direito das coisas - pablo stolze

Upload: adriano-duarte

Post on 14-Oct-2015

255 views

Category:

Documents


31 download

TRANSCRIPT

  • 1

    MATERIAL DE APOIO

    DIREITO CIVIL

    DIREITOS REAIS

    Apostila 01

    Prof.: Pablo Stolze Gagliano

    1. Introduo

    Os Direitos Reais ou Direito das Coisas, enquanto ramo do Direito Civil,

    traduzem o conjunto de normas e princpios reguladores das relaes

    jurdicas referentes s coisas suscetveis de apropriao pelo homem,

    segundo uma finalidade social.1

    Sob outra perspectiva, com fundamento na doutrina do professor

    ARRUDA ALVIM, poderamos enumerar as seguintes caractersticas dos

    direitos reais, para distingui-los dos direitos de natureza pessoal2:

    a) legalidade ou tipicidade os direitos reais somente existem

    se a respectiva figura estiver prevista em lei (art. 1225, CC-

    02 e arts. 524 e 674, CC-16);

    b) taxatividade a enumerao legal dos direitos reais

    taxativa, ou seja, no admite ampliao pela simples

    vontade das partes;

    c) publicidade primordialmente para os bens imveis, por se

    submeterem a um sistema formal de registro, que lhes

    imprime esta caracterstica;

    1 Sobre a introduo matria e temas correlatos, vale a pena a leitura do excelente livro Direito das Coisas vol. 4, FLVIO TARTUCE e JOS SIMO, Ed. Mtodo. Outra excelente e atualizada obra que tambm recomendamos a de CRISTIANO CHAVES e NELSON ROSENWALD, Direitos Reais, pela Ed. Lumen Juris. 2 ALVIM, Arruda. Confronto entre Situao de Direito Real e de Direito Obrigacional. Prevalncia da Primeira, Prvia e Legitimamente Constituda Salvo Lei Expressa em Contrrio. Parecer publicado na Revista de Direito Privado, vol. 1, janeiro/maro de 2000. So Paulo: RT, 2000, pgs. 103/106.

  • 2

    d) eficcia erga omnes os direitos reais so oponveis a todas

    as pessoas, indistintamente. Ressalte-se, outrossim, que

    esta eficcia erga omnes deve ser entendida com ressalva,

    apenas no aspecto de sua oponibilidade, uma vez que o

    exerccio do direito real at mesmo o de propriedade, mais

    abrangente de todos dever ser sempre condicionado

    (relativizado) pela ordem jurdica positiva e pelo interesse

    social, uma vez que no vivemos mais a era da ditadura dos

    direitos3;

    e) inerncia ou aderncia o direito real adere coisa,

    acompanhado-a em todas as suas mutaes. Esta

    caracterstica ntida nos direitos reais em garantia

    (penhor, anticrese, hipoteca), uma vez que o credor

    (pignoratcio, anticrtico, hipotecrio), gozando de um

    direito real vinculado (aderido) coisa, prefere outros

    credores desprovidos desta prerrogativa;

    f) seqela como conseqncia da caracterstica anterior, o

    titular de um direito real poder perseguir a coisa afetada,

    para busc-la onde se encontre, e em mos de quem quer

    que seja. aspecto privativo dos direitos reais, no tendo o

    direito de seqela o titular de direitos pessoais ou

    obrigacionais;

    2. Posse

    Teorias Fundamentais da Posse

    Savigny Sua teoria simples. A posse consiste no poder exercido sobre

    determinada coisa, com a inteno, o propsito, de t-la para si. Seu

    conceito pode ser decomposto em dois elementos: animus (a inteno de

    3 Nesse sentido, j advertia DUGUIT: A propriedade no mais o direito subjetivo do proprietrio; a funo social do detentor da riqueza. (DUGUIT, Leon. Las Transformaciones Generales del Derecho Privado. Madri: Ed. Posada, 1931, pg. 37).

  • 3

    domnio, a vontade de ter a coisa como sua) e corpus (o poder, o contato

    direito sobre a coisa, a apreenso fsica da res). Por ser carregada de

    subjetivismo, esta teoria foi duramente criticada por Ihering. Ademais, no

    explicava bem a posse indireta, eis que a noo de corpus no estaria

    ntida. A despeito de suas falhas, indiscutivelmente, esta teoria influenciou-

    e influencia inmeros sistemas no mundo.

    Ihering Seu pensamento um pouco diferente. A posse no precisaria

    ser decomposta em dois elementos, pois o corpus no seria requisito

    independente. Seria um elemento implcito. Posse , simplesmente, em

    uma anlise objetiva, a exteriorizao da propriedade. Em outras palavras,

    possuidor a pessoa que exerce poderes de proprietrio, imprimindo

    destinao econmica coisa. Por considerar irrelevante a prova do animus

    inteno de ter a coisa como sua -, esta teoria conseguiu explicar, de

    maneira bem mais satisfatria, a posse indireta.

    Segundo a professora Mariana Santiago, pases que sofreram influncia do

    direito romano, como Frana, Portugal, Itlia, Espanha, Argentina seguiram

    a teoria subjetiva de Savigny. J pases como Alemanha, Sua, China,

    Mxico e Peru optaram pela teoria objetiva de Ihering (Teoria Subjetiva da

    Posse, a fonte o excelente site: www.jus.com.br).

    O Cdigo Civil Brasileiro, ao regular a posse, em seu art. 1196, optou, em

    nosso sentir, pela teoria objetiva (constitucionalmente reconstruda

    com base no princpio da funo social), mas, em diversos dispositivos,

    deixa-se influenciar pela corrente saviniana, a exemplo da disciplina da

    usucapio (vide, v.g., no art. 1238, a referncia inequvoca feita ao animus:

    possuir como seu).

    Kohler A posse seria um instituto social, admitida para garantir a paz

    social (tb. referida por Bevilqua, in Direito da Coisas). Trata-se de teoria

    sem a importncia das anteriores. Em nosso sentir, identifica-se com a

    prpria finalidade do direito que , exatamente, a garantia de pacificao

    social.

  • 4

    Questes Especiais de Concurso:

    1. O que o fmulo da posse?

    Trata-se do mero detentor da coisa, aquele que conserva a posse em nome

    de outrem (com mero animus detinendi), a exemplo do motorista particular

    ou do bibliotecrio (art. 1198).

    H, vale observar, entendimento no STJ, no sentido de que a ocupao em

    rea pblica traduz mera deteno:

    MANUTENO DE POSSE. OCUPAO DE REA PBLICA, ADMINISTRADA

    PELA TERRACAP COMPANHIA IMOBILIRIA DE BRASLIA.

    INADMISSIBILIDADE DA PROTEO POSSESSRIA.

    A ocupao de bem pblico no passa de simples deteno, caso em que

    se afigura inadmissvel o pleito de proteo possessria contra o rgo

    pblico.

    No induzem posse os atos de mera tolerncia (art. 497 do Cdigo

    Civil/1916). Precedentes do STJ.

    Recurso especial conhecido e provido.

    (REsp 489.732/DF, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA,

    julgado em 05.05.2005, DJ 13.06.2005 p. 310)

    Analisando a deteno, CRISTIANO CHAVES e NELSON ROSENVALD, em

    bela obra, observam:

    Perlustrando essa trilha, nota-se, ento, que o capataz de uma fazenda,

    como servidor da posse que , no concede destinao econmica coisa.4

    2. O que constituto possessrio?

    Trata-se da operao jurdica que altera a titularidade na posse, de maneira

    que, aquele que possua em seu prprio nome, passa a possuir em nome de

    outrem (Ex.: eu vendo a minha casa a Fredie, e continuo possuindo-a,

    como simples locatrio). Contrariamente, na traditio brevi manu, aquele

    que possua em nome alheio, passa a possuir em nome prprio (caso do

    locatrio, que adquire a propriedade da coisa locada). 4 Direitos Reais, 6 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pg. 75.

  • 5

    3. O que auto-tutela da posse?

    Trata-se de meio legtimo de auto-defesa, exercido segundo o princpio da

    proporcionalidade, operando-se em duas situaes: legtima defesa e

    desforo incontinenti. Tais atos de defesa devem ser moderados, e

    mediante o uso de meios necessrios. A sua disciplina feita no art. 1210,

    pargrafo primeiro do Cdigo Civil.

    4. O que interverso da posse?

    Tal expresso traduz a transformao ou a inverso no ttulo a posse, como

    se d na hiptese de o possuidor precrio (titular de uma posse de favor)

    passar a atuar na qualidade de legtimo proprietrio.

    Confira-se, a respeito, o enunciado 237, da III Jornada:

    237 Art. 1.203: cabvel a modificao do ttulo da posse interversio

    possessionis na hiptese em que o at ento possuidor direto demonstrar

    ato exterior e inequvoco de oposio ao antigo possuidor indireto, tendo

    por efeito a caracterizao do animus domini.

    5. O que patrimnio de afetao?

    Segundo Hrcules Aghiarian, Este novo sistema de direito real de garantia

    oferece oportunidade ao incorporador para destacar de seu patrimnio, ou

    de terceiros parceiros, um conjunto de bens que ser reconhecido como

    patrimnio autnomo. Constitudo pelos recursos obtidos com a

    comercializao das futuras unidades, pelas benfeitorias a serem agregadas

    a suas receitas, ou mesmo o prprio imvel sobre o qual venha a ser

    edificada a incorporao. Este patrimnio constitudo responder, quando

    necessrio, por quebras e outras indenizaes surgentes por culpa do

    incorporador, em favor dos referidos promitentes-compradores, ficando

    imune, alis, s responsabilidades pessoais daquele, como se ver (fonte:

    http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6408).

  • 6

    Consagrado na Lei n 10.931/04, o patrimnio de afetao visa a imprimir

    maior segurana jurdica nas relaes travadas no mbito do mercado

    imobilirio, especialmente em favor do consumidor.

    Neste sentido, informa o site Preciso Consultoria:

    Esta medida se torna relevante para evitar o que o mercado apelidou de

    efeito bicicleta ou pedalada, que significa a situao das empresas em

    dificuldade econmica que desviam recursos de um novo empreendimento

    para um anterior e assim sucessivamente, formando um ciclo vicioso que

    tantos prejuzos j causou no passado, ainda vivos na memria recente do

    pas. Com a nova regra, todas as dvidas, de natureza tributria, trabalhista

    e junto a instituies financeiras, ficam restritas ao empreendimento em

    construo, no tendo qualquer relao com outros compromissos e dvidas

    assumidas pela empresa. Dessa forma, na hiptese de ocorrer falncia da

    empresa construtora/incorporadora, os compradores podero dar

    continuidade obra, contratando outra empresa no lugar da falida,

    configurando o objetivo de garantir ao consumidor a entrega de imvel

    comprado na planta (fonte:

    http://www.precisao.eng.br/fmnresp/afeta.htm ).

