livro economia e vida

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  • 5/26/2018 Livro Economia e Vida

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    Economia &Vida na perspectiva da encclica Caritas in veritate1

    Antnio Carlos Alves dos Santos

    Francisco Borba Ribeiro Neto

    Marli Pirozelli Navalho Silva

    Thais Novaes CavalcantiOrganizadores

    Economia

    Vidana perspectiva da encclica

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    Ncleo F e Cultura da PUC-SP

    Nasceu como um espao dentro da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo onde ocor-resse de forma mais explcita o dilogo entre f e razo, Doutrina Social da Igreja e realidadescio-poltica e cultural. Trabalhando sempre numa perspectiva interdisciplinar, um pontode encontro entre mundo acadmico, movimentos eclesiais e sociais e Magistrio da Igreja.

    Conhea o Ncleo atravs do site www.pucsp.br/fecultura e o observatrio atravs do site

    www.vanthuanobservatory.org. Inscreva-se para receber a Newsletter do Ncleo no [email protected]. possvel receber o material produzido pelo Observatrio atravs de seuboletim, editado em ingls e italiano, registrando-se em seu site.

    Observatrio Internacional Cardeal Van ThunCriado para promover a Doutrina Social da Igreja em nvel internacional, trabalhando em co-munho de intenes com o Pontifcio Conselho Justia e Paz, reune sistematicamente dados,documentos e estudos sobre a Doutrina Social da Igreja, fornecendo uma base de informaesconsistente e confvel sobre este tema. Alm disso, elabora reexes, avaliaes e textos de

    aprofundamento, em uma perspectiva universal e interdisciplinar. Colabora com ConfernciasEpiscopais e outros organismos eclesiais e centros de estudo dedicados ao tema e com agn-cias internacionais.

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    Economia &Vida na perspectiva da encclica Caritas in veritate1

    Realizao

    Antnio Carlos Alves dos Santos

    Francisco Borba Ribeiro Neto

    Marli Pirozelli Navalho Silva

    Thais Novaes Cavalcanti

    Organizadores

    Economia

    Vidana perspectiva da encclica

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    Copyright 2009 Ncleo F e Cultura da PUC-SPTodos os direitos reservados

    A reproduo desta obra permitida desde que previamente autorizada por escrito pelo

    Ncleo F e Cultura da PUC-SP

    ISBN

    978-85-88607-16-3

    Ficha catalogrca da Cmara Brasileira do Livro

    Impresso no Brasil em janeiro de 2010

    Rua Florinia, 38 - gua Fria - So Paulo SP

    Tel: (11)2978-4564 / 2950-4683

    E-mail: [email protected]

    Economia e vida na perspectiva da Encclica Caritas in Veritate / Antnio Carlos Alves dos Santos...[et al.] (organizadores). -- So Paulo : Companhia Ilimitada, 2010.

    Outros autores: Francisco Borba Ribeito Neto, Marli Pirozelli Navalho Silva, Thais Novaes Cavalcanti

    Realizao: PUC-SP -- Ncleo F e Cultura, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo -- Card. VanThun International Observatory for the Social Doctrine of theChurch.

    1. Amor - Aspectos religiosos - Igreja Catlica 2. Cristianismo e justia - Igreja Catlica 3. Economia -Aspectos religiosos 4. Igreja Catlica - Doutrinas - Documentos papal 5. Igreja Catlica - Doutrina social6. Igreja e problemas sociais 7. Justia social - Aspectos religiosos - Igreja Catlica I. Santos, AntnioCarlos Alves dos. II. Ribeiro Neto, Francisco Borba. III. Silva, Marli Pirozelli Navalho. IV. Cavalcanti,Thais Novaes.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

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    Economia &Vida na perspectiva da encclica Caritas in veritate3

    Prefcio

    Cardeal Odilo Pedro Scherer

    Sumrio

    Ia. Parte: Fundamentos

    Caridade e verdade: fundamentos da1.

    dimenso histrica e pblica do cristianismo

    Cardeal Renato Raffaele Martino

    A caridade na verdade nas trs encclicas de2.

    Bento XVI

    Dom Giampaolo Crepaldi

    A solidariedade como compreenso da3.

    Caritas in veritate

    Thais Novaes Cavalcanti

    O dilogo entre a Doutrina Social da Igreja e4.

    o mundo na Caritas in veritate

    Stefano Fontana

    A arquitetura mundial de Bento XVI5.

    Thierry Boutet

    IIa. Parte: Economia e desenvolvimento

    O desenvolvimento na6. Caritas in veritate

    Simona Beretta

    Finanas, racionalidade, bem comum na7. Caritas in

    veritate

    StefanoZamagni

    Empresa, empreendedores e consumidores a8.

    servio do desenvolvimento humano integral

    segundo a Caritas in veritate

    Cristian Loza Adaui & Andr Habisch

    Caritas in veritate9. e Economia de Comunho

    Luigino Bruni

    9

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    18

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    IIIa. Parte: Desenvolvimento e defesa da vida

    Vida, famlia e desenvolvimento: a unidade10.

    antropolgica da Caritas in veritate

    David L. SchindlerDefesa da vida, meio ambiente e economia na11.

    perspectiva do pensamento de Bento XVI

    Francisco Borba Ribeiro Neto

    IVa. Parte: No contexto latino-americano e brasileiro

    Caritas in veritate12.e a Amrica Latina: novos nomes

    para o desenvolvimento

    Juan Esteban Belderrain

    Os desafos da economia brasileira a partir da13. Caritas

    in veritate

    Antonio Carlos Alves dos Santos

    Caritas in veritate14. e os movimentos populares no Brasil

    Vando Valentini & Rafael Marcoccia

    Reetindo sobre a poltica e a economia no Brasil a15.

    partir de Caritas in veritate

    Francisco Borba Ribeiro Neto

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    70

    77

    81

    87

    95

    Economia &Vida na perspectiva da encclica Caritas in veritate4

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    Prefcio

    Cardeal Odilo Pedro Scherer

    Este livro nasceu de um conjunto de acontecimentos providencialmente coin-cidentes. Em 2010, a Campanha da Fraternidade Ecumnica tem por tema Eco-nomia e vida, convidando-nos a aprofundar as implicaes da Doutrina Social daIgreja para a vida econmica e social no Brasil. Em julho de 2009, recebemos anova encclica social de Bento XVI, Caritas in veritate, dezoito anos depois da ltimaencclica dedicada temtica, Centesimus annus, de Joo Paulo II.

    Nesse meio-tempo, aps um perodo de crescimento econmico aparentemen-te elevado, mas que terminou com uma crise previsvel, o mundo do capitalismoglobalizado percebe hoje com clareza a necessidade de repensar seus fundamentose suas prticas econmicas recentes. Paralelamente, os problemas da pobreza, dasescandalosas desigualdades sociais e do desenvolvimento continuam presentes, masa maior parte das velhas frmulas que procuravam responder a esses problemasencontra-se desacreditada.

    Neste contexto, o Ncleo F e Cultura rgo da Pontifcia Universidade Cat-lica de So Paulo voltado especicamente ao dilogo entre o Magistrio da Igreja eos desaos da ps-modernidade e da globalizao e o Observatrio InternacionalCardeal Van Thun para a Doutrina Social da Igreja organismo internacionalque busca acompanhar e colaborar com as atividades do Pontifcio Conselho Justiae Paz, da Santa S zeram um convnio de colaborao.

    Essa a origem deste livro. A obra apresenta ao leitor brasileiro as reexes dealguns dos maiores especialistas em Doutrina Social da Igreja na atualidade, comoo cardeal Renato Raffaele Martino e o arcebispo de Trieste, dom Giampaolo Cre-

    paldi. Ambos eram, respectivamente, presidente e secretrio do Pontifcio ConselhoJustia e Paz na poca da publicao da encclica e coordenaram a edio da maiscompleta e signicativa obra sobre a Doutrina Social da Igreja at o momento, oCompndio de Doutrina Social da Igreja(So Paulo: Paulinas, 2005). Juntamente com oeconomista Stefano Zamagni, que tambm escreve neste livro, eles foram os cola-boradores do papa escolhidos para apresentar publicamente a encclica Caritas inveritate, quando esta foi lanada, no Vaticano.

    A obra conta ainda com outros especialistas, ligados a Communio. Revista Inter-nacional de Teologia e Cultura, fundada por um grupo de pensadores catlicos do qual

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    Economia &Vida na perspectiva da encclica Caritas in veritate6

    fazia parte o prprio J. Ratzinger, o que leva a poder consider-los bons conhece-dores do pensamento do papa Bento XVI. Entre eles, esto David L. Schindler,editor responsvel da revista nos Estados Unidos, e Francisco Borba Ribeiro Neto,membro de seu conselho editorial no Brasil. Outros autores, originrios de diferen-tes pases, so colaboradores frequentes do Observatrio Van Thun, como a eco -nomista Simona Beretta e o lsofo Stefano Fontana, da Itlia, o jornalista francsThierry Boutet, os cientistas sociais Cristian Loza Adaui, do Peru, e Andr Habisch,da Alemanha.

    Da Amrica Latina, o Ncleo F e Cultura trouxe ainda o cientista polticoargentino Juan Esteban Belderrain, membro do Celadic (Centro Latino-americanopara o Desenvolvimento, Integrao e Cooperao); o padre Vando Valentini, doNcleo F e Cultura da PUC-SP; a advogada Thais Cavalcanti, mestre em Doutri-na Social da Igreja pela Universidade Lateranense; o professor de Doutrina Social

    da Igreja Rafael Marcoccia, da FEI; e o professor de Economia da PUC-SP Anto-nio Carlos Alves dos Santos. Eles aprofundam os temas da encclica na perspectivados problemas socioeconmicos do desenvolvimento em nosso Continente, do meioambiente, da poltica e das prticas dos movimentos populares.

    Alm desses autores, vrias organizaes e pessoas de boa vontade se reunirampara viabilizar a edio desta obra. O livro no apenas uma reexo terica, masum gesto de comunho e um servio a toda a sociedade brasileira.

    Em seu conjunto,Economia e vida, na perspectiva da Caritas in veritate traa umamplo painel interdisciplinar sobre a forma como o Magistrio da Igreja enfren-ta os problemas relacionados vida econmica e poltica no Brasil e no mundo,indo desde a antropologia losca e a teoria do conhecimento at as questes do

    desenvolvimento econmico, do meio ambiente, da economia de mercado, da rela-o entre empresas e bem comum e da defesa da vida.S posso congratular-me com a iniciativa da publicao desta obra, fazendo

    votos para que seu estudo seja proveitoso para muitos leitores.

    Card. Odilo P. Scherer

    Arcebispo de So Paulo

    Gro-Chanceler da PUC-SP

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    I Parte

    Fundamentos

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    Caridade e verdade: fundamentosda dimenso histrica e pblica docristianismo1

    Cardeal Renato Raffaele Martino2

    Caritas in veritate(CV), a terceira encclica de Bento XVI, se insere na tradio deencclicas sociais que habitualmente consideramos ter-se iniciado, na sua fase mo-derna, com aRerum novarum, de Leo XIII. Chega dezoito anos depois da encclicasocial precedente, a Centesimus annus, de Joo Paulo II quase vinte anos depois,portanto, do ltimo grande documento social.

    Isso no quer dizer que nesses vinte anos o ensinamento social tenha cado emsegundo plano para os Papas ou para a Igreja. Pensemos, por exemplo, no Compndiode Doutrina Social da Igreja, publicado pelo Pontifcio Conselho Justia e Paz em 2004(no Brasil, em 2007) e na encclicaDeus caritas est, de Bento XVI, que contm umaparte central expressamente dedicada Doutrina Social da Igreja, a qual eu de-niria como uma pequena encclica social. Ou ento no magistrio ordinrio de

    Bento XVI.A redao de uma encclica, porm, assume um valor particular, representa

    um passo sistemtico numa tradio que os pontces iniciaram no por espritode suplncia, mas pela convico de assim responder a sua misso apostlica e coma inteno de garantir religio crist o direito de cidadania na construo dasociedade dos homens.

    Por que uma nova encclica? Como sabemos, a Doutrina Social da Igreja temuma dimenso que permanece e outra que muda com o tempo. Essa ltima repre-senta o encontro do Evangelho com os problemas sempre novos que a humanidadedeve enfrentar. Esses problemas mudam, e hoje mudam com uma velocidade sur-preendente. A Igreja no tem solues tcnicas a propor, como a Caritas in veritate

    nos recorda, mas tem o dever de iluminar a histria humana com a luz da verdadee o calor do amor de Jesus Cristo bem sabendo que, se o Senhor no construir acasa, em vo se cansam os construtores.

    1 Publicado originalmente em OSSERVATORIO INTERNAZIONALE CARD. VAN THUN SULLA DOTTRINA SO-

    CIALE DELLA CHIESA.Bolletino di Dottrina Sociale della Chiesa, 2009, Vol. V (3), p. 75-77.

    2 Na qualidade de Presidente do Pontifcio Conselho Justia e Paz, foi coordenador da edio do Compndio da Doutrina Socialda Igreja. De 1980 a 2002 foi Observador Permanente da Santa S (funo equivalente de embaixador) na Organizao dasNaes Unidas. Autor de numerosas palestras e artigos. Foi um dos consultores do papa Bento XVI na redao da encclicaCaritas in veritate.

    Captulo 1

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    As grandes mudanas do mundo globalizado

    Se olharmos para traz no tempo e percorremos novamente estes vinte anosque nos separam da Centesimus annus, nos daremos conta de que grandes mudanasaconteceram na sociedade dos homens.

    As ideologias polticas que caracterizaram a poca precedente a 1989 parecemter perdido sua virulncia, sendo substitudas pela nova ideologia da tcnica. BentoXVI vem insistindo, em seu ensinamento, que nestes vinte anos o potencial de in-terveno da tcnica at mesmo sobre a identidade da pessoa infelizmente se com-binou com uma reduo da capacidade cognoscitiva da razo. Essa separao entrecapacidade operativa, que hoje atinge a prpria vida, e sentido da realidade, que seesvanece cada vez mais, est entre as preocupaes mais vivas da humanidade dehoje, e por isso foi enfrentada diretamente pela Caritas in veritate.

    No velho mundo dos blocos polticos em permanente oposio, a tcnica estavaa servio da ideologia poltica. Mas, agora que os blocos no existem mais e o pa-norama geopoltico mudou muito, a tcnica se libertou de qualquer hipoteca. Hoje,o carter arbitrrio da ideologia da tcnica reforado pela cultura do relativismo,a qual se nutre, por sua vez, da ideologia tecnicista. A arbitrariedade que nasce daideologia da tcnica um dos maiores problemas do mundo de hoje, como ca bemclaro na reexo da Caritas in veritate.

    Um segundo elemento distingue a poca atual daquela em que foi lanada a Cen-tesimus annus: o crescimento dos fenmenos de globalizao, determinados tanto pelom da polarizao entre blocos antagnicos quanto pela expanso da rede inform-tica e telemtica mundial. Tendo-se iniciado no comeo da dcada de 1990, esses

    dois fenmenos produziram mudanas fundamentais em todos os aspectos da vidaeconmica, social e poltica. A Centesimus annusapenas acenava ao fenmeno, que en-frentado organicamente pela Caritas in veritate. A encclica analisa a globalizao, nos em um nico pargrafo, mas ao longo de todo o texto. Como se costuma dizer hojeem dia, v a globalizao como um fenmeno transversal: economia e nanas,ambiente e famlia, cultura e religio, migrao e direitos dos trabalhadores todosesses elementos, e outros mais, so inuenciados por esse fenmeno.

    A terceira grande mudana ocorrida neste perodo diz respeito s religies.Muitos observadores notam que nestes vinte anos, com o m dos blocos ideolgi -cos, as religies voltaram cena pblica mundial. A esse fenmeno, muitas vezescontraditrio e que necessita ser estudado e compreendido em profundidade, secontrapem um laicismo militante e muitas vezes exasperado, que deseja eliminara religio da esfera pblica. Da nascem consequncias negativas e desastrosas parao bem comum. A Caritas in veritateenfrenta o problema em muitos pargrafos e o vcomo uma questo de grande importncia, se quisermos garantir humanidade umdesenvolvimento digno do ser humano.

    A quarta e ltima grande mudana que desejo comentar a emergncia de al-guns grandes pases que saram de uma situao subdesenvolvida, causando mudan-as notveis no equilbrio geopoltico mundial. O funcionamento dos organismosinternacionais, o problema dos recursos energticos, novas formas de colonialismoe de abusos esto ligados a esse fenmeno, positivo em si mesmo, mas explosivo, e

    Cardeal Renato R. Martino: Caridade e verdade...

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    Economia &Vida na perspectiva da encclica Caritas in veritate11

    que necessita ser bem encaminhado. Aqui retorna, com fora, o problema da gover-nana internacional.

    Essas quatro grandes novidades que aconteceram nestes ltimos vinte anos, queseparam as duas encclicas sociais, mudaram profundamente as dinmicas sociaismundiais, e bastariam em si mesmas para justicar uma nova encclica social. Po-rm, na origem da Caritas in veritateest ainda outro motivo que no deve ser es-quecido. Inicialmente, a Caritas in veritatefoi pensada pelo Santo Padre como umacomemorao dos quarenta anos daPopulorum progressio(PP),de Paulo VI.

    No rastro daPopulorum progressio

    A redao da Caritas in veritatenecessitou de mais tempo de preparao e por

    isso a encclica no pde ser publicada no aniversrio de quarenta anos daPopulorumprogressio (2007). Mas isso no elimina o vnculo importante com a encclica de PauloVI, evidente j no fato de a Caritas in veritateser chamada de uma encclica sobreo desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade. Tal vnculo caevidente, ainda, no primeiro captulo da encclica, dedicado exatamente Populorum

    progressio, e que deve ser lido em continuidade com o magistrio de Paulo VI. O temada Caritas in veritateno o desenvolvimento dos povos, mas, sim, o desenvolvi-mento humano integral, sem que o segundo implique no esquecimento do primei-ro. Pode-se dizer, portanto, que a perspectiva daPopulorum progressio ampliada, emcontinuidade com sua profunda dinmica interna.

    Creio que que claro, com a Caritas in veritate, que o ponticado de Paulo VI no re-

    presentou nenhum retrocesso no que se refere Doutrina Social da Igreja, ao contrriodo que ouvimos muito frequentemente, mas que esse papa contribuiu de modo signica-tivo para congurar a viso da Doutrina Social da Igreja na trilha da Gaudium et spese datradio precedente, constituindo-se na base sobre a qual Joo Paulo II se inseriu.

    No se deve minimizar a importncia desses aspectos da Caritas in veritate, queeliminam uma srie de interpretaes que pesaram e ainda pesam na compreensodo signicado da Doutrina Social da Igreja, de sua natureza e de sua utilidade. ACaritas in veritatemostra que Paulo VI uniu a Doutrina Social da Igreja questo daevangelizao (Evangelii nuntiandi) e previu a importncia central que os temas dareproduo humana teriam para as questes sociais (Humanae vitae).

    A perspectiva de Paulo VI e as ideias da Populorum progressio esto presentes emtoda a Caritas in veritatee no s no primeiro captulo, especialmente dedicado quela

    encclica. parte o uso de algumas ideias especcas, relativas ao desenvolvimentodos pases pobres, a Caritas in veritateassume trs perspectivas de grande alcance con-tidas na encclica de Paulo VI.

    A primeira a ideia de que o mundo sofre com a falta de pensamento (PP 85). ACaritas in veritatedesenvolve esse tpico articulando os temas da verdade do desen-volvimento e do desenvolvimento na verdade, at sublinhar a necessidade de umainterdisciplinaridade ordenada do conhecimento e das competncias a servio dodesenvolvimento humano. A segunda a ideia de que no h humanismo verdadeirosem abertura ao Absoluto (PP 42), pois a Caritas in veritatetambm se norteia por um

    Cardeal Renato R. Martino: Caridade e verdade...

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    humanismo verdadeiramente integral. Seu objetivo, como ca bem evidente, odesenvolvimento do homem inteiro e de todos os homens. A terceira perspectiva ade que na origem do subdesenvolvimento est a falta de fraternidade (PP 66). PauloVI apelava tambm caridade e verdade quando convidava a trabalhar com todoo corao e toda a inteligncia (PP 82).

    Populorum progressio conferida a mesma honra dada Rerum novarum: a de serperiodicamente recordada e comentada. Essa encclica a nova Rerum novarumdafamlia humana globalizada.

    Caridade, verdade e humanismo integral

    A partir desse humanismo integral, a Caritas in veritatefala tambm da atual crise

    econmica e nanceira. A imprensa mostrou-se interessada principalmente nesseaspecto e os jornais se perguntavam o que seria dito na nova encclica sobre a criseatual. Quero dizer que o tema central da encclica no esse, mas a Caritas in veritateno se esquivou do problema.

    A encclica no enfrentou a crise no aspecto tcnico, mas avaliou-o luz dosprincpios de reexo e dos critrio de juzo da Doutrina Social da Igreja e no inte-rior de uma viso mais geral da economia, de sua nalidade e da responsabilidadede seus atores. Esta crise, de acordo com Caritas in veritate, evidencia a necessidade dereconsiderar o modelo econmico chamado ocidental, pedido feito h vinte anospela Centesimus annuse nunca levado a srio plenamente.

    Mas a encclica diz isso depois de haver esclarecido que - como Paulo VI j en-

    xergara e ns, hoje, vemos at melhor - o problema do desenvolvimento se tornoupolicntrico e o quadro de responsabilidades, de mritos e de culpas se ampliou muito.De acordo com a Caritas in veritate, a crise nos fora a rever nosso caminho, a dar-nos novasregras e a encontrar formas novas de compromisso, a valorizar as experincias positivas e a rejeitar asnegativas. A crise se torna ocasio de discernimento e de nova projetualidade. Nesta chave de leitura,conante e no resignada, devem-se enfrentar as diculdades do momento presente (CV 21). Brotada encclica uma viso positiva, de estmulo humanidade, para que realmente possaencontrar os recursos de verdade e vontade necessrios superao das diculdades.No um encorajamento sentimental, uma vez que na Caritas in veritateso identi-cados com lucidez e preocupao os principais problemas do subdesenvolvimento degrande parte do Planeta. Mas um estmulo fundamentado, consciente e realista, pelofato de no mundo agirem muitos protagonistas e atores da verdade e do amor, e pelo

    fato de Deus, que Verdade e Amor, estar sempre agindo na histria humana.No ttulo de Caritas in veritateaparecem os dois termos fundamentais do magist-

    rio de Bento XVI: a caridade e a verdade. Esses dois termos tm marcado todo o seumagistrio nestes anos de ponticado, e representam a essncia da revelao crist.Unidos, so a razo fundamental da dimenso histrica e pblica do cristianismoe esto, portanto, na origem da Doutrina Social da Igreja. Realmente por este laoestreito com a verdade, a caridade pode ser reconhecida como expresso autntica de humanidade ecomo elemento de fundamental importncia nas relaes humanas, inclusive nas de natureza pblica.S na verdade a caridade resplandece e pode ser autenticamente vivida (CV 3).

    Cardeal Renato R. Martino: Caridade e verdade...

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    A caridade na verdade nas trs encclicasde Bento XVI1

    Dom Giampaolo Crepaldi2

    A Caritas in veritateprope uma verdadeira converso a uma nova sabedoriasocial que pode ser resumida com a expresso o receber precede o fazer. Conver-so de uma viso que parte dos prprios homens, considerando-os como os nicose originais construtores da sociedade e das normas que devem regular as relaesentre os cidados, para uma viso que, ao vez disso, assume uma postura de atenoa um sentido que vem ao nosso encontro, expresso de um projeto sobre a humani-dade que ns no controlamos.

    Vendo na perspectiva do receber que precede o fazer

    O homem moderno tem diculdade para ver nas coisas e em si mesmo signi-cados que fujam ao seu controle, para se sentir interpelado por uma palavra quesuscite seu empenho e sua responsabilidade de forma no arbitrria. A razo positi-vista transforma tudo em simples fatos que nada revelam alm de si mesmos. Todaao se reduz a produo.

    necessrio, porm, que nos convertamos para ver na economia e no trabalho,na famlia e na comunidade a lei natural posta em ns e a criao que se apresentadiante de ns e para ns como um chamado a palavra vocao recorrente naencclica , um chamado a assumir uma postura solidria, de responsabilidade pelobem comum.

    Se os bens so apenas bens, se a economia apenas economia, se estarmos

    juntos signica apenas estarmos prximos, se o trabalho apenas produo e o pro-gresso apenas crescimento... Se nada chama tudo isso a ser mais e se tudo isso nonos chama a sermos mais, as relaes sociais implodem por si mesmas. Se tudo se

    1 Publicado originalmente em OSSERVATORIO INTERNAZIONALE CARD. VAN THUN SULLA DOTTRINASOCIALE DELLA CHIESA.Bolletino di Dottrina Sociale della Chiesa, 2009, Vol. V (3), p. 78-80.

    2 Secretrio do Pontifcio Conselho Justia e Paz, coordenou, juntamente com o Cardeal Martino, a edio do Compndioda Doutrina Social da Igreja. Atualmente arcebispo de Trieste e presidente do Observatrio Van Thun para DoutrinaSocial da Igreja. Um dos maiores especialistas em Doutrina Social da Igreja na atualidade. o autor deDio o gli dei. Dottrinasociale della Chiesa: percorsi, Ecologia ambientale e ecologia umana. Politiche dellambiente e dottrina sociale della Chiesa(com Paolo Togni),La dimensione interdisciplinare della dottrina sociale della Chiesa. Studi sul magistrio(com Stefano Fontana). Foi um dos consultoresdo papa Bento XVI na redao da encclica Caritas in veritate.

    Captulo 2

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    Economia &Vida na perspectiva da encclica Caritas in veritate14

    deve ao acaso ou necessidade, o homem ca surdo, nada em sua vida lhe fala ou aele se revela. Mas, ento, tambm a sociedade ser apenas uma soma de indivduos,no uma verdadeira comunidade. Os motivos para estarmos prximos podem serproduzidos por ns, mas os motivos para sermos irmos no podem.

    Por isso a Caritas in veritatearma que a verdade e o amor tm uma fora fun -damental na sociedade justamente porque no os podemos dar a ns mesmos. Nopargrafo 34 da encclica, Bento XVI explica muito bem que a verdade e o amorvm ao nosso encontro e fazem que as coisas e os outros homens despertem-nos umsignicado que no foi produzido por ns e, assim fazendo, indiquem-nos um qua-dro de deveres dentro dos quais inserir os direitos.

    Amor e verdade no podem ser construdos, planicados: so sempre um domrecebido e atestam uma abundncia, uma superao do ser em relao s nossaspretenses. Amor e verdade motivam nossas expectativas e nossas esperanas e dis-

    ciplinam nossas necessidades.A sociedade necessita de elementos recebidos e no produzidos por ns, precisa

    ser con-vocada e no produzida mediante um contrato. A sociedade necessita deverdade e de amor. O cristianismo a religio da Verdade e do Amor. a religioda verdade na caridade e da caridade na verdade. Cristo a Sabedoria criadora e o Amor redentor. Por isso, a maior ajuda que a Igreja pode dar ao desenvolvimento o anncio de Cristo.

    A ideia de fundo de que o receber precede o fazer explica uma novidade degrande alcance da Caritas in veritate. Os direitos fundamentais vida e liberdadereligiosa veem-se pela primeira vez explcita e vigorosamente inseridos em uma en-cclica social. No que nas encclicas anteriores fossem ignorados, mas aqui, certa-

    mente, esto organicamente ligados ao tema do desenvolvimento, e a Caritas in veri-tateevidencia os efeitos negativos ao desenvolvimento, tambm de ordem econmicae poltica, quando esses direitos no so respeitados.

    Na Caritas in veritate, a chamada questo antropolgica se torna questo so-cial. A procriao e a sexualidade, o aborto e a eutansia, as manipulaes daidentidade humana e a seleo eugentica so avaliados como problemas sociais defundamental importncia, que, se vm a ser geridos segundo uma lgica de puraproduo, deturpam a sensibilidade social, minam o sentido da lei, corroem a fam-lia e tornam difcil a acolhida do fraco.

    Essas indicaes da Caritas in veritateno tm apenas valor exortativo, masconvidam a um novo pensamento e a uma nova prxispara o desenvolvimento,que levem em conta as interconexes sistemticas entre os temas antropolgicos

    ligados vida e dignidade humana e os econmicos, sociais e culturais relati-vos ao desenvolvimento. No possvel, por exemplo, lanar programas de de-senvolvimento apenas de tipo econmico-produtivo que no tenham em conta,sistematicamente, tambm a dignidade da mulher, da procriao, da famlia edos direitos do nascituro.

    A perspectiva que caracterizo com a expresso o receber precede o fazer esta-va tambm muito presente nas duas encclicas anteriores de Bento XVI, e a meu verconstitui o critrio hermenutico de fundo que as une. O conceito que entrelaa astrs encclicas o de puricao. Esta signica a conrmao de quanto h de bom

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    na realidade a ser puricada, a oportunidade de tornar tal realidade mais verdadei-ra, no sentido de mais plenamente si mesma, a correo das impurezas devidas aopecado, a pregurao da plenitude dessa realidade na glria de Deus, a projeoescatolgica na plenitude do Reino.

    Justia e caridade na Deus caritas est

    NaDeus caritas est(DCE), o conceito de puricao empregado tanto paraa razo (puricada pela f) quanto para a justia (puricada pela caridade). Es-creve Bento XVI:

    A f tem, sem dvida, a sua natureza especca de encontro com o Deusvivo um encontro que nos abre novos horizontes muito para alm do

    mbito prprio da razo. Ao mesmo tempo, porm, ela serve de for-a puricadora para a prpria razo. Partindo da perspectiva de Deus,liberta-a de suas cegueiras e, consequentemente, ajuda-a a ser mais elamesma. A f consente razo realizar melhor a sua misso e ver maisclaramente o que lhe prprio (DCE 28).

    Ouvimos aqui o eco daFides et ratio (FR), de Joo Paulo II: A Revelao intro-duz em nossa histria uma verdade universal e ltima que leva a mente do homem a nunca maisse deter (FR 14). A f purica a razo sobretudo ajudando-a a no entender-secomo autossuciente. Isso vale tambm para a razo prtica, que orienta asaes humanas. Tambm esta, ensina o Papa, deve ser continuamente puricada,

    porque a sua cegueira tica, derivada da prevalncia do interesse e do poder que a deslumbram, um perigo nunca completamente eliminado (DCE 28).Tambm a poltica enquanto mbito da razo prtica no qual as ativida -

    des humanas so ordenadas com vistas ao bem terreno sofre a tentao deconsiderar-se autossuciente e pretende, assim, estar em condies, por si s ecom os prprios meios, de construir plenamente a justia. O magistrio socialensina que a utopia poltica coincide frequentemente com a ideologia poltica.

    J naRerum novarum(RN), Leo XIII avisava: Se h quem, atribuindo-se o poderfaz-lo, prometa ao pobre uma vida isenta de sofrimentos e de t rabalhos, toda de repouso e deperptuos gozos, certamente engana o povo e lhe prepara laos, onde se ocultam, para o futuro,calamidades mais terrveis que as do presente (RN 9). Joo Paulo II, por sua vez, es-creveu na Centesimus annus(CA) que, quando os homens julgam possuir o segredo de uma

    organizao social perfeita que torne o mal impossvel, consideram tambm poder usar todos osmeios, inclusive a violncia e a mentira, para a realizar (CA 25).

    Assim, quando se quer atribuir poltica um papel messinico acaba-se porconstruir o inferno na terra. A poltica tem de bom o fato de buscar a justaordem da sociedade, mas pode ter de mal querer busc-la sozinha, procurandoum paraso na terra que pode terminar em alguma das formas de totalitarismo.Isso acontece quando a caridade no purica a justia.

    A f purica a razo e a caridade purica a justia, ajudando-a a no se fe-char em si mesma. A poltica corre frequentemente o perigo de conar a justia

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    apenas aos mecanismos institucionais ou econmicos, como quando o Estadoquer prover a tudo (DCE 28). A justia, nesse caso, se reduz a equidade, frutode um contrato, perdendo a capacidade de ver com os olhos da f e da carida-de as necessidades reais e pessoais do outro e a amorosa dedicao pessoal (DCE28) de que a justia necessita. Por m, para dar a cada qual o seu que, comoobservamos, a frmula principal da justia , preciso conhecer profunda-mente em que consiste esse seu, e no suciente a burocracia.

    Da justia nascem os deveres, da caridade nascem as responsabilidades, quevo at mesmo alm dos deveres, superando as dinmicas do legalismo. Eis porque a caridade, se quisermos puricar a justia, precisa da liberdade. A justiapode ser tentada a conar-se a mecanismos cegos e realmente dispostos a mudaro homem mediante a mudana das estruturas.

    Contra esses perigos, a caridade, que vive e cresce apenas na liberdade,

    produz na pessoa e nos grupos sociais a capacidade de assumir responsabilida-des, propondo-se a alterar as estruturas a partir da mudana das pessoas. Poresse motivo, a Deus cari tas est liga a justia subsidiariedade (DCE 26), a qualorienta a uma liberdade para a responsabilidade ou a uma responsabilidade naliberdade3. Na perspectiva da subsidiariedade, assumir deveres no sentidocomo um dever, mas como um direito, ou seja, como exerccio de liberdade. na subsidiariedade que a caridade social pode encontrar um mbito favorvelpara puricar a justia do perigo, sempre iminente, de querer conar apenas nofuncionamento das estruturas.

    A esperana crist que muda o presente: a Spe salviNa Spe salvi (SS) surge enm a esperana. A vontade humana necessita da

    razo, pela qual deve ser guiada a liberar-se das paixes e dos interesses, poisperde a si mesma quando responde apenas s necessidades subjetivas e reduz-sea resposta a estmulos. A razo a livra da escravido de si mesma, levando-a aver uma verdade e um bem independentes da prpria vontade, e pe-na diantedos deveres que derivam da adeso quilo que no depende dela. A razo fazconhecer o que se impe como verdadeiro, bom e digno de estima. Mas a razotambm precisa ter outra coisa diante de si que lhe abra o caminho. A esperanasustenta a razo e a impede de cair na dupla tentao da autossucincia ou dainsignicncia.

    Assim fazendo, a esperana crist muda o presente. A f torna certo o futuroe, portanto, torna-o presente: Somente quando o futuro certo como realidade positiva, que se torna vivvel tambm o presente (SS 2). Para a mentalidade de hoje, essa ar-mao algo incompreensvel, dado que a f entendida predominantementecomo um sentimento subjetivo e irracional. A esperana, consequentemente,carece de fundamento real, sendo uma simples projeo de nossos desejos arbi-trrios ou expectativas particulares em um futuro incerto.

    3 CREPALDI, G. Libert e responsabilit della societ civile: la regola della sussidiariet. In:Dio o gli di. Dottrina socialedella Chiesa: percorsi.Siena: Cantagalli, 2008, pp. 95-106.

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    A Spe salvi explica que, antes do cristianismo, formas similares de f e deesperana existiam e os homens conavam aos cuidados de deuses bizarros ebelicosos suas exigncias e expectativas arbitrrias, suas esperanas. Existiamas esperanas, mas no existia a esperana; existiam as fs, mas no existia a f;existiam os deuses, mas no existia Deus. Nem a f, nem a esperana crists soalgo desse gnero.

    Somente no encontro com um Deus pessoal que verdade e amor a esperan-a se torna convel e segura e, portanto, se substancia na f, que a tornapresente, real e capaz de mudar a vida. de fundamental importncia entendera f como conhecimento fundado na lgica do testemunho, para evitar suareduo a sentimento irracional4.

    Uma passagem da Spe salvisintetiza de modo admirvel o percurso queacabei de descrever brevemente:

    A f no s uma inclinao da pessoa para realidades que devem vir,mas que ainda esto totalmente ausentes; ela nos d algo. D-nos j ago -ra algo da realidade esperada, e esta realidade presente constitui parans uma prova das coisas que ainda no se veem. Ela atrai o futuropara dentro do presente, de modo que aquele j no o puro aindano. O fato de este futuro existir muda o presente (SS 7).

    ConclusoO tema das trs encclicas de Bento XVI , portanto, o mesmo: o cristia-

    nismo no se soma ao mundo, mas a resposta s esperas do mundo o qualno pode realizar a si mesmo no plano natural se no se abre a um a mais

    que, implicitamente, estava j presente desde sempre. Cristo faz que o mundoreencontre-se a si mesmo, se reconstitua em sua autenticidade. A Doutrina So -cial da Igreja que anncio de Cristo nas realidades temporais anuncia a

    justia e a paz que o mundo aguarda e que o Criador ps dentro da natureza eda histria.

    4 Cf LIVI, A.; SILLI, F.Logica della testimonianza. Quando credere ragionevole. Cidade do Vaticano: Lateran University Press,2007.

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    A solidariedade compreendida como amorna verdade: ao moral e fundamento para

    as relaes econmicasThais Cavalcanti1

    No de agora que o tema da solidariedade proposto pela Igreja por meiodo contedo de seus ensinamentos sociais, como princpio de reexo, comocritrio de julgamento, como diretriz de ao tanto na esfera pessoal comona esfera social, poltica, econmica e at mesmo internacional. Desde os primei-ros escritos do magistrio da Igreja dedicados s questes sociais, a solidarieda-de tem sido considerada um importante princpio para o equilbrio das relaese das instituies. Da mesma forma, indiscutvel o quanto a solidariedade foisendo incorporada pela sociedade atual, quer seja no mbito pessoal do olharao prximo, do voluntariado, como no mbito da responsabilidade social daempresa e tambm na importncia das polticas sociais praticadas pelos governos,tanto internamente como em blocos entre pases. O fenmeno da globalizao

    trs consigo a ideia de que somos parte de um mesmo grupo, de que vivemos emum mesmo planeta, de que devemos agir com esta conscincia de proximidade dooutro. E talvez seja justamente este sentimento de solidariedade que nos impeade amadurecer no sentido mais profundo da caridade social.

    Essa a constatao que Bento XVI faz quando escreve, na encclica Caritas in veritate(CV), que

    A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas no nosfaz irmos. A razo, por si s, capaz de ver a igualdade entre os homense estabelecer uma convivncia cvica entre eles, mas no consegue fundara fraternidade (CV 75).

    O sentimento de proximidade com os demais homens no suciente para quecada um assuma no mbito de suas responsabilidades e competncias atitudes fra -ternas, justamente porque a fraternidade, a caridade social, nasce da conscincia deuma unidade que est na sua condio de criatura amada por Deus.

    Na anlise de Pierpaolo Donati2, a sociedade moderna buscou positivar a solidarie-dade na forma da lantropia, da benevolncia e da cooperao. Dessa forma, tentou im-

    1 Advogada. Doutoranda em Direito do Estado pela PUC/SP, Mestre em Doutrina Social da Igreja pela Pontifcia Uni-versidade Lateranense de Roma, Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP.

    2 DONATI, P.Pensiero sociale cristiano e societ post-moderna.Roma, Editrice A.V.E., 1997. p. 118

    Captulo 3

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    possibilitar a concepo da caridade como fato individual e privado, como tambm institu-cionalizar a solidariedade no modelo de Estado do bem-estar social (Welfare state). Mas essaconcepo acaba por tirar todo o sentido interno do prprio conceito da solidariedade.

    Para compreender o conceito de solidariedade, necessrio ter uma corretacompreenso do homem. Quando a solidariedade adquire categoria moral, no en-sinamento social da Igreja, retoma-se a funo da tica, ou seja, da qualidade moraldos atos humanos. O homem, livre, escolhe entre o ato solidrio e o no solidrio;por isso possvel falar em solidariedade como virtude moral.

    Nesse sentido, o Papa Bento XVI arma queA caridade a via mestra da doutrina social da Igreja. As diversas respon-sabilidades e compromissos por ela delineados derivam da caridade, que

    como ensinou Jesus a sntese de toda a lei (cf. Mt 22,36-40). A caridaded verdadeira substncia relao pessoal com Deus e com o prximo; o

    princpio no s das microrrelaes estabelecidas entre amigos, na famlia,no pequeno grupo, mas tambm das macrorrelaes, como relacionamen-tos sociais, econmico, polticos (CV 2).

    Qual a origem e o contedo da solidariedade? O que pode torn-la um funda-mento, um princpio, uma virtude moral? A concrdia, a fraternidade, a caridade,enm, o amor na verdade.

    A noo do termo solidariedade

    A palavra solidariedade, originria do latim solidus, etimologicamente signicaalgo compacto, internamente integrado e coeso, no uido, nem gasoso3, como tambm soli-dez, estabilidade, segurana, participao. Quando complementada com a prepo-sio, in solidusexprime o sentido de participao ou a totalidade.

    A solidariedade signica uma atitude de interesse pelo sofrimento alheio, um tipode relao em que a pessoa s se realiza na medida em que se empenha na realizaodo outro, uma postura social que parte da conscincia de que do empenho de cada umdepende o bem-estar de todos.

    O dicionrio Houaiss4distingue primeiramente a antiga acepo jurdica, com-promisso pelo qual as pessoas se obrigam umas s outras e cada uma delas a todas, de outrossignicados de uso comum hoje, como (...) lao ou ligao mtua entre duas ou muitascoisas ou pessoas, dependentes umas das outras; sentimento de simpatia, ternura ou piedade pelos

    pobres, pelos desprotegidos, pelos que sofrem, pelos injustiados5.

    3 VILA, Fernando Bastos SJ.Pequena Enciclopdia de Doutrina Social da Igreja. Ed. Loyola. 2. ed. So Paulo, 1993. p. 42

    4 HOUAISS, A.Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa.So Paulo: Objetiva, 2001, p. 2602.

    5 Id., ibid. Como tambm outros signicados: manifestao desse sentimento, com o intuito de confortar, consolar, oferecer ajuda, etc; coo-perao ou assistncia moral que se manifesta ou testemunha a algum em quaisquer circunstncias (boas ou ms); estado ou condio de duas oumais pessoas que dividem igualmente entre si as responsabilidades de uma ao ou de uma empresa ou negcio, respondendo todas ou uma e cadauma por todas; mutualidade de interesses e deveres; identidade de sentimentos, de ideias, de doutrinas; estado ou condio grupal que resulta dacomunho de atitudes e sentimentos, de maneira que o grupo v enha a constituir uma unidade slida, capaz de oferecer resistncia s foras externase, at mesmo, de se tornar mais rme ainda em face da oposio procedente de fora.

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    Manifesta-se, assim, a polissemia do termo solidariedade, que, possuindo diver-sas conceituaes, tem, no entanto, um ponto comum a todas: relacionar sempre oeu com o outro.

    Dessas denies possvel distinguir trs nveis de signicados para o termosolidariedade. O primeiro seria uma denio relacionada ao sentimento, rela-cionada ao senso comum e baseada na compaixo, no altrusmo, no sentimen-to relativo ao prximo, principalmente diante do sofrimento, da necessidadealheia. O segundo nvel estaria relacionado moral e atitude de solidariedadepropriamente dita, reciprocidade, interdependncia, responsabilidade, comunho com o prximo. Por m, o nvel metafsico reporta natureza dohomem no sentido losco.

    Solidariedade como amizade poltica:Aristteles e Santo Toms de Aquino

    Aristteles foi o autor que sistematizou o conceito de amizade, do qual se origina oconceito de solidariedade como amizade poltica ou amizade cvica. Para ele, hvrios nveis de amizade: uma fundada na utilidade, outra, no prazer e uma terceirafundada na benevolncia (amizade no sentido prprio). Na benevolncia coexistem asdemais, mas nas demais, sem a presena da benevolncia, no subsiste a amizade. Aamizade uma das trs dimenses do amor eros, gape e philia compondo a unidadeda pessoa. Para Aristteles, a amizade philia uma forma de amor e o maior dosbens para as cidades, pois resulta na unidade.6

    Aphi lia est relacionada a uma atitude napl isque garante o bem comum,excedendo o mbito privado para o pblico e suas relaes. A essa amiza -de cvica Aristteles denominou homonoia, termo que a tradio traduziu porconcrdia.

    Santo Toms de Aquino, baseando-se na losoa de Aristteles, distinguiu qua-tro tipos de amizade: natural, domstica, civil (ou poltica) e divina (III Sent.D. 27,q. 2, a. 2). A expresso amizade poltica utilizada como sinnimo do termoconcrdia, aproximando-se do conceito de homonoiade Aristteles.

    A amizade poltica ou concrdia existe no por motivos extrnsecos ao homem,como o interesse comum dos diversos membros de certa comunidade, mas por mo-tivos intrnsecos prpria sociabilidade humana e determinados pela busca do bemcomum. Assim, a solidariedade uma das partes da justia, e no se pode dizer que

    existe justia sem amor, ou seja, sem solidariedade7.Fica claro, ento, que o termo solidariedade possui um contedo riqussimo

    e, se aplicado em todas suas dimenses, diz respeito ao homem como um todo(Gaudim et spes, GS 25) e inui na sociedade de forma estrutural, como categoriamoral, na justia e no bem comum.

    6 Aristteles,Poltica I, 1262, 5-10.

    7 SANTO TOMS DE AQUINO. Suma Teolgica. II II, q. LXXX

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    A solidariedade no ensino social da Igreja:

    um percurso para o amor na verdadeQuando, em 1891, o Papa Leo XIII publicou a EncclicaRer um novarum,

    primeira encclica social, buscou uma sntese entre f e razo, relembrandoao homem qual a sua natureza e como deveria julgar a situao real queestava vivendo. A concrdia amizade poltica o caminho mais eficaz paraa construo de uma sociedade mais justa, e no o conflito entre classes ouestruturas sociais. Diante da questo social do final do sculo XVIII, o Papaprope o fortalecimento dos sindicatos, como forma de propagar a solidarie-dade na sociedade.

    Quarenta anos depois, em 1931, diante do cenrio ps-primeira guerra mun-dial e recesso, publicada a Encclica Quadragesimo anno(QA), do Papa Pio XI, que

    destaca e conceitua trs princpios fundamentais e inovadores: a solidariedade, asubsidiariedade e a noo de justia social.

    A solidariedade vista como princpio econmico (QA 90) e como atitude decompromisso com os mais necessitados, que propaga tambm a noo de que todasas naes so uma famlia:

    um cristo consciente no pode encerrar-se em um cmodo e egosta iso-lamento quando testemunha das necessidades e das misrias de seusirmos [...]; [agindo assim] nega ou ignora a solidariedade entre os povos,solidariedade que impe a cada um mltiplos deveres para com a grandefamlia das naes8.

    A subsidiariedade, para Pio XI, a atuao do Estado diante da sociedade civil,em que uma sociedade maior no deve fazer mais que promover a autonomia dassociedades inferiores, estabelecendo um critrio para a funo do Estado e a liber-dade das sociedades intermedirias9.

    E a justia social, enm, segundo a encclica, se baseia no princpio da associa -o expresso por Leo XIII, que arma a necessidade da renovao da sociedadecivil e da reestruturao do Estado(QA 90-96).

    Nas encclicas seguintes, durante o ponticado do Papa Joo XXIII10, passou-se a demonstrar a importncia prtica da solidariedade, tanto na organizao decooperativas de trabalho (Mater et Magistra,22), como na soluo do problema daimigrao (Pacem in ter ris,98), muito presente na Europa naquele perodo.

    O ponticado de Paulo VI foi marcado por muitos documentos e tambm peloperodo do Conclio Vaticano II, com destaque para a encclica social Populorum

    progressio, de 1967, que foi a inspirao para a recente encclica Caritas in veritate, de

    8 MUOZ, Ronaldo. Solidariedad libertadora. Bogot, Mission Eclesial. 1977. p. 3

    9 Verdade , e a histria o demonstra exaustivamente, que, em consequncia da mudana de condies, s as grandes sociedades podem hoje levara efeito o que antes podiam at mesmo as pequenas; permanece, contudo, imutvel aquele solene princpio da losoa social: assim como injusto

    subtrair aos indivduos o que eles podem efetuar com a prpria iniciativa e capacidade, para o conar coletividade, do mesmo modo passar para

    uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir uma injustia, um grave dano e perturbao da boaordem social. O m natural da sociedade e da sua ao coadjuvar os seus membros, no destru-los nem absorv-los (QA 80).

    10 As encclicas sociais de Joo XXIII soMater et Magistra(1961) ePacem in terris(1963).

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    Bento XVI. Um de seus ensinamentos justamente a armao de que o homempossui uma exigncia de solidariedade, como uma exigncia moral de sua natureza,e, portanto, a solidariedade um dever, no somente um fato ou um benefcio.

    O Papa Joo Paulo II destacou a questo da solidariedade como um dos temascentrais de seu ensinamento social e dedicou a encclica Sollicitudo rei socialis (SRS),de 1988, a esse tema. O termo solidariedade aparece sessenta e quatro mil vezes emsuas obras, no perodo de 1979 a 199411.

    Joo Paulo II e a solidariedade como virtude moral

    A Encclica Centesimus annus(CA), de 1991, marca o centenrio da primeira en-cclica social, aRerum novarum, e apresenta um panorama da evoluo do conceito

    de solidariedade ao longo desses anos:Deste modo o princpio, que hoje designamos solidariedade, e cuja validade,quer na ordem interna de cada Nao, quer na ordem internacional, subli-nhei na Sollicitudo rei socialis, apresenta-se como um dos princpios basilaresda concepo crist da organizao social e poltica. Vrias vezes Leo XIIIo enuncia, com o nome amizade, que encontramos j na losoa grega;desde Pio XI designado pela expresso mais signicativa caridade social,enquanto Paulo VI, ampliando o conceito na linha das mltiplas dimensesatuais da questo social, falava de civilizao do amor (CA 10).

    A Doutrina Social da Igreja assume, ento, o conceito de solidariedade como parte

    da teologia moral. A proposta uma tica da pessoa solidria: no somente permanecerna solidariedade como benecncia ou assistncia caritativa, mas como hbito em prolda construo do bem comum. A tica da pessoa solidria nada mais que assumir osatos de justia e caridade como atos pessoais, relacionados diretamente pessoa.

    A solidariedade , em Joo Paulo II, a determinao rme e perseverante de se em-penhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos ns somos ver-dadeiramente responsveis por todos (SRS 38). A caridade o esprito. A solidariedade a categoria moral, a virtude, e, em consequncia, tambm social, econmicae poltica. Da tambm que a solidariedade pode ser vista como caminho para aconstruo da paz e do desenvolvimento (SRS 39). Esse desenvolvimento integraldeve-se realizar no quadro da solidariedade e da liberdade, sem jamais sacricarnem uma nem outra (SRS 33).

    Nessa denio de solidariedade, encontra-se a distino entre solidariedade-fato(todos ns somos verdadeiramente responsveis por todos) e solidariedade-dever (deter-minao rme e perseverante de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem detodos e cada um). uma virtude muito prxima da caridade e que, pela f, pode assumiraspectos prprios da caridade crist, como a reconciliao, a gratuidade, o amor aosinimigos, a oferta da vida pelos irmos, o reconhecimento da imagem de Deus no pr-

    11 MARTINI, C. M; CACCIARI, M.Dilogo sobre a solidariedade.Grca de Coimbra, Coimbra, 1997. p.21

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    ximo.12Da, a inspirao para a interpretao do mundo a partir do modelo de unidade,como denomina o Papa: Este supremo modelo de unidade, reexo da vida ntima de Deus, uno emtrs pessoas, o que ns, cristos, designamos com a palavra comunho (SRS 40).

    O conceito de solidariedade-fato repousa na aceitao da antropologia crist jo de solidariedade-dever, na capacidade do indivduo de agir. Obviamente, ambasconstituem dois lados do mesmo conceito, e uma move a outra. Todas duas repor-tam-se ao homem e a sua capacidade de livre agir, pensar, fazer. Se suprimida apessoa agente, no possvel teorizar sobre a solidariedade.

    A valorizao dessa capacidade est no reconhecimento da sociedade civil e doestmulo a suas legtimas manifestaes. Nestes termos, a justia social est tambmintimamente ligada ao conceito de pessoa e consequente valorizao, em termosindividuais e nas polticas pblicas, da sociedade civil13.

    O conceito-chave do ensinamento de Joo Paulo II, podemos ousar armar, o

    da subjetividade criadora do cidado(SRS 15).Na Encclica Centesimus annush um encontro entre a antropologia crist e as

    coisas do mundo, entre a noo contempornea de solidariedade e a caritasdivina, tudoligado ao conceito de pessoa e a sua inalienvel subjetividade criativa. Segundo No-vak14, Joo Paulo II segue duas direes diferentes: uma losca, que estuda o homocreator, e outra teolgica, que tem em considerao o imago creatoris. Ambas unidas pelaantropologia crist, que estuda o homem real, mais precisamente a pessoa agente.

    O sujeito responsvel pela construo da justia social, por meio de suas re-laes e dos bens produzidos em comum por todos. Essa tarefa no somente doEstado, mas este deve envolver o indivduo na construo do desenvolvimento.

    Na verdade, a solidariedade no se manifesta em um Estado assistencial, nem

    tampouco em um Estado omisso diante da atividade da sociedade civil. Em termosprticos, o Estado deve estar orientado para uma solidariedade mais descentraliza-da e participativa, um Estado que parte de um todo social solidrio, ou seja, quebusque pr em prtica o princpio da subsidiariedade.

    Bento XVI e a solidariedade como amor na verdade

    Partindo dessa base que o Papa Bento XVI, na encclica Caritas in veritate, tratadas consequncias da solidariedade nas relaes sociais e polticas, mas principal-mente nas econmicas. Para ele, a sociedade necessita da economia da gratuidade eda fraternidade, no somente no mbito da sociedade civil, mas tambm no mbito

    do mercado e do Estado. A solidariedade consiste primariamente em que todos se sintam res-ponsveis por todos e, por conseguinte, no pode ser delegada s ao Estado (CV 38).

    O subdesenvolvimento, a pobreza, as excluses sociais, a crise nanceira estotodos relacionados ao mbito moral do homem; assim, necessrio dar forma e orga-nizao quelas iniciativas econmicas que, embora sem negar o lucro, pretendam ir mais alm da

    12 ALMEIDA, J. C.Teologia da solidariedade.Loyola: So Paulo, 2005. p. 235

    13 FELICE, F. Capitalismo e Cristianesimo. Il personalismo economico de Michael Novak. Rubberttino: Roma. 2002. p.104

    14 Citado em FELICE, F. op.cit. p. 118

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    lgica da troca de equivalentes e do lucro como m em si mesmo (CV 39). Entre essas iniciati-vas esto as formas de economia solidria, as organizaes sem ns de lucro e todoo mbito da responsabilidade social das empresas. Para que haja desenvolvimentoeconmico, necessrio dar espao ao princpio da gratuidade como expresso dafraternidade, ou seja, da caridade, ou seja, da solidariedade.

    Essa a importante mensagem da Caritas in veritate, ao ensinar queA Doutrina Social da Igreja considera possvel viver relaes autenticamen-te humanas de amizade e camaradagem, de solidariedade e reciprocidade,mesmo no mbito da atividade econmica e no apenas fora dela ou depoisdela. A rea econmica no nem eticamente neutra nem de natureza desu-mana e antissocial. Pertence atividade do homem; e, precisamente porquehumana, deve ser eticamente estruturada e institucionalizada (CV 36).

    Para que isso ocorra importante compreender que a caridade uma atitudeprpria do homem, ligado a Deus, seu criador, e que essa caridade uma exignciamoral, ou seja, est ligada diretamente verdade. Essa ligao com a verdade quea torna um critrio orientador da ao moral. Sem verdade, sem conana e amor peloque verdadeiro, no h conscincia e responsabilidade social, e a atividade social acaba merc deinteresses privados e lgicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade(CV 5).

    O que o Papa Bento XVI prope para a reexo que a doutrina social daIgreja caritas in veritate in re sociali, ou seja, proclamao da verdade do amor deCristo na sociedade; servio da caridade, mas na verdade.

    Madre Teresa de Calcut foi um exemplo de caridade na verdade. Certa vez foiacompanhada por um jornalista americano durante um dia de trabalho, no qual se

    ocupava dos pobres, abandonados e doentes terminais. No nal do dia, o jornalista,que j no aguentava ver tanta misria e sofrimento, disse a Madre Teresa: Irm,eu no faria isso que a senhora faz por nada neste mundo! E Madre Teresa olhou bem nosolhos dele e disse: Nem eu, meu lho! Porque o que move a caridade a verdade, queno pode estar em outro lugar, seno na fora do encontro com Cristo e no relacio-namento com Deus, que nos amou primeiro, desde toda a eternidade.

    T. Cavalcanti: A solidariedade compreendida ...

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    O dilogo entre a Doutrina Social daIgreja e o mundo naCaritas in veritate1

    Stefano Fontana2

    Quando se pensa no dilogo entre a Igreja e o mundo, a palavra apologia geralmente interpretada negativamente, como ostentao de absolutismo e presun-o. Ela implicaria hostilidade contra os supostos inimigos dos quais defender-se erevelaria uma viso pr-moderna ou antimoderna de Igreja como cidadela assedia-da, cercada e isolada, em situao de defesa mais que de abertura cordial aos outros.Enm, apologia se referiria a um medo do diferente, ao passo que, pelo contrrio, aposio crist deveria ser de disponibilidade a acolher o outro. A apologia acusadaainda de integralismo, pois veria a religio como soluo ltima para todos os pro-blemas, at mesmo para aqueles relativos laicidade.

    Ningum pode negar que na histria do cristianismo muitos apologistas tiveramcom esses sentimentos. Em sua verdadeira natureza, entretanto, a apologia crist

    consiste em mostrar a humanidade da f, sua razoabilidade, o fato de que esta vaiao encontro dos verdadeiros desejos do homem. Assim era entendida por Justino,Clemente ou Agostinho santos que se tornaram famosos por suas apologias. Todosdemonstravam a desumanidade, a vulgaridade, o materialismo dos ritos e dos mitospagos, e os apresentavam como indignos do homem. Ao mesmo tempo mostravamcomo a verdade e o ideal de vida cristo eram capazes de melhorar as relaes hu-manas, promover as virtudes e consolidar o que de bom existia no homem.

    A Doutrina Social da Igreja e a relao Igreja-Mundo

    J na encclicaDeus caritas est(DCE 28) Bento XVI fez observaes de extraor-dinria importncia acerca da relao de puricao existente entre a razo e a fe sobre como a Doutrina Social da Igreja se insere no ponto de contato entre essasduas realidades, em que razo e f se olham face a face, relacionando-se, e a primei-ra purica a segunda.

    1 Publicado originalmente em OSSERVATORIO INTERNAZIONALE CARD. VAN THUN SULLA DOTTRINASOCIALE DELLA CHIESA.Bolletino di Dottrina Sociale della Chiesa, 2009, Vol. V (3), p. 81-84.

    2 Filsofo. Diretor do Observatrio Van Thun para Doutrina Social da Igreja, autor de artigos e livros sobre DoutrinaSocial da Igreja, comoPer una politica dei doveri.Dopo il fallimento della stagione dei diritti,La dimensione interdisciplinare della dottrinasociale della Chiesa. Studi sul magistero(com Giampaolo Crepaldi).

    Captulo 4

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    O nvel da razo equivale ao plano natural e criado. Nesse sentido, este podetambm ser chamado o mundo. O plano da f o da Revelao de Deus e denossa acolhida a ele. Na histria, o plano da f , portanto, prprio da Igreja, quese baseia na nova aliana e chamada a anunciar, com a liturgia, o ensinamento ea caridade, a vitria de Cristo.

    De onde vem, ento, o direito de cidadania da religio crist e da Igreja nomundo? Do fato de que a f comunica ao mundo uma luz de verdade e uma carida-de que permitem que todo fragmento de verdade e de caridade existentes no planohumano e natural tomem conscincia de si, compreendam-se em sua dignidade ese puriquem.

    Nas palavras da Caritas in veritate(CV): Jesus Cristo purica e liberta das nossascarncias humanas a busca do amor e da verdade e desvenda-nos, em plenitude, a iniciativade amor e o projeto de vida verdadeira que Deus preparou para ns (CV 1). A verdade e a

    caridade de Cristo, portanto, tornam verdadeira, do vida e puricam a buscapela verdade e o exerccio da caridade que todos os homens j fazem, aindaque de modo desencontrado, no plano natural. Da decorrem quatro aspectoscomplementares entre si.

    O primeiro que, no plano natural, caridade e verdade j esto presentes, e emvirtude disso todos os homens buscam seu desenvolvimento: Por sua natureza, a pessoahumana est dinamicamente orientada para o prprio desenvolvimento (CV 68).

    Mas, ao mesmo tempo, e este o segundo aspecto, caridade e verdade se inse-rem no plano natural de forma desordenada, em razo do pecado original (CV 34).Por isso, o ser humano tende a algo que sozinho no pode dar-se: o desenvolvimentonecessita de elementos que os homens no sabem dar a si mesmos.

    O terceiro aspecto que a vocao de Deus ao pleno desenvolvimento conrmaaquilo que de verdadeiro e bom existe no plano natural e, mais ainda, permite comsua luz que esse plano natural compreenda melhor a si mesmo e se realize como tal:Cristo, com a prpria revelao do mistrio do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo(Gaudium et spes, 22) (CV 18).

    Enm, a vocao de Deus ao pleno desenvolvimento purica o desenvolvimentodos interesses particulares e guia-o rumo a sua plenitude: Se [...]o homem no tivesseuma natureza destinada a transcender-se numa vida sobrenatural, ento poder-se-ia falar de incre-mento ou de evoluo, mas no de desenvolvimento (CV 29).

    Tudo isso torna o cristianismo no apenas til, mas indispensvel (CV 4), pois,sem a capacidade crist de tornar o mundo mais verdadeiro e puricado, o ser hu-mano no poderia com suas prprias foras nem se constituir adequadamente

    no plano natural nem verdadeiramente progredir rumo a uma plenitude. Isso fundano apenas o direito de cidadania da religio crist na histria, mas tambm oprimado de Deus na construo da sociedade. Ao mesmo tempo, porm, a verdadee a caridade que se do no plano natural so ento respeitadas, conrmadas e aindapuricadas. Puricar, de fato, no quer dizer negar mas, ao contrrio, assumir e aomesmo tempo melhorar.

    A verdade e a caridade naturais so, portanto, respeitadas. O cristianismo noas pode renegar pois negaria a criao. Deve puric-las, pois de outro modo nega-ria a redeno.

    S. Fontana: O dilogo entre a Doutrina Social...

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    A apologia como humildade que nasce de uma pretenso

    A apologia, portanto, intrnseca ao relacionamento entre a Igreja e o Mundo,entre a f e a razo. Nasce de uma pretenso. Como poderia a f conrmar a razo,torn-la mais verdadeira e puric-la, se no tivesse a pretenso de ser verdadeira?

    Anunciando a prpria verdade, a f crist torna mais brilhante tambm a ver-dade da razo, permite-lhe reconhecer-se melhor e conar em suas possibilidades.Assim fazendo, porm e eis a apologia! , aceita tambm ser julgada pela razo.

    Justamente porque Deus diz um grande sim ao homem, se deixa julgar pelo hu-mano. esse o aspecto da humildade.

    A apologia no sinal de arrogncia do cristianismo, mas sinal inequvoco desua humildade. A mensagem crist aceita ser julgada pelo humano. Este, entre ou-tros, um dos signicados da famosaLectio magistralisde Bento XVI em Regensburg,

    no dia 12 de setembro de 2006. Aquilo que contrrio ao logosno pode vir doDeus verdadeiro. A razo examina a religio e, sem com isso querer explicar seusmistrios ou reduzi-la a sua medida, controla sua razoabilidade.

    Se uma religio, por exemplo, prescrevesse preceitos morais contrrios leimoral natural que a razo, com suas foras, consegue reconhecer, essa religiono passaria na prova. No o tribunal da razo iluminista, que considera areligio uma juno de mitos que revestem um ncleo racional e quer reduzi-laa esse ncleo, desmisticando-a. a razo humana enquanto tal que tem condi-es de chegar verdade e, nesses termos, pode vericar se a religio a respeitaou no. O cristianismo tem a humildade de submeter-se a esse exame, que consequncia de sua pretenso de ser a religio verdadeira, de um Deus que

    Verdade e Caridade.A Doutrina Social da Igreja apologia no sentido aqui expresso. Situando-se no ponto de encontro entre f e razo, aceita um desafio. O desafio consiste,por exemplo, na pretenso de que a economia, ao aceitar a concepo cristda vida, torna-se, assim, uma economia melhor. A Doutrina Social da Igrejatem a pretenso de afirmar que uma economia que no se permita permearpela mensagem crist ser at mesmo contrria a si prpria. Se a economia,assumindo os valores cristos, se degenerasse, produzisse misria e opresso,explorao e infelicidade, isso significaria que a lgica da f estaria em con-traste com a lgica da razo, da qual a racionalidade econmica, no limite, tambm expresso.

    Quando a Caritas in veritatediz que a Doutrina Social da Igreja momento sin-gular do anncio da verdade (CV 9), ou ainda que o anncio de Cristo o primeiro eprincipal fator do desenvolvimento (CV 8), declara aceitar o desao do humano.

    Mas preciso dar ateno a um aspecto decisivo. Nem toda racionalidadehumana est em condies de avaliar adequadamente o anncio cristo. A razoque pode examin-lo apenas aquela que j est aberta para esse anncio, naforma da espera. A razo que se fecha a esse anncio preconceituosamente noconsegue compreend-lo.

    Voltemos ao exemplo da economia. Uma racionalidade econmica dominadapelo individualismo egosta diria que a proposta crist danosa e antieconmica.

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    Esta, no entanto, no seria uma avaliao convel da razoabilidade econmica datica crist, no exerceria nenhuma funo apologtica e no teria a capacidade deavaliar as implicaes da religio crist.

    O cristianismo aceita ser avaliado pela razo, mas pela razo verdadeira, nopela razo deformada e autorreduzida em suas capacidades. A razo verdadeira aquela que atende f, aquela na qual j est presente a vocao da f como espera.Apenas uma razo liberta e livre, e no uma razo inclinada ideologia, pode con-siderar adequadamente a razoabilidade da f.

    Dito em outras palavras: a f crist aceita ser avaliada pelo humano, mas apst-lo puricado por dentro, aps t-lo tornado verdadeiro e autntico. Isso algoque o humano no pode fazer sem acolher desde j, de alguma maneira, a f. Vol-tando o olhar f para avali-la humanamente, o humano, de certa forma, dirige-se

    j a ela e j a acolhe em si.

    Apesar de os apologistas serem frequentemente acusados de fundamentalismo,a apologia , ao contrrio, o melhor antdoto ao fundamentalismo. Quando a ticacrist se lana sobre a economia, no lhe pede que renuncie a sua lei e a troque peloEvangelho. O que faz indicar sua verdade, sua plena vocao o desenvolvimentohumano integral antes de tudo vocao (CV 59). O objetivo ltimo da economia no temcarter econmico. Oferecendo-lhe a possibilidade de transcender-se, torna-a maisconsciente de si, de sua natureza de economia, e permite-lhe desenvolver melhorsuas potencialidades econmicas. Como se v, no se trata de fundamentalismo,especialmente porque, como dizamos, como pode ser fundamentalista a tica cristaque aceita ser julgada pela racionalidade econmica?

    A tradio apostlica

    O aspecto apologtico da Doutrina Social da Igreja se explica, portanto, man -tendo rmes dois princpios: o da reciprocidade circular entre razo e f (Fides et ratio,73), mas tambm o do primado da f. Reciprocidade circular, na medida em que af purica a razo e a razo avalia a f, mas tambm primado da f, enquanto umarazo no alargada, e portanto j originariamente aberta f, no estaria emcondies de ser sua interlocutora.

    Entende-se assim o aprofundamento que a Caritas in veritatefaz sobre o verprprio da Doutrina Social da Igreja. Seus fundamentos no podem vir do mundo,compreendido sociologicamente, mas da tradio da f apostlica (CV 12). A liga-

    o explcita com a tradio j havia sido feita naLaborem exercens, mas pode ser en-contrada em todas as encclicas sociais que a precedem. A Caritas in veritate, contudo,tem o mrito de t-la precisado.

    O ponto de vista assumido no pode ser o mundo sociologicamente compre-endido, no pode ser apenas o simples dado da razo, mas a realidade j ilumina-da pela f na revelao transmitida aos Apstolos. Se esta partisse de outra coisa,que no a f apostlica, deixaria de cumprir sua tarefa de conrmar e puricar oplano natural. Negaria sua dimenso apologtica, na medida em que esta se sub-mete conrmao do humano, mas no de qualquer humano, e sim do humano

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    em sua verdade, revelada pela prpria f e conrmada nas autnticas necessidadeshumanas. Como diz Dom Giampaolo Crepaldi, na apresentao da encclica3:

    A Doutrina Social da Igreja recebe assim um esclarecimento denitivo acer-ca de sua posio no mbito do saber: est no ponto em que a f dialogacom a razo, em que a mensagem de Cristo anunciada ao mundo e acolhi-da, na medida em que o mundo a reconhece como sua e, com isso, se reen-contra plenamente, conrmado em suas autnticas aspiraes humanas.

    Inserindo a Doutrina Social da Igreja na tradio apostlica, a Caritas in veritatedenuncia o erro de distinguir e mesmo contrapor uma fase pr-conciliar e uma ps-conciliar da nica tradio da Doutrina Social da Igreja.

    Um dos frutos mais importantes dessas consideraes da encclica que a fun-o apologtica da razo humana perante a Doutrina Social razo despertada

    e ampliada pela abertura f se torna menos acidentada e mais gil. O aspectoapologtico da Doutrina Social, isto , sua conformidade razo humana, s podeser adequadamente reconhecido quando essa doutrina concebida em sua unidade.Ao mesmo tempo, a razo humana deve tambm ser entendida em sua unidadedo saber4, e apenas assim, sem fragmentaes, pode desenvolver plenamente seuobjetivo apologtico.

    3 CREPALDI, G. Introduzione. In: Benedetto XVI. Caritas in veritate.Siena: Cantagalli, 2009, p.28

    4 CREPALDI, G. ; FONTANA, S.La dimensione interdisciplinare della Dottrina sociale della Chiesa.Siena: Cantagalli, 2006, p. 16-17.

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    A arquitetura mundial de Bento XVI1

    Thierry Boutet2

    A Igreja no tem solues tcnicas para oferecer e no pretende de modo algum imiscuir-se napoltica dos Estados (Caritas in veritate, CV 9). Isso signica que a encclica social deBento XVI evita questes polticas? Absolutamente no. Como todas as encclicassociais, interpela as autoridades pblicas e os polticos, sobre vrios temas, entre osquais o da necessidade de uma autoridade mundial.

    A Igreja, recorda o Santo Padre, quando no impedida pelo poder e podedesfrutar de um regime de liberdade, tem um papel pblico que no se esgota nas suasatividades de assistncia ou de educao, mas revela todas as suas energias ao servio da promoodo homem e da fraternidade universal (CV 11). A Igreja abraou a misso de Cristo, seufundador, e considera a ao para o bem comum e o ensinamento poltico comoformas eminentes de caridade. Esta ltima, indissoluvelmente ligada verdade,

    o princpio que fundamenta um desenvolvimento verdadeiramente humano, nos das microrrelaes estabelecidas entre amigos, na famlia, no pequeno grupo, mas tambm dasmacrorrelaes, como relacionamentos sociais, econmicos, polticos (CV 2).

    Esse desenvolvimento humano integral, que diz respeito unitariamente totalidadeda pessoa(CV 11), no pode ser reduzido unicamente a aspectos materiais, apenasao possuir. Baseia-se em uma viso transcendente da pessoa(CV 11) e na esperanaque tem no horizonte a edicao daquela cidade universal de Deus que a meta para ondecaminha a histria da famlia humana (CV 7), e que de certa forma encontra sua ante-cipao e pregurao na cidade dos homens (cf. CV 7).

    Essa viso teolgica e antropolgica, natural e sobrenatural, racional e reve-lada esclarece as crticas que a Igreja pode fazer s questes econmicas, polticas

    e sociais de hoje. Essa viso e esse servio ao homem leva-a a propor diretrizes, asugerir linhas de investigao e aes de mudana para resolver os graves problemasque desaam a humanidade. Escreve, de fato, Bento XVI: A Doutrina Social da Igrejailumina, com uma luz imutvel, os problemas novos que vo aparecendo. Isto salvaguarda o carterquer permanente quer histrico deste patrimnio doutrinal, o qual, com as suas caractersticasespeccas, faz parte da Tradio sempre viva da Igreja (CV 12).

    1 Publicado originalmente em OSSERVATORIO INTERNAZIONALE CARD. VAN THUN SULLA DOTTRINASOCIALE DELLA CHIESA.Bolletino di Dottrina Sociale della Chiesa, 2009, Vol. V (3), p. 98-101.

    2 Jornalista e analista poltico. Diretor da Fundao para o Servio Poltico, de Paris, e editorialista da edio francesa darevistaFamlia Crist. Autor deLengagement des Chrtiens en Politique - Doctrine, Enjeux, Stratgie.

    Captulo 5

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    Quais so esses novos problemas enfrentados pela Caritas in veritate? So incont-veis. Chamarei a ateno para um que considero muito importante: as consequn-cias da globalizao sobre o papel e a misso do Estado.

    Certamente, depois de Paulo VI e de sua encclicaPopulorum progressio (1967), aIgreja se deu conta do carter global da questo social. A Caritas in veritate, citandoum discurso de Joo Paulo II Pontifcia Academia de Cincias (27 de abril de2001), diz que a globalizao a priori no boa nem m. Ser aquilo que as pessoas zeremdela (CV 42). Bento XVI destaca tanto seus efeitos positivos (CV 33) quanto nega-tivos (CV 42), mas tem em conta, como nunca antes, o seu impacto sobre a gover-nabilidade no mundo.

    Um novo contexto

    O Papa constata, antes de tudo, que a atividade econmica e a funo polticano podem mais operar, como nos tempos de Paulo VI, apenas dentro do espaodas fronteiras nacionais. Enquanto aPopulorum progressioatribua ainda s autori-dades pblicas um papel central na regulao da economia, Bento XVI lana-senos novos tempos:Atualmente, o Estado encontra-se na situao de ter de enfrentar as limi-taes que so impostas sua soberania pelo novo contexto econmico comercial e pelo nanceiro

    internacional, caracterizado nomeadamente por uma crescente mobilidade dos capitais nanceiros

    e dos meios de produo materiais e imateriais. Este novo contexto alterou o poder poltico dosEstados(CV 24).

    Essa nova situao exige que se reconsidere sabiamente o papel dos Estados

    para que estes possam, inclusive mediante novas formas de atuao, fazer frente aos desaos domundo moderno (CV 24). Como? A encclica sugere o reforo de novas formas de par-ticipao na vida poltica nacional e internacional[...], a ao de organizaes da sociedade civil(CV 24).O Papa sublinha, portanto, a necessidade de uma participao da socieda-de civil no cenrio da sociedade das naes. Mesmo que no citadas, existem muitassugestes prticas que podem ser pensadas a partir da: desenvolver, por exemplo,sinergias sindicais em nvel internacional para lutar contra a reduo das redes desegurana social em consequncia da mobilidade do trabalho e da desregulamentao

    generalizada (CV 25).

    Um novo papel para o Estado

    A encclica no prope a eliminao ou a anulao do papel do Estado-nao.Em relao resoluo da crise atual, seu papel parece destinado a crescer, reconquistando muitasde suas competncias (CV 41). A crise mostra, de fato, que a vida econmica certamente temnecessidade do contrato para regular as relaes de troca entre valores equivalentes. Mas precisa tambmde leis justas e formas de redistribuio guiadas pela poltica, e tambm de obras que tragam a marcado esprito de doao (CV 37). Temos tambm de salientar que a questo no tantocorrigir politicamente as disfunes da economia ou do mercado, quanto perseguir obem comum, do qual se deve ocupar tambm e sobretudo a comunidade poltica (CV 36).

    T. Boutet: A arquitetura mundial...

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    No se trata, portanto, de contrapor mercado, Estado e sociedade civil ou defechar-se cada um em seu campo: a economia cuidando apenas das relaes comer-ciais e da busca do lucro; o Estado intervindo apenas para fazer a redistribuio dosrecursos e aplicar a justia; e a sociedade civil realizando aes gratuitas e solidriasna lgica da fraternidade. Bento XVI insiste que causa de graves desequilbrios separaro agir econmico ao qual competiria apenas produzir riqueza do agir poltico, cuja funoseria buscar a justia por meio da redistribuio (CV 36).

    Cada esfera deve ser animada pelo esprito da caridade e do dom, que, pela gra-tuidade, torna o agir do homem verdadeiramente humano. Assim, a lgica do dome da gratuidade podem se dar mesmo nas relaes de mercado e promover o desen-volvimento de novas formas de empreendedorismo, com transferncia de competnciasdas iniciativas sem ns lucrativos para aquelas com ns lucrativos e vice-versa, do setor pblico para

    o mbito prprio da sociedade civil, do mundo das economias avanadas para aquele dos pases em

    via de desenvolvimento (CV 41). Alm disso, a distino usada at agora entre empresas quetm por nalidade o lucro (prot) e organizaes que no buscam o lucro (non prot) j no capaz

    de dar cabalmente conta da realidade, nem de orientar ecazmente o futuro (CV 46).Em sntese, necessrio levar em conta que:

    No preciso que o Estado tenha, em todos os lugares, as mesmas caracte-rsticas: o apoio para reforo dos sistemas constitucionais dbeis pode muitobem ser acompanhado pelo desenvolvimento de outros sujeitos polticos denatureza cultural, social, territorial ou religiosa, ao lado do Estado. A articu-lao da autoridade poltica em nvel local, nacional e internacional , almdo mais, uma das vias mestras para se chegar a poder orientar a globaliza-o econmica; e tambm o modo de evitar que esta mine realmente os

    alicerces da democracia (CV 41).

    A autoridade mundial

    Bento XVI, discutindo a globalizao e a necessidade de uma autoridade inter-nacional, escreve que:

    Para no gerar um perigoso poder universal de tipo monocrtico, o gover-no da globalizao deve ser de tipo subsidirio, articulado segundo vriose diferenciados nveis que colaborem reciprocamente. A globalizao temnecessidade, sem dvida, de autoridade, enquanto pe o problema de umbem comum global a alcanar; mas tal autoridade dever ser organizada de

    modo subsidirio e polirquico (cf.Pace in terris), seja para no lesar a liber-dade, seja para resultar concretamente ecaz (CV 57).

    Evidentemente isso exige uma reforma profunda no funcionamento das organi-zaes internacionais:

    Os prprios organismos internacionais deveriam interrogar-se sobre a realeccia das suas estruturas burocrticas e administrativas, frequentementemuito dispendiosas. s vezes sucede que o destinatrio das ajudas seja utili-zado em proveito de quem o ajuda e que os pobres sirvam para manter de

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    p dispendiosas organizaes burocrticas que reservam para a sua prpriaconservao percentagens demasiado elevadas dos recursos que, em vez dis-so, deveriam ser aplicados no desenvolvimento. Nesta perspectiva, seria de-sejvel que todos os organismos internacionais e as organizaes no gover-namentais se comprometessem com uma plena transparncia, informandoos doadores e a opinio pblica acerca da percentagem de fundos recebidosdestinada aos programas de cooperao, acerca do verdadeiro contedo detais programas e, por ltimo, acerca da congurao das despesas da pr -pria instituio (CV 47).

    As crticas mais duras so dirigidas ONU e ao FMI: Perante o crescimento inces-sante da interdependncia mundial, sente-se imenso mesmo no meio de uma recesso igualmentemundial a urgncia de uma reforma quer da Organizao das Naes Unidas quer da arquite-

    tura econmica e nanceira internacional, para que seja possvel uma real concretizao do conceitode famlia de naes (CV 67). E o Papa desenha os contornos dessa reforma:

    Para o governo da economia mundial, para sanar as economias atingidas pelacrise de modo a prevenir o agravamento da mesma e em consequncia maio-res desequilbrios, para realizar um oportuno e integral desarmamento, a se-gurana alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e pararegulamentar os uxos migratrios, urge a presena de uma verdadeiraAuto-ridade Poltica Mundial, delineada j pelo meu predecessor, o Beato Joo XXIII.A referida Autoridade dever regular-se pelo direito, ater-se coerentementeaos princpios de subsidiariedade e solidariedade, estar orientada para a con-secuo do bem comum (cf.Pace in terris),comprometer-se com a realizao

    de um autntico desenvolvimento humano integral inspirado nos valores dacaridade na verdade. Alm disso, uma tal Autoridade dever ser reconhecidapor todos, gozar de poder efetivo para garantir a cada um a segurana, aobservncia da justia, o respeito dos direitos (Gaudium et spes, GS 82). Obvia-mente, deve gozar da faculdade de fazer que as partes respeitem as prpriasdecises, bem como as medidas coordenadas e adotadas nos diversos frunsinternacionais. que, se isso faltasse, o direito internacional, no obstante osgrandes progressos realizados nos vrios campos, correria o risco de ser con-dicionado pelos equilbrios de poder entre os mais fortes. O desenvolvimentointegral dos povos e a colaborao internacional exigem que seja institudoum grau superior de ordenamento internacional de tipo subsidirio para ogoverno da globalizao (Sollicitudo rei socialis, SRS 43) e que se d nalmente

    atuao a uma ordem social conforme ordem moral e quela ligao entreesfera moral e social, entre poltica e esfera econmica e civil que aparece jperspectivada no Estatuto das Naes Unidas (CV 67).

    De onde vem essa urgncia?

    Podemos nos surpreender com uma crtica to severa s Naes Unidas, ondea Santa S observadora permanente, ou com o fato de Bento XVI ter-se preo-

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    cupado com o tema da governabilidade mundial. Depois de Paulo VI, as questesrelacionadas com a globalizao tm sido repetidamente levantadas pelos pontces,mas o Magistrio nunca avanou sobre essa questo. Deste ponto de vista, sem rom-per com seus antecessores, Bento XVI d um passo importante e quebra o que paraalguns ainda era um tabu.

    Pela primeira vez um Papa fala explicitamente em dar vida a uma verdadeira Au-toridade Poltica Mundial (CV 67). Uma autoridade organizada de modo subsidirio e poli-rquico (CV 57), que abra espao para a sociedade civil, suas instituies e seus repre-sentantes, mas que, igualmente, tenha a misso de garantir uma autoridade global.

    Quais so as razes para essa evoluo do Magistrio? As causas e as consequ-ncias da crise econmica e nanceira, os grandes desaos globais, como a fome ea falta de gua, os fenmenos migratrios, o desarmamento, o aquecimento globalmuito provavelmente esto associados tomada de conscincia do carter inevita-

    velmente global das solues para os problemas mundiais.Mas esses motivos tcnicos ou mesmo conjunturais no podem sozinhos expli-

    car o rme compromisso do Papa em um mbito que, at agora, o Magistrio en-carou com certa reserva, incluindo sua crtica s Naes Unidas. A urgncia no estinscrita apenas nas coisas, no s deriva do encadeamento de eventos e problemas, escreve BentoXVI (CV 20). Ento, de onde provm?

    Paradoxalmente, no momento no qual o papa convida a cidade dos homens adar-se uma autoridade mundial que arma veementemente que a Doutrina So-cial da Igreja no feita para instalar-nos confortavelmente na terra, mas est, sim,voltada esperana da cidade de Deus sem barreiras (CV 7).

    a primeira vez, desde a publicao da Populorum progressio, mais de quarenta

    anos antes, que a caridade armada com tal insistncia como a via mestra da Dou-trina Social da Igreja (CV 2) e o princpio dinmico de toda a construo estvel everdadeira da sociedade. Esse dom do amor o maior dom que Deus nos deu, sua

    promessa e nossa esperana (ibid.) e inseparvel da verdade como luz tanto da razoquanto da f.

    A urgncia, portanto, de construir a civilizao do amor (CV 33). Mas, longe dequalquer projeto ideolgico, de qualquer utopia humana, essa urgncia o opostode uma Babel universal. Esse desenvolvimento integral, que baseado em uma visotranscendente da pessoa (CV 11), uma vocao (CV 16), que a nossa resposta, narelatividade dos tempos, ao chamado transcendente do Deus criador (CV 18).

    Uma urgncia poltica, porm, e mais ainda, escatolgica.

    T. Boutet: A arquitetura mundial...

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    II Parte

    Economia e

    desenvolvimento

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    O desenvolvimento na Caritas in veritate1

    Simona Beretta 2

    A palavra desenvolvimento intrinsecamente dinmica. No indica um pontode chegada, mas um percurso que tem um sentido, que segue uma direo precisa:um crescente, do menos para o mais. A Caritas in veritate(CV), desde seu ttulo(Carta encclica sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade), indica queo desenvolvimento humano integral, da pessoa e dos povos, o o condutor de seutexto rico e complexo, que deve ser estudado com aquela inteligncia cheia de amorque nos faz entrar no conhecimento do real e nos permite operar ativamente emfavor do desenvolvimento com amor rico em inteligncia (CV 30).

    Podemos oferecer aqui apenas alguns pontos, entre os muitos que a encclicaoferta aos cristos e aos homens de boa vontade, que vivem fortemente em suas consci-ncias o apelo do bem comum (CV 71).

    Verdade e caridade como chaves de conhecimento

    Comeo do ponto que mais me impressiona: a g