ódio. odiava com uma

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Eodemôniotinhaódio.Odiavacomumaintensidadequebeiravaaloucura.CentenasdeanosdeaprisionamentodentrodafortalezanegraquejaziaalémdamuralhadaProibiçãoderamaoseuódiotempomaisdoquesuficienteparasupurarecrescer.Eleagoraoconsumia.Eratudoparaele.Dava-lhepoder,eeleusariatalpoderparaesmagarascriaturasquelhecausaramtantaagonia.

aspedrasélficasdeshannaratrilogiaaespadadeshannara/livrodois

TerryBrooks

TraduçãodeAnaCristinaRodrigues

TÍTULO:AsPedrasÉlficasdeShannara/nº11daColeçãoBang!AUTORIA:TerryBrooksEDITOR:LuísCorteReal©2014porSaídadeEmergênciaBrasilEditoraLtda.TheElfstonesofShannara©1982TerryBrooks.PublicadooriginalmentenosE.U.A.porTheRandomHousePublishingGroup,2002TRADUÇÃO:AnaCristinaRodriguesPREPARAÇÃODETEXTO:CarolChiovattoREVISÃO:FernandaLizardoeTomazAdourCOMPOSIÇÃO:SaídadeEmergência,emcaracteresMinionDESIGNDACAPA:SaídadeEmergênciaILUSTRAÇÃODACAPA:LuisMeloEBOOK:MarceloMorais

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃOSINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

B888p Brooks,Terry

AspedrasélficasdeShannara[recursoeletrônico]/TerryBrooks[traduçãodeAnaCristinaRodrigues];RiodeJaneiro:SaídadeEmergência,2014.

recursodigital

Traduçãode:TheElfstonesofShannaraFormato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWebISBN978-85-67296-21-0(recursoeletrônico)

1.Ficçãoamericana.2.Livroseletrônicos.I.Rodrigues,AnaCristina.II.Título.I.Rodrigues,AnaCristina.II.Título.

14-12522 CDD:813CDU:821.111(73)-3

Todososdireitosreservados,noBrasil,porSaídadeEmergênciaBrasilEditoraLtda.RuaLuizCâmara,443Suplementar:RuaFelizardoFortes,420—Ramos21031-160—RiodeJaneiro—RJTel.:(21)2538-4100www.sdebrasil.com.br

ParaBarbara,comamor

Prefácio

Eu terminei o trabalho de revisão deA Espada de Shannara no outono de 1975, uma tarefa queacabou consumindo quase um ano, e voltei a trabalhar,muitosmeses depois, em umnovo livro.Delineeitrêsquartosdahistória,masaúltimapartenãopareciaseencaixar,entãoadeixeidelado.Senteiparaescrever.Conteiaomeueditor,LesterDelRey,oqueestavafazendo.Eledissequetudobem,mas quis saber se poderia ver alguma coisa da obra. Pelomenos o argumento? Às vezes, osegundolivropodiasermaisdifícildeescreverdoqueoprimeiro,avisouele.VelhoeboboLester,pensei,edeixeiparalá.Queriasurpreendê-lo.Averdadeeraqueeupenseisercapazdesurpreendê-lo,poisestavacertodequeesselivroseriamuitomelhordoqueoprimeiro.

Naprimaverade1977,escrevendoduranteanoiteenosfinaisdesemanaenquantoadvogava,eujá tinha completado os três quartos do livro e ainda não havia desvendado o final. A históriaparecia bastante correta, porémalguma coisa estava errada.Então finalmente embalei o livro e omandeiparaLester.Elecertamentesaberiaoquefazerparafinalizá-lo.

Lestersabiaexatamenteoquefazer,emedisseissodeformabemdireta.Ahistóriateriaqueserestraçalhada,escreveueledevolta.Tinhatantosproblemasquenãohaviacomosalvá-la.Eupoderiapublicá-la sequisesse—osucessodeAEspada asseguravaque alguém iria comprá-la.Mas ele eracontra.Ele estava tão segurodissoquedisseque iriame retornaromanuscrito comcomentáriosdetalhadossobreoqueestavaerrado,páginaporpágina.

Fiquei chocado.Dois anos emeiode trabalho jogadosno ralo. Eunão sabia se seria capaz deaceitar isso. Mesmo assim, esperei que os comentários chegassem, e quando chegaram, eu os licuidadosamente e por várias vezes. Eles catalogavam vários problemas com trama, personagens,ritmo,perspectivaefoco,epormaisqueeuodiasseadmitir,acertavamemcheio.

Aquelefoiocomeçodaminhaeducaçãoprofissionalcomoescritor.Acontragosto,admitiqueo manuscrito era um desastre. Eu faria como sugerido e recomeçaria, dessa vez enviando umargumentoantes,emumesforçoparaidentificarproblemasempotencialantesdetodootrabalhoestarfeito.

Voltei-me para uma obramuito prometida e necessária sobre a história dos elfos. Não tinhanenhuma personagem feminina forte em A Espada, então o novo livro teria uma. Amberle, aEscolhidaélficacomumpassadosecretoeumfuturoincerto,surgiu.Comosuacontraparte,haviaEretria,afogosagarotanômade.Allanonestariadevolta,assimcomoEventineElessedil,agoranosseus últimos anos como Rei dos Elfos. O Comandante Stee Jans, dos Voluntários, preencheria olugardeixadoporBalinor.EdessavezoperigoqueameaçariaopovodasQuatroTerrasviriadeforaedeumaoutraépoca,eusariamuitasfaces

Depoisdepensarumpouco,otítulodonovolivroficouAsPedrasÉlficasdeShannara.Minha educação comoescritor continuou.Depoisde enviaro argumentodaminhahistória e

receber a aprovação de Lester no final de 1978, comecei a trabalhar.As Pedras Élficas levou doisanosparaserescrito,equandoestavaconcluído,euodespacheicomumsuspirodealívioumtantoinseguro.Estava feito,masestava feitoda formacerta?Eunãoestavamais tãoconfianteemmim.Lesterescreveudevoltaemfevereirode1981.Acartaqueelemandoutinha25páginas,comespaçosimples.Eurespirei fundoe li.O livroestava tomando forma,disse.Mas... edeuogolpe.Maisde

duzentaspáginasnomeiodo livro teriamque ser reescritas.Omotivo?Todaa ação estava sendonarrada de forma muito desapaixonada pelo ponto de vista do autor. Precisava ser observada esentidaporumpersonagemdolivro.MOSTRE—NÃOCONTE!AssimfalouLester.Opontofocalda narrativa era para ser Ander Elessedil, um personagem que até então era secundário para ahistória.Eunãopodiaacreditarnisso.Vinteecincopáginasdemudanças.Maisdeduzentaspáginasparareescrever.Depoisdeumbocadoderangerdedentesealgumasameaçasresmungadas,volteiparaamáquinadeescrever.Quatromesesmais tarde, ahistória foimandadadenovo.MaisumaspoucasmudançasadicionaiseLesterficoufeliz.

Atéhoje,AsPedrasÉlficaspermanececomomeulivrofavorito,mesmoquesejasomenteportertrabalhadotantoparacompletá-lo.Fazendoumaretrospectiva,pensoqueLestermeensinouquasetudo que sei sobre ser um escritor profissional naquela única experiência. Eu esqueci o títulodaqueleoutrolivroeomanuscritohámuitoseperdeu,maseumelembrodecadaerroquecometiedecadaliçãoqueissomeensinou.

Eeudeveria.Issometornouumescritormelhor.

TerryBrooks

CapítuloI

A leste, o céu noturno brilhava vagamente devido à chegada da aurora, quando os EscolhidosentraramnosJardinsdaVida.Doladodefora,acidadeélficadeArborloncontinuavadormindo,seupovoaindaenvolvidonocalorenasolidãodesuascamas.Noentanto,paraosEscolhidos,odiajácomeçara.Comas roupasbrancasecompridasesvoaçandode levecomumarajadadeventodeverão,passaramentreassentinelasdaGuardaNegra,rígidaseindiferentescomosempreestiveramduranteséculos,nafrentedoportãodeferroemarcoincrustadocomarabescosdeprataetirasdemarfim. Seguiram depressa, e apenas suas vozes baixas e o som de suas sandálias no caminho decascalhoperturbavamosilênciodonovodiaenquantosedeslocavamparaaescuridãodassombrasdospinheirosmaisadiante.

OsEscolhidos eramos guardiõesdaEllcrys, a estranha e fabulosa árvoreque ficavano centrodosJardins—aárvoreque,segundoa lenda,serviracomoproteçãocontraummalprimitivoquequasedestruíraoselfosséculosantes;ummalqueforaexpulsodaterraantesdaalvoradadaantigaraça dos homens. Durante todo o período posterior, houvera Escolhidos para cuidar da Ellcrys.Aquelatradiçãopassavadegeraçãoemgeraçãodeelfos;umserviçotradicionalqueconsideravamtantoumahonracobiçadaquantoumdeversolene.

Porém, havia poucos indícios de solenidade na procissão que seguia pelos Jardins naquelamanhã. Duzentos e trinta dias de serviço haviam transcorrido, e aqueles espíritos joviais nãopodiam mais ser facilmente controlados. A primeira sensação de deslumbramento com aresponsabilidaderecebidajápassarahaviamuito,eosEscolhidosdoselfoseramapenasseisjovensrapazes a caminho de uma tarefa que vinham executando todos os dias desde que tinham sidoescolhidos,umatarefaantigaefamiliar—asaudaçãodaárvoreaoprimeirotoquedonascerdosol.

ApenasLauren, omaisnovodosEscolhidosdaquele ano, estava em silêncio. Ficouumpoucoatrás dos outros enquanto caminhavam, sem participar da conversa descontraída do grupo. Suacabeçaruivaestavaabaixadaemconcentraçãoesuatestaestavaprofundamentefranzida.Estavatãoabsortoemseuspensamentosquenãopercebeuquandoobarulhoadiantecessou,nemquandoospassos se reduziram para acompanhá-lo, até que a mão de alguém lhe tocou o braço. Seu rostoperturbadoseergueuabruptamenteeflagrouJaseobservando-o.

—O que houve, Lauren? Você está doente?— perguntou Jase. Como era alguns meses maisvelhodoquetodos,JaseeraolíderreconhecidodosEscolhidos.

Laurenbalançouacabeça,masaexpressãofechadanãoabandonouseurostocompletamente.—Estoubem.—Algo está incomodando você. Ficou de cara fechada amanhã toda. E, pensando bem, você

estevebemcaladoontemànoite também.—AmãodeJaseemseuombrofezoelfomaisnovosevirar para encará-lo.—Vamos, desembuche.Ninguém espera que você trabalhe se não estiver sesentindobem.

Laurenhesitou,depoissuspiroueassentiu.—Tudobem,então.ÉaEllcrys.Ontem,aopôrdosol,poucoantesdeadeixarmos,pensei ter

vistomanchasemsuasfolhas.Pareciaestarmurchando.

—Murchando?Temcerteza?NuncaaconteceunadaparecidocomEllcrys,pelomenoséoquesemprenosdisseram—respondeuJase,emdúvida.

—Posso terme enganado— admitiu Lauren.—Estava escurecendo.Na hora eu disse amimmesmoqueprovavelmente era sóo efeitodas sombras recaindo sobre as folhas.Masquantomaistentomelembrardecomoera,maispensoquerealmenteviasfolhasmurchando.

Houveummurmúriodesconcertadoentreosoutros,eumdelesfalou:—ÉculpadeAmberle.Euaviseiquealgoruimaconteceriaseumagarotasetornassepartedos

Escolhidos.— Jáhouveoutras garotas entreosEscolhidos enada aconteceupor causadisso—protestou

Lauren. Ele sempre gostara de Amberle. Era fácil conversar com ela, mesmo sendo neta do ReiEventineElessedil.

—Nãonosúltimosquinhentosanos,Lauren—disseooutro.—Tudobem, já chega— interrompeu Jase.—Nós concordamos emnão falar sobreAmberle.

Vocês sabem disso.— Ele ficou em silêncio por ummomento, pensando no que Lauren dissera,depoisdeudeombros.—Seriamuito ruim se algo acontecesse à árvore, especialmente enquantoelaestiversobnossoscuidados.Mas,afinal,nadaduraparasempre.

Laurenficouchocado.—MasJase,quandoaárvoreenfraquecer,aProibiçãoacabaráeosdemôniosserãolibertados...—Vocêrealmenteacreditanessashistóriasantigas,Lauren?—riuJase.Laurenencarouoelfomaisvelho.—ComovocêpodeserumEscolhidoenãoacreditar?—Nãome lembrodeninguémtermeperguntadonoqueeuacreditavaquando fuiescolhido,

Lauren.Perguntaramavocê?Laurensacudiuacabeça.NuncaperguntavamnadaaoscandidatosàhonradeseremEscolhidos.

Simplesmenteeram levadosatéaárvore— jovenselfosque tinhamchegadoàmaturidadenoanoanterior.Nonascimentodo anonovo, reuniam-se para passar por baixode seus galhos, cadaumparandomomentaneamenteparaseraceito.AquelesqueaárvoretocavanosombrossetornavamosnovosEscolhidos, para servir até o fimdo ano.Lauren ainda conseguia se lembrardamisturadeêxtase e orgulhoque sentiranomomento emqueumgalho fino se inclinarapara tocá-lo e ele aouvirachamandoseunome.

EeletambémselembravadoespantodetodosquandoAmberleforachamada...— É apenas uma velha história para assustar crianças — Jase continuava dizendo. — A

verdadeira função da Ellcrys é servir como lembrete ao povo élfico de que eles, assim como ela,sobrevivemapesardetodasasmudançasqueaconteceramnahistóriadasQuatroTerras.Elaéumsímbolodaforçadenossopovo,Lauren,nadamais.

Ele fez umgesto para que retomassem a caminhada até os Jardins e se virou. Lauren voltou amergulharemseuspensamentos.Adespreocupaçãocasualdoelfomaisvelhopelalendadaárvoreo incomodou. Jase era da cidade, claro, e Lauren já havia notado que as pessoas de Arborlonpareciamlevarasvelhascrençasmenosasériodoqueaquelasdaaldeiaaonortedeondeviera.Masa história daEllcrys e daProibiçãonão era apenas umahistória; era a base de tudo consideradoverdadeiramenteélfico,oacontecimentomaisimportantenahistóriadeseupovo.

Tudo tinha acontecido muito tempo antes, antes mesmo do nascimento do novo mundo.Houveraumagrandeguerraentreobemeomal—umaguerraqueoselfosfinalmentevenceramaocriaraEllcryseumaProibiçãoquebaniraosmalignosdemôniosparaumaescuridãoatemporal.EenquantoaEllcrysestivessebem,omalseriamantidoforadaquelaterra.

EnquantoaEllcrysestivessebem...Ele sacudiu a cabeça em dúvida. Talvez o murchar das folhas fosse apenas um truque de sua

imaginação. Ou um truque de luz. E se não fosse, teriam simplesmente de encontrar uma cura.Semprehaviaumacura.

Poucodepois,jáestavacomosoutrosemfrenteàárvore.Hesitante,olhouparacimaesuspiroualiviado. A Ellcrys parecia inalterada. Seu tronco branco-prateado perfeitamente formado subiaparaoscéusnumaredesimetricamenteequilibradadegalhoscobertoscomfolhas largasdecincopontas de um tom vermelho-sangue. Em sua base, faixas demusgo verde cresciam em tapetes deretalhos pelas rachaduras e fendas da casca lisa, feito riachos cor de esmeralda descendo umaencostamontanhosa.Nãohaviadivisõesparamacularoscontornosuniformesdotronco,nenhumgalhopartidoouquebrado.Tãolinda,pensouele.Olhoudenovoe,aindaassim,nãoconseguiuvernenhumsinaldadoençaquehaviatemido.

Osoutros forampegar as ferramentas queusariampara alimentar e cuidarda árvore e para amanutençãogeraldosJardins.Jase,porém,segurouLauren.

—Vocêgostariadefazerasaudaçãohoje,Lauren?—perguntou.Lauren gaguejou num agradecimento surpreso. Jase estava abrindo mão de sua vez na mais

especialdastarefas,umóbvioesforçoparaanimá-lo.Deu um passo à frente, embaixo dos galhos abertos, para colocar asmãos no tronco liso. Os

outros se reuniramao redoralgunspassosatráspara recitar a saudaçãomatutina.Eleolhouparacima,cheiodeexpectativa,àprocuradoprimeiroraiodesolquecairiasobreela.

Afastou-seabruptamente.Asfolhaslogoacimadeleestavammurchaseescurecidas.Seucoraçãoseapertou.Haviamanchasemoutros lugarestambém,espalhadaspelaárvore.Nãoeraumailusãocausadapelaluzepelassombras.Erareal.

Gesticulou freneticamente para Jase e apontou quando o outro chegou perto. Como eracostume naquele momento, não falaram, mas Jase arquejou ao ver o tamanho do dano já feito.Lentamente,osdois rodearamaárvore,descobrindomanchasemtodosos lugares,algumasquaseinvisíveis, enquantooutras já tinhamescurecido tanto aquelas folhasque a corde sanguepareciatersidodrenada.

Quaisquerquefossemsuascrençassobreaárvore,Jaseficouprofundamenteabalado;seurostoexpressava seu desespero quando se reuniu aos outros para conversar em sussurros. Lauren fezmenção de juntar-se a eles, mas Jase rapidamente sacudiu a cabeça, apontando para a ponta daárvore,ondealuzdaalvoradajáquasealcançavaosgalhosmaisaoalto.

Lauren conhecia seu dever e voltou-se outra vez para a árvore.O que quer que estivesse paraacontecer,osEscolhidosdeveriamsaudaraEllcrysnaquelediatalcomohaviamfeitotodososdias,desdeoiníciodaOrdem.

Colocou as mãos gentilmente na casca prateada e as palavras de saudação já estavam seformando em seus lábios quando um galho fino da velha árvore se abaixou lentamente para lhetocaroombro.

—Lauren...O jovem elfo pulou ao ouvir seu nome. Contudo, ninguém falara nada. O som fora em sua

mente;avoznãoeramaisdoqueumaimagemdoprópriorosto.EraaEllcrys!Ele prendeu a respiração, girando a cabeça levemente para olhar de relance o galho em seu

ombroantesdevirarparafrentedenovo.Aconfusãootomou.Elasófalaracomeleumavez—nodia em que fora Escolhido. Ela dissera seu nome na época, dissera o nome de todos eles. Fora a

últimavez.Elanuncamais falaracomnenhumdelesdepoisdisso.Nunca—excetocomAmberle,claro,masAmberlenãoeramaisumdeles.

Eleolhouapressadamenteparaosoutros.Todosoencaravam,curiososparasaberporquetinhaparado. O galho pousado sobre seu ombro deslizou levemente para se enrolar nele, fazendo-oencolher-seinvoluntariamenteaotoque.

—Lauren.ChameosEscolhidosparamim...As imagens surgiram rapidamente em sua mente e sumiram. Hesitante, Lauren chamou seus

companheiros. Eles avançaram, as perguntas se formando em seus lábios enquanto olhavam paracima,paraosgalhosprateadosdaárvore.Galhos seabaixaram tocandocadaumdeles, e avozdeEllcryssussurrou,suavemente:

—Escutem-me.Lembrem-sedoqueireidizer.Nãofalhemcomigo...UmcalafriopercorreuseuscorposeosJardinsdaVidaforamenvoltosemumsilêncioprofundo

e oco, como se só eles continuassem vivos em todo o mundo. Imagens encheram suas mentes,fluindoumaapósaoutra,numarápidasucessão.Haviahorrornaquelasimagens.Casopudessem,osEscolhidos teriam virado as costas para a árvore para fugir e se esconder até o pesadelo que ospossuíraterminareseresquecido.Masaárvoreosseguroucomfirmeza;asimagenscontinuaramafluireohorroracrescer,atéelesnãoaguentaremmais.

Finalmente, terminou.AEllcrys ficouemsilênciomaisumaveze seusgalhosseergueramdosombrosdosEscolhidoseseesticaramparacaptarocalordosoldamanhã.

Laurenficouparalisado.Lágrimascorriamporsuasbochechas.Arrasados,osseisEscolhidosseentreolharam,eemcadamenteaverdadesussurravasememitirqualquersom.

A lendanãoera lenda.A lendaeraverdadeira.OmalrealmenteestavaalémdeumaProibiçãoqueaEllcryssustentava.Apenaselamantinhaopovoélficoasalvo.

Eelaestavamorrendo.

CapítuloII

BemaoestedeArborlon,alémdaLinha-de-Quebra,haviaumaagitaçãonoar.Algomaisnegrodoqueaescuridãodocomeçodaalvoradaapareceu,retorcendo-seetremendocomaforçadealgumgolpe que parecera receber. Por ummomento, o véu de negrume aguentou.Mas logo se partiu,lacerado pela força que veio de dentro de si. Uivos e berros de alegria espalharam-se, vindos daimpenetrável escuridão além, enquanto dúzias demembros com garras arranhavam e rasgavam abrecha repentina, esforçando-se para alcançar a luz. Um fogo vermelho explodiu e as mãosrecuaram,retorcidasequeimadas.

DagdaMorsaiudaescuridão,sibilandocomraiva.SeuCajadodePodersoltavavaporenquantoele empurrava os ansiosos e corajosamente passava pela abertura. Um instante depois, as formasescuras doCeifador e doMetamorfo o seguiram.Outros corpos tentaram avançar em desespero,masasbordasdorasgorapidamenteseuniram,fechandoonegrumeeascoisasquenelemoravam.Emsegundos,aaberturahaviasumidocompletamenteeoestranhotrioencontrava-seasós.

O DagdaMor olhou ao seu redor com atenção. Estavam na sombra da Linha-de-Quebra e aalvoradaquejáhaviadespedaçadoapazdosEscolhidoserapoucomaisdoqueumaluzvaganocéualeste,dooutroladodamonstruosamuralhademontanhas.Ospicosimensosseprojetavamcomoadagasparaocéu,projetandopilaresdeescuridãoaumalongadistâncianadevastaçãodaplaníciedeHoare. A planície em si se estendia para oeste a partir dasmontanhas, rumo ao vazio— umdescampado duro e árido onde a vida era medida em minutos e horas. Nada se movia em suasuperfície.Nenhumsomquebravaaquietudedoardamanhã.

Dagda Mor sorriu com seus dentes tortos e brilhantes. Sua chegada passara despercebida.Depois de todos aqueles anos, estava livre. Estava solto novamente entre aqueles que o haviamaprisionado.

Àdistância,poderiapassarporumdeles.Tinhabasicamenteaaparênciadeumhumano.Andavaereto emduaspernas e seusbraços eramapenas levementemais longosdoqueosdeumhomem.Andava inclinado, seus movimentos dificultados por sua forma de andar curvado — porém, asroupas negras que o envolviam tornavam difícil perceber o motivo. Somente se olhasse bem depertoquealguémnotariaclaramentea imensacorcovaquequasedobravasuaespinhaaomeionaaltura dos ombros. Ou os grandes tufos de pelo esverdeado que surgiam em todas as partes docorpocomogramacortada.Ouasescamasquecobriamseusbraçoseaparteinferiordaspernas.Ouasmãos e as pernas terminadas emgarras.Ouo focinho vagamente felino.Ouos olhos, negros ebrilhantes,enganosamenteplácidosnasuperfície,comolagosgêmeosqueescondiamalgomalignoedestrutivo.

Assim que tais características eram vistas, não restava mais dúvida acerca da identidade deDagdaMor.Oqueserevelavanãoerahumano,masdemônio.

Eodemôniotinhaódio.Odiavacomumaintensidadequebeiravaaloucura.CentenasdeanosdeaprisionamentodentrodafortalezanegraquejaziaalémdamuralhadaProibiçãoderamaoseuódiotempomaisdoquesuficienteparasupurarecrescer.Eleagoraoconsumia.Eratudoparaele.Dava-lhepoder,eeleusariatalpoderparaesmagarascriaturasquelhecausaramtantaagonia.Os

elfos! Todos os elfos. E mesmo isso não seria mais o suficiente para satisfazê-lo — não naquelemomento,nãodepoisdeséculossendomantidoisoladodaquelemundoquejáforaseu—mantidonaquele limbo inanimado, sem forma, de estagnação abjeta, lenta, escura e sem fim. Não, adestruiçãodoselfosnãoseriaobastantepararepararaindignidadequesofrera.Osoutrostambémdeveriam ser destruídos. Homens, anões, trolls, gnomos — todos aqueles que faziam parte dahumanidade que tanto detestava, as raças da humanidade que viviam no seumundo e o haviamreivindicadoparasi.

Suavingançachegaria,pensou.Assimcomoaliberdadechegara.Conseguiasentir.Esperaraporséculos,posicionadonamuralhadaProibição,testandosuaforça,procurandofraquezas—sempresabendo que em algum momento ela iria começar a falhar. E o dia chegara. A Ellcrys estavamorrendo.Ah,quepalavrasdoces!Elequeriagritá-las!Elaestavamorrendo!ElaestavamorrendoenãopodiamaissustentaraProibição!

OCajadodoPoderbrilhavaemvermelhoemsuasmãos conformeoódio fluíadentrodele.Aterra sobaoutrapontaqueimouatévirar cinza.Comesforço,DagdaMoracalmou-seeoCajadoesfriounovamente.

ClaroqueaProibiçãoaindaresistiriaporumtempo.Umaerosãocompletanãoaconteceriadodia para a noite, nemmesmo em semanas. Mesmo a pequena brecha que conseguira abrir haviarequerido um poder imenso. Mas Dagda Mor possuía este poder imenso, mais poder do quequalquerumdosqueaindaestavampresosatrásdaProibição.Eleforaolíderentreeles;suapalavraosgovernara.Algunspoucoshaviamdesafiadoaquelapalavraduranteoslongosanosdebanimento—apenasalguns.Eleosdestruíra.Tornara-osexemplosdesagradáveis.Etodospassaramaobedecê-lo.Temiam-no.Mascompartilhavamdeseuódioemrelaçãoaoqueforafeitocomeles.Tambémsenutriamdaqueleódio.O sentimentoos levaraaumanecessidade frenéticadevingança, equandofinalmente estivessem livres novamente, tal necessidade levaria muito, muito tempo para sersatisfeita.

Por ora, no entanto, precisavam esperar. Por ora, precisavam ser pacientes. Não demorariamuito.AProibiçãoiriaenfraquecerumpoucomaisacadadia,deteriorando-seconformeaEllcrysmorresselentamente.Apenasumacoisapoderiaimpedirisso—umrenascimento.

DagdaMor assentiu para si. Ele conhecia bem a história da Ellcrys.Não estivera ele presentequandoaárvoreviraavidapelaprimeiravez,quandoelabaniraaeleeaseusirmãosdomundodeluz para uma prisão de escuridão? Não vira a natureza da feitiçaria que os derrotara — umafeitiçariatãopoderosaquepodiatranscenderatéamorte?Esabiaquesualiberdadeaindapoderiaser retirada. Se um dos Escolhidos tivesse permissão para carregar uma semente da árvore até aorigemdo poder dela, a Ellcrys poderia renascer e a Proibição poderia ser invocada novamente.Sabia disso, e por causa disso estava ali.Não tivera certeza alguma de que conseguiria abrir umabrecha na muralha da Proibição. Tinha sido uma aposta perigosa gastar tanto poder naquelatentativa,pois,casotivessefalhado,eleteriaficadoterrivelmenteenfraquecido.Haviaalgunsalémdamuralhaquase tãopoderososquantoele;e teriamaproveitadoaoportunidadeparadestruí-lo.Masaapostatinhasidonecessária.Oselfosaindanãotinhampercebidootamanhodaameaça.Porenquanto ainda acreditavam estar a salvo. Não achavam que dentro dos limites da Proibiçãohouvesse alguém dotado de poder suficiente para romper a passagem. Descobririam aquele errotarde demais, quando Dagda se certificaria de que a Ellcrys jamais pudesse renascer e nem aProibiçãopudesseserrestaurada.

Eraporessemotivoquetinhatrazidoosoutrosdois.Olhou ao redor, procurando-os.AchouoMetamorfo imediatamente, seu corpopassandopor

umatransiçãocrescentedecorese formasconformeexercitavaduplicaravidaqueencontravaali—no céu, um falcão e um corvo pequeno; no solo, umamarmota, depois uma cobra, um insetocommuitaspernasetenazes,esempremudandoparaalgonovo,quaserápidodemaisparaosolhosacompanharem.PoisoMetamorfopoderia serqualquercoisa.Trancadonaescuridãocomapenasseus iguais para servirem de modelo, tinham lhe negado o uso total de seus poderes. Lá, seupotencial fora desperdiçado. Mas ali, naquele mundo, as possibilidades eram infinitas. Todas ascoisas,nãoimportavasehumanasouanimais,peixeouave,nãoimportavaseutamanho,forma,corou habilidades — poderia ser qualquer um deles. Poderia assimilar suas característicasperfeitamente.NemmesmooDagdaMortinhacertezasobreaverdadeiraaparênciadoMetamorfo;acriaturaeratãoinclinadaaseadaptaraoutrasformasdevidaquepassavapraticamenteotempotodosendoalgooualguémdiferentedoquerealmenteera.

Tratava-se de umdom extraordinário, possuído por uma criatura cuja capacidade para omaleraquasetãograndequantoadeDagdaMor.OMetamorfotambémeraumdemônio.Eraegoístaedetestável. Gostava de duplicidade, gostava de ferir os outros. Sempre fora um inimigo do povoélficoedeseusaliados,detestando-osporsuapiedosapreocupaçãocomobem-estardasformasdevida inferiores que habitavam seu mundo. Criaturas inferiores não significavam nada para oMetamorfo.Eramfracasevulneráveis;eramdestinadasaseremusadasporseresmaispoderosos—seresassimcomoele.Oselfosnãoerammelhoresdoqueascriaturasquebuscavamproteger.Nãoconseguiamounãoqueriamenganar,comoelefazia.Todoselesestavampresospeloqueeram;nãoconseguiamsernadamais.Elepodiaseroquequisesse.Desprezavaatodos.OMetamorfonãotinhaamigos. Não queria nenhum. Nenhum além de DagdaMor, no caso, pois DagdaMor possuía aúnicacoisaqueelerespeitava—umpodermaiordoqueoseu.Eraporessemotivo,esomenteporessemotivo,queoMetamorfooservia.

DagdaMor levou bemmais tempo para localizar o Ceifador. Finalmente o encontrou, a nãomais do que trêsmetros de distância, perfeitamente imóvel, poucomais que uma sombra na luzfracadocomeçodamanhã,outropedaçodanoiteacocoradocontraocinzadaplanície.Envoltodacabeça aos pés emmantos da cor de cinzasmolhadas, o Ceifador estava quase invisível, com seurosto cuidadosamente escondido na sombra de um capuz imenso. Ninguém jamais olhara paraaquele rostomais de uma vez. O Ceifador só permitia que suas vítimas vissem esse tanto, e suasvítimasestavamtodasmortas.

Se oMetamorfo deveria ser considerado perigoso, então o Ceifador o era dez vezes mais. OCeifadoreraumassassino.Matareraoúnicopropósitodesuaexistência.Eraumacriaturaimensa,incrivelmentemusculosa,commaisdedoismetrosdealturaquandocompletamenteereto.Masseutamanho era enganoso, pois não erapesado.Movimentava-se coma facilidade e coma graçadosmelhores caçadores élficos—suave, fluido, rápidoe silencioso.Assimque começavaumacaçada,nuncadesistia.Nenhumapresasuajamaisescapara.MesmoDagdaMoreracautelosoaolidarcomoCeifador,emboraestenãopossuíssepoderàaltura.TinhaessecuidadoporqueoCeifadoroserviaporcapricho,nãopormedoourespeito,comotodososoutros.OCeifadornãotemianada.Eraummonstroqueparecianãose importarcomavida,nemmesmocomaprópria.Nemsequermatavapor gostar de matar, embora gostasse mesmo de fazê-lo. Matava porque matar era instintivo.Matava porque achava que matar era necessário. Às vezes, dentro da escuridão da Proibição,afastadodetodasas formasdevidaquenãoosseus irmãos, tornara-sequase incontrolável.DagdaMor se vira forçado a lhe dar demôniosmenores paramatar,mantendo-o sob seu controle comumapromessa.Assimqueestivessem livresdaProibição—eumdiaestariam livres—oCeifadorreceberiaummundointeirodecriaturasparacaçar.Poderiacaçá-laspelotempoquequisesse.No

final,poderiamataratodas.OMetamorfoeoCeifador.DagdaMorescolherabem.Umseriaseusolhos,ooutro,suasmãos;

olhosemãosqueiriamfundonocoraçãodopovoélficoparaacabarparasemprecomachancedefazeraEllcrysrenascer.

Olhoubruscamenteparaoleste,ondeabordadosoldamanhãseerguiarapidamenteaotopodaLinha-de-Quebra.Erahoradeir.Denoite,deveriamestaremArborlon.Tambémplanejaraissocom cuidado. O tempo lhe era precioso; não podia desperdiçá-lo se quisesse pegar os elfoscochilando. Eles não deveriam saber de sua presença até ser tarde demais para se fazer algo arespeito.

Comumgestorápidoparaseuscompanheiros,DagdaMorvirou-seesearrastoupesadamenteemdireçãoaoabrigodaLinha-de-Quebra.Seusolhosnegrossemicerraram-secomprazerenquantoa mente saboreava o sucesso que a noite lhe traria. Depois daquela noite, os elfos estariamcondenados.Depoisdaquelanoite,elesseriamforçadosaversuaamadaEllcrysmorrendosemtersequeramenoresperançadefazê-larenascer.

Defato.Porquedepoisdaquelanoite,osEscolhidosestariamtodosmortos.

Váriascentenasdemetrosalémdasmontanhas,bemparadentrodasombraprotetoradelas,DagdaMorparou.Comasduasmãos agarrandooCajadodePoder, eleo seguroucomumapontaparacima e a outra plantada com firmeza na terra seca e rachada. Abaixou a cabeça ligeiramente eapertou o Cajado. Por vários minutos, ficou parado sem se mexer. Atrás dele, os outros doisobservavam, curiosos, com suas formas sombrias encolhidas e seus olhos como pedaços de luzamarela.

De repente, o Cajado de Poder começou a brilhar, uma luz pálida, débil e avermelhada quedestacavaaformagigantescadodemônionaescuridão.Uminstantedepois,obrilhoseintensificoubruscamenteecomeçouapulsar.CorreudoCajadoparaosbraçosdeDagdaMor,deixandoapeleesverdeadadacordosangue.AcabeçadodemônioseergueueoCajadoatirou fogonocéunumarco fino e brilhante que voou para a alvorada como uma coisa viva e assustada. Sumiu emsegundos.ObrilhoqueacendeuoCajadodoPoderardeuumavezemorreu.

DagdaMor recuouumpasso, abaixandooCajado.A terra ao redordele estava carbonizada enegra, e o ar úmido cheirava a brasas. A planície que o cercava caíra num silêncio mortal. Odemônio sentou-se, os olhos opacos semicerrando-se de contentamento. Não semexeu de novo,nem as criaturas que estavam com ele. Juntos, aguardaram—meia hora, uma hora, duas. Aindaesperavam.

Efinalmente,vindodavastidãovaziadasTerrasdoNorte,surgiuomonstruosopesadeloaladoqueodemôniohaviainvocadoparalevá-losparaoleste,atéArborlon.

—Agoranósveremos—sussurrouDagdaMor.

CapítuloIII

OSolmalsurgiranohorizontequandoAnderElessedilpassoupelaportadafrentedeseucasebree caminhou pela calçada em direção aos portões de ferro que ficavam na frente do terreno dopalácio. Como segundo filho de Eventine, Rei dos Elfos, poderia ter aposentos na área real;masanos antes se mudara com seus livros para sua residência atual e desde então ganhara umaprivacidadequenãoteriadentrodopalácio.Ouassimpensaranaépoca.Nomomento,nãoestavatão certo; com seu irmãomais velho, Arion, recebendo amaior parte da atenção do pai, Anderprovavelmentenãoteriasidomuitoincomodadoondequerqueescolhesseviver.

Ele inspirouapurezaeocalordoarmatinal,esorriubrevemente.Umbomdiaparacavalgar.Tantoelequantoseucavalofavoritopoderiamaproveitaroexercício.

Aosquarenta,nãoeramaisumhomemjovem.Seurostoélficofinotinharugasnoscantosdosolhosestreitosenatestaangulosa,masseuspassoseramrápidosetranquilos,eorostoficavaquasejuvenilquandosorria—emboraissofosseraronaquelesdias.

Aoseaproximardosportões,viuqueWent,ovelhocaseiro,jáestavatrabalhando,cuidandodoscanteirosdeflorescomumaenxadademão,suafiguraesguiacurvadasobreotrabalho.AoouviraaproximaçãodeAnder,Wentseendireitoulentamente,levandoumadasmãosàscostas.

—Bomdia,Príncipe.Umabelamanhã,não?Anderassentiu.—Esplêndido,Went.Ascostasaindaestãolheincomodando?—Devezemquando.—Ovelhoesfregou-asdelicadamente.—Éaidademealcançando,acho.

Masaindaconsigotrabalharmaisdoqueosjovensquemandamparameajudar.Ander assentiu mais uma vez, sabendo que o orgulho do velho era a simples verdade. Went

deveriaterseaposentandoanosantes,masele,teimoso,recusara-seadeixarseusdeveres.QuandoAnderpassoupeloportãoexterno,assentinelasemserviçoassentiramemsaudação,e

ele cumprimentou de volta. Os guardas e ele já tinham dispensado as formalidades havia muitotempo.Arion,comoPríncipedaCoroa,podiainsistiremsertratadocomdeferência,masaposiçãodeAndereasexpectativasemrelaçãoaeleeramumpoucomenores.

Eleseguiuaestradaquesecurvavaàesquerda,contornandoalgunsarbustosdecorativos,rumoaosestábulos.Umtrovãodecascoseumgritoquebraramosilênciodamanhã.Anderpulouparaolado quando o garanhão cinza de Arion surgiu vindo em sua direção, espalhando cascalho eempinandoaopararsubitamente.

Antes mesmo de o cavalo estar totalmente em repouso, Arion descia e encarava seu irmão.EnquantoAndererabaixoemoreno,Arioneraaltoelouro,esuasemelhançacomopainamesmaidadeerasurpreendente.Isto,aliadoaofatodeeleserumatletasoberboeumreconhecidomestredearmas,caçadorecavaleiro,tornavainevitávelquefosseoorgulhoeaalegriadeEventine.Ariontambémtinhaumcarismairresistível—umcarismaqueAndersempresentirafaltaremsi.

—Indoparaonde,irmãozinho?—perguntouArion.ComodecostumeaosedirigiraoPríncipemaisjovem,suavoztinhaumlevetomdedebocheedesprezo.—Eunãoincomodarianossopai,sefosse você. Nós dois ficamos acordados até tarde trabalhando em algumas questões de estado

urgentes.Eleaindaestavadormindoquandoverifiquei.— Eu estava indo para os estábulos— respondeu Ander calmamente.—Não tenho amenor

intençãodeincomodarninguém.Arion sorriu e virou-se para seu cavalo. Com uma das mãos nas alças da sela, saltou

graciosamenteemcimadela,semusaroestribo.Voltou-separaolharseuirmão,embaixo.—Bem, ficarei forapor algunsdias, emSarandanon.Aspessoasnas comunidades rurais estão

agitadas... algumvelho contode fadas sobre adestruição chegandopara todosnós.Ummontedebobagens, só que tenho de acalmá-los.Mas não alimentemuitas esperanças, pois estarei de voltaantes que nosso pai saia para o Kershalt.— Sorriu.—Nessemeio tempo, irmãozinho, cuide detudo,sim?

Elesacudiuasrédeasesefoinumacorridaqueolevoupelosportõesealém.Anderpraguejoubaixinhoparasiesevirou.Nãoestavamaiscomânimodeandaracavalo.

EraelequemdeveriaacompanharoReinamissãooficialatéKershalt.Estreitaros laçosentretrolls e elfos era importante.E emboraasbases já tivessemsidocolocadas, ainda seriapreciso terdiplomacia e negociar com cuidado. Arion era impaciente e descuidado demais, pouco afeito àsnecessidades e ideias alheias.Anderpodianão ter ashabilidades físicasdo irmão—embora fossebastante capaz—, e tambémpoderianão ter a inclinaçãonatural deArionpara a liderança.Mastinha o dom da argumentação minuciosa e ponderada, e da paciência necessária para reuniõesdiplomáticas.Naspoucasocasiõesemqueforachamado,demonstrarataishabilidades.

Deu de ombros. De qualquer jeito, não havia sentido em remoer aquilo agora. Já pedira aEventineparairnaquelaviagemeforadeixadodelado,emfavordeArion.ArionumdiaseriaRei;eleprecisavapraticaraartedegovernarenquantoEventineaindaestivessevivoparaorientá-lo.Etalvezaquilofizessesentido,Anderreconhecia.

Arioneelejáhaviamsidopróximos.IstosederaquandoAineaindaestavavivo—Aine,omaisnovodosfilhosdeElessedil.MasAineforamortoemumacidentedecaçaonzeanosantes,edepoisdisso o laço da fraternidade deixara de ser suficiente.Amberle, a jovem filha deAine, procuraraapoioemAnder,nãoemArion,eociúmedoirmãomaisvelhologosemanifestaranumdesprezoóbvio. Depois, quando Amberle renunciara à sua posição entre os Escolhidos, Arion culpara ainfluênciadoirmão,eseudesprezosedegeneraraatéumahostilidadefracamentedisfarçada.Andersuspeitavaqueamentedeseupaiforaenvenenadacontraele.Masnãohavianadaquepudessefazerarespeito.

Aindaimersoempensamentos,passavapelosportõesrumoaocaminhoatésuacasa,quandoumgritoofezsevirar.

—Senhor,meuPríncipe,espere!Ander encarou, surpreso, uma figura de roupas brancas que corria até ele, acenando

freneticamentecomumbraço.EraumdosEscolhidos,oruivo—Lauren,nãoeraesseonome?EraincomumverqualquerumdelesforadosJardinsàquelahora.Esperouatéojovemelfoalcançá-lo,parandodeformadesajeitada,cansado,comorostoebraçosmanchadosdesuor.

—Senhor,meuPríncipe,precisoveroRei—arquejouoEscolhido.—Enãomedeixampassaragora,sómaistarde.Vocêpodemelevaratéele?

Anderhesitou.—OReiaindaestádormindo...—Precisovê-loimediatamente!—insistiuooutro.—Porfavor!Issonãopodeesperar!Havia desespero em seus olhos e no rosto pálido e exausto. A voz tremia com a tentativa de

enfatizaraurgênciaqueomovia.Anderrefletiu,perguntando-seoquepoderiasertãoimportante.

—Sevocêsemeteuemalgumaencrenca,Lauren,talvezeu...—Nãosoueu,senhor,meuPríncipe.ÉaEllcrys!AindecisãodeAnderevaporou.EleassentiuepegouobraçodeLauren.—Venhacomigo.Juntos, os dois atravessaram os portões, apressados em direção ao palacete, com as sentinelas

encarando-ossurpresas.

Gael,o jovemelfoqueserviacomoassistentepessoaldeEventineElessedil, sacudiuacabeçacomfirmeza — porém, por baixo de suas roupas escuras, sua figura esguia se remexia de formadesconfortáveleseusolhosrecusavam-seaencontrarosdeAnder.

—NãopossoacordaroRei,PríncipeAnder.Elemerecomendou,commuita intensidade,quenãooincomodassepornada.

—Nemporninguém,Gael?—perguntouAnder,emvozbaixa.—NemmesmoporArion?—Arionpartiu...—Gaelcomeçouadizer.Masparoueficouaindamaisdescontente.—Exatamente.Porém,euestouaqui.Vocêvairealmentemedizerquenãopossovermeupai?Gaelnãorespondeu.QuandoAndersedirigiuparaoquartodoRei,o jovemelfocorreuatrás

dele.—Euireiacordá-lo.Porfavor,espereaqui.Passaram-se váriosminutos antes que ele voltasse, com o rosto ainda preocupado, assentindo

paraAnder.—Eleirávê-lo,PríncipeAnder.Masporenquanto,sóvocê.OReiaindaestavanacamaquandoAnderentrou,terminandodebeberatacinhadevinhoque

Gaelprovavelmentelheservira.Eleacenoucomacabeçaparaofilhoedeslizoucomcuidadoparafora do calor das cobertas, com seu corpo envelhecido tremendo por um momento no frio deiníciodamanhã.Gael,queentraracomAnder,seguravaumrobe,eEventineovestiu,amarrando-odelicadamentenacintura.

Apesardeseus82anos,EventineElessediltinhaexcelentesaúde.Seucorpoestavarijoeemboaordem.Ainda conseguiamontar, ainda era ágil, e preciso o bastante para ser perigoso com umaespada.Suamenteerasagazeatenta;quandoasituaçãopedia,eissoocorriacomfrequência,eleeradecidido. Ainda possuía um inquietante senso de equilíbrio, de proporção — a capacidade deenxergar todos os lados de um problema, de julgar cada um por seus devidos méritos, e quasesempreescolheroqueiriatrazeromaiorbenefícioparasieparaaquelesquegovernava.Tratava-sedeumdomsemoqualnão teriapermanecidoRei—não teria sequerpermanecidovivo.EraumdomqueAnder tinhamotivos para acreditar ter herdado, apesar de parecer bem inútil naquelascircunstâncias.

O Rei foi até as cortinas feitas àmão que cobriam a parede oposta, afastou-as para o lado eempurrouparaforaasváriasdasjanelasquedavamparaaflorestadooutrolado.Aluzinundouoaposento, suave e doce, juntamente ao cheiro do orvalho. Atrás dele, Gael movimentava-se emsilêncio, acendendo as lamparinas de óleo para afastar o restante da escuridão dos cantos doquarto.Eventinehesitoudiante deuma janela, olhando fixamentepara o reflexode seu rostonovidroembaçado.Osolhos espelhados ali eramdeumazul surpreendente,duros epenetrantes,osolhosdeumhomemqueviraanosedissaboresdemais.Suspirouevirou-separaencararAnder.

— Muito bem, Ander, o que houve? Gael falou algo sobre você estar trazendo um dosEscolhidoscomumamensagem?

—Sim,senhor.EledizterumamensagemurgentedaEllcrys.—Umamensagemdaárvore?—Eventinefranziuatesta.—Quantotempofazdesdequeeladeu

umamensagemaalguém?Maisdesetecentosanos?Qualéamensagem?—Elenãoquismecontar—respondeuAnder.—Insisteementregá-laavocê.Eventineaquiesceu.—Então,eledeveentregá-la.Faça-oentrar,Gael.Gael fez uma ligeira reverência e saiu, apressado, pelas portas do quarto, deixando-as

entreabertas.Ummomentodepois,umimensocachorropeludopassouporelasefoiatéoRei,semfazer ruído. EraManx, seu cão lobo, e ele cumprimentou o animal afetuosamente, esfregando acabeça cinzenta, acariciando suavemente o pelo ásperodos flancos e costas.Manx estava com elefaziaquasedezanos,maispróximoemaisfieldoquequalquerhumanopoderiaser.

—Estáficandoumpoucogrisalho,comoeu—murmurouEventine,compesar.As portas abriram-se totalmente para Gael entrar, seguido por Lauren. O Escolhido parou à

entradaporummomento,olhandodemodoinseguroparaGael.OReiassentiuparaseuassistente,dispensando-o. Ander estava prestes a sair também, quando um ligeiro movimento de seu paiindicouquedeveriapermanecer.Gael feznova reverênciae se retirou,destavez fechandobemasportasatrásdesi.Quandoelesefoi,oEscolhidodeuumpassoàfrente.

—Meusenhor,porfavor,meperdoe...elesacharamqueeu...eudeveriaserquem...—Elequasesufocavanasprópriaspalavras.

— Não há nada para se perdoar — assegurou Eventine. Com o charme que Ander sempresouberaqueopaipodiademonstrar,oReiavançourapidamenteecolocouseubraçonosombrosdo jovem elfo. — Sei que deve ser algo muito importante, ou você não teria abandonado seutrabalhonosJardins.Venha,sente-seemeconteoquehouve.

OlhouinterrogativamenteparaAnder,entãoguiouoEscolhidoparaumapequenaescrivaninhaem um lado da sala, sentando-o em uma das duas cadeiras enquanto ocupava a outra. Ander osseguiu,masficouempé.

—SeunomeéLauren,nãoé?—perguntouEventineaoEscolhido.—Sim,meusenhor.—Muitobem,Lauren.Agoramedigaporqueveio.Laurenseempertigoueapoiouasmãosnaescrivaninha,entrelaçandoosdedos.—Meusenhor,aEllcrys faloucomosEscolhidosestamanhã.—Suaspalavraseramquaseum

sussurro.—Elanosdisse...elanosdissequeestámorrendo!Andersentiuosanguegelar.Porummomento,oReinãorespondeu,permaneceurigidamente

sentado,osolhosfixosnomensageiro.—Deveterhavidoalgumengano—disse,porfim.Laurensacudiuacabeçaenfaticamente.—Nãohánenhumengano,meu senhor.Ela faloucom todosnós.Todos... todosnósouvimos.

Elaestámorrendo.AProibiçãojácomeçouadesmoronar.O Rei levantou-se devagar e foi até a janela aberta, fitando a floresta em silêncio.Manx, que

haviaseenroscadoaospésdacama,levantou-seeoseguiu.AnderviuamãodoReiseesticarparacoçarasorelhasdocãonumgestomecânico.

—Vocêestácertodisso,Lauren?—perguntouEventine.—Muitocerto?—Sim...sim.OEscolhidochoramingava,quasesilenciosamentejuntodaescrivaninha,orostoescondidonas

mãos.Eventinenãosevirou,continuandoaencararfixamenteasflorestasqueeramseulareolar

deseupovo.Ander encontrava-se paralisado, com o olhar sobre o pai e a mente ainda atordoada pelo

choque.Agrandiosidadedoqueouviraseapoderavadelelentamente.AEllcrysestavamorrendo!OfimdaProibição.Omal que fora banido estaria livre uma vezmais.Caos, loucura, guerra! E, nofim,adestruiçãodetudo.

Estudara história com seus tutores e novamente nos livros da própria biblioteca. Era umahistóriacomoscontornosdeumalenda.

Umavez,muitotempoatrás,emumaépocaanterioràsGrandesGuerras,antesdaalvoradadacivilizaçãodovelhomundo,antesmesmodosurgimentodaantigaraçadoshomens,houveraumaguerraentrecriaturasmágicasboasemás.Oselfoshaviamlutadonaquelaguerradoladodobem.Fora uma luta longa, terrível e devastadora.Mas no final, as forças do bem foram vitoriosas e asforças do mal foram derrotadas. Entretanto, a natureza do mal era tal que não poderia sercompletamente destruída; só poderia ser banida. Assim, o povo élfico e seus aliados uniram suamagiaàforçavitaldaprópriaterraparacriaraEllcrys,paraquecomsuapresençaumaProibiçãopudessesercolocadasobreascriaturasdomal.EnquantoaEllcryssobrevivesseeflorescesse,omalnãopoderiaretornarsobreaterra.Trancadoemumvazioescuro,poderiachorardeangústiaatrásdamuralhadaProibição,masaterraestavaforadoseualcance.

Até agora! Se a Ellcrys morresse, a Proibição iria terminar. Estava escrito que isso teria deacontecer,poisnãohaviapoderforteobastanteparadurarparasempre.Aindaassim,pareceraqueaEllcrysduraria,estandoaliportantasgerações,imutável,umpontofixonoinconstantelabirintodavida.Opovoélficotinhapassadoaacreditarqueseriaassimparasempre.Erroneamente,aoqueparecia.Tolos.

O Rei virou-se de repente, olhando brevemente para Ander, e voltou para a escrivaninha,sentando-seesegurandoasmãosdeLaurenparaestabilizá-lo.

—Vocêprecisamecontartudoqueeladisseavocês,Lauren.Cadadetalhe.Nãodeixenadadefora.

O Escolhido assentiu,mudo. Seus olhos encontravam-se novamente secos e seu rosto, calmo.Eventinesoltou-lheasmãoserecostou-se,esperando.Anderpegouumacadeiradeespaldaraltodooutroladodoquartoeacomodou-sepertodeles.

—Meusenhor,vocêjáouviufalarsobreaformacomoelasecomunicaconosco?—perguntou,cauteloso.

—EujáfuiumEscolhido,Lauren—respondeuEventine.Anderolhousurpresoparaopai.Issoera algo que nunca soubera. Porém, Lauren pareceu ganharmais confiança com aquela resposta.Assentiuevirou-separaexplicaraAnder.

—Avozdelanãoébemumavozsonora,masvisual, feitade imagensqueaparecememnossasmentes.Raramentehápalavrasdefato;aspalavrassãonossaprópriatraduçãodospensamentosqueela projeta. É assim que eu traduzo quando ela usa meu nome. As imagens são breves e nãoaparecemcomclareza,entãotemosdeinterpretá-lasdamelhormaneirapossível.

Eleparouevirou-sedenovoparaEventine.— Eu... a Ellcrys só tinha falado comigo uma vez antes desta manhã, meu senhor. Ela havia

falado com nós seis no momento em que fomos escolhidos. Até esta manhã, muito do queconhecíamos sobre a forma de ela se comunicar baseava-se nos escritos de nossa Ordem e nosensinamentosdosEscolhidosqueserviramantesdenós.Mesmoagora,émuitoconfuso.

Eventineassentiu,encorajando-o.Laurencontinuou:—Meusenhor,aEllcrysfalouconoscopormuitotempoestamanhã,algoquenuncatinhafeito.

Chamou-nosatéelaenosdisseoque iriaacontecereoquenós,Escolhidos,deveríamos fazer.Asimagensnão foram totalmente claras,masnãohá comoestarmos enganados sobre suamorte.Elatempoucotempo;masoquanto,éincerto.Aerosãojácomeçou.Equandoelaentraremcolapso,aProibiçãodesabarájunto.Hásomenteumachanceparaela:umrenascimento.

Eventineestendeuamãoderepente,agarrandoadeLauren.Andertambémhaviaseesquecido,afinal estava chocado e confuso pela Ellcrys ter previsto a própriamorte.Um renascimento!Nashistóriasmaisantigas,estavaescritoqueaEllcryspoderiarenascer,eassimpreservaraProibição.

—Entãoaindaháesperança—sussurrouele.OsolhosdeEventineestavamfixosemLauren.—Oquedeveserfeitoparaqueelarenasça?Laurensacudiuacabeça.— Meu senhor, ela confiou seu destino aos Escolhidos. Ela irá se permitir renascer apenas

atravésdenós.Não vou fingir que entendoosmotivosdela,mas as imagens foramclaras. Ela iráentregar sua semente a um de nós; qual, ela não disse. Nenhum rosto foimostrado.Mas nos foirevelado que apenas um dos Escolhidos selecionados na última vez poderá receber a semente.Ninguémmais será cogitado.Quem quer que seja selecionado precisará carregar a semente até afonte de vida da terra, até a fonte do Fogossangue. Lá, deverá ser mergulhada no fogo peloportador.Assimqueretornarao lugardavelhaárvore,a sementecriará raízeseumanovaárvoreirásurgirparasubstituiraantiga.

OsdetalhesdalendavoltavamàmemóriadeAnder—aguardadasementedaEllcrys,oritualdo Fogossangue, o renascimento. Era contada na linguagem estranha e formal das históriasmaisantigas—históriasqueamaioriadaspessoasjáesqueceraoujamaisconhecera.

—AfontedoFogossangue;ondeaencontraremos?—perguntouderepente.Laurensooudesanimado:—Elanosmostrouum lugar,meuPríncipe,mas...masnósnãoconseguimos reconhecê-lo.As

imagensforamvagas,quasecomoseelamesmanãotivessecomodescreverolugardireito.AvozdeEventinepermaneceucalma.—Conte-meoqueelamostrouavocês.Tudo.Laurenassentiu.—Havia uma vastidão totalmente cercada pormontanhas e pântanos.Uma neblina profunda

que iaevinha.Dentrodavastidão,haviaumpicosolitário,eaospésdele,umlabirintode túneisentocadosnasprofundezasdaterra.Emalgumlugardentrodesselabirintohaviaumaportafeitadevidro;umvidroquenãopodeserquebrado.AtrásdaquelaportaestavaoFogossangue.

—Nadadenomesdenenhumapeçadesseenigma?—perguntouoRei,pacientemente.—Apenasum,meu senhor.Mas foi umnomequenósnão reconhecemos.O labirintoondeo

FogossangueestáescondidoparecesechamarSepulcro.Sepulcro?Andervasculhousuamemória,masonomenãolhedizianada.Eventineolhou-oderelanceesacudiuacabeça.Ficoudepé,afastou-sedamesaváriospassose

parouabruptamente.Virou-separaLauren.— Não há mais nada que ela tenha lhe dito? Nenhuma pista, pedaços que pareciam não ter

significado?—Nada.Issofoitudo.OReiassentiulentamenteparaojovemelfo.—Muitobem,Lauren.Vocêestavacertoeminsistiremmecontarimediatamente.Agora,pode

esperarumpoucoláfora?

Quando a porta se fechou atrás doEscolhido, Eventine caminhoude volta para sua cadeira esentou-sedevagar.Seurostopareciaterenvelhecidohorrivelmenteeseusmovimentoseramosdeumhomemmuito,muitovelho.Manxfoiparaafrentedele,eorostogrisalhoergueu-se,solidário.Eventinesuspiroue,cansado,levouamãoatéacabeçadocachorro.

—Seráquevividemais?—murmurouele.—SeaEllcrysmorrer,comopodereiprotegermeupovo do que irá acontecer? Eu sou o Rei deles; a responsabilidade pela proteção deles éminha.Sempreaceiteiisso.Maspelaprimeiraveznaminhavida,euqueriaquefossedeoutrojeito...

Suavozsumiu,relutante,eelesevirouparaolharAnder.—Bem,precisamos fazeropossível.ComArion tendo idoparaSarandanon,precisareida sua

ajuda. — Ander ficou ruborizado com a reprimenda não intencional. — Vá com Lauren einterrogue os Escolhidos com cuidado. Veja se há algo mais que possamos descobrir. Qualquercoisa.Fareicomqueasvelhashistóriassejamtiradasdoscofreseasanalisarei.

—Vocêachaquepodeteralgumacoisalá,ounosvelhosmapas?—indagouAnder,emdúvida.— Não. Você os leu há menos tempo do que eu, mas não consigo me lembrar de nada. No

entanto,oquemaispoderíamosfazer?SequeremosteralgumachancedeencontraroFogossangue,precisamosdemaisdoqueaquiloqueLaurenconseguiunoscontar.

Elemeneouacabeça,dispensando-o.AndersaiuesejuntouaLauren,paraentãovoltarcomelepara a árvore onde os outros Escolhidos estariam esperando.Ali, tentaria descobrirmais algumacoisasobreomisteriosoSepulcro.Pareciaumesforçoinútil.Mas,conformeseupaidissera,oquemaispoderiamfazer?

CapítuloIV

O dia de verão terminou com um fulgor brilhante de vermelho e lilás que inundou todo ohorizonte ocidental. Por vários e belos minutos, o sol pareceu pairar sobre a Linha-de-Quebra,iluminandoo topoda florestadasTerrasdoOeste e tecendo sombrasqueenvolviama terra comfaixasimóveisesuavesdeescuridão.Oaresfriavadevagar;ocalordodiaesvaneciaenquantoabrisanoturnaondulavaesuspiravaaopassarpelasgrandesárvoressilenciosas.Aluzdodiadesfez-senocrepúsculo,eanoitelavouacordocéu.

AspessoasdacidadeélficadeArborlonvagavamcansadasemdireçãoasuascasas.Dentro dos Jardins daVida,Ander Elessedil olhava para a Ellcrys.Vista sob a luz noturna, a

grande árvore parecia normal, enganosamente inalterada. Porém, antes de o sol ter se posto, ossinaisdadoençaqueadestruíamhaviamficadoclaramentevisíveis.

Adoençaestavaseespalhandorapidamente.Emumgrupodegalhosmenores,oapodrecimentocomeçaraacorroeracascaprateada.Ramosimensosdefolhaspendiammurchos,asfolhastorcidasna ponta, a cor vermelha escura virara preto. Os Escolhidos haviam esfregado a cascacuidadosamentecomunguentosdeervasepodadoasfolhasdanificadas,irracionalmenteesperandoqueadoençapudessesercontida,mesmosabendootempotodoquenãopoderia.Andertinhavistoa verdade refletidanos olhos deles.Nãopodiam curar aEllcrys.Ninguémpodia.A árvore estavamorrendo,enãohavianadaquealguémpudessefazerparaimpedir.

Elesuspiroueseafastou,semsaberaocertoporquefizeraaquelaúltimavisitaaosJardins.OsEscolhidoshaviamserecolhidoparasuabaseumahoraantes,cansadosedesanimados,silenciososperanteasensaçãodeinutilidade.Maselevieramesmoassim,atraídoporumaesperançairracionalde que, de algum modo, as respostas de que precisavam tão desesperadamente pudessem serencontradasali.Nãoencontraraessasrespostas,claro,eaocairdanoite jánãohaviamaissentidopermanecerali.

Ao sairdos Jardins,Ander sentiuas sentinelasdaGuardaNegraobservando-o.Eles aindanãosabiamsobreosdanosàarvore,maspercebiamquealgoestavaerrado.AsatividadesdosEscolhidoshaviamreveladoisso.Pensouquelogoasnotíciasseespalhariam—eosrumorescresceriam.Logo,serianecessáriocontaraopovo.

Porém,pelomenosporenquanto, tudoestavasilencioso.Lamparinas jáestavamseapagandoemuitas janelas encontravam-se escuras conforme as pessoas se preparavam para dormir. Ele asinvejou.Haviapoucaschancesdeeleconseguirdormirnaquelanoite—eleouoRei.

Suspiroudenovo,desejandoquehouvessealgoquepudessefazerporseupai.Eventinesemprefora tão seguro de si, sempre tão supremamente confiante de que soluções poderiam serencontradasparaqualquerproblema.MasnasduasvisitasqueAnderfizerapararelatarsuafaltadeprogresso,ovelhoReipareceraterseperdidoemalgumlugardentrodesi.Eletentara,semmuitavontade,ocultarofatodofilho,maseraóbvioqueestavadesesperadopelofimdetudoquepassaraavidaconstruindo.Ali,enfim,jaziaumdesafioalémdetodososseuspoderes.Malfalandocomofilho,mandara-odevolta,paracontinuarajudandoosEscolhidosdaformaquepudesse.

Aquilo se provara uma tarefa vã. Ander tinha interrogado cada um deles cuidadosamente,

depoisosreuniraesondaraamemóriacoletivadeles,procurandoqualquermínimofragmentodeinformaçãoquepudesselevaraoSepulcro.Masnãodescobriranadaalémdoquejásabia.

UmabuscanosregistroscuidadosamentepreservadosdaOrdemnãoderaemnadatambém.Eleestudarahistóriasdatadasdeséculosantes,conferindoereconferindo.HaviarepetidasreferênciasaoFogossangue sagrado, a fontede vidadomundo ede todas as coisas quenele viviam.Mas emlugarnenhumhaviaamaislevemençãoaomisteriosolugarchamadoSepulcro.

Nem a Ellcrys dera mais alguma ajuda naquela busca. Por sugestão de Ander, os Escolhidoschegaramaprocurá-laoutravez.Foramatéelaváriaseváriasvezes,umdecadavezetodosjuntos,implorandoaelaquedessealgomaisparaaumentaracompreensãodasimagens.Masaárvorenãofaloumaiscomeles.Permaneceuemsilêncio.

Ao se aproximar da base dos Escolhidos, viu que todas as luzes se encontravam apagadas.Aparentemente,a rotinahavia tomadocontaeelesdeviamterserecolhidoaosseusaposentosnahorahabitual, logodepoisde terminara refeiçãonoturna.Esperavaqueelesencontrassemalgumalívionosono.Talvezconseguissem.Porvezes,odesesperoeaafliçãoeramaindamaiscansativosdo que o trabalho físico, e eles pouco fizeram além de se desesperar e se afligir durante aquelelongodia.

Anderpassoudiretopelabase, emsilêncio, seguindoumcaminhoque levavaaopalaceteparafazer umúltimo relatório ao pai, quandode repente uma sombra escura saiu de debaixo de umaárvoreaoladodocaminho.

—MeuPríncipe?—Lauren?—perguntouele.Quandoa figura se aproximou,viu tratar-se realmentedo jovem

elfo.—Porquevocênãoestádormindo?—Eutenteidormir,masnãoconsegui.Eu...euoviindoatéosJardinsetinhaesperançasdeque

voltariaporestecaminho.PríncipeAnder,possofalarcomvocê?— Você já está falando comigo, Lauren — lembrou-o Ander. Mas aquela breve tentativa de

humor não serviu de nada para aliviar a seriedade na expressão do outro. — Você se lembroualgumacoisa?

—Talvez.NãosobreoqueaEllcrysnoscontou,massobrealgoqueeuachoquevocêdevesaber.Possoacompanhá-lo?

Ander aquiesceu e os dois voltaram pelo caminho escolhido pelo Príncipe, lentamente seafastandodabase.

— Sinto como se eu tivesse de ser aquele que irá resolver esse problema— começou Laurendepoisdeumtempo.—TalvezsejaporqueaEllcrysfaloucomigoprimeiro;issotornaamissãodeencontrar o Sepulcro quase uma obrigação pessoal. Sei que provavelmente estou dandoimportânciademaisamimmesmo,maséassimquemesinto.Dequalquer jeito,nãoquerodeixarpassarnada.—EleolhouderelanceparaoPríncipe.—Vocêentendeoqueestoutentandodizer?

—Achoquesim.Entãodeixamosalgopassar?—Bem,algomeocorreu.Penseiquedeveriacontaraalguém.Anderparoueolhouparaojovemelfo.— Eu não quis dizer nada para o Rei.—O desconforto de Lauren aumentou.—Ou para os

outros.Nãotenhomuitacertezadoquantoelesestãosabendo...enósnãofalamosarespeitodela...Avozdelesumiu.Anderesperoupacientemente.— É sobre Amberle.Meu senhor, depois que ela foi escolhida, conversou várias vezes com a

Ellcrys.Longasconversas.—Aspalavrasvinhamdevagar.—Comela,eradiferenteemrelaçãoaorestantedenós.Nãoseiseelasequerreparounisso.Nósnuncafalamosnissodeverdade...

Anderenrijeceusubitamente.Laurennotouareaçãodooutroeseapressouparacontinuar:—MastalvezaEllcrysfalecomelanovamente.Outalvezelaentendamelhor.Talvezelaconsiga

descobriralgoquenãoconseguimos.Houveumlongosilêncioenquantoosdoisseencaravam.Andersacudiuacabeçalentamente.—Amberlenãopodenosajudaragora,Lauren.Ela se foi.Enemmesmoamãedela sabepara

onde.Nãohánenhumjeitodeencontrá-laatempoparafazeralgumadiferença.Oelforuivoassentiulentamente,oúltimovestígiodeesperançaabandonando-lheorosto.—Erasóumaideia—disseporfim,edepoissevirouemdireçãoàbase.—Boanoite,Príncipe

Ander.—Boanoite,Lauren.Obrigadopormecontar,mesmoassim.O Escolhido assentiu novamente antes de seguir pelo caminho, com suas vestes brancas

farfalhando suavemente enquanto ele desaparecia na noite. Ander olhou-o afastar-se por ummomento,orostosombriopreocupado.Seupaihaviapedidoqualquerindício—qualquercoisa—quepudessedarumapistadalocalizaçãodoSepulcro.MasrealmentenãohaviaesperançanenhumadeencontrarAmberle.Elapoderia estar emqualquer lugarnasQuatroTerras.E agoranão eraomomentoidealparamencionaronomedelanafrentedeEventine.Elaforasuafavorita,anetacujaescolha o enchera de alegria e orgulho. Porém, quando ela traíra sua confiança, foramais difícilparaeleaguentardoqueaprópriamortedeAine,opaidela.

Andersacudiuacabeçadevagarecontinuouseguindoparaopalacete.Gael ainda estava em seu turno, o rosto abatido pelo cansaço e os olhos preocupados. Era

inevitável que ele viesse a saber do problema que enfrentavam, mas podiam confiar nele paramanterosegredo.Gaelcomeçouaselevantar,massentou-sedenovocomumgestodeAnder.

—ORei está esperandopor você—disse ele.—Estáno escritório e recusa-se a se deitar. Sevocêpuderconvencê-loadormir,mesmoqueporumaspoucashoras...

—Vereioquepossofazer—prometeuAnder.Em seu escritório particular, Eventine Elessedil ergueu o rosto quando o filho entrou. Seus

olhosestudaramorostodeAnderporummomento,lendoofracassoestampadoali.Afastou-sedaescrivaninha e esfregou os olhos, cansado. Levantou-se, espreguiçou-se e andou devagar até asjanelas, espiando pelas dobras das cortinas a escuridão lá fora. Namesa atulhada de livros, umabandejadecomidaforacolocadadelado,quaseintocada.Asvelasacesasestavamquasenotoco;acera escorria e fazia poças nos castiçais demetal. O pequeno escritório estava quieto e sombrio,com as estantes de carvalho e paredes cobertas com tapeçarias parecendo uma mistura vaga decoresdesbotadasesombras.OslivrosqueGaeldeveriaterpassadoodiatrazendodoscofresjaziamespalhadosempilhasportodoocanto.

OReiencarouseufilhonovamenteporuminstante.—Nada?—perguntou.Anderbalançouacabeçaemsilêncio.Eventinefezumacareta.—Nem

eu.—Ele deu de ombros, apontando o livro aberto sobre a escrivaninha.—Aúltima esperança.ContémapenasumareferênciaàsementedaEllcryseaoFogossangue.Leiavocêmesmo.

O livro era parte de uma coleção de mais de cem volumes das histórias mantida pelos ReisÉlficoseseusescribasdesdeumtempoperdidoemlendas.Estavamgastosevelhos,cuidadosamenteencadernadosemcouroebronze,comcapasqueserviamparaprotegê-losdasagressõesdotempo.HaviamsobrevividoàsGrandesGuerraseàdestruiçãodaantigaraçahumana.Haviamsobrevividoà Primeira e a Segunda Guerras das Raças. Haviam sobrevivido pelas eras de vida e morte queregistravam em crônicas. Estas continham toda a história conhecida do povo élfico. Milhares emilharesdepáginas,todascuidadosamenteescritasatravésdosanos.

Andercurvou-sesobreaspáginasabertas;atintahaviaganhadoumatonalidademarromcomotempo e a escrita era de um estilo antigo. Mas as palavras eram claras o bastante para seremdecifradas.

—AÚnicaSementedeverá ser entregueaoPortadorqueéEscolhido.EaSementedeverá serlevada pelo Portador até asCâmaras do Fogossangue, e ali imersa no Fogo que retornará para aterra.Epor issoaÁrvore iráRenascereaGrandeProibiçãoirádurarparasempre.AssimfalouoAltoMagoparaseuselfos,paraque,mesmoqueelemorresse,esteConhecimentonãoseperdessedeseuPovo.

EventineassentiuquandoAnderergueuosolhosnovamente.—Eulicadaumdesseslivros,estudandotodosostrechosquepudessemserúteis.Temoutros;

masnenhumdizmaisdoqueessequevocêleu.Ele voltou para a escrivaninha e ficou passando o dedo distraidamente nas páginas de bordas

amareladasdaquelevolume.—Esseéotomomaisantigo.Contémmuitacoisaqueprovavelmentesãosómitos.Alendada

velhaguerraentreamagiabrancaeanegra,nomesdeheróis,tudoquelevouàProibição.MasnãohánenhumamençãoaoSepulcroouàlocalizaçãodoFogossangue.EnadasobreotipodefeitiçariaquedeuvidaaEllcryseaopoderdaProibição.

Aquela última omissão não era nada incomum, ponderou Ander. Seus ancestrais raramentehaviamcolocadoporescritoos segredosda suamagia.Essas coisas erampassadasoralmenteparaque não pudessem ser roubadas por seus inimigos. E diziam que algumas feitiçarias eram tãopoderosasque seuusoera limitadoa apenasumaocasiãoe lugar.Talvez tivesse sidoassimcomafeitiçariaquecriaraaEllcrys.

OReisentou-selentamentedevoltaemsuacadeira,estudandoolivropormaisummomentoedepoisfechando-o.

—VamosterquenosapoiarnopoucoqueaprendemoscomaEllcrys—disseeleemvozbaixa.— Teremos que usar isso para determinar as possíveis localizações do Fogossangue e depoisprocuraremcadaumadelas.

Anderassentiusemfalarnada.Parecianãoexistiresperança.HaviaapenasumachancemínimadeconseguiremencontraroSepulcrosemnadamaisdoqueumadescriçãovagaparaajudá-los.

—QueriaqueArionestivesseaqui—murmurouseupaiderepente.Ander não disse nada. Admitiu para si que havia bonsmotivos para o Rei precisar de Arion

dessa vez. Para a liderança necessária para guiar e direcionar aquela busca, Arion era a escolhacerta.Esuapresençapoderiadaralgumconfortoaopaideles.Nãoeraomomentopara invejá-loporisso.

—Achoquevocêdevedormir,pai—sugeriuAnderdepoisdeumbreve silêncio.—Vocêvaiprecisardescansarparaaguentaroquetemospelafrente.

OReilevantou-semaisumavezeestendeuobraçoparaapagarasvelasnamesa.—Muitobem,Ander—disse,esforçando-separasorrirparaseufilho.—PeçaparaGaelviraté

mim. Mas você também teve um dia longo. Você também precisa ir deitar e dormir o quantoconseguir.

Ander voltou para sua casa. E, para sua surpresa, dormiu. Enquanto sua mente rodava emcírculos inúteis, um cansaço totalmente físico o dominou. Acordou apenas uma vez durante anoite, tendo seu descanso quebrado por um pesadelo de horror indescritível, que o deixaramolhadodesuor.Porém,segundosdepoisdeacordar,voltouadormir,osonhoesquecido.Dessavez,repousousemserperturbado.

JáamanheciaquandoAnderacordoudenovo,saindoapressadamentededebaixodascobertasparase vestir. Um sentimento de determinação renovada o fortalecia enquanto tomava um desjejumrápidoesepreparavaparasairdecasa.Emalgumlugar,haviaumarespostaparaseudilema,umaforma de conseguir encontrar o Sepulcro. Talvez estivesse na Ellcrys quemorria. Talvez estivessecomosEscolhidos.Mashaviaumaresposta—tinhadehaverumaresposta.

Aopassarpelocaminhodecascalhos,viualuzdosoldocomeçodamanhãvazandoatravésdovéu formado pelas florestas ao redor enquanto o novo dia começava. Iria primeiro até osEscolhidos—elesestariamnosJardinsdaVidaàquelahora,afinalodiadelesjáhaviacomeçado—comaesperançadeque,aofalarnovamentecomeles,pudessedescobriralgonovo.Provavelmenteficarampensandosobreoassunto,remoendoerepassando-oemsuasmentes,eerapossívelqueumdelestivessese lembradodealgomais.OutalvezaEllcrystivessefaladocomelesdenovonaquelamanhã.

Parouprimeironopalacete,ondeGael jáestavaapostos.Porém,o jovemelfo levouumdedoaos lábios, indicando em silêncio que o Rei ainda dormia e não deveria ser perturbado. Anderassentiuesefoi,gratoporqualquerdescansoqueseupaiconseguisseencontrar.

OorvalhoaindabrilhavanogramadodopalácioenquantooPríncipe seencaminhavaparaosportões.OlhouderelanceaopassarpelosjardinseficousurpresoaoperceberqueWentnãoestavatrabalhando. Ficou ainda mais surpreso ao ver as ferramentas do velho camarada espalhadas nabeirados canteirosde rosa, e a terraainda frescanometal.Nãoerado feitiodeWentdeixarumtrabalhopelametade.Seestavatendotantosproblemascomascostas,deveriaserexaminado.Masaquilo teria de esperar. Havia assuntosmais urgentes nomomento. Deu uma última olhada nosarbustosdoscanteiros,entãoseapressou.

Minutosdepois,andavaapassoslargosaoladodosmuroscobertosdeheradosJardinsdaVida,seguindoocaminhogastoquelevavaaosseusportões.DoaltodoCarolan—aimensamuralhaderocha que se erguia abruptamente damargemoriental doRiacho daCanção, elevandoArborlonsobreasterrasaoseuredor—,pôdeveravastidãodasTerrasdoOesteexpandindo-seláembaixo:para o leste e para o norte, as torres e as ruas arborizadas da cidade élfica, bem envolvidas nadensidão das florestas; ao sul, as fragas enevoadas e acinzentadas da Rocha Esporão e Pico,enlaçadasempedaçosetrechosdeazulondeoRioMermidoncortavaapedraantigaemsualongapassagemparaolesteatéCallahorn;aoeste,abaixodeCarolanedooutroladodofluxoligeirodoRiachodaCanção,ovaledoSarandanon,oceleirodanaçãoélfica.Aterranataldoselfos,pensouAndercomorgulho.Precisavamacharummeiodesalvá-la—ele,osEscolhidoseseupai.

Momentos depois, encontrava-se diante da Ellcrys. Não havia nem sinal dos Escolhidos. Aárvoreestavasozinha.

Anderolhouaoredor,incrédulo.PareciaimpossívelquetodososEscolhidostivessemdormidodemais, mesmo com a rotina deles tendo sido tão perturbada pela declaração da Ellcrys. Emcentenasdeanos,osEscolhidosnunca falharamemcumprimentara árvoreaoprimeiro toquedaluzdamanhã.

Ander deixou os Jardins, apressado, e estava quase correndo quando viu a base murada dosEscolhidos. Folhagens verdes a cercavam, jardins de flores ladeavam seus caminhos de pedra etijolo, e canteiros de vegetais corriam em fileiras iguais nos fundos, a terra negra pontilhada debrotos e talos verdes. Um muro baixo de pedra gasta cercava o pátio, aberto de cada lado porportõesbrancos.

Acasaemsiestavasombriaesilenciosa.Ander diminuiu o passo. Àquela hora, os Escolhidos deviam estar acordados, com certeza.

Mesmoassim,nãohaviasinaldevida.AlgogeladopareceusealojardentrodoPríncipeÉlfico.Elecontinuouemfrente,osolhosespiandoapenumbradassombrasalémdaportaabertadacasa,atéque,porfim,parounaentrada.

—Lauren?—chamoubaixinhoonomedojovemelfo.Nãoteveresposta.Dirigiu-seàssombrasmaisalém.Captouummovimentoligeiroregistradono

limitede suavisão,movimentoquevinhade algum lugardas folhagens ao redor.Umaapreensãosúbitaotomou,deixando-ocompletamentegelado.Oquehaviaaliatrás?

Tarde demais, pensou nas armas que deixara em seus aposentos. Ficou imóvel por um tempo,esperandoporalgomais.Masnadamaissemoveu,nenhumsomtraiuapresençadeoutroservivo.Resoluto,avançou.

—Lauren...?Suavisãoajustou-seaointeriorescuroeonomedojovemelfoficoupresoemsuagarganta.Corpos jaziam espalhados por toda a sala como sacos descartados, rasgados, quebrados e sem

vida. Lauren, Jase — todos os Escolhidos estavam mortos, estilhaçados como que por animaisenlouquecidos.OdesesperotomouAnder.NãorestaranenhumEscolhidoparacarregarasementeda Ellcrys na busca pelo Sepulcro e pelo Fogossangue. O renascimento da árvore não poderiaacontecer;nãohaveriasalvaçãoparaoselfos.Apesardeenjoadopelacarnificina,nãoconseguiasemexer. Ficou ali, comohorror e a repulsa a inundá-lo, comumaúnicapalavraberrando em suamente:

Demônios!

Logo depois, ele cambaleou para fora, vomitando incontrolavelmente enquanto se apoiava naparede da cabana e lutava para parar de tremer. Quando finalmente se recuperou, foiimediatamentedaroalarmeàGuardaNegra,paradepoiscorreratéacidade.Seupai teriadeseravisadoeseriamelhorqueasnotíciasviessemdeseufilho.

O que ocorrera aos Escolhidos estava bem claro. Com o declínio da Ellcrys, a Proibiçãocomeçara a se desgastar. Os demônios mais fortes estavam escapando. Nenhuma outra coisa nomundo poderia fazer ou faria algo assim com os Escolhidos. Em um único golpe, os demônioshaviamgarantidoque jamaisseriamaprisionadosnovamente.HaviamdestruídotodosaquelesquepoderiamajudarorenascimentodaEllcrysearestauraçãodaProibiçãoqueosconfinara.

Correu de volta pelos portões que davam no palacete, cruzando o caminho de cascalho quelevava pelos jardins cuidados pelo velhoWent. Went estava ali agora, cavando e arrancando aservas,eseurostoenvelhecidoergueu-semomentaneamentequandooPríncipepassou.Andermaloviuenãolhedissenadaenquantoatravessava,apressado.

OsolhosdeWentabaixaram-se,satisfeitos.Comasmãospeneirandoaterranegraociosamente,oMetamorfocontinuouseutrabalho.

CapítuloV

JáeranoitenovamentequandoAnderElessedilfechouaportadacasaquehaviasidoahabitaçãodaOrdemdosEscolhidos,trancando-afirmementepelaúltimavez.Osilêncioocercavaenquantoencarava a escuridão crescente. A cabana agora se encontrava vazia: os corpos dos seis jovensassassinados haviam sido retirados de lá, e Ander recolhera os últimos objetos pessoais paradevolveraosparentes.Duranteaquelesbrevesmomentos,ficouasóscomseuspensamentos.

Mas não queria se alongar em seus pensamentos. Supervisionara a remoção dos corposmutiladosedepoisacoletadashistóriasdaOrdem,levadasparaseremguardadasnasegurançadoscofresdebaixodopalaceteElessedil.Por sugestãode seupai, vasculhara aqueles registros, páginaporpágina,procurandoalgumvestígiodeconhecimentosobreoenigmadoSepulcroquepudesseter deixado escapar. Não encontrou nada. Sacudiu a cabeça. Que diferença fazia, pensou,desanimado.QuediferençafaziadescobrirmaissobreoSepulcro?SemumEscolhidoparacarregara semente, por que precisariam localizar o Fogossangue?Mesmo assim, ficara feliz por ter o quefazer—qualquercoisaparafazer—queoajudasseatirarsuacabeçadoqueviraquandoencontraraLaureneosoutros.

Afastou-sedacasavazia,atravessouopátiodabaseevirouparapegarocaminhoquelevavaaosJardins da Vida. Por todo o Carolan, o brilho intermitente das tochas queimava na escuridãonascente.Haviasoldadosemtodaparte;aGuardaNegracercavaosJardinseaGuardadaCasa—oesquadrão pessoal de caçadores élficos doRei—patrulhava as ruas e as alamedas arborizadas dacidade.Os elfos estavam compreensivelmente assustados pelo que acontecera.Quando as notíciassobreoassassinatodosEscolhidosseespalharam,Eventinerapidamenteagiraparaasseguraraoseupovoqueelesseriamprotegidosdedestinosemelhante—embora,naverdade,nãoacreditassequeestivessememperigo imediato.AquiloquemataraosEscolhidosnão foraatrásdemaisninguém.Eles foramseusúnicosalvos.Nadamais faziasentido.Aindaassim,nãocustavatomarprecauções.TaismedidastantocontrolariamopânicoqueoReiviacresceremseupovo,quantoprotegeriamacidade.