    Principais Classificaes

    A) Posse Direta e Posse Indireta (art. 1197);

    B) Posse Justa e Posse Injusta (art. 1200);

    C) Posse de Boa-F e Posse de M-F (arts. 1201 e 1202);

    D) Posse Nova e Posse Velha;5

    Quem pode Adquirir a Posse (art. 1205)

    Modos de Perda da Posse (art. 1223)

    5 O CC-02 no repetiu os arts. 507 e 508 do CC anterior, que diferenciavam posse nova e velha, para efeito de pedido de liminar. Entretanto, entende-se que, nesse ponto, permanece em vigor o art. 924 do CPC. Lembramos que aspectos processuais, especialmente aes possessrias, integram outras grades do LFG, no constando do contedo do presente Curso Intensivo 1.

  • 7

    Principais Efeitos da Posse

    A) Percepo dos Frutos (arts. 1214, 1215, 1216)

    Vale lembrar, quanto aos produtos, que duas correntes de pensamento se

    desenvolveram na doutrina: a primeira, seguindo interpretao mais literal,

    sustenta que pertencem sempre ao proprietrio, na forma do art. 1232; j

    a segunda, entende que se pode aplicar, por analogia, a disciplina especial

    da percepo dos frutos do CC. Seguimos esta ltima linha de entendimento

    que, em nosso sentir, homenageia os princpios da boa-f e da funo scia.

    OBS.:

    Vale recordar...

    Conforme vimos nas aulas de Teoria Geral, frutos so utilidades

    renovveis, cuja percepo no diminui a substncia da coisa principal

    (exemplo: laranja, caf); j os produtos so utilidades que no se

    renovam, de maneira que a sua percepo diminui a substncia da coisa

    principal (pedras extradas de uma pedreira).6

    B) Responsabilidade pela Perda ou Deteriorao da Coisa (arts.

    1217 e 1218)

    C) Indenizao pelas Benfeitorias Realizadas e Direito de

    Reteno (arts. 1219 e 1220);

    D) Proteo Possessria;7

    3. Direito Real na Coisa Prpria Propriedade

    Conceito.

    6 Analisamos este tema, em co-autoria com Rodolfo Pamplona Filho, em nosso volume I Parte Geral, do Novo Curso de Direito Civil, no captulo Bens Jurdicos, Ed. Saraiva. 7 Tema desenvolvido em outra cadeira no curso LFG, conforme j mencionamos acima.

  • 8

    Trata-se de um direito real complexo, definido no art. 1228 do CC, e

    compreensivo das faculdades reais de usar, gozar/fruir, dispor e reivindicar

    a coisa segundo a sua funo social.

    Segundo Gustavo Tepedino, baseando-se em Perlingieri, a funo social da

    propriedade constitui o ttulo justificativo, a causa de atribuio dos

    poderes do seu titular, de maneira que:

    a propriedade, portanto, no seria mais aquela atribuio de poder

    tendencialmente plena, cujos confins so definidos externamente, ou, de

    qualquer modo, em carter predominantemente negativo, de tal modo que,

    at uma certa demarcao, o proprietrio teria espao livre para as suas

    atividades e para a emanao de sua senhoria sobre o bem. A determinao

    do contedo da propriedade, ao contrrio, depender de centros de

    interesses extra-proprietrios, os quais vo ser regulados no mbito da

    relao jurdica de propriedade (Temas Atuais de Direito Civil, Contornos

    Constitucionais da Propriedade Privada, Ed. Renovar).

    Caractersticas

    A) complexo pois formado por um plexo de poderes ou faculdades;

    B) absoluto pois a sua oponibilidade erga omnes;

    C) perptuo uma vez que no se extingue pelo simples no-uso;

    D) exclusivo nesse sentido entendido, pois afasta o exerccio do

    poder dominial de terceiro sobre a mesma coisa, ressalvando-se a

    situao do condomnio, em que h diviso ideal do bem;

    E) elstico8 - pois pode ser distendido ou contrado, para formar outros

    direitos reais, sem perder a sua essncia;

    Extenso (art. 1229 e art. 1230)

    8 Cuidado com esta caracterstica para concurso!

  • 9

    Principal Limitao Constitucional ao Direito de Propriedade A

    sua Funo Social (art. 5. , incs. XXII e XXIII)9

    Limitaes Legais Direitos de Vizinhana

    Trata-se do conjunto de regras que disciplina a convivncia pacfica entre

    vizinhos. Tm natureza de obrigaes propter rem.

    A) Uso Anormal da Propriedade (arts. 1277 e ss.);

    B) rvores Limtrofes (arts. 1282 e ss.);

    C) Passagem Forada (arts. 1286 e ss.);

    D) Passagem de Cabos e Tubulaes (arts. 1286 e ss.);

    E) Das guas (arts. 1288 e ss.);

    F) Limites e Direito de Tapagem (arts. 1297 e ss.);

    G) Direito de Construir (arts. 1299 e ss.)

    Faremos a anlise desse tema, em sala de aula, mas, desde j,

    recomendamos o texto escrito por LUIZ EDSON FACHIN, a respeito dos

    Direitos de Vizinhana, na obra coletiva Questes Controvertidas de

    Direito Civil vol. 2, Ed. Mtodo.

    TEXTOS COMPLEMENTARES

    TEXTO 01

    Posse: Fato ou Direito ?

    Arruda Alvim (texto gentilmente cedido pelo grande

    Professor, dos seus originais Comentrios ao Cdigo

    Civil)10

    9 Veja, a respeito da funo social, os textos complementares deste material de apoio. 10 Aproveitamos, inclusive, a oportunidade, querido (a) amigo (a), para recomendar a monumental obra recentemente publicada pelo Professor Arruda Alvim: Livro Introdutrio ao Direito das Coisas e o Direito Civil, bem como, em sequncia, a obra Comentrios aos arts. 1196 a 1276, esta ltima em co-autoria com a brilhante Profa. Monica Couto, publicao da Ed. Gen-Forense com a Faculdade Autnoma de Direito de So Paulo (Fadisp).

  • 10

    Num dos ngulos bsicos da viso possessria

    de Savigny ------ depois de colocar a questo consistente

    em se estabelecer se a posse fato ou direito ------

    constatamos a ser considerada, a posse, em si mesma,

    como um fato puro, em relao ao qual, todavia,

    encontram-se atreladas conseqncias de direito. Em

    realidade, mais explicitamente, a dvida a que consiste

    saber se a posse mero fato, ou, se fato e direito. A

    idia a de que a posse um fato; porm, melhor

    explicada, deve levar a que, conquanto seja um fato, no

    ela (apenas) um fato, no sentido de nesse se esgotar.

    Muito pelo contrrio, posse ligam-se conseqncias

    jurdicas de alta significao, e, ainda que se possa afirmar

    que ela fato, as aludidas conseqncias so insuscetveis

    de serem negadas. 11

    Ernst Immanuel Bekker, 12 sublinha a

    discusso em sua poca, em relao a ser a posse fato ou

    direito, afirmando que a posse, como comportamento e

    fazer [do possuidor] fato; como somatrio das

    conseqncias jurdicas, direito. Este ltimo autor, ao

    tratar da aquisio e perda da posse, fundamentalmente

    como fatos, conclui: A posse um fato. No um direito -

    --- nem ilcito --- acompanha [caminha com] o direito.

    H autores que sublinham que a posse

    elemento de durao de direitos, v.g., como Konrad Cosak,

    que diz: mas [a posse] objeto de um direito e como tal

    suporte ftico ou pelo menos elemento fundamental do

    Excelentes juristas participaram dos Comentrios ao Livro de Direito das Coisas, nesta coleo. 11 Friedrich Carl von Savigny, Das Recht des Besitzes, Eine civilitistische Abhandlung [O direito de posse - Dissertao civilstica], 7 ed, Viena, Carl Gedolds Sohn, 1865, 5, p. 43, onde diz que a posse um fato puro (,ein blosses Factum ist:) (v. notas 22 e ss, infra). 12 V. Ernst Immanuel Bekker, Das Recht des Besitzes bei den Rmern [O Direito da Posse nos Romanos], Leipzig, ed. Breitkopf und Hrtel, 1880, no captulo 5 (Ius und Factum) (Direito e Fato), p. 33 no original: Der Besitz ist ein Faktum. Er ist kein Recht, ----- kein Umrecht ----- er geht neben dem Rechte einher. Igualmente Anton Randa V. Der Besitz nach sterreichem Rechte [A posse no direito austraco], Leipzig, edio de Breitkopf e Hrtel, 1876, 3, p. 32.

  • 11

    suporte ftico para a subsistncia ou a perdurabilidade de

    um direito. 13 Afirma Konrad Bchel que fato porque o

    ladro pode ter posse, pois se fosse direito, haveria sempre

    de ser adquirida por meios jurdicos, onde diz que a posse

    somente pode ser entendida como relao de fato (Er

    kann demnach der Besitz nur als faktisches Verhltnis, als

    causa facti, in Betracht kommen, und mu daher berall

    als begrndet erscheinen, em vernculo: ( Por isto

    que a posse deve ser havida como relao de fato, como

    causa de fato, e por isso, acima de tudo, deve aparecer

    como fundada,). 14

    Anton Friedrich Justus Thibaut, por sua vez,

    estabelece os elementos materiais da posse, dizendo que,

    em conformidade com o prprio significado romano, que ,

    tambm, no seu sentir, o do direito alemo, possidere,

    significa poder fsico: O possidere romano indica, tal como

    o alemo possuir, entendido a partir do sentido originrio

    da palavra significa o fato de algum poder sentar numa

    coisa ou de ter poder fsico de apreenso de um corpo. 15

    Mas relevante no deixarmos de ter

    presente que a posse no se reduz a um mero fato, seno

    que provoca uma srie grande de conseqncias de ordem

    jurdica. Essa posio, entre muitos, a de Dernburg,

    depois de descrever a posse em si mesma, ou, numa

    posio que pode ser designada de esttica. Diz que A

    posse como tal no um direito. Todavia, na maioria dos

    casos a ela corresponde o direito.16 Essas noes so,

    13 V. Konrad Cosac, Der Besitz des Erben [A posse dos herdeiros], Weimar, Bhlau, 1877, p. 4 no original: aber er ist Gegenstand eines Rechtes und als solcher Thatbestand oder wenigstens Hauptelemente des Thatbestands fr die Entstehung und Fortdauer eines Rechtes. 14 V. Konrad Bchel, Ueber die Natur des Besitzes [Sobre a natureza da Posse], Marburg, ed. Elwert, 1868, p. 8. 15 V. Anton Friedrich Justus Thibaut, na sua obra Ueber Besitz und Verjrung [Sobre Posse e Prescrio], Jena, edio Michael Mauke, 1802, I - no original: Das Rmische possidere deutet, wie das Deutsche Besien, seinem ursprnglichen Worte verstande zufolge, das Factum an, da Jemand eine krperliche Sache durch Sien oder krperliches Begreifen in seiner physichen Gewalt hat,. 16 V. Heinrich Dernburg, Das Sachenrecht des Deutschen Reichs und Preuens [O direito das coisas no Reino alemo e da Prssia], 4 ed. retrabalhada, edio da Halle S.A. - Livraria Waisenhauses, 1908, 11, p.

