dossie getulio vargas - daniel rodrigues aurelio

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Dossiê Getúlio Vargas – “Getúlio Vargas saiu da vida para entrar na História como um dos mais controversos e marcantes presidentes do Brasil. Despertava, e ainda desperta, ódios e paixões. Sua conexão com as camadas pobres da população advinha de um afeto autoritário, que soube cultivar como raros líderes políticos fizerem.”Em Dossiê Getúlio Vargas, o autor Daniel Rodrigues Aurélio reúne, de modo exímio, todos esses dados políticos e biográficos que contribuíram para a mitificação de Getúlio Vargas, tido, por um lado, como estadista arguto e corajoso, militar viril e o benevolente pai dos pobres; por outro, considerado um ditador violento e personalista, populista e simpatizante do fascismo. Mas será que as imagens, opiniões e adjetivos difundidos por getulistas e antigetulistas fazem justiça ao que foi, de verdade, o homem Getúlio e a Era Vargas?À parte as ambiguidades, o fato é que, em 24 de agosto de 1954, seu suicídio causou comoção nacional: era o fim do governo e o início do mito.

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • DANIEL RODRIGUES AURLIO

    DOSSI GETLIO VARGAS

  • Universo dos Livros Editora Ltda.Rua Haddock Lobo, 347 12 andar Cerqueira CsarCEP 01414-001 So Paulo/SPTelefone: (11) 3217-2600 Fax: (11) 3217-2616www.universodoslivros.com.bre-mail: [email protected]

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    Diretor EditorialLuis Matos

    Assistncia EditorialRegiane BarbozaRenata Muyagusku

    RevisoShirley Figueiredo Ayres

    Projeto GrficoDaniele Ftima

    DiagramaoCludio AlvesStephanie Lin

    CapaDaniel Brito

    Imagem da capaHulton Archive\Getty Images

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    A927d Aurlio, Daniel Rodrigues.

    Dossi Getlio Vargas / Daniel Rodrigues Aurlio. So Paulo: Universo dos Livros,

  • CDD 981.061

    2009. 128 p.

    ISBN 978-85-7930-026-4

    1. Vargas, Getlio (1882-1954). 2. Brasil Histria (1945-1954). I. Ttulo.

  • Introduo

    Palcio do Catete, Rio de Janeiro, capital da Repblica dos Estados Unidos do Brasil1.Tera-feira, 24 de agosto de 1954, por volta das 8h30min da manh. No terceiro andar doedifcio de arquitetura neoclssica, ouve-se o estampido seco de um tiro. O deputado federal emdico Lutero Sarmanho Vargas corre em direo ao quarto de onde teria partido o disparo.Lutero encontra o pai, o presidente do Brasil, Getlio Dornelles Vargas, de pijamas, estirado,ensanguentado, moribundo, com a metade do corpo deslocada para fora da cama. Ao lado, umrevlver Colt 32 ainda quente. Sua esposa Darcy Vargas e funcionrios do Catete chegamdepois e assistem, perplexos, aos ltimos suspiros do homem que mais tempo permaneceu nopoder do Brasil republicano: exatos 18 anos, seis meses e 19 dias, em suas duas passagens. Aprimeira, de 1930 a 1945; a segunda, de 1951 at aquele fatdico desfecho em um ms deintensas presses por sua renncia2.

    Os jornais da poca, como o ltima Hora, do jornalista e empresrio Samuel Wainer, e Anoite, da famlia Marinho (Organizaes Globo), apresentaram o general Aguinaldo Caiadode Castro, chefe do Gabinete Militar, como o primeiro a abrir a porta e se deparar comGetlio Vargas beira da morte. O ltima Hora, fortaleza getulista subsidiada poremprstimos do governo, em edio extraordinria, com a manchete Matouse Vargas!,divulgou ter adiantado sobre o trgico propsito do suicdio do presidente: Ele cumpriua palavra: S sairei morto do Catete. Na matria, informava aos leitores que:

    [] O general Caiado de Castro, Chefe do Gabinete Militar da Presidncia da Repblica,correu para os aposentos presidenciais, ao ouvir o disparo, e ainda encontrou o PresidenteVargas agonizante. Chamou s pressas a assistncia pblica, que dentro de cinco minutos jse encontrava no Palcio do Catete. Mas o grande Presidente Vargas j estava morto [].(ltima Hora, ed. Extra, 24 de agosto de 1954)

    Getlio deixara na mesa de cabeceira a sua carta-testamento, provavelmente o maisfamoso texto assinado por um poltico brasileiro. A redao, cuidadosamente datilografada,encerra-se com um pargrafo dramtico e, de certo modo, proftico:

    [] E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitria. Era escravo dopovo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo no mais serescravo de ningum. Meu sacrifcio ficar para sempre em sua alma e meu sangue ser opreo do seu resgate. Lutei contra a espoliao do Brasil. Lutei contra a espoliao dopovo. Tenho lutado de peito aberto. O dio, as infmias, a calnia no abateram meunimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereo a minha morte. Nada receio.

  • Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar naHistria. (Rio de Janeiro, 23/08/1954 Getlio Vargas)

    A autoria da carta, porm, continua sendo alvo de discusses e estudos. O estilo eloquente eassertivo atribudo ao ghostwriter dos discursos de Getlio, o jornalista Jos Soares MacielFilho, que no Governo Vargas ocupara as funes de diretor-superintendente do BancoNacional de Desenvolvimento Econmico (BNDE) e da Superintendncia da Moeda e doCrdito (SUMOC), predecessores, respectivamente, do BNDES e do Banco Central. MacielFilho admitiu ter batido mquina o manuscrito entregue pelo presidente. Nos arquivos doCentro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil da FundaoGetlio Vargas (CPDOC/FGV), no bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro, esto guardadas asduas verses. A missiva revisada, aprimorada e datilografada por Maciel Filho foi transmitidanaquele dia pela Rdio Nacional e o contedo dela mexeu com os brios da populao. Aoutra, com a caligrafia de Getlio, mais sucinta, um pouco desalentada, e no tem umaretrica to impactante e emocional3.

    O texto fora possivelmente encomendado por Getlio Vargas ao escritor de confiana, logoaps o Atentado (ou Crime) da Rua Tonelero. Na madrugada de 5 de agosto daquele ano, omajor da Aeronutica Rubens Florentino Vaz e o empresrio e jornalista da Tribuna daImprensa Carlos Frederico Werneck de Lacerda, um conspirador audacioso e ponta de lanado antigetulismo, regressavam de uma palestra-comcio no Colgio So Jos, na Tijuca,quando foram surpreendidos por uma emboscada na porta da casa de Lacerda. A saraivada detiros na escurido matou Rubens Vaz. Lacerda foi baleado no p.

    A repercusso do crime foi imediata. Carlos Lacerda vociferava em programas de rdio,em colunas e editoriais de seu jornal, e a culpa recaiu inicialmente sobre Lutero e BenjamimDornelles Vargas, o Bejo, irmo caula de Getlio4. Foram acusados de executores do crimeos lees de chcara Alcino Joo do Nascimento e Climrio Euribes de Almeida, este membroda chamada Guarda Negra de Getlio, em ao orquestrada por Gregrio Fortunato, oNego, leal chefe da Guarda Pessoal do presidente5.

    O suicdio de Getlio Vargas, sua derradeira cartada poltica, conservou vivssimo noimaginrio popular a fbula do Geg pai dos pobres e defensor do povo humilde e daNao e desviou o foco das investigaes. As desconfianas cederam espao comoonacional. Cerca de cem mil pessoas acompanharam o cortejo fnebre; suspeitos, Benjamim eLutero seriam inocentados (no se pode dizer o mesmo de Gregrio, Climrio e Alcino); eLacerda e seu grupo antigetulista tiveram de enfrentar a fria do povo nas ruas.

    Getlio Dornelles Vargas nasceu em 19 de abril de 1882, na Fazenda Triunfo, nasproximidades de So Borja, municpio a seiscentos quilmetros de Porto Alegre, a capital doRio Grande do Sul o ano de seu nascimento seria alterado por ele para 1883, numa certidomilitar entregue Faculdade de Direito de Porto Alegre. Getlio saiu da vida para entrar naHistria como um dos mais controversos e marcantes presidentes do Brasil. Despertava, eainda desperta, dios e paixes. Sua conexo com as camadas pobres da populao advinhade um afeto autoritrio, que soube cultivar como raros lderes polticos o fizeram. Era tratadocarinhosamente pelo povo como Geg, seu apelido ntimo na famlia6. Leia a seguir ecomprove os versos de Ai Geg, marchinha carnavalesca (e eleitoreira) de 1950,

  • composta por Joo de Barros e Jos Maria Abreu:

    Ai, Geg!/ Ai, Geg!/ Ai, Geg!/ Que saudades que ns temos de voc/ O feijo subiu depreo/ O caf subiu tambm/ Carne seca anda por cima/ No se passa pra ningum/ Tudosobe, sobe, sobe/ Todo dia no cartaz/ S o pobre do cruzeiro/ Todo dia desce mais, mais,mais, mais.

    Baixinho e atarracado, dono de uma barriga proeminente, Getlio era, do alto de seu 1,60m, alm de um hbil mobilizador das massas, um encantador de mooilas. Carismtico,vaidoso, galante e obviamente poderoso, sua lista de escapadas inclua a belssima vedeteVirginia Lane, estrela do teatro de revista7, cujas pernas eram reputadas como as maisbonitas do Brasil.

    Todos esses dados polticos e biogrficos contribuem para o processo de mitificao deGetlio Vargas, tido, por um lado, como um estadista arguto e corajoso, caudilho viril ebenevolente; e, por outro, como um ditador violento e personalista, populista efascistide. Mas ser que as imagens, opinies e adjetivos difundidos por getulistas eantigetulistas fazem justia ao que foi, de verdade, o homem Getlio e a Era Vargas?

    UM CAUDILHO NO CENTRO DO PODERGetlio Vargas experimentou quase todas as variantes de governar. Um dos artfices no

    levante revolucionrio de 1930, ocupou a chefia do Governo Provisrio de 3 de novembro de1930 a 17 de julho de 1934, quando foi confirmado presidente da Repblica em eleioindireta promovida pela Assembleia Nacional. Em 10 de novembro de 1937, instaurou-se noBrasil a ditadura do Estado Novo, com Getlio frente. Deposto em 29 de outubro 1945,regressou ao Palcio do Catete pelo voto popular nas eleies democrticas de 1950, ao somde Retrato do Velho (Haroldo Lobo/Marino Pinto), sucesso de 1951 na voz de FranciscoAlves:

    Bota o retrato do velho outra vez/ Bota no mesmo lugar/ O sorriso do velhinho/ Faz a gentetrabalhar/ Eu j botei o meu/ E tu, no vai botar?/ J enfeitei o meu/ E tu vais enfeitar?/ Osorriso do velhinho/ Faz a gente trabalhar.

    O discurso de justificativa para a Constituio autoritria de 1937, a Polaca, que lheconferiu poderes de ditador, d a medida do seu iderio poltico. Diante do estado de riscoiminente da soberania nacional, provocado pelas agitaes subversivas e a ameaacomunista, Getlio assume a frente da nao, pois o homem de Estado, quando ascircunstncias impem [] no pode fugir ao dever de tomar as rdeas da situao:

    Tenho suficiente experincia das asperezas do poder para deixar-me seduzir pelas suasexterioridades e satisfaes de carter pessoal. Jamais concordaria, por isso, empermanecer frente dos negcios pblicos, se tivesse de ceder quotidianamente smesquinhas injunes da acomodao poltica, sem a certeza de poder trabalhar com o

  • maior proveito pelo bem da coletividade8.

    Percebe-se na fala de Getlio ecos da ideologia militar brasileira. As nossas ForasArmadas historicamente arrogam-se a condio de guardis da democracia, no apenas emsua funo de defesa nacional, mas como um agente poltico autoritrio9. Bem-sucedidas oudesastradas, vrias foram as suas tentativas de golpes, quarteladas e revolues, a comearpela proclamao da Repblica em 1889, narrada pelo historiador Jos Murilo de Carvalhoem Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Repblica que no foi10.