O verdadeiro dano, claro, já tinha sido feito. A árvore estava morrendo, e não haveria maisrenascimento. Assim que ela morresse, a Proibição iria minguar por completo e o mal que elaprendia se libertaria.Assimque estivesse livre, procuraria e destruiria até oúltimo elfo.E comaEllcrysmorta,qualmilagredamagiaélficapoderiaserencontradoparadetê-lo?

Ander parou diante do muro dos Jardins. Respirou fundo para se acalmar, combatendo osentimentodedesamparoqueseacumularaaospoucosdentrodesiduranteodiatodo,comoumadoença traiçoeira. O que, em nome da sua sanidade, poderiam fazer? Mesmo enquanto estavamvivos,osEscolhidosnão sabiamondeencontraroFogossangue.ComaProibição já começandoaruir,nuncahouveratempoobastanteparaprocurá-lo.Eagora,comosEscolhidosmortos...

Amberle.O nome dela veio como um sussurro na mente de Ander. Amberle. As últimas palavras que

Lauren lhe falara haviam sido sobre ela. Talvez ela pudesse ajudar, era o que o Escolhido ruivosugerira.Antes, a ideiaparecera impossível.Naquelemomento,qualquercoisaeramelhordoque

aquilo que tinham. Amente de Ander acelerou-se. Como convenceria seu pai a sequer cogitar apossibilidade de Amberle ajudá-los? Como convenceria o pai a sequer falar sobre a menina?Lembrava-se da amargura e da decepção do velho Rei no dia em que soubera de comoAmberletraíraaconfiançaquereceberacomoEscolhida.Anderpesou issocontraodesesperoqueviranorosto do pai naquelamanhã, quando lhe levara a notícia da carnificina dos Escolhidos. Foi umadecisão fácil de tomar. O Rei precisava desesperadamente de qualquer ajuda. Com Arion tendopartidoparaSarandanon,Andersabiaqueaajudaprecisavavirdele.EqueoutraajudapoderiadaralémdesugeriraopaiquedeveriamprocurarAmberle?

—Príncipe?A voz veio de lugar nenhum, assustando Ander ao ponto de fazê-lo pular para trás com um

arquejo. Uma sombra deslizou do abrigo dos pinheiros que cresciam próximos aos muros dosJardinsdaVida,maisescuradoqueanoitequeoenvolvia.Poruminstante,Ander ficouatésemfôlego,paralisadodeindecisão.Aoestenderamãoàspressasparaaespadaembainhadanacintura,asombraalcançou-oepousouamãonadele,comumapertofirmelhesegurandoobraço.

—Paz,AnderElessedil.—Avozerasuave,porémimperiosa.—Nãosouseuinimigo.Anderagoraconseguiaverqueafigurasombriaeraumhomemalto,commaisdedoismetros.

Vestesnegrasenrolavam-sejustasasuafiguraesguia,eocapuzdeseumantodeviagemencontrava-sepuxadosobreacabeça,deformaquenadadeseurostopudesseservisto,excetoosolhosestreitosquebrilhavamcomoosdeumgato.

—Quemévocê?—OPríncipeÉlficofinalmenteconseguiudizer.Asmãosdooutroseerguerameafastaramocapuz,revelandoorosto.Eramarcadoecheiode

rugas,obscurecidoporumabarbacurtaenegraqueemolduravaumaboca largaquenãosorria,epelocabelonaalturadosombros.Osolhosdegato,escurosepenetrantes,oencaravamporbaixode sobrancelhas pesadas ferozmente unidas sobre um nariz comprido e achatado. Aqueles olhosfitaramosdeAnder,eoPríncipeÉlficodescobriuquenãoconseguiadesviaroolhar.

—Seupaimereconheceria—sussurrouohomenzarrão.—SouAllanon.Anderenrijeceu,seurostoincrédulo.—Allanon?—Sacudiuacabeça,devagar.—Mas...masAllanonestámorto!Avozgravesooucheiadesarcasmoeosolhosbrilharammaisumavez.—Pareçoestarmortoparavocê,Príncipe?—Não...não,euconsigoenxergar...—Anderhesitou.—Sóquefazmaisdecinquentaanos...Suavozsumiuquandoaslembrançasdashistóriascontadasporseupaivoltaramasuamente:a

busca pela Espada de Shannara; o resgate de Eventine do acampamento do exército inimigo; abatalhaemTyrsis;aderrotadoLordeFeiticeiropelasmãosdopequenohabitantedoValeSombrio,SheaOhmsford.Allanonestivera lá,passandopor tudoaquilo,emprestandosua forçaesabedoriaaos povos encurralados das Quatro Terras. Quando tudo terminara e o Lorde Feiticeiro foradestruído,Allanondesaparecerapor completo.DiziamqueSheaOhmsford foraoúltimoavê-lo.DepoissurgiramrumoresdequeAllanonvoltaraoutrasvezesàsQuatroTerras,emoutroslugares.MaselenãovieraparaasTerrasdoOeste.Nenhumdelesesperavavê-lodenovo.Porém,noqueserelacionavaaoDruida,seupaitinhalheditodiversasvezesquerapidamenteseaprendiaaesperaroinesperado. Andarilho, historiador, filósofo e místico, guardião das raças, o último dos antigosDruidas,ossábiosdonovomundo—Allanoneratidocomoaquilotudo.

MasaqueleerarealmenteAllanon?AperguntaveiocomoumsussurronamentedeAnder.Ohomemaltoaproximou-senovamente.—Olhecomatençãoparamim,PríncipeÉlfico—ordenouele.—Vocêveráquefaloaverdade.

Anderencarouorostoescuro,miroufixamenteosolhosnegrosebrilhantes,ederepentesuasdúvidas se foram. Não haviamais dúvidas em suamente. O homem que estava na sua frente eraAllanon.

—Queroquevocêmeleveparaverseupai—Allanonvoltouafalar,avozbaixaevigilante.—Escolhaumcaminhopoucofrequentado.Queromanterminhavindaemsegredo.Rápido,antesqueassentinelascheguem.

Ander não parou para discutir. Com o Druida seguindo-o tão perto como sua sombra, elepassoudiretopelosJardinsdaVidaeseapressouemdireçãoàcidade.

Minutosdepois,agacharam-seatrásdeumamontoadodefolhagensemumadaspontasdoterrenodopalácio,ondehaviaumpequenoportão lateral trancado.Ander tirouummolhodechavesdobolsoeencaixouumanafechadura.Viroucomumestaloagudoeatrancaseabriu.Emsegundos,estavamdentro.

Normalmente,oterrenoestariasendovigiadoapenaspelaguardadoportão.Porém,maiscedonaqueledia, depoisdadescobertadosEscolhidos assassinados, o corpodeWent fora encontradodebaixodeumarbustonoslimitesdojardimdoladosul,comopescoçoquebrado.AformacomomorreraforacompletamentediferentedadosEscolhidos,porissonãohaviaaindanenhummotivopara acreditar numa conexão entre elas. Mesmo assim, aquele último assassinato fora próximodemaisdoReiparaogostodaGuardadaCasa.Colocarammais segurançasno terreno.DardaneRhoe,osguardaspessoaisdoRei,haviamsidocolocadosdevigiabemàportadoRei.

Ander não teria achado ser possível alguém chegar ao palacete, vindo dasmuralhas externas,sem ser visto pelas sentinelas. Porém, de algum jeito, comoDruida à frente, conseguirampassarsem desafios. Allanon não parecia nada além de outra sombra noturna, movendo-sesilenciosamente,sempremantendoAnderbempertodesi,atéfinalmentealcançaremasjanelasqueiam até o chão e davam para o escritório do Rei. Ali, pararam por um momento, enquanto oDruidaescutavapelajanelacobertacomcortinas.Allanonagarrouofechoeovirou.Ajanela-portaabriu-sesilenciosamenteeoDruidaeoPríncipeÉlficoentraram.

Eventine Elessedil ergueu-se de uma escrivaninha ainda coberta com histórias, encarando-os,incrédulo,primeiroofilhoedepoisohomemqueoseguiraparadentro.

—Allanon!—sussurrou.ODruidafechouasjanelas,cerrouascortinascuidadosamentedevoltanolugarevirou-separa

aluzdasvelas.—Depoisde todos esses anos—Eventine sacudiu a cabeça, admirado, e saiude trásdamesa.

Viu claramente o rosto do homem alto e sua descrença virou surpresa. — Allanon! Você nãoenvelheceu!Você...nãomudoudesde...—Engasgou-secomaspalavras.—Como...?

—Eusouquemsemprefui—interrompeulogooDruida.—Éoquevocêprecisasaber,ReidosElfos.

Eventineassentiu,mudo,aindaespantadocomaapariçãoinesperada.Lentamente,retornouatéaescrivaninhaeosdoishomenssentaram-se,umdefrenteparaooutro.Anderficouondeestava,insegurosedeviapermanecerousair.

—Sente-seconosco,PríncipeÉlfico—Allanonindicouumaterceiracadeira.Andersentou-serapidamente,gratoporserincluídoeansiosoparaouviroqueseriadito.—Vocêsabeoqueaconteceu?—OReidirigiu-seaAllanon.ODruidaassentiu.

— É por isso que vim. Senti uma ruptura na Proibição. Algo que estava aprisionado láatravessou para este mundo, algo cujo poder é realmente muito grande. Foi a aparição dessacriatura...

Ouviramo som fracodepassosno corredordooutro ladodaportado escritório e oDruidaficoudepénomesmoinstante.Parou,comorostocalmo,eolhoudevoltaparaoRei.

—Ninguémdevesaberqueestouaqui.Eventinenãoquestionou.Simplesmenteaquiesceu,levantou-sedacadeira,andoudepressaatéa

portaeaabriu.Manxencontrava-sesentandoali,balançandoorabodevagar,seufocinhogrisalholevantado na direção do dono. Eventine saiu para o corredor e encontrouGael se aproximandocomumabandejadechá.OReisorriueatiroudele.

— Quero que você vá para casa agora e durma um pouco— ordenou. Quando Gael tentouprotestar, ele rapidamente sacudiu a cabeça.— Sem discussão. Nós temos muito o que fazer demanhã. Vá para casa. Vou ficar bem. Peça aDardan e a Rhoe para ficarem de guarda até eumeretirar.Nãoqueroreceberninguém.

Virou-seabruptamenteeentrounoescritório, fechandoaportacomfirmezaatrásdesi.Manxentrara, farejando curioso o estranho que encontrou sentado à escrivaninha; em seguida,aparentemente satisfeito, deitara-se perto da lareira de pedra ao lado deles, com o focinhodescansadoconfortavelmenteemsuaspataseosolhoscastanhos fechando-se, contentes.Eventinesentou-seoutravez.

—EntãofoiessacriaturaquematouosEscolhidos?—perguntou,retomandooassunto.ODruidaassentiu.—Acreditoquesim.SentioperigoqueameaçavaosEscolhidosevimomaisrápidoquepude.

Infelizmente,nãofuirápidoobastanteparasalvá-los.Eventinedeuumsorrisotriste.—Temoque a culpa sejaminha.Euosdeixei desprotegidos,mesmodepois de teremmedito

queaProibiçãoestavacomeçandoaruir.Mastalveznãofizessediferença.Mesmoqueelestivessemsobrevivido,nãotenhocertezadequeosEscolhidosfossemcapazesdesalvaraEllcrys.NadadoqueelamostrouaelessobrealocalizaçãodoFogossangueéreconhecível.Nemmesmoonomequedeu:Sepulcro.Vocêoreconhece?

Allanonfezquenãocomacabeça.—NossosregistrosnãofalamnadasobreoSepulcro;nemosdemeuspredecessoresnogoverno,

nemosdosEscolhidos—continuouoRei.—Estouencarandoumasituaçãoimpossível.AEllcrysestámorrendo. Para salvá-la, um dos Escolhidos que a serve agora precisa levar a semente até oFogossangue, mergulhá-la nas chamas e depois devolvê-la para a terra para que o renascimentopossaacontecer.

—Estoufamiliarizadocomahistória—interrompeuoDruida.OReicorou.Araivaeafrustraçãoqueestiveracontendodentrodesicomeçavamaviràtona.— Então pense nisso. Nós não sabemos a localização do Fogossangue. Não temos nenhum

registro do nome Sepulcro. E agora os Escolhidos estão todosmortos.Não temos ninguém paracarregarasementedaEllcrys.Asconsequênciasdissotudopareceminevitáveis.AEllcrysmorrerá,aProibiçãoruirá,omalqueelacontémestarámaisumavezsoltosobreaterraeoselfos,emuitoprovavelmente todas as raças que habitam as Quatro Terras enfrentarão, uma guerra que podefacilmentedestruirtodosnós!—Inclinou-separafrente.—EusouoRei;eusouissoenadamais.Você é umDruida, um feiticeiro. Se você pode oferecer alguma ajuda, então ajude.Não hámaisnadaqueeusaibafazer.

ODruidainclinouacabeçaligeiramente,comoseponderandosobreoproblema.—Antesdevirvê-lo,Eventine,fuiatéosJardinsdaVidaefaleicomaEllcrys.OReioencarou,incrédulo.—Vocêfaloucom...?—Talvez fossemaisprecisodizerqueela faloucomigo.Seelanão tivesseescolhido fazer isso,

claroquenãopoderiaterhavidocomunicaçãoentrenós.—MaselafalaapenascomosEscolhidos—interveioAndererapidamenteficouemsilêncioao

verseupaifecharacara,aborrecido.—Meu filho está certo,Allanon—Eventine virou-se novamente para oDruida.—AEllcrys

nãofalacomninguémalémdosEscolhidos,emesmoassim,raramente.—Elafalacomaquelesqueaservem—replicouAllanon.—Entreoselfos,apenasosEscolhidos

fazem isso. Mas os Druidas também serviram a Ellcrys, de um jeito diferente. Em todo caso, eusimplesmentemeofereciaelaeeladecidiufalarcomigo.Eoqueelamedissesugerequevocêestáenganadoempelomenosumponto.

EventineesperouporummomentoqueoDruidacontinuasse.Elenãoofez.Simplesmenteficoualisentando,encarandooelfodeformaquestionadora.

—Muitobem,vouperguntar, então—obrigou-seoRei a continuar calmo.—Emquepontoestouerrado?

—Antes que eu lhe responda— disseAllanon, inclinando-se para frente.—Quero que vocêentenda uma coisa. Eu vim para oferecer qualquer ajuda que eu possa, pois o mal aprisionadodentro da Proibição ameaça toda a vida nas Quatro Terras. A ajuda que posso oferecer, ofereçolivremente. Porém, tenho uma condição. Preciso estar livre para agir da forma que considerarapropriada.Mesmoquevocêreprove,EventineElessedil.Mesmoassim.Vocêcompreende?

O Rei hesitou; seus olhos azuis estudaram o rosto escuro do outro sujeito, procurando porrespostasqueobviamentenãoseriamencontradasali.Porfim,assentiu.

—Entendo.Vocêpodeagircomoquisernesseassunto.ODruidarecostou-se,mascarandocuidadosamentequalqueremoçãoenquantoencaravaAnder

eoRei.—Primeiro, acredito poder ajudar a descobrir a localização do Sepulcro.O que a Ellcrysme

mostrou do Sepulcro quando nos falamos não me foi familiar, como eu disse. Não foi familiarporque foi retirada da lembrança que ela tem do mundo na época de sua criação. As GrandesGuerras alteraram a geografia do velhomundo tão completamente que a percepçãodela sobre omundo é bem falha. Mesmo assim, ainda temos o nome Sepulcro. Vocês me disseram que ashistóriasdosReisÉlficoseasdaOrdemdosEscolhidosnãoregistramonome.Masháoutrolugarpara procurar. Em Paranor, dentro da Fortaleza dos Druidas, existem histórias dedicadasinteiramenteàsciênciaseaosfenômenosmísticosdovelhomundo.Dentrodesseslivrospodehaveralguma menção à criação da Ellcrys e da localização do Fogossangue. Essa é uma possibilidadenítida,porquegrandepartedainformaçãocontidanessashistóriasfoireunidaàépocadoPrimeiroConselho dosDruidas, recolhida de cada um dosmembros da forma como fora passada desde oholocausto.Lembrem-setambém,queonorteadordesseconselhofoiGalaphile,eGalaphileeraumelfo.EledeveterseasseguradoquealgosobreacriaçãodaEllcrysesobrealocalizaçãodafontedoFogossangue fosseregistrado.—Fezumapausa.—Hojeànoite,quando terminarmosaqui, ireiaParanor.AshistóriasestãobemescondidasdequalquerumquenãosejaDruida,entãoénecessárioque eu vápessoalmente.Acreditoquedentrode suaspáginashaja registrode algumamençãodonome Sepulcro. Dependendo do que estiver escrito ali, podemos ter esperanças de descobrir a

localizaçãodoFogossangue.ElecruzouasmãosnabordadamesaeseusolhossefixaramnosdoRei.— Agora, quanto aos Escolhidos, Eventine, você está completamente errado. Eles não estão

todosmortos.Por um momento, a sala ficou mortalmente quieta. Amberle!, pensou Ander, surpreso. Ele

estavafalandodeAmberle!—Todososseisforammortos...!—Eventinecomeçouafalar,masparouderepente.—ForemseteEscolhidos—disseoDruidaemvozbaixa.—Sete.OReificourígido,suasmãosagarraramasbordasdamesaatéosnósdosdedosficarembrancos.

Seusolhosrefletiamraivaedescrédito.—Amberle.—Elesoltouonomecomosefosseumamaldição.ODruidaassentiu.—ElafoiumadentreosEscolhidos.—Não!—OReificoudepé,gritando.—Não,Druida!Houveumaconfusãodepassosnocorredoreumabatidaàportadoescritório.Anderpercebeu

oqueseupaifizera.SeusgritoshaviamatraídoDardaneRhoe.Apressadamente,elefoiatéaportaeaabriu.Ficousurpresoaovernãoapenasosguardas,masGaeltambém.Todosespiaram,curiosos,oescritório,masoPríncipetomoucuidadoparabloquearavisãodeles.Eentãoseupaisurgiuaoseulado.

—Eudisseparavocêirparacasa,Gael—repreendeuEventineseveramente.—Váagora.Gael fez uma reverência de forma mecânica, seu rosto mostrando a dor que sentira com as

palavras, e desapareceu pelo corredor sem dizer uma palavra. O Rei assentiu para os caçadoresélficos,assegurando-osdequeestavabem,eelesvoltaramparasuavigilância.

O Rei ficou silencioso diante da porta aberta por um instante e depois a fechou. SeuspenetrantesolhosazuisforamdeseufilhoatéAllanon.

—ComovocêficousabendosobreAmberle?—Quando a Ellcrys falou comigo, disse que sete foram escolhidos para servi-la.Um era uma

jovem.SeunomeeraAmberleElessedil.O Druida parou, contemplando com cuidado o rosto do Rei. Estava marcado de amargura.

Perderatodaacor.— É incomum uma jovem ser selecionada como um dos Escolhidos — continuou Allanon,

calmamente. — Não houve mais do que um punhado, acho, e nenhuma outra nos últimosquinhentosanos.

OReisacudiuacabeçacomraiva.—A seleção de Amberle foi uma honra que não significou nada para ela. Ela desprezou essa

honra.Elaenvergonhouseupovoesua família.ElanãoémaismembrodosEscolhidos.Elanãoémaisumacidadãdestaterra.Elaéumapáriaporescolhaprópria!

Allanonlevantouligeiro,comorostosubitamenteendurecido.—Elaésuanetaevocêfalacomoumtolo.Eventineenrijeceucomaresposta,mascontevealíngua.ODruidafoiatéele.— Escute. Amberle é uma Escolhida. É verdade que ela não serviu a Ellcrys como os outros

fizeram. É verdade que ela abandonou seu dever como um dos Escolhidos. É verdade que, pormotivosquesóelasabe,deixouArborloneasTerrasdoOeste,seular,apesardasresponsabilidadesqueclaramenteeramdela,queeladesgraçouafamíliaeespecialmenteavocê,comoRei,aosolhosdo seupovo.É verdade que ela se exilou. É verdade que ela acredita não sermais umadentre os

Escolhidos.Porém,saibadisso.NãocabeavocênemaoseupovotiraremdelaoqueaEllcrysdeu.Nãocabesequeraela.ApenasaEllcryspodefazerisso.EnquantoaEllcrysnãodisserocontrário,AmberlecontinuasendoumaEscolhidaaseuserviço;umaEscolhidaquepodelevarasementenaprocura do Fogossangue, uma Escolhida que poder dar-lhe uma nova vida. — Allanon fez umapausa.—UmReinãopode entenderde tudo,EventineElessedil,mesmo sendoumRei.Algumascoisasvocêprecisasimplesmenteaceitar.

EventineencarouoDruidasemfalar,araivasumindodeseusolhos,sendosubstituídapordoreconfusão.

—Nós já fomosmuito próximos—disse, por fim.—Depois que o pai dela,meu filhoAine,morreu, eu me tornei seu pai. Ainda era uma criança de apenas sete anos. De noite, nósbrincávamosjuntos...—Eleparou,semconseguircontinuar.Respiroufundoparaseacalmar.—Elapossuía qualidades que eu não encontrava fazia muito tempo: doçura, inocência, amor. Sou umvelhofalandoissosobresuaneta,masnãofalocegamente.Euaconhecia.

Allanonnãodissepalavra.OReivoltouatésuacadeiraesentoulentamentemaisumavez.— As histórias não registram nenhuma mulher selecionada para servir dentre os Escolhidos

desdeotempodeJerleShannara.Amberlefoiaprimeira;aprimeiraemmaisdequinhentosanos.Foiumahonrapelaqualoutrosteriamdadotudo.—Elesacudiuacabeça.—Porém,Amberlefoiembora.Nãodeunenhuma explicação,nemparamim,nempara amãedela, paraninguém.Nemumapalavrasequer.Simplesmentesefoi.

Avozdelesumiu,impotente.Allanonsentounovamenteàfrentedeles,comosolhosescuroseintensos.

—Elaprecisasertrazidadevolta.Éaúnicaesperançaqueopovoélficotem.—Pai—falouAnderantesdeooutrotertempoparapensarmelhor.Porimpulso,ajoelhou-se

perto do velho.— Pai, na noite antes de sermorto, Laurenme contou algo. Eleme disse que aEllcrys tinha faladocomAmberleváriasvezesdepoisde sua seleção. Issonuncahaviaacontecido.TalvezAmberlesejanossamelhorchance.

O Rei olhou-o inexpressivamente, como se as palavras que dissera não significassem nada.Colocouasmãosespalmadasnasuperfíciegastadaescrivaninhaeassentiu.

—Achoqueessaesperançaémuitovaga,Ander.Nossopovoatépodeaceitá-ladevolta,mesmoquesejapornecessidade.Nãotenhomuitacertezadisso;oqueelafezaorejeitá-loséimperdoávelaos olhos deles. E talvez a Ellcrys também possa aceitá-la, tanto como Escolhida quanto como aportadoradasemente.Nãovoufingirterasrespostasparaessasperguntas.Nemmeussentimentossobre isso importam.—Ele virou-senovamenteparaAllanon.—É a própriaAmberle que ficarácontranós,Druida.Quandoeladeixouestaterra,deixou-aparasempre.Elaacreditavacomtodasas forças que tinha de ser assim; algo a fez crer nisso. Você não a conhece como eu. Ela jamaisretornará.

AexpressãodeAllanonnãosealterou.—Issoéoqueveremos.Precisamosaomenosperguntaraela.—Nãoseiondeelaestá.—AvozdoReificousubitamenteamarga.—Duvidoquealguémsaiba.ODruidaserviuumaxícaradechádeervascomcuidadoeestendeu-aaoRei.—Eusei.Eventineoencarousemfalarnadaporummomento.Seurostoestavanubladocomasemoções

conflitantes, e de repente surgiram lágrimas nos seus olhos, lágrimas que se foram tão depressaquantovieram.

— Deveria ter adivinhado — disse, finalmente. Ele se levantou e se afastou vários passos da

escrivaninha,seurostoparcialmenteviradoparaassombras.—Vocêélivreparaagircomoquiser,Allanon.Vocêjásabedisso.

Allanonergueu-secomele.E,parasurpresadeAnder,disse:—Precisareidosserviçosdeseufilhoporumtempo,antesdepartir.Eventinenãosevirou.—Comodesejar.—Lembre-se,ninguémdevesaberqueestiveaqui.OReiassentiu.—Ninguémsaberá.Ummomentodepois,oDruidapassoupelascortinasese foi.Ander ficouolhandoparaopai,

hesitante,edepoisseguiuAllanon.ElesabiaqueospensamentosdovelhoestavamvoltadosparaAmberle.

Na escuridão das florestas das Terras do Oeste, que ficavam ao norte de Carolan, Dagda Morencontrava-sesentadoemsilêncio,deolhosfechados.Quandoosabriunovamente,elesbrilhavamde satisfação. O Metamorfo o servira bem. Ele se levantou devagar, com o Cajado de Poderbrilhandonitidamentequandosuasmãossefecharamsobreamadeirapolida.

—Druida—sibilou.—Euseidevocê.Gesticulouparaa sombradisformequeeraoCeifadoreomonstroergueu-senanoite.Dagda

Morolhouparaoleste.EsperariaoDruidaemParanor.Masnãosozinho.Podiasentiropoderdeleetinhadeseprecaver.OCeifadorpoderiaserforteobastanteparaconfrontarumpoderdaqueles,maselelheconvinhaparaoutrosusos.Não,outraajudaserianecessária.BuscariamaisumpunhadodosseuspelaparedeescavadadaProibição.

SuficienteparacapturaroDruida.Suficienteparamatá-lo.

CapítuloVI

Allanon aguardava por Ander, quando então o filho do Rei saiu do escritório iluminado, e,juntos,refizeramseuspassospeloterrenodopalácioatéopequenoportãolateral,rumoàestradado outro lado.Allanonpediu para ser levado até os estábulos. Em silêncio, os dois seguiramumcaminhoescuroqueos levouporumapequenaextensãodeflorestaatéocercadodosestábulos,edali atéa entrada.Anderdispensouovelhocavalariçocompalavras reconfortantese entroucomAllanon.

Lanternasaóleoiluminavamaduplafileiradecubículos,eoruídosuavedoscavalospodiaserouvidonosilêncio.Lentamente,Allanonpassoupela linhadeestábulos.Seusolhos iamdecavaloemcavaloenquantocaminhavaatéofinaldaprimeirafila,ecomeçavaasegunda.Anderoseguiu,observando-o.

Finalmente,oDruidaparouevirou-separaAnder.—Aqueleali—apontou.—Precisareiusá-lo.AnderolhoudesconfiadoparaoanimalqueAllanonescolhera.OcavalosechamavaArtaq,um

imenso garanhão negro commais de 1,80m de altura. Artaq era grande e forte o bastante paracarregar alguém do tamanho de Allanon e podia aguentar muita coisa. Era um cavalo de caça,moldado para ser mais resistente do que veloz. Mesmo assim, Ander sabia que ele era capaz dealcançar grandes velocidades em distâncias curtas. Sua cabeça era estreita e bastante pequena,especialmentesecomparadaaocorpograndeeforte.Tinhaolhosbemafastados,deumacoríndigosurpreendente. Havia inteligência naqueles olhos; Artaq não era um cavalo que aceitava serdominadoporqualquerhomem.

Aliás, esse era exatamente o problema.Artaq tinha gênio forte e completamente imprevisível.Gostavadebrincarcomseuscavaleiros,brincadeirasquegeralmenteterminavamcomoscavaleirossendojogadoslonge.Umbomnúmerohaviasemachucadonaquelasquedas.SeohomemmontadoemArtaq não fosse rápido nem forte o bastante para impedir, Artaq encontraria uma forma dederrubá-lo segundos depois de ser montado. Poucos homens se davam ao trabalho arriscar algoassim.NemoReicostumavamontá-lomais,emboraoanimaljátivessesidoumdeseusfavoritos.

— Temos outros... — sugeriu Ander, hesitante, mas Allanon já estava sacudindo a cabeçanegativamente.

—Estecavaloiráservir.Qualéonomedele?—Artaq—respondeuoPríncipeÉlfico.Allanon contemplouo cavalo cuidadosamenteporum tempo,paradepois erguer a trancado

estábuloeentrar.Anderseposicionouparaobservar.ODruidaficouemsilênciodiantedoimensogaranhãonegroeergueuamãocomoumconvite.ParaasurpresadeAnder,Artaqaproximou-se.Allanonacariciouopescoçosedosodevagar,gentilmente,einclinou-separasussurrarnaorelhadoanimal.Emseguida, colocouumcabrestonocavalonegro, levando-opara forado estábulo,pelocaminhoondeomaterialparacavalgadaestavaguardado.Andersacudiuacabeçaeseguiu-ologo.ODruidaescolheuumaselaeumarédea,eas instaloucalmamentedepoisderemoverocabresto.Comumaúltimapalavradeincentivo,elesubiunodorsodocavalo.

Ander prendeu a respiração. Lentamente, Allanon fez o animal caminhar por uma fileira deestábulos e voltar pela outra. Artaq estava obediente e receptivo; não iria fazer suas brincadeirascomaquelehomem.AllanonolevouparaondeAnderesperavaedesceu.

—Enquantoeuestiverfora,Príncipe—disseele,osolhosnegrosfixosemAnder—,confiareiavocêoscuidadosdeseupai.Assegure-sedequenenhummalaconteçaaele.—Elefezumapausa.—Dependodevocêparaisso.

Ander assentiu, satisfeito porAllanonmostrar tamanha confiança nele.ODruida o observoupormais ummomento antes de se virar. Tendo o Príncipe Élfico seguindo-omais uma vez, eleguiouArtaqatéofundodosestábuloseabriucompletamenteaamplaportadupla.

—Atélogo,então,AnderElessedil—ofereceuele,emontoudenovo.ConduzindoArtaqpelasportasabertas,cavalgourapidamenteparaaescuridão.

Anderobservou-oatéelesumirdevista.

Pelo restante daquela noite e pela maior parte dos três dias que se seguiram, Allanon cavalgouArtaqparaoleste,emdireçãoaParanor.SuajornadaolevouatravésdasflorestasdensasdasTerrasdoOeste até a entradadohistóricoValedoRhenn, edalipara a amplavastidãodasplaníciesdeStreleheim.Viajousemparar,pausandoapenasparadescansar,alimentar-seedaráguaparaArtaq,semantendocuidadosamente emáreas cobertas semprequepossível,passando longedas rotasdecaravanaedeestradasmovimentadas.Atéomomento,ninguémalémdoReiÉlficoeseufilhosabiaqueelehaviaretornadoàsQuatroTerras.NinguémalémdelessabiadashistóriasdosDruidasemParanoroudasétimaEscolhida.SeomalqueatravessaraaProibiçãodescobrisse,suamissãoestariaseriamenteameaçada.Osigiloeraseumaioraliado,epretendiamanterascoisasassim.

Ao pôr do sol do segundo dia de viagem, chegou a Paranor. Tinha certeza de que não foraseguido.

Enquanto ainda se encontrava a alguma distância da velha fortaleza, deixou Artaq em umpequenobosquedeabetosondehaviagramaboaeágua,econtinuouorestantedocaminhoapé.NãoeracomonotempodoLordeFeiticeiro.Asmatilhasdelobosquehaviaminfestadoasflorestasao redor não existiammais. A barreira de espinhos venenosos que cercava a Fortaleza sumira. Aflorestaestavacalmaepacíficanocrepúsculo,repletadesonsagradáveisdocairdanoite.

Emminutos,encontrava-seaopédaFortalezadosDruidas.Ocasteloenvelhecidosituava-seemcimadeumagrandemassarochosa,elevando-seacimadasárvoresdaflorestacomosetivessesidoarremessadodasprofundezasdaterrapelamãodealgumgigante.Eraumavisãodetirarofôlego,saídadeumcontodefadas,umlabirintofascinantedetorreseparedes,espiraiseparapeitos,suaspedrasbrancasedesgastadasentalhadasemcontrastecomoazulescurodocéunoturno.

Allanonparou.AhistóriadeParanoreraahistóriadosDruidas,ahistóriadeseusantepassados.Começara mil anos depois que as Grandes Guerras haviam quase eliminado a raça humana emodificara completamente a face do velho mundo. Começara depois de anos de desolação eselvageria,quandoossobreviventesdoholocaustolutavamparasobrevivernummundonovoeletalem que o homem não eramais a espécie dominante. Começara depois que a única raça humanarenascera nas novas raças de homens, anões, gnomos e trolls— depois que os elfos ressurgiram.ComeçaraemParanor,ondeoPrimeiroConselhodosDruidassereuniranumesforçodesesperadopara salvar o novomundo da anarquia completa. Galaphile os convocara até ali—Galaphile, omaiordosDruidas.Ali,históriasdovelhomundo,escritasefaladas,foramcolocadasnosregistrosdosDruidasparaserempreservadasparatodasasgeraçõesposteriores.Aliosmistériosdasantigas

ciências foram explorados, os fragmentos reunidos, os segredos de uns poucos devolvidos aoconhecimento.Porcentenasdeanos,osDruidasviverametrabalharamemParanor,comossábiosdonovomundoprocurandoreconstruiroqueforaperdido.

Mas seus esforços falharam.Umdeles foi vítima de ambição e impaciência,mexendo comumpoder tão grande e tão maligno que no final o consumiu por inteiro. Seu nome era Brona. NaPrimeiraGuerradasRaças,eleliderouumexércitodehomenscontraasoutrasraças,procurandodominar as Quatro Terras. Os Druidas esmagaram essa insurreição e levaram-no a se esconder.Acreditavam que estivesse morto. Mas quinhentos anos depois, ele retornou — não mais comoBrona,mas como o Lorde Feiticeiro. Ele encurralou osDruidas, que não desconfiavam de nada,dentrodesuaFortalezaemassacroutodos—excetoum,Bremen,opaideAllanon.BremenforjouumaEspadaencantadaeadeuparaoReiÉlfico,JerleShannara,umtalismãqueoLordeFeiticeironãoseriacapazdeenfrentar.AespadagarantiuavitóriadaSegundaGuerradasRaçasparaoselfoseseusaliados,ebaniunovamenteoLordeFeiticeirodomundodoshomens.

QuandoBremenmorreu,Allanon tornou-se o últimodosDruidas. Ele selou a Fortaleza parasempre.Paranor tornou-se entãoumahistóriapara as raças,ummonumentodeoutra época,umtempodegrandeshomensefeitosaindamaiores.

O Druida sacudiu a cabeça. Tudo aquilo era passado agora; só deveria se preocupar com opresente.

Começou a contornar a base de pedra do castelo, os olhos estudando as fendas profundas eafloramentosirregulares.Finalmente,parou;suasmãosestenderam-separaarochaeatocaram.Umpedaçodapedragirouparadentro,revelandoumapassagemcuidadosamenteescondida.ODruidadeslizourapidamentepelaaberturaestreitaeapedrasefechouatrásdele.

Aescuridãoalidentroeracompleta.AsmãosdeAllanontatearamatéencontrarumconjuntodetochasdeparedepresasporsuportesdeferrofincadosnapedra.Soltandouma,trabalhoucomapederneiraquecarregavanumabolsanacinturaatéumafaíscaacenderopichequecobriaapontada tocha. Segurando amadeira ardente diante de si, concedeu a seus olhos um instante para seadaptarem. Uma passagem estendia-se adiante, a silhueta vaga de degraus cortados de formagrosseiranochãoderochadesaparecendoescuridãoacima.Começouasubir.Ocheirodepoeiraemofoencheusuasnarinaseele franziuonarizdedesgosto.Ascavernaseramfrias,seufrioseladopermanentementeportoneladasdepedras.ODruidafechouacapapesadaaoseuredor.Centenasdedegrauspassaramsobseuspéseaindaassimotúnelcontinuava,sinuoso,atravésdaescuridão.

Finalmente terminounumaportamaciçademadeira.Allanonparou e se inclinouperto; seusolhoscontemplaramasgrossasdobradiçasdeferro.Depoisdeuminstante,seusdedostocaramumacombinaçãodepeçasdemetaleaportaabriu-secompletamente.Entrou.

Estavana fornalhadaFortaleza,umacâmara redonda e cavernosaque consistia integralmentenuma passarela estreita circundando um grande fosso escuro. Um pequeno corrimão de ferrodelineavasuaextremidade.Aoredordapassarela,haviaumasucessãodeportasdemadeirapresascomferroinstaladasnaparede,todasfechadasetrancadas.

ODruidadirigiu-seaocorrimãoe,segurandoatochadiantedesi,espiouofundodopoço.Afraca iluminação do fogo dançou nas muralhas escurecidas cobertas de cinzas e ferrugem. Afornalha estava fria agora, o maquinário que um dia bombeara calor para as torres e salões docastelo, fechadoesilencioso.Masbemmaisabaixo,alémdobrilhopálidodaschamasoriundasdatocha, sob pesados amortecedores de ferro, os fogos naturais da terra ainda queimavam.Mesmoagora,seumovimentopodiasersentido.

Lembrou-se de outra época. Mais de cinquenta anos antes, ele viera até Paranor rumo à

FortalezadosDruidascomopequenogrupodeamigosdaviladeanõesdeCulhaven:osOhmsford,SheaeFlick;BalinorBuckhannah,PríncipedeCallahorn,Menion,PríncipedeLeah;DurineDayelElessedil; e o valente anão Hendel. Ele viera à procura da lendária Espada de Shannara, pois oLorde Feiticeiro havia retornado às Quatro Terras, e apenas o poder da Espada seria capaz dederrotá-lo. Allanon viera com seu pequeno bando até a Fortaleza e por muito pouco nãoconseguirasairdenovo.Naquelamesmasala,lutaraatéamortecomumdosPortadoresdaCaveira.OLordeFeiticeirosouberadesuavinda.Foraumaarmadilha.

Seusolhosergueram-sederepente,eficouescutandonumsilêncioprofundo.Umaarmadilha.Apalavra o perturbava; ela disparou algum instinto, um sexto sentido de aviso.Havia algo errado.Algo...

Ficoualiparadoporummomento,indeciso.Depois,sacudiuacabeça.Estavasendotolo.Eramapenassuaslembranças,nadamais.

Carregando a tocha à frente, caminhou pela passarela até alcançar uma estreita escadaria emespiralquelevavaparacima.Semolharparatrás,paraopoçoouparaacâmaradafornalha,subiuosdegrausrapidamenteeentrounossalõessuperioresdaFortalezadosDruidas.

Tudo estava como há quinze anos. A luz das estrelas se infiltrava pelas janelas altas em finasfaixasprateadas,tocandosuavementeosgrossospainéisetirasdemadeirapolidaqueemolduravamo imenso corredor.Havia pinturas e tapeçarias penduradas por todo o comprimento do saguão,com suas cores fortes transformadas em cinza e azul escuro ao cair da noite. Estátuas de pedra eferromantinhamumavigíliasilenciosana frentede imensasportasdemadeiracommaçanetasdebronze.Apoeiracobria tudocomoumtapetemacioedenso,e longascascatasde teiasdearanhacaíamdotetoatéochãodemármore.

Allanon seguiu lentamentepelo corredor, a luzda tochaqueimandoemmeioao armofadoenebulosoquepairava,imóvel,pelaFortaleza.Tudoerasilêncio,profundoepenetrante.Seuspassosecoavam sombriamente enquanto andava, e pequenas nuvens de poeira erguiam-se atrás dele,agitadas pela passagem de seus pés.Havia portas dos dois lados, todas fechadas, com suas partesmetálicas brilhando como fogoquando a luz da tocha batia na superfície espelhada.O corredorpeloqualpassavacruzoucomoutro,eAllanonvirouàdireita.Andouquaseaté seu fim,parandofinalmenteemfrenteaumaportamenor,decarvalhobrancoeferro.Umaimensafechaduralacravaaquelaporta.ODruidaremexeuabolsaemsuacinturaporummomentoe,porfim,tiroudelaumachave grande de metal. Colocou-a na fechadura e virou duas vezes. O mecanismo rangeu emprotesto, com as engrenagens enferrujadas pela falta de uso, mas a tranca pesada se retraiu. Amaçanetadeferrodeslizou,livredofecho.Allanonentrouefechouaportaatrásdesi.

Asalaerapequenaesemjanelas.Haviasidoumescritórioumdia.Prateleirascomfrágeislivrosencadernadosdelineavamasquatroparedes,tendoascoresdaslombadasesvanecidofaziatempoeas páginas ressecadas quase virando poeira. Na parede oposta, havia duas mesas de leituras comcadeiras feitas de junco e cana, rígidas e solitárias, como sentinelas em posição de sentido.Maisperto da porta, havia duas poltronas de aparência confortável com estofamento de couro. Umtapete envelhecido tecido àmão fora colocado de qualquer jeito no chão de tábuas demadeirafincadas com pregos de ferro. O tecido do tapete era coberto de símbolos heráldicos e pedaçosfolheadosaoutro.

ODruidaobservou a sala de relance e foi até a parede à esquerda.Estendendo amãopara oslivrosnofinaldaterceiraprateleira,achouduasgrandespresilhasdeferro.Quandoastocou,umapartedaestanteentreabriu-seemsilêncio.Eleempurrouomóvelumpoucoparaconseguirespaçoparapassaredepoisfechouaestanteatrásdesi.

Encontrava-seemumacâmaratotalmentefeitadegrandesblocosdegranitocortadosdeformaa se encaixarem uns nos outros, e selados com cimento. A câmara estava vazia, exceto por umaúnica longa mesa de madeira e meia dúzia de cadeiras de espaldar alto. Não tinha janelas nemportas além daquela por onde entrara. O ar ali estava parado e velho, mas respirável. Não erasurpreendente,dadaaconstruçãocuidadosadacâmara,quequasenãohouvessepoeira.

Usandoa tochaquecarregava,Allanonacendeuváriasoutras tochaspresasàsparedesdecadaladoda entrada emais duas velas roliças que jaziamnamesa.Assimque o fez, foi até a parede àdireitadaportaecomeçouapassarasmãossuavementepelapedra lisa.Depoisdeummomento,colocou a ponta de seus dedos firmemente contra o granito, unindo as duas palmas, e baixou acabeça em concentração. No começo, nada aconteceu, mas de repente um brilho azul profundocomeçouaseespalharapartirdeseusdedosecorreupelapedracomoveiasnacarne.Uminstantedepois, a parede estourou em um fogo azul silencioso; e então, tanto a parede como o fogosumiram.

Allanon deu um passo para trás. Agora havia fileiras e mais fileiras de imensos livrosencadernadoscomcouroecomgravaçãoemouronolugardaparede.AllanontinhaidoaParanorexatamenteporcausadaquilo—poisaquelaseramashistóriasdosDruidas,todooconhecimentodovelhoedonovomundosalvosdoholocaustodasGrandesGuerras,gravadosdesdeaépocadoPrimeiroConselhodosDruidasatéopresente.

Allanon estendeu o braço e retirou cuidadosamente um dos pesados tomos. Estava em boascondições,ocouromacioe flexível, asbordasdaspáginasafiadas, a encadernação sólida.Haviamresistidobemàseras.Cincoséculosantes,depoisdamortedeBremen,depoisdeeleterpercebidoqueeraoúltimodosDruidas,construíraaquelacâmaraafimprotegeraquelashistórias,nointuitodequefossempreservadasparaasgeraçõesdehomensemulheresqueumdiaviveriamsobaterraeprecisariam do conhecimento contido nos livros.De tempos em tempos, ele voltava a Fortaleza,registrando diligentemente o que aprendera em suas viagens pelas Quatro Terras, anotando ossegredosdeépocasquepoderiam,deoutromodo,seperder.Muitodoqueeraregistradoalilidavacomos segredosda feitiçaria, comopoderqueninguém, fosseDruidaouhomemcomum,podiaesperar compreender totalmente—muito menos colocar em uso. Os Druidas haviam planejadomanter tais segredos a salvo de homens que pudessem usá-los de maneira tola. Mas os Druidashaviammorrido, exceto Allanon, e um dia ele tambémmorreria. Quem herdaria os segredos dopoder, então? Tratava-se de um assunto que preocupava Allanon— um dilema para o qual eleaindanãohaviaencontradoumasoluçãoagradável.

Folheourapidamenteolivroecolocou-onolugar,pegandooutro.Deuumaolhadanosegundolivro,edirigiu-seàlongamesa,sentando-se.Lentamente,começoualer.

Porquasetrêshoras,elenãosemexeu,excetoparaviraraspáginasdolivro,seurostoinclinadoparabempertodaescritacuidadosa.

Ao final da primeira hora, descobrira a localização do Sepulcro.Mas continuara a ler. Estavaprocurandoalgomais.

Finalmente, ergueu os olhos e recostou-se na cadeira, cansado. Durante algum tempo, ficouapenas sentado ali na cadeira de encosto alto, encarando fixamente as fileiras de livros quecontinhamashistóriasdosDruidas.Encontraratudooqueestiveraprocurandoedesejavanãoterconseguido.

Relembrou-sedeseuencontrocomEventineElessedil,doisdiasantes.ElehaviacontadoaoReiÉlficoqueforaprimeiroaosJardinsdaVidaequeaEllcrysfalaracomele.Porém,nãocontaraaoRei tudooqueela revelara.Emparte,porquemuitodoqueelamostrara foraconfusoeobscuro,

suas lembranças de uma época e uma vida que, fazia tempo, haviam sido alteradas além doreconhecimento de qualquer um. Mas houvera uma coisa que ela lhe mostrara e que entenderamuitobem.Porém,era tão inacreditávelqueelenãopodiaaceitar semantesverificarashistóriasdosDruidas.Eassim fizera.Agora sabiaqueaquilo eraverdadee sabiaqueprecisava sermantidooculto — de Eventine, de todos. Ele sentiu o desespero. Estava sendo tal como havia sido hácinquenta anos com o jovem Shea Ohmsford; a verdade deveria se relevar sozinha através dainexorávelpassagemdosacontecimentos.Nãoeraelequemdeveriadecidirahoraeo lugardessarevelação.Nãodeveriainterferirnaordemnaturaldascoisas.

Ainda assim, questionava tal decisão. Sozinho com os fantasmas de seus ancestrais, o últimoentreosseus,questionavataldecisão.EscolheraocultaraverdadedeSheaOhmsford—naverdade,de todos os que faziam parte do pequeno grupo de aventureiros de Culhaven, de todos os quearriscaram suas vidas na busca pela Espada de Shannara porque ele os convencera de que eranecessário—masespecialmentedeShea.Nofinal,passaraaacreditarqueerraraaofazê-lo.Estariaerradonovamente?Destavez,nãodeveriasersincerodesdeocomeço?

Aindaperdidoemseuspensamentos,fechouolivroàsuafrente,levantou-sedamesaecarregouopesadovolumedevoltaaonichodoqualo tirara.Ele fezummovimentocircularcomumadasmãos na frente do reservatório de histórias e a parede de granito foi restaurada.Daí a observoudistraído por um momento, depois se virou. Recuperando a tocha que trouxera consigo até acâmara,extinguiuasluzesremanescenteseabriuatrancadaportaescondida.

Novamente dentro do escritório Druida, permaneceu ali por tempo o bastante para fechar aparte abertadas estantes, de formaque tudo ficasse comoera.Passouosolhospela salinhaquasetristemente.OcastelodosDruidasviraraumatumba.Tinhaocheiroeogostodamorte.Jáforaumlocal de aprendizado, de visão. Mas não mais. Não havia mais lugar para os vivos entre aquelasparedes.

Franziua testacomdesagrado.Suaatitude tinhaazedadoconsideravelmentedesdeque leraaspáginas da história. Estava ansioso para sair de Paranor. Era um lugar de má-sorte — e ele,igualmente,deverialevaraquelamá-sorteaoutros.

Silenciosamente, caminhou até a porta do escritório, abriu-a com um puxão e saiu para ocorredorprincipal.

AnãomuitomaisdecincometrosestavaafiguraencurvadadeDagdaMor.Allanoncongelou.Odemônioaguardavasozinho,comoolharduro fixonoDruida,oCajado

de Poder aninhado solto em seus braços.O som áspero de sua respiração cortava agudamente osilêncio profundo, mas ele não disse palavra. Simplesmente, ficou ali parado, contemplandocuidadosamenteohomemquevieradestruir.

O Druida atravessou a porta do escritório, movendo-se cuidadosamente até o centro docorredor, com os olhos varrendo a escuridão nebulosa ao redor. Quase imediatamente, viu quehaviaoutros—formasvagas,comoaparições,querastejavamdassombrasemquatropatas,osolhoscomo fendas de fogo verde. Havia muitos e cercavam-no. Eles aproximavam-se sem parar,circundando-o lentamente, como lobos reunidos em torno de uma presa encurralada. Umchoramingobaixovinhadesuascabeçassemrostos,umresmungohorrívelparecidocomodeumgato que parecia sentir prazer pela expectativa do que estava para acontecer. Alguns deslizaramparadentrodos limitespálidosda luzda tocha.Eramcriaturasgrotescas, seus corposumamassasinuosa de pelo cinza, seus membros curvados e vagamente humanos, seus muitos dedostransformados em garras. Rostos levantaram-se na direção do Druida, rostos que o deixaramgelado. Eram rostos de mulheres, suas feições distorcidas com selvageria, suas bocas como a

mandíbuladegatosmonstruosos.Ele reconheceu-os, embora estivessem ausentes da terra há milhares de anos. Tinham ficado

presos atrás damuralha da Proibição desde a aurora do homem,mas sua lenda se inscrevera nahistória do velhomundo. Eram criaturas que viviam da carne humana. Nascidas da loucura, suasededesangueaslevavaalémdarazão,alémdasanidade.

EramasFúrias.Allanonobservou-ascirculando-o,aproximando-sedasbordasdaluzdesuatocha,saboreandoa

perspectivadesuamorte.Eraumamortequepareciacerta.HaviademaisdelasparaoDruida;elejásabia disso. Seu poder não era grande o bastante para impedi-las. Atacariam ao mesmo tempo,pulandodetodososlados,arranhando-oedilacerando-oaténãosobrarnada.

Lançou um breve olhar para Dagda Mor. O demônio permaneceu onde estava, além do seucírculodealiados,seuolharnegrofixonoDruida.Eraóbvioqueelenãosentianecessidadedeusaro próprio poder; as Fúrias seriam o bastante. O Druida estava encurralado e em desesperadoradesvantagemnumérica.Lutaria,claro;masnofinal,morreria.

OmiadodasFúriascresceubruscamente,umchorosecoqueecooupelaFortalezatoda,soandovazio e estridente pelo castelo de pedra. Dedos em garra raspavam o chão demármore como seraspassemossospartidos,etodaParanorpareciacongeladadehorror.

Eentão,semaviso,Allanonsimplesmentedesapareceu.Aconteceu tão de repente que, por um instante, as fúrias confusas ficaram completamente

imóveis e encaravam, sem acreditar, o lugar onde oDruida estivera até ummomento antes, seusgritos sumindo na quietude. A tocha ainda estava suspensa na escuridão nebulosa, um ponto defogo que asmantinha enfeitiçadas.Depois caiu no chão da sala numa chuva de faíscas. A chamadesintegrou-seeocorredormergulhounaescuridão.

Ailusãodurouapenassegundos,masfoiobastanteparapermitiraAllanonescapardocírculodemorte queo capturara. Instantaneamente, passoupelas Fúrias, correndo até umpardeportasimensasdecarvalhoqueestavam fechadase trancadas, ao fimdocorredor.DagdaMorberrouderaivaeergueuseuCajado.Chamasvermelhasarderamportodaaextensãodocorredor,espalhandoas Fúrias enlouquecidas ao percorrer um arco em direção ao Druida em fuga. Mas Allanon erarápidodemais.Comumgiro, seumantoergueu-se, refletindooataque.O fogodoCajadopassoupor ele e abriu as duas portas com uma explosão, arrancando-as de suas dobradiças de ferro edeixando-asestilhaçadas.ODruidapuloupelapassagemparaa saladooutro ladoe seperdeunaescuridão.

AsFúriasjáestavamemseuencalço,pulandopelocorredorcomoanimais,seusgritoscheiosdefome.Amais rápidadelaspuloupelaaberturaepegouoDruidaenquantoele lutavaparaabriratrancadajanelaquedavaparaasameias.Allanonvirou-separaencará-la,suafiguraaltaencolhida.Avaliou as duasmais próximas enquanto saltavampara sua garganta e jogou-as contra o restantedelas.Ergueuasmãoseumachamaazulespalhou-sedeseusdedos,transformandoochãoentreelesnumaparedede fogo.AindaassimasFúrias continuavamapersegui-lo.Amaispróxima jogou-sesem pensar nas chamas e morreu. Quando o fogo sumiu, um instante depois, as janelas estavamabertaseoDruidasefora.

Trezentos metros acima da copa das florestas ao redor, com as costas pressionadas contra aimensamuralhadaFortalezadosDruidas,Allanonesgueirou-seporumabeiradaestreitadepedraquecaíaparaaescuridão.Acadapassoquedava,oventoameaçavaarrastá-lo.Rumoudepressaatéuma passarela estreita de pedra que levava a uma torre próxima.A passarela tinhamenos de ummetrode largura;abaixodela,apenasovazio.ODruidanãohesitou.Aquelaerasuaúnicachance

deescapar.Começouaatravessar.Atrás de si, ouviu os gritos de raiva e frustração que eclodiram das gargantas das Fúrias

enquantoelasoseguiampelasjanelasabertas.Vinhamatrásdelecorrendo,maissegurasdoqueelenas pedras lisas do castelo, seusmembros em garras prendendo-se firmemente enquanto corriampara alcançá-lo.Da janela,DagdaMor ergueu oCajadomais uma vez e atirou o fogomortal nadireção doDruida fugitivo.MasAllanon viu que não conseguiria atravessar antes de as Fúrias oalcançarem.Abaixando-se emum joelho, ergueuosbraços emumcírculo amplo eumescudodefogo azul se materializou na sua frente. O fogo do cajado do demônio estilhaçou-se contra ele,inofensivamente.Poréma forçadoataque jogou-opara tráseele tropeçousobreaponteestreita.Emuminstante,amaisadiantadadesuasperseguidorasestavaemcimadele.

Dessavez,Allanonnãofoirápidoobastante.Garrasrasgaramotecidodesuacapaerasgaramsuapele.Umador lancinantedestruiuseusombrosepeito.Comumesforçotremendo,empurrouas Fúrias que o seguravam e elas caíram da passagem estreita, gritando. Pondo-se de pé comesforço, ele cambaleou em direção à torre. Novamente as Fúrias avançaram em sua direção,tropeçandoumasnaoutrasnaansiedadedealcançaremapresa,uivandodefrustração;seusrostosestranhos, parcialmente femininos, contorciam-se de ódio.Novamente, oDruida as jogou longe,comocorpoaindamaisrasgadoearoupaensopadadesangue.

Finalmentealcançouofinaldaponte,apoiando-senaparededatorre.Elevirou-se,erguendoasmãos.Chamasazuiseclodiramparabaixo,nadireçãodocaminhodepedra,partindo-oempedaços.Com um tremor, o arco inteiro desabou. Berrando de horror, as Fúrias caíram na noite edesapareceram.

OfogodoCajadodePoderbrilhouàsuavolta,porémoDruidaconseguiuevitá-lo,desviandorapidamenteaoredordaparedecirculardatorreatéestarforadavistadodemônio.Aliencontrouuma pequena porta de ferro, fechada e trancada. Com um único e poderoso empurrão de seuombro,arrombouaportaesumiu.

CapítuloVII

Eraomeiodamanhã.NaAldeiadosCurandeiros,apequenacomunidadegnomadeStorlock,atempestade estava finalmente acabando.Tinha sidoespetacular enquantodurara—umamassadenuvensnegrasborbulhantescomlampejosderelâmpagoscruéis,pontuadosporlongostrovõesqueressoavam;chuvastorrenciaisquemartelavamasflorestascomaforçadoclimainvernal;ventosquedesenraizavam árvores inteiras e destelhavamos tetos das pequenas construções de pedra e gessoque compunham a aldeia. A tempestade soprara das planícies de Rabb ao amanhecer, e agoraflutuava para leste, em direção aos penhascos sombrios dasWolfsktaag, deixando as floretas doAnarCentralmolhadaseenlameadascomsuapassagem.

Wil Ohmsford encontrava-se sozinho na varanda do centro de repouso de Storlock, omaiorlocal de tratamentodaquela comunidade, e observavadistraidamente enquanto a chuvadiminuíaatésetornarumagaroa.Asnuvensaindabloqueavamaluzdosol,deixandoodiaenvoltoemtonssombriosdecinza,eumanévoafinaseformaracomamisturadoarfriodatempestadeedaterraquente. As calhas e as paredes do centro estavam molhadas e brilhantes, e gotas de umidadeprendiam-se às trepadeiras que cresciam nelas, reluzindo com um frescor verde. Pedaços demadeira espalhavam-sepelo chão, formandopequenas represasparaos riosde águada superfíciequefluíamemtodolugar.

Ohomembocejoueseespreguiçou,cansado.Ficaraacordadoanoitetoda,trabalhandocomascriançasinfectadasporumafebreespecialmentemaldosaquesecavaosfluidoscorporaisefaziaastemperaturas subirem. Ele poderia ter pedido para ser liberado antes, claro, mas não se sentiriaconfortávelcasoofizesse.AindaeraumestudanteentreosArmazenadores,emuitoconscientedofatodequeprecisavacontinuarprovandoseuvalorcasoquisessesetornarumCurandeiroumdia.Sendoassim,eleficaracomascriançasduranteodiaeanoiteanteriores,atéquefinalmenteafebrecedera.

Estavacansadodemaisparadormir,ansiosodemaiscomseutrabalhonoturno.Alémdisso,sabiaque precisava passar algum tempo com Flick. Sorriu, apesar do cansaço. O velho tio Flickprovavelmenteoarrancariadacamaseelenãoovisitasseporalgunsminutosantesde searrastarparadormir.

Ele desceu da varanda, a terra enlameada atolando suas botas ao caminhar pela umidade, decabeçabaixa.Nãoeramuitoalto,nomáximounscincocentímetrosamaisqueFlick,eseucorpoera esguio. Tinha as feições élficasmestiças de seu pai— o nariz e amandíbula finos, as orelhaslevementepontudas,escondidasdebaixodecachosdecabeloloiro,assobrancelhasestreitasqueseerguiamdistintamenteapartirdonariz.FeiçõesmuitoparticularesquemarcaramSheaOhmsfordequetambémmarcavamseuneto.

Osomdepassoscorrendoodeixouemalerta.EraumdosServidoresgnomosqueauxiliavamosArmazenadores.Ele foiatéWil,orostoamareloeenrugadomarcadopelachuva,acapaapertadacontraocorpoparacombateroclima.

—Senhor,seutioperguntouporvocêanoitetoda—arquejouele,parando.—Eleinsistiuparaqueeuochamasse...

Wilaquiesceu,compreensivo,eestendeuobraçoparacolocaramãonoombrodognomo.—Estouindovê-loagora.Obrigado.O Servidor virou-se e disparou de volta pela névoa para o abrigo aleatório que lhe fora

designado.Wilobservou-odesaparecerdevista,edepoiscomeçouacaminharpelaestrada.Um sorriso enrugou seu rosto.Pobre tioFlick.Elenemestaria ali se Sheanão tivesse ficando

doente.FlickseimportavapoucocomasTerrasdoLeste,umaregiãosemaqualelepoderiavivermuitobem,conformegostavadelembraraWil.Eletinhaumdesgostoespecialcomgnomos,apesardeosArmazenadoresseremumpovodecente.Gnomosdemais tinhamtentadoacabarcomelenopassado,especialmenteduranteabuscapelaEspadadeShannara.Aquilonãoeraalgoquepudesseser esquecido com facilidade; lembranças assim erampersistentes e nãopodiam simplesmente sercolocadasdeladoemproldeumjulgamentojustosobreosgnomos.

Emtodocaso,Flickrealmentenãoqueriaestaralienãoestaria,porémSheanãoconseguirairconforme havia prometido a Wil, e Flick sentira-se obrigado a ir em seu lugar. Visto por esseângulo, tudo era culpa de Shea— como Flick anunciara aWil dez segundos depois de chegar.Afinal,seSheanãotivessefeitoaquelapromessaimpensadadevisitarWil,FlickestariadevoltanovaleemvezdeficarsentadoemStorlock,ondesequerdesejavaestar,paracomeçodeconversa.MasFlickerairmãodeSheaeportantotiodeWil—Flickrecusava-seapensaremsicomootio-avôdealguém— e já que Shea não podia vir, alguém tinha que fazer a viagem em seu lugar. O únicoalguémdisponíveleraFlick.

A pequena cabana de hóspedes onde Flick estava hospedado ficou visível, e Wil virou-se,relutante,paraela.Estavacansadoesemvontadedediscutir,masprovavelmenteissoaconteceria,poishaviapassadobempoucotempocomFlicknospoucosdiasemqueotioestiveraemStorlock,etemponenhumnas36horasanteriores.Seutrabalhoeraexigente,massabiaqueseutioveriaissoapenascomoumadesculpaesfarrapada.

AindarepassavaoassuntonacabeçaquandoFlickapareceuderepentenavarandadacabana,orosto barbado e grisalho numa desaprovação pétrea. Resignando-se ao inevitável, Wil subiu osdegrausesacudiuaáguadesuacapa.

Flickoobservou,semdizernadaporummomento,edepoissacudiuacabeça.—Vocêpareceexausto—declarourudemente.—Porquenãoestánacama?Wiloencarou.—Nãoestounacamaporquevocêmandouavisarquequeriamever.—Nãofaleiqueeraimediatamente!—Bem...—Wil deu de ombros, desanimado.—Acho que pensei que deveria vir vê-lo agora.

Afinal,nãoconseguipassarmuitotempocomvocêatéentão.— É verdade— grunhiu seu tio, com um toque de satisfação na voz ao ouvir a confissão.—

Mesmo assim, você escolheu uma hora estranha para corrigir seu erro. Sei que ficou acordado anoiteinteira.Euverifiquei.Sóqueriaversevocêestavabem.

—Estoubem—Wilconseguiusorrirumpouco.—Você não parece bem. E é culpa deste clima, assim comode qualquer outra coisa.—Flick

esfregou seus cotovelos com cuidado. — Essa chuva confusa não parou desde que cheguei. Nãoincomodasóagentevelhacomoeu, sabe? Incomodaa todos,mesmo futurosCurandeiros.—Elesacudiuacabeça.—Vocêestariamelhornovale.

Wilassentiu,distraído.Passara-semuitotempodesdequeestiveranoValeSombrio.Faziaquasedoisanosquemoravae

trabalhavanaaldeiadosArmazenadores,aprendendoaartedaCuracomosmestresreconhecidos

doofício,preparando-separaomomentoemquepoderiaretornarparaasTerrasdoSulcomoumCurandeiro,paraespalharosbenefíciosdesuashabilidadesaoprópriopovo.Infelizmente, todooprocessodesetornarumCurandeirohaviaseprovadoumafontedeconstanteirritaçãoparaFlick,emboraoavôdeWiltivesseaceitadoofatobemobastante.QuandoafebrelevaraospaisdeWil,umWilOhmsfordmuitojovemdecidiracorajosamenteque,quandoficassemaisvelho,tornar-se-iaumCurandeiro.ContaraaseuavôeaFlick,comseujeitodecriançaecomadeterminaçãodeumaquedesejavasalvaroutrosdadoençaedador.Aquiloerabom,concordaram,pensandoqueeraumcaprichoinfantil.Masaquelaambiçãopermanecera.Equando,aoalcançaramaturidade,anunciaraque era sua intenção estudar, não comosCurandeiros dasTerras do Sul, que sabia serem apenascompetentesemseutrabalho,massimcomosmelhoresCurandeirosdasQuatroTerras—comosArmazenadores—aatitudedelesmudarabruscamente.Obomevelho tioFlick jáhavia formadosuaopiniãoa respeitodosgnomosedasTerrasdoLestemuito tempoantes.Até seuavôrecuara.Nenhumsulista jamaisestudaracomosArmazenadores.ComoWil,quesequerconheciao idiomadeles,esperavaseraceitonaquelacomunidade?

Mas Wil fora assim mesmo, apesar das reservas deles — apenas para ser levado perante oconselhodosArmazenadores assimque chegara e ser avisado,de formapolida, porém firme, queninguémdeforadaaldeiadeStorlocktinhapermissãoparaestudarcomeles.Elepoderiaficarpelotempo que quisesse,mas não se tornar um deles.Wil não desistiu.Decidiu que primeiro deveriaaprender a língua, e passou quase dois meses fazendo isso. Então se apresentou novamente aoconselho e voltou a tentar convencê-los, desta vez falando no idioma deles. Também não obtevesucessonaocasião.Todasemana,duranteummês,apresentou-sediantedoconselhoparapedirporsua causa. Contou tudo sobre si e sua família, tudo o que o levara à decisão de se tornar umCurandeiro—tudoqueachousercapazdeconvencê-losadeixá-loestudarcomeles.Algodeviaterfuncionado, pois, finalmente, sem uma palavra de explicação, disseram-lhe que tinha permissãoparaficarequeiriamensiná-looquesabiam.Comotempo,casoseprovasseaplicadoecapaz,elesetornariaumCurandeiro.

Sorriu afetuosamente com aquelas lembranças. Como ficara satisfeito — e seu avô e Flicktambém, quando souberam que fora aceito, muito embora o último jamais admitisse isso, assimcomonão admitiria seu verdadeiromotivo para reprovar aquela aventura toda.O que realmenteatormentavaFlick, era adistânciaqueo separavadeWil. Sentia faltade caçar, pescar e explorar,coisasquecompartilharacomWilduranteamais tenra juventude.Sentia faltade terWilnovaleconsigo.AesposadeFlickmorrerahaviamuitotempo,eelesnuncativeramfilhos.Wilforacomoum filho.Flick sempre acreditaraqueWil ficarianovale e assumiria a estalagemcomShea e ele.MasWil se fora, instaladoemStorlock, longedovaleede suavelhavida, eWil sabiaque seu tiosimplesmentenãoconseguiaaceitarojeitocomoascoisassesucederam.

—Vocêestámeouvindo?—perguntouFlickderepente,franzindoorostobarbado.— Estou ouvindo— assegurouWil. Colocou a mão gentilmente no ombro do tio.— Tenha

paciência,tioFlick.Voltareiumdia.Masaindatenhomuitooqueaprender.—Bem, estoupreocupado comvocê,não comigo—assinalouFlick rapidamente, aprumando

suafiguracorpulenta.—Seuavôeeuficamosmuitobemsemvocê,masnãotenhotantacertezadequevocêficarábemsemagente.Olheparavocê.Vocêseesforçademais,Wil.Vocêtemesse jeitoteimosoqueaparentementeocegouparaofatodequetalveznãoconsigafazertudoquegostaria.Vocêéumhumanonormalcomoorestantedenós.Oqueprecisofazerparavocêenxergarisso?

Pareciaqueelequeriadizermais,masesforçou-separaparar.—Não é hora para isso— suspirou. Pousou amão na deWil.—Por que você não se deita?

Podemosconversarquandovocê...Seus olhos se moveram de repente e sua voz sumiu.Wil virou-se para seguir o olhar do tio.

Havia movimento na neblina — uma sombra escura e solitária. Encararam-na, curiosos,observando-asematerializarlentamente.Tornou-seumcavaloeseucavaleiro,ummaisescuroqueooutro.Ocavaleirosentavainclinadoparafrentenasela,comoseestivessecansadopelaviagem,asroupasescurasensopadaspelachuvaegrudadasnocorpoalto.

UmaapreensãosúbitatomouWil.NãoeraumArmazenadorqueseaproximava;naverdade,nãosepareciacomninguémquejáhouvessevisto.

—Nãopodeser...—ouviuFlickmurmurar.Seu tionão terminou a frase. Passoudireto porWil e foi até a beira da varanda, apoiando-se

com um braço esticado no corrimãomolhado de chuva.Wil adiantou-se para se juntar a ele. Ocavaleirovinhabemnadireçãodeles.Eaaproximaçãodelecriavaumasensaçãotãointensadequealgo estava para acontecer, que, por ummomento, o homem do vale pensou em fugir.Mas nãopodia.Podiaapenasesperar,osolhosfixosnaformaespectral.

O cavaleiro parou na frente deles. A cabeça encontrava-se abaixada, o rosto escondido sob asdobrasdeumcapuzescuro.

—Olá,Flick.Avozdocavaleiroeraumsussurrobaixoegrave.Wilviuotiosobressaltar-se.—Allanon!O grande homem deslizou do lombo de seu cavalo, mas deixou um braço enganchado no

pescoçodoanimal,comosenãoconseguisseficardepésozinho.Wildeuumpassoàfrenteeparou.Obviamentealgoestavaerrado.

OolhardeAllanonmoveu-selentamenteparaencontrarodele.— Wil Ohmsford? — O homem do vale assentiu, surpreso. — Vá, rápido, e peça para os

Armazenadores virem... — começou ele, mas curvou-se para frente, quase sem conseguir serecuperaratempoparanãocair.

Wil desceu os degraus da varanda instantaneamente, movendo-se para ajudar o Druida, masparouquandoamãodohomenzarrãoergueu-senumaviso.

—Façaoquedigo,jovem.Vá!Foi quando Wil viu claramente o que a chuva estivera escondendo até então. As roupas de

Allanonestavamprofundamentemanchadasde sangue.Semmaisumapalavra,o jovemcorreudevoltapelaestradaatéocentro,comocansaçoeodesconfortoabandonando-ocomoumsonhonomomentoemqueseacorda.

CapítuloVIII

OsArmazenadoreslevaramAllanonparaocentroderepousoe,apesardetantoWilquantoFlickteremtentadoacompanharoDruida ferido, foramavisados,de formagentilporémfirme,dequenão precisavam da ajuda deles. Enigmáticos e silenciosos, os Armazenadores e o Druidadesapareceram nos corredores do centro, e os homens do vale foram deixados na chuva. Já queestava claro que naquele momento não poderiam saber mais sobre a chegada do Druida, WilOhmsforddesejouboanoiteaotioefoiparaacama.

Maistardenaqueledia,duranteasprimeirashorasdanoite,Allanonmandouavisarquequeriaver os dois.Wil recebeu a notícia com ummisto de emoções. Por um lado, estava curioso paradescobrir o que havia acontecido com o Druida. Histórias sobre Allanon eram um territórioconhecido; seu avô e Flick haviam-nas contado todas dezenas de vezes. Porém,nunca tais relatoshaviammencionadoferimentoscomoosqueaquelehomemimensohaviasofridonocaminhoparaStorlock.NemmesmooPortadordaCaveiraqueoatacaranafornalhadeParanorduranteabuscapelaEspadadeShannarahaviacausadoaqueletipodedano,eWilqueriasaberquetipodecriaturavagandopelasQuatroTerraseramaisperigosadoqueosServidoresaladosdoLordeFeiticeiro.Poroutro lado, ficou perturbado pela presença do Druida em Storlock. Poderia ser apenas umacoincidência que Allanon tivesse chegado nummomento em que pudesse encontrar tanto FlickquantoWilnaaldeia.Podiatersidosomenteobradoacasotê-losencontradoprimeiro,emvezdeosArmazenadores.MasWilnãoacreditounissonemporummomento.Allanonvieraaté elesdepropósito. Por que fizera isso? E por que ele os convocara para esse encontro? Wil conseguiacompreenderodesejodeAllanondeconversarcomFlick;afinal,eleshaviamseencontradoantesecompartilhadoaventuras.MasporqueWil?ODruidasequerconheciaomaisjovemdosOhmsford.PorqueAllanonestariainteressadoemseencontrarcomele?

Mesmo assim, deixou seus aposentos e diligentemente marchou pela escuridão crescente napraçadaaldeia,emdireçãoàcasadehóspedesondesabiaqueFlickestariaesperando.Pormaisquedesconfiassedosmotivosportrásdaqueleencontro,estavadeterminadoa irdequalquermaneira.Não era de recuar quando encontrava problemas — e, além disso, podia estar errado em suassuspeitas.TalvezoDruidaquisesseapenasagradecerporsuaajuda.

Encontrou Flick esperando na varanda da cabana, bem enrolado em seu manto pesado deviagem, resmungando sobre o tempo, irritado. O Ohmsford mais velho desceu os degraus davaranda para encontrá-lo e eles se dirigiram juntos pela estrada até o centro de repouso deStorlock.

—Oquevocêachaqueelequer,tioFlick?—perguntouWildepoisdeummomento,apertandomaisaprópriacapacontraocorpoparaseprotegerdofriodanoite.

— Difícil dizer — grunhiu Flick. — Posso lhe dizer uma coisa. Toda vez que ele aparece,significaencrenca.

—AchegadadeleaStorlocktemaverconosco,nãoé?—arriscouWil,observandoorostodotio.

Flicksacudiuacabeça,hesitante.

—Eleveioaquicomumpropósito, issoécerto.Enoschamouparadizeralgoalémde“olá”e“comovãovocês”.Oquequerqueele tenhaadizer,nãoseráalgoquequeiramosouvir.Disso,eusei.Nuncafoienãotenhomotivoparaesperaralgodiferentedestavez.—Eleparouderepenteeencarouosobrinho.—Tomecuidadoquandoestiverpertodele,Wil.Elenãoédeconfiança.

— Terei cuidado, tio Flick, mas não acho que tenha muito com o que me preocupar —respondeuWil.—NósdoissabemosalgosobreAllanon,nãoé?Alémdomais,vocêestará láparaficardeolhonascoisas.

—Éoquepretendofazer.—Flickvirou-seecontinuaramandando.—Apenasselembredoqueeudisse.

Poucodepois,subiramosdegrausdavarandadocentroderepousoeentraram.Ocentroeraumedifíciobaixoecomprido,feitodeparedesdepedraegessoecomumtelhadodetelhasdeargila.Uma sala ampla e confortavelmentemobiliada abria-sedosdois lados emcorredoresque sumiamnas alas do centro, onde os doentes e feridos recebiam cuidados em numerosas saletas. Quandoentraram,umdosArmazenadoresvestidosdebrancoveiocumprimentá-los.Eleacenousemdizernada e os guiou por um longo corredor vazio. No fim dele havia uma única porta fechada. OArmazenadorbateuumavez,virou-seeosdeixou.Wil,desconfortável,olhouderelanceparaFlick,masoOhmsfordmaisvelhoencaravafixamenteaportafechada.Aguardaramjuntos.

A porta abriu-se por completo e Allanon surgiu diante deles. Parecia, para todos os efeitos,jamais tersequerse ferido.Nenhumferimentoeravisível.Asvestesnegrasquecobriamsua figuraalta estavam limpas e sem sangue. Seu rosto estava um pouco abatido,mas semmostrar nenhumsinal de dor. Seu olhar penetrante permaneceu sobre os dois homens por um instante, e elegesticulouparaumamesinhacomquatrocadeirasaoredor.

— Por que não sentamos ali enquanto conversamos?— Ele fez a sugestão parecer quase umaordem.

Entraramesentaram-senascadeiras.Oquartonãotinhajanelasehaviapoucamobília,apenasamesa,ascadeiraseumacamagrande.WilolhouaoredorrapidamenteevoltouasuaatençãoparaoDruida.AllanonjálhetinhasidodescritoporFlickeSheadezenasdevezes,eeleeraexatamentecomodisseram.Mascomopodiaser,Wilseperguntou,quandoasdescriçõeseramdeumhomemqueelesnãoviamdesdeantesdeelenascer?

—Bem,aquiestamos—disseFlickporfim,quandoficouevidentequeninguémdirianada.Allanonsorriufracamente.—Parecequesim.—Vocêestámuitobemparaumhomemquasemortoalgumashorasatrás.—OsArmazenadoressãomuitocompetentesemseuofício,comovocê,dentretodasaspessoas,

já devia saber.—ODruida respondeude forma agradável até demais.—Mas temonão estarmesentindotãobemquantodeveria.Comovocêestá,Flick?

—Maisvelhoemaissábio,espero—respondeuohomem,deformasignificativa.Allanonnãorespondeu.SeuolharsedirigiuaWilderepente.Poruminstante,nãodissemais

nada, seu rosto sombrio e inescrutável ao contemplar o mais jovem dos Ohmsford. Wil ficousentado em silêncio e imóvel, embora o olhar do Druida o deixasse desconfortável. Então,lentamente,Allanon inclinou-se para frente na cadeira, asmãos grandes apoiando-se no topo damesaecruzando-se.

—Precisodesuaajuda,WilOhmsford—declarouemvozbaixa.Osoutrosdoisoencararam.—PrecisoquevocêvenhacomigoatéasTerrasdoOeste.

—Eusabia—resmungouFlick,sacudindoacabeça.

Allanonsorriu,triste.—É reconfortante saber, Flick, que certas coisasnessa vidanãomudam.Você, comcerteza, é

uma prova disso.Mudaria alguma coisa se lhe dissesse que a ajuda deWil é necessária não paramim,masparaopovoélfico,emparticularumajovemelfa?

—Não,nãomuda—respondeuohomemdovalesemhesitar.—Elenãovaieestáacabado.—Espereumminuto,tioFlick—interrompeuWilrapidamente.—Podesermesmoqueeunão

vá,masgostariaquefosseeuatomartaldecisão.Aomenospoderíamosouvirmaissobreoqueeuprecisariafazer.

Flickignorouareprimenda.—Acredite,vocênãoquerouvirnemmaisumapalavra.Éexatamenteassimqueosproblemas

começam. Foi exatamente assim que começou para seu avô, cinquenta anos atrás. — Ele olhourapidamenteparaAllanon.—Nãoéverdade?Não foi exatamente assimqueas coisas começaramquandovocêfoiatéoValeSombrioenoscontousobreaEspada?

Allanonassentiu.—Sim,foi.—Aíestá!—declarouFlick, triunfante.—Exatamenteomesmo.Apostoqueessa jornadaque

vocêplanejouparaeleéperigosatambém,nãoé?Novamente,oDruidaassentiu.—Muitobem,então.—Ohomemsentou-sedenovo,asatisfaçãoestampadanorostobarbado.

—Achoqueissoresolveoassunto.Vocêestápedindodemais.Elenãovai.OsolhosnegrosdeAllanonbrilharam.—Eledeveir.Flickpareceuespantado.—Deve?ODruidaassentiu.—Vocêvaientenderomotivo,Flick,assimqueeutiverexplicadooqueaconteceunasQuatro

Terrasnosúltimosdias.Escutemcomatenção,homensdovale.Eleaproximouacadeiradamesaeinclinou-separafrente.—Muitotempoatrás,muitotempoatrásmesmo,antesdasGrandesGuerrasedaevoluçãodas

novas raças, antes mesmo de o homem se desenvolver como uma espécie civilizada, houve umguerra terrível entre criaturas que, em sua maioria, não existem mais. Algumas dessas criaturaseram boas e zelosas, veneravam a terra e buscavam protegê-la e preservá-la contra abusos edesperdícios.Paraelas,todaavidaerasagrada.Porém,haviaoutrosqueerammauseegoístas;seusmodos eram destrutivos e predatórios. Elas tiravam da terra e da vida sem necessidade oupropósito. Eram criaturas cujas características físicas e capacidades diferiam no principal da sua;querdizer,aaparênciadelaseradiferentedadevocês,eelaseramcapazesdecomportamentosquenão sãomais naturais aos homens destemundo. Em especial, elas possuíam poderesmágicos emvários graus; ao menos nós chamaríamos de magia, feitiçaria ou místico. Tal poder era comumnaquelaépoca,emboraalgumasdessascriaturaspossuíssempoderesmaioresdoqueoutras,assim,sua capacidade para o bem ou para o mal aumentava proporcionalmente. Todas essas criaturas,tanto boas quantomás, existiam simultaneamente nomundo, e porque a humanidade ainda nãohavia se desenvolvido além de uma forma de vida primitiva, existindo em uma localizaçãogeográfica restrita, omundo era apenas delas. Assim fora por séculos.Mas a existência conjuntadessas criaturas nunca foi harmoniosa. Viviam em um conflito contínuo, pois trabalhavam compropósitos opostos; os bons para preservar e os maus para destruir. De tempos em tempos, o

equilíbriodepoderentreosladosdoconflitomudava,havendoconstantealternânciadedomíniodo fluxodos acontecimentos,oranasmãosdobem,oranasmãosdomal.Adisputa entre eles seintensificou durante os anos até que, finalmente, depois de séculos sem qualquer resolução doconflito,oslíderesdecadaladouniramtodososqueosapoiavameaguerracomeçou.Essanãofoiumaguerraparecidacomoquevimosdesdeentão.NãofoiumaguerradamagnitudedasGrandesGuerras, pois estas empregaram um poder de proporções tão absurdas que os homens que outilizaram perderam totalmente o controle e foram envoltos no cataclismo resultante. Foi maisumaguerraemqueopodereaforçaforamusadoscomhabilidadeacadapasso,naqualascriaturasenvolvidasestavamfrenteafrenteembatalha,eviviamemorriamdeacordocomsuashabilidades.Era comoaGuerradasRaças, quedominouahistóriadonovomundo;nasGuerrasdasRaças, oLordeFeiticeiroperverteuopensamentodaquelesqueoserviam,virando-osunscontraosoutrosparaquenofinalpudesseescravizaredominaratodos.Masnessaguerranãohavianenhumailusãooumentiraqueconduzisseaquelesquelutavam.Obemeomalestavamempolosopostosdesdeocomeço; ninguém ficou de ladona neutralidade, pois não havia lugares neutros.Aquela era umaguerra travada para determinar o tipo e o modo da evolução da vida na terra em que eracombatida.Eraumaguerraqueiriadecidirseaterraseriapreservadaoucorrompida,parasempre.Cada ladodecidira de uma vez por todas conseguir a vitória. Para as criaturas domal, se fossemderrotadas, isso significaria o banimento; para as criaturas do bem, se perdessem, seria suaaniquilação.Assim, a guerra foi travada;umaguerra terrível emonstruosaque eu sequer tentareidescrever,poisnãohámotivoparaisso.Paraoqueprecisamosaqui,éimportanteapenasquevocêssaibamque osmalignos foramderrotados. Seu poder foi quebrado e foram forçados a recuar atéserem finalmente encurralados. Aqueles que os derrotaram usaram seus poderes para criar umaProibição, umamuralha de aprisionamento atrás da qual colocariam omal. Essa prisão não eradestemundooudequalqueroutro,masumburaconegrovazioe isoladoondenadaalémdomalteriapermissãoparaexistir.Nesseburacoomalfoibanido,lacradoalémdamuralhadaProibiçãoparasempre.AforçaportrásdaProibiçãoeraumaárvorefantásticachamadaEllcrys.AscriaturasdobemcriaramaEllcrysapartirdafontedevidadaterra,quechamavamdeFogossangue,edeseupróprio poder. Eles lhe deram vida para que, pormeio de sua presença nomundo, a Proibiçãopudessedurardepoisquehouvessempartido,bemdepoisqueomundopeloqualtinhamlutadotãodesesperadamente e por tanto tempo para preservar tivesse evoluído a ponto de ficarirreconhecível. A vida dessa árvore não podia ser medida por nenhum padrão conhecido. Masenquanto ela vivesse, a Proibição continuaria, e enquanto a Proibição continuasse, o malpermaneceriatrancadoemsuaprisão.

