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Fabiano Aguilar Satler “TODOS VOCÊS SÃO IRMÃOS” A DIMENSÃO DA LAICIDADE DA VIDA RELIGIOSA CONSAGRADA MASCULINA Dissertação de Mestrado em Teologia Orientador: Prof. Jaldemir Vitório Coorientador: Prof. Geraldo Luiz De Mori Apoio PAPG-FAPEMIG BELO HORIZONTE FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2013

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  • Fabiano Aguilar Satler

    TODOS VOCS SO IRMOS A DIMENSO DA LAICIDADE DA

    VIDA RELIGIOSA CONSAGRADA MASCULINA

    Dissertao de Mestrado em Teologia

    Orientador: Prof. Jaldemir Vitrio Coorientador: Prof. Geraldo Luiz De Mori

    Apoio PAPG-FAPEMIG

    BELO HORIZONTE

    FAJE - Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia 2013

  • Fabiano Aguilar Satler

    TODOS VOCS SO IRMOS A DIMENSO DA LAICIDADE DA

    VIDA RELIGIOSA CONSAGRADA MASCULINA

    Dissertao apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia, como requisio parcial obteno do ttulo de Mestre em Teologia. rea de concentrao: Teologia da Prxis Crist Orientador: Prof. Jaldemir Vitrio Coorientador: Prof. Geraldo Luiz De Mori

    Apoio PAPG-FAPEMIG

    BELO HORIZONTE

    FAJE - Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia 2013

  • S253t

    Satler, Fabiano Aguilar Todos vocs so irmos: a dimenso da laicidade da Vida Religiosa Consagrada masculina / Fabiano Aguilar Satler. - Belo Horizonte, 2013. 135 p. Orientador: Prof. Dr. Jaldemir Vitrio Coorientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori Dissertao (mestrado) Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia, Departamento de Teologia.

    1. Irmo leigo. 2. Religioso irmo. 3. Institutos Religiosos de Irmos. I. Vitrio, Jaldemir. II. De Mori, Geraldo Luiz. III. Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia. Departamento de Teologia. IV. Ttulo CDU 261.75

  • Em memria de

    Fr. Antnio da Silva Rocha, ofm (1906 2007),

    primeiro irmo leigo brasileiro da Provncia Santa Cruz da

    Ordem dos Frades Menores,

    a quem se aplica com perfeio o louvor de Jesus:

    Eu te louvo, Pai, Senhor do cu e da terra,

    porque escondeste essas coisas aos sbios e inteligentes,

    e as revelaste aos pequeninos. (Mt 11,25)

  • Agradecimento

    Aos meus pais, Edson e Anamaria (2013),

    cuja labuta atrs de um balco de armazm de interior

    possibilitou o ensino universitrio aos seus cinco filhos.

    Aos meus confrades da Provncia Santa Cruz, da Ordem dos Frades Menores,

    com quem eu procuro viver, primariamente, a fraternidade que tanto defendo.

    De um modo especial, ao irmo com quem eu tenho trabalhado estreitamente junto

    nos ltimos seis anos: fr. Francisco Carvalho Neto.

    Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia,

    particularmente ao Pe. Jaldemir Vitrio,

    que me proporcionou algumas intuies presentes nesta pesquisa,

    e ao Pe. Geraldo De Mori, pela sua ajuda fraterna e pacincia na fase final.

    Ao Irmo Afonso Murad, juntamente com Frater Henrique Cristiano Jos Matos,

    naquilo de mais evanglico que eu posso afirmar em relao a eles: so meus irmos.

    Aos irmos e irms nas salas de aula da Faje.

  • Quanto a vocs, nunca se deixem chamar mestre,

    pois um s o Mestre de vocs,

    e todos vocs so irmos.

    (Mt 23,8)

  • RESUMO Este trabalho tem como objetivo identificar aspectos teolgicos e histricos que permitam o resgate da dimenso da laicidade da Vida Religiosa Consagrada, estabelecendo elementos bblicos, cristolgicos e eclesiolgicos para a vocao do irmo leigo. Buscou-se atingir esse objetivo por meio da identificao de elementos na prxis e no ensinamento de Jesus que fundamentam a vocao do irmo leigo. Da identificao de elementos bblicos e cristolgicos, passou-se para a identificao de elementos histricos e eclesiolgicos que possibilitam a compreenso do processo de transio de uma Igreja que se compreendia como uma nica fraternidade para uma Igreja organizada como um corpo bipartido entre clrigos e leigos e a reproduo, na Vida Religiosa Consagrada masculina, dessa bipolaridade. A partir do Conclio Ecumnico Vaticano II, foi possvel elencar elementos teolgicos e eclesiolgicos relacionados com a Vida Religiosa Consagrada masculina laical e elementos para a compreenso de alguns desafios particulares dessa forma de vida na Igreja. Esse itinerrio de trabalho foi feito recorrendo-se pesquisa da literatura disponvel, anlise teolgica e histrica das informaes disponveis, anlise lingustica de termos e anlise estatstica de algumas informaes. A pesquisa conclui afirmando elementos de identidade e de alteridade dos irmos leigos com os fiis leigos em geral e aponta um dos principais entraves compreenso e valorizao dessa vocao na Igreja: a presena de uma eclesiologia ainda centrada no clero e na hierarquia, que provoca prejuzos para a vida e misso dos demais atores na Igreja, irmos leigos inclusive. Palavras-chave: irmo leigo, religioso irmo, Institutos Religiosos de Irmos.

    ABSTRACT

    The objective of this paper is to identify theological and historical elements that will allow the retrieval of the lay dimension of Consecrated Religious Life, providing biblical, Christological and ecclesiological foundations for the vocation of the lay brother. This objective has been pursued by identifying aspects of the praxis and teaching of Jesus which underlie the vocation of the lay brother. Having identified biblical and Christological elements, the paper then turns to historical and ecclesiological elements. They allow an understanding of the process of transition from a church that saw itself as a single fraternity, to one that became divided in two segments, between clergy and laity. This bipolarity was reproduced in mens Consecrated Religious Life. Beginning with Vatican Council II, there was a development of theological and ecclesiological elements related to mens lay Consecrated Religious Life, along with a development of elements that helped understand the specific challenges of this form of life in the Church. This paper is based on research of available literature, the linguistic analysis of the terms involved and the statistical analysis of some of the data. The conclusion of the research affirms elements of identity and diverseness of lay brothers in regard to the lay faithful in general. It also points out that one of the principal obstacles to understanding and valorizing this vocation in the Church is the continued use of an ecclesiology centered on the clergy and the hierarchy, which is prejudicial to the life and ministry of other actors in the Church, including the lay brothers. Key words: lay brother, religious brother, Religious Institutes of Brothers

  • ABREVIATURAS

    CIC Cdigo de Direito Cannico.

    LG Lumen Gentium Constituio Dogmtica sobre a Igreja.

    PC Perfectae Caritatis Decreto sobre a conveniente renovao da Vida Religiosa.

    PdC Partir de Cristo. Um renovado compromisso da Vida Consagrada no terceiro milnio.

    SVA Sociedades de Vida Apostlica.

    VC Vita Consecrata Exortao apostlica ps-sinodal sobre a Vida Consagrada e a sua

    misso na Igreja e no mundo.

    VRC Vida Religiosa Consagrada.

    As abreviaes e os textos bblicos citados nesta pesquisa so tomados da BBLIA de

    Jerusalm. So Paulo: Paulinas, 1981.

  • SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................ 10

    CAPTULO I - JESUS IRMO: O PRINCPIO E O FIM DO RELIGIOSO IRMO . 15

    1 As razes veterotestamentrias da fraternidade crist ............................................................ 18

    2 O Verbo se fez irmo ............................................................................................................. 21

    3 Mateus: o Evangelho da fraternidade .................................................................................... 24

    4 A fraternidade crist primitiva ............................................................................................... 28

    5 A dimenso fraterna da ceia eucarstica ................................................................................ 30

    6 Hebreus: na sua f, Jesus se irmana com a humanidade ....................................................... 34

    7 O prematuro arrefecimento do ideal fraterno ........................................................................ 36

    8 Concluso .............................................................................................................................. 41

    CAPTULO II - A ORIGEM LEIGA E A CLERICALIZAO DA VIDA RELIGIOSA

    CONSAGRADA MASCULINA ............................................................................................ 43

    1 Jesus de Nazar: clrigo ou leigo? ......................................................................................... 44

    2 O despontar do binmio clrigo-leigo na Igreja .................................................................... 46

    3 A origem leiga da Vida Religiosa Consagrada ...................................................................... 52

    4 O processo de clericalizao da Vida Religiosa Consagrada masculina ............................... 57

    5 Um caso emblemtico: a clericalizao da Ordem Franciscana ............................................ 62

    6 Religiosos clrigos letrados e Irmos leigos iletrados? ......................................................... 66

    7 A resistncia institucional do carisma: os irmos educadores ............................................... 71

    8 Concluso .............................................................................................................................. 72

    CAPTULO III - OS IRMOS LEIGOS NOS TEMPOS DO CONCLIO ..................... 74

    1 A Vida Religiosa Consagrada e os Irmos leigos s vsperas do Conclio ........................... 75

    2 Lumen Gentium: o fundamento laical e sacerdotal de todos os batizados............................. 77

    3 A Vida Religiosa Consagrada laical no decreto Perfectae Caritatis..................................... 80

    4 O Snodo sobre a Vida Religiosa Consagrada ....................................................................... 85

    5 Os Irmos so leigos: a identidade laical............................................................................... 90

    6 O proprium da identidade dos irmos leigos ......................................................................... 99

    7 Concluso ............................................................................................................................ 101

  • CAPTULO IV - OS IRMOS LEIGOS NA ATUALIDADE: ENTRE DESAFIOS E

    OPORTUNIDADES ............................................................................................................. 103

    1 A onda neoclerical ............................................................................................................... 104

    2 Diminuio numrica dos Irmos leigos ............................................................................. 106

    3 A participao dos Irmos leigos no governo dos Institutos clericais ................................. 112

    4 Os estudos e a formao dos Irmos leigos ......................................................................... 118

    5 A rede de reflexo e de articulao dos Irmos leigos ........................................................ 121

    6 Concluso ............................................................................................................................ 123

    CONCLUSO GERAL ......................................................................................................... 125

    REFERNCIA BIBLIOGRFICA ........................................................................................ 129

  • 10

    INTRODUO

    Todos vs sois irmos (Mt 23,8). Essa breve frase o ponto de inflexo entre

    aquilo que Jesus condena nos fariseus e aquilo que ele prope aos seus discpulos, na percope

    de Mt 23,1-12. A afirmao funciona como uma linha divisria que separa aqueles que no

    so daqueles que so discpulos e discpulas de Jesus. Ser irmo, viver a fraternidade em

    diferentes nveis, a partir da comunidade de f, o elemento identificador de quem se coloca

    no caminho do discipulado de Jesus. Assim entende Mateus e, por isso, ele privilegia a

    fraternidade como elemento estruturador da comunidade de f onde ele vive e para quem ele

    escreve. Essa fraternidade no se alicera em critrios biolgicos ou clnicos, mas se

    fundamenta no comum discipulado de Jesus, o Cristo, aquele que se fez nosso irmo (Hb

    2,12) pela sua encarnao, vida, morte e ressurreio.

    Os irmos leigos ou religiosos irmos1 (como prefere nome-los a exortao

    apostlica Vita Consecrata), assim como as religiosas (irms), carregam explicitamente em

    seu nome esse projeto evanglico de fraternidade dentro da Vida Religiosa Consagrada

    (VRC). Essa vocao particular na VRC um sinal na Igreja e no mundo da proposta

    evanglica de relaes horizontais irmo-irmo em todos os mbitos da vida e da f.

    O interesse desta pesquisa refletir sobre a fraternidade evanglica a partir da

    perspectiva do irmo leigo. Essa forma particular de vocao dentro da VRC carrega uma

    dupla identidade: fraterna e laical. Historicamente, essa identidade fraterna laical da VRC foi

    confrontada com uma identidade paterna clerical, criando dois grupos distintos dentro da

    VRC masculina: religiosos leigos e religiosos clrigos.

    Nascida em um ambiente que j conhecia a diviso clrigo-leigo na Igreja, a VRC

    nasceu e se consolidou com membros provenientes, em sua grande maioria, do laicato e

    permaneceu leiga em sua identidade e em sua representao numrica pelo menos at o sculo

    IX. Entretanto, medida que a polaridade clrigo-leigo na Igreja se tornava cada vez mais

    assimtrica em prejuzo do polo laical, essa mesma assimetria foi sendo introduzida na VRC. 1 Ao longo deste trabalho, um e outro termo (irmo leigo ou religioso irmo) sero usados como sinnimos, dando-se preferncia, como justificado no terceiro captulo, pela primeira denominao.

  • 11

    Os religiosos clrigos passaram a dominar o cenrio da VRC masculina tanto do ponto de

    vista numrico, quanto do ponto de vista da identidade da VRC. A minoria dos irmos leigos

    remanescentes migrou do scriptorium dos mosteiros para as oficinas, os refeitrios e as

    plantaes. Permanecendo por sculos, em sua maioria, em uma posio subalterna em

    relao aos religiosos clrigos, os irmos leigos chegaram ao Conclio Vaticano II como

    ilustres desconhecidos na Igreja e carregam, ainda hoje, um sentimento de incompreenso

    em relao ao seu carisma na Igreja. Essa incompreenso pode ser percebida de forma mais

    ou menos explcita no interior dos prprios institutos aos quais esses religiosos esto ligados,

    no meio da hierarquia eclesistica, no seio da prpria VRC, em meio aos fiis leigos e, de

    uma maneira mais ampla, na prpria sociedade civil onde vive e interage o irmo leigo.

    Derivam, dessa incompreenso, tenses internas nos institutos onde convivem religiosos

    leigos e religiosos clrigos, e tenses da vida religiosa com a hierarquia eclesistica.

    O Vaticano II significou, para os irmos leigos, a possibilidade de reconquistar

    sua cidadania batismal no conjunto do Povo de Deus, alm da construo de uma identidade

    nova alicerada em razes antigas. O decreto Perfectae Caritatis buscou fornecer VRC uma

    teologia da consagrao religiosa consentnea eclesiologia da Lumen Gentium. Embora o

    decreto Perfectae Caritatis faa referncia, no seu nmero 10, vida religiosa laical, ele o faz

    de uma maneira utilitarista (to til ela misso pastoral da Igreja), no fornecendo

    qualquer outra referncia ao sentido teolgico e carismtico da vocao dos religiosos leigos,

    criando um vazio no processo de renovao conciliar em relao a essa categoria de

    consagrados.

    Ao universalizar para todos os batizados o chamado a uma vida de santidade e

    retirar da VRC a exclusividade dessa vocao, o Conclio obrigou o conjunto da VRC a

    discernir aquilo que constitui o proprium da sua vocao, em uma reflexo que perdura at os

    dias de hoje, j h quase meio sculo do encerramento do Conclio. Os religiosos leigos tm,

    nesse contexto, a tarefa adicional de discernir e afirmar sua dupla identidade fraterna e laical,

    que se v, com frequncia, ofuscada pela identidade dos religiosos presbteros com quem

    convivem no interior dos institutos dos quais fazem parte, no caso dos institutos clericais, ou

    no conjunto mais amplo da Igreja, para os institutos laicais e clericais.

    Identificar os fundamentos teolgicos, carismticos e histricos da vocao do

    religioso leigo ir raiz do sentido da prpria VRC e, portanto, as possveis respostas diro

  • 12

    respeito totalidade da VRC. Essa busca dos religiosos leigos converte-se, pois, em algo

    benfico identidade de toda a VRC.

    Ampliando ainda mais a questo, delinear a identidade do religioso leigo e,

    consequentemente, recuperar e promover essa vocao, benfico prpria Igreja,

    enriquecida pela presena desse carisma particular no seu meio. Alm do mais, resgatar a

    vocao e a identidade do religioso leigo implica afirmar uma das categorias eclesiolgicas

    propostas pelo Conclio Vaticano II, a de Povo de Deus, em que todos os fiis vivem a mesma

    dignidade batismal.

    O objetivo principal deste trabalho identificar elementos que permitam o resgate

    da dimenso da laicidade da Vida Religiosa Consagrada masculina e pontuar elementos

    bblicos e cristolgicos para a vocao do irmo leigo. Para atingir esse objetivo, buscar-se-

    identificar os elementos na prxis e no ensinamento de Jesus que fundamentem a vocao do

    irmo leigo. Da identificao dos elementos cristolgicos, passar-se- aos elementos

    histricos e eclesiolgicos: como uma Igreja que se compreendia como uma nica

    fraternidade passou a se caracterizar, cada vez mais, com um corpo bipartido entre clrigos e

    leigos? Como essa bipolaridade foi introduzida na nascente vida monstica e como foi seu

    desenvolvimento posterior? Quais so as tenses decorrentes da introduo dessa polaridade

    na VRC? Com o advento do Vaticano II e sua tentativa de virada eclesiolgica de uma Igreja

    clerical-hierrquica para uma Igreja Povo de Deus, que elementos o Vaticano II forneceu para

    uma nova compreenso da identidade e da misso da VRC masculina laical e sua renovao?

    Qual o parentesco ontolgico e carismtico dos irmos leigos com os fiis leigos em geral?

    Em que eles se diferenciam? Qual a natureza da sua laicidade? Finalmente, sero

    identificados alguns desafios e oportunidades presentes relacionados com a VRC masculina

    clerical.

    Esse itinerrio ser estruturado em quatro captulos.

    O primeiro captulo ser dedicado a estabelecer os fundamentos bblico-

    cristolgicos da vocao do irmo leigo. Nessa tarefa, torna-se necessrio, primeiramente,

    estabelecer o fundamento veterotestamentrio da fraternidade crist. Como o conceito

    biolgico de irmo progrediu at designar figurativamente os membros do povo de Israel?

    Qual o significado teolgico do Verbo fazer-se irmo do gnero humano por meio da

    Encarnao? Em que aspectos da prtica e da pregao de Jesus a fraternidade foi proposta

  • 13

    aos seus seguidores? Como os seus seguidores acolheram essa proposta? A boa-nova da

    fraternidade crist sobreviveu primeira gerao de discpulos e discpulas?

    O segundo captulo abordar, a partir de uma perspectiva histrica, o surgimento,

    na Igreja, do binmio clrigo-leigo e do monaquismo e eremitismo cristo. Monaquismo e

    eremitismo esto na origem da VRC e nasceram com um carter laical. Pouco a pouco,

    entretanto, o binmio clrigo-leigo foi se tornando uma realidade cada vez mais presente na

    VRC, por meio de um contnuo processo de clericalizao dos seus membros e das suas

    estruturas. Quais foram as grandes etapas desse processo?

    O terceiro captulo tratar da VRC masculina laical nos tempos do Conclio

    Ecumnico Vaticano II, a partir de uma das imagens eclesiolgicas da Lumen Gentium: a de

    Povo de Deus. Quais foram as consequncias desse paradigma eclesiolgico para a VRC

    laical masculina? Qual foi a chave do Conclio para a renovao da VRC? Como se relaciona

    a VRC com a dupla categoria hierarquia-leigos? E como se relacionam identitariamente os

    irmos leigos com os fiis leigos em geral? Qual a identidade da VRC no conjunto do Povo

    de Deus e o que lhe proprium? Quais so os desenvolvimentos posteriores ao Conclio da

    reflexo sobre a VRC laical?

    No quarto captulo, sero tratados alguns desafios e oportunidades relacionados

    com a VRC masculina laical. O primeiro e fundamental desafio o eclesiolgico: a Igreja

    vive, em muitos setores, um surto de neoclericalismo, que afeta diretamente a VRC masculina

    laical. Esse neoclericalismo acaba por se somar a outros fatores que geram um segundo

    desafio: a reduo acentuada do nmero de membros da VRC masculina laical. Como terceiro

    desafio, apresentada a persistncia da excluso dos irmos leigos no servio de governo dos

    institutos clericais. Finalmente, duas oportunidades so apontadas: a possibilidade de um

    itinerrio formativo teolgico-profissional para os irmos leigos e o despontar da articulao

    dos irmos leigos, juntamente com uma reflexo teolgica acerca da sua vocao e misso.

    O mtodo escolhido para percorrer o itinerrio proposto e abordar os pontos

    elencados acima foi o da pesquisa bibliogrfica: buscou-se selecionar e organizar a literatura

    disponvel acerca da temtica escolhida. Neste ponto, necessrio advertir o leitor para um

    limite que pode ter influenciado o xito deste trabalho: a literatura disponvel acerca da VRC

    masculina laical ainda fragmentada, formada mais por artigos dispersos em revistas

    especializadas do que por uma reflexo orgnica e sistemtica a respeito. H bons artigos

    disponveis, mas estes sofrem o limite do espao de apresentao de dados e de

  • 14

    argumentao, que o caso de uma publicao como o artigo. Em algumas sees, constatar-

    se- que foram privilegiadas informaes relacionadas com a Ordem Franciscana, pelo fato de

    o autor ter disponvel, em maior quantidade, informaes e literatura acerca dos irmos leigos

    nesse grupo de religiosos. Por fim, resta uma ltima constatao em relao metodologia.

    Uma opo metodolgica teve que ser feita na construo do texto: como h uma chave

    teolgica interpretativa relacionada com os irmos leigos (a fraternidade), lida a partir da sua

    manifestao desde o Antigo Testamento at os tempos do Conclio Vaticano II, cortes,

    selees e saltos histricos sero inevitveis, devido extenso e ao escopo deste trabalho. Ao

    se analisar um fenmeno complexo e historicamente longo, como foi o caso da clericalizao

    da Igreja e da VRC, em um espao resumido como este, algumas simplificaes sero

    inevitveis. Procurou-se, entretanto, evitar esteretipos e lugares-comuns que

    comprometessem a seriedade desta pesquisa.

    Feita essa breve introduo, necessrio seguir adiante e, de imediato, resgatar o

    elemento fundamental para a identidade do irmo leigo: o prprio Jesus, feito nosso irmo

    pela sua encarnao, vida, paixo, morte e ressurreio. Trata-se de refletir sobre uma

    cristologia na perspectiva de Jesus irmo.

  • 15

    CAPTULO I

    JESUS IRMO O princpio e o fim do Religioso irmo

    Partir de Cristo. Esse o ttulo do Documento da Congregao para os Institutos

    de vida consagrada e as Sociedades de vida apostlica publicado em 2002. O subttulo do

    documento, um renovado compromisso da vida consagrada no terceiro milnio, sinaliza para

    dois eventos anteriores publicao desse documento: os cinco anos da exortao apostlica

    Vita Consecrata e o jubileu do ano 2000. O documento justifica, assim, a escolha do ttulo:

    preciso, portanto, aderir sempre mais a Cristo, centro da vida consagrada, e retomar com vigor um caminho de converso e de renovao que, como na experincia primitiva dos apstolos, antes e depois da sua ressurreio, foi um partir de Cristo.1

    Mais frente, afirmado que

    Partir de Cristo significa ento reencontrar o primeiro amor, a centelha inspiradora da qual se comeou o seguimento. dele o primado do amor. O seguimento somente resposta de amor ao amor de Deus. Se ns amamos porque ele nos amou primeiro (cf. 1Jo 4, 10.19).2

    Cristo, face visvel da Trindade (Cl 1,15), ser, sempre, a referncia e o ponto de

    partida para a vida e o seguimento de todo batizado e, portanto, tambm para a Vida Religiosa

    Consagrada:

    Como bem sabemos, a vocao religiosa no pretende viver algo exclusivo, mas, sim, viver de modo relevante, radical, parablico, exagerado ou eloquente, (escolham a palavra que mais os inspire) o que j est contido na mesma consagrao batismal e, portanto, herana comum de todos os fiis, sem exceo. No nos faz nenhum bem a atitude de, para

    1 PdC 21. 2 PdC 22.

  • 16

    salvar a identidade da nossa vocao, termos que roubar aquilo que pertence a todos.3

    Que Cristo seja o ponto de partida para a vida de todos os batizados parece ser

    algo bvio. Entretanto, uma pergunta deve ser posta: qual Cristo se toma como modelo de

    seguimento? O fato que existe uma multiplicidade de leituras acerca daquilo que foram a

    vida, os gestos e as palavras de Jesus, podendo algumas dessas leituras serem mutuamente

    excludentes e contraditrias. Neste ponto, a pergunta crucial de Jesus a Pedro sempre

    pertinente: quem dizem os homens que eu sou? (Mc 8,27). A pergunta e as diferentes

    respostas dadas por Pedro revelam esse fato com profundas implicaes para o cristianismo

    de modo geral e para a VRC de modo particular: sempre houve, desde os primrdios do

    cristianismo, mltiplas percepes e leituras da vida de Jesus. A prpria diversidade de

    carismas dos diferentes Institutos de vida consagrada e das Sociedades de vida apostlica

    sinaliza essa pluralidade de acentos e percepes acerca da vida de Jesus. H, nessa

    constatao, um elemento benfico e um elemento limitador. O elemento benfico que a

    largura e o comprimento, a altura e a profundidade da vida de Jesus (Ef 3,18) no podem ser

    compreendidas a no ser a partir da possvel harmonizao de diferentes perspectivas, que,

    isoladamente, empobreceriam a compreenso de sua pessoa. O elemento limitador que,

    historicamente, determinadas leituras acerca da vida de Jesus sobressaram-se, eclipsando

    outras perspectivas, para o prejuzo de uma compreenso mais integral da sua vida e misso.

    Na Igreja Catlica, o Conclio de Trento (1545-1563) afirmou, com fora, contra

    a concepo protestante do sacerdcio universal a especificidade do sacerdcio ministerial e

    o carter hierrquico da Igreja.4 Trento representou, em certo sentido, o culminar de um

    movimento que tem razes no perodo da Patrstica: o sacramento da Ordem sofreu uma

    hipertrofia em relao ao sacramento do Batismo. Concomitantemente, passou-se a acentuar

    a dimenso sacerdotal de Jesus em uma perspectiva ministerial, com a consequente hipertrofia

    do clero em relao aos demais setores da Igreja. Ora, tal parcialidade na leitura da vida e da

    3 SOTERAS, Josep Maria. Narrar la fraternidad en nuestro tempo. La vocacin de hermano, un relato vivo de fraternidad. Perspectiva bblica de una identidad en bsqueda de nuevos horizontes. Roma, 2011 (Traduo nossa). Manuscrito divulgado eletronicamente antes da verso impressa. Esse mesmo artigo foi publicado na revista Testimonio, Santiago, n. 248, p. 7-17, nov./dic. 2011. Entretanto, a verso publicada suprimiu a parte introdutria do artigo original, citada nesta pesquisa. Por isso, as prximas citaes provenientes da parte introdutria sero referenciadas por SOTERAS (manuscrito). Citaes oriundas do restante do artigo sero feitas a partir da verso publicada, com a referncia da respectiva pgina na revista. 4 ALBERIGO, Giuseppe (org.). Histria dos Conclios Ecumnicos. So Paulo: Paulus, 1995, p. 344.

  • 17

    misso de Jesus teve e continua a ter efeitos diretos na VRC masculina: ela clericalizou-se,

    tanto numericamente, quanto na compreenso de sua identidade carismtica e na compreenso

    de sua misso na Igreja e no mundo. Diante desse quadro de afirmao de Jesus sacerdote,

    importante para os religiosos irmos lanar luzes sobre a dimenso fraterna da vida de Jesus,

    revelada por meio de sua encarnao, vida, morte e ressurreio.

    A uma cristologia com nfase no sacerdcio de Jesus no se pode e no se deve

    contrapor uma cristologia com nfase no Jesus irmo. Mas, uma cristologia na perspectiva da

    fraternidade/sororidade pode ajudar a corrigir o acento posto na dimenso sacerdotal da

    misso de Jesus e a eclesiologia dela decorrente. Essa tarefa torna-se mais urgente quando

    podemos perceber, em muitos setores atuais da Igreja, um surto de neoconservadorismo, com

    um subproduto no menos preocupante: o neoclericalismo, que afeta toda a Igreja e, de modo

    particular, os religiosos irmos e sua vocao na Igreja.

    Apesar da necessidade de correo de rumo em uma determinada cristologia, o

    documento Vita Consecrata que fornece os melhores argumentos para a necessidade de se

    refletir uma cristologia na perspectiva de Jesus irmo:

    Por esta razo, os Padres sinodais, a fim de se evitar toda a ambiguidade e confuso com a ndole secular dos fiis leigos, houveram por bem propor a designao de Institutos religiosos de Irmos. A proposta significativa, sobretudo se se considera que a qualificao de irmos evoca uma rica espiritualidade. Estes religiosos so chamados a ser irmos de Cristo, profundamente unidos a Ele, primognito de muitos irmos (Rm 8,29); irmos entre si, no amor recproco e na cooperao para o mesmo servio de bem-fazer na Igreja; irmos de todos os homens, no testemunho da caridade de Cristo para com todos, especialmente os mais pequeninos, os mais necessitados; irmos para uma maior fraternidade na Igreja. Vivendo de modo especial este aspecto prprio simultaneamente da vida crist e consagrada, os religiosos irmos lembram eficazmente aos prprios religiosos sacerdotes a dimenso fundamental da fraternidade em Cristo, que ho de viver entre eles e com todo homem e mulher, e a todos proclamam a palavra do Senhor: E vs sois todos irmos (Mt 23,8).5

    Determinar a rica espiritualidade relacionada com a vocao do religioso irmo,

    viver em Cristo a vida de irmo e ajudar os prprios religiosos sacerdotes na compreenso

    do exerccio de seu ministrio ordenado: eis trs tarefas importantes decorrentes do

    discernimento e da reflexo de uma cristologia que tenha como ponto de partida Cristo Jesus,

    nosso irmo.

    5 VC 60.

  • 18

    Trata-se, fundamentalmente, de

    Buscar na experincia fundante, da qual os textos bblicos so testemunhas, o que possa ser especfico desta vocao religiosa, ou, dito de outro modo, o que pode haver de genuno e de particular na vivncia, como religioso, de algo que comum a toda a vida crist: a fraternidade e a identidade de irmo e de irm em Cristo.6

    Nessa tarefa, torna-se necessrio, primeiramente, estabelecer o fundamento

    veterotestamentrio da fraternidade crist. Como o conceito biolgico de irmo progrediu at

    designar figurativamente os membros do povo de Israel? Qual o significado teolgico de o

    Verbo ter-se feito irmo do gnero humano por meio da Encarnao? Em que aspectos da

    prtica e da pregao de Jesus a fraternidade foi proposta aos seus seguidores? Como eles

    acolheram sua proposta? A boa-nova da fraternidade crist sobreviveu primeira gerao de

    discpulos e discpulas? o que se tentar estabelecer a seguir.

    1 As razes veterotestamentrias da fraternidade crist

    O termo hebraico correspondente a irmo D: (ah), que significa,

    primariamente, filho dos mesmos pais, podendo significar, tambm, outros parentes

    masculinos, como sobrinhos e irmos adotivos. Os equivalentes gregos so

    (adelphos) e seu correspondente feminino (adelph), que significam filho/filha da

    mesma me. Mas, se, originalmente, o termo hebraico era utilizado para designar uma relao

    de consanguinidade entre indivduos (Gn 4,8s; 12,13; 44,20), logo a semntica do termo

    evoluiu para nomear, tambm, outras formas de relao que no incluam a consanguinidade.

    De um significado literal, expandiu-se para acomodar, tambm, um significado figurado ou

    metafrico. Assim, podemos encontrar a palavra hebraica ah significando compatriota (Gn

    16,12; Lv 10,4; 19,18; Dt 2,4; 15,3.12; 25,3; 2Cr 31,15; Jz 1,3; Sl 22,23; Ez 3,8), amigo (Pr

    17,17; 2Sm 1,26), companheiros de ministrio (Ez 6,20), companheiros de inteno de

    destino (Gn 49,5; J 30,29; Pr 18,9), povos descendentes de um antepassado comum (Gn

    19,7; Dt 2,4; Am 1,11), aliana entre povos distintos (Am 1,9.11; 1Rs 9,13; 20,32; 1Mc

    12,10); amantes (Ct 4,10) ou mesmo fazendo referncia a qualquer pessoa (Jr 9,4). Esse uso

    figurado tambm pode ser encontrado na literatura extrabblica. Por exemplo, Josefo usa

    6 SOTERAS (manuscrito).

  • 19

    adelphos figurativamente para falar do relacionamento entre os essnios (GJ 2,122) e nos

    textos de Qumran irmo um termo comum para designar a relao entre membros da

    comunidade.7

    A fraternidade , como j afirmamos, primariamente um fenmeno de relacionamentos sanguneos; mas o uso metafrico do termo muito antigo, mesmo que no haja muita evidncia documental desse uso. [] Para o indivduo [no Antigo Testamento], o irmo era algum que pertencia, como ele, no a qualquer povo, mas ao nico povo escolhido de Deus. Isso significa que a fraternidade no depende meramente de uma descendncia racial comum, mas de uma comum eleio por Deus.8

    Esse arco de significaes, que vai desde irmos de sangue at aliana entre

    povos no meio do povo de Israel, somente foi possvel devido compreenso de uma

    fraternidade comum fundada em Abrao. Em Abrao, o ancestral nacional comum, Israel

    reconhece-se como nao e como um povo de irmos. Essa compreenso e esse sentido dados

    palavra irmo carregam um avano e um limite. Ao romper com o crculo da fraternidade

    biolgica, a fraternidade no meio da nao de Israel preparou o caminho para a fraternidade

    universal proposta por Jesus. Entretanto, ao fechar-se sobre si mesma, a fraternidade de Israel

    revelou-se sectria em relao aos demais povos. Parece ser contra tal pretenso a sentena de

    Jesus: E no penseis que basta dizer: Temos por pai a Abrao, pois eu vos digo que mesmo

    destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abrao (Mt 3,9).

    No campo semntico de irmo aparece outro termo em estreita consonncia:

    prximo, que traduz o termo grego (plesion), o qual corresponde, por sua vez, de

    maneira imperfeita, ao termo hebraico RY (rea). Embora pertencendo ao mesmo campo de

    significao, necessrio estabelecer a diferena entre um e outro signo.

    Estes dois extremos (irmo de sangue e aliana de povos) excedem o significado da palavra prximo na poca, que expressava o sentido de proximidade e de encontro entre pessoas at abarcar em seu ponto mximo a todos os compatriotas, quer dizer, somente aos membros do povo de Israel. Por assimilao a esses e no por abertura aos de fora, alguns textos se esforam por estender o amor ao prximo aos estrangeiros residentes no pas e no mais (Lv 17,8.10.13; 19,34). Contudo, mesmo no caso em que se empregam como sinnimos, as duas palavras mantm um aspecto bem distinto: embora irmo se relacione com o que nos une e nos faz parecidos

    7 WILKINS, Michael J. Brother, Brotherhood. In: FREEDMAN, David Noel (Ed.). Anchor Bible Dictionary. New York: Doubleday, 1992. v. 1. p. 782-783. (Traduo nossa). 8 RATZINGER, Joseph. Christian brotherhood. London: Sheed and Ward, 1966, p. 4-6. (Traduo nossa).

  • 20

    (a etimologia grega de adelphos significa do mesmo seio materno), a palavra prximo se fixa na distncia (pleson em grego, prximo, vizinho, o outro) e, ainda que seja curta, pe em evidncia a diferena.9

    O sentido dado para prximo no antigo Israel, portanto, desenvolveu-se no meio

    da tenso entre a abertura e o fechamento de Israel sobre si mesmo, que acaba por revelar, em

    suas razes, a tenso permanente presente em cada indivduo entre a abertura e o fechamento

    para o outro, para o diferente e o distinto de si.

    Contrariamente ao irmo, ao qual se est ligado por relao natural, o prximo no pertence casa paterna; se meu irmo um outro eu mesmo, meu prximo um outro que no eu, um outro que para mim pode continuar a ser outrem, mas que pode tambm se tornar um irmo. Pode assim criar-se um vnculo entre dois seres, seja de modo passageiro (Lv 19,13.16.18), seja de modo durvel e pessoal, em virtude da amizade (Dt 13,7) ou do amor (Jr 3,1,20; Ct 1,9.15) ou da camaradagem (J 30,29).10

    O livro do Levtico descreve quem o prximo, ao mesmo tempo em que revela

    certa equivalncia entre prximo e irmo:

    No sers um divulgador de maledicncias a respeito dos teus e no sujeitars a juzo o sangue do teu prximo. Eu sou Iahweh. No ters no corao dio ao teu irmo. Deves repreender o teu prximo, e assim no ters a culpa do pecado. No te vingars e no guardars rancor contra os filhos do teu povo. Amars o teu prximo como a ti mesmo. Eu sou Iahweh. (Lv 19, 16-18).

    Da mesma forma como irmo, palavra prximo associou-se um significado com

    acento nacionalista, embora possamos identificar no texto do declogo, por exemplo, uma

    abertura universal (cf. Ex 20,16s). Para um israelita, todos os demais israelitas so prximos,

    mas, de maneiras distintas: A noo de prximo estava submetida a um srio processo de

    reduo, tendente a identificar compatriota com correligionrio. Nesse contexto, no sem

    propsito a pergunta do doutor da lei a Jesus: quem o meu prximo? 11

    Estabelecidos os fundamentos da fraternidade/proximidade no crculo mais

    estreito da famlia e do cl, passando pelo crculo da nao de Israel, resta estabelecer como

    Jesus rompeu a fronteira do particularismo de Israel e estendeu a fraternidade/sororidade a

    9 SOTERAS, p. 8. 10 LON-DUFOUR, Xavier. Prximo. In: LON-DUFOUR, Xavier (Dir.). Vocabulrio de Teologia Bblica. Petrpolis: Vozes, 1972. p. 846. 11 SOTERAS, p. 9.

  • 21

    todos os povos e demais criaturas, levando a bom termo a tenso entre abertura e fechamento

    ao diferente.

    2 O Verbo se fez irmo

    A fraternidade humana e universal sinalizada no Antigo Testamento revela-se

    plenamente em Jesus de Nazar. A Encarnao , fundamentalmente, a irmanao do divino

    com o humano, da transcendncia de Deus com a imanncia da histria humana e csmica.

    Na introduo do seu Evangelho, Joo resume esse caminho assumido por Deus, a

    Encarnao do Verbo: E o Verbo se fez carne, e habitou entre ns (Jo 1,14). Deus desceu

    das alturas e armou sua tenda no meio da humanidade. No ventre de Maria, fez-se carne da

    nossa carne e sangue do nosso sangue. Na oficina de Jos, irmanou-se com todos aqueles que,

    com seu trabalho, transformam o mundo e provm seu prprio sustento e o dos seus. Nos

    campos da Galileia, irmanou-se com as demais criaturas e recomendou-nos que olhssemos as

    aves do cu e os lrios do campo, e que aprendssemos com eles algo sobre a natureza de

    Deus (cf. Mt 6,25-30).

    Se no AT predomina o sentido biolgico nas ocorrncias da palavra irmo,

    aproximadamente metade das ocorrncias dos termos adelphos/adelph no Novo Testamento

    usada de maneira figurativa/espiritualizada, para falar das relaes entre o povo de Israel ou

    entre os cristos. Adelphos ocorre pelo menos 343 vezes no Novo Testamento, 13 das quais

    nos Atos dos Apstolos em conjuno com aner (homem), como em At 1,16. Adelph usada

    25 vezes.12 No h, entretanto, uma uniformidade no uso do termo:

    Quando examinamos os textos apropriados no Novo Testamento, a primeira coisa que percebemos que, pelo menos na terminologia, no h uma ideia consistente de fraternidade que perpasse todos eles. Nos textos primitivos, o termo simplesmente tomado da terminologia judaica. Mas, simultaneamente, comea a se desenvolver, de uma maneira cada vez mais independente, o uso cristo do termo que, finalmente, pelo menos nos ltimos textos da Escritura isto , em Joo totalmente distinto (1Jo 2,9s; 3,10.16.17; 5,16; 3Jo 3,5.10).13

    Assim, possvel encontrar nos Evangelhos o uso de adelphos significando, por

    exemplo, um correligionrio judeu (Mt 5,21-24; 7,3; 18,15-17; 18,35) ou com o sentido

    12 Cf. WILKINS, p. 782. 13 RATZINGER, p. 20-21.

  • 22

    biolgico-clnico (Mt 13,55; Mc 3,31-35; 10,29; Jo 2,12). Esses textos no fornecem, ainda, o

    significado particular empregado por Jesus, mas aquele significado proveniente da

    comunidade judaico-crist.14 O sentido particular, associado por Jesus palavra adelphos,

    pode ser encontrado em textos como Lc 22,31s, Mt 28,10 e Jo 20,17. Nesses textos, o uso de

    termo irmo no segue o uso tradicional judaico.

    interessante notar as diferenas no emprego de adelphos pelos evangelistas. Em

    Jo 15,14s, por exemplo, Joo substitui a palavra adelphos por philos (amigo). O Quarto

    Evangelho usa a palavra adelphos fora do significado de relacionamento sanguneo apenas em

    dois lugares: 20,17 e 21,23.

    Com sua prtica e sua pregao, Jesus prope novos critrios para os laos de

    fraternidade. J no bastam o critrio biolgico e o clnico, insuficientes para abarcar a

    proposta de Deus. Diante da aflio de sua me e de seus parentes que foram ao seu encontro,

    Jesus indica quem constitui sua nova famlia: Aqui esto a minha me e os meus irmos,

    porque aquele que fizer a vontade de meu Pai que est nos Cus, esse meu irmo, irm e

    me (Mt 12,49s). Os laos da fraternidade biolgica no so abolidos, mas integrados em um

    projeto maior e mais radical.

    Ainda hoje, a exemplo do contexto cultural e familiar da sociedade de Jesus, o

    conceito de cl e de laos familiares muito forte, como em algumas sociedades africanas.

    Nesse tipo de sociedade, resguardados os valores que lhes so inerentes, h, literalmente, uma

    posse da famlia sobre o indivduo, que resulta em conflitos quando o indivduo se rebela

    contra essa forma de dominao, principalmente as mulheres. Embora o conceito de

    fraternidade seja, nessas sociedades tradicionais, muito mais arraigado do que nas sociedades

    ocidentais (conceito de famlia alargada x conceito de ncleo familiar restrito), isso parece ser

    feito custa do indivduo. contra esse tipo de dominao que Jesus sinaliza, ao mostrar seus

    novos irmos e familiares, numa fraternidade fundamentada no mais em princpios

    biolgicos ou clnicos, mas na acolhida a uma proposta do prprio Deus. E, se a acolhida da

    proposta de Deus gera fraternidade, a fraternidade , ela mesma, objeto da oferta de Deus.

    Fazer a vontade do Pai constitui o critrio de irmandade e de pertena ao Reino

    inaugurado por Jesus e, nesse sentido, o autor da Carta aos Hebreus entende a vida e a misso

    de Jesus (cf. Hb 10,7). Mas, para Jesus se entregar vontade do Pai, foi necessrio, antes,

    conhec-la e discerni-la ao longo da sua vida. Nesse ponto, toca-se o ncleo da vida de Jesus, 14 Cf. RATZINGER, p. 22.

  • 23

    que no fez de si mesmo o centro de sua vida, misso e pregao, mas viveu-a orientada para

    o Pai e o Reino do Pai. Os Evangelhos narram que, com frequncia, Jesus se afastava da

    multido e mesmo dos seus discpulos para orar (Mc 1,35; 6,46; 14,32; Lc 6,12). Nesses

    momentos em que Jesus se entregava solido de sua orao, ele aprendia a discernir o rosto

    paterno-materno de Deus e encontrava no seu Pai a fora e o sentido de sua misso. Na

    solido de sua orao, Jesus descansava no Pai. A experincia do Pai, entretanto, no o

    deixava descansar, e Jesus retornava sua misso.

    Jesus vivenciou a proposta fraterna do Reino com o ncleo mais prximo de seus

    discpulos, com Maria Madalena e as outras discpulas que o acompanhavam, com Marta,

    Maria, Lzaro e Zaqueu. Mas, se a fraternidade do Reino se manifesta por meio do servio e

    do cuidado mtuo, com os pecadores, endemoninhados e doentes de seu tempo que Jesus

    manifesta essa fraternidade e proximidade de uma maneira mais evidente. Em sua prtica e

    pregao, a fraternidade aparece estreitamente ligada a outro elemento: a compaixo.

    A compaixo, o sofrimento comum, a dor que nos causa o mal alheio e que nos

    une de maneira existencial e cordial ao irmo que padece. movido pela compaixo que o

    samaritano diferente do sacerdote e do levita, movidos pelo apego lei desceu da sua

    montaria e cuidou daquele que se encontrava cado beira do caminho. Nessa parbola, ao

    trazer para dentro do crculo de proximidade/fraternidade uma pessoa culturalmente e

    religiosamente estranha um samaritano Jesus rompeu o crculo que separa Israel dos

    demais povos.

    A relao entre irmo e prximo aparece como a de dois crculos dos quais o maior inclui o menor. Prximo, como esclarece a parbola do samaritano, no somente o irmo na f, mas todo aquele que est ao nosso lado ou ao lado de quem estamos, precisamente porque est perto.15

    Em outras parbolas contadas por Jesus, tambm a compaixo foi invocada em

    favor daqueles que sofriam. Quando o pai avistou ao longe o filho que regressava a casa, foi a

    compaixo que sentiu por ele que o fez lanar-se ao pescoo do filho e cobri-lo de beijos (Lc

    15, 20). O rico aprisionado na manso dos mortos invocou a compaixo de Lzaro para se ver

    livre de seus tormentos (Lc 16, 24). O coletor de impostos, que subiu ao templo para rezar,

    reconhecendo sua condio de pecador, batia no peito e invocava a compaixo de Deus para

    15 BAUER, Johannes B. Irmo. In: BAUER, Johannes B. Dicionrio de Teologia Bblica. So Paulo: Loyola, 1973. v. 1. p. 544.

  • 24

    com ele (Lc 18,13). Tomado de compaixo, o senhor perdoou a dvida do servo que lhe devia

    dez mil talentos (Mt 18,27). Mais importante, os evangelistas mostram com insistncia esse

    sentimento de compaixo que movia Jesus. Jesus sente compaixo pelas multides, porque

    estavam prostradas e exaustas como ovelhas sem pastor (Mt 9,36). Movido pela compaixo,

    curou os doentes (Mt 14,14), curou o cego Bartimeu (Mc 1,41) e mais dois cegos (Mt 20,34),

    alimentou quatro mil homens (Mt 15,32), ressuscitou um jovem na aldeia de Naim (Lc 7,13).

    3 Mateus: o Evangelho da fraternidade

    Devido ao emprego que faz da palavra adelphos em seu Evangelho e teologia

    que lhe subjacente, Mateus merece ser estudado parte em relao ao tema da fraternidade

    crist. A comunidade de Mateus foi corretamente descrita como uma irmandade. Apenas

    Mateus, entre os Evangelhos Sinpticos, utiliza com frequncia o termo irmo (adelphos)

    em um sentido metafrico para indicar um membro da comunidade.16

    Uma contagem comparativa da ocorrncia da palavra irmo e seus derivados

    (irmos/irm/irms) nos quatro Evangelhos e seu uso literal ou figurado revela a importncia

    dada fraternidade teolgica no Evangelho de Mateus:

    Literal Figurado Total Mateus 22 18 40 Lucas 21 7 28 Marcos 20 4 24 Joo 17 2 19

    Entre os cinco discursos ou sermes em torno dos quais Mateus organizou seu

    Evangelho17, o primeiro discurso (cap. 57), conhecido como o discurso da montanha ou

    ensinamento da comunidade, o que apresenta de maneira explcita sua teologia acerca da

    fraternidade crist. Os trs captulos desse discurso concentram oito das dezoito ocorrncias

    do termo irmo no sentido figurado do Evangelho de Mateus. O quarto discurso (cap. 18),

    conhecido como discurso sobre a vida em comunidade, concentra quatro ocorrncias do 16 OVERMAN, J. Andrew. O Evangelho de Mateus e o judasmo formativo: o mundo social da comunidade de Mateus. So Paulo: Loyola, 1997, p. 100. (Coleo Bblica Loyola, 20) 17 Discurso da montanha (57), discurso missionrio (9,3511,1), discurso sobre o Reino em parbolas (13), discurso sobre a vida em comunidade (18) e discurso escatolgico (2325).

  • 25

    termo irmo no sentido figurado. Juntos, os quatro captulos desses dois blocos de

    ensinamentos de Jesus em Mateus concentram quase 40% das ocorrncias do termo irmo no

    sentido figurado nos quatro Evangelhos. necessrio, portanto, prestar uma ateno especial

    a eles.

    O incio narrativo do ensinamento do monte suscita uma dvida momentnea: a

    quem dirigido o ensinamento proferido por Jesus? s multides contempladas por ele ou ao

    grupo restrito de discpulos que dele se aproximaram (v. 5,1)?

    Embora a multido seja mencionada no incio do Sermo (5,1), so os discpulos que se aproximam de Jesus na montanha para o ensinamento mais extenso. O fato de que os captulos 57 so instrues voltadas para a comunidade evidenciado pela alta concentrao do termo irmo nessa seo. Se Mateus tentou apresentar o Sermo como um evento do ministrio pblico de Jesus, ele revelou sua verdadeira inteno pelo uso desse termo especial em sua obra. O Sermo visa a instruir a comunidade de Mateus sobre como os seus membros devem agir, tratar uns aos outros e organizar suas questes internas. A presena do ensinamento sobre orao e piedade, a forma litrgica da orao em 6,9ss. E a advertncia quanto a falsos profetas no grupo em 7,13-16 deixa clara a finalidade do Sermo como meio de instruo e orientao comunitria.18

    Os versculos 3-10 do captulo 5 parecem indicar que os bem-aventurados esto

    fora da comunidade mateana: felizes aqueles que so pobres em esprito, os aflitos, os

    mansos, os que tm fome e sede de justia, os misericordiosos, os puros de corao, os que

    promovem a paz e os que so perseguidos por causa da justia. Os bem-aventurados so

    designados na terceira pessoa do plural. A partir do versculo 11, entretanto, h uma mudana

    no discurso. Jesus se dirige diretamente ao seu pblico, usando a segunda pessoa do plural:

    vocs, que me ouvem, so bem-aventurados, se por causa de mim forem insultados e

    perseguidos. Essa realidade de perseguies era, certamente, vivida pela comunidade mateana

    no seu conflito com a comunidade judaica que, aps a queda do templo em Jerusalm e da

    liderana dos saduceus, comeava a se firmar em torno dos fariseus e, como os judeu-cristos,

    buscava sua legitimao.

    Um grupo social que est se estruturando e se legitimando, em concorrncia com

    outro grupo que se encontra nesse mesmo processo, precisa firmar sua identidade em torno de

    alguns eixos estruturantes: a f em Jesus como Senhor, as bem-aventuranas, a orao do pai-

    nosso, a ao de graas matutina, a ceia eucarstica e, no caso da comunidade mateana, o

    18 OVERMAN, p. 100.

  • 26

    relacionamento fraterno entre os seus membros. A ambiciosa proposta de vida fraterna choca-

    se com a realidade dos conflitos que se estabelecem no meio da comunidade. As orientaes

    dos versculos 21-26 do captulo 5 revelam essa realidade de conflitos, que podiam chegar

    vergonhosa situao, do ponto de vista da comunidade judaico-crist, de se recorrer

    arbitragem do grupo rival de judeus-farisaicos ou das autoridades civis romanas (v. 25).

    As orientaes para a vida fraterna dos captulos 57 tm sua continuidade no

    discurso sobre a vida em comunidade do captulo 18. Nesse captulo, a fraternidade crist

    estrutura-se em torno de dois eixos: a minoridade e a reconciliao. No meio da comunidade

    que busca viver a fraternidade, no deve haver o desejo de um sobressair-se sobre os demais,

    a no ser na prtica do bem e no amor fraterno. As crianas so apontadas por Jesus como

    modelo de atitude que se deve ter na vida em fraternidade: nelas no despertou, ainda, o

    esprito de competio e de domnio sobre os outros.19

    O tema da reconciliao retomado aqui em continuidade com 5,21-26. A vida

    em fraternidade supe o perdo, tantas vezes quantas ele se fizer necessrio: setenta vezes

    sete. Todos os membros da comunidade de Mateus so ministros da reconciliao: tudo o que

    a comunidade ligar na terra, ser ligado no cu, e tudo o que ela desligar na terra, ser

    desligado no cu (18,18).

    Finalmente, a concluso lgica dos ensinamentos de Jesus nos captulos 57 e 18

    aparece no captulo 23, que representa, tambm, o pice das invectivas da comunidade de

    Mateus contra o grupo rival liderado pelos fariseus. Na sua prtica e na sua pregao, Jesus

    contraps duas formas de relacionamentos: relacionamentos assimtricos e de dominao,

    personificados pelos senhores deste mundo, e relacionamentos horizontais e de servio,

    sintetizados na categoria irmo. Jesus denuncia que h, na natureza humana, um impulso para a

    dominao que deve ser convertido em esprito de fraternidade. Na percope de Lucas

    correspondente a Mateus 18,1-5, Jesus denuncia que os reis e governantes deste mundo agem

    com poder-dominao sobre os demais e disfaram essa dominao sob o manto da

    benevolncia (Lc 22,24s). De maneira idntica, as autoridades religiosas do tempo de Jesus

    usavam a religio para dominar e oprimir as pessoas. Todo o captulo 23 de Mateus um longo

    19 O que vlido para a cultura de Jesus e para outras culturas de nosso tempo pode no ser vlido para a cultura ocidental dos pases desenvolvidos. Nessas sociedades de bem-estar econmico, as crianas so precocemente iniciadas em uma cultura de competitividade, de eficincia e de consumismo.

  • 27

    discurso de Jesus contra os doutores da lei e fariseus20 que amarram pesados fardos e os

    colocam no ombro dos outros (v. 4), que fecham o Reino do Cu para os homens (v. 13) e que

    exploram as vivas, e roubam suas casas e, para disfarar, fazem longas oraes! (v. 14).

    Contrapondo a proposta de dominao dos senhores seculares e religiosos deste

    mundo, Jesus apresenta a proposta do Reino e a natureza daqueles que nele tomam parte:

    todos so irmos e somente um o Pai (Mt 23,8). No Reino do Pai, no deve haver relaes

    de dominao e opresso de um irmo sobre o outro, mas relaes de amor e servio.

    Tampouco devem vigorar relaes assimtricas de maiores/menores, de senhor/servo, mas to

    somente relaes horizontais e de servio mtuo: o maior dentre vs ser aquele que vos

    serve (Mt 23,11). A prtica de Jesus foi a manifestao clara dessa irmandade transformada

    em servio.

    Viver como irmos/irms parece resumir a proposta de Jesus para sua Igreja.

    Segundo Mateus, a fraternidade se converte em uma grande parbola para a organizao e

    para a dinmica eclesial. A vida de igualdade fraterna no ignora a diversidade e as diferenas

    naturais e carismticas que se fazem presentes entre os irmos/irms de uma mesma famlia:

    diferenas de aptides, diferenas de responsabilidades entre os irmos mais velhos e os

    irmos mais novos, diferena de vocaes em diferentes mbitos. A fraternidade preconiza o

    estabelecimento de relaes horizontais entre os irmos, diferentes das relaes verticais entre

    pais e filhos. No fecha os olhos presena de rivalidades entre os irmos decorrentes de

    imaturidades. Remete, em ltima instncia, ligao amorosa e natural que h entre irmos

    consanguneos. Assim deveria ser a Igreja, segundo Mateus.

    Todos vocs so irmos (Mt 23,8) so as palavras de Jesus a seus discpulos que melhor expressam a vontade de Jesus sobre a sua comunidade. Pela vontade do seu Senhor, a Igreja deve ser, antes de tudo, fraternidade, porque todos vocs so irmos, disse-nos Jesus. Viver essa graa a grande tarefa de todos os que formamos a Igreja de Jesus. Fiel a este ensinamento, So Mateus usar com frequncia em seu Evangelho a designao de irmo para falar do crente ou discpulo. A metfora da famlia e especialmente a designao irmo entre os discpulos expressa a essncia da vontade de Jesus sobre a sua Igreja.21

    20 Sobre o conflito entre o judasmo formativo dos fariseus e a nascente comunidade mateana, verificar o livro j citado que OVERMAN dedicou a esse tema. 21 MATEOS, Manuel Daz. Ustedes todos son Hermanos: la Iglesia em San Mateo. Lima: Universidad Antonio Ruiz de Montoya, 2005, p. 79. (Traduo nossa).

  • 28

    sintomtico que, historicamente, essa metfora evanglica da Igreja como uma

    fraternidade no tenha tido a relevncia que tiveram outras imagens teolgicas da Igreja,

    como Sociedade Perfeita, Corpo de Cristo e Povo de Deus. Embora essa ltima imagem,

    emergida no Conclio Vaticano II, guarde elementos de fraternidade, no traz a ousadia da

    proposta de Jesus segundo Mateus.

    Nem mesmo os tratados teolgicos sobre a Igreja costumam dedicar um captulo Igreja como fraternidade; isso suposto. Porm, deveramos, talvez, explicit-lo mais nas palavras e, sobretudo, nas obras. Contudo, [...] a fraternidade brota logicamente da f que professamos, se tomamos a srio que Deus Pai e que Jesus nosso irmo. O assunto to srio que, se na Igreja no se vive a fraternidade e se ela mesma no faz da fraternidade uma razo fundamental da sua presena no mundo, no a Igreja de Jesus. Acontece ento com a Igreja o mesmo que com o sal, que para nada mais presta seno para ser lanado fora, e ser pisado pelos homens (5,13).22

    4 A fraternidade crist primitiva

    A experincia da fraternidade fundada na f em Jesus e no Deus de Jesus marcou

    os seus primeiros seguidores. Enquanto se encontrava hospedado em Damasco, durante o

    processo de cegueira e converso que precedeu sua entrega a Cristo, Paulo foi visitado por

    Ananias, que o saudou como Saulo, meu irmo (At 9,17). O tratamento fraterno dado por

    Ananias a Paulo marcou-o profundamente, quando, anos frente, ao fazer memria dessa

    etapa de sua vida, ele retoma a saudao fraterna (At 22,13). Nos escritos paulinos, o termo

    irmo, de maneira inversa ao Antigo Testamento, aparece poucas vezes no sentido biolgico e

    quase que exclusivamente na linha da proposta de Jesus. Paulo nomeia irmos e irms e vive a

    fraternidade/sororidade crist com pessoas concretas: Apolo (1Cor 16,12), Timteo (2Cor

    1,1), Tito (2Cor 2,14), Ttico (Ef 6, 21), Epafrodito (Fl 2, 25), Filmon (Fm 1,7), Febe (Rm

    16, 1) e pia (Fm 1,2). Utilizando o mesmo tratamento, nomear irmo e irm os

    destinatrios mais amplos de suas cartas.

    Para Paulo, cada indivduo, feito imagem de Jesus, o irmo por excelncia e o

    primognito entre muitos irmos (Rm 8,29), predestinado a viver irmanado com seu

    semelhante humano. Dando um passo adiante, Paulo estende essa fraternidade humana

    fraternidade com a totalidade da criao. Irmanadas com a humanidade, por meio do poder

    22 MATEOS, p. 80.

  • 29

    criador de Deus, as demais criaturas partilham com seus irmos humanos o mesmo anseio e

    impacincia pela comunho trinitria escatolgica (Rm 8,19-21).

    Na Carta aos Glatas, adelphos, no sentido teolgico aparece dez vezes, nove

    delas referenciando os destinatrios da carta na regio da Galcia e uma vez referindo-se aos

    membros da comunidade a partir de onde Paulo escreve a sua carta, provavelmente feso. O

    tratamento fraterno, entretanto, no esconde a irritao de Paulo em relao ao que se passa

    nessa igreja. a nica carta de Paulo que no comea com uma ao de graas e no termina

    com uma bno, um sinal provvel da sua impacincia. A irritao de Paulo

    compreensvel: diferente do que ficara acordado na assembleia de Jerusalm (cf. At 15,4-29),

    cristos de origem judaica, ou mesmo de origem pag e influenciados pelo judasmo,

    pregavam a necessidade de circunciso e de obedincia lei de Moiss, desmerecendo o

    trabalho missionrio e a pessoa de Paulo. Partindo do duplo conceito de promessa feita a

    Abrao e de Lei dada a Moiss, Paulo compara a Lei a um pedagogo, que instrui e educa as

    crianas at a maioridade. Maioridade significa, para Paulo, na perspectiva do projeto

    salvfico de Deus, o cumprimento da promessa feita a Abrao com a chegada do Messias,

    nascido de uma mulher (cf. Gl 4,4). Na perspectiva dos discpulos, tornar-se adulto significa

    abraar a f em Jesus, em um caminho de mo dupla, cujo eixo articulador o prprio Jesus.

    O Verbo, pela Encarnao, assumiu a natureza humana e, no sentido inverso, a humanidade

    foi assumida, pela humanizao do Verbo, como participante da sua filiao divina. Irmos

    em Jesus, a humanidade tornou-se, nele, filha de Deus. A irmanao supe a filiao. Ser

    irmo remete a uma ascendncia e uma filiao comum. Dessa comum filiao, Paulo

    conclui:

    Chegada, porm, a f, no estamos mais sob pedagogo; vs todos sois filhos de Deus pela f em Cristo Jesus, pois todos vs, que fostes batizados em Cristo vos vestistes de Cristo. No h judeu nem grego, no h escravo nem livre, no h homem nem mulher, pois todos vs sois um s em Cristo Jesus (Gl 3,25-28).

    Diferenas que impliquem relaes assimtricas de dominao-subjugao ou de

    segregao, como aquelas existentes entre judeus e gregos, escravos e homens livres, homens

    e mulheres, so abolidas pela assuno de uma nica identidade: filhos e filhas do nico Deus

    e, portanto, irmos na f em Jesus. As alteridades de cada irmo ficam resguardadas, da

    mesma forma que a comunho e a unidade Trinitria no eliminam a alteridade das Pessoas

    divinas.

  • 30

    Todos, do mesmo modo, valem pelo novo ser adquirido pela unio a Cristo, pela participao na sua condio de filho de Deus. Numa palavra, a equiparao radical dos homens vale em relao salvao, centrada em Jesus morto e ressuscitado. Permanecem as diferenas religiosas, culturais, sociolgicas, fisiolgicas e naturais, mas que so radicalmente redimensionadas e relativizadas.23

    Rompendo com o conceito clnico e fechado da concepo judaica tradicional da

    fraternidade, a fraternidade crist estende-se a todos os crentes, unindo em uma mesma f e

    sofrimento os irmos espalhados pelo mundo (1Pd 5,9). Os judeus continuam a fazer parte

    dessa fraternidade e tambm so nomeados irmos (At 2,29, 3,17). Paulo, entretanto, os v

    como irmos apenas segundo a carne, uma vez que no comungam a f no Ressuscitado (Rm

    9,13).

    Irmos com Jesus, Filho de Deus, com ele e nele vivida a realidade da adoo

    filial da parte do Pai, origem e fundamento da fraternidade humana. A vivncia humana dessa

    fraternidade traz implicaes concretas para os irmos e irms de Jesus. As cartas de Tiago e

    de Joo explicitam as consequncias ticas da nova fraternidade proposta por Deus na

    encarnao, vida, morte e ressurreio de Jesus. Em uma comunidade de irmos e irms, no

    deve haver quem passa necessidades (Tg 14,17; 1Jo 3,17) e amar o/a irmo/ o critrio

    fundamental para discernir uma autntica busca do amor de Deus (1Jo 4,20).

    Os membros dessa comunidade [crist] so todos chamados eleitos, santos, discpulos, mas, principalmente, irmos, pois formam uma fraternidade. Fraternidade era o nome dado a pessoas unidas pela mesma f (cf. At 6,3; 1Cor 6,6).24

    5 A dimenso fraterna da ceia eucarstica

    No Novo Testamento, outro termo pertencente ao campo semntico de

    fraternidade o de (koinonia), traduzido como comunho fraterna no primeiro dos

    trs sumrios presentes nos Atos dos Apstolos (2,42-47; 4,32-35; 5,11-16).

    A unio fraterna dos primeiros cristos resulta da sua comum f no Senhor Jesus, do seu desejo de juntos imit-lo, do seu amor para com ele, que

    23 BARBAGLIO, Giuseppe. As cartas de Paulo II. So Paulo: Loyola, 1991, v. 2, p. 80-81. (Bblica Loyola, 5). 24 ALMEIDA, Antnio Jos de. Leigos em qu? Uma abordagem histrica. So Paulo: Paulinas, 2006, p. 19.

  • 31

    necessariamente provoca o seu amor mtuo: no tinham seno um s corao e uma s alma (At 4,32). Essa comunho entre eles realiza-se em primeiro lugar na frao do po (2,42); traduz-se, dentro da Igreja de Jerusalm, pela colocao em comum dos bens (4,325,11), depois, entre as comunidades vindas do paganismo e Jerusalm, pela coleta recomendada por So Paulo (2Co 8-9; cf. Rm 12,13).25

    O termo koinonia

    um termo tcnico da linguagem paulina e da tradio anterior a Paulo (1Cor 1,9;m10,16; 2Cor 8,4; 9,13 etc.) Significa uma comunho, baseada na participao comum em alguma coisa, como, por exemplo, entre os scios que compartilham uma determinada propriedade; essa participao o que cria comunidade de vida. [...] Em ltima instncia, o que significa koinonia Cristo que segue vivendo na comunidade e criando comunho de vida, mediante o dom contnuo de sua salvao.26

    Em relao koinonia vivenciada na frao do po, necessrio deter-se um

    pouco mais.

    O lugar concreto onde se realiza esta comunho de vida a frao do po, que literalmente se refere ao gesto que fazia o chefe de famlia enquanto pronunciava a bno da mesa no incio da refeio (Mc 6,41 par; 8,6s par; Lc 24,30). Tomando a parte pelo todo, a frao do po significa a celebrao da eucaristia (Hb 20,7; 1Cor 10,6).27

    O termo comunho, usado como sinnimo de eucaristia, carrega em seu

    significado um anncio e uma denncia. Como anncio, quer indicar a boa nova anunciada a

    Maria pelo anjo Gabriel: pela Encarnao, Deus se fez um de ns. O Verbo comungou

    plenamente da natureza humana, bebeu vinho e comeu a refeio na alegria dos seus

    convidados e da chegada do Reino de Deus. Pelo po e pelo vinho, escolhidos por ele como

    matrias do sacramento de sua presena permanente no nosso meio, manifestou sua

    comunho com toda a criao e com todo o esforo humano de cultivo e transformao de

    nosso planeta, confiado ao cuidado humano. Na morte de Lzaro e na sua prpria morte na

    cruz, comungou a dor e a angstia humana diante da morte e do aparente abandono do Pai. Na

    sua ressurreio, comungou com a humanidade a fora de sua vida e a certeza de que as

    foras deste mundo foram vencidas. Por meio da comunho com o corpo e o sangue do

    25 SESBO, Daniel e GUILLET, Jacques. Comunho. In: LON-DUFOUR, Xavier (Dir.). Vocabulrio de Teologia Bblica. Petrpolis: Vozes, 1972. p. 159. 26 ROLOFF, Jrgen. Hechos de los Apstoles. Madrid: Cristiandad, 1984, p. 100. (Traduo nossa). 27 ROLOFF, p. 100.

  • 32

    Ressuscitado, romperam-se as fronteiras que separavam judeus e gentios, homens e mulheres,

    libertos e escravos, para formarem todos, em Cristo ressuscitado, um s povo, um s corao,

    um s corpo.

    Como denncia, a comunho quer desmascarar exatamente a falta de comunho

    que pode estabelecer razes no meio daqueles que comungam do mesmo corpo e sangue do

    Ressuscitado, como aquela diviso denunciada por Paulo no meio da comunidade de Corinto,

    por ocasio da ceia do Senhor:

    Dito isto, no posso louvar-vos: vossas assembleias, longe de vos levar ao melhor, vos prejudicam. Em primeiro lugar, ouo dizer que, quando vos reunis em assembleia, h entre vs divises, e, em parte, o creio. Quando, pois, vos reunis, o que fazeis no comer a Ceia do Senhor; cada um se apressa para comer a sua prpria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado (1Co 11,17-18.20-21).

    Para Paulo, a Ceia do Senhor eucaristia

    Deve ser uma refeio compartilhada, em que pobres e ricos que participam da mesa tenham os mesmos direitos. Mesmo que a maior contribuio para as refeies devesse provir dos ricos, isso no deveria causar desunio, inferioridade de uns, privilgios de outros, mas promover a fraternidade e a justia entre todos. A comunidade compartilhava a comida que tinha disponvel, transformada em ritual, mas tambm realizava e materializava a justia (CROSSAN apud SANTO).28

    Nesse sentido, a eucaristia carrega uma dimenso proftica de denncia contra

    qualquer forma de diviso ou discriminao que possa haver entre aqueles que nela tomam

    parte: a diviso entre povos que vivem na fartura e no desperdcio de bens e outros povos que

    sofrem com a fome; a diviso entre aqueles que tm sede e fome de justia e aqueles que

    cometem injustias; a diviso escandalosa entre Igrejas que professam o mesmo Salvador e

    tantas outras formas de diviso.

    A comunidade tem em mente que Jesus, ao mesmo tempo em que se declara o Po da Vida (Jo 6,35), se doa como alimento a todos os filhos e filhas de Deus na Ceia eucarstica. Mas todo o que se rene em torno mesa da partilha e da comunho para comer e beber, deve j estar comprometido com o projeto de Deus e carregar em seu ser o desejo de partilha, solidariedade, fraternidade, motores da comensalidade eucarstica.29

    28 SANTO, Luciano de Souza. Comensalidade eucarstica. Cadernos da Estef, Porto Alegre, v. 2, n. 45, p. 91, 2010. 29 SANTO, p. 91.

  • 33

    Entre os gestos salvficos de Jesus, talvez seja a comensalidade o gesto que revela

    de maneira mais clara as realidades do Reino de Deus. Se o Reino de Deus boa notcia, no

    h lugar para a tristeza, e a manifestao da presena salvfica de Deus tem que ser celebrada

    com alegria. Essa alegria assume a forma de uma refeio. Jesus multiplica o po e sacia a

    fome da multido faminta (Mt 15,29-39). Ele come com os pecadores e desprezados (Mc

    2,15; Lc 7,36-47). No final de sua vida, despede-se de seus amigos com uma refeio (Mc

    14,12-25). Suas aparies como Ressuscitado so manifestadas no contexto de refeies (Lc

    24,29-31; Jo 21,12s; At 10,41). As refeies assumem, na prtica e na pregao de Jesus, um

    carcter de libertao, de paz e de comunho universal.

    Sentar juntos mesma mesa sinal de proximidade e de fraternidade. Nesse

    sentido,

    A comensalidade um ato de comer juntos, onde a mesa no se torna lugar de discriminaes verticais e separaes laterais da sociedade, mas sim lugar onde os corpos se encontram pra comer e conviver, sem discriminao de pessoas, como fazia Jesus com os excludos de seu tempo.30

    At hoje, a ceia pascal judaica uma refeio familiar, na qual tomam parte os

    familiares e os amigos da famlia onde ela celebrada. Sentar juntos, aproximar-se da mesma

    mesa, comer juntos um gesto antropolgico carregado de significados.

    Saber o que, onde, como, quando e com quem as pessoas comem, conhecer o carter de sua sociedade. Alm do mais, ela nos leva comunho de vida. Consumir comensalmente comungar com os outros que comigo comem. entrar em comunho com as energias escondidas nos alimentos, com seu sabor, seu odor, sua beleza e sua densidade.31

    Na sua despedida no cenculo, Jesus tomou sua ceia pascal em um ambiente de

    fraternidade e amizade: Eu vos chamo amigos, porque tudo o que ouvi do Pai eu vos dei a

    conhecer (Jo 15,15). nessa perspectiva de familiaridade e de fraternidade que deve ser

    entendida a parbola narrada em Lc 14,15-24. Em resposta negativa dos convidados da

    primeira hora, o anfitrio que ofereceu um grande banquete, instruiu seu servo para convidar

    os pobres, os aleijados, os cegos e os mancos que ele encontrasse pelo caminho. O que chama

    a ateno nessa parbola no o fato de que estranhos tenham se sentado mesa daquele que

    ofereceu o banquete, mas o fato de que estranhos tenham se tornado prximos e familiares

    30 SANTO, p. 88. 31 SANTO, p. 87.

  • 34

    daquele que lhes ofereceu um banquete, ao ponto de poderem sentar-se juntos mesma mesa.

    essa a lgica do Reino de Deus. No combina com essa lgica convidar os pobres, os

    aleijados, os cegos e os mancos para a refeio e, na hora de servi-la, segreg-los daqueles

    que se encontram em lugar de honra na mesa principal.

    Se a comensalidade de Jesus assinala, entretanto, a chegada do Reino de Deus, tal

    prtica choca-se com o corao fechado de seus adversrios: as refeies so vistas como

    escndalos pelos fariseus e doutores da lei. Jesus acusado de comilo, de beberro e de

    fazer-se amigo de publicanos e pecadores.

    Estabelecida essa dimenso eucarstica da koinonia/fraternidade, compreendem-

    se as consequncias ticas dessa mesma fraternidade: a partilha de bens e as coletas realizadas

    em favor dos irmos que se encontram em necessidade.

    6 Hebreus: na sua f, Jesus se irmana com a humanidade

    Embora sem recorrer explicitamente e com frequncia ao termo irmo, o escrito

    neotestamentrio que reflete com maior profundidade a irmandade de Jesus com o gnero

    humano Hebreus, pois este retoma e desenvolve de maneira mais detalhada as linhas

    fundamentais do cntico recolhido por Paulo na sua carta aos Filipenses (Fl 2,5-11). Jesus, o

    Filho de Deus constitudo herdeiro de todas as coisas, por meio de quem o mundo foi criado,

    irradiao da glria de Deus e pelo qual Deus se expressou tal como em si mesmo (Hb 1,2s),

    foi constitudo e se fez irmo do gnero humano:

    Convinha, de fato, que aquele por quem e para quem todas as coisas existem, querendo conduzir muitos filhos glria, levasse perfeio, por meio de sofrimentos, o Autor da salvao deles. Pois tanto o Santificador quanto os santificados descendem de um s; razo por que no se envergonha de os chamar irmos, dizendo: Anunciarei o teu nome a meus irmos; em plena assembleia eu te louvarei (Hb 2,10-12).

    H aqui e ao longo do texto da carta um elemento importante para a

    fundamentao cristolgica da vocao de irmos e que merece um aprofundamento

    posterior: por ter-se feito irmo do gnero humano que Jesus operou a salvao da

    humanidade e de todas as demais criaturas. Um dos elementos cristolgicos centrais da carta

    aos Hebreus mostrar a superioridade do sacerdcio de Cristo em relao ao sacerdcio do

  • 35

    Antigo Testamento encontra sua fundamentao na irmanao de Jesus com a humanidade,

    expresso no versculo 2,17:

    Coincidindo com a imagem de Jesus como sacerdote, nesse versculo aparece a imagem de Jesus como irmo na f. Mais precisamente, a nfase na fraternidade afirmada como sendo o pr-requisito para o exerccio do sumo-sacerdcio: Por isso convinha () que em tudo fosse semelhante aos irmos, para ser () misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que de Deus, para expiar os pecados do povo.32

    Pela encarnao, Jesus, renunciando glria exposta no incio da carta aos

    Hebreus, irmanou-se com a debilidade e com a grandeza humana, teve que ser semelhante em

    tudo a seus irmos, foi provado como ns, em todas as coisas, menos no pecado (Hb 4,15)

    para, junto com seus irmos reunidos na grande assembleia da humanidade, voltar-se para

    Deus e reconhecer sua natureza amorosa, tomar juntos a refeio, celebrar e cantar o louvor

    de Deus.

    O autor de Hebreus coloca nos lbios de Jesus o sentido de sua encarnao e

    irmanao com a humanidade:

    Tu no quiseste sacrifcio e oferenda. Tu, porm, formaste-me um corpo. Holocaustos e sacrifcios pelo pecado no foram do teu agrado. Por isso eu digo: Eis-me aqui, no rolo do livro est escrito a meu respeito eu vim, Deus, para fazer tua vontade (Hb 10,5-7).

    Na sua irmanao com a nossa corporeidade e com a nossa humanidade, tambm

    Jesus teve que percorrer um caminho humano de f e de conhecimento de Deus e, talvez, aqui

    se coloque a realidade mais profunda da irmanao do Filho de Deus com a humanidade: a

    irmanao na busca e no conhecimento de Deus. Pela sua encarnao, Jesus inaugurou para

    ns um caminho novo de acesso a Deus (Hb 10,20). Com seus pais, foi iniciado na f do seu

    povo. Com seu povo, aprendeu a Sagrada Escritura e o senso de temor de Deus. Entretanto, e

    isso constitui a novidade da f de Jesus, ele fez a experincia de uma filiao nica e

    particular com o Pai. A f de Jesus no Pai foi um processo de contnuo discernimento, que

    passou pelo crisol da experincia dolorosa de um aparente abandono na cruz. necessrio

    cautela ao se acentuar por demais a exclusividade desse caminho vivido por Jesus, sob o risco

    de excluirmos a possibilidade de trilhar esse mesmo caminho. Jesus inaugurou o caminho de

    32 GRAY, Patrick. Brotherly love and the high priest Christology of Hebrews. Journal of Biblical Literature, Atlanta, v. 122, n. 2, p. 335, 2003. (Traduo nossa).

  • 36

    acesso ao Pai e convida seus irmos e irms a se colocarem em marcha nessa mesma busca:

    Corramos com perseverana para o certame que nos proposto, com os olhos fixos naquele

    que o autor e consumador da f, Jesus (Hb 12,1-2).

    7 O prematuro arrefecimento do ideal fraterno

    Estabelecido um esboo bblico e cristolgico da fraternidade, uma questo

    adicional merece ser aprofundada: o ideal evanglico da fraternidade, estabelecido como um

    dos elementos constitutivos da identidade das nascentes comunidades crists, sobreviveu s

    primeiras geraes dos cristos? Para a anlise dessa questo, til recorrer sociologia dos

    grupos religiosos e, neste caso, partir da anlise da evoluo social das comunidades paulinas

    em relao ao tema da irmandade/fraternidade evanglica.

    Wach distingue trs etapas sociolgicas em uma tradio religiosa que teve sua

    origem em um fundador, como o cristianismo: o crculo dos discpulos, a irmandade e a

    organizao eclesistica. A etapa do crculo dos discpulos corresponde ao perodo em que os

    fundadores comeam a arregimentar discpulos:

    Sentido crescente de solidariedade liga os membros entre si e os diferencia de qualquer outra forma de organizao social. Tal comunidade de interesses poderia ser chamada de crculo, indicando-se com isto que est orientada para uma figura central com a qual cada um dos discpulos est em ntimo contato. [...] Vnculos de famlia, de parentesco e lealdades de vrios tipos so pelo menos temporariamente afrouxados ou mitigados.33

    A morte do fundador assinala uma nova etapa no grupo de seus seguidores e

    discpulos. A solidariedade e a unidade do grupo dependia dele e, com sua morte, novos

    problemas aparecem. Nessa nova realidade,

    O prprio fundador se transforma em objeto de culto. A f e a confiana nele e em sua misso chegam a ser vistas como a senha ou o critrio de admisso como membro no seio do grupo, que agora deixa de ser crculo e torna-se irmandade. [...] Sem nos comprometermos com nenhuma das teorias da origem e natureza da ecclesia primitiva, podemos afirmar com segurana que a condio para ser membro da irmandade costuma ser originalmente mais espiritual do que organizacional. A tendncia para a organizao, porm, jamais est ausente, sendo evidente at certo ponto j nos crculos. [...] No seio da irmandade, reinam a liberdade e a simplicidade; no existem

    33 WACH, Joaquim. Sociologia da religio. So Paulo: Paulinas, 1990, p. 168-169.

  • 37

    demarcaes e limitaes definidas e h receptividade a novas ideias, impresses e influncias nesta idade do esprito.34

    A irmandade conserva com o crculo uma identidade espiritual e carismtica.

    Mas, ao mesmo tempo, apresenta um firme desenvolvimento da sua doutrina, culto e

    organizao, que acabar por transformar em organizao objetiva a que era subjetiva ou

    pessoal.35 Encerra-se, ento, o perodo da irmandade, que ser seguido por uma nova etapa:

    a organizao do corpo eclesistico. justamente o perodo de transio entre essas duas

    ltimas etapas que nos interessa analisar aqui.

    Tomando como base as comunidades paulinas, possvel perceber a transio

    dessa etapa da irmandade para a etapa posterior de organizao eclesistica? Uma possvel

    resposta a essa questo pode ser obtida por meio da anlise da evoluo dos termos irmo ou

    irm (, etc.) e casa ou famlia (, , etc.) no sentido figurado

    desses termos nos escritos paulinos e nas demais epstolas.36

    A investigao da linguagem usada para descrever padres de parentesco e relaes familiares importante no apenas porque permite esboar uma imagem de quem se relaciona com quem e como, mas, tambm, porque a linguagem especfica utilizada reflete e molda padres de relaes sociais.37

    34 WACH, p. 172-174. 35 WACH, p. 173. 36 Considerar-se-o como escritos genuinamente paulinos as epstolas: Romanos, 1 e 2Corntios, Glatas, Filipenses, 1Tessalonicenses e Filmon. Segunda Tessalonicenses colocada parte, devido dificuldade de estabelecer a autoria paulina dessa carta. 37 HORRELL, David G. From to : social transformation in pauline christianity. Journal of Biblical Literature, Atlanta, v. 120, n. 2, p. 294, 2001. (Traduo nossa).

  • 38

    Ocorrncias de , como termos figurados de parentesco para referenciar os fiis cristos.38

    EpstolaReferente a um

    destinatrio coletivo ou no especificado

    Referente a um crente especfico

    (usualmente nomeado)Total

    1Ts 18 1 19Gl 10 0 101Co 37 2 392Co 4 8 12Rm 16 2 18Fl 8 1 9Fm 0 5 5Total 93 19 112Cl 2 3 5Ef 1 1 2Total 3 4 71Tm 4 0 42Tm 1 0 1Tt 0 0 0Total 5 0 52Ts 7 1 8

    Conforme a tabela acima, se nos ativermos apenas ao sentido metafrico/figurado

    de adelphos/adelphs, Paulo usa esses termos, mais no plural e menos no singular, 112 vezes

    nas suas sete cartas. De modo especial devem ser observadas Rm 14,10-21 (cinco ocorrncias

    em onze versculos); 1Cor 6,5-8 (quatro ocorrncias em quatro versculos) e 1Cor 8,11-13

    (quatro ocorrncias em trs versculos). A abundncia dessa terminologia sugere que Paulo

    Assume e promove o relacionamento entre ele e seus destinatrios, bem como entre seus destinatrios entre si, como um relacionamento entre irmos iguais, que compartilham um sentimento de afeto, de responsabilidade mtua e de solidariedade.39

    Paulo assume como boa-nova, portanto, a fraternidade anunciada e vivida por

    Jesus com o crculo mais prximo de seus discpulos e o crculo mais distante dos demais

    seguidores, empobrecidos e pecadores com quem ele se relacionou. A

    38 HORRELL, p. 311. 39 HORRELL, p. 299.

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    irmandade/fraternidade , para Paulo, uma identidade e um elemento estruturante dos

    cristos:

    Que seja uma identidade-designao bsica daqueles que so membros da comunidade crist indicado, tambm, em 1Co 5,11, onde Paulo adverte os cristos contra a associao com aqueles que se autodenominam irmos ( ) e que so mostrados pela sua imoralidade no serem verdadeiramente , como o homem sexualmente imoral que deve ser evitado e expulso da Igreja (5,1-8).40

    O escrito de Paulo que mostra claramente uma mudana dos relacionamentos

    sociais decorrentes da irmandade Filmon. O apelo de Paulo a Filmon, para que receba seu

    escravo Onsimo de volta (1,12), fundamentado na irmandade evanglica que h entre

    ambos. Paulo se dirige a Filmon como irmo (1,7) e pede a ele que receba Onsimo de volta

    no mais como escravo, mas, bem melhor do que como escravo, como irmo amado (1,16).

    Essa carta mostra que a irmandade crist tem implicaes ticas concretas nos

    relacionamentos dentro da comunidade crist: supe relacionamentos horizontais, que devem

    existir entre irmo-irmo e no mais relaes verticais de dominao entre senhor-servo.41

    Que isso [a irmandade] implique uma mudana real na relao social entre o escravo e seu proprietrio, e no apenas uma reavaliao espiritual aos olhos de Deus, fortemente sugerido pela declarao de Paulo de que a irmandade entre ambos existe tanto na carne como no Senhor (v. 16).42

    Em relao a Colossenses e Efsios, nota-se a baixa frequncia do uso de

    e : apenas sete vezes nas duas cartas. Somadas as ocorrncias nas duas cartas, tem-se

    uma frequncia menor do que cada uma das cartas autnticas paulinas tomadas

    individualmente, com exceo de Filmon.43 Deixando de lado o acento paulino na

    irmandade/fraternidade, essas duas cartas sinalizam uma mudana de mentalidade e de

    organizao do arranjo social nessas comunidades. As relaes domsticas dentro de uma

    40 HORRELL, p. 300. 41 No se pode ignorar o fato de que Paulo, em outras ocasies, como em 1Cor 4,14, estabelece uma relao de pai-filho entre ele e os destinatrios de suas cartas, ou que ele reclame para si e para outros membros das comunidades um papel de liderana e presidncia, como em 1Ts 5,12. Tais ocasies, entretanto, no tm preponderncia em relao ao modelo irmo-irmo evocado por ele com frequncia ao longo de suas cartas. 42 HORRELL, p. 302. 43 Filmon, entretanto, com apenas 25 versculos, apresenta 5 ocorrncias de , enquanto Colossenses e Efsios, com um total de 250 versculos, apresentam apenas 2 ocorrncias a mais que Filmon.

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    casa dirigida por seu senhor so tomadas como modelo para estruturar as relaes na

    comunidade dos fiis:

    Uma caracterstica importante e relevante de Colossenses e Efsios seu interesse pela estruturao ideal da famlia, um interesse expresso nos chamados cdigos domsticos (Cl 3,184,1; Ef 5,216,9). Embora esses cdigos estejam preocupados com os relacionamentos em famlias individuais reais e no com a prpria Igreja, vista como uma casa, a sua preocupao explcita com a gesto das relaes entre pais e filhos, mestres e escravos, uma inovao significativa, em relao qual h poucos precedentes em Paulo.44

    Tito ignora o uso de . Quanto a 1Timteo, percebe-se uma transio na

    diferenciao do uso de e , que so reservados para nomear os jovens rapazes

    e moas da comunidade, diferentemente dos ancios e senhoras (5,1-2). Essa mesma carta

    explicita aquilo que j era sinalizado em Colossenses e Efsios: os relacionamentos verticais,

    tradicionalmente encontrados no interior de uma casa familiar, so transpostos para a

    organizao da Igreja: Pois, se algum no sabe governar bem a prpria casa, como cuidar

    da Igreja de Deus? (3,5). A Igreja, a comunidade dos fiis, passa a ser vista, explicitamente,

    como uma casa, a (3,15). Relacionamentos verticais de submisso e obedincia

    presentes no interior de uma casa, entre escravo e senhor, mulher e marido, filho e pai,

    comeam a despontar na Igreja em substituio ao relacionamento horizontal de irmo-irmo.

    Um paralelo entre a forma como Paulo lida com a questo da escravido em sua carta a

    Filmon e a forma como Colossenses, 1Timteo e Tito tratam essa mesma questo evidencia

    o contraste entre essas duas perspectivas.

    A Igreja uma comunidade estratificada e hierrquica, liderada por aqueles homens que lideram suas famlias humanas tambm. A hierarquia das relaes sociais, encontrada no lar humano, apresentada como a estruturao ideal para a Igreja tambm: escrav