  • 12

    substancialmente, repetidas em livros contemporneos, 17

    o que no significa para esses autores, tambm, que no

    ocorram significativas conseqncias jurdicas, a partir ou

    ainda que a partir da afirmao categrica de que a posse

    um fato. Em realidade, a afirmao feita por esses

    autores (inclusive Savigny) deve ser lida como significando

    que a posse apenas um fato, em si mesma considerada.

    Essa afirmao, por certo, no se estende e no pretende

    afastar o conjunto imenso de efeitos jurdicos, que derivam

    do fato da posse, como se acentuou.

    Mas, para que se configure esse fato da posse

    ------ diferentemente da situao de deteno, onde h,

    tambm, uma situao aparente de poder (controle

    material) sobre uma coisa, que se mostra exteriormente tal

    como se fosse posse ------ necessrio que haja uma

    inteno especfica, a que denominou de animus domini,

    no entender de Savigny, posio que no a do nosso

    Cdigo Civil e no o era do de 1.916. Na deteno h de

    reconhecer-se uma situao de fato a que corresponderia a

    uma situao jurdica. A situao de fato do detentor

    corresponderia propriedade. 18 atravs do animus

    possidendi que essa situao de deteno se ala

    situao de posse, no sendo esta, todavia, a noo de

    deteno assumida por este Cdigo e nem pelo Cdigo Civil

    de 1916. 19 E, o animus possidendi, a seu turno, explica-se

    49 (Conceito e essncia da Posse), - no original: Der Besi als solcher ist kein Recht. Doch in der Mehrheit der Flle entspricht er dem Rechte. 17 V. Jan Shapp e Wolfgang Schur, Sachenrecht [Direito das Coisas], Munique, 2002, ed. Vahlen, 5, b, n 44, p. 26, onde se l que a Posse fato, no direito (Der Besitz ist Tatsache, kein Recht destaque do original) 18 V. Friedrich Carl von Savigny, Das Recht des Besitzes, Eine civilitistische Abhandlung [O direito de posse - Dissertao civilstica], 7 ed., Viena, Carl Gedolds Sohn, 1865, 1, p. 27) [, so liegt in der Detention die Ausbung des Eigenthums, und sie ist der f a c t i s c h e Zustand, welcher dem Eigenthum, als einem r e c h t l i c h e n Zustand, correspondiert] (destaques do autor) (reside na deteno o exerccio da propriedade, e ela a s i t u a o ftica, atravs da qual a propriedade, como uma situao j u r d i c a , corresponde) - (destaques do original). 19 V. Friedrich Carl von Savigny, Das Recht des Besitzes, Eine civilitistische Abhandlung [O direito de posse, Dissertao civilstica], cit., 9, p. 109, onde diz que por meio do qual [animus possidendi] que a deteno foi alada situao de posse -----, durch welchen [animus possidendi] die Detention zum Besitz erhoben wurde. V. comentrios aos arts. 1.198

  • 13

    pelo animus domini ou animus rem sibi habendi, que o

    animus (ou, a inteno) que s o possuidor pode exercitar,

    como se proprietrio fosse e como este se comportaria em

    relao coisa; ou seja, ele quer faticamente exercer

    senhoria [sobre a coisa], tal como um proprietrio exerce o

    seu direito.

    Embora freqentemente utilizada, a expresso

    animus domini no encontra apoio em nenhum texto do

    direito romano, sendo uma traduo apontada da parfrase

    de Tefilo que no corresponderia traduo de animus

    domini, mas animus dominantis. Ao contrrio encontra-se,

    ainda que escassamente, a expresso animus possidendi,

    com suas expresses anlogas animus possidentis, animus

    possessionis. 20 - 21 A concepo de Savigny teve como

    pano de fundo a inspirao, possivelmente, do pensamento

    de Kant 22, e a noo de liberdade, i.e., a esfera de

    liberdade do possuidor e a agresso a essa situao, que

    justificava a defesa da posse. 23

    e 1.208, em que, ao lado dos comentrios a esses textos, se procura estudar a deteno nos quadros das teorias subjetiva e objetiva. 20 V. Paola Lambrini, LElemento Soggettivo nelle Situazioni Possessorie Del Diritto Romano Classico [O Elemento Subjetivo nas Situaes Possessrias do Direito Romano Clssico], Padova, Cedam, 1998, p. 28. 21 V. Savigny, Das Recht des Besitzes, Eine civilitistische Abhandlung, cit., 9, p. 110 [O direito de posse, Dissertao civilstica], onde est dito: de tal forma que animus possidendi atravs do animus domini ou animus rem sibi habendi demandam ser esclarecidos, [e] por conseqncia somente vale para o que possuidor, de cuja coisa ele se comporta como proprietrio [e] tem a deteno, isto , em relao qual ele tem o controle material, tal como um proprietrio est autorizado em razo do seu direito) no original: , so da der animus possidendi durch animus domini oder animus sibi habendi erklrt werden mu, folglich nur der als Besitzer gelten kann, welcher die Sache als Eigenthmer behandelt, deren Detention er hat, d. h., welcher sie factisch eben so beherrschen will, wie ein Eigenthmer Kraft seines Rechts zu thun befugt ist, . Com essa explicao, v. Moreira Alves, Posse, 2 ed., 2. tiragem, Rio de Janeiro, Forense, 1997, vol. I, p. 212, nota 692. 22 Disse o autor francs Jean-Marc Trigeaud: La possession-droit savignienne coincide pleinement dans sa configuration et sa structure avec la notion Kantienne (A posse-direito savigniana coincide inteiramente na sua configurao e estrutura com a noo kantiana). Para uma sntese da influncia de Kant e do idealismo alemo na teoria de Savigny, v. Jean-Marc Trigeaud, La Possession des Biens Immobiliers, Economica, 1981, p.459 e ss. 23 Para uma notcia ampla, v. Moreira Alves, Posse, 1. ed., 2. tiragem, vol. I, cit., 1997, pp. 209-210 e nota 691, da p. 209. Observa-se dessa informao (nota 691) que, at mesmo alguns lineamentos da idia de

  • 14

    Se, v.g., o proprietrio que exerce a posse,

    correspondente ao direito de propriedade, esta uma

    manifestao do direito subjetivo de que titular; se,

    diferentemente, outrem o possuidor (sem titularidade

    alguma), a situao diferente, justificando-se a si

    prpria.24

    A concepo de Savigny teve como mrito

    realar os dois elementos que compem a base do

    fenmeno possessrio (corpus e animus); no teria,

    porm, resistido s observaes e objees traadas por

    Ihering, que procurou desmontar a teoria de Savigny.

    Segundo palavras de Ihering Llamar a la posesin de las

    cosas exterioridad o visibilidad de la propiedad, es resumir

    en una frase toda la teoria posesoria 25.

    De outra parte, ainda, Ihering nunca negou o

    papel da vontade, pois no h dvida de que a posse exige

    o querer como pressuposto do ter (rectius, possuir).

    Como explica Cornil, responsvel por aprofundar a teoria

    objetiva: Em toda relao possessria est implicada

    necessariamente a vontade. Sem vontade a relao

    exterior com a coisa, fosse mesmo um contato corporal

    imediato, uma simples relao de justaposio local a

    que completamente indiferente o direito. 26 Contudo, no

    que tange ao nus da prova da posse, a comprovao do

    animus colocaria o julgador em posio difcil. Assim, o que

    deve determinar a existncia da posse relaciona-se com o

    posse, tal como fora entendida por Kant, teriam penetrado no pensamento de Savigny (V. no Livro Introdutrio ao Direito das Coisas e o Direito Civil item 1.8.2, nota 109, o texto de Kant). 24 V. Fedele, ob. ult. cit., I, 2, p. 14, o qual explica a ltima situao do texto como um fenmeno autnomo (possideo quia possideo ----- possuo porque possuo; possuo como estava possuindo). 25 V. Rudolf von Ihering, La Teoria de La Posesin, 2 ed., trad. Adolfo Posada, Madrid, 1912, tomo I, p. 222. 26 V. Cornil, Trait de la Possession dans le Droit Romain, Paris, 1905, pp. 34 e ss. no original: Tout rapport possessoire implique ncessairement la volont. Sans volont le rapport extrieur avec une chose, ft-il mme un contact corporel immdiat, est un simple rapport de juxtaposition locale compltement indiffrent en droit.

  • 15

    seu perfil (em rigor, perfil externo, o que aparece), tal

    como reconhecido pelo ordenamento jurdico27.

    Ihering procurou demonstrar que a distino

    entre posse (possessio civilis) e deteno (possessio

    naturalis) com base no animus possidendi, no tinha

    sustentao perante o direito romano 28. A teoria de

    Ihering foi amplamente aceita, mas a influncia de Savigny

    foi extremamente grande nas codificaes que

    acompanharam o final do sculo XIX como demonstra

    Cornil. 29

    A teoria de Ihering teria superado a teoria

    subjetiva de Savigny menos pela demonstrao lgico-

    formal, mas atravs de uma constatao e construo

    27 Diz Ihering: Cuando las dos condiciones de la posesin, esto es, el corpus y el animus, concurren, se tiene siempre posesin, a menos que una disposicin legal no prescriba excepcionalmente, que slo hay simple tenencia (grifos do autor). (Ihering, La voluntad en la Posesin, trad. Adolfo Posada do original Der Besitzwille, Madrid, 1910, t. II, p. 22). 28 Como afirma Ihering El animus domini seala el punto de partida de mis vacilaciones acerca de la exactidud de la teoria de Savigny. Leyendo las fuentes, me he encontrado con textos que no es posible armonizar con ellas, y de los cuales he hablado en el cap. XV. Tales textos produjeron en mi la conviccin de que, para determinar ante las condiciones legales exteriores de la posesin, o del corpus, si hay posesin o tenencia, en materia de posesin derivada, lo decisivo, en mi concepto, aunque sea en contra del sentimento y de la intencin de las partes, no es la diversidad de la voluntad de poseer, sino la naturaleza de la relacin existente; la causa posessionis o el momento causal de la posesin, como yo lo llamo (Ihering, La voluntad en la Posesin, trad. Adolfo Posada do original Der Besitzwille, cit., t. II, p. 8). 29 Para uma simples visualizao da influncia do animus na definio da posse em algumas legislaes, arroladas por Cornil: Cdigo Civil da Saxnia de 1863, 186: Aquele que tem realmente uma coisa em seu poder e se h a vontade de exercer [o direito de] propriedade por si prprio, este o seu possuidor (Celui qui a une chose rellement en son pouvoir, en est dtenteur, et sil a la volont dexercer sur la chose la proprit pour lui-mme, il en est possesseur) ; Cdigo do Canto de Zurique (Sua), art. 64: a aquisio da posse subordinada, em princpio, a duas condies: 1. ; A vontade de exercer esse poder material sobre a coisa (Lacquisition de la possession est subordonne, en principe, deux conditions: 1..., 2 La volont dexercer ce pouvoir matriel sur la chose); Cdigo espanhol de 1889, art. 430: A posse civil esta mesma deteno, ou este mesmo gozo, unido inteno de considerar a coisa ou o direito, como propriedade - (La possession civile est cette mme dtention, ou cette mme jouissance, unie lintention de considrer la chose, ou le droit, comme la proprit); Cdigo Civil Japons de 1896, art. 180: A posse se adquire pela deteno de uma coisa com a inteno de a exercer no seu prprio interesse- (La possession sacquiert par la dtention de la chose avec lintention de lexerer dans son propre intrt).V. Cornil, Trait de la Possession dans de Droit Romain, Paris, 1905, p. 544 ss.

  • 16

    terica mais prximas da realidade. Priorizou a viso

    realista dos institutos, o que s possvel com a percepo

    dos fins para os quais os mesmos existem (mtodo

    teleolgico). No h dvida de que essa posio

    corresponde ao pensamento de Ihering em sua segunda

    fase, pois o mesmo viveu um perodo de transio do

    pensamento positivista do sculo XIX. Num primeiro

    momento, valorizou a jurisprudncia dos conceitos e todo o

    seu formalismo racional, por influncia de Puchta, posio

    que mais tarde abandonou ante a incapacidade ou

    impotncia da jurisprudncia dos conceitos se adaptar

    evoluo econmica, bem como em fornecer solues aos

    problemas sociais. A jurisprudncia dos conceitos revelava-

    se como um espelho dos arqutipos existentes nas fontes

    romanas, situao incompatvel com o ambiente social da

    segunda metade do sculo XIX. A segunda fase de Ihering

    assenta-se em seu amadurecimento e na adoo de uma

    viso pragmtica, a qual correspondeu ao elemento

    catalisador para o surgimento da jurisprudncia dos

    interesses. 30

    A histria demonstrou que os romanos sempre

    foram avessos a elaboraes cientficas, no sentido de

    formular abstraes, pois estavam mais preocupados em

    propiciar solues prticas aos problemas do cotidiano.

    TEXTO 02 Da funo social da propriedade imvel. Estudos do princpio constitucional e de sua regulamentao pelo novo Cdigo Civil brasileiro Juliano Taveira Bernardes juiz federal em Gois, professor na Universidade Federal de Gois, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Braslia(UnB), ex-membro da magistratura e do Ministrio Pblico do Estado de Gois,membro do IBDC (Instituto Brasileiro de Direito Constitucional) 30 Para maiores esclarecimentos, vide Karl Larenz, Metodologia da Cincia do Direito, Lisboa, 1997, Fundao Calouste Gulbenkian. trad. orig. Methodenlehre der Rechtswissenschaft [6 edio, 1991], p. 55 ss.

  • 17

    Texto disponvel no Jus Navigandi http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4573

    1 - INTRODUO

    Surgida no ordenamento jurdico ptrio aps a edio do Cdigo Civil de 1916, a funo social da propriedade recebeu importantes contribuies da Constituio de 1988. Mas, nem bem analisadas as implicaes da atual Constituio em relao antiga legislao civil, veio a lume o novo Cdigo Civil (Lei 10.406, de 10/01/2002), que promoveu significativas mudanas acerca da matria. Logo, oportuno estudar as inovaes obtidas e os problemas que surgiro com a recente concretizao do instituto por meio do novo Cdigo Civil.

    Nesse esforo, o estudo comear pela conceituao da funo social da propriedade, passando por breve histrico. Aps, pretender-se- demonstrar o porqu e as conseqncias advindas do enquadramento do instituto na acepo de princpio constitucional. Em seguida, partindo da interpretao da Constituio de 1988, o tema proposto ser explorado em viso sistemtica abrangente, no olvidando a legislao que, paralelamente ao Cdigo Civil, promove a regulamentao da funo social da propriedade. Somente ento, no ltimo item do trabalho, que sero analisados artigos especficos que tocam a questo, no novo Cdigo Civil, buscando interlig-los s normas preexistentes, especialmente ao recente Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 11/07/2001).

    Destarte, a preocupao maior do subscritor ser uma exegese que no se limite s legislao civil recm-editada, mas a ela se chegue aps estudar todo o sistema normativo em que se insere o princpio da funo social e as regras que lhe do corpo. Intenta-se, dessa forma, superar a pouca literatura e nenhuma jurisprudncia acerca da Lei 10.406/2002.

    Por fim, quanto ao corte temtico, o trabalho concentrar-se- na funo social da propriedade imvel, a despeito de o princpio incidir tambm em face de outros tipos de propriedade.

    2 DA FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADE

    Antes de iniciar a exposio sobre o que vem a ser a chamada funo social da propriedade, no se pode olvidar que o princpio da funo social tem como pressuposto necessrio a propriedade. (1) Da, de bom alvitre cuidar simultaneamente, ainda que em breves linhas, do liame umbilical existente entre funo social e direito de propriedade.

    Nesse prumo, o Cdigo de Napoleo qualificou o direito de propriedade, na esfera privada, como o "direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que delas no se faa uso proibido pelas

  • 18

    leis e regulamentos" (art. 436).

    De sua vez, a aplicao do princpio da funo social da propriedadedescaracteriza o acerto dessa velha concepo civilista, imantando o direito de propriedade com um dever de agir, e no apenas uma obrigao de no fazer (funo social ativa). (2) Assim, a propriedade, modernamente, converteu-se em poder-dever voltado destinao do bem a objetivos que transcendem o simples interesse do proprietrio.

    Porm, no se confunde a funo social com as limitaes da propriedade contidas no direito civil, (3) tampouco com as limitaes administrativas. (4) Mesmo sendo invlido afirmar que se resumem a prestaes de no fazer, as limitaes constituem condio de exerccio do direito. J a funo social est ligada aos deveres inerentes ao exerccio da propriedade, convertendo-se em "elemento da estrutura e do regime jurdico da propriedade". (5) Como afirma ARAJO S, as limitaes administrativas tm fundamento no na funo social da propriedade mas no poder de polcia, e so externas ao direito de propriedade, interferindo to-somente no exerccio do direito, enquanto a funo social interfere no conceito e na estrutura do direito de propriedade. (6)

    Mesmo a desapropriao, instituto bastante associado funo social, com ela no se pode baralhar, ainda que o descumprimento desta possa implicar a decretao de desapropriao. O que sucede simples relao de causa e efeito.

    Como dizem GUSTAVO TEPEDINO e ANDERSON SCHREIBER, a funcionalizao da propriedade introduz critrio de valorao de sua prpria titularidade, que passa a exigir atuaes positivas de seu titular, a fim de adequar-se tarefa que dele se espera na sociedade. (7)

    Aproveitando-se da definio do jus-agrarista argentino ANTONINO C. VIVANCO, citado por TORMINN BORGES, o princpio da funo social consiste na obrigao condicionante do exerccio da propriedade a interesses que transcendem a vontade do proprietrio, de modo a satisfazer indiretamente as necessidades dos demais membros da comunidade. (8)

    Enfim, com arrimo em PIETRO PERLINGERI, pode-se dizer que a funo social converteu-se em ttulo justificativo, verdadeira causa de atribuio dos poderes do titular da propriedade. (9)

    3 BREVE HISTRICO DA FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADE

    a partir das obras de direito agrrio que melhor se remonta o retrospecto da funo social da propriedade. Nessa linha, percebe-se que a evoluo do instituto andou de mos dadas com o desenvolvimento do direito de propriedade.

    Com base na obra do ilustre professor da Faculdade de Direito da

  • 19

    Universidade Federal de Gois BENEDITO FERREIRA MARQUES, (10) as origens do princpio da funo social esto em lies de ARISTTELES, o primeiro a entender que aos bens se deveria dar uma destinao social.

    Depois de ARISTTELES, a idia s foi impulsionada por TOMS DE AQUINO. O conceito tomista de propriedade possua trs planos distintos na ordem de valores. (11) No primeiro deles, o homem teria um direito natural ao apossamento de bens materiais, dada sua natureza de animal racional, como forma de manter sua prpria sobrevivncia. No segundo, considerou-se que o homem no poderia refletir apenas acerca de sua sobrevivncia imediata, como ocorre com os animais irracionais, porque deveria pensar tambm no amanh, pois, para que fosse verdadeiramente livre, precisaria estar ao abrigo das surpresas econmicas. Num terceiro plano, permitir-se-ia o condicionamento da propriedade em razo do momento histrico de cada povo, desde que no se chegasse a neg-lo. Ou seja, embora a propriedade consistiria num direito natural, o proprietrio no poderia abstrair-se do dever do zelar pelo "bem comum". (12)

    Em seguida, operaram-se vrias fases da evoluo do conceito de direito de propriedade, at que o Cdigo de Napoleo o fixasse com caractersticas quase absolutas, conforme dispunha o j transcrito art. 436. E foi com base nessa clssica definio francesa que os cdigos civis que se sucederam buscaram inspirao, inclusive o brasileiro.

    Porm, segundo MARQUES, "foi com Duguit, escorado no pensamento positivista de Comte, que o direito de propriedade se despiu do carter subjetivista que o impregnava, para ceder espao idia de que a propriedade era, em si, uma funo social." (13) Assim, afirma MARQUES, o grande impulso s idias de subordinao da propriedade a uma finalidade social teve incio com a clebre palestra proferida por DUGUIT em Buenos Aires no ano de 1911.

    Tambm GUSTAVO TEPEDINO e ANDERSON SCHREIBER creditam a DUGUIT a difuso do termo funo social da propriedade, o qual teria sido primeiramente estampado na obra Les transformations du droit prive depuisle Code Napolon. (14) Os mesmos autores lembram, mais, da contribuio da doutrina italiana. Citando SALVATORE PUGLIATTI e STEFANO RODOT, prosseguem TEPEDINO e SCHREIBER, foi na Itlia que se soube dar funo social seu melhor sentido, "no como uma categoria oposta ao direito subjetivo, mas como um elemento capaz de alterar-lhe a estrutura, inserindo-se em seu profilo interno e atuando como critrio de valorao do exerccio do direito, o qual dever ser direcionado para um massimo sociale." (15)

    Dignas de registro, ainda, so as influncias das teorias marxistas aapregoar a coletivizao da propriedade individual. Tampouco se esquea a importncia da Igreja Catlica, especialmente as encclicas papais de 1891 (Rerum Novarum, de Leo XIII), de 1931 (Quadragesimo Anno, de Pio XI) ede 1962 (Mater et Magistra, de Joo XXIII).

    No Brasil, com apoio em LIMA STEFANINI e FERNANDO PEREIRA SODERO, anota MARQUES que, desde a concesso das chamadas

  • 20

    sesmarias, j havia preocupao com o cumprimento da funo social, pois os sesmeiros deveriam cultivar a terra e da tirar-lhe aproveitamento econmico. Afirma ainda, embasado em estudo de ROSALINA RODRIGUES PEREIRA, que tambm as Ordenaes Manoelinas e Filipinas j se ocupavam de questes ligadas ao uso do solo e a tcnicas agrcolas.

    Aps a independncia, a Constituio de 1824 no se dedicou especificamente ao tema, afirmando o direito de propriedade "em toda sua plenitude", ressalvada uma "nica" exceo: o uso pblico indenizado do bem, quando legalmente necessrio (art. 179, XXII).

    Sob o governo republicano da Constituio de 1891, pouco se evoluiu, salvo na parte em que prevista a desapropriao por necessidade ou utilidade pblica. Outrossim, muito influenciado pelo Cdigo de Napoleo, o Cdigo Civil de 1916 no incrementou a funo social da propriedade, limitando-se a regular genericamente os casos de necessidade e de utilidade pblica, para fins de desapropriao (art. 590 e 1 e 2), e de requisio de bens por autoridade pblica (art. 591 e par. nico).

    A seguir, a funo social s ganhou algum espao na Constituio de 1934, cujo artigo 113, n. 17, estabelecia que o direito de propriedade no poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma da lei.

    Nenhum desenvolvimento se fez sentir na Constituio de 1937, mas a Constituio de 1946 condicionou o uso da propriedade ao "bem-estar social" (art. 147), dando ento margem a regulamentao por meio da Lei 4.132, de 10/09/62, que at hoje cuida dos casos de desapropriao por interesse social. No bastasse, nos trabalhos legislativos que culminaram com a aprovao da desapropriao por interesse social na CF/46, a proposta de emenda apresentada pelo Senador FERREIRA DE SOUZA j abordava expressamente a questo da funo social, como informa MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO. (16)

    Ento, editado o Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30/11/64), seu artigo 2 expressamente tratou da funo social do imvel rural. (17) Da por diante, a expresso "funo social" foi incorporada nas Constituies posteriores, (18) at se chegar atual Constituio de 1988. Nesta, a inspirao mais prxima, segundo MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, deve-se doutrina social da Igreja Catlica, especialmente s Encclicas Mater et Magistra, do Papa Joo XXIII, e Populorum Progressio, do Papa Joo Paulo II, "nas quais se associou a propriedade a uma funo social, ou seja, funo de servir como instrumento para a criao de bens necessrios subsistncia de toda a humanidade." (19)

    4 - DA FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO PRINCPIO CONSTITUCIONAL

    No faz parte deste estudo a conceituao do que vem a ser "norma jurdica", tampouco a questo da estrutura lgica das chamadas

  • 21

    "proposies jurdicas". (20) Porm, sem menosprezar as polmicas doutrinrias acerca do tema, num primeiro esforo de categorizao, j se afirma que tanto as regras como os princpios sero neste estudo enquadrados na definio lato sensu de normas jurdicas. (21) Dessa forma, aclassificao das normas jurdicas em sentido estrito, de modo a nestas incluir somente as regras e no os princpios, ser de todo irrelevante, salvonaquilo que de alguma forma possa exprimir censurvel tendncia de negar aos princpios contedo normativo. (22)

    De sua vez, entendem-se por regras as disposies (interpretadas) que estabelecem mandatos, proibies ou permisses de atuao em situaes concretas previstas nelas mesmas. (23) No conceito de CANOTILHO, regras "so normas que, verificados determinados pressupostos, exigem, probem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer exceo." (24)

    J a conceituao de princpios mais difcil. Para este estudo, devem ser entendidos como normas que proporcionam critrios para tomadas de posies ante situaes concretas indeterminadas. (25) Na festejada definio de CELSO ANTNIO BANDEIRA DE MELLO:

    Princpio (...) , por definio, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposio fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o esprito e servindo de critrio para sua exata compreenso e inteligncia, exatamente por definir a lgica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tnica e lhe d sentido harmnico. (26)

    Tratando j daqueles estampados em textos constitucionais, "os princpios so ncleos de condensao nos quais confluem bens e valores constitucionais" (CANTILHO e VITAL MOREIRA); (27) "so ordenaes que se irradiam e imantam os sistemas de normas" (AFONSO DA SILVA). (28) Assim, a normatizao e a constitucionalizao conferiu aos princpios constitucionais o status hierrquico de "normas-chaves" do sistema jurdico (BONAVIDES). (29)

    Dito isso, para se saber se a funo social, como concebida na CF/88, princpio ou regra, cabe expor alguns critrios para diferenci-los. Nessa tarefa, a despeito dos clssicos e extratificados critrios de distino apontados por CANOTILHO, (30) de bom alvitre enunci-los de forma menos resumida, com apoio, principalmente, na obra j mencionada de EROS ROBERTO GRAU. (31)

    Assim, tem-se que as regras jurdicas so aplicveis por completo, ou no se aplicam de modo absoluto. Na dico de DWORKIN, aplicam-se maneira de um tudo ou nada (an all or nothing), (32) no comportando excees. (33) Presentes os pressupostos fticos a que se refira, a regra (vlida) h de ser aplicada. (34)

    J os princpios sequer exigem a indicao das condies necessrias sua incidncia, pois no configuram uma deciso concreta a ser necessariamente tomada. Em vez disso, os princpios se qualificam

  • 22

    como mandamentos de otimizao, (35) acenando uma vontade normativa inclinada a certa direo. No dizer de ALEXY, os princpios ordenam algo que deve ser realizado na maior medida possvel, tendo em conta as possibilidades jurdicas e fticas. (36) Da, os princpios no contm mandamentos definitivos, mas somente prima facie. (37)

    Dessa maneira, com apoio em BOULAGER, citado por EROS ROBERTO GRAU, pode-se afirmar que os princpios, ao contrrio das regras, no admitem a prpria enunciao das hipteses nas quais no se aplicam, bem como carecem de contedo de determinao relativo aos princpios contrapostos e as possibilidade fticas, (38) porquanto "so aptos a serem aplicados a uma srie indefinida de situaes". (39)

    Devido a esse alto grau de abstrao, demandam os princpios constitucionais medidas concretizadoras, o que feito por meio de outros princpios de maior densidade (40) (subprincpios), (41) ou mesmo por regras, at chegar-se, na ponta de final de sua incidncia ftica, na descoberta da "norma de deciso" do caso jurdico-constitucional. (42) Ademais, ainda quando se manifestam as condies nele previstas, um princpio no se aplica automaticamente. que, em determinado caso, pode tambm incidir um princpio diverso, apontado em sentido diverso. Surge ento outra diferena dos princpios frente s regras jurdicas: como somente uma regrapode incidir em face de uma idntica situao, se duas ou mais regras estoem choque, (43) apenas uma ou nenhuma delas poder ser considerada vlida regulao da situao concreta, surgindo da um problema de antinomia jurdica a ser resolvido. (44) Contudo, mais de um princpio pode regular uma mesma situao, pois princpios diversos comportam juzo de ponderao relativa, cujo resultado poder ser a prevalncia de um em detrimento do outro. Consoante sintetizado por BONAVIDES, com base em ALEXY, resolve-se o conflito de regras na dimenso da "validade", enquanto o conflito de princpios resolvido na dimenso do "valor". (45)

    Sem embargo, cabe ressaltar no haver antinomia entre princpios e regras. Se as regras servem para densificar princpios, o eventual conflito envolve, na verdade, o prprio princpio objeto de densificao. Logo, quando um princpio antagnico deva prevalecer, a regra contrastante simplesmente afastada da regulao da situao concreta, acompanhando o prprio princpio desprezado. (46)

    Por fim, em vigor a Constituio de 1988, encaixa-se perfeitamente no conceito de princpio constitucional explcito a exigncia de que a propriedade cumpra sua funo social (inciso XXIII do art. 5). que a observncia da funo social da propriedade no se aplica maneira de um tudo ou nada, tampouco se pode, de antemo, indicar todas as condies necessrias sua incidncia. Em vez disso, a verificao do cumprimento dafuno social pode exigir juzos de ponderao em face de outros princpios, sendo necessria a "concretizao" de seu alto grau de abstrao. (47) Essa a concluso de JOS AFONSO DA SILVA, para quem a norma-princpio contida nesse dispositivo de aplicabilidade imediata. (48)

  • 23

    5 O PRINCPIO DA FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIODE 1988

    J foi dito que a Constituio de 1988 tratou da exigncia de que a propriedade cumpra sua funo social no inciso XXIII do art. 5. Mas a Constituio tambm se referiu funo social na redao original do 1 do art. 156 (hoje alterado pela EC n. 29, de 13/09/2000), no inciso III do art. 170, no 2 do art. 182, no caput do art. 184, no par. nico do art. 185e no art. 186. Outrossim, o Poder Constituinte derivado se valeu da expresso em tela no inciso I do 1 do art. 173, na redao dada pela EC n. 19, de 04/06/98. (49)

    bem verdade que EROS ROBERTO GRAU sustenta que a referncia funo social contida no inciso XXIII do art. 5 no se justificaria. Defende o ilustre mestre, por essa norma estaria garantida a propriedade individual, cuja utilizao, como instrumento voltado subsistncia individual e familiar, estaria servindo a uma funo individual ligada ao princpio da dignidade da pessoa humana, da por que imune questo da funo social. (50)

    Porm, no s com base na premissa de que na Constituio no h palavras inteis, pode-se perfeitamente sustentar que toda e qualquer propriedade privada, material ou imaterial, individual ou coletiva, urbana ou rural, mvel ou imvel, deve atender funo social. (51) De efeito, o princpio atua de forma diferente em relao a cada tipo de propriedade, conforme a destinao reservada aos respectivos bens. (52) Via de regra, a lei que dispe sobre como a funo social estar sendo cumprida, caso a caso. (53) Nesse pensar, o que pode ocorrer que a destinao individual do bem satisfaa funo que socialmente dele se espera. (54) Ou seja, cumprindo com sua funo individual, o exerccio do direito de propriedade poder estar tambm obedecendo funo social, mas isso no significa que a propriedade destinada subsistncia individual esteja de antemo imune funo social. Tanto no est que o prprio EROS ROBERTO GRAU tratou de estabelecer exceo a esse raciocnio, dizendo que a propriedade individual pode exceder sua funo meramente individual quando "detida para fins de especulao ou acumulada sem destinao ao uso a que se volta." (55)

    evidente, contudo, que na Constituio no houve maior preocupao com a concretizao das normas que dispem acerca do princpio da funo social da propriedade, salvo em relao aos imveis rurais e, com menor intensidade, em face dos imveis urbanos. Em razo disso, h quem sustente que as medidas voltadas contra o descumprimento da funo social "s podem ter por objeto terras particulares, sejam urbanas ou rurais." (56) Porm, consoante exposto, cada tipo de propriedade sujeita-se a determinados modos de cumprimento da funo social. De fato,a razo do tratamento mais exaustivo do tema da funo social em relao aos imveis rurais est no maior esforo de regulamentao dos parlamentares ruralistas. Mas isso, nem de longe, pode excluir a incidncia do princpio a respeito dos demais tipos de propriedade. (57) Confirma-se esse raciocnio quando se sabe que o conceito de propriedade mais amplo

  • 24

    que o de domnio, pois abrange tambm os bens imateriais.

    Enfim, no se pautando o exerccio da propriedade dentro dos pressupostos da funo social, sujeita-se o proprietrio expropriao de seu direito, seja qual for a modalidade de propriedade. E contra isso no se pode alegar que a Constituio s se referiu ao descumprimento da funo social, como causa deflagradora de desapropriao, naquela movida por interesse social para fins de reforma agrria (art. 184). Com efeito, essa assertiva apenas enuncia que o cumprimento da funo social integra o conceito de interesse social para fins de desapropriao. No se pode negar,porm, que o atual diploma legal que regula a desapropriao por interesse social (Lei 4.132, de 10/09/62) no contemplou expressamente a hiptese de inobservncia da funo social. Isso se explica, como visto, porque a expresso "funo social" s veio a ser cunhada posteriormente, pelo Estatuto da Terra. Mas a prpria enunciao dos casos considerados de interesse social faz crer a presena "latente" do princpio da funo social em muitos dos incisos do art. 2 da Lei 4.132/62. Logo, luz do art. 184 da CF, evidencia-se que o legislador poder encaixar, na regulamentao dos casos de desapropriao para fins de interesse social, regras atinentes expropriao decorrente do eventual desatendimento do princpio constitucional da funo social da propriedade, seja esta de que tipo for. E nisso reside a razo da relativizao da garantia propriedade no inciso XXIII do art. 5, em regra que se repete no inciso III do art. 170 e no 2 do art. 182 da CF/88.

    Todavia, mesmo que facultado lei incluir hipteses de descumprimento da funo social aos casos de desapropriao por interesse social, salvo as excees expressamente previstas na Constituio, o pagamento dever ser feito prvia e integralmente em dinheiro (inciso XXIV do art. 5).

    Dessarte, os conceitos civilsticos de propriedade, com a normatizao constitucional do princpio da funo social, sofreram profundas transformaes. Ao tratamento civil do direito de propriedade hoje em vigor aplicam-se direcionamentos de direito pblico voltados caracterizao da funo social, motivo pelo qual, empolgado com a CF/88, JOS AFONSO DA SILVA afirmou que "o Cdigo Civil no disciplina a propriedade, mas to-somente as relaes civis a ela referentes". (58)

    Porm, ao contrrio do que pretendem alguns, a propriedade no se confunde com sua funo social, como bem analisou o ilustre professor BENEDITO FERREIRA MARQUES. Ainda que a funo social faa parte da estrutura do direito de propriedade, servindo como ttulo jurdico de atribuio plena das faculdades que lhe so inerentes, no se pode sustentar que sua eventual inobservncia subtraia todos os direitos do proprietrio inadimplente. Isso seria chancelar exagero que daria margem at para justificar a expropriao sem o pagamento de indenizao. que a Constituio no baniu o direito de propriedade; apenas imps a seu exerccio o dever de cumprimento da funo social. (59)

    Vale dizer: ainda que caiba lei regular como a funo social estarsendo cumprida, a no-satisfao da princpio s haver de acarretar as

  • 25

    conseqncias estabelecidas na prpria Constituio.

    E tais conseqncias podem ser: (a) o parcelamento ou edificao compulsrios dos imveis urbanos (inciso I do 4 do art. 182 (60)); (b) o aumento progressivo da carga tributria incidente sobre os imveis urbanos (1 do art. 156, na redao que lhe deu a EC n. 29/2000, c/c inciso II do 4 do art. 182 (61)) e rurais (art. 153, 4); (c) a desapropriao-sano deimveis urbanos, com pagamento integral mediante ttulos da dvida pblica(inciso III do 4 do art. 182 (62)); (d) a desapropriao-sano de imveis rurais, com o pagamento em dinheiro das benfeitorias teis e necessrias (1 do art. 184) e o restante em ttulos da dvida agrria (art. 184, caput);(e) a desapropriao-sano, sem indenizao, no caso das glebas onde forem encontradas culturas ilegais de plantas psicotrpicas (art. 243 (63)), e; (f) a desapropriao comum, prvia e integralmente indenizada em dinheiro, por motivo de interesse social, nas situaes a serem estabelecidas por lei ordinria (inciso XXIV do art. 5).

    Fora dessas hipteses, porm, remanesce a garantia da propriedade, inclusive a de reivindic-la das mos de terceiros que injustamente a detenham.

    Por derradeiro, consoante afirma JOS AFONSO DA SILVA, " certo que o princpio da funo social no autoriza a suprimir, por via legislativa, a instituio da propriedade." (64) Essa assertiva serve para delimitar o ncleo essencial do direito fundamental de propriedade, da por que, ao disciplinar os requisitos de cumprimento da funo social, no poder o legislador desviar-se de sua finalidade normativa, erigindo deveres desarrazoados ou que tornem impraticvel o exerccio do direito de propriedade. (65) Incidiria a o princpio da proporcionalidade, em represso ao excesso do poder de legislar, pois a funo social deve se resumir a algo atingvel, at porque, especialmente em se tratando de imveis rurais, a exigncia de padres de produtividade demasiado altos pode acarretar o esgotamento dos recursos naturais da terra, o que tambm iria de encontro funo social.

    6 DO PRINCPIO DA FUNO SOCIAL INSERIDO NA ORDEM ECONMICA

    Analisando o texto das Constituies anteriores que expressamente consignaram a funo social da propriedade, percebe-se, em todas elas, que a incluso do princpio se deu no captulo destinado ordem econmica (cf. art. 157, III, da CF/67 e art. 160, III, da CF/69). De outro turno, ainda que a Carta de 1988 tenha feito o mesmo, inovou o Constituinte consagrando o princpio, em relativizao ao prprio direito individual de propriedade, no captulo destinado aos direitos fundamentais (inciso XXIII do artigo 5). Ademais, a propriedade privada foi includa em inciso autnomo, entre os princpios da ordem econmica (inciso II do art. 170), antes mesmo da enunciao do princpio da funo social da propriedade (inciso III do mesmo artigo).

    Por conseguinte, pela nova Constituio, a funo social no

  • 26

    interessa apenas ordem econmica, mas serve de princpio norteador tambm do direito individual de propriedade. Outrossim, inserido no captulo da ordem econmica, o conceito de propriedade privada foi ainda mais "relativizado", (66) em comparao com aquele das Cartas anteriores, pois passou a se submeter ao juzo de ponderao decorrente da aplicao de todos os outros princpios integrantes da ordem econmica.

    7 PECULIARIDADES DO PRINCPIO DA FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADERURAL

    Em relao aos imveis rurais, aplica-se tudo o que se disse acerca da funo social, especialmente em relao transformao do regime privatstico de propriedade. Contudo, h certas peculiaridades anotadas especialmente por jus-agraristas.

    Primeiramente, cabe dizer que a expresso "funo social da propriedade rural" muito criticada pelos estudiosos do direito agrrio. Defendem eles que a expresso utilizada pelo Constituinte no satisfaz plenamente as preocupaes com a total dimenso do problema agrrio, o qual no se resume s questo da propriedade, pois engloba tambm a funo social da posse e dos contratos agrrios. Da, sustenta-se a predileo pela expresso genrica "funo social da terra" (67) ou "funo social do imvel rural", (68) de que seriam espcies a "funo social da posse agrria" e a "funo social dos contratos agrrios".

    Porm, dadas as finalidades deste estudo, que exorbitam o campo da funo social do imvel rural, com a vnia dos jus-agraristas, tem-se por escusvel a utilizao da consagrada expresso "funo social da propriedade".

    Na esteira da repercusso do princpio da funo social em face do novo regime da posse agrria, ensina outro ilustre professor GETLIO TARGINO LIMA, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Gois, em obra j mencionada, a posse de imvel rural no mais pode ser encarada como simples exerccio de um dos poderes inerentes ao domnio, mas sim como um comportamento em relao coisa que tenha por pressuposto o cumprimento da funo social.

    Essa nova concepo de posse agrria vem contaminando a jurisprudncia dos tribunais estaduais, no sendo raro encontrar assentado em acrdos que "no se concebe mais a posse como mera emanao do domnio. O poder ftico sobre a coisa (posse), a partir do regramento constitucional, se caracteriza pelo uso econmico do bem". (69)

    Ressalte-se, porm, no serve esse raciocnio de incentivo a invases de terra praticadas a pretexto de fazer cumprir a funo social. Conforme jurisprudncia do TJRS, citando acrdo do TAMG, no constitui "o principio constitucional da funo social da propriedade justificativa de

  • 27

    invaso, a permitir a realizao de justia pelas prprias mos." (70)

    Assentado tudo isso, j se pode dizer alguma coisa sobre as regras que do densidade ao princpio da funo social do imvel rural. Essas consideraes, contudo, sero feitas de maneira perfunctria, dado o recorte temtico do trabalho.

    Pois bem. Como antes mencionado, no houve maior preocupao da Constituio com a concretizao das normas que dispem acerca do princpio da funo social da propriedade, salvo em relao aos imveis rurais e, com menor intensidade, em face dos imveis urbanos.

    Enfocando os imveis urbanos, o tratamento um pouco mais especfico que a Constituio lhes reservou no impediu fosse o tema tratado com alto grau de abstrao. Dispe o art. 182, 2, da CF/88, que a"propriedade urbana cumpre sua funo social quando atende s exigncias fundamentais de ordenao da cidade expressas no plano diretor." (CF, art. 182, 2). Desse modo, restou ao legislador municipal ampla margem de poder para dizer como ser cumprida a funo social. A lei do plano diretor tratar do assunto. Mas a Constituio tambm cuida da edio de leis municipais especficas (no 4 do mesmo artigo) que podero regulamentar exigncias menos genricas - se comparadas s previses do plano diretor -, nos termos definidos na recente Lei 10.257, de 11/07/2001, (71) sob pena de serem aplicadas as sanes previstas nos incisos I a IV do mesmo pargrafo 4 do art. 182 da CF/88.

    No tocante aos imveis rurais, entretanto, a Constituio foi menos generosa para com o legislador. De incio, percebe-se que s a Unio Federal possui competncia material para promover a desapropriao por descumprimento da funo social do imvel rural (caput do art. 184), bem como para legislar sobre os requisitos a serem atendidos (caput do art. 186). E dessas restries, com base na teoria dos poderes implcitos, (72) pode-se extrair outra: s a Unio detm atribuio para fiscalizar e controlar a observncia da funo social do imvel rural.

    Conforme consta do artigo 2 da Lei 8.629, de 25/02/93, a atribuio para ingressar no imvel rural, em nome da Unio, para fins de levantamento de dados, realizada por intermdio de "rgo federal competente" (2 do art. 2), (73) tarefa essa que vem sendo observada por uma autarquia federal, no caso, o INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria. Nada indica, porm, essa competncia de controle tenha sido dada com exclusividade Unio, motivo pelo qual se afigura vlida a possibilidade de delegao a Estados-membros, Distrito Federal ou a municpios. (74)

    Volvendo Constituio, percebe-se que o art. 185 estabelece zona de imunidade desapropriao por interesse social para fins de reforma agrria, mesmo que a funo social no esteja sendo observada, em relao: (a) pequena e mdia propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietrio no possua outra; e (b) propriedade produtiva.

    Nesse prumo, a conceituao de pequena e mdia propriedade

  • 28

    rural s veio a ser estabelecida com o art. 4 da Lei 8.629/93, pelo qual ficou assentado que pequena propriedade aquela com rea compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) mdulos fiscais (75) e mdia propriedade o imvel rural (76) de rea superior a 4 (quatro) e at 15 (quinze) mdulos fiscais.

    Critica-se a dimenso dessa imunidade expropriatria em relao grande propriedade produtiva, dizendo que a produtividade apenas um dos elementos da funo social, motivo pelo qual no basta ser produtivo o imvel rural para que seja considerado cumpridor do princpio. (77) Contudo, defende CELSO RIBEIRO BASTOS a opo da Constituio, afirmando que parcelar "a propriedade produtiva prenncio quase certo de diminuio da produo com conseqente degradao dos nveis sociais j atingidos." (78) Desse modo, mesmo que sem o aplauso de toda doutrina ptria, o fato que essa imunidade expropriatria da terra produtiva foi expressamente consagrada pela Constituio, que previu ainda a edio de lei que garanta tratamento especial ao imvel rural produtivo, fixando normas para o cumprimento dos requisitos da funo social (par. nico do art. 185).

    Neste ponto, cabem breves digresses em torno dos pressupostos aserem observados no atendimento da funo social do imvel rural. A comear das regras enumeradas pelo art. 186 da Constituio, o imvel rstico dever simultaneamente satisfazer os seguintes requisitos: (a) aproveitamento racional e adequado; (b) utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e preservao do meio ambiente; (c) observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho; (d) explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos trabalhadores.

    De conseguinte, fala-se que o preenchimento da funo social do imvel rural exige a presena simultnea de requisitos espalhados em trs ticas: (79) (a) econmica, ligada "produtividade" do imvel rural, ou seja, seu aproveitamento racional e adequado; (b) social, abraando as disposies que regulam as relaes de trabalho e as que contemplam o bem-estar dos que exploram a terra (includos a no s os proprietrios e trabalhadores, mas os que detm a posse direta do imvel); (c) ecolgica, relacionada com a preservao do meio ambiente, concebido como direito fundamental de terceira gerao, garantido-o presente e futuras geraes. (80)

    Por bvio, a Constituio, no caput do art. 186, previu que esses requisitos fossem fixados por lei, de modo a atender s peculiaridades da regio onde se situa cada imvel rural. E essa tarefa foi confiada Lei 8.629/93.

    Em linhas gerais, o esquema legislativo de fixao dos critrios de cumprimento da funo social do imvel rural, conforme estabelecidos pela Lei 8.629/93, atualmente alterada pela MP 1.577, de 11/06/97, e reedies (atualmente, MP 2.183-56, de 24/08/2001), pode assim ser resumido.

    O reconhecimento da produtividade da gleba exige sejam atingidos, cumulativamente, nos termos do art. 6 da Lei 8.629/93: (a) um percentualmnimo de 80% do grau de utilizao da terra (GUT), e; (b) um percentual

  • 29

    igual ou superior a 100% do grau de eficincia da explorao econmica (GEE).

    O clculo do ndice do GUT considera a rea efetivamente utilizada do imvel, em cotejo com a rea potencialmente utilizvel, excludas, desse ltimo conceito, por fora do art. 10 da Lei 8.629/93, as reas ocupadas porconstrues e instalaes, excetuadas aquelas destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de reproduo e criao de peixes e outros semelhantes; as reas comprovadamente imprestveis para qualquer tipo de explorao agrcola, pecuria, florestal ou extrativa vegetal; as reas sob efetiva explorao mineral; as reas de efetiva preservao permanente e demais reas protegidas por legislao relativa conservao dos recursos naturais e preservao do meio ambiente.

    De sua vez, o GEE obtido por meio da aplicao de sistemtica de clculo que leva em considerao a destinao econmica da gleba em face de ndices de rendimento considerados medianos, de acordo com a regio onde se localiza o imvel. Assim, determina o art. 6, 2, da Lei 8.629/93, que, para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos ndices de rendimento estabelecidos pelo rgo competente do Poder Executivo, para cada Microrregio Homognea (inciso I); para a explorao pecuria, divide-se o nmero total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo ndice de lotao estabelecido pelo rgo competente do Poder Executivo, para cada Microrregio Homognea (inciso II). Ento, a soma dos resultados obtidos na forma anterior dividida pela rea efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determinando-se assim o grau de eficincia na explorao (GEE) do imvel rural. Dessa forma, um imvel com nveis de explorao econmica mais eficientes que aqueles relativos mdia exigida pelos rgos oficiais poder obter um percentual superior a 100% de GEE.

    Nada obstante, no h registro de que o Poder Pblico venha respeitando a regra do art. 11 da Lei 8.629/93, que mesmo antes da alterao determinada pela MP 1.577/97, j exigia que, na fixao dos parmetros, ndices e indicadores que informam o conceito de produtividadefosse ouvido tambm o Conselho Nacional de Poltica Agrcola.

    De outro turno, mostra-se razovel a Lei 8.629/93, ao no retirar a qualificao de propriedade produtiva do imvel que, por razes de fora maior, caso fortuito ou de renovao de pastagens tecnicamente conduzida, devidamente comprovados pelo rgo competente, deixar de apresentar, noano respectivo, os graus de eficincia na explorao, exigidos para a espcie (art. 6, 7). Assim, os danos produtividade decorrentes de esbulho da rea podem ser considerados albergados por essa norma legal, como j reconheceu o STF. (81)

    Pela tica social, considera a lei que a terra, mesmo produtiva, poder estar desatendendo funo social se quem a explora o faz com desrespeito s leis trabalhistas, s disposies dos contratos agrrios, bem como se no forem observadas as normas de segurana do trabalho ou provoca conflitos e tenses sociais no imvel (4 e 5 do art. 9 da Lei 8.629/93). Aqui, portanto, importante identificar o agente provocador do

  • 30

    conflito social, pois com ele a lei no se compadece. Da por que se afiguram materialmente corretas as disposies contidas na atual MP 2.183-56/2001, que inseriram os 6 a 8 na redao do art. 2 da Lei 8.629/93. (82)

    O ltimo dos requisitos - mas nem por isso menos importante - a ser brevemente analisado diz respeito utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e preservao do meio ambiente.

    De efeito, considera-se adequada a utilizao dos recursos naturais disponveis quando a explorao se faz respeitando a vocao natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade (2 do art. 9 da Lei 8.629/93). E por preservao do meio ambiente deseja a lei a manuteno das caractersticas prprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada manuteno do equilbrio ecolgico da propriedade e da sade e qualidade de vida das comunidades vizinhas (3 do art. 9 da Lei 8.629/93). (83)

    Neste ponto, percebe-se a necessidade de ponderar os aspectos relativos ao aproveitamento racional e adequado do imvel rural (tica econmica) em face daqueles referentes adequada utilizao dos recursos naturais e a preservao do meio ambiente (tica ecolgica). Assim, na fixao dos requisitos da funo social do imvel rural, a lei h de observar uma razoabilidade interna (84) que permita a eleio de critrios adequados tanto sob a tica econmica quanto ecolgica, da o motivo de a Constituio mencionar, em ambos os casos, a questo da adequabilidade (cf. os incisos I e II do art. 186). Dessarte, a fixao do GUT e o GEE no pode perder de rumo a vedao explorao econmica depredatria. preciso saber se os parmetros de produtividade que vm sendo fixados pelos rgos do Executivo no esto trabalhando com padres por demais genricos, ou que no levem em considerao certas peculiaridades ligadas localizao dos imveis rurais.

    Essa importante questo, alis, sujeita-se ao controle judicial no s para verificar se o "ncleo essencial" do direito de propriedade est sendo preservado, diante de eventuais imposies concretamente inatingveis, mas principalmente para que no se exijam graus de explorao econmica mais elevados que a prpria capacidade de regenerao natural do imvel rural.

    8 DA FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADE IMVEL E O NOVO CDIGO CIVIL

    Por tudo que foi dito, considerando que a lei h de ser interpretada sob a tica constitucional da qual retira validade, justificado fazer-se uma releitura das normas infraconstitucionais acerca da propriedade luz do princpio da funo social. E no h por que excluir desse tratamento hermenutico sequer antigos institutos de direito privado, cujas origens remontam o tempo do direito romano. Aqueles recepcionados pela Constituio passam a valer ungidos pela funo social que condiciona o

  • 31

    exerccio da titularidade da propriedade. Nas palavras de ARAJO S:

    A funo social, portanto, na concepo dos estudiosos mais acatados, incide no contedo do direito de propriedade, impondo-lhe novo conceito. A constituio posiciona a propriedade privada como princpio da ordem econmica, submetendo-a aos ditames da justia social. dizer que se legitima a propriedade enquanto cumpre sua funo social. importante destacar que a disciplina constitucional deve orientar a compreenso das normas de direito privado sobre o direito de propriedade, e no o contrrio, como costuma ocorrer na prtica jurdica nacional. (85)

    Nessa perspectiva, pelo novo Cdigo Civil, institudo pela Lei 10.406, de 10/01/2002 (que entrar em vigor um ano aps sua publicao, ocorrida em 11/01/2002), a questo da funo social da propriedade no Brasil recebe importantes contribuies e institutos.

    A comear da seo das disposies preliminares do ttulo relativo propriedade (Seo I do Captulo I do Ttulo III do Livro III da Parte Especial), logo aps seu respectivo conceito (caput do art. 1.228), o novo Cdigo j cuida de traar pressupostos utilizao do direito de propriedade. Seu exerccio dever fazer-se "em consonncia com as suas finalidades econmicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilbrio ecolgico e o patrimnio histrico e artstico, bem como evitada a poluio do ar e das guas" (1 do art. 1.228).

    Assim, a par de reservar lei especial o tratamento da tica ecolgica da funo social, optou o legislador civil por avanar na positivao do princpio relativo s finalidades econmicas e sociais da propriedade, propiciando ao juiz estabelecer as respectivas regras concretas. Foi agora explicitado o que no Cdigo antigo era princpio geral implcito norteador do direito de propriedade. (86)

    Alis, inova o recente Cdigo ao indicar algumas regras ligadas finalidade social e econmica da propriedade. Esse o caso da norma do art. 1.229, que apesar de inserir na abrangncia da propriedade do solo o espao areo e subsolo, (87) retira a garantia de proteo do direito do proprietrio se desenvolvidas atividades por terceiros a "uma altura ou profundidade tais, que no tenha ele interesse legtimo em impedi-las."

    Da mesma forma, o 2 do art. 1.228 consagrou proibio ao abuso do direito de propriedade, ao estabelecer serem "defesos os atos que no trazem ao proprietrio qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela inteno de prejudicar outrem."

    Nessas regras, a inteno da lei clara. A propriedade tambm concebida como fato econmico e social. Da, restam afastadas pretenses emulatrias, meramente egosticas ou idiossincrticas de seu titular, o qual no pode opor o direito de propriedade to-s para prejudicar terceiros. (88) o velho abuso do direito convertido em tipo de descumprimento da funo social da propriedade. Portanto, a interpretao do 2 do art. 1.228 deve ser conciliada com disciplina geral do novo Cdigo acerca do abuso de

  • 32

    direito (art. 187). dizer, no estudo da incidncia do 2 do art. 1.228, est o hermeneuta autorizado a considerar ilcitos os atos que manifestamente excedam os limites impostos pela finalidade econmica ou social da propriedade, pela boa-f (objetiva) ou pelos bons costumes. E a constitucionalidade de tais preceitos no desperta controvrsias, na medida em que a funo social compe o prprio direito de propriedade, que alis no absoluto - at porque se relaciona com mais de um s sujeito. (89)

    Em matria de aquisio da propriedade imvel por usucapio, a Lei 10.406/2002 tambm inovadora. (90) O Cdigo de 1916 prev somente "o" usucapio (91) ordinrio e o usucapio extraordinrio. Os requisitos do primeiro prescindem da boa-f do possuidor, mas dependem da posse ininterrupta, e sem oposio, por longos 20 anos. J no extraordinrio, exige-se a boa-f do adquirente, mas o tempo de posse menor: 10 ou 15 anos, conforme se trata ou no de pessoas que residem no mesmo municpio.

    Na nova sistemtica, foram reproduzidas nos artigos 1.239 e 1.240 as hipteses de usucapio criadas pela CF/88, (92) bem como diminudo o prazo da usucapio ordinria para 15 anos (caput do art. 1.238), salvo se o possuidor houver estabelecido no imvel moradia habitual ou nele realizado obras ou servios de carter produtivo, caso em que o prazo cai para 10 anos (par. nico do art. 1.238). (93)

    Aqui, mais uma vez, sente-se a preocupao com a funo social dapropriedade. (94) A constituio de moradia habitual ou (note-se o carter alternativo dos requisitos) a realizao de obras ou servios que remedeiem a inrcia do proprietrio reduz o prazo da usucapio, ainda que ausente a boa-f do possuidor.

    Com relao ao estabelecimento de "moradia", talvez influenciado pela dico dos artigos 183 e 191 da CF/88, (95) o novo Cdigo foge de sua prpria sistemtica, abandonando o emprego das consagradas expresses "domiclio" e "residncia" (art. 70 e seguintes). Dessarte, moradia no se confunde com domiclio e tampouco precisa ser a nica do possuidor. Porm, o conceito de moradia est historicamente ligado ao de habitao. (96) Logo, apesar de a reduo valer para estrangeiros (ressalvada a hiptese do art. 190 da CF/88), imprpria sua utilizao para pessoas jurdicas. Outra, alis, no a diretriz dos arts. 183 e 191 mencionados. (98) Alm disso, ao exigir que o possuidor tenha estabelecido no imvel "sua" moradia, a redao do par. nico do art. 1.238 no deixa dvidas quanto aocarter pessoal e indelegvel da habitao, pelo que a reduo do prazo no se aplica, e. g., quando, no interstcio, tenha havido locao ou arrendamento do imvel. Por fim, de modo a evitar abusos, o critrio da "habitualidade" da moradia dever ser verificado com parcimnia pelo juiz. "Habitual" no se confunde com "ocasional".

    Nada obstante, possvel o aproveitamento do tempo de posse do antecessor (art. 1.243), desde que presentes as mesmas condies exigidasao atual possuidor. E aqui, ao contrrio da regra do art. 9, 3, do Estatuto da Cidade, (99) a usucapio do par. nico do art. 1.238 no exige que o sucessor da posse j resida no imvel por ocasio da abertura da

  • 33

    sucesso do antecessor. Basta que posse anterior se some tempo suficiente de moradia do sucessor.

    De sua vez, no so quaisquer obras ou servios que possibilitam a reduo do prazo da usucapio ordinria. Exige-se o carter produtivo. Assim, em imveis urbanos, tratando-se de regra excepcional cuja interpretao se deve fazer restritivamente, indevida a aplicao da reduo do prazo, v. g., em caso de imvel utilizado como local de simples lazer do possuidor. bem verdade que o art. 182 da CF/88, ao tratar da poltica de desenvolvimento urbano, fixa o objetivo de "ordenar o pleno desenvolvimento das funes sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes" (destacou-se). Assim, poder-se-ia argumentar, obras destinadas ao lazer satisfariam a poltica de garantir "bem-estar" ao possuidor de imvel urbano. Contudo, alm de a preocupao com o bem-estar do habitante dizer respeito poltica confiada ao "Poder Pblico municipal", no se confundindo assim com a usucapio regulamentada por lei federal, no se pode baralhar "carter produtivo" com "bem-estar do habitante". No bastasse o fato da barreira lingustica (100) aqui insupervel pelo intrprete , quando a Constituio quis, de certa forma, aproximar conceitos to diversos, usou expresses do tipo "adequado aproveitamento", a exemplo do que ocorreu no 4 do mesmo art. 182.

    Quanto a imveis rurais, aplica-se supletivamente a legislao que cuida da verificao da produtividade como requisito para desapropriao por interesse social para fins de reforma agrria.

    Em relao usucapio extraordinria, o recm-aprovado Cdigo no mais distingue o prazo aquisitivo com base na residncia dos sujeitos envolvidos. Unificou-se em 10 anos o perodo necessrio para usucapir. Porm, foi diminudo para 5 anos o prazo "se o imvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartrio, cancelada (sic) posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interessesocial e econmico" (par. do art. 1.242). (101)

    Desse modo, ainda que qualificada pela boa-f na formal aquisio onerosa de imvel, outra vez a funo social impe reduo ao prazo prescricional aquisitivo. Porm, as hipteses no se assemelham inteiramente s do par. nico do art. 1.238. Em primeiro plano, porque a lei no exige habitualidade na morada. (102) Em segundo lugar, no caso da usucapio extraordinria de prazo reduzido, dispensa o Cdigo o "carter produtivo" das obras e servios realizados no imvel, contentando-se com a exteriorizao de "investimentos de interesse social e econmico". Logo, amplia-se o leque de possibilidades de incidncia da nova regra.

    Ao final, considerando a prpria caracterstica particular do imvel aque se refere o art. 1.238, o "interesse social" aqui entendido de forma ampla, abrangendo no s interesses da coletividade mas tambm aqueles que, apesar de aparentemente individuais, devam ser incentivados, garantidos ou patrocinados pelo Estado. dizer, a indeterminao do conceito de "interesse social" ser preenchida, caso a caso, luz de determinadas diretrizes contidas na Constituio e leis vigentes. Da, v. g.,

  • 34

    investimentos destinados "convivncia familiar" ou ao "lazer" de crianas e adolescentes alavancam a reduo do prazo da usucapio extraordinria, pois o caput do art. 227 da CF/88 contm princpio programtico de atuaoestatal nesse sentido.

    Em matria de perda da propriedade, contudo, a maior inovao do Cdigo de 2002 diz respeito aos 4 e 5 do art. 1.228:

    Art. 1.228. O proprietrio tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reav-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

    1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonncia com as suas finalidades econmicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilbrio ecolgico e o patrimnio histrico e artstico, bem como evitada a poluio do ar e das guas.

    2o So defesos os atos que no trazem ao proprietrio qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela inteno de prejudicar outrem.

    3o O proprietrio pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriao, por necessidade ou utilidade pblica ou interesse social, bem como no de requisio, em caso de perigo pblico iminente.

    4o O proprietrio tambm pode ser privado da coisa se o imvel reivindicado consistir em extensa rea, na posse ininterrupta e de boa-f, por mais de cinco anos, de considervel nmero de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e servios considerados pelo juiz de interesse social e econmico relevante.

    5o No caso do pargrafo antecedente, o juiz fixar a justa indenizao devida ao proprietrio; pago o preo, valer a sentena como ttulo para o registro do imvel em nome dos possuidores.

    Assim, por fora do 4, poder o juiz decretar a perda da propriedade sobre imvel de extensa rea, havendo ininterrupta posse de boa-f, por mais de cinco anos, por parte de considervel nmero de pessoas, desde que os possuidores tenham na rea realizado, em conjunto ou separadamente, obras e servios considerados pelo juiz de interesse social e econmico relevante. De outro lado, exige o 5 seja fixada justa indenizao ao proprietrio, condicionando ainda o registro do imvel em nome dos possuidores somente quando for pago o preo.

    Por tais normas, ao condicionar a perda da propriedade a consideraes ligadas ao interesse social e econmico relevante, mais uma vez se revela a preocupao do legislador com a funo social da propriedade. Contudo, o novo instituto apresenta numerosos problemas.

    Em primeiro lugar, no se trata de forma de usucapio, pois a

  • 35

    efetiva perda da propriedade deve ser antecedida de indenizao equivalente ao "preo" do imvel. Ademais, ao contrrio da tpica sentena de cunho declaratrio da usucapio, a hiptese em tela d origem a sentena do tipo "constitutivo", na medida em que o ato judicial s ter eficcia translativa de domnio aps o pagamento da indenizao.

    No bastasse a exigncia de indenizao, distingue-se o instituto em tela da usucapio especial coletiva criada pelo art. 10 do Estatuto da Cidade (103) pois esta: (a) de aplicao restrita s reas urbanas com mais de duzentos e cinqenta metros quadrados; (b) s se aplica a possuidores de baixa renda; (c) est condicionada utilizao da rea para fins de moradia dos possuidores; (d) prescinde da posse de boa-f; (e) exige a impossibilidade de se identificar os terrenos ocupados por cada possuidor; e (f) no beneficia possuido