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ESPERA pela VIDA Anna Carolina Oliveira Lygia Haydée Daniela Rosolen Priscila Zuini

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TCC de jornalismo de Anna Carolina Oliveira, Daniela Rosolen, Lygia Haydée e Priscila Zuini

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EspErapelavidaAnna Carolina Oliveira Lygia HaydéeDaniela Rosolen Priscila Zuini

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Espera pela Vida

Anna Carolina Dias de OliveiraDaniela Gabriel Rosolen

Lygia Haydée de Lima Silva RochaPriscila Criolézio Zuini

Orientação: Celso UnzelteDiagramação e Capa: Renata Miwa

Fotografia da capa: Bruno Zuini

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Agradecimentos

A Deus, por permitir a conclusão de mais uma etapa de nossas vidas. Aos entrevistados que tornaram possível

esta realização e tão generosamente partilharam suas intimidades conosco. Aos amigos, irmãos e familiares,

por tentarem entender o estresse e a correria deste ano e ouvirem com tanta atenção nossas ideias, problemas e soluções. Ao nosso orientador Celso Unzelte, por nos guiar em um momento tão importante. A Renata, por

suas ideias tão criativas. A Felipe, Marcos, Rafael e Thiago, pela dose extra de paciência e ternura.

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Dedicatórias

A Mariza, Rafaela e Sidnei, que mesmo distantes estiveram presente em minha vida, me amparando nas quedas e celebrando as vitórias

Anna Carolina Oliveira

Aos meus pais, José Edson e Maria Virginia, que contribuíram para que eu me tornasse cada dia mais forte para enfrentar os desafios

da vida Daniela Rosolen

A Simone e Lino, por sempre trilharem seus caminhos pensando

também nos meus passos Lygia Haydée

A Neusa, Irvando, Mariana e Bruno, que me ensinaram o valor de

ser verdadeira e de acreditar na vidaPriscila Zuini

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Sumário

Introdução...............................................................................11

Sofrimento no sangue .......................................................18

Esperança no outro............................................................ 37

Marcas de uma fila............................................................. 57

Paciência é o remédio .......................................................79

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Introdução

Este livro trata de seres humanos e de suas reações diante de uma espera. Quando nos reunimos para compor estas histórias,

não tínhamos a intenção de abordar esse momento frágil nem de maneira sensacionalista, a ponto de colocar as pessoas como víti-mas, nem de forma excessivamente fria e técnica, com o intuito de somente atrair a atenção dos profissionais da área médica. Tínha-mos em mente um objetivo bastante claro: contar uma boa história. A ideia pode parecer clichê para estudantes de jornalismo que pas-sam quatro anos ouvindo quais são os pilares da profissão, mas ten-tamos levar ao pé da letra o que entendemos por uma boa história e, mais além, procuramos mostrar uma situação pouco discutida nas páginas dos jornais.

Espera pela Vida traz quatro histórias de pessoas comuns que um dia souberam da necessidade de entrar em uma fila de espera por um transplante. Queremos abordar essa face pouco iluminada do tema. Os relatos que o leitor encontrará nas próximas páginas são experiências de vida de pessoas que passam por um período de incertezas, são dramas de quem está na fila e sente a agonia de ver que o tempo está se esgotando. São relatos de uma espera que pode salvar ou, infelizmente, acabar com uma vida.

Por mais que tenhamos ouvido diversos lados e consultado médicos, queríamos que os pacientes contassem suas histórias. As informações aqui retratadas foram checadas e revistas, apesar de

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nem todos os entrevistados terem voz ativa no texto. Focadas em mostrar de forma humana um momento delicado de vida, optamos por excluir vozes excessivamente técnicas, que pudessem interferir na narrativa. Apesar desta escolha, não faltam dados e exemplos que mostram o cenário de transplantes no Estado de São Paulo.

Em 2008, foram realizadas apenas 1.273 cirurgias no Estado. Já no primeiro semestre de 2009, foram 8.192 procedimentos des-se tipo no Brasil. Mas outros 59.944 brasileiros ainda aguardam na fila por um transplante de órgão ou tecido. A maior parte espera por um rim. Em seguida vêm córnea, fígado, rim e pâncreas conju-gados, coração, pâncreas e pulmão. A discrepância entre o número de cirurgias realizadas e o de pessoas aguardando mostra a com-plexidade da espera por um transplante. Nesse momento, convênio médico, saldo no banco ou condição social não pesam para que seja feita a escolha de quem vai, ou não, ter a esperança de uma nova vida. A questão da longa fila no Brasil tem diversos motivos e não será solucionada tão cedo. Segundo a Organização Mundial de Saú-de (OMS), estatisticamente, é cinco vezes mais provável depender de um transplante do que se tornar um doador.

A maior parte das pessoas que estão na fila morre antes de receber um órgão. Um dos principais problemas é a dificuldade dos médicos em reconhecer a morte encefálica. Muitos possíveis doa-dores são desperdiçados por este diagnóstico ser tardio. Quando há morte cerebral, o sangue não chega mais ao cérebro e todos os neu-rônios morrem. Os órgãos só podem ser retirados do corpo para transplante com o cérebro morto, mas o coração ainda batendo. Alguns órgãos e tecidos resistem mais tempo fora do organismo, como as córneas e a pele. Outros se perdem em um curto período, como o coração, os rins e o fígado.

A Secretaria de Saúde de São Paulo oferece cursos de reconhe-cimento de morte encefálica para alguns médicos, mas o resultado ainda é pouco expressivo. Na maior parte das faculdades de medici-na do país, o assunto é abordado superficialmente, em apenas uma

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das aulas de neurologia do curso. A morte encefálica, por incrível que pareça, é apenas pincelada nos seis anos da graduação.

Os exames que identificam a morte cerebral devem ser feitos sempre que um paciente chega em coma ao hospital. Com diagnós-tico inadequado, a oportunidade de doação é perdida, o que agrava ainda mais esse já tortuoso processo.

Outro dilema é a postura da família diante da perda de alguém e a decisão sobre o destino dos órgãos e tecidos. Atualmente, não há documento que comprove a vontade de um indivíduo de doar seus órgãos depois da morte. A palavra final ainda é dos familia-res e, muitas vezes, em um momento delicado, eles não conseguem pensar de maneira racional. Se não concordam com a doação, o pro-cesso se torna impossível. Isso faz com que, em São Paulo, Estado que realiza metade dos transplantes no Brasil, 70% dos potenciais órgãos deixem de ser aproveitados.

Ultrapassada a barreira da decisão familiar, há ainda outro problema: a falta de interesse dos hospitais em realizar os trans-plantes, devido ao alto custo do procedimento de coleta do órgão e da cirurgia. Neste ano, o Hospital das Clínicas da Universidade Fe-deral de Minas Gerais (HC/UFMG), em Belo Horizonte, suspendeu as novas consultas para transplante, alegando que o valor repassa-do pelo Sistema Único de Saúde (SUS) não é suficiente para manter as equipes de transplante. Ou seja, em vez de priorizar a possibili-dade de salvar vidas, alguns hospitais optariam por cortar gastos e não realizar o procedimento de captação de órgãos.

Percorrer corredores de hospitais nos fez refletir sobre a fra-gilidade do ser humano. Quantas pessoas se submetem a uma he-modiálise todos os dias e seguem suas vidas sem serem notadas? Quantas intervenções os doentes precisam sofrer para continuar sobrevivendo? Quando se passa a frequentar este meio, nota-se como as pessoas, depois de certo tempo, começam a encarar com conformismo o momento que estão vivendo.

A primeira história conta a luta diária de Cristina Maria Aze-

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vedo da Silva, à espera de um transplante de medula óssea. Há cer-ca de três anos, essa jovem, de apenas 28 anos, descobriu que era portadora de uma doença rara no sangue, a Hemoglobimeria Paro-xística Noturna, conhecida também como HPN. Desde então, pre-cisou mudar completamente sua rotina diária. Deixou o trabalho na metalúrgica IAM, que era uma de suas maiores paixões, e agora passa os dias com sua sobrinha mais nova, Giovana, de apenas três meses. O sacrifício só não foi maior porque Cristina adora crianças. Mas muitos de seus sonhos tiveram que ser abandonados.

No entanto, a batalha dessa nordestina, que veio morar em São Paulo quando tinha apenas 9 anos, não se restringe apenas a aguar-dar ansiosamente na fila. Ela precisa também superar obstáculos diários, devido às constantes crises que a doença provoca. O tra-balho, antes encarado como sua principal atividade, foi substituído pelas consultas médicas e visitas aos hospitais.

No segundo capítulo deste livro, o leitor tem um encontro com Marcondes Enedino de França. Nascido no Acre, o homem, de 46 anos, deixou a esposa Vera Lúcia e a filha Claire em Rio Branco, e veio para São Paulo aguardar por um transplante de fígado. Ex-po-licial civil, é uma pessoa simples e generosa. Segundo ele, seu maior hobby é ajudar os outros. Quando ainda exercia a profissão, costu-mava agir como uma espécie de “psicólogo do xadrez”, na tentativa de melhorar a vida das pessoas que passavam por lá. Entrou para a fila de transplantes há cerca de dez anos por sofrer de cirrose hepá-tica, causada pela hepatite C. Assim como Marcondes, outras 4.770 pessoas, de acordo com dados do Ministério da Saúde, aguardam por um novo fígado no Brasil. É a terceira maior fila, perdendo só para as de rim e de córnea.

Marcondes é franzino, mede 1,70 metro e pesa pouco mais que 60 quilos. Apesar de tentar, não consegue convencer que está forte para enfrentar este momento. Muitas vezes, esquece-se de nomes e datas e esquiva-se quando o assunto é o passado. Seus olhos focam quase sempre o futuro. Hospedado em São Paulo, em uma casa de

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apoio a pacientes com debilidades no fígado, no rim e no pâncreas, ele não disfarça a saudade da terra natal e de uma vida que acabou quando soube que havia contraído o vírus da hepatite C. “O tempo em São Paulo me fez nunca deixar de acreditar”, diz Marcondes.

No terceiro capítulo, o relato de alguém que não vê a fila com ineditismo. Marinez do Carmo da Costa, à espera de um segundo transplante, é uma mulher cheia de opinião e, também devido a sua experiência, tem uma visão mais cética a respeito do transplante e da fila. Assim como Marcondes, ela mantém o foco no presente e no futuro. Como costuma contar, as únicas coisas que a fazem lembrar o passado são as marcas físicas deixadas pela insuficiência renal.

Foi aos 25 anos que Marinez descobriu a perda das funções dos rins. Na época, levou um susto, mas soube manter a calma em momentos tensos, como o da primeira intervenção cirúrgica no braço, procedimento necessário para dar início à hemodiálise. O maior problema da moça foi perder a liberdade.

Cheia de energia e fã de forró, Marinez não gosta do tratamen-to que a mantém refém de uma máquina, responsável por cumprir a função dos rins debilitados. Para superar esses momentos de an-gústia, conta com a ajuda do pai, da mãe e dos dez irmãos. A nume-rosa família aparece, ao longo de toda a história, como um suporte e, a certa altura, inclusive como uma solução que mudou a maneira de Marinez compreender a vida.

O livro se encerra com a trajetória de Adamastor Marques Pereira. Mesmo estando em uma cama de hospital, esse pernam-bucano, que desde criança mora em São Paulo, não perde a chance de fazer uma piada ou comentário engraçado. Há seis anos, desco-briu que precisava de um transplante de coração. Na infância, foi in-fectado pelo Trypanosoma cruzi, protozoário que se aloja nas fezes do barbeiro e transmite a doença de Chagas. Somente aos 20 anos de idade, descobriu que seu coração estava inchando. Sem perder a calma, e depois de muita resistência, começou a se tratar.

Como Adamastor mesmo diz, “o inseto deixou o cocô em seu

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sangue para nunca mais ser esquecido”. A graça, para explicar como ficou doente, mostra sua simplicidade e também sua alegria. Como se não bastasse uma pessoa positiva na família, Adamastor, que an-tes trabalhava como metalúrgico, pôde contar com a esperança e a delicadeza da mãe. Dona Josefa não é a protagonista da história, mas é o apoio do personagem principal, que sem o amor e o carinho maternos, talvez não conseguisse superar metade de sua jornada em busca de um novo coração. E, sobretudo, não poderia mostrar que, assim como os outros personagens desse livro, não é uma esta-tística, mas um ser humano com uma vida toda a ser desvendada.

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Capítulo I

Sofrimento no sangue

Aqueles que pensam que quem espera por um transplante de medula é necessariamente careca, magro e triste surpreen-

dem-se ao ver Cristina Maria Azevedo da Silva. Morena, de cabelos longos, olhos castanhos amendoados e corpo esbelto, essa jovem de 28 anos tem uma luz no olhar que contagia. Apesar dos proble-mas que a cercam, a vaidade continua fazendo parte de sua vida. Uma prova de que, para ela, a aparência continua tendo importân-cia está na escolha de colocar um cateter no pescoço – por ter seus rins afetados durante uma crise -, mesmo sabendo que o risco de pegar uma infecção torna-se maior do que se ele estivesse no braço. “Se fosse no meu braço, formaria aquelas bolotas feias e hoje ele estaria todo deformado.”

Ficar resfriado pode, muitas vezes, indicar outra doença mais complexa. Foi exatamente isso que aconteceu com Cristina. Houve um período em que ela vivia resfriada. Ficava cinco dias de cama, tomando fortes remédios. Melhorava, mas logo o incômodo resfria-do voltava. Naquela época, os consultórios médicos já faziam parte de sua rotina. Porém o tratamento à base de corticóide não surtia efeito. Isso porque o diagnóstico errôneo não conseguia detectar o real problema. Indicava apenas que Cristina tinha o número de

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plaquetas no sangue abaixo do normal. Mesmo com esse frágil estado de saúde, Cris, como prefere ser

chamada, não deixava o trabalho de lado. Auxiliar de produção da metalúrgica IAM, uma grande indústria em São Bernardo do Cam-po, ela só se importava com sua produção diária. “Acordei um dia e estava muito ruim. Não falei nada para minha mãe e fui trabalhar. Tive os sintomas da suposta gripe dentro da empresa.” Pálida, fraca e sem forças, Cristina acabou vomitando no ambiente de trabalho. O caso, ocorrido em dezembro de 2006, foi o estopim para que a real doença fosse detectada.

Sua mãe, dona Iracema, percebendo que a filha não estava bem, resolveu levá-la a um hematologista. Preocupado com o quadro da jovem, o doutor James, de quem Cristina não consegue lembrar o sobrenome, talvez como uma forma de fugir dessas lembranças, passou a acompanhá-la e pediu exames específicos.

Assim que saiu o resultado, ele a chamou para conversar. “O doutor disse que não estava desconsiderando o trabalho dos outros profissionais, mas o meu caso era mais grave do que o esperado. Sou portadora de HPN.”

A Hemoglobimeria Paroxística Noturna (HPN) é uma doença raríssima no sangue, que obriga Cristina, desde sua descoberta, a esperar por um transplante de medula. A moléstia ataca a membra-na das células-tronco da medula óssea. Além disso, destrói os gló-bulos brancos, deixando o paciente muito fragilizado para as ações do dia a dia. A causa exata desse raro distúrbio é desconhecida. No caso de Cristina, trata-se de uma doença congênita, mas que só veio a se desenvolver na fase adulto-jovem.

O problema de saúde trouxe outro empecilho para a vida de Cris. O trabalho de que tanto gostava foi excluído de suas ativida-des diárias. “Eu não esperava por isso. A minha vida era normal. Agora tenho que ficar em casa porque não posso pegar peso nem me esforçar muito. De repente, passei a me sentir inválida.” Além da aparente invalidez, ela precisou se acostumar com as constantes

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crises em decorrência da enfermidade. A falta de apetite, o cansaço recorrente e a perda de forças já eram marcas de todos os dias.

***

No dia 5 de janeiro de 2007, Cristina acordou indisposta e foi dire-to para o banheiro, onde passou a urinar sangue. Não tinha forças para nada, estava completamente desanimada e sua única vontade era ficar deitada. Desesperada, sua mãe a levou para o Hospital San-ta Helena, em São Bernardo do Campo, aonde ia costumeiramente fazer seus exames. Dessa vez, porém, o quadro era mais grave. Os dois rins estavam paralisados. Devido ao estado em que se encon-trava, Cristina saiu do pronto-socorro de ambulância, direto para a unidade do Hospital Santa Helena, em Santo André, onde interna-ções podem ser realizadas. Ao reparar que o trajeto estava diferen-te, conscientizou-se de que seu caso era mais complicado do que imaginava. Aquela foi a pior crise desde que havia descoberto ser portadora de HPN.

Mesmo sabendo que seu estado de saúde estava abalado, aque-la era a primeira vez que seu corpo ficava tão debilitado. O sangue no vaso sanitário foi apenas o começo do episódio mais marcante de sua luta diária por um transplante de medula óssea.

Ao chegar ao outro hospital, estava com uma aparência esver-deada, em decorrência da estagnação dos rins. “Estava parecendo a personagem Fiona, do filme Shrek, de tão verde que fiquei”, diz, fazendo graça com a situação. Acostumada a receber notícias nega-tivas desde que descobrira a doença, Cristina foi obrigada a ouvir novamente um quadro desanimador. Agora, além da HPN, ela teria que fazer hemodiálise, pois a enfermidade acabou comprometendo também seus rins.

Cris esteve internada durante um mês e meio e ficou inchada devido ao tratamento agressivo, à paralisação dos rins e à HPN, que já estava enfrentando. “Minha mãe, meu noivo e minha tia iam me

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visitar e já não tinham mais esperança.” Não bastasse o estágio já crítico, Cristina ainda enfrentaria mais obstáculos. Teve duas pa-radas cardíacas e foi desenganada pelos médicos. “O meu noivo e um dos meus irmãos foram me ver às 14 horas e eu estava bem. De repente, começou uma dor e todas as enfermeiras vieram me so-correr. Quando percebi, tinha mais de dez médicos com aparelhos ao meu redor. Achei que estava morrendo.”

Os médicos suspeitavam que Cristina estivesse com trombo-se nos órgãos, um coágulo sanguíneo que pode ocorrer a qualquer instante por causa do mau funcionamento de seu organismo. Le-varam-na para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e, logo em seguida, resolveram operá-la. O corte, de aproximadamente cinco centímetros, foi feito acima do umbigo da jovem, e a cirurgia não apontou nenhuma complicação. Com isso, Cris teve a primeira res-posta positiva desde que soubera que estava doente. Seu quadro surpreendentemente retrocedeu, apesar da moça ainda necessitar de alguns cuidados especiais.

Mesmo em casa, Cristina não se viu livre da hemodiálise. “Ia três vezes por semana ao hospital, às segundas, quartas e sextas. Ficava lá das seis às dez horas da manhã.” Seus rins ainda estavam fragilizados e não funcionavam normalmente. “Os médicos diziam: ‘Cristina, seus rins não vão mais voltar’”, lembra, com lágrimas nos olhos. Cris passou a fazer parte de uma nova fila de transplante. Além de precisar de um transplante de medula, agora enfrentava outra realidade: a espera por novos rins. “É difícil aguardar por uma cirurgia, mas o momento mais difícil foi a hemodiálise.”

A marca no pescoço, em decorrência do cateter, mostra, até hoje, o quão complicado foram os seis primeiros meses de 2007 para essa jovem, que, de tão envergonhada, policia-se para não fa-lar alto demais. “Chegava ao hospital, sentava ao lado da máquina da hemodiálise e logo os enfermeiros ligavam o aparelho. O meu sangue ia todinho para a máquina, era limpo e depois voltava para o meu corpo.” Ao final do processo doloroso, Cristina não tinha for-

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ças, ficava com dor de cabeça e chegava a vomitar. “Era um sofri-mento tão grande que eu não tinha nem vontade de viver. Sempre perguntava por que aquilo acontecia comigo. Eu cheguei a dizer para minha mãe que, se eu ficasse mais um mês naquela situação horrível, não iria suportar.”

***

Cris faz parte de uma família de seis irmãos. Todos, menos a irmã mais velha, moram em uma pequena e acolhedora casa na Vila Li-viero, zona sul de São Paulo. Seu problema de saúde mexeu muito com a rotina da família Silva. A mãe, auxiliar de produção da gráfica Extra Copy que fica em São Bernardo do Campo, ficou tão preocu-pada com o estado debilitado de sua terceira filha que resolveu se afastar do trabalho por um mês para dar mais atenção a Cris. Todos os irmãos se submeteram a exames de compatibilidade. No entanto nenhum era 100% apto a doar a medula. Em relação aos rins, duas de suas irmãs poderiam ajudá-la.

Porém o que parecia impossível começou a se mostrar real. Os rins voltaram a funcionar sem a ajuda de aparelhos, o que fez com que o transplante desse órgão deixasse de ser necessário, contra-riando o diagnóstico inicial do médico Caio, de quem Cristina tam-bém não lembra o nome completo e que acompanhou o caso dos rins da moça desde o começo. Impressionado com a melhora apa-rentemente sem explicação, ele não soube explicar como o quadro regrediu dessa forma. Agora, Cris voltava para o mesmo estágio em que se encontrava em 2006, quando descobriu que era portadora de HPN. Sua espera por um doador se restringe à fila de transplante de medula óssea.

Após seis meses, ela finalmente pode se ver livre das constantes idas ao hospital para a realização da hemodiálise. A cura novamen-te não teve explicações médicas e até eles se surpreenderam com a melhora da jovem. Mas as marcas da pior crise da vida de Cristina

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ainda estão muito presentes, o que fez até com que ela mudasse seus sonhos. Antes de passar esse tempo no hospital e de saber que faria parte de uma fila de transplante, Cris vislumbrava a carreira médica. “Eu me via de avental branco, mas hoje em dia...”, silencia, demonstrando uma dor arrebatadora. A hemodiálise tornou-se seu grande trauma. “Quando vejo alguém fazendo hemodiálise na tele-visão ou quando escuto que uma pessoa está com problemas nos rins, chego a chorar.”

***

Nascida em Rio Formoso, cidade do interior de Pernambuco, Cris-tina mudou-se para São Paulo aos 9 anos de idade. Desde que che-gou à cidade, Cris mora em uma acolhedora comunidade. A casa de número 52, onde reside com a família, divide espaço com outras moradias em uma pequena viela. Apesar de não ter um bichinho de estimação, Cris convive diariamente com a inusitada presença do papagaio das vizinhas. Como a porta da sala está sempre aberta para iluminar e refrescar o ambiente, a ave acaba sendo a atração das conversas da família. No entanto, em certos casos, chega a irri-tar a jovem. “Fica quieto, papagaio!”, resmunga Cris, quando o bichi-nho fica mais exaltado.

Foi também na Vila Liviero que Cristina conheceu seu noivo. Paulo é policial militar e parece completamente apaixonado por ela. Começaram a namorar ainda adolescentes e, após oito anos de re-lacionamento, decidiram se casar. Apesar da descoberta da doença, Paulo jamais deixou de apoiá-la. “Ele nunca me abandonou, sempre esteve ao meu lado. Amor é isso, nos momentos mais difíceis, um estende a mão para o outro.”

Caso consiga o tão sonhado transplante, Cristina já sabe que seu próximo passo será trocar as alianças com o noivo. “Às vezes eu falo para a minha mãe que o meu maior sonho é entrar na igre-ja toda de branco. Quero construir minha família e, um dia, poder

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contar isso para os meus filhos.” Por causa da doença, ela prova-velmente terá complicações para engravidar. “Meu noivo me disse que não vai ser isso que impedirá a nossa felicidade.” Mesmo que as crianças não venham biologicamente do casal, Paulo e Cristina já sabem o caminho a trilhar: a adoção.

As crianças são a grande paixão da vida de Cristina. Como ain-da não pode ter seus filhos, ela se deleita com a sobrinha Amanda, de apenas um ano e meio. É só a pequenina chamá-la de “Quile”, singular apelido criado pela própria menina, para que Cris se des-manche em sorrisos e carinhos com a sua bebê, como costuma se referir à garotinha. O apego entre as duas começou durante o tem-po em que Cristina tomava conta da sobrinha. Elas passavam o dia todo juntas e, já que Cris não gosta de sair de casa quando não está com seu noivo, Amanda se tornou a principal distração da jovem.

No entanto, a separação das duas foi inevitável. A pequenina começou a frequentar a escola no meio de 2009, o que deixou Cris-tina arrasada. “Às vezes me pego vendo fotos da minha bebê. Ela faz muita falta no dia a dia.” E não foi apenas Cris que sentiu a ausência. Amanda chegava a chorar quando percebia que não iria para a casa de Quile, mas, sim, para o berçário. A falta de uma criança diaria-mente em sua vida não durou muito. Apenas três meses depois, a jovem passou a cuidar de Giovana, de seis meses, filha de seu irmão mais velho. O choro de saudade de Amanda, agora foi substituído pela resistência de Giovana em ficar com a tia, que ainda lhe parece estranha. “Daqui a pouco ela se acostuma comigo. Mas a minha gor-ducha é muito linda.”

A família Silva está sempre festejando algo. O casamento de Cristina será mais uma dessas festas, mas não será a primeira co-memoração que envolve diretamente a jovem nos últimos tempos. Depois de passar um mês e meio internada devido à paralisação dos rins, todos na comunidade celebraram sua volta com uma gran-de folia. Além disso, as costumeiras reuniões para o almoço de do-mingo mostram como esses nordestinos continuam cada vez mais

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unidos e felizes, apesar dos percalços causados pela doença.Mesmo com as alegrias constantes que vivencia em sua casa,

algumas lembranças ruins insistem em voltar à vida de Cristina. Ela já enfrentou diversas enchentes no bairro onde mora, nas quais perdeu diversos móveis e pertences pessoais. “Aqui, eu já tive mui-tas perdas, eu já sofri demais. E agora me apareceu isso...”, diz, ca-bisbaixa, referindo-se à espera por um transplante de medula.

***

A fila de espera para o transplante de medula óssea é universal. Te-oricamente, devido a esse fator, as chances de encontrar um doador compatível aumentam. Os pacientes podem se inscrever em filas de vários países, como Alemanha, Itália e Estados Unidos. Para que suas chances aumentassem, Cristina, além de estar na fila brasilei-ra, também se cadastrou na alemã.

Entretanto, por causa da amplitude de possibilidades, os pa-cientes precisam se reinscrever na fila de espera a cada três meses, para confirmar que ainda precisam de um transplante.

Como a medula não é um órgão, mas, sim, um tecido, não há li-mitação de tempo para que possa ficar fora do corpo do doador. Por isso, existe essa possibilidade de uma fila universal. Assim, o trans-plante pode ocorrer em cidades, Estados ou até países diferentes, pois o tecido fica congelado até que ocorra a intervenção médica. Porém o grande complicador ainda é a compatibilidade entre re-ceptor e doador. Como as chances de encontrar o tecido compatível são de 25% entre irmãos e de uma em 100 mil na população em geral, aqueles que precisam de um transplante de medula acabam por se conformar com a dificuldade eminente; apesar de não haver a necessidade de se retirar a medula de um doador com morte en-cefálica, como na maior parte das outras filas de transplante.

Esse é o caso de Cristina. Como nenhum de seus familiares e amigos é totalmente compatível com a jovem, Cris compreendeu

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que a espera, por mais dura que seja, é a solução para seu caso. “Es-tou bem ciente dessa dificuldade e nunca quis um transplante com 50 ou 80% de compatibilidade. Querendo ou não, eu estou bem. Não vou me arriscar enquanto ainda tiver fôlego de vida.” Isso por-que a chance de haver uma rejeição, nesses casos, aumenta consi-deravelmente, o que torna a cirurgia ainda mais complicada.

Apesar da espera longa e demorada, Cris sabe perfeitamente como será realizada a intervenção. ”Não será fácil. Ela vai me deixar muito debilitada porque vai matar toda a minha medula, que não funciona bem. Além disso, ainda posso ter rejeição.” O tipo de trans-plante a que Cristina será submetida é um dos mais complicados. As células responsáveis pela produção do sangue serão retiradas da veia do doador, por meio de uma punção nos ossos da bacia, e filtradas em um processo semelhante à diálise. Em seguida, o ma-terial doado será injetado na veia de Cristina e as células recebidas migrarão automaticamente para o interior dos ossos, preenchendo, assim, o espaço que era ocupado pela medula original, proposita-damente destruída para evitar rejeição.

A metodologia utilizada também leva em conta o fato do do-ador de Cristina não ser um de seus parentes, o que é outra difi-culdade do processo. Nos casos de “não-aparentados”, como são conhecidas as pessoas que fazem a doação voluntária de medula óssea, a possibilidade de haver incompatibilidade aumenta.

No Brasil, toda pessoa saudável que tenha entre 18 e 55 anos pode ser doadora voluntária de medula. Para isso, é preciso que ela se cadastre em um hemocentro que realize este procedimento. Os dados recolhidos ficam disponíveis para consulta dos médicos de todo o país no Registro Brasileiro de Doadores de Medula Óssea. De cada 10 mil pessoas registradas, apenas uma deverá ser chamada. O processo da doação dura cerca de 90 minutos. O voluntário toma uma anestesia geral para que os médicos possam fazer uma incisão nos ossos de sua bacia para punçar 500 mililitros de medula. O do-ador tem alta no mesmo dia.

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Caso seja encontrado um doador, Cristina terá que se preparar para o transplante com sessões de quimioterapia. Elas serão res-ponsáveis por eliminar as células doentes de seu organismo. De-vido ao tratamento agressivo a que será submetida, apesar de sua doença não se tratar de um câncer, a jovem vaidosa terá que abrir mão de um de seus cartões de visita: os cabelos. “Como as células da minha medula não estão funcionando bem e terão de ser destru-ídas, terei que me submeter à quimioterapia. O transplante vai me deixar carequinha”, conta, com um sorriso surpreendente no rosto. Essa, aliás, era uma dúvida constante de Cris assim que soube de sua doença. “Quando me disseram que eu teria que fazer um trans-plante de medula, imaginei que estava com câncer. Mas, hoje em dia, sei que tem muitas outras doenças que levam uma pessoa a fazer esse tipo de transplante e, posteriormente, a fazer a quimio-terapia. A HPN é apenas uma delas.”

Antes da descoberta da moléstia de Cristina, não havia ne-nhum outro caso declarado da doença no Brasil. Esse pode ter sido, inclusive, um dos fatores que levaram os médicos a não constatar o problema logo nas primeiras consultas. Hoje, no entanto, outros casos já foram descobertos no país. “Contando comigo já são cinco pessoas portadoras de HPN.”

***

Cristina tem apenas duas chances de driblar a morte. A primeira é o transplante de medula óssea. A segunda é conseguir o me-dicamento Eculizumab Soliris, que fará com que ela possa levar uma vida normal. No entanto, essa medicação não está registra-da na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que dificulta o processo de recebimento do remédio. Assim que sou-be da existência de um método que controlaria sua doença, Cris foi em busca desse benefício. “Meu médico fez uma carta para o ambulatório e fui à Secretaria de Saúde do Estado de São Pau-

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lo ver se conseguia essa medicação. Naquele momento, não me negaram, mas disseram que teria que voltar lá outro dia. Voltei várias vezes até que me disseram que eles não poderiam forne-cer esse remédio.”

Cristina soube da resposta negativa por meio de um tele-grama, que dizia que esse era um medicamento não comerciali-zado no Brasil. A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo se mobilizou apenas para enviar um telegrama. Nada mais.

O Eculizumab Soliris é fabricado na Europa e custa cerca de 10 mil reais por injeção, o que, para Cristina, será necessário a cada 15 dias. Ou seja, o gasto mensal com a medicação seria de 20 mil reais. “Com o dinheiro do medicamento eu até consegui-ria mudar de casa. Mas não vou desistir.” Cris está abrindo uma ação judicial para conseguir o remédio, que não é fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Agora, ela faz parte de um grupo que processa o Estado para ter esse direito garantido pela lei.

O número de ações contra o Ministério da Saúde cresceu seis vezes nos últimos quatro anos e o gasto com a compra de drogas não fornecidas previamente saltou de 2,4 milhões de re-ais, em 2005, para 52 milhões, em 2008.

Mesmo sem receber o remédio que a livrará das constantes crises, a jovem já sonha com o resultado positivo que ele trará para sua vida. “Vou receber a medicação pela veia. Ela pode fazer até com que eu não precise mais de transplante, pois meu caso pode ficar estagnado se começar a utilizar esse remédio.” Ele é de uso contínuo, injetável e será aplicado a cada quinze dias.

Além do Eculizumab Soliris, Cristina terá que complementar seu tratamento com complexo B, ácido fólico e anticoagulante. Po-rém a existência desse remédio trouxe uma nova esperança para Cris. “Eu não vejo a hora de conseguir um sim na minha vida.”

Mesmo tendo superado sua principal crise desde que desco-briu que era portadora de HPN em 2007, Cristina ainda convive com as marcas daquele momento. Em abril de 2009, Cris teve mais

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uma recaída. Um novo motivo para que voltasse ao hospital de San-to André. “Agora, as minhas crises são assim: eu estou bem, de re-pente começa a me dar uma fraqueza, não tenho forças para nada, não tenho vontade de comer nada, só quero ficar deitada. Minha mãe é quem me dá banho e quem me veste. Não tenho forças nem para apertar a mão de alguém”, revela, com ar cansado.

Desde que teve seus rins afetados pela HPN, toda nova crise volta a atingi-los. “Agora, sempre que eu tenho uma crise, os meus rins ficam machucados e tenho complicações. Preciso ficar inter-nada para que os médicos possam me analisar e medicar, porque a crise de HPN é como se fosse uma borra de café que se espalha pelo meu corpo. Ela sempre ataca os meus rins e pode atacar outros órgãos. É por isso que preciso dessa nova medicação logo.” E esses momentos difíceis deixaram Cristina tão fragilizada que, toda vez que ela precisa voltar ao hospital de Santo André, chega a chorar. “Vou horrorizada. A minha mãe vai comigo e fico chorando para não ficar no hospital. É terrível.”

O tratamento para que Cris controle as crises e possa voltar ao seu lar tem como base a transfusão de sangue. “Sempre tenho que receber bolsa de sangue porque fico muito fraca.” As crises se manifestam de um dia para o outro. Cristina já sabe quando terá de ser internada assim que acorda. “Vou ao banheiro pela manhã e o meu xixi sai da cor de um chá bem forte, quase Coca-Cola. Mais tarde sai sangue puro e fico esverdeada. Minha mãe me coloca em uma cadeira, me dá banho e me veste. Depois disso, vou direto para o hospital”, lembra a moça.

Apesar do trauma de ficar internada, Cristina passa também por momentos alegres na casa de saúde. Diversos pacientes que compartilham da mesma angústia da espera na fila de transplante acabaram se tornando seus amigos.

O tom lúdico entre eles é uma constante. “Quando fico interna-da, os pacientes me perguntam por que não fico acordada para que a doença não ataque.” A brincadeira se refere ao nome da enfermi-

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dade, que é Hemoglobimeria Paroxística Noturna. Além das constantes internações, Cristina teve que se acostu-

mar a uma nova rotina. “Minha vida é sempre exames, laboratórios e consultas médicas.” O acompanhamento de seu caso está sendo feito por dois especialistas na área: a doutora Débora Rodrigues Bonito, responsável pelos exames mensais a que Cris precisa ser submetida para saber como o seu quadro está caminhando, e o pro-fessor doutor José Salvador Rodrigues de Oliveira, coordenador de transplante de medula óssea do Hospital São Paulo, que observa o caso da jovem com a função de encontrar um doador compatível. “Eles falaram que eu preciso ter força. E eu tenho. Porque se não for assim não consigo vencer.”

Como as consultas médicas estão muito presentes em seu dia a dia, Cristina acabou criando um vínculo muito forte com a médi-ca que a assiste mensalmente. Em diversas ocasiões, em vez de o encontro se restringir apenas às estratégias médicas a serem ado-tadas, Cris acaba desabafando com a nova amiga. Agora, além de médica, ela também é sua conselheira. “Às vezes, eu choro na sala dela, pois não entendo por que não consigo arrumar um transplan-te. Isso mexe com o meu emocional. Mas ela sempre diz que eu não posso desistir. Não posso perder as esperanças.”

***

Apesar da amizade criada entre a doutora Débora e Cristina, a rela-ção harmoniosa não se estende em todos os casos de suas rotinei-ras consultas médicas. Quando a jovem precisa se consultar com o doutor José Salvador, no ambulatório de transplante de medula óssea do Hospital São Paulo para saber o seu posicionamento na fila de espera, o atendimento é bem diferente.

Cristina passa por essa consulta a cada três meses, pois, ape-nas assim, pode continuar inscrita no demorado processo da fila de espera por uma nova medula. Para isso, chega à casinha de TMO,

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como o lugar é conhecido pelos pacientes, cerca de quatro horas antes de sua consulta. Na realidade, esse processo não deveria ser tão demorado. Porém, como faz parte do atendimento público do Estado de São Paulo, os médicos que a assistem costumam não se preocupar com a demora.

O local possui apenas nove cadeiras desconfortáveis, sendo que uma delas está quebrada e outra faz um persistente barulho sempre que ocupada por alguém. Nas paredes brancas e geladas, existem alguns quadros. Um deles é uma réplica de Os Girassóis, de Vincent Van Gogh. Dentre as obras, uma plaquinha se destaca: aquela que nomeia os títulos adquiridos pelo doutor Salvador du-rante anos de profissão.

Em junho de 2009, Cristina passou por uma dessas consultas com este médico. Sempre que vai ao local, Cris não consegue conter a ansiedade. Acorda cedinho, arruma-se e fica aguardando o horá-rio em que deve sair de casa. Para chegar à casinha de TMO, a jovem precisa pegar duas conduções que demoram, em média, três horas para atingir o destino final. Tudo isso pensando em não se atrasar para o encontro que pode mudar sua vida. O único médico que tem a possibilidade de trazer uma boa notícia para ela é justamente o doutor Salvador. Isso se deve ao fato de ele ser o coordenador da unidade ambulatorial dos transplantes de medula óssea realizados pelo Hospital São Paulo, onde Cris está inscrita desde que desco-briu sua doença.

As consultas são realizadas conforme a ordem de chegada dos pacientes agendados à casinha de TMO. A cada semana são atendi-das cerca de cinco pessoas que necessitam de transplante. Saben-do dessa ordem e da demora do atendimento, sempre que Cristina precisa ir a uma nova consulta, programa-se para ser a primeira a chegar ao consultório. E, dessa vez, não foi diferente. Após sua chegada, outros quatro pacientes compareceram ao local, todos acompanhados por algum parente, exceto Cristina, que prefere ir sozinha à consulta. Apesar da relação afetuosa que tem com seus

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familiares, Cris sabe o quanto essa espera é desgastante. “Meu noi-vo, minha mãe e minha irmã mais velha até ficam chateados de não me acompanharem. Mas já basta eu ter de esperar tanto tempo as-sim para ser atendida. Não acho justo que eles também tenham que passar por essa falta de respeito.”

Mesmo com a pressa e ansiedade de seus pacientes, o doutor Salvador não se preocupa em obedecer os horários previamente es-tabelecidos. Cristina já estava a sua espera desde as 13 horas. Duas horas depois o assistente do doutor Salvador, Caio Silvério de Sou-za, médico residente especialista em cancerologia clínica, atendeu a jovem para fazer alguns exames de praxe, o que durou apenas dez minutos. Em seguida, ela voltou à sala de espera para aguardar a chegada do coordenador, visto que a palavra final só pode ser dada por ele. “Sempre que venho aqui é esta mesma ladainha. Espero horas para ser atendida.”

O relógio apontava 15h30 quando, finalmente, o doutor Sal-vador chegou ao consultório sem falar com ninguém. Subiu para sua sala e, meia hora depois, atendeu Cristina. Com os nervos à flor da pele, ela foi ao encontro do médico, que nem sequer olhou para sua face. A única fala do especialista, após analisar o histórico de Cris durante três minutos, foi que ainda não havia encontrado um doador. O residente Caio, que acompanhava a consulta, ficou encar-regado de marcar um novo retorno para Cristina e o fez com um singelo constrangimento, devido à atitude de seu superior.

Tentando demonstrar um ar de compaixão e, para amenizar a decepção estampada na face de Cris, o estudante de medicina pediu para que ela não se preocupasse, afirmando que, mais cedo ou mais tarde, eles encontrariam alguém compatível.

Ao deixar o consultório, com ar desolado, a jovem seguiu para casa com a sensação de que havia sido humilhada. “Esperei quatro horas para o médico nem me examinar. É difícil ouvir que ainda não tenho um doador. Mas o que posso fazer se esta é a única forma de me inscrever na fila de transplante?”.

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A chuva torrencial que caía naquela tarde da consulta com o doutor Salvador parecia já anunciar o quão triste seria o dia da jo-vem após aquele frívolo encontro.

***

Além dos exames que Cristina precisa fazer com a doutora Débo-ra e com o doutor Salvador, outra rotina desgastante faz parte do processo de espera na fila de transplante por uma medula óssea. Como, com a chegada da doença, a jovem precisou deixar seu tra-balho, a cada seis meses deve passar por perícias médicas no Ins-tituto Nacional do Seguro Social (INSS) para que possa continuar afastada de sua atividade profissional. O processo ocorre para que Cris possa fazer o requerimento de auxílio-doença ao governo, for-ma de atestar sua incapacidade produtiva no momento. Para ela, no entanto, essa consulta é mais desgastante pelo fato de fazê-la perceber que ainda não pode voltar a sua rotina diária de trabalho, do que por ter que se submeter a mais um exame.

Esse procedimento deve ocorrer até Cristina conseguir um transplante. “A minha médica sempre diz que não vai me liberar enquanto eu não tiver a cura completa.” A doutora Débora é a res-ponsável por atestar o estado de saúde de Cristina para a perícia realizada pelo INSS. A cada seis meses, ela prepara um relatório descrevendo todos os sintomas e crises que Cristina apresentou nos últimos tempos com o intuito de provar ao governo que ela re-almente não tem condições físicas nem psicológicas para voltar ao mercado de trabalho. Com os dados, eles geralmente autorizam o afastamento da jovem por seis meses e, assim, é preciso que esse processo seja repetido duas vezes por ano. O único caso em que Cris pôde ter um período de descanso maior foi quando teve seus rins paralisados. “Depois da minha crise em 2007, o INSS permitiu que eu ficasse dois anos afastada do trabalho.”

Cristina vive na tênue linha entre a vida e a morte. Por isso,

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até os gestos mais corriqueiros de seu cotidiano acabam ganhando status de grandes eventos. O simples toque do telefone sempre gera uma nova expectativa. “Qualquer telefonema já é uma esperança a mais. Querendo ou não, estar na fila mexe com o meu emocional. Tem dias que fico estressada, nervosa. Mas sei que não posso ficar assim.” O que também leva Cristina a titubear é a incessante espera. “Não vou mentir e dizer que não tenho medo. Mas, se aparecer um doador 100% compatível, com certeza, eu faço o transplante.”

A espera é sempre uma incerteza. Cris já tentou, em vão, recor-rer a várias alternativas. Assim que soube que teria que fazer parte de uma fila de transplante, buscou ajuda em Ribeirão Preto. Essa saída foi sugerida pelos médicos que a acompanhavam naquela ocasião. A cidade paulista é um dos pontos de referência neste tipo de procedimento. “Meus pais fizeram o exame e não foram compa-tíveis, como alguns amigos que se ofereceram para fazer o teste e também não foram.”

Assim que soube que todas as pessoas próximas a sua filha não poderiam fazer a doação, dona Iracema, hoje com 44 anos, pen-sou em outra alternativa: ter mais um filho para, quem sabe, poder aproveitar as células-tronco do cordão umbilical da criança em be-nefício de Cristina. No entanto, por ter feito laqueadura, o sonho acabou se esvaindo. “Minha mãe falou que, se ela pudesse, dava a vida por mim, para que eu não passasse pelo que estou passando.” Em março de 2009, Cristina teve uma nova esperança. Sua sobrinha veio ao mundo e poderia trazer consigo a cura total que tanto es-pera. No entanto, mais uma vez, a jovem foi obrigada a escutar uma resposta negativa. A menina não poderia ajudá-la. Essa situação se repetiu mais uma vez ainda em 2009, quando a filha do seu irmão mais novo nasceu. Entretanto a recém-nascida também não é com-patível com a tia.

A doença de Cristina fez com que a família Silva se conscien-tizasse do quão importante é ajudar o próximo. “A gente não es-perava que isso fosse acontecer comigo. Então, depois de tudo, a

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minha irmã mais velha resolveu se inscrever no banco de doadores voluntários de medula óssea.” Assim como são unidos para festejar, os familiares de Cristina também estão próximos nas horas difíceis. O apoio incondicional é a palavra-chave entre eles. “Com essa situ-ação, todo mundo sofre, não tem como não sofrer. Principalmente quando tem união.” No entanto a jovem não admite que ninguém esteja ao seu lado motivado apenas pela compaixão. “Eu só quero que estejam comigo por me amar, por querer estar junto e por sa-ber que, um dia, a gente vai vencer.”

Cris mostra uma força que surpreende. Mas o tortuoso cami-nho que vem trilhando, muitas vezes, a faz esmorecer. “Tem vezes que penso em desistir. Dias em que me dói muito e continuo lutan-do. Agora, não posso ver nada de bom nisso, mas acho que, lá na frente, vou conseguir enxergar alguma coisa boa em tudo. Nada é em vão na vida da gente.” Seu olhar, como sempre, continua mos-trando que a esperança é seu principal combustível. “Esses últimos anos da minha vida não foram fáceis. Mas estou sempre perseve-rando, esperando que o amanhã seja melhor.”

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Capítulo II

Esperança no outro

O homem no canto da sala ainda se pergunta como veio parar em São Paulo. Enquanto devora uma salada de frutas, no intervalo

de uma palestra do Oitavo Encontro de Pacientes Transplantados e Candidatos a Transplante de Fígado, conta da mulher e da filha que deixou tão longe dali. Chama-se Marcondes Enedino de França. Os olhos pequenos e amendoados e o corpo franzino - pouco mais de 60 quilos distribuídos em pouco menos de 1,70 metro de altura - não denunciam a doença que percorre seu sangue há quase vinte anos. A culpada por fazê-lo sair de Rio Branco, no Acre, e embarcar direto para São Paulo, sem conhecidos, sem dinheiro.

Mesmo debilitado, Marcondes é um homem aparentemente saudável. Não apresenta um dos sintomas mais característicos de quem tem problemas no fígado, a icterícia, coloração amarelada da pele, que acontece por acúmulo de bilirrubina (produto da degra-dação da hemoglobina) e é causada pelo mau funcionamento do órgão. Aos 46 anos, Marcondes vive em São Paulo desde maio, com a ajuda da Associação para Pesquisa e Assistência em Transplante, a Apat, organização não governamental que mantém uma casa de apoio aos pacientes no bairro de Vila Mariana.

A associação abriga pessoas que precisam de um transplante e

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moram fora do Estado de São Paulo, em lugares que não oferecem a cirurgia. A casa tem capacidade para vinte pessoas e é mantida com a ajuda de médicos e doadores voluntários. Marcondes participa de um dos encontros promovidos pela ONG, no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, para esclarecer as dúvidas dos portadores do vírus da hepatite C. Naquele domingo em que saboreava a salada de fru-tas no meio de tantos outros como ele, só se alegrava ao dizer que poderia ser transplantado a qualquer momento.

Apenas um novo fígado poderia fazer com que seu tratamento fosse um pouco menos doloroso.

Em 2009, a descoberta do vírus da hepatite C (HCV) completou vinte anos. A doença é silenciosa e, em mais da metade dos casos, mostra-se assintomática. Isso faz com que muitos dos pacientes nem desconfiem que o vírus esteja evoluindo em seu organismo. O HCV tem uma preferência especial pelas células do fígado. Afeta o funcionamento deste que é o maior órgão do corpo humano e pode causar sua falência se prejudicá-lo a ponto de o doente desenvolver uma cirrose ou um câncer.

Dados do Ministério da Saúde dão conta de que 75% da po-pulação brasileira já teve algum contato com o vírus da hepatite, seja ele do tipo A, B ou C, o mais grave de todos. Neste último caso, a contaminação acontece através de sangue infectado. Transfusões e compartilhamento de seringas e objetos cortantes estão entre as situações de risco. Há ainda uma menor parcela de pacientes conta-minada pela chamada transmissão vertical, aquela que acontece de mãe para filho no momento do parto. Profissionais da saúde e pes-soas que passaram por transfusões de sangue até 1992 têm grandes chances de ter a doença. Isso porque, até então, não eram tomados alguns cuidados básicos nos hospitais, como o uso de seringas des-cartáveis. O vírus pode sobreviver por até quatro dias em uma gota de sangue. Às vezes, chega a levar anos para ser descoberto. Isto pode acontecer por mero acaso, como ocorreu com Marcondes.

Em uma tarde de 1992, ele sentiu uma forte dor na região dos

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rins. Abaixou-se e não conseguia mais se levantar. Depois de uma bateria de exames, foi encaminhado a um especialista e descobriu que era portador do HCV. Durante esses anos, muitas pesquisas permitiram que os portadores do vírus tivessem uma vida melhor. Mas muitos ainda vão parar na fila de transplante, que por diversas vezes parece não andar. Marcondes acredita que sairá dela a qual-quer instante. “O médico disse que eles podem me ligar a qualquer hora, como aconteceu com outro rapaz da Apat”, entusiasma-se, fa-zendo referência a um colega de quarto que havia sido transplanta-do duas semanas antes.

O transplante de fígado é recomendado aos pacientes cujo ór-gão está perdendo suas funções, seja por uma doença sem retorno, seja por algum problema súbito que destrói o órgão rapidamente. Assim como no caso do rim, o transplante de fígado entre vivos é possível. Ele é mais comum em crianças e pouco recomendado para adultos. Em geral, este procedimento coloca em risco outra vida. Por isso, a esperança está sempre no outro.

***

O casal pobre de nordestinos foi para o Acre motivado pela abun-dância da borracha, na esperança de uma vida melhor. Guarda da polícia civil, José Enedino de França, pai de Marcondes, saiu do Ce-ará para ajudar na construção de ruas e do aeroporto do Acre. Da relação com Estefânia, nasceram seis meninos e quatro meninas. “Mas já morreram bastante”, lembra Marcondes.

Conformado, o homem já se acha sortudo pelo fato de ter so-brevivido até os 46 anos.

O acreano estudou somente até o segundo grau, em colégio público. “A gente não tinha condição. Às vezes, ganhava um cader-no, um lápis, uma borracha e estava de bom tamanho. Nem meren-da escolar existia.” Diz que era um aluno bem comportado, apesar de um pouco vagaroso. Começou a trabalhar aos 7 anos, ajudando o

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irmão em uma oficina mecânica. “Não era forçado, era um trabalho leve, de acordo com as minhas condições.” Não parou mais. “Pouco brinquei na infância. Mas não me importava. Eu tinha o objetivo de ajudar dentro de casa.”

Quando fez 18 anos, Marcondes virou motorista de um ca-minhão de lixo da cidade, trabalho do qual não gostava muito. “Eu fechava a cabine toda, mas sempre tinha um arzinho para aquele cheiro de lixo entrar.” A saída do emprego foi cômica, e mostra um pouco da personalidade de Marcondes. “Findou que um dia eu fui merendar, parei o caminhão de lixo, pedi uma coca-cola e um quibe. Tinha um fiscal que era louco pra dirigir o caminhão. Enquanto eu estava lanchando, ele pegou o caminhão e foi descarregar o lixo. Quando ele voltou, o capô estava um pouco amassado.”

A denúncia veio de um dos colegas de trabalho. “Tinha um mudo que trabalhava com a gente e tudo que acontecia ele dava um jeito de ser o primeiro a dizer. Eu perguntei quem tinha sido e ele apontou para o fiscal. Quando chegamos de volta, o mudo já foi entregando logo todo mundo para o chefe”, diverte-se. Marcondes pediu para que o patrão não demitisse o rapaz. “Na época eu era solteiro, só tinha uma namoradinha. Ele tinha dois filhos. Me deu uma pena dele tão grande que até doeu meu coração.” O patrão con-cordou com sua saída e perdoou o fiscal.

Apesar do odor incômodo do lixo, foi graças àquela atividade que Marcondes conheceu a mulher com quem é casado há 21 anos. “Eu passava na rua dela, dava uma buzinadinha com o carro e ela sorria.” A partir das buzinadas e sorrisos, Marcondes e Vera Lúcia começaram a namorar. Antes de oficializar a união, porém, ele se sentia na obrigação de ter um novo trabalho, uma vez que o cami-nhão de lixo já não fazia parte desta história. Ele queria seguir o mesmo exemplo de seu pai, de quem tinha uma lembrança sempre forte na memória. Seu José havia criado todos os filhos com muito esforço e Marcondes preocupava-se com um futuro melhor.

Em 1986, entrou para a polícia civil, de onde sairia seis anos

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mais tarde, quando já não tivesse condições físicas para trabalhar. Como policial, na delegacia ou nas ruas, costuma dizer que fazia o papel de psicólogo. “Eu, por minha conta, chegava à porta do xa-drez e conversava. A pessoa saía dali tranquila.” Marcondes garante que a maior parte das pessoas chegava à mesa do delegado ciente de que tinha feito algo errado. Mas sempre havia os que acabavam voltando muitas vezes para ouvir seu sermão. “Sempre há a exce-ção. Ela está no meio da gente, seja em qual sentido for.” Depois do período em que atuou como “psicólogo do xadrez”, foi transferido para o setor de viaturas, onde poderia usar um pouco da experiên-cia adquirida na oficina do irmão aos 7 anos de idade.

Da união com Vera Lúcia, nasceu Claire. “Geralmente o homem quer filho homem, mas eu sempre imaginei mulher. Dá menos tra-balho.” A filha, agora com 21 anos, é seu orgulho maior, o que na vida mais lhe dá gosto. Estudante de Medicina, Claire representa a esperança para o pai. Marcondes gostaria de vê-la tratando outros como ele e melhorando a vida dos pacientes. “Eu queria mesmo que ela seguisse esta especialização, que pudesse cuidar de outras pessoas, salvar vidas.”

***

Apesar de ter cura, a hepatite C é uma doença traiçoeira. Vive silen-ciosamente dentro do corpo e, quando resolve despertar, não tem piedade. O mal derruba o ser humano e quem chega ao fim só tem uma esperança, o transplante de fígado. Como é de praxe, Marcon-des iniciou o tratamento com dois medicamentos indicados para o HCV: o Interferon e a Ribavirina. Essas drogas são as chances de o portador de hepatite C “negativar” a doença, ou seja, manter o vírus inativo e, por consequência, curar-se. Para chegar a esta situação ideal, é preciso vencer os efeitos colaterais. Os dois medicamentos devem ser ministrados juntos e exigem muito do corpo do doen-te. É comum, durante o tratamento, ter vômitos, anemia, fadiga e

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alguns sintomas de gripe, como coriza. Marcondes precisou inter-romper o tratamento pouco tempo depois de começar essa etapa. Se continuasse com a medicação, poderia morrer. “As reações do remédio eram horríveis. Eu tinha diarreia, vômito e sentia um frio pior do que o que faz em São Paulo.”

Assim como Marcondes, quem não consegue caminhar com o tratamento tem grandes chances de desenvolver cirrose, que é a putrefação do fígado, órgão que representa cerca de 2% do peso do corpo humano e funciona como um grande laboratório. Ele selecio-na as substâncias, metaboliza, joga fora aquilo que não precisamos e transforma o que é essencial para nossa sobrevivência. Face à sua debilidade, a única saída é conseguir um novo fígado. Foi aí que começou a mais importante espera de sua vida.

Ainda no Acre, o homem ficou desolado ao saber que não seria possível fazer a cirurgia em seu Estado. “É terrível saber que preci-so de um órgão e o lugar que estou não tem. Pensar que é só botar um fígado novo e vou ter mais chance de sobreviver, de alongar e melhorar a minha vida... E, quando você olha para os quatro cantos e não vê saída, é complicado. É difícil.”

As autoridades de saúde locais estimam que cerca de 9% da população do Acre, que, de acordo com dados do Instituto Brasilei-ro de Geografia e Estatística, é de 655 mil pessoas, já teve contato com o vírus da hepatite C. Toda a região Sudeste apresenta menos de 1,5% da população nas mesmas condições.

Os médicos não sabem precisar uma causa para estes números tão altos entre os acreanos. Segundo dados da Organização Mun-dial da Saúde (OMS), a hepatite C crônica atinge entre 170 e 200 milhões de pessoas no mundo e 4,5 milhões apenas no Brasil. Parte dessas estatísticas, a vida de Marcondes está permanentemente li-gada a outro número. Um número que tem o poder de decidir quem vive e quem morre na fila de transplante de fígado.

Desde 2006, o Brasil adotou o Meld, sigla em inglês para Model for End-Stage Liver Disease, que significa Modelo para Doenças de

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Fígado em Estágio Final. O Meld foi elaborado para organizar a fila de espera por um transplante de fígado. Além da compatibilidade, este número tem o poder de dizer quem vai à frente de quem na fila de transplante. O índice serve para classificar a gravidade da doença do fígado e é obtido por meio de um cálculo matemático, que tem por base três exames laboratoriais. Se o resultado da conta for maior, significa que o paciente está mais perto da morte e, con-traditoriamente, da vida. Isso porque quem tem o maior número tem uma condição mais grave e encabeça a fila de transplante, e ela pode mudar todos os dias. A ordem de chegada não vale nada nesta espera. Por isso, muitos pacientes aguardam pela cirurgia há mais de dez anos, enquanto outros passam poucos dias na fila.

Crianças, adultos e idosos aguardam na mesma fila. As crian-ças têm o índice multiplicado por três, para poderem concorrer com os adultos. Em geral, apresentam mais chances de transplante dos pais vivos, já que costumam receber apenas parte do fígado, e não o órgão inteiro. Para os mais velhos, a concorrência é bem maior. O Meld tem uma importância extrema na vida do paciente que aguarda por um fígado. Entre os médicos, não há consenso so-bre a utilização deste método de classificação. Em muitos casos, a pessoa está em uma situação já muito debilitada, mas ainda não tem o número suficiente para fazer a cirurgia imediatamente. O ín-dice mínimo para o transplante é de vinte e cinco.

“O Meld é justo em termos. Se permanecer deste jeito e deixar que o médico opine sobre o estado físico do paciente, é justo. Se dei-xar só para o número decidir, é injusto”, opina Marcondes. Porém, há casos de priorização. Hepatite fulminante e trauma hepático le-vam a pessoa para o topo da fila. Se o número chegar a 29, em uma escala de 40, o paciente recebe o novo fígado em até duas semanas. Quando seu índice alcançou 23, em 11 de maio de 2009, Marcondes precisou embarcar para São Paulo.

Apenas na companhia da cunhada, Francisca, Marcondes via-jou com uma ideia fixa: voltaria para casa “novo em folha”, como

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gosta de dizer. A esposa e a filha precisaram ficar no Acre. “Se ela viesse, já perderíamos uma renda. Foi acertado que minha cunhada estava disposta a vir e a Vera Lúcia ficou lá cuidando de tudo. De vez em quando ela manda um dinheiro para cá. A gente necessita desse dinheiro.” As limitações da doença estavam cada vez maiores. “As pessoas olham para mim e não percebem que estou doente, mas o que está ruim não é por fora, é por dentro.” É preciso não fazer muita força, manter uma dieta controlada, com pouco sal, farinha e gordura. Nenhuma gota de álcool é permitida. Isso pode ser de-cisivo para a falência do fígado. Apesar das restrições, Marcondes confessa que, às vezes, resolve ser médico de si mesmo, tanto que incluiu no prato a farofinha tão saudosa. “Eu sei que isso é ruim. É péssimo. E no impulso a gente pode encontrar nossa derrota. Mas na hora é bom, porque você faz sua vontade.”

A rigidez das recomendações médicas não é à toa e Marcondes sabe bem disso. “A cirrose debilita muito a pessoa, emagrece e vai atingindo cada órgão, pouco a pouco. Vai deixando a pessoa frágil e outras complicações vão surgindo na sua vida.” Em seu caso, exis-te ainda um agravante: Marcondes faz parte do grupo sanguíneo do tipo O, mais raro, só compatível com sangue do mesmo grupo. Assim, o transplante pode demorar mais, já que a compatibilida-de é mais difícil. Além disso, há seis meses, ele faz um tratamento paralelo contra a diabetes. Se a doença não for contida, pode preci-sar ainda de um transplante de pâncreas depois que conseguir um novo fígado. Esse é um problema que ele prefere ignorar, fingir que não existe, e concentrar suas forças para continuar caminhando na fila de transplante de fígado.

Um de seus principais problemas, hoje, é a ascite, também cha-mada popularmente de barriga-d’água. Ela faz com que os pacientes tenham que ficar internados. Trata-se de um acúmulo de líquidos ingeridos, causado pelo mau funcionamento do fígado. Em geral, para solucionar esse problema, os doentes são tratados com diuré-ticos. Mas, em alguns casos, é preciso perfurar o abdômen para que

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o líquido seja retirado. Marcondes costuma melhorar apenas com a administração do remédio. “Mas requer um tempo, pelo menos uns dez dias tomando diurético e tomando soro para hidratar. A pele fica ainda mais seca, porque a hepatite já gera essa secura.” Para evitar a internação, ele toma dois tipos de diurético diariamente, além de outros quatro medicamentos para o estômago, que têm a função de prevenir problemas de pressão alta e diabetes. Apesar de não reclamar dos comprimidos, Marcondes fica bastante incomo-dado quando precisa fazer os exames da diabetes. “As furadas para o exame causam dor. Ficam várias marcas nas pontas dos dedos. Ninguém gosta de ser furado. E tem ainda a da insulina, outra pica-da, aí vem o soro e mais outra picada.”

Marcondes tem consciência de que se receber o transplante não vai poder abandonar os remédios. “Por mais que dê tudo nor-mal, por muito tempo tem que tomar o remédio para não ter rejei-ção. Baixa sua imunidade, você fica fraco, até que se recupere e o corpo aceite aquele pedaço de órgão que não é seu. Mas o médico disse que continuo tomando o remédio de qualquer jeito.” Assim como ele, muitos sabem que um novo fígado não significa começar uma nova vida do zero. Para o portador de hepatite C, a cirurgia para receber um novo órgão não é a cura. O fígado é substituído, mas ainda é preciso continuar com o tratamento da hepatite, já que o vírus continua circulando no corpo e, mais cedo ou mais tarde, pode comprometer o órgão novamente. Em cerca de 30% dos ca-sos, os transplantados voltam para a fila de cinco a dez anos depois de realizada a operação. “Essa cirurgia significa prolongar a vida e saber que eu tenho chance de um tratamento. Quando você tem cir-rose, qual é o tratamento? Nenhum. Cada dia vai petrificando mais seu fígado, até atingir outro órgão, até chegar a óbito.”

Aguardar em uma fila é sempre depender dos movimentos de outras pessoas e esperar que ela ande cada vez mais rápido. “Estar na fila é esperançoso.” Mas Marcondes também sabe que é preciso que alguém morra para que sua vida continue. “Eu confesso que

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não gostaria de depender que alguém morresse. Fico meio cons-trangido por depender desse tipo de coisa. Eu estou querendo so-breviver. Será que quem morreu não queria?”

***

A descoberta da possibilidade de conseguir um transplante em São Paulo aconteceu por intermédio do doutor Tércio Genzini, cirur-gião do grupo Hepato e um dos fundadores da Apat. O médico faz atendimentos e palestras no Acre há mais de dez anos. Além dis-so, instrui a equipe médica local sobre como agir em casos como o de Marcondes, em que o paciente precisa ser inscrito em uma fila de espera por transplante. A associação surgiu quando médicos da área de transplante de fígado, pâncreas e rim se juntaram para aju-dar os pacientes que moravam em Estados que não tinham infraes-trutura para salvar essas vidas.

Atualmente, na Apat, convivem pacientes do Acre e de Goiás que aguardam por um novo órgão ou estão se recuperando da ci-rurgia. Eles só têm direito a um acompanhante. A casa é simples e mal sobrevive com as doações que consegue. “Às vezes, está faltan-do uma mistura e a gente se reúne e ajuda. Agora mesmo, está pre-cisando de um fogão, porque esse é muito devagarzinho. Como tem tanta gente aqui, vemos quem está disponível para ajudar e no dia que der a gente paga”, diz o acreano, mostrando sua generosidade.

Tanto a história de Marcondes quanto a de outros mais de mil pacientes que já passaram pela associação mostram a fragilidade do sistema de saúde nacional. A maior parte dos Estados não está pronta para esse tipo de tratamento nem para fornecer condições para a cirurgia de troca de órgão. Fortaleza e São Paulo são os locais mais próximos do Acre para o transplante de fígado. O primeiro fica a quase seis mil quilômetros por terra e o segundo, a mais de três mil. “No meu caso, eu sabia que viria para São Paulo mesmo, por-que da minha cidade até Fortaleza era como se fosse de uma ponta

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para a outra do Brasil. Do Oiapoque ao Chuí ao contrário.” A vinda dos pacientes para São Paulo funciona em um mode-

lo de parceria público-privada. Como forma de amenizar a falta de condições, o Estado financia as passagens aéreas e os pacientes en-tram em um programa de tratamento fora do domicílio. A associa-ção se compromete a hospedá-los. Existe ainda uma ajuda de custo para que eles sobrevivam longe de casa. A burocracia demora tanto que muitos não têm tempo de receber o dinheiro.

A espera começa bem antes da chegada ao novo lar. A casa de apoio só pode receber novos hóspedes quando surge uma vaga. É preciso telefonar constantemente para saber como está a capaci-dade da casa. Quando há possibilidade, o médico autoriza a vinda do paciente. “Tem gente com mais condições que vai para um ho-telzinho, mas não é fácil, porque aqui é tudo muito caro”, reclama Marcondes. Além de cara, Marcondes acha a cidade grande demais. “Tudo aqui é distante, não é que nem na minha cidade que você vai até a pé. Aqui tem que pegar um táxi e é caro.” Ele conheceu São Paulo aos poucos, de uma forma que espera que ninguém conheça. “A maior parte que eu conheço aqui foi no caminho de um hospital, de um consultório médico. A pessoa só entende que há uma neces-sidade dos outros quando ela passa por aquilo na pele. Até então, se você não está precisando, nem liga.”

Marcondes tem algumas impressões curiosas sobre São Paulo. Ao contrário de outros visitantes que costumam torcer o pescoço para ver os prédios da Avenida Paulista, ele é taxativo: “Para mim, prédio não encanta. Mas existe prédio bonito, tem gente que capri-cha mesmo. A arquitetura é boa e talvez encante qualquer pessoa, talvez até eu mesmo. Mas prédio não me encanta muito, não”, diz, com sinceridade. Apesar de a capital paulista ter uma infraestrutu-ra melhor, Marcondes não desiste da ideia de que a capital do Acre é melhor para se viver. “Comparar uma coisa pequena com uma grande? É complicado isso. A violência aqui é constante, tem em todo canto. Lá você tem mais sossego. Podemos dizer que a polícia,

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lá, não tem a estrutura que talvez a daqui tenha e a maneira de tra-balhar. Mas, com o pouco que tem de estrutura, eles se resolvem”, conta, defendendo a corporação da qual ainda se considera parte.

Depois que precisou abandonar o trabalho, a vida de Marcon-des é teorizar. Já que não pode ajudar as pessoas, usa o tempo ocio-so para pensar em projetos e saídas para os problemas da cidade. A solução da violência em São Paulo? Está na ponta da língua: “As pessoas precisam se humanizar mais por aqui, para que elas sintam no coração que quem está na sua frente é um próximo. E o próximo também é seu”. O problema das drogas? “Eu não acho certo a lei bra-sileira. Ela precisa ser mudada um pouquinho. O presídio pode até recuperar algumas pessoas, porque para tudo existe a exceção.”

A essência de Marcondes é ajudar os outros, pensar em como melhorar, pelo menos um pouco, a vida das pessoas. Ele acredita que todos podem ser úteis. Mesmo que um braço ou uma perna não funcione, o cérebro ainda precisa de combustível. “Eu gosto de aju-dar as pessoas. Se as condições fossem melhores, ajudaria mais. A gente muitas vezes não alcança o nosso objetivo por falta de alguém que ajude. Ajudar o próximo é gostoso. Depois, você vê que aquela incapacidade da pessoa deixou de ser.” O acreano chega a dizer que seu maior hobby é ajudar, poder fazer algo por alguém. Ficar pa-rado em casa é um sacrifício para ele. Por isso, busca maneiras de manter-se ativo, como se isso pudesse também mantê-lo vivo.

***

A vida de um doente como Marcondes é regida, muitas vezes, pela dúvida. O vírus da hepatite C está no sangue e a maioria dos porta-dores não sabe como ele foi parar lá. Os meios de transmissão são conhecidos e, normalmente, o HCV já pode ser detectado no sangue duas semanas depois do contagio. Mas, como a doença demora a se manifestar, é quase impossível dizer com precisão como a pessoa a adquiriu. Paradoxalmente, Marcondes acha que contraiu o HCV

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fazendo o que mais gosta. “Eu não ficava parado. Mesmo quando estava de folga, se visse algo para fazer, ia e fazia logo. Posso ter contraído a doença em algum machucado, como um corte.”

Marcondes parece ter apagado da memória os momentos mais marcantes de sua doença. Ele tem dúvidas sobre quando passou mal pela primeira vez, sobre quando descobriu que tinha hepatite C e sobre quando entrou de vez para a fila de transplante. “Eu acho que já faz uns sete ou oito anos. Mas não me lembro com muita certeza.” A expectativa de quando será chamado para a cirurgia está presente o tempo todo e, quase sempre, acompanhada da incerte-za sobre o que acontecerá depois. A diabetes vai levá-lo de volta à fila, desta vez por um pâncreas? Para o doutor Tércio Genzini, que ainda acompanha o caso quando Marcondes está em São Paulo, as chances de isso acontecer são grandes, já que o corpo pode não conseguir se recuperar da doença e não reagir tão bem ao novo tra-tamento contra a hepatite C.

A espera não tem data para acabar. O Meld pode sofrer varia-ções imprevisíveis, o que faz com que o paciente oscile em seu posi-cionamento na fila. Marcondes sente falta de mais respostas, de en-tender como um simples número pode colocá-lo tão perto da vida e da morte. “Infelizmente, tem que seguir. Se morrer antes, morreu”, tenta conformar-se. Mas ele sabe que não é tão simples assim. É comum que uma pessoa doente encontre alternativas para enten-der sua situação. Com Marcondes acontece o mesmo. No fundo, ele reconhece que preferia saber como pegou a doença, quando entrou na fila e, mais do que qualquer outra coisa, encontrar uma resposta para quando vai sair dela e continuar vivendo normalmente. “Todo mundo que está vivo tem um objetivo e o meu é viver. No momento, o que eu estou necessitando é viver. Por isso que eu vim para São Paulo para fazer esse transplante. Ele significa prolongar a vida e saber que você tem chance de um tratamento.”

Aos poucos, Marcondes vai deixando de lado a ideia de que é preciso simplesmente esperar. De que não há alternativa, uma nova

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opção. Nessas horas, ele pensa na filha Claire como a esperança. Se ela seguir a carreira médica, pode encontrar o alívio para as dores físicas e psicológicas do pai. Sofrimento que, muitas vezes, ele tenta esconder, exibindo o semblante alegre, o queixo erguido, como se ainda ostentasse a farda que o pai lhe ensinou a honrar. Mas ele não esquece que o vírus da hepatite C ainda percorre suas veias e, por mais que insista em dizer que sua aparência é de uma pessoa normal, que ainda é capaz de fazer quase tudo, conhece bem suas limitações e o momento que está passando. Diz que é ver a vida à beira de um precipício.

A estrutura emocional também afeta sua situação. Quando soube que precisava de um transplante, Marcondes piorou consi-deravelmente. “Pensei que estava à beira da morte e a doença já vinha me tombando há muito tempo e eu não sabia se ela continu-aria dessa forma.” Outro fator essencial foi a reação da família. O acreano costumava ver a mulher chorando escondida pelos cantos, tentando ocultar seus sentimentos do marido e da filha. “Mas eu olhava e já sabia que alguma coisa tinha acontecido. Eu prefiro sa-ber, porque assim eu vou procurar meios de melhorar.” Na ânsia de encontrar alternativas, muitos pacientes fazem como Marcondes e apelam para a cultura popular. “Eu fui atrás de ervas, usei muitas ervas. Algumas ajudaram, outras não surtiram nenhum efeito.” Os médicos alertam que este tipo de atitude pode piorar, e muito, o es-tado do fígado. Assim como o álcool e as drogas ilícitas, o consumo de chás de ervas pode fazer mal à saúde.

“Eu gostaria de depender de uma descoberta da medicina, de um medicamento que combatesse e eliminasse esse vírus. É um ví-rus muito forte, você não sabe de onde ele vem, você não vê. É uma coisa muito silenciosa. Ficar dependendo assim é meio chato. Nesse negócio de fila, a gente fica naquele aguardo. Como São Paulo é um cidade muito grande, é acidente por cima de acidente. E, entre uns e outros, acabam doando órgãos. Mas, na maior parte dos casos, a família não quer. Dito isso o impedimento está completo. Ou seja,

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deixou de salvar uma vida.” E Marcondes tem plena consciência de que poderia ser sua própria vida.

***

A rotina de Marcondes em São Paulo é quase sempre a mesma. Ir ao médico, conversar com os colegas da Apat, falar um pouco com a família pelo telefone para matar a saudade e, de vez em quando, co-nhecer uma igreja nova, por meio de voluntários que visitam a as-sociação para tentar confortar os pacientes. Marcondes não recla-ma. “A doença me segura muito em casa. Eu me tornei uma pessoa caseira. A televisão que me divertia, mas vai enjoando, porque nos canais que têm, são sempre a mesma coisa. É sempre o Silvio Santos no domingo, depois o Faustão. Eles deveriam selecionar uns filmes bons, para as pessoas que estão em casa assistindo. Eu prefiro uns filmes de ação. Aqueles de assombração eu não gosto não.” Apesar da saudade da família, ele se sente na obrigação de voltar para casa com o transplante feito. É como honrar seu papel de pai e marido.

Tudo corria bem. Até que, em uma terça-feira, depois de voltar de uma consulta médica, Marcondes sentiu sua vida virar de pon-ta-cabeça. Perdeu o chão. Novos exames mostraram que seu Meld havia caído bruscamente. E o que pareceria ser um motivo para alegria causou muito mal-estar e tristeza. A coordenadora da Apat disse que ele não poderia mais ficar hospedado na casa, pois, com o índice marcando o número 14, a cirurgia não era mais necessá-ria e era preciso dar lugar a outra pessoa. Com esta notícia, todas as esperanças de Marcondes começaram a desaparecer. Ele sentia que estava pronto para o transplante, para uma nova vida. Voltar ao Acre significava um retrocesso. Para ele, era como se suas chances tivessem se esgotado de um dia para o outro.

Sua primeira atitude foi duvidar do novo exame. “Eu achei mui-to estranho o Meld mudar tanto e pensei que pode ter tido algum erro no laboratório. Estava 21 e imediatamente caiu pra 14. Eu não

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senti nenhuma diferença”, desabafa, tentando entender a mudança. Realmente não é fácil compreender. O Meld só revela a gravidade da doença do fígado. Sua diminuição não significa obrigatoriamente uma melhora ou uma estabilização da condição geral do paciente. Para Marcondes, o Meld é o responsável por ele ter que ir embora para o Acre. Esse retorno a sua cidade ocorre porque, normalmen-te, se o índice do Meld está abaixo de 18, o paciente deve recorrer aos medicamentos. Mas outro motivo o deixou muito mais triste: “Estou ocupando o quarto de alguém que precisa. Eles pensam que quem está um pouco melhor tem que sair daqui. A coordenadora decidiu que preciso voltar e não há conversa. Eu não concordo. Acho que tinha que ficar mais um pouco aqui.”

Marcondes não é o único a lidar com essa decepção. Apesar de receberem palestras e instruções quando estão em seus Estados, os pacientes chegam a São Paulo com a impressão de que podem vol-tar curados. Encarar que isso não é verdade é um momento delica-do. “Os médicos falam que, com Meld 25, você vem para São Paulo e faz o transplante. Vim e estou voltando para o Acre sem fazer o transplante. Eu me sinto um pouco iludido, porque você vem es-perançoso, pensando que vai sair daqui renovado.” Por alguns mo-mentos, a esperança e a ansiedade fazem com que ele esqueça que é preciso aguardar o novo órgão, esperar uma doação. “A pessoa fica tão esperançosa que pensa que já vai direto do aeroporto para o hospital. Não funciona assim. É preciso levar em conta o seu es-tado; problemas de rejeição. Eles deviam explicar melhor para que as pessoas entendam que transplante é uma coisa séria, porque, até então, a gente pensa que é uma coisa até que simples, rápida, prática”, revela, com ar de revolta.

Marcondes tinha, sim, a crença de que poderia sair do aero-porto direto para o hospital, mas também sabia que isso era muito mais uma vontade do que a realidade. Os sessenta dias que passou na capital paulista foram como um sonho que não terminou bem. Marcondes sentiu-se enganado. Apesar da responsabilidade dos

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médicos, tinha consciência de que as coisas não eram simples. “A mente acaba enganando a pessoa”. A descoberta de que teria que voltar ao Acre mexeu, e muito, com suas emoções. Com os olhos cheios d’água, era preciso admitir que a tentativa não tinha surtido efeito. “Sair do Acre, vir pra São Paulo e ter que voltar? Essa situa-ção me deixou constrangido. Não me deixou com raiva porque eu sou uma pessoa muito pacífica. Por outro lado, me deixa contraria-do. Se eles usassem o método correto ou a atitude certa, eu iria em-bora feliz”, diz, referindo-se ao Meld. “Mas tem outras coisas que me ajudam. Por exemplo, ter conhecido as pessoas da casa de apoio. São essas coisas que cobrem o defeito.”

O acreano passou a ter mais uma dúvida na vida. A validade do exame é de trinta dias e é preciso que ele esteja atualizado na Secre-taria de Saúde do Estado de São Paulo para manter o paciente no aguardo. “Eu sei que o Meld é de momento. Daqui a dois dias faço os exames e vai estar lá em cima. E se eu chegar ao Acre e o número subir? E quando chegar de volta a São Paulo, baixar? Aí é que fica a dúvida.” Sem saber o que pode acontecer, ele tem medo de morrer ao aterrissar no Acre.

Esta situação fez com que Marcondes repensasse os motivos de estar em São Paulo, o que era um transplante e como aquilo iria afetar sua vida. “Agora eu penso melhor e acho que deve ter alguma coisa errada com tudo isso. Quer dizer que o corpo nunca vai acei-tar esse negócio? Então para que vai colocar outro fígado em mim? Para prolongar um pouco mais a vida? Eu pensava que era para po-der resolver o problema daquele órgão.”

A estabilidade emocional já é abalada pelo fato de estar aguar-dando um novo órgão para sobreviver, por estar morando longe de casa e de sua família. Porém, Marcondes sabe que este momento será decisivo para sua recuperação. O fator emocional pode preju-dicar o tratamento. Quando a pessoa se dá conta de que está doente, ela pode agravar o caso sem perceber. E tudo que ele esperava era não ter que ver a mulher chorando pelos cantos da casa de novo.

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Pronto para embarcar, Marcondes só se conforma ao dizer que vai voltar para casa e rever a família. Mas não gosta muito do fato de ter que pegar um avião para chegar lá. “Às vezes, não entendo como aquele treco voa”, ri de si mesmo. E completa dizendo que “é melhor assim do que ter que enfrentar estradas até o Acre”. Tenta conformar-se e fazer planos para quando chegar a sua terra natal. “Eu vou tentar – tentar – trabalhar um pouco. Pensar nos meus co-legas da Apat e esperar que o Meld suba novamente.” De repente, ele se vê em uma situação contraditória: quanto mais alto o Meld, mais perto está a morte.

Marcondes vai embora de São Paulo esperando que o índice suba. Sua ideia não é morrer, pelo contrário. É a mesma desde que botou os pés na cidade. Ele quer continuar vivendo e tem plena consciência de que só um transplante será capaz de lhe dar pelo menos um pouco mais de sobrevivência. “Se for para o meu bem, eu quero que suba”, diz com os olhos convictos.

O acreano vive com constantes dúvidas. Não sabe de onde veio a doença, quando ele vai se curar, se seu estado vai servir para aju-dar outras pessoas como ele a melhorar de vida, se o laboratório pode mesmo ter errado em seus exames. E, ao saber de seu retorno, Marcondes ainda dá início a mais uma espera em sua vida cheia de incertezas.

A única certeza que tem é a de que não está bem, que não me-lhorou e que só outro fígado pode fazê-lo voltar a viver um pouco melhor. Sua espera agora é por um novo exame, e, principalmente, para que o Meld volte a se encaixar na faixa necessária para a reali-zação da cirurgia, pois assim, ele poderá retornar a São Paulo para fazer o transplante.

Depois de alguns instantes, porém, pensa melhor e diz que tem outra esperança: de que seu fígado se restabeleça pela fé. No fundo, ele sabe que isso não é possível.

***

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No dia 10 de outubro, a fila de espera por um transplante de fíga-do diminuiu. Marcondes faleceu, em Rio Branco, por conta de uma complicação no órgão.

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Capítulo III

Marcas de uma fila

Toda semana começa igual para Marinez do Carmo da Costa. Pontualmente, às cinco horas da madrugada de segunda-feira,

a mulher de 37 anos se levanta, toma um banho morno e caminha até o ponto de ônibus que fica em frente a sua casa, localizada no Bairro Alto de Santana, em São José dos Campos, distante 97 quilô-metros de São Paulo. De sua residência até o Centro de Hemodiálise da Santa Casa da cidade são 30 minutos de viagem. A casa, de ape-nas um quarto, é dividida com Marcelo, o irmão de 27 anos que é portador de Síndrome de Down.

Faz nove anos ininterruptos que Marinez percorre esse traje-to religiosamente às segundas, quartas e sextas-feiras. Também há nove anos, ela passa as primeiras três horas e meia de seu dia presa a uma cadeira reclinável preta com tubos ligando o braço esquer-do a uma máquina que limpa todo o sangue de seu corpo. Faz 108 meses que Marinez está nessa rotina chamada hemodiálise, e que espera, de novo, por um transplante de rim.

Pela segunda vez na fila, ela já não é exatamente a mesma pessoa de quando começou o tratamento. O corpo de 1,60 metro, que antes sustentava 60 quilos, chegou à marca de 75 na balança, logo após a cirurgia. A pele, que já foi homogênea, agora apresenta

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marcas que contam histórias. No entanto as mudanças não foram apenas físicas. Se, aos 25 anos, a moça tinha determinada visão so-bre a vida, passada a juventude alguns dos seus conceitos se mo-dificaram. Na década de 90, ela era mais esperançosa, porém, nos últimos tempos, sua postura se tornou cética. Em um período de doze anos, a paciente mudou sua aparência, seu modo de pensar e sua opinião sobre certos assuntos. Para Marinez, depois que seu corpo rejeitou o rim doado pelo irmão, a palavra transplante deixou de ser sinônimo de uma possível cura.

***

Foi em abril de 1997 que aquela dor de cabeça aguda começou. De forma tímida e sorrateira, ela veio e insistiu em ficar. Na época, Ma-rinez da Costa tinha muita disposição para dançar, energia para se exercitar, um emprego em uma sorveteria de São José dos Campos e os braços livres de qualquer marca.

Quando os primeiros sintomas da insuficiência renal aparece-ram — dores e ânsias de vômito a atormentavam pelo menos uma vez por mês —, ela não deu muita importância. Para ela, o mal-estar era apenas resultado de uma refeição que não tinha caído bem no estômago. Contudo o incômodo físico foi aumentando e chegou a tal ponto que a jovem precisou procurar ajuda médica. Como o lugar em que trabalhava tinha mudado de gerência e os novos chefes não eram tão tolerantes com os problemas de saúde da moça, ela resol-veu pedir as contas da sorveteria. A partir daquele dia, dedicou-se a descobrir o que estava provocando todos aqueles sintomas.

Depois de uma consulta em uma clínica particular, também em São José dos Campos, foi diagnosticada uma gastrite e ela logo co-meçou o tratamento. Enquanto cuidava da inflamação no estômago, o real problema, responsável pelo enfraquecimento de sua saúde, desenvolvia-se dentro do seu corpo. Bem ali, paralelo à coluna ver-tebral, mais especificamente na região posterior do abdômen, um

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par de órgãos com o formato de grãos de feijão parava de funcionar. Marinez da Costa estava com os rins comprometidos.

***

As atividades do dia a dia são feitas de forma tão natural que as pessoas quase nunca pensam em tudo o que é necessário para que elas aconteçam. “Nós só percebemos a existência de um órgão e a sua importância na nossa vida quando surge a ameaça de perdê-lo. Comigo também foi assim.” Passados dois meses tratando a gas-trite, a jovem se sentia um pouco melhor e a indisposição parecia ter dado um descanso para seu corpo. Mas, em uma quinta-feira de abril, aquela dor de cabeça aguda reapareceu. Só que, dessa vez, a dor chegou mais forte e mais insistente.

Um, dois, três, quatro dias se passaram e nada de a dor su-mir. Tomar um analgésico até aliviava, no entanto o conforto durava poucos minutos e logo aquela sensação de ter um coração pulsando na cabeça dominava novamente Marinez. Em um domingo, aconse-lhada por sua irmã Loiva, foi a um pronto-socorro de São José dos Campos e lá ficou por quatro horas.

A partir daquele dia, começaram as baterias de exames e as consultas com diferentes médicos. Primeiro, a enfermeira da ala de emergência daquela unidade pediu algo simples: uma coleta de uri-na. Com o resultado em mãos, percebeu que havia algo errado, mas não disse nada, apenas encaminhou a moça para uma nefrologista, a doutora Ivete Pereira. “Lembro que a enfermeira apenas insistiu dizendo: ‘Não perca essa consulta. É importante’.”

Marinez precisou se submeter a novos procedimentos. Isso porque os resultados provenientes da análise da urina não davam informações suficientes para um diagnóstico seguro. Para saber detalhes sobre o problema, a nefrologista pediu que a moça fizes-se um hemograma – teste que apresenta os dados obtidos através da contagem dos elementos do sangue, como glóbulos vermelhos

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e brancos –, além do exame de dosagem de creatinina e de ureia. Realizados todos os três procedimentos, a médica teve 100% de certeza da origem do problema. O diagnóstico foi confirmado.

Com os envelopes dos exames em mãos e a paciente sentada logo a sua frente, a nefrologista rompeu o silêncio e anunciou que menos de 10% dos rins da moça estavam operando, mas que logo essa porcentagem seria reduzida para um redondo e assustador zero. Foi a partir desse dia que Marinez, então com 25 anos, come-çou a se dar conta de que dois órgãos, quase do comprimento de uma caneta esferográfica, têm tanto valor. A perda de ambos im-plicaria em uma transformação drástica em sua vida, muito além das marcas permanentes nos seus braços e da sede insaciável pela impossibilidade de ingerir muito líquido. Talvez pudesse causar até mesmo uma morte prematura.

Ali, naquela pequena sala de consultório, sentada em uma ca-deira desconfortável e sem ninguém ao seu lado para dividir o peso daquela notícia, ela ouviu cada palavra da doutora Ivete. A médica explicou absolutamente tudo. Desde o que estava acontecendo den-tro do corpo de Marinez, até como funcionava o tratamento e o que mudaria na sua rotina. No entanto, mais do que isso, ela contou algo que motivou a moça a dar início ao tratamento e a ver que sua vida ainda poderia voltar ao normal: a realização de um transplante não só a deixaria melhor, mas também a livraria da hemodiálise. Basta-ria, agora, entrar em uma fila de espera, a do transplante de rim.

***

Ainda que preciso, o tempo pode ser um tanto quanto relativo na forma com que passa para cada um de nós. O seu andar varia con-forme o momento vivido e as sensações que ele traz. Somente aos 25 anos, Marinez veio a compreender, de fato, essa propriedade do tempo. Se quatro dias foram muito para suportar o mal-estar que a levou ao pronto-socorro, para ela, quinze foram insuficientes para

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assimilar todas as mudanças acarretadas pelo problema nos rins.Logo depois que deixou o consultório da doutora Ivete, a jo-

vem precisou agendar um horário no centro cirúrgico da Santa Casa de São José dos Campos para fazer uma derivação artério-ve-nosa cirúrgica no braço: uma intervenção que produz um caminho anormal entre uma veia e uma artéria. Esse caminho é denomina-do fístula e seu objetivo é aumentar o fluxo sanguíneo no corpo do paciente. Só assim é possível retirar e devolver o sangue durante a hemodiálise, e, então, promover sua limpeza. Apenas depois disso, Marinez poderia iniciar as sessões de hemodiálise.

Apesar de razoavelmente simples, o procedimento deixa resul-tados visíveis. Na região do braço onde foi criada a fístula permane-ce uma cicatriz e, aos poucos, um nódulo começa a surgir na pele. Foi naquela manhã do dia 29 de julho 1997 que Marinez ganhou a primeira de tantas marcas que a insuficiência nos rins deixaria.

Acompanhada por sua mãe, dona Maria Lurdes, a moça chegou ao hospital um pouco antes das oito da manhã. Não demorou muito e já foi levada ao centro cirúrgico, onde recebeu uma anestesia local no braço esquerdo. Infelizmente, esse primeiro procedimento não deu certo. No dia seguinte, quando a doutora Ivete verificou a fís-tula, não havia pulsação. Por isso, Marinez precisou voltar à Santa Casa e receber sua segunda marca, agora, no braço direito.

Mesmo depois de quase doze anos da realização das duas pri-meiras fístulas, Marinez ainda se lembra da sensação incômoda, quando o médico conectava uma artéria a uma veia. Ela não podia ver o que acontecia logo ali ao seu lado, mas, mesmo anestesiada, sentia o sangue escorrendo na pele clara.

Naquela semana em que recebeu suas primeiras cicatrizes no braço, Marinez não estava com medo. Foram cerca de quarenta mi-nutos silenciosos, mas não assustadores para a jovem. Ali, naquela sala de cirurgia, o temor pelo desconhecido e a insegurança não atormentavam Marinez. No entanto, todos esses sentimentos vi-riam juntos, de forma avassaladora, uma semana depois, mais pre-

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cisamente no dia 12 de agosto de 1997, quando ela colocou os pés pela primeira vez no centro de hemodiálise da Santa Casa de São José dos Campos, no interior de São Paulo.

***

Naquela tarde, todo o temor contido irrompeu de modo violento. Se, até então, Marinez da Costa se mantivera relativamente tranqui-la, pela primeira vez, desde que recebera a notícia da insuficiência renal, a moça foi tomada pela sensação fria e desoladora de que sua vida acabara. Enquanto era conduzida por uma enfermeira em direção à maca a ser ocupada para a hemodiálise, ela pensou: “É daqui direto para o cemitério”.

A moça de estatura média, rosto oval, cabelos dourados curtos com cachos leves e olhos expressivos, não é de fazer drama. Mas, naquele lugar cheio de enfermeiros andando para lá e para cá e pessoas sofrendo do mesmo problema que o seu, ela não conse-guia pensar em outra coisa, senão que este era o fim da linha. “Todo mundo, quando começa a fazer hemodiálise, entra em depressão, mas isso passa depois de um tempo.”

As primeiras semanas foram complicadas. Toda segunda, quarta e sexta-feira, ela perdia três horas da sua vida naquela sala branca, ampla e fria. Nas primeiras vezes, sua mãe a acompanha-va, mas geralmente eram só os pensamentos de Marinez que lhe faziam companhia. A paciente tentava se distrair presa naquela ca-deira por dois tubos que conduziam o fluido vermelho para o apa-relho que, depois de um processo de limpeza, devolvia o sangue para o corpo debilitado. Contudo, ainda que levasse um livro para ler, conversasse com os outros pacientes ou pensasse em coisas do dia a dia, ela não conseguia livrar-se de uma sensação agonizante. Sua vontade era a de sair correndo daquele lugar, mas os aparatos conectados ao braço a lembravam de que estava refém da máquina. E essa sensação parecia durar longas e intermináveis três horas.

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Enquanto todo esse desespero tomava conta de Marinez, sua família corria atrás da solução para o problema. Depois de pouco mais de um mês de dedicação, a busca foi encerrada.

***

Uma das questões mais complicadas de se estar em uma fila de es-pera de transplante é a aparente subjetividade do funcionamento do sistema. O paciente não sabe sua posição exata na lista, nem há uma previsão de quando ele poderá fazer o transplante. “Uma vez perguntei para o pessoal da hemodiálise como me informava sobre a minha situação na fila. Eles me disseram que eu precisava de uma senha para acessar os meus dados pela internet, mas a equipe de Campinas não me passou senha alguma. Só agora, em 2009, conse-gui checar meus dados”, explica Marinez.

Além disso, a insegurança de estar em uma fila decorre não só dos critérios de prioridade - crianças e pacientes sem acesso vascu-lar para fazer hemodiálise têm preferência -, mas também dos inú-meros fatores que avaliam o nível de compatibilidade entre o órgão doado e o organismo do receptor. Como o resultado desse nível va-ria de pessoa para pessoa, a lista não tem uma ordem precisa.

Para estar no banco de dados do centro de transplante de rim, antes é preciso escolher uma lista para se registrar. Mesmo que o cadastro seja único, existem várias equipes transplantadoras de rim em todo o Brasil. Só no Estado de São Paulo, por exemplo, são nove, dentre as quais Marinez preferiu a de Campinas. Ainda que a capital seja a maior transplantadora, ela optou pela unidade da ci-dade a 99 quilômetros de São Paulo porque, na época, não conhecia bem a metrópole e tinha receio de se perder. Se pudesse voltar no tempo, sua decisão teria sido diferente.

Depois de escolhida a equipe, é feita uma série de exames na própria unidade na qual a pessoa se inscreveu. Todos os procedi-mentos, aliados aos resultados de alguns exames, como o de soro-

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logia de HIV e de hepatite, são importantes para reunir mais dados sobre as condições do paciente e sobre as chances de o seu corpo receber bem um transplante de órgão.

No caso da pessoa que espera por um doador cadáver, todo esse processo da fila se torna mais lento. Contudo, quando o órgão é proveniente de um doador vivo, a espera não é tão demorada. Por isso, da primeira vez, Marinez nem cumpriu todas as etapas da ins-crição na lista, apenas escolheu a equipe da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e deixou seu nome registrado. Não era pre-ciso esperar muito na fila, pois a família Costa já sabia onde encon-trar a solução para o problema. O que todos consideravam a cura para a insuficiência renal de Marinez estava ali, em um dos irmãos.

***

Sétima de um total de onze irmãos, Marinez do Carmo da Costa nas-ceu em São Valentim, uma cidade de 3.996 habitantes, localizada na região noroeste do Rio Grande do Sul, mas, ainda menina, mu-dou-se para Andrelândia, em Minas Gerais. Questões de trabalho fizeram com que o pai da garota, seu João Pedro, deslocasse toda a família para a cidade com cerca de 10 mil habitantes.

Naquele lugar, Marinez, cujo apelido desde a infância é Fia, cresceu, desenvolveu–se e estabeleceu fortes laços que mantém até hoje com os irmãos. “Antes da minha insuficiência renal, todo final de ano íamos viajar para Foz do Iguaçu. Precisava de muito car-ro para caber todo mundo. Hoje é diferente, porque nem sempre é possível fazer certas viagens por causa da hemodiálise.”

Uma das provas desse vínculo afetivo foi a mudança de quase todos os membros da família para São José dos Campos. Quando deixou o interior de Minas para iniciar um novo negócio com o ma-rido, Loiva, uma das irmãs, logo começou a fazer a cabeça dos ou-tros para que deixassem Andrelândia também. “Ela dizia que aqui tinha mais oportunidades de trabalho e que eu poderia ajudá-la no

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depósito que estava montando com o meu cunhado.” Gradualmen-te, um a um, os familiares de Marinez deixaram Andrelândia para começar outra vida em terras joseenses. Apenas a mãe, dona Maria Lurdes, Classi, a décima dos onze irmãos, e Marcelo, o caçula, per-maneceram na cidadezinha mineira.

O laço que une essas dez pessoas – um dos homens morreu, aos 23 anos, em um acidente de caminhão – é tão forte que, quan-do o problema de Marinez surgiu, todos tiveram a mesma postura. Sem titubear, disseram que iriam fazer os exames de compatibili-dade para, então, saber quem poderia doar o rim para a irmã. Até Marcelo, que não entendia muito bem o problema, por ser uma criança com necessidades especiais, ofereceu ajuda. Ainda hoje, o agora rapaz diz “sou eu que vou salvar a Fia”.

Mas não foram somente os irmãos que se ofereceram para ser doadores. Na época, dona Maria também queria retirar um de seus rins e passar para a filha debilitada. Porém Marinez nem sequer deixou a mãe checar a compatibilidade, afinal ela tinha os próprios problemas e já havia sofrido muito. A senhora de 56 anos lutava há pouco mais de um ano contra um câncer de mama, doença que a ti-raria da convivência familiar. Dona Maria foi enterrada em maio de 1998, no cemitério de Andrelândia, dois meses antes de um grande acontecimento na vida de Fia. Em julho desse mesmo ano, aconte-ceu a cirurgia que, em tese, melhoria a vida de Marinez.

***

Ainda que os médicos garantam uma qualidade de vida satisfatória com apenas um rim, encontrar um doador vivo não é tão simples, já que nem todos os indivíduos são doadores potenciais. No caso do rim, a pessoa deve ser adulta, de preferência acima dos 30 anos, e livre de qualquer tipo de doença renal. Mesmo assim, há a limitação de poder ajudar apenas um paciente compatível.

Para averiguar se o doador e o receptor são pares, primeiro

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é checada a compatibilidade do grupo sanguíneo. No caso de Ma-rinez, a família inteira passou no teste. Desde os pais até os dez ir-mãos, todos são do tipo A+. Depois, são feitos procedimentos mais técnicos e uma série de avaliações com o objetivo de analisar as condições clínicas e também emocionais do doador. Dos quatro possíveis doadores da família Costa – senhor José Pedro, o pai; e os irmãos Loiva, João Carlos e Luiz –, somente os rapazes chegaram à etapa final. Como Luiz pesa mais, fuma e registrou 75% de compa-tibilidade, os médicos optaram por João Carlos.

Foi em setembro, após cerca de um mês do começo da hemo-diálise, que a família numerosa recebeu a notícia de que a cura para o problema da jovem estava realmente entre eles. Os rins de Titi – apelido de João Carlos – eram 100% compatíveis e um deles seria transplantado para o corpo de Marinez.

***

Se a ideia de perder uma parte do seu corpo já é assustadora, rece-ber um órgão vindo de outro ser vivo provavelmente deve ser ainda mais atemorizante. Contudo medo e receio foram duas palavras que nem sequer chegaram a passar pela cabeça de Fia, quando soube da compatibilidade. “Naquela época, eu achava que o transplante era a solução para todos os meus problemas. A coisa que mais queria era me ver livre daqueles fios no braço e nunca mais ter que voltar para aquela sala de hemodiálise.”

Por isso, quando recebeu a notícia de que Titi seria seu doa-dor, a jovem foi tomada por uma alegria tamanha como há tempos não sentia. Rápida e prática, como ela se autodefine, já queria saber quando receberia o órgão do irmão. “Para mim, o importante era fazer a cirurgia logo e voltar à minha vida de antes.”

Passaram-se aproximadamente nove meses desde o começo do tratamento com hemodiálise até o tão esperado dia da opera-ção. Boa parte desse tempo foi preenchida com exames. Tanto Titi

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quanto Marinez passaram por diversos testes, para verificar a pos-sibilidade de uma rejeição por parte do receptor e de uma futura complicação no único rim que permaneceria no corpo do doador.

Nessa época, ainda em 1998, a moça era acompanhada pela equipe médica do hospital da Unicamp e, muitas vezes, ficava sob os cuidados de residentes orientados por um professor da área. Marinez acredita que uma mudança no comando da equipe médica lhe causou prejuízo. “Quando a doutora Marina foi estudar na Itá-lia, achei que os residentes ficaram um pouco largados. O médico substituto não supervisionava tão bem e isso acabou me causan-do problemas.” Por isso, a unidade hospitalar não passou uma boa imagem para Fia e, hoje, é vista de outra maneira por ela e também por seus parentes. “Se tivesse ido para São Paulo desde o princípio, talvez eu estivesse bem até agora.”

***

Trinta minutos. Uma hora. Uma hora e meia. O tempo que Mari-nez costumava esperar para ser atendida e ter seus exames para o transplante avaliados pelo nefrologista de Campinas variava mui-to, mas, geralmente, era bem longo. Por isso, certa tarde, quando a enfermeira lhe entregou a pasta com os resultados e pediu que ela aguardasse, Marinez, sem ter nada para fazer enquanto esperava, começou a ler os papéis.

A princípio, tudo era um tanto quanto confuso. Muitos núme-ros e muitos termos desconhecidos. Porém Fia queria entender o que se passava em seu corpo. Primeiro, para conhecer sua doença e, segundo, para não ser enrolada por nenhuma pessoa de jaleco branco. Para entender melhor seu problema, a moça embarcou em uma larga pesquisa. Fez uma investigação sobre sua deficiência re-nal. Questionava os enfermeiros e médicos sobre o significado dos termos, também fazia buscas na internet e lia livros sobre o tema, para conseguir decifrar todos aqueles “códigos”. “A doutora Odiva-

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nia, médica radiologista e chefe de uma das minhas irmãs, me em-prestou alguns livros, só que eram em inglês. Peguei um dicionário e procurei algumas palavras para entender as frases.”

Como assuntos relacionados à medicina lhe interessam, ainda nos dias de hoje, Marinez nutre a vontade de fazer um curso supe-rior na área da saúde.

Com todo o conhecimento que foi adquirindo, Fia passou a in-dagar os profissionais que a acompanhavam e até a dar palpites nas consultas. Muitas vezes, eles ficavam irritados com sua intromissão; outras, surpreendiam-se com seu domínio do tema. Em novembro de 2000, Marinez conseguiu deixar um médico sem palavras: ante-cipou o diagnóstico que ele adiava para dar.

***

Uma manhã de terça-feira, do mês de maio de 1998. Seu João Pedro, Loiva, a amiga Madalena, chamada de Madá, e Ivanilda – esposa de Titi – aguardavam ansiosos na sala de espera do hospital da Uni-camp. Marinez e o irmão tinham sido internados no dia anterior, mas, agora, estavam em duas salas de cirurgia diferentes, já devi-damente anestesiados e sedados. Ambos prontos, um para retirar o órgão e outro para recebê-lo. Dali a poucos minutos, o doador ganharia sua primeira cicatriz e a receptora, a sua terceira. Ali, bem no canto direito de sua barriga, a insuficiência renal de Marinez provocaria uma nova marca.

Ainda que o transplante de rim não seja uma das cirurgias mais arriscadas da categoria, pairava um clima de tensão naquela sala do lado de fora do centro cirúrgico. Durante a espera de apro-ximadamente seis horas – duas para a retirada do órgão e quatro para a implantação - os ponteiros do relógio pareciam estáticos. Se todo aquele tempo passou despercebido para aqueles que estavam nas mãos dos cirurgiões, foi extremamente angustiante para os que aguardavam notícias do lado de fora.

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Perto das 14 horas, a família recebeu notícias de Marinez. A moça passava bem e já repousava na enfermaria. No entanto nin-guém sabia nada de Titi. O pânico tomou conta dos presentes, prin-cipalmente da esposa do doador. Todos se perguntavam: “será que ele perdera a vida para salvar a irmã?”. Só no final daquela tarde, a família Costa soube que o doador demorou mais para se recuperar do efeito da anestesia e que, por isso, tardou a acordar. Tranquiliza-dos, comemoraram o sucesso do transplante.

Apesar de se recuperar mais rapidamente que o irmão, Fia não deixou o leito no dia seguinte, como Titi. Foram 11 dias de observa-ção e monitoramento da reação do organismo da jovem à nova par-te introduzida, que já filtrava o sangue da paciente. Em vez de tubos de plástico, agora, o fluido passava direto pelas veias da moça. Nada de adereços presos à fístula. Nada de máquinas cumprindo a fun-ção dos rins, antes debilitados. Agora, o corpo de Marinez se ajusta-va ao novo sistema e voltava a operar devidamente.

***

Quando um bebê nasce, tudo parece perfeito, a pele é lisa e ex-tremamente macia. Ao aprender a andar, as travessuras de criança deixam algumas cicatrizes. Já na adolescência, são as indesejáveis espinhas que atrapalham. Por fim, na fase adulta, o corpo começa a exibir marcas da sabedoria. No entanto não são somente os anos e as fases pelas quais uma pessoa passa que se refletem na aparência. Os problemas enfrentados, ao longo da vida, também deixam sinais e, às vezes, estes acabam sendo mais incômodos do que aqueles provenientes do movimento dos ponteiros do relógio. Marinez sa-bia bem disso: com a insuficiência renal, ganhou cicatrizes e nódu-los no braço; com o transplante, espinhas e pelos no rosto.

Ela já havia sido informada pelos médicos sobre a possibili-dade de tais consequências, mas não imaginava que sua aparência fosse se modificar tanto e tão rápido. “No primeiro ano depois do

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transplante, eu estava muito diferente. Engordei 15 quilos, as pe-nugens do meu corpo engrossaram e ainda tinha espinhas. Quando estava voltando ao meu estado normal, aconteceu o inesperado.”

As mudanças físicas eram provocadas principalmente pela ciclosporina, um dos remédios que a jovem tomava para evitar a rejeição do novo órgão. Essa droga provoca reações adversas, como excesso de cabelo generalizado ou localizado, surgimento de acnes, inchaço facial, tremores e fadigas. Além desse medicamento, Mari-nez também tomava prednisona e azatioprina para prevenir uma má reação do organismo.

Todos esses remédios, assim como os sete administrados no período da hemodiálise, são fornecidos pelo Estado tanto para a pessoa que está na fila quanto para a transplantada. Contudo há regras a serem seguidas. No caso de Fia, todo mês a doutora Ivete Pereira fornecia uma nova receita para comprovar a necessidade.

***

Outro órgão, outra saúde, outros remédios, outras marcas, outra rotina e nada de fila. Após a cirurgia, realizada em maio de 1998, Marinez viu-se mais uma vez diante de situações diferentes e preci-sou se adaptar. Uma dessas novidades foi o uso de uma máscara de proteção respiratória.

Depois do transplante, o paciente fica com a saúde bem frágil e a resistência baixa, sendo obrigado a se manter seguro de todas as formas possíveis. Isso inclui os remédios receitados pelo médico, higiene mais rigorosa e, também, o uso do acessório em lugares pú-blicos. “A recomendação era evitar sair de casa no começo, mas, se eu precisasse, deveria colocar a máscara. Sempre que eu estivesse perto de muitas pessoas deveria ficar com isso no rosto.”

Passado esse primeiro mês mais crítico, a jovem de 26 anos começou a retomar sua vida e, em pouco tempo, estava correndo para lá e para cá, toda agitada e cheia de atividades para realizar.

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Não que a descoberta do problema nos rins tivesse lhe tirado o rit-mo ou o ânimo, mas é que, durante aquele período, os horários e efeitos da hemodiálise interferiam na sua vida. Agora, tais empeci-lhos faziam apenas parte do passado e, para Fia, “passado não exis-te, o que aconteceu ontem já foi esquecido”.

Envolvida na sua nova rotina, a moça mal se lembrava do pro-blema enfrentado no ano anterior e do novo órgão que carregava. De manhã e de tarde, trabalhava no depósito do primeiro marido de Loiva. Já de noite, a jovem tentava recuperar as horas e momen-tos perdidos por causa das restrições provocadas pela insuficiência renal. Quase que religiosamente, toda terça-feira, começava o ritmo de festa. Fia, Loiva e a amiga Madalena saíam para dançar e só vol-tavam quando os pés não aguentavam mais os passos de forró.

Agora, com um rim funcionando perfeitamente e os medica-mentos adequados, Marinez tinha fôlego para se mexer a noite in-teira, todos os dias que quisesse. Não existia mais a rotina de, às segundas, quartas e sextas-feiras, ir à Santa Casa submeter-se a uma máquina para limpar o sangue. Não havia restrições sobre a quantidade de líquido que poderia tomar. Não existiam mais regras tão rígidas em relação à alimentação. Não tinha mais a pulsação da fístula em seu braço. Não havia mais aparelho de hemodiálise que a segurasse, nem insuficiência renal que a limitasse. Pelo menos era essa a sensação de todos.

***

Depois de dois anos do transplante, Marinez teve um dos medica-mentos alterados. Em vez da ciclosporina, agora ela usava o micofe-nolato e, desde então, começou a ter reações estranhas. Felizmente, a dor de cabeça que a atormentava antes da descoberta da insufi-ciência renal nunca mais voltou. No entanto, a impressão de se ter um coração pulsando na cabeça fora substituída pela desconfortá-vel sensação de o mundo todo estar girando à sua volta.

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A primeira vez que Fia sentiu-se zonza foi dois meses após a mudança do remédio. Mesmo tendo estranhado o mal estar, a moça não achou que fosse algo que merecia importância. Contudo, assim como a dor de cabeça ignorada em abril de 1997, esse foi o primei-ro alerta de que uma notícia ruim estava por vir.

Diferentemente de quando tinha 25 anos, dessa vez, a moça não procurou ajuda médica imediata. Assim, foi em uma consulta de rotina que Marinez descobriu o problema. Aquilo que causava a tontura e, secretamente, a perda das funções renais.

Após o transplante, as consultas de rotina na cidade de Campi-nas continuaram. E foi em uma dessas idas ao médico, em junho de 2000, que a paciente soube de algo que mudaria para sempre sua impressão sobre a cirurgia realizada e a fila de espera.

Os médicos já estavam cientes das tonturas da moça e pro-curavam nos exames periódicos uma explicação para o sintoma. Contudo, ainda que tivessem uma suspeita do motivo do mal estar, nada comentavam. Mal sabiam que a moça também investigava os resultados e, com isso, acharia a resposta.

Em uma das consultas rotineiras, enquanto aguardava ser atendida, Fia recebeu da enfermeira a pasta que a acompanhou ao longo dos quase três anos de problema renal. Como de costume, abriu seus exames e estudou os resultados. Dessa vez, no entanto, percebeu que o nível de creatinina havia subido para mais que o dobro do ideal. Porém não adiantava entrar em pânico. O melhor a fazer era esperar o médico atendê-la e, então, ouvir o diagnóstico. Entretanto Marinez não é mulher de deixar para depois. Para ela, é muito difícil ficar quieta e aguardar calmamente se há um assunto a ser resolvido. Por isso, assim que se encontrou com o médico, lan-çou-lhe a pergunta: “Doutor, eu estou perdendo o rim de novo?”.

***

Se, por um lado, Marinez recebeu a notícia da perda da função re-

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nal com grande espanto, por outro, o mesmo estado de choque não esteve presente quando soube da rejeição ao transplante. Ao con-trário, quem demonstrou surpresa naquela sala de consultório de Campinas foi o médico, que não podia acreditar na frieza com que a paciente recebia a informação. “Eu disse para o doutor: ‘mas você quer que eu faça o quê? Não adianta me descabelar’.”

Para a moça, nessas horas, se você desmorona, tudo ao redor também desaba, os familiares ficam abalados e até compadecidos da pessoa. Por isso, o melhor é transparecer calma, mesmo que lá no íntimo esse não seja o real sentimento. “Tentei parecer fria, mas por dentro tudo estava acelerado”, confessa.

Foi, então, com essa suposta serenidade que Marinez escutou o médico dizer que, devido a uma infecção nos rins, seu organismo estava rejeitando o órgão doado pelo irmão. Isso ainda não havia acontecido por completo, o que explicava o fato de ela conseguir urinar e não estar sentindo nenhum outro sintoma mais grave que a tontura. No entanto, dali a pouco tempo, seu rim, mais uma vez, perderia todas as funções e, assim como em agosto de 1997, Mari-nez entraria na sala branca, ampla e fria, onde uma máquina cum-priria o papel daquele órgão tão pequeno, porém tão vital.

***

Em seis meses, o rim transplantado parou completamente de fun-cionar. Nessa época, novembro de 2000, Marinez já não urinava nem podia ingerir tanto líquido. “Quando eu apalpava o local do trans-plante podia sentir o órgão levemente duro, como se eu tivesse uma pedra no corpo”, lembra a moça. Titi, no entanto, estava bem. Desde que doara um rim ia até o hospital de Campinas com frequência e se submetia a exames para se assegurar de que tudo funcionava cor-retamente em seu organismo. Diferentemente de Marinez, ele não precisou tomar remédios após a cirurgia. Também, diferentemente da irmã, ele não teve perda da função renal.

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Completamente inativo, o órgão doado precisava ser retirado do corpo da paciente. Em 17 de novembro daquele ano, então, a cicatriz feita há aproximadamente dois anos e meio no dia do trans-plante foi aberta. A marca do lado direito, que antes lembrava o fim da espera pela vida, agora ganhava um novo significado.

Aliás, aquele sinal que rasgava a pele clara não foi o único a assumir outro sentido. O transplante, antes sinônimo de solução, passou a ser de frustração. A fila de espera, antes inexistente, devi-do ao número de parentes potenciais doadores, agora se tornaria uma realidade. Contudo Marinez não queria saber dessa realidade. Logo após receber o corte que retirou o rim proveniente do irmão, a mulher de 28 anos se trancou em seu próprio mundo. Não queria saber de fila, não queria saber de transplante, não queria saber de esperar por uma nova frustração.

Quando voltou à estaca zero e precisou reiniciar o tratamento de hemodiálise, a família se prontificou a ajudar, assim como na vez em que descobriu a insuficiência renal. No entanto, agora tudo era diferente. Fia já não acreditava na eficácia da cirurgia e também não permitia que seus familiares se sacrificassem mais uma vez por ela. A decepção com o tratamento foi tamanha que nem cogitava rece-ber outro rim, fosse de um doador vivo ou de um doador cadáver. Por isso, somente depois de mais de dois anos da perda do órgão, Marinez foi se informar sobre a fila de espera novamente.

***

Os primeiros meses seguintes à retirada do rim foram nebulosos. Deprimida, ela apenas ia à Santa Casa toda segunda, quarta e sex-ta-feira de manhã, porque a hemodiálise aliviava o mal-estar que sentia devido à insuficiência. Além de ter os sintomas atenuados, a mulher não esperava mais nada do tratamento.

Levou um tempo para se recuperar do baque. A princípio, não queria ver ninguém – muitas vezes nem os irmãos –, não conver-

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sava sobre o assunto do transplante e, principalmente, não podia ouvir o nome Campinas. Depois da cirurgia da retirada do órgão, Marinez nunca mais colocou os pés naquela cidade nem naquele hospital. Até hoje, acredita que a rejeição foi causada pelo trabalho displicente da equipe médica. “Acho que a troca dos medicamentos foi a responsável pela minha perda. Antes disso, eu não tinha sofri-do nenhum problema após o transplante.”

Aos poucos, no entanto, após muita insistência dos irmãos e do pai, Fia começou a retomar sua vida. Ela não voltou a trabalhar com Loiva por causa dos horários complicados da hemodiálise, mas passou a ajudar os familiares em tarefas como resolver problemas de banco e organizar a contabilidade da casa e dos negócios.

Marinez também cuidava do caçula, Marcelo, que dividia a casa com ela desde que a mãe falecerá em maio de 1998. Muito atento ao que acontecia ao redor, mas sem compreender de fato a dimensão do problema da irmã, o rapaz, que nascera com Síndrome de Down, insistia que ele era a solução de Fia. “Ele fala que vai dar o rim para mim e eu não vou mais precisar fazer hemodiálise, coisa que ele nem sabe direito o que é.”

Mais disposta, Marinez retomou não só as atividades ligadas ao trabalho, mas também as saídas noturnas. Como Madá já estava casada, eram apenas a moça e a irmã dançando nas festas de São José dos Campos, Jacareí e, quase todo domingo, de Caçapava. A dis-posição não era tanta quanto a da época do rim transplantado, mas Fia conseguiu se adaptar.

Na verdade, isso foi algo que aprendeu bem com a doença: toda vez que se via diante de uma situação nova, Marinez podia assus-tar-se no começo, porém sempre era capaz de contornar a situação. “Aprendi a não ficar pensando no meu problema e no andar da fila de espera. Se tiver que acontecer, vai acontecer.”

***

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Depois de mais de dois anos, Marinez decidiu se inscrever na fila de espera novamente. Aos 31 anos, optou pela equipe de São Paulo e reativou os dados no centro de fila de espera da metrópole. Para sua surpresa, quando deu entrada no processo, foi informada de que em sua ficha ainda constava o rótulo de “transplantada”. Isso gerou dúvidas na moça quanto à eficiência e à organização da fila. Afinal, em sua opinião, o dado de que ela perdera o órgão já deveria ser de conhecimento do centro de espera. Contudo, como estava determinada a se submeter à cirurgia de novo, dessa vez utilizando um doador cadáver, a jovem deu continuidade ao processo.

Após consertar o “erro de comunicação”, ela forneceu os re-sultados de toda a lista de exames exigidos. Feito isso, de “inativa” passou para “ativa” na fila de espera. “Na lista de transplante de rim nós somos classificados como ‘ativos’, quando esperamos pelo órgão, ou ‘inativos’, quando saímos da espera.”

Mesmo nunca tendo realmente participado do processo da fila, ela já sabia que o andar do sistema não era rápido. Atualmente, só em São Paulo são 10.176 pacientes esperando por um rim. De acordo com dados do Ministério da Saúde, desse total, 552 foram transplantados no primeiro semestre de 2009, número mais satis-fatório que o do mesmo período de 2008, quando 363 receberam um novo órgão. Porém, o total de pessoas que esperam por um rim no Brasil é alto: 31.270 pessoas. Marinez está neste grupo. Se, da primeira vez, ela aguardou somente nove meses para receber um novo órgão, dessa, o período seria maior.

A paciente calculava uma espera em torno de três anos. Mal sabia que o tempo parecia não estar a seu favor.

***

Já se passaram exatamente sete anos desde que Marinez decidiu aguardar na fila de espera de transplante de rim de São Paulo. Por já ter sido transplantada e, então, a probabilidade de uma nova re-

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jeição ser maior, o perfil da moça não é um dos que se encaixa nos critérios de prioridade. Até setembro de 2009, nenhum telefonema ou notícia animadora a respeito do assunto. Nem uma falsa espe-rança. Nem um teste de compatibilidade que deu errado. Nada.

A situação que pode parecer difícil de aguentar, no entanto, é bem administrada por Fia. Hoje, com 37 anos, cinco marcas causa-das pela insuficiência renal, quase dez anos de hemodiálise e cin-co remédios diários para tomar, a moça aprendeu que não adianta viver em função da doença. “Quando saio da hemodiálise e depois de certo tempo retiro os curativos do braço, me esqueço do pro-blema.” As marcas são um dos poucos elos com a insuficiência que fazem Marinez recordar-se da deficiência. São sinas que carregam histórias e trazem à memória a ausência do rim. São como placas de aviso, sinalizando o que ela tenta esquecer. “Só me lembro do pro-blema quando vejo as marcas pelo meu corpo, mas isso raramente acontece porque estou sempre evitando olhar.”

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Capítulo IV

Paciência é o remédio

Um quarto claro e tudo muito espaçoso e limpo. Em uma das duas camas, um paciente assiste à televisão. O aparelho está li-

gado no Globo Notícia. Sobre uma das cômodas, um mamão papaia já comido e dois copinhos d’água pela metade. O ex-metalúrgico, Adamastor Marques Pereira, de 39 anos, está no banheiro. Mesmo com todos os aparelhos e canos ligados a seu corpo, ele prefere fazer as necessidades sem a ajuda de ninguém. A fadiga é grande. Uma respirada rápida, outra mais pausada. O mais difícil é transportar o apoiador, que ele carinhosamente chama de “cachorrinho”. Já a “coleira” são as conexões de fios que levam soro e remédio a suas veias, um pouco secas e arroxeadas. Apesar das manchas causadas pela agulha, o resto da aparência de Adamastor não denuncia nem um pouco que ele está doente.

De estatura baixa, cabelos enrolados e pele queimada, o que mais chama a atenção nesse homem são seus olhos. Grandes e um pouco repuxados para o lado, lembram os de uma criança sempre à espera de uma palavra doce, de uma boa notícia. As janelas da alma de Adamastor são a chave de sua essência e transparecem a simpli-cidade e a ingenuidade de um homem que batalha para não parecer exausto com a vida de hospital.

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Adamastor gosta de acordar cedo. Não importa que esteja em um hospital, sem poder deixar o quarto. Quando o faz é apenas para se pesar ou ir até a recepção buscar uma revista para folhear. Ele adora ler, mas o último livro que pegou emprestado, Guerra e Paz - A Esperança do Mundo, “foi roubado na rua”. Isso já faz um tem-po; na época, ele ainda não estava internado. Mesmo assim, adora as revistas que as enfermeiras deixam no quarto. Sua mãe, vez por outra, também traz algo para ele olhar. Adamastor lê bem. Estudou apenas até a oitava série do ensino fundamental, mas foi suficiente para poder devorar alguns livros, ler as legendas dos filmes. O resto a vida se encarregou de ensinar.

***

O dia está claro e bonito. Já o quarto do hospital Dante Pazzanese, por mais ajeitado que seja, não é tão acolhedor quanto o céu azul. Mas o bom é que a janela do quarto 513 é grande. A vista não é mui-to diferente de outras de São Paulo. Muitos edifícios e gente, um formigueiro que passa ali, outro acolá. Adamastor sente vontade de estar entre eles, aproveitar o sol que bate no corpo de quem está lá fora. “Queria estar lá embaixo tomando um sorvete Magno.”

O dia vai passar como qualquer outro. As enfermeiras vão tra-zer os remédios. “Tomo pelo menos uns nove comprimidos por dia. Não tenho certeza do número.” Vão trocar o soro do doente e esco-lher outra veia para aplicar a agulha. As do braço de Adamastor já estão secas, não cedem mais à pressão dos instrumentos pontiagu-dos. O jeito é tentar outras partes do corpo. A mais dolorida é a da região da barriga, que recebe uma furadinha profunda de anticoagu-lante, que Adamastor não esquece. Depois dos remédios tomados, é hora do entra e sai das enfermeiras. Todos adoram o paciente, que voltou a ser internado há menos de um mês. “Eu moro mais aqui do que em casa.” Como não é a primeira vez que fica internado, já tem amizades, sabe dos times de futebol, das preferências e dos nomes

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das filhas e dos maridos das enfermeiras. Elas também já sabem a história do paciente e brincam com ele, contam seus tormentos. Uma delas está cansada. “Não reclama, não. Faz que nem eu. Deixa de trabalhar para ficar deitado o dia todo na cama.” Adamastor faz graça da própria situação. Tem o espírito elevado.

O maior pesadelo de Adamastor é ter que depender dos ou-tros. Para quem começou a trabalhar desde criança, ficar parado e esperar que o ajudem a fazer as tarefas básicas é um tormento. Com 5 anos de idade, Adamastor deixou a cidade pernambucana de Ta-bira junto com o pai, a mãe e os seis irmãos, e desembarcou em São Paulo. De sua terra natal, não sente muita saudade, pois foi lá que tudo começou a dar errado. As casas de madeira e a proximidade das plantações de cana-de-açúcar não ajudaram muito o futuro de Adamastor, que, somente aos 20 anos, veio perceber que seu cora-ção estava inchando. Fora picado pelo barbeiro ainda bebê. A do-ença de Chagas demorou a se manifestar e, quando finalmente deu sinais de que existia, veio aos poucos fazendo com que os cuidados com a moléstia fossem sempre adiados. A mãe de Adamastor, dona Josefa, padece do mesmo mal. Mas o Chagas dela é no sangue, o que não prejudica seu coração. Já para Adamastor e seu irmão, José, a si-tuação é diferente. A doença se alojou em um dos principais órgãos do corpo, que começou a crescer, crescer, crescer...

O irmão deu um jeito em sua doença. Apenas um marca-passo foi suficiente para sossegar o órgão, do qual Adamastor está em bus-ca. Mas, para ele, não adiantou marca-passo nenhum. Tentou usá-lo, trocá-lo. De nada adiantou. Teve que se internar, tratar melhor a do-ença, até descobrir que a única solução seria um transplante.

Adamastor adorava trabalhar. Ele era metalúrgico da Panex, empresa de panelas e outros produtos domésticos de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Chegou a ficar três anos na empre-sa, mas não teve dó na hora de largar o emprego. Sabia que, com sua dedicação, conseguiria outro com facilidade.

O problema eram as tonturas, os desmaios e a fraqueza que

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sentia na hora de trabalhar. Talvez a culpa fosse da metalúrgica. Na Panex, pegava pesado mesmo. Resolveu sair.

Na academia, onde conseguiu emprego de auxiliar de limpeza, Adamastor achou que se sentiria melhor. A O2 era coisa de “gente grã-fina”, como se refere. Lá, achava que não teria por que passar mal. Apesar do esforço para carregar baldes de água ou limpar os pesinhos de ginástica, percebeu que não era aquilo que estava lhe tirando o ar. Alguma coisa lhe fazia mal dentro do corpo. O quê era ele ainda não sabia.

Era noite e Adamastor se sentia muito mal. Foi levado às pres-sas para o hospital Heliópolis, no bairro de mesmo nome. Na clínica, perceberam que ele precisava de um marca-passo. Na ocasião, o mé-dico que o atendeu, doutor Luiz Antonio Donelli, tinha consciência de que aquilo não seria o suficiente. Mandou Adamastor para o hos-pital onde trabalhava, o Instituto Dante Pazzanese. Conseguiu um quarto para o enfermo, que passou a fazer centenas de exames para diagnosticar seus problemas. Tudo foi pago pelo Sistema Único de Saúde e feito com dedicação por parte dos médicos envolvidos. Pas-sou o tempo e o doutor que atendeu Adamastor na hora da urgência deixou o hospital para trabalhar em outro local. Naquele momento, Adamastor não tinha ideia de que ele, que chegara aquele lugar de passagem, ainda ficaria ali, entre idas e vindas, por mais seis anos.

Adamastor assiste à novela das oito. Não por vontade própria, mas porque o atual companheiro de quarto gosta de deixar a tele-visão ligada nesse horário. Ele até tem sono, mas, para não impedir que o colega se divirta, também vê quieto aquele enredo. Do nada, o companheiro também se cansa do barulho e desliga a tevê. Não pergunta se Adamastor quer ver outro canal, se deseja continuar a assistir à novela. Simplesmente desliga. Adamastor vira de lado. Pelo jeito é hora de dormir. Mas toda noite vem a mesma ansiedade. Um coração pode chegar a qualquer momento para salvar sua vida. De repente, um médico pode abrir a porta e falar que ele será ope-rado dali a meia-hora. Isso transtorna seu sono. Parece que é sem-

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pre a partir da meia-noite que os órgãos tendem a chegar ou, pelo menos, é esse o horário de chegada que ele fixou na cabeça. O pior é que Adamastor sabe que não existe uma hora certa para que um co-ração apareça. Mas, desde sua internação, as madrugadas parecem perigosas para se dormir. Já perdera quatro corações, que poderiam ter sido seus em algum momento da vida. Não queria arruinar mais nenhuma oportunidade. Para não atrapalhar o colega de quarto e se acalmar, abriu o celular e aguentou firme a pouca iluminação do te-lefone para poder ler mais um pouco a Bíblia. Logo já era outro dia.

***

Adamastor é novo, não chegou nem na casa dos 40. Por isso mesmo, nunca achou que precisaria de uma intervenção cirúrgica tão séria quanto um transplante de coração. Para a maior parte das pesso-as é concebível que um idoso precise de um órgão novo para bater em seu peito. Mas um homem de apenas 39 anos... Nesse sentido, Adamastor tem sorte, muita sorte. A prioridade na fila de espera para um coração varia conforme o tipo sanguíneo do paciente e sua idade. A cronologia é muito importante para quem depende de um transplante desses. Os mais novos têm preferência na fila. Embora esse método seja cruel, pois diminui a chance dos mais velhos con-seguirem um órgão, pode favorecer o pernambucano.

Ele já teve quatro chances nas mãos de poder se curar, receber um novo órgão, voltar para casa e recomeçar sua vida. Mas o destino não colaborou para que seu sonho fosse realizado. Atualmente, 294 pessoas estão cadastradas na fila de espera por um coração em todo o país. Em São Paulo, onde Adamastor está registrado, são 104 pes-soas em busca de uma cura, em busca da sobrevivência. Mas Ada-mastor tem status de prioridade, ou seja, por sua idade e condições de saúde, ele será o primeiro a ser informado, caso apareça um co-ração do seu tipo sanguíneo. Embora, às vezes, apenas o surgimento de um órgão não resolva a situação.

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Da primeira vez em que recebeu a notícia de que um coração compatível havia aparecido, o impacto da felicidade foi grande, mas durou pouco. Devido ao tratamento, ele estava com o sangue muito fino, o que poderia prejudicar a cirurgia e colocar sua vida em risco. Ao se lembrar daquela noite, sua mãe se desespera. “Ele podia ter ficado na mesa de cirurgia”.

Contudo Adamastor ainda teria outras chances. Mais três ór-gãos apareceriam, porém seriam insuficientes para sua salvação. Eles não estavam em condições boas para ser transplantados e o paciente, que já tinha o órgão fragilizado e mal vinha sobrevivendo à custa de um marca-passo, não poderia correr riscos. Os três cora-ções se foram e Adamastor permaneceu na cama do hospital.

***

Uma de suas maiores graças é poder contar com o apoio de sua mãe em horas como essas. Sempre do seu lado, preocupada e atenciosa, dona Josefa não mede esforços para atender ao filho. E se emociona ao falar do tratamento. Por ser mãe, ela é uma das únicas pessoas que chega a entender por completo o sofrimento e as angústias pas-sados por Adamastor. ”Tem sete meses que eu estou cuidando dele. Só de pensar que ele pediu ajuda... Porque, antes, ele morava com a mulher e achava que era obrigação dela cuidar dele.”

Adamastor já foi casado. Viveu com sua esposa por onze anos. Mas, conforme foi adoecendo, a mulher foi se afastando e eles aca-baram por se separar. ”No momento em que mais precisava, ela não esteve comigo”, ressente-se. Teve quatro filhos: Kátia, de 11 anos, Kellye, de 9, Kelvin, de 8, e o caçula Kauan, de 3.

As crianças moram com a mãe, não entendem direito o que se passa e, de certa forma, nunca conviveram muito com o pai. A solu-ção para que não se perca de vez o contato é dona Josefa, que sem-pre procura saber alguma notícia deles.

O amor entre mãe e filho é muito visível e expressivo. “Ela é

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mãe e pai.” Adamastor perdeu contato com o pai ainda muito cedo. Depois de um tempo, após desembarcarem em São Paulo, o chefe da família deixou a casa. Dona Josefa teve de se virar para criar os sete filhos. Trabalhava como doméstica, mas sempre pode contar com ajuda. Adamastor era um que não hesitava em mostrar disposição. Começou a vender frutas nos metrôs de São Paulo aos 7 anos de idade. Depois disso, não parou mais de trabalhar. Fez de tudo um pouco e nunca se importou em dar duro para ajudar a família. Ao falar sobre o pai, parece não se emocionar muito. “Dizem que ele morreu, mas também não me importa. O maior bem que ele me fez foi ter deixado nossa casa, assim eu tive que aprender a trabalhar desde menino”, lembra o homem.

A mãe é seu exemplo. Provavelmente, ele herdou seu alto as-tral. Apesar do abatimento, Dona Josefa encoraja o filho, mostra-se contente com qualquer passo adiante que ele dá. E nunca deixa de visitá-lo nem um dia da semana. Para vir de Mauá, na Grande São Paulo, até o bairro do Ibirapuera, na capital, é preciso ter disposição. “Às vezes eu rezo para chover, para que minha mãe desista de vir aqui. É muito trabalhoso.” Mas ela não desiste. Pega três conduções, demora horas no trânsito, mas vem ver como o filho está.

Além da mãe, Adamastor pode contar com ajuda do irmão que mora na mesma casa que ele, em Mauá. Antônio está muito ansioso com sua recuperação. Depois do transplante, Adamastor precisará viver em um ambiente muito limpo, sem animais de estimação ou qualquer coisa que possa baixar sua resistência. O irmão, atento a tudo isso, já se adiantou. Desde a última vez que Adamastor foi internado, preocupa-se em deixar a casa brilhando. Conserta o te-lhado, pinta as paredes, limpa os cômodos. Tudo para que o irmão possa ficar confortável após a cirurgia. Ir ao hospital é a única coisa que ele não faz. Tem medo desse tipo de lugar, não pode com isso, sente-se mal só de entrar em uma clínica. Mas mostra todo o carinho fraternal ao preparar o lar e rezar pela recuperação do irmão.

Comida de hospital não é muito saborosa. Falta sal, a quanti-

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dade é pouca e tudo é muito regrado. Nada de frituras, de doces, de chocolate. Adamastor está preocupado com sua saúde e, portanto, não se importa em comer a dieta recomendada. Ele não quer ganhar peso para não atrapalhar a cirurgia. Atualmente, seu peso varia en-tre 58 e 61 quilos e é mantido à base de frutas, sopas, gelatinas e apenas 800 mililitros de líquido por dia. “Estou fazendo economia. Essa água aqui é de ontem. Tem acima de meio copo ainda. Só estou usando para tomar remédio. De resto, só molho a boca.” A preocu-pação de Adamastor é que o líquido fique retido no seu corpo e o impeça de fazer uma cirurgia por excesso de peso.

Para driblar a fome, o paciente finge não ligar para os roncos que o estômago insiste em dar. Mas é que eles são mais amenos, bem mais amenos, do que a vontade de comer, de beliscar algo, só para distrair. “Você se acostuma.” Mas a feijoada faz falta no cardápio de Adamastor. Ele sente saudade. “Eu não comia sempre, mas gostava de uma feijoada feita em casa.”

Mas não é só de comer que Adamastor vive. O ex-metalúrgico adorava cozinhar quando não estava doente. “Para quem gosta do que eu faço, sou quase um mestre-cuca.” Na casa da mãe, não costu-mava preparar nada, porque ela fazia questão de comandar o fogão. Quando casou, decidiu expulsar a mulher da cozinha e resolveu ele mesmo organizar o cardápio do dia a dia e até lavar as louças.

Bolo e pão. Essas eram as especialidades de Adamastor, que co-letava as receitas de programas de culinária da televisão e de revis-tas. Seu bolo preferido era o de laranja, que aprendeu a fazer com a apresentadora de tevê Ana Maria Braga. “Quando eu via uma receita que gostava, anotava e pensava que, no dia em que tivesse condições financeiras, iria experimentar fazer aquele prato. E assim foi indo, até que eu peguei gosto pela cozinha.”

A recompensa por tanta dedicação veio aos poucos, com o reco-nhecimento dos familiares e o deleite de uma das filhas, que repetia o prato ao comer o macarrão preparado pelo pai. Mas, infelizmen-te, a doença tornou-se um empecilho também para que Adamastor

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continuasse a cozinhar. Da maioria das comidas que preparava, poucas podia experimentar, devido ao controle sobre seus níveis de colesterol e açúcar. Mesmo assim, não se importou e continuou co-zinhando para os outros. Com o tempo, os irmãos ficaram chateados por comer e ver Adamastor em um canto, sem poder experimentar aquelas delícias. Por fim, pediram que o irmão largasse o hobby.

***

“É uma coisa linda.” Adamastor conta entusiasmado como funciona um transplante cardíaco. A operação foi vista pela televisão e emo-cionou quem sente na pele a necessidade daquela cirurgia. Antes disso, Adamastor nunca teve a oportunidade de ver como funciona a cirurgia que deseja fazer. “Achava que era um bicho de sete cabeças.” Mas, depois que o programa global Fantástico começou a exibir uma série sobre transplantes com o doutor Dráuzio Varella, Adamastor fez questão de não perder quase nenhum capítulo. “Depois de acom-panhar o programa, sinto que estou preparado para a cirurgia. Mas um friozinho na barriga sempre dá.”

Além do conhecimento sobre a operação, são os médicos que dão confiança a Adamastor sobre a facilidade da cirurgia e de sua recuperação. Todo dia os doutores que acompanham seu caso vêm lhe visitar. Os cardiologistas Reginaldo Cipullo e Marco Aurélio Fin-ger parecem estimar muito o paciente. Reginaldo diz que o paciente é uma daquelas pessoas em que se vale a pena fazer um transplante. O motivo para tanta consideração é a alegria transmitida por Ada-mastor a cada consulta. Sempre positivo, fazendo alguma brincadei-ra e mostrando estar disposto a todas as regras e conselhos para melhorar. Um dos médicos que o atende diz que hoje vai a um chur-rasco, mas que tem certeza de que terá que sair de lá porque um coração vai chegar para Adamastor. É com esse tipo de frase que os especialistas costumam animar o ex-metalúrgico. Mas, apesar da credibilidade dos doutores, o paciente também deposita na fé a sua

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esperança de melhora. “Eu sei que o médico vai fazer a cirurgia, mas Deus é que irá guiar a mão dele. Pois Deus é o médico dos médicos.”

Era um dia engraçado para Adamastor encontrar Reginaldo, cujo time foi desclassificado da Taça Libertadores, enquanto o Co-rinthians, de Adamastor, garantia sua classificação para a mesma disputa no ano seguinte. O médico, dando risadas, pede que não sejam feitos comentários sobre a derrota. Mas Adamastor não dei-xa de dar uma cutucada no adversário. Acompanha seu time, vibra com as vitórias, mas não se deixa exaltar. Não é daqueles torcedores fanáticos e, como um bom técnico, dá o conselho: “Você precisa ver a dificuldade do time adversário antes de ver a vantagem do seu”. É dessa forma calma e harmoniosa que o pernambucano enxerga o futebol. Tanto que não se importa de torcer de uma só vez para pelo menos três times. “Eu gosto do Corinthians do mesmo jeito que, no Rio de Janeiro, gosto do Flamengo e, em Pernambuco, do Sport.”

Fazer com que o tempo passe quando não se tem nada para fazer é difícil. Ver televisão é o que tem de melhor. Os jornais são a programação favorita de Adamastor. Mas os desenhos também cha-mam sua atenção. Só as novelas não despertam seu interesse, ape-sar de admitir que, se a atriz Vera Fischer estiver no elenco, ele, com certeza, dará uma espiadinha em algum capítulo.

De vez em quando, Adamastor dá umas voltinhas pelo corredor do hospital para não ficar o tempo todo deitado na mesma posição. Ele vai até um canto e se pesa, depois vai à sala de leitura e folheia umas revistas, bate um papo com alguma enfermeira conhecida e volta mais que depressa para o 513. “Eu procuro sair do quarto só depois que os médicos passam. Senão, eles têm que ficar me procu-rando e aí dá mais trabalho.”

Ficar no hospital, ao mesmo tempo em que é desconfortável, é um alívio para Adamastor. Ali, ele sabe que vai encontrar todo o cuidado, os remédios e os aparelhos para o manterem vivo. Na sua casa não seria assim. Sempre faltariam as enfermeiras a lhe medir a pressão, conferir sua respiração. Fora que, em sua casa, ele achava

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que dava mais preocupação do que internado no hospital. “Minha mãe não podia me deixar sozinho nem para ir à quitanda. Ela tinha que ligar para um dos meus irmãos vir ficar comigo e fazer tudo bem rápido para poder voltar.” Um pouco conformado, ele sentencia: “Eu estava tirando o sossego da minha família”.

***

“Minha vida é um livro aberto e sem páginas faltando”. Adamastor gosta de relembrar seu passado, de como acordava às quatro horas da manhã, de segunda a segunda-feira, para ir trabalhar. Pegava um ônibus e ia tranquilo fazer algo que lhe ocupava a cabeça. É duro lembrar que, anos antes, podia se virar sozinho. “Eu não dependia de ninguém só do meu trabalho.” Agora, depois de doente, quando não estava internado era obrigado a ver o irmão José sair para o dia a dia de trabalho, enquanto ele ficava em casa, espiando pela janela. “Até arrancava mato com a mão para não ficar parado sem ter com o que me ocupar”, conta Adamastor.

Foram vinte e quatro anos de trabalho registrado. Fora os ou-tros em que serviu sem poder colocar na carteira de trabalho. Mes-mo debilitado, Adamastor gostaria de contribuir com seus gastos, porque só com o salário da mãe fica difícil manter as coisas em or-dem. A aposentadoria por invalidez, à qual teria direito, até agora não saiu do papel. O pedido já foi feito há mais de um ano, mas ne-nhuma correspondência, nenhum pagamento veio. Só promessas e o esforço de dona Josefa.

Tem dias que Adamastor acorda esperançoso. Pensa no trans-plante, no coração, em uma vida melhor. Começa até a sonhar mais alto. “Eu tenho vontade de conhecer os parentes do doador. Ganhar outra família. Não que eu fosse ficar no lugar da pessoa que se foi. Isso está longe de acontecer.” Para que Adamastor receba um cora-ção, não há muitas exigências, além do tipo sanguíneo do doador e seu peso. O maior problema é que alguém precisa morrer para que

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ele ganhe mais vida. Ele prefere evitar o assunto. Já são tantos des-gostos em sua realidade.

O importante é que agora ele está a poucos passos de realizar seu sonho. Ou quase isso. Ele é considerado o primeiro, o que tem maior prioridade de receber o transplante no hospital, e isso o ani-ma muito. “Nunca fui tão especial quanto estou sendo agora. Nem na escola, na chamada, mesmo meu nome começando com a letra A, eu não era o primeiro.” Adamastor é uma pessoa eternamente positiva. Nunca desistiu de viver e, com o transplante, diz que espera chegar pelo menos até os 80 anos. Não é fácil, mas é o que ele acredita que um novo coração pode propiciar para a sua longevidade. Seu aniver-sário está longe. Será só em dezembro. A última comemoração não foi muito boa. Ele estava internado no hospital. Para este ano, ele espera estar no conforto de seu lar. Quem sabe?!

***

Quem sabe um sonho vire realidade, de repente, num piscar de olhos. Foi isso o que aconteceu no dia cinco de maio. Era madrugada, como Adamastor já havia previsto que seria. Ele estava cochilando, quando a notícia chegou. Parecia um sonho e, só no dia seguinte, as coisas ficariam mais claras para ele. Era a cirurgia, a operação de sua vida que estava acontecendo naquele instante. Ele na maca para ser transplantado. Mais vivo do que nunca, com o coração acelerado. Do outro lado, um corpo inerte na morte. Mas partes dele, ainda vivas e pulsantes. A principal, o coração.

Adamastor não entendeu bem aquilo. Achou estranho na hora da cirurgia, o coração ainda estar no corpo do doador. Mas fazer o quê? Era o momento de ser sedado. A partir daí, só acordaria depois de horas. Com um novo órgão em seu corpo. Com mais uns 40 anos, pelo menos, de vida pela frente.

Dona Josefa estava nervosa. E não era para menos. Fazia três dias que seu filho não acordava direito. Abria os olhos e volta a fe-

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char. Só se alimentava por uma sonda e não manifestava sinais de alegria pela operação. Na UTI, foram longas setenta e duas horas de espera, até que, enfim, o pernambucano mostrasse que tinha vindo ao mundo para viver. Aquele tempo dormindo, após o transplante, fora apenas para se acostumar com o novo órgão.

Novamente o ex-metalúrgico estava internado em um dos quartos do Dante Pazzanese. Mas, desta vez, era por pouco tempo, realmente de passagem. Mesmo assim, Adamastor estava chateado. Segundo o que os médicos haviam dito, após a operação ele deveria permanecer internado por mais uns quinze dias. Depois, rua; direto para sua casa. No entanto, o prazo já havia expirado. Passaram-se vinte dias desde o seu transplante e ele ainda estava ali. Uma enfer-meira tenta convencer o transplantado a não ficar tão bravo pela de-mora em ir embora. Enquanto arruma os cateteres na sua garganta, ela tenta consolá-lo. Mas não adianta muito.

A indignação é tão grande que atinge até dona Josefa, sempre tão calma e complacente. “Eu fico preocupada com o que estão pen-sando meus parentes. Será que eles acham que Adamastor piorou?” Não, ele está bem, tanto que já pode ter a graça de comer um arroz com feijão e de não apenas molhar a boca na água como costumava fazer, mas beber pelo menos três litros de líquido por dia. Até ele está assustado com a mudança. Mudança boa. “O ruim, para ele, é comer legumes e frutas cozidos. Não gosta”, diz dona Josefa, que está super feliz em ver o filho ingerindo alimentos que antes eram res-tritos. Porém sente dó por Adamastor não poder comer nada cru. O cozimento dos alimentos retira micróbios e bactérias que poderiam ser prejudiciais à saúde do paciente e impediriam a recuperação. Fazer o quê? Melhor assim do que voltar à restrição de não poder comer isso, nem aquilo e passar fome.

***

Enquanto espera o tempo passar para poder voltar à sua casa, Ada-

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mastor inventa coisas para fazer. Agora, seu maior esforço é decorar as regrinhas escritas em um livrinho que ganhou do hospital. É um guia prático para o transplantado, que esclarece dúvidas simples sobre como limpar a casa para receber alguém que acabou de ser transplantado, como cuidar dos alimentos, como evitar o uso de transportes públicos e lugares aglomerados. Isso parece ser o mais difícil para a mãe e o filho que moram longe. Afinal, eles não têm car-ro para ir e vir ao hospital toda semana, onde Adamastor continuará a ser acompanhado e fará biópsias. Será necessário algum tipo de condução. “Vamos gastar uns duzentos reais de táxi por semana. No final do mês, serão oitocentos reais.”

Quase todo o ordenado que a mãe junta com as diárias de em-pregada doméstica e a aposentadoria. O cálculo da família é inter-rompido pela entrada da enfermeira. Ela vem, mais uma vez, ver como está o paciente e, de quebra, traz dois remédios, um enorme e outro pequenino. “Você toma o grande e eu tomo o pequeno”. Ada-mastor faz graça com a enfermeira, que dá risada. Na empolgação, nem dona Josefa se contém e resolve apelidar os comprimidos: “é o pai e o filhote”. A disposição dos dois anima quem passa pelo quarto. Logo devem estar em casa. Menos preocupações.

Há um mês Adamastor dorme em sua própria cama. A alegria é grande. Hoje veio ao hospital apenas para uma consulta de rotina. Aliás, haja consultas de rotina. Desde o dia em que foi transplantado, ele frequenta o lugar duas vezes por semana. Uma, para fazer bióp-sia e verificar se não está ocorrendo rejeição do novo órgão em seu corpo, e outra, para ser avaliado pelos residentes e por seu médico de sempre, o leal doutor Reginaldo Cipullo.

Dona Josefa é só sorrisos com a condição física e a disposição mostrada pelo filho. “Parece que ganhei na loteria. Estou lá em cima.“ O transplantado não deixa por menos e zomba de sua antiga fase de doente. “Se o coração fosse de um palmeirense tinha dado rejeição!” A felicidade dos dois também está ligada a uma intervenção do hos-pital para facilitar o atendimento. O Dante Pazzanese liberou uma

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ambulância para trazer Adamastor e a mãe para São Paulo até o dia em que ele estiver autorizado a utilizar transportes públicos.

Na sala de espera do consultório médico, uma mulher ouve Adamastor contar de seu transplante. Ele está tão bem, pouco incha-do, com uma aparência saudável, uma tranquilidade em falar, que há quem ache que sua história é mentira. Mas a mulher presta atenção. O marido dela está na fila de transplantes. Eles não são de São Paulo, mas se registraram na fila deste Estado para ter mais chances de achar um órgão. Adamastor dá força para o casal, aconselha-os e, como sempre, brinca. “Olha, eu tenho 39 anos, o coração que recebi é de um garoto de 19. Por isso, agora estou me sentindo novo, mes-mo já depois de velho.”

É a vez de Adamastor ser atendido. O médico do dia se chama Lucas. Ele analisa a ficha do paciente com um pouco de displicência, chega até a atender ao telefone celular durante a consulta. É óbvio que Adamastor se incomoda com a falta de tato do médico. Mas não se deixa abater. Quando o doutor pergunta como ele está, é claro: “Estou ótimo!” Dificuldades? “Nenhuma. Antes tinha que tomar ba-nho sentado e era rapidinho, porque logo me cansava. Agora, demo-ro uns dez minutos. Já economizei água durante seis anos. Vou apro-veitar.” E os remédios? O paciente é disciplinado. Toma todos nas horas certas, etiqueta as embalagens das pílulas com seus horários e sempre leva, para onde for, um recipiente para guardar os compri-midos. E, lógico, uma garrafinha de água para engolir as gigantescas pastilhas. “Remédio é para o resto da vida. Coração também. Então você se acostuma”, explica Adamastor para o residente.

Para encerrar a consulta, chega o doutor Reginaldo para fazer a averiguação final. Tudo certo, pronto para ir para casa. Mas, antes de deixar a sala médica, uma última pergunta demonstra uma vontade sufocada há tempos, um prazer que poderá ser realizado ainda hoje, se o médico permitir. “Doutor, já posso comer chocolate?” Com um sorriso, Lucas se revela um pouco mais simpático e recomenda uma marca especial para o paciente. Mas destaca que a guloseima é um

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pouco cara. Adamastor parece não se importar com a informação e fica tão contente com a chance de comer um doce como ficaria uma criança diante da novidade. “Ah, coisa de comer não se pode olhar o preço”, ensina ao médico com ar de sabedoria.

***

Já se passaram mais de dois meses desde que Adamastor entrou na sala de cirurgia e voltou a viver uma vida normal. Ele, talvez, não a considere tão normal assim, pelo fato de não poder trabalhar. Mas fazer o quê? É preciso muito cuidado nesses primeiros meses após o transplante. “Está um tédio. Eu fico o tempo todo vendo televisão e só passa aqueles desenhos japoneses sem sentido.”

Outra coisa que ainda não é normal para Adamastor é o fato de não poder comer tudo o que gosta. As verduras e as frutas ele só in-gere cozidas. “Não vejo a hora de o médico falar que eu posso comer uma melancia”, comenta Adamastor. Enquanto isso, a mãe prepara para ele maçãs cozidas com canela. A sobremesa do almoço e do jan-tar parece uma delícia, mas enjoa fácil. “Ela, em vez de cozinhar uma maçã, cozinha quatro. Aí, eu não aguento, sobra para ela comer.” A vontade de se deliciar com a comida certamente aumenta agora que ele tem ânimo para desfrutar desse prazer. Mas, em toda refeição, ele põe a mão na consciência para não fazer como um senhor cuja história ele ouviu na sala de espera do hospital. O homem foi trans-plantado e, depois de todas as dificuldades pelas quais passou, não se segurou. Comeu três costelinhas de porco. Não resistiu a tanta gordura e morreu pelo exagero.

Apesar das pequenas reclamações, Adamastor sabe que sua vida é outra após a operação. “A partir de agora, eu vou comemorar dois aniversários. Os presentes eu não sei se vou ganhar em dobro, porque o maior deles eu já recebi, meu coração!” Para fazer jus ao novo órgão e à nova vida, o paciente também se esforça. Não são só alegrias a vida de um pós-transplantado. Ele se controla para tomar

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todos os dias na hora certa os onze remédios que fazem parte da sua atual rotina e que, provavelmente, farão pelo resto da vida. “O motor é novo, foi trocado, não foi revisão. Agora é só colocar o óleo, que são os remédios.” Adamastor compara seu coração a uma máquina e, desta forma, segue corretamente as orientações médicas para que a engrenagem de seu corpo funcione perfeitamente.

***

O professor. É assim que dona Josefa chama seu filho. Isso porque, desde que soube que estava prestes a ser operado, Adamastor co-meçou a dar aulas de paciência e de consolo aos outros internados com o mesmo problema que o seu e que estavam em sua ala do am-bulatório. “Ele ia de quarto em quarto falar com os outros para tirar o medo.” Foi essa experiência que deu a Adamastor a vontade de se tornar um voluntário. Depois de sua recuperação total, ele pretende vir ao hospital e participar de forma ativa nesse tipo de trabalho. Conversar com os doentes, mostrar como tudo pode ser diferente, como os receios devem ser jogados na lata do lixo. É isso o que ele quer, pois já passou pela mesma situação e hoje diz ter até dificulda-des para se acostumar com uma vida tão boa.

Uma nova vida, que lhe permite inclusive viajar, ficar longe de sua casa, e, mesmo assim, não passar mal. Depois de três meses de recuperação, Adamastor teve a chance de conhecer Francisco Mo-rato, onde mora sua madrinha. O lugar não é tão longe, mas foi uma experiência muito boa para ele. “Deu para espairecer, respirar um ar mais puro.” A viagem foi tão excitante para o filho e para a mãe que os dois começaram a pensar em comprar uma casa na cidade. Fica-ram encantados de ouvir todo dia o barulho do trem, que passa per-to da casa da madrinha e que desperta um sentimento de nostalgia.

Agora, Adamastor já pode lidar com um novo sonho: a casa de Francisco Morato. Dona Josefa e ele calculam que, com a aposen-tadoria dela e com a que o filho espera receber, talvez, mais para

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frente, dê para construir uma pequena casa no local, onde a família possa descansar longe de Mauá. Um belo sonho para planejar.

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“Nesse hospital conheço todo mundo.” A frase de Adamastor trans-parece um pouco de saudades. Ele está em sua terceira visita ao mé-dico depois da cirurgia e aguarda, na sala de espera, ser atendido. Vê uma enfermeira e a cumprimenta. Lembra de Nádia, a enfermei-ra-chefe, que sempre o orientou. Acena para um fisioterapeuta, vê o doutor Reginaldo passando apressado entre os corredores e não resiste em fazer uma piadinha sobre futebol. Aquele ambiente hos-pitalar lhe é familiar. Não lhe causa repulsa. Pelo contrário, lá ele se sente junto de amigos. Não é que tenha vontade de ficar novamente ali. Sente falta das pessoas que sempre foram prestativas com ele, que sempre demonstraram carinho ao lhe tratar, ao vê-lo progredir.

A gratidão por essa equipe é tão grande que Adamastor, após ser operado, não resistiu e resolveu escrever uma carta para agrade-cer todo o tratamento proporcionado. De graça, mas com qualidade. Na carta escrita à mão, ele contou toda a sua história, disse como o atendimento no Dante Pazzanese salvou sua vida, como agradecia o governo pela existência do SUS, que lhe proporcionava um atendi-mento igual ao de pessoas que usavam seus planos de saúde e das que pagavam caro para serem atendidas. A carta escrita foi só uma, mas teve mais de um destinatário. Uma delas foi entregue ao hospi-tal. A outra, que era uma cópia da original e que uma enfermeira fez o favor de conseguir para ele, foi enviada ao governador do Estado, José Serra. Cartas que, se foram lidas com atenção, puderam mostrar aos seus destinatários a gratidão eterna que Adamastor terá por aquela gente vestida de branco, que vinha lhe mostrar o caminho para uma longa e nova vida.

É hora de ser atendido. Chega a residente. É uma mulher. Ada-mastor nunca foi atendido por ela. Mas a doutora não deixa a desejar.

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Pergunta como ele se sente, se tem alguma dor específica, se tem do que reclamar. Mas o transplantado é só elogios e respostas positivas. Diz que se sente ótimo, que não há dor nenhuma para lhe afligir. De-pois de examinar o paciente, a médica resolve chamar o doutor Re-ginaldo para passar as considerações finais, antes de mandá-lo para casa. Reginaldo chega com a mesma disposição de sempre, mesmo com os olhos inchados de sono, sinal de que passou por um plantão trabalhoso na madrugada.

O médico traz uma boa notícia. A partir de hoje, Adamastor já está liberado para comer as frutas e os legumes crus que ele tanto queria. Mas, como sempre, há algumas orientações. Antes de servir as verduras, a mãe deve acrescentar à água e ao sabão algumas goti-nhas de um produto específico para ter a certeza de que o alimento que seu filho vai ingerir está livre de impurezas, que poderiam pre-judicar sua saúde. Sem problemas. O nome do produto é anotado. Ao dispensar o paciente, o doutor Reginaldo faz uma indagação fi-nal. Pergunta como era a vida de Adamastor antes do transplante. E ele diz confiante: “Eu não existia antes.” Reginaldo sorri. Deve ser a sensação de trabalho cumprido. Ele felicita o paciente, abraça-o forte e aperta suas bochechas de forma paternal.

É hora de ir para casa. Mas antes, como sempre, é necessário marcar a próxima data da biópsia e da consulta de rotina. Próximo ao guichê de marcações, Adamastor encontra outros transplanta-dos do coração. Começa uma conversa agradável sobre como cada um se recuperou, como as dificuldades foram superadas, e de como hoje todos são saudáveis. Um dos transplantados argumenta que é importante se manter ativo, fazer exercícios e fala que está ansioso para participar dos jogos dos transplantados. Adamastor comenta que já tinha ouvido falar desse evento organizado pelo hospital, em que os pacientes recuperados disputavam partidas de futebol, con-fraternizavam e reuniam energias para continuar a disciplina do tra-tamento e poder viver momentos como aqueles.

Naquela conversa, uma luz tomou conta do rosto de Adamas-

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tor, que prometeu tentar comparecer a um dos jogos, nem que fos-se para ficar na torcida. O ex-metalúrgico gostava de futebol, mas já contara que era ruim na prática do esporte. Não havia nenhum problema. Lá estava um novo sonho, que não se limitava a participar de uma competição. O que o motivava era a vontade de comparti-lhar momentos com outras pessoas que vivenciaram suas mesmas angústias e que estavam, ali, sadias e fortes. Seriam atletas por 90 minutos. Nada mais, nada menos. Mas o suficiente para se sentirem vivos e completos novamente.

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