Ele recostou-se em sua cadeira, afastando o corpo alto da mesa com cuidado para aliviar osmúsculos doloridos, deslizando os braços para o colo. Os olhos escuros permaneciam fixos noshomensdovale.

—Acreditava-sequeaEllcrysviveriapara sempre;nãoporaquelesque lhederamavida,poissabiam que tudo morre no fim das contas, mas por aqueles que vieram depois, por todos quecuidaram,amaramehonraramessaárvorefantásticaquefoisuaprotetoraporséculosincontáveis.Paraeles,aEllcrystornou-seumsímbolodepermanência;sobreviveuàdestruiçãodovelhomundono holocausto das Grandes Guerras, sobreviveu às Guerras das Raças e ao poder do LordeFeiticeiro,sobreviveumesmodepoisquetudoqueexistiracomelamorrera;tudo,excetoaprópriaterra,eatéaterramudou,aopassoqueaEllcryspermaneceuconstante.

Eleparouporummomento.— Então a lenda cresceu. A Ellcrys viveria para sempre. Era eterna. Essa crença jamais

enfraqueceu.—Ergueuumpoucoorosto.—Atéagora.Agoraessacrençafoiestilhaçada.AEllcrysestá morrendo. A Proibição começou a se desfazer. Os malignos aprisionados começaram a selibertarmaisumavezeestãovoltandoparaestemundoquejáfoideles.

—Eessascriaturascausaramseusferimentos?—supôsWil.Allanonaquiesceu.—AlgunsjácaminhampelasQuatroTerras.Emboraeutivesseachadoqueminhapresençafosse

umsegredo,elesmedescobriram.Encontraram-meemParanor,dentrodaFortalezadosDruidas,equaseacabaramcomigo.

Flickpareceupreocupado.—Elesaindaestãoprocurandoporvocê?—Estão,mastenhomotivosparacrerquenãoserãotãorápidosemmeencontrardestavez.—Issonãome tranquilizamuito—grunhiuohomemdovale, lançandoumolharàportado

pequenocômodo,umpoucoapreensivo.Allanondeixouocomentáriopassar.—Vocêdeve se lembrar,Flick,quecertavezcontei avocêeaShea sobreahistóriadas raças.

Contei como todas as raças evoluíram da antiga raça humana depois da destruição trazida pelasGrandes Guerras; todas as raças, exceto uma. Os elfos. Eu disse a vocês que os elfos sempreexistiram.Vocêselembra?

Flickgrunhiu.—Lembro.Issoéalgoquevocênuncaexplicou.—Eufaleiqueahistóriadeleseraparaoutromomento.Eessemomentoéagora;emparte,ao

menos, emboraeunãoqueirameestender sobreahistóriadopovoélfico.Masháalgumascoisasquevocêsprecisamsaber.Nósfalamosapenasdeformaabstratasobreascriaturasquelutaramnessaguerra do bem contra omal, culminando na criação da Ellcrys. Precisamos identificá-las. Todasessas criaturas se tornaram parte dos antigos contos de fadas quando os homens emergiram daescuridãodabarbárieecomeçaramapovoareaconstruiromundo.Eramcriaturasdemagia,comoeu disse, tanto grande quanto pequena. Eram de diversas espécies; algumas todas boas, algumastodas más, e algumas em que os indivíduos se dividiram e seguiram em caminhos opostos. Elestinham nomes que você vai reconhecer, como fadas, duendes, goblins, aparições e similares. Asnovasraças,emborativessemoshumanoscomoancestrais,foramnomeadasdeacordocomquatrodasmaisnumerosasemelhordocumentadascriaturasdessassupostaslendas:anões,gnomos,trollse elfos. Exceto, é claro, pelo fato de os elfos serem diferentes. São diferentes porque não sãomeramenteumalendarenascida.Sãoa lendaquesobreviveu.Opovoélficodescendedascriaturasfeéricasqueexistiamnovelhomundo.

— Agora, espere um pouco— cortou Flick logo. — Você quer dizer que o povo élfico é omesmopovoélficodequeasantigaslendasfalam,querealmenteexistiamelfosnovelhomundo?

— Certamente havia elfos no velhomundo, assim como havia trolls, anões e todas as outrascriaturasqueoriginaramaslendas.Aúnicadiferençaéquetodasasoutrassumiramdomundoporséculos, enquanto os elfos permaneceram. Eles mudaram, claro; evoluíram consideravelmente.Foramforçadosaseadaptar.

Flickparecianãoentenderumapalavradoqueestavaescutando.—Haviaelfosnovelhomundo?—repetiuele,incrédulo.—Issonãoépossível.—Claroqueépossível—respondeuoDruidacalmamente.—Bem,comoelessobreviveramàsGrandesGuerras?—ComoohomemsobreviveuàsGrandesGuerras?

—Masasantigashistóriasfalamsobreoshomens...nãofazemumamençãosequeraoselfos!—exclamou o homemdo vale.—Os elfos são um povo de contos de fadas. Se realmente existiramelfosnovelhomundo,ondeelesestavam?

—Ondesempreestiveram.Oshomenséquenãoconseguiamvê-los.—Agoravocêestámedizendoqueoselfoseraminvisíveis?—Flickjogouasmãosparacima.—

Eunãoacreditoemnadadisso!—Você também não acreditou em nada do que eu disse sobre Shea e a Espada de Shannara

também,sebemmelembro—apontouAllanoncomomaislevetraçodeumsorrisonoslábios.—Não consigo relacionar isso ao fato de os elfos precisaremdaminha ajuda— interrompeu

Wil,impedindooutrocomentárioexplosivodeFlick.ODruidaassentiu.—Tentareiexplicar, seFlick forpacientecomigosómaisummomento.Ahistóriadoselfosé

importantepara estadiscussãopor apenasummotivo.Foramos elfosque conceberama ideiadaEllcrysequeatrouxeramàvida.Foramoselfosquelhederamvidaedepoiscuidaramdelaatravésdas eras. Sua proteção e bem-estar eram confiados a uma ordem de jovens elfos chamadosEscolhidos.Porumúnicoano,osEscolhidos ficamaserviçodaárvore, sua tarefaéassegurarquesejadevidamentetratada.Aofinaldesseano,sãosubstituídos.Foiassimdesdeacriaçãodaárvore.Umúnicoanodeserviço.OsEscolhidossãoreverenciadosehonradosentreopovoélfico;poucossão os selecionados para servir, e aqueles que o são, garantem uma posição de grande estima nacultura élfica. Tudo isso nos traz para o presente. Como eu lhes disse, a Ellcrys está morrendo.Algunsdiasatrás,eladisseissoaosEscolhidos.Elaconseguefazerissoporserconscienteepossuiracapacidadedesecomunicar.Elalhesrevelouquesuamorteerainevitáveleseaproximava.Reveloutambém o que as lendas élficas previram, o que os primeiros elfos sabiam, mas que as geraçõesposterioresdeelfosquaseesqueceram;que,apesardeaEllcrysprecisarmorrerassimcomotodasasoutrascriaturasvivas,aocontráriodelas,elapoderenascer.Noentanto,seurenascimentodependemuitodosesforçosdosEscolhidos.Umdelesseráchamadoalevarasementeparaprocurarafontedevidadaterra;oFogossangue.ApenasumdosEscolhidosnaativapodefazer isso.Ela lhesdisseondeoFogossanguepode ser encontrado e pediuque se preparassemparaprocurá-lo.—Ele fezumapausa.—Masantesqueissopudesseserfeito,algunsdosseresmalignospresosnaProibiçãoselibertaram,sentindoqueamuralhaestavaenfraquecidaobastanteparatanto,conformeaforçadaEllcryscomeçavaadiminuir.UmdelesentrounacidadeélficadeArborlon,onda ficaaEllcrys,ematou os Escolhidos que encontrou ali, acreditando que com suasmortes acabaria com todas aschances do renascimento. Cheguei tarde demais para impedir isso. Porém, falei com a Ellcrys edescobriatravésdelaqueumdosEscolhidosaindaestávivo;umajovemquenãoestavadentrodacidadequandoosoutrosforammortos.SeunomeéAmberle.EudeixeiArborlonàprocuradela.—Eleseinclinouparafrentedenovo.—Masosseresmalignostambémdescobriramarespeitodela.Játentarammeimpedirumavezdealcançá-laequaseconseguiram.Certamentetentarãodenovosetiveremaoportunidade.Masnãosabemondepodemencontrá-laou,pelomenosporenquanto,onde estou. Se eu for rápido o bastante, devo ser capaz de encontrá-la e levá-la a salvo paraArborlonantesqueelesmedescubramdenovo.

— Então acho que você está perdendo um tempo precioso conversando conosco— declarouFlickcomfirmeza.—Vocêdeveriaestaracaminho.

ODruidaoignorou,emboraseurostotenhaficadomaissombrio.— Mesmo que eu devolva Amberle para Arborlon, ainda há outros problemas a serem

resolvidos.ComoaúltimadosEscolhidos,cabeaelacarregarasementedaEllcrysnaprocurapelo

Fogossangue. Ninguém, eu incluso, sabe exatamente onde o Fogo está. A Ellcrys sabia. Mas omundo tal qual ela lembra se foi. Ela deu aos elfos um nome, Sepulcro. É um nome que nãosignifica nada para eles, um nome que vem do velho mundo. Quando deixei Arborlon, viajeiprimeiroparaParanoràprocuradashistóriasdosDruidas, compiladaspeloConselhodepoisdasGrandesGuerras; histórias que registram osmistérios do velhomundo. Lendo esses volumes, fuicapazdedescobriraregiãoondeestáoSepulcro.Porém,alocalizaçãoexatadoFogossangueaindaprecisaserdescobertaporaquelesqueirãoprocurá-lo.

Ede repenteWilOhmsfordentendeuporqueAllanonqueriaqueeleoacompanhasseparaasTerrasdoOeste.

Entendeuemesmoassimnãoconseguiuacreditar.—Amberlenãopode irsozinhanessabusca—continuouAllanon.—Aregiãoparaaqualela

deveiréperigosa,perigosademaisparaumajovemelfaviajarsozinha.Seráumajornadadifícil,nomínimo.AquelesqueatravessaramaProibiçãocontinuarãoaprocurá-la;seaencontrarem,elanãoteráproteçãocontraeles.Aelfanãodeveser feridade jeitonenhum.Éaúltimaesperançadeseupovo. Se a Ellcrys não renascer, a Proibição finalmente ruirá por completo e o mal preso pelaárvore será solto novamente sobre a terra. Haverá uma guerra contra os elfos que eles não têmcomovencer.Seforemdestruídos,omaliráparaasoutrasterrastambém.Ficarámaisforte,comoédanaturezadeseresassim.Nofinal,asraçasserãodizimadas.

—Mas você estará lá para ajudá-la—Wil começou a dizer, procurando um jeito de sair daarmadilhaquesentiasefecharaoseuredor.

—Nãopodereiestarláparaajudar—interrompeuAllanondepressa.Houveumlongosilêncio.Allanonestendeuasmãossobreamesa.—Tenho umbommotivo para isso,WilOhmsford. Eu disse a vocês que omal já começou a

atravessar a muralha da Proibição. A Ellcrys ficará cada vez mais fraca; conforme isso foracontecendo, as criaturas que ela mantém prisioneiras se tornarão mais ousadas. Continuarão aforçaramuralhadaProibição.Continuarãoaatravessá-la.Emalgummomento, irãodespedaçá-lacompletamente.Quandoissoacontecer,irãosereunircontraanaçãoélficaetentardestruí-la.IssopodemuitobemacontecerantesdeoFogossangueserencontrado.Tambémexisteapossibilidadedeque jamaisconsigamencontraroFogossangueouqueoencontremtardedemais.Emqualquerumdessescasos,opovoélficodeveestarpreparadopararesistirelutar.Masalgumasdascriaturaspresas na Proibição são muito poderosas; pelo menos uma delas temmagia quase tão poderosaquanto a minha. Os elfos não terão defesa contra um poder como esse. Sua própria magia foiperdida.OsDruidasqueumdiaosajudaramseforam.Souoúnicoqueresta.SeeuosdeixareforcomAmberle, eles ficarão indefesos.Não posso fazer isso. Preciso ajudá-los da forma que puder.Porém,alguémprecisaircomAmberle;alguémquetenhapoderobastantepararesistiraomalqueirápersegui-la,alguémemquempossamosconfiarparafazertodoopossívelparaprotegê-la.Essealguémévocê.

—Doquevocêestáfalando?—questionouFlick,exasperado.—QueajudaWilpodedarcontracriaturasassim,criaturasquequaseconseguiramacabarcomvocê?VocênãopretendequeeleuseaEspadadeShannara,pretende?

Allanonsacudiuacabeça.— O poder da Espada funciona apenas contra ilusões. O mal que enfrentamos é muito real,

muitotangível.AEspadanãotempodercontraisso.Flickquaseselevantou.—Eentão?

Os olhos do Druida estavam sombrios e repletos de presságios, e Wil sentiu seu coração seapertar.

—AsPedrasÉlficas.Flickficouemchoque.—AsPedrasÉlficas!MaselasestãocomShea.Wilcolocouamãosobreobraçodooutro.—Não,tioFlick.Euestoucomelas.—Eleenfiouaoutramãodentrodatúnicaeretirouuma

bolsinhadecouro.—VovômedeuquandodeixeioValeSombrioparaviratéStorlock.Eledisseque não precisavamais delas e que achava que deviam pertencer amim.— Sua voz tremia.— Éestranho; eu as peguei apenas para agradá-lo; não porque pensei que jamais fosse precisar delas.Nuncasequertentei.

— Não adiantaria de nada, Wil. — Flick virou-se apressadamente para Allanon. — Ele sabe.NinguémalémdeSheapodeusarasPedrasÉlficas.Sãoinúteisparaqualqueroutrapessoa.

AexpressãodeAllanonnãomudou.—Issonãoécompletamenteverdade,Flick.Elassomentepodemserusadasporalguémqueas

recebeupelalivrevontadedequemasdeu.EuasdeiparaSheausá-lasquandoaviseiquefugissedovaleparaCulhaven.Elasforamdeleatéeledá-lasaWil.Agora,pertencemaele.OpoderdelasédeWileelepodeinvocá-las,assimcomojáfoideShea.

Flickpareciadesesperado.—Você pode devolvê-las— insistiu, virando-se de novo paraWil, vendo a confusão em seus

olhos.—Oupodedá-lasparaoutrapessoa,paraqualquerum.Nãoprecisaficarcomelas.Vocênãoprecisaseenvolvernessaloucura!

Allanonsacudiuacabeça.—Flick,elejáestáenvolvido.—Mas e osmeusplanos deme tornar umCurandeiro?— interpelouWil, de repente.—Eo

tempoeoesforçoquecoloqueinisso?VirarumCurandeiroé tudooqueeu semprequis e estoufinalmenteacaminhodeconseguir.Esperamqueeusimplesmentedesistadisso?

—Sevocêserecusaraajudarnesseassunto,comopodeesperarsetornarumCurandeiro?—AvozdoDruida tornou-seáspera.—UmCurandeirodevedar todaa ajudaquepuder, semprequepuder,damaneiraquepuder.Nãoéalgoqueelepossaescolher.Sevocêserecusarairetudooqueeu previ acontecer, como estou certo de que vai acontecer, como você vai conviver consigo,sabendoquesequertentouimpedir?

Wilenrubesceu.—Masquandopodereiretornar?—Nãosei.Podedemorarmuitotempo.—Emesmoqueeuvácomvocê,comopodetercertezadequeopoderdasPedrasÉlficasvaiser

forteobastanteparaprotegeressagarota?OrostodeAllanonsefechou,sombrioemisterioso.—Não tenho.Um poder como o das Pedras Élficas tira a força de seu portador. Shea nunca

testouoslimitesdelas;vocêpodeterquechegaraisso.—Vocênãopodemedarnenhumagarantia,então?—Avozdohomemdovalebaixaraparaum

sussurro.—Nenhuma.—OolhardoDruidanãoodeixouporuminstante.—Mesmoassim,vocêprecisa

vir.Wildeixou-secairdevoltanacadeira,chocado.

—Parecequenãotenhoescolha.—Claro que você tem!— afirmouFlick, zangado.—Você vai desistir de tudo que construiu

semmotivoplausível,senãoofatodeAllanonterditoquevocêdevefazê-lo?Vocêirácomelesóporcausadisso?

Wilergueuosolhos.—Nãofoioquevocêfez,tioFlick,vocêemeuavô,paraprocuraraEspadadeShannara?Flickhesitou,inseguro;esticouobraçoeapertouasmãosdeseusobrinhocomforça.—Você está sendoprecipitado,Wil.Euo avisei sobreAllanon.Agora,meescute.Euenxergo

issocommaisclarezadoquevocê.HáalgoocultoportrásdaspalavrasdoDruida.Possosentir.—Sua voz apertou-se e as rugas no rosto de barba grisalha acentuaram-se aindamais.—Temoporvocê.Sófalodessejeitoporquetenhomedo.Vocêécomosefossemeufilho;nãoqueroperdê-lo.

—Eusei—sussurrouWil.—Eusei.Flickendireitou-se.—Entãonãová.DeixequeAllanonencontreoutro.ODruidabalançouacabeça.—Nãoposso,Flick.Nãoexisteoutro.SóWil.—Seusolhosprocuraramosdojovemnovamente.

—Vocêdevevir.—Deixequeeuváno lugardele—ofereceuFlickderepente,comumtoquededesesperona

voz. — Wil pode me dar as Pedras Élficas, e eu posso cuidar da menina elfa. Allanon, nós jáviajamosjuntosantes...

MasoDruidajáestavasacudindoacabeçanegativamente.— Flick, você não pode vir — disse, gentilmente. — Seu coração é maior do que sua força,

homemdo vale.A jornadaquenos aguarda será longa e dura, e precisa ser feita por umhomemmaisjovem.—Fezumapausa.—Nossasviagensjuntosacabaram,Flick.

Houveumlongosilêncio,eentãooDruidavirou-senovamenteparaWilOhmsford,esperando.Ohomemdovaleolhouparaseutio.Elesseencararamsemdizernadaporuminstante,osolhoscinzentos de Flick incertos, os deWil agora firmes. Flick viu que a decisão fora tomada. Quaseimperceptivelmente,assentiu.

—Vocêdeve fazeroque acha certo— resmungou,deixando sua relutância aparente emcadapalavra.

Wilvirou-separaAllanon.—Voucomvocê.

CapítuloIX

Bemcedonamanhã seguinte,Allanon foi atéWilOhmsfordparaavisarquedeixariamStorlockimediatamente.Comorostosombrioesério,oDruidaapareceunaportadacabanadojovemsemaviso e, emboraWil estivesse pensando em argumentar contra uma partida tão abrupta, algo norostoenavozdooutrohomemoconvenceudequenãodeveriafazê-lo.Nanoiteanterior,quandohaviam se separado, não houvera qualquer urgência no comportamento do Druida; naqueleinstante, claramentehavia.Oquequer quehouvessepersuadidoAllanon a tomar tal decisão, eraconvincente.Semdizerumapalavra,ohomemdovalearrumouseuspoucospertencese fechouaportadacabanaatrásdesi,seguindooDruida.

Choviamaisumavez,sinalizandoaaproximaçãodeumatempestadevindadonoroeste,eocéudoamanhecerestavapesadoenublado.Allanonguiouo jovempelaestradaenlameada,suafiguraalta enrolada no manto negro, a cabeça encapuzada levemente inclinada contra o vento queganhava força. Um punhado de Armazenadores vestidos de branco esperava para recebê-los nosdegraus do centro de repouso, com um pequeno embrulho paraWil e provisões para a viagem.Artaq estava selado e sacudia a cabeça, impaciente, e Allanon montou o cavalo negroimediatamente; a cautela em seus movimentos indicava que seus ferimentos não haviam sidototalmentecurados.DeramaWilumcavalocastradochamadoSpitter,eelejáestavacomumpénoestriboquandoFlickapareceucorrendo,orostobarbudomolhadoevermelho.Apressadamente,otioopuxoudevoltaparaoabrigodavarandadocentroderepouso.

—Elesacabaramdemecontar—ofegouele,limpandoachuvadosolhos.—Estousurpresoporteremseimportado!—OlhouzangadoparaAllanon.—Énecessáriopartirtãoapressadamente?

Wilassentiulentamente.—Achoquealgodevetertornadoissonecessário.FrustraçãoepreocupaçãosurgiramnosolhosdeFlick.— Não é tarde demais para repensar sua decisão a respeito de tudo isso — sussurrou

asperamente, e teria ditomais, porémWil já sacudia a cabeça.—Muito bem.Vou contar o queaconteceu ao seu avô,mas tenho certeza de que ele não vai gostar dissomais do que eu. Tenhacuidado,Wil.Lembre-sedoqueeudissesobretodostermosnossaslimitações.

Wil assentiu. Despediram-se rápida e secamente, quase como se estivessem com medo deexpressar o que realmente sentiam naquele momento, os rostos abatidos e sérios ao trocaremolhares desconfortáveis e se abraçarem, apressados. Logo, Allanon e ele afastaram-se cavalgando.Flick, osArmazenadores e a aldeia tornaram-se sombras escuras que sumiramna névoa cinza dasflorestasdasTerrasdoLesteedespareceramdevista.

ODruidaeojovemcavalgaramnadireçãooestedeStorlockatéoslimitesdaplaníciedeRabb,edepoisviraramparaosul.AllanonparouapenasosuficienteparadizeraWilqueaprimeirapartedajornadaoslevariaparabaixodoRioPrateado,atéumapequenaaldeianafronteiraocidentaldoBaixoAnar chamadaRefúgioFirme.EranoRefúgioFirmeque encontrariamAmberle.ODruidanãoofereceumaisnenhumaexplicaçãosobreoassunto, eWilnãoperguntou.Achuvacaía sobreeles em cascata conforme a tempestade piorava; mantendo-se dentro dos limites da floresta,

inclinaramacabeçasobreospescoçosdoscavalosecavalgaramsemconversar.Enquanto viajavam, os pensamentos de Wil se voltaram para os acontecimentos da noite

anterior.Mesmoagora,nãotinhamuitacertezadomotivoporquedecidiraircomoDruida.Eissoo incomodava. Certamente deveria ser capaz de explicar a razão de ter concordado com umaviagemtãoimprovável—aomenosparasi,senãoparamaisninguém.Porém,nãoera.Tiveratempoobastanteparapensarsobresuasrazõesparatomaraqueladecisãoe,defato,nãopensaraemmaisnada.Pararparapensardeveria ter ajudadoa lançaruma luz sobre suasatitudes;nãoajudou.Emvez disso, tinha uma sensação persistente de confusão.Tudoparecia se embolar em suamente—todasasracionalizaçõesdisparatadaseincompletas,todasasemoçõesqueseinterligavam.Elasnãose resolveriam sozinhas; não se organizariam por conta própria. Elas simplesmente circulavamcomoovelhasperdidaseWilcorriaatrásdelassemesperança.

Queria acreditarquedecidira irporqueprecisavamdele. Se tudooqueAllanoncontara fosseverdade—eelesentiaqueera,apesardasdúvidasaparentesdeFlick—entãoeleseriadegrandeajudaparaopovoélficoe,emespecial,paraajovemAmberle.Masaquemestavaenganando?Nãotinhanem ideia se conseguiriausar asPedrasÉlficasque seu avô lhe confiara.E seopoderdelasestivesse além de seu alcance? E se Allanon estivesse errado ao pensar que as Pedras Élficaspudessemserpassadasparaele?Tudoerasuposição.Ofatoeraqueeletomaraumadecisãomuitoimpulsivaeagoraprecisavaconvivercomela.Poroutro lado,a impulsividadedadecisãonão lhetirava necessariamente o mérito. Se ele possuía uma forma de ajudar os elfos, deveria ajudá-los.Deveriaaomenostentar.Alémdomais,seuavôteriaido;sabiadissocomamesmacertezacomquesabiaqualqueroutracoisa.SheaOhmsfordteriaidocasoAllanontivessepedidoaele,assimcomoforaprocuraraEspadadeShannara.Wilnãopodiafazerpormenos.

Inspirou fundo.Sim, tomaraadecisãocertaeacreditava ter tomado taldecisãopelosmotivoscertos, embora parecessem embolados e fora de ordem naquele momento. O que o preocupavamais, percebeu subitamente, não tinha nada a ver com a decisão em si, ou com as razõesrelacionadasataldecisão.TinhaavercomAllanon.WilqueriaacreditarqueadecisãodeircomoDruidaforasua.Mesmoassim,quantomaispensavanoassunto,maiscertoficavadequeadecisãonão fora realmente sua. Fora de Allanon. Ah, falara as palavras como se fossem dele, ditas combravura,ignorandoosavisosdeseutio.Porém,sabiaqueoDruidaforacapazdepreverexatamenteoqueseriaprecisoparaconvencerWiladizeraquelaspalavras,edirecionaraaconversadeacordo.Dealgumjeito,elesouberaquaisseriamasreaçõesdojovem,quaisseriamasdeFlick,comoosdoisiriam interagir e como seus comentários iriam influenciá-los. Ele soubera disso tudo e usara esseconhecimento.SheaOhmsfordumavezdisseraaWilqueAllanontinhaacapacidadelerasmentesdosoutroshomens,deconhecerseuspensamentos.Wilagoraentendiaexatamentesobreoqueseuavôquiseradizer.

Eassimsecomprometera.Nãoeraalgoquepudessedesfazer,mesmoquequisesse,enãoqueria.Entretanto,daliemdianteestariaprecavidocontraassutismanipulaçõesdoDruida.Atéondelhefossepossível,olhariaalémdaspalavrasedasaçõesdograndalhãoparaenxergarasmotivaçõesportrásdelas,paraenxergardireitoparaondeestava sendo levado.WilOhmsfordnãoeraobobodeninguém.Cuidaradesiduranteváriosanos,enãoplanejavadeixardefazê-lo.DeviatercautelaemrelaçãoaoDruida.Confiarianele,masnãocegamenteenãosempensarbem.TalvezpudesseajudaroselfoseajovemAmberle;nãodescartavaessapossibilidadesimplesmentepelamaneiracomoforamanipuladoacooperar.Porém,teriaocuidadodeescolhersuaformadeajudá-los.Teriaocuidadodedecidirporsisóquaisinteresseslevariaemconsideração.Nãoaceitarianadadeimediato.

Ergueuorosto,semrevelarsuasemoções,eespiouatravésdachuvaafiguraescuraàsuafrente

—Allanon,oúltimodosDruidas,um serquevinhadeoutra era, cujospoderesdiminuíam tudoconhecido pelo mundo atual. E Wil devia tanto confiar nele quanto não confiar. Sentiu-seprofundamenteconsternadoporuminstante.Noquehaviasemetido?TalvezFlickestivessecerto,afinal.Talveztivessesidomelhorpensarumpoucomaisnaqueladecisão.Porém,eratardedemaispara isso. Tarde demais também para pensar a respeito. Sacudiu a cabeça. Não havia sentido emficarremoendoaquiloaindamais.Fariamelhorsedesviasseseuspensamentosparaoutradireção.

Passouorestantedodiatentandofazê-lo,semsucesso.Achuvafoi-setornandoumagaroaconformeodiaseestendia,paraenfimacabartotalmenteno

cinzafriodoiníciodenoite.Nuvensdetempestadecontinuavamacobrirocéuconformeanoitepassavadecinzaparapreto,eoarseenchiacomanévoaquepercorriaoslimitesdaflorestacomoumacriançaperdida.Allanondirigiu-separaoabrigodasárvoresmaioreseelesacamparamnumapequena clareira a vários quilômetros da fronteira daRabb.Atrás deles, sobre o teto da floresta,encontrava-seamuralhaescuradaWolfsktaag,poucomaisdoqueumtommaisprofundodenegromarcado na noite. Apesar da umidade, conseguiram recolher madeira seca o suficiente paraacenderumapequenafogueira,easchamasconferiramalgumcaloraofrionoturno.Osmantosdeviagemforampenduradosemvaraisesticadosacimadacabeçadeleseoscavalospresosporperto.

Consumiramumarefeiçãoraladecarnefria,frutasenozesquehaviamembaladoantesdedeixarStorlock, trocando apenas umas poucas palavras casuais enquanto comiam. O Druida sentou-senum silêncio reflexivo, distraído nos próprios pensamentos, igualzinho havia estado desde quedeixaramaaldeia,eaparentementedesinteressadoemmanterqualquertipodeconversa.MasWilestavadeterminadoadescobrirmaissobreoqueencontrariaenãotinhaaintençãodeesperarmaisparacomeçarafalararespeito.Quandoterminaramarefeição,eleseaproximouumpoucomaisdafogueira,certificando-sedequeomovimentochamasseaatençãodeAllanon.

—Podemos conversar um pouco?— perguntou, cuidadosamente,mantendo na lembrança asmuitashistóriasqueoavôcontavasobreotemperamentoinstáveldaquelehomem.

ODruidaoencarou,inexpressivo,poruminstante,emseguidaassentiu.—Vocêpodeme contarmais sobre ahistóriadopovo élfico?—Wildecidiraque a conversa

deveriacomeçarporali.Allanonsorriulevemente.—Muitobem.Oquevocêgostariadesaber,WilOhmsford?Ojovemhesitou.—Nanoitepassada,vocênosdissequeemboraashistóriasdovelhomundonãomencionassem

opovoélfico foradoscontosde fadaedo folclore, eles eramreais, assimcomooshomens.Vocêdissequeelesestavamlá,masoshumanosnãopodiamvê-los.Eunãoentendi.

—Não?—Ohomemaltopareceudivertir-se.—Bem,entãovocêdevereceberumaexplicação.Resumidamente,oselfossempre foramcriaturasda floresta;porém, foramaindamaisnos temposantes das Grandes Guerras. Naquela época, conforme eu disse antes, eram criaturas de magia.Possuíamahabilidadedesecamuflarmuitobemaoambiente,comosefossemumarbustoouumaplantapelosquaisvocêpudessepassarmilharesdevezessemperceber.Humanosnãopodiamvê-losporquenãosabiamcomoprocurá-los.

—Maselesnãoeraminvisíveis?—Claroquenão.—Apenasdifíceisdeseremvistos?—Sim,sim.—HouveumtoquedeirritaçãonarespostadoDruida.—Masporquenãoédifícilvê-losagora?

Allanonendireitou-se.—Vocênãoestáouvindo.Novelhomundo,oselfoseramcriaturasdamagia,assimcomotodas

as criaturas feéricas. Não sãomais criaturasmágicas. São apenas homens, assim como você. Elesperderamsuamagia.

—Comoissoaconteceu?—Wilrepousouoscotovelosnosjoelhoseapoiouoqueixonasmãos,maisoumenoscomofazumacriançacuriosa.

—Nãoéfácildeexplicar—avisouoDruida.—Masjáviquevocênãovaificarsatisfeitoseeunãotentar,entãoireifazê-lo.—Inclinou-separafrente.—DepoisdacriaçãodaEllcrys,depoisdobanimentodascriaturasdamagiamalignadaterra,oselfoseseus irmãosfeéricossedistanciarammaisumavez.Eraapenasnaturalqueissoacontecesse,jáque,aprincípio,tinhamseunidosomentecomopropósitodederrotar seu inimigoemcomume,assimqueconseguiram,haviapoucoparamantê-los unidos. Além de sua preocupação generalizada em preservar a terra como lar, nãopossuíam quase nada em comum.Cada espécie de criatura tinha seu própriomodo de vida, seuspróprios hábitos, seus interesses. Elfos, anões, duendes, gnomos, trolls, bruxas e todo o restante,eramtãodiferentesentresiquantosãoasferasdaflorestadospeixesdomar.AHumanidadeaindanão havia começado a emergir de sua existência primitiva, e não o faria ainda pormais algumascentenasdeanos.Ascriaturasfeéricasdavampoucaatençãoaoshumanos,erealmenteparecianãohavermuitosmotivos para isso.Afinal, naquele ponto no tempo os humanos eram simplesmenteumaformamaiselevadadevidaanimal,possuindoumainteligêncianãomuitomaiordoqueadeoutrosanimais,porémcommenosinstintos.Oselfoseseusiguaisnãopreviramainfluênciaqueoshumanosviriamaternodesenvolvimentosobreaterra.—ODruidafezumapausa.—Eraalgoquepoderiamterprevisto,setivessemprestadomaisatençãoàsdiferençasentesieahumanidade.Duasdiferenças eram particularmente importantes.Os elfos e os seus não procriavam rapidamente; oshumanos sim. Os elfos, por exemplo, eram um dos povos feéricos mais populosos, porém suaslongas expectativas de vida resultavam em menos nascimentos. Muitas outras criaturas feéricastinhamfilhosumavezacadacentenasdeanos.Masoshumanos tinhamnascimentos frequentesemuitos na mesma família, assim sua população crescia rapidamente. No começo, as criaturasmágicaserammuitosuperioresemnúmeroaoshumanos.Comopassardemilanos,essasituaçãosereverteudramaticamente.Assim,apopulaçãohumanacomeçoua seexpandir constantemente, aopasso que a população feérica passou a diminuir; mas falarei disso num instante. A segundadiferença entre os elfos e a humanidade tem a ver com a habilidade em se adaptar, ou a suaausência. Os elfos eram criaturas das florestas, raramente deixavam o abrigo de suas matas.Aconteciaomesmocomamaioriadasoutrasraças.Cadaumaresidiaemumadeterminadaregiãogeográfica,umterrenocuidadosamentedelimitado.Sempreforaassim.Algunsviviamnasflorestas,outrosnosriosemares,algunsnasmontanhas,algunsnaspradarias.Adaptavamseumododevidaaoterrenoquelhesserviadelar;nãopodiamviverenãoviveriamemoutrolugar.Masoshumanoserammaisadaptáveis;moravamemqualquer lugar.Florestas,rios,montanhas,planícies; tomaramtudo. Assim, sua expansão quando sua população cresceu veio com naturalidade e facilidade.Adaptavam-se a qualquer mudança no ambiente. Os elfos e seus semelhantes resistiam a todamudança.—Allanonfezmaisumapausaesorriudeleve.—Houveumaépoca,WilOhmsford,emqueavidanovelhomundoeramuitoparecidacomavidaqueseconhecehoje;quandooshumanosviviametrabalhavamdaformacomoasraçasfazemnomundodehoje.Issoosurpreende?

Wilassentiu.—Umpouco,euacho.ODruidasacudiuacabeça.

—Houveumtempoassim.Foiquandooselfosdeveriamteraparecidoeseunidoaoshumanospara formaromundo.Masnãoo fizeram,nemelesnemseus semelhantes.Emvezdisso,optaramporpermanecerescondidosdentrodesuasflorestas,apenasobservando,aindaacreditandoquesuaexistência não seria afetada pelo desenvolvimento da humanidade. Não viam ameaça ali; oshumanos não possuíammagia e seus modos não eram destrutivos; não na época. Então os elfosmantiveramsuapolíticadeisolamento,achandotolamentequesempreseriaassim.Foisuaruína.Apopulação humana continuou a se expandir e a se desenvolver. Conforme o tempo passava,descobriram sobre os elfos e seus semelhantes. Mas como as criaturas feéricas escolheram seesconder,ganharamadesconfiançadoshumanos.Eramvistascomocriaturasquedavamazar,queespiavam e tramavam contra outras, criaturas que cometiam atos maliciosos e cujo principalpassatempo era descobrir novas formas de tornar a vida dos humanos trabalhadoresmais difícil.Havia alguma verdade nessas acusações, já que algumas poucas dessas criaturas realmente sedeliciavam atormentando humanos com pequenos encantamentos, mas, na maioria dos casos, afama não era merecida. De qualquer forma, os elfos e seus semelhantes escolheram ignorar issotudo.Aatitudedahumanidadeemrelaçãoaelesnãoos interessava.Suaúnicapreocupaçãoeraapreservaçãoeproteçãodaterraedascoisasvivasnela,eissopodiamrealizarmuitobem,apesardossentimentos ruins que os humanos tinham em relação a eles. Então até mesmo essa situaçãocomeçouamudar.Oshumanoscontinuaramapovoaraterracomrapidezcrescente,aumentando,expandindo, agora construindo cidades e fortalezas, agora navegando pelos mares em busca denovos territórios, agora fazendo a imensidão selvagem ao seu redor recuar. Pela primeira vezcomeçaram a afetar a natureza da terra seriamente, modificando regiões inteiras com suasnecessidadesdehabitaçãoeconsumo.Conformeapopulaçãohumanacortavaasárvoresearbustos,os elfos eram forçados a caminhar cada vez mais para dentro das florestas. Todas as criaturasfeéricasviramseus laresseremcercadosporessaexpansãoatéque,por fim,nãorestousequerumlarparaalguns.

—Maselesnãoresistiramaessainvasão?—interrompeuWil,derepente.—Jáeratardedemaisparaisso—respondeuAllanoncomumsorrisoamargo.—Aessaaltura,

muitas das criaturas feéricas haviam sido extintas, algumas por não conseguirem se reproduzir osuficiente,outrasporfalharememseadaptaraoambienteemmutação.Aquelesquepermaneceramnão eram mais capazes de se unir como costumavam fazer; haviam se passado centenas de anosdesde a guerra contra as criaturas mágicas malignas, por isso as criaturas feéricas tinham seespalhadoportodaaterraeperdendocontatoumascomasoutras.Opiordetudo,nãopossuíammaissuamágica.Quandoamagiamalignafloresceunomundo,houveanecessidadedamagiaboaparacombatê-la.Masquandoessemalfoibanido,anecessidadedamagiaboaacabou.Ascriaturasfeéricas quase pararam de usá-la. Conforme o tempo foi se passando, muito foi esquecidototalmente.Sereshumanosnãousavamnenhumamagiasubstancial,entãooselfoseosdemaisnãoviam mais necessidade nas magias poderosas que tinham usado para derrotar suas contrapartesmalignas. Quando perceberam a necessidade de usá-las de novo, já a tinham perdido quasetotalmente, exceto por uma pequena parte. Assim, a resistência delas à expansão da populaçãohumanaemseuslaresfoimuitoenfraquecida.Nocomeço,lutarammuito,usandotodoopoderqueaindapossuíamparaimpedirosacontecimentos.Nãolhesvaleudenada.Haviahumanosdemaisepoucosdeles.Amagiadeles erapouco efetiva.Deu-lhespequenas vitórias, breves respiros enadamais. Foram simplesmente esmagados no fim, corridos de suas casas para encontraremoutras oupara morrer; derrotados em última instância pelas ciências e tecnologias contra as quais nãotinhamnenhumadefesadeverdade.

—Eoselfos?Oqueaconteceucomeles?—perguntouWilemvozbaixa.—Elesaprenderamasobreviver.Suapopulaçãodiminuiu,masnãoseextinguiramcomomuitos

dos outros. Permaneceram em suas florestas, mudando-se cada vez mais para dentro, agoracompletamente escondidos dos humanos que vinham ocupar quase a terra inteira. Assistiram,horrorizados, à destruição que era executada em seu mundo. Assistiram-no ser privado de seusrecursosevidaanimal.Assistiramaoequilíbrioecológicosertotaleirreversivelmentedesajustado.Assistiramaoshumanos guerrearem entre si incessantemente enquantoos governos lutavamparaconseguir dominar uns aos outros.Assistiram, esperaram e se preparam; pois viram como aquilotudoterminaria.

—AsGrandesGuerras.—OhomemdoValeSombrioantecipou-seaoDruida.— As Grandes Guerras — aquiesceu Allanon. — Os elfos previram o acontecimento de tais

horrores.Usaramapoucamagiaque aindapossuíamnumesforçopara sepreservareme a algunstesouros do passado cuidadosamente escolhidos, entre eles a Ellcrys, do holocausto que seaproximava. Foi um esforço notável e permitiu-lhes sobreviver. A maioria das outras criaturasfeéricasfoidestruída.Umpequenonúmerodehumanossobrevivera,emboranãodevidoàprópriaprevenção. Sobreviveram porque eram tantos em tantas partes diferentes do mundo que oholocaustosimplesmentedeixoualgunsde lado.Mastudoqueoshumanoshaviamconstruídofoidestruído. Toda sua vasta civilização foi apagada. O velhomundo foi reduzido a uma imensidãoárida e desolada. Por centenas de anos depois, toda a vida ficou presa numa luta selvagem pelasobrevivência.Aspoucas criaturas a permaneceremvivasnessenovomundo foramobrigadas a seadaptar ao ambiente primitivo, um ambiente no qual a natureza se alterara além doreconhecimento.Ahumanidademudouparasempre.Davelharaçahumanasurgiramquatronovasraças distintas: homens, anões, gnomos e trolls. Acreditava-se, e muitos ainda acreditam, que oselfos eram uma quinta raça nascida no holocausto. Para as novas raças, era o começo da vida.Amaiorpartedahistóriadovelhomundofoirapidamenteesquecida;amaioriadosantigoscostumessumiu.Os elfosmantiverammuitode suahistória ede sua tradição.Apenasperderamsuamagia;masdessavezaperderamparasempre.Anecessidadedelesdeseadaptarresultouemmudançasquenão teriam ocorrido de outra forma, mudanças que os deixaram mais perto cultural efisiologicamentedasnovasraças.Oshumanosrenascidoseoselfossobreviventesassimilaram-senonovomundoatéque,porfim,deformainexorável,tornaram-sepraticamenteomesmo.Equando,finalmente,quasemilanosdepoisdofimdasGrandesGuerras,asnovasraçascomeçaramaemergirdas vidas primitivas que haviam suportado enquanto lutavam para sobreviver aos efeitos doholocausto, os elfos ficaram entre eles. Não se esconderiam mais em suas florestas comoobservadores imparciais do desenvolvimento do mundo. Dessa vez, seriam parte dessedesenvolvimento, trabalhando abertamente com as novas raças para terem certeza de que oshomens não caminhariam uma segunda vez naquela estrada que quase resultara na destruição detoda a vida.Assimos elfos, pormeiodoDruidaGalaphile, convocaramoPrimeiroConselho emParanor.Assimoselfosprocuraramdesviarasraçasdeumaprocuramalfadadapelasvelhasciênciasde energia e poder, aconselhando, em vez disso, uma abordagemmais cautelosa dosmistérios davida.Comisso,procuraramobterdenovoapequenamagiaquehaviamperdido,acreditandoqueessasartesiriamajudá-losemseusesforçosparapreservaronovomundoeavida.

—Porémoselfosnãotêmmagia—Willembrouooutro.—ApenasosDruidas.— Os Druidas e um punhado de outros, espalhados pelo mundo — corrigiu Allanon. Ele

pareceusedistanciarporummomento.Quando faloudenovo,avozestava longe.—OsDruidasaprenderam cedo os perigos inerentes da busca pelamagia perdida. UmDruida chamado Brona

ensinou-osbem.Suanecessidadedeexploraros limitesdamagiaodestruiu, criandona suacascafísica a criatura quenós conhecemos comooLordeFeiticeiro.QuandoosDruidas perceberamoque a avidez pelamagia havia causado a ele, proibiram estudosmais aprofundados.Amagia queencontraram não era totalmente boa nem totalmente má; era simplesmente poderosa, poderosademais para que os mortais a dominassem. Por um tempo, foi deixada de lado. Até que Bronacapturou e matou todos os Druidas de Paranor, sinalizando o começo da Segunda Guerra dasRaças,ederepente sórestavaBremenparaensinarmagia.Então,quandoele se foi,passeia seroúnico...

Sua voz sumiu por um segundo e seus olhos escuros estreitaram-se ao encarar a pequenafogueiraaseuspés.EderepenteolhoudevoltaparaWil.

—Oquemaisvocêquersaber,homemdovale?O tom de sua voz era ríspido, quase zangado. Sua rispidez pegou Wil de surpresa, mas ele

manteveseuolharfirme,obrigandoseusolhosaencontraremosdoDruida.—Oquemaisvocêachaquedevosaber?—replicouemvozbaixa.Allanonnãodissenada,esperando.Houveumlongoedesconfortávelsilêncioenquantoosdois

homensseencaravam.Porfim,ohomemdovaledesviouoolhardenovo,cutucando,distraído,asbrasasdafogueiracomapontadeumadasbotas.

— Aquelas criaturas que ficaram presas dentro da Proibição, o que houve com elas? —perguntoufinalmente.—Comosobreviveramportantosanos?Porquenãopereceram?

OrostosombriodeAllanonnãomudou.—Podechamá-losdedemônios,pois foi issoquesetornaram.Forammandadosparaumnão-

lugar,umvazioescuroalémdequalquermundovivo.Dentrodessaescuridão,nãohouvepassagemde tempopara trazer a velhice e amorte.Os elfos falharamemperceber isso, suponho,ou talveztenhamachadoquenãofosseimportante,jáquesuaúnicapreocupaçãoeraremoveromaldonossoprópriomundo.Emtodocaso,osdemôniosnãomorreram;aocontrário,semultiplicaram.Omalquemoravadentrodelessealimentoudesimesmoeficoumaisforte.Criounovavida.Poisomalqueédeixadoporsimesmo,jovem,nãoperecesimplesmente;floresce.Omalcontidonãoéummaldestruído.Elesealimenta,crescedentrodoconfinamento,inflaeseenfureceatésesoltareentão...então,seliberta.

—Eamagiadeles?—continuouWil,rápido.—Amagiadelestambémcresceu?Umpoucodarigidezsumiudorostodooutro,queassentiu.—Alimentadadamesmaforma,epraticada,poisosseresmalignosbrigavamunscomosoutros

emsuaprisão, levadosàbeirada loucuracomanecessidadedesoltaremoódiopeloquefoi feitocomeles.

Foiavezdohomemdovaleficarquieto.Elebaixouorostonassombras;seusbraçosenvolveramos joelhosde formaprotetoraaoapertaraspernascontraopeito.A leste, soouumtrovão leveedistante,partedatempestadequeseafastavaaoseenfraquecernamuralhapartidadasWolfsktaag.

Umtoquede impaciência se revelouno rosto sombriodeAllanonaoobservaro jovem.Ele seinclinouparafrenteumavezmais.

—Suasperguntasforamtodasrespondidas,WilOhmsford?Ohomemdovalepiscou.—Não.—Elelevantouacabeçaabruptamente.—Não,aindatemuma.Allanonfranziuatesta.—Mesmo?Vamosaela,então.Ele estava claramente aborrecido.Wil hesitou, pesando internamente se seria bom prosseguir

aindamaiscomaquilo.Concluiuqueprecisava.Escolheuaspalavrascomcuidado.—Tudooqueouvisugerequeessesdemôniossãooponentesmaisdoqueàalturadoselfos.E

parece-me,peloseupróprioencontrocomeles,queestãomesmoàsuaaltura.—Araivasurgiunorostodooutro,masWilprosseguiurapidamente.—Seeuacompanharessajovemelfa,Amberle,naprocurapeloFogossangue,comovocêmepediu,elescomcertezavirãoatrásdenós.Supondoquenóssejamosencontrados,quechanceeutenhocontraeles,Allanon?MesmocomasPedrasÉlficas,quechanceseutenho?Vocênãomerespondeuantes.Respondaagora.

—Bem.—ODruidaosciloudeleveparatrás,orostofinoesombriosubitamentesemexpressãoàluzdofogo,enrugadonassombras.—Penseiquetudodariaemalgumlugar.

—Porfavor,respondaàminhapergunta—insistiuWilemvozbaixa.Allanoninclinouacabeça,pensativo.—Nãoseiaresposta.—Vocênãosabe?—repetiuojovem,incrédulo.ODruidapiscou.—Emprimeirolugar,esperoimpedi-losdeencontrarvocê.Senãooencontrarem,nãopoderão

feri-lo.Nestemomento,nãosabemnadaaseurespeito.Pretendoquecontinueassim.—Maseseelesmeencontrarem?Eentão?—Então,vocêteráasPedrasÉlficas.—Elehesitou.—Entendaisso,Wil.AsPedrasÉlficassão

magia do velho mundo, uma magia que existia quando os elfos derrotaram essas criaturas pelaprimeiravez.OpoderdasPedrasémedidopelaforçadoindivíduoqueasusa.ExistemtrêsPedrasÉlficas,umaparaocoração,outraparaamenteeoutraparaocorpodequemfazusodelas.Todasastrêsprecisamestarunidascomoumasó;quandoissoéfeitodaformacorreta,opoderliberadopodeserimenso.—Eleolhouparaojovemdemaneirapenetrante.—Entãovocêentendeporquenãopossoresponderàsuapergunta?Vocêdeterminaráaforçadesuadefesacontraseusinimigos;temdevirdedentrodevocê,nãodasPedrasemsi.Nãopossomedir issodentrodevocê.Apenasvocê pode fazê-lo. Só posso dizer que eu o julgo um homem tão bom quanto seu avô; e nuncaconheciumhomemmelhordoqueele,WilOhmsford.

OhomemdovaleencarouoDruidasempalavras,depoisbaixouosolhosparaafogueira.—Nemeu—sussurrou.Allanondeuumsorrisofraco.—AschancesdoseuavôerammuitopequenasquandoelefoiatrásdaEspadadeShannara.Ele

mesmoadmitiriaisso.OLordeFeiticeirosabiadapresençadeledesdeocomeço;osPortadoresdaCaveira chegarama ir atéo vale àprocuradele.Ele foi caçado a cadapassono caminho.Mesmoassim,sobreviveu;eofezapesardesuasprópriasdúvidas,queeramconsideráveis.

AllanonestendeuobraçoecolocouamãonoombrodeWil,osolhosfundosbrilhandoàluzdofogo.

—Suaschances sãoboas.Acreditoemvocê.Agora,vocêprecisa começaraacreditar emsi.—Eleretirouamãoeselevantou.—Falamosobastanteporestanoite.Vocêprecisadormir.Temosumalongajornadaamanhã.—Enrolouasvestesnegrasaoseuredor.—Ficareidevigia.

Começouasedistanciardojovem.—Eupossoficar—ofereceu-seWil,lembrando-sedosferimentosdoDruida.—Vocêpodedormir—grunhiuAllanon,eassombrasdanoiteoengoliram.Wil observou o lugar onde ele sumira por um segundo e sacudiu a cabeça. Espalhando seus

cobertorespertodafogueira,enrolou-seneleseseesticou,cansado.Nãoiriadormir,disseasi.Nãoainda.Não semantes passar um tempopensando cuidadosamente em tudoque foraditonaquela

noite, até concluir emquantodaquilo deveria acreditar, até estar convencidode que sabia o queestavafazendonaquelaempreitada.Nãoiriadormirantesdisso.

Deixouosolhossefecharemporapenasummomento.Adormeceuimediatamente.

CapítuloX

Retomaramaviagemaoamanhecer.Emboraa floresta aindabrilhasseúmidadevidoà chuvadodiaanterior,océuestavalimpoeazul,tomadopelaluzdosol,enquantoosdoiscavalgavamparaosul,seguindoafronteiradeAnar.OvaziomonótonodaRabbreluziacomsuasplaníciescomsuaveselevações,eocheirotentadordasárvoresfrutíferaseralevadoatéelesporumasuavebrisamatinal.

Pertodo fimda tarde, chegaramao lendárioRioPrateado e encontraramuma companhiadeanõesEscavadores envolvidosna construçãodeumapontenumestreitodensamente cobertoporflorestas.DeixandoWilescondidoemumamoitadeabetoscomoscavalos,oDruidafoiatéabeirado rio para conferenciar com os anões. Ele se foi por um tempo e, quando retornou, pareciapreocupadocomalgumacoisa.Somentedepoisdeestaremnovamenteacavalo,seguindorioabaixopara longe dos anões, ele contou aWil que os avisara sobre as ameaças aos elfos e pedira paramandarem ajuda omais rápido possível.Umdos Escavadores reconhecera oDruida e prometeraqueaajudaseriaenviada.Porém,reunirumaforçadetamanhoconsiderávellevariatempo...

Allanonencerrouoassuntoali.Minutosdepois,atravessaramoRioPrateadonumaparte rasaonde um vasto banco de areia dividia as águas límpidas, e pedras superficiais diminuíam acorrentezaobastanteparapermitirapassagemseguradecavalosecavaleiros.Dali,cavalgaramparaosulaumavelocidadesossegada,observandoassombrasqueprojetavamaumentaremcomopassardo dia. Era quase pôr do sol quando Allanon parou Artaq no topo de uma colina rodeada deárvores edesmontou.Wilo seguiu, levandoSpitter, atéondeoDruidaaguardava.Amarraramoscavalos em um pequeno bosque de nogueiras e juntos caminharam até onde um afloramentorochoso quebrava a muralha de árvores. Com Allanon à frente, subiram por entre as rochas eespiaram.

Abaixo deles jazia um vale amplo em forma de ferradura, com encostas e solo densamentearborizados,cujapontaocidentalseabriaempradariasaradaseplantadas.Umaaldeiasituava-senopontoentreaflorestaeocampo,eumriachoestreitocorriadaflorestaatravésdeumamontoadodecasasaonorte,notopodasterrascultivadas,esuaságuasirrigavamosoloemdezenasdecanaiscuidadosamente talhados. Homens e mulheres movimentavam-se ocupados pela pequenacomunidade, figurasminúsculas em relação aos dois, que os observavam da borda do vale.Maisparaosul,apradariaterminavanumaplaníciecheiaderochas,queseestendiaseminterrupçãoatéohorizonte,ondedesaparecia.

— Refúgio Firme— anunciou Allanon, indicando a aldeia e suas plantações. Ergueu o dedoligeiramenteeapontouparaaplanície.—MaisalémficaoMontedaBatalha.

Wilassentiu.—Oquefaremosagora?ODruidasentou-seconfortavelmente.—Vamos esperar até escurecer.Quantomenos pessoas nos virem,melhor.OsArmazenadores

nunca diriam nada, de qualquer jeito, mas estes aldeões falammuito. A discrição ainda é nossamaioraliada, enãopretendoperdê-ladesnecessariamente.Nós iremosaté ládepressa e sem fazerbarulho,esairemosdomesmojeito.—Eleolhouparaosol,quejácomeçavaacairnohorizonte,a

oeste.—Nóstemosapenasumahora.Sentaram-sejuntosemsilêncioatéabordadosolmalfazer-sevisívelacimadalinhadasárvores,

e o crepúsculo começou a deslizar sua sombra acinzentada sobre o vale. Finalmente, Allanonlevantou-se. Eles caminharam de volta para onde tinham amarrado os cavalos, montaram epartiramdeumavez.ODruidaosguiouparaolesteporumtempo,ladeandooslimitesdovaleatéalcançaremumaencostadeflorestadensaqueescondiaumabaciaestreita.Ali,começaramadescer.Lentamente,fizeramumcaminhosinuosoentreasárvores,observandoasflorestasescureceremaospoucosatéoanoitecer,deixandooscavalosescolheremocaminhoporentreosarbustos.Willogoperdeutodoosensodedireção,masAllanonpareciasaberexatamenteaondeiaenãodiminuiuavelocidadeenquantoosguiavaadiante.

Depoisdeum tempo, alcançaramoníveldovale a viagem foi-se tornandomais fácil.Umcéulimpo e enluarado os encimava através de frestas no telhado da floresta, e pássaros noturnosgritavamagudamenteàsuapassagem.OarestavadoceepesadocomocheirodamadeiraeWilfoificandosonolento.

Finalmente,pontosdispersosdeluzamareladacomeçaramapiscardiantedeles,esgueirando-sepelovéuda floresta,eosomfracodevozesosalcançouatravésdaquietude.Allanondesmontou,gesticulandoparaWilfazeromesmo,eelesguiaramoscavalosadianteapé.Aflorestaescasseouaolhos vistos, sem arbustos densos e galhos caídos, e conseguiram enxergar à frente ummuro depedra baixo com um portão de madeira. Uma fileira de plantas verdejantes delineava o muro,escondendo boa parte do que estava do outro lado, ainda que estivesse claro para Wil que seencontravam no limite oriental da aldeia de fazendeiros, sendo que as luzes amarelas eram aschamasdaslâmpadas.

Aoalcançaremamuralha,amarraramoscavalosnumpostedeferro.Allanoncolocouumdedonoslábios.Emsilêncio,atravessaramopequenoportãodemadeira.

O que encontraram do outro lado fezWil parar subitamente. Um jardim vasto num terraçoestendia-se diante deles, com suas camadas de flores multicoloridas brilhando mesmo sob a luzpálidada lua.Umcaminhodepedra, cintilandocompontosprateadosdescia serpenteandopelosjardins afora atéumconglomeradodebancosdemadeira, e dali paraumpequeno chalé feitodemadeira epedra.O chalé tinha apenasumandar eum sótão, comumavaranda aberta e familiar.Havia jardineiras floridas suspensas debaixo de janelas entrançadas, e arbustos baixos e espessosladeavamasparedesásperas.Teixosvermelhoseabetosazuiscresciambemnafrentedacasa.Umasegundapassagemsaíadavaranda,passandoporbaixodoarcodeumamagníficabétulabranca,edesaparecia através de uma cerca-viva para se unir a uma estrada do outro lado. À distância, obrilhodasluzesdeoutroschalésdividiaanoite.

Wilfitoutudo,maravilhado.Portodapartehaviatoquesdecorevida—tudoparecendotiradodeumlivrodehistóriasparacrianças.Tudoeraperfeitamenteorganizado.

Olhou interrogativamente para Allanon. Um sorriso debochado lampejou brevemente e oDruidagesticulouparaquecontinuassem.Seguirampelocaminhoatravésdojardimatéosbancos,emdireção ao chalé.Uma luzbrilhava com intensidadepelas janelas acortinadasda casinha, ededentrovinhaosomgentilesuavedevozes—não,corrigiu-seWil,vozesinfantis!Ficoulevementesurpreso com sua descoberta e quase não viu o gato tigrado e gordo esparramado no primeirodegrau da varanda. Percebeu a tempo de evitar pisar no animal adormecido. O gato ergueu ofocinhobigodudoeo encaroucom insolência.Outrogato,pretocomocarvão, saiuapressadodavaranda,esgueirando-seporentrearbustossemfazerruído.ODruidaeojovemsubiramosdegrausedirigiram-seàportadafrente.Dedentro,asvozesdecriançaselevaram-seemgargalhadas.

Allanonbateucomfirmezaeasvozessumiram.Passosaproximaram-sedooutroladodaportaepararam.

— Quem é? — perguntou baixinho uma voz, e as cortinas estampadas que protegiam umapequenajanelanaportaseabriramparcialmente.

ODruida inclinou-se para frente, deixando a luz que vinhado interior da casa cair sobre seurostoescuro.

—EusouAllanon—respondeuele.Houve um longo silêncio, seguido pelo somda trava sendopuxada.A porta foi aberta e uma

jovem elfa passou por ela. Era pequena,mesmo para um elfo, de corpo esguio e bronzeado. Seucabelo castanho ia até a cintura, emoldurando um rosto de criança que era ao mesmo tempoinocenteesábio.SeusolhosvoarambrevementeparaWil—olhosverdeseprofundosdevitalidade—paradepoisrepousaremnovamentenoDruida.

—Allanon partiu dasQuatroTerras hámais de cinquenta anos.—A voz dela era firme,mashaviamedoemseusolhos.—Quemévocê?

—Eu souAllanon—repetiu ele.Deixouummomentode silênciopassar entre eles.—Quemmais poderia encontrar você aqui,Amberle?Quemmais poderia saber que você é umadentre osEscolhidos?

Ajovemélficaencarou-osemconseguirfalar.Quandotentou,aspalavrasnãovieram.Suasmãosseuniramcomforça;comumesforçovisível,elaserecompôs.

—As crianças vão ficar assustadas se eudeixá-las sozinhas.Preciso colocá-lasna cama.Espereaqui,porfavor.

Jáouviamamovimentaçãodepezinhosdooutroladodaporta,juntamenteaosussurrodevozesempolgadas. Amberle virou-se e desapareceu dentro da casa. Podiam ouvir a voz dela, baixa etranquilizadora, ao levar as crianças pela escadaria de madeira até o sótão. Allanon foi até umbancodecostaslargasnaoutraextremidadedavarandaesentou-se.Wilpermaneceuempédeumladodaporta,ouvindoossonsdameninaélficaedascriançasládentro,pensando:elamesmaésóumacriança,peloscéus!

Um momento depois ela retornou, pisando com leveza na varanda, e fechou a porta comcuidadoatrásdesi.OlhouparaWil,quesorriusemgraça.

— Este jovem éWil Ohmsford— A voz de Allanon flutuou na escuridão. — Ele estuda emStorlockparasetornarumCurandeiro.

—Olá...—começouWil,maselajápassavaporeledireto,indoemdireçãoaooutrohomem.—Por que você veio até aqui,Druida; se é que você émesmoumDruida?—questionou ela,

comumamisturaderaivaeincertezanavoz.—Meuavômandouvocê?Allanonseergueu.—Podemosnossentarnosjardinsenquantoconversamos?A jovem hesitou antes de concordar. Levou-os pelo o caminho de pedra até os bancos. Ali,

sentou-se. O Druida sentou-se de frente para ela, e Wil um pouco mais para o lado. O jovemreconheceuqueseupapelnaquelaconfrontaçãoeraodeumespectadorenadamais.

—Porquevocêestáaqui?—repetiuAmberle,avozumpoucomaisfirmedoqueantes.Allanonenrolousuasvestesaoseuredor.—Paracomeçar,ninguémmemandou.Estouaquiporminhaescolha.Estouaquiparapedira

vocêquevoltecomigoparaArborlon.—Elefezumapausa.—Sereibreve.AEllcrysestámorrendo,Amberle.AProibiçãocomeçouaruir;omalcontidoporelaestáselibertando...todososdemônios.Logo,inundarãoasTerrasdoOeste.Sóvocêpodeimpedirisso.VocêéaúltimadosEscolhidos.

—Aúltima...—sussurrouela,masaspalavrasficarampresasnagarganta.— Estão todos mortos. Os demônios os encontraram e os mataram. Os demônios agora

procuramporvocê.Orostodelacongeloudehorror.—Não! Que embuste é esse, Druida? Que embuste...— Ela não terminou esta frase também,

parandoenquantolágrimasseformavamemseusolhosemanchavamseurostoinfantil.Limpou-as.—Elesrealmenteestãomortos?Todoseles?

ODruidaassentiu.—VocêprecisaircomigoatéArborlon.Elasacudiuacabeçarapidamente.—Não.EunãosoumaisumadentreosEscolhidos.Vocêsabedisso.—Euseiquevocêquerquesejaassim.Osolhosverdesfaiscaramcomraiva.—Oqueeuqueronãovemaocaso.Nãoestoumaisaserviçodaárvore;tudoissoficouparatrás.

NãosoumaisumadentreosEscolhidosmais.—AEllcrysselecionouvocêparafazerpartedosEscolhidos—respondeuAllanoncalmamente.

—Eladevedecidirsevocêaindaéuma.Eladevedecidirsevocê irácarregarasementedelaparaprocuraroFogossangue,paraqueelapossarenascererestauraraProibição.Eladevedecidir;nãonós.

—Nãovoltareicomvocê—declarouAmberleemvozbaixa.—Vocêprecisa.—Eunãovou.Nãovoltareinunca.Esteéomeularagora;esteéomeupovo.Escolhiassim.ODruidasacudiuacabeçalentamente.—Seu larévocêquemfaz.Seupovoéquemvocêquerqueseja.Massuasresponsabilidadesàs

vezes são dadas a você sem que você escolha ou consinta. É assim nesse caso, Amberle. Você é aúltimadosEscolhidos, jovemelfa; vocêéaverdadeiraúltimaesperançadoselfos.Vocênãopodefugirdisso,nãopodeseesconderdisso.Evocêcertamentenãopodemudarisso.

Amberleselevantou,distanciou-seumpoucoevirou-se.—Vocênãoentende.Allanonobservou-a.—Entendomelhordoquevocêpensa.— Se você entendesse, nãome pediria para voltar. Quando deixei Arborlon, sabia que jamais

poderiavoltar.Aosolhosdaminhamãe,domeuavôedomeupovo,eucaíemdesgraça.Fizalgoque não pode ser perdoado; recusei o dom de ser uma Escolhida.Mesmo que eu quisesse, e nãoquero, issonãopodeserdesfeito.Oselfos sãoumpovocomumsensode tradiçãoehonramuitoprofundo.Elesnuncaserãocapazesdeaceitaroqueaconteceu.Seficaremsabendoquesumirãodomundo,anãoserqueeusozinhaossalve,aindaassimnãoirãomequererdevolta.Souumaexilada,eissonãomudará.

O Druida levantou-se e a encarou, alto e sombrio ao se assomar a ela. Seus olhos eramassustadoresaosefixaremnosdela.

—Suaspalavrassãotolas,menina.Seusargumentossãovaziosevocêosfalasemconvicção.Elesnãolheconvêm.Seiquevocêémaisfortedoquemostrou.

Feridapelareprimenda,Amberleendureceu.—Oquevocêsabedemim,Druida?Nãosabenada!—Elaseaproximoudele,osolhosverdes

cheios de fúria. — Sou professora de crianças, você viu algumas delas esta noite. Elas vêm em

gruposdeseisouoitoeficamcomigoporumaestação.Ospaisdelasasentregamamimparaquecuidedelas.Elassãoconfiadasamim.Enquantoestãocomigo,passomeuconhecimentodascoisasvivas.Ensino-asaamarearespeitaromundoemquenasceram;aterra,omareocéu,etudooqueviveneles.Euasensinoaentenderestemundo.Euasensinoadarvidaemtrocadavidaquelhesfoidada; eu as ensino a cuidar e a alimentar esta vida. Começamos com coisas simples, como estejardim.Terminamos coma complexidadeque cerca a vidahumana.Existe amornoque faço. Souuma pessoa comum com um dom comum; um dom que posso compartilhar com os outros. UmEscolhido não compartilha nada. Nunca fui um Escolhido, nunca! Isso foi algo para o qual fuiconvocadasemquererouseradequadaparasê-lo.Tudoisso,deixeiparatrás.Torneiestaaldeiaeoseupovoaminhavida.Éissooqueeusou.Pertençoaestelugar.

—Talvez.—AvozdoDruidaveiocalmaefirme,afastandoaraivadeAmberle.—Mesmoassim,você dará as costas para os elfos por nenhum motivo melhor do que este? Sem você, eles comcerteza perecerão. Resistirão e lutarão como fizeram no velhomundo, quando surgiu a primeiraameaçadomal.Masdessavez,elesnãotêmamagiaqueostornafortes.Serãoderrotados.

—Essascriançasforamdeixadasaosmeuscuidados...—ajovemcomeçou,apressada,masamãodeAllanonergueu-sederepente.

—Oquevocêachaquevaiacontecerquandooselfosforemdestruídos?Vocêachaqueosseresmalignos ficarãocontentesempermanecerdentrodos limitesdasTerrasdoOeste?Oqueserádesuascriançasentão,menina?

Amberleoencarousemconseguirresponderporummomento,depoissebaixoulentamentedevoltaparaobanco.Lágrimascaíramdenovodeseusolhos,eelaosfechoucomforça.

— Por que eu fui escolhida?— perguntou em voz baixa, as palavras poucomais do que umsussurro.—Nãohaviarazãopara isso.Nãoprocureipor isso,ehavia tantosquequeriam.—Suasmãos se fecharam no seu colo.— Foi um deboche,Druida, uma piada. Você percebe?Nenhumamulher fora escolhida emmais de quinhentos anos.Apenas homens.Mas então, eu fui escolhida;umenganocrueleimpossível.Umengano.

ODruidaobservouosjardins,orostoinexpressivomaisumavez.—Não foiumengano—respondeu ele, emboraWil tivesse a impressãodeque aquilo tivesse

sidoditomaisparasi.ODruidavoltouoolharparaela,virando-seemsilêncio.—Oqueaassusta,Amberle?Vocêestácommedo,nãoé?

Elanãolevantouacabeça,nemabriuosolhos.Assentiuumavez.Allanonvoltouasentar-se.Suavoztornou-semaisgentil.—Omedo é parte da vida,mas deve ser encarado abertamente, não escondido.O que é que

assustavocê?Houve um longo silêncio. Wil inclinou-se para frente em seu assento, a vários bancos de

distância.Porfim,Amberlefalou,suaspalavrassussurradas:—Ela.ODruidafranziuatesta.—AEllcrys?Mas dessa vez Amberle não respondeu. Suas mãos foram até o rosto abatido e secaram as

lágrimas.Abriuosolhosverdeseselevantoumaisumavez.— Se eu concordar em viajar com você atéArborlon, se eu concordar em encararmeu avô e

meupovo,seeuforperanteaEllcryspelaúltimavez...seeufizerissotudo,tudooquevocêpediu,oqueaconteceráseelanãomederasemente?

Allanonendireitou-se.—EntãovocêpoderávoltarparaoRefúgioFirmeenãoireimaisincomodá-la.Elafezumapausaantesderesponder.—Pensareiarespeito.—Nãohátempoparapensararespeito—insistiuAllanon.—Vocêprecisadecidiragora,esta

noite.Osdemôniosestãoprocurandovocê.—Pensareiarespeito—repetiuela.SeusolhospousaramemWil.—Qualéoseupapelnisso

tudo,Curandeiro?Wilcomeçouaresponder,masumbrevesorrisodelaointerrompeu.—Nãoimporta.Dealgumaforma,possosentirqueestamosnamesmacondiçãonisso.Vocênão

sabemaisdoqueeu.Menos,Wilquisdizer,maselajáhaviasevirado.—Não tenho lugarparavocêsnaminhacasa— faloudenovocomAllanon.—Vocêspodem

dormiraqui,sequiserem.Amanhãconversaremosmaissobreisso.Elacomeçouacaminharemdireçãoaochalé,ocabelocastanhocomoummantoemsuascostas.—Amberle!—chamou-aohomenzarrão.—Amanhã—respondeuela,semreduziropasso.Esefoi,desaparecendosilenciosamentepelaporta,deixandooDruidaeWilolhandofixamente

paraopontoemqueeladesapareceranaescuridão.

CapítuloXI

AcriaturafoiatéWilatravésdanévoaviscosaemseusono,umacriaçãodisformedeseussonhosqueseergueuassustadoramentedasprofundezasdeseusubconsciente.Eraalgoaterrorizante,algoque ficava de tocaia nos recessos escuros de sua mente, onde ele escondia seus medos maisprofundos. Veio atéWil com discrição e astúcia, esgueirando-se com facilidade pelos obstáculosqueele tentouerguer,comomovimento fluidoerápidoaopressioná-lo.Elenãoconseguiuvê-lachegar, jamais conseguiria. A coisa não possuía substância ou identidade, não tinha raciocínio.Havia apenas a sensação avassaladorade terrorproporcionadapelaprópria existência.Wil fugiu,claro—fugiucorrendopeloscenáriosdesua imaginação,correuecorreuatéestarcertode tê-ladeixado para trás.Mas não.A coisa apareceu de imediato, aproximando-se rápida e certeira. Elepulouparalongeemdesespero,emitindoumgritomudoporajuda,ajudadequalquerum.Masnãohavianinguém.Estavasozinhocomaquelacoisaenãotinhacomoescapar.Porém,precisava,poisse aquilo o alcançasse, se aquilo o tocasse, sabia que morreria com certeza. Por isso correuapavorado,àscegas,sentindoobafoquentedacoisaemseupescoço...

Acordou sobressaltado, dandoum solavanco embaixodos cobertores queo fez sentar-se.O arnoturnoestavageladoemseurostoecorpo.Osuorescorriadedebaixodosbraços,edentrodesuacabeçaeleconseguiaouvirosomdeseucoraçãobatendoviolentamente.

AfiguraescuradeAllanonagachou-sepertodeleeasmãosfortesapertaramosombrosdeWilcomforça.AvozdoDruidaeraumsussurroáspero.

—Rápido,jovemdoValeSombrio.Elesnosencontraram.Wil Ohmsford não precisou perguntar quem os encontrara. Era seu sonho tornando-se

realidade.Ficoudepénumpulo,agarrandoseucobertoreapressando-seemseguiroDruida,quejásedirigiaaopequenochalé.Comoqueporintuição,Amberleapareceunabeiradavaranda,coma camisola branca flutuando sobre sua figura esguia, dando-lhe uma aparência fantasmagórica.Allanonfoiatéelaimediatamente.

—Eudisseparasevestir—sussurrouele,zangado.Elanãopareciaconvencida.— Você não está tentando me enganar, Druida? Isto não é um truque para me convencer a

voltarcomvocêparaArborlon?OrostodeAllanonficouimpassível.—Maisalgunsminutosparadaaíevocêterásuaresposta!Agora,vista-se!Elaresistiu.—Muitobem.Masnãopossodeixarascrianças.Precisamoslevá-lasaumlugarseguro.—Não temos tempo para isso.—ODruida se apressou emdizer.—Alémdisso, elas estarão

maissegurasaquidoquetropeçandonoescuro.—Elasnãovãoentenderseforemdeixadasparatrásassim.—Fiqueeelascompartilharãodeseudestino.—ApaciênciadeAllanonseesgotara.—Acorde

omaisvelho.Digaaelequevocêprecisairemboraporumtempo,quenãotemescolha.Digaquequando amanhecer, deve levar os outros para a casa de um vizinho. Agora, faça o que mandei,

rápido!Dessavez,elanãodiscutiu,massevirouedesapareceudentrodochalé.Wilarrumousuaroupa

eenrolouseuscobertores.Juntos,oDruidaeeleselaramoscavaloseoslevaramatéafrentedacasaàs escuras para esperar pela jovem. Ela juntou-se a eles quase imediatamente, vestida com botas,calças,umatúnicacomcintoeumlongomantoparacavalgar.

Allanon levou a moça e Wil até perto de Artaq, sussurrando suavemente para o animal eacariciandoopescoçosedoso.EntregouasrédeasparaWil.

—Monte.Wilfezcomolhefoimandado,subindocomdificuldadenograndecavalonegro.Artaqsacudiu

a cabeça e relinchou. Allanon continuou a sussurrar com gentileza, depois pegou Amberle pelacintura e a colocou atrás do jovem como se ela não pesassemais do que uma pena. Em seguidamontouSpitter.

—Agora,silêncio—avisouele.—Nemumapalavra.Viraramparaaestradaemfrenteaopequenochaléeseguiramporelaparaleste,atravessandoa

aldeiaadormecida.Apenasosomdoscascosdoscavalosbatendodelevenatrilhadeterraquebravaaprofundaquietude.Emminutos,asconstruçõesdaaldeiaficaramparatráseelesseencontravamna beira da floresta. Diante do grupo estendiam-se os campos arados — as águas dos canais deirrigação, brilhando à luz da lua— enquanto cortavampelas fileiras alinhadas das plantações demilhoecereaisquejáestavamcrescidoseemfasedeamadurecimento.Dosdoislados,àdistância,ascolinasarborizadasdovaledesciamatéasplanícies.

Allanondesmontousemdizerumapalavra.Ficouimóvelporumtempo,ouvindoosilênciodanoite, o rosto sombrio ansioso. Por fim, aproximou-se de Artaq, gesticulando para que Wil eAmberleseabaixassempertodele.

—Estãonoscercando.—Elecochichouaspalavras.Wilcongelou.ODruidaoencaroucomoseavaliasseseuvalor.—Vocêjácavalgouparacaçarantes?—Wilassentiu.—Ótimo.VocêeAmberlevãoficarcomArtaq.Sesentir-seacuado,deixe-osolto.Eleiráconduzi-losasalvo.Nósiremosparao norte, seguindo pelos limites da aldeia até onde o vale encontra a pradaria. Uma vez ali,romperemos o cerco deles. Não parem por nada, entenderam? Se nos separarmos, não voltem.CavalguemparaonorteatéalcançaremoRioPrateado.Seeunãochegarlogodepois,atravessemecavalguemparaoeste,atéArborlon.

—Oquevocêvai...?—perguntouWilrapidamente.—Não se preocupe como que eupoderei estar fazendo— interrompeuoDruida.—Apenas

façaoqueestoumandando.Wil assentiu, relutante. Não estava gostando nada daquilo. Quando Allanon virou-se, olhou

paratrás,paraAmberle.—Segure-se—sussurrouele,e tentoudarumsorriso.Elanãocorrespondeu.Omedoemseus

olhoseraclaro.Allanon montou de novo. Lenta e cautelosamente, seguiram caminho pela beira da floresta,

ladeando o limite ocidental da aldeia de Refúgio Firme. O silêncio pairava sobre todo o vale,profundo e penetrante. Como sombras, deslizaram pela escuridão entre as árvores, os olhosprocurando movimento na noite. À sua frente, a encosta norte do vale começava a se erguersombriamenteportrásdasfrestasnafloresta.

Allanonpuxouasrédeascomforça,gesticulandoparaqueparassem.Apontouemsilêncioparaoscamposàesquerda.WileAmberleseguiramadireçãodeseubraço.Nocomeço,nãohavianadaparaservisto,apenasfileirasefileirasdehastesescurasàluzdalua.Masummomentodepoisseus

olhos conseguiramperceber omovimento rápidode algo vagamenteparecido comumanimal searrastandoparaforadeumdoscanaisdeirrigaçãoeemseguidadesaparecendoentreoscaulesdocampo.

Aguardaramporumtempo,paralisadosentreasárvores,paradepoisprosseguirem.Elestinhamandadoapenasumapequenadistânciaquandoumuivoprofundoecortanteergueu-sedasflorestasatrásdeles.Amberleapertou-semaiscontraacinturadeWilecolocouacabeçanascostasdele.

—Demônios-lobo—falouAllanonemvozbaixa.—Encontraramnossorastro.ElechutouosflancosdeSpittercomfirmezaefezocavaloandarnumtrotelento.Artaqbufou

ansioso e seguiu. O uivo foi acompanhado por outros e ouviu-se o som repentino de corposcorrendoporentreasárvores.

—Corram!—gritouAllanon.Os cavalos precipitaram-se para frente, guinando para a esquerda e, com isso, saindo da

coberturada floresta.Galopando, correrampelabordados campos, seguindoa linhadocanaldeirrigação até o ponto que dava nas pradarias. Os uivos vinham de todo o lugar ao redor deles,ferozes e famintos. Sombras imensas pulavam sobre os pés de cereal e milho na escuridão àesquerda, tombando violentamente na direção deles. Wil inclinou-se sobre o pescoço de Artaq,impelindo o cavalo imenso a continuar. À frente deles, a passagem que levava para fora do valesurgiu.

Meiadúziadefigurasescuraseouriçadasirrompeudaflorestaadiante,criaturasparecidascomlobos,masmuitomaioresecomrostosquepareciamgrotescamentehumanosaoseergueremsoboluarcomosdenteslongostrincando.AllanonvirouSpitterdiretamenteparaeles,umachamaazulfaiscando nos dedos da mão ameaçadoramente erguida. Um instante depois, o fogo foi atirado,queimando amatilha e espalhando-a impetuosamente. Spitter passoupelomeio, dandoumgritoagudodemedo.

Artaq já havia ultrapassado tanto o Druida quando os demônios-lobo, seu corpo lustrosoniveladoaocorreratéocampoaberto.Várioscorposescurossurgiramalém,esuasmandíbulassefecharamnaspatasdocavalo.Artaqnãodiminuiuavelocidade.Atingiuumaferacomoombroemandou-a girando para longe. Os outros foram deixados para trás rapidamente. Wil curvou-semais, puxandoAmberle para baixo contra o dorsodeArtaq, soltando as rédeas levemente.À suadireita,maisdemônios-lobopulavamdas árvores; seusuivos enchiamoarnoturno. Jatosde fogoazulcortavampelomeiodeles, eosuivos se transformavamemganidosdedor.Artaqcontinuavacorrendo.

Umúnicodemônio-lobo imensoapareceuno limiteda florestaà frente,correndoemparaleloao riacho que alimentava os canais de irrigação. Pulou para interceptá-los, movendo-se comvelocidade surpreendente, saltando através da grama alta commovimentos fluidos e silenciosos.Wil sentiu algo frio e duro apertar seu peito. A besta diminuía a distância entre eles depressademais; eles não iriam conseguir escapar. Fez a única coisa em que conseguiu pensar. GritouimpulsivamenteparaArtaqeo libertou.Ocavalonegro respondeu.Dealgum lugardentrode si,encontrounovasforças.Aumentouavelocidade.Abestaquaseosalcançava—umterrorsombrioecorpulento que pareceu emergir repentinamente da noite ao lado deles. Wil fechou os olhos egritou uma última vez. Artaq relinchou em resposta. Concentrando-se, o garanhão atravessou oriacho que cruzava seu caminho. Ao ganhar a outra margem, correu dos campos e florestas doRefúgioFirmeparaascampinasabertasdooutrolado.

Por um instante, os olhos deWil permaneceram fechados, apertados demedo. Simplesmenteagarrou-seaopescoçodeArtaq,sentindoomovimentoreconfortantedograndeanimaldebaixode

si enquanto fugiam na noite. Quando finalmente ergueu a cabeça novamente e arriscou umaolhadelaparatrás,alémdafiguraencolhidadeAmberle,percebeuqueestavamsozinhos.Fumaçaefogosubiamdaescuridãodedentrodovale,eoarestavacheiodeuivosfrenéticos.Nãohaviasinaldosdemônios-lobo.NãohaviasinaldeAllanon.

Quasesempensar,WilpuxoubruscamenteasrédeasdeArtaqeofezsevirar.Allanonforabemfirme em suas instruções. Em nenhuma circunstância deveriam voltar. Amberle era sua principalresponsabilidade. Ela lhe fora confiada: devia ser protegida a todo custo. Lançouumolhar breveparao rostodela,queapareciana escuridãoatrásde si comolhosverdesquestionadores. Sabiaoque devia fazer. Porém, sabia que oDruida ainda estava lá atrás, provavelmente com problemas.Comopoderiasimplesmenteabandoná-loeprosseguir?

Sua indecisão durou apenas um minuto. Do vale atrás deles, surgiu um Spitter aterrorizadogalopando, seucorpocinzaexauridocorrendoapassos largos.Curvadosobre seudorso,asvestesnegrasesvoaçandoviolentamente,afigurasombriadelineadacontraohorizonteavermelhadopelofogo, estava o Druida. Logo atrás, corriam os demônios-lobo, formas peludas que saltavamenlouquecidaspelagramaalta,uivandoseuódiopeloshumanosquehaviamescapado.

WilvirouArtaqparaonortenomesmoinstanteebateuoscalcanharesnoanimal,quebufouesaltouparafrente.Ojovemnãoodeixousoltodestavez,mantendo-ocuidadosamentesobcontrole.Aperseguiçãopoderiaser longa,eagrande forçadocavalonãoera ilimitada.Artaqnãoresistiu,masseguiuseucomando,correndocomfacilidade.Wil inclinou-separa frente, sentindoAmberleapertarmaissuacintura,enterrandoorostoemsuascostasoutravez.