    Getlio veio de uma famlia de militares e ex-combatentes (o pai, o general Manuel doNascimento Vargas, lutara na Guerra do Paraguai) e ele prprio seguira carreira no Exrcito,atingindo a patente de sargento, para ento decidir ingressar na Faculdade de Direito. A outrainfluncia inequvoca a do castilhismo, a doutrina austera e positivista11 dos seguidores dojornalista e governador gacho Jlio Prates de Castilhos.

    Conforme pontuou a cientista poltica Lourdes Sola, o contedo contraditrio dasambies getulistas pretendia, a partir do poder pessoal e da suposta moral incorruptvel doditador, concretizar os projetos maiores da Nao. Na fora bruta das armas e da poltica ena persuaso de sua oratria, Getlio tocou por oito anos o Estado Novo. O Brasil daRepblica Velha (1891-1929) constituia-se num conjunto de entes federativos dispersos eque buscavam na Unio maneiras de satisfazer os interesses econmicos das oligarquiasregionais. No Governo Vargas, o Estado ganhava centralismo e protagonismo. A nova ordemirritou a elite de alguns Estados, sobretudo So Paulo, que a pretexto de uma novaConstituio lanou-se contra o governo na insurreio Constitucionalista de 1932.

    O real legado da Era Vargas confunde bem a cabea de historiadores, bigrafos,economistas, socilogos e polticos. Seria esse legado benfico ou malfico? Ou as duascoisas? Na gesto de Getlio, o Brasil deu um passo decisivo no sentido de deixar o ciclo damonocultura do caf e driblou a crise econmica de 1929 e a Segunda Guerra Mundial [1939-1945], para assim deflagrar a modernizao e a industrializao do pas, processo que osespecialistas nomeiam de modernizao conservadora ou via autoritria da modernizao,por sinal caracterstica poltico-econmica recorrente no Brasil durante o sculo xx.

    As conquistas sociais na Era Vargas vinham sempre acompanhadas de ardis e condicionais.As mulheres obtiveram o direito ao voto em 1932 (a Sua, por exemplo, s reconheceu o votofeminino em nvel federal no ano de 1971), mas elas (e eles) no puderam exerc-lo emeleies presidenciais antes de 1945. Em 1 de maio de 1943, Getlio Vargas assinou aConsolidao das Leis do Trabalho (CLT), legislao que afagava os trabalhadores aoformalizar-lhes garantias, tais como registro em carteira, salrio-mnimo e frias remuneradas,ao mesmo tempo em que pretendia amordaar, incorporar e manipular os movimentossindicais.

    Na esfera cultural, Getlio tambm carregava nas contradies. Ele aprovou a criao decompanhias de cinema nacional como a Cindia (1930), a Brasil Vita Filmes (1934) e aSonofilmes (1937), encomendando em seguida filmes laudatrios de seus feitos, exibidos noCinejornal Brasileiro, autnticas peas de propaganda cinematogrfica. O samba, a capoeira,a literatura de cordel e o bom malandro (o trabalhador) transformaram-se em signos danacionalidade, embora msicos, artistas e intelectuais fossem implacavelmente perseguidos e

  • censurados pelo Departamento de Ordem Poltica e Social (DOPS) e pelo Departamento deImprensa e Propaganda (DIP).

    A ascenso de Getlio Vargas, uma das consequncias da fervura intelectual, poltica emilitar dos anos 1920, avanou ao centro do poder a partir da Revoluo de 1930. OMovimento Tenentista, a Semana de Arte Moderna de 1922, a Coluna Prestes, a AlianaLiberal, a literatura regionalista, o ensasmo dos intrpretes do Brasil (Srgio Buarque deHolanda, Gilberto Freyre, Paulo Prado, Caio Prado Junior), o pensamento nacionalistaautoritrio (Azevedo Amaral, Alberto Torres, Francisco Campos), a contenda com ospaulistas, a Intentona Comunista de 1935, Plnio Salgado e a Ao Integralista Brasileira12, arepresso feroz do Estado Novo, a participao do Brasil na Segunda Guerra Assunto oque no falta.

    O Getlio ps-1930 bateu-se contra certas oligarquias regionais, perpetuando, todavia, ummodelo resistente s instituies democrticas. Poltico de uma viso estratgica emodernizadora em termos de economia, desenvolvimento, direitos sociais e trabalhistas,enamorava-se de regimes totalitrios e mostrava-se violento e hesitante livre expresso.Assim era Getlio Vargas: O poder e o sorriso, na sagaz definio do historiador e cientistapoltico Boris Fausto, autor de A revoluo de 1930 (reeditado pela Companhia das Letras em1997) e Getlio Vargas, o poder e o sorriso (Companhia das Letras, 2006).

    Esse estadista de So Borja continua a ser um paradigma (positivo e negativo) para osgovernantes do Brasil. A administrao do presidente tucano Fernando Henrique Cardoso[1995-2002] anunciava o fim da Era Vargas. J o seu sucessor petista, Luiz Incio Lula daSilva, prefere associar sua imagem do Geg, dado o inegvel apelo popular/populista deambos. O esforo da propaganda lulista rendeu at uma reveladora foto-referncia. Nela, Lulaexibe, sorridente, as duas mos besuntadas de petrleo, pose idntica de Getlio Vargas emato pblico realizado um ano antes da fundao da Petrobras, em 3 de outubro de 1953 Opetrleo nosso!, exclamava o slogan nacionalista.

    a impressionante trajetria pessoal e poltica desse homem, que desperta sentimentosdiversos, mas nunca indiferentes, que este Dossi Getlio Vargas se prope a contar.

    Boa leitura!

    1 O ttulo de Repblica dos Estados Unidos do Brasil perdurou da Proclamao daRepblica, em 1889, at a Constituio Federal de 1967, elaborada pela Ditadura Militar[1964-1985], ocasio em que o pas passou a se chamar Repblica Federativa do Brasil,nome este preservado pela Constituio promulgada em 5 de outubro de 1988. A capital/sededo governo do Brasil transferiu-se para Braslia em 1960.2 Para a reconstituio do suicdio de Getlio Vargas, ver o infogrfico Dia 24 As ltimasHoras do Presidente, publicado na edio especial da revista Aventuras na Histria Brasil, da Editora Abril (edio n 2, abril de 2007). Crditos da matria e infogrfico:Rogerio Nunes, Debora Bianchi, Lira Neto e Luiz Iria.3 Cf. HEYMANN, Luciana Quillet. A Carta-testamento e o legado de Vargas, disponvel nosite do CPDOC:http://www.cpdoc.fgv.br/nav_gv/htm/5Vargas_para_alem_da_vida/A_carta_testamento_e_o_legado_de_Vargas.asp

  • 4 A grafia de muitos nomes contidos neste Dossi Getlio Vargas variam conforme a fonteconsultada, o registro e a ortografia adotada. Benjamim aparece em documentos comoBenjamin; Darcy como Darci; Osvaldo Aranha como Oswaldo etc. Optei no texto pelapadronizao de uma delas.5 O termo Guarda Negra refere-se a um batalho de infantaria do Regimento Real Escocs.Mas, no Brasil, ficou conhecido como Guarda Negra o agrupamento de escravos libertos, pr-monarquistas e isabelistas, que atacavam os comcios republicanos. Para muitoshistoriadores, o mentor e organizador da Guarda foi o mulato abolicionista Jos do Patrocnio(Carvalho, 2004, p. 30). Na segunda metade do sculo XIX haviam, alm dos conservadores erepublicanos radicais, correntes de monarquistas abolicionistas e de republicanos escravistas.6 Para a compreenso desse tipo de relao, recomendo a leitura do captulo O HomemCordial, de Razes do Brasil, livro de Srgio Buarque de Holanda publicado em 1936 eatualmente editado pela Companhia das Letras.7 Teatro de temtica popular, carregado de elementos pardicos, crticas de costumes, humor,msica e sensualidade. O auge do teatro de revista brasileiro foi de fins do sculo XIX primeira metade do XX. Ver mais em VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista no Brasil:dramaturgia e convenes (Campinas: Unicamp, 1991).8 Os fragmentos da fala de Getlio Vargas foram pinados do texto O Golpe de 1937 e oEstado Novo, de Lourdes Sola, captulo do livro Brasil em Perspectiva (Lisboa: Difel,1978, p. 256), organizado pelo historiador Carlos Guilherme Mota.9 Sobre a interferncia das Foras Armadas na poltica brasileira, ver CARVALHO, JosMurilo de. Foras armadas e poltica no Brasil. (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005).10 Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. (So Paulo: Companhia dasLetras, 2004). As datas dos livros citados correspondem edio, reedio ou reimpressoconsultada pelo autor deste Dossi.11 Positivismo: princpios filosficos, sociolgicos, cientficos e doutrinrios preconizadospelo filsofo francs Auguste Comte, enunciados na sua Lei dos Trs Estados (teolgico,metafsico e, por fim, o positivo). A cincia positiva busca apreender fatos, relaes sociais epolticas etc. a partir da observao, experimentao e da finalidade prtica. Um lema dopositivismo est expresso na bandeira do Brasil: Ordem e Progresso. Ver mais em COMTE,Auguste. Discurso sobre o esprito positivo (So Paulo: Escala, 2007) e RIBEIRO JUNIOR,Joo. O que positivismo? (So Paulo: Brasiliense, 1996).12 Ao Integralista Brasileira (AIB), organizao baseada no integralismo e fundada peloescritor, pensador e jornalista paulista Plnio Salgado. O mote do movimento integralista Deus, Ptria e Famlia e sua orientao poltica, direita, conservadora eultranacionalista. Foram integrantes e/ou simpatizantes da AIB, entre outros, o historiador efolclorista Luis da Cmara Cascudo, o jurista Miguel Reale e o romancista Gustavo Barroso.A doutrina integralista est expressa no Manifesto de Outubro de 1932.

  • IA formao do Estadista (1882-1929)

    Brasil, 1882. Na poltica, governava o Imperador D. Pedro II durante o Segundo Reinado.Na economia, vigorava o modelo agrrio-exportador. O sistema escravista estava em declnio,mas ainda vivo. Intensificava-se o processo de transio do mundo rural ao urbano. O fluxoimigratrio de trabalhadores europeus despontava, para substituir a mo de obra escravareduzida pelos efeitos de medidas internas e externas. Na literatura, Joaquim Maria Machadode Assis publicara, no ano anterior, Memrias Pstumas de Brs Cubas. A jornadaabolicionista estava a todo vapor. Jos do Patrocnio, Joaquim Nabuco, Silvio Romero, osintelectuais da Gerao de 1870 travavam na imprensa, nos livros e nos palanques o bomcombate da interveno poltica1. Lutavam para derrubar as ltimas barreiras legais daescravido institucionalizada, diagnosticada como um entrave para a prosperidade eprogresso do pas. Amparada pela Lei Bill Aberdeen, de 1845, a Inglaterra combatia o trficode escravos. A represso da marinha britnica aos navios negreiros proibia o desembarquenas Amricas. Para dificultar a ao dos negociadores, a Lei Nabuco de Arajo (1854)determinava a extino e a penalizao desse tipo de contrabando no Brasil. E com a Lei doVentre Livre, de 1871, restava aos abolicionistas brigar para que os escravos em atividade setornassem, enfim, homens livres.

    A Lei urea (1888), se, por um lado, abolia a escravido, por outro, no solucionava odrama decorrente da cruel e injusta integrao dos escravos libertos sociedade brasileira.Alijados de oportunidades de trabalho digno e subsistncia, alm da cidadania plena (umautopia no Brasil), muitos chegaram a voltar para as antigas fazendas e engenhos. Os decretosde fins do sculo XIX no sanaram a delicada questo temtica presente nos ensaios clssicossobre a formao social brasileira e nas pesquisas e debates sobre polticas pblicas.

    A propaganda pr-Repblica tambm se acirrava no ocaso do Imprio. Naquele turbilhode ideias, as faces republicanas caprichavam no beletrismo da retrica e descuidavam-seda coeso do movimento. No balaio de gatos antimonarquista cabiam republicanos radicais,da estirpe de Antonio da Silva Jardim e Raul Pompia, e confrarias de esprito reacionrio eescravista, que viam na Monarquia um obstculo para suas cobias econmicas.

    Data desse perodo conturbado de transio do Imprio Repblica (1870-1889) osprimeiros estudos e obras literrias que aspiravam decifrar o enigma Brasil e, por extenso,a sociedade, a psicologia e os tipos brasileiros. O cerne da especificidade socialbrasileira estaria, em registro negativo, na mestiagem, de acordo com a pena tisnada deevolucionismo social de Tobias Barreto e Raimundo Nina Rodrigues, leitores das obras domdico positivista italiano Cesare Lombroso. Tudo temperado com condimentos positivistas,evolucionistas, liberais, socialistas, proto-sociolgicos, romnticos, realistas O extenso

  • repertrio dos literatos, jornalistas, polticos e bacharis do fin-de-sicle brasileiro.Para a sociloga Angela Alonso, professora da Universidade de So Paulo (USP), esses

    intelectuais e letrados das dcadas finais dos Oitocentos no eram, como sugere o crticoliterrio Roberto Schwarz, meros reprodutores e imitadores das teorias europeias. Schwarzargumenta que Machado e Nabuco atingiram um altssimo patamar esttico e discursivo, emcontraste a outros menos cotados, mas as excees no invalidariam a sua tese das ideiasfora do lugar. Sem ignorar a pompa um tanto caricata dos propagandistas republicanos eabolicionistas, Alonso indica a existncia, sim, de formulaes e projetos polticosreformistas acerca dos grandes temas nacionais: O movimento intelectual [da Gerao de1870] revela ser um movimento poltico de contestao.2

    O enigma Brasil mobilizava os homens pblicos, civis e militares. Aps a Guerra doParaguai [1864-1870], a instituio do Exrcito e os militares passaram a empunhar, suamaneira, as bandeiras da Repblica e da cidadania. Surgia a figura do soldado-cidado, umcidado fardado a batalhar por seus direitos polticos e de cidadania. O Exrcito buscavapara si um maior poder decisrio nos rumos do Brasil. A adeso dos militares causarepublicana encantava escritores e ativistas. Raul Pompia declarou que o Exrcito plebeu, pobre, o Exrcito a democracia armada3. Gestava-se ali o iderio dos quartis como avanguarda revolucionria da democracia. Contudo, a ideologia poltico-militar de golpes econspiraes raramente combinou-se uma efetiva participao popular.

    Filho do general e estancieiro Manuel do Nascimento Vargas e de Cndida DornellesVargas, Getlio Dornelles Vargas veio luz nesse contexto de excitao poltica. Natural deSo Borja, sudoeste do Rio Grande do Sul, cidade na rota das misses jesutas do sculo XVIIe localizada na fronteira com a provncia argentina de Corrientes, Getlio e seus irmosViritato, Protsio, Esprtaco e Benjamim criaram-se em um bero militarista, autoritrio,patriarcal e rural, ditado pelos valores profundos dos Pampas adentro: austeridade, honra,bombachas e chimarro. Ser que o menino o pai do homem, como ensina o verso deWilliam Wordsworth, o tal poeta ingls citado por Machado de Assis em MemriasPstumas de Brs Cubas?

    Oriundos da regio espanhola de Toledo, os Vargas deslocaram-se para o arquiplago deAores, Portugal, e de l partiram, no sculo XVIII, para o Brasil. Pelo lado materno, tinhaascendncia remota de aorianos. A poltica fervia o sangue dos sulistas e o casamento deManuel Vargas e Cndida Dornelles juntava duas famlias que, no curso da RevoluoFederalista de 1893, estariam em trincheiras opostas4. Os Vargas, republicanos, chimangos,fiis Julio Prates de Castilhos; e os Dornelles, maragatos, ligados aos federalistasrevoltosos. Boris Fausto sugere que a tendncia conciliao de Getlio Vargas tenha a suasemente nessa convivncia entre antagonismos5.

    A Guerra do Paraguai deixou seu rastro na histria de So Borja. Com a vizinha Itaqui eUruguaiana, a cidade foi ocupada pelas tropas do Paraguai comandadas por Antonio de laCruz Estigarribia. A luta pela libertao do jugo paraguaio talvez seja uma das razes para aforte tradio poltica so-borjense, terra natal dos presidentes Getlio e Joo Goulart, dodeputado federal Ibsen Pinheiro e de Tarso Genro, Ministro da Justia do Governo Lula.Manuel Vargas, alis, parece sintetizar esse el to comum no Rio Grande. A destacadaatuao do patriarca dos Vargas durante os combates elevou-o da patente de cabo a tenente-coronel, e da para o posto de chefe regional do Partido Republicano Riograndense (PRR),

  • agremiao fundada justamente em 1882 por Venncio Aires e Julio de Castilhos.Getlio Vargas foi enviado cidade de Ouro Preto, afamada por suas escolas de ponta, para

    completar seus estudos bsicos de juventude. Na ainda capital de Minas Gerais j se achavamos irmos Protsio e Viriato, mas um acontecimento trgico e nebuloso abreviou a estadiamineira dos jovens. Viriato, acompanhado de Protsio, meteu-se em desavena com umestudante paulista de famlia quatrocentona, Carlos de Almeida Prado. Rixa resolvida bala: Viriato assumiu ter executado o Almeida Prado. A presena de Getlio na cena do crimeconstuma ser negada e desconversada.

    A cultura da vendetta, da honra pessoal ou familiar movida a testosterona e lavada asangue estava entranhada no conjunto de valores dos rapazes. Aquela presumida disputa poruma namorada atiou rancores regionais. Tenses da Repblica Velha. Os gachos teriam sidoofendidos pelo paulista. Insultos preconceituosos e arrogantes. Nervos flor da pele.

    Autor dos disparos, Viriato conseguiu escapulir para o Mato Grosso, atravessando afronteira com o Paraguai. A Justia de Porto Alegre processou Protsio, mas a denncia contrao filho de um aliado de Julio de Castilhos foi devidamente arquivada. A ausncia decondenao no poupou os Vargas de terem constantemente de rebater as insinuaes elembranas, reavivadas por adversrios, do caso de Ouro Preto. O mdico Benjamim Torres,que ento era estudante, dera retaguarda a Viriato em sua fuga de Minas, mas passara, porcausa de querelas particulares, a ser o seu maior desafeto. Benjamim Torres seria assassinadoem 1915, supostamente entocaiado por capangas de Viriato, poca intendente de So Borja.

    Oligarquia, desmandos, lei do talio, impunidade, controle poltico: eis a exibio, emnvel local, de hbitos antirepublicanos e antidemocrticos.

    CARREIRA MILITAR, BACHARELADO E VIDAPOLTICA

    Em 1898, Getlio Vargas retornou ao Rio Grande do Sul, decidindo-se, sem muitaconvico, pela carreira militar. Getlio atuou como soldado da guarnio so-borjense einscreveuse na Escola Preparatria de Ttica de Rio Pardo. O excesso de matriculados levou-o a alistar-se provisoriamente no 6 Batalho de Infantaria de So Borja. Promovido asegundo-tenente, ingressou na concorrida Escola Preparatria somente em 1900, para de l sedesligar em 1902, em solidariedade a colegas expulsos por envolvimento em insubordinaes.

    Transferido em 1902 para o 25 Batalho de Infantaria de Porto Alegre, Getlio pareciainclinado a abandonar as Foras Armadas. Integrado, porm, a Coluna Expedicionria do Sul,marchou Corumb, no Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), para alinhar-se s tropasbrasileiras que se preparavam para guerrear com a Bolvia pela posse do Acre. No entanto, oministro Jos Maria da Silva Paranhos Jnior, o Baro do Rio Branco, dirimiu a Questo doAcre pela via diplomtica do Tratado de Petrpolis, firmado em 17 de novembro de 1903.Getlio voltou para o Sul sem atracar-se com os bolivianos. Em dezembro de 1903, ele pediubaixa do Exrcito.

    Civil, Getlio Vargas optou pela Faculdade de Direito de Porto Alegre. Entrou comoaluno-ouvinte no ano de 1904 e bacharelou-se em Cincias Jurdicas e Sociais em 1907. Operodo de graduao coincidiu com as disputas internas do PRR pela sucesso do lendrioJulio de Castilhos, O Patriarca, morto em 1903 aps padecer de um cncer na garganta. Jos

  • Gomes Pinheiro Machado e Antonio Augusto Borges de Medeiros apresentavam-se como oscontinuadores do castilhismo. Pinheiro Machado cumpria desde 1890 mandato como senadorda Repblica e tinha aspiraes conservadoras, no sentido de dar guarida s oligarquias doNordeste. O senador gacho fundou o Partido Republicano Conservador em 1910 e faleceucinco anos depois. Assim, a liderana castilhista ficou por conta de Borges de Medeiros, quegovernou o Rio Grande do Sul por duas vezes, de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928.

    Membro promissor da Juventude Castilhista e excepcional orador, Getlio Vargas assimilouo positivismo do PRR, ma non troppo. Na mocidade, era um leitor atento de Herbert Spencere Charles Darwin. Gostava tambm do escritor francs mile Zola, autor de Germinal (1885).De acordo com o verbete biogrfico Vargas, Getlio, elaborado pelo Centro de Pesquisa eDocumentao de Histria Contempornea do Brasil (CPDOC), [Getlio era] admirador demile Zola, [e] publicou um artigo na revista estudantil Panthum enaltecendo sua posiofrente ao caso Dreyfus e suas tendncias progressistas6.

    O batismo poltico de Getlio aconteceu em 1907-08. Na vspera das eleies gachas, oPartido Federalista e o Partido Republicano Democrtico (PRD) anunciaram um fortecandidato para derrubar a hegemonia do PRR: o mdico e dissidente castilhista FernandoFernandes Abbott. Nas fileiras republicanas, o manda-chuva Borges de Medeiros indicouCarlos Barbosa Gonalves, contrariando alguns correligionrios. Getlio fechou com ocandidato oficial e, no satisfeito, organizou o Bloco Acadmico Castilhista. Dessa turmafaziam parte nomes de proa da vindoura Revoluo de 1930: Joo Neves da Fontoura,Firmino Paim Filho, Mauricio Cardoso, reforados por dois cadetes da Escola de Guerra dePorto Alegre, personagens fundamentais nas diversas intervenes das Foras Armadas noprocesso poltico brasileiro: o matogrossense de Cuiab Eurico Gaspar Dutra e o alagoano deSo Luis do Quitunde Pedro Aurlio de Gis Monteiro. O Bloco Castilhista fez circular ojornal panfletrio O debate, no qual Getlio desempenhou a funo de secretrio de redao.

    A vitria de Barbosa Gonalves, e o empenho de Getlio na campanha alegraram a Borgesde Medeiros. Assim, a carreira do recm-formado bacharel de So Borja decolourapidamente. Em janeiro de 1908, Getlio Vargas foi nomeado promotor pblico do Tribunalde Porto Alegre, embora seu destino de homem pblico j estivesse traado. Para concorrer Assembleia dos Representantes do Rio Grande do Sul, hoje Assembleia Legislativa, passouseu cargo na promotoria a Joo Neves da Fontoura e regressou So Borja. L montou umescritrio particular de advocacia. Apoiado na regio, Getlio acabou eleito em maro de1909. Apesar da funo quase decorativa do legislador, dada a centralizao do Executivoborgista, o mandato de deputado ajudou-o a consolidar relaes. Flores da Cunha, LindolfoCollor e Osvaldo Aranha pertenciam aos seus crculos de amizade e alianas.

    Em 1911, Getlio Vargas casou-se no civil com Darcy Lima Sarmanho, mocinha na flor deseus quinze anos, filha do estancieiro Antnio Sarmanho, banqueiro abastado em So Borja.Com Darcy, Getlio teve cinco filhos: Lutero, Jandira, Alzira, Manuel Antnio e Getulinho,que morreu precocemente em 1943, aos 26 anos. Fausto descreve assim o casal:

    Darcy e Getlio formariam um par destinado a exercer os papis tradicionais das figurasmasculina e feminina de seu tempo []. Ele deveria dedicar-se ao mundo da rua, sendolhepermitidas, no plano do comportamento, as escapadas ao casamento. Ela deveria ser umamulher do lar, fiel ao esposo e voltada para a criao dos filhos [] Darcy

  • compatibilizaria a vida familiar com os deveres de primeira-dama, participando tambm davida pblica. (FAUSTO, 2006, p. 28-29)7

    Getlio Vargas renunciou a sua segunda legislatura na Assembleia gacha, em 1913, por seopor a interferncia de Borges de Medeiros na lista de candidatos do municpio de Cachoeira.Elegeu-se novamente em 1917 e manteve-se no posto at 1922. O Rio Grande do Sul ouseja, Borges de Medeiros e o PRR emergia como a terceira fora da repblica do caf-com-leite8, de modo que os castilhistas/borgistas compunham o arco de coligaes daschapas presidenciais. No prlio eleitoral de 1921-22, o PRR, contrariado pela candidatura domineiro de Viosa Artur da Silva Bernardes, formou a oposicionista Reao Republicana,sustentculo do candidato fluminense Nilo Peanha Peanha substituira o falecido AfonsoPena na presidncia da Repblica no binio 1909-1910. Artur Bernardes triunfou.

    Internamente, o Rio Grande do Sul sofria com a conflagrao civil denominada Revoluode 1923. Os antiborgistas da Aliana Libertadora, liderados por Assis Brasil, insurgiram-secontra o governo de Borges de Medeiros. As feridas de 1893 reabriram-se. A articulao emtorno do Tratado/Pacto de Pedras Altas (nome da propriedade rural de Assis Brasil), alm depacificar relativamente libertadores e republicanos/borgistas, contribuiu anos mais tardepara o sucesso da Aliana Liberal de 1929-1930. Defensor de Borges de Medeiros, oquarento Getlio Vargas preparava-se para alar voos nacionais, consagrando-se deputadofederal e lder informal da bancada do PRR. Na Cmara do Rio de Janeiro, Getlioaperfeioou suas atitudes pendulares, ao respaldar vrias medidas tomadas pelo ex-opositorArtur Bernardes, dentre as quais a proposta de reviso constitucional de 1926.

    Getlio Vargas lograra, pois, a sua maturidade. E projetavase como o mais auspicioso edestacado dos membros da dinastia poltica dos Dornelles Vargas.

    A dinastia dos Dornelles Vargas (antes e depois de Getlio)

    NomeParentescocomGetlio

    Posies ocupadas

    DinarteDornelles

    Tiomaterno

    Lder e combatente federalista na Revoluo de1893.

    Manuel doNascimentoVargas

    Pai Lder do PRR de So Borja e intendente (prefeito)da cidade.

    Viriato

  • DornellesVargas

    Irmo Intendente de So Borja.

    BenjamimDornellesVargas

    Irmo Deputado estadual.

    ErnestoDornelles Primo

    Interventor e governador eleito do Rio Grande doSul, senador da Repblica e Ministro daAgricultura de Juscelino Kubitschek.

    LuteroSarmanhoVargas

    Filho Deputado federal.

    Alzira Vargas doAmaral Peixoto Filha

    Auxiliar do pai no Gabinete da Presidncia daRepblica.

    Manuel(Maneco)AntnioSarmanhoVargas

    Filho Prefeito de Porto Alegre.

    ManuelNascimentoVargas Neto

    Sobrinho-neto Deputado federal.

    Cndida IveteVargas Tatsch

    Sobrinha-neta Deputada estadual e federal e presidente do PTB.

    GETLIO VARGAS, UM AGREGADODA REPBLICA VELHA?

    O estilo ttico e pragmtico de Getlio Vargas ajustava-se com perfeio ao cotidiano deacordos da Cmara Federal. Sem renegar as causas gachas, Getlio, na mdia, aderiu basegovernista de Artur Bernardes. Ele no poderia, por exemplo, compactuar com o

  • perpetuamento de paulistas e mineiros no comando do poder central. Mas no tocou fogo nocoreto antes da hora. Manteve uma margem de independncia segura, malevel, nada afoita,dissimulada e muito esperta. Ainda deputado estadual, Getlio manifestara que a guerraeuropeia (Primeira Guerra Mundial [1914-1918]) demonstrava a inpcia dos parlamentos9.

    A opinio acima congrega dois dados elementares do pensamento getulista: 1) eleconsiderava limitada a instncia parlamentar para o empreendimento de mudanas de vulto e2) inclinava-se para a centralizao castilhista no Executivo. Getlio era reticente quanto aeficcia da democracia representativa e da separao entre os Trs Poderes Charles deMontesquieu. Vivera num ambiente em que problemas eram resolvidos no fio do bigode erepblica e democracia tinham um significado quimrico. O declnio dos imprios e aascenso de governos totalitrios na Europa tambm no contribuam em nada para umaconvico de democracia nos moldes franceses. Mas Getlio simpatizava-se com valoresprogressistas, modernizantes, constatao que s aumenta as suas contradies e mistrios.

    Em 1922-23, o Brasil, quer dizer, os entes federativos que compunham o Brasil,movimentavam-se intelectual, social e politicamente. Os modernistas rediscutiam o papel daarte, da esttica, do Brasil e suas origens etnicas e sociais. Tanto estes (em suas mltiplastendncias e vertentes) como queles que reagiam espantados a esses trangressoresdebatiam firmemente sobre o Brasil e o ser brasileiro. Pintores, msicos e escritoresimportavam tcnicas artsticas do estrangeiro e eram financiados pelos mecenas do velhobaronato do caf e de industriais como os Matarazzo. A transgresso modernista, veja s,amparava-se no dinheiro de homens ambguos e conservadores10.

    Convm sublinhar, portanto, o quo difusa fora a dcada que antecedeu a Era Vargas. Arte,poder e poltica: das hostes modernistas surgiram grupos identificados com a direita (oVerde-Amarelo de Cassiano Ricardo e Plnio Salgado) e comunistas militantes (PatrciaGalvo, a Pagu, e Oswald de Andrade)

    A poltica dos quartis rendia sublevaes quixotescas e gritos por mudanas. Nessesentido, os baluartes foram os tenentes ligados ao Movimento Tenentista ou Tenentismo,especialmente ativo de 1922 a 1924. Descontentes com os rumos do Brasil, clamavam pelamodernizao das estruturas de poder. Pediam, entre outras reivindicaes, a instituio dovoto secreto. Os tenentistas no se filiavam a partidos ou ideologias classistas uniformes erigorosas. No entanto, de acordo com Boris Fausto em A revoluo de 1930,

    [] At que ponto possvel caracterizar o movimento tenentista responsvel pelasrevolues da dcada de 20 e pelo episdio da Coluna Prestes, como movimento de classemdia, verso aceita por vrios socilogos e historiadores? []

    E responde:

    A nosso ver [] o simples fato de que a maioria dos tenentes no provenha de um meiosocial correspondente categoria que eventualmente viriam a representar no elimina apossibilidade destes elementos terem assumido, em toda a sua extenso, uma ideologia declasse mdia e se terem comportado como expresso poltica desta. (FAUSTO, 1970, p. 204)

  • Sero oficiais como o capito Euclides Hermes da Fonseca, comandante do Forte deCopacabana, no Rio de Janeiro e filho do marechal Hermes da Fonseca, e os tenentes Antoniode Siqueira Campos e Eduardo Gomes que iro protagonizar a mais comovente das batalhastenentistas: a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. A 4 de julho de 1922, Fonsecaconclamou seus homens a prepararem as trincheiras para resistir s foras federais. Namadrugada do dia 5, iniciava-se o conflito. Os insurgentes dispararam em direo ao Forte doLeme, matando quatro pessoas. Como resposta, os tenentistas foram bombardeados pelaartilharia da Fortaleza de Santa Cruz da Barra, em Niteri. Acuado, o capito Fonsecaconsentiu que subordinados abandonassem, se assim desejassem, o Forte. Da guarnio de301 homens, restariam 18: os 18 do Forte de Copacabana.

    Na tentativa de negociar com o governo, o comandante Fonseca seguiu para o Palcio doCatete. L recebeu voz de priso. Na tarde de 6 de julho, os rebeldes corajosos suicidas? saram em marcha pela Avenida Atlntica. Repartiram, segundo consta, a bandeira do Brasilem 29 pedaos e dividiram entre si. Um dos pedaos seria entregue Fonseca. No caminhocruzaram com o engenheiro civil Otvio Correia, amigo de Siqueira Campos. Otvio pegouuma pistola e juntou-se a eles. Pretendiam chegar ao Catete. Morreram praticamente todos.Apenas Siqueira Campos e Eduardo Gomes, feridos, foram capturados vivos.

    A ideologia dos tenentes comprimia vrias das urgncias de reforma na polticabrasileira, teve lances patticos e hericos, mas pecava pela incapacidade de conscientizar asmassas nesse direcionamento revolucionrio. As quarteladas, feitas de cima ou de baixo, estofadadas a golpes, contragolpes, traies e perpetuamento de vcios.

    Getlio Vargas, em fase de transio de deputado estadual para federal, acompanhou adistncia o movimento tenentista. No comunicado Pela Ordem, o PRR declarou-se favorvelao governo de Epitcio Pessoa. Getlio, inclusive, pedira uma trgua na Reao Republicana.J no Rio, Getlio alinhou-se ao presidente Artur Bernardes na segunda, e menos rumorosa,etapa tenentista: a Revolta Paulista e a Comuna de Manaus. At concordou com o envio detropas gachas a So Paulo, para conter as movimentaes contrrias ao status quo.

    A instatisfao com a ordem liberal-oligarquica da Repblica Velha germinava de Norte aSul. A Coluna Miguel Costa-Luiz Carlos Prestes a Coluna Prestes dos livros de Histria evoluiu por extenso territrio do pas e transformou o tenente gacho Luiz Carlos Prestes noCavaleiro da Esperana. No contexto das bandeiras tenentistas, Prestes angariou a adesode populares, campesinos e proletrios. A Coluna Miguel Costa-Prestes incomodou as elitesdirigentes. Mas apenas quando o paulista de Maca Washington Luis Pereira de Sousaassumiu a presidncia da Repblica, administrao da qual Getlio Vargas seria Ministro daFazenda por um curto perodo (1926-27), que as articulaes pelas mudanas esquentaram.Para a historiadora Teresa Malatian, professora da Universidade Estadual Paulista Jlio deMesquita Filho (UNESP),

    Conflitos latentes entre as oligarquias no contempladas pela partilha do poder federal,que era dominado por So Paulo e Minas Gerais, constituam um elemento a mais nodebate poltico dividido entre a real aplicao da Constituio de 1891 e a busca poralternativas que favorecessem a unidade nacional. (MALATIAN, 2007, p. 44)11

    As presses aumentaram aps esse pacto unilateralmente rompido entre So Paulo e

  • Minas. E resultaram na formao da Aliana Liberal, encabeada por Getlio.

    O voto e a reforma poltica na Repblica Velha

    Na obra Coronelismo, Enxada e Voto (1949) originalmente uma teseacadmica publicada em 1948, intitulada O municipalismo e o regimerepresentativo no Brasil , o jurista mineiro Vitor Nunes Leal aborda omalsinado coronelismo detectado no Brasil republicano, um verdadeirogerador do falseamento do voto. O fenmeno do coronelismo em nvelmunicipal, aponta Leal, ocorre exatamente pela decadncia do domniopessoal dos latifundirios, abalado pelo sistema representativorepublicano. Esses coronis passam assim a controlar a poltica local,procurando agir no vcuo do poder pblico.O coronelismo seria (ou ainda ?) um dos males da questo do voto e dosprocessos polticos nos primrdios do Brasil republicano. A ausncia doinstituto do voto secreto, o cerceamento do direito do voto s mulheres, ovoto a bico de pena, as coaes e clientelismos, as fraudes, tudo issocontribuia para turvar as eleies no Brasil.

    1 Ver ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a gerao de 1870 na crise do Brasil-Imprio (So Paulo: Paz e Terra, 2002).2 ALONSO, Angela. Crtica e contestao: o movimento reformista e a gerao de 1870.Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. 15, n 44, out. 2000 (p. 36). Para balancear, leiao texto de Roberto Schwarz As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor, as batatas (So Paulo:Editora 34, 2000).3 A frase de Raul Pompia mencionada por Jos Murilo de Carvalho em Repblica eCidadanias, captulo II de Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Repblica que no foi(So Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 50).4 Vide, por exemplo, a Revoluo Farroupilha (1835-1845), liderada por Bento Gonalves daSilva, com a participao do italiano Giuseppe Garibaldi, um guerrilheiro republicano,alcunhado de o heri dos dois mundos. No bojo do conflito, houve a proclamao, em 1836,da Repblica Rio-Grandense ou Repblica do Piratini.5 FAUSTO, Boris. Getlio Vargas o poder e o sorriso (So Paulo: Companhia das Letras,2006, p. 23).6 Disponvel em: http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/5458_1.asp. Zola defendeupublicamente o oficial de artilharia francesa Alfred Dreyfus, acusado e condenado por altatraio. O escritor acusou o processo contra Dreyfus de frgil e fraudulento. Em julho de1906, a inocncia de Dreyfus foi finalmente comprovada.7 Darcy Vargas fundou e presidiu a Legio Brasileira de Assistncia (LBA).8 No artigo Aliana caf com poltica, a historiadora Cludia Maria Ribeiro Viscardi trazuma abordagem nova e questionadora a respeito da supremacia dos paulistas (caf) e mineiros(leite) na Primeira Repblica ou Repblica Velha. Texto publicado na revista Nossa Histria

  • da editora Vera Cruz (ano 2, n 19, mai. 2005).9 Cf. CPDOC/FGV Verbete Biogrfico VARGAS, Getlio. In: Dicionrio Histrico-Biogrfico Brasileiro ps-1930. Disponvel em:http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/5458_1.asp.10 Sobre o modernismo pr e ps-Era Vargas, recomendo Imagens negociadas (So Paulo:Companhia das Letras, 1996) e Intelectuais brasileira (So Paulo: Companhia das Letras,2001), ambos do socilogo Srgio Miceli.11 Referncia completa: MALATIAN, Teresa. Os patrianovistas. Revista BrHistria, ano 1,n 4, ed. Duetto.

  • IIDa aliana liberal Polaca de 37 (1929-1937)

    Segundo o dicionrio Aurlio, a palavra Revoluo contm, entre outras, as seguintesacepes:

    a. rebelio armada; revolta, conflagrao, sublevao;b. transformao radical e, por via de regra, violenta, de uma estrutura poltica, econmicae social1.

    A Revoluo Francesa (1789-1799) contra o Ancien Rgime e a Revoluo Industrialencetada na Inglaterra entre os sculos XVIII e XIX promoveram rupturas na ordem social,poltica, jurdica, econmica, tcnica e dos modos de produo. Isso tudo relembrado exausto nas aulas e obras de Histria, mas para muitos historiadores, filsofos, cientistassociais, economistas, literatos e polticos esses levantes burgueses na Europa se estagnaramnum ponto determinado de interesse a vitria e a hegemonia da alta burguesia e docapitalismo industrial e perpetuaram desnveis sociais e a luta de classes. A ideia derevoluo, portanto, possui significados sortidos e mesmo antagnicos para marxistas,anarquistas, moderados, reacionrios, centristas e liberais. Na certa, jacobinos e girondinosdivergiam um bocado sobre o processo revolucionrio.

    No Brasil do sculo XX, dois acontecimentos polticos de dimenso nacional sobatizados, e no consensualmente, Revoluo. Um deles, ocorrido em maro/abril de 1964,s denominado Revoluo pelos militares e por civis anticomunistas e pretensosdefensores do trinmio Tradio, Famlia e Propriedade. A narrativa histricaconvencionou chamar o evento de 1964 de Golpe Militar ou Golpe Civil-Militar, dado oapoio irrestrito de setores da imprensa, da Igreja e da sociedade civil2.

    A Revoluo de 1930, por sua vez, nos conduz a altercaes. Em que medida ela foi, defato, revolucionria? Pode-se afirmar seguramente que o Brasil da Primeira Repblica, ouRepblica Velha [1889-1930], mantinha um arranjo social e poltico nada democrtico erepublicano. A Unio sofria nas mos das oligarquias estaduais; a economia era agrrio-exportadora, baseada em ciclos e monoculturas (naqueles idos, o caf); a to necessriaindustrializao engatinhava; fraudava-se e manipulava-se instituies e corpos burocrticossem disfarces; e o direito de votar e ser votado era um privilgio da minoria da populao.

    Houve, no ps-1930, uma mudana significativa de rumos, se no para romper com

  • costumes e prticas, ao menos o bastante para nos autorizar a assegurar que o Brasil no era omesmo aps o fim da Era Vargas. Mas o quanto disso resulta de processos inevitveis que nodependiam de Getlio Vargas? E o quanto foi acelerado pela habilidade e percepo polticado so-borjense? Um regime ditatorial como o Estado Novo (1937-1945) pode sermoralmente justificado? Ser que os revolucionrios de 30 pensavam numa verdadeirarevoluo social? As oligarquias pararam ou continuaram a dar as cartas?

    Para dar conta desse atribulado e tenso perodo, teses foram defendidas, obras e mais obraslanadas e artigos divulgados na imprensa e em peridicos acadmicos. So registros eenfoques mltiplos, opostos ou convergentes. Por sinal, uma das maiores diatribes dahistoriografia brasileira tem como temtica esse momento crucial: o j comentado A revoluode 1930, de Boris Fausto versus a obra 1930: o silncio dos vencidos: memria, histria erevoluo (Brasiliense, 1981), do historiador e professor da Universidade Estadual deCampinas (Unicamp) Edgar Salvadori de Decca.

    Boris Fausto produz um ensaio de Histria e Historiografia poltica, preocupando-se emevidenciar o contexto sociopoltico e econmico e as articulaes que possibilitaram achegada de Getlio ao Catete. De uma perspectiva marxista, Edgar de Decca resgata atrajetria do Bloco Operrio e Campons, do jornal O combate, das lutas sociais e polticasde 1928 e mostra como os discursos revolucionrios foram elaborados para seremhistoricamente legitimados. De Decca aborda as ideias de revoluo versus oligarquiaencampadas por sujeitos polticos do pr-1930 como Miguel Costa, Luis Carlos Prestes,Mauricio de Lacerda e etc. O historiador cutuca o vespeiro de estratgias e ideologias,contesta o senso comum do Estado como nico agente histrico no Brasil e colige fontesalternativas em movimentos sindicais e de classes para se opor a noo corrente de umagenuna revoluo protagonizada pelas elites3. Para De Decca,

    A partir de propostas diferentes de revoluo o vencedor da luta poltica em torno detrinta no pde se expressar a no ser pelo fato de ter feito uma revoluo unitria emonoltica e tal ideia, suprimindo propostas polticas de outras classes e fraes declasses, refaz a memria o prprio lugar da histria, legitimando ao mesmo tempo o poderpoltico do vencedor. (DE DECCA, 1981, p. 75)

    Este Dossi Getlio Vargas no ignora as instigantes proposies de Edgar De Decca e, dealguma forma, elas j tm sido incorporadas ao livro. O nome Revoluo de 1930 utilizado aqui mais como uma padronizao formal, por ser um termo comum e aceito tanto emvestibulares como em obras didticas sobre Histria do Brasil. No entanto, a discusso sobreo que ou no revoluo, e qual a natureza de uma dada revoluo, de extremarelevncia. Recomendo ao leitor procurar se aprofundar no assunto.

    ***

    Como ministro de Washington Luis, Getlio Vargas executou as reformas monetriasaprovadas em 1926, como o retorno ao padro-ouro e a Caixa de Estabilizao, um fundo deestabilizao cambial destinado a estimular as exportaes e socorrer a indstria nacional.Mas, em agosto de 1927, Borges de Medeiros indicou-o para concorrer presidncia do Rio

  • Grande do Sul. Assim, Getlio teve de deixar a pasta ministerial. Em outubro, a chapa deGetlio (presidente) e Joo Neves da Fontoura (vice) foi escolhida por aclamao naassembleia do PRR. A reunio costumeiramente ratificava a ordenao de sua lideranamxima.

    Getlio Vargas venceu o pleito gacho sem ter concorrentes. A Aliana Libertadora,renomeado Partido Libertador (PL), absteve-se de lanar candidatura. A expectativa era deque Getlio pacificasse o ambiente e orquestrasse um governo de concrdia, com uma feioliberal e integradora. Nessa circunstncia de pactos e aproximaes, brotaria entre ospolticos do Rio Grande um sentimento de identidade. Perceberam a urgncia de se cessar oumitigar os trinta e tantos anos de conflitos e rivalidades. E o primeiro passo foi convencerBorges de Medeiros e os borgistas ortodoxos a delegar a Getlio um efetivo poder decisriona administrao do Estado sulista.

    Sua passagem pelo governo do Rio Grande foi um momento fundamental para galvanizarsuas foras no mbito regional e nacional. Getlio no chegou a mediar um governo decoalizo com o PL, apesar da relao de cortesia, flerte e anuncia mtua. Getliosinalizava, porm, estar disposto a dialogar e manobrar em favor das exigncias do PL.Integrantes da oposio ocuparam postos na burocracia do governo. E at atendeu a umasolicitao que em outras pocas seria ignorada: Getlio autorizou a recontagem de votos emuma pequena cidade, permitindo aos libertadores do PL ganharem mais uma preciosa cadeirana Assembleia dos Representantes gacha. Getlio furava aos poucos o bloqueio da tradiocastilhista, entranhado nos republicanos ainda refratrios quela abertura estratgica.

    O alerta vermelho estava aceso no Rio Grande. A beira da falncia, o estado carecia deuma ao rpida e reparadora. O embate de 1923 esgotou recursos e contribuiu para asituao alarmante. Em junho de 1928, a elstica e confortvel base de apoio ao governo deGetlio Vargas na Assembleia, assegurou que o governador/presidente pleiteasse emprstimono estrangeiro. Os 42 milhes de dlares obtidos saldaram dvidas, arrumaram a cozinha eajudaram na criao do Banco do Estado do Rio Grande do Sul (BERGS). Paralelamente, agesto getulista estimulou a organizao de sindicatos de produtores subvencionando aproduo e exportao de arroz e charque4 expandiu a malha ferroviria e passou acontrolar os portos dos municpios de Pelotas e Torres.

    Acontece que, nas finanas, negcios pblicos misturavamse aos ressentimentos da vidaprivada. Uma das instituies bancrias que perderam espao nas contas governamentais parao BERGS, o Banco Pelotense, foi falncia em 1931. Dez anos antes, os scios do bancoacusaram Antnio Sarmanho, sogro de Getlio e gerente da agncia de So Borja, de aplicarum golpe no caixa da unidade. Teria sido essa a razo para o suicdio de Sarmanho. Abancarrota do Banco Pelotense teve gostinho de revanche para os Vargas.

    parte as desforras, a gesto destacada de Getlio Vargas e sua inclinao mediao oofertaram capital poltico para a grande disputa eleitoral por vir: a sucesso presidencial a serrealizada em maro de 1930. moda da Repblica Velha, o presidente Washington Luisescolheria o prximo homem a se sentar na cadeira de nmero 1 do Palcio do Catete.Temerria, sua opo romperia com um pacto de dcadas. No seria algum da confiana dooligarca mineiro Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, o lder da velha dinastia dos Andradas5.Tampouco o prprio Antonio Carlos. Tratava-se, sim, de um aliado de Washington Luis,nascido na cidade paulista de Itapetininga: o advogado e ento presidente de So Paulo Julio

  • Prestes de Albuquerque.

    A ALIANA LIBERAL EA REVOLUO DE 1930

    Faamos a revoluo antes que o povo a faa. Atribuda a Antonio Carlos Ribeiro deAndrada, esta frase capta o esprito daquela, nas palavras do historiador e brasilianistaThomas Skidmore, revoluo da elite. Abro aspas para o prprio Skidmore relatar, em seuBrasil: de Getlio a Castelo (1975, edio consultada de 2003) como era o processoeleitoral na Repblica Velha. Assim, tem-se um painel claro e inequvoco de uma disputa sema voz do povo, de oligarquias brigando pela posse do Estado e eleies diretas de fachada:

    Uma vez acertada a indicao, contudo, isso j equivalia a eleio, de vez que os governosestaduais tinham o poder para dirigir as eleies e no hesitavam em manipular osresultados para enquadr-los nos seus arranjos pr-eleitorais [] O candidato indicado,amparado pelo regime vigente, temia muito pouco a derrota. medida que o sculo vinteavanava e as cidades cresciam, a manipulao do eleitorado tornava-se mais difcil. Masos resultados nas cidades ainda podiam ser neutralizados pelos currais dos chefes dointerior (conhecidos como coronis. (SKIDMORE, 2003, p. 22)

    Em suma, as eleies eram farsas criadas para dar roupagem democrtica a monotonia dorevezamento Minas Gerais e So Paulo, estados populosos, cuja burguesia do caf erapoltica e economicamente poderosa. O acerto MG/SP foi quebrado pela pirraa deWashington Luis. O presidente preferia Julio Prestes, seu parceiro no Partido RepublicanoPaulista (PRP). Filho do fazendeiro Fernando Prestes de Albuquerque, ex-presidente de SoPaulo (1898-1900; 1910), Julio Prestes combateu na Coluna Sul do exrcito legalista contraos tenentes revoltosos de 1924, ocasio em que dividiu trincheiras com o militar e advogadoAtaliba Leonel e Washington Luis6.

    A polmica deciso de Luis obviamente desagradou ao mineiro Antonio Carlos. Ele estavacerto de ser a bola da vez. Mas aquilo no era somente a consequncia de um ato de traio.Desde 1927 cresciam as fissuras na confraria do caf com leite. As polticas econmica ecambial a serem adotadas conduziram a divergncias acerca do programa de estabilizaofinanceira e das melhores estratgias de valorizao do caf. Os paulistas pareciam dispostosa manter o controle do governo federal. Dessa forma, a correta anlise dos fatos deve levarem considerao fatores polticos, pessoais e econmicos.

    Estava instaurado o mal-estar. A indicao de Julio Prestes s eleies de 1930 recebeu oaval protocolar da maioria dos estados da federao. As lideranas mineiras negociaramapoio no Rio Grande do Sul e na Paraba. O vice-governador do Rio Grande, Joo Neves, e odeputado mineiro Afrnio de Melo Franco ajudaram a articular uma cabea-de-chapa gacha.Essa composio aguava o PRR e favorecia a adeso de oposicionistas espalhados poroutros estados. Os caciques Borges de Medeiros, Getlio Vargas e Antonio Carlos Ribeirode Andrada agiam nos bastidores e mantinham uma postura pblica moderada. A candidaturade Getlio amadurecia-se nas conversaes. E ele, claro, cuidadoso no seu papel de no dizer

  • nem desdizer, para no precipitar fagulhas revolucionrias.A posio de Getlio era dbia. Ele sabia que seria o fiel da balana naquela disputa. O

    presidente do Rio Grande evocava sua participao na administrao federal (deputadogovernista e Ministro da Fazenda) como libi de sua conduta apaziguadora. Emissrio deWashington Luis, o deputado gacho Jos Antnio Flores da Cunha levou ao conhecimento dacpula do PRR uma proposta tentadora do presidente da Repblica: na hiptese de naufrgioda candidatura Julio Prestes, Getlio poderia ser o novo indicado.

    Conforme pontua Boris Fausto em A revoluo de 1930, durante os trs primeirosdecnios do sculo [20], a [burguesia cafeeira imps] sua hegemonia social e poltica. Masas circunstncias colaboravam para a formao de um movimento de ciso no interior dessahegemonia. Assim surgia a Aliana Liberal, a princpio em mbito eleitoral. A coalizoopositora reunia partidos e grupos poltico-sociais de matizes diversas que tinham em comuma discordncia radical ou pontual com as maquinaes do governo, sobretudo em relaoaquela manobra eleitoral. Os focos de luta popular estudados por Edgar de Decca, caso dafrente de esquerda Bloco Operrio e Campons (BOC), apresentaram como candidato ooperrio Minervino de Oliveira, vereador da Cmara Municipal do Rio de Janeiro esecretrio-geral da Confederao Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB).

    Em janeiro de 1929, ciente das intenes de Washington Luis, Antonio Carlos Ribeiro deAndrada convenceu-se de que Getlio seria a pea-chave para derrubar a situao. Getliodesconversou. Em julho, os dois expoentes da Aliana Liberal, o PRR e o PartidoRepublicano Mineiro (PRM), anunciaram Getlio Vargas como candidato presidncia. Altima cartada de mediao foi uma carta de Getlio endereada ao presidente do Brasil. Nelacondicionava a retirada de candidatura a no indicao de Julio Prestes. Washington Luisbateu o p, insistiu, e em agosto a Aliana Liberal estava pronta e sacramentada.

    ***

    Quais foras compunham a Aliana? Politicamente, os estados e respectivas legendasrepublicanas de Minas Gerais (exceto a dissidente Concentrao Conservadora, pr-JulioPrestes), Paraba e Rio Grande do Sul, que conseguiu agregar o PL e PRR na Frente nicaGacha (FUG). Tambm participava da Aliana o Partido Democrtico de So Paulo (PD). AParaba emplacou o candidato a vice na chapa, Joo Pessoa Cavalcanti de Albuquerque,presidente do Estado paraibano e sobrinho de Epitcio Pessoa, primeiro-mandatrio do Brasilentre 1919 e 1922, apoiado pelos mineiros. A presena do nordestino Joo Pessoa pretendianeutralizar o raio de ao do vice de Julio Prestes, o baiano Vital Henrique Batista Soares. Ascandidaturas foram homologadas na primeira quinzena de setembro de 1929.

    At os 44 do segundo-tempo, Getlio Vargas permaneceu com uma retrica de visconciliador e cooperativo. Em dezembro, teria solicitado a Firmino Paim Filho que sugerisseo seguinte acordo ao governo: na campanha Getlio apresentaria um tom ameno, suave, talvezdesinteressado, e apoiaria Julio Prestes se este sasse vencedor. Em contrapartida, WashingtonLuis se comprometeria a aceitar o eventual xito getulista. Jogo de cena?

    Nada feito? Ou tudo certo e nada resolvido? Impasse.No dia 2 de janeiro de 1930, em comcio na Esplanada do Castelo, Rio de Janeiro, Getlio

    Vargas leu a plataforma de governo da Aliana Liberal. Dentre as propostas figuravam:

  • 1. Reforma do sistema poltico e fim do voto secreto;2. Garantia de liberdades individuais, com anistia para os tenentes;3. Proteo, via legislao, ao trabalho e aos trabalhadores;4. Projeto de expanso industrial como condio essencial para o desenvolvimento e a

    soberania nacional.

    Pelo enfoque do discurso, nota-se que a Aliana Liberal e Getlio Vargas buscavamdialogar com as classes mdias urbanas e a massa trabalhadora (assalariados em geral), almde setores liberais e progressistas e, especificamente, os tenentes revoltosos. Tais tpicos nofaziam a cabea dos castilhistas do PRR, nem de Getlio Vargas, que dizia sobre a plataformaeleitoral da Aliana, redigida por Lindolfo Collor, ser mais do povo do que do candidato.

    No se podiam virar as costas ao governo de Washington Luis. Getlio tinha a sua parcelanos prs e contras daquela gesto. A concesso pauta reivindicatria dos tenentes tinha ointento de aproximar-se da mais carismtica liderana oriunda do Movimento Tenentista: LuisCarlos Prestes. No entanto, Prestes j se entendia com membros sul-americanos daInternacional Comunista. Em maio daquele ano, o Cavaleiro da Esperana lanaria ummanifesto pr-comunista. Prestes refutava o choque entre oligarquias serviais Inglaterra ou aos Estados Unidos. Com efeito, foi praticamente nulo o apoio de movimentosradicais, sobretudo dos sindicatos e organizaes de esquerda, aos planos da Aliana. O PCBironizaria os revolucionrios de 1930, ao chamar aquela conjuntura de luta entre duasfaces da burguesia nacional, luta entre dois bandos do Exrcito7.

    Em fevereiro, Getlio transmitiu a presidncia do Rio Grande do Sul ao interino OsvaldoAranha, armou o QG em So Borja e foi luta. A Aliana Liberal afiava as suas garras.

    ***

    Sbado, 1 de maro de 1930. O dia da eleio. Votos depositados, urnas abertas. De umtotal de 1.890.524 eleitores (meros 5,7% da populao), impressionantes 1.091.709 votosforam para a contagem de Julio Prestes. Getlio recebeu cerca de 737.0008. A Aliana Liberalrechaou o resultado. Aquele duelo de oligarquias no era bem um sonho de democraciarepresentativa. No Rio Grande, por exemplo, Getlio venceu por indecentes 298.627 a 982.Fraude daqui, roubalheira de l, e quem tinha mais feudos levou!

    Aliana Liberal, oposio? Mais ou menos. At meados de 1928/1929, todos ali estavamligados de alguma forma ao governo. Eles condenaram a rebeldia dos tenentes, temiam aameaa vermelha representada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), vulgo Partido,fundado em 25 de maro de 1922, e se esbaldavam na base aliada ou em ministrios. Da abaixa motivao de Antonio Carlos Ribeiro de Andrada e Getlio Vargas em aderir aconspirao radical proposta pelos inconformados Osvaldo Aranha, Flores da Cunha, JooNeves, alm do lder do PD paulista, Joo Batista Luzardo e do mineiro Virgilio de MeloFranco. Borges de Medeiros, alis, reconheceu em entrevista a vitria de Julio Prestes edesfez a FUG. Voltou atrs na capitulao para evitar o racha no seio do PRR.

    Em telegrama para Oswaldo Aranha, datado de 11 de maro, Getlio tentou dissuadi-lo daluta pela reviso do resultado. Retornou ao governo estadual e acompanhou cautelosa

  • distncia as articulaes revolucionrias. Joo Pessoa e Antonio Carlos foram convencidos deque a alternativa vivel seria impedir a posse de Julio Prestes. E, finalmente, Getlio assentiuem organizar um movimento armado a ser coordenado por Aranha9. O comando militar foiregionalizado e ficaria a cargo de baluartes do tenentismo como Juarez Tavora (Norte), JooAlberto (Sul) e Siqueira Campos (So Paulo). O estado-maior da Revoluo de 1930 ficousob comando de um exalgoz da Coluna Prestes, o tenente-coronel Pedro Aurlio de GoisMonteiro. Aranha no se descuidou da logstica e encomendou da Tchecoslovaquia 16 mil risem armamentos, valor a ser rateado por Rio Grande do Sul, Minas e Paraba.

    A expectativa ficara para a reabertura dos trabalhos no Congresso Nacional, em 3 de maio.Como se dariam as relaes dos estados dissidentes com o governo vigente de WashingtonLuis? O PRR preparou um memorando contendo sete itens, o Heptlogo de Irapuazinho(cidade onde Borges de Medeiros tinha uma estncia), em que se propunha a uma oposiono-sistemtica e a manuteno da defesa s propostas e candidatos da Aliana Liberal.Numa deciso retaliativa dos congressistas de maioria governista, preparou-se uma surpresaterrvel para deputados mineiros e paraibanos. No processo de renovao e homologao dosmandatos, os deputados apoiados por Joo Pessoa foram expurgados e substitudos por rivaisregionais. J os mineiros do PRM perderam 14 das 37 cadeiras para parlamentares ligados aConcentrao Conservadora. Clima de guerra!10

    Em 1 de junho, Getlio Vargas reportou-se a pblico para condenar as fraudes eleitoraisde maro e as armaes parlamentares. A declarao no citava qualquer tipo de choque oudesordem iminente. Acreditava-se, segundo Skidmore, que a negociao seria dentro daordem e do regime. Devido a inconstncia de Getlio e Antonio Carlos, o balorevolucionrio murchou e as aes foram sustadas. Esses atritos motivaram Osvaldo Aranha arenunciar a seu cargo no governo do Rio Grande do Sul, abalando o ncleo de operaes.

    Enquanto os pesos pesados tentavam esfriar a afoiteza insurgente incertos do sucesso, noqueriam se indispor frontalmente , outros persistiram. At conservadores legalistas, caso dosmineiros Artur Bernardes e Olegrio Maciel, entraram na ciranda contra Julio Prestes. Orecuo de Getlio era o nico obstculo para a investida conspiratria.

    Um acontecimento trgico, porm, cessou o marasmo e trouxe consigo perturbaes,exposies inflamadas e radicalizao de posies. E, acima de tudo, estimulou a tomada deatitudes incisivas. Em 26 de julho de 1930, o candidato a vice de Getlio Vargas, JooPessoa, foi assassinado em Recife, Pernambuco. O acusado do crime foi o advogado ejornalista Joo Duarte Dantas. Fausto e Skidmore convergem ao considerar que o assassniono teve motivao poltica maior do que as disputas internas alis, com componentes dedios pessoais entre inimigos paraibanos. Mas como Washington Luis apoiara a oposiolocal, o nus da morte de Pessoa recaiu sobre seus ombros. A repercusso reanimou osrevolucionrios; eles planejaram a marcha ao Catete para 26 de agosto. Diante da falta depreparo das clulas, tiveram de abortar e reprogramar o golpe para o ms de outubro.

    ***

    Rio Grande do Sul, 3 de outubro de 1930. Sob o mote de O Rio Grande de p, peloBrasil, Getlio exortou as tropas do Sul para o ataque. Os liderados de Juarez Tvorapartiram do Nordeste, ao passo que os militantes em Minas Gerais e So Paulo deram incio

  • aos trabalhos. No se depararam com grande resistncia, afora uns distrbios em So Pauloe a resistncia do 12 Regimento de Infantaria de Belo Horizonte. O presidente WashingtonLuis caia de maduro a medida que oficiais e regimentos trocavam de lado e aderiam arevoluo. A frente sulista marchava fcil, fcil, atravessando Santa Catarina at alcanar oestado do Paran. Esperava-se que, a partir da fronteira com So Paulo, estourariam osconfrontos. Getlio assumiu o controle e montou sua base em Ponta Grossa, espera daBatalha de Itarar. A batalha na divisa entre Paran e So Paulo prometia ser sangrenta,acirrada e duradoura. A concentrao de soldados governistas em Itarar era considervel.Mas, na hora H, por interferncia da direo militar do Rio, nada de tiros Nada, nada. E ohumorista gacho Aparcio Torelly troou da guerra que no foi - intitulou-se o Baro deItarar.

    Os generais Augusto Tasso Fragoso, Joo de Deus Mena Barreto e o almirante Isaas deNoronha apelaram para que Washington Luis renunciasse serenamente. O presidente recusou.Imaginava estar protegido pelas tropas fiis no Rio e pelo suporte diplomtico dos EUA11.Superfcie frgil. A 24 de outubro, o Palcio Guanabara residncia da famlia presidencial,situada no bairro das Laranjeiras foi cercado e os militares deram voz de priso Washington Luis. No mesmo dia, a Junta Militar (Fragoso, Mena Barreto e Noronha) assumiuo poder. Permaneceram ali cuidando dos preparativos para a posse de Getlio Vargas.

    Em 29 de outubro, antes de desembarcar no Rio de Janeiro, Getlio pisou, como frisou emsuas memrias, de botas e esporas nos Campos Elseos, no centro de So Paulo. No foihostilizado pelo povo, no. Vinha a bordo do trem da vitria. De l seguiu para o Rio deJaneiro, onde recebeu a faixa da Junta Militar no Palcio do Catete. Conta-se que soldadosgachos, felizes e realizados, amarraram seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco.

    O GOVERNO PROVISRIOGetlio Vargas assumiu o governo do Brasil durante a crise financeira mundial de 1929. E,

    de sada, teve de lidar com uma j previsvel ciso na Aliana Liberal. Uma vez de posse doEstado, como conciliar oligarcas e tenentes? Diante do quadro da Grande Depresso e dadesagregao da Aliana, Getlio agiu de modo clere e cercou-se de homens de confiana,companheiros de longa data e aliados recentes.

    Getlio conduziu integrantes da velha ordem ao exlio (dentre eles, Julio Prestes) eanistiou os participantes das revoltas tenentistas ps-1922. Completou a varredurarevolucionria nomeando interventores estaduais, exceto em Minas Gerais, em virtude de umacordo com Olegrio Maciel. A maioria dos interventores eram tenentes, da as relaesconflituosas entre as oligarquias regionais e os novos administradores dos estados. Emfevereiro de 1931, a reforma getulista atingiu o Supremo Tribunal Federal (STF). PeloDecreto 19.656, a Corte reduziu seu quadro de quinze para onze ministros. E cinco juzesforam aposentados compulsoriamente pelo Governo Provisrio, expediente tradicionalmenteusado para eliminar indesejveis e inimigos. Ditadura em concepo?

    Ministrios como da Educao e Sade Pblica e do Trabalho, Indstria e Comrcio foraminstitudos por Getlio em decretos, pela ordem, de 14 e 26 de novembro. A composiopoltico-administrativa do Governo Provisrio iniciou-se com os seguintes nomes:

  • Ministros de Getlio Vargas*

    NOME PASTA MINISTERIAL REPRESENTAQUEM?

    Gal. Jos Fernandes Leite deCastro Guerra Foras Armadas

    Isaias de Noronha Marinha Foras Armadas

    Osvaldo Aranha Justia Coordenador daRevoluo

    Afrnio de Melo Franco Relaes Exteriores Cota dos mineiros

    Jos Maria Whitaker Fazenda Paulistas doPD/Banqueiros

    Joaquim Francisco de AssisBrasil Agricultura

    Partido Libertadorgacho

    Francisco Campos Educao e SadePblica Intelectual mineiro

    Lindolfo Collor Trabalho, Indstria eComrcioCoordenao daRevoluo

    Juarez Tvora Viao e Obras Pblicas Cota dos tenentes

    * Primeira equipe nomeada

    Fonte: CPDOC/FGV Dicionrio Histrico-Biogrfico Brasileiro ps-1930.

    Houve, naturalmente, rotao e renovao de ministros. Em trs semanas, Juarez Tvora

  • entregou seu cargo ao escritor regionalista e engenheiro paraibano Jos Amrico de Almeida;Isaias de Noronha e Assis Brasil deixaram seus cargos para tocar outras empreitadas. Na reade Fazenda (Economia), o banqueiro paulista Jos Maria Whitaker, fundador do BancoComercial, agradava aos moderados, s financeiras e ao maior credora do Brasil, a CasaRothschild. Quando Whitaker deixou o governo em novembro de 1931, assumiu OsvaldoAranha, exministro da Justia, de estilo diplomtico (mas que nos piores momentos darevoluo acusou Getlio Vargas de ser um lder fraco). Ao fim, fixou-se por longevos onzeanos Artur de Souza Costa (1934-1945), que por sinal chefiou a delegao brasileira nasconferncias de Bretton Woods (New Hampshire, EUA), em julho de 1944. Os Acordos deBretton Woods redefiniram o gerenciamento do sistema financeiro e comercial mundial.

    Por falar em economia e finanas, a maneira como o Brasil livrou-se do fantasma da crise um dos fatores-chave para entender o aumento da credibilidade do Governo Vargas. Emcarter de urgncia, Getlio deu carta-branca para Whitaker comprar 18 milhes de sacas decaf e zelar pela estabilidade do setor cafeeiro. A essa enorme aquisio do governocondicionou-se a proibio do plantio por cinco anos; o aumento de impostos sobre a cultura ecomercializao do caf; e a novas emisses de moedas. O governo reinstaurou o monopliocambial, via Banco do Brasil, ttica adotada por Washington Luis e que havia sido suspensa.Colaborador daquele governo, Getlio nem se acanhou em recorrer s medidas do antecessor.

    No princpio de 1931, o alto-funcionrio do Banco da Inglaterra Otto Ernst Niemeyervisitou o Brasil e verificou gastos excessivos com o funcionalismo publico e receitou osremdios da estabilizao monetria e equilbrio oramentrio. Palavrrio mgico. Seguidoquase risca. Executou-se cortes em oramentos e despesas, apertou-se o controle da Uniosobre municpios gastadores. Para finalizar, em maro de 1932 Getlio renegociou a dvidaexterna, cuja moratria fora decretada no ano anterior. O terceiro funding loan previa oreparcelamento da dvida at 1934.

    Faltava resolver a questo do caf. Apesar das restries ao plantio, colheitas estavam porvir e os estoques pareciam imensos. As exportaes minguaram com aquele cenrio sombriode escassez de recursos. O que fazer? Em julho de 1931, a resposta possvel veio a tona. Ogoverno desembolsou o valor dos impostos sobre a exportao para comprar mais e maiscaf. Antes, em maio, criou o Conselho Nacional do Caf (CNC). Uma parte do produtoadquirido pelo Estado seria fisicamente queimada e aniquilada. Esse procedimento abaixava aoferta e equilibrava os preos. A eliminao do caf excedente durou at meados de 1944.12

    Outrora respondendo por 70% das exportaes do pas, o produto caf recuavapaulatinamente. Em seu lugar, entrava bonito em cena o cultivo do algodo, que partia emnavios para a Alemanha nazista do pr-Segunda Guerra Mundial (1934-39) e servia ainda dematria-prima para a crescente indstria txtil brasileira. Ficava cada vez mais claro para oGoverno Vargas que, para alterar o panorama, era necessrio investir na industria de base,fazer a substituio de importaes e diversificar a agricultura.

    Em outros campos e pastas, uma certa tendncia ao centralismo e ao autoritarismo seinsinuava. Para o ministrio da Educao e Sade Pblica, Getlio indicou o jurista FranciscoCampos, um dos artfices do pensamento nacionalista autoritrio e que viria a ser o redatorda Constituio autoritria de 1937 e do Ato Institucional que legalizou o golpe de 1964.Campos deixaria o governo em setembro de 1932, substitudo pelo mdico WashingtonFerreira Pires e, na sequncia, por um ministro-smbolo da Era Vargas, Gustavo Capanema

  • Filho. Campanema participara com Francisco Campos da algo fascista Legio de Outubro, umdos pilares intelectuais, em Minas Gerais, da revoluo de 1930.

    Francisco Campos encaminhara a expanso universitria, ditada pelo Estatuto dasUniversidades Brasileiras, de 11 de abril de 1931, e a reforma no sistema de ensino bsicobrasileiro orientado pelo Conselho Nacional de Educao (CNE). Campos baixara decretosabrangentes. Um deles, exigia de centros de ensino superior o oferecimento de trs cursos(Direito, Engenharia e Medicina), sendo um deles substituvel por uma faculdade de Cinciase Letras. O segundo regulamentava a criao da Universidade do Rio de Janeiro (URJ),rebatizada de Universidade do Brasil e, adiante, de Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ). J o ensino bsico seria dividido em ciclos: um de cinco anos, complementado pordois anos de Clssico ou Cientfico. Capanema aprofundaria essas reformas.

    O ctico Getlio Vargas aproximou-se ainda da Igreja Catlica. O mediador foi o cardealSebastio Leme da Silveira Cintra, arcebispo de Olinda e do Rio de Janeiro. Para BorisFausto, Getlio teria percebido na educao moral religiosa uma garantia simblica daordem, ao passo que a Igreja encontrou no presidente um parceiro na misso crist e pelamoral e bons costumes. O Estado permaneceria oficialmente laico, mas a Igreja recuperavaum precioso campo de influncia comportamental e de catequizao.

    Getlio desenhou sua guinada nacionalista outorgando, em 12 de dezembro de 1930, achamada Lei dos Dois Teros ou da Nacionalizao do Trabalho (n 19.482), restringindoo mercado de trabalho para estrangeiros. A construo da identidade nacional tambmestava em alta. E a legislao e organizaes sindicais, de trabalhadores, patres eprofissionais liberais, idem. Em 1931, despontava em So Paulo a Federao das Indstriasdo Estado de So Paulo (FIESP). A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) surgiu aps oDecreto 19.408, de 18 de novembro de 193013. Entidades similares surgiram em Minas, Riode Janeiro e Rio Grande do Sul. Industriais, massa trabalhadora, ideia de ptria e nao.Movimentaes em geral.

    Logo Getlio passaria a sofrer resistncias do PCB de Luis Carlos Prestes (que recebiaaporte da URSS e da Internacional Comunista) e das ressentidas elites paulistas (que searmavam para o contragolpe). Imagine, leitor, um contexto em que governos totalitriosavanavam no velho mundo europeu. Pois, bem. As ameaas ao Governo Vargas seriamcontidas com doses cavalares de centralizao, violncia e arbitrariedades.

    O MOVIMENTOCONSTITUCIONALISTA DE 1932

    A cidade de So Paulo conta com uma extensa via arterial denominada Avenida Nove deJulho. Homenagem ao dia 9 de julho de 1932, data da maior manifestao cvica da histriado estado de So Paulo: a Revoluo ou Movimento Constitucionalista de 1932. Na inscriopresente no braso da capital, o altivo Non Ducor Duco (traduo: No sou conduzido,conduzo) indica o quanto fora ferida a honra dos paulistas pela no posse de Julio Prestes. Odescontentamento com os interventores federais de Getlio em So Paulo, como o militar JooAlberto Lins de Barros, que ocupou o lugar do ento presidente do estado, Heitor Penteado,no se aquietou nem quando o Governo Vargas, em maro de 1932, oficializou comointerventor o paulista Pedro Manuel de Toledo.

  • Evidentemente, o motivo alegado para a revolta dos paulistas seria o clamor por uma novaConstituio e pela derrubada do Governo Provisrio. Os constitucionalistas do Estado deMaracaju, liderados por Vespasiano Martins (Mato Grosso), e do Rio Grande do Sul, porBertoldo Klinger, acompanhavam os paulistas nas reivindicaes. A Carta de 1891 ainda vigiae no dava conta das demandas da poca. No prspero estado de So Paulo mobilizavam-secontra o governo os decadentes cafeicultores, a classe mdia e os ascendentes industriais.

    Um cartaz da propaganda paulista bradava: Abaixo a dictadura [sic]. Na ilustrao, umsujeito vestido gacha segura um homenzinho em desespero. Ao fundo, um paulista defarda e quepe empunha o pavilho do estado.

    Mas ser que essa insurreio, de verniz genuno, pela modernizao constitucional era overdadeiro intento dos paulistas? Ser que eles no pretendiam restaurar a velha ordem? Avolta-se s diatribes do PCB e a anlise de Edgar de Decca: tratava-se de uma guerra intra-elites. Getlio Vargas extrapolara nas intervenes, trazia tudo em rdeas curtas. E JuarezTvora, veterano de contendas tenentistas, acomodou-se no eixo Norte-Nordeste e lambuzou-se no melado do poder. Foi jocosamente apelidado de vice-rei do Norte.

    Duas aes significativas possibilitaram a Revoluo Constitucionalista. Em fevereiro de1932, o Partido Republicano Paulista e o Partido Democrtico superaram o estranhamentohistrico e acertaram uma aliana momentnea. E, em 23 de maio, cinco jovens foramassassinados no centro de So Paulo por partidrios da Legio Revolucionria, grupomancomunado com Getlio Vargas e liderado por Joo Alberto. Morreram Mrio Martins deAlmeida, Euclides Bueno Miragaia, Drusio Marcondes de Sousa, Antonio Americo deCamargo Andrade e o eventualmente citado Orlando de Oliveira Alvarenga.

    As presses eclodiram e o interventor do estado, Pedro de Toledo, rompeu relaes com ogoverno federal. De um movimento poltico-intelectual armou-se a guerra civil. Sob a siglaMMDC iniciais de Martins, Miragaia, Drusio e Camargo , foras pblicas e paramilitaresorganizaram-se na capital, litoral e interior. Curiosamente, Getlio j havia convocadoeleies para a Assembleia Nacional Constituinte. Mas isso no mais bastava. Comandadospor Pedro de Toledo, a Junta Revolucionria, composta por Francisco Morato (PD), Antniode Pdua Sales (PRP) e pelos militares Isidoro Dias Lopes, Bertoldo Klinger e EuclidesFigueiredo arregimentou 60 mil combatentes e 200 mil voluntrios.

    A 9 de julho de 1932, sinal verde para a Revoluo Constitucionalista.Os paulistas redimensionaram mal o apoio. As tropas mineiras e gachas no aderiram

    como o esperado. E a marcha do Vale do Paraba ao Catete que, no papel, parecia triunfal,teve de estacionar em frentes desarticuladas: Vale do Paraba (Lorena e Cruzeiro), SulPaulista (Itarar), Centro Paulista (Botucatu), Leste Paulista (Cunha) e Sul do Mato Grosso.Cercados pelo Exrcito, sem condies de adquirir mais armas, os paulistas convocaramengenheiros da Escola Politcnica para desenvolver novos armamentos.

    Em Cunha, os militares getulistas mataram o agricultor Paulo Virgnio, pois este se recusaraa informar a localizao das trincheiras dos paulistas. Os restos mortais de Virgnio estoenterrados, junto com os rapazes do MMDC, no Mausolu do Ibirapuera. A resistnciapaulista foi minada pouco a pouco. Tropas federais tomaram o porto de Santos e asfixiaram aeconomia do Estado. A desvantagem era clamorosa. Em 2 de outubro de 1932, ocorreu arendio dos militantes e lideranas paulistas para Gis Monteiro. Estima-se em mais de mil onmero de mortos. Como no existe uma estatstica clara, a contagem pode ser maior ou

  • menor. De todo modo, no houve, no sculo XX, outra conflagrao desse porte no Brasil.Vitorioso, Getlio Vargas demonstrou capacidade de centralizao e comando, apesar de

    abalar o mito de semeador da concrdia. Teve, no entanto, a sagacidade de hastear abandeira da paz ao nomear um interventor da elite paulista, o engenheiro civil Armando deSalles Oliveira, casado com Raquel de Mesquita, filha do fundador de O Estado de S.Paulo,Jlio de Mesquita. Aos paulistas, serviu o consolo de abrir-se para um processo demodernizao industrial e formao de quadros tcnicos estaduais, com a inaugurao deinstituies como a Escola Livre de Sociologia e Poltica de So Paulo (ELSP), em 1933, e aUniversidade de So Paulo (USP), em 1934.

    Quanto a Constituio de 1934, os getulistas diro que ela estava em gestao antes de 1932e os antigetulistas paulistas vo retrucar o contrrio. Poltica e paixo.

    A CONSTITUIO DE 1934 E A ELEIO (INDIRETA)Em maio de 1933 foram promovidas eleies para a Assembleia Nacional Constituinte. Os

    214 parlamentares e 40 delegados sindicais e classistas (estes cooptados por Getlio)seriam responsveis por debater, votar e elaborar a nova Constituio do Brasil. AAssembleia iniciou seus trabalhos em novembro. O contedo dessa Constituio deveriaapreender e responder as mudanas polticas, institucionais, econmicas, sociais e atculturais pelas quais atravessou o pas desde a formulao da Carta de 1891: o progressivodeclnio da economia cafeeira, a alvorada da industrializao, a ascenso das classes mdias,o aumento do contingente de trabalhadores fabris e da populao urbana.

    Promulgada em 16 de julho de 1934, a Constituio brasileira sacramentava resoluesanteriores dos primeiros anos de Governo Vargas. Entre elas, a progressista (para os padresda poca) Lei Eleitoral de 1932, que introduziu o voto feminino e o direito ao voto a partirdos 18 anos. Alm disso, a Carta de 1934 determinava:

    1. Voto secreto;2. Criao da Justia Eleitoral e Justia do Trabalho;3. A nacionalizao dos recursos naturais e de instituies financeiras, alm de prever um

    percentual mnimo de funcionrios brasileiros em empresas estrangeiras no Brasil;4. Proibia o trabalho infantil e as discrepncias de salrios por conta de sexo, cor, religio,

    nacionalidade, idade etc;5. Lanava propostas de regulamentao do trabalho fabril e rural.

    O texto final da Constituio de 1934 mostrou-se, enfim, um emaranhado de artigos deinspirao iluminista e democrtica (direitos civis e sociais) e passagens de apelo fascista eexageradamente protecionista (nacionalismo, corporativismo, brechas autoritrias). Aquelalegislao poltico-institucional atendia aos interesses de tenentistas, dos adversriospaulistas e de grupos de presso nacionalistas personificados nos integralistas14.

    Seria, porm, uma Constituio de existncia efmera. Cairia em 1937.Aproveitando o ensejo, no dia seguinte a Assembleia realizou eleies indiretas para

    presidente. Concorriam Getlio Vargas, Borges de Medeiros e Gis de Monteiro. No placarparlamentar, deu Getlio de lavada: 175 a 71. Parte da bancada paulista ignorou a resoluo

  • do interventor Armando de Sales Oliveira e votou em Borges de Medeiros - as rusgas nodesapareceriam assim, do dia para noite. Nem as lutas polticas arrefeceriam com canetadas:esquerda e direita se organizavam nas extremas. Aqui e l fora.

    INTENTONA COMUNISTA + PLANO COHEN + POLACA= ESTADO NOVO

    Democracia duvidosa. A Constituio Federal de 1934 desconsiderava, por exemplo, aexistncia do cargo de vicepresidente da Repblica. Num giro por naes do Cone Sul(Uruguai e Argentina), Getlio Vargas passou o cargo interinamente para o presidente daCmara dos Deputados, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada. Getlio s fazia acumular,concentrar e centralizar poder desde 20 de julho, quando tomou formalmente posse para, emprincpio, mais quatro anos de mandato. Dia aps dia, ms aps ms, decretava medidasautoritrias e dilatava o alcance dos aparelhos burocrticos de censura e policiais derepresso s vozes dissonantes e organizaes de oposio.

    Naqueles turbulentos idos, a polarizao esquerda x direita exaltava os nimosbeligerantes. Na ponta direita, a Ao Integralista Brasileira (AIB), de Plinio Salgado,variante fascista brasileira. Na esquerda, a Aliana Nacional Libertadora (ANL)15, com LuisCarlos Prestes e sua trupe comunista bancada pelos soviticos.

    Esse crescimento de burburinhos e atividades subversivas e radicais incomodava e, nocaso da ameaa comunista, apavorava o Governo Vargas, o Clube Militar, os empresrios,polticos e pensadores de direita. No curtssimo espao de quatro meses Getlio baixou trsleis que apertavam o cerco poltico e ampliavam os meios de comunicao estatal. Em 4 deabril de 1935, a Lei de Segurana Nacional (n 38) passava a restringir as atividadessubversivas. Em 13 de julho, acertou o alvo ao fechar a ANL e prender alguns de seuspartidrios. E no dia 22 de julho entrava no ar, em cadeia nacional, o programa de rdio AHora do Brasil (hoje, Voz do Brasil), um instrumento de propaganda do Estadofundamental numa era pr-TV, que s aportaria no Brasil em 1950.

    O PCB, a ANL e seus braos militares reagiram no final de novembro de 1935. Havia naInternacional Comunista a expectativa de que a revoluo popular marxista-leninista fossevivel no Brasil. Relatrios de Caetano Machado, Fernando Lacerda e do secretrio-geral doPCB, Antonio Maciel Bonfim apresentados no Congresso de Moscou, em agosto de 1935,carregavam no otimismo16. A Intentona Comunista ou Levante Vermelho estourou em vriascidades brasileiras, com especial vigor em Recife (25/11), Natal (23 e 25/11) e Rio deJaneiro (27/11), com adeso parcial nes