doenças transmissíveis na faixa de fronteira amazônica: o caso da malária. · vida de sua...

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1 Doenças transmissíveis na Faixa de Fronteira Amazônica: o caso da malária. Paulo Peiter O estudo da distribuição espacial de doenças (nosogeografia) é um dos mais tradicionais da geografia da saúde. Tem como um de seus objetivos comparar as incidências de uma doença em diferentes unidades geográficas (países, estados, províncias ou municípios, dependendo do nível da análise adotado). Mais raros são os estudos nosogeográficos que tratam de zonas de fronteira entre países. Estas zonas contêm o limite político internacional, e caracterizam-se freqüentemente por intensos fluxos populacionais transfronteiriços, situação que gera um ambiente peculiar, com efeitos sobre a incidência de doenças e o atendimento à saúde. O propósito deste trabalho é analisar os efeitos do limite internacional na incidência de malária na Faixa de Fronteira internacional do Brasil no período 1999- 2001. 1 A Fronteira Internacional e a Geografia da Saúde A Geografia vem tradicionalmente se debruçando sobre o tema dos limites e fronteiras e boas revisões sobre o tema foram realizadas por Jones (1959); Prescott (1987); Foucher (1986; 1991); Newman & Paasi (1998); Steiman e Machado (2002). Entretanto, são escassos os estudos sobre os efeitos da fronteira na saúde nesta área do conhecimento. Nas ciências da saúde o quadro é diferente. Um levantamento bibliográfico de artigos publicados entre 1970 e 2001 em periódicos da área da saúde, relacionou mais de 2.000 referências sobre temas relacionados a limites, fronteiras e saúde. 2 É importante chamar a atenção para o fato de que a noção de fronteira comporta dois significados bem distintos. A fronteira pode ser compreendida como a margem do mundo habitado (significado mais antigo), que originou a concepção da fronteira como área de expansão da ocupação em direção a territórios “vazios” ou “a conquistar”, ou frente pioneira, muito influente na geografia (em particular na geografia brasileira com os trabalhos de Bertha Becker). Indubitavelmente, a obra seminal sobre fronteiras de expansão é a do historiador norte-americano F.J. Turner, dedicada ao 1 Este artigo foi baseado na tese de doutorado, "A Geografia da Saúde na Faixa de Fronteira Continental do Brasil na Passagem do Milênio" de P. C. Peiter, PPGG/UFRJ, julho de 2005. 2 No sistema de recuperação bibliográfica PUBMED, disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed> . Acesso em: 05 jun. 2002.

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Doenças transmissíveis na Faixa de Fronteira Amazônica: o caso da malária.

Paulo Peiter

O estudo da distribuição espacial de doenças (nosogeografia) é um dos mais

tradicionais da geografia da saúde. Tem como um de seus objetivos comparar as

incidências de uma doença em diferentes unidades geográficas (países, estados,

províncias ou municípios, dependendo do nível da análise adotado).

Mais raros são os estudos nosogeográficos que tratam de zonas de fronteira

entre países. Estas zonas contêm o limite político internacional, e caracterizam-se

freqüentemente por intensos fluxos populacionais transfronteiriços, situação que gera

um ambiente peculiar, com efeitos sobre a incidência de doenças e o atendimento à

saúde.

O propósito deste trabalho é analisar os efeitos do limite internacional na

incidência de malária na Faixa de Fronteira internacional do Brasil no período 1999-

2001. 1

A Fronteira Internacional e a Geografia da Saúde

A Geografia vem tradicionalmente se debruçando sobre o tema dos limites e

fronteiras e boas revisões sobre o tema foram realizadas por Jones (1959); Prescott

(1987); Foucher (1986; 1991); Newman & Paasi (1998); Steiman e Machado (2002).

Entretanto, são escassos os estudos sobre os efeitos da fronteira na saúde nesta área

do conhecimento. Nas ciências da saúde o quadro é diferente. Um levantamento

bibliográfico de artigos publicados entre 1970 e 2001 em periódicos da área da saúde,

relacionou mais de 2.000 referências sobre temas relacionados a limites, fronteiras e

saúde. 2

É importante chamar a atenção para o fato de que a noção de fronteira

comporta dois significados bem distintos. A fronteira pode ser compreendida como a

margem do mundo habitado (significado mais antigo), que originou a concepção da

fronteira como área de expansão da ocupação em direção a territórios “vazios” ou “a

conquistar”, ou frente pioneira, muito influente na geografia (em particular na geografia

brasileira com os trabalhos de Bertha Becker). Indubitavelmente, a obra seminal sobre

fronteiras de expansão é a do historiador norte-americano F.J. Turner, dedicada ao

1 Este artigo foi baseado na tese de doutorado, "A Geografia da Saúde na Faixa de Fronteira Continental do Brasil na Passagem do Milênio" de P. C. Peiter, PPGG/UFRJ, julho de 2005. 2No sistema de recuperação bibliográfica PUBMED, disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed>. Acesso em: 05 jun. 2002.

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avanço da fronteira americana no processo de conquista do Oeste nos Estados

Unidos (1893) 3. A fronteira também pode ser concebida como espaço associado à

linha de divisa internacional. Esta concepção está vinculada à emergência dos estados

nacionais no século XVIII e o processo de colonização do século XIX. Infelizmente,

estas duas formas de entender a fronteira acabaram por se confundir, sendo usada na

maioria das vezes indistintamente (Machado, 2000).

Neste artigo trataremos da fronteira relacionada ao limite político internacional

(a Faixa de Fronteira e a Zona de Fronteira). Ela é uma região que apresenta

particularidades que devem ser compreendidas, pois o limite cria sua própria e distinta

região (Borderland ou zona de fronteira), tornando um elemento de divisão também o

veículo para a definição regional (Prescott, 1987 e Rumley & Minghi, 1991). Já dizia

Whittlesey (1935) que as “paisagens fronteiriças” são áreas singulares, onde existem

“objetos” característicos de fronteira como os fortes, os quartéis, as aduanas, os

postos de fiscalização, etc. Como lugar, a fronteira é o envoltório de um conjunto de

instituições, práticas, sujeitos e modos de vida que se dão ali e não em outro lugar

(Zusman, 2000). Marcadas por uma dualidade intrínseca, as fronteiras atraem e

repelem, são zonas de contato, mas também, de separação.

O papel do limite internacional e das zonas de fronteira nos diversos países

varia no tempo e no espaço. Pode representar tanto o lugar de divisão/separação

quanto de contato/integração. O atual processo de globalização econômica tem

gerado uma tendência de valorização da fronteira como lugar de integração, apesar de

não ser um fenômeno generalizável a toda fronteira (na verdade trata-se de um

processo muito seletivo).

No campo da saúde, a epidemia de AIDS, surgida no início dos anos 1980, que

rapidamente transformou-se em pandemia, reacendeu a discussão sobre a eficácia

dos mecanismos de controle de doenças nas fronteiras internacionais, levando muitos

autores a afirmarem que não existem fronteiras para as doenças transmissíveis

(Farmer, 1996), ainda que reconheçam a existência de um “efeito fronteira” nos

processos de difusão de doenças. Muitos autores consideram as populações

fronteiriças mais vulneráveis à inúmeros agravos como a AIDS (Porter e Bennoun,

1997; Guest, 2000), como colocado em recente estudo sobre a epidemia da AIDS na

fronteira do Brasil:

“As fronteiras têm se transformado em pontos críticos de intercâmbio de mercadorias e de grande movimentação de pessoas, que as cruzam para se estabelecerem na região ou são itinerantes, que se deslocam de uma região para outra do país por períodos curtos. Por oferecerem muitas oportunidades

3 Frederick Jackson Turner. The Significance of the Frontier in American History. New York: Frederick Ungar Publishing Co., 1963. Primeira Edição do texto de Turner, 1893.

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de contato entre indivíduos de variada origem, criam-se novas redes econômicas, sociais e sexuais, nas quais as pessoas, frequentemente, mudam radicalmente de comportamentos” (MS, 2003, p.15).

Também, vários artigos foram publicados tratando da malária em áreas de

fronteira (diferente do que se conhece como malária de fronteira, que é entendida

como malária de áreas de frente pioneira), uma preocupação muito presente nos

países onde é endêmica (Raccurt, 1997; Mouchet et al., 1989; Wernsdorfer et al.,

1994; Kidson e Indaratna, 1998; Xu e Liu, 1997; Hu et al., 1998).

De modo geral, três temas se destacam nos estudos de saúde em áreas de

fronteira internacional: a difusão de doenças transmissíveis, a vigilância em saúde e o

atendimento à saúde em áreas de fronteira. Nestes estudos é preciso considerar

quatro aspectos principais: a) a tipologia e dinâmica da ocupação dos espaços de

fronteira; b) o povoamento e a mobilidade (transfronteiriça, intra e inter-regional); c) a

composição das populações fronteiriças e d) a tipologia das interações

transfronteiriças. São estes os aspectos analisados no estudo de caso da malária na

Faixa de Fronteira Continental do Brasil apresentado a seguir.

A Malária na Faixa de Fronteira Internacional do Brasil

A Faixa de Fronteira interna do Brasil (FF) com os países vizinhos foi

estabelecida em 150 km de largura (Lei 6.634, de 2/5/1979), paralela à linha divisória

terrestre do território nacional. É uma região contínua com mais de 15 mil quilômetros

de extensão, uma área de cerca de 2.357.850 km2 (27,6% do território nacional), e

uma população de 9.855.132 habitantes (6% da população brasileira). Possui três

capitais estaduais (Boa Vista-RR, Rio Branco-AC e Porto Velho-RO) todas situadas no

segmento Amazônico da Fronteira, além de 27 pares de cidades (cidades gêmeas)

onde é maior integração das populações fronteiriças.

Apesar de ser uma área contínua são grandes as diferenças entre os diversos

segmentos da FF, o que torna necessário a sua regionalização para a análise da

diferenciação espacial do processo saúde-doença.

Neste sentido, adotou-se a regionalização concebida pelo Grupo RETIS

(UFRJ) para o Ministério da Integração Nacional (MI/Grupo RETIS, 2005), que divide a

FF em três grandes Arcos (Norte, Central e Sul) e 19 sub-regiões (Mapa 1)4.

A transmissão natural da malária no período 1999-2001 restringiu-se ao

segmento do Arco Norte e parte do Arco Central onde se encontram os municípios da

Bacia Amazônica. Nos demais segmentos da fronteira, a ocorrência de casos é

4 Esta regionalização teve como critérios aspectos demográficos, sócio-econômicos e culturais.

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eventual e em geral corresponde a pessoas que estiveram nas áreas endêmicas da

Amazônia (casos importados). 5

Mapa 1 - Regionalização da Faixa de Fronteira - Arcos e Sub-regiões.

No período de 1999 a 2001 apenas 190 municípios da fronteira (33% do total

da Faixa) registraram casos de malária. Destes, somente 82 tiveram Índice Parasitário

Anual (IPA) igual ou superior a 2 casos por mil habitantes, todos situados no Arco

Norte e FF de Rondônia, um segmento que vai desde a sub-região Oiapoque-

Tumucumque (1) até a sub-região Fronteira do Guaporé (8).

Este extenso segmento da fronteira caracteriza-se do ponto de vista

populacional pela significativa presença de populações tradicionais (indígenas e 5 O que não é surpreendente dado o número de migrantes sulinos na Amazônia.

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ribeirinhos), baixa densidade populacional, elevada migração e condições de vida

precárias. Do ponto de vista do acesso à saúde destacam-se os problemas

acarretados pela falta de profissionais de saúde qualificados (principalmente médicos

e enfermeiros) e as grandes dificuldades de acesso das populações regionais aos

serviços de saúde, exceto nas capitais estaduais aí situadas.

Esta situação se reflete nos indicadores de situação de saúde, como o

coeficiente de mortalidade infantil, muito elevado na região, e na menor esperança de

vida de sua população se comparada como as demais regiões brasileiras e mesmo de

outros segmentos da FF (Gráficos 1 e 2).

Gráfico 1 – Faixa de Fronteira (Brasil): Mortalidade Infantil por Sub-região,

1998.

Arco Norte Arco Central Arco Sul

Fonte: IPEA, 2003; IBGE, 2001.

Gráfico 2 – Faixa de Fronteira (Brasil): Esperança de vida ao nascer por

Sub-região, 2000.

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N. da Sub-região

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de mortalidad

e Infantil

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Arco Norte Arco Central Arco Sul

Fonte: IPEA, 2003; IBGE, 2001.

A permeabilidade ao longo deste segmento da fronteira varia muito. Existem

longos trechos da fronteira onde o escasso povoamento e a inacessibilidade dificultam

os contatos transfronteiriços. Em outros trechos, é grande a interação transfronteiriça,

principalmente naqueles onde existem cidades gêmeas. São exemplos: Oiapoque

(AP)-Saint-Georges (GF), Pacaraima (RR)-Santa Elena de Uairén (VZ), Bonfim (RR)-

Lethem (GY), entre outras. Para a descrição e caracterização da permeabilidade da

fronteira utilizou-se o modelo das interações transfronteiriças proposto por A.Cuisinier-

Raynal (2001) para a fronteira peruana e adaptado para a fronteira brasileira por

Machado (2005)6.

Segundo este modelo a permeabilidade da fronteira pode ser descrita pela

tipologia das interações transfronteiriças predominante em cada trecho da fronteira. No

Arco Norte predominam as “zonas-tampão”, que são áreas de acesso restrito, em

geral unidades de conservação e reservas indígenas. Mas existem também algumas

cidades gêmeas que são lugares onde são desenvolvidas intensas interações

transfronteiriças e, por isso, nelas dominam as interações de tipo capilar e sinapticas

(Machado, 2005).

Para compreender a difusão da malária na fronteira é preciso ainda considerar

a acessibilidade aos municípios da Faixa, fator que influi também no atendimento e

controle da doença. A acessibilidade também varia muito ao longo do Arco Norte.

Extensas áreas deste Arco só podem ser alcançadas por rios ou por avião. Muitas

aldeias Yanomâmis da sub-região Parima-Alto Rio Negro só são alcançáveis por meio

de picas na mata, ou por helicóptero. Em contrapartida, vários municípios das sub-

regiões dos Campos do Rio Branco e do Vale do Acre-Purus possuem estradas

asfaltadas (Mapa 2)7.

6 Segundo esta tipologia as interações transfronteiriças podem ser definidas em cinco categorias: a) margem; b) zona-tampão; c) frente; d) capilar; e) sinapse. 7 O indicador utilizado de acessibilidade foi construído com a combinação das seguintes variáveis: no de rodovias, ferrovias e hidrovias que atravessam o município; no de portos (fluviais e marítimos); no de

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Mapa 2 – Faixa de Fronteira – Arco Norte (Brasil): Acessibilidade

Municipal.

Todos estes aspectos influenciaram a distribuição da malária na FF, que se

mostrou altamente concentrada em apenas 40 municípios (7% da FF), com IPA igual

ou superior a 50 (Mapa 3). Estes foram responsáveis por 69,6% dos casos totais

ocorridos no período 1999-2001.

Na tabela 1, pode-se observar a concentração de casos em cada segmento da

fronteira amazônica (Arco Norte e Rondônia) segundo a unidade da federação. A

malária atingiu mais amplamente os estados do Amapá e Pará (99,2 e 98,3% dos

municípios), enquanto que no Acre e em Rondônia os casos se concentraram em

número menor de municípios (61,9 e 51,2% dos municípios).

Tabela 1 - Faixa de Fronteira: Distribuição dos casos de malária acumulados no

período 1999-2001 nas unidades da federação do Arco Norte e Rondônia e nos

municípios com IPA elevado.

aeroportos (regionais, nacionais e internacionais) e custo médio do transporte da capital estadual mais próxima à sede municipal (Peiter, 2005).

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Número de casos UF total Municípios com

elevada incidência*

% do total

AP 22.179 22.002 99,2 PA 28.782 28.291 98,3 RR 88.161 67.393 76,4 AM 56.442 40.628 72,0 AC 53.064 32.836 61,9 RO 97.526 49.889 51,2

Total FN** 346.154 208.203 60,2 *Foram considerados municípios com incidência de malária elevada aqueles que apresentaram IPA 99-01 maior ou igual a 50. ** FN = Fronteira Norte (Arco Norte e Rondônia). Fonte: SISMAL, 2002.

As sub-regiões Oiapoque-Tumucumaque (AP, PA, RR), Campos do Rio Branco

(RR), Parima-Alto Rio Negro (RR e AM) e Madeira-Mamoré (RO) foram as de maior

incidência de malária no período analisado (Tabela 2 e Mapa 3).

Tabela 2 - Faixa de Fronteira Norte (Brasil): Incidência de Malária por Sub-região,

1999-2001.

Sub-Região População 2000 Casos de Malária (1999-2001)

IPA (1999-2001)

1 - Oiapoque-Tumucumaque 298.676 53.760 59,97 2 - Campos do Rio Branco 280.057 67.531 80,38 3 - Parima-Alto Rio Negro 102.198 32.820 107,05 4 - Alto Solimões 171.752 19.404 37,66 5 - Alto Juruá 214.943 29.870 46,32 6 - Vale do Acre - Alto Purus 478.312 45.243 31,53 7 - Madeira - Mamoré 424.152 90.103 70,81 8 - Fronteira do Guaporé 231.128 6.989 10,08 Fonte: SISMAL, 2003.

Mapa 3 - Arco da Malária: Incidência de Malária na Zona de Fronteira (Brasil e

países vizinhos), 1999-2001.

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A situação mais crítica ocorreu na sub-região Parima-Alto Rio Negro onde o

IPA alcançou 107,05. A elevada mobilidade transfronteiriça dos indígenas da fronteira

Brasil/Venezuela, a dificuldade de acesso à região pelas equipes de controle da

malária e a persistente incursão de garimpeiros dificultam as ações de controle da

doença.

A segunda sub-região de maior incidência de malária na FF brasileira é a

região dos Campos do Rio Branco (RR), onde o IPA alcançou 80,38. A grande

mobilidade populacional (migrantes e populações flutuantes de garimpeiros e

indígenas), e a existência de vários assentamentos rurais criados ao longo das

décadas de 1980 e 1990 destacam-se entre seus possíveis determinantes.

A maior conectividade desta região proporcionada por uma razoável rede viária

(das mais desenvolvidas da FF Amazônica e conectada às redes venezuelana e

guianense) potencializou os contatos entre as populações regionais, a sua ocupação

desordenada e o desmatamento, com graves efeitos na dinâmica da transmissão da

malária.

A terceira sub-região em incidência de malária na Faixa de Fronteira

Amazônica foi a Madeira-Mamoré (RO) que teve um IPA de 70,81. Do mesmo modo

que na sub-região Campos do Rio Branco, a grande migração e a instalação de

inúmeros assentamentos rurais nas últimas décadas contribuíram para a elevada

incidência registrada. A maior conectividade da região também facilitou o processo

migratório e a ocupação das terras com o desmatamento de grandes áreas de floresta.

O contato entre madeireiros, garimpeiros, migrantes e indígenas, todos altamente

vulneráveis à malária, acentuou a transmissão.

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Por fim, destaca-se a sub-região Oiapoque-Tumucumaque. Situada no extremo

norte da FF, apresentou elevada incidência da doença, com IPA de 59,97. Nesta sub-

região foram determinantes para a elevada transmissão da malária: a forte presença

indígena, a elevada mobilidade populacional (migração e populações flutuantes

principalmente de garimpeiros), as interações transfronteiriças com a Guiana Francesa

(país com elevada incidência de malária) e a predominância das atividades

extrativistas (mineral e vegetal).

A análise da distribuição da incidência de malária na escala micro-regional,

tendo os municípios como unidade de análise, permitiu a identificação de pelo menos

seis áreas de incidência muito elevada na FF Amazônica (municípios com IPA acima

de 100) (Mapa 4). Ressalta-se que em sua maior parte localizam-se em áreas rurais.

Cada uma destas áreas apresenta características e determinantes próprios (ou

diferentes combinações de determinantes), permitindo uma classificação preliminar.

Nas áreas do tipo (A) os principais determinantes foram os mesmos que operam na

escala macro-regional: a presença significativa de populações indígenas, de garimpos,

a elevada mobilidade populacional transfronteiriça e a migração (Mapa 4). São

exemplos as áreas da fronteira do Amapá com a Guiana Francesa, que englobam os

municípios de Oiapoque, Calçoene, Serra do Navio, Pedra Branca do Amapari e

Ferreira Gomes; e na fronteira de Roraima (municípios de Alto Alegre, Amajari e

Mucajaí).

As áreas de tipo (B) podem ser atribuídas à implantação de assentamentos

rurais, exploração madeireira intensiva e elevada mobilidade populacional (migrantes e

populações flutuantes). São exemplos as áreas que englobam os municípios de

Cantá, Caracaraí e Rorainópolis (RR), e a área que engloba os municípios de Campo

Novo de Rondônia e Buritis (RO).

A área de tipo (C) é um caso particular do município de Santa Isabel do Rio

Negro (AM), onde o esgotamento da piaçava, principal base da economia regional,

levou a população a migrar para as cidades facilitando a transmissão da malária

(urbana).

Por fim, a área de tipo (D) está relacionada a combinação da exploração

madeireira pouco controlada (em ambos os lados da fronteira) e a presença de

populações indígenas relativamente isoladas. Este foi o caso de Atalaia do Norte,

município que teve a maior incidência de malária no Alto Solimões (AM).

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Mapa 4 - Faixa de Fronteira (Arco Norte e Rondônia): Incidência de Malária por

Município, 1999-2001.

Considerações finais

Sem dúvida, as maiores taxas de incidência de malária na Faixa de Fronteira

Amazônica ocorrem em áreas onde o ambiente é altamente propício à proliferação e

circulação de vetores (principalmente anofelinos), mas só o fator ambiental não seria

capaz de explicar a variabilidade da distribuição espacial da malária na região. É

preciso compreender outros elementos da dinâmica regional, como a dinâmica do

povoamento, o tipo de atividade econômica, e a mobilidade populacional regional e

transfronteiriça.

Foram determinantes para a transmissão da malária na região não só a

elevada receptividade do ambiente natural e construído, mas também a elevada

vulnerabilidade social das populações aí presentes. Esta vulnerabilidade é acrescida

pela significativa presença de migrantes e de novos assentamentos rurais, de grupos

populacionais de alta mobilidade como os garimpeiros e madeireiros em freqüente

contato com populações autóctones (indígenas e ribeirinhos) e a elevada mobilidade

transfronteiriça (de garimpeiros, madeireiros e indígenas) em diversas áreas da

fronteira dificultam o controle de doenças como a malária.

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Apesar da malária ter atingido principalmente as áreas rurais da Faixa de

Fronteira, cabe ressaltar a grave situação de inúmeros municípios da Faixa de

Fronteira Amazônica, que vivem um processo de urbanização da pobreza, ou seja,

afluxo de população pobre para as pequenas cidades da região, que pode ter como

conseqüência a “urbanização” da malária na região, haja visto que estas cidades

possuem sistemas de saúde altamente carentes em e infra-estrutura, recursos

humanos e equipamentos, e o atendimento de maior complexidade encontra-se à dias

de distância.

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