Mais de um quilômetro depois, Spitter emparelhou-se a eles, o corpo ofegantemarcado comsuoresujeira,asnarinasdilatadas.Jásecansava.WilolhoupreocupadoparaAllanon,masoDruidanãoretribuiuoolhar,seusolhosescurosestavamfixosnoterrenoàfrenteenquantoincentivavaseucavalocompequenosgestos.

A perseguição através da região de pradarias do Rio Prateado continuou com umadeterminação impiedosa. Os uivos enlouquecidos dos demônios-lobo sumiram rapidamente,mudando para um som de respirações ofegantes, interrompidas por rosnados de frustração. Doscavaleirosquefugiam,ouvia-seapenasoassobioabafadodoventoeobaterfirmedoscascosdeseuscavalos. Caça e caçadores correram pelos vales que cortavam colinas de encostas suaves e sobregrandesesúbitaselevações,passandoporhortascomárvoresfrutíferas,alémdecarvalhosefreixossolitárioseriachossinuosos,atravésdetodoosilêncioeescuridãodaplanície.Otempoescapavasem intenção. Haviam percorrido quase vinte quilômetros. E a distância entre eles e seusperseguidorescontinuavainalterada.

FinalmenteoRioPrateadoapareceu,umafaixalargadeáguailuminadapelalua,brilhandonaescuridãoemmeioaosintervalosentreascolinasbaixasquecercavamamargemmaispróxima.Wilfoiquemviuorioprimeiro,egritou.Artaqavançouinstantaneamenteaosomdesuavoz,ficandona frente de Spitter novamente.Tarde demais,Wil tentou segurá-lo,mas o imenso animal negronão cedeu desta vez. Ainda corria com facilidade, suavemente, e logo deixou o exaurido Spitterparatrás.

AdistânciaentreArtaqeosqueoseguiamaumentouaindamais.Wilaindatentavacontrolarocavaloquandopercebeu as figuras sombrias agachadasque apareceramde repente à sua frente—figuras curvadas e retorcidas, cobertas de pelos cinzentos. Demônios! Wil sentiu um aperto noestômago.Eraumaarmadilha.Eleshaviamesperadoali,casoalgumdelesconseguisseescapardosdemônios-lobo no Refúgio Firme. Agora, encontravam-se espalhados pelas margens do RioPrateado,aproximando-seconformeoscavaleiroscontinuavam.

Artaqos viu e guinoubruscamentepara a esquerda, emdireção a umapequena elevação.Unscinquenta metros mais atrás, vinha Spitter. Mais atrás ainda, porém aproximando-se do animalcansado, corriamos demônios-lobo, uivandonovamente.Artaq chegou ao topoda colina a todogalope e disparou para baixo, rumo ao Rio Prateado. Os demônios à sua frente se organizaramrapidamenteparabloquearseucaminho.Wilpôdevê-losclaramente,bestas felinascomrostosdemulher, retorcidos e grotescos. Elas saltaram na direção do cavalo, miando de forma horrível,focinhoserguidospararevelardenteslongoseafiados.

No último segundo, Artaq virou e girou de volta para a colina, deixando as criaturas felinasguinchando de frustração. Naquele momento, Spitter chegou ao topo da elevação, tropeçoucansadoecaiu.Allanonfoiaochãoemumaconfusãodetecido,rolouváriasvezeselevantou-sedeum salto. Os demônios-lobo o cercaram, mas o fogo azul espalhou-se de seus dedos num arcoamploqueosdispersoucomofolhasemumaventania.Artaqvirouparaaesquerdaoutravez,comWil e Amberle segurando-se desesperadamente em seu dorso para não serem jogados longe.Expressandoemumgritoseuódiopelasbestasfelinasquetentavamcapturá-lo,correunadireçãodelasmais uma vez, em paralelo àsmargens do rio, movendo-se tão rapidamente que estava emcima delas antes que percebessem o que ele pretendia. Várias criaturas tentaram alcançá-lo, asgarrasrasgando,maseleasultrapassouquasedeumavezsó,livrando-sedesuaspresasafiadascomum salto poderoso e escapando na noite. Atrás de si, um arco de fogo azul foi lançado nosperseguidoresmaispróximos,reduzindo-osascinzas.WilolhouparatráseviuAllanonaindadepénotopodacolina.Osdemônios-loboeascriaturasfelinasaproximavam-sedele,vindosdetodasasdireções. Erammuitos!Wil ouviu as palavras gritando em sua mente. Fogo surgiu nas mãos doDruidaeeledesapareceunumanévoadefumaçaedefigurassombriasemovediças.

Algumsexto sentidodespertoudentrodo jovem, avisando-o sobreumnovoperigo. Seuolhardeixourapidamenteabatalhanotopodacolina.Delugarnenhum,aparecerammaismeiadúziadedemônios-lobo,correndoparaArtaqemgrandessaltossilenciosos.Wilsentiuumbrevemomentodepânico.EleeAmberle ficaramencurraladosentreas feraseo rio.Adiante,umadensa faixadeárvores bloqueava a passagem. Atrás, havia os demônios de quem tinham acabado de fugir. Nãohaviaparaondeir.

Artaq não hesitou.Deu uma guinada em direção aoRio Prateado.Os lobos vieram atrás, umhorrornegro,fluidoesilencioso.Wiltinhacertezadequedestaveznãoescapariam.Allanonnãoseencontravamaisaliparaajudá-los;estavamcompletamentesozinhos.

ORioPrateadoaproximou-se.Nãohavianenhumbancodeareiaàvista—apenasumaextensãodeáguamuitoampla,profundaerápidademaisparaatravessarem;Wilpercebeuquesetentassem,com certeza seriam levados pela correnteza. Mesmo assim, Artaq não diminuiu o passo.Independentementedoperigoadiante,ocavalonegrofizerasuaescolha.Iriaparaorio.

Osdemônios-lobotambémperceberamisso.Amenosdedezmetrosatrás,elesse jogaramparafrentenumesforçodeterminadoparaalcançarWilea jovemelfa.Amberlegritouparaavisar.Wilremexeu freneticamente sua túnica à procura da bolsa de couro que continha as Pedras Élficas,mesmo sem saber se poderia usá-las, apenas sabendo que precisava fazer alguma coisa. Era tardedemais.Quando suamão se fechounaspedras, eles alcançaramabeiradoRioPrateado.Artaq seretesouepuloudamargemdorio,WileAmberleagarradosaoseudorso.Naquelemesmoinstante,umaluzbrancabrilhouaoredordeles,congelandoomovimento,comosetivessemsidocapturadosnuma pintura. Os lobos sumiram. O Rio Prateado desapareceu. Tudo se foi. Estavam sozinhos,elevando-sedeformalentaediretanaluz.

CapítuloXII

Antesdeotemposerregistrado,eleestavaali.Antesdoshomensedasmulheres,dasnaçõesedosgovernos, de toda a história da humanidade, ele estava ali.Mesmo antes de omundo feérico sedividiremumaguerraentreobemeomal,mudandoinexoravelmenteaessênciadavidaposterior,eleestavaali.EleestavaalinaépocaemqueomundoeraumÉdensagradoetodasascoisasvivascoexistiam em paz e harmonia. Era jovem então, ele mesmo uma criatura feérica enquanto ascriaturasfeéricasdaterraestavamapenasnascendo.Viviaemjardinsquelheforamdadosparaquetomassecontadeles,recebendoaresponsabilidadedecuidarparaqueelesetodasascriaturasvivasque os habitavam fossem tratadas e preservadas, abrigadas e renovadas. Ele não tinha nome, poisnomesnãoeramnecessários.Eraquemeraesuavidaestavaapenascomeçando.

Nãoentendiaoquedeveriasetornar.Seufuturoeraumapromessavagaedistante,sussurradanos corredores de seus sonhos, e não conseguia prever se era real.Não conseguia prever que suavidanãoerafinitaàmaneiradasoutrascriaturasvivas,masseestenderiaatravésdeséculosdevidascelebradas em nascimento e esquecidas na morte, até que a própria vida ficasse camuflada nasarmadilhasdaimortalidade.Nãoconseguiapreverquetodososquenasceramnomundocomeleetodos os que ainda haveriam de nascer, fossem feéricos ou humanos, sumiriam e se perderiam,enquanto apenas ele continuaria. Nem ele iria querer isso, pois ainda era jovem o bastante paraestar cheio de convicções de que seu mundo sempre seria como era até então. Se soubesse queviveriaparavê-losealterarapontodesetornarirreconhecível,nãoteriadesejadosobreviver.Teriadesejadomorrerenovamentesetornarumsócomaterraqueogerara.

Seriaumaperda irreparável,poiselese tornariaoúltimoremanescentedotempolendáriodomundo em formação, o último remanescente da paz e da harmonia, da beleza e da luz que erampartedoÉdendavida.Foradecretadonocrepúsculodoprincípio,mudandoparasempreocursodesuaexistência,mudandoparasempreopropósitodesuavida.Elese tornaria,paraummundocaído em desgraça, um pequeno lembrete do que fora perdido. Ele se tornaria também umapromessadequetudooqueforapoderiaserdenovoumdia.

No começo, não compreendera isso. Houve apenas choque e desespero ao descobrir que omundo estavamudando, sua beleza sumindo, sua luzmorrendo— que tudo aquilo que fora tãocheiodepazeharmoniaseriaperdido.Logo,seusjardinseramtudooquesobrara.Detodososquesurgiramnomundocomele,não sobrouninguém.Estava sozinho.Desesperou-seporum tempo,consumidopelador epela autopiedade.E então asmudançasquehaviamalterado a terra ao seuredor começaram a invadir seu mundinho, ameaçando mudá-lo também. Lembrou-se de suasresponsabilidades e começou a longa e difícil batalha para preservar os jardins que eram seu lar,determinado a fazer aquele último pedaço do primeiro mundo sobreviver, mesmo que todo orestante tivesse sido perdido. Os anos se passaram e sua luta prosseguiu. Ele se viu envelhecerapenas levemente.Encontroudentrode siumpoderquenão sabiapossuir.Depoisdeum tempo,começouaentenderopropósitodesuaexistênciasolitária—umanovaresponsabilidade lheforaconfiada,algoquenãopodiaabandonar.Comessapercepção,veioaaceitaçãoe,comaaceitação,veioacompreensão.

Por séculos, trabalhou no anonimato; sua existência era poucomais do que ummito que setornara parte do folclore das nações ao redor, uma fantasia repassada com sorrisos irônicos econdescendência sarcástica. Somente depois do cataclismo que os homens chamaramdeGrandesGuerras, a destruição final do velhomundo e o surgimento das novas raças, omito passou a seraceito comoverdade.Pois foi entãoque eledecidiupelaprimeira vez sair dos jardins e ir para aterra além. Seus motivos eram bem específicos. Suas razões cuidadosamente guardadas para si.Haviamagianomundodenovoeasuaeraamaisaltaeamelhor—amagiadavida.Asterrasdefora dos jardins estavam novas e frescas mais uma vez, e ele viu naquele renascimento umaoportunidade de reconquistar tudo o que conhecera quando jovem. Através dele, o passado e ofuturopoderiamserenfimreunidos.Istonãoseriaconseguidofácilourapidamente;mesmoassim,aconteceria.Nãopoderia, entretanto, permanecer recluso e escondido em seus jardins. Precisariasairdeles.Contidasemseupequenosantuárioestavamassementesdetudoqueomundoprecisavarecuperartãodesesperadamente:tratava-sedoencargoquelheforaconfiadoprimeiro.Viuquesuapreservaçãonãoeraobastante.Viuqueaquilodeveriaserabasedealgo—maisalém,quedeveriasertornadovisíveleacessível.Precisavaseassegurardequeissofossefeito.

Assim,saiudosjardinsqueforamseulardurantetantosséculos,viajandopelaregiãoqueficavaaoredor—umaterradedocespradariasecolinassuaves,deravinassombriascobertasdeflorestase lagostranquilos, tudounidoporumrio,queeraa fontedevidadaquelaterra.Noentanto,nãoviajouparalongedosjardins,poiseramsuaprincipalpreocupação,eanecessidadedeprotegê-losexigia que se mantivesse por perto. E mesmo assim, não foi necessário avançar mais do queavançara. A região que encontrou o agradava. Plantou a semente do primeiro mundo em seucentro,nocoraçãodaárea,marcando-acomosua,dando-lheumesplendorespecialqueafaziaserfacilmentereconhecível,dandoaseushabitanteseaosviajantes,aqualquerumqueprecisasse,suabençãoeproteçãocontraomal.Comotempo,asnovasraçaspassaramaentenderoqueelefizera;falavam dele e de sua terra com admiração e respeito. Começaram a contar sua história pelasQuatroTerras.Eessahistóriacresciaacadavezqueeracontada,atéqueumdiahaviamfeitodeleumalenda.

Deram-lhe o nome da região que ele marcara como sua. Chamaram-no de o Rei do RioPrateado.

EleveioatéWileAmberledisfarçadocomoumvelho,surgindodomeiodaluz,mirradoecurvadopelaidade,devestespenduradasnocorpomagrocomosefossefeitodegravetosquebradiços.Seucabelocaíanosombrosemmechasbrancaseespessas.Seurostoantigoestavaenrugadoemorenopor causa do sol; seus olhos azuis escuros eram da cor da água do mar. Ele sorriu,cumprimentando-os,eWileAmberlesorriramemresposta,sentindoquenãohaviaperigonaquelehomem. Ainda estavam agarrados nas costas largas de Artaq, o animal com a postura altiva, nomeiodomovimento,semsemovernaluzqueosdeixaracompletamenteparalisados.NemojovemdoValeSombrionemajovemelfaentenderamoqueestavaacontecendo,masnãosentirammedo,apenas uma sonolência profunda e reconfortante que os imobilizou com a força de correntes deferro.

Ovelhoparounafrentedeles,borradoepouconítidonaluzenevoada.SuamãotocouorostomaciodeArtaqeocavalorelinchoubaixinho.OvelhoolhouparaAmberleelágrimassurgiramemseusolhos.

—Criança, se você fosseminha— sussurrou ele. Deu um passo à frente, estendendo o braço

paraseguraramãodelanasua.—Nenhummaliráalcançá-losnestaterra.Estejamempaz.Estamosunidosnomesmopropósitoenóseaterradevemosserumsó.

Wil tentou falarenãoconseguiu.Ovelhodeuumpassopara trásdenovoeergueuamão, sedespedindo.

— Descansem agora. Durmam.— Começou a desaparecer, deslizando de volta para a luz.—Durmam,filhosdavida.

Os olhos deWil ficaram pesados. Era uma sensação agradável e bem-vinda, portanto ele nãolutoucontraela.EstavaconscientedafigurapequenadeAmberlepesadamenteencolhidaemcimadele, as mãos presas frouxamente em sua cintura. A luz parecia afastar-se deles, sumindo naescuridão.Fechouosolhoseflutuouparaosono.

Começou a sonhar. Encontrava-se no meio de um jardim cheio de inacreditável beleza eserenidade, exuberante em suas cores e fragrâncias, tão maravilhoso que fazia tudo o que jáconheceranavidaouimaginarapossívelempalideceremcomparação.Haviariachosquebrilhavamprateadosaofluíremdefontesescondidasnaterraparasederramarememlagostranquilos.Acopadasárvoresacimafiltravaaluzdosol,quereluziacomtoquesdecalordourado.Haviaumagramamaciaedocequecobriaaspassagensecaminhosfeitoumtapetedesedaverde.Todosostiposdepássaros voavam, peixes nadavam, e os animais que caminhavampor aqueles jardins passavam emharmonia, contentamento e paz. O jovem foi tomado por uma sensação de profunda e perpétuatranquilidade,completudeeumafelicidadetãointensa,quechorou.

MasaosevirarparacompartilharoquesentiacomAmberle,percebeuqueelanãoestavamaislá.

CapítuloXIII

QuandoWilOhmsfordacordoudenovo,amanhecia.Estavadeitadonumvalecobertodegramadebaixodostroncosprotetoresdebordosgêmeos.Osoldamanhãseinfiltravapormassasdefolhasverdeslargas,emlongasfaixasdeclaridadequeofizerampiscar.Alidavaparaouvirosomfracodaágua batendo na margem. Por um instante, acreditou ainda estar nos magníficos jardins de seusonho.Eleshaviamlheparecidotãoreaisque,praticamentesempensar,eleergueu-seemumdoscotoveloseolhouaoredor,procurando-os.Masosjardinshaviamsumido.

Amberle jazia deitada ao seu lado, ainda adormecida. Hesitou antes de estender o braço esacudir o ombro dela com delicadeza. A elfa remexeu-se, inquieta, e abriu os olhos. Mirou-o,surpresa.

—Comovocêestá?—perguntouWil.—Estoubem.—Esfregouosolhosparaafastarosono.—Ondeestamos?Wilsacudiuacabeça.—Nãosei.Ajovemelfasentou-sedevagareolhouaoredorparaopequenovale.—OndeestáAllanon?—Tambémnãosei—Wilesticouaspernas,surpresoaoencontrá-lassoltasesemcãibras.—Ele

se foi. Todos se foram... Allanon e aquelas criaturas.— Ele hesitou, ouvindomovimentação nosarbustos do outro lado da ravina. Uma carinha negra um tanto familiar saiu das folhagens,relinchandosuavemente.Wilsorriu.

—Bem,pelomenosaindatemosArtaqconosco.Ocavalocomeuumpoucodegramapreguiçosamente,sacudiuasfolhagensdopeloetrotouaté

elesparaacariciarWilcomofocinho.Wilacariciouacabeçamaciaporummomento,esfregandoasorelhasdoanimal.Amberleobservouemsilêncio.

—Vocêviuovelho?—perguntouWil.Elaassentiu,solene.—AquelevelhoeraoReidoRioPrateado.Wilaencarou.—Foioquepensei.Meuavôoviuumavez,anosatrás.Masachoquenuncativecertezaseele

era real ou não, até agora. Engraçado.—Artaq afastou-se vários passos e começou a comer.Wilsacudiuacabeça.—Elesalvouasnossasvidas.Osdemônios-loboestavamquasenosalcançando...—Ele viu o olhar que surgiu nos olhos da elfa e parou.—De qualquer forma, acho que estamos asalvoagora.

— Foi como um sonho, não é? — disse ela, baixinho. — Nós estávamos flutuando na luz,cavalgandoArtaqsemnadaembaixodenósexcetoaluz.Entãoeleseaproximoudenós,andando,vindodonada,edissealgumacoisa...—Avozdelasumiu,comoseaquelalembrançaaconfundisse.—Vocêviu?

OjovemdoValeSombrioassentiu.—E depois ele desapareceu— continuou ela, falandomais consigo do que com ele, como se

tentandolembrar-setudoqueacontecera.—Elesumiuea luzsumiue...eentão...—Elaomirou,intrigada.

—Osjardins?—sugeriuele.—Vocêviuosjardins?— Não. — Ela hesitou. — Não, não havia nenhum jardim, só uma escuridão e uma... uma

sensaçãoquenãoconsigodescrever...Eu...um tipodeansiedade, acho.—Elacontinuou.—Vocêestava lá, mas não conseguia me ver. Eu o chamei, mas você pareceu não me escutar. Foi tãoestranho.

Wilinclinou-separafrente.—Eume lembro do velho e da luz, exatamente como você descreveu. Lembro disso.Quando

sumiram, eu me lembro de ter adormecido... pelo menos, eu acho que adormeci. De qualquerforma,vocêestavacomigoemcimadeArtaq.Euconseguiasentirseusbraçosnaminhacintura.Apróxima coisa de que me lembro era estar naqueles jardins. Nunca vi nada parecido... era tãopacífico,tãocalmoetãobonito.Masquandoolheiaoredoràsuaprocura,vocênãoestavalá.Vocêtinhasumido.

Encararam-seemsilêncioporuminstante.—Achomelhornospreocuparmoscomolugarondeestamosagora—disseWil,porfim.Ficoudepé e olhou à sua volta denovo. Só sedeu contadequedeveria ajudarAmberle a se

levantartardedemais,quandoela jáseencontravaempéaoseulado,sacudindofolhasdocabelo.Elehesitouummomentoantesdeabrircaminhoatravésdosarbustosqueoscercavam,emdireçãoaosomdeágua.

Momentos depois, chegaram à beirada de um lago tão amplo que suas margens sumiam nohorizonte em qualquer direção que olhassem. Ondas surgiam em lampejos súbitos de espumaprateada, com águas profundas e um azul límpido sob o sol matutino. Bosques arborizadoscercavam suas margens cobertas de grama, freixos, olmos e salgueiros; as folhas tremiamsuavementecomogentilventosulquecarregavaafragrânciadeazaleiasemadressilvas.Océuazulsemnuvensmostravaumarcobrilhantedecoresquepareciaseoriginarnumextremodohorizonteesumirnooutro.

Wil olhoupara cima, para ver a posiçãodo Sol, e virou-se paraAmberle, sacudindo a cabeçasemacreditar.

—Sabeondeestamos?EmalgumpontodamargemnortedoLagoArco-Íris.AquelehomemnoscarregouportodooRioPrateadoeatravésdolagoparaondequerqueestejamosagora.Estamosaquilômetrosdeondecomeçamos.

Aelfaassentiu,distraída.—Achoquevocêestácerto.—Euseiqueestou.—Wilcaminhou,empolgado,parandonabeiradaágua.—Sónãoseicomo

eleconseguiuisso.Amberlesentou-senagrama,olhandoparaolago.—Aslendasdizemqueeleajudaaquelesqueprecisamquandoviajamemsuasterras,queeleos

mantém seguros.—Ela fez uma pausa, com amente claramente emoutro lugar.—Eleme dissealgo...queriaconseguirlembrar...

Wilnãoestavaescutando.— Devemos ir andando. Arborlon é bem longe. Mas se viajarmos para a direção noroeste,

encontraremosoMermidon,edepoisoseguiremosatéasTerrasdoOeste.Éumaregiãodeterrasabertas,masnãoseremosmaistãofacilmenteencontrados.Nãohárastroparaelesseguiremagora.

Wil não notou a expressão de aborrecimento que perpassou o rosto de Amberle, sua mente

preocupadacomaviagemquetinhamadiante.—Develevarapenasunsquatrodias, talvezcinco, jáquesótemosumcavaloparanósdois.Se

dermos sorte, talvez encontremos outro no caminho, mas acho que é pedir demais. Ajudaria setivéssemos armas também; não temos sequer um arco para caça. E isso significa comer frutas evegetaissilvestres,acho.Claroquepodemos...

Paroudefalar,tendopercebidoqueAmberlesacudiaacabeçaemreprovação.Aelfacruzouaspernaserecostou-se.

—Qualoproblema?—perguntouele,jogando-seaoladodela.—Você,paracomeçar.—Comoassim,eu?—Você parece ter decididomentalmente tudo que vai acontecer daqui em diante. Você não

achaquedeveriaouviroqueeupensosobreisso?Wilaencarou,umpoucoespantado.—Claro,eu...— Não percebi você me pedindo opinião — continuou ela, ignorando-o. — Você não acha

necessário?Ojovemenrubesceu.—Desculpe.Euestavaapenas...—Vocêestavaapenastomandodecisõesquenãotemodireitodetomar.—Elaparouefitou-o

com frieza.—Eunem sei o que estou fazendo aqui.Oúnicomotivopara eu ter vindo tão longecomvocêéporquerealmentenãotiveescolha.Éhoradedescobriralgumascoisas.Paracomeçar,porqueAllanonotrouxejunto,WilOhmsford?Quemévocê?

Wilcontou,começandocomahistóriadeSheaOhmsfordeabuscadaEspadadeShannara, eterminando com a visita de Allanon a Storlock a fim de buscar sua ajuda para localizar oFogossangue.Contoutudoàmoça,concluindoserinútilesconderalgo,sentindoque,senãofossetotalmentehonesto,elanãoiriaquerermaisnadacomele.

Quandoterminou,Amberleoencarou,muda,porummomento,paradepoisbalançaracabeçalentamente.

— Não sei se acredito em você ou não. Acho que deveria acreditar. Realmente não tenhomotivos paranão acreditar. É só que tanta coisa aconteceu, quenão tenho certeza denadanessemomento.—Elahesitou.—OuvihistóriassobreasPedrasÉlficas.Elassãodeumaantigamagia,edizem que todas foram perdidas muito antes das Grandes Guerras. Mesmo assim, você diz queAllanondeutrêsdelasaoseuavôque,porsuavez,asdeuparavocê.Seissoquevocêmecontouforverdade...—Suavozsumiu,osolhosfixosnosdele.Perguntou:—Vocêasmostrariaparamim?

Ojovemhesitou,mascolocouamãodentrodatúnica.PercebeuqueAmberleotestava,porémjulgavatratar-sedeumdireitodela.Afinal,aelfatinhaapenasapalavradelecomoprovadetudooquelhecontara,eestavampedindoqueelacolocassesuasegurançanasmãosdele.Puxouosacodecourogasto,abriuoscordõesedeixouaspedrascaírememsuamão.Perfeitamente torneadas,deumazulescuroebrilhante,faiscaramcomnitidezaosoldamanhã.

Amberleseinclinouparafrente,observando-ascomarsolene.DepoisvoltouaolharparaWil.—ComovocêsabequeessassãoasPedrasÉlficas?—Tenhoapalavradomeuavô.EdeAllanon.Elanãopareceuimpressionada.—Vocêsabecomousá-las?Elesacudiuacabeça.

—Nuncatentei.— Então você não sabe ao certo se elas servem para alguma coisa ou não, sabe? — Ela riu

baixinho.—Vocêsóvaisaberquandoprecisardelas.Nãoémuitotranquilizador,é?—Não,nãomuito—concordouele.—Emesmoassimvocêestáaqui.Eledeudeombros.—Pareciaseracoisacertaasefazer.—ElejogouasPedrasÉlficasdevoltanosacoeoenfiou

de volta na túnica.—Acho que vou ter de esperar e ver o que acontece para saber se eu estavaenganadoounão.

Amberleoestudoucomatençãoporummomento,semdizernada.Eleesperou.—Nóstemosmuitoemcomum,WilOhmsford—porfimeladisse.Cruzouosbraçosaoredor

dos joelhos, puxando-os para si.—Bem, vocême contou quem você é; então acho quemerece amesma gentileza.Meu sobrenome é Elessedil. Eventine Elessedil émeu avô. De certomodo, nósdoisestamosenvolvidosnissoporcausadenossosavôs.

Wilaquiesceu.—Sim,achoquesim.Oventosoprouocabelocastanhodaelfa,fazendo-ocobrirseurostocomoumvéu.Elaafastou

asmechaseolhounovamenteparaooutroladodolago.—VocêsabequenãoquerovoltarparaArborlon—disseamoça.—Sei.—Maséparaláquevocêachaquedevoir,nãoé?Wilrelaxou,apoiando-senoscotovelos,observandooarco-írisacimadeles.—Éparaláqueachoquevocêdeveir—respondeu.—Vocêobviamentenãopodevoltarparao

RefúgioFirme; osdemônios vãoprocurar você lá.Muito embreve, estarãoprocurandopor vocêaquitambém.Vocêprecisacontinuaremfrente.SeAllanonescapou...—Eleparou,distraídocomas implicações daquela declaração. — Se Allanon escapou, ele espera que nós continuemos atéArborlon, e é lá que iremos encontrá-lo.—Olhou-a.— Se você tem alguma ideiamelhor, estouprontoparaescutar.

Por um longo tempo, Amberle não disse nada. Continuou encarando o Lago Arco-íris,observando o movimento gracioso da água, deixando o vento soprar livremente em seu rosto.Quandofinalmentefaloudenovo,foiapenasumsussurro.

—Estoucommedo.Amberlesevirouparaolhá-lo,parecendoprestesadizeralgomais,porémpensoumelhor.Ela

sorriu;oprimeirosorrisosinceroqueWilaviudar.—Somosumadupladetolos,nãosomos?VocêcomsuasPedrasÉlficasquepodemounãosero

quevocêachaquesão,eeu,prestesafazeraúnicacoisaquejureijamaisfazer.—Aelfalevantou-se,afastou-se um pouco e virou-se quando o rapaz se levantou atrás dela.—Quero que você saibadisso. Acho que ir paraArborlon é inútil. Acho queAllanon está errado ameu respeito.Nem aEllcrysnemopovoélficoirãomeaceitardevoltaporque,apesardoqueoDruidaacha,eunãofaçoparte dosEscolhidosmais.—Ela fezumapausa.—Mesmo assim, fazer qualquer outra coisanãoteriasentido,teria?

—Não,paramim,nãoteria—concordouWil.Elaassentiu.—Então, achoque está acertado.—Seu rosto infantil encarou-o, sério.—Só esperoque isso

nãosejaumengano.

Wilsuspirou.—Se for, provavelmentedescobriremos logo.—Ele forçouum sorriso fraco.—Vamospegar

Artaqedescobrir.

Passaramorestantedaquelediaetodooseguinteviajandoparaonorteeparaooeste,atravésdassavanas de Callahorn. O clima estava quente, seco e agradável, e o tempo passava rapidamente.Nuvens escuras de tempestade apareceram ao norte ao meio-dia do primeiro dia, pairando deformaameaçadorasobreaextensãoescarpadadosDentesdeDragão,masaopôrdosolelashaviamsido sopradasparaRabbedesaparecido.O jovemdoValeSombrio e amenina elfa alternavam-seentrecavalgarArtaqeandar,montandojuntosparadepoiscaminharemjuntosporumtempoparadescansaroanimal.Artaqpareciabem,mesmodepoisdeváriashorassendocavalgado,masWilnãoqueria se arriscar a cansaro cavalo.NãoviramsinaldosdemôniosquehaviamdespistadonoRioPrateado,mascomcertezaascriaturasaindaestavamàsolta,procurando-os.WilqueriaqueArtaqestivesseprontoparacorrer,casotivessemoazardeseremencontradosdenovo.

Semternenhumaarma,salvoporumapequenafacadecaçaqueWilcarregavaenfiadanocinto,foram impelidos a comer frutas e vegetais que cresciamnaquela região.Wil achouque a refeiçãoeraobastante,mesmonão sendo satisfatória, eAmberleparecianão se importarnemumpouco.Aocontrário,pareciabastantesatisfeitacomasrefeições.Aelfamostrouaojovemtertalentoparaencontrar comida onde ele não poderia imaginar que existisse, tirando dos lugares maisimprováveis plantas e raízes que identificava prontamente e descrevia em grandes detalhes. Wilouviaatentamenteefaziaperguntasdetemposemtempos,descobrindoqueaqueleeraumassuntoque amoçaparecia disposta a discutir.No começo, tentou atraí-la para outros tópicos,mas tevepoucosucesso.Entãofalaramdeplantaseraízes,viajandoemsilênciopelorestantedotempo.

Naquelaprimeiranoite, dormiramemumbosquede álamospertodeumapequena fontequelhes fornecera água potável. Na metade da tarde do segundo dia, alcançaram o Mermidon ecomeçaramasegui-lonadireçãonorte.Atéaqueleponto,nãohaviamencontradoninguém,masapartir dali passaram por uma meia dúzia de viajantes, alguns a pé, outros a cavalo, alguns empequenas carroças de madeira puxadas por bois. Todos trocavam uma palavra de amizade e umbreveacenoantesdecontinuaremoseucaminho.

Ao pôr do sol eles acamparam nas margens do Mermidon, a sudoeste da cidade de Tyrsis,encontrando abrigo em um bosque de pinheiros e salgueiros. Com um galho de salgueiro, umpoucode linha eumganchode sua roupa,Wil confeccionouuma toscavaradepescar.Emmeiahorapegoudoisrobaloslistrados.Aindalimpavaospeixesnabeiradorioquandoumacaravanadecarroçasapareceuvindadosuleabriucaminhoatéamargemoposta.Casas sobrerodas,pintadascomcoresvivas,comtelhadostriangularesderipasdecedro,portasdemadeiraentalhadasàmãoejanelasreforçadascombronze,ascarroçasbrilhavamcomintensidadesobosolpoente.Gruposdecavalos bem criados puxavam as carroças, seus arreios decorados com pedaços de prata. Várioscavaleiros as acompanhavam, com figuras graciosas envoltas em seda e em faixas coloridas nospescoçosenosfreiosdesuasmontarias.Emboraprecisasselimparospeixes,Wilparouoquefaziaeobservouaestranhaprocissãoaproximar-sedorio,comoseixosdascarroçasrangendo,osarreiosdecouroestalando,vozesgritandoeassobiandodemodoencorajador.Praticamentebemàfrentedo local em que o jovem se encontrava, a caravana formou um círculo aberto e parou.Homens,mulheresecriançasdesceramdascarroçasecomeçaramasoltaroscavaloseaarmaracampamento.

AmberlesurgiudasárvoresatrásdeWilejuntou-seaele.Ojovemolhou-aderelanceeseguiu

seuolhardevoltaaooutroladodorio,paraareuniãonamargemoposta.—Nômades—anunciou,pensativo.Elaassentiu.—Jáosviantes.Oselfosnãotêmmuitosnegócioscomeles.—Ninguémtem.—Elevoltoualimparopeixe.—Elesroubamtudoquenãoestátomado;eo

que está, encontram um jeito de convencer você a soltar. Eles têm as próprias regras e não seimportamcomasregrasalheias.

Amberle lhe tocou o braço e ele levantou os olhos para ver umhomemalto, todo vestido depreto à exceção do manto e do cinto, verdes escuros, acompanhar duas mulheres mais velhas,vestidascomblusasesaiascompridasemulticoloridas,enquantoelascarregavambaldesatéabeiradaágua.Enquantoasmulheresseinclinavamparaencherosbaldes,ohomemaltotirouochapéude abas largas e, comum floreio, curvou-seprofundamenteparaWil eAmberle, seu rostomuitobronzeadomostrando um sorriso largo atrás da barba negra.Wil ergueu um braço e acenou devoltacordialmente.

— Estou contente que eles estejam do outro lado do rio — murmurou para Amberle aovoltaremparaoacampamento.

Saborearam uma saudável refeição de peixe, frutas, vegetais e água da fonte, para depois seacomodarempertodafogueiraeespiar,atravésdeintervalosdeárvores,obrilhodasfogueirasdosnômades, que queimavam na escuridão do outro lado do rio. Ficaram quietos por um tempo,perdidosemseuspensamentos.Wilolhouparaaelfa.

—Comoéquevocêsabetantosobrecoisasquecrescem,comoosjardinsnoRefúgioFirmeeasraízeseplantasquevocêencontrouparanósduranteaviagem?Alguémlheensinouisso?

Umaexpressãodesurpresasurgiunorostodamoça.—Mesmosendoparteelfo,vocênãosabemuitosobrenós,nãoé?Wildeudeombros.—Naverdade,não.Osangueélficoveiotododoladodomeupai,eelemorreuquandoeuera

muitonovo.Nãoachoquemeuavô tenha idoalgumavez àsTerrasdoOeste;pelomenos,nuncafalousobreisso.Dequalquerforma,achoquenuncapenseimuitosobreserparteelfo.

—Sãocoisasquealguémdeveria ter lhe ensinado—disse ela emvozbaixa. Seusolhosverdesencontraram os dele. — Antes de compreender quem somos, primeiro precisamos compreenderquemfomos.

AspalavrasforamditasnãocomoumacríticaaojovemdoValeSombrio,masquasecomoumareprimenda a si.Wil se viu subitamente desejando sabermais sobre aquela garota, encontrar umjeito de convencê-la a confiar mesmo que só um pouco de si a ele, em vez de manter tudo tãofechado.

—Talvezvocêpossameajudaraentenderpelomenosumpouco—pediuele,depoisdepensarporuminstante.

Namesmahora, adúvida surgiunoolhardeAmberle, quase como sepensassequeWil estavabrincandocomela.Aelfahesitouporumlongotempoantesderesponder.

—Muitobem,talvezeupossa.—Amberlevirou-sedeformaaficarsentadadefrenteparaele.—Primeirovocêprecisaentenderqueopovoélficoacreditaqueapreservaçãoda terrae tudooqueviveecrescenela,tantoplantasquantoanimais,éumaresponsabilidademoral.Sempretiveramessa crença, principalmente em seu comportamento como criaturas da terra. No velho mundo,devotavamavida inteira a cuidardas florestas ebosques emquemoravam, cultivandoasdiversasformas de vegetação e abrigando os animais que ali viviam. Claro, tinham poucas preocupações

naquelaépoca, sendoumpovo isoladoe recluso.Tudo issomudouagora,maselesaindamantêmessa crença em sua responsabilidade moral para com seu mundo. Espera-se que todo elfo passepartedesuavidadevolvendoàterraumpedaçodoquetiroudela.Querodizer,espera-sequetodoelfo devote uma parte da vida trabalhando com a terra; consertando os estragos sofridos pornegligência oumaus tratos, cuidandode seus animais e da vida selvagem emgeral, cuidandodasárvoresedasplantasmenoresondeforpreciso.

—ÉpartedoquevocêestavafazendonoRefúgioFirme?Elaassentiu.—Decertomodo.OsEscolhidosestão isentosdesseserviço.Quandodeixeide fazerpartedos

Escolhidosenãomesentimaisbem-vindanaminhapátria,decidiquedeviaserviràterra.AmaiorpartedotrabalhofeitopeloselfosacontecenasTerrasdoOesteporquealiéapátriaélfica.Masnósacreditamosquecuidardaterranãoéunicamenteumaresponsabilidadedoselfos,masdetodososhomens. Os anões compartilham essa preocupação até certo ponto, mas as outras raças nuncaficaram muito convencidas. Então alguns dos elfos saem das Terras do Oeste, indo para outrascomunidades, tentandoensinaraopovoquevivealiumpoucosobresuaresponsabilidadecomoscuidadoseapreservaçãodaterra.EraoqueeuestavatentandofazernoRefúgioFirme.

—Evocêtrabalhavacomascriançasdaaldeia—supôsWil.—Principalmentecomascrianças,poiselassãomaisreceptivasaoqueensinoetêmtempopara

aprender.Aprendisobrea terraquandoeracriança;éa tradiçãodoselfos.Eueramaisdispostaacolocar as lições emusodoque amaioria; eis aí umdosmotivosqueme fizeram ser selecionadaparaingressaraogrupodosEscolhidos,acho.AshabilidadesdosEscolhidosparapreservarecuidarda terrae suas formasdevida sãodasmais elevadas; aEllcrys senteumpoucodisso.Ela temessahabilidade...

Amberle pareceu se controlar no meio de uma ideia que não queria expressar. Parouabruptamente,dandodeombros.

—Dequalquerforma,eueramuitoboaprofessoraparaascriançasdoRefúgioFirme,eopovodaaldeiafoimuitogentilcomigo.ORefúgioFirmeeraomeulareeunãoqueriapartir.

Desviouoolharabruptamenteparaafogueiraentreeles.Wilnãodissenada,inclinando-separafrenteafimdecolocarváriospedaçosdemadeiranaschamas.Depoisdeummomentodesilêncio,elavoltouaolhá-lo.

—Bem,agoravocêsabealgumacoisa sobreos sentimentosélficosemrelaçãoà terra.Eles sãopartedesuaherança,entãovocêdevetentarentender.

—Achoqueentendo—respondeuojovem,reflexivo.—Pelomenosemparte.Nãofuitreinadodentro dos hábitos dos elfos, mas fui treinado pelos Armazenadores como um Curandeiro. Apreocupaçãodelescomavidahumanaépraticamenteamesmaqueoselfostêmparacomaterra.UmCurandeirodeve fazer tudooqueestiveraoseualcanceparapreservarasvidasea saúdedoshomens,mulheres e criançasque ele trata. Foi esseo compromissoque assumiquandodecidi serumCurandeiro.

Aelfaolhou-o,curiosa.—Dealgummudo,issofazpareceraindamaisestranhoofatodevocêtersidoconvencidopor

Allanonacuidardemim.VocêéumCurandeiro,dedicadoapreservaravida.Oquevocêvaifazerse estiver numa situação em que, para me proteger, precise ferir outros, talvez mesmo causar amortedeles?

Wilaencarou,sempalavras.Nuncasequerconsideraraapossibilidadedealgoassimacontecer.Pensandonissonaqueleinstante,experimentouumasensaçãodesagradáveldedúvida.

—Nãoseioqueeufaria—admitiu,desconfortável.Ficaramemsilêncioporumtempinho,encarando-seporcimadafogueira,incapazesdesuperar

oconstrangimentodaquelemomento.Amberlelevantou-sederepente,foiatéojovemesentou-seaoladodele,impulsivamentesegurandoamãodelenasua.Seurostojovemobservava-odetrásdasombradoscabelos.

—Não foi uma pergunta justa a se fazer,Wil Ohmsford. Desculpe por tê-la feito. Você veionestajornadaporqueacreditouquepoderiameajudar.Éerradoeuduvidarquevocêofaria.

—Foiumaperguntajusta—respondeuWilcomfirmeza.—Euapenasnãotenhoresposta.—Nem deveria ter— insistiu ela.— Eu, dentre todas as pessoas, deveria saber que algumas

decisões não podem ser tomadas antes da hora necessária.Nem sempre podemos prever a formacomoascoisasacontecerãoe,portanto,nãopodemospreveroquefaremos.Precisamosaceitarisso.Novamente,desculpe.SeriaomesmoquevocêmeperguntarquedecisãoeutomariaseaEllcrysmedissessequeaindasoumembrodosEscolhidos.

Wilsorriudeleve.—Cuidado.Estoutentadoaperguntarexatamenteisso.Amberlesoltouamãodelenamesmahoraeselevantou.—Nãoofaça.Vocênãogostariadarespostaqueeulhedaria.—Sacudiuacabeçacomtristeza.

—Vocêachaqueessaseriaumaescolhasimples,umaquefariatranquilamente,masestáerrado.A moça voltou para o outro lado da fogueira e pegou seu manto de viagem, sacudindo-o.

Enquantosepreparavaparaseenrolarneleafimdedormir,virou-separaWilumaúltimavez.—Acrediteemmim,homemdoValeSombrio,senossasdecisõesforemnecessárias,asuaseráa

maisfácildasduas.Amberlebaixouacabeçanasdobrasdomantoeadormeceuemminutos.WilOhmsfordencarou

afogueira,pensativo.Apesardenãosaberexplicarporquê,descobriuqueacreditavanela.

CapítuloXIV

Quandoacordaramnamanhãseguinte,Artaqhaviasumido.Primeiro,pensaramqueelepoderiater se afastado durante a noite, mas uma rápida verificação na floresta onde acamparam e nodescampado logo além nãomostrou nenhum sinal do grande cavalo negro. Foi nesse ponto queuma suspeita desagradável começou a se formar no fundo da mente de Wil. Apressadamente,examinouaáreaemqueArtaqforadeixadoparapastar,rondandooperímetrodoacampamentoeficandode joelhosdetemposemtemposparacheirara terraoutocá-lacomosdedos.Amberleoobservava com curiosidade. Depois de algunsminutos assim, o jovem pareceu encontrar algumacoisa. Com os olhos fixos no chão à sua frente, ele começou a caminhar para o sul, por entre apequena fileiradeárvores, rumoàspradarias—trintametros, sessentametros.Começoua seguiremdireçãoao rio.Semfalarnada,aelfa ia logoatrás.Momentosdepois,osdoisestavamdepéàbeira do Mermidon, observando uma série de bancos de areia a várias centenas de metros doacampamentodeles,rioabaixo.

—Nômades.—Wilcuspiuapalavracomosefosseumremédioamargo.—Elesatravessaramatéaquiduranteanoiteeoroubaram.

Amberlepareceusurpresa.—Temcerteza?—Tenho—assentiuWil.—Encontreiseusrastros.Alémdisso,ninguémmaisteriaconseguido.

Artaqteriarelinchadosefossequalquerum,excetoalguémperitoemcavalos,eosnômadessãoosmelhores.Veja,elesjáseforam.

Eleapontouparaooutro ladodo rio,parao localqueacaravanaocuparana savanavaziananoiteanterior.Ficaramolhandoparaláemsilêncio.

—Oquevamosfazeragora?—perguntouAmberle,porfim.Wilestavatãoiradoquemalconseguiafalar.—Primeiro,precisamosvoltareempacotarnossascoisas.Depois,vamosatravessarorioedar

umaolhadanoacampamentodeles.Voltaram para o próprio acampamento, juntando apressadamente os poucos pertences que

carregavam e retornaram ao rio. Atravessaram pelos bancos de areia sem dificuldades. Minutosdepois, alcançaram o acampamento abandonado pelos nômades. Mais uma vez, Wil começou aestudarosolo,movendo-semaisdepressadessavezaopercorrertodaaárea.Porfim,voltouparaondeAmberleoaguardava.

—Meu tio Flickme ensinou a interpretar os rastros quando eu caçava nas florestas perto decasa, no Vale Sombrio— informou ele, seu humor tendomelhorado consideravelmente.—Nóscostumávamos pescar e deixar armadilhas nas florestas de Duln por semanas quando eu erapequeno.Sempreacheiqueumdiapoderiaprecisardoqueaprendi.

Elaassentiu,impaciente.—Oquevocêdescobriu?—Elesforamparaoeste,provavelmentelogoantesdoamanhecer.—Sóisso?NenhumaindicaçãoseArtaqestavacomelesounão?

—Ah,estácomeles,sim.Nosbancosdeareiahaviasinaisdequeumcavaloentraranorio,ládooutrolado,saindobemaqui.Umcavaloevárioshomens.Nãoháengano,elesopegaram.Masnósvamospegá-lodevolta.

Elaoolhouemdúvida.—Vocêquerdizerquevaiatrásdeles?—Claro que vou atrás deles!—Wil estava ficando irritado de novo.—Nós dois vamos atrás

deles.—Sóeuevocê,homemdovale?—Elasacudiuacabeça.—Apé?—Podemosalcançá-losaoanoitecer.Aquelascarroçassãolentas.—Presumindoquepossamosencontrá-las,nãoé?—Não há dificuldade nisso.Uma vez, consegui rastrear um cervo por uma floresta onde não

choviafaziasemanas.Achoqueconsigorastrearumacaravanainteiradecarroçasatravessandoumapradariaaberta.

—Nãogostonadadisso—anunciouelaemvozbaixa.—MesmosenósosencontrarmoseelesestiveremcomArtaq,oqueiremosfazerarespeito?

—Nósnospreocuparemos com issoquandoos alcançarmos— respondeuo rapaz,nomesmotom.

Ajovemelfanãorecuou.— Acho que devíamos nos preocupar com isso agora. Você está falando de caçar um

acampamentocheiodehomensarmados.Nãogosteidoqueaconteceutantoquantovocê,masissonãoédesculpaparanãoconseguirpensardireito.

Wilcontrolouseutemperamentocomesforço.—Nãovouperderaquelecavalo.Emprimeirolugar,senãofosseporArtaq,osdemôniosteriam

nosalcançadonoRefúgioFirme.Elemereceumdestinomelhordoquepassarorestantedavidaaserviço daqueles ladrões. Em segundo lugar, ele é o único cavalo que temos e provavelmente oúnico que vamos conseguir. Sem ele, seremos forçados a andar pelo restante do caminho atéArborlon. Isso levará mais de uma semana, a qual será gasta atravessando essas pradarias. Issoaumenta consideravelmente as chances de sermos descobertos por aquelas coisas que ainda estãonosprocurando.Enãogostodisso.PrecisamosdeArtaq.

—Parecequevocêjásedecidiu—disseelacomorostoimpassível.Eleassentiu.— Sim. Além do mais, os nômades estão indo para as Terras do Oeste mesmo; ao menos

seguiremosnadireçãocerta.Por um momento, Amberle não disse nada; simplesmente fitou-o. Depois, finalmente

concordou.— Tudo bem, vamos atrás deles. Também quero Artaq de volta.Mas vamos planejar isso um

poucomelhorantesdeosalcançarmos.Melhortermosalgumtipodeplanopreparadoatélá,jovemdovale.

Wildeuumsorrisoqueadesarmou.—Nósteremos.Caminharamodia todopelapradaria,seguindoa trilhadacaravana.Estavaquenteeseco,eo

soloscastigavaemmeioaocéuazulesemnuvens.Encontrarampoucassombraspelocaminhoparaaliviar o calor. A água que carregavam logo se foi, e não encontraram um riacho sequer pelocaminho para se reabastecerem. No fim da tarde, só conseguiam sentir o gosto da poeira dapradariamisturadoàsede.Osmúsculosdaspernasdoíametinhambolhasnospés.Falavamumcom

ooutromuitoraramente,conservandosuasforças,concentrando-seemcolocarumpénafrentedooutro, vendo o sol baixar lentamente no horizonte, até que tudo que restou do dia foi um fracobrilhoalaranjadosobreaterra.

Poucotempodepois,começouaescurecer;odiasumiunocrepúsculo,eocrepúsculosumiunanoite. Mesmo assim, permaneceram andando, já incapazes de encontrar as marcas das rodas dascarroças na grama, confiando em seu senso de direção paramantê-los numa linha reta rumo aooeste.Aluaeasestrelasbrilhavamnocéunoturno, jogandosualuzfracanospradosabertosparaguiar o jovem do Vale Sombrio e a jovem elfa enquanto continuavam avançando. Sujeira e suoresfriavamesecavamemseuscorpos,eelessentiamasroupasendurecendodeformadesconfortável.Nenhum dos dois sugeriu parar. Parar significaria admitir que não conseguiriam alcançar acaravananaquelanoite,queseriamforçadosa seguirdaquele jeitopormaisumdia.Continuaramandando,silenciososedeterminados,amoçatantoquantoorapaz,umfatoqueosurpreendeueofezsentirumaadmiraçãoverdadeirapelaforçadela.

E então viram uma luz à distância, uma fogueira brilhante na escuridão, como um farol, eperceberamquehaviamencontradoosnômades.Emsilêncio,caminharamlentamenteatéestaremao alcance dos gritos perto das fogueiras, observando os telhados pontudos das casas-carroçastomarem forma aos poucos, até finalmente a caravana toda estar à vista, organizada num círculoamplocomonasmargensdoMermidon.

WilsegurouobraçodeAmberleeapuxouparabaixogentilmenteatéestaremagachados.—Vamosentrarlá—sussurrouele,osolhosfixosnoacampamento.Elaoencarou,semacreditar.—Éesseoseuplano?—Seiumpoucosobreessagente.Apenasfaçaoqueeudissereficaremosbem.Semesperarpelarespostadela,Wilselevantouecomeçouacaminharemdireçãoàcaravana.A

jovem elfa ficou olhando-o por um momento, antes de se levantar e segui-lo. Conforme seaproximavam das carroças em círculo, os rostos de homens, mulheres e crianças que semovimentavamàluzdafogueiraforamficandovisíveis.Risadasetrechosdeconversastornaram-seaudíveisedistintos.Osnômadeshaviamacabadodeterminararefeiçãonoturnaeunsvisitavamascasas dos outros casualmente. De algum lugar no acampamento vinha o som suave de uminstrumentodecorda.

A vintemetrosdoperímetrodo círculo,Wil gritou. Isso surpreendeu tantoAmberle, que eladeuumpulo.Dentrodoacampamento,todosabandonaramoqueestavamfazendonamesmahora,etodasascabeçasseviraramparaeles.Ouviramumtumultorepentinodepés,quandoumpunhadodehomensapareceunaaberturaentreascarroçasmaispróximasdaduplaqueseaproximava.

Semdizernada,oshomensespiaramanoite,comaluzdafogueiraatrásdesi,transformando-ossilhuetas sem rosto. Wil não diminuiu a velocidade. Continuou andando diretamente para eles,tendoAmberleumoudoispassosatrás.Acaravanainteiraficaraquietaderepente.

— Boa noite!— disseWil, alegremente, ao alcançar o grupo de nômades que bloqueava suapassagemparadentrodoacampamento.

Os homens não disseram nada.No brilho da fogueira, o jovem percebeu o faiscar de lâminasmetálicas.

—Vimossuas fogueiraseachamosquevocêspoderiamnosdaralgoparabeber—prosseguiu,aindasorrindo.—Estamosandandodesdeoamanhecer,semágua,eestamosesgotados.

Alguém abriu caminho pelo grupo de homens silenciosos, um homem alto que trajava ummantoverdeeumchapéudeabaslargas—osujeitoquetinhamvistonorio.

—Ah,osjovensviajantesdeontemànoite—anuncioubaixinho,enãocomosaudação.—Olá de novo— respondeuWil, com voz agradável.—Temodizer que tivemosmuito azar.

Perdemosnossocavaloduranteanoite; eledeve ter fugidoenquantodormíamos.Andamosodiainteirosemágua,ealgogeladoparabebercairiabem.

—Certamente.—O homem alto sorriu, frio. Era alto, com bemmais de 1,80m,magro e derosto ensombrecidoporumabarba e bigodenegros, que conferiamao seu sorrisouma aparêncialevemente ameaçadora.Olhos quepareciam sermaisnegrosdoque anoite ao redor os espiavampordebaixodeumatestaenrugadaeenvelhecida,quedesciaparaumnarizadunco.Amãoqueseergueuparaacenaraoshomensatrásdesitinhaanéisemtodososdedos.

—Tragamágua—ordenoucomosolhosaindanojovemdoValeSombrio.Suaexpressãonãosealterou.—Quemévocê,jovemamigo,equaloseudestino?

—Meu nome éWil Ohmsford— respondeu ele. — Esta é minha irmã, Amberle. Estamos acaminhodeArborlon.

—Arborlon.—Ohomemalto repetiuonome,pensativo.—Bem,vocês sãoelfos, claro;pelomenosemparte.Qualqueridiotapodeverisso.Masagora,vocêdissequeperderamseucavalo.NãoteriasidomaisinteligenteacompanharoMermidonemsuaviagemdoquevirdiretoparaooeste,comofizeram?

Wilsorriuumpoucomais.—Ah, sim,nóspensamosnisso; porém, é importanteque cheguemos aArborlonomais cedo

possível, eandandodemorariamuito.Claro,nósvimosvocêsacampadosdooutro ladodorionanoite passada e vimos também que tinham vários bons cavalos. Achamos que se conseguíssemosalcançá-losaocairdanoite,poderíamostrocaralgodevalorporumdeseuscavalos.

—Algodevalor?—Ohomemaltodeudeombros.—Possivelmente.Teríamosqueveroquevocêpropõecomotroca,claro.

Wilassentiu.—Claro.Uma velha apareceu, carregando uma jarra de água e uma única caneca de madeira. Ela as

passou para Wil, que aceitou sem dizer nada. Com os nômades observando-o, colocou água nacaneca. Não a ofereceu para Amberle, que o olhou, surpresa, enquanto ele a ignoravacompletamente e bebia a água. Depois, serviu uma segunda caneca, e também a bebeu. Quandoterminou,passouajarraeacanecaparaAmberlesemnadadizer.

—VocêsabealgodoCaminho—reparouohomemalto,cominteressenosolhosescuros.—Evocêtambémsabequesomosnômades.

—Játrateidenômadesantes—disseWil.—SouumCurandeiro.Umburburinhobrevepassoupelogrupo,oqualaumentaraconsideravelmentedesdeocomeço

da conversa, e agora era composto por quase todo o acampamento, umas trinta pessoas entrehomens,mulheres e crianças, todos vestidos com roupas coloridas de seda brilhante com fitas elenços.

—UmCurandeiro?Issoéinesperado.—Ohomemaltodeuumpassoàfrente,tirandoochapéucomumfloreioesecurvando.Aoseendireitar,estendeuamãoemcumprimento.—MeunomeéCephelo.SouoLíderdestaFamília.

Wilaceitouamãoeasacudiucomfirmeza.Cephelosorriu.—Bem, vocês nãopodem ficar aí enquanto a noite esfria.Venha comigo. Sua irmã tambémé

bem-vinda.Vocêsdoisparecemprecisardeumbanhoedealgoparacomer.Ele foi à frente, abrindo caminho pelamultidão dos nômades até o círculo de carroças.Uma

fogueira imensa queimava no meio do acampamento, com um tripé e uma chaleira de ferrosuspensos logo acima dela.O brilho do fogo refletia nas cores fortes das carroças,misturando oarco-íris comas sombrasdanoite.Haviabancosdemadeiraabaixodas carroças, intrincadamenteentalhados e polidos, com seus amplos assentos cobertos de almofadas de penas. Janelas comdetalhes embronzeestavamabertasparaa luz, enfeitadas comcortinas emiçancas.Emumamesacomprida, havia um suprimento variado de lanças, espadas e facas de aparência cruel,cuidadosamente organizadas. Dois meninos pequenos lubrificavam diligentemente as lâminas demetal.

Alcançaramafogueiraemquecozinhavam,eCephelovirou-seabruptamente.—Bem,agora,oquequeremprimeiro,comeroutomarbanho?WilsequerolhouparaAmberle.—Umbanho,acho...Paraminhairmãtambém,sevocêspuderemdispensaressaágua.—Podemos—assentiuCepheloevirou-se.—Eretria!Ouviu-se um farfalhar de seda eWil viu-se cara a cara com amulhermais deslumbrante que

jamais vira. Era pequena e delicada, comoAmberle,mas sem a inocência infantil quemarcava ajovemelfa.Ocabelonegroevolumosocaíaemondasporseusombros,emoldurandoolhosescurosemisteriosos. Seu rosto era belo, suas feições, perfeitas e instantaneamente inesquecíveis.Calçavabotas de couro de cano alto, trajava calça e túnica de seda vermelha, trajes que não conseguiamescondernadadamulherembaixodelas.Tirasdepratabrilhavamemseuspulsosepescoço.

Wilolhou-a,estupefato,enãoconseguiudesviaroolhar.—Minhafilha.—Cephelosoouentediado.GesticulouparaAmberle.—Leveajovemcomvocê

edeixequeelasebanhe.Eretriasorriumaliciosamente.—Seriamuitomaisinteressantedarbanhonele—ofereceuela,assentindonadireçãodeWil.—Apenasfaçaoquemandei—ordenouseupai,rispidamente.Eretriamanteveseusolhosnojovem.—Venha,garota—chamou.Virou-seesumiu.Amberleaseguiu,parecendonãoestarnemum

poucosatisfeita.Cephelo levou Wil para o lado oposto do acampamento, onde vários cobertores jaziam

pendurados numa pequena área entre duas das carroças. Dentro havia uma banheira com água.Indoparatrásdoscobertores,Wiltirouasroupaseasdeixounochãodejeitoorganizado.Estavaconsciente de que o nômade observava tudo o que ele tirava, procurandopara ver se ele possuíaalgumacoisadevalor,etomoucuidadoparaqueosacocomasPedrasÉlficasnãosaíssedobolsointernodatúnica.Começouajogaráguaemsicomumaconcha,lavandoasujeiraeosuordodiadeviagem.

— Não é sempre que encontramos um Curandeiro que trata de nômades — disse Cephelo,depoisdeumtempo.—Geralmentetemosdenoscuidarporcontaprópria.

—FuitreinadopelosArmazenadores—respondeuWil.—Elesajudamatodos.—OsArmazenadores?—Cepheloficounovamentesurpreso.—Maselessãotodosgnomos.Ojovemassentiu.—Eufuiumaexceção.—Vocêpareceserumaexceçãodemuitasformas—declarouohomemalto.Elesentou-senum

bancopróximoeobservouojovemsecar-secomumatoalhaecomeçaralavarsuasroupas.—Nóstemostrabalhoparavocê,obastanteparavocêpagarsuacomidaedescanso,Curandeiro.Algunsdenósprecisamdesuashabilidades.

—Ficareifelizemfazeroquepuder—respondeuWil.—Bom.—Ooutroassentiu,satisfeito.—Ireiprocurarroupassecasparavocêusar.Ele se levantoue saiu.Nomesmo instante,Wil tirouasPedrasÉlficasdobolsoda túnica e as

colocounabota,paraemseguidavoltaralavararoupa.Cephelovoltoulogo,carregandosedasdosnômadesparaWilusar.Ojovemaceitouasroupasevestiu-se.Apesardonódesconfortávelcriadopelas Pedras Élficas na ponta de sua bota direita, calçou-a com firmeza, e depois a esquerda.Cephelo chamoua velhaque levara a água antesparapegar as roupasmolhadasdeWil.O jovementregouaroupasemfazernenhumcomentário,sabendoqueseriamminuciosamenterevistadasequenadaseriaencontrado.

Voltarampara a fogueirano centrodoacampamento,ondeAmberle juntou-se a eles, limpaevestidaemroupasparecidascomasdeWil.Cadaumrecebeuumpratodecomidafumeganteeumacaneca de vinho. Sentaram-se perto do fogo, comendo em silêncio enquanto os nômades seacomodavamaoredor,observando-os,curiosos.Cephelosepôsnafrentedeles,sentadodepernascruzadas num almofadão largo com bordas douradas, seu rosto sombrio inexpressivo. Não haviasinaldeEretria.

Quando a refeição terminou, o Líder dos nômades reuniu os membros da Família queprecisavamdaatençãodeWil. Semcomentarnada,o jovemexaminouumporum, tratandoumasériedeinfecções,desarranjosinternos,irritaçõescutâneasefebresmenores.Apesardeelenãoterpedido, Amberle trabalhou ao seu lado, providenciando bandagens e água quente, ajudando naaplicaçãodosremédiosepomadasdeervas.LevouquaseumahoraparaWilterminarseutrabalho.Quandoacabou,Cepheloaproximou-se.

—Vocêfezumbomtrabalho,Curandeiro.—Elesorriu,deformaagradáveldemais.—Agora,precisamos ver o que podemos fazer para você em retribuição.Caminhe comigo umpouco... poraqui.

Ele colocouumbraço comprido sobre os ombrosdo joveme o afastouda fogueira, deixandoAmberlesozinhaparaarrumarabagunça.Osdoisforamparaooutroladodoacampamento.

—Vocêdissequeperdeuseucavalonanoitepassada,pertodeondeacampamos,noMermidon.—OtomdevozdeCepheloerapensativo.—Comoeraseuanimal?

OrostodeWilpermaneceuimpassível.Conheciaaquelejogo.—Umgaranhão,todopreto.—Bem, então.—Cephelopareceu aindamaispensativo.—Encontramosumcavalo comesta

descrição, um excelente animal, hoje demanhã bem cedo. Ele foi até nosso acampamento saindodaspradariasenquantoestávamosamarrandonossosanimaisparaodiadeviagem.Talvezsejaseucavalo,Curandeiro.

—Talvez—concordouWil.— Claro que nós não sabíamos de quem era esse animal — Cephelo sorriu. — Então nós o

trouxemosjuntocomosnossos.Porquenãodamosumaolhadanele?Passaram pelo círculo de carroças para o campo do outro lado. A quinze metros do

acampamento, os cavalosdosnômades estavampresos enfileirados.Duas figuras escuras surgiramna escuridão—nômades armados com lanças e arcos.Uma palavra deCephelo fê-los voltar a seesconder.OhomemaltoguiouWilpelacordaatéapontamaisdistante.AliestavaArtaq.

Wilassentiu.—Éesseocavalo.—Eletemasuamarca,Curandeiro?—quissaberooutrohomem,quasecomoseaperguntao

constrangesse.Wilsacudiuacabeça.—Ah,masissoéuminfortúnio,poisagoranãopodemoster

certeza se ele realmente éo seu cavalo,podemos?Afinal, existeumgrandenúmerode garanhõesnegrosnasQuatroTerras, e comopoderemosdiferenciá-los se seusdonosnãoosmarcam? Isso éumsérioproblema,Curandeiro.Querolhedaressecavalo,masmearriscomuitosefizerisso.Querdizer,suponhaqueeuodêavocê,comoquerofazer,masoutrohomemvenhaatémimedigaquetambémperdeuumgaranhãonegro, e entãodescobrimosquepor engano eudei a vocêo cavalodele.Oras,assimeuseriaresponsávelpelaperdadaquelehomem.

— Sim, acho que é verdade— concordouWil, com o toque de dúvida apropriado, evitandocuidadosamentequalquerdiscussãocontraaridículasuposiçãodooutrohomem.Afinal,eraapenaspartedojogo.

—Claro que acredito em você.—O rosto deCephelo ficou solene.—Com certeza, se existealguémnestemundoemquempodemosconfiar,estealguéméumcurandeiro.—Elesorriucomoprópriogracejo.—Noentanto,aindaexisteriscoparamimseeuescolherlheentregaresteanimal;preciso aceitar esse fato, sendo um homem prático em um ramo geralmente difícil. E existe oproblemada comida e do cuidadodispensados a este animal.Nós cuidamosdele e o protegemoscomo se fosse nosso; nós o alimentamos com a comida que carregamos para os nossos. Vocêentenderáseeudisserquesintoquevocênosdevealgoporisso.

—Claro—assentiuWil.—Muitobementão—Cepheloesfregouasmãos,satisfeito.—Estamosdeacordo.Tudodeque

precisamoséestabeleceropreço.Antes,vocêmencionoutrocaralgodevalorporumcavalo.Talvezagorapossamosfazerumatroca justa;oquequersejaquevocêcarregueparasatisfazerseudébitoconosco.Ecomessabarganha,nãofalareinadasobreterencontradoestecavaloaqualquerumquevierfalarsobreaperdadeumgaranhãonegro.

Ele piscou,maliciosamente.Wil foi atéArtaq e acariciou sua fronte suave, deixando o cavaloesfregarofocinhoemseupeito.

—Temonãoternadadevalor—dissepor fim.—Nãotrouxenadacomigonaminha jornadaquepossapagarpeloquevocêfez.

OqueixodeCephelocaiu.—Nada.—Nadamesmo—Masvocêdissequetinhatrazidoalgodevalor...—Ah, sim— assentiuWil, rapidamente.—Quis dizer que eu poderia oferecermeus serviços

comoumCurandeiro;acheiqueissopoderiavaleralgumacoisa.—Masvocêprestouessesserviçosempagamentodecomida,abrigoeroupasparavocêepara

suairmã.— Sim, é verdade.—O jovem parecia pouco satisfeito com aquela ideia. Respirou fundo.—

Talvezeupossasugeriralgo?—Umolhardeinteresserenovadosurgiunorostodooutro.—Bem,parece que nós dois estamos viajando para as Terras do Oeste. Se você permitir que nós oacompanhemos, talvez tenhamos uma oportunidade de recompensá-lo. Você poderá precisar deminhashabilidadesoutravez.

— Isso parece improvável— ponderou Cephelo. Sacudiu a cabeça.—Você não tem nada devalorparadaremtrocapelocavalo,nadamesmo?

—Não,nada.— É um jeito miserável de viajar — resmungou o nômade, esfregando o queixo barbado. O

jovemnãodissenada,esperando.—Bem,achoquenãovaifazermaldeixarvocêsviajaremconoscopelomenosatéasflorestas.Porém,sãoapenasunspoucosdiasdeviagem,esevocênãotiverfeito

mais nada por nós até então, pode ser que fiquemos com seu cavalo como compensação. Vocêentende.

Wilassentiu,emsilêncio.—Maisumacoisa—Cepheloseaproximou,orostonãomaisexpressandosimpatia.—Acredito

quevocênãoseriatoloapontodetentarroubarestecavalodenós,Curandeiro.Vocênosconhecebemobastanteparasaberoqueaconteceriasevocêtentassealgoassim.

Ojovemrespiroufundoeassentiumaisumavez.Elesabia.—Bom.—Ohomemaltorecuou.—Esforce-separanãoesquecerisso.Estavaclaramenteinsatisfeitocomomodocomoascoisashaviamcorrido,masdeudeombros

comindiferença.—Chegadenegócios.Venhaatéaminhacasaebebacomigo.Ele guioude volta ao círculoda caravana, batendopalmas com força ao entrar, chamandoos

queestavamnascarroçasparasereuniremesejuntaremcomvinhoemúsicaafimdecelebraraboasortedodiaedarasboas-vindasaojovemCurandeiroquehaviasidotãogentilcomeles.Wilestavasentado próximo ao Líder em um banco estofado colocado na frente da carroça dele, enquantohomens,mulheresecriançasdoacampamentonômadeseagrupavamaoredorcomavidez.Ovinhofoiservidodeumgrandebarrilecanecasforampassadasparatodos.Cepheloficoudepéeofereceuum brinde empolado à boa saúde de sua Família. Canecas foram erguidas ao alto em resposta erapidamente esvaziadas.Wil bebeu a sua juntamente aosdemais.Olhou apressadamente emvolta,procurando por Amberle, e a encontrou sentada perto do limite do círculo de rostos que ocercavam.Nãopareciaestarnadasatisfeita.Queriatertempoparaexplicartudooqueacontecera,masissoteriadeesperaratéteremummomentodeprivacidade.Porenquanto,aelfasimplesmenteteriadeaguentarjuntoaWil.

As canecas foram sendo enchidas novamente, outro brinde foi proposto e todos beberam denovo. Cephelo gritou pedindomúsica. Instrumentos de corda e pandeiros foram trazidos e seusdonoscomeçaramatocar.Amúsicaeraaomesmotemposelvagem,assombrosaelivreconformeseavolumavananoite.Osrisosdosnômadessubiramcomela,alegresedespreocupados.Maisvinhofoiservidoerapidamenteconsumido,ehouvegritosdeincentivoparaosmúsicos.Wilsentiuquecomeçavaaficartonto.Ovinhoeraforte, fortedemaisparaalguémdesacostumadoabebercomoosnômades. Precisava ter cuidado, pensou consigo ao erguerdenovo a canecaquandoumnovobrinde foi proposto, dessa vez bebericando em vez de virar o líquido âmbar. Na ponta da botadireita,sentiuaformareconfortantedasPedrasÉlficaspressionandoseupé.

Osmúsicostocarammaisrápidoeosnômadesficaramdepéedançaram,seisouoito,formandoumcírculocombraçosentrelaçadosenquantogiravamaoredordafogueira.Maisgenteselevantouparaseuniraeles,equemaindaseencontravasentadocomeçouabaterpalmas,ensandecido.Wiljuntou-se a eles, colocando sua caneca no banco. Quando a pegou de volta, encontrava-senovamentecheia.Capturadopeloespíritodamúsica,bebeudeumavez,sempensar.Osdançarinosse separaram, voltando a unir-se em pares, girando e pulando na frente das chamas. Alguémcantava,umsommelancólicoquesemisturavadeformasuavementeestranhaàmúsicaeàdança.

De repente, Eretria surgiu diante dele, bela e misteriosa, seu corpo esguio coberto de sedaescarlate.Seusorrisoeraesfuziantequandoestendeuosbraços,pegando-opelasmãosefazendo-olevantar-se.Elaopuxouparaomeiodosdançarinos,afastando-sedeleporuminstanteegirandopara longe em um lampejo de laços e cabelo negro. E então aproximou-se de novo; seus braçosmagros o seguraram enquanto eles dançavam. O perfume de seu cabelo e corpomisturava-se aocalor do vinho correndo em seu sangue. Ele a sentiu pressionando o corpo contra o seu, leve e

maciocomoumapena,dizendocoisasqueelenãoconseguiaouvircomclareza.Omovimentodadançaodeixoutonto;tudoàsuavoltacomeçouasemesclarnumlabirintodecoresquerodopiavacontrao fundonoturno.Amúsicaeaspalmas ficarammaisaltas,assimcomoosgritoseassobiosdosnômades.Elesentiu-sesairdochão,aindaabraçadoaEretria.

Eentãoelatambémsefoieelecomeçouacair.

CapítuloXV

Eleacordoucomapiordordecabeçadesuavida.Foiasensaçãodesersacudidocomoumgalhofino emumaventaniaqueo fez acordar, edemoroumuitos longosminutosparaperceberque seencontravaesticadonosfundosdeumadascarroçasdosnômades.Estavadeitadonumcolchãodepalha em uma cama demadeira encostada na parede traseira da casamóvel, olhando para cima,paraumaestranhacoleçãode tapeçarias, sedase rendas, ferramentasdemetaledemadeira, tudobalançandocomomovimentodacarroça,queavançavae se sacudiapelasplanícies.Uma faixadeluz brilhante passava por uma janela parcialmente quebrada, e Wil soube que passara a noitedormindo.

Amberleapareceupertodelecomumaexpressãodereprovaçãonosolhosverde-mar.—Nãoprecisoperguntarcomovocêestásesentindoestamanhã,preciso?—questionouela,e

suaspalavrassoaramquase inaudíveissobreoruídodasrodas.—Esperoque tenhavalidoapena,jovemdoValeSombrio.

— Não valeu. — Ele sentou-se devagar, sentindo a cabeça latejar violentamente com omovimento.—Ondeestamos?

—Na carroça de Cephelo. Desde a noite passada, se é que você consegue se lembrar de umpassadotãodistanteassim.Eudisseaelesquevocêaindaestavaserecuperandodeumafebreequeseumal estarpoderia ter sidoprovocadoporalgoalémdovinho.Entãomecolocaramaquiparacuidardevocêatéeutercertezadequevocêestariamelhor.Bebaisso.

Ela lheentregouumacanecaquecontinhaalgumlíquidoescuro.Wilobservou,desconfiado,abebidadeaparênciadesagradável.

—Beba— com firmeza ela repetiu.—É um remédio de ervas para o uso excessivo de vinho.TemcoisasquenãoseprecisaserumCurandeiroparasaber.

Elebebeudeumgolesemdiscutir.Foiquandopercebeuqueestavasemsuasbotas.—Minhasbotas!Oqueaconteceucom...?—Fique quieto!— avisou ela, gesticulando rapidamente para a frente da carroça, ondehavia

uma portinhola de madeira fechada. Sem dizer nada, ela colocou os braços debaixo da cama epuxou os objetos em questão, e depois tirou da faixa ao redor da própria cintura o saquinho decouroquecontinhaasPedrasÉlficas.

Ojovemrecostou-senovamentecomexpressãodealívio.—Afestafoiumpoucodemaisparavocê—continuouela,comumtraçodesarcasmonavoz.

—Depoisquevocêdesmaiou,Cephelofezvocêsercarregadoatéaquiparadormir.Ele iachamaraquelavelhaparatirarasuaroupaquandoeuoconvencidequeseafebretivessevoltado,poderiaser contagiosa e que, de qualquer forma, você ficaria ofendido caso as suas roupas fossem tiradassem suapermissão.Aparentemente, elenão considerouo assunto tão importante, poismandou amulhersair.Depoisqueelesaiutambém,eurevisteivocêeencontreiasPedrasÉlficas.

Eleassentiuemaprovação.—Vocêmanteveobomsenso.— Que bom que um de nós manteve. — Ela ignorou o elogio dele com um arquear de

sobrancelha.Olhouderelanceoutravezemdireçãoàportafechada.—Cephelodeixouavelhanooutrocômodopara ficardeolhonagente.Achoqueelenãoficoutotalmenteconvencidodequesabetudoquedeveriasobrevocê.

Wilinclinou-separafrente,apoiandooqueixonasmãos.—Issonãomesurpreende.—Entãoporqueaindaestamosaqui, tirandoo fatodequevocêbebeuvinhodemaisnanoite

passada?—Elaquissaber.—Aliás,porqueestamosaqui,paracomeçar?OrapazestendeuamãoparaasPedrasÉlficaseAmberleasentregouaele,quecolocouosaco

decourodevoltanabotadireitaecalçouasduasbotascomfirmeza.Depois,gesticulouparaqueelaseinclinassemaisperto.

—PorqueprecisamosacharumjeitoderecuperarArtaqdessaspessoasenãovamosconseguirsenãoficarmoscomeles—sussurroualtoobastanteparaaelfaouvi-loporcimadosrangidosdacarroça. — E tem outro motivo. Os demônios que nos perseguiram desde o Refúgio Firmeprocuramporapenasduaspessoas,nãoporumacaravanainteira.Talvezviajandocomosnômadesnósosdespistemos.Alémdomais,continuamosviajandoparaooeste,queéparaondequeremosir,eestamosindomaisrápidodoqueseviajássemosapé.

—Certo.Mas tambéméperigoso,homemdovale—apontouela.—Oquevocêplaneja fazerquandoalcançarmosasflorestasdasTerrasdoOesteeCepheloaindaserecusaralhedarArtaq?

Eledeudeombros.—Voumepreocuparcomissoquandoforahora.—Nós já tivemosessadiscussão.—Amberle sacudiua cabeça comdesgosto.—Vocêpoderia,

pelo menos, tentar confiar em mim um pouco mais do que tem feito até agora. Não é muitotranquilizadorterquemeapoiaremvocêenãoteramenorideiadoquevocêpretende.

—Você está certa—concordouWil.—Lamento sobre anoitepassada.Eudeveria ter faladomaisantesdeentrarmosnoacampamento,mas,parafalaraverdade,euaindanãotinhacertezaseiriadarcaboàatépoucoantesdeosencontrarmos.

—Acredito.—Elafranziuatesta.— Olhe, vou tentar explicar um pouco agora — ofereceu Wil. — Os nômades viajam em

Famílias. Até aí você sabe. O termo “Família” é um pouco enganador, no entanto, porque nemtodososmembros têm laçosde sangue.Osnômades trocamouatémesmovendemsuasesposasefilhosparaoutrosacampamentoscomfrequência.Éumtipodesituaçãodepropriedadecomunal.Cada Família tem um Líder, uma figura paterna que toma todas as decisões. Mulheres sãoconsideradassubservientesaoshomens;éissoqueéchamadode‘Caminho’.Paraosnômades,essaéa ordem natural das coisas. Eles acreditam firmemente que as mulheres existem para servir eobedeceraoshomens,queasprotegememantêm.Éumatradiçãoentreeles,eaquelesqueentramem seus acampamentos devem respeitar esse costume para serem bem-vindos. Foi por isso quepeguei a água primeiro. Foi por isso que deixei você arrumar tudo depois que cuidamos dosdoentes.Queria convencê-losdeque eu entendia e respeitava suas crenças. Se acreditassemnisso,haviaumachancedenosdevolveremArtaq.

—Acoisanãopareceterseresolvidoassim—observouAmberle.—Não, ainda não— admitiu o jovem.—Mas nos deixaram viajar com eles; e normalmente

sequercogitariamalgoassim.ForasteirosnãotêmmuitautilidadeparaNômades.—Deixaram-nos viajar com eles porqueCephelo está curioso a seu respeito e quer descobrir

mais do que só aquilo que você contou. — Ela fez uma pausa. — Eretria tem mais do que uminteressepassageiroemvocê.Eladeixouissobemclaro.

Elesorriu,apesardetudo.—Suponhoquevocêachequeeugosteidetodaadançaebebidadanoitepassada?—Sevocêrealmentequersaber,sim,éexatamenteoqueacho.Amberle disse isso sem o menor traço de sorriso.Wil recostou-se, e a cabeça latejou com o

movimento.—Tudobem,admitoqueexagerei.Masháumbommotivoparaoque fiz,apesardoquevocê

possapensar.Eranecessárioparaacreditaremquenãosoumaisespertoqueeles.Seachassemqueeufosse,nósdoisestaríamosmortos.Entãomedeixeibeber,dançaremecomportarcomoqualqueroutro forasteiro faria sob asmesmas circunstâncias; apenas para evitar que desconfiassem.—Wildeudeombros.—NãopossofazernadasobreoqueEretriapensademim.

—Nãoestoupedindoque faça.—Aelfa ficouzangadaderepente.—Nãome importocomoqueEretriapensadevocê.Sómepreocupoquevocênosentregueporagircomoumtolo!

Amoçaviuaexpressãosurpresaquesurgiunosolhosdeleecoroumuito.—Apenas tenhacuidado, sim?—complementouela rapidamente,pegandoacanecavaziadas

mãos dele, e se virou, dirigindo-se para a parte oposta da carroça. Wil a observou afastar-se,curioso.

Ummomentodepois,Amberlevoltou,calmaetranquilaoutravez.—Hámaisumacoisaquevocêprecisasaber.Maiscedonestamanhã,acaravanaencontrouum

velho caçador viajando para leste. Ele acabou de passar por Tirfing, uma região de lagos que fazfronteiracomasflorestasdasTerrasdoOeste,alémdoMermidon.AvisouCepheloparanãoirporlá.Dissequetemumdiabolá.

Wilfranziuatesta.—Umdiabo?—Ele chamoude diabo, umnomeque os nômades usampara algo quenão é humano, que é

maligno.—Ela fezumapausa significativa.—Pode serqueessediabo sejaumdosdemôniosqueatravessaramaProibição.

—OqueCephelodissesobreessediabo?Amberlesorriudeleve.—Elenãotemmedodediabos.PretendeentraremTirfingmesmoassim,jáestádecidido.Acho

que ele tem negócios exigindo que ele passe por esse caminho. O restante da Família não ficoumuitofelizcomadecisão.

Wilaquiesceu.—Eutendoaficardoladodeles.Ajovemelfalançou-lheumolharcuidadoso.— Eu tenderia a não ficar do lado de ninguém neste acampamento, se fosse você. Lembre-se

dissoselheofereceremmaisvinho.Ela virou-se sem dizer mais nada e voltou para o lado oposto da carroça, escondendo seus

movimentosdojovemdovale.Wilfezmençãodeiratrásdela,irritado,masadordecabeçalogoofezrepensaraideia.Sentou-senovamentecomcuidado,descansandoacabeçalatejantecontraumpedaçodoapoiofeitodecaniçosentrelaçadosqueforravaaparededacarroça.Umacoisaeracerta,pensou, soturno.Aelfanãoprecisavasepreocuparcomapossibilidadedeelebebermaisdaquelevinho.

Acaravanaviajousempararnadireçãooesteatéomeio-dia,quandoparouportempobastantepara os nômades fazeremum almoço breve.Àquela altura,Wil sentia-semuitomelhor, portantoconseguiucomerumpoucodacarnesecacomvegetaisquecompunhamarefeição.Cephelofalou

com ele brevemente, perguntando educadamente sobre sua saúde, daí afastou-se, tendo a menteclaramente voltada para outros assuntos. Havia resmungos vagos entre os nômades sobre o ditodiabo, e ficou claro para o jovem que a Família estava bem preocupada com o relato do velhocaçador.Osnômades erammesmoumpovo supersticioso, e adecisãodeCephelode ignorarumavisodessesnãofoimuitopopular.

O restante da tarde passou rapidamente.Wil teve sua vez conduzindo a carroça de Cephelo,enquantoavelhacochilavaatrás.Amberleiaaoladoenquantoeleguiavaogrupodequatrocavalospela fileira da caravana através da grande extensão de pradarias, zumbindo e cantando baixinhoparasi,massemfalarmuitocomele.O jovemadeixouempaz,concentrando-sena tarefaàmão,encarandopensativamenteavastidãodaplanície.Porváriasvezes,Cephelopassouporelesemumalazão,comseumantoverdeflutuandoatrásdesieseurostosombriocobertoporumafinacamadadesuordevidoaocalordodia.Emdeterminadomomento,WilavistouArtaqderelancequandooscavalosreservasdosnômadesforamconduzidospelascarroçasparaumbebedouroemalgumlugaràfrentedacaravana.Nãoestavasendocavalgado,epareciaqueatéaquelemomentoCepheloaindanão decidira como usaria o animal negro— o que significava, esperançosamente, que ainda nãoestavacertosetinhaintençãodemantê-lo.

Poucomais de uma hora antes do pôr do sol, entraram emTirfing, uma região de pequenoslagose florestascircundantes,espalhadosabaixodabordadaspradarias.Maisparaoeste,embaixodabolavermelhadosolpoente, jaziaamassaescuradasflorestasdasTerrasdoOeste.Ascarroçasnômadescontinuaramseucaminhoemcurva,descendoplaníciesaforarumoàsfaixasdeflorestadeTirfing,porumatrilhadeterrabatida,abertacomapassagemdeincontáveisoutrosviajantesantesdeles.O calor da pradaria aberta dissipou-se rapidamente ao alcançaremo abrigo das árvores; assombras estendiam-se pela trilha com a chegada do crepúsculo. Por entre brechas na floresta,começaramaavistarrelancesdepedaçosdoslagosquepontilhavamaregiãoaoredor.

Estava escuro quando Cephelo finalmente os fez parar em uma grande clareira cercada decarvalhos com vista para um pequeno lago ao norte, a várias centenas de metros. As carroçasassumiramacostumeiraformaçãocircular,rangendoeestalandoaopararem,exauridas.Wilestavatão duro que mal conseguia se mexer. Enquanto os homens nômades trabalhavam soltando osanimais e as mulheres começavam os preparativos para a refeição noturna, o jovem do ValeSombrio desceu com cuidado do assento duro e tentou andar paramelhorar a rigidez. Amberledecidiu seguir por outro caminho, e o rapaz não se preocupou em ir atrás dela. Mancou pelocírculodacaravanaatéolimitedasárvores,parandoparasealongardolorosamenteepermitindoqueosanguecirculasselivrementepelosmembrosdoloridos.

Minutos depois, escutou passos e virou-se para ver Eretria se aproximando, sua figura esguiaapenasmais uma sombranapenumbra.Usavabotas de cano alto e roupasdemontaria de couro,com um lenço de seda vermelha na cintura e outro no pescoço. O cabelo negro caía-lhe pelosombros, solto e ao vento. Ela sorriu ao se aproximar de Wil, os olhos escuros brilhandomaliciosamente.

—Nãováparamuitolonge,WilOhmsford—avisouela.—Umdiabopodeencontrá-lo,eoquevocêfaria?

—Deixariaquemepegasse—Wilfezumacareta,esfregandoascostas.—Dequalquerjeito,nãoplanejovaguearmuitoantesdojantar.

O jovem sentou-se na grama alta, apoiando as costas contra um dos carvalhos. Eretriacontemplou-osemdizernadaporuminstante,depoissentou-seaoseulado.

—Ondevocêesteveodiainteiro?—perguntou,tentandoconversar.

—Vigiando você— respondeu Eretria, e sorriu maliciosamente ao ver a expressão no rostodele.—Vocênãomeviu,claro.Eraessaaintenção.

Wilhesitou,desconfortável.—Porquevocêestavamevigiando?— Cephelo queria que você fosse vigiado. — A mulher arqueou as sobrancelhas. — Ele não

confiaemvocê,nemnaelfaquevocêdizsersuairmã.Ela o encarava audaciosamente, como se o desafiasse a contradizê-la. Wil sentiu um breve

momentodepânico.—Amberleéminhairmã—declarouorapazdaformamaisfirmequeconseguiu.Eretriasacudiuacabeça.—Aelfa é tão sua irmãquanto sou filhadeCephelo.Elanãoolhapara você comouma irmã

faria; osolhosdeladizemalgodiferente.Mesmoassim,não fazdiferençaparamim.Se vocêquerqueelasejasuairmã,queseja.SónãodeixeCephelopegá-lonessejoguinho.

FoiavezdeWilencará-la.— Espere umminuto— disse o rapaz depois de um instante.—O que você quer dizer com

Amberle serminha irmã tanto quanto você é filha deCephelo?Ele disse que você era filha dele,não?

— O que Cephelo diz e a verdade não são necessariamente a mesma coisa. Na verdade,raramente são.—Eretria inclinou-separa frente.—Cephelonão tem filhos.Eleme comproudomeupaiquandoeutinhacincoanos.Meupaierapobreenãotinhanadaparameoferecer.Tinhaoutrasfilhas,entãonãosentiriafaltadeuma.AgorapertençoaCephelo.Masnãosoufilhadele.

Amoça falou demodo tão prático que, por ummomento,Wil não conseguiu pensar no queresponder.Percebendosuaconfusão,elariualegremente.

—Somosnômades,Wil.Vocêconhecenossoscostumes.Alémdomais,poderiatersidomuitopior.Eupoderiatersidovendidaaumhomemmuitomenor.CepheloéumLíder,eletemrespeitoe posição. Como sua filha, eu me beneficio com isso. Tenho mais liberdade que a maioria dasmulheres.Eaprendimuito,Curandeiro.Issometornoumelhordoquemuitos.

—Nãoquero ser eua testar isso—admitiuWil.—Masporquevocêestámecontando tudoisso?

Eretriaapertouoslábiosdeformaprovocadora.—Porquegostodevocê.Oquemaispoderiaser?—Écomissoqueestousurpreso.—Eleignorouoolhardamoça.Elaseendireitouderepente,comumaexpressãopetulante.—Vocêestácasadocomaquelagarotaelfa?Elafoiprometidaavocê?Asurpresadelefoievidente.—Não.—Ótimo. Foi o que pensei.—A petulância desapareceu. Ela parou, e seu sorriso foi ficando

maisumavezmalicioso.—Cephelonãopretendedevolverseucavalo.Wilanalisouadeclaraçãocomcuidado.—Vocêsabedissoporacaso?—Euseicomoeleé.Nãovaidevolverseucavalo.Deixarávocêseguirseucaminhosevocênão

causarnenhumproblemanem tentarpegaro cavalode volta,mas jamais odariade voltadeboavontade.

Orostodojovemestavainexpressivo.—Vouperguntardenovo...Porquevocêestámedizendoisso?

—Porquepossoajudar.—Eporquevocêfariaisso?—Porquevocêtambémpodemeajudar.Wilfranziuatesta.—Como?Eretriacruzouaspernasdiantedesiecolocouasmãosnosjoelhos,inclinando-separatrás.Seus

olhosescurosdançavam,divertindo-se.—Eupoderiaapostar,WilOhmsford,quevocêémuitomaisdoquenoscontou;quevocêcom

certezaémaisdoqueumsimplescurandeiroviajandopelasplaníciesdeCallahorncomsua irmã.Poderiaapostarqueessagarotafoi-lheconfiadaequevocêaacompanhacomoumaescolta,talvezumprotetor.—Amãomorenaseergueuapressadamente.—Nãosedêaotrabalhodenegar isso,Curandeiro; uma mentira dos seus lábios seria desperdiçada comigo, pois sou a filha do maistalentosomentirosodomundoeconheçoessaartemuitomelhordoquevocê.

Eretriasorriuepousouamãonobraçodele.—Gostodevocê,Wil; issonãoémentira.Queroquevocêrecupereseucavalo.Obviamente,é

importante para você tê-lo de volta, ou não teria vindo atrás de nós. Sozinho, você não vaiconseguir.Maspossoajudá-lo.

Wilpareciaduvidar.—Porquevocêfariaisso?—perguntou,porfim.—Seeuajudarvocêarecuperarocavalo,queroquevocêmelevejuntoquandosefor.—Oquê?!—Aexclamaçãosaiudesuabocaantesquepudessepensarmelhor.—Leve-mecomvocê—repetiuelacomfirmeza.—Nãopossofazerisso!—Pode,sequerterseucavalodevolta.Elesacudiuacabeça,desanimado.—Porquevocêiriaquererpartir?Vocêacaboudemecontarque...Elaointerrompeu.—Tudoaquilo estánopassado.Cephelodecidiuqueestánahorade eumecasar. Seguindoa

tradiçãonômade,eleescolherámeumaridoe,porumpreço,irámeentregaraele.Minhavidatemsidoboa,masnãotenhoamenorintençãodeservendidapelasegundavez.

—Vocênãopodesimplesmenteiremborasozinha?Vocêparececapazdisso.—Soucapazdemuitomais,seforpreciso,Curandeiro.Eéporissoquevocêprecisarádemim.

Sevocê recuperarocavalo,oqueduvidoqueconsiga semminhaajuda,osnômades irãoatrásdevocê. Jáquevocê seráperseguidodequalquer jeito,não serianenhum incômodoamaisme levarjunto com o cavalo. Principalmente porque eu conheço o bastante sobre os nômades para lheindicaroquefazerparadespistá-los.—Eladeudeombros.—Equantoapartirsozinha,jápenseiarespeito.Senãomerestasseoutraescolha, faria issoparanãoservendidadenovo.Masparaondeiria?Umnômadenãoébem-vindoemlugarnenhume,gostandoounão,é issoquesou.Sozinha,nãoserianadaalémdeumapáriaentreasraçaseminhavidanãoseriaagradável.Mascomvocêeupoderiaseraceita;vocêéumCurandeiroeaspessoasorespeitam.Eupoderiaatémesmoviajarcomvocê.Poderiaajudaracuidardosdoentes.Vocêveriaqueeu...

— Eretria— interrompeuWil com gentileza. — Não há motivos para discutirmos isso. Nãopossolevá-lacomigo.NãopossolevarninguémalémdeAmberle.

Orostodelaficousombrio.—Nãomerejeitetãorápido,Curandeiro.

— Isso não tem nada a ver com rejeitar você — respondeu ele, tentando ao mesmo tempodecidiroquantopoderiacontaraela.Nãomuito,percebeulogo.—Escute.Nãoseriaseguroparavocê viajar comigo por ora.Quando eume for, Cephelo não será o único atrás demim.Haveráoutros,muitomais perigososdoque ele. Estãomeprocurando agora. Se eu a levasse junto, vocêestariaemgrandeperigo.Nãopossopermitirisso.

—Aelfaestáviajandocomvocê—insistiuela.—Amberleestácomigoporqueprecisa.—Palavras.Nãoacreditonelas.Vocêmelevarácomvocê,WilOhmsford.Vocêmelevarácom

vocêporqueprecisa.Elesacudiuacabeça.—Nãoposso.Anômadelevantou-seabruptamente,comseubelorostomorenoirritadoedeterminado.—Vocêmudarádeideia,Curandeiro.Chegaráahoraemquevocênãoteráescolha.Virou-se e foi embora. A alguns metros dele, parou e olhou para trás de súbito, e os olhos

negrosfixaram-senosdele.Dasombraqueeraseurosto,brilhouaquelesorrisoencantador.—Fuifeitaparavocê,WilOhmsford—afirmouela.Manteve o olhar nele por mais um momento, em seguida virou-se para retornar ao

acampamento.Ojovemficouobservando-nasumircomumleveassombro.

CapítuloXVI

Ojantarfoiservidoecomido,elogodepoisumatossegraveeprofundaressoounomeiodossonstranquilosdanoite e fez todos congelarem.Veioda extremidade sul do lago emqueosnômadesestavamacampados—uma,duasvezes,paradepoissumir.Todasascabeçasseviraramjuntas,comos rostos assustados e ansiosos.Minutos depois, a tosse soou de novo, ribombando na escuridãocomo o urro arquejante de um touro monstruoso gritando um desafio. Os nômades voaramapressadamenteparapegar suas armas edepois correramatéoperímetrodo círculode carroças,espiando a noite. Porém, o sommorreu e não se repetiu.Cephelo emais de umadezena de seushomens ficaram à espera por um tempo, prevendo que algomais poderia ocorrer.Quando nadaaconteceu,ordenou,mal-humorado,que todosvoltassemparaa fogueiraeparaovinhonoturno.Brincando alto sobre diabos e criaturas que espreitavam a noite, vangloriou-se, dizendo quenenhuma dessas coisas se atreveria a entrar em um acampamento nômade sem pedir permissão.Canecas de vinho foram enchidas de novo e distribuídas, e todos beberam com vontade. Porém,olharesderelancecontinuaramaserdirigidosemdireçãoaosom.

Meia hora depois, soounovamente,mais perto do que antes, repentino e denso.Osnômades,assustados, ficaram de pé num salto, pegando suas armas pela segunda vez e correndo para aextremidadedoacampamento.Wil foicomelesdessavez,Amberleapenasumpassoatrásquandoelealcançouumvãoentreduasdas carroçasnômadese espioucomcautela.Nãohavianadaparaser visto. Nada semexia. Hesitante, Cephelo foi lentamente até o limitemáximo da floresta quecercava a pequena clareira, as mãos segurando o punho da espada larga e pesada com firmeza.Permaneceu assim por um tempo; sua figura alta e escura contra as árvores, pronta para sedefender.Houveapenassilêncio.Finalmenteelesevirouevoltou,comorostodeterminado.Nãohouvemais brincadeiras.Os cavalos, que estavampresos em fila numa pequena entrada perto dolago, foramtrazidosparamaisperto,a fimdeseremmaisbemvigiados.Guardas foramcolocadosem todooperímetroda clareira e avisadosparamanterosolhosabertos.Todososdemais foramlevados de volta para dentro do círculo de carroças, onde se acomodaram ao redor da luztranquilizadora do fogo. O vinho circulou, porém foi menos bebido dessa vez. A conversa foiretomada, mas baixa e sussurrada, e a palavra “diabo” era dita frequentemente. Os homensmantinhamasmulheresecriançasporperto,etodospareciamextremamenteinquietos.

WilafastouAmberledogrupoansioso,decabeçabaixa.— Quero que você fique por perto— disse num sussurro. — Não saia de perto por motivo

nenhum.—Nãosairei—prometeuela.Seusolhostinhamumaexpressãointensaaoencontraremosdele,

eentãosedesviaramrapidamente.—Vocêacha...?Cephelo a interrompeu repentinamente, pedindo música, batendo palmas e incentivando os

outrosafazeromesmo.OjovemdoValeSombrioeaelfajuntaram-seaele,obedientemente.Unspoucos“vivas”fracossaudaramCepheloenquantoelesemovimentavaaoredordofogo.

Wilolhouàvolta,inquieto.—Sehouveralgolá,eseoquequerquesejaatacaresteacampamento,euevocêsairemosdaqui.

TentaremosalcançarArtaqedepoisfugir.Estádispostaaarriscar?Elaassentiu.—Muito.Os címbalos soltaram um som metálico, e os instrumentos de corda zumbiram suavemente.

Entãovieramaspalmas,firmeseconfiantes.A tosse surgiu de novo, quase em cima deles, ressoando na escuridão com uma brusquidão

assustadora, pesada e terrível. Gritos vieram dos guardas — gritos cheios de terror, que diziam“Diabo!Diabo!”.Aqueles reunidos ao redorda fogueira se espalharam;oshomens correramparapegar suasarmas,easmulheresecrianças fugiramemconfusão.Umberroseelevousobreaquelaalgazarra, alto e breve, sumindo quase imediatamente na quietude. Do outro lado do círculo decarroças,algograndeeescurosemoveunanoite.

—Umdemônio!—sussurrouWilquasesempensar.Um instante depois, a criatura apareceu por uma lacuna entre duas das carroças, abrindo

caminho entre as casas de madeira como se estas fossem feitas de papel. Sem dúvidas, era umdemônio,masmuitomaiordoquequalquerumdosquehaviamseguidoojovemdoValeSombrioe a elfa noRefúgio Firme.Apoiava-se sobre duas pernas, tinhamais de quatrometros emeio dealturaeumcorpoimensoencurvadoepesado,cobertocomumapelemanchadademarromecinzaquependiaemgrossasdobras.Umacamadadeescamascorriadeseupescoçopelascostaseaindamaisabaixo,emcadaperna.Acaraeramaléficaevazia,umamassadedentescurvando-separaforademandíbulasque se abriampara emitir aquela tosseprofunda.Ocorpoquebradoe semvidadeumguardanômadebalançava-seemduasmãosgrandesecheiasdegarras.

A criatura atirouo cadáverparao lado e avançou.Cephelo emaisumadezenadenômadesoconfrontaramcom lanças e espadas.Alguns golpespenetraramo couro grosso,mas amaioria foidefletida.Acriaturaeralentaepesada,masincrivelmenteforte.Arrastou-separafrenteatravésdamuralhadedefensores, derrubando-na sem esforço.Cephelo atirou-se sobre o demônio, saltandoparaenfiarsuaespadafundonabocaabertadacriatura.Acoisamonstruosamaldiminuiuopasso;suasmandíbulas partiram a espada em pedacinhos.Asmãos estenderam-se para o Líder nômade.Cephelofoimaisrápido,masoutronômadecaiu,tropeçandonoprópriopénapressadeescapar.Opédodemôniodesceucomoumarochasobreohomemquesedebatia.

WiljáhavialevadoAmberleparaoladoopostodoacampamento,querendoalcançaroscavalosamarrados, quando viu Cephelo cair também. Os defensores tentavam prender as pernas dodemônio,quandoumdosbraçosimensosdeuumgolpederelancenohomem,fazendo-otropeçarecair de pernas para o ar. Hesitando em uma fresta entre as carroças, Wil assistiu aos outrosnômades correrempara defenderCephelo, dois deles puxando a figura inerte e levando-opara asegurançaenquantoosoutrosgolpeavameseesquivavamdomonstroparachamaraatençãodele.Odemôniosacudiu-se, lançaseespadasbateramemseucorpodurofeitoarmadura,eestendeuasmãosparaacarroçanômademaispróxima.Agarrouopesadotransportee,deumavezsó,ojogoupara longe.A carroça caiu comum estrondo, partindo-se; os ornamentos demetal e os rolos deseda espalharam-se à luz da fogueira. Os defensores gritaram, furiosos, e retomaram seu ataqueinútil.

Amberle puxava o braço deWilOhmsford comurgência,masmesmo assim o jovemhesitava.Não conseguia acreditar que algo tão grande e lento conseguira rastreá-los por todo o caminhodesde o Refúgio Firme.Não, aquela criatura escapara pelamuralha da Proibição sozinha, vagaraporTirfingesimplesmenteesbarraracomacaravana.Vieracegaeestupidamente—mascomumpoder tão grande de destruição que estava claro que os nômades não eram páreo para ela. A

despeitode seus esforçosparadistraí-looupará-lo,odemôniocomcertezadestruiria a caravanainteira.

Mas os nômades não fugiriam. As carroças espalhafatosas, as desajeitadas casas sobre rodas:aqueleseramseuslares.Tudoquepossuíamestavanelas.Não,osnômadesnãofugiriam.Ficariamelutariam;eseofizessem,morreriam.Odemônioeraumacoisadeoutraépoca;seupodereramaiordoqueodecarne,sangueeosso.Serianecessárioumpodertãograndequantoodelemesmoparadetê-lo.ApenasWilpossuíatalpoder.Masaquelalutanãoerasua.Aquelaspessoashaviamroubadodele;elenãolhesdevianada.SuaprimeiraeúnicaresponsabilidadeeraAmberle.Deveriapegá-laetirá-ladalirapidamente.Porém,seofizesse,oqueseriadosnômades—nãoapenasoshomens,masasmulhereseascriançastambém?Elestinhamlhefeitoalgummal?Semsuaajuda,elasnãoteriamnenhumachancecontraodemônio.

Sua indecisãoficoucompletaaose lembrardoqueseuavô lhecontara:que,certavez,quandousara as Pedras Élficas ao fugir do Lorde Feiticeiro, sem querer revelara ao inimigo exatamenteonde encontrá-lo. Podia muito bem acontecer o mesmo agora. Alguns daqueles demônios eramcriaturas capazes de usar a magia; Allanon lhe contara isso. Se usasse as Pedras Élficas, poderiatrazê-losdiretamenteparasi.

OlhourapidamenteparaAmberle.Oqueelaviunosolhosdorapazlhedissenamesmahoraoqueelepretendiafazer.Semdizernada,soltouobraçodeWil,quetirousuabotadireitaepegouasPedras Élficas. Devia ao menos tentar, disse para si. Precisava no mínimo fazer isso. Não podiadeixar aquelas pessoas morrerem. Abriu o saco e colocou as três Pedras azuis na mão aberta.Cerrando-asnopunhocomforça,começouavoltarparaoacampamento.

—Fiqueaqui—disseparaajovemelfa.—Não,espere...—chamouAmberle,maselejácorria.Odemôniotinhaseafastadodascarroçasegolpeavaosnômadesenquantoavançavaemdireção

aocentrodoacampamento.Cepheloestavanovamenteempé,oscilandoenquantoseapoiavanumacarroça, gritando para incentivar os defensores. Wil percorreu a distância entre ele e oscombatentes, até que apenas vinte metros os separavam. Elevando o punho acima da cabeça,invocouopoderdasPedrasÉlficas.

Nadaaconteceu.Sentiu um vazio na boca do estômago. A coisa que mais temia acontecera — não conseguia

controlar o poder das Pedras Élficas. Allanon estava errado. Apenas seu avô podia invocar seupoder,elenão.Nãoeramsuasparaqueascomandasse.Nãooobedeceriam.

Maselasprecisavam!Wiltentououtravez,concentrando-senasensaçãodasPedrasemsuamão,invocandoamagiaque jazia enterrada emalgum lugardentrodelas.Nada ainda.Porém,daquelavez, sentiu algo novo— uma barreira de algum tipo que bloqueava seus esforços, uma barreiradentrodesi.

Os gritos dos nômades invadiram seus pensamentos e Wil percebeu que o demônio vinhadiretamente em sua direção. Os defensores encontravam-se atrás da criatura agora, golpeando edesferindoataquescomsuasarmasnaspernaseflancosdobicho,tentandodesviá-lodadireçãodojovem do vale. Um braço imenso golpeou e jogou dois homens no chão, fazendo dispersar orestantedeles.Atossealtaemanoudesuagarganta.Cephelocomeçouamancarfreneticamentedevolta àbatalha, apoiando-senuma lançaquebrada, sua roupa escura rasgada, cobertade sangue epoeira. Wil os via como se eles tivessem sido congelados em um único instante, uma naturezamorta,lutandoenquantoeletentavalibertaropoderdasPedrasÉlficas.Nãolhepassoupelacabeçacorrer;elesimplesmenteficouali,nomeiodoacampamentonômade,umafigurasolitáriacomum

braçoerguidoparaocéunoturno.Eretriaapareceudonada,disparandorapidamente,suafiguraesguiaumasombrademovimento

súbitoquesurgiuentreodemônioeo jovem,amãomorena jogandoumatochaacesanacaradomonstro. A criatura pegou o pedaço incandescente demadeira com asmandíbulas, mordendo-apor reflexo — porém, diminuiu a velocidade, como se estivesse incomodada pelo fogo e pelafumaça.Tirandovantagemdaquelahesitaçãomomentânea,EretriapegouWilecomeçouapuxá-lopara trás, até que os dois perderam o equilíbrio, tropeçando e caindo. Os defensores nômadescorreram até eles imediatamente, pegando tições da fogueira e jogando-os no demônio, numesforço para confundi-lo. O monstro, contudo, já recomeçava a avançar. Wil se colocou de péapressadamente, erguendo Eretria consigo. Naquele momento, Amberle chegou ao seu lado,segurandoumalongalançacomforça,preparando-separadefendê-los.Semdizernada,ojovemaagarrou pelo braço, empurrando as duas mulheres para trás de si, e virando-se para encarar acriaturaqueavançava.

O demônio quase os alcançava.WilOhmsford estendeu amão que segurava as Pedras Élficas.Nãohouvemaisnenhumahesitação,maisnenhumaconfusãodentrodesi.Virando-separadentrode si, estilhaçou a barreira que jazia entre ele e o poder das Pedras, partindo-a com a força devontade nascida do desespero e da necessidade, sem entender ainda o que era. Assim que o fez,sentiualgomudaremseuinterior,algoquenãoconseguiaexplicarnemdizerseerabom.Masnãotinha tempo para pensar nisso. Alcançando o coração das Pedras Élficas, trouxe-as para a vidafinalmente. Uma brilhante luz azul surgiu dentro de sua mão fechada, reunindo forças e depoisexplodindo para atingir o demônio. A criatura monstruosa rugiu quando o poder das PedrasÉlficasaqueimou.Mesmoassim,avançoucomasmãosemgarraestendidas.Wilnãolhedeuespaço.Mergulhou ainda mais fundo nas Pedras, sentindo o poder delas se intensificar. Tudo ao redorficou nebuloso com o brilho, e novamente as Pedras Élficas atacaram o demônio. Dessa vez, acriaturanãoconseguiuaguentaramagiaélfica.Suaformaimensaestourouemchamasetornou-seumpilar de luz ofuscante. Por um instante, queimounum tomde azul escuronomeio danoite,paradepoisexplodiremcinzasesumir.

WilOhmsfordbaixouobraçodevagar.Ondeodemônioestivera,restouapenasterraqueimadaeumfiapodefumaçanegrasubindopelanoite.Todaaflorestaaoredorsilenciou-semortalmente,e apenas o crepitar da fogueira perturbava a quietude. O jovem olhou à sua volta, inseguro.Nenhumnômadesemexia;simplesmenteficaramparados,oshomenscomasarmasaindaemristepara lutar, as mulheres e crianças encolhidas, próximas umas às outras, todos com descrença emedorefletidosnosrostos.Wilsentiuummomentodepânico.Seráqueogruposevirariacontraele, sabendo que os enganara? Olhou rapidamente de volta para Amberle, mas ela, também,encontrava-separalisada,comseusolhosverdescheiosdeespanto.

Cepheloavançoucompassos incertos, jogando foraa lançapartidaaoseaproximardo jovem,comseurostomanchadodesangueefuligem.

—Quemévocê?—perguntouemvozbaixa.—Diga-mequemévocê.Ojovemhesitou.—Souquemdissequeera—disseporfim.—Não—Cephelo sacudiu a cabeça.—Não, com certeza vocênão é um simplesCurandeiro.

Vocêémaisdoqueisso.—Suavozestavaduraeinsistente.—Euestavacertosobrevocêotempotodo,nãoé?

Wilnãosabiacomoresponder.—Diga-mequemévocê—repetiuCephelo,avozbaixaeameaçadora.

—Jádissequemsou.—Vocênãomedissenada!—OrostodoLíderdosnômadesficouvermelhoderaiva.—Acho

quevocêsabiasobreessediabo.Achoqueeleveioaquiatrásdevocê.Achoquetudoissofoiporsuacausa!

Wilsacudiuacabeça.—Acriaturaencontrouvocêsporacaso;foiporacasoqueeuestavacomvocês.—Curandeiro,vocêestámentindoparamim!Wilsentiuseutemperamentofugirdocontrole.—Quemmentiuparaquem,Cephelo?Foiseujogoquejogamos;vocêfeztodasasregras!Ohomemaltodeuumpassoàfrente.—Existemregrasquevocêaindanãoaprendeu.—Achoquenão—respondeuojovemnomesmotom.Ele levantou levemente o punho que segurava as Pedras Élficas. O gesto não passou

despercebido por Cephelo, que deu um passo para trás, devagar. O sorriso que se seguiu foidolorosamenteforçado.

—Vocêdissequenãolevavanadadevalor,Curandeiro.Vocêseesqueceudisso?Wilsacudiuacabeça.—AsPedrasnãotêmvalorparaninguémalémdemim.Elasseriaminúteisparavocê.— Émesmo?—O nômade não se preocupou em disfarçar o desprezo na voz.—Você é um

feiticeiro,então?Umdiabo?Porquevocênãodizquemé?Wil hesitou. Não estava chegando a lugar nenhum. Precisava acabar com aquela conversa.

Amberle aproximou-se e ficou ao ladodele.Pôsumadasmãozinhasnobraçodele, tocando-odeleve.Erareconfortantetê-laporperto.

— Cephelo, você precisa devolver meu cavalo — disse, com calma. O rosto do nômadeobscureceu.—Amberleeeuprecisamospartirimediatamente.Existemmaisdiabosalémdestequedestruí, isso éoquepossodizer.Eles seguem tanto a jovemelfaquanto eu.Comousei asPedras,agorasabemondepodemnosencontrar.Precisamosir,evocêstambémprecisamsairdaqui.

Cephelooencarousemdizernadaporvárioslongosminutos,obviamentetentandodeterminarseoqueestavasendoditoeraverdade.Nofim,acautelafoimaiordoqueadesconfiança.Assentiu.

—Pegueoseucavaloevá.Nãoqueromaisnadacomnenhumdevocêsdois.Ele se virou e se afastou, gritando para seu povo levantar acampamento. Claramente também

queriasairdeTirfing.Wil ficouobservando-oporummomento,depoiscolocouasPedrasÉlficasem seu saco de couro e o enfiou de volta na túnica. PegandoAmberle pelo braço, começou a sedirigirparaos cavalos.Lembrou-sedeEretria.Procurou-ae encontrou-naà sombradas carroças.Seusolhosescurosoobservavam.

—Adeus,WilOhmsford—disseelaemvozbaixa.Ojovemdeuumsorrisobreve.Amoçasabiaquetinhaperdidoachancedeircomele.Porum

momento, ele hesitou. Eretria salvara sua vida; devia algo a ela. Seria tão errado assim ajudá-laagora?Porém,sabiaquenãopodia.SuaúnicapreocupaçãodeveriasercomAmberle.Nãopodiasedistrairdisso,mesmoporaquelanômadequejulgavatãoencantadora.Suadívidadeveriaserpagaemoutraocasião.

—Adeus,Eretria—respondeu.Umapequenaamostradaquelesorrisoesfuzianteapareceunasombraqueeraseurosto.—Nósnosencontraremosdenovo—disseela,paradepoisdarmeia-voltaesumir.Cincominutos depois,Wil e Amberle cavalgavamArtaq para fora do acampamento nômade,

rumoaonorte,edesaparecendonanoite.

CapítuloXVII

Apoucomaisdeumahoradoamanhecer,amboschegaramàmargemsuldoMermidon,aváriosquilômetros abaixo do ponto onde o rio emergia das florestas da Terra doOeste em Callahorn.Haviam cavalgadoArtaq durante quase a noite inteira,mantendoum ritmo constante na viagematravés da pradaria aberta, mais fácil de ser percorrida, procurando colocar a maior distânciapossívelentreeleseTirfing.Haviamdescansadoapenasumavez,umaparadabreveparabeberáguaealiviarosmúsculosquejácomeçavamaficardoloridos,paradepoisvoltaramontareprosseguir.Quandochegaramàbeiradorio,tantoocavaloquantoseuscavaleirosestavampertodaexaustão.Ojovemnãoconseguiudiscernirnenhumpontoprontamenteacessívelparaatravessia,postoqueoMermidon era, até onde se podia enxergar, aomesmo tempo largo e fundo nas duas direções, elogoficouclaroqueteriamdeatravessarorioanadoouseguiramargematéencontrarumaáreamaisrasa.Nãoquerendoarriscarnenhumdosdoisenquantoaindaestavaescuro,Wilconcluiuqueomelhor a se fazer eradescansarematé amanhecer.ConduzindoArtaqatéumbosquede álamos,tirouaselaeamarrouocavalonegro,edepoisespalhoucobertoresparaAmberleeele.Protegidospelasárvores,ostrêsrapidamentecaíramnosono.

Eraquasemeio-diaquandoWilacordoudenovo,sentindoocalordodiadeverãoseinfiltrarpelosálamos, vindo do céu limpo e ensolarado. O jovem tocou Amberle gentilmente e ela despertou.Levantaram-se,lavaram-se,comeramumarefeiçãobreveeretomaramajornadarumoaArborlon.

ConduziramArtaq rio acimaporváriosquilômetros,quase até abeiradas florestasdasTerrasdo Oeste, mas não encontraram uma parte rasa que permitisse uma travessia segura. Em vez deperderemmais tempo refazendo seus passos rio abaixo, decidiram arriscar uma travessia a nado.Amarrando suas poucas posses no pescoço deArtaq, prenderam-se à sua sela comumpedaço decorda,levaramoanimalatéabeiradaáguaeentraram.Aáguaestavageladaeochoquedasúbitaimersãoosdeixouentorpecidos.Debateram-seporalgunsminutos,lutandocontraofrioeaforçadacorrenteza,edepoismantiveramumritmodechutes,asmãosagarrandoacorda.Artaqnadavacom vigor. Mesmo com o rio arrastando-os correnteza abaixo por quase um quilômetro,alcançaramaoutramargemilesos.

Dalicavalgaramparaonortenumritmoagradável,conduzindoArtaqdochãocomfrequência,no intuito de permitir que descansasse.Wil achava que tinham se afastado o bastante de Tirfingparaconfundirqualquerperseguiçãoimediataenãoviamotivoparacontinuarexaurindoocavalo.A corrida da noite anterior consumira muito o animal elegante e ele precisava de umaoportunidadepara recuperar as forças. Se elenãoa tivesse agora, seria inútilmais tarde—eWilnão descartaria a possibilidade de que fossemprecisarmuito dele antes de alcançaremArborlon.Alémdisso,mesmonaqueleritmomaislento,chegariamaoValedoRhennnamanhãseguinte.Eracedoobastante,racionalizou.Estariamasalvoatélá.

Amberlepodiaterumaopiniãodiferente,masamanteveparasi.Livredosnômades,seuhumormelhorara consideravelmente. Ela havia voltado a cantar e a cantarolar enquanto andavam,

parando frequentemente para observar pequenas flores e plantas, pedaços da vidaminúscula quepassariadespercebidapelojovemdoValeSombrionovastotapetedapradaria.Aelfatinhapoucoafalar com Wil, apesar de responder de forma agradável quando ele falava com ela e de sorrirpacientemente ante suas perguntas sobre as coisas vivas que a atraíam. Mas, na maior parte dotempo, Amberle permanecera reservada e distante em relação a ele, recusando-se a conversarmuito, fechadanaquelemundoparticularqueescolheraparasidesdequandohaviamcomeçadoajornadarumoaonorte,nasmargensdoLagoArco-Íris.

Conformeodiaprosseguia,WilseflagravapensandoemEretria,imaginandoseelaabandonariaCepheloeacaravanacomoameaçarafazer,eserealmenteaveriadenovoalgumdia.Haviaalgodeempolgantenanômade,algoqueWil julgavafascinante.Elaofaziase lembrardeumabrevevisãocriada pelas sereias que viviam no Monte da Batalha — hipnotizantes e atraentes, provocandopensamentosbeloseselvagens.Sorriucomacomparação.Eraumabobagem,realmente.Eretriaeradecarneeosso,nãoumavisão.Porém,seespiasseporbaixodesuasuperfície,seráquedescobririaqueela, talcomoa sereia,eraumacriatura traiçoeira?Haviaalgonelaque indicava isso,oqueopreocupavamais do que um pouco. Não se esquecera de como ela arriscara a própria vida parasalvaradele:odiariadescobrirquehouveraalgumamentiranaquilo.

Quando a noite caiu, voltaram-se para oeste, seguindo asmargens da floresta que se estendiaparaonorte,rumoàvastidãodasplaníciesdeStreleheim.Conformeaescuridãofechava-seàvoltadeles,WilguiavaArtaqparaasárvores,seguindoumriachoporcentenasdemetrosatéopontoemque ele se empoçava sob uma corredeira, fornecendo água potável. Acamparam ali, acomodandoArtaq num trecho coberto de relva espessa, dando-lhe comida e água antes de atenderem àsprópriasnecessidades.Umafogueiraparacozinharsinalizariasuapresença,entãodecidiramcomerfrutas e vegetais colhidos por Amberle. Mais uma vez, eram alimentos estranhos para Wil, quegostou deles mesmo assim. O jovem sentiu que, com o passar do tempo, poderia até mesmo seacostumaràalimentaçãoestranha.Quaseterminavaaúltimadaspeculiaresfrutaslaranjaalongadasquandoaelfavirou-separaelederepentecomumaexpressãointrigada.

—Seimportaseeuperguntarumacoisa?—elaquissaber.Elesorriu.—Comovousabersemeimporto,senãoseioquevocêpretendeperguntar?— Bem, você não precisa responder se não quiser; mas isso estáme incomodando desde que

deixamosoacampamentodosnômades.—Nessecaso,pergunte.Apequenaclareiraondeseencontravamestavamuitoescura,ea luzfracadaluaedasestrelas

erabloqueadapelamassadegalhosqueseentrelaçavamacimadeles,eaelfaseaproximoudeWilparapoderverorostodeleclaramente.

—Vocêserásincerocomigo?—Osolhosdamoçafixaram-senodele.—Vou.—Quando você usou as Pedras Élficas, você...?—Ela hesitou, como se não tivesse certeza da

palavraquegostariadeusar.—Você...semachucou?Eleaencarou.Umasensaçãodepremoniçãorepentinadespertounofundodesuamente,ainda

indefinida,porémpresentemesmoassim.—Eisumaperguntacuriosa.— Eu sei— assentiu Amberle, e um sorriso vago lhe escapou antes de recuperar a expressão

séria.—Nãoseiexplicar,naverdade;foialgoquesentiquandoobserveivocê.Nocomeço,pareciaque você não conseguia controlar as Pedras Élficas. Você as segurou e nada aconteceu, embora

estivesseclaroquevocêtentavausaropoderparapararodemônio.Então,quandoelasfinalmenteficaramativas,houveumamudançaemvocê;umamudançaqueapareceunoseurosto...quasecomosefossedor.

O jovemaquiesceudevagar.Lembrava-seagora,eamemórianãoeraagradável.Depoisdoqueacontecera,eleabloquearadesuamente—bloquearasempensar,quasecomoumreflexo.Mesmonaquele instante,nãosabiaporquê.Sóagora,quandoAmberleorecordava,équese lembravadoquesentira.

Osolhosdaelfaestavamcheiosdepreocupaçãoenquantooencaravam.—Sevocênãoquiser...—elacomeçouafalar,rapidamente.—Não.—AvozdeWilsooutranquilae firme.O jovemsacudiuacabeça lentamente.—Não.

Porém,nãoseiseeumesmoentendo;masachoqueajudariasefalassesobreisso.Eleinspiroufundo,escolhendosuaspalavrascomcuidado.—Haviaumbloqueioemalgumlugardentrodemim.Nãoseioqueeraouoqueocausou,mas

estavaali enãomedeixavausarasPedras.Eunãoconseguiamedesviardelenematravessá-lo.—Wilsacudiuacabeçaoutravez.—Então,odemônioestavaquaseemcimademim,evocêeEretriatambémestavamlá,etodosnósmorreríamos,edealgumjeitoeuestilhaceiobloqueio;estilhaceiealcanceiasPedras...—Elefezumapausa.—Nãofoidor,masumasensaçãodesagradáveldentrodemim,algumacoisa...nãoseicomodescrevê-la.Umasensaçãode ter feitoalgoerrado;porém,nãohavianadaerradonoquefiz.

—Oerropodetersidoemrelaçãoavocêmesmo—murmurouAmberledepoisdepensarumpouco.—Talvezamagiaélficasejaprejudicialavocêdealgumaforma.

—Talvez—concordouele.—Masmeuavônunca falou sobre isso.Pode serqueamagianãoafeteaele,porémmeafete?Porqueseriadiferentecomigo?

Aelfasacudiuacabeça,emdúvida.—Amagiaélficacausareaçõesdiferentesempessoasdiferentes.Semprefoiassim.Éamagiaque

nascedoespirito,eoespíritonuncaéumaconstante.—Masmeu avô e eu somos tão parecidos, mais até do quemeu pai e eu— refletiuWil.—

Poderiamnoschamardeespíritos irmãos, easdistinçõesnãoseriamobastanteparacausaressa...essa diferença no uso das Pedras. Certamente, ele também teria sentido algo assim, e teria mecontado.

AmãodeAmberleprocurouadele,segurando-acomforça.—AchoquevocênãodeviausarasPedrasÉlficasdenovo.Wilsorriu.—Mesmoparaprotegervocê?Disseraaquilocomleveza,masamoçanãoretribuíraosorriso.Elanãoestavavendohumorem

nadadaquilo.— Não quero ser a responsável por nenhummal que possa acontecer a você, Curandeiro—

declarou, tranquilamente.—Nãofoiescolhaminhatrazervocênesta jornada,emesintomalporvocêestaraqui.Masjáqueestá,falareioquepenso.Amagiaélficanãoéalgocomquesebrinque;podesemostrarmaisperigosadoqueomalcontraoqualfoicriada.Nossashistóriasnosdeixaramestealerta, senãomais.Amagiapodeagirnãosócontraocorpo,mascontraoespírito também.Feridasno corpopodem ser tratadas.Mas e os ferimentosno espírito?Comovocê tratariadeles,Curandeiro?

Elaseinclinouparamaisperto.—Ninguémvaleumferimentoassim,ninguém.Principalmenteeu.

Wilaencarouemsilêncioporuminstante,espantadoaover lágrimasbrilhandonocantodosolhosdaelfa.Estendeuamãoparacobriradela.

— Teremos cuidado um pelo outro — prometeu. Tentou sorrir brevemente. — Talvez nãoprecisemosusarasPedrasdenovo.

O olhar que Amberle lhe deu em resposta mostrava que ela não acreditara em uma palavradaquilo.

Era meia-noite quando o uivo dos demônios-lobo se elevou na quietude das pradarias, agudo,famintoecheiodeódio.WileAmberleacordaramimediatamente,asatisfaçãodosonodistorcidapelomedo. Por ummomento, eles não semexeram, daí sentaram-se rígidos sob os cobertores earregalaramosolhosemaltertaenquantoprocuravamumaooutronaescuridão.Ogritomorreu,ecoandonosilêncioqueseseguiu,eelevou-sedenovo,altoepenetrante.Dessavez,nemojovemdoValeSombrionemaelfahesitaram.Semumapalavra,ambosselevantaram,calçaramasbotasepuseramosmantos nos ombros. Em segundos, selaramArtaq,montaram e começaram a cavalgarparaonortemaisumavez.

Avançaramnumtrote firme,mantendo-senasplaníciesabertasondeocaminho seencontravalimpoeiluminadopelaluaepelasestrelas,seguindopelasmargensdasflorestas.Oarfriodanoiteos perpassava, pesado com a umidade do orvalho damanhã, tomado pelos cheiros da escuridão.Atrás deles, os uivos continuavam, ainda muito lá atrás, em algum lugar acima da linha doMermidon. Os demônios-lobo procuravam. A trilha que seguiam era do dia anterior; ainda nãohaviampercebidooquãopertoestavamdesuaspresas.

Artaqcorriasuavemente;ocorpanzilcorrendosemesforçopelapradaria,poucoalémdemaisuma sombra deslizando através da noite de verão. Conseguira descansar o bastante para aquelacorridaenãoficariasemfôlegologo.Wilodetinhacautelosamente,mantendooritmoestável,semdeixar o cavalo se sobrecarregar. Ainda era cedo e a caçada estava apenas começando. Seusperseguidores logo descobririam a real situação. O jovem estava irritado consigo; não haviaacreditadoquepoderiamserencontradosnovamente tãorápido.AsPedrasÉlficasprovavelmenterevelaram a presença deles emTirfing.Os demônios-lobo tinham vindo atrás do jovem e da elfaimediatamente, rastreando-os até o norte para depois os afastarem das florestas das Terras doOeste. Assim que encontrassem o acampamento que suas presas haviam abandonado, os lobosviriamatrásdelescomdesejodevingança.Osdemônioscorreriamatrásdelesatéosalcançarem.

Adupla prosseguiu pormais de umahora sem avistar o vale.Os uivos seguindo-os durante afuga. Passaram a ser respondidos por gritos que se elevavam das pradarias abaixo dos Dentes deDragão e das planícies ao norte. Wil sentiu o coração se apertar. Os lobos os tinham cercado.ApenasapassagemparaasTerrasdoOesteforadeixadaabertaparaeles.Subitamente,ocorreu-lhequetalvezaquelecaminhotambémestivessefechado.Lembrava-sedoepisódionoRioPrateado.OVale do Rhenn também podia ser uma armadilha. Talvez tivessem sido conduzidospropositadamenteparaovale,ealifosseolocalemqueosdemôniospretendiamdarumfimaeles.Porém,queoutraescolhapossuíam,alémdearriscar?

Momentosdepois, osuivos atrásdeles aumentaram freneticamente.Osdemônios-lobohaviamencontradooacampamento.

WilfezArtaqpartiragalope.Osdemôniosseaproximariam,maisdepressaagora,nacertezadeque suaspresas estavam logoadiante, sabendoquepoderiamser capturadas.Gritos aonorte e aoleste soavam em resposta aos que vinham de trás, agudos e provocantes, conforme os caçadores

começavam a correr. Artaq suava e tinha o pescoço estendido e as orelhas grudadas à cabeça. Apradariatransformou-seemumterrenoáridoedesolado.HaviamchegadoaStreleheim.OValedoRhenn não devia estar longe. Wil abaixou-se sobre o pescoço esticado de Artaq e estimulou oeleganteanimalairmaisrápido.

Foiduranteaterceirahoradaperseguição—quandoasplaníciesdeCallahornjáestavammuitodistantes e a terradebaixodos cascosdeArtaq,dura e ressecada,quandoosuivosdosdemônios-lobohaviamseaproximado tantoquepareciaqueas imensas figurascinzentaspulariamna frentedelesaqualquermomento,quandooventoeapoeiraoshaviamcegadoeosuordemedoensopavaseus corpos por baixo das roupas amassadas — que o jovem e a elfa finalmente avistaram ospenhascos que formavam a boca do Vale do Rhenn. Elas se erguiam das terras planas além dasflorestas élficas, das pedras e arbustos negros contra o céu noturno. Os cavaleiros viraram nadireção da passagem, sem diminuir a velocidade. Os flancos de Artaq arquejavam, suas narinasdilatavam-se; suor e baba cobriam seu corpo negro emacio. Ele esticou-se aindamais, correndopelaescuridão,comasduasfigurassobreseudorsosegurando-sedesesperadamente.

Em segundos, a passagem estava à frente deles, com suas bordas escarpadas suspensas de cadalado. O cavalo negro desceu pela passagem estreita do vale com um estrondo. Wil espiavafreneticamente por olhos lacrimejantes enquanto o vento lhe rasgava o rosto, à procura dosdemôniosquetemiaestaremàesperaparacercá-los.Surpreendentemente,nãoencontrounenhum.Estavamasósnovale.Sentiuumabreveeuforia.Iamconseguirescapar!Seusperseguidoresestavamlongedemaisparaalcançá-losantesdechegaremasalvonasflorestasdasTerrasdoOeste,aregiãodoselfos.Atélá,conseguiriamajuda...

O pensamento incompleto ficou suspenso na mente de Wil, repetindo-se seguidamente, noritmo dos cascos deArtaq, enquanto o animal corria pelo solo do vale.Wil ficou gelado.O queestava pensando? Não haveria ajuda para eles. Ninguém sequer sabia que estavam chegando —ninguémalémdeAllanon, e alémdomaisoDruida se fora.Ajuda?Que ajudapodia esperar?OsdemôniosjáhaviamconseguidoentraratémesmonocoraçãodacidadedeArborlonparadestruirosEscolhidos.Oqueachavaqueseriacapazde impedi-losderastrearumjovemdoValeSombrioincrivelmente tolo e uma jovem élfica desarmada numa região de florestas a quilômetros dequalquer coisa? Tudo que conseguira ao chegar ao Vale do Rhenn fora tirar Artaq dosdescampados,ondeelepodiacorrer,paraoconfinamentodasflorestas,ondenãopodia.Nãohavianadaaliquepudesse impediros lobosde seguirem-nos—criaturasqueerammais rápidasemaiságeis do que eles, mais capazes de penetrar o labirinto de árvores e arbustos, mais capazes deperseguir do que eles eramde fugir.Queria gritar o que sentia. Estúpido! Sua falta de visão lhestiraraaúnica ínfimachancedeescapar.Estivera tãopreocupadocomoqueos fizera fugirqueseesqueceradeanalisarparaondeestavamfugindo.Nãoconseguiriamescapar.Seriampegos,seriammortos.Eraculpadele.Elecausaraisso.

Precisavafazeralgumacoisa.Suamenteestavaacelerada,procurandodesesperadamente.Apenasumaarmalherestava.AsPedrasÉlficas.Amberlegritou.Wilseergueu,seguindoadireçãodobraçorígidodaelfa,queapontavaparao

céu.Uma criatura negramonstruosa voava, através da entrada do vale, com asas de couro que se

estendiam entre os penhascos, uma cabeça retorcida em gancho como se fosse um membroquebrado.Veio,gritando,deStreleheimatéovincodovale,nadireçãodeles.Wilnuncaviranadatão grande. Berrou freneticamente para Artaq, mas o cavalo não tinha mais nada a oferecer —

corriaporpuradeterminação.Aumacentenademetrosdedistância surgiaovalequemarcavaapassagemdistante.Dooutrolado,haviaflorestasqueosesconderiamdaquelepesadelo,florestasàsquais algo daquele tamanho não teria como ir. Tudo de que precisavam era de apenasmais unssegundos.

A criatura mergulhou para a dupla. Parecia cair na direção deles como uma pedra imensa,investindo,emergindodanoite.WilOhmsfordviuque seaproximavae teveumvislumbrede seucavaleiro, algo vagamente humano, porém corcunda e desfigurado, de olhos vermelhos contra onegrodeseurosto.Osolhospareciamperfurá-lo,eWilsentiusuacoragemsederreter.

Poruminstante,pensouque fosseseu fim.Masentão,comumúltimosalto,Artaqalcançouoestreitomaisdistante,saindodospenhascoseentrandonaescuridãodasárvores.

Omajestosocavalopassoutrovejandoporumaestreitatrilhadeterrasulcada,praticamentesemdiminuir a velocidade enquanto seu corpo macio desviava-se e retorcia-se pelo emaranhado detroncos e arbustos espessos. Wil e Amberle se seguravam, desesperados; galhos e cipós osgolpeavam,ameaçandoderrubá-losacadacurva.Wiltentoufazeroanimaldiminuiroritmo,masArtaq tomarao freioentreosdentes.O jovemperdera totalmenteocontrolesobreoanimal,quecorriaaoléu.

Emsegundos,oscavaleiroshaviamperdidotodoosensodedireção,confundidospelaescuridãodaflorestaqueosenvolveraepelatrilhasinuosa.Apesardenãoconseguirmaisescutarouivodosdemônios-lobo ou o grito do monstro voador, Wil estava aterrorizado com a possibilidade detereminadvertidamentedadomeia-voltaeacabadoporcorrerdevoltaparaascriaturasdasquaistentavam escapar. Furioso, puxou as rédeas num esforço para soltar o freio,masArtaq aguentoufirme.

O jovem estava quase desistindo de qualquer esperança de deter o animal quando Artaqdiminuiu a velocidade e depois parou totalmente. Parado no meio da trilha com os flancosarquejantes e as narinas dilatadas, baixou a cabeça delicada e relinchou suavemente. Um longomomentodesilêncioseguiu-se.WileAmberleseencararam,curiosos.

Uma figura alta e escura apareceu bem à frente deles, deslizando pela escuridão noturna semfazer ruído. Aconteceu tão rápido queWil sequer teve tempo de pensar em alcançar as PedrasÉlficas.A figurasombriadeuumpassoà frente,ededos tocaramgentilmenteopescoçosuadodeArtaq,acariciandodevagarinhoapelesedosa.Dasombradocapuzdomanto,seurostoergueu-separaaluz.

EraAllanon.—Vocêsestãobem?—perguntoutranquilamente,estendendoosbraçosparatirarAmberleda

selaebaixando-acomcuidadoparaochão.Ajovemelfaassentiu,semdizernada,osolhosverdescheiosdeespanto—espantoeumtoque

de raiva. O Druida franziu a testa e virou-se para ajudarWil, mas o jovem do vale já descia dolombodeArtaq.

—Pensamosquevocêestivessemorto!—explodiuele,incrédulo.—Parecequetemsemprealguémmedeclarandomortoantesdahora—declarouomístico,um

tantopetulante.—Comovocêspodemver,euestoubem...—Allanon,nósprecisamossairdaqui.—Wiljáolhavaansiosoporcimadoombro.Aspalavras

emendavam-seumanaoutra,napressadesaíremdesuaboca.—Osdemônios-lobonósseguiramportodoocaminhodesdeoMermidon,etemumacriaturavoadoranegraque...

—Wil,acalme-se...—...quasenospegounovale,maiordoquequalquercoisaqueeujamais...

—Wil!WilOhmsfordficouemsilêncio.Allanonsacudiuacabeçaemreprovação.—Vocêpoderia fazero favordemedarumaoportunidadede falar?—O jovemenrubesceue

assentiu. — Obrigado. Primeiro, vocês estão bem seguros agora. Os demônios não estão maisperseguindo vocês.Aquele que os lidera pode sentirminha presença. Ele temmedo demim e seafastou.

Ojovemofitou,emdúvida.—Temcerteza?—Muitacerteza.Ninguémosseguiu.Agoravenhamatéaquicomigo,vocêsdois,esentem-se.Eleoslevouatéumtroncocaídopróximodatrilha,ondeojovemeaelfasentaram-se,exaustos.

Allanonpermaneceudepé.—PrecisamoschegaraArborlonestanoite—recomendouele.—Maspodemosparardurante

algunsminutosparadescansarantesdecontinuarmos.—Comovocêchegouatéaqui?—perguntouWil.—Eupoderiafazeramesmaperguntaavocês.—Ohomemaltoseapoiouemumdosjoelhos,

envolvendo-semaisnasvestesnegras.—Vocêsentendemoqueaconteceucomvocêsnorio?OjovemdoValeSombrioassentiu.—Achoquesim.— Era o Rei do Rio Prateado!— exclamou Amberle rapidamente.—Nós o vimos; ele falou

conosco.— Foi com Amberle que ele falou — corrigiu Wil. — Mas o que aconteceu com você? Ele

tambémoajudou?Allanonsacudiuacabeça.—Receioqueeunãootenhavisto;apenasaluzqueenvolveuelevouvocêsembora.Eleéumser

misteriosoerecluso,esemostraparabempoucos.Dessavez,eleescolheuaparecerparavocês.Osmotivosdele continuamsendoummistério, suponho.Dequalquermodo, a apariçãodele causouuma confusão considerável entre os demônios, e aproveitei essa confusãopara escapar.—Ele fezumapausa.—Amberle,vocêdissequeelefaloucomvocê.Vocêselembradoqueeledisse?

Ajovemelfapareceudesconfortável.—Não,nãoexatamente.Foicomoumsonho.Eledissealgosobre...união.Poruminstante,surgiuumlampejodecompreensãonosolhosescurosdoDruida.MasnemWil

nemAmberlenotaram,eelelogodesapareceu.—Não importa.—Omísticodeixouo incidentede ladode formacasual.—Eleajudouvocês

quandoprecisaramdeajuda,eporissoestamosemdívidacomele.— Com ele, sem dúvida; mas com certeza não com você. — Amberle não se preocupou em

disfarçarsuaraiva.—Ondevocêestava,Druida?Allanonpareceusurpreso.—Procurando por vocês. Infelizmente, quando ajudou vocês, o Rei doRio Prateado fez com

quenos separássemos.Eu sabiaquevocês estavama salvo, é claro,masnão sabiaparaondevocêstinhamsidolevadosoucomoosencontrariadenovo.Eupoderiaterusadoamagia,masmepareciadesnecessariamentearriscado.Aqueleque lideravaosdemôniosqueatravessaramaProibição temumpodertãograndequantoomeu,talvezmaior.Usarmagiapoderiaguiá-loaténós.EntãoescolhicontinuarnadireçãodeArborlon,procurandovocêsnocaminho,acreditandoqueselembrariameseguiramcorretamenteas instruçõesque lhesdei.Pelo fatode tersido forçadoaandarapé,poisseucavalocinzaseperdeunabatalha,Wil,eutinhacertezadequevocêsestariamnaminhafrenteo

tempotodo.Foi sóquandovocêusouasPedrasÉlficasquepercebiestarenganado.—Eledeudeombros.—Aessaaltura,eujáestavaquaseemArborlon.Volteinamesmahora,viajandoparaosulna floresta, pensando que vocês procurariam refúgio entrando na floresta abaixo doMermidon.Novamente, estava errado. Quando ouvi o uivo dos demônios-lobo, percebi que vocês tentavamalcançaroValedoRhenn.Issometrouxeaqui.

—Parecequevocêesteveenganadoduranteamaiorpartedotempo—rebateuAmberle.Allanonnãodissenada,eseusolhosencontraramosdela.— Acho que, para começar, você se enganou ao me procurar — continuou ela, com a voz

acusadora.—Eranecessárioqueeufosse.—Issoaindavamosver.Oquemepreocupanomomentoéqueosdemôniosparecemestarum

passoàsuafrentedesdeocomeço.Quantasvezeselesquasemepegaramatéagora?Allanonlevantou-se.—Vezesdemais.Issonãovaiacontecernovo.Amberleseergueucomele,orostoenrubescendomuito.— Não me sinto mais tão tranquilizada por suas promessas. Quero acabar com esta jornada.

Querovoltarparacasa,paraoRefúgioFirme,nãoparaArborlon.OrostodoDruidaestavainexpressivo.—Entendaquefaçooquepossoporvocês.—Talvez.Talvezfaçaapenasoqueémaisconvenienteparavocê.ODruidaenrijeceu-se.—Issoéinjusto,elfa.Vocêsabemenosarespeitodissodoquesupõe.—Seiumacoisa.Seiquenemvocênemquemvocêescolheucomomeuprotetorsemostraram

muitocapazes.Euestariamuitomaisfelizsenuncativessevistonenhumdosdois.Amberleestavatãoirritadaquequasechorava.Encarou-os,furiosa,desafiando-osanegaroque

eladizia.Quandoelesnãoofizeram,elasevirouecomeçouaandarpelatrilhaescura.—Vocêdisse que tínhamosque chegar aArborlon estanoite,Druida—gritou ela.—Quero

acabarcomisso!WilOhmsford ficouobservandoAmberle, seurostoumamisturaderessentimentoeconfusão.

Porummomento, cogitou seriamente ficarapenas sentadoali edeixara elfa seguir seucaminho.Obviamente,Amberlenãoprecisavadele.EntãosentiuamãodeAllanonemseuombro.

—Nãosejaprecipitadoaojulgá-la—disseoDruida,emtomcalmo.Recolheu a mão e seguiu para pegar as rédeas de Artaq. Ele olhou de volta para Wil,

questionador.Ojovemsacudiuacabeçaelevantou-se.Afinal,játinhaidoatéali.Nãoterianadaaganharsenãocontinuasse.

ODruidajáhaviacomeçadoaseguirafiguraesguiadaelfaquedesaparecianocaminhoentreasárvores.Demávontade,Wilfoilogoatrásdele.

CapítuloXVIII

Era a noite do dia seguinte. As sombras se alongavam na cidade de Arborlon e o crepúsculoacinzentado escurecia rumo à noite. Eventine Elessedil encontrava-se sentado sozinho noisolamentodeseuescritório,estudandoa lista feitaporGaeldosassuntosqueprecisariamdesuaatençãonooutrodia.Ocansaçomarcavaseurosto,eseusolhossemicerravam-secansadosàluzdalamparina sobre a escrivaninha de madeira. A sala estava quieta, encerrando o envelhecido ReiÉlficonosilênciodeseuspensamentos.

LançouumbreveolharparaManx,deitadonochãoda sala, apoiadonumaestante,dormindopesadamente. Os flancos grisalhos do cachorro subiam e desciam ritmicamente, sua respiraçãosaindopelonarizcomumcuriosoruídoanasalado.Eventinesorriu.Seucachorrovelho,pensou,osonovem fácilparavocê,profundo, semsonhosnempreocupações.Sacudiuacabeça.Daria tudoparapoderapreciarumaúnicanoitedesonotranquilo.Vinhadescansandomuitopouco.Pesadelospovoavamseu sono—pesadelosqueeramdistorçõesda realidadedesagradáveldashoras emqueestava acordado. Eles o atormentavam e debochavam, interrompendo cruelmente seu sono,desordenados e cheios de ódio. Voltavam todas as noites, provocando seu subconsciente,fragmentando seu sono para que, várias vezes, acordasse sobressaltado, até que o amanhecerfinalmentetrouxesseumfimparaaquelaluta.

Esfregouosolhos,depoisorosto,bloqueandoaluzcomasmãos.Teriadedormirlogo,porqueeranecessáriodormirdealgummodo.Sabia,entretanto,quenãoteriamuitodescanso.

Quando afastou asmãos, viu-se encarandoAllanon. Por um instante não acreditou que via oDruida;aqueleeraapenasumtruquedasuamente, trazidopelocansaço.Masquandosemicerrouosolhoseaimagemnãodesapareceu,ficoudepénumsobressalto.

—Allanon!Penseiestarvendocoisas!ODruidaavançoueapertaramasmãos.UmabreveincertezaperpassouosolhosdoReiÉlfico.—Vocêaencontrou?Allanonassentiu.—Elaestáaqui.Eventinenãosoubecomoresponder.Osdoishomensseencararamsemdizernada.Apoiadona

estante,Manxergueuacabeçaebocejou.—Nãopenseiqueelafossevoltarumdia—disseoRei,porfim.Hesitou.—Paraondevocêa

levou?—Paraondeelapossaserprotegida—respondeuAllanon.SoltouamãodoRei.—Nãotemos

muito tempo.Queroque você convoque seus filhos e seus conselheirosmais confiáveis, aqueles aquem você confiou a verdade sobre o perigo que ameaça os elfos. Esteja certo sobre sua escolha.FaçacomquesereúnamdentrodeumahoranacâmaradoAltoConselhoÉlfico.Entãodigaqueeugostariadefalarcomeles.Nãoconteamaisninguém.Façacomqueseusguardasfiquemdevigiadoladodefora.Umahora.Encontrareivocêlá.

Elevirou-seeandoudevoltaparaasjanelasabertasporondeentrara.—Amberle...?—perguntouEventineatrásdele.

—Umahora—repetiuoDruida,antesdedeslizarpelascortinasesumir.

A hora concedida se passou e os convocados pelo Rei reuniram-se noAltoConselho. A sala eraumacâmaracavernosaehexagonal,feitademadeiradecarvalhoepedra,otetodecatedraleraemformato de estrela, moldado por um conjunto de vigas maciças. Um par de imensas portas demadeiraabria-separadentrodasala, iluminadapor lamparinasbaixas,suspensasporcorrentesdeferroenegrecido.Naparedeoposta,ficavaaplataformadoRei,umconjuntodedegrausquedavampara um trono de carvalho entalhado à mão, ladeado por uma fileira de estandartes de ondependiambandeirascomas insígniasdasCasasReaisÉlficas.Assentosrodeavamasdemaisparedes,cadaconjuntocomdozefileirasdeprofundidade, todosvoltadosparaumalargaextensãodepisodepedrapolida,cercadaporumcorrimãobaixodeferrocomoumaarena.Exatamentenocentroda sala havia uma imensamesa oval com vinte e uma cadeiras, onde se sentavamosmembros doAltoConselhoÉlfico.

Apenas seis das cadeiras encontravam-se ocupadas naquela noite. Em uma, sentava-se AnderElessedil.OReifaloupoucocomosoutroscincopresentes.Seusolhosinquietosdesviavam-separaas portas duplas fechadas no lado oposto da câmara. Pensamentos sobreAmberle tumultuavam asuamente.Emboraagarotanãotivessesidomencionadaporseupaiquandotrouxeraanotíciadoretorno deAllanon, tinha certeza de que oDruida fora bem-sucedido em trazê-la de volta; casocontrário,aqueleConselhonãoteriasidoconvocadotãoapressadamente.Tambémestavacertodeque Allanon tinha intenção de levá-la perante o Conselho e perguntar se confiavam nela paraexecutar a busca pelo Fogossangue.Mas não sabia o que o Conselho diria em resposta. Se o Reidecidisse falar primeiro a respeito do pedido do Druida e apoiá-lo, os demais provavelmenteconcordariamcomseudesejo—embora issonão significasseumaconclusãodefinitiva, tendoemvistaossentimentosfortesqueoselfostinhamemrelaçãoaAmberle.Dequalquerjeito,nãoachavaque seu pai fosse fazer algo assim. Primeiro ele ouviria os conselhos dos homens que reunira.Depoisdecidiria.

Anderolhourapidamenteparaopaiedesviouoolhar.Qual seria seuconselho,perguntou-sesubitamente? Pediriam que falasse, porém, como poderia confiar na própria objetividade no quedizia respeito a Amberle? Emoções conflitantes tingiam seu raciocínio. O amor e a decepção seentrelaçavam.Suasmãosestavamapertadasemcimadamesa,umreflexoaoquesentia.Talvezfossemelhorsenãodissessenada.Talvezfossemelhorsesimplesmenteconfiassenojulgamentoalheio.

Seu olhar desviou-se momentaneamente para os outros rostos. Além de Dardan e Rhoe, queestavamdeguardado ladode foradasportasdacâmara,ninguémmais foraavisadosobreaqueleencontro.Haviaoutrosqueseupaipoderiaterchamado—bonshomens.Maselehaviaescolhidoaqueles.Foraumaescolhaequilibrada,refletiuAnderaoconsiderarocaráterdecadaum.Masquetipodejulgamentofariamquandoouvissemoqueseriaperguntado?

Descobriuquenãotinhacerteza.Arion Elessedil sentou-se à direita de seu pai, o lugar à mesa do Conselho reservado para o

Príncipe Herdeiro do reino. Seria para Arion que o Rei olharia primeiro, como sempre faziaquando precisava tomar uma decisão importante. Arion era a força do pai, e o velho o amavaintensamente.SuamerapresençajátraziaaEventineumconfortoqueAndersabiajamaissercapazde prover, independentemente do quanto tentasse. Mas Arion não tinha compaixão e às vezesdemonstravaumateimosiaqueobscureciaseubomsenso.EradifícilpreveroquefariaemrelaçãoaAmberle. Antes, sentira afeição pela jovem, a única filha de seu amado irmão Aine. Mas aquilo

passarafaziamuitotempo.Seussentimentoshaviammudadoapósamortedo irmão—emudadoaindamaiscomatraiçãodeAmberleaoseupapelcomoEscolhida.HaviaumagrandeamarguranoPríncipe Herdeiro, em grande parte causada pela mágoa que aquela jovem causara ao Rei. Eraimpossível dizer a profundidade daquela amargura. Grande, pensou Ander, e ficou preocupadocomoqueaquilosignificaria.

OPrimeiroMinistrodoRei,EmerChios,ocupavaacadeiradoladodeArion.ComoPrimeiroMinistro, era Chios quem presidia o Conselho na ausência do Rei. Um homem articulado epersuasivo, que sempre expressava seus sentimentos com tranquilidade. Embora Eventine e seuPrimeiroMinistronemsempreconcordaremnosassuntostrazidosperanteoConselho,tinhamumgrande respeito pela opinião um do outro. Eventine escutaria atentamente o que seu PrimeiroMinistroteriaadizer.

Kael Pindanon, Comandante do Exército Élfico, era o amigomais antigo emais próximo doRei.Apesarde serdez anosmaismoço,Pindanonaparentava ter esses anosamais, sendoo rostoparecidocommadeira seca,ocorporetorcidodurocomocouro,cheiodecicatrizesdeumavidaem combate. Seu cabelo branco descia até abaixo dos ombros, e um grande bigode caídoemolduravaalinhafinadaboca.Durocomoferroeobstinadoemseuspropósitos,PindanoneraomaisprevisíveldosconselheirosdeEventine.OvelhosoldadoeracompletamentedevotadoaoRei;semprefalavatendoemmenteprimordialmenteosinteressesdoRei.AssimseriacomAmberle.

O último homem àmesa não era ummembro do Alto Conselho. Eramais jovem até do queAnder,umelfomagrodecabelosescuros,comumaexpressãoalertaeolhoscastanhosansiosos.Elesentou-seaoladodePindanon,comsuacadeiraligeiramenteafastadadamesaoval,semfalarcomos outros, apenas observando-os em silêncio. Havia adagas gêmeas presas em sua cintura e umaespadalargapenduradaemsuabainha,queagoraestavapenduradanascostasdacadeira.Nãousavanenhumainsígniadeposto,excetoporumpequenomedalhãocomobrasãodosElessedil,presonopescoçocomumacorrentedeprata.SeunomeeraCrispin.EraCapitãodaGuardadaCasa,atropade elite de caçadores élficos, cujo único dever era a proteção do Rei. Sua presença naqueleConselho era um mistério; Ander não esperara que ele fosse alguém com quem seu pai seaconselhasse.Porém,opainemsemprefaziaoqueeleesperava.

Anderpausousuaavaliação.Comdiferenteshistóricosepersonalidades,oshomensqueseupaireunira só tinhamemcomumaabsoluta lealdadeaovelhoRei.E talvezporcausadessa lealdade,fossemhomens emquemEventine sentia poder confiar a decisão,mesmodifícil, que teria de sertomada acerca de Amberle. Talvez também estivessem ali por serem aqueles cujo conselho o Reiprocurariaquandochegasseahoradedefenderasterrasdoselfos.

Eaquelahoraestavapróxima.Ainevitabilidadedeumterrívelcombateentreelfosedemôniosos confrontava a todo o momento. A cada dia a Ellcrys se enfraquecia mais, a podridão e adecadência espalhavam-se inexoravelmente pelos galhos, tirando sua vida e beleza, minando opoderquemantinhaaProibição.Acadadia,eramrecebidosnovosrelatosa respeitodecriaturasestranhas e assustadoras, nascidas de pesadelos e fantasias sombrias, espreitando as fronteiras dasTerrasdoOeste.SoldadosélficospatrulhavamdoValedoRhennatéSarandanon,dasMatasFoscasatéKershalt,emesmoassimonúmerodessascriaturascrescia.Eracertoquemaisdelessurgiriam,atéquefinalmentetivessemobastanteparaseunireatacaroselfoscomvigor.

Anderpousouos cotovelosnamesa e cruzou asmãosna testa, protegendoosolhosda luz.AEllcrys estavamorrendo tão rápidoque ele se perguntava se ainda restava tempoobastante paraencontrar o Fogossangue,mesmo queAllanon tivesse sido bem-sucedido em suamissão. Tempo!Nofim,tudoseresumiaaisso.

As imensas portas do lado oposto da câmara se abriram e seis cabeças se viraram ao mesmotempo. Allanon entrou, alto e ameaçador em suas veste negras. Com ele, vinham duas figurasmenores,envoltasemmantoseencapuzadas,derostosescondidos.

Amberle!,pensouAnderimediatamente.UmadelasdeviaserAmberle!Masquemeraaoutra?Ostrêssemoveramemsilêncioparao ladoopostodamesaoval.AlioDruidaacomodouseus

companheiroseergueuorostoparaoRei.—MeusenhorEventine.—Elecurvou-selevemente.—Allanon—respondeuoRei.—Sejabem-vindo.—Estãotodosreunidos?—Todos—Eventineoassegurou,nomeando-osumporum.—Porfavor,faleoqueveiodizer.Allanonavançouváriospassosatéestarentreoselfoseasduascriaturasencapuzadas.—Muitobem.Sógostariadedizerissoumavez,entãopeçoqueescutemeprestematenção.A

nação élfica corre grande perigo.AEllcrys estámorrendo. Ela está decaindo rapidamente agora,mais rápido a cadadia.Conforme elamorre, a barreira daProibição se enfraquece.Osdemôniosque seus antepassados aprisionaram já começarama se libertar e a entrarmais uma vez emnossomundo.Logo,todosestarãolivreseentãobuscarãoaaniquilaçãodevocês.

ODruidaavançouumpasso.— Não duvidem disso, senhores élficos. Vocês não compreendem como eu compreendo a

extensão do ódio que os conduz. Vi apenas um punhado dessas criaturas, um punhado que jáatravessouaProibição,masmesmoessespoucos revelaramparamima totalidadedoódioqueosconsome.Éumódioimpressionante,quelhesdápoder,maispoderdoquepossuíamquandoforambanidosdaterra.Achoquevocêsnãoserãocapazesderesistir.

—Vocênãoconheceoexércitoélfico!—OrostodePindanonficousombrio.—Comandante—falouEventineemtomsuave.Osoldadovirou-separaeleimediatamente.—

Vamosescutá-lo.Pindanonrecostou-se,orostotensodefrustração.— A Ellcrys é a chave da sua sobrevivência — continuou Allanon, ignorando Pindanon. —

QuandoaEllcrysmorrer,aProibiçãoseráperdida.Amagiaqueacriouestaráperdida.Umacoisapodeimpedir isso,eapenasumacoisa.Deacordocomalendaélficaeas leisdamagiaquederamvidaà arvore, aEllcrysprecisapassarporumrenascimento. Isto sópodeacontecerdeummodo.Vocêsoconhecembem.UmEscolhidoaserviçodaárvoredevecarregarsuasementeatéafontedetoda a vida, o Fogossangue da terra. Ali, a semente deve ser totalmente mergulhada no fogo, edepoisdeveserdevolvidaà terraondeestãoas raízesdaárvoremãe.EntãohaveráumanovavidaparaaEllcrys.AbarreiradaProibiçãoserárestauradaeosdemôniosmaisumavezbanidosdaterra.Homens de Arborlon. Duas semanas atrás, ao descobrir que a Ellcrys estava morrendo, vim atéEventineElessedileoferecitodaaajudapossível.Nãofuivelozobastante.AProibiçãojácomeçaraa se enfraquecer, permitindo que alguns demônios presos escapassem. Antes que eu pudesse agirparaimpedirisso,elesassassinaramosEscolhidos,matando-osenquantodormiam,matandotodosos que encontraram.No entanto, eu disse ao Rei que procuraria ajudar os elfos de duas formas.Primeiro, viajaria até Paranor, ao castelo dos Druidas, para procurar nas histórias dos meuspredecessores algo para desvendar o segredo da palavra “Sepulcro”. Fiz isso. Descobri onde oFogossanguepodeserencontrado.

Elefezumapausa,estudandoosrostosdoshomensqueoescutavam.— Também disse ao Rei que procuraria alguém que pudesse levar a semente da Ellcrys na

jornada até o Fogossangue, pois acreditavana existência de tal pessoa.Também fiz isso. E trouxeessapessoacomigoparaArborlon.

Ander ficou tenso, na expectativa, enquanto um murmúrio de descrença surgiu dos homensreunidos.Allanonvirou-seedirigiu-seàmenordasduasfigurasencapuzadas.

—Venhaatéaqui.Hesitante,afiguraobscuralevantou-seeandouatéficardoladodoDruida.—Abaixeseucapuz.Novamente, houve hesitação. Os elfos inclinaram-se para frente, impacientes— todos menos

Eventine,queestavarígidoemsuacadeira,comasmãosapertandoosbraçosdemadeiraentalhada.—Abaixeseucapuz—repetiuAllanoncomgentileza.Desta vez a figura encapuzada obedeceu. Mãos esguias e bronzeadas surgiram das dobras da

roupaeabaixaramocapuz.Paralisadoscomainsegurança,osolhosverdescomoomardeAmberleencontraramosdeseuavô.Houveuminstantedesilêncioatordoado.

Arionficoudepénumpulo,pálidoderaiva.—Não!Não,Druida!Tire-adaqui!Leve-adevoltaparaondequerquevocêaencontrou!Anderquaseseergueudacadeira,ochoquecomaspalavrasdeseu irmãoóbvioemseurosto,

mas seu pai segurou seu braço e o fez sentar-se novamente. Comentários breves e furiosos foramtrocados, mas as palavras se perderam na confusão emaranhada de vozes que abafavam umas àsoutras.

AmãodeEventineergueu-sederepenteeasalaficouemsilênciodenovo.—NósescutaremosAllanon—repetiuelecomfirmeza,eArionvoltouparasuacadeira.ODruidaassentiu.— Peço a todos vocês que se lembrem do seguinte: apenas um Escolhido em serviço pode

carregar a semente da Ellcrys. Quando o ano começou, havia sete. Seis estão mortos. AmberleElessedilésuaúnicaesperança.

Ariondeuumsalto!—Ela não é nossa esperança! Ela não émais uma dos Escolhidos!—A voz dele soou dura e

amarga.KaelPindanonacenou,concordando,odesgostoclaroemseurostoenrugado.Allanonavançoumaisumpasso.—VocêduvidaqueelaaindasejaumaEscolhida?—Umfalsosorrisodebochadoperpassouseus

lábios.—Saibamentãoqueelatambémquestionaisso.Maseulhedisse,edisseaoavôdela,eagoradigo a vocês, que nenhum dos sentimentos a respeito deste assunto, nem os de vocês nem deAmberle, determinarão o que ela realmente é. Seus sentimentos não importam. Neta do Rei ouexiladadeseupovo,oque importa,Príncipe?Suapreocupaçãodeveriaserasobrevivênciadeseupovo; o seu e todosospovosde todas asTerras, pois esseperigoos ameaça também. SeAmberlepuderajudaravocêseaeles,entãooqueaconteceudeveseresquecido.

Arionsemantevefirme.—Nãoesquecerei.Nãoesquecereinunca.—Oqueéquevocêestápedindodenós?—interrompeuEmerChios,eArionsentou-semais

umavez.Allanonvirou-separaencararoPrimeiroMinistro.—Apenasisto.Nemvocês,nemeu,nemmesmoAmberletemosodireitodedeterminarseelaé

um dos Escolhidos ou não. Apenas a Ellcrys tem esse direito, pois foi ela que determinou queAmberle deveria ser uma Escolhida, para começar. Por isso, precisamos saber os sentimentos daárvore.DeixemAmberleiratéaEllcrys;deixemaEllcrysdecidirseiráaceitá-laourejeitá-la.Seela

foraceitacomomembrodosEscolhidos,receberáumasementeepartiráembuscadoFogossangue.—Eseelaforrejeitada?— Será melhor torcemos para que a fé do Comandante Pindanon no exército élfico seja

justificada.Arionlevantou-semaisumavez,ignorandooolharqueopailhedirigiu.—Vocêpededemaisdenós,Druida.Vocêpedequeconfiemosemalguémquejáprovounãoser

dignadeconfiança.AvozdeAllanonmanteve-sefirme.—EupediparaquevocêsconfiassemnaEllcrys,assimcomotêmfeitoporséculosincontáveis.

Deixemqueadecisãosejadela.Arionsacudiuacabeça.—Não,sintoqueháumjogoaqui,Druida.Aárvorenãofalacomninguém,nãofalarácomesta

garota.—Seuolharfuriosovirou-separaAmberle.—Seagarotaquerqueconfiemosnela,queelaconteprimeiroporquedeixouArborlon.Deixem-nacontarporquedesgraçouasieàsuafamília.

Allanonpareceupensarnopedidoporummomento,eporfimolhouparaajovemaoseulado.OrostodeAmberleestavapálido.

—Nãoquistrazerdesgraçaparaninguém—respondeuela,baixo.—Fizoquesentiquetinhadefazer.

—Vocênosdesgraçou!—explodiuArion.—Vocêé filhademeuirmão,eeuoamavamuito.Eu queria entender o que você fez,mas não consigo.O que você fez trouxe vergonha para nossafamília, para todos nós. Trouxe vergonha para a memória de seu pai. Nenhum Escolhido jamaisrejeitouahonradeservir.Nenhum!Masvocê,vocêdescartoutalhonracomosenãofossenada!

Amberleficourígida.—EunãodeveriatersidoEscolhida,Arion.Foiumerro.Tenteiservircomoosoutros,masnão

consegui.Sabiaoqueesperavamdemim,mas...nãoconseguifazer.—Nãoconseguiu?—Arionavançou,ameaçador.—Porquê?Querosaberomotivo.Estaéasua

chanceparaseexplicar,entãoofaça!—Nãoposso!—respondeuela,comumsussurroestrangulado.—Nãoposso.Nãopossofazer

vocêentender,nemsequisesse,nemse...—ElaolhouparaAllanon, implorando.—Porquevocêmetrouxedevolta,Druida?Istoéinútil.Elesnãomequeremaqui.Eunãoqueroestaraqui.Estouassustada,vocêentende?Deixe-mevoltarparacasa.

— Você está em casa— respondeu o Druida gentilmente, com uma tristeza na voz que nãoestiverapresenteantes.OlhouparaArion.—Suasperguntassãoinúteis,PríncipeÉlfico.Pensenopropósitodestasperguntas.Pensenafontedelas.Amágoadálugaràamargura,aamarguraàraiva.Andedemaisporessaestradaeseperderánocaminho.

Eleparou,comosolhosnegrosfixosnoConselhoÉlfico.—Nãofingireientenderoquefezestajovemdeixarseupovo.Nãofingireientenderoqueafez

escolherumavidadiferentedaquelaquelhefoioferecidaemArborlon.Nãoémeudireitojulgá-la,nemseu.Oqueaconteceuantesépassado.ElamostroucoragemedeterminaçãoaofazeraviagemdevoltaparaArborlon.Osdemônios já sabemdela; eles a caçaram.Aindaa caçam.Ela aguentouprovaçõesecorreuperigoaoretornar.Seráqueissofoiemvão?

Com a menção dos riscos à Amberle, apareceu um leve brilho de preocupação nos olhos deEventine.Anderviu;estavalá,maslogosumiu.

— Você poderia ter levado a garota diante da Ellcrys sem nos consultar — ressaltou EmerChios,subitamente.—Porquenãoofez?

— Amberle não queria voltar a Arborlon — respondeu Allanon. — Ela veio porque eu aconvencidequeeranecessário,queelaprecisavaajudarseupovo,sepudesse.Mesmoassim,nãosedeixou trazer em segredo e comdiscrição, só abertamente. Se ela se apresentar diantedaEllcrys,serácomapermissãodevocês.

Colocouumbraçoaoredordosombrosmagrosdaelfa.Elaoolhoucomsurpresaexpressaemseurostoinfantil.

—Vocêsprecisam fazer sua escolha.—OrostodoDruidapermaneceu impassível.—Qualdevocêsficarádoladodela,senhoreselfos?

A sala ficou silenciosa. Os elfos e o Druida ficaram se encarando sem dizer nada, com olhosfixos. Totalmente esquecida naquele momento, a segunda forma encapuzada mexeu-senervosamentenaoutrapontadamesa.Segundossepassaram.Ninguémselevantou.

Derepente,AnderElessedilpercebeuqueAllanonolhava-odiretamente.Algonãoditopassouentreosdois,quaseumentendimento.Naquelemomento,Andersabiaoqueprecisavafazer.

Lentamente,levantou-se.—Ander!—Ouviuoprotestodeseuirmão.OlhourapidamenteparaorostosombriodeArion,viuoalertaclaronosolhosdurosdooutro,

daí desviou o olhar. Sem dizer nada, contornou a mesa até estar na frente de Amberle. Ela oencarou, assustada, como uma criatura selvagem prestes a fugir. Gentilmente, a puxou pelosombroseinclinou-separabeijá-lanatesta.Havialágrimasnosolhosdamoçaquandooabraçouemresposta.

EmerChiosselevantou.—Não vejo por quedeveria haver algumadificuldadenesta decisão,meus senhores.—Ele se

dirigiuaosdemais.—Quaisquerquesejamasnossasopções,temosqueaproveitá-las.AvançouparaseuniraAnder.CrispinolhouderelanceparaEventine.OReiestavarígido,orosto inexpressivoaoencontrar

osolhosdeseucapitão.Crispinergueu-seepostouoladodeAnder.O Conselho ficou dividido ao meio. Três encontravam-se em pé ao lado de Amberle; três

continuavam sentados à mesa. Eventine olhou para Arion. O Príncipe Herdeiro dos Elfosencontrouosolhosdopaidiretamente,evirou-separaAnder,cheiodeamargura.

—Nãosoutolocomomeuirmão.Digoquenão.OReiolhouparaPindanon.Orostodovelhosoldadoestavaduro.— Confio no exército élfico, não nesta criança. — Então pareceu hesitar. — Ela tem o seu

sangue.Meuvotoseráigualaoseu,meuRei.Escolha-obem.Todos os olhos se fixaram emEventine. Por um instante, ele pareceu não ter escutado. Ficou

encarando amesa à sua frente, o rosto triste e resignado. Suasmãos deslizaram lentamente pelasuperfíciedemadeirapolidaeseentrelaçaram,apertadas.

Eleselevantou.—Entãoestádecidido.AmberleiráatéaEllcrys.EsteConselhoestáencerrado.Arion Elessedil levantou-se, lançou um olhar venenoso para Ander e saiu pisando duro sem

dizerpalavra.Dedentroda sombraprotetorade seucapuz,WilOhmsfordviuadoreadescrençaexpressas

nosolhosdeAnderElessedilaoobservarseuirmãoseafastando.Umafendaseabriraentreaquelesdois enão se fecharia rapidamente.EntãooolhardoPríncipeÉlfico ergueu-se subitamenteparaencontraroseu,quedesviou,constrangido.

Allanonfalavadenovo,avisandoaosquetinhampermanecidoqueAmberleprecisariadescansar

porumoudoisdiasantesde iratéaEllcrys,equedepoisdissoelessereuniriamnovamente.Willevantou-se,mantendoasvestesapertadasaoredordocorpo,poisAllanonavisaraquenãodeveriase revelar.A câmara começou a se esvaziar, e ele foi até o lado deAmberle.ViuAnder Elessedillançarumolharparaeles,hesitante,antesdeseguirosdemais.AllanonseafastaracomEventineelhe falava com palavras apressadas e sigilosas. Parecia haver algum tipo de discussão entre eles.Então,comumacenorelutante,oReiÉlfico tambémpartiu.WileAmberle foramdeixadosa sóscomoDruida.

Allanonoschamou.—Sigam-me.Rapidamente,os levouparaforadasaladoConselho,apressando-ospelocorredorexternoaté

estarem novamente na escuridão fria da entrada. O Druida parou, escutou com atenção e emseguidasevirouparaeles.

—Amberle.—Esperouatéqueamoçaoolhasse.—QueroquevocêváatéaEllcryshojeànoite.Orostodajovemelfamostrousurpresaeconfusão.— Por quê? — perguntou ela, incrédula, e depois sacudiu a cabeça. — Não. Não, é rápido

demais!Querotempoparameprepararantesdefazerisso.Alémdomais,vocêacaboudedizeraomeuavôeaosoutrosquedemorariaumdiaoudoisparaeuiratéela!

Allanonassentiu,pacientemente.—Umatrapaçapequena,masnecessária.Esobresepreparar,quepreparativosvocêfará?Nãoé

um teste dehabilidadeoude resistência; nenhumapreparação irá ajudá-la.Ou você ainda é umaEscolhidaaserviçodaárvoreounãoé.

—Estoucansada,Druida!—Ela ficou irritada.—Estoucansadaeprecisodormir!Nãopossofazerissoagora!

—Vocêprecisa.—Allanonhesitou.—Seiquevocê está cansada; seiqueprecisadormir.Masissoteráqueesperar.Primeiro,vocêdeveiratéaárvore,eprecisafazê-loagora.

Ela enrijeceu ao ouvi-lo; uma expressão acuada surgiu em seus olhos. E começou a chorarincontrolavelmente.Eracomosetodososacontecimentos—ainesperadaapariçãodoDruidaemseu chalé, a notícia de que aEllcrys estavamorrendo e osEscolhidoshaviam sido assassinados, acompreensãodequeprecisavavoltaraArborlon,afugadesesperadadoRefúgioFirme,oconfrontocom o Conselho e com seu avô, e agora aquilo— a houvesse atingido de uma vez e a deixadocompletamentesufocada.Todasassuasdefesaspareciamtersepartido.Encontrava-sediantedeles,pequena e vulnerável, soluçando, engasgando com palavras que não saíam. Quando Allanonestendeu os braços, ela se distanciou, afastando-se deles por váriosminutos.WilOhmsford ficouolhandoparaela,semsaberoquefazer.

FinalmenteAmberleparoudechorar,orostoaindaviradoparaooutrolado.Quandofalou,suavozfoipoucomaisqueumsussurro:

—Émesmonecessário,Allanon?Érealmentenecessárioqueeuváatéelahojeànoite?ODruidaassentiu.—Sim,jovemelfa.Houveumlongosilêncio.—Entãoirei.Quietaerecomposta,amoçajuntou-seaelesdenovo.Semumapalavra,Allanonosguioupelas

ruasdacidade.

CapítuloXIX

A luz pálida da lua derramava-se do céu e lavava a noite de verão. Cheiros doces e zumbidosreconfortantesemergiamdaescuridãoemondaslentaseentorpecentesqueflutuavamedançavamnabrisamorna,eagitavamascercas-vivasebarracas,oscanteirosdefloreseosarbustosdosJardinsda Vida. Sombras sarapintadas marcavam as cores do Jardim em estranhos padrões de preto ebranco. Pequenas formas de vida que acordavam com a escuridão saltavam e voavam emmovimentossúbitoseinvisíveisquenãodeixavamvestígiosdesuapassagem.

Nomeiode tudoaquilo, solitáriae ignoradanotopodapequenacolinaquedavaparaa terradoselfos,afabulosaárvorequechamavamdeEllcryscontinuavasualentaeinevitávelmarchaparaamorte.A longa jornada já começaraa cobrar seupreço.AbelezaperfeitaquemarcaraaEllcrysquandosaudáveldesaparecera,aperfeitasimetriadesuafiguraagoradeterioradaepartida.Acascaprateada soltava-se do tronco e dos galhos, preta e apodrecida, suspensa em tiras como pelerasgada.Asfolhasvermelho-sangueestavamenroladasemurchas,emontesdelasmanchavamosoloabaixo,secaseenvelhecidassacudindoaovento.Comoumespantalhodesgastadopostonoaltodeumahasteparavigiaroscampos,aárvoremostrava-serígidaeesqueléticacontraohorizonte.

Allanon,WilOhmsfordeAmberleobservavam-nasemfalarnadadosopédaelevação,comseusrostoscobertoserguidoscontraacortinado luar.Ficaramaliporumlongotempo,emsilêncioetotalmente imóveis, oúnicomovimento erabalançardas roupasnabrisa suave.QuandoAmberlefinalmentefalou,seusussurroencheuaquietudecomumaintensidaderepentina:

—Ah,Allanon,elaparecetãotriste.ODruidanãorespondeu.Seucorpoaltoestavarígidodentrodaroupa,eseurostoescondido

nassombrasdocapuz.Oventolhestrouxecheirodealfazema,permanecendouminstanteantesdesumir.Depois de ummomento,Amberle lançou um olhar ao homem, e seus braços apertaram aroupacomforça.

—Elaestácomdor?OmovimentodacabeçadoDruidafoiquaseimperceptível.—Umpouco.—Elaestámorrendo?—Avidadelaestáacabando.Seutempoestáquaseesgotado.Houveumalongapausa.—Vocênãopodefazernadaporela?—O que pode ser feito por ela deve ser feito por você.—A voz grave deAllanon saiu num

murmúriogentil.OsuspirodeAmberle foiaudível,umarrepiodeaceitaçãoquepercorreuseucorpoesquálido.

Ossegundossepassaram.Wilremexeu-se,inquieto,aguardandoajovemelfaseresolver.Aquilonãoerafácilparaamoça.Elanãoesperavaestaralinaquelanoite;nenhumdosdoisesperava.Achavamque, comoConselho sendodispensado, teriampermissão para finalmente dormir.NãodormiamdesdeafugaatéoValedoRhenneareuniãoinesperadacomAllanon.Estavamexaustos.

—Elaestádormindo—sussurrouAmberlederepente.

—Elavaiacordarparavocê—respondeuoDruida.Amberle não quer isso, pensou Wil. Nunca quis. Não está simplesmente contrariada, está

assustada. Disse isso naquela primeira noite no pequeno jardim atrás de sua casa. Porém, nuncaexplicaraomotivo.

Wilolhouparaotopodacolina.OquehavianaEllcrysqueaassustavatanto?—Estoupronta.Disseaquilocomsimplicidadeevozcalma.Allanonficouemsilêncioporummomento,depois

assentiu;ocapuzsedobroudelevecomaresposta.—Então,vá.Estaremosesperandoporvocêaqui.Amberlenãosemoveude imediato; ficouparadaporumsegundo,comoseprecisassedealgo

maisdoDruida.Porém,nadamaislhefoioferecido.Ajustandoasvestes,aelfaavançou,subindoasuaveelevaçãocomorostoviradonadireçãodaárvoredesoladaeimóvelqueaguardavanotopo.

Elanãoolhouparatrás.

AelfacompletouaescaladasuaveempoucosminutoseficousozinhadiantedaEllcrys.Nãoestavaaoalcancedaárvore,masumpoucoalém,comsuapequenafiguraencolhidanasdobrasprotetorasda roupa preta e seus braços apertando-a com força. Do topo da colina, as Terras do Oesteestendiam-seatéohorizonte, fazendo-a sentir-sepequenaedesprotegida.Abrisanoturna soprouseurosto,perfumadacomosaromasdojardim,eelainspiroufundo,controlando-se.

Sóprecisodeummomento,disseasi.Sóummomento.Masestavacomtantomedo!Ainda não entendia por que, nemmesmonaquelemomento, tanto tempo depois.Deveria ser

capaz de entender; deveria ser capaz de controlá-lo. Porém, não conseguia, o que só piorava ascoisas.Omedoerairracional,cegoesemsentido.Estiverasemprelá,espreitandodofundodesuamente como um predador, saindo de seu esconderijo sempre que Amberle pensava na Ellcrys.Lutavacontraisso,batalhandocomdeterminação,mastalpavoravarriaassimmesmo,irreprimívelesombrio.Foracapazdesuprimi-lonoRefúgioFirme,poislásuacausaestavadistante,nopassado.Mas naquele momento, tendo retornado a Arborlon, a menos de cinco metros de distância,lembrando-sedotoquedaEllcrys...

Tremeuantea lembrança.Erao toqueque realmente temia.Masporquê?Nenhummalvinhadaquilo, nenhum ferimento. Servia apenas para permitir que a Ellcrys comunicasse seuspensamentosusandoimagens.Porém,haviaaquelasensaçãodealgomaisquesempreacompanhavaotoque,desdeaprimeiravezemquetinhafaladocomela.Haviaalgumacoisa.

Seuspensamentosseespatifaramaosomdopiosuavedeumacoruja.Estavaconscientedequeestivera ali parada por vários minutos e que os dois homens que a esperavam lá em baixoprovavelmenteaobservavam.Nãoqueriaaquilo.

Rapidamente,começouacontornaratéooutroladodaárvore.

O Druida e o jovem do Vale Sombrio observaram em silêncio a silhueta da elfa contornando aEllcrysesumindodevista.Permaneceramalipormaisumtempo;masquandoelanãoreapareceu,Allanonsentou-senagramasemdizernada.Wilhesitou,porémjuntou-seaele.

—OquevocêvaifazerseaEllcrysdecidirqueelanãoémaisumaEscolhida?ODruidanãovirouorosto.—Issonãovaiacontecer.

Ojovemhesitouantesdefalarnovamente:—Vocêsabedealgoarespeitodaárvorequenãocontouanenhumdenósdois,nãoé?OtomdevozdeAllanonsooufrio:—Não.Nãonessesentido.—Masemalgumsentido.—Oqueédasuaalçada, jovem,égarantirquenadaaconteçaaeladepoisquevocêsdeixarem

Arborlon.O modo como Allanon falou deixou Wil com a nítida impressão de que aquele assunto

específicoestavaencerrado.Remexeu-se,desconfortável.—Vocêpodemeresponderoutracoisa,então?—perguntou,poucodepois.—Podemedizer

porqueelatemtantomedodaEllcrys?—Não.Wilenrubesceuporbaixodocapuz.—Porquenão?— Porque não tenho certeza se sei. Acho que nem ela sabe. De qualquer forma, quando ela

quiserquevocêsaiba,contarádeboavontade.—Duvido.—Wil inclinou-separa frente,deixandoosbraços jogadosemcimados joelhos.—

Elanãoparecemeconsiderargrandecoisa.Allanon não respondeu. Ficaram sentados em silêncio por um longo tempo, olhando vez por

outra para o topo da colina e para a árvore solitária.Não havia sinal deAmberle.Wil olhou derelanceparaoDruida.

—Elaestásegurasozinhaláemcima?Omístico assentiu.Wil ficou esperando que ele explicasse por que a elfa estava a salvo, mas

Allanon não ofereceu nenhuma explicação. O jovem deu de ombros. Concluiu que, estando tãoperto,teriameiosdeverificarseamoçaestavaprotegida.

Pelomenos,tinhaesperançasdequeassimfosse.

Por um longo tempo,Amberle não semexeu.Não conseguiu.Omedo a paralisara. Ficou dura egelada,apoucosmetrosdosgalhosmaispróximos, fitandoaEllcrys,hipnotizada.Dentrodesi,omedo corria como gelo líquido, entorpecendo até seus pensamentos. Perdeu todo o senso detempo,deespaço,detudooquenãofossesuaincapacidadededaraquelesúltimospassos.

Quando finalmente os deu, era como se outra pessoa o tivesse feito. Lembrava-se apenas dadistância entre si e a Ellcrys diminuindo, até desparecer totalmente. Amberle viu-se embaixo dacopa da árvore, perdida na sombra. A brisa noturna parou, aquietando-se, e o frio dentro de siviroucalor.

Semfalar,caiudejoelhosemmeioaomontedefolhasmortasegalhospartidosquecobriamochão,apertandoasmãosnocolo.Esperou.

Momentos depois, um galho esquelético desceu e enrolou-se gentilmente ao redor de seusombros.

—Amberle...Ajovemelfacomeçouachorar.

Osilêncioentreelesestendeu-seporumlongotempo,atéWilselembrarrepentinamentedealgoestranhoqueAllanondisseramaiscedo.TinharesolvidonãoperguntarmaisnadaaoDruidadepois

desuaúltimainteração,masacuriosidadeovenceu.—Allanon?ODruidaofitou.—Temalgomeincomodando.—Levouumtempoparaorganizaraspalavras.—Quandovocê

disseaAmberlequeprecisávamosviraquihoje,ela lembrouquevocê informouaoselfosnoAltoConselho que ela teria umou dois dias para descansar.Você respondeu que o que você disse foiumatrapaçanecessária.Oqueissoquerdizer?

Oluarrevelouocostumeirosorrisodebochadodesenhando-senorostomagrodoDruida.— Estava me perguntando quando você iria tocar nesta questão, Wil Ohmsford. — Ele riu

baixinho.—Suacuriosidadeémuitoabrangente.Wilsorriu,pesaroso.—Vouterumarespostaparaminhapergunta?Allanonassentiu.—Umarespostaquenãovaiagradá-lo.Amentira foinecessáriaporqueháumespiãoentreos

elfos.Wilcongelou.—Comovocêsabedisso?—Lógica.QuandochegueiaParanor,osdemôniosjáesperavampormim.Esperavampormim,

Wil.Nãofuiseguido.Issosugerefortementequeelessabiamdeantemãoqueeuiriaparalá.Comosabiamdisso?Aliás, como sabiamameu respeito?ApenasEventine sabiademeu regressopara asQuatroTerras.ApenaselesabiadosmeusplanosdeiraParanor;contei-lheemsegredoqueestavaindo lá para estudar as histórias dos Druidas, com a finalidade de descobrir a localização doSepulcro.Eventinefoiavisadoparanãofalarnada,eelefariaexatamenteisso.

Allanonfezumapausaantesdecontinuar.— Isso deixa apenas uma possibilidade. Alguém escutou nossa conversa; alguém commotivos

paranostrair.Wilpareciaemdúvida.—Mascomoissopodeteracontecido?Vocênosdissequeninguémsabiadesuavoltaatévocê

falarcomEventine.—Tambémestouintrigado—admitiuoDruida.—Oespiãodeveseralguémcomfácilacesso

aoRei,alguémqueconhecetodosospassosdele.Talvezumdeseusserviçais.—Deudeombros.—De qualquer modo, felizmente não falei para o Rei onde poderia encontrar Amberle, ou osdemônioscertamentea teriamalcançadoantesdemim.—Eleparoue fixouseusolhosnegrosnojovem.—Elesteriampegadovocêtambém,imagino.

Wil sentiu a pele se arrepiar. A sugestão era extremamente perturbadora, mesmo naquelemomento. Pela primeira vez desde que encontrara Allanon, agradecia por ele ser tão fechadoquantoaosseusconhecimentos.

—Seéassim,porquevocêcontoutantoparaoAltoConselho?—perguntou.—Seexisteumespião,nãoébempossívelqueeledescubratudooquefoiditonaqueleencontro?

ODruidainclinou-separafrente.—Éumagrandepossibilidade.Naverdade,quero tercertezadequeeledescobrirá.Foiesseo

motivodamentira.Entendaqueosdemôniosjásabemqueestamosaqui,esabemporqueestamosaqui. Sabem quem sou; sabem quem Amberle é. Ainda não sabem quem você é. Tudo isso elesdescobriram através de minha conversa com Eventine e do que viram ao nos perseguirem noRefúgioFirme.Não contamos aos elfosnadadenovo; excetoporumapequena coisa.Dissemos a

elesqueAmberledescansariaporváriosdiasantesdeiratéaEllcrys.Então,pelospróximosdias,osdemônios pensarão que não faremos nada. Esta enganação, espero, nos dará uma vantagempequena,masmuitoútil.

—Quetipodevantagem?—Wilfranziuatesta.—Oquevocêtememmente,Allanon?ODruidaapertouoslábios.—Quantoa isso,Wil, temo terdepedirque sejapacienteporumpoucomaisde tempo.Mas

prometoquevocêterásuarespostaantesdofimdanoite.Certo?Não havia nada certo em tudo aquilo, pensou Wil sombriamente. Mesmo assim, não havia

sentindoemcontinuarpressionando.QuandoAllanondecidiaalgo,Wilsabiaqueerapontofinal.—Maisumacoisa.—ODruidacolocouamãonoombrodeWil,emumgestodeaviso.—Não

falenadadissoparaAmberle.Ela jáestáassustadaobastante,enãohámotivoparaaassustarmosaindamais.Deixequeissosejaumsegredoentrenósdois.

Ojovemaquiesceu.Pelomenosnissoconseguiamconcordar.

Poucosminutosdepois,Amberleapareceuderepente,saídadasombradaárvore.Ficouparadaporummomento—umasilhuetacontraocéunoturno—,hesitouesevirounadireçãodeles.Andoudevagar, com cautela, como se não tivesse segurança em seus movimentos, trazendo as mãosapertadas contra o peito. Seu capuz estava abaixado e o longo cabelo castanho solto atrás de sibalançavanabrisa.Conformeela se aproximava,podiamver claramente seu rosto abatido.Estavapálidoecansado,marcadodelágrimas,comomedorefletidonobrilhodosolhos.

Foiatéeleseparou.Seucorpoesguiotremia.—Allanon...?—Elachoramingou,engasgandoonomedoDruida.Allanon percebeu que a elfa estava prestes a desmaiar. Esticou os braços imediatamente,

segurando-a e apertando-a contra si. Amberle deixou-se ser abraçada desta vez, chorando emsilêncio. Ele continuou ali por muito tempo, sem dizer nada. Wil observou, sentindo-sedesconfortáveleinútil.

Depoisdeumtempo,ochoroparou.Allanonsoltoua jovemelfaedeuumpassopara trás.Orostodelaencontrava-seabaixado,masAmberleoergueuemseguida.

—Vocêestavacerto—sussurrouela.As mãos fechadas saíram das dobras de suas vestes, abrindo-se devagar. Aninhada em suas

palmas,comoumapedraprateadaperfeitamenteformada,estavaasementedaEllcrys.

CapítuloXX

Momentosdepois,AllanonoslevouemboradosJardins.Comoscapuzeserguidossobreosrostoseosmantos envolvendo-os,passarampelosportões epelas sentinelasdaGuardaNegra, seguindonadireçãoda cidade.ODruidanãoofereceu explicaçãoalgumaa respeitodo localparaondeoslevavaeosdoisjovensnãoperguntaram.Caminharamemsilêncio,tendoAllanonumpassooudoisàfrentedeWileAmberle.Ambosestavamexaustos.Ojovemolhavarepetidamentederelanceparaa elfa, mais preocupado com ela do que gostaria de admitir para si, mas Amberle dava poucosindíciosdeseuestadoemocional,eWilsócaptavaumlampejoocasionaldorostodeladentrodacoberturadocapuz.Umavezeleperguntouseestavatudobemeelaassentiu,semfalar.

Poucotempodepois,elesseviramaproximando-sedacasasenhorialdosElessedil.Sinalizando,mudo, Allanon os levou até o terreno que cercava a casa escurecida, conduzindo-os por umabarreiradepinheirosquecercavaapartesuldogramado,depoispassaramaoladodeumasériedearbustos atéumaalcova eumparde janelasdevidroque iamatéo chão, envolvidas em sombrasnegras.De pé diante das portas,Allanon bateu de leve no vidro.Depois de uma breve espera, ascortinasquecobriamasjanelassemoveram.Umatrancafoiabertapeloladodedentroeasportasse abriram. Rapidamente, Allanon os fez atravessar, olhando furtivamente ao redor, e os seguiu,fechandoasportasatrásdesi.

Ficaramporalgunssegundosnaescuridão,escutandoosomfracodepassossemovimentandolentamentepelasala.Umaluzseacendeunopaviodeumavela.Wildescobriuqueseencontravamnumpequenoescritório.Ocarvalhotrabalhadodasparedesedasmobíliasbrilhavaà luzfracadasvelas,eostraçossuavesdecordastapeçariasedoslivrosencadernadosemcourofaziam-sevisíveisatravésdassombraspesadas.Noladoopostodopequenocômodo,umcachorroenvelhecidoergueuacabeçagrisalhadeumpequenotapetecordeterranoqualestavadeitadoebalançouoraboemcumprimento.

EventineElessedilcolocouavelanumamesinhaevirou-separaencará-los.—Estátudopronto?—AvozgravedeAllanonquebrouaquietude.OvelhoReiaquiesceu.—Eseusserviçais?—ODruidajásemoviapelasalaatéaúnicaportaquelevavaparaorestante

dacasa.Abriu-a,espiouporelarapidamenteedepoisafechou.—Todosdormem,menosDardaneRhoe,queestãodevigianaportadomeuquarto,achando

queestoudormindotambém.NãoháninguémaquialémdovelhoManx.O cachorro levantou os olhos ao ouvir seu nome, e depois abaixou a cabeça entre as patas,

fechandoosolhos.Allanoncaminhoudevoltapelasala.—Entãopodemoscomeçar.Gesticulou paraWil e Amberle sentarem-se àmesa, puxando uma terceira cadeira para si. O

jovemdoValeSombrio sentou-se, cansado.Amberledeuumpassoà frenteeparou,pousandoosolhosnoavô.Eventineretribuiuoolhar,hesitou,masdepoiscorreuparaabraçá-la.Ajovemficourígidaporummomento,depoisseusbraçosoenvolveram.

—Amovocê,vovô—sussurrouela.—Sentisuafalta.O velho Rei não falou, mas assentiu sobre o ombro dela, erguendo a mão para acariciar os

cabelos.Emseguida,pegouacabeçadelaentresuasmãoscomgentilezaealevantouafimdefazê-laencará-lo.

—O que aconteceu ficou para trás, Amberle. Está esquecido.Não haverámais palavras durasentrenós.Esteéseular.Querovocêaquicomigo,comasuafamília.

Ajovemsacudiuacabeçacomtristeza.—FaleicomaEllcrys,vô.EladissequesouaEscolhida.Elamedeuasemente.Orostodoanciãoficoupálidoeeleabaixouosolhos.—Lamento,Amberle.Seiquevocêqueriaquenãofosseassim.Acredite,eutambémqueria.—Euseiquesim—respondeuela,mashaviadesesperoemseusolhos.A elfa afastou-se dele e sentou-se à mesa com Allanon e Wil. O Rei ficou em pé por um

momento, observando sua neta. Ele exibia uma expressão perdida e assustada, que lembrava a deumacriançaextraviada.Recuperou-sedevagarefoisentar-secomosoutros.

Allanoninclinou-separafrente,unindoasmãoscuidadosamentesobreamesa.—Eventine e eu concordamos, ao fimdoAltoConselho,quenos encontraríamos emsegredo

esta noite. O que for dito aqui tem que ficar entre nós quatro e mais ninguém. O tempo estáfugindo de nós, e precisamos agir rapidamente se quisermos salvar o povo élfico. A Ellcrys estámorrendo.LogoosdemôniospresospelaProibiçãoatravessarãoparaasQuatroTerras.Eventineeeuestaremos láparaenfrentá-losquandoeleso fizerem.Masvocê,Amberle, evocê também,Wil,precisam partir em busca do Fogossangue. — Ele virou-se para a elfa. — Eu iria com vocês, sepudesse. Eu iria com vocês se houvesse alguma possibilidade de fazê-lo, mas não há. Um dosdemôniosque já se libertoudaProibição, assimcomoalgunsoutrosaindapresos,possuipoderesaos quais seu avô e o povo élfico não conseguirão resistir sem minha ajuda. Minha tarefa seráproteger os elfos destes poderes. Feitiçaria para resistir a feitiçaria. Assim deve ser.Mas emmeulugar,envioWilOhmsford,enão foi levianamentequeescolhiconfiar suasegurançaaele.Oavôdele foicomigonaprocuradaEspadadeShannara,e foielequemaencontrouequemenfrentousozinhooLordeFeiticeiroeodestruiu.Otio-avôdeWil,Flick,salvouavidadeseuavôumavez.Wil tema forçadecaráterquemarcouosdoishomens;assimcomoosensodehonradeles.VocêviuqueelecarregaasPedrasÉlficasquedeiaoavôdele.Wilaprotegerácomoeufaria.Eleficaráaoseulado,Amberle,enãovaifalharcomvocê.

Houveumlongomomentodesilêncio.Ojovemdovalesentiu-seenvergonhadopelaspalavrasdoDruida—envergonhadoedesconfortável.Nãoestavatãoseguroassimdesi.OlhourapidamenteparaAmberleeaencontrouencarando-odevolta.

—VocêéumaescolhidaaserviçodaEllcrys—continuouAllanon,atraindoosolhosdajovemparaencontrarosseus.—Apesardetodosnósquerermosqueascoisasfossemdiferentes,oassuntoficoudecididoconformeconcordamosquedeveria.VocêéaúltimadosEscolhidose,sendoassim,é a última esperança de seu povo. Só você pode restaurar a Proibição. Uma responsabilidadeterrível,Amberle,maslhepertence.Sevocêfalhar,demônioseelfosguerrearãoatéumdoslados,ouosdois, estaremcompletamentedestruídos.AEllcrys lhedeu sua semente, evocêdeve levá-lanessa procura pelo Fogossangue. Não será uma tarefa fácil. O Fogossangue está em um lugarchamado Sepulcro, e o Sepulcro é parte do velho mundo. Aquele mundo se foi, mudou parasempre.Aolongodaseras,olugarchamadodeSepulcrofoipraticamenteesquecido.NemmesmoaEllcrysconhecemaisocaminhoquelevaatélá.SenãofossepelashistóriasdosDruidas,oSepulcropoderiaestarirremediavelmenteperdidoparanós.Porém,ashistóriassãoumeloentreopassadoe

opresente.Euaslieseiondeficaolugar.—Elefezumapausa.—DentrodoVastoErmo.Ninguémdisseumapalavra.Nãohavianecessidade.AtéWilOhmsford,vindodoValeSombrio

nasTerrasdoSul,queatéentãojamaiscolocaraospésnasTerrasdoOeste,jáouvirafalardoVastoErmo. Localizado nas profundezas das florestas ao sul da nação élfica, era uma faixa traiçoeira eperigosadedesertocercadapormontanhasepântanos.Menosdemeiadúziadealdeiaspontilhavaa região, e estas eram habitadas por ladrões, assassinos e foras-da-lei de todo tipo imaginável. Emesmoelesraramenteseafastavamdesuasaldeiasoudaspoucastrilhasqueatravessavamaregião,poisentreasárvores,diziamosrumores,haviacriaturasquenenhumhomemgostariadeencontrar.

Wilinspiroufundo.—VocêporacasonãosaberiaondeencontraremosoFogossanguenoVastoErmo?Allanonsacudiuacabeça.—Nãotenhocerteza.AtéashistóriasDruidasquefalamdelesereferememparteàgeografiado

antigomundo,eospontosdereferênciaqueexistiamseforam.VocêsterãodeconfiarnasPedrasÉlficas.

—Foioquepensei.—Ojovemafundounacadeira.—OusodasPedrasÉlficaspodedizeraosdemôniosondenosencontrar.

—Infelizmenteéverdade.Vocêsprecisarãosermuitodiscretos,Wil.RelatareiavocêsoqueaEllcryscontouaosEscolhidossobreoSepulcroantesdeelesseremassassinadosetambémoqueelame contou depois. Isso pode ajudá-los em sua busca. O Fogossangue está em um deserto commontanhas e pântanos ao redor. Obviamente trata-se do Vasto Ermo, como contam as históriasDruidas.Agora,direio restodoqueela falou.Háumanévoaprofundaquevai evem.Dentrodoermo,existeumpicosolitário;nabasedestepicoháumlabirintodetúneisquepenetramfundonaterra.Emalgum lugardeste labirintoháumaporta feitadeumvidro inquebrável.Dooutro ladodestaporta,vocêsencontrarãooFogossangue.

Eleinclinouacabeça,pensativo.—Comopodemver,adescriçãogeraldoVastoErmopermanecesurpreendentementeprecisa,

mesmodepois da passagemde tantos anos e dasmudanças catastróficas causadas na geografia daterrapelasGrandesGuerras.Talvezoquadrogeraldadescriçãopermaneçaprecisotambém.TalvezoFogossangueaindapossaserencontradodebaixodeumpicosolitário,dentrodeumlabirintodetúneis.— Ele deu de ombros.— Eu os ajudariamais se pudesse,mas não posso. Vocês precisamfazeromelhorquepuderemcomisso.

Wil conseguiu dar um sorriso fraco, ainda que um pouco forçado, de incentivo. Não ousouolharparaAmberle.

—ComochegaremosaoVastoErmo?—perguntou.ODruidaolhouparaEventinede formainquisitiva,masoReiÉlficopareciapreocupadocom

algumacoisa.Porfim,distraídopelosilêncio,olhouparaAllanoneassentiu,distraído.—Tudofoiprovidenciado.ODruidahesitou,depoissevirouparaAmberle.— Seu avô escolheu o Capitão Crispin, comandante da Guarda da Casa, para ser seu guia e

protetor nessa jornada. Crispin é um soldado muito corajoso e habilidoso; ele a ajudará. Foiinstruídoaescolherseiscaçadoresélficoscomoescolta.Seiséumgrupopequeno,masumpequenonúmeropodeseramelhoropçãonestecaso;atrairábemmenosatençãodoqueumgrupograndeelhespossibilitaráviajarmais rápido.OplanoqueoRei e eu elaboramoséo seguinte: vocês serãolevadosdacidadeemsegredo;omodoficouacargodoCapitãoCrispin.Apenaseleestaráapardesuamissão.Eleeoscaçadoresélficossobseucomandoosacompanharãoatéondevocêsprecisarem.

Todos foram avisados de que nenhum mal pode acontecer a vocês, que devem fazer o que fornecessárioparaprotegê-los.

—Allanon.Foi Eventine quem falou, lançando-lhe um olhar repentino, com uma expressão preocupada.

SeusolhosazuispenetrantesencontraramosdoDruida.—Existe algo que ainda não lhe contei.Não falei sobre isso antes porque só tivemos aqueles

poucosmomentosa sósno finaldoConselho.Porém,achoquealgumacoisadeve serdita agora.Háoutrosmotivosparasepreocuparnessamissão,alémdoperigoóbviodeseremrastreadospelosdemôniosqueosvêmperseguindoatéagora.

Ele inclinou-se para frente, cruzando os braços na mesa para apoiar seu peso. Seu rosto,iluminadopelaluzfracadavela,pareciabastantevelho.

—VocêsabecomoosEscolhidosmorreram;talvezWileAmberlenão.—Virouorosto.—Elesforamdespedaçados,estraçalhadosdeformaaficaremquaseirreconhecíveis.

OhorrortomouosrostosdajovemelfaedojovemdoValeSombrio.OReicolocouamãonoombrodaneta,delicadamente.

—Nãoestoufalandoissoparaassustá-laaindamais,Amberle,nemavocê,Wil,masporcausado seguinte.—Voltou a olhar paraAllanon.—Desde que você saiu deArborlon, houve outrasmortes como as dos Escolhidos. Várias mortes. O que quer que seja que os tenha matado, temvagadopelaregião,sistematicamentedestruindoatudoeatodosqueencontra,homemouanimal,jovemouvelho.Maisdecinquentaelfosmorreram;todosdomesmojeito,todosestraçalhados.Trêsnoites atrás, uma patrulha élfica inteira foi emboscada e destruída. Seis homens armados. Umasemana antes, umabasedo exércitono limitenorteda cidade foi invadida e vintehomens forammortos enquanto dormiam. O número de demônios avistados nas Terras do Oeste desde que aEllcryscomeçouadecair temaumentado,ealgunspoucosconfrontosdesagradáveis também;masnadanessaproporção,nadatãodeliberadoepremeditado.Essacriaturasabeoqueestáfazendo;elamata com um propósito. Tentamos rastreá-la, sem sucesso. Não conseguimos encontrá-la. Aindanão a vimos.Ninguém viu.Mas está lá fora; e está nos caçando.—Ele fez uma pausa.—Ela foienviada,Allanon,comopropósitodedestruirosEscolhidos.Efezisso;àexceçãodeum.Podeserqueaenviemdenovo.

Amberleempalideceu.Allanonesfregouoqueixo,pensativamente.— Sim, existia um demônio assim nos tempos antigos— ponderou ele.— Um demônio que

matavaporumanecessidadeinstintiva.ElesochamavamdeCeifador.—Nãomeimportocomomodocomoochamavam—falouWilderepente.—Oqueeuquero

saberécomoevitá-lo.— Discrição — respondeu o Druida. — Apesar de cruel e astucioso, esse demônio não terá

motivos, assim como os companheiros dele, para suspeitar que vocês saíram de Arborlon. Seacreditarquevocês ainda estão aqui, se todos elespensarem isso,nãovãoprocurarporvocês emoutro lugar.Talveznóspossamos lhesdaressa impressão.—Virou-separaEventine.—Chegaráahora,muitoembreve,emqueaEllcrysnãoserámaiscapazdemanteramuralhadaProibiçãocomforça o bastante para conter o restante dos demônios ainda aprisionados lá dentro.Quando estahorachegar,osdemôniosconcentrarãosuasforçasnopontomaisfracodamuralhaeselibertarão.Nãopodemosesperarqueissoaconteça.Precisamosencontrarolugarondeelestentarãoatravessarefazeroquepudermosparaimpedir.Mesmosefalharmos,podemosmanterumalutaqueatrasarásuamarcha rumoaArborlon.Tentarãomarcharaté aqui,pois irãoquererdestruir aEllcrys.Elesprecisam.Não podem tolerar a existência dela. Lembre-se de que, quando estava forte, ela era o

anátema deles. Porém, conforme ela enfraquece, deixa de ser. Assim que tiverem atravessado amuralha, eles virão rapidamente para destruí-la. Precisamos fazer o possível para impedir isso.Precisamos dar tempo a Amberle para alcançar o Fogossangue e voltar. Precisamos manter osdemônioslongedeArborlonatéentão.Daí...—Eledeixouapalavrasuspensaporummomentonosilênciodopequenocômodo.—Devemosenganarosdemôniosque jáultrapassaramaProibição,agindo como se as preparações para encontrar o Fogossangue ainda estivessem sendo realizadas.Deveremosfazerparecerquevocêsaindanãopartiram.OsdemôniossabemquefuieuquemtrouxeAmberleatéaqui;esperarãoqueeuestejacomelaquandopartir.Podemosusarisso.Podemosfocaraatençãodelesemmim.Quandoperceberemque foramenganados,vocêsdoisestarãobemlongedoalcancedeles.

Anãoserqueoespiãodelessejamaishabilidosodoquevocêpensa,Allanon—Wilquisdizer,masachoumelhornão.Emvezdisso,declarou:

— Isso tudo parece muito promissor. Parece solucionar tudo, menos a questão de quandodevemospartir.

ODruidarecostou-sedenovonacadeira.—Vocêspartirãoaoamanhecer.Wiloencarou,incrédulo.—Aoamanhecer?Deamanhã?Amberleficoudepénumsalto.— Isso é impossível, Druida! Estamos exaustos! Não dormimos nada nos últimos dois dias;

precisamosdemaisdoqueumaspoucashorasdedescansoantesdecomeçardenovo!Allanonergueuasmãos.—Calma,jovemelfa.Entendoissotãobemquantovocê.Masconsiderequeosdemôniossabem

quevocêveioatéaquicomopropósitodelevarasementedaEllcrysatéoFogossangue.Sabemquevocêtentarádeixaracidade,eestarãovigiandodeperto.Masnãovãoestarolhandotãodepertoagora como em um ou dois dias. Você sabe por quê? Porque esperam que vocês descansemprimeiro.Éexatamenteporissoquevocêsprecisampartirimediatamente.Fatorsurpresaéanossamelhorchancedepassarporeles.

AcompreensãobrilhounosolhosdeWil.AquelaeraavantagemqueoDruidaesperavaganharcomamentiraditanoAltoConselho.

—Vocêsdescansarãoobastantedepoisquesaíremdacidade—prometeuAllanon.—Doisdiasde viagem serão o suficiente para vocês alcançarem o entreposto élfico nas florestas de Drey;podem recuperar o sono perdido lá.Mas demorar emArborlon é perigoso.Quantomais rápidovocêssaíremdaqui,melhoresassuaschances.

Wil odiava admitir, mas havia lógica nos argumentos do Druida. Lançou um olhar breve aAmberle. Ela o encarou em silêncio por um momento, frustrada e zangada, e voltou-se paraAllanon.

—Queroverminhamãeantesdepartir.ODruidabalançouacabeça.—Nãoéumaboaideia,Amberle.Elacerrouamandíbula.—Vocêpareceacharquetemapalavra finalsobrequalquercoisaqueeuqueria fazer,Druida.

Masnãotem.Queroveraminhamãe.—Os demônios sabem quem você é. Se também sabem sobre suamãe, estarão esperando que

vocêváatéela.Estarãoesperandoporisso.Éperigoso.

—Estar aqui já éperigoso.Certamentevocêpodeencontrarum jeitoparaqueeupasse cincominutoscomminhamãe.—Elabaixouosolhos.—Nãosejatoloapontodesugerirqueeuavejaquandovoltar.

Houveummomentodesagradáveldesilêncio.OrostosombriodeAllanonficousemexpressãonenhuma de repente, como se ele temesse revelar algo que gostaria de manter escondido. Wilpercebeuamudançaeficouintrigado.

— Como quiser — concordou o Druida. Ele se levantou. — Agora vocês precisam dormirenquantopodem.Temosqueir.

Eventinetambémselevantou,virando-separaencararsuaneta.—SintomuitoporAriontersidotãoduronoConselho—desculpou-se,parecendotermaisa

dizer,masincapazdefazê-lo.Sacudiuacabeça.—Achoquecomotempoeleentenderá,comoeuentendi...

Interrompeu-se,constrangido,eabraçouAmberle,dando-lheumbeijonasbochechas.—Seeunãofossetãovelho...—começouafalar,emocionado,masajovemcolocouosdedosna

bocadeleparaimpedi-lo.Elasacudiuacabeça.—Vocênãoé tãovelhoapontodenãoverqueémaisnecessárioaquidoquecomigo.—Ela

sorriu,ehavialágrimasemseusolhosquandoelaretribuiuobeijo.Sentindo-seumpoucosemgraça,Wilafastou-sedamesaefoiemsilêncioatéondeManxestava

adormecido. O velho cão ouviu sua aproximação. Abriu um olho, curioso. Por impulso, Wilestendeuamãoparaacarinharocachorro,masManxdeuumrosnadobaixodealerta.Wilafastou-se.

Animalantipático,pensouojovemconsigo.Elevoltouparaosoutros.Eventineapertousuamãoedesejou-lhesorte.Então,comAmberlea

seulado,WilseguiuAllanonpelasportasdevidrodevoltaparaanoite.

CapítuloXXI

ODruidaos levouparaumpequenochaléaninhadonumaencostaarborizadanapartenortedacidade, no meio de um grupo de casas com a estrutura bem parecida. Não havia nada que adistinguissedasdemaise,paraWil,estadeveriaseraprincipalrazãoparatersidoescolhida.Apesardeestardesocupadaquandoentraram,encontrava-setotalmentemobiliadaeapresentavasinaisdetersidohabitadarecentemente.Allanonnãodeunenhumaexplicaçãoacercadosdonos.Adentrouacasacomosefossesua,circulandonaescuridãodasaladeestarparaacenderváriaslamparinasecuidadosamente fechar as cortinasquedecoravamas janelas.Allanonverificou todosos cômodosenquantoWil e Amberle ficaram esperando sentados a umamesa pequena, decorada com floresfrescas e uma toalha bordada, até oDruida retornar compão, queijo, frutas e um jarro de água.Comeramemsilêncio.Wilfezumarefeiçãocompleta,apesardahoratardia,enquantoAmberlemaltocou na comida. Quando terminaram de jantar, Allanon levou a jovem até um quartinho nosfundos da casa. Havia uma janela solitária, trancada e bloqueada por trás de cortinas pesadas.Allanonverificoutodasasdobradiçascomcuidado,emseguidaassentiu.Muda,Amberlefoiatéocolchãodepenas.Estavatãocansadaquemalsepreocupouemsedespir,apenaschutandoasbotaspara longe e caindo pesadamente sobre as cobertas. Adormeceu quase imediatamente. Allanonparouportemposuficienteparacolocarumcobertorlevesobreagarotaexausta,esaiudoquarto,fechandosilenciosamenteaportaatrásdesi.

Sozinhonasaladeestar,WilOhmsfordolhavapelajanelaparaaescuridãodooutrolado,ondeas luzes da cidade piscavam para ele como vaga-lumes nas sombras da floresta. Desviou o olhar,inquieto,quandooDruidareapareceu.

—Precisamosconversar,Allanon.Ohomemaltonãopareceusurpreso.—Maisperguntas,WilOhmsford?—Nãoexatamente.—Ojovempareciadesconfortável.—Entendo.Entãoporquenãonossentamos?Wilaquiesceueelesocuparamcadeirasopostasnapequenamesaemquehaviamjantado.Assim

que se acomodaram, o jovem pareceu incerto sobre como prosseguir. Allanon o observava,impassível,aguardando.

—AlgumacoisaaconteceucomigoquandotenteiusarasPedrasÉlficascontraaqueledemônioemTirfing—começouWilporfim,evitandoosolhosescurosdooutrohomem.—Algoquenãoentendo. Estava quase decidindo não falar nada com você sobre isso porque não queria quepensassemqueeuestavaprocurandoumpretextoparanãoiratéoVastoErmo.

—Issoteriasidoumatolice—falouAllanon,calmamente.—Conte-meoqueaconteceu.Ojovemnãopareceutê-loouvido.— O único motivo pelo qual decidi contar é que fiquei preocupado com a segurança de

Amberle, caso eu ficasse quieto. Se vou ser protetor dela, não posso ficar brincando com meuorgulho.

—Conte-meoqueaconteceu—repetiuoDruida.

Wilergueuosolhos,desconfortável.—Vouexplicardamelhorformapossível.Comoeudisse,quandoodemônioveioparacimade

mimetenteiusarasPedrasÉlficas,algumacoisadentrodemimresistiu.Eraumtipodebloqueio,comoumaparedecriadaentremimeasPedrasÉlficasparaqueeunãopudessepediraajudadelas.Eu as estendi diante de mim e tentei alcançar o fundo delas, invocar seu poder, mas nadaaconteceu.Naqueleinstante,tivecertezadequevocêestavaerradoaoacreditarqueeupoderiausaras Pedras como meu avô fez. Mas então, quando o demônio estava me alcançando, a muralhadentrodemimpareceudesmoronareopoderdasPedrasfoilibertadoedestruiuacriatura.—Elefez uma pausa.—Desde então, pensei com cuidado no que aconteceu. Primeiro, concluí que eusimplesmentenão entendia comousar asPedrasÉlficas, que a resistência tinha sido causadapelaminhainexperiênciaouconfusão.Masnãoacreditomaisnisso.Foialgodiferente.Foialgoemmim.

ODruidaoobservousemdizernadaporváriosminutos.Umadasmãosbrincava,distraída,comabarbanegra,puxando-aetorcendo-a.Porfim,afastouamão.

—Vocêdeveselembrardoqueeudisse:asPedrasÉlficassãoumamagiaantiga,magiadosdiasanteriores aoHomem, que pertence a uma era em que os povos feéricos governavam a terra e amagiaeraalgocomum.ExistiammuitasPedrasÉlficasdiferentesnaépoca,commuitospropósitosdiferentes. Suas cores identificavam seus usos.As Pedras Élficas azuis, assim como estas que vocêtem,sãoasPedrasdebusca.ApossedasPedrasÉlficasazuistornaoportadorcapazdeencontraroque foi escondido dele simplesmente ao desejar que seja assim; por exemplo, o Fogossangue quevocê irá procurar. Outras Pedras Élficas carregavam outras características. Todas tinham acaracterística comumde fornecer ao seuportadorproteção contraoutrasmagias e coisas criadaspormagiae feitiçaria.Masa extensãodessaproteção,oumesmoaextensãodopoderdasPedras,dependiam inteiramente da força do caráter do portador. As Pedras ficavam agrupadas emconjuntosdetrês;haviaumarazãoparaisso.CadaPedrarepresentavaumapartedoportador:umaPedra para o coração, uma para o corpo e uma para amente. Para amagia ganhar vida, as trêsteriamdeagiremconjunto;trêsforçasindividuaisagindocomouma.OsucessoemusarasPedrasÉlficaseraamedidadesuahabilidadeemjuntartaisforças.

Eleapoiouasmãosnamesa.—AsPedrasÉlficastêmoutracaracterística,Wil;umabásicaparaseuuso.AsPedrasÉlficassão

magiados elfos; foramcriadaspormagos élficos apenasparaos elfos.Forampassadasdegeraçãoemgeração,defamíliaparafamília,demãoemmão;massempredeelfosparaelfos,poisninguémmaispoderiautilizá-las.

Umlampejodeincredulidadeperpassouorostodojovem.—VocêestátentandodizerquenãoconsigousarasPedrasÉlficasporquenãosouumelfo?—

berrou.Allanonsacudiuacabeça.—Nãoétãosimplesassim.—Eleinclinou-separafrente,escolhendoaspalavrascomcuidado.

—Vocêéparteelfo,Wil.Assimcomoseuavôtambém.Maseleémeio-elfo,tendonascidofilhodeum elfo e de um humano.Você é algo diferente.Nem suamãe nem sua avó foram elfas; as duaseramhumanas.Tudooqueéelfoemvocêéaparteherdadadeseupai,eporsuavezdeseuavô.

—Não vejo que diferença isso faz— insistiuWil.—Por que eu teria dificuldades emusar asPedrasquandomeuavônãoteve?Eutenhopelomenosumpoucodesangueélfico.

—Nãoéoseusangueélficoquelhecausariaproblemas—respondeuoDruidarapidamente.—É seu sangue humano.Você tem as características físicas de seu avô; e essa parte transparece suaherança élfica, sem dúvidas.Mas é apenas uma pequena parte do todo; a maior parte de você é

humana.Muitodoqueeraélficoneleacabounãoindoparavocê.—Elefezumapausa.—Entenda,quandovocêtentausarasPedrasÉlficas,apenasapequenapartedevocêqueéélficapodeseligaraopoderdelas.Oequilíbriodeseucoraçãocomsuamenteeseucorporesisteàinvasãodamagia.Forma um bloqueio contra isso. As três forças ficam enfraquecidas, pois a força de cada uma élimitada à sua parcela de sangue élfico. Pode ser isso o que você experimentou quando usou asPedras;umarejeiçãodamagiaélficapelasuaconsiderávelpartehumana.

Wilsacudiuacabeça,confuso.—Masemeuavô?Elenãopassouporessarejeição.— Não, não passou — concordou Allanon. — Mas seu avô era meio-elfo. A metade élfica

dominava e lhe dava controle sobre o poder das Pedras Élficas. A resistência que ele sentiu foimínima.Paravocê,écompletamentediferente.SeuelocomopoderdasPedrasémaistênue.

Wiloencarou.—Allanon,vocêsabiadissoquandomeencontrouemStorlock.Vocêtinhaquesaber.Masnão

medissenadamesmoassim.Nemumapalavra.Nenhuma.AexpressãodoDruidanãosealterou.—Oqueeupoderiadizer,meujovem?Eunãotinhacomodeterminarotamanhodadificuldade

quevocêpoderiaencontraraousarasPedrasÉlficas.QualquerutilizaçãodasPedrasdependeemgrandepartedocaráterdoportador.Euacreditavaquevocêseriaforteobastanteparaultrapassarqualquer resistência dentro de si. Ainda acredito. Contar para você sobre o problema apenascausariadúvidas.DúvidasquepoderiamresultaremsuamortenoTirfing.

O jovem se ergueu sem falar nada, comuma expressão atordoada.Afastou-se vários passos damesaedepoissevirou.

—Issopodeacontecerdenovo,nãoé?—perguntouele,baixinho.—TodasasvezesqueeuusarasPedrasÉlficas.

Allanon aquiesceu. Wil contemplou o rosto sombrio em silêncio por um momento. Asimplicaçõesdaqueladeclaraçãorodopiaramemsuamentecomofolhasaovento.

—Todasasvezes—repetiuele.Asfolhascongelarambruscamente.—Entãopodechegarumahora em que a resistência dentro demim será grande demais. Pode chegar uma hora em que euinvocareiopoderdasPedrasÉlficaseelasnãoatenderão.

Allanondemorouaresponder.—Sim,épossível.Wilsentou-sedenovo.Aincredulidadeemseurostotransformou-seemhorror.—ComovocêpodeconfiaraproteçãodeAmberleamim,sabendodisso?AmãodoDruidabateunamesacomoummartelo.—Porque não existemais ninguém!— Seu rosto enrubesceu de raiva,mas a voz permaneceu

calma.—Jálhesugeriantesquecomeceaacreditaremsi.Vousugerirmaisumavez.Nemsempreestamos equipados adequadamente para encarar as dificuldades que a vida coloca em nossocaminho.Éassimagora.Gostariade terpoderobastanteparaquesuaajudanão fossenecessária;gostariadepoderlhedarmaisparaprotegeraelfaevocê.Queriamuitascoisasquenãoposso.Euotrouxe paraArborlon porque sabia que sozinho não conseguiria salvar os elfos do perigo que osameaça.Nósdoissomosinadequadosparaisso,WilOhmsford.Masprecisamosfazernossomelhorcomoquesomos.OsDruidasseforam;amagiaélficadovelhomundoseperdeu.Sórestamvocêeeu.SótemosasPedrasÉlficasquevocêcarregaeamagiaqueeucontrolo.Ésóisso,masvaiterdeservir.

Wilsustentouoolhardooutrocomfirmeza.

—Nãotemopormim,temoporAmberle.Seeufalharcomela...—Vocênãopodefalharcomela.—AvozdoDruidafoiduraeperseverante.—Vocênãopode!

Vocêétudoqueelatem.Wilendireitou-se.—Possonãoserosuficiente.—Nãoserosuficiente?—Aspalavrasvieramcheiasdesarcasmo.Allanonsacudiuacabeça.—

Umdiaseuavôtambémpensouassim,nãomuitosanosatrás.ElenãoconseguiaentendercomoeuachavapossívelqueeletivesseosmeiosparadestruirumsertãopoderosocomoLordeFeiticeiro.Afinal,eleeraapenasuminsignificantehabitantedoValeSombrio.

Houve um longo silêncio. O jovem e o Druida encararam-se sem palavras na quietude; otremeluzir da chama da lamparina dançava em seus rostos. Allanon ergueu-se, lenta edeliberadamente.

—Acredite em simesmo.Você já usou asPedrasÉlficas; experimentou e venceu a resistênciadentrodesieinvocouamagia.Vocêpodefazerissodenovo.Vocêfará.VocêéumfilhodaCasadeShannara;seulegadoédeforçaecoragem,maisfortedoqueadúvidaedoqueomedoqueofazemquestionarseusangueélfico.

Eleinclinou-se.—Dê-mesuamão.Ojovemobedeceu.Allanonapertou-acomforça.—Eisminhamãoeeismeuelo.Eisminha juraavocê.Vocêserábem-sucedidonessa jornada,

Wil Ohmsford. Você encontrará o Fogossangue e trará a salvo de volta para casa a última dosEscolhidos,elaqueirárestauraraEllcrys.—Avozdeleerabaixaeimperativa.—Euacreditonisso,evocêtambémdeveacreditar.

Os duros olhos negros penetraram fundo nos do jovem, e Wil sentiu-se nu. Porém, nãoconseguiadesviaroolhar.Quandofalou,suaspalavraseramquaseumsussurro:

—Voutentar.ODruidaassentiu.Erasábioobastanteparadeixarporissomesmo.

EventineElessedil permaneceunopequeno escritório por um longo tempodepois que os outrostrês saíram. Sentou-se em silêncio no limite do círculo de luz projetado pela chama solitária dalamparina,uma figuraamarrotada formadade sombrase roupas.Caídonoabraço familiarde suacadeira favorita, ummóvel forrado de couro gasto pela idade emoldado pelo uso, o Rei Élficoolhavasemverasestantes,pinturasetapeçariasquecobriamaparedediantedesi,pensandonoquehaviaacontecidoenoqueaindairiaacontecer.

Ameia-noiteveioepassou.FinalmenteoReiselevantou.Reunindoseuspensamentosespalhadoseplanosconcebidospela

metade,apagoualamparinaeseguiu,exausto,pelaportadoescritórioparaocorredor.Nãohaviamaisnadaaserfeitonaquelanoite,nãopodiaesperarcumprirmaisnada.Aoamanhecer,Amberleestaria a caminhodoVastoErmo. Suapreocupaçãonãodeveria sermais comela, e sim com seupovo.

OvelhoRei atravessou todaa extensãodocorredorescuro, ansiosopelodescansoqueo sonotraria.

DurantetodoessetempoosolhosdoMetamorfooacompanharam.

Naescuridãoprofundada floresta ao sulda cidadeArborlon,DagdaMorergueu-sedapedraemqueestiverasentado.Olhosvermelhosecruéisrefletiamasensaçãodeeuforiadodemônio.Daquelaveznãohaveriaerros,pensou.Daquelaveziriasecertificardequetodosfossemdestruídos.

Suafiguracorcundaavançoulentamente.Primeiro,tomariacontadaelfa.Umapataemgarragesticulou,edassombrassurgiuoCeifador.

CapítuloXXII

AalvoradachegouenevoadaecinzentaemArborlon,eocéuestavacobertodenuvensnegraseagitadas. Quando Wil e Amberle terminaram de se arrumar e de comer, gotas esparsas haviamvirado uma chuva torrencial,martelando no telhado e nas janelas do chalé. Trovões ressoavam àdistância,estrondoslongoseribombantesquesacudiamafloresta.

—Não será fácil encontrar vocês nesse clima—observouAllanon com satisfação, levando-osparafora,paraatempestade.

Envolvidoemlongosmantosdeviagemcomcapuzesquecobriamtúnicasecalçasdelãebotasdecourodecanoalto,osdoisseguiramoDruida,queosguiavaatravésdas lâminasdechuvaporcaminhos arborizados que contornavam o limite oeste da cidade, na ampla elevação de Carolan.Quasesemconseguirvisualizarocaminhonapenumbradoamanhecer,ojovemeaelfaoseguiamde perto. Imagens fragmentadas de casas e cercas surgiam em seu campo de visão e saíam dele,parecendo miragens através da neblina da tempestade, para depois sumirem mais uma vez. Umvento frio e cortante soprava a chuva no rosto deles por baixo das fendas dos capuzes, e elesinclinavam a cabeça devido à força dos golpes. As botas esguichavam água em poças e valas,enquantopassavampelatrilhaesburacadadafloresta.

Naextremidadedacidade,Allanonsaiubruscamentedocaminhoeos levounadireçãodeumestábulo solitário, situado numa colina à esquerda. Portas duplas de madeira encontravam-seentreabertas,eelesentraramrapidamenteparasairdachuva.Rachadurasnasjanelasfechadasenasparedes arruinadas davam espaço para a entrada de uma luz cinzenta e nebulosa. Fileiras deestábulos e umpalheiro alto estavamvazios, cobertos de sombras e poeira.O ar tinhaum cheiroúmido e pungente. Pararam por um momento para sacudir a água de seus mantos e depoisseguiram para uma porta solitária nos fundos do estábulo.Quase imediatamente foram cercadospor dois caçadores elfos pesadamente armados, que apareceram silenciosamente da escuridão.Allanonnãolhesdeuatenção.Andoudiretamenteparaaportasemsevirar.Batendosuavemente,colocouamãonamaçanetadeferroenferrujadaeolhouparaAmberle.

—Cincominutos.Étodootempoquetemos.Eleabriuaporta.WileAmberleespiaramládentro.Haviaumcômodopequenodooutrolado.

Crispin esperava ali e, comele, umamulher elfa, encapuzada e envoltanummanto.Ela baixouocapuzatéosombroseWilficousurpresoaoverqueseurosto;apesardemaisvelho,eraumreflexodo de Amberle. Allanon mantivera a promessa: era a mãe da jovem elfa. Amberle foi até elaimediatamente,abraçando-aebeijando-a.Crispinsaiudasalaefechouaportacomgentileza.

—Vocêsnãoforamseguidos—falouoDruidacomoumaafirmação.OCapitãodaGuardasacudiuacabeça.Estavavestidoigualaosoutroscaçadoresélficos,usando

roupas de um tom cinza e marrom, frouxas e confortáveis, que se confundiam com as cores dafloresta. Por baixo domanto preso nos ombros usava um cinto que trazia um conjunto de facaslongas.Nascostas,levavaumarcocurtoeumaespada.Achuvamolharaseucabelocastanho-claro,dando-lheumaaparênciademenino,eapenasosolhoscastanhossugeriam,comsuadureza,queomeninoqueeleforasumirafaziamuitotempo.ElemeneouacabeçaparacumprimentarWil,eos

deixouparafalarcomoselfos.Umdelesseguiuparaachuva,ooutro,paraopalheiro.Moviam-secomogatos,silenciososeágeis.

Osminutossepassavam.WilficouemsilêncioaoladodeAllanon,ouvindoomartelardachuvanotetodoestábulo,sentindoosefeitosdaumidadedoar.Porfim,oDruidavoltouparaaportadopequenocômodoebateudelevemaisumavez.Logodepois,aportaseabriueAmberlereapareceujuntoàmãe.Asduashaviamchorado.Allanonpegouamãodajovemelfaesegurou-a.

—É hora de irmos. Crispin vai tirá-la deArborlon em segurança. Suamãe ficará comigo atévocêpartir.Mantenhaaféemsi,Amberle.Sejacorajosa.

Amberle assentiu emsilêncio,depois seviroudevoltaparaamãee a abraçou.Enquanto isso,AllanonpuxouWilparaolado.

— Desejo-lhe boa sorte, Wil Ohmsford. — Sua voz mal se ouvia. — Lembre-se de que eudependoprincipalmentedevocê.

ApertouamãodeWileafastou-se.Wiloencarouporummomentoevirou-sequandosentiuamãodeCrispinemseuombro.

—Fiqueporperto—avisouoelfo,efoinadireçãodaportadupla.O jovemdo vale e a elfa foram atrás dele, semdizer nada. Ele os parou quando alcançaram a

porta, dandoum assobio agudo como sinal para os outros caçadores elfos. Foi respondido quaseimediatamente. Crispin deslizou pela porta, saindo para a chuva.Apertando-semais nosmantos,WileAmberleoseguiram.

Desceramacolinaapressadamenteatéocaminho,retornandopeladireçãoporcercadequinzemetrosdaqualtinhamvindo,eentãoseviramemumanovatrilhaquecorriaparalestenadireçãodoCarolan.Emsegundos,trêscaçadoreselfossurgiramatrásdeles,comosefossemsombrassaídasdafloresta.Wilolhouumavezparaoceleirosolitárioqueficaraparatrás,maselejáhaviasumidonaneblinaenachuva.

A trilha se estreitouabruptamenteea floresta se fechouao redordeles.Passandopor troncosescuros que brilhavam de umidade e arbustos pesados com a água da chuva, as seis figurasencapuzadas seguiram o caminho acidentado conforme este começava a declinar. A trilhaterminavaemumlongolancedeescadademadeira,quedesciasinuosamentedoCarolanatravésdamassada floresta.Maisabaixo,quase invisívelatravésdasnuvensdeneblina,encontrava-sea faixaacinzentada do Riacho da Canção. Para o leste, campinas e floresta se misturavam em retalhosespalhadospelaterra.

Crispingesticulouparaque avançassem.Eraumadescida longa e árdua,poisosdegraus eramestreitos e estavam molhados com a chuva, dando pouco apoio. Uma corda guia, esfarrapada erústica, pendia frouxamente de estacas presas à escada, eWil e Amberle seguravam-se nela comcuidado conforme prosseguiam. Centenas de degraus depois, a escada terminou, e iniciaram umnovocaminhoquedesparecianumpequenotrechodepinheiros.Emalgumpontoàfrente,podiamouvirocorrerpesadodorio,cheioelentodevidoàschuvas,comseurugidomisturando-seaouivoaltodoventoquevinhadasalturas.

Quando a floresta surgiu adiante, várias centenas demetros depois, viram-se emuma enseadapesadamentecobertadeárvoresqueseabriaatravésdeumamuralhadegrandessalgueirosecedrosprostradosparaobraçoprincipaldoRiachodaCanção.Noabrigodaenseada,ancoradaaoladodeumcaisbastanteapodrecido,haviaumabarcaçasolitáriacomoconvéslotadodecaixotesecaixascobertosdelona.

Crispinfezsinalparaqueparassem.Oscaçadoreselfosatrásdelesumiramentreasárvoresfeitofantasmas.Crispinolhouaoredoreassobioualto.Arespostaveioquaseimediatamentedecimada

barcaça,eoutradaentradadaenseada.AssentindoparaqueWileAmberleoseguissem,ocapitãodeixouo esconderijoda floresta.Curvados contra a forçado vento, os três correrampara o cais,com as botas ecoando ocas, e subiram a bordo da embarcação à espera.Um caçador apareceu derepente saindo de debaixo da lona, da qual puxou umpedaço para revelar uma entrada entre oscaixotes. Crispin indicou que os jovens deveriam entrar. Assim o fizeram, e a lona baixousilenciosamenteatrásdeles.

Lá dentro estava protegido e seco. A escuridão os confundiu no começo, e ficaram ali,inseguros,sentindoobalançardobarcodebaixodesi.Umafaixafinadeluzpassavaporondealonacaía no chão do convés, e lentamente seus olhos se adaptaram.Descobriram que um espaço foraaberto para criar uma pequena cabine no meio dos caixotes. Havia alimentos e cobertoresempilhados de formaorganizadana parede oposta alémde armas arrumadas cuidadosamente emestojos de courosnum canto.Tiraramosmantos e os estenderam, colocando-os para secar pertodositensarmazenados,daísentaram-separaesperar.

Momentosdepois,sentiramabarcaçaselibertardovelhocaisecomeçarasemovimentarcomacorrente.AviagematéoVastoErmocomeçara.

Passaram aquele dia e o seguinte escondidosna pequena cabine, proibidos porCrispinde sequeraparecerem no convés. A chuva continuava a cair em uma garoa ininterrupta, e a terra e o céupermaneciamcinzentosesombreados.Espiadasocasionaispelaspontasdalonamostravamaregiãopela qual viajavam, umamistura de florestas e colinas namaior parte do tempo, embora, emumponto da viagem, tivesse surgido uma série de penhascos altos e desfiladeiros acinzentadoscercandooRiachodaCançãoporváriashoras,enquantocontinuavamlentamenteocaminhoparaosul.Edurantetodootempo,névoaechuvacobriamtudocomumaluzfracatremeluzente,dandoa impressão de um sonho recordado vagamente. O rio, cheio com a chuva, coberto de galhos edestroços,balançavaesacudiaabarcaça.

Dormir era impossível. Descansavam o quanto podiam, sonecas rápidas que os deixavamdesorientados quando acordavam, ainda cansados. Músculos e juntas doíam, rígidos, e omovimentoconstantedobarcotiravaqualquerapetitepossível.

Otempopareciasearrastareternamente.Elesopassavamapenasumcomooutro,excetopelaspoucas ocasiões em que Crispin ou um dos outros caçadores élficos apareciam, saindo do mautempo.Quandoos elfosdormiamou comiam, eles sópodiam supor,poispareciaquepassavamamaiorpartedotemponavegandopelorioemantendoaguardadeseuspassageiros.Haviasemprepelomenosumelfodeguardadiretamentenafrentedaentradadapequenacabine.Depoisdeumtempo,passaramasaberosnomesdeles;dealguns,descobriramdurantebrevesentradasdealgumguardanacabine,deoutros,apartirdeconversasdoladodefora.Unspoucosjáeramconhecidosde rosto, comoDilph,opequeno elfomoreno comolhos simpáticos e apertodemãode ferro, eKatsin,ocaçadoraltoemagroquequasenuncafalava.Kian,Rin,CormacePedcontinuaramsendopoucomaisdoquevozes,emboraWileAmberlereconhecessemosxingamentosirritadosdeKianeos assobios alegres de Ped.ViammaisCrispin do que qualquer umdos outros, pois o capitão osvisitava regularmenteparaperguntar seprecisavamdealgo epara informá-los sobreoprogresso.Masnuncaficavamaisdoquealgunsminutos,sempresedesculpandoeducadaporémfirmemente,pararetornaraosseuselfossubordinados.

No final, foram as conversas entres eles que tornaram o confinamento, a solidão e o medosuportáveis. Wil achava que tinham começado a conversar por necessidade, com cuidado,

envergonhados,poisaindaestavammuitoincertosemrelaçãoumaooutro.OjovemnuncasouberamuitobemqualmotivotinhafeitoaelfadescartaraconchaemqueserecolheraporboapartedaviagemdesdeoRefúgioFirme,mas a atitudedelapassaraporuma transformação surpreendente.Antes,elarelutavaemdiscutirqualquercoisacomWil.Agora,pareciaansiosaparaconversarcomele,desenterrandocommuitasperguntasashistóriasde seusprimeirosanosnoValeSombrio,osanosemqueseuspaisestavamvivosedepois,operíodoemqueelemoraracomseuavôeFlick.Amoça queria saber da vida entre osArmazenadores e o trabalho queWil faria quando deixasse aaldeiadelesnovamenteevoltasseparaasTerrasdoSulcomoumCurandeiro.Ointeressedelaeragenuínoepersuasivo,etranspareciacertacarência.Masnãofalaramsódele.Tambémconversarama respeito dela, sobre sua infância comoneta doRei Élfico, sobre crescer sendo a única filha doherdeiromortodeEventine.AmberlecontouaWilsobreomododevidadoselfos,dafortecrençaemdar algode si, algode suavida emretribuiçãoà terraqueos sustentava e abrigava.Trocaramideias sobre como as raças poderiam atendermelhor às necessidades da terra e umas das outras.Ambosargumentaramcomgentileza,persuasivamente,procurandoporcompreensão,compaixãoeamor, e conforme faziam isso, foram descobrindo, com alguma surpresa, que suas crenças erammuitoparecidas,quecompartilhavamdosmesmosvalores.

Cuidadosamente, a passos cautelosos, iam se conectando. Evitavam deliberadamente falarqualquer coisa a respeitoda jornadapara aqual foramenviados,doperigoqueameaçavaopovoélfico,edaprópriaresponsabilidadeemcolocarumfimnaqueleperigo,ousobreaárvoreantigaemisteriosaquechamavamdeEllcrys.Teriamtempoparaaquilodepois,aquelesmomentos tinhamque ser melhor aproveitados. Foi um acordo ao qual chegaram sem palavras, por simplescompreensãomútua. Falariam abertamente sobre o passado e o futuro; não diriam nada sobre opresente.

Aquelasconversaseramreconfortantes.Láfora,achuvacaíaincessantemente,aneblinacinzadatempestadecobriaa terra,eoRiachodaCançãorugiaemdescontentamentoemseurumoparaosul.Fechadosnoabrigoescuro,cercadospeloventoepelaágua,semsononemapetite,poderiamfacilmente ceder à apreensão e à dúvida. Mas as conversas lhes confortavam, nascidas desentimentos compartilhados, de companheirismo e do entendimento. Davam-lhes segurança napresençaumdooutro,emudecendopelomenosemparteasensaçãodequeomundodelesestavamorrendo, e com essa passagem, a vida delesmudaria para sempre.Davam-lhes esperança.Oquequerqueacontecessecomelesnosdiasqueviriam,encarariamjuntos.Nãoseriamobrigadosaficarsozinhos.

Em algum momento daquelas horas chuvosas cinzentas, algo estranho aconteceu com WilOhmsford. Pela primeira vez desde a noite em Storlock, quando concordara em viajar para asTerras do Oeste com Allanon, flagrou-se profunda e irresistivelmente preocupado com o queaconteceriaaAmberleElessedil.

EraofinaldatardedosegundodiadeviagemquandochegaramàflorestadeDrey.Achuvapesadadiminuíra para uma garoa lenta, e o ar esfriara de repente com a aproximação da noite. Ocrepúsculo cinza envolvia a floresta. Do oeste, um novo grupo de nuvens negras ameaçadorascomeçavaavirnadireçãodeles.

AflorestadeDreyeraumamatadensaquecobriaumasériedecolinasbaixas,quecorriaparaoleste a partir da margem esquerda do Riacho da Canção até uma fileira de penhascos altos eescarpados. Olmos, carvalhos negros e nogueiras de cascas grossas agigantavam-se sobre um

emaranhado sufocadode arbustos emadeiramorta, deixando a floresta comum cheiro podre.Adezmetrosdamargemdorio,nãohavianadaalémdaescuridão,profundaeimpenetrável.Achuvaquecaíanasárvorescomumtamborilarconstanteeraoúnicosomaquebrarosilêncio.

Os caçadores élficos guiaram a barcaça até uma baía rasa, onde um local para atracagem sedestacavadamargem.Ondasquebravamemsuasestacaselavavamseupisodemadeira.Namargem,bem no limite da floresta, havia uma cabana vazia e desgastada. Sua única porta e suas janelasencontravam-se fechadas e bloqueadas. Encostando a barcaça nas estacas, os elfos amarraram ascordasedesceram.

Crispin tirouWil e Amberle da cabine, tendo o cuidado de avisá-los paramanter os capuzeslevantados.Espreguiçando-seagradecidos,os jovensuniram-seaelenadoca.ORiachodaCançãorespingavanogrupo,queseapressouparapisaremterra.

Dilph foi até a cabana, abriuaporta, analisou-aporummomentoe recuou.Sacudiua cabeçaparaCrispin.Ocapitãofranziuatestaeolhouaoredor,nadefensiva.

—Háalgoerrado?—perguntouWil.Crispindesviouoolhar.— Só estou sendo precavido. O posto principal é quase um quilômetro mais para dentro,

construídonasárvoresdotopodeumaelevação,parapermitirquesevejaaregiãoaoredor.Acheiqueoscaçadoresqueservemlánosveriamchegando,mastalvezomautempotenhaimpedido.

—Equantoaestacabana?—quissaberojovem.—Éumdosmuitospostosdevigiaqueopostoprincipalmantém.Geralmentetemalguémem

serviço.—Ele deu de ombros.—Como tempo tão ruim assim, porém, o comandante do postopodeterconvocadotodasassentinelassolitáriasdevolta.Elenãofoiavisadodequeviríamosenãotinhamotivoparaestarnosesperando.

Lançouumolhardevoltaparaafloresta.—Dê-melicençaporummomento,porfavor.Sinalizouparaqueosoutroselfosseunissemaele,etodosjuntaram-serapidamente.Suasvozes

soarambaixasefurtivas.Amberleaproximou-sedeWil.—Vocêacreditounele?—sussurrouela.—Nãotenhocerteza.—Eutenho.Achoqueháalgoerrado.Elenãorespondeu.Aconversajáestavaterminando.Katsinvoltouparaadocaeficoupertoda

barcaça atracada. Cormac e Ped haviam assumido posições nos limites da floresta. Crispin falavacomDilph,eWilaproximou-separaouviroqueestavasendodito.

—LeveRineKianepatrulhematéoposto.—OCapitãoolhousobreoombro,nadireçãodojovemdoValeSombrio.—Setudoestiverbem,volteparacá.

Wiltomouumadecisãorápidaedeuumpassoàfrente.—Tambémvou.Crispinfranziuatesta.—Nãovejomotivoparaisso.Wilmanteve-sefirme.—Achoqueposso lhedarum.ProtegerAmberleéminharesponsabilidade,assimcomoésua;

foiporissoqueAllanonmeenvioujuntoaela.Oexercíciodestaresponsabilidadeéumaquestãodejulgamento, capitão, e nestas circunstâncias, eu acho que deveria ir à frente, patrulhando comDilph.

Crispinpensouarespeitoporummomento,depoisassentiu.—SósevocêfizerexatamenteoqueDilphmandar.Wilvirou-separaAmberle.—Vocêvaificarbem?Ela aquiesceu e, em silêncio, ficou observando Wil seguir os caçadores até a escuridão das

árvores,sumindodevista.

Comofantasmas,osquatrodeslizarampelacortinaencharcadadafloresta,compassossilenciosos.Anévoaosenvolviaemfaixasgrossaseúmidas,eachuvacaíasuavemente.Filasdetroncosescuros,arbustosematopassavamenquantoa floresta subia sinuosamenteemelevações íngremese sulcos.OsminutosavançavameWilOhmsfordsentia-secadavezmaisinquieto.

KianeRianforamumparacadalado,desaparecendoentreasárvores,eWilficousozinhocomDilph.Umaclareiravazia apareceude repentenaneblina, eDilphagachou-se, fazendo sinalparaqueWiloimitasse.Oelfoapontouparacima.

—Ali—sussurrou.Noaltodosgalhosentrelaçadosdedoisgrandescarvalhos,situava-seopostoélfico.Achuvaea

neblina envolviam as construções e as passarelas que as conectavam. Não se via o brilho delamparinas ou tochas queimando lá dentro.Nenhummovimento.Não havia som. Era como se opostoestivessedeserto.

Masnãopodiaestar.Dilphesticou-selevementeparafrente,olhandoparaaesquerdaatravésdaneblinaatéverRin,

edepoisparaadireita,atéencontrarKian.Osdoisestavamajoelhadossobaproteçãodasárvores,auns trinta metros de cada lado, observando o posto silencioso. Dilph assobiou baixinho parachamar a atenção deles.Quando conseguiu, sinalizou paraKian observarmais de perto.MandouRinparaaesquerda,parapatrulharoperímetrodaclareira.

WilassistiuaKiancorreratéabasedoscarvalhosquesustentavamoposto,encontrarosapoiosescondidosemumdostroncosimensosecomeçarasubir.Então,comDilphàfrente,Wilfoiparaadireita, posicionando-se na extremidade da clareira e examinando a floresta em busca de algumsinaldoselfosdesaparecidos.Aflorestaestavamolhadaelamacenta,eeradifícilenxergarqualquercoisaatravésdamassadevegetação.

O jovemvoltou a olhar para oposto.Kian estavaquase alcançandooprédiomais baixo, umapequenacabanadecomandolocalizadalogoabaixodaresidênciaprincipal.Rinnãoestavaàvista.Wilaindaprocuravapeloelfoquandodeuumpassoemfrenteetropeçou,caindodecaranocorpoalquebrado e sem vida de um caçador elfo. Levantou-se de um salto, horrorizado, varrendo aneblina ao redor com os olhos. À sua esquerda jaziam mais dois corpos, com os membrosretorcidos,ossosquebradoseesmagados.

—Dilph!—sussurrouele,agoniado.Nomesmoinstante,oelfosurgiuaoseulado.Parandoporapenasuminstanteparaexaminara

cenafúnebre,Dilphfoiatéabordadaclareiraedeuumassobioagudo.Rinsurgiunaflorestacomumaexpressãoassustada.Docorrimãodaplataformaquecercavaacabanadecomando,Kianolhouparabaixo.Dilphsinalizoufreneticamenteparaquevoltassem.

Maspraticamentenomesmoinstante,Kiandesapareceu.Algopareciatê-loagarradoetiradodevista,tãosubitamenteque,paraosurpresoWil,foicomoseeletivessesimplesmenteevaporado.Ogrito deKian ressoou, curto e sufocado. Seu corpo voou das árvores, caindo como um galho na

chuva,estatelandomortonochão.—Corra!—gritouDilphparaWil,edisparouparaasárvores.O jovem congelou por ummomento terrível. Kian estavamorto. Era quase certo que todo o

postoélficodaflorestadeDreytambémestivesse.Todososseuspensamentossumiram,excetoum— se não alcançasse Amberle a tempo, ela também morreria. E então acelerou, pulando pelavegetação da floresta como um cervo assustado, saltando e desviando-se de arbustos e madeiracaída, desesperado para encontrar a barca e a jovem elfa cuja vida lhe fora confiada. Em algumlugar à suadireita podia ouvirDilph, fugindo como ele, emais atrásRin. Sabia por instintoquealgoosperseguia.Nãopodiavê-lo,nãopodiaouvi-lo,maspodiasenti-lo,terrível,sombrioecruel.Achuvacorriapelorostodeleeentravaemseusolhos,nublandosuavisãoenquantotentavaevitartroncoscaídoseespinheiros.Caiuumavez,masse levantouquase imediatamente, semdiminuiravelocidade;seucorpomagroesforçava-separaaumentaradistânciaemrelaçãoaoseuperseguidorinvisível. Seu peito arquejava com o esforço, e suas pernas doíam. Poucas vezes na vida sentiramuitomedo,eaquelaeraumadelas.Estavaapavorado.

OgritodeRinecoourispidamentenaquietude.Acoisaopegara.Wiltrincouosdentesdefúria.Talvez os elfos na barcaça estivessem alerta àquela altura. Talvez eles zarpassem imediatamente, eassim,mesmoqueeletambémfossepego,pelomenosAmberleescaparia.

Galhose folhasoagarravamcomose fossemmãos.ProcurouporDilph,masoelfonãoestavamaisvisível.Sozinho,continuouacorrer.ApenumbracomeçouaseesgueirarrapidamentesobreaflorestadeDrey, transformandoa tardecinzaemnoite.Agaroaquecaíra initerruptamenteodiainteiro subitamente tornou-se uma chuva torrencial, o vento soprava forte, enquanto uma novamassa de nuvens escuras de tempestade surgiam no céu. Trovões ressoaram ao longe, graves eagourentos.NasmargensdoRiachodaCanção,oscaçadoresélficosesuaprotegidaapertaramseusmantosensopadosdechuvamaisfortecontraocorpo.

Ogritosooudealgumlugardentrodafloresta,altoecurto,quaseabafadopelaforterajadadevento.Poruminstanteninguémsemexeu,encarandoamuralhaescuradasárvores,mudos.Então,Crispin começou a gritar ordens,mandandoAmberle voltar para a barca e se esconder de novo,chamandoPedeCormac.Dearmasapostos,os trêscaçadoresélficos foramatéaextremidadedadoca,vasculhandoamassanebulosadafloresta.Abordodabarcaça,Katsinsoltouascordaseficouprontoparazarparem.

Amberle encolheu-se por algunsminutos na escuridão da cabine, ouvindo o som do vento láfora. Ergueu-se de repente, empurrando a cobertura de lona e saindo de volta para a chuva.Quaisquerquefossemasconsequências,nãopodiaficarescondidanacabinesemsaberoqueestavaacontecendo. Seguiu por entre as caixas empilhadas até conseguir voltar para a doca. Katsinenrolara as cordas que mantinham a barcaça presa em várias voltas ao redor de uma estaca;segurando as pontas soltas com força, estava pronto para soltá-las. Lançou um olhar azedo aAmberle quando a viu,mas a jovemo ignorou.Na beira damargem, a algunsmetros do cais, osdemaiscaçadoresélficosencaravamaflorestacomaslâminasdasespadasbrilhandofracamentenachuva.

Uma figura desgrenhada emergiu abruptamente das florestas a uns vinte metros rio abaixo,tropeçandoearrastando-se.Quandoseendireitou,puderamverqueeraDilph.

—Saiamdaqui!—emalarmeelegritou,suavozrouca.—Rápido,saiamdaqui!Começouacorrernadireçãodeles,masperdeuoequilíbriomaisumavezecaiu.Crispinjáseadiantava.UmcomandoríspidomandouPedeCormacdevoltaàbarcaçaenquanto

corria para o homemcaído. Praticamente semparar, pegouo outronos braços, colocou-o sobre

umombroeretornouàspressasparaobarco.Amberleespiavaaflorestaatravésdaneblinaedachuva.OndeestavaWilOhmsford?—Soltemacorda!—berrouCrispin.Katsinfezcomolhefoiordenado,empurrandoAmberleapressadamentedevoltaaobarcoonde

PedeCormacjáaguardavam.Umsegundodepois,CrispincolocouDilphabordo,eaembarcaçãopesadacomeçouaseafastar.

De repente, Wil apareceu, libertando-se da floresta e correndo para a doca. Amberle o viu,começouagritar,entãocongelou.Atrásdele,nassombrasdasárvores,algoimensooperseguia.

—Cuidado!—berrou,avisando.Incentivadopelogritodealerta,ojovemalcançouadocacomumúnicopulo,atravessou-asem

diminuir o ritmo e saltoupara alcançar a barcaçaque se afastava,mal a alcançando comapernaesticada.Teriacaídonoriosenãofossepeloscaçadoresélficos,queconseguiramagarrá-loeiçá-lo.

ObarcochegouaocanalprincipaldoRiachodaCançãoecomeçouaganharvelocidade.Katsinpegouo leme,guiandooveículopesado.Wilcaiunomeiodascaixas,encolhendo-sedeexaustão,enquanto Amberle tirou o próprio manto e o envolveu. Perto deles, Crispin inclinou-se sobreDilph.OventoeorugidodorioespalharamaspalavrasdeDilph.

— Mortos, todos eles... partidos, quebrados como gravetos... como a patrulha em Arborlon,como...osEscolhidos.—Abriuaboca,engasgado,necessitandodemaisar.—Kiantambém...eRin,osdoismortos...odemônioospegou...estavanosesperando...

Amberle não ouviu o resto. Seus olhos estavam fixos nos deWil. Com uma certeza terrível,haviampercebidoaverdade.

Odemônioestavaesperandoporeles.Allanondera-lheumnome.Chamara-oCeifador.

CapítuloXXIII

Erameia-noitequandoCrispinlevouabarcaçaparaamargemnovamente.LogodepoisdaflorestadeDrey,oRiachodaCançãoviravaparaoeste, em sua jornada sinuosa até Innisbore.Quandooselfosfinalmentemanobraramabarcaatéumbraçopequenoeestreitocercadodeárvoresquesaíado braço principal na direção sul, eles se viram na parte mais ao norte das Matas Foscas, aquilômetros de ondehaviampretendidodeixar o rio.As chuvas haviamdiminuídomais uma vezparaumagaroa,quepairavanoarfriocomoumanévoafina.Nuvenspesadasobscureciamaluaeasestrelas, e a noite estava tão escura que nem os olhos élficos conseguiam ver mais do que unspoucospassosàfrente.Oventoparara,eumaneblinagrossaestabelecera-sesobretodaaterra.

Os caçadores élficos encostaram a embarcação num banco de areia na ponta da enseada etiraram-na quase totalmente do rio, amarrando-a. Movendo-se com cuidado e em silêncio,patrulharamaregiãoaoredorporcentenasdemetrosemtodasasdireções,concluíramquenadaosameaçavaporalie reportaram-sedevoltaaCrispin.Ocapitãoconcluiuqueseria inútil tentarcontinuaraviajaratédemanhã.MandouqueWileAmberlepermanecessemnacabine.Enroladosem cobertores grossos para se protegerem do frio, livres do balanço desconfortável do rio pelaprimeira vez em dois dias, adormeceram imediatamente. Os elfos cercaram o barco e seuspassageiros adormecidos,mantendo turnos de vigia. Crispin postou-se na entrada da cabine e seajeitouparapassaranoite.

Ao amanhecer, o pequeno grupo se levantou, embalou todas as provisões e armas que conseguiacarregar e soltou a barcaça de suas amarras, deixando o rio carregá-la dali. Desapareceurapidamente, girando com a força da corrente. Assim que ela sumiu, começaram a atravessar asMatasFoscas.

As Matas eram planícies cheias de mato e arbustos, pontilhadas com lagos estagnados,corredeiraseesgotos.DividiamasvastasflorestasdasTerrasdoOestedesdeasmargensdoRiachoda Canção até a muralha da Rocha Esporão, um labirinto ermo pelo qual poucos viajantes seatreviam a viajar. Aqueles que o faziam, arriscavam-se a se perder de vez num emaranhado dematagaiseatoleirosagrupados,envoltosembrumaeescuridão.Pior,arriscavam-seaencontrarumdos muitos desagradáveis habitantes das Matas Foscas, criaturas cruéis, inteligentes eindiscriminadasemsuaescolhadepresas.Nãohaviamuitascoisashabitandoaquelasplanícies,masaquelas que ali viviam entendiam bem que todas as criaturas ou eram caça ou caçadoras, e só asúltimassobreviviam.

—Sehouvesseumaalternativa,não teríamosvindoporaqui—CrispinalertouWil, recuandomomentaneamente para compartilhar seus pensamentos com o jovem.— Se tudo tivesse corridocomoplanejado, teríamospegadocavalose idoparao sulapartirdoposto, seguindoa fronteiraoestedasMatasFoscasatéoMermidon,edalicavalgadoparaooeste,atéaRochaEsporão.MasoqueaconteceunaflorestadeDreymudoutudoisso.Agoratemosquenospreocupartantocomoquepodenosseguirquantocomoquepuderestaradiante.Aúnicavantagemdestasplanícieséque

elasesconderãoqualquertraçodenossapassagem.Wilsacudiuacabeça,emdúvida.—UmacoisacomooCeifadornãovaidesistirfácil.—Não,vaicontinuarnoscaçando—concordouoelfo.—Masnãovainospegardaquelejeito

uma segunda vez. Ele nos esperava na floresta deDrey, porque sabia que estávamos indo para lá.Não sei como sabia, mas sabia. — Olhou de relance para o jovem, mas Wil nada disse. — Dequalquerjeito,nãosaberáondeestamosagora.Seelepretendenosencontrardenovo,terádenosrastrear. Isso seriamuito fácil se tivéssemos continuadona floresta,mas vai ser complicado aqui.Primeiro,teráquedeterminarondenósdeixamosorio,esóissopodelevardias.Depois,teráquenós seguir nas Matas Foscas. Porém, as Matas Foscas engolem você sem deixar vestígios; estepântano esconde pegadas dez segundos depois que são deixadas. E nós temosKatsin, que nasceunesta regiãoe jáatravessouasMatasFoscasantes.Odemônio,pormaispoderosoque seja, estaráem território desconhecido. Terá que caçar apenas com o instinto. O que nos dá uma grandevantagem.

Wil Ohmsford não concordava. Allanon também tinha achado que os demônios não iriamencontrá-lo quando fugira de Paranor. Mas encontraram. Ele mesmo pensara que não seriamencontradosdenovoquandoforacarregadojuntoaAmberleparaamargemopostadoLagoArco-íris peloReidoRioPrateado.Masnovamenteo fizeram.Porque seriadiferentedaquela vez?Osdemônios eram criaturas de outra era; seus poderes eram os poderes de outra era. O próprioAllanondissera isso.Tambémdisseraqueaquelequeos lideravaeraumfeiticeiro.Seriatãodifícilparaelesrastrearemumpunhadodecaçadoresélficos,umajovemeumhomemdoValeSombrio?

Porém, não havia nada que pudesse fazer quanto a isso, e sabia. Se o Ceifador conseguisserastreá-losnasMatasFoscas,poderiarastreá-losemqualquerlugar.Crispintomaraadecisãocerta.Oscaçadoresélficoserammuitohabilidosos; talvezaquilo fosseobastanteparaqueconseguissematravessaremsegurança.

Ojovemestavabemmaispreocupadocomoutrapossibilidadedesagradável,edesdeoencontrocomoCeifadornaflorestadeDrey,nãoconseguirapensaremoutracoisa.OCeifadorsouberaqueestavam indo para o posto élfico. Tinha de saber, pois ficara esperando por eles. Crispin estavacertoquantoaisso.Noentanto,sóhaviaumjeitodeeleterficadosabendo—oespiãoescondidodentrodoacampamentoélficocontaraparaele,oespiãoaquemAllanontomaratantocuidadoemenganar.EseosdemôniossabiamdeseusplanosdeviajarparaopostoélficonaflorestadeDrey,então o que mais saberiam acerca daquela expedição? Era bastante possível, percebeu, que elessoubessemdetudo.

Era uma possibilidade aterrorizante, uma queWil preferia não continuar contemplando,masquepareciacadavezmaisplausívelconformeelepesavaosfatos.Allanontinhacertezadequehaviaumespiãodentrodoacampamentoélfico.Dealgum jeito,oespiãoconseguiraescutaraconversadeles no escritório de Eventine. Não era capaz de conceber como tinham conseguido isso, masestavacertodequeestavamsendovigiados.A florestadeDrey foramencionada; issoexplicariaoCeifador.Mas o Vasto Ermo também foramencionado. Isso significava que os demônios sabiamexatamente aonde iamdepois da floresta deDrey, e se os demônios sabiamdisso, não importavaquecaminhoapequenacompanhiaescolhesseouasdistraçõesquedecidissemusarparailudirseusperseguidores, havia grandes chances de que, quando chegassem ao Vasto Ermo, houvessedemôniosàespera.

Aquela ideia ficounacabeçadeWilOhmsfordodia todoenquantoogrupoarrastava-sepeloemaranhadopantanosodasMatasFoscas.Arbustosespinhentosegramaafiadaoscortavamacada

passo, aneblinadeixavaa roupaúmidaegelada, ea lamaeaáguamalcheirosa se infiltravamnasbotas e invadiam as narinas com o fedor. Andavam separados uns dos outros, falando pouco,espiandocuidadosamenteatravésdachuvaedanévoarodopiantearegiãopassandoporelesnumamanchagrisimutável.Aoanoitecer,estavamexaustos.Montaramoacampamentonumafloramentodearbustosespalhadosquenasciamnaencostadeumacolinabaixa.Eraarriscadodemaisacenderuma fogueira, então se enrolaram em cobertores molhados pelo frio das planícies e comeramcomidafria.

Os caçadores élficos terminaram logo e prepararam-se para seus turnos de vigia. Wil tinhaacabadosuapequenarefeiçãodecarnesecaefrutas,acompanhadasporumpoucodeágua,quandoAmberleaproximou-seeencolheu-seaoseulado,comorostoinfantilobservando-odedentrodasdobras do cobertor que ela colocara sobre a cabeça.Mechas soltas do cabelo castanho caíam emseusolhos.

—Comovocêestá?—perguntou.—Estoubem.—Elapareciaumfilhoteperdido.—Precisofalar.—Estououvindo.—Fiqueipensandoemalgoodiainteiro.Eleassentiu,semdizernada.—OCeifadorestavanosesperandonaflorestadeDrey—disseemvozbaixa.Hesitou.—Você

percebeoqueissosignifica?Elenãorespondeu.Sabiaoqueviriaaseguir.Eracomoseelativesselidoamentedele.—Significaqueelesabiaqueestávamosindoparalá.—AmberledisseaspalavrasqueWilestava

pensando.—Comoissopodeteracontecido?Elesacudiuacabeça.—Simplesmenteaconteceu.Eraarespostaerrada,eWilsabiadisso.Orostodelaficouvermelho.— Assim como os demônios nos encontraram no Refúgio Firme? Assim como encontraram

AllanonemParanor?Assimcomoparecemnosencontraraondequerqueagentevá?—Avozdelapermaneceubaixa,porémhaviaraivanela.—Queespéciedeidiotavocêachaqueeusou,Wil?

EraaprimeiravezqueAmberlepronunciavaonomedele,eaquilooassustoutantoqueporuminstante ele apenas a encarou. Havia mágoa e desconfiança nos olhos da elfa, e ele viu que oucontava o que Allanon pedira para manter em segredo ou mentia. Era uma decisão simples.Contou-lhearespeitodoespião.Quandoterminou,elasacudiuacabeçaemreprovação.

—Vocêdeviatermecontadoissoantes.— Allanon pediu que não contasse— tentou explicar.— Ele achou que você já tinha coisas

demaiscomquesepreocupar.— O Druida não me conhece tão bem quanto pensa. De qualquer jeito, você devia ter me

contado.Wilnãoqueriacontinuardiscutindoaquilo.Assentiu,concordando.—Eusei.Masnãocontei.Ficaramemsilêncioporumtempo.Umdoselfosdevigiasurgiucomoumaapariçãonaneblina,

sumindonela logodepois.Amberle ficouolhando-o edepois se virouparaWil. Sua voz flutuavadassombrasdocapuz,orostoescondidonasombra.

—Nãoestoubrava.Sério,nãoestou.Eledeuumsorrisofraco.—Quebom.Estepântanojáédesanimadorobastante.

—Teriaficadobravasevocênãotivessemecontadoaverdadeagora.—Foiporissoquecontei.Eladeixouoassuntodelado.—Seesseespiãoouviuoquefoiditonoestúdiodemeuavônaquelanoiteantesdedeixarmos

Arborlon,entãoosdemôniossabemparaondeestamosindo,nãosabem?—Imaginoquesim—respondeuele.— Isso significa que também sabem sobre o Sepulcro; sabem tudo o que a Ellcrys contou aos

Escolhidos, afinal Allanon repetiu tudo para nós. Eles têm tanta chance de encontrar oFogossanguequantonós.

—Talveznão.—Talveznão?—Nós temos as Pedras Élficas— lembrou ele, imaginando se aquilo fazia alguma diferença.

Afinal,nãosabiarealmenteseconseguiriausarasPedrasdenovo.Aquelaideiaodeprimiu.—Quempoderiaterchegadotãopertoparaouviroqueestávamosfalando?—Amberlefranziu

atestaeofitou.Wilsacudiuacabeça,semfalarnada.Tambémvinhapensandonaquilo.—Esperoquemeuavôestejabem—murmuroueladepoisdeumtempo.—Soucapazdeapostarqueeleestámelhordoquenós.—Wilsuspirou.—Aomenoseletem

umlugarquenteparadormir.Orapazpuxouosjoelhosatéopeito,tentandodetermaisumpoucodecalor.Amberlemoveu-

secomele,tremendodefrio.Wiladeixouseaninharaele,enroladaemseuscobertores.—Queriaqueissotivesseterminado—sussurrouela,distante,quasecomosefalandosozinha.Ojovemsorriu.—Queriaqueissosequertivessecomeçado.Elavirouorostoparaencará-lo.—Jáqueestamosquerendoascoisas,queroquevocêsejahonestocomigoapartirdeagora.Sem

maissegredos.—Semmaissegredos—prometeuele.Ficaramemsilênciodepoisdisso.Poucosminutosdepois, a cabeçadeAmberle escorregouno

ombrodeWileelaadormeceu.Elenãoaperturbou.Permitiuqueficassedaquelejeitoeencarouaescuridão,pensandoemdiasmelhores.

Nos dois dias seguintes, a pequena companhia avançoupela penumbra dasMatas Foscas.Choveudurante a maior parte do tempo, uma garoa constante intercalada com chuvaradas pesadas queencharcavamaindamaisaterrajáúmidaedeixavamosviajantescomfrioedeprimidos.Aneblinapairavaacimadeles,espiralandonotopodepenhascoseemcimadelagosparadosepantanosos.Osolpermaneciabloqueadopelasnuvensdetempestade,eapenasumapequenaclaridadenocéunashoraspróximasaomeio-diadavaalgumaindicaçãodepassagemdotempo.Ànoite,haviaapenasaescuridãoimpenetrável.

A viagem era lenta e árdua. Em fila única, eles abriam caminho através do emaranhado dasMatasFoscas, através de espinheiros grossos que as espadasmal conseguiam cortar, por atoleirosqueborbulhavamesugavamqualquercoisaaoalcance,eaoredordelagosdelamaverdeeodoresmalignos. Madeira morta cobria o chão, misturando-se a poças de água e a raízes retorcidas. Avegetaçãotinhaumaaparênciapálidaqueabafavaseuverdeedeixavatodaaregiãocomaaparência

doentiaeinvernal.Oqueviviaali,dentrodasMatasFoscas,permaneciaescondido,apesardesonsfracoscorreremesebalançaremnaquietude.Assombrasdeslizavamcomoapariçõesentreachuvaeapenumbra.

Logodepoisdomeio-diadoterceirodia,chegaramaumimensopântanodeáguaparada,cheiode raízes emadeiramorta que sobressaíam como se fossem os ossos partidos da terra emmeio auma coberturade flores vitórias-régias que tremia gentilmente coma chuva.Asmargensdo lagoestavamcobertasdeespinhosearbustosatéondedavaparaver.Anévoamexia-sesobreasuperfíciedolagocomoumanuvemdensa,enãohaviasinaldamargemoposta.

Imediatamente ficou claro que qualquer tentativa de contornar o lago exigiria que voltassemvárias horas para escapar dos arbustos. Havia apenas uma alternativa disponível e eles a usaram.Katsin os liderou, como vinha fazendo pela maior parte da jornada pelasMatas Foscas, com osoutros quatro caçadores élficos divididos emduplas, de forma que dois caminhassem à frente deWil e Amberle e dois os seguissem. Cortando através dos arbustos que bloqueavam a passagem,chegaramaumaponteestreitadeterraeraízes,quesaíadamargemesumiananeblina.Setivessemsorte,aponteiriaatéamargemoposta.

Prosseguiram com cuidado, escolhendo por onde ir no caminho irregular, ficandocuidadosamenteafastadosdolodoqueficavadecadalado.Anévoasefechouaoredordelesquaseimediatamente e a terra além desapareceu.Osminutos se passaram.A chuva batia com força emseusrostos,sopradaporumasúbitarajadadevento.Aneblinaclareou-seinesperadamente,eviramqueaponteafundavanolagoalgunsmetrosàfrente.Maisadiantehaviaumgrandemontedeterraencrustadocompedrasevegetação.Amargemopostadolagonãoestavaàvista.Haviamchegadoaumpontosemsaída.

Crispin avançoupara olharmelhor o quehavia alémdomonte de terra,masKatsin ergueu amãoparaavisá-lo.Olhouparatrásrapidamente,paraosoutrosmembrosdacompanhia,colocandoumdedonoslábios.Apontouparaomonte,tateandoatéumlongosulcoquesecurvavaatéentrarno lago. Na extremidade, o vapor subia em pequenos jatos, saindo de dois buracos duros queassomavamlogoacimadalinhad’água.

Respiradouros!Sem falar nada,Crispin gesticuloupara que se afastassem.Oque quer que estivesse dormindo

ali,nãoqueriaperturbá-lo.Masfoitardedemais.Acriaturaossentira.Seucorpoergueu-serapidamenteparaforadolago,

banhando-os com a água estagnada. Bufou alto quando olhos amarelos abriram-se por baixo dacoberturadenenúfaresevinhas.Antenasirrequietasergueram-sedocorpocobertode lama,eumfocinholargoeachatadoavançouparaeles,comasmandíbulasabertasefamintas.Ficoususpensosobreolagoporuminstante,daíafundousilenciosamentesobaáguaesumiu.

WilOhmsfordteveapenasumvislumbredacriaturamonstruosa.LogodepoisjáestavafugindopelaneblinaatrásdePedeCormac,puxandoAmberleconsigo,lutandoparamanteroequilíbrionatrilhairregular.OuviuKatsin,DilpheCrispinvindorapidamenteatrásdesiearriscouolharparatrás, para verificar se a criatura os seguira.Nomesmomomento em que olhou para trás, seu péficoupresoeelecaiu,arrastandoAmberlejunto.

Aquedasalvousuasvidas.Acriaturasurgiunaneblina,comsuamandíbula imensavarrendoaponte estreita à frente deles como se fosse uma rede de pesca. Gritos de terror vieram de Ped eCormacenquantoacoisaoscapturavaepuxavaparaolago.Ocorpoimensoacomodou-senaáguaedesapareceu.

Wilcongeloudeterror,olhandofixamenteparaaneblina,nopontoemqueacriaturasumira.

Crispin saltou para frente, colocandoAmberle sobre seu ombro e correndo para a segurança damargem. Katsin apanhouWil antes que ele pudesse tomar alguma iniciativa e seguiu. Dilph foicorrendoatrásdelescomaespadadesembainhada.Emsegundos,elesestavamtropeçandodevoltana muralha de espinhos e arbustos. Bem longe da beira d’água, caíram na terra enlameada, arespiraçãopesadanomeiodosilêncioenquanto tentavamescutar sonsdeperseguição.Nãohavianenhum.Acriaturasefora.

Masagoraeramsócinco.

CapítuloXXIV

AnoitecaiulentamentepelasTerrasdoOesteemfinoslençóiscinzentoseofriodoanoitecerseestabeleceu na floresta. As nuvens que tinham coberto o céu de verão por quase sete diascomeçavam a se abrir, deixando que faixas finas de azul brilhassem sob a luz do sol poente. Nooeste,ohorizonteficouescarlateepúrpura,obrilhobatendosuavementenaflorestaencharcadadechuva.

DebaixodamanchadenévoaquecobriaasMatasFoscasapareceramoscincoremanescentesdopequeno grupo deArborlon, ressurgindo como almas perdidas saindo do submundo. Abatidos eexaustos, com mãos e rostos cobertos de arranhões e hematomas, com roupas sujas, rasgadas ependendomolhadas,pareciammendigos.Apenas suasarmas sugeriamqueerammaisdoque isso.Marchando cansados pela última fileira de bosque cerrado, pelo último monte de espinhos,arrastaram-seporumapequenacolinadepedrassoltasemato,parando,exaustos,peranteastorresgêmeasdoPico.

Eraumavistafabulosa,espetacular.EmoldurandooamplocanaldoMermidonquandooriosecurvavaparaleste,nadireçãodaspradariasdeCallahorn,oPicoformavaumportãonaturalparaacordilheiravastaeacidentadaqueoselfosbatizaramRochaEsporão.OPico,solitárioeimponente,eraformadoporpináculosdepedragêmeoserguendo-senocéucomosentinelasimensasvigiandoa terra abaixo. Sulcos e fendas marcavam a superfície num labirinto de rachaduras e fendas queprojetavam sombras nas pedras dos penhascos como rugas no rostomarcado de um ancião.Umafloresta de pinheiros crescia na base norte dos picos, tornando-se gradativamente menos densaconformeaencostatornava-semaisíngreme,atésobrarapenasvegetaçãorasteiraefloresselvagensquemanchavamapedraescuracompontinhosbrilhantesdecor.Maisparacima,montesdeneveegelobrilhavamnumtombrancocintilante.

Crispin convocou uma conferência urgente. Depois de vagarem através do emaranhado dasMatas,haviamsedesviadopara lestemaisdoquepretendiam,saindoaliemvezdeapareceremnabordadaRochaEsporão.OmaislógicoseriacontornaroPico,depoisviajarrioacima,seguindooMermidon até ele cruzar a Rocha. Mas a viagem inteira teria que ser feita a pé, e levariam nomínimodoisdiasparachegartãolonge.Pior,arriscariamdeixarumatrilhaquepodiaserseguida.Ocapitãoélfico julgavateralternativamelhor.AninhadoprofundamentedentrodoPico,unindoumafendagigantenopicomaispróximo,haviauma fortalezaélficaabandonadadesdeaSegundaGuerra das Raças. Crispin havia estado lá uma vez anos antes, e se conseguisse encontrá-lanovamente,poderiaacharaspassagensquelevavamdaquelaantigafortalezaparabaixo,atravésdarochadamontanhaatéondeoMermidondividiaospicosgêmeos.Alihaviadocasnorioe talvezumnaviotambém;esenão,teriammadeiraobastanteparaconstruirum.Dali,oMermidonfluíaparao lesteporváriosquilômetros,masentãovoltavaaopontoondeaRochaEsporãorodeavaolodo impenetráveldaFalhadoVéu.Seutilizassemoriocomomeiode transporte,aviagemseriacompletadanametadedo tempoque levaria se fossemapé—umdia, talvezmenos.Haviaoutrarazão para seguirem por aquele caminho, acrescentou o capitão elfo. O rio esconderia qualquervestígiodesuapassagem.

Foioúltimoargumentoquedefiniuoquefariam.NenhumdelesseesqueceradoencontrocomoCeifadornaflorestadeDrey.Odemônioaindadeviaestaràprocuradeles,etudooquepudessemfazer para complicar aquela caçada deveria ser tentado. Rapidamente, concordaram que seriamelhorseguiroconselhodeCrispin.

Sem perdermais tempo, iniciaram a subida até o Pico. Passaram velozmente pelos pinheirosespalhadosquecresciamnosopédopicomaispróximo,alcançandoasencostasmaisbaixasquandoosoldatardejámergulhavaalémdohorizonteeanoitecaía.Umameia-luacomeçouabrilharnoleste e grupos de estrelas piscavam contra o azul escuro do céu, iluminando o caminho para oscinco enquanto caminhavam pedra acima. Era uma noite tranquila e pacífica, cheia de cheirosdoces carregados desde a floresta por umvento sulmanso. Encontraramuma trilha, larga e bemusada, espremendo-se emmeio a grupos de rochas e por descidas súbitas, subindo sinuosamentesempararrumoàsombradamontanha.Atrásdeles,aflorestacomeçavaasumir,revelandoavistasombriadasMatasFoscasqueseespalhavamparaonorteabaixodeles,nadireçãodafinalinhadoRiachodaCanção.

Eraquasemeia-noitequando finalmente avistarama fortaleza élfica.Agrande fortificação erasituada em uma fenda profunda, um labirinto retorcido de parapeitos, torres e baluartes que seerguia sombriamente contra apedradospenhascos iluminadapelo luar.Uma longa escadaria emcurva subia a encosta até uma entrada livre na muralha externa do castelo. Portões de madeirapresos com ferro, desgastados pelo clima e pelo tempo, com dobradiças completamenteenferrujadas, jaziam abertos para a noite. Havia torres de vigia empoleiradas como predadoresagachados emcimade grossasmuralhasdepedra.Estacasprojetavam-sedo cumedosparapeitos;no alto,nomeiodo agrupamentode torres, correntes queumdia carregaramos estandartesdosReisÉlficosbatiamcontraestacasdeferro.Dealgumpontoacimadafortaleza,nasprofundezasdospenhascosdamontanha,ressoouogritoagudodeumaavenoturna,oqualsubiuatéatingirotomcongelantedovento,continuandoporumtempinhoatémorreremecos.

Os cinco membros remanescentes da pequena companhia que saíra de Arborlon subiram osdegrausatéaentradadafortalezaabandonadaeaultrapassaramcomcuidado.Umapassarelaaltaeapertada levava até outra parede. Ervas e mato haviam crescido entre os blocos de pedra queformavam amuralha.Os cinco avançaram, as botas ecoando na quietude da passagem.Morcegosvoaram de fissuras e rachaduras, suas asas de couro batendo violentamente. Pequenos roedorescorriampelaspedrasquebradasemlampejosdemovimentosúbito.Teiasdearanhapendiamcomolençóisdelinhofino,agarrando-seemfaixasàsroupasdogrupoconformetodospassavam.

No fim da passarela, uma entrada se abria para um pátio imenso coberto de escombros epreenchido pelo uivo do vento.Dos dois lados das ameias que o cercavam, uma ampla escadariasubiaemcurvaemdireçãoaumavarandaqueficavanafrentedatorreprincipaldafortalezaantiga,umamonstruosacidadelaamuralhadaqueseerguiapordezenasdemetrosparaocéunoturno,suapedra irregular curvando-se na sombra da montanha. As janelas marcavam os andares da torre,vigiando a escuridão confusa dasMatas Foscas.No centro da varanda, uma alcova protegia umaúnica porta de madeira. Abaixo, levando diretamente do pátio para a torre, havia uma segundaporta.Asduasencontravam-sefechadas.

Wilolhou,inquieto,paraasmuralhaseameiasqueseelevavamacimadele,escuras,sinistrasesedesmoronando com a idade. O vento uivava em seus ouvidos e jogava poeira em seus olhos,fazendo-oapertarocapuzdomantocontraorostoparaseproteger.Nãogostoudaquelelugar.Eleo assustava. Era um refúgio para espíritos de homensmortos, um santuário onde os vivos eramintrusos.OlhouparaAmberleeviuamesmainquietuderefletidanorostodela.

CrispinmandaraDilphparaexploraravaranda.ComKatsinlogoatrás,ocapitãoélficodirigia-seàentradada torreadiante.Mexeuna trancasemsucessoedepois tentouarrombaraporta.Elaaguentou. Katsin também tentou, e o resultado foi omesmo.A porta encontrava-se solidamentefechada.Wilassistiaaosesforçosparaabri-lacomumaapreensãocrescente.Afortalezaostrancavacomoumaprisão,eeleestavaansiosoparaselibertar.

Dilph ressurgiu na varanda, suas palavras quase perdidas no uivo do vento. A porta de cimaestavaaberta.Crispinassentiu.Recolhendováriosgravetossoltosquepodiamservirdetochasassimque conseguissem adentrar a torre, guiou o grupo pelas escadas da varanda e para o abrigo daalcova.A porta encontrava-se entreaberta. Logona entrada, o capitão usou umapederneira paraacenderumdosgalhosquecarregava,acendeuumsegundoeoentregouaDilph.Acenouparaquetodosentrassem,fechandoaportacontraovento.

Eles seviramnumapequenaantessalaquesedividiaemumasériedecorredoresescuros.Umaescadaria cortava a parede oposta, saindo do piso de pedra e subindo na penumbra.Uma poeiradensapairavano ar remexidopelo vento, e aspedrasda torre estavampermeadaspelo cheirodeumidadeemofo.Segurandosua tocha,Crispinandoupelasalaevoltou, testandoa trancapesadade ferroqueprendia a portada antessala, depois se viroupara osdemais.Descansariamali até oamanhecer. Katsin e Dilph ficariam de guarda no pátio enquanto Wil e Amberle estivessemdormindo.CrispinprocurariaapassagemqueoslevariapordentrodamontanhaatéasmargensdoMermidon.

DilphentregousuatochaparaWil.ComKatsinatrás,saiuparaanoite.Crispintrancouaportaatrásdeles,avisandoaWileaAmberleparamanterem-na travada,edesapareceunaescuridãodeumdoscorredores.Ojovemeaelfaficaramobservandoatéaluzdatochasumirnoescuro.EntãoWilfoiatéaentrada,colocouatochaemumapresilhadeferropresanaparedeeagachou-secomascostasapoiadascontraaporta.Amberleseenrolouemseucobertoredeitou-sepertodele.Porrachaduras nas dobradiças que prendiam a porta, o uivo do vento fazia soar seu chamadofantasmagóricopelossaguõesemformatodetúnel.

Passou-seumlongotempoantesqueumdelesadormecesse.

Wil sequer tinha certeza se chegara a dormir. Parecia ter cochilado, mais do que dormido, umdescanso leve e fugidio que o deixava incerto entre estar desperto e adormecido. Quaseimediatamente,começouasonhar,movendo-seentreocaosdasemiconsciênciaquepairavacomoumnevoeiroemseusubconsciente.Escuridãoebrumaoenvolviamemumaflorestadeimagens,eelevagavaperdido.Aindaassim,tinhaasensaçãode játerestadoali.Aquiloerafamiliarparaele,aquela escuridão e a nebulosidade que flutuava nela, o emaranhado de paisagensmisturadas. Eraumsonho,masnãototalmenteumsonho,quejátiveraantes...

Sentiu a terrível presençada criatura quando esta se agachouna escuridão ao seu redor, e derepenteselembrou.RefúgioFirme—sonharaaquilonoRefúgioFirme.Acriaturaoperseguiaeelefugia,masemvão,poisnãohaviacomoescapar.Acordarafinalmente.Mascomofazerissonaquelemomento?Opânico o invadiu.Aquilo estava lá, a coisa, omonstro.Vinha pegá-lo de novo.Nãopodia fugir, não podia escapar a não ser que acordasse.Mas não conseguia encontrar o caminhoparaforadaescuridãoedaquelanévoa.

Escutouosprópriosgritosquandoaquiloseaproximou.Acordounomesmo instante.Nobolsode sua túnica, asPedrasÉlficas queimavamcomo fogo

contraseucorpo.Debatendo-se,saiudedebaixodocobertor,olhandoparaanévoafumacentada

tocha, que cintilava em tons vermelhosnas paredes de pedra.Amberle agachou-se ao seu lado, osono enevoando-lhe a visão, o rosto pálido e assustado.Wil tocou a forma pequena das PedrasÉlficas,inseguro.Perguntou-seseforaseugritoqueaacordara.Masajovemnãooolhava:encaravafixamenteaporta.

—Láfora—sussurrouela.Apressadamente,ojovemselevantou,arrastandoagarotaconsigo.Eleapurouosouvidos,mas

nãoescutounada.— Talvez tenha sido só o vento— ele disse finalmente, sua voz apressada e cheia de dúvida.

Pousouamãonobraçodela.—Émelhoreudarumaolhada.Tranqueaportaatrásdemim.Nãoabra,anãoserqueescuteminhavoz.

Eleselevantou,puxouatrancapesadaeseesgueirouparaanoite.Oventoassobioupelaportaquesefechavaatrásdesi.Amberlecolocouatravanolugareesperou.

Wilagachou-seporumtemponasombradaalcova,observandoaescuridãoalém.Aluzdaluacaíaem toda a varanda deserta e nas paredes e ameias que a cercavam.Com cuidado, dirigiu-se até oparapeito e espiou o pátio abaixo. Estava vazio. Não havia sinal de Katsin ou Dilph. Hesitou,inseguro sobre o que fazer a seguir. Um momento depois, começou a andar pela extensão davaranda.Notopodasescadas,parounovamenteparaexaminaropátio.Nadaainda.Desceu.

Bolasdematoepoeirarolavamaleatoriamentepelopátiocobertodedetritos,espalhando-seacada rajada de vento. Wil desceu a escadaria em silêncio. Estava quase no fim quando avistouKatsin.OupelomenosoquerestaradeKatsin,seucorporetorcidodeformagrotesca,apoiadonaparededatorredebaixodavaranda.ApoucosmetrosdedistânciaestavaDilph,quaseinvisívelsoboquerestaradaportapesada,quemaiscedoestiveracompletamentefechada.

Wilficougelado.OCeifador!Eleosencontrara.Eestavadentrodatorre.Noinstanteseguinte,estavasubindoasescadasdevoltaparaaentradadavaranda,rezandopara

quenãofossetardedemais.

Sozinhanaantessaladatorre,Amberlepensouterouvidoumbarulhovindodaescuridãodaescadaatrás de si, um barulho que vinha de algum lugar nas profundezas daquela construção. Inquieta,olhouaoredorebuscouescutar.Aindatentavaouvirquandoumabatidaàportaaassustoutantoqueelapulou,surpresa,dandoumgrito.

—Amberle!Abraaporta!EraavozdeWil, tãoabafadapeloventoqueestavaquase irreconhecível.Apressadamente, ela

puxou a tranca pesada. O jovem do Vale Sombrio entrou depressa, batendo a porta atrás de si.Estavabrancodemedo.

—Elesestãomortos!Osdois!—Esforçou-separamanteravozbaixa.—OCeifadorospegou!Eleestáaqui,natorre!

Amberle começou a dizer alguma coisa, masWil imediatamente pôs uma mão em sua boca,silenciando-a.Um ruído— ouvira um ruído— ali, na escadaria. Era oCeifador. Sabia com umacerteza que desafiaria qualquer argumento. Estava vindo pegá-los. Assim que encontrasse umcaminhopara aquele cômodo, iriamatá-los.O jovem sentiuummomentodepânico total.Comoaquiloacontecera?Comoodemônioosencontraratãorápido?Oquedeveriafazeragora?

Segurando a tocha à sua frente como se fosse um escudo, ele se afastou da porta e da escada.Amberle parecia congelada ao lado dele, tropeçando mecanicamente para acompanhá-lo. Não

podiamficarali,Wildisseparasimesmo,entorpecido.Eleolhouparaaspassagensàsuavolta.Emqual delasCrispin entrara?Não tinha certeza. Escolheu a que acreditava ser a certa, e correu naescuridão,segurandoAmberlecomfirmeza.

Centenasdemetrosdepois,pararamderepente.Apassagemacabava,dividindo-seemtrêsnovoscorredores. Novamente, o rapaz entrou em pânico. Qual deveria tomar? Aproximou a tocha dochão.Apassagemdeumúnicopardebotasélficastinharemexidoapoeiradepositadaaliduranteanos,deixandoumatrilhaclaraefácildereconhecer,umaquepoderialevaratéCrispin—umaquepoderialevaroCeifadoratéeles.Engoliuseumedoeavançou,apressado.

Juntos,ojovemdoValeSombrioeagarotaélficafugirampelaspassagensescurasdafortaleza,por corredores cheios de mofo e teias, por câmaras decoradas com tapeçarias apodrecidas emobíliasdeterioradas,aolongodevarandaseparapeitosqueafundavamempoçosdeescuridão.Osilênciotomavaacidadelaantiga,profundoeimpregnadoemsuasentranhasdetalformaqueatéosom do vento sumia, restando apenas o som das botas deles no chão de pedra. Por duas vezes,perderam-se completamente, se enfiando pelo corredor errado antes de descobrir que a trilhasumiraequehaviamseenganadodevidoàpressa.Porváriasvezesencontrarammaisdeumpardepegadas, onde Crispin tivera de voltar para tentar achar o caminho certo. A cada vez, usavamsegundospreciososparadescobrirporondeelerealmenteseguira.SemprehaviaasensaçãodequeaqualquermomentooCeifadorpoderiasurgirnaescuridãoatrásdeles,equesuaúnicachancedeescaparseriaperdida.

Obrilhodeumatochacortouaescuridãoemumcorredornafrentedeles.Tropeçaramnaqueladireção, vendo com alívio a figura esguia de Crispin materializar-se nas sombras. O capitãoretornavade suabuscapelapassagemque atravessava amontanha.Veio até eles correndo, comalâminadaespadaemitindoumbrilhofraconaluzvermelhadofogo.

—Oqueaconteceu?—perguntouaoveromedonosolhosdosdoisjovens.Rapidamente,Willhecontou.OrostodeCrispinempalideceu.—Dilph eKatsin também!O que será preciso para parar essa coisa?—Olhando fixamente a

espadaqueempunhava,hesitouedepoisgesticulouparaqueoseguissem.—Poraqui.Aindapodehaverumachanceparanós.

Juntos, correram de volta pela passagem de ondeCrispin viera, virando à esquerda em outrocorredor, atravessando uma sala imensa que já fora um arsenal, apressando-se por um lance deescadasatéumarotundavazia,entãoparaoutrapassagem.Nofimdesteúltimocorredorhaviaumaportadeferro,presanarochacompregosetravas.Crispinafastouastravaseabriuaportapesada.O vento rugiu em seus rostos, irrompendo pela abertura e impelindo-os para trás com força.FazendosinalparaqueWileAmberleoseguissem,ocapitãodescartousuatocha,abaixouacabeçacomdeterminaçãoeatravessouaaberturaparaaescuridãodooutrolado.

Viram-seencarandoumbarrancofundo,ondeamontanhasedividiaatéabase.Unindoasduasmetades havia uma passarela estreita que levava do pequeno nicho de pedra em que estavam atéumatorresolitárianopenhascooposto.Oventouivavapeloabismo,gritandoemfúriaaobaternaestreita faixa de ferro. Apenas uma pequena tira de luar entrava pela brecha profunda, sua luzbrancacaindosobreumtrechinhodapassarelapertodooutrolado.

CrispinpuxouWileAmberleparaperto.—Precisamosatravessar!—gritouporcimadoassobiodovento.—Segurem-secomforçaao

corrimão!Nãoolhemparabaixo!—Nãosei seconsigo!—gritouAmberledevolta,olhandoansiosamenteparaapassarela.Wil

sentiuasmãospequenasapertandoseubraçocomforça.

—Vocêprecisa!—ArespostadeCrispinnãodavaaberturaparadiscussões.—Éoúnicojeitodesair!

Oventorugiaemsuasorelhas.Amberle fitourapidamenteaporta fechadaatrásdesiedepoisvoltouoolharparaCrispin.Semdizernada,assentiu.

—Fiquemperto!—avisouoelfo.Emfila,começaramaatravessarapassarela,ocapitãoliderando,AmberlelogoatráseWilpor

último.Moveram-se lentamente, com cuidado, apertando o corrimão dos dois lados, de cabeçasabaixadas.Oventogolpeavaseuscorposemrajadas ferozes, tremelicandoasroupasesacudindoapassareladeferroatédaraimpressãodequeeladesmoronariaecairianobarranco.Aodeixaremoabrigoda lateral dopenhasco, o ar congelantedas encostas superioresdasmontanhasos atingiu.Mãos e pés ficaram rapidamente entorpecidos, e o ferro da ponte parecia gelo. Passo a passo,atravessaram,finalmentesaindodasombradopenhascoechegandoàfinafaixadeluarquemarcavaa parte final do trajeto. Momentos depois, pisaram na plataforma em frente à torre solitária. Aestruturaseassomavadiantedeles,apoiadanafacedopenhasco,comsuasjanelasestreitasafastadase escuras e suas paredes de pedra com rastros de umidade congelada.Uma única porta, fechada,marcavaaentradadaedificação.

Crispin tirouAmberle da passarela e a colocou apoiada na entrada da torre.Depois queWilarrastou-separaficaraoladodeles,oelfopôsamãonumacaixademadeiraconstruídanalateraldatorreetirouumpardemarretasimensas.Entregouumaparaojovemeapontouparaaponte.Suavozestavaabafadapelogritodovento.

—Háseisestacasquemantêmoapoiodapassarela;trêsdecadalado!Derrubeessasestacaseapassarela cairá! Foi construída assim para impedir que os inimigos nos perseguissem caso afortalezafossetomada.Fiquecomostrêsdadireita!

Wilcorreuparaaplataforma.Trêspinosfixadosnahorizontalemilhosesseguravamosapoiosemcadaladodapassarela,naplataformaemqueseencontravam.Segurandoamarretacomforça,começou a bater no primeiro. Ferrugem e sujeira haviam envolvido o pino, que semoveumuitolentamente de seu lugar. Quando finalmente se soltou, caiu silenciosamente no abismo.Wil foirapidamente para o próximo, o vento deixando-o surdo para o som dos golpes que dava, o frioentorpecendosuasmãosdesprotegidas.Osegundopinosoltou-seecaiu.

Algopesadosacudiuaponte.WileCrispinolharamjuntos,parandoasmarretas.Nassombrasprofundasnoladoopostodaponte,algosemovia.

—Depressa!—gritouoCapitão.Wil martelou freneticamente o último pino, golpeando várias vezes a cabeça arredondada,

desesperadoparasoltá-lo.Estavaemperradopelaferrugem.Segurouomartelocomasduasmãoseopinofinalmentesemexeuumpouco.

Naponte,alémdafaixadeluar,umasombramaisescuradoqueanoiteseaproximava.Crispinficoudepénumsalto.Doisdospinosnoseuladoestavamsoltos,oterceironametade.

Maso tempoacabara.OCeifadorapareceu, avançandoparaa luz— imenso, encapuzado, semrosto.Crispin ergueuo arco e atirou suas flechas tão rápidoqueWilmal pôde acompanhar seusmovimentos. Todas foram ignoradas pelo monstro. Wil sentiu um nó no estômago.Desesperadamente,martelounopinoàsuafrente,soltando-ovárioscentímetrosmais.Masopinocongelouali.

De repente, lembrou-se das Pedras Élficas. As Pedras Élficas! Devia usá-las agora! Adeterminaçãotomoucontadeseucorpo.Levantou-se,colocouamãodentroda túnicaepuxouabolsadecourocomasPedras.Emsegundos,seguravaasPedras,apertando-ascomtantaforçaque

elas lhe cortavam a pele. O Ceifador corria para eles, ainda agachado na passarela, imenso esombrio.Estavaamenosdecincometrosdedistância.O jovemdoValeSombrioergueuopunhoqueseguravaasPedrase,comtodaaforçadevontadequeconseguiureunir,convocouofogoquedestruiriaaquelemonstro.

As Pedras Élficas brilharam com força; o fogo azul espalhou-se. Mas algo pareceu se fechardentrodeWil.Noinstanteseguinte,opodersumiu.

O jovem foi tomadopelo terror.Tentavadesesperadamente enada acontecia.Amberle correuparaoseu lado,chamando-orepetidasvezes—masaspalavrasdelaseperdiamnouivodovento.Wil cambaleou para trás, atônito. Falhara! O poder das Pedras Élficas não estava mais sob seucontrole!

No instante seguinte,Crispin estava na ponte. Ele sequer hesitou. Largando o arco, sacou suaespada e avançou em direção ao demônio. A criatura pareceu hesitar. Não havia esperado umconfronto direto. O vento balançava a passarela, fazendo os suportes de metal rangerem emprotestoenquantoaestruturasacudia,insegura.

—Ospinos!—gritouCrispinderepente.Automaticamente,WilcolocouasPedrasÉlficasdevoltanatúnica,pegouomarteloevoltoua

baternopinoemperrado.Continuavapreso.Nassombrasatrásdele,Amberleavançou.PegandoomarteloqueCrispinlargara,elacomeçouamartelarimpetuosamenteooutropino.

Napassarela,CrispinalcançouoCeifador.Desviandoegolpeando,ocapitãodaGuardadaCasaprocuravapegarodemôniodespreparado,achandoqueelepoderiaescorregarecairdapassarela.Mas o Ceifador ficou agachado na ponte estreita, bloqueando os golpes do elfo com um braçoimenso, aguardando pacientemente por uma oportunidade. Crispin era um espadachimcompetente, porémnão conseguia penetrar nas defesas da criatura.OCeifador avançou e ele foiforçadoarecuar.

RaivaafrustaçãocorriamporWilOhmsford.Segurandoomartelocomasduasmãos,golpeouopinoenferrujadocom todaa forçaque lhe restava, e finalmenteopinovooue caiunoabismo.Mas ao fazer isso, a ponte sacudiu e Crispin se desequilibrou. Quando ele tropeçou para trás, oCeifador atacou. Garras se fecharam na frente da túnica Crispin. Wil e Amberle observaramhorrorizadosenquantooCeifadorerguiaCrispindapassarela.Aespadadoelfobrilhouaodescernadireçãodagargantadodemônioealâminapartiu-secomogolpe.OCeifadorrepeliuogolpe,comosenada fosse.SegurandoCrispinacimade suacabeçacoberta, jogouoelfonovazioabaixodeles.Crispincaiuemsilêncioesumiu.

EnovamenteoCeifadorcomeçouaavançar.Uma rajada repentina de vento atingiu a passarela já enfraquecida numa lufada poderosa que

soltouoúltimopino.Separando-sedaplataforma,a faixaestreitaafastou-seda facedopenhasco,carregando consigo o Ceifador ali agarrado. Despencou lentamente, batendo com um rugidometáliconopenhascooposto,ometalestalando,sequebrandoeseretorcendo.Oscilounaestreitafaixadeluar, imergindonovamenteemsombras,colidindocontraaencostadamontanha.Porém,não se soltou totalmente, continuando suspensa por seus suportes arruinados, balançandoprecariamente com o movimento do vento. Na escuridão dos penhascos, mal estava visível. OCeifadornãoseencontravaemnenhumlugaràvista.

AvozdeAmberleseergueuacimadogritodovento,umlamentoassustadochamandoWil.Oventou uivava ao passar pelo jovem em golfadas frenéticas, congelando-o até os ossos, enchendoseus ouvidos com seu gemido. Wil não conseguia entender o que ela estava falando. Não seimportava. Seu punho ainda apertava inutilmente a marreta. Sua mente rodopiava. Crispin e os

caçadoresélficoshaviammorrido.OpoderdasPedrasÉlficasforaperdido.Amberleeeleestavamsozinhos.

Amoçachoravaemseuombro, implorandoparaqueeleseafastasse.Wilvirou-separaelaeapuxouparasi.Poruminstante,foicomoseouvisseavozdeAllanondizendo-lhequeeracomelequeoDruidacontariamais.Ficounabeiradoabismomaisummomento,abraçandoajovemelfa,encarando, desesperado, a escuridão abaixo. Então lhe deu as costas. Com Amberle fortementeapertadacontrasi,eledesapareceunoabrigodatorre.

CapítuloXXV

Precisaramdorestantedanoiteparaencontrarocaminhoquelevavaàsaída.ComapenasatochadeixadaporCrispinemumsuportedemetalnaentradadatorreparaguiá-los,seguiramporumasucessão infinitadepassagenseescadasquedesciamsempararpordentrodarochadamontanha.Completamente exaustos pelas provações dos últimos dias, arrastaram-se de forma inconscientepelos corredores da antiga fortificação, de olhos fixos na escuridão à frente, mãos unidas. Nãofalaram, não havia nada a dizer.O choque de tudo o que acontecera os deixara entorpecidos detantomedo.Sóqueriamumacoisanaquelemomento—escapardaquelamontanha.

Anoçãodetemporapidamentefoiabandonando-osgradualmenteaténãotermaissignificado.Poderiamtersepassadominutos,horasoumesmodiasdesdequehaviamseenfiadonapedra;nãosabiam mais. Não faziam ideia de para onde aquelas passagens os levavam. Estavam confiandocegamentenasorteenoinstintoenquantoseguiamportúneisecorredorescomumaperseverançadesesperadaesilenciosanaideiadequeacabariamselibertando.Músculosdoíameeramtomadosporcãibras,eavisãodelesficouembaçadacomafadiga.Atochaquecarregavamqueimouaténãosermaisdoqueumtoco.Mesmoassim,apassagemcontinuavadescendo.

Porfim,terminou.Umaportadeferroimensaseladacomduasfechaduraseumatravaapareceudiantedeles.WiljáestendiaamãoparaasfechadurasquandoAmberlesegurouobraçodele,avozcansadaetensa.

—Wil,esehouverdemôniosesperandopornósláforatambém?EseoCeifadornãoestivessesozinho?

Ele a encarou sem dizer nada.Não havia pensado naquela possibilidade até aquelemomento.Nãosepermitiralevaraquiloemconsideração.PensouemtudooquelhesocorreradesdeaflorestadeDrey.Osdemôniossempreosencontravam.Haviaumsensodeinevitabilidadenaquilo.Mesmose oCeifador finalmente tivesse partido, havia outros demônios. E o espião emArborlon ouviratudo.

—Wil?—OrostodeAmberlemostravasuaansiedadeenquantoaguardavapelaresposta.Eletomouumadecisão.—Precisamosarriscar.Nãotemosmaisparaondeir.Gentilmente,orapaztirouamãodeladeseubraçoeacolocouatrásdesi.Emseguida,abriuas

trancas com cautela, levantou a trava e escancarou a porta. Uma luz nebulosa deslizou pelaabertura. Do outro lado, as águas turvas do Mermidon batiam suavemente nas paredes de umagruta profunda que abrigava as docas escondidas dos elfos. Nada se mexeu. O jovem e a elfatrocaram olhares breves. Sem dizer palavra, Wil jogou a tocha no chão do túnel, onde ela seapagou.

As docas e os barcos presos ali estavam podres e inúteis. O jovem do Vale Sombrio e a elfacaminharam por uma saliência estreita dentro da gruta, até finalmente saírem na margemarborizadaqueficavanabasedoPico.Nãohavianinguémali.Estavamsozinhos.

Começava a amanhecer, com a luz fraca de uma manhã fria, congelante, que cristalizara oorvalho do anoitecer nas árvores e arbustos e deixara a terra branca comuma cobertura de neve

falsa.Admirarama vista,maravilhados, vendoaprópria respiração formarnuvensde sublimação,sentindoofriopenetrarseuscorposmolhadossobasroupas.Orioborbulhavaaltoentreospicosmontanhosos, fluindopara lesteatravésdafloresta,comsuasuperfícieamplaenvoltanumpesadocobertordeneblina.OPicoerguia-sedentrodetalnévoa,torresnegrasqueensombreciamaterra.

Wilolhouaoseuredor,incerto.Dentrodaescuridãodacaverna,osbarcosdoselfosestavamemruínas.Nãohavianadaaliquepudesseajudá-los.Foiquandoviuumapequenacanoanamargemdorio, parcialmente escondida pelos arbustos a poucos metros de distância. Pegando na mão deAmberle,guiou-apelavegetaçãodensadamargematéalcançaremacanoa.Eraumbarcoparapescaemboascondições,amarradoporcordas,obviamentedeixadoporalguémquedeviaapreciarumapescariapertodaságuasprofundasdagrutadevezemquando.Ojovemsoltouascordas,colocouAmberle na canoa e empurrou a pequena embarcação na água. Sua necessidade pelo barco eramuitomaiordoqueadopescadorausente.

Flutuaramparaleste,seguindoofluxodorioconformeaalvoradaestendia-separaamanhãeodia começava a esquentar. Enrolando-se em seu manto, Amberle dormiu na mesma hora. Wiltambémteriadormidosefossepossível.Masosononãoseabateusobreorapaz,sendoinibidoporseu imenso cansaço. Sua mente estava cheia de pensamentos acerca do que lhes acontecera.Colocandoopequenoremoqueencontrounoapoiodentrodacanoa,posicionou-senatraseiradobarquinhoeoguioupelocanal,observando,entorpecido,osolsurgirportrásdasmontanhaseaneblina da manhã se dissolver. Pouco a pouco, a geada derretia na floresta. As torres do Picodesapareciamconformeoriooslevavaeoverdeúmidodaflorestaseerguianolugardelas.Océumaisumavez encontrava-se livredasnuvensde chuvaeda escuridão, exibindoumazulbrilhantedecoradocomfinasfaixasbrancasqueflutuavampreguiçosamentenobrilhodosolmatutino.

Mais perto domeio-dia, oMermidon começou a curvar-se em simesmo, virando lentamentepara o sul até finalmente dobrar para oeste, na direçãoda linha escura daRochaEsporão.OdiaesquentaraeaumidadeeofriodoamanhecerabandonaramcorposeroupasdeWileAmberle.PortodaaextensãodoMermidon,pássarosvoavamemlampejosbrilhantesdesomecor.Ocheirodefloressilvestresenchiaoar.

Amberle espreguiçou-se e acordou, rapidamente encontrandoosolhos sonolentoso jovemdoValeSombrio.

—Vocêdormiu?—perguntouela,sonolenta.Elesacudiuacabeça—Nãoconsegui.Elasentou-se.— Então durma agora. Vou guiar o barco enquanto você dorme. Você precisa descansar um

pouco.—Não,estátudobem.Nãoestoucansado.—Wil,vocêestáexausto.—Haviapreocupaçãonavozdela.—Vocêprecisadormir.Orapazaencarousempalavrasporummomento,osolhosassombrados.—Vocêsabeoqueaconteceucomigoláatrás?—perguntouele,afinal.Aelfasacudiuacabeça,lentamente.—Não.Eachoquevocêtambémnão.—Eusei,sim.Seiexatamenteoqueaconteceu.TenteiusarasPedrasÉlficasenãoconsegui.Não

controlomaisopoderdelas.Euperdiocontrolesobreelas.—Vocênãosabe.VocêteveproblemasparausarasPedrasantes,quandoestávamosemTirfing.

Talvezdessavezvocêtenhatentadodemais.Talvezvocênãotenhadadoavocêmesmoumachance.

—Eumedei todas as chances—declarouWil coma voz tranquila.—Usei tudooque tinhadentrodemimparaconvocaropoderdasPedrasÉlficas.Masnadaaconteceu.Nada.Allanonmedisse que isso poderia acontecer. É por causa damistura domeu sangue élfico commeu sanguehumano.ApenasosangueélficocomandaasPedras,eparecequeomeuéfraco.Existeumbloqueiodentrodemim,Amberle.Euosupereiumavez,masnãoconsigomais.

Elafoisentar-sepertodeleedescansouamãodeleveemseubraço.—EntãovamosterqueconseguirsemasPedras.Ojovemdovaledeuumsorrisofracoanteasugestão.—AsPedrasÉlficassãoaúnicaarmaquetemos.Seosdemôniosnosencontraremdenovo,será

onossofim.Nãotemosnadacomquenosproteger.—Entãoosdemôniosnãopodemnosencontrar.—Elesnosencontraramtodasasvezes,Amberle,apesardetodososcuidadosquetomamos;eles

nos encontraram aonde quer que tenhamos ido. Também vão nos encontrar dessa vez.Você sabedisso.

—EuseiquefoivocêqueinsistiuparanãovoltarmosdepoisdenossafugadoRefúgioFirme—respondeuela.—Seiquefoivocêquenuncasugeriuquedesistíssemos.SeiquefoivocêqueAllanonescolheucomomeuprotetor.Vocêmeabandonaria?

Wilenrubesceu.—Não.Nunca.—Nemeuabandonareivocê.Começamosessaviagemjuntosevamosterminá-lajuntos.Vamos

dependerumdooutro.Umajudaráooutroapassarpor isso.Achoqueseráobastante.—Elafezuma pausa e um sorriso rápido perpassou seu rosto. — Você entende, claro, que é você quemdeveriaestar fazendoessediscurso,nãoocontrário.Euéquenãotinhafénaminhaherança,semacreditarnaspalavrasdoDruida.Vocêsempreacreditou.

—SeasPedrasnãotivessemfalhadocomigo...—começouWil,melancólico.Amberleergueuamãorapidamente,tapandoabocadorapaz,silenciando-o.— Não tenha tanta certeza de que elas lhe falharam. Pense um pouco no que você estava

tentando fazer com elas. Você queria usá-las como uma arma de destruição. Isso é possível paravocê, Wil? Lembre-se, você é um Curandeiro. Sua conduta de vida é preservar, não destruir. Amagiaélficaéapenasumaextensãodequemausa.TalvezvocênãodevausarasPedrasÉlficasdaformacomotentoufazerquandoencarouoCeifador.

Ojovemrefletiuarespeito.Allanondissera-lhequeastrêsPedrasagiamtransformandoauniãoentrecoração,menteecorponopoderqueformavaamagia.Sealgoestivessefaltando...

—Não.—Sacudiuacabeçaenfaticamente.—Adiferençaéprecisademais.Meuavôacreditavana preservação da vida com tanta força quanto eu, e mesmo assim, usou as Pedras Élficas paradestruir.Eofezsemasdificuldadesquetive.

— Bem, então existe outra possibilidade— continuou ela. — Allanon avisou a você sobre aresistênciaprovocadapelamisturado sanguehumanoaoélfico.Você jápassoupor issoumavez.Talvez isso tenha feito você criar o próprio bloqueio, um bloqueio dentro de sua mente queconvence o seu subconsciente de que o poder das Pedras Élficas foi perdido, quando na verdadenãofoi.Talvezobloqueioquevocêsentiunapassarelatenhasidocriadoporvocêmesmo.

Wilaencarou,sempalavras.Seriapossível?Elesacudiuacabeça.—Nãosei.Nãotenhocomotercerteza.Aconteceurápidodemais.—Entãomeescute.—Amberlemoveu-separamaisperto,aproximandoorostododele.—Não

seapresseemaceitarcomoverdadeoqueéapenasconjectura.VocêusouasPedrasÉlficasumavez.

Convocouopoderdelaseotornouseu.Nãoacreditoqueumdomassimsepercafacilmente.Talvezapenasestejanolugarerrado.Dêumtempoparaprocurá-loantesdeconcluirquenãootemmais.

Eleaolhou,surpreso.—Vocêconfiamaisemmimdoqueeu.Issoémuitoestranho.Vocêmeachavainútilnaviagem

paraonorte,saindodoRefúgioFirme.Lembra-sedisso?Aelfarecuouumpouco.—Euestavaerradaaoacharisso.Dissecoisasquenãodeviaterdito.Euestavacommedo...Poruminstante,pareceuqueela iadizermais,porém,comonasoutrasvezesemqueparecera

prestesaexplicarseumedo,deixouoassuntodelado.Wileraespertoobastanteparaimitá-la.—Bem,vocêestavacertasobreumacoisa—declarouele,tentandomanterotomleve.—Eué

quedeveriaestarfazendoessediscursoparavocê,nãoocontrário.Oolhardelaficoumelancólico.—Entãoselembredefazerissoquandoeuprecisar.Agora,vocêvaidormir?Eleaquiesceu.—Achoquevou.Pelomenosumpouco.Elefoiparafrente,deixandoaelfacolocarobraçonopequenoleme.Deitando-senofundodo

barco, usou o manto como travesseiro e pousou a cabeça, cansado. Pensamentos a respeito dasPedras Élficas giravam, escarnecedores, em sua mente. Fechou os olhos, envolvendo essespensamentos em escuridão.Acredite em si, dissera-lheAllanon. Ele acreditava?Acreditar seria obastante?

Ospensamentosseespalharam,desvanecendo-se.Adormeceu.

Acordou no meio da tarde. Com cãibras e dores, ergueu-se do chão duro da canoa e foi atéAmberle para retomar o leme. Sentia fome e sede, mas não tinham nada para comer ou beber.HaviamperdidotudoaofugirdoPico.

Poucodepois,ocanalcomeçouaseestreitar,eosgalhosdasárvoresdecadaladofecharam-sesobre eles como um toldo. As sombras esticavam-se sobre o rio; a oeste, o sol baixava atrás damuralha da Rocha Esporão, com sua luz dourada tornando-se vermelha com a chegada docrepúsculo.Um trecho comcorredeiras fez a canoa sacudir-se violentamentepelo canal,masWilmanteve a pequena embarcação longe das pedras e no curso até estarem livres. Quando o riocomeçouavirarparaosulemsualongajornadadevoltaàsplaníciesdeCallahorn,ojovemlevouacanoaatéamargemedesembarcaram.

Passaramanoitenabasedeumvelho e gigantesco carvalhoa centenasdemetrosdabeiradorio. Escondendo a canoa nos arbustos do lado damargem, eles reuniram frutas e vegetais para arefeiçãonoturna,eforamembuscadeáguapotável.Nãoencontraramemlugarnenhum,porém,eforamforçadosasecontentarcomacomida.Comeram,conversaramumpoucoedormiram.

Amanhã surgiu brilhante e agradável, eWil e Amberle começaram a caminhada na direçãooeste, rumo à Rocha Esporão. Andavam com energia, apreciando o calor da manhã, comendo,enquanto andavam, o resto das frutas que haviam colhido na noite anterior. As horas passaramrapidamente,eodesconfortoquesentiramaodespertar foidesaparecendoenquantoprosseguiamcomfirmeza.Nomeiodamanhã,descobriramumpequenoriachoecorredeirasqueformavamumlagocujaságuaserampotáveis.Beberamatéseencherem,massemterondecarregar,nãopuderamlevarmaiságuaconsigo.

Conformeodia avançava, asmontanhasdaRochaEsporãoaproximavam-seacimadamuralha

dafloresta,umalinhaacidentadaemaciçadepicosqueseestendiaportodoohorizonteocidental.Apenasparaosul,ondejaziamosalagadiçosimpenetráveisdaFalhadoVéu,nãohaviamontanhas,e ali o céu estava coberto por uma neblina cinzenta e densa que subia do pântano como fumaçaespessa.PelaprimeiravezdesdequedeixaramoPico,Wilcomeçouasepreocuparcomolocalparaonde iam.AdecisãodelesdeseguiroMermidonatéas florestasnabeiradasmontanhaspareceraóbvia.Mas estandoali, ele sepegoupensandocomo sequer conseguiriamatravessar aquelaspicosmonstruosos.Nenhumdeleserafamiliarizadocomaquelacordilheira;nenhumdelessabiasehaviapassos que os levariam com segurança até o outro lado. Sem os caçadores élficos para guiá-los,comoevitariamseperdertotalmente?

Ao pôr do sol, encontravam-se no sopé da Rocha Esporão, olhando para cima, centenas demetros, e vendo um labirinto de picos que assomavam um acima do outro, sem dar sinal depassagemou indíciodeuma folga.O jovemea elfa subiramsaindoda floresta, até alcançaremasencostas mais baixas da montanha mais próxima. Havia amplas pastagens cobertas de jacintosbrilhantesecentáureasvermelhas.Osol jáquasesumiaeelesprocuravamumlugarparaacampar.Logo encontraram um riacho que saía das pedras; acomodaram-se para a noite ao lado de umpequeno lagoemumbosquedepinheiros.Consumiramoutrarefeiçãode frutas frescasevegetais,masWil sentia fomede carne e pão.Comeuo que tinham semmuito interesse.A luanova e umconjunto impressionante de estrelas enchiam o céu. Desejando boa noite um para o outro,enrolaram-seemseusmantosdeviagemefecharamosolhos.

Wilaindapensavaemcomoatravessariamasmontanhas,quandoadormeceu.

Assimqueacordou,haviaumgarotoali,sentado,olhando-o.Amanheciaeosolerguia-seacimadafloresta longínqua num lampejo dourado e nebuloso de luz que espalhava a noite em pedaçosfugitivosdecinza.Nasencostasamplaseabertasdamontanhaqueseerguiaacimadeles,as floressilvestrescomeçavamaseabrireoorvalhobrilhavaúmidonagrama.

Wil piscou, surpreso. Primeiro, achou que seus olhos lhe pregavam uma peça, e esperoupacientemente queo garotodesaparecessede voltana sua imaginação.Mas omenino ficouondeestava,sentadonagrama,depernascruzadas,contemplandoWilemsilêncio.Aquilonãoeraumailusão,concluiu,esoergueu-seemumcotovelo.

—Bomdia—disse.—Bomdia—respondeuomenino,solene.Wil esfregou o sono dos olhos e parou por ummomento para avaliar o garoto. Era um elfo,

bastantepequeno,comocabelobagunçadoe loirocaindoemumrostobastantecomum,comumleve salpicar de sardas.As calças de couro e a túnica estavam apertadas no corpomagro, e tinhaváriossacosebolsaspenduradosnopescoçoenacintura.Eramuitojovem,comcertezamuitomaisnovodoqueWileAmberle.

—Eunãoqueriaacordarvocê—declarouomenino.Wilassentiu.—Vocêestavamuitoquieto.—Eusei.Consigoandarnomeiodefolhassecassemfazerbarulhonenhum.—Mesmo?—Sim.Econsigocaçarumaraposaemsuatocasemassustá-la.Fizissoumavez.—Issoémuitobom.Omeninoofitou,curioso.

—Oquevocêestáfazendoaqui?Wilsorriu,apesardetudo.—Estavameperguntandoamesmacoisasobrevocê.Vocêmoraaqui?Ogarotosacudiuacabeça.—Não.Moromaisparaosul,alémdeIrrybis.NoAbrigodoVento.WilnãofaziaideiadoqueseriaoAbrigodoVento.Atrásdesi,pôdeouvirAmberleacordando.—Elaémuitobonita—declarouomeninoemvozbaixa.—Vocêssãocasados?—Hum,não...apenasviajandojuntos.—Eleconseguiuresponder,apesardasurpresa.—Como

vocêchegouaqui?—Voando—respondeuogaroto.—SouumCavaleirodoVento.Wil o encarou, atônito. O menino olhou para Amberle, que se sentava, ainda enrolada no

manto.—Bomdia,senhorita—cumprimentouele.— Bom dia— respondeu Amberle. Divertimento e estupefaçãomisturavam-se em seus olhos

verdes.—Qualoseunome?—Perk.—MeunomeéAmberle.—Aelfasorriu.—EsteéWil.Omenino levantou-se e aproximou-se para apertar amão deWil. O jovem doVale Sombrio

ficousurpresoaoperceberqueamãodomeninoeracheiadecalos.Omaisjovempareceuperceberissoeapuxourapidamente.NãoaofereceuparaAmberle,esimplesmenteacenoucomacabeça.

—Vocêsqueremdesjejum?—perguntouele.Wildeudeombros—Noquevocêestápensando,Perk?—Leite,nozes,queijoepão.Étudoquetenhocomigo.—Issoseriaótimo.—O jovemsorriu,olhandorapidamenteparaAmberle.Elenão fazia ideia

doquePerkestavafazendoali,masacomidapareciadeliciosa.—Nósficaríamosmuitofelizesemcomercomvocê.

Sentaram-seemumcírculo.Deumdossacosquecarregava,ogarototirouasnozes,oqueijoeopãoqueprometera, assimcomo trêspequenos copos.Encheuos copos como leiteque carregavaemoutrosaco.WileAmberleconsumiramarefeiçãocomapetite.

—Ondevocêconseguiuoleite?—perguntouAmberledepoisdeumtempo.—Cabras— resmungou o garoto de boca cheia.—Umpastormantémumpequeno rebanho

numaravinaaunsquilômetrosdaqui.Ordenheiumahojedemanhã.Curiosa,AmberleencarouWil,quedeudeombros.—ElemedissequeéumCavaleirodoVento.Elevoa.—Naverdade,nãosouumCavaleiro;nãoainda—interrompeuomenino.—Soujovemdemais.

Massereiumdia.Houveummomentodesilêncioconstrangidoenquantoostrêsseencararamsemdizernada.—Vocêsnãofalaramoqueestãofazendoaqui—dissePerkporfim.—Vocêsestãofugindode

algumacoisa?—Porquevocêperguntaisso,Perk?—quissaberAmberlenamesmahora.—Porquevocêsdoisparecemestarfugindodealgumacoisa.Roupassujaserasgadas,nãoestão

carregando armas, nem comida ou cobertores. Não fizeram uma fogueira. E parece que algumacoisaassustouvocês.

—Perk,vocêéumrapazesperto—respondeuWilrápido,decidindocomolidariacomaquilo.

—Vocêprometemantersegredoseeucontarumacoisa?Omeninoassentiu,cheiodeexpectativanorosto.—Prometo.—Ótimo.—Wil se inclinoupara frente, emconfidência.—Essa senhorita,Amberle, émuito

especial.Elaéumaprincesa,netadeEventineElessedil,oReiÉlfico.—ReidosElfosdaTerra—corrigiuPerk.QuandoWilhesitou,confusocomadistinção,Perk

continuou,ansioso:—Vocêsestãoàprocuradealgumtesouro?Ouasenhoritafoienfeitiçada?Elafoiencantada?

—Sim.Não.—Wil parou.No que ele semetera?—Estamos procurando um... talismã, Perk.Somente ela pode usá-lo. Tem um grandemal ameaçando o povo élfico. Apenas o talismã podeprotegercontraessemal,eprecisamosencontrá-lorápido.Vocêestariadispostoanosajudar?

Perkarregalouosolhos,empolgado.—Umaaventura?Umaaventuradeverdade?—Wil,eunãosei...—interrompeuAmberle,franzindoatesta.—Confieemmim,porfavor—Wilergueuasmãosparaacalmá-la,evirou-separaPerk.—Este

éumassuntoperigoso,Perk.Ascoisasqueestãonoscaçandojámataramvárioselfos.Issonãovaiserumabrincadeira.Vocêprecisafazerexatamenteoqueeupedir,equandoeudisserqueacabou,vocêprecisanosdeixarimediatamente.Deacordo?

Omeninoassentiudepressa.—Oquevocêquerqueeufaça?OjovemapontouparaaRochaEsporão.—Queroquevocêmemostreumcaminhoparaatravessarasmontanhas.Vocêconhecealgum?—Claro—Perksoouindignado.—Paraondeéquevocêsestãoindo?Wilhesitou.Nãotinhacertezasequeriaqueomeninosoubesse.—Issoimporta?—perguntouporfim.—Claroque importa—respondeuPerknamesmahora.—Comopossomostraravocêcomo

chegaraondevocêquerirseeunãosouberparaondevocêestáindo?— Isso faz bastante sentido— declarouAmberle, lançando aWil um olhar que dizia que ele

deviaterprevistoaquilo.—Achoquevocêdeviacontaraele,Wil.Ojovemassentiu.—Tudobem.EstamosindoparaoVastoErmo.—Vasto Ermo?— Perk sacudiu a cabeça, solene, o entusiasmo arrefecendo um pouco.—O

VastoErmoéumlugarproibidoparamim.Éperigosodemais.—Nós sabemos— concordouAmberle.—Masnão temos escolha. Precisamos ir até lá.Você

podenosajudar?—Posso,sim—declarouomeninocomfirmeza.—Masvocêsnãopodemirpelasmontanhas.

Issolevariadias.—Bem,senãoformospelasmontanhas,comochegaremoslá?—perguntouWil.—Existeoutra

forma?Perksorriu.—Claro.Podemosvoar.WilolhouparaAmberle,procurandoajuda.—Perk,nósnãopodemos...voardeverdade—disseelagentilmente.—Nóspodemosvoar—insistiuele.—Eudisseavocês,souumCavaleirodoVento;oumelhor,

souquaseum.

Queimaginação,pensouWil.—Olha,Perk,éprecisoterasasparavoarenósnãotemosasas.—Asas?—Omeninopareceuconfuso.Depois,sorriu.—Ah,vocêpensou...Oh,entendi.Não,

não,nósnão.NóstemosGenewen.Aqui,venhamcomigo.Eleselevantou,rápido,esaiudoabrigodospinheiros.Atordoados,WileAmberleoseguiram,

trocandoolhares confusos.Quando estavamalémdas árvores, na encosta descoberta, Perkpegouumabolsinhadecouropenduradaemseupescoçoetirouumpequenoapitodeprata.Colocandooapito nos lábios, ele soprou.Não saiu nenhum som.Wil olhou paraAmberle uma segunda vez esacudiu a cabeça devagar. Aquilo não estava acontecendo como ele pretendera. Perk colocou oapitodepratadevoltanabolsaevirou-separavigiarocéu.Automaticamente,o jovemeaelfaoacompanharam.

De repente, uma grande forma dourada veio da Rocha Esporão, brilhando com força na luzquente da manhã enquanto mergulhava entre as montanhas, na direção deles. Wil e Amberleficaram assustados. Era amaior ave que já tinham visto na vida; uma criatura imensa, com umaenvergaduratotaldequaseunsdezmetros,umacabeçalisadacordofogo,commanchasnegraseumacrista,umbicograndeemganchoegarraspoderosasestendidas.Porum instante,osdois selembraram da coisa preta alada que quase os pegara na fuga pelo Vale do Rhenn, porém logoperceberamquenãosetratavadamesmacriatura.Eladesceunaravinaaunstrêsmetrosdeles,comas asas dobrando-se contra o corpo de penas douradas, a cabeça erguendo-se enquanto seempoleirava.Seugritoagudocortouaserenidadedamanhã,eelabaixouacabeçabruscamentenadireção de Perk.Omenino respondeu com um som breve e estranho antes de se virar para seuscompanheirosespantados.

—EstaéGenewen—anunciouele,contente.Sorriu.—Viram?Eudissequepodíamosvoar.

Ver Genewen fez com queWil e Amberle ficassemmais dispostos a aceitar a história que Perkcomeçaraacontar.

Antesdos temposde JerleShannaraedoadventodaSegundaGuerradasRaças,umapequenacomunidadedeelfosmigraraparaosuldesuaterranatal—porrazõeshaviamuitoesquecidas—eseestabeleceramalémdeIrrybis,numafaixadeflorestamontanhosadesconhecidaeirregular,quecercavao vasto volumede água conhecidopelas raças comoaDivisaAzul.Aqueles elfos eramosancestrais de Perk. Com o passar dos anos, tornaram-se caçadores e pescadores, construindopequenasaldeiasemumasériede falésiasque limitavamaDivisaAzulaoestedeMyrian.Oselfosrapidamentedescobriramquedividiamospenhascoscomumviveirodeimensasavescaçadorasquefaziamninhos emcavernas sobreas águasdaDivisa.Chamaramospássarosde rocaspor causadeumaespécielendáriadovelhomundo.Asrocaseoselfosmantiveramumadistânciarespeitávelunsdosoutrosnocomeço,mascomotempoficouclaroparaoselfosqueospássarosgigantesseriamúteis para os homens se pudessem ser treinados para servir como transporte. Os elfos eraminteligentes e determinados, e se dedicaram a conseguir isso. Depois de inúmeros fracassos,conseguiram descobrir uma forma de se comunicar com os pássaros, o que, por sua vez, levou acolocaremrédeasemváriosdospássarosjovens,eporfimadominaremtodooviveiro.Ospássarosviraramtransportesparaoselfos,quepassaramasercapazesdeexpandirseusterritóriosdecaçaepesca. As aves também tornaram-se protetores, treinados para lutar contra os inimigos dacomunidade.Oselfos,porsuavez,mantinhamasrocasasalvodascriaturasquetentavaminvadiroviveiro ou se apropriar dos territórios onde se alimentavam. Aprenderam a cuidar dos grandes

pássaros, tratar suasdoenças e ferimentos, curá-los emantê-losbem.Comapassagemdosanos, aligaçãotornou-semaisforte.AcomunidadequecompartilhavamfoibatizadaAbrigodoVento.Erapequena e estava isolada em um ermo pouco habitado por homens e que raramente se deparavacom viajantes. Todo o contato entre o Abrigo do Vento e as comunidades élficas maiores queficavamaonortedoVastoErmocessara faziamuito tempo.Os elfosdeAbrigodoVentohaviamconstituído seu próprio governo e, apesar de reconhecerem a soberania dos Reis Élficos deArborlonsobreamaioriadoselfosdasTerrasdosElfos,consideravam-seumpovoaparte.Assim,passaram a se referir a simesmos como elfos do céu e ao restante dos elfos das Terras doOestecomoelfosdaterra.

Perk era filho e neto deCavaleiros doVento.OsCavaleiros eramos homens que treinavam emontavamasrocas,oshomensquelideravamaprocuraporcomidaeadefesadoAbrigodoVento.HaviaoutrasdesignaçõesparaoshomensemulheresdoAbrigo,masserumCavaleirodoVentoeraamaiscobiçadadelas.Apenaselestinhamcontrolesobreasrocas.Somenteelestinhamopoderdevoar,de atravessar as vias aéreasdeumcantoaoutro.OCavaleirodoVento eraumhomemquepossuíaahonraeaconfiançade seupovo,quepassavaavida servindo-oeque seria reconhecidoparasemprecomoumsímbolodeseuestilodevida.

Perk estava no segundo ano de seu treinamento para se tornar um Cavaleiro do Vento. AseleçãodequemsetornariaCavaleirodoVentoerafeitalogocedo,eotreinamentocontinuavaatéomeninoalcançaramaturidade.Muitasvezes,aescolhaerapraticamentepredestinada,comonocasodePerk,sendotantoseupaiquantoseuavôCavaleirosdoVento;esperava-sequeeleseguisseseus passos.Genewen era amontaria de seu avô, que, no entanto, estava velho demais para voarregularmente a serviço do Abrigo do Vento. Quando Perk atingisse amaturidade, Genewen lhepertenceria.As rocasviviammuito: suavidaestendia-seporquatro, atémesmocincogeraçõesdeelfos. Assim, uma roca podia servir a muitos mestres durante a vida. Genewen tinha servidoprimeirocomoo transportedoavôdePerk,masse tivesseboasaúde,umdia serviriaao filhoounetodePerktambém.

Naquelemomento,porém,aaveserviaaPerkenquantoomeninotreinavasobasupervisãodeseuavôparatornar-seumCavaleiro.ForaporcausadeumexercícioqueomeninotinhaidoatéaRochaEsporãoeencontradoWileAmberle.SeuprogressoexigiaqueelefizessevooscadavezmaisdistantesdoAbrigodoVento.Acadavoo,davam-lhedeterminadas tarefasparacumprir e regrasparaseguir.Naquelasaídaemparticular,eleprecisava ficarafastadoporumperíododesetedias,carregando consigo apenas uma pequena ração de pão e queijo e um frasco de água. Deveriaencontrarmaiscomidaeáguasozinho,explorarcertospedaçosdaregiãodamontanhaquecercavaoVastoErmoedepoisdescrevê-loscomexatidãoquandoretornasse.EstavaproibidodeiraoVastoErmo,assimcomotodososqueaindaseencontravamemtreinamento.Elepodiadescernaregiãoao redor do Vasto Ermo, mas não adentrá-la. E deveria evitar qualquer contato com seushabitantes.

Asinstruçõeserambemexplícitas,ePerknãoasquestionou.Porém,namanhãdaquelesegundodia,quandovoavaparaosulseguindoabordalestedaRochaEsporão,avistaraWileAmberle,duasformasencolhidas, adormecidasnumbosquedepinheiros logoabaixo.Depoisdevoarbaixoparaolharmaisdeperto,viu-seemumdilema.Quemeramaquelesviajantes,elfoscomoele,umcasaldejovens, claramente vindos de outro lugar?O que faziam naquela região inóspita, com tão poucoequipamento?Sóprecisoudeum instantede reflexãopara tomarumadecisão.Tinhamordenadoque evitasse contato com os habitantes do Vasto Ermo, mas não haviam falado nada sobre tercontato com outros — um lapso por parte de seu avô, talvez, porém era um fato. Apesar da

maturidadeecautelainstiladasemPerkpelasexigênciasdeseutreinamento,aindaeraummenino,como espírito aventureirodeumacriança. Seu avôdeixara aporta entreabertadiantedele e eraapenasnaturalqueopequenoquisesse empurrá-la e terminarde abri-la.Afinal, apesarde serummeninoobediente,tambémeracurioso.Àsvezes,oprimeirodavalugaraosegundo.

FelizmenteparaWileAmberle,aquelaforaumadessasvezes.

Perkterminousuahistória,erespondeupacientementeàsperguntasporalgunsmomentos.Porém,sua ansiedade para começar uma nova aventura finalmente o superou. Com uma expressão deexpectativa inconfundível, perguntou aos novos companheiros se estavam prontos para partir.Genewen, apesar de não estar acostumada a carregar mais do que um passageiro, não teriadificuldades.AtravessariaasmontanhasdaRochaEsporãoantesqueelespercebessem.

Wil e Amberle olharam, incertos, para o pássaro gigante. Se houvesse outro jeito, teriamescolhidodebomgrado.Sóopensamentodevoarjáosdeixavacomoestômagoembrulhado.Masnão havia alternativa, e omenino estava com asmãos nos quadris, esperando que se decidissem.Dando de ombros para Amberle, Wil anunciou que estavam prontos. Afinal, se um simplesgarotinhoconseguiafazeraquilo,elestambémconseguiriam.

ComPerkà frente, foramatéGenewen.Opássarogigante estava equipadocomuma rédeadecouro presa firmemente ao seu corpo. Perkmostrou estribos que permitiriam que subissem pelarédea até o centro do dorso emplumado da roca. Ele segurouGenewen enquanto os dois faziamisso,depoisencaixouasbotasdelesnossuportesparaospés,colocouasmãosdelesemapoiosdecorda, e, comoumaprecauçãoextra, amarrou-osna rédeacomumacordade segurança.Daquelejeito, informou-os, se o vento os soprasse e os soltasse da roca, não cairiam. Tais garantias nãoforammuito reconfortantesparaosdois, que já estavambastante assustados.Perkdeu a cadaumdelesumpedacinhodeumaraizmarrom,quedeviammastigareengolir.Aquelaraiz,explicouele,aliviariaodesconfortodevoar.Osdoismastigaram-na,apressados.

Quandoestavam seguros, omenino tirouum longo chicotede courodedebaixodas tirasdasrédeas e bateu em Genewen. Com um grito agudo, a roca estendeu as grandes asas e subiurapidamentenocéudamanhã.Petrificados,WileAmberleviramochãoseafastardeles.Asárvoresdo bosque de pinheiro encolhiam conforme Genewen voava em círculos por cima da ravina,pegandoascorrentesdeventoecurvando-seligeiroparaoeste,nadireçãodospicosdacordilheira.Para o jovem doVale Sombrio e amenina élfica, a sensação era indescritível. Primeiro, foi umasensaçãoentreenjooeempolgação,eapenasosumodaestranharaiz impediuqueseusestômagosrevirassemporcompleto.Entãooenjoodiminuiueosentimentodeeuforiacomeçouaaumentar,varrendo-os enquantoobservavamoshorizontesda terra embaixo crescereme estenderem-se, umpanoramaespetaculardeflorestas,pântanos,montanhaserios.Eraumavisãoincrível.Diantedeles,ospicosnegrosdaRochaEsporãoerguiam-sedaterracomodentes irregulares,ea fina faixaazuldoMermidon retorcia-se no caminho para além da rocha; ao norte, via-se a mancha negra dasMatas Foscas, encaixada no verde das florestas das Terras do Oeste; a leste, e já bem distantes,estavam as torres gêmeas do Pico; ao sul, a névoa da Falha do Véu se acomodava no limite deIrrybis. Estava tudo ali, toda a terra espalhada embaixo deles como se estivesse contida numvaleescondido e eles a observassem do alto de umamontanha, tudo revelado pelo sol damanhã quequeimavaemumcéuazul,brilhanteesemnuvens.

Genewensubiuaumaalturadeváriascentenasdemetros,batendoasasasnadireçãodaRochaEsporão,manobrandopelolabirintodemontanhas,deslizandoagilmenteporfendaserachaduras,

mergulhando em vales para depois se erguer a cada nova linha da cordilheira.Wil eAmberle seseguravamnasrédeascomumaperto firme,porémaviagemestavasendosuave;ograndepássarorespondiaaosmovimentosdomeninoqueaguiava,suasmãosepernascutucandoeguiandocomuma série demovimentos familiares para a roca.O vento batia sobre eles em rajadas curtas,masestava suave e quente naquele dia de verão, soprado suavemente do sul. Perk olhou rapidamentesobreoombroparaseusnovoscompanheiros,umsorrisointensodividindoseurostosardento.Ossorrisoscomosquaisretribuíramforammenosentusiasmados.

Voaram por quase uma hora, entrando no meio das montanhas até a floresta desaparecercompletamentedevista.Detemposemtempos,podiamveranévoadeFalhadoVéuaparecerpelosespaçosentreospicosaosul,cinzaehostil;depois,atéaquilosumiu.Asmontanhassefecharamaoredordeles, torresmaciçasdepedraseergueramentreelesea luzdosol,deixando-osnasombra.Wil se viu pensando momentaneamente em como teria sido para Amberle e ele caso tivessemtentado atravessar aquela cordilheira ameaçadora a pé. Era improvável que tivessem conseguido,principalmentesemaajudadoscaçadoresélficosassassinados.Indagou-seseosdemôniosaindaosrastreavam. Sem dúvidas que sim, concluiu, mas teve alguma satisfação por saber que mesmo oCeifador, se tivessedealgumaformaconseguidosobreviveraocolapsodapassarelanoPico, teriaachadoimpossívelsegui-los.

Umpoucodepois,PerkguiouGenewenparabaixo,paraumacolinaaltaesemárvorescobertacomgramaaltaefloressilvestresqueficavanabeiradeumlagodemontanha.Arocaacomodou-sesuavementenaterraeseuspassageirosdesembarcaram.Perkdesceuagilmentedascostasdopássarogigante;WileAmberleestavamdurosedesajeitados,eseusrostosmostravamseualívio.

Descansaram na falésia por meia hora, depois subiram de volta em Genewen e começaram aviajardenovo,voandoparaoesteentreospicosimensos.Aterrissarampormaisduasvezesduranteamanhã, para descansarem e descansarGenewen, daí continuaram.Todas as vezes, Perk ofereciacomida e bebida a seus companheiros, e eles sempre recusavam. Só conseguiam aceitarmais umpedaço da estranha raiz. Perk oferecia sem comentar. Fora assim para ele também quando voarapelaprimeiravez.

No fimdamanhã,chegaramao limite lestedoVastoErmo.DecimadeGenewen,podiamvertodoovaleclaramente,umemaranhadodeflorestacercadopelasmontanhasdaRochaEsporãoeIrrybis, e pela ampla e nebulosa Falha do Véu. Era uma extensão de floresta ameaçadora,muitodensa,umaconfusãodedepressõesesulcos,sarapintadadealagadiçoseunspoucospicossolitáriosque surgiam de entre as árvores como braços estendidos. Não havia sinal de habitações, fossemaldeias ou moradias isoladas, nem de campos cultivados ou gado pastando. Todo o vale eraselvagem,sombrioehostil.WileAmberleolhavam-nofixamente,apreensivos.

Momentosdepois,PerkguiouGenewendevoltaparaasombradasmontanhaseoVastoErmodesapareceuatrásdospicos.Voaramsempararatépoucodepoisdomeio-dia,quandoPerkvirouGenewenparaosulnovamente.Emumarcolentoegradual,arocapassouporumafendaestreitanospicos.Àfrentedeles,oVastoErmosurgiudenovo.Voaramnasuadireção,mergulhandoporumaencostaacidentadacujaextremidademaisbaixadesciaatéovale.Nofimdadescida,Genewenvirouparaadireita,seguindoparaaencostaamplanabasedomontequetinhavistaparaoVastoErmo.Gruposespalhadosdeárvorespontilhavamaencosta,ePerkfezGenewenparardebaixodacoberturadeabetos.

Wil eAmberledesceramcomcuidadodas costasda roca, esfregandoosmúsculosquehaviamficado enrijecidos e doloridos com a longa viagem. Depois de dar uma ordem rápida paraGenewen,Perkosseguiu,orostocoradoeempolgado.

—Viram?Conseguimos!—Elesorriadeorelhaaorelha.—Sim,conseguimos—Wilsorriumelancólico,esfregandoascostas.—Oquevamosfazeragora?—omeninoquissaberimediatamente.Wilendireitou-secomumacareta.—Vocênãovaifazermaisnada,Perk.Aquiéofimdocaminhoparavocê.—Maseuqueroajudar—insistiuPerk.Amberleaproximou-seecolocouumbraçoaoredordomenino.—Vocêajudou,Perk.Nósnãoteríamoschegadotãolongesemvocê.—Maseuqueroir...—Não,Perk—Amberleinterrompeu-onamesmahora.—Oquenósprecisamosfazeragoraé

perigosodemaisparaenvolvervocê.WileeuprecisamosiratéVastoErmo.Vocêmesmodissequeestá proibido de ir lá. Então você precisa nos deixar agora. Lembre-se, você prometeu aWil quefariaissoquandopedíssemos.

Omeninoassentiu,entristecido.—Nãoestoucommedo—resmungouele.—Eusei.—Aelfasorriu.—Achoquenãoexistemmuitascoisascapazesdeassustarvocê.Perkanimou-seumpoucocomoelogio,eumbrevesorrisoiluminouseurosto.—Hámaisumacoisaquevocêpodefazerpornós.—Wilcolocouamãonoombrodele.—Nós

nãosabemosmuitosobreoVastoErmo.Vocêpodenosfalarsobreoqueencontraremoslá?—Monstros—respondeuomeninosemhesitação.—Monstros?—Detodosostipos.Ebruxastambém,segundomeuavô.Ojovemnãosabiaseacreditavaounão.Afinal,oavôestavatentandomanterogarotoforado

VastoErmoeaqueleeraotipodeavisoqueseesperariaquedesseaomenino.—VocêjáouviufalardeumlugarchamadoSepulcro?—perguntouporimpulso.Perksacudiuacabeçanegativamente.—Acheimesmoquenão.Monstrosebruxas,hein?Existealgumaestrada?Omeninoaquiesceu.—Voumostraravocês.Eleoslevoudebaixodosabetosatéumapequenaelevaçãodeondepodiamenxergarovale.—Vê aquilo?—perguntou, indicandoumamassade árvores caídasnabaseda encosta.Wil e

Amberle olharam para baixo até verem para onde ele apontava. — Ali tem uma estrada, alémdaquelasárvores,que levaatéaaldeiadoCurralSombrio.TodasasestradasdeVastoErmolevampara lá. Vocês não conseguem ver nada daqui, mas está lá, vários quilômetros para dentro dafloresta.Meu avômediz que aquele lugar é ruim, que os habitantes dali são ladrões e assassinos.Mesmoassim,vocêstalvezencontremalguémláparaguiarvocês.

—Talvez.—Wilsorriuagradecido.Aomenos,ladrõeseassassinoserampreferíveisamonstrosebruxas, pensou consigo. Mesmo assim, não faria mal ter cuidado. Mesmo se todos os ladrões,assassinos,bruxasemonstrosfossemimaginários,haveriademôniosprocurando-os,talvezmesmojáosesperando.

Perkestavaimersoemreflexão.Depoisdeumtempo,olhou-os.—OquevocêsvãofazerquandoencontraremotaldoSepulcro?—perguntou.Wilhesitou.—Bem,Perk,quandoencontrarmosoSepulcro, encontraremoso talismãdeque falei.Depois

poderemosvoltarparaArborlon.

Orostodomeninoseiluminou.—Entãoháalgomaisqueeupossofazer—declarou,ansioso.Pegouapequenabolsapenduradanopescoçoetirouoapitoprateado,entregando-oaojovem

doValeSombrio.—Perk,oque...?—Wilcomeçouafalarquandooapitofoijogadoemsuamão.—TenhomaiscincodiasantesdevoltarparaoAbrigodoVento.—Omeninoointerrompeu

depressa. — A cada dia, voarei sobre o vale ao meio-dia. Se vocês precisarem de mim, é sósinalizaremcomoapitoeeuvirei.Osomnãopodeserouvidopeloshumanos,apenasporrocas.Sevocêencontraro talismãnospróximoscincodias,Geneweneeu iremos levá-losaonorte,paraasuaterra...

—Perk,achoquenão...—Amberlecomeçouarecusar,sacudindoacabeçalentamente.—Espereumpouco—interrompeuWil.—SeGenewenpudernoslevarparaonortedenovo,

economizaremos dias. Evitaremos toda a região pela qual tivemos de viajar até chegar aqui.Amberle,nóstemosquevoltaromaisrápidopossível,vocêsabedisso.

Elevirou-serapidamenteparaPerk.—Genewenpodefazerumaviagemdessas?Evocê?Omeninoassentiu,confiante.—MaselejádissequeoVastoErmoéproibidoparaele—reforçouAmberle.—Comopoderá

aterrissarlá?Perkrefletiuarespeito.—Bem,seeuabaixarGenewensóotemponecessárioparapegarvocês,nãolevariamaisdoque

uminstante.—Nãogosteinemumpoucodessa ideia—declarouAmberle, fechandoacaraparaWil.—É

muitoperigosoparaPerk,equebraaconfiançaquedepositaramnele.—Euqueroajudar—insistiuomenino.—Alémdisso,vocêmecontouqueissoéimportante.Ele parecia tão determinado que por ummomento Amberle não conseguiu pensar em outro

argumento.Wilaproveitouessaoportunidadeparaprosseguir.—Olha,porquenãofazemosumacordo?Voufazerumapromessa.Setiveralgumperigopara

Perk,nãoireichamá-loemhipótesealguma.Certo?—MasWil...—começouomenino.— E Perk concordará que no fim de cinco dias ele retornará para o Abrigo do Vento como

prometeuaoavô, independentementedeeutê-lochamadoounão—concluiuo jovem,cortandoasobjeçõesquePerkestavaprestesaapresentar.

Amberlepensouporummomentoeassentiu,relutante.—Tudobem.Masvoucobraressapromessa,Wil.Osolhosdelesseencontraram.—Então estamos de acordo.—Ele virou-se para omenino.—Nós temos que ir agora, Perk.

Devemosmuitoavocê.Elepegouamãoásperadoelfoeaapertoucomforça.—Adeus—disseAmberle,inclinando-separabeijá-lodelevenabochecha.Perkenrubesceu,baixandoosolhos.—Adeus,Amberle.Boasorte.Com um aceno final, o jovem e a elfa viraram-se e começaram a descer a longa encosta em

direçãoàflorestaselvagem.Perkobservou-osatésumiremdevista.

CapítuloXXVI

No fimda tardedo segundodia apósapartidadeWil eAmberle comsuaescoltade caçadoresélficos, Eventine Elessedil estava sentado sozinho em seu escritório, com mapas e gráficosespalhadosnaescrivaninhadetrabalhodiantedesi,acabeçainclinadaemconcentração.Láfora,achuva continuava a cair em camadas cinzentas e contínuas, assim como caíra nos dois diasanteriores, encharcando todas as florestas élficas. O crepúsculo já começava a surgir, com suasombraestendendo-selongaeescuraatravésdascortinasdasjanelasdoladoopostodasala.

Manxjaziaenroladonospésdeseumestre,comacabeçagrisalhadescansandoconfortavelmentenaspatasdianteiras,respirandoprofundaeregularmente.

OvelhoReiergueuacabeçadotrabalho,esfregandoosolhosavermelhadosdefadiga.Eleolhoudistraidamente pela sala e afastou a cadeira da escrivaninha. Allanon já deveria estar ali, pensouansioso.Haviamuitoaserfeitoainda,muitacoisaquenãopoderiaserfeitasemaajudadoDruida.Eventinenãotinha ideiadeondeohomenzarrãoforadessavez;elepartiranaquelamanhãcedoeninguémoviradesdeentão.

ORei ficouolhandoachuvado ladodefora.Portrêsdias, trabalharacomoDruidaecomosmembrosde seuConselhopreparandoasdefesasdas terras élficas—umadefesaque ele sabia sernecessária.O tempo escorria por entre seus dedos.A Ellcrys continuava a decair e a Proibição aenfraquecer.Acadadiaquepassava,oReiesperavaanotíciadequeamboshaviamdesmoronado,queosdemôniosaprisionadoshaviamselibertadoequeainvasãodasTerrasdoOestecomeçara.Oexército élfico estava mobilizado e pronto: lanceiros, espadachins, arqueiros e alabardeiros;infantaria e cavalaria; Guarda da Casa e Patrulha Negra; os regulares e os reservistas; soldadosélficosdetodososcantos.Ochamadoforafeito,etodososqueeramcapazestinhamvindoservir,deixandoseuslaresefamíliaseinundandoacidadeparaseremprovidosdearmaseequipamentos.Aindaassim,oRei sabiaquemesmoavontade férreado exército élficonão seriaobastanteparasuportar um ataque da horda demoníaca completa, assim que ela se libertasse e se agrupasse emumaunidade coesa. Sabia disso porqueAllanondissera que assim seria, e Eventine sabia que nãodeveria questionar o Druida quando este fazia um pronunciamento tão sério quanto esse. Osdemônioseramfisicamentemaisfortesdoqueoselfos;estavamemmaiornúmero.Eramcriaturasselvagenseenlouquecidasguiadaspeloódioquecomeçaranodiaemqueforambanidasdaterra,eo focavam totalmente no povo responsável por aquela expulsão. Por séculos, não houvera maisnada.Enaquelemomentopoderiamdarvazãoàqueleódio.Eventinenãoalimentavailusões.Seoselfosnãorecebessemajudadealgumlugar,osdemôniosiriamdestruí-los.

Não era bom depender somente de Amberle e da semente da Ellcrys. E embora a ideia fossedolorosa, Eventine sabia que precisava aceitar o fato que podia nuncamais ver a neta outra vez.MesmoantesdeelaretornaraArborlon,oReienviaramensageirosparaasoutrasraças,pedindoparaque ajudassemos elfos contra aquelemal que ameaçava aquela terra—ummal quepor fimpoderia consumir a todos. Osmensageiros tinham partido faziamais de uma semana; até então,nenhumretornara.Aindaeracedodemais, claro,para se ter respostadealgumadasoutras raças,poisatéCallahornficavaaváriosdiasdeviagem.Mesmoassim,duvidavaqueviriammuitosajudá-

los.Certamenteosanõesviriam,comosemprefizeram.Osanõeseoselfoshaviamenfrentadojuntos

todos os inimigos que os povos livres das Quatro Terras encararam desde o tempo do PrimeiroConselhodosDruidas.Porém,osanões teriamdepercorrer todoocaminhodesdeas florestasdeAnar.Eteriamdevirapé,poisnãoeramcavaleiros.Eventinesacudiuacabeça.Elesviriamomaisrápidoquepudessem—talvez,noentanto,nãofosserápidoobastanteparasalvaroselfos.

HaviaCallahorn,claro,masnãoeraaantigaCallahorn,aCallahorndeBalinor.SeBalinoraindaestivesse vivo, ou se os Buckhannahs ainda governassem, a Legião da Fronteira marchariaimediatamente. Mas Balinor estava morto, o último dos Buckhannahs, e o atual governante deCallahorn,umprimodistantequeascenderaaotronomaisporacasodoqueporaclamação,eraumhomemindecisoecautelosodemais,queprovavelmenteachariamaisconvenienteesquecerqueoselfos haviam ajudado Callahorn na última vez em que foram chamados. De qualquer modo, osconselhosunidosdeTyrsis,VarfleeteKern,reconstruídosdepoisdesuadestruiçãocinquentaanosantes, tinhammais poder do que oRei.Demorariam a agir,mesmo se omensageiro deEventineconseguisse passar a urgência da situação, pois não tinham um líder forte que os unisse em suadecisão.Discutiriam,eenquantoestivessemdiscutindo,aLegiãodaFronteiraficariaparada.

Ironicamente,eraadesconfiançadelesemrelaçãoaosdemaissulistas—e,principalmente,emrelaçãoàFederação—queprovavelmenteatrasariaumatomadadedecisãoporpartedoshomensdeCallahorn.DepoisdadestruiçãodoLordeFeiticeiroedaderrotadeseusexércitos,asmaiorescidades das Terras do Sul perceberam, tarde demais, a extensão da ameaça que fora o LordeSombrio;agindocomumapressanascidadomedo,formaramumaaliançaentresi,umaaliançaquecomeçou com uma organização mal ajambrada de territórios que compartilhavam fronteiras etemores, rapidamente virando a Federação altamente estruturada. A Federação era a primeiraformacoesadegovernoquearaçahumanaconheceraemmaisdemilanos.SeuobjetivodeclaradoeraaunificaçãototaldasTerrasdoSuledoshumanossobumúnicogoverno.Governoque,claro,seria a Federação. Para isso, começaram um esforço concentrado para unir as demais cidades eprovíncias.Emquatrodécadasdesuaformação,aFederaçãodominaraquasetodasasTerrasdoSul.Das principais cidades, apenas as de Callahorn resistiram à unificação sugerida. Essa decisãoresultara em uma tensão nada pequena entre os dois governos — especialmente conforme aFederaçãocontinuavafirmeemseuavançoparaonorte,nadireçãodasfronteirasdeCallahorn.

Eventinecruzouosbraços, franzindoa testa.EnviaraummensageiroparaaFederação,porémnão tinha esperanças de que a ajuda estivesse a caminho. A Federaçãomostrara pouco interessepelosassuntosdasoutrasraçaseeraduvidososeelesveriamumainvasãodasTerrasdoOestepordemônios como algo com que precisassem se preocupar.Na verdade, o Rei tinha dúvidas se elessequer acreditariamna possibilidade de uma invasão assim.Os homens do interior dasTerras doSul sabiam pouco sobre a magia que preocupava as outras terras desde o tempo do PrimeiroConselho Druida; sua existência era fechada e introvertida, e naquela nova expansão ainda nãohaviam se deparado com asmuitas realidades desagradáveis que estavam alémde sua experiêncialimitada.

Novamente oRei sacudiu a cabeça.Não, as cidades da Federaçãonão ajudariam.Assim comoaconteceraquandoforamavisadosarespeitodoLordeFeiticeiro,nãoacreditariam.

Nenhummensageiro fora enviadopara os gnomos.Não faria diferença.Os gnomos eramumaraçatribal.Nãorespondiamaumúnicogovernanteouaumúnicoconselho.Seuschefesdeguerrae videntes eram seus líderes, e havia diferentes chefes de guerra e videntes para cada tribo, todasconstantemente brigando umas com as outras. Amargurados e insatisfeitos desde sua derrota em

Tyrsis, os gnomosnãohaviam semetidonos assuntos das outras raças nos cinquenta anos que sepassaram.Erapoucointeligenteesperarqueelesfossemescolheraquelemomentoparaisso.

Restavam os trolls. Os trolls também eram uma raça tribal, porém, desde a conclusão daabortadaTerceiraGuerradasRaças,haviamcomeçadoaseunirnasvastasextensõesdasTerrasdoNorte, tribos juntando-se em determinados territórios sobre um conselho de líderes. A maispróxima,eumadasmaioresdessascomunidades,ficavanoTerritóriodeKershalt,noslimitesnortedaTerradosElfos.OKershalteraocupadoprincipalmenteportrollsdepedra,apesardealgumasdastribosmenorestambémresidirememalgumaspartesdaquelaregião.Tradicionalmente,trollseelfoseraminimigos;nasúltimasduasGuerrasdasRaças,haviamlutadoamargamenteunscontraosoutros.Mas comaquedadoLordeFeiticeiro, a inimizadeentre asduas raçasdiminuíramuito, enos últimos cinquenta anos haviam vivido numa coexistência relativamente pacífica. As relaçõesentreArborlon e oKershalt haviam sidoparticularmente boas.Haviam começado a negociar e afazer planos para uma troca de embaixadas. Então havia uma chance de os trolls de Kershaltconcordarememajudá-los.

O velho Rei repassou seus pensamentos e deu um sorriso triste. Uma pequena chance,reconheceu ele. Mas sabia que não podia se dar ao luxo de perder nenhuma chance. Os elfosprecisariamdequemestivessedispostoaajudar,casoquisessemsobreviver.

Levantou-se lentamente, espreguiçou-se e olhou para omonte demapas espalhados namesa.CadaumrepresentavaumsetordiferentedasTerrasdoOeste,mapeandotodaaregiãoconhecidaquecompunhaaTerradosElfoseosterritóriosaoseuredor.Eventineosestudaraatéopontodeachar-se capazde retraçar suas configurações dormindo.Osdemônios surgiriam emumdaquelessetores; as defesas élficas deveriam ser estabelecidas. Mas em qual? Onde a Proibição ruiriaprimeiro?Ondecomeçariaainvasão?

OReideixou seusolhospassearemdeummapa aoutro.Allanonprometeradescobrironde afalhaaconteceria,eoexércitoélficoaguardavaestainformaçãovital.Atélá...

Suspirou e foi até as janelas-portas que se abriam para o terreno da casa senhorial. Enquantoobservavaachegadadocrepúsculo,avistouAndersubindopelocaminho,comacabeça inclinadaparaseprotegerdachuvaeosbraçoscheiosdosregistrosdastropaselistasdesuprimentosqueomandaram recolher. A expressão no rosto do velho Rei suavizou-se. Ander fora de uma ajudainestimável naqueles últimos dias. Ao seu filho mais novo coubera a tarefa tediosa, emboranecessária,derecolherinformações—umtrabalhoingrato,namelhordashipóteses,eumtrabalhoqueArioncomcertezateriadesprezado.MasAnderassumiraatarefasemumareclamaçãosequer.OReisacudiuacabeça.Estranho,masapesardeArionseroPríncipeHerdeirodoselfoseomaispróximodosseusfilhos,porvezes,naquelesúltimosdias,eleviamaisdesiemAnder.

Deixou seu olhar desviar-se para o céu escuro da noite e subitamente ponderou seAnder emalgummomentosentiraomesmo.

Ocansaçomarcavao rostodeAnderElessedil aoempurrarasportasdacasa senhorial, enquantotiravaomantoensopadode chuvae seguiao corredor escuroque levavaaoescritóriode seupaicomosregistrosdastropaseaslistasdesuprimentosaninhadasdeformaprotetoranosbraços.Seudiaforadifícilearecusacontínuadeseuirmãoemfalarcomelenãoajudaraemnada.Foraassimdesdequeele tomarapartidodeAmberlenoAltoConselho.Oquesempreforaumamploespaçoentreelesseampliaraparaumabismoqueelesequerconseguiriacomeçaratranspor.Oencontrocomseu irmãonaqueledia ilustrarao tamanhodaquele abismo.Enviadopelopaipara coletar as

informaçõesquecarregava,foraatéArionpedirajuda,poiseraArionoresponsávelpormobilizareequiparoexércitoélfico.Arionpoderiaterreduzidoseutrabalhoemhoras,noentantoserecusarasequer a encontrá-lo, enviando umoficial novato em seu lugar emantendo-se convenientementeausenteodia inteiro.Aquiloenfurecera tantoAnderqueelequasedecidira forçarumconfronto.Porém, assimpoderia acabar envolvendo seu pai, e o velhoRei não precisava demais problemasparaocuparseutempo.EntãoAnderficaraquieto.Enquantoashordasdemoníacasameaçassemsuaterra,osproblemaspessoaisdeveriamsercolocadosdelado.

Sacudiuacabeça.Essaracionalização,noentanto,nãoofaziasesentirmelhorquantoaomodocomoascoisasestavamacontecendoentreArioneele.

Alcançouaportadoescritório,empurrandocomabotaparaabri-la,entroueafechoucomopé.Conseguiudarumsorrisoencorajadorparaopai,que seaproximouparaaliviá-lodas listas etabelas.Entãoafundou-se,cansado,emumacadeiravazia.

—Issoétudo—disseele.—Inventariado,registradoeorganizado.Eventinecolocouomaterialtrazidopelofilhonaescrivaninhacomosmapasevirou-se.—Vocêparececansado.Anderlevantou-seeseespreguiçou.—Estou...Com uma rajada de vento e chuva, as janelas se abriram de repente. Pai e filho voltaram-se

quando mapas e tabelas espalharam-se pelo chão e as lamparinas piscaram. Allanon estavaemoldurado na entrada, com as vestes negras brilhando úmidas na penumbra, deixando águaescorrernochãodoescritório.Suas feiçõesangulosasestavamabatidas,a linha finadabocadura.Asmãosseguravamcomforçaumcajadofinodemadeiracomrevestimentoprateado.

Por ummomento, os olhos deAnder encontraram-se com os doDruida, e o Príncipe Élficosentiu seu sangue congelar. Havia algo de terrível na expressão de Allanon, lampejos ferozes dedeterminação,poderemorte.

O Druida deu meia-volta e bateu as janelas, fechando-as, trancando de novo a trava queconseguira abrir pelo lado de fora sabe-se lá como. Quando se virou de novo, Ander viu comclarezaocajadoprateadoeseurostoficoumortalmentepálido.

—Allanon,oquevocêfez?!—Aspalavrasfugiramantesqueconseguissepensar.Seupaitambémviuesoltouumsussurrohorrorizado.—AEllcrys!Druida,vocêcortouumgalhodaárvoreviva!—Não,Eventine—retrucouohomemalto,calmamente.—Nãocortei.Nãoferiaquelaqueéa

vidadestaterra.Jamaisfariaisso.—Masocajado...—oRei começoua falar, estendendoasmãoscomose tentassemtocaralgo

quequeimava.—Nãofoicortado—repetiuooutro.—Olhemaisdepertoagora.Eleestendeuocajadoeoviroulentamenteparaquepudesseminspecioná-lo.Andereseupaise

aproximaram. As pontas do cajado eram lisas e arredondadas. Não havia marcas de corte porlâmina.Mesmoosnósquetornavamsuasuperfícieásperaestavamcuradosesemmarcas.

Eventinepareciasurpreso.—Entãocomo...?—Ocajadomefoidado,ReiÉlfico;dadoporela,dadoparaquepossaserutilizadocontraos

inimigosqueameaçamseupovoesuaterra.—AvozdoDruidaestavatãofriaquepareciacongelaroardapequenasala.—Aquitemmagiaquedaráforçasaoexércitoélfico,poderparaseoporaomal que vive dentro das hordas de demônios. Este cajado será o nosso talismã, amão direita da

Ellcrys,queestaráláquandoosexércitosseencontraremparaabatalha.Deu um passo à frente, ainda apertando o cajado nasmãos, os olhos escuros e duros sobre a

sombradesuafronte.—Mais cedonestamanhã, fui até ela, sozinho,procurandoumaarmacomaqualpudéssemos

enfrentarnossoinimigo.Conseguiaudiênciacomela,quemefaloucomasimagensquelheservemcomo palavras, perguntando por que eu tinha ido até lá. Contei a ela que os elfos não tinhamnenhumamagiaalémdaminhaparaconteropoderdosdemônios;disseaelaqueeutemiaqueissonão fosse o suficiente, que eu poderia falhar. Disse-lhe que procurava algo feito da mesmasubstânciaqueelapara lutar contraosdemônios,pois ela éo anátemadeles.Entãoelaprocuroudentrodesiearrancouestecajadoqueseguro,estemembrodocorpodela.Enfraquecida,sabendoqueestámorrendo,mesmoassimelaconseguiumedarumapartedesi,paraajudaropovoélfico.Eunãoatoquei,nãofiznadaalémdeficaratônitocomaforçadevontadedela.Sintaestamadeira,ReiÉlfico,toque-a!

Ele jogou o cajado nas mãos de Eventine, que se fecharam ao seu redor. Os olhos do Rei searregalaram, surpresos.ODruida tirou o cajado dele e o passou, sem dizer nada, paraAnder.OPríncipesobressaltou-se.Amadeiradocajadoestavamorna,comoseosanguedavida fluísseporela.

—Estávivo!—exclamouoDruida,reverente.—Separadoeafastadodela,porémaindaassimcheio de vida! Esta é a arma que eu procurava. Este é o talismã que protegerá os elfos contra amagianegradashordasdemoníacas.Enquantoelesportaremocajado,opoderquevivedentrodaEllcrysosprotegeráetrabalharáparamantê-losasalvo.

PegouocajadodasmãosdeAnderemaisumavezseusolhosseencontraram.OPríncipeÉlficosentiualgopassarsempalavrasentreeles,algoquenãoconseguiuentenderdireito—assimcomoacontecerananoitenoAltoConselho,quandoeleficarajuntodeAmberle.

OsolhosdoDruidaforamatéoRei.—Agorameescute.—Suavozerabaixaerápida.—Achuvavaipararestanoite.Oexércitoestá

pronto?Eventineassentiu.—Entãomarcharemosaoamanhecer.Precisamosagirrapidamenteagora.—Masparaondemarcharemos?—perguntouoReinamesmahora.—Vocêdescobriuondea

falhaacontecerá?OsolhosnegrosdoDruidareluziram.—Sim.AEllcrysme contou.Ela senteosdemônios seunindo emumúnicopontodentroda

Proibição, sente-se enfraquecer onde eles se reúnem. Ela sabe que será ali que a Proibição cairáprimeiro.UmrasgojáfoifeitoporaquelesqueatravessaramparamatarosEscolhidos.Afendafoifechada,masaferidanãosecurou.Ali,aProibiçãoruirá.Jáestáseenfraquecendo,desgastadacoma força que a empurra. Os demônios foram convocados para aquele ponto por aquele que oscomandaequecontrolaumpodermágico tãograndequantoomeu.Ele é chamadoDagdaMor.Com a ajuda dele, a rachadura será aberta mais uma vez, e desta vez não se fechará. Mas nósestaremos esperando por eles.—Apertou o cajado commais força.—Nós estaremos esperando.Iremos pegá-los enquanto estiverem ainda desorganizados com a travessia recente. BloquearemossuapassagematéArborlonpelomáximoque conseguirmos.Daremos aAmberle o tempoque elaprecisaparaencontraroFogossangueevoltar.

Semmaispalavras, fez comqueAnder e seupai se aproximassem.Esticou-se epegouno chãoumdosmapascaídos,colocando-oesticadonamesa.

—Afalhaaconteceráaqui—disseemvozbaixa.SeudedoapontouparaavastaextensãodasplaníciesdeHoare.

CapítuloXXVII

Naquelamesmatarde,quandoaluzdodiajáseextinguiraquasecompletamenteeachuvaviraraumanévoa fina, aLegiãodeVoluntários entrouemArborlon.Aspessoasda cidadequeos virampassar pararam nomeio de seus afazeres e entreolharam-se com sussurros. Do topo das ruas nasárvores até as estradas florestais abaixo, vozes baixas falavam em uníssono. Não havia comoconfundirosLegionários.

AnderElessedilaindaestavatrancadonoescritóriodacasasenhorialcomseupaieAllanon—estranhamentemantidoalipela insistênciadoDruidaparaque se familiarizasse comosmapasdeSarandanon e com os planos defensivos propostos — quando Gael trouxe a notícia da chegadadeles.

—Meusenhor,umcomandodacavalariadaLegiãodaFronteirachegou,vindodeCallahorn—anunciou o jovem assistente ao aparecer de súbito na porta do escritório.—Nossas patrulhas osencontraramalestedacidadeeosescoltaramatéaqui.Devemchegaremalgunsminutos.

—ALegião!—Umsorrisolargoespalhou-senorostocansadodovelhoRei.—Nãomeatreviateressaesperança.Quecomando,Gael?Quantossão?

—Nãodisseram,meu senhor.Ummensageirodapatrulha trouxeanotícia,masnãodeumaisdetalhes.

—Nãoimporta—Eventineestavadepéjáindoatéaporta.—Qualquerajudaébem-vinda,nãoimporta...

—Rei Élfico!—A voz grave deAllanondespertou a atenção do pai deAnder.—Temos umtrabalhoimportanteaserfeitoaqui,trabalhoquenãopodeserinterrompido.Talvezseufilhopossairemseulugar,mesmoquesóparacumprimentaroshomensdafronteira.

AnderencarouAllanon,surpreso,evirou-separaopai,ansiosoporsuaresposta.OReihesitou,masaoveraexpressãodofilho,assentiu.

—Muito bem, Ander. Levemeus cumprimentos ao comandante da Legião e o avise que ireiencontrá-lopessoalmenteestanoite.Façacomquelhesprovidenciemacomodações.

Satisfeito por ter um encargo de alguma importância para variar, Ander correu da casasenhorial, com uma escolta de caçadores élficos atrás de si. A surpresa que ele sentira com asugestão inesperada de Allanon rapidamente se transformara em curiosidade. Ocorreu-lhe queaquelanãoeraaprimeiravezqueAllanonseesforçavaparaincluí-loquandonãohavianecessidadedefazê-lo.Houveoprimeiroencontro,quandocontaraaEventinesobreAmberleeoFogossangue.Houve seu aviso para que Ander se responsabilizasse pela proteção do Rei quando ele viajara aParanor.Houveaquelesentimentodealiançaqueofizeraerguer-senoAltoConselhoparaficardoladodeAmberlequandoninguémmaiso fez.Houveaqueleencontrovespertino,quandoAllanonderaocajadodaEllcrysaoseupai.Ariondeveriaestarpresentenaquelesmomentos,nãoele.PorqueArionnuncaestavalá?

Acabavadepassar pelos portões da frente da casa senhorial, ainda refletindo sobre o assunto,quandoasfileirasmaisadiantadasdacavalariadafronteirasurgiramnocaminhoquesubiaatéele,eo comando inteiro foi aparecendo lentamente.Anderdiminuiuopasso, franzindoo cenho.Ele

reconhecia aqueles cavaleiros. Longos mantos cinza com bordas escarlates flutuavam de seusombros, e chapéus largoscomumaúnicapenavermelhadescansavam inclinadosemsuas cabeças.Haviaarcoslongoseespadaslargaspenduradosnasselas,alémdeespadascurtasamarradasemsuascostas. Cada cavaleiro levava uma lança, de onde balançava um pequeno estandarte vermelho ecinza, e seus cavalos usavam uma armadura de couro com arreios de metal. Escoltados pelopunhado de caçadores élficos que os encontraram enquanto patrulhavam o leste da cidade,cavalgarampelasruasensopadasdechuvadeArborlonemfileirasprecisasecalculadas,semolharàesquerdanemàdireitaparaamultidãoreunidaparaassisti-los.

—OsVoluntários—resmungouAnderparasi.—ElesnosmandaramosVoluntários.QuasetodomundojátinhaouvidofalardosVoluntários,ocomandomaisfamosoecontroverso

ligadoàLegiãodaFronteiradeCallahorndetodosostempos.Seunomevinhadapromessafeitaaquemseuniaàsuacategoria—queseussoldadospodiamdeixarparatrás,semmedodeperguntasou explicações sobre tudo que acontecera antes em suas vidas. Para amaioria, haviamuito a serdeixado. Vinham de terras distintas, com histórias e vidas diferentes, mas suas motivações eramparecidas.Havialadrõesentreeles,assassinosetraidores,soldadosdevastadosporoutrosexércitos,homensdebaixoedealtonascimento,homenscomhonraesem,algunsàprocura,algunsemfuga,outrosàderiva—mastodosquerendoescapardoqueeram,esqueceroquehaviamsidoecomeçarde novo. Os Voluntários davam-lhes essa chance. Nunca fora perguntado a um soldado dosVoluntários sobre seu passado; sua vida começava no dia em que se alistava. O que vinha antesestavaencerrado;apenasopresenteimportava,assimcomooqueelefariadesienquantoservisse.

Paraamaioria,eraumtempocurto.OsVoluntárioseramatropadechoquedaLegião;sendoassim, eram considerados dispensáveis. Seus soldados eram os primeiros a lutar e os primeiros amorrer. Em todas as batalhas travadas desde a fundação daquele comando, cerca de trinta anosantes, sua taxa demortalidade fora amaior. Enquanto o passado fora deixado para trás por seussoldados, o futuro era um aspecto aindamais incerto. Porém, a maioria ainda considerava umatrocajusta.Afinal, tudotinhaumpreço,eaquelenãoeratãoabsurdo.Nomáximo,eraumafontede orgulho para os soldados que o pagavam; isto lhes dava um sentimento de importância, umaidentidade que os colocava acima de qualquer outro combatente nas Quatro Terras.Morrer embatalhaeraumatradiçãoentreosLegionários.MorrernãoimportavaaosVoluntários;amorteerauma realidade na existência deles, que a viam como uma velha conhecida em quem haviamesbarradoemmaisdeumaocasião.Não,nãoseimportavamemmorrer;apenasseimportavamemmorrerbem.

Andersabiaqueelestinhamprovadoaquilodiversasvezes.EagorahaviamsidomandadosparaArborlonparaprovarumavezmais.

A Legião parou na frente dos portões de ferro e um dos cavaleiros vestidos de cinza davanguardadesmontou.AoverAnder,passouasrédeasdeseucavaloparaoutrapessoaeavançou.Ao alcançar o Príncipe Élfico e sua guarda, tirou o chapéu de abas largas que usava e inclinoulevementeacabeça.

—EusouSteeJans,ComandantedosVoluntários.Por ummomento,Ander não respondeu, tão surpreso estava com a aparência do outro. Stee

Jans era um homem grande, parecendo agigantar-se diante de Ander. Seu rosto, castigado pelotempo,masaindaassimjovial,estavaretalhadopordúziasdecicatrizes,sendoquealgumasdesciampela barba ruiva que cobria seu queixo, deixando estrias brancas. A massa de cabelos cor deferrugemcaíaatéosombros,trançadaeamarrada.Nãotinhapartedeumadasorelhaseumúnicobrinco dourado pendia da outra. Olhos castanhos encontraram os do Príncipe, tão duros que

pareciamfeitosdepedra.Anderpercebeuqueoencaravaerecuperou-serapidamente.— Eu sou Ander Elessedil. Eventine é meu pai. — Estendeu a mão para cumprimentá-lo. O

apertodemãodeSteeJanserafirmecomoferro,easmãosmorenaseramcalosasenodosas.Anderinterrompeuocumprimentorapidamenteeobservouaslinhasdecavaleiroscinzentos,procurandoem vão por outras unidades. — O Rei pediu-me para estender-lhe seus cumprimentos eprovidenciaracomodações.Paraquandopodemosesperarosoutroscomandos?

Umsorrisofracocruzouorostocheiodecicatrizesdooutrohomem.—Nãoháoutroscomandos,meusenhor.ApenasossoldadosdosVoluntários.—Apenas...?—Anderhesitou,confuso.—Quantosvocêssão,Comandante?—Seiscentos.—Seiscentos!—Andernãoconseguiuescondersuadecepção.—MaseaLegiãodaFronteira?

Quandoseráenviada?SteeJanshesitouantesdecontinuar.—Meu senhor, acreditoque émelhor serdireto.ALegiãopodenão ser enviada.OConselho

dasCidades aindanão tomouumadecisão.ComoamaioriadosConselhos, eles achammais fácilfalar sobre tomarumadecisãodoque tomá-la. Seu embaixador faloubem, segundomedisseram,mashaviamuitasvozescautelosasnoConselho,ealgumasdeoposição.OReisegueoConselho;oConselhoolhaparao sul.AFederação éumaameaça visívelparaoConselho; seusdemônios sãopoucomaisdoqueummitodasTerrasdoOeste.

—Ummito!—Anderficouatônito.—Você tem sorte de ter pelomenos osVoluntários— continuou o homem, calmamente.—

Você não nos teria se não fosse pela necessidade de oConselho apaziguar a própria consciência.Argumentaramquepelomenosumaforçasimbólicaprecisavaserenviadaparaajudarseusaliadosélficos.OsVoluntárioseramaescolhalógica,comoésemprequeháumóbviosacrifícioaserfeito.

Foi uma simples enunciação de um fato, feito sem rancor ou amargura. Os olhos do homempermanecerambrandosesemexpressão.Anderenrubesceu.

—Eu não achei que os homens deCallahorn pudessem ser tão idiotas!— atacou, sentindo araivacorrerdentrodesi.

SteeJansestudou-oporummomento,comoseomedisse.— Até onde sei, quando Callahorn estava sendo atacada pelas forças do Lorde Feiticeiro, as

Terras da Fronteiramandaram um pedido de ajuda aos elfos.Mas Eventine foi feito prisioneiropeloLordeSombrio,ecomasuaausência,oAltoConselhodosElfosnãofoicapazdeagir.—Elefezumapausa.—ÉamesmacoisacomCallahornagora.AsTerrasdaFronteiranãotêmumlíder;nãotêmumlíderdesdeBalinor.

Anderencarouooutro,avaliando-o,esuaraivadiminuiu.—Vocêéumhomemdireto,Comandante.—Souumhomemsincero,meusenhor.Issomeajudaaenxergarascoisascommaisclareza.—OquevocêmecontoupodenãoserdoagradodealgunsemCallahorn.OhomemdaFronteiradeudeombros.—Talvezsejaporissoqueestouaqui.Andersorriulentamente.GostoudeSteeJans,mesmosemsabermaisnadaarespeitodele.— Comandante, eu não quis parecer irritado. Isso não tem nada a ver com você. Por favor,

compreendaisso.EosVoluntáriossãomuitobem-vindos.Agoravoulevá-losatésuasacomodações.SteeJanssacudiuacabeça.

—Não precisamos de acomodações; eu durmo commeus soldados.Meu senhor, disseram-meque o exército élfico marchará amanhã. — Ander assentiu. — Então os Voluntários marcharãotambém.Sóprecisamosdescansarduranteanoite.Porfavor,digaistoaoRei.

—Direiaele—prometeuAnder.OComandantedaLegiãoosaudou,depoissevirouevoltouparaseucavalo.Remontando,ele

acenourapidamenteparaoscavaleirosdapatrulhaélficaqueescoltavamseucomando,easlongascolunascinzentasviraramparaaesquerda,retornandoàestradaenlameada.

Anderficouobservando-ocomumamisturadeadmiraçãoeincredulidade.Seiscentoshomens!Pensandonosmilharesdedemôniosqueosatacariam,viu-se imaginandoquediferençaseiscentossulistaspoderiamfazer.

CapítuloXXVIII

Ao amanhecer, os elfos marcharam de Arborlon, ao som de flautas e ao rufar de tambores, asvozeselevadasemumacanção,asbandeirasvoandoemmanchasdecorvivacontraumcéuaindanublado.EventineElessedilcavalgavaàfrentedeles,comocabelogrisalhoflutuandosobacotademalha forjada com ferro azul, segurando com firmeza o cajado prateado da Ellcrys com a mãodireita. Allanon estava ao seu lado, uma sombra espectral, alto e sombrio em cima de umArtaqaindamais alto e escuro, e era como se aMorte tivesse saídodasprofundezasda terraparavelarpeloselfos.Atrásdele,vinhamosfilhosdoRei:Arion,vestidodebrancoeportandoabandeiradebatalhadoselfos,umaáguiaguerreiraemumcampoescarlate;Ander,envoltoemverde,carregavaa bandeira da casa dos Elessedil, uma coroa rodeada de louros em cima de um amplo carvalho.Dardan,Rhoeetrêsdúziasdecaçadoresélficosveteranosvinhamaseguir—aguardadeElessedil;depois vinha o cinza e escarlate da Legião de Voluntários, uma força de seiscentos homens.Pindanoncavalgavasozinhoàfrentedeseucomando,umafigurafinaecurvadasobreseucavalodeguerra, sua armadura lascadaporbatalhas apertada ao seu redor como se segurasse seusossosnolugar. O exército o seguia, imenso e ameaçador, com seis colunas de largura e uma força demilharesdehomens.Eramtrêscompanhiasdecavalaria,comaslançasdebatalhaalojadasnomeioem uma floresta de cabos com pontas de ferro, quatro companhias de infantaria com chuços eescudos,eduascompanhiasdearqueirosusandoosgrandesarcos longosélficos—todosvestidosdaformatradicionaldoguerreiroélfico,protegidoscomtúnicasdecotademalhaepeçasdecouroparaassegurarmobilidadeerapidez.

Era uma procissão impressionante. Armas e acessórios rangiam e tilintavam na calma daalvorada,brilhandofracamentenaluz,deixandooselfoscomosefossemfigurasmeio-humanasquesussurravam sobre a morte. Pés em botas e cascos em ferraduras batiam e salpicavam terraenlameada enquanto as colunas de homens e cavalos vinham dos campos de desfile ao norte dacidade até o Carolan, preparando-se para virar na rampa curvada para Elfitch, que levava dasalturasdeArborlonatéasflorestasabaixo.Opovodacidadevieraassistir.NotopodoCarolan,nosmuros e cercas, nos campos e jardins, acompanhando o caminho a cada passo, eles se despediamcomgritosde incentivoe esperança, e comsilênciosnascidosde emoções semvoz.Na frentedosportões dos Jardins daVida, aGuardaNegra estava reunida até o último homem, com as lançaserguidasemsaudação.Nabeiradacolinaencontravam-sereunidososcaçadoresélficosdaGuardadaCasa e ohomemqueos comandariana ausênciadoRei—EmerChios,PrimeiroMinistrodoAltoConselho,designadocomoodefensordacidadedeArborlon.

OexércitoélficodesceuoCarolan,seguindoaespiraldarampadepedraqueiabaixandoatéascolinasarborizadaseatravessaramosseteportõesamuralhadosquemarcavamseusníveis.Napartemais baixa, o exército virou para o sul, emdireção às corredeiras.Umaponte solitária cruzava oRiachodaCanção,aúnicapassagemaoesteque levavapara foradacidade,comsuaestruturadeferroquase submersapelaságuasdo rioemcheia.Comoumacobrademetal,oexército foi atéaponte,atravessouepassouparaaflorestasilenciosadooutrolado.Obrilhodasarmasearmadurasdesapareceu na escuridão, as bandeiras sumiram de vista e as melodias da música, o canto das

flautaseorufardostambores,viraramecosquerapidamenteseperderamnacoberturafolhosadasárvores. Quando o sol damanhã finalmente apareceu entre as nuvens da tempestade que partia,parabrilhar sobreo topodoCarolan e iluminar a floresta abaixo, osúltimosvestígiosda grandeprocissãohaviamdesaparecidodevista.

Durante cinco dias o exército viajou para oeste deArborlon, fazendo seu caminho sinuoso pelasdensasflorestasdesuaterraemdireçãoaSarandanon.AschuvastinhamidoparalestenadireçãodeCallahorn,eosolbrilhavanocéusemnuvens,aquecendoassombrasdafloresta.Aviagemeracalculada,acavalariafoiforçadaadiminuirseuritmoparaacompanharainfantaria.Evidênciasdoperigo que ameaçava os elfos tornavam-se cada vezmais aparentes conforme o exército avançavapara oeste, através das províncias remotas. Histórias eram contadas por famílias élficas querumavampara a capital com suas posses atulhadas em carroças, nos lombos de bois e de cavalos.Suascasasealdeiashaviamsidodeixadasparatrás.Criaturasaterrorizantesvagavampelasterrasaoeste, avisavam com vozes assustadas—monstros sombrios e brutais quematavam semmotivo edesapareciamtãorápidoquantotinhamsurgido.Chaléshaviamsidodestruídose laresviolados,eos elfos lá dentro estraçalhados e despedaçados. Tais incidentes estavam espalhados, mas isso sóservia para convencer os aldeões em fugade quenãohaviamaisnenhum lugar seguro a oeste deArborlon. Conforme o exército emmarcha passava, os aldeões davam vivas e gritos de estímulo,masseusrostospermaneciamnubladospeladúvida.

Amarcha para oeste continuou até o fim da tarde do quinto dia, quando o exército saiu daflorestaparaoValedeSarandanon.Ovaleeracercadoporflorestasasulealeste,pelasMontanhasKensrowe ao norte, e pela vastidão de Innisbore a oeste. Uma extensão plana e fértil de camposcultivados, interrompidos aqui e ali por pequenos grupos de árvores e lagos de água fresca, oSarandanoneraoceleirodanaçãoélfica.Milho,trigoeoutroscereaiseramsemeadosecolhidosacadaestaçãopelasfamíliasquemoravamnovale,etrocadosouvendidosparaorestantedanação.Temperaturasmedianas e chuvas equilibradas providenciavamumclima ideal para plantar, e porgeraçõesSarandanonforaaprincipalfontedealimentosparaoselfos.

Naquela noite, o exército acampou na extremidade oriental do vale; ao amanhecer do diaseguinte,começaramaatravessá-lo.UmalargaestradadeterrapassavapelocentrodeSarandanon,porcercaseagrupamentosdepequenashabitaçõese silos,eoexércitoseguiu-aparaooeste.Noscampos, as famílias do vale trabalhavam com determinação silenciosa. Poucos elfos dali haviampartidoparaoleste.Tudooqueimportavaemsuasvidasestavaenraizadonaterraquecultivavam,enãoseriamassustadosfacilmente.

No meio da tarde, o exército já alcançara o extremo oeste do vale. À distância, além doInnisbore,acristaacidentadadaLinha-de-Quebraelevava-secontraohorizonte,curvando-separaonorteacimadeKensroweatéosermosdoTerritórioKershalt.Osoljásedeitavasobreotopodasmontanhas,umaluzdouradaebrilhantequeseespalhavapelaspedras.Nacrescenteescuridãodocéuoriental,abrancuradaluabrilhavadelicadamente.

Oexércitovirouparaonorte.EntreInnisboreeKensrowe,aFendadeBaenabria-separaovalede Sarandanon na área acidentada abaixo da Linha-de-Quebra. Foi ali que o exército armou oacampamento.

Ao anoitecer, Allanon saiu do Kensrowe tão silenciosa e inesperadamente quanto entrara horasantes; sua figura alta movimentou-se pelo acampamento como uma sombra da noite, escura e

solitária,aopassarpelolabirintodefogueirasquepontilhavamapradaria.FoidiretoparaatendadoReiÉlfico,ignorandoossoldadosqueoobservavam,comacabeçaabaixadadentrodaescuridãodeseucapuz.OscaçadoresélficosdeguardapostadosdiantedosaposentosdeEventineafastaram-sesemdizernadaquandoeleseaproximouedeixaram-noentrar.

Ládentro,eleencontrouoReisentadoaumapequenamesaimprovisadacomtábuascolocadasatravessadasemcimadetroncos,esuarefeiçãonoturnajaziadispostaàsuafrente.DardaneRhoeestavamsilenciososnos fundosda tenda.AnteoolhardoDruida,Eventineosdispensou.Quandoelessaíram,Allanonfoiatéamesaesentou-se.

—Estátudopronto?—perguntou,emvozbaixa.Eventineaquiesceu.—Eoplanodedefesa?À luz das lamparinas, oRei podia ver que o rosto escuro doDruida estavamolhado de suor.

Inseguro,encarouomístico,paradepoisempurrarseujantarparaumladoecolocarummapadasterrasélficassobreamesa.

— Ao amanhecer, marcharemos para a Linha-de-Quebra. — Traçou a rota com o dedo. —Protegeremos os passos do Talho de Halys e da Cascata de Worl e os defenderemos contra osdemônios por quanto tempo conseguirmos. Se os passos forem perdidos, recuaremos paraSarandanon.AFendadeBaenseránossasegundalinhadedefesa.DepoisqueatravessaremaLinha-de-Quebra,osdemônios terão trêscaminhos.Se foremparaosul,precisarãocontornar Innisboreatravés das florestas e depois seguir para o norte de novo. Se forem para o norte primeiro,precisarãoabrircaminhopelaregiãoacidentadaacimadeKensroweevirparaosul.Ambasasrotasatrasarão o avanço deles sobre Arborlon por pelo menos alguns dias. Sua única opção seráatravessaraFenda...eoexércitoélfico.

OolharsombriodeAllanonfixou-senoRei.—ElesescolherãoaFenda.—Seremoscapazesdesegurá-loporváriosdias—continuouoRei.—Talvezatémais, senão

pensarememnosflanquear.—Doisdias,nãomais.—AvozdoDruidasooufria,sememoçãoalguma.Eventineenrijeceu-se.—Muito bem, dois dias.Mas se a Fenda for tomada, perderemos Sarandanon. Arborlon será

nossaúltimadefesa.—Queseja.—Allanoninclinou-separafrente,unindoasmãosdiantedesi.—Precisamosfalar

agora sobreoutra coisa, algoqueescondidevocê.—Suavozerabaixa,quaseumsussurro.—Osdemônios não estão mais entre nós, aqueles que já atravessaram a Proibição, DagdaMor e seusseguidores. Eles nãomais nos vigiamnem seguem. Se o fizessem, eu os sentiria, e não sintonadaassimdesdequesaímosdeArborlon.

OReioencarousemdizernada.—Acheiestranhoquetivessemtãopoucointeresseemnós.—ODruidadeuumsorrisobreve.

—Estatardesubiasmontanhasparaficarsozinhoedescobrirparaondeforam.Tenhopoderparaencontrar aqueles que se escondem dos meus olhos. Porém, este poder precisa ser usado comcuidado,pois ao recorrer a ele, revelo aosquepossuempoderes similares aosmeus, comoDagdaMor, tanto aminhapresençaquanto apresençadequembusco.Nãoposso arriscar eusá-loparaseguirWilOhmsford e a sua neta na viagemdeles para o sul; se eu o fizesse, poderia contar aosdemônios aonde encontrá-los. Porém, procurar o próprio Dagda Mor... este foi um risco queprecisavasercorrido.Euoprocurei,vasculhandotodaaregiãoaonossoredorparadescobrironde

elehaviaseescondido.Maselenãoestavaescondido.EuoencontreidooutroladodamuralhadaLinha-de-Quebra, dentro da planície de Hoare, ele e aqueles que o seguem. Ainda assim, possodizermuito pouco sobre o que pretendem; seus pensamentos estão fechados paramim. Só pudesentirapresençadeles.Omalqueospermeiaétãofortequesódeesbarrarneleporummomentosentiumadormuitograndeefuiforçadoarecuarimediatamente.—ODruidaseendireitou.—ÉcertoqueosdemôniossereúnemdentrodaplanícieantecipandoaquedadaProibição.Écertoqueestãotrabalhandoparaapressaraqueda.Fazemissoabertamenteesemsepreocuparcomosplanosqueoselfospossamter.Issosugerequejáconhecemestesplanos.

Eventineempalideceu.—Oespiãonaminhacasa;oespiãoqueavisouaosdemôniosquevocêestariaemParanor.—Issoexplicariaporqueosdemôniosmostramtãopoucointeresseemnossosmovimentos—

concordou Allanon. — Se já sabem que pretendemos impedi-los na Linha-de-Quebra, não têmporquenosseguirparasaberoquepretendemos.Sóprecisamesperarnossachegada.

AsimplicaçõesdaqueladeclaraçãonãopassaramdesapercebidasporEventine.—EntãoaLinha-de-Quebrapodeserumaarmadilha.ODruidaassentiu.—A questão é que tipo de armadilha os demônios prepararam. Ainda não estão em número

suficiente para enfrentar um exército desse tamanho. Eles precisam daqueles ainda aprisionadosdentrodaProibição.Seformosrápidosobastante...

Eledeixouafraseporterminareselevantou.— Mais uma coisa, Eventine. Tenha cuidado. O espião ainda está entre nós. Ele pode estar

dentro deste acampamento, dentre aqueles em quem você confia. Se tiver a oportunidade, podetentarmatarvocê.

Ele se virou e foi até a entrada. A sombra da sua figura escura ergueu-se contra a parede datenda comoumgigantena luzbruxuleantedas lamparinas.OReiobservou-o semdizernadaporummomento,antesdeseerguerdeumsalto.

—Allanon!ODruidaolhouparatrás.— Se os demônios sabem por que marchamos para a Linha-de-Quebra, se eles sabem disso...

então,tambémpodemsaberqueAmberleestálevandoasementedaEllcrysparaVastoErmo.Houveumsilênciodesagradável.Osdoishomensseencararam.Então,semresponder,oDruida

sevirouedesapareceunanoitepelaaberturadatenda.

Naquelemesmo instante,Anderabriacaminhopelo tumultuadoacampamentoélficoprocurandoStee JanseaLegiãodosVoluntários.Ostensivamente, suamissãoeraverificarasnecessidadesdossoldadosdaLegião,masdebaixodissohaviaseuinteressepessoalnoComandantedeles.NãofalaracomJansdesdea chegadadosVoluntários aArborlone estavaadmitidamentecuriosopara sabermais sobre o enigmático homem do Sul. Sem nada mais imediato com que se ocupar, resolveraaproveitaraoportunidadeparaprocurá-loeconversarmaiscomele.

Encontrou o acampamento dos Voluntários no limite sul de Kensrowe. Seus vigias já seencontravam a postos e seus cavalos amarrados e alimentados. Ninguém o interpelou enquantoavançavaemmeioaeles.ComonãoconseguiulocalizarsozinhoosaposentosdoComandantedosVoluntários, parou alguns soldados para perguntar se sabiam onde encontrar Jans, e finalmentedirigiu-seaumCapitãodaLegião.

—Ele?—OCapitão era um sujeito grandalhão de barba grossa e com uma risada que soavaprofundaevazia.—Quemsabe?Elenãoestáemsuatenda,atéaíeusei.Saiuassimquemontamosoacampamento.Foiparaascolinas.

—Empatrulha?—Andernãoacreditou.OCapitãodeudeombros.— Ele é assim. Quer saber tudo sobre o lugar onde pode morrer. — Sorriu asperamente. —

Nuncadeixaoutrofazerisso;gostadefazerelemesmo.Anderassentiu,desconfortável.—Suponhoqueéporissoqueeleaindaestejavivo.—Aindavivo?Aquelelánuncavaimorrer.Sabecomoochamam?OHomemdeFerro.Homem

deFerro...éoqueeleé.EsseéoComandante.—Elepareceserbastanteduro—concordouAnder,suacuriosidadeaguçada.OCapitão gesticulouparaque se aproximasse eporummomento eles esqueceramcomquem

estavamfalando.—VocêsabesobreRybeck?—perguntouohomemdafronteira.Andersacudiuacabeça,eumbrilhodesatisfaçãosurgiunosolhosdurosdooutro.—Entãoescute.Dezanosatrás,umgrupodeguerreirosgnomosestavaqueimandoematandoas

pessoasnolimiteorientaldasterrasdafronteira.Unsratosmiseráveis,eumgrupograndedeles.ALegião tentou de tudo para capturá-los, mas nada funcionou. Finalmente, o Rei mandou osVoluntários atrás deles, com ordens para encontrá-los e destruí-los, mesmo se demorassem orestantedoano.Eumelembrodaquelacaçada;jáestavacomosVoluntários.

EleseagachoupertodeumafogueiraparacozinhareAndersentou-sedoladodele.Osoutroscomeçaramaseaproximarparaouvir.

—Durantecincosemanas,acaçadaaosgnomoscontinuoueosVoluntáriososseguiramrumoao leste,atéoAnarSuperior.Então,umdia,quandoestávamoschegandoperto,umpatrulhadosnossos homens, apenas vinte e três deles, encontraram a retaguarda de várias centenas deguerreiros. A patrulha poderia ter recuado, mas não o fez. Eram soldados dos Voluntários eescolheram lutar.Umhomemfoimandadodevoltaparapedir reforçoseosoutrosresistiramemumapequenaaldeiachamadaRybeck,queeraumpunhadodeconstruções inúteis.Portrêshoras,aqueles vinte e dois soldados resistiram aos guerreiros; fizeram recuar todos os ataques. Umtenente, três oficiais e dezoito soldados.Umdesses oficiais era apenas um garoto. Só estava faziasetemesescomosVoluntários,masjáeraumcabo.Ninguémsabiamuitosobreele.Comoamaioriadenós,elenãofalavamuitosobreseupassado.—OCapitãoinclinou-separafrente.—Depoisdasduasprimeirashoras,aquelegarotoeraoúnicooficialaindavivo.Elearregimentouameiadúziadesoldadosquesobraraatéumapequenacasadepedra.Recusou-seaserender,recusou-seapedirtrégua.Quandoosreforços finalmenteconseguiramchegar,haviagnomosmortospor todaparte.—Amão do homem fechou-se empunhona frente do rosto deAnder.—Mais de uma centenadeles.Todososnossoshomenstinhammorrido,excetodois,porémummorreumaistardenaqueledia.Sóficouum.Omeninocabo.

Eleparouedeuumarisadinhabaixa.—Aquelemenino era Stee Jans.Épor issoqueo chamamdeHomemdeFerro.ERybeck?—

Sacudiuacabeça,solene.—RybeckéumtestemunhodecomoumsoldadodosVoluntáriosdevemlutaremorrer.

Ossoldadosreunidosaoseuredormurmuraram,concordando.Anderparouporummomentoeselevantou.Ocapitãoergueu-secomele,endireitando-seaoselembrarnovamentedecomquem

estavaconversando.—De qualquermodo,meu senhor, o Comandante não está aqui agora.—Hesitou.— Posso

fazeralgoporvocê?Andersacudiuacabeça.—Euvimperguntarsevocêsprecisamdealgumacoisa.—Algoparabeber—gritoualguém,masoCapitãoofezsecalarcomumgestorápido.—Vamosficarbem,meusenhor—respondeu.—Temosoqueprecisamos.Ander assentiu devagar.Homens duros, aqueles Voluntários.Haviam feito uma longa viagem

até Arborlon e então, com uma única noite de descanso, empreenderam a marcha forçada atéSarandanon.Duvidavaquerealmenteprecisassemdealgumacoisa.

—Sendoassim,digoboanoite,Capitão—falou.Virou-seecaminhoudevoltaparaoacampamentoélfico, repassandoemsuamenteahistória

docomandantedaLegiãoquechamavamHomemdeFerro.

CapítuloXXIX

Namanhãseguinte,oexércitodoselfosmarchouparaonortecomseusaliados,afastando-sedeSarandanon.AalvoradaaindaeraumsuavebrilhoprateadoacimadaflorestaquandoossoldadoscruzaramaFendadeBaeneviraramparaascolinassituadasdooutrolado.Armaduraseapetrechosrangiametilintavam,botasecascosbatiamemcadência,ehomensecavaloslevantavamnuvensdevapornoargeladodamanhã.Ninguémfalava,nemcantavanemassobiava.Umasensaçãodecautelaeexpectativapermeavaasfileiras.Naquelamanhã,elfosehomensdafronteirasabiamqueestavammarchandoparaabatalha.

Subiamrodeandoas colinas,queeramdesoladase irregulares, comsuasencostas cobertasporuma vegetação esparsa de grama baixa e arbustos,marcada e erodida pelo vento e pela chuva.Àfrente,aindamuitodistante,via-seamassaescuradaLinha-de-Quebraemsilhuetacontraanoitequemorria. Lentamente, conforme o sol iluminava o céu, asmontanhas saíam da escuridão, umlabirintodepicoseencostas,penhascosedeslizamentos.Odiacomeçavaaesquentar.Ashorasdamanhãpassarameoexércitovirou-separaoeste;fileirasdecavaleirosehomensapécontorciam-seentre desfiladeiros e sobre penhascos, estendendo-se pelo terreno. Ao sul, as águas do Innisborebrilhavamcomlampejosdeazul,esobreasuperfícieagitadavoavaumgrupodegaivotasdecostasbrancaseasasdepontasnegras,dandogritosagudosemelancólicos.

Ao meio-dia, o exército já havia alcançado a Linha-de-Quebra, e Eventine sinalizou parapararem. As montanhas elevavam-se contra o horizonte, uma imensa muralha escura de pedra.Penhascos e torreões erguiam-se por centenas de metros, amassados como se algum gigante ostivesse juntado e apertado com as mãos até a rocha quebrar e rachar com a pressão. Imóveis esilenciosas,desoladasefrias,estavamrepletasdevazio,escuridãoemorte.

DoispassosdividiamaLinha-de-Quebra,finastirasqueuniamasterrasdoselfosàsplaníciesdeHoare.Aosul,ficavaoTalhodeHalys.Aonorte,situavam-seasCascatasdeWorl.SeosdemôniosfossematravessaraProibiçãodentrodaplanície tal comoAllanonprevira, então,paraalcançaracidadeArborlon,seriamforçadosairparaolesteporumadaquelaspassagens—ouporambas.Eraaliqueoexércitoélficotentariaimpedi-los.

—Nósnosseparamosaqui—anunciouEventinequandoreuniuseusoficiais.Anderaproximousuamontariadopequenocírculodehomensparaouvircomclarezaoqueestavasendodito.—Oexército irá se dividir. Metade marchará para o norte com o Príncipe Arion e o ComandantePindanonparadefender asCascatas deWorl.Aoutrametademarcharápara o sul comigo, até oTalho de Halys. Comandante Jans? — O rosto bronzeado do Comandante dos Voluntáriosapareceu.—EugostariaqueosVoluntáriosfossemparaoSul.Pindanon,dêocomando.

O círculo de cavaleiros se apartou enquanto as notícias eram passadas adiante. Ander olhourapidamenteparaArion,quesustentouseuolharcomfriezaesevirou.

—Ander,queroquevocêcavalguecomigo—chamouseupai.Kael Pindanon veio galopando até o Rei. Tudo estava pronto. Os dois velhos camaradas se

despediram, apertando asmãos com força. Ander olhoumais uma vez à procura do irmão,masArionjátinhasedirigidoparaafrentedacoluna.

Allanonapareceu,orostosombrioimpassível.—Araivadeleédespropositada—disseoDruida,baixinho,efezArtaqavançar.A voz de Pindanon soou. Bandeiras e lanças se ergueram em saudação quando o exército dos

elfossedividiu.Gritosevivasquebraramaquietudedamanhã,ecoandopelasencostasefissurasdamontanha.Porlongosinstantes,oarfoipreenchidopelosomferozeagressivo.Entãoocomandode Pindanon virou-se para o norte, subindo as colinas com uma imensa nuvem de poeira atéfinalmentesumirdevista.

Os soldadosdoRei voltaram-separa sul. Por várias horas, abriram caminhopelas encostas daLinha-de-Quebra, seguindo a contínua subida e descida das colinas. Acima deles, o sol dirigia-separa oeste cortando o cume das montanhas, e as sombras começaram a se estender em borrõesescuros. O ar parado e sufocante do meio-dia esfriou com uma brisa que vinha das florestasdistantes.Gradualmente,ascolinasforamseachatandoparaplanícies.Nolimite,cercadaporumasériedepicosacidentadoseestreitos,aentradaescuradoTalhodeHalysabria-senarocha.

Eventinefezoexércitopararerealizouumabreveconferênciacomseusoficiais.Maisabaixodaentrada oriental do passo havia vários quilômetros de planícies que se estendiam para o sul, emdireçãoàsflorestas.SeosdemôniosencontrassemumaformadeatravessaraLinha-de-QuebraporbaixodoTalhodeHalys,conseguiriampassarparaonorteatravésdaflorestaeprenderoexércitoélficodentrodopasso.Precisariamdeumaretaguardaparaseprotegeremdessapossibilidade.Umaunidade de cavalaria seria omelhor para tal missão, pois a cavalaria já seria de pouca utilidadedentrodoslimitesestreitosdopasso.

AnderviuoolhardeseupairecairbrevementesobreSteeJansedepoissedesviar.Unidadesdacavalariaélficairiamguarneceraretaguarda,anunciouoRei.

A ordem foi dada. A cavalaria destacou-se do corpo principal do exército e começou a seposicionarna extensãodapradaria.AumsinaldeEventine, o restantedo exércitodirecionou-separa o Talho de Halys. Os elfos marcharam através da larga abertura ensombrecida; penhascosíngremes erguiam-se ao redor deles.O solo do passo começou a subir quase imediatamente e ossoldados marcharam pedra acima. O ar esfriava rapidamente, e o som de cascos calçados porferradurasepésembotasbatendonapedraecoavadeformasinistra.Conformeatrilhasubia,ficavamais difícil manter o equilíbrio. Pedras soltas cobriam o caminho e rachaduras dividiam asuperfície.Homensecavalostropeçavameescorregavamacadapasso,eoritmofoidiminuindo.

Pararam abruptamente.Diante deles abria-se um imenso abismo, uma fissura gigante que caíanum vazio escuro, partindo a extensão do passo adiante por centenas de metros. À esquerda, atrilhadesciapelaencostaseguindoamontanha, largae lisaemseu trajetoatéumdesfiladeirodooutro lado do abismo. À direita, uma plataforma estreita rodeava a fissura, uma trilha fina earruinada que mal permitiria a passagem de um único cavaleiro. Por todos os lados, penhascosíngremes pareciam inclinar-se para dentro conforme subiam, até tudo o que restava do céu seresumiraumafinalinhaazulirregular.

Oexércitoseguiuparaaesquerda,mantendo-senocaminhomais largo, ficandobemlongedaboca negra do abismo. Quando alcançaram o desfiladeiro, os homens viram-se adentrando umcânionbrilhantesobaluzdatarde,cobertodoverdedearbustosegrama.Agrupamentosdepedraspontilhavamochãodocânioneumriachofinoescorriapelasparedesdopenhasco,empoçando-seemumapequenacavidadecobertadearbustos.Lebrespularampelavegetaçãocomaaproximaçãodoexército,eumgrupodepássarosquebebiamáguapartiuemrevoadasúbita.

Os elfos atravessaram até o outro lado do cânion. Ali, o caminho se abria por uma gargantaampla e sinuosapara a vasta extensãodaplaníciedeHoare.Eventine levantouamãode repente,

sinalizandoumaparada.Seusolhosvarreramtodaagarganta,passandoporumlabirintocompostoporpedrasamontoadasedescendoporaltospenhascose encostas longase irregulares.Semdizernada,assentiu.Eraaliqueseuexércitoiriaresistir.

Ocrepúsculoestendeu-sesobreaLinha-de-Quebra.Asombrialuzcinzentaperseguiaopôrdosolque iluminava o céu acima da planície de Hoare em uma chama vermelha e dourada. Atrás damuralha dasmontanhas, o disco prateado da lua se erguia sobre a floresta, enquanto as estrelassurgiamumaauma.DentrodoTalhodeHalys,osilênciocomeçavaaseaprofundar.

AnderElessedilestavasozinhonummontinhodeterranametadedagargantaquedesciaatéaplanície,eseusbraçosaninhavamocajadoprateadodaEllcrysdeformaprotetora.Emsilêncio,eleobservava as fileiras de caçadores élficos e soldados da Legião, reconstruindo em suamente pelavigésimaveznaúltimameiahoraaestratégiaqueseupaidesenvolveraparaadefesadopasso.Umaelevaçãolargaseerguiaacima,acentenasdemetrosdaentrada,umpedaçoachatadodepedraquese assomava sobreumaencosta irregular, cheiadepedras soltas e arbustos.Era ali queo exércitoassumiria sua posição inicial. Arqueiros ficariam na frente da elevação, atirando nos demôniosquandoestessurgissemnaplanície,passandopelaaberturadoTalhodeHalysparasubiracolina.Quando os demônios estivessem perto demais para os arcos serem úteis, os arqueiros seriamsubstituídos por uma falange de lanceiros, que aguentariam o grosso do ataque. Uma segundafalange estaria a postos para reforçar a primeira. Os defensores manteriam a posição enquantopudessem, para depois recuar centenas de metros até uma posição semelhante. Se perdessem oestreito,teriamquevoltaratéabocadocânion.Setambémperdessemaquelaposição,defenderiamoprópriocânion—eassimpordiante,atéoexércitoserforçadototalmenteparaforadoTalhodeHalys. Era um bom plano. Ander ficou satisfeito ao verificar que o passo não seria facilmentetomado.Asposiçõesdefensivashaviamsidobemescolhidas;quandooataqueviesse,encontrariaoselfosprontos.

Ele levantou a cabeça e fixou o olhar na direção da planície. Nada se mexia. A terra estavasilenciosaevazia.Aindanãohaviasinaldosdemônios.

Porém, eles viriam. Suas mãos escorregaram lentamente sobre a madeira macia do cajado daEllcrys, traçando com os dedos as fibras da pele da árvore. Seu pai deixara o cajado sob seuscuidadosmomentaneamente, enquanto descia a encosta para fazer a própria inspeçãodas defesasélficas. Ander inspirou profundamente o ar noturno. Será que o cajado realmente defenderia oselfos? Será que emprestaria suamagia para aqueles que agora eramhomensmortais, nãomais ascriaturasfeéricasqueseusancestraishaviamsido?Baixouosolhosparaele,apertando-ocomvigor,e tentou encontrar a própria força na firmeza do objeto.Allanon dissera que o poder da Ellcryssobreosdemôniosestavadentrodaquelecajadoequeenfraqueceriaomal,tornando-ovulnerávelàs armas élficas. Mas a dúvida pesava sobre a mente de Ander. Os demônios eram um malincompreensível, nascido em um mundo desaparecido havia muito tempo, um mundo queninguém,alémdeles,viraequesequerpodiaimaginar.

Elesecontrolou.NinguémalémdeAllanon,corrigiu-se.EtalvezopróprioAllanonfossepartedaquelemundosombrioeesquecido.

Seupai apareceude repente, saindoda escuridão,deslizandopelas sombraspara ficar ao ladodele.Semfalar,Anderdevolveuocajado.Preocupaçãoecansaçosulcavamorostodohomemmaisvelho,refletindo-seemseusolhos,eAnderobrigou-seadesviaroolhar.

—Estátudocerto?—perguntoudepoisdeumtempo.

OReiassentiu,distante.—Assumimostodasasposiçõesdefensivas.Ficaramemsilênciodenovo.Andertentoupensaremmaisalgumacoisaparadizer.Haviauma

inquietação em si que não conseguia acalmar, que lhe fazia precisar estarmais perto de seu pai.QueriaqueEventinecompreendesse.Porém,dealgumaforma,eradifícilfalarcomopaisobretaiscoisas.Nenhumdosdoiserabomemexpressarsentimentos.

Seuhumor ficousombrio.TambémeraassimcomArion—especialmentecomele.Haviaumadistância entre elesqueAndernuncacompreendera,umadistânciaquepoderia ter sido reduzidacasoumdelestivessesidocapazdefalararespeito.Masnenhumdelestentara.Haviapiorado,claro.Arion estava furioso pelo que acontecera no Alto Conselho, com a recusa de Ander em rejeitarAmberle como a legítima portadora da semente da Ellcrys, e por ter se recusado a exigir, comoArion queria, um relato sobre as atitudes dela; a partir dali, não falaramais como irmão.Haviatanta amargura emArion! Porém, era uma amargura que Ander compreendia. QuandoAmberledeixaraArborlonmeses antes, abandonando suas responsabilidades comoEscolhida semqualquerexplicação, os dois irmãos haviam sentido aquela amargura — ele sentira tanto quanto Arion,porqueele tambémamavaacriança.Pormuito tempo,deixaraaamarguracegá-lopara tudoqueela um dia significara para ele. Mas revê-la permitira que redescobrisse algo de seu antigosentimentopelamenina.TeriagostadodeexplicarissoaArion;precisavaexplicar.Masdealgumaforma,nãoconseguiaencontrarumjeito.

Ele sobressaltou-se ao perceber queAllanon estava ao seu lado.ODruida aparecera do nada,semsequero leve sussurrodaquelasvestesnegrasprotetoras.O rostocobertoobservou-oporummomentoedesviou-separaolharseupai.

—Vocênãodorme?Eventinepareciaangustiado.—Não.Aindanão.—Vocêprecisadescansar,ReiÉlfico.—Logo.Allanon,vocêachaqueAmberleaindaestáviva?Anderprendeu a respiração e olhoude relancepara oDruida.Allanon ficou em silênciopor

ummomentoantesderesponder.—Elaestáviva.Comoelenãodissemaisnada,Eventinedesviouoolhar.—Comovocêsabe?—Nãotenhocomosaber;issoéoqueeuacho.—Entãoporquevocêachaqueelaestáviva?ODruidaergueulevementeacabeça,eobservouocéucomseusolhosfundos.—PorqueWilOhmsford aindanãousou as Pedras Élficas. Se a vida deAmberle estivesse em

perigo,eleteriausadoasPedras.Anderfranziuatesta.PedrasÉlficas?WilOhmsford?Oqueeraisso?Entãolembrou-sedaoutra

figura encapuzadanoAltoConselho, aquelaqueAllanon levaraaté a câmaracomAmberle equenuncaserevelara.AqueledeviaserWilOhmsford.

Ele virou-se rapidamente para Allanon, com uma pergunta se formando em seus lábios, mascontrolou-se.Talvezse tratassedealgoquefossemelhornãoperguntar,pensou.Afinal,nadaforaditoantes.SeAllanonquisessequeelesoubessedemaiscoisas,teriacontado.MasentãoporqueoDruidafalaraaquilo?

Confuso,observouaplanície e fitouo solquedeslizavaparaalémdohorizonte, e as coresdo

pôrdosolsetransformandolentamenteemnoite.—Temos fogueirasde sinalização instaladasnabocadopasso—murmurouseupaidepoisde

umtempo.—Precisoordenarquesejamacesas.SaiuandandopelagargantaeAnderficousozinhocomAllanon.Osdoispermaneceramcalados,

estátuas imóveis na escuridão crescente, observando a figura curvada do Rei enquanto ele seafastavaemmeioàspedraspartidas.Osminutossepassaram.AnderachouqueforaesquecidoatéavozdoDruidaerguer-sesubitamenteemmeioaosilêncio.

—VocêquersabermaissobreWilOhmsford,PríncipeÉlfico?Anderencarouohomemalto,surpreso,econseguiumenearacabeça.—Entãovocêsaberá—Allanonsequerolhou-oderelance.—Escute.Emvozbaixa, contouaAnder sobreWilOhmsford—de suaherança ede suamissãoparaos

elfos. Naquele momento, Ander lembrou-se das histórias de seu pai sobre os homens do ValeSombrio,SheaeFlickOhmsford, edabuscapela lendáriaEspadadeShannara.EonetodeShea,herdeiro de uma magia que nenhum elfo possuía desde a destruição do velho mundo, era oprotetordeAmberle.

QuandooDruida terminou,Ander ficou em silêncioporum tempo.Encarou as sombras porondeoseupaisumira,pensando.DepoisolhoumaisumavezparaoDruida.

—Porquevocêmecontouisso,Allanon?—Éalgoquevocêprecisasaber.Andersacudiuacabeça,lentamente.—Não...querodizer,porqueeu?FinalmenteoDruidavirou-separaolhá-lo,seurostodefalcãopraticamenteinvisíveldentrodas

sombrasdocapuz.—Pormuitas razões,Ander—disse ele, suavemente.—Talvezporquequandoninguémmais

deuumpassoàfrenteparaficaraoladodeAmberlenaquelanoitenoAltoConselho,vocêotenhafeito.Talvezporcausadisso.

Seus olhos negros permaneceram fixos em Ander por um tempo antes de ele desviá-losnovamente.

—Vocêdeveriadescansaragora.Vocêdeveriadormir.Ander assentiu, a cabeça em outro lugar.ODruida responderamesmo à sua pergunta? Fitou

Allanonbrevementeedesviouosolhosdepressa,confuso.Minutosdepois,quandoolhoudenovo,oDruidajáhaviaseafastado.

CapítuloXXX

A alvoradachegoueumaneblinacinzaedensacobriu totalmenteasplaníciesdeHoare.Densa,imóveleimpenetrável,elaseespalhavapelaterracomoumamortalha.Anoiteafastava-sedanévoaconforme a luz pálida e prateada do nascer do sol subia por trás da Linha-de-Quebra; quando anoite se foi, a neblina despertou.Comum fluxo vagaroso, começou a bater contra amuralha demontanhascomoumasopaazedaremexidadentrodocaldeirão.Giroucadavezmaisemaisrápido,batendocontraospenhascos,atéparecerquearochaseriaengolidaesumiria.

Noalto,dentrodaproteçãodassombrasdoTalhodeHalys,ladeadoporseupaieporAllanon,e cercado pela Guarda da Casa, Ander Elessedil olhava para baixo. Lá, o exército dos elfospreparava-separasedefendercontraashordasdedemônios.Fileirasemais fileirasdearqueiroselanceiros cruzavama gargantaque se abriapara asplaníciesdeHoare, de armas apostos e olhosfixosnaneblinaqueseagitavanabocadopasso.Daquelanévoadeveriamsairosdemônios,apesarde ainda não conseguirem ver nada deles. Conforme os minutos se passavam e o ataque nãoacontecia, os soldados começavam a ficar inquietos. Ander podia sentir que a inquietação deles,assimcomoasua,lentamentesetransformavaemmedo.

—Fiquemfirmes;nãoseapavorem!—AvozdeAllanonressoouderepente,etodososolhosseviraram para o Druida vestido de negro.— Isto é apenas neblina, apesar de ter sido criada pordemônios!Tenhamcoragem!AProibiçãoestácedendo;eosdemôniosestãoprestesaatravessar!

A neblina continuava agitada na entrada do Talho, como se estivesse presa por uma barreirainvisívelquenãoadeixavaavançarmais.Osilênciopairavasobrea terra,profundoe invasivo.AsmãosdeAndertremiamaoapertarobastãodoqualabandeiradacasadeElessedilpendiamurcha,eelelutavasilenciosamenteparaimobilizá-las.

Derepente,osgritoscomeçaram,distanteseassustadores,comosesaíssemdasprofundezasdaterra.Dentrodaneblina,faixasdefogovermelhoeramlançadasnadireçãodocéuaindaescurodamanhã e a neblina agitada pareceu arquejar. Os gritos ficaram mais altos, tornando-se berrosagudos e selvagens, cheios de loucura. Erguiam-se cada vez mais, juntando-se num único urrointerminávelqueecooudaplanícieparadentrodapassagemestreitadoTalhodeHalys.

—Estãovindo—sussurrouAllanonasperamente.Ossoldadosdoexércitoélficocaíramdejoelhos;osomquebrousobreelescomoumaonda.As

flechasforamrapidamentecolocadasnascordasdosarcos;lançasforamapoiadascontraaterra.Dooutro ladodabocadopasso, anévoa rebentounum fogovermelhocujo reflexodeixouocéueaterraescarlates.Osgritoseberrosergueram-senumuivoensurdecedor,ederepenteopróprioarpareceuexplodir comumestrondo trovejantequeestouroupara foradavastidãoatéencontraramuralha da Linha-de-Quebra, sacudindo a rocha até seu cerne. Ander gritou em desespero, e aforça do trovão atirou todos no chão. Levantaram-se depressa, vasculhando os arredores com osolhos.Oarsilenciara-se.Anévoaestavaimóvelecinzanovamente.

—Allanon?—perguntouemvozbaixa.—Acabou...AProibiçãofoiquebrada—exalouoDruida.No instante seguinte, os gritos recomeçaram na vastidão da planície, um rugido louco e

exultante,eashordasdemoníacas,enfimlibertasdesuaprisãocentenária,derramaram-sepelabocadoTalhodeHalys.Descerampelaextensãodagarganta,umamassadecorposnegroseagitados.Osdemônios tinham todasas formase tamanhos, curvadose retorcidosnaescuridãoqueos cercava.Haviadentes,garraseferrõesafiadoscomolâminas;cabelos,escamasepeloseriçados;elesandavamerastejavam,cavavamevoavam,pulavamedeslizavam;eramcriaturasdemitosepesadelos.Todosos seres dasmais antigas histórias de terror estavam ali:metamorfos,metade humanos emetadeanimais,sombrascinzafugidiasqueoolhomalconseguiaacompanhar;imensosogroscomfeiçõeshorrivelmentedistorcidas;demôniosquesaltavamcomoseoventoossoprasse;diabretesegoblins,enegrecidos com lama e sujeira; figuras em forma de serpente que sibilavam seu veