMENTOS, ORDENS MILITARES e TITULARES).
MÚSICA
Músicos: castrati. Ópera.
NÁPOLES
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342
Vice-Rei.
(V. também DUAS SICÍLIAS)
NASCIMENTOS
(V. também MULHERES. Partos)
NATURALIZAÇÕES
(V. também DESNATURALIZAÇÕES)
NAVIOS
Escaleres. Estaleiros. Fragatas. Naufrágios.
(V. também FROTAS E COMBOIOS)
NEGROS
NOBREZA, v. CASAS SENHORIAIS, CORTE DE PORTUGAL, FILHAMENTOS e TITULARES.
NOTÁRIOS E TABELIÃES
NOTÍCIAS v. CORRESPONDÊNCIA; GAZETAS, FOLHETOS E NOTÍCIAS MANUSCRITAS e
RUMORES.
OBRAS
"Do Conde de Tarouca". Em caminhos. Em Santo Antão do Tojal. Em Santa Engrácia. Em
São Pedro de Alcântara. No Palácio Real ou da Ribeira. Projectos.
(V. também AQUEDUTO DAS ÁGUAS--LIVRES e MAFRA. Obras)
OFICIAIS e MINISTROS
Auditor geral. Chanceleres: da Índia; do Rio de Janeiro. Contadores: contador-mor.
Corregedores. Desembargadores. Escrivães. Fiscais: da Armada da Índia. Intendentes.
Juiz da Índia e Mina. Juízes conservadores: da nação espanhola; da nação inglesa. Juízes
das propriedades. Juízes do crime. Juízes do povo. Juízes das propriedades. Juízes de
fora. Meirinhos. Ouvidores. Procurador da Coroa. Procurador da Fazenda. Provedores.
Regedor. Superintendentes. Tesoureiros. Vedores: da Fazenda.
(V. também CONSELHOS / SISTEMA POLOSSINODAL)
OFÍCIOS-MORES DA CASA REAL Almotacé-mor. Armeiro-mor. Copeiro-mor. Estribeiro-
mor. Monteiro-mor. Mordomo-mor. Porteiro-mor. Trinchante. (V. também CORTE DE
PORTUGAL e GENTIS-HOMENS. Da Câmara Real)
ORATÓRIOS / ERMIDAS
Lisboa: Santo Amaro; Monte ou Monte Agudo, Nossa Senhora do.
ORDENANÇAS, V. MILITARES E ORDENANÇAS.
ORDENS MILITARES
Avis: comendadeiras (da Encarnação). Bens. Comendas: comendadores. Cristo: hábitos.
Santiago: comendadeiras (de Santos-o-Novo). São Roque. Juiz Geral.
(V. também CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL; MALTA e MERCÊS)
ORDENS RELIGIOSAS, v. CLERO REGULAR.
ÓRFÃOS
OURO, v. METAIS E PEDRAS PRECIOSAS.
PADROADOS
PALÁCIOS
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343
Aljube. Anunciada. Bemposta. Casa da Pólvora, em Goa. Episcopal, de Évora. Episcopal
de Lisboa, v. Aljube. Lumiar. Real ou da Ribeira (V. também OBRAS. No Palácio Real ou
da Ribeira).
PANEGÍRICOS
PAZ
PEDRAS PRECIOSAS, v. METAIS E PEDRAS PRECIOSAS.
PEIXE
Bacalhau.
PELOURINHOS
Forcas.
PÉRSIA
Persas. Rei.
PESCA
Pescadores.
PIMENTA
PINTURA
PIRATARIA, v. CORSO E PIRATARIA.
POESIA
Poetas.
POLÓNIA
Grão-Duque da Lituânia. Polacos. Reis: Augusto II; Estanislau I. Relações internacionais.
PÓLVORA
PONTES
PORTOS
PRATA, v. METAIS E PEDRAS PRECIOSAS.
PRAZOS
PRECEDÊNCIAS
(V. também CORTE DE PORTUGAL e TRATAMENTOS)
PRESENTES
PRESÉPIOS
PRISÕES
Carcereiros. Limoeiro. Mordomo dos presos. Torre de Belém. Torre do Bugio. Torre
Velha.
(V. também JUSTIÇA e PALÁCIOS. Aljube)
PROCISSÕES
Lisboa: Cinzas; Corpo de Deus; Jesus [?]; Passos, Nosso Senhor dos; Ossos; Redenção.
Mafra: do Corpo de Deus.
PROCURAÇÕES
Procuradores.
PRÚSSIA
Princesa. Príncipe. Rei.
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QUARESMA
(V. também PROCISSÕES. Lisboa: Cinzas)
QUEIJOS
QUINTAS
Aos Olivais. Da Bugalheira. Da Luz. Da Palhavã. Das Conchas. Das Duas Portas. Das Lapas.
De Alcântara. De Arroios. De Azeitão. De Belém. De Carnide. De Paço de Arcos. De
Pancas. De Santo António do Tojal. [De São João de Bem Casados.] De São José de
Ribamar. De Sete Rios. De Vialonga. Do Botol [?]. Do Campo Grande. Do Lumiar.
(V. também CASAS. De campo)
QUIXOTE, DOM
REI E FAMÍLIA REAL DE PORTUGAL
Afonso VI, Rei, Dom. Alexandre, Infante, Dom. António, Infante, Dom. Carlos, Infante,
Dom. Deslocações. Fernando, Rei, Dom. Francisca, Infanta, Dona. Francisco, Infante,
Dom. João II, Rei, Dom. João IV, Rei, Dom. João V, Rei, Dom: conferências; idas a Mafra;
saúde. José, [Arcebispo de Braga], Dom. José, Príncipe, Dom. Manuel, Infante, Dom.
Maria, Princesa da Beira, Dona; Maria I, Rainha, Dona. Maria Ana de Áustria, Rainha,
Dona. Mariana Vitória, Princesa, Dona. Maria Francisca de Sabóia, Rainha, Dona. Maria
Sofia, Rainha, Dona. Miguel, Infante, Dom. Pedro, Infante, Dom. Pedro II, Rei, Dom.
Sebastião, Rei, Dom.
(V. também CORTE DE PORTUGAL)
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Alianças. Negociações: Congresso de Soissons. Relações de Portugal: com a Espanha;
com a França; com a Inglaterra, com a Santa Sé. Tratados: de Madrid; de Sevilha; de
Viena (o 2°).
(V. também ESPANHA, ESTADOS GERAIS, FRANÇA, INGLATERRA, POLÓNIA, RÚSSIA e
SARDENHA)
RELÍQUIAS
RELÓGIOS
RENDAS OU RENDIMENTOS
Rendeiros.
RENÚNCIAS
RONDAS
ROUBOS E FURTOS
(V. também DESCAMINHOS)
RUMORES.
Da Europa. Desmentidos. Sobre casamentos / separações. Sobre nomeações.
RÚSSIA
Imperadores (ou tsares). Moscovitas. Relações internacionais.
SABÃO
SACRILÉGIOS, v. DESACATOS E MOTINS. Sacrilégios.
SAL
Marinhas.
Cultura, vol. 21 | 2005
345
SANTA SÉ
Bulas / breves. Corte. Legados a Latere. Papas: Benedito XIII; Clemente XII.
(V. também RELAÇÕES INTERNACIONAIS. Relações de Portugal: com a Santa Sé)
SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO DE PORTUGAL
Autos da Fé: listas; particulares; públicos. Censura de livros (V. também CENSURA).
Comissários. Conselho Geral do Santo Oficio, v. CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL.
Conselho Geral do Santo Ofício. Familiares. Inquisidores e deputados. Juízes do fisco.
Presos. Promotores. Relaxados.
(V. CRISTÃOS-NOVOS, ESPANHA. Santo Oficio da Inquisição, HERESIAS e JUDAÍSMO)
SANTOS, BEATOS E SANTIDADE
Cadáveres incorruptos. Imagens. Mártires.
(V. também VIRTUDES e FEITIÇARIAS)
SANTUÁRIOS, v. IGREJAS E SANTUÁRIOS
SARDENHA
Duque de Sabóia (V. também Reis: Carlos Emanuel III). Reis: Carlos Emanuel III; Victor
Amadeu II. Príncipes. Relações Internacionais.
SECRETARIA(S) DE ESTADO
Secretário(s): Marinhas e Domínios Ultramarinos; Negócios Estrangeiros e Guerra;
Negócios do Reino.
SECRETÁRIOS, v. CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL, MERCÊS e SECRETARIA(S) DE
ESTADO. SERMÕES
Pregadores.
SERTÕES
SISMOS E TERRAMOTOS
SISTEMA POLISSINODAL, v. CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL.
SORTES, v. JOGO.
TABACO
(V. também JUNTAS. Do Tabaco)
TABELIÃES, v. NOTÁRIOS E TABELIÃES
TABERNAS, v. ESTALAGENS, TABERNAS E CASAS DE PASTO.
TEATRO
Comédias. Pátio das Comédias.
TECIDOS, v. VESTUÁRIO E TECIDOS.
TENÇAS
TEOLOGIA
Teólogos.
TESTAMENTOS / TESTAMENTARIAS TITULARES
Arquiduquesa, v. ALEMANHA, Arquiduquesa. Barões: Albrecht; Ilha Grande, 2°; Ilha
Grande de Joanes, 3°; Tinti. Baronesas: Ilha Grande de Joanes. Condes: Albermale; Alva,
1º; Alvor, 2°; Anglesola; Arcos, 3°; Arcos, 5°; Assumar, 1°; Assumar, 2°; Atalaia, 6°;
Atouguia, 10º; Aveiras; Aveiras, 3°; Aveiras, 4°; Aveiras, 5º; Avintes, 1°; Avintes, 2°;
Avintes, 3°; Bobadela, 1°; Bonneval; Calheta, 7°; Canali [?]; Cantanhede, 6°; Castanheira,
Cultura, vol. 21 | 2005
346
6°; Castelo Melhor, 4°; Clavijo; Clermont; Coculim, 2°; Coculim, 3°; Daun ou Dhaun; Ega,
1°; Ells [?]; Ericeira, 2°; Ericeira, 3°; Ericeira, 4°; Ericeira, 5°; Galveias; Galveias, 1°;
Galveias, 2°; Galveias, 3°; Galveias, 4°; Ilha do Príncipe, 4°; Ilha do Príncipe, 5°;
Königsegg; Lavradio, 1°; Martinic ou Martinitz; Mercy; Miranda [del Castariar];
Monsanto, 10º; Montemar; Montijo; Óbidos, 2°; Óbidos, 3°; Oeiras, 1º; Pombeiro, 3°;
Pombeiro, 4º; Ponte, 3°; Povolide, 10; Povolide, 2°; Prado, 7°; Redondo, 12°; Ribeira
Grande, 3º; Ribeira Grande, 4º; Rio Grande, 1º; Sabugosa, 1°; Sandomil, 1°; Santiago, 2°;
Santiago, 3º; Santistebán del Puerto; Santo Estêvão [ou San Esteban de Gormaz]; São
Miguel, 1°; São Miguel, 3°; São Vicente, 4°; São Vicente, 5°; Sarzedas, 4°; Scheffenberg;
Schwarzenberg; Soure, 4°; Tarouca, 4°; Tarouca, 5°; Tendas; Unhão, 4°; Unhão, 5°;
Valadares, 2°; Valadares, 3º; Valadares, 5°; Vale de Reis: Vale de Reis, 2°; Vale de Reis, 3°;
Vale de Reis, 4°; Vale de Reis, 5°; Verità [?]; Vidigueira, 7°, v. 3° Marquês de Nisa; Vila
Flor, 3º; Vila Flor, 4°; Vila Nova de Portimão, 4°; Vila Nova de Portimão, 5°; Vila Verde,
4º; Vilar Marior, 3°, v. 2° Marquês de Alegrete; Vilar Maior, 4°, v. 3° Marquês de
Alegrete; Vilar Maior, 5°; Vimieiro, 2°; Vimeiro, 3º; Vimioso, 8°, v. 2° Marquês de
Valença; Vimioso, 9°. Conde-Barão de Alvito, 3°. Condessas: Alva; Alvito; Alvor; Arcos;
Assumar; Atalaia; Atouguia; Aveiras; Avintes; Breyner; Calheta; Castelo Melhor;
Coculim; Ericeira; Galveias; Ilha do Príncipe; Lavradio; Óbidos; Pombeiro; Povolide;
Prado; Redondo; Ribeira Grande; Santiago; São Lourenço; São Miguel; São Vicente;
Sarzedas; Scheffenberg; Soure; Taboada; Tarouca; Unhão; Valadares;Vale de Reis; Vila
Flor; Vila Nova de Portimão; Vilar Maior; Vimieiro; Vimioso. Duques: Albuquerque;
Alincourt; Arcos; Atri; Aveiro, 7°; Banhos, v. Aveiro, 7º; Baviera (V. também ALEMANHA.
Eleitores); Béjar; Bedfort; Bourbon; Bragança; Brunswick-Wolfenbüttel; Cadaval, 1°;
Cadaval, 2°; Cadaval, 3°; Florença; Giovinazzo; Infantado; Königsegg; Lafões, 1°; Lafões,
2°; Liria; Lorena; Maine; Modena; Montellano; Nájera; Newcastle; Noailles; Orléans;
Orsana; Osuna; Parma; Retz; Ripperda; Sabóia, v. SARDENHA. Duque de Sabóia; San Blas;
Saint-Aignan; Saxónia, v. ALEMANHA. Eleitores; Somerset; Tallard; Tursi; Uceda;
Veragua; Villeroy. Duquesas: Arcos; Cadaval; Infantado; Lafões; Liria; Ormond; Osuna;
Parma; Picquigny; Populi; São Pedro. Grão-Duque. Marqueses: Abrantes, 1°; Abrantes,
2°; Alegrete, 2°; Alegrete, 3°; Angeja, 2°; Los Balbases; Beuzeville; Cafare [?];
Campoflorido; Capechelatro; Cascais, 3°; Castellar; Cuéllar; Fontes, 4°, e Abrantes, 2°;
Fronteira, 3°; Gouveia, 3°; Gouveia, 4°; Grimaldo; Louriçal, 1°; La Luzerne, v. Beuzeville;
Malespina; Marialva, 3°; Minas, 1°; Minas, 3°; Minas, 4°; Montebelo, 2°; Montemár;
Monti; Nisa: Nisa, 3°; La Paz; Pombal, 1°; Ravara; Santa Cruz [de Marcenado];
Tabuérniga; Távora, 3°; Valença, 2°; Vauban; Villadarias. Marquesas: Abrantes; Alegrete;
Arronches; Cascais; Fontes; Fronteira; Marialva; Niza; Santa Cruz; Távora; Unhão;
Valença. Princesas: Mecklenburgo; Nassau-Siegen; Parma. Príncipes: Baviera (V.
também ALEMANHA. Eleitores); Carpegna; Cellamare; Conty; Lorena, v. Duques: Lorena;
Mortagne; Orange-Nassau, v. ESTADOS GERAIS; Pio de Sabóia; Pons, v. Mortagne;
Rohan; Sabóia; Saxónia; Schwarzenberg, v. Condes. Viscondes: Asseca; Barbacena, 4°;
Ponte de Lima, v. Vila Nova de Cerveira; Del Puerto (V. também Marqueses. Santa Cruz
[de Marcenado]); Torrington; Vila Nova de Cerveira, 10°; Vila Nova de Cerveira, 11°; Vila
Nova de Cerveira, 12°. Viscondessas: Barbacena; Vila Nova de Cerveira.
(V. também CASAS SENHORIAIS, MORGADIOS, NOBREZA e OFÍCIOS--MORES DA CASA
REAL)
TOMADIAS
(V. também CONTRABANDO)
Cultura, vol. 21 | 2005
347
TORRES
Belém. Bugio. São Filipe. Velha (ou de São Sebastião da Caparica).
(V. também PRISÕES)
TOSCANA
Grão-Duque.
TOUROS E TOURADAS
TRATAMENTOS
(V. também CORTE DE PORTUGAL e PRECEDÊNCIAS)
TRIBUNAIS, v. CONSELHOS / SISTEMA POLISSINODAL.
TRIBUTOS, v. IMPOSTOS E TRIBUTOS.
TÚMULOS, JAZIGOS E SEPULTURAS
TURQUIA
O Grão Turco. Turcos.
VESTUÁRIO E TECIDOS
Adereços: leques; luvas.
(V. também FÁBRICAS. De Sedas)
VICE-REIS e GOVERNADORES
Angola. Brasil: Maranhão; Minas Gerais; Pernambuco; Paraíba; Rio de Janeiro; São
Paulo. Ilha da Madeira. Ilha de S. Miguel. Índia: Mazagão; Moçambique. Queixas.
VINHAS E VINHO
VIRTUDES
VISITAÇÕES
Visitadores.
BIBLIOGRAFIA
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MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis, "Autoria, proveniência e difusão", in: LISBOA, João Luís; MIRANDA,
Tiago C. P. dos Reis, e OLIVAL, Fernanda, Op. cit., Vol. 2 (1732-1734), 2005, pp. [13]-42.
—————, "Historiografia e tradição crítica: novela exemplar dos jornais manuscritos do século
XVIII", in: SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista, e GOUVÊA, Maria de Fátima Silva
(orgs.), Cultura Política: Interfaces entre História Social, História Política e Ensino de História, Rio de
Janeiro, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, 2005, pp. 155-175.
MOUREAU, François, Répertoire des Nouvelles à la Main. Dictionnaire de la presse manuscrite clandestine
XVIe-XVIIIe siècle, Oxford, Voltaire Foundation, 1999.
NOTAS
1. Para um último quadro-geral das lições conhecidas, v. Tiago C. P. dos Reis Miranda,
"Historiografia e tradição crítica: novela exemplar dos jornais manuscritos do século XVIII", in:
Rachel Soihet, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Silva Gouvêa (orgs.), Cultura
Política: Interfaces entre História Social, História Política e Ensino de História, Rio de Janeiro, Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, p. 160.
2. V. Manuela Santos (org. e sel.), Indexação. Terminologia e controlo de autoridades (Manual), Lisboa,
Biblioteca Nacional, 2003, e Maria Teresa Pinto Mendes e Maria da Graça Simões, "Indexação por
assuntos. Princípios gerais e normas", Páginas a&b, N° 8, Lisboa, Gabinete de Estudos a&b, 2001,
pp. 7-74.
Cultura, vol. 21 | 2005
350
3. Sobre os conceitos de "exaustividade", "especificidade" e "especificidade relativa", no domínio
das Ciências Documentais, v. Rossella Caffo, Analisi e indicizzazione dei documenti. L’acesso per
soggetto dall’informazione, [Milano], Editrice Bibliografica, 1988, pp. 27-35.
4. Definição que se ajusta, em termos gerais, ao primeiro dos quatro procedimentos possíveis
para a escolha e selecção de termos indexáveis, de acordo F. W. Lancaster. V. Rossella Caffo, Op.
cit., p. 75.
RESUMOS
A edição de um maiores testemunhos narrativos do reinado de D. João V impõe a observância de
procedimentos de transcrição, anotação e indexação relativamente complexos. Tendo por meta
consolidar o percurso dos últimos anos e considerando a necessidade de ajustar o trabalho em
equipa, procura-se aqui proceder a um exercício de pormenorização de critérios, com base na
estrutura dos volumes já publicados e num novo contacto com as normas disponíveis sobre a
recuperação de informações bibliográficas e documentais.
Editing one of the largest narrative reports from the reign of D. João V demands the practice of
fairly complex transcription, annotation and indexing procedures. To firm the track that has
been opened in the last few years, and due to the need of making adjustments on team working
rules, this is an essay of establishing a list of detailed criteria, built upon the structure observed
on the volumes already printed, and bearing in mind international normative principles of
accessing documentary and bibliographical information.
ÍNDICE
Keywords: Gazettes, news, scribal news, 18th century, King João V, edition
Palavras-chave: Gazetas, informação, séc. XVIII, D. João V, edição
AUTORES
TIAGO C. P. DOS REIS MIRANDA
Doutor em História pela Universidade de São Paulo, Brasil (1998). Investigador do CHC UNL. Chefe
de Gabinete da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses
(1999-2002). Professor Visitante da Cátedra Jaime Cortesão (2004). Colabora no projecto "Chefes
de missões portuguesas no exterior: 1640-2000", do Instituto Diplomático do Ministério dos
Negócios Estrangeiros. Publicou, com João Luís Lisboa e Fernanda Olival, Gazetas Manuscritas da
Biblioteca Pública de Évora, 2 vols. 2002 e 2005.
FERNANDA OLIVAL
Professora na Universidade de Évora, onde se doutorou (2000). Investigadora do Centro
Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da mesma Universidade. Investiga
temáticas de história político-institucional, história da produção documental e da circulação da
Cultura, vol. 21 | 2005
351
informação. Autora, entre outros, de As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e
venalidade em Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar, 2001 e, com Tiago C.P. dos Reis Miranda e João
Luís Lisboa, Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora, 2 vols. 2002 e 2005.
JOÃO LUÍS LISBOA
Professor na FCSH, UNL. Director do CHC UNL onde é responsável pelo projecto "Livro e leitura".
Publicou, entre outros trabalhos, Teoria da história em Francisco Manuel de Melo (com Teresa
Amado) [1983], Ciência e política. Ler nos finais do Antigo Regime (1991), Gazetas. A informação política
nos .finais do Antigo Regime (coord.) (2002) e, com Tiago C.P. dos Reis Miranda e Fernanda Olival,
Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora, 2 vols., 2002 e 2005.
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Recensões
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Dictionnaire Encyclopédique du Livre. Volumes 1 e II: A-D; E-M. Sous ladirection de Pascal Fouché, DanielPéchoin, Philippe Schuwer.Responsabilité scientifique de PascalFouché, Jean-Dominique Mellot,Alain Nave, Martine Poulain,Philippe Schuwer. Préface de Henri-Jean Martin. Paris: Éditions duCercle de la Librairie, 2002; 2005,XXXIII-900 e XI-1074 pp.José Augusto dos Santos Alves
REFERÊNCIA
Pascal Fouché, Daniel Péchoin, Philippe Schuver (dirs.) ; Pascal Fouché, Jean-Dominique
Mellot, Alain Nave, Martine Poulain, Philippe Schuwer (resp. scient.); Henri-Jean Martin
(pref.), Dictionnaire Encyclopédique du Livre. Volumes 1 e II: A-D; E-M. Paris: Éditions
du Cercle de la Librairie, XXXIII-900; XI-1074 pp
"Do livro como objecto de paixão" poderia ser perfeitamente o subtítulo deste
Dictionnaire Encyclopédique du Livre. Domínio recente e em pleno desenvolvimento,
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numa altura em que, impropriamente, se fala do livro electrónico, a História do Livro
tem nesta obra colectiva uma irrecusável referência para quem, especialistas,
amadores, bibliófilos, professores, estudantes ou grande público, deseje estar a par do
estado dos conhecimentos nesta área do saber.
Na linha pioneira de Henri-Jean Martin, Roger Chartier e outros, o Dictionnaire, longe de
se fechar nos limites do "héxagono" e nas suas fronteiras tradicionais, inova ao abrir-se
à História do Livro de outros países, ganhando em praticar a mistura e as articulações,
ao mesmo tempo que cultiva as interferências e privilegia as circulações. Aposta
transdisciplinar, a obra "viaja" da história aos direitos de autor, das bibliotecas à edição
contemporânea, da arte de fabricar à leitura, na essência, do estatuto de incontestável
produtor de conhecimentos, nas origens do homem moderno, à condição de obra de
arte.
O prefácio de Henri-Jean Martin, ao propor-nos o cruzamento de três noções
(dicionário, enciclopédia e livro), dá-nos, ao mesmo tempo, uma ideia da dimensão de
uma obra colectiva em três volumes, com o primeiro, de A-D, publicado em 2002 e o
segundo, de E-M, divulgado em 2005. A perspectiva do estado dos saberes, fortemente
estimulante nesta área, coloca-nos perante um mundo desconhecido de inovadoras
abordagens, numa época em que, como se disse, a forma tradicional do livro começa a
ser posta em questão.
Obra enorme, exuberante, e minuciosamente recorrente, o Dictionnaire é, em
derradeira instância, uma produção sobre a originalidade do homem, da cultura e da
linguagem humana. Janela sobre os séculos, os seus obreiros contam-nos o tempo dos
livros e o tempo das "novas tecnologias".
A notável e cuidadosa abordagem dos temas, que deixa ver um frente-a-frente dos
autores (algumas centenas) com as temáticas, que com propriedade comunicam, faz
excelente casamento com a riqueza das ilustrações, com o objecto de arte, tornando a
matéria, por vezes austera, reservada a especialistas, numa proposta de "visita"
acolhedora aos leitores menos familiarizados com estas temáticas.
Obra de grande fôlego, em vários andamentos, o Dictionnaire coloca à disposição dos
estudiosos e especialistas uma variada grelha temática, na qual a direcção editorial
(Pascal Fouché, Daniel Péchoin e Philippe Schuwer) e a direcção científica (Jean-
Dominique Mellot, Martine Poulain, Alain Nave, Pascal Fouché e Philippe Schuwer1),
feitas com mão de mestre, tiveram seguramente uma importante e fundamental
actividade na organização dos assuntos, não deixando qualquer pormenor ao acaso,
numa evidente demonstração de quem domina os temas com competência,
empenhamento e "paixão".
Uma observação final: o elevado preço dos dois volumes (178 e 195 €) torna a obra
inacessível a muitas bolsas. Espera-se, apesar da "contenção" financeira em que
vivemos, que a obra fique consultável nas principais Bibliotecas do país, não
obstaculizando, assim, a indispensabilidade de consulta de temáticas de dimensão
universalista para quem deseje estar a par dos últimos desenvolvimentos no sector de
ponta da História do Livro.
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NOTAS
1. "Histoire du livre et de l'édition" e colaboração em "Arts et industries graphiques" (Jean-
Dominique Mellot); "Bibliothéconomie et lecture" (Martine Poulain); "Arts et industries
graphiques" (Alain Nave); "Édition contemporaine" (Pascal Fouché; Philippe Schuwer).
AUTORES
JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS ALVES
Doutor e Agregado em História e Teoria das Ideias pela FCSH UNL. Investigador do CHC UNL.
Autor de Ideologia e Política na Imprensa do Exílio: O Portuguez - Londres, 1814-1826 (1992); A opinião
pública em Macau: a imprensa macaense na terceira e quarta décadas do século XIX (2000); A opinião
pública em Portugal (1780-1820) (2000); Comunicação e História das Ideias: A Génese do "Editorial Político"
(2004), O Poder da Comunicação (2005).
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José Gil, Portugal, Hoje: o Medo deExistir, Relógio d'Água, Lisboa, 2004Carlos Leone
REFERÊNCIA
José Gil, Portugal, Hoje: o Medo de Existir, Relógio d'Água, Lisboa
Um aspecto poucas vezes (se é que alguma vez) referido a propósito deste livro de José
Gil é o modo como sintetiza tantos aspectos da sua obra anterior. O que é tanto mais
interessante quanto o faz recorrendo quer a noções centrais dela como a aspectos quase
desconhecidos, e isto através de uma reflexão sobre mentalidades que não é muito
frequente destacar-se nos seus trabalhos. Mais ainda do que «a intensidade que uma
relação com este país supõe» (p. 142), que José Gil refere ao terminar, este traço confere
à leitura de Portugal, Hoje um aspecto como que testamental (termo prematuro, quando
a editora anuncia um novo livro seu para breve) relativamente à sua «Obra». É, pelo
menos para os seus leitores habituais, ainda um outro elemento próximo da indiscrição,
a somar a vários outros pequenos apontamentos que, ao terminar, Gil quis diferenciar
de simples estados de alma.
Desde o surgir deste livro no final de 2004, e por motivos que excediam a curiosidade
relativa às páginas (bem poucas, diga-se) sobre a conjuntura política nacional de então,
essa relação com o trabalho anterior de José Gil era fácil de notar. O tema do medo que
o título expõe não é novo no seu trabalho: ele era central já em Salazar: a Retórica da
Invisibilidade (Rd’A, 1995) e surgira também em várias outras ocasiões, das quais será
conveniente relembrar um artigo publicado em 1992, na Revista do Expresso, «A pulsão e
a escala». Conveniente, a nosso ver, por, apesar de nessa altura não ser evidente, era já
para o tema do medo que a argumentação do artigo conduzia (lembre-se que o próprio
artigo surgia como peça polémica, a propósito da tentativa de silenciar um crítico do
jornal, António Guerreiro). Em vários capítulos de Portugal, Hoje encontramos passos
que retomam e desenvolvem a argumentação desse artigo de 1992. Talvez mais ainda
do que sucede com o livro de 1995 sobre a retórica salazarista, e com outros
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posteriores, dos quais também José Gil recupera conceitos, é a esse ensaio publicado
num tempo em que à «Imprensa» ainda podia servir o termo «de referência» que vai
buscar muita da sua originalidade, ainda que desenvolvendo-o de modos então
imprevisíveis.
(Neste ponto, uma declaração de interesses impõe-se: já escrevi sobre esse artigo de
José Gil, em Dez Criticas, Colibri, Lisboa, 1999, cf. pp. 119-134. E, depois disso, recuperei o
artigo e também Salazar: a retórica... num capítulo da minha dissertação de
doutoramento, capítulo todo ele dedicado ao tema do medo no século XX português. A
dissertação foi defendida apenas meses antes da publicação deste livro, que muito
gostaria de poder ter citado, mesmo que para discordar dele.)
Sobre o sucesso público e a coincidência da aparição num «ranking» dos pensadores
actuais surgido em França (logo quando neste livro se critica a ideia dos rankings como
modelo de avaliação generalizável), houve sageza do editor ao lançar no mercado este
livro quando o tema do medo se havia instalado no «espaço mediático» (para nos
servirmos de um distinguo em que José Gil insiste e ao qual voltaremos) a propósito de
sucessivos problemas entre o poder Executivo e os meios de comunicação. Mas não só: o
que este sucesso significa, acima de tudo, é a capacidade de entender e pensar a
realidade presente no léxico próprio que Gil foi desenvolvendo, obra após obra, em
trabalhos aparentemente muito distantes deste tema. Que a realidade social e política
não está fora do trabalho anterior de José Gil sabia-se desde há muito (tanto nos seus
projectos individuais como em contributos para outros colectivos, como a Enciclopédia
Einaudi, por exemplo). Mas só agora, e não em colaborações na Imprensa (no Público na
década de 1990 ou, actualmente, no Courrier Internacional), surgiu um «caso de estudo»
no qual José Gil aplica metodicamente uma análise que recorre ao conjunto dos seus
próprios termos. É preciso ter isto presente para que não suceda, como aconteceu num
dos raros artigos dissonantes face à aclamação geral ao livro (surgido no Público e
assinado por um professor da Faculdade de Economia da UNL), vermos na
argumentação desenvolvida apenas mais um caso do mesmo mal que é denunciado. Tal
leitura é possível, em particular nas referências de Gil à Europa (isto é, à União
Europeia) e ao nosso sistema democrático representativo, bem como na ênfase no
salazarismo como responsável directo pelo medo no Portugal de hoje. Mas, não só todas
essas referências são matizadas (num equilíbrio precário que leva o próprio autor a
reconhecer regularmente que há sempre muito que fica por discutir), como essa leitura
do livro contra o autor, digamos assim, só é possível se – como parece ter sido o caso
desse artigo – ignorarmos o trabalho conceptual envolvido na argumentação. Mais do
que «história das mentalidades», como Gil sugere, parece-nos ser um caso de «Filosofia
da Cultura», além de que a oposição, frequente, entre «medo» e «responsabilidade»
evoca irresistivelmente Max Weber.
Enquanto reflexão filosófica sobre a cultura portuguesa actual, então, ao que se assiste
é a uma permanente tentativa de sistematização de psicopatologias da vida nacional
quotidiana: o medo, aliás duplo medo (dado o fenómeno de «duplo esmagamento»); a
inveja e o ressentimento; a irresponsabilidade individual; o colectivo desrespeito da lei,
quer pela pequena tirania quer pela alegre inconsciência; a demissão cívica geral.
Sistematizar estes males enquanto males nacionais leva por várias vezes José Gil a
recorrer ao «evenemencial» e ao anedótico, que não podem colher como tese nem como
prova num esforço de sistematização, claro, mas que deslocam da generalização
máxima (como males humanos) para a generalização sistematizável: males recorrentes
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numa cultura como a portuguesa, fechada até ao fim da modernidade e aberta, agora,
com um arcaísmo pós-moderno (bela fórmula, próxima de autores como Boaventura
Sousa Santos e Manuel Villaverde Cabral, e reminiscente de «A pulsão e a escala»).
Destacando o caso português da modernidade europeia (um dos matizes face à Europa),
Gil não obstante serve-se de um aparato teórico desenvolvido a propósito da
Modernidade para estudar o fenómeno arcaico que hoje Portugal representa em tantos
aspectos da pós-modernidade geral. De Arendt a Negri e Hardt, passando pelas
referências usuais nos seus trabalhos a autores de formação psicanalítica e, sobretudo,
Deleuze e Foucault (este «e» sendo aliás bastante problemático, mas isso seria outra
questão). Os críticos do «pensamento 68» e do anti-humanismo teriam aqui muito com
que se entreter. Sucede que, justamente ao articular sobre as realidades paroquiais uma
análise sistematizante (seja ela histórica ou filosófica, agora isso é o menos), revela
sobretudo o escasso conhecimento de José Gil dessa realidade e dos estudos já
elaborados a seu respeito.
É notável como algumas das teses mais fortes deste ensaio lampejam para de imediato
errarem em afirmações genéricas reveladoras de simples desconhecimento. Assim
sucede nas repetidas notas sobre a falta de estudos da realidade portuguesa, e o recurso
a outros modelos para suprir essa falta, como no caso do capítulo «Trauma, terror,
medo»; aí se ignora, para dar apenas um exemplo, Classe, status e poder, de Hermínio
Martins (ICS, Lisboa, 1998), obra que seria muito útil para a análise empreendida por
José Gil (e de um autor que Gil aliás conhece). Como em qualquer trabalho deste tipo, as
referências bibliográficas seriam em qualquer caso inesgotáveis; não se trata de
desinteresse pelo trabalho de outros mas de um trabalho de argumentação que recorre
a umas fontes e não a outras. O problema, contudo, está em supor um conjunto de teses
muito vastas a respeito da cultura portuguesa partindo do princípio de que faltam
estudos que de facto existem. Em rigor, este mal é também uma das causas daquela
faceta sintetizante que Portugal, Hoje encerra, pois permite recuperar materiais de tipo
antropológico e etnográfico, sobre representações do corpo no Portugal efectivamente
arcaico, anteriores ainda a trabalhos sobre o corpo (e a dança) bem mais recentes. O
problema está em, ao fazê-lo, descurar toda a reflexão das ciências sociais e humanas a
respeito da realidade portuguesa (num caso, cf. p. 126, apresenta-se mesmo a «velha
sociedade portuguesa» como solidária, associativa e com espírito de entreajuda, bem o
oposto da mediocridade organizacional de sempre, da qual o corporativismo se fez.
Sintomaticamente, uma crítica que, em conversa pessoal, ouvi ao livro, vinda de um
português radicado nos EUA, foi a ausência da questão da confiança nas relações sociais
de tipo institucional).
O exemplo mais gritante é José Gil escrever todo o seu ensaio quase sem referências à
presença do tema «medo» no pensamento português. Ora, o tema é tudo menos novo, é
até um veio central no século XX, até antes do salazarismo. Mesmo quando, em alguns
momentos, se sente um eco de autores portugueses (o Eduardo Lourenço de O Labirinto
da Saudade, por exemplo), o preço de ignorar a presença desse tema no pensamento
português contemporâneo é cair na ambígua relação com a União Europeia que
atravessa todo este livro. Pois, justamente, foi a Europa (enquanto ideal também ele
sujeito a diversas perspectivas ao longo do século XX) que serviu de norte ao
pensamento português contemporâneo quando este quis cortar com o recurso ao medo
(para falar como José Régio). Ignorar isto é ficar preso a fórmulas como «linhas de fuga
que em certas zonas da cultura e pensamento já se desenham» (p. 142). Pelo contrário:
já se desenharam, há décadas, e foi por esse desenho se ter imposto socialmente que se
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deu o colapso do Estado Novo, e não o inverso, como se pretende ao apresentar o 25 de
Abril de 1974 como um momento mágico do qual ficámos, afinal, aquém. Essa linha de
fuga foi a Europa moderna e o seu sucesso social só se institucionalizou com a adesão à
então CEE, como Gil também reconhece, pese embora os arcaísmos bem reais (e bem
visados por Gil) que permanecem.
Outros exemplos, menos abrangentes, deste distanciamento do autor face ao estudo da
realidade social portuguesa: o recurso à metáfora da doença para explicar os
fenómenos que aborda (medo, inveja, etc.), originando uma profusão de viroses,
cancros, etc., que traz à memória o conselho de Susan Sontag para evitarmos ver na
doença um castigo. Ou a suposição de um mandarinato que vive em circuito fechado,
composto por sujeitos dotados de «autoridade invisível» como economistas, sociólogos,
catedráticos (cf. p. 30; o «catedrático» diferenciado dos outros é curioso, ainda para
mais vindo de um catedrático que honra a Universidade, como é o caso), mas que
permanece sempre por nomear (até ao último capítulo, onde há de facto alguma
nomeação), como se a denúncia genérica não fosse uma falsa maneira de «dar a cara»
no «espaço mediático». E não «espaço público», de facto.
A ênfase de José Gil, quando discute os meios de comunicação social, na televisão não é
deslocada. A televisão, hoje, e não obstante o crescimento da influência da internet
(também notado por Gil), permanece como matriz do modelo dominante de
comunicação social, baseado em imagens e velocidade. Por isso mesmo, o espaço dos
media, suicidariamente reduzido a um modelo (televisivo) cuja lógica imagética é fatal
para órgãos nos quais a palavra e a escrita são imprescindíveis (a Imprensa), é cada vez
mais um espaço mediático e menos um espaço público. Não apenas pelo seu
autofechamento (fenómeno também real mas não suficiente) mas sobretudo pela sua
natureza contrária à vida pública, a qual está ainda antes da publicidade que rege o
espaço público moderno. Algumas das melhores páginas deste ensaio encontram-se,
sem surpresa, na descrição dos processos sociais característicos da vida de uma obra
num espaço público moderno (como professor de Filosofia Moderna José Gil conhece
bem o tema); e, em contraste, o «espaço mediático» é um espaço dos «media» para
autoconsumo, possível pela sua descaracterização em função do modelo imagético
imposto pela lógica televisiva.
Registar apenas o sucesso deste livro no espaço mediático e, através dele, entre o
«grande público», seria incorrer num de dois equívocos. Ou imaginar que o sucesso do
livro significa a «reforma das mentalidades» há tanto esperada (e para sempre por
verificar até se mudarem práticas...), o que seria no mínimo ingénuo, ou imaginar que o
seu sucesso resulta da sua inocuidade e da alienação geral, o que seria uma leitura
demasiado literal de algumas das suas teses. Entre um equívoco e outro, Portugal, Hoje é
já um livro cujo sucesso obscurece a Obra anterior que o possibilitou e sem a qual ele é
muito menos consequente do que pode e merece ser. E assim José Gil permanecerá
estrangeirado, «compatriota exilado, pois, no seu próprio país.» (p. 28). O que não é a
vida.
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Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, As Farpas, coord. Maria FilomenaMónica, Principia, S. João do Estoril,2004.Carlos Leone
REFERÊNCIA
Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, As Farpas, coord. Maria Filomena Mónica, Principia,
S. João do Estoril.
1 Um pouco como sucedeu com Portugal, Hoje de José Gil, esta edição de As Farpas surgiu
num contexto do espaço mediático português muito marcado por um momentâneo
extremar das suas características mais venais, o que, se teve algum proveito em termos
de vendas, contribuiu também para que a recepção imediata desta edição reproduzisse
acriticamente os tropos e os topos do costume sobre Eça (Ramalho é como se nem
estivesse lá...). Sem lamentação nem indignação, não custa compreender que, além das
causas naturais para essa recepção imediata, que sempre se fariam sentir (preguiça,
prosápia, etc.), uma vez dissolvido o contexto de Portugal no final de 2004 esta edição
de As Farpas merece ser criticada.
2 Desde logo pela sua qualidade intrínseca de livro, esteticamente e cientificamente. Fiel
a uma imagem original e tão manuseável quanto é possível ser um volume de quase 650
páginas, em termos estéticos segue e melhora a edição de 2003 de Eça Jornalista (também
na Principia). Também a continuada coordenação da edição por Maria Filomena Mónica
mantém uniformidade nos critérios gerais do trabalho de recolha da colaboração de Eça
na Imprensa regular (trabalho de várias entidades por ocasião do centenário da sua
morte), e se isso limita estas Farpas aos anos de 1871 e 1872, o volume contém ainda
muito mais material de interesse: além de uma «Introdução» sóbria e útil (por M. F.
Mónica), toda uma série de elementos de apoio ao leitor não especializado (cronologia,
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tabela onomástica e glossário, sobretudo); e, mais original do que tudo o resto, o.fac-
simile de Les Guêpes, de Alphonse Karr, modelo seguido por Eça e Ramalho.
3 Quem comparar o modelo e a sua versão portuguesa, como de resto o fez Eça (segundo a
descrição de M. F. Mónica da génese de As Farpas), fica com uma boa medida das limita
ções da empresa de Eça e Ramalho. Que essas limitações sejam hoje ainda mais sensíveis
é, aliás, um bom sinal — pelo menos em alguns aspectos estamos mais próximos do
original do que da sua versão aportuguesada. E isto porque o original era, apesar do seu
estilo satírico, essencialmente tradicional, um produto de uma sociedade moderna, da
dinâmica crítica do espaço público em que as «liberdades dos modernos», mau grado
todas as convulsões, eram reais. Já a «ironia» de Eça e Ramalho está aqui bem visível em
todo o seu curto manancial de recursos (em tempos devidamente comentado pelo Eng°.
Álvaro de Campos, no que a Eça diz respeito — e justamente comparando-o com um
autor francês...). De facto, se comparada com a norma portuguesa de então, a prosa de
Eça e Ramalho distingue-se de quase tudo o resto pela sua superioridade; mas só se nos
limitarmos a isso mesmo, a um sucesso de escândalo em contexto pré-moderno. (Sobre
o possível significado disso relativamente ao seu actual sucesso não curamos aqui.)
4 No contexto de Portugal, século XIX, são ainda hoje legíveis muitas destas páginas.
Contexto marginal ao surgir das ciências sociais modernas, como aliás tanto Eça como
Ramalho bem atestam (de diferentes modos) nas suas Obras individuais, contexto de
crise nacional como hoje nem se sabe o que é (e, não por acaso, contexto de isolamento
face à Europa moderna), contexto de dualidade social aparentemente insuperável.
Escrevendo dentro desse contexto, por mais que escrevessem contra ele numa crítica
apenas aparentemente distanciada, polémicas como as que se repetem com Pinheiro
Chagas ainda são leitura agradável e instrutiva. Menos evidente para o leitor entusiasta
serão talvez páginas como as escritas a respeito da morte de Rebelo da Silva (para dar
apenas um exemplo possível), bem esclarecedoras da tardia pré-modernidade do país
que as tornava possíveis, como já possibilitara a grandeza do próprio Rebelo da Silva. O
louvor desmedido a um autor, e sobretudo a um crítico, meritório mas tão limitado
como Rebelo da Silva (leiam-se os volumes das suas Apreciações Literárias), pode bem
servir de indicador das afinidades afinal demasiado estreitas com aquele mesmo
Portugal que pretendiam criticar.
5 Relendo As Farpas, não espanta que não tenha sido só Pessoa a contestar os méritos
ainda hoje atribuídos quase sem reservas a Eça e, de um modo geral, à Geração de 70.
Muito menos surpreende que tal contestação, ocorrida no século XX, se diferencie do
simples nacionalismo linguístico que reprovara a Eça o estilo afrancesado, e que,
congregando autores tão díspares como sergianos e neo-realistas, vise a inconsequência
dos «Vencidos da Vida», salientando de várias perspectivas a estreiteza metodológica
(ou científica) da sua análise, descrição e tentativa de mudança de Portugal. Lendo As
Farpas numa boa edição como esta, mais notório se torna que Portugal só se tornou
contemporâneo um século depois de Eça e Ramalho terem cessado a pareceria nesta
alegre campanha. Alegre e falhada, hoje algures entre entertenimento e documento.
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Robert Darnton, George Washington'sFalse Teeth. An Unconventional Guideto the Eighteenth Century, NovaIorque/Londres, W. W. Norton,2003, 208 pp.João Pedro Rosa Ferreira
REFERÊNCIA
Robert Darnton, George Washington's False Teeth. An Unconventional Guide to the
Eighteenth Century, Nova Iorque/Londres, W. W. Norton, 208 pp.
1 O título e o pós-título advertem logo à partida o leitor de que está perante um livro
portador de alguma dose de provocação. Em português poderíamos traduzi-lo por Os
Dentes Postiços de George Washington. Um Guia Não convencional do Século XVIII.1 Trata-se de
um conjunto de oito ensaios sobre temas de história das ideias e das mentalidades
setecentistas, a que o autor tem dedicado em exclusivo a sua já longa carreira de
investigador. O objectivo é ao mesmo tempo simples e ambicioso - "abrir linhas de
comunicação com o século XVIII e, ao segui-las até às fontes, compreender o século
'como ele realmente foi', em toda a sua estranheza" (p. xv).
2 Na esteira do título, pode dizer-se que também Robert Darnton é um historiador pouco
convencional, pelo tom irreverente da escrita e pela ironia fina com que "tempera" os
seus trabalhos - quanto ao conteúdo, o conjunto da sua obra assenta numa investigação
original, sustentada por uma sólida erudição que lhe granjeou prestígio internacional.
Nascido em 1939, em Nova Iorque, Darnton estudou na Universidade de Harvard, onde
obteve uma Bolsa Rhodes que lhe permitiu fazer o doutoramento em Oxford, em 1964.
Regressado aos Estados Unidos, trabalhou como jornalista no New York Times e ensinou
nas universidades de Harvard, Stanford e Princeton, além de leccionar sucessivos
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cursos na Europa (Instituto de Altos Estudos, na Holanda; Collège de France; Oxford e
Warwick, em Inglaterra). Foi presidente da American Historical Association e da
Sociedade Internacional de Estudos do Século XVIII. Actualmente, é titular da cátedra
Shelby Collum Davis de História da Europa na Universidade de Princeton.
3 Herdeiro intelectual da escola dos Annales, Robert Darnton reconhece igualmente no
seu trabalho a grande influência da nova história do livro e da leitura, particularmente
os trabalhos de Roger Chartier. Como resultado de 25 anos de "imersão" nos arquivos
da Société Typographique de Nêuchatel, na Suíça, onde foram impressos muitos dos
livros marcantes da época das Luzes, Darnton logrou alcançar uma nova perspectiva
sobre as décadas finais do Antigo Regime. O conjunto da sua obra permite-nos
acompanhar a circulação das ideias na sociedade francesa a partir do estudo da
produção, venda, distribuição e leitura de livros, gazetas, pasquins e folhetos. O seu
objectivo como historiador é, conforme afirmou numa entrevista, "mostrar não só o
que as pessoas liam, mas também como pensavam, como construíam o seu mundo,
como lhe davam significado e lhe infundiam emoções". É autor de dezenas de artigos
científicos e de mais de uma dúzia de livros, entre os quais Mesmerism and the End of the
Enlightenment in France, Cambridge (Massachusetts), Harvard University Press, 1968; The
Literary Underground of the Old Regime, Cambridge (Massachusetts), Harvard University
Press, 1982, traduzido para francês como Bohème littéraire et révolution. Le monde des livres
au XVIIIe siècle, 1983; The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History,
Nova Iorque, Basic Books, 1984 (edição brasileira: O Grande Massacre de Gatos e outros
episódios da história cultural francesa, Rio de Janeiro, Graal, 1986); Edition et sédition.
L’univers de la littérature clandestine au XVIIIe siècle, Paris, Gallimard, 1991; e The Forbidden
Best-Sellers of Prerevolutionary France, W. W. Norton, 1995.
4 O vasto saber acumulado – e partilhado – por Robert Darnton permite-lhe partir para
este seu livro mais recente com uma certeza: "tudo o que diz respeito ao século XVIII é
estranho" (Introdução, p. ix) e "visite o século XVIII e regressará com a cabeça à roda,
porque ele é infinitamente surpreendente, inexaurivelmente interessante e
irresistivelmente estranho" (p. x). Para ilustrar esta premissa, começa por contar que,
ao tomar posse como primeiro Presidente dos Estados Unidos, em 1789, George
Washington tinha um único dente na boca, um bicúspide esquerdo de baixo. Para
colmatar a falta de dentes, o "Pai Fundador" da América tinha uma vasta colecção de
postiços – de marfim de elefante, de presas de morsa e de hipopótamo, além, claro, de
dentes humanos. No entanto, apressa-se a acrescentar Darnton, Washington "não
estava sozinho na luta contra as doenças dos dentes. Os seus contemporâneos,
provavelmente, preocupavam-se mais com as dores nas gengivas do que com a nova
Constituição de 1787" (p. ix).
5 A propósito, ficamos também a saber que a personagem mais famosa da Paris
setecentista (além do carrasco oficial) era um arrancador de dentes conhecido como Le
Grand Thomas, que exercia o ofício na Pont-Neuf. Nem o próprio Rei-Sol era imune às
dores de dentes... e respectivas consequências: os médicos de Luís XIV fracturaram-lhe
o maxilar ao tentarem extrair molares podres.
6 Com estes e outros episódios, aparentemente do âmbito da "petite histoire", o autor
fornece "um guia para o século XVIII, não para todo ele (isso exigiria um tratado em
vários volumes) mas para alguns dos seus cantos mais curiosos e recônditos e também
para a sua questão principal, a causa das Luzes" (p. xi). Ao estudar o mundo mental de
setecentos, Darnton enfrenta um problema: os temas em causa têm, de uma maneira ou
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de outra, afinidades com questões actuais. E se o primeiro mandamento do historiador
é "Não cometerás anacronismo", o perigo do presentismo torna-se insidioso. É que,
explica ele, "Não há acesso ao passado sem intermediários" (p. xii) – e os intermediários
são os nossos próprios olhos. O dilema é incontornável. A citação é longa mas vale a
pena:
"Os historiadores enfrentam este dilema recorrendo a um ethos profissional.Tentam reconstruir o passado 'como ele realmente foi', de acordo com as regrasestabelecidas por Ranke, na senda de Tucídides. Mas este compromisso tem umpreço, pois o historiador profissional tende a ser esotérico e os historiadoresprofissionais, com frequência, escrevem uns para os outros, separados do públicoem geral por um muro de erudição destinado a protegê-los. Este livro tencionaquebrar essa barreira. É escrito para o leitor instruído e pretende dar umaperspectiva histórica a questões actuais, tais como: A adopção do euro veio pôr emcausa noções adquiridas sobre a identidade da Europa? A Internet criou uma novasociedade de informação? A obsessão com a vida privada das figuras públicas podeevidenciar linhas de fractura na cultura política? Ao projectar estas questões contraum pano de fundo do século XVIII, penso ser possível vê-las a uma nova luz,desfrutando, ao mesmo tempo, de uma visão mais fresca do século XVIII.Isto pode parecer um anacronismo desavergonhado. Espero, no entanto, ser capazde enfrentar o elemento presentista implícito em cada imagem do passado pelofacto de o reconhecer e de levá-lo em conta à partida... Fazer o passado parecer umaterra estranha demasiado distante pode cortar-lhe o acesso. Em vez de reificarculturas estranhas na esperança de capturar qualquer coisa que imaginamos ser asua essência, devemos antes interrogá-las. Precisamos aprender a falar as suaslínguas, de fazer as perguntas correctas às fontes relevantes e traduzir as respostaspara um idioma que possa ser compreendido pelos nossos contemporâneos.Não vejo um caminho fácil para contornar o duplo perigo do passéisme e dopresentismo, excepto andar num vai-vem entre os séculos, à procura de novasperspectivas. Mas o valor da história, tal como eu a entendo, é esse: não dar liçõesmas proporcionar perspectiva." (pp. xii-xiii)
7 O melhor fica para o fim: o prazer que dá "viajar" na história, sobretudo (de acordo com
Darnton) para os que se dirigem ao século XVIII. Apesar de muito do que se julgava
certo sobre a época pertencer, afinal, à categoria de mito (por exemplo, que
Washington tinha dentes postiços de madeira), a verdade é que os "mitos deram forma
às mentalidades" (p. xv).
8 O primeiro ensaio, intitulado "Em defesa das Luzes: os dentes postiços de George
Washington" (pp. 3-24), parte do princípio que o conceito de Luzes foi inflacionado,
acabando por ser levado a coincidir praticamente com o de modernidade ou,
genericamente, com a civilização Ocidental. Darnton lança-se à tarefa de o deflacionar,
estabelecendo-lhe balizas cronológicas e conceptuais. Ao libelo acusatório apresentado
contra as Luzes pelo pós-modernismo, o autor responde com uma defesa bastante
convincente, concluindo a favor do progresso ("com p pequeno"), tendo em conta os
ganhos obtidos pelo prazer sobre a dor nos últimos 200 anos e a simpatia que merecem
aqueles que se ergueram em defesa dos direitos humanos contra a desumanidade –
acima de todos, Voltaire.
9 Em "As notícias em Paris: uma sociedade de informação precoce" (pp. 25-75), o autor
contesta a ideia de que a era da informação seja exclusiva da época actual. Defende,
pelo contrário, que por volta de 1750 havia um sistema de comunicações em
funcionamento, cujo centro de difusão era a Árvore de Cracóvia, nos jardins do Palais-
Royal, em Paris. Ali se juntavam os "nouvelistes de bouche" que divulgavam notícias e
boatos, em seguida espalhados pelos jardins e cafés da capital francesa e, a partir daí,
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por todo o país. Além destas notícias orais, as notícias à mão (poemas, cartas, pasquins),
os periódicos e panfletos impressos e os livros completavam o circuito de comunicação
na França de meados do século XVIII.
10 "A unidade da Europa: cultura e boas maneiras" (pp. 76-88) aborda a identidade do
Continente e reflecte sobre a possibilidade de uma integração europeia, desde o mito do
rapto de Europa, filha de Agenor de Tiro, passando pelas conquistas de César, Carlos
Magno, Napoleão e Hitler, pelo cosmopolitismo kantiano e a Declaração dos Direitos do
Homem de 1789 até à adopção do euro como moeda única.
11 "A busca da felicidade: Voltaire e Jefferson" (pp. 89-106) é uma viagem às origens da
ideia de felicidade, um marco da cultura americana, que remonta a Platão e Aristóteles
e também aos epicuristas e aos estóicos. A leitura do autor de Candide teve uma
importância seminal no redactor da Declaração de Independência da América.
12 Rousseau, o romântico, ou Rousseau, o pai do totalitarismo, é a questão central de "A
grande divisão: Rousseau na estrada de Vincennes" (pp. 107-118). Foi no caminho para
casa do seu amigo Diderot, em Vincennes, no Verão de 1749, que Rousseau leu num
jornal o anúncio ao concurso literário promovido pela Academia de Dijon sobre o tema:
"Se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para a purificação dos
costumes". O resultado foi o Discurso sobre as Ciências e as Artes, que ganhou o prémio da
Academia em 1750 e fez a celebridade do cidadão de Genebra.
13 O período que se seguiu à independência dos Estados Unidos assistiu a uma autêntica
Americomania em França. Nos teatros de vaudeville, na pintura, na música, na moda...
não passava um dia em que Le Journal de Paris, o único diário francês da época, não
trouxesse "o último grito" do outro lado do Atlântico. Entre os maiores entusiastas
contavam-se dois vultos que partilhariam o destino trágico dos girondinos na
Revolução que se aproximava. É o tema de "A mania da América: Condorcet e Brissot"
(pp. 119-136).
14 Luzes e especulação — podia ser este o título do ensaio "A busca do lucro: Rousseauismo
na Bolsa" (pp. 137-155), que estuda a derrapagem especulativa da Bolsa de Paris em
1785-87, por acção de Étienne Clavière e de Brissot, que faziam negócios pouco
transparentes ao mesmo tempo que escreviam panfletos citando, de forma apologética,
Rousseau.
15 O último ensaio, "Os esqueletos no armário: como os historiadores se armam em Deus"
(pp. 156-174) é ao mesmo tempo uma estimulante reflexão historiosófica e uma
profissão de fé na humildade científica. "Factos" e "verdade" podem ser palavras muito
pesadas. Darnton conta como descobriu, nos arquivos, as provas de que Marat estava
inocente do roubo de que os seus detractores o acusam. E como as fontes documentais
indiciam que o líder revolucionário (girondino) Brissot terá sido espião da polícia nos
anos que antecederam a tomada da Bastilha. E ainda como uma ordenação diferente dos
documentos permite conclusões factuais diferentes.
"O que estou eu a fazer? O mesmo que todo o historiador: a armar-me em Deus.Como explicou Santo Agostinho, Deus existe fora do tempo. Ele pode repetir ahistória como Lhe aprouver, para trás ou para a frente ou tudo isso ao mesmotempo. Com certeza que o historiador cria vida. Ele sopra vida no barro que escavados arquivos. Ele também julga os mortos." (p. 174).
16 Um pequeno grande livro, a pedir rápida tradução para tornar mais fácil o acesso a
estudantes, professores e, em geral, a todos os curiosos da história das ideias.
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NOTAS
1. As traduções são da responsabilidade do autor da recensão.
AUTORES
JOÃO PEDRO ROSA FERREIRA
Centro de História da Cultura da UNL
Jornalista, Mestre em História Cultural e Política pela FCSH e investigador do CHC UNL. Professor
convidado da European University. Publicou O jornalismo na emigração. Ideologia e política no
«Correio Braziliense» (1807-1822); co-autor com Ferreira Fernandes de Frases que fizeram a História de
Portugal (2006). Foi director da revista Focus.
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João B. Ventura, Bibliotecas e EsferaPública, Oeiras, Celta, 2002Fernando Pinto dos Santos
REFERÊNCIA
João B. Ventura, Bibliotecas e Esfera Pública, Oeiras, Celta
1 No livro de J. B. Ventura, há algumas ideias que nos parece da maior importância reter.
Em primeiro lugar, a de que se alguns aspectos podem ser discutidos na sociedade e
discutíveis por ela, outros há que apresentam um carácter paradoxal e
indiscutivelmente marginal, no sentido de se encontrarem à margem de qualquer
reflexão teórica sobre o papel que desempenham na sociedade. É o que acontece
relativamente às bibliotecas. Recolhendo, organizando e mediatizando o acesso à
informação e a novos conhecimentos, quer com o suporte escrito, quer com o
electrónico, a Biblioteca vê-se numa situação paradoxal.
2 Desenvolvem-se bibliotecas em geral, públicas, universitárias e escolares; a Rede
Nacional de Bibliotecas cresce em todo o País, mostrando ser talvez um dos maiores
projectos culturais existentes. No entanto, situação patologicamente habitual, não há
uma produção teórica que responda a uma tarefa de reflexão. Também a bibliografia
estrangeira, abundante em alguns países (não o diz o autor mas afirmamo-lo nós), como
acontece em Espanha e em França, é no nosso país extremamente reduzida. Considera
assim o autor, nesta espécie de nota introdutória, que é preciso desmarginalizar os
estudos culturais sobre as Bibliotecas.
3 Depois J. B. Ventura parte para a análise de um conceito extremamente complexo, que
assumiu e talvez ainda hoje assuma diferentes interpretações e definições, ao longo da
história e segundo diversos autores: o conceito de "Esfera Pública".
4 Um dos autores que trabalhou bastante este conceito foi Habermas, embora na Grécia e
em Roma já se falasse em público e privado. Na Grécia, o "público" pode ser ligado ao
conceito de democracia da época, ou seja, os homens que exerciam o direito de
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cidadania nos discursos da praça pública e na política, nada tinham a ver com as
mulheres e os escravos a quem estava vedada toda e qualquer participação bem como
todos os direitos. Direitos não tinham, mas em contrapartida tinham o dever de
submissão, dominação, e de se apresentarem como propriedade privada dos poderosos,
a minoria. Em Roma, o direito estabelecia a oposição entre o público e o privado, no
entanto assumindo novos contornos como o da criação da acessibilidade do povo ao
espaço público, do qual faziam parte os caminhos, as praças, as fontes e os rios, "locais
comuns" ou "públicos", deixados fora do domínio da apropriação privada.
5 Continuando o seu roteiro histórico, J. B. Ventura conduz-nos pelos caminhos da Idade
Média, até ao coração da Revolução Francesa, no século XVIII. Na Idade Média, a
oposição entre público e privado mostra-nos as raízes etimológicas de comunidade, isto
é, espaço social que se torna comum e se subtrai à propriedade exclusiva de alguém,
independentemente da classe social a que pertence. No entanto, esta comunidade não
deixa de representar uma elite que, como tal, continua a ser minoritária.
6 A partir do século XV, tudo o que é vida pública sofre uma deslocação da catedral para a
corte, ainda que com o mesmo carácter religioso, em termos simbólicos e de
representação. O palácio, com as suas festas e torneios era o lugar por excelência da
representação, onde se mostrava a grandeza do anfitrião e dos seus convidados. Neste
local o povo já podia entrar, mas só podia limitar-se a ver e ouvir sem falar (participar).
É assim que surge a categoria do espectador. No século XVIII não há uma auto-
representação social mas um conjunto de cidadãos, oriundos da burguesia, arvoram-se
em representantes do povo em geral e dos seus interesses, isto é, do bem comum.
Surge, assim, uma nova visão de "esfera pública", ligada aos debates literários que, com
os ventos da Revolução Francesa a soprarem cada vez mais próximos, se transformava
num lugar de debate de ideias de carácter político.
7 É o que vai acontecer mais tarde, no século XIX com as Bibliotecas, que se transformam
em autênticas tertúlias, locais de confronto e confrontação, algumas vezes, de opiniões.
É nesta visão que se inspira a ideia de "esfera pública" de Habermas.
A Esfera Pública Contemporânea: Novas Perspectiva
8 A maior parte dos autores contemporâneos reconhece, segundo Ventura, que o
conceito de esfera pública de Habermas é indispensável para a teoria crítica social e
para a prática democrática. No entanto, como acontece com todas as teorias, também
esta não se mostrou pacífica, gerando alguma discordância. E o que acontece segundo J.
B. Ventura com Negt e Kluge que, em oposição a Habermas, recusam o ideal normativo
de uma esfera pública burguesa, fundada num princípio abstracto de universalidade,
contrário a qualquer forma de particularismo o que significa que mais do que um
conceito universal, a "esfera pública" é vista como um lugar de encontros e
aprendizagens.
9 Seria manifestamente fastidioso desfilar o rol de autores a favor e contra as teorias de
Habermas ou as mais modernas. Não é esse o nosso objectivo com a indicação da leitura
que fizemos da obra Bibliotecas e Esfera Pública. No entanto, achamos conveniente lançar
uma questão, porventura polémica: em resultado das diversas opiniões dos autores, não
se confundirá esfera pública e debate público?
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10 Talvez possamos responder à questão formulada com uma nova pergunta: em que
medida as Bibliotecas Públicas não podem ser consideradas como esfera pública?
11 Basta olhar para o papel desempenhado pelas Bibliotecas em meados ou finais do século
XIX, para vermos que, com os seus regulamentos, elas acabavam por funcionar quase
como locais de debate cultural, sobretudo ao nível da Literatura e da Política. No século
XIX não se pode falar em Biblioteca sem lhe associar educação e cultura, factores de
progresso e de civilização. Por isso se afirma que a "esfera pública" remete
etimologicamente para um conceito especial, isto é, para um conjunto de lugares de
sociabilização onde se discute e promove a circulação de ideias e assuntos de interesse
comum, como, por exemplo, assuntos da vida local.
Redes Públicas de Bibliotecas
12 É com a consciência da importância desta situação, que em 1994 é elaborado o
MANIFESTO da UNESCO SOBRE BIBLIOTECAS PÚBLICAS que as declara como o centro
local de informação, tornando portanto acessíveis aos seus utilizadores o conhecimento
e a informação de todos os géneros. J. B. Ventura mostra-nos, neste seu livro"
Bibliotecas e Esfera Pública" que a Rede Nacional de Bibliotecas Públicas surge a partir
do MANIFESTO da UNESCO e tem como finalidade permitir uma maior acessibilidade,
não só do ponto de vista espacial como material, a todos os utentes concretamente
prestando serviços gratuitos, independentemente do estatuto social, político,
ideológico, cultural e religioso.
13 Desde 1983, o Programa de Apoio à Rede das Bibliotecas sofreu várias alterações, mas
com o mesmo objectivo: o de mostrar que as Bibliotecas tinham uma grande
responsabilidade na mudança cultural do país, inclusivamente no aprofundamento dos
hábitos de leitura das populações, que os vários estudos existentes mostram
representar uma percentagem muito baixa. A partir de 1987 a Rede Nacional de
Bibliotecas permite um incremento do acesso à cultura e à leitura, quer de textos
impressos quer em suporte electrónico. Esta Rede inscreve-se na lógica da parceria
entre o Estado e as Autarquias, o que apresenta um grande êxito, em muitos casos,
como acontece com iniciativas de recuperação de edifícios, autênticos marcos que
deixaram marcas na história cultural e local, abandonados e degradados, que voltaram
a adquirir a sua dignidade, como o "Diana-Bar", na Póvoa de Varzim, antigo café/
tertúlia de intelectuais, transformado em "Biblioteca de Praia", para dar um exemplo.
AUTORES
FERNANDO PINTO DOS SANTOS
Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica, Faculdade de Filosofia de Braga. Licenciado
em Ensino de Filosofia e Humanidades pela mesma Universidade. Mestre em Ciências da
Educação, Ramo de Especialização em História da Educação e da Pedagogia, pela Universidade do
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Minho, com a Tese: "A Sociedade Martins Sarmento, Espaço Privado de Leitura Pública: A
Importância do Doador na Formação do Leitor". E Professor do Ensino Secundário, em Guimarães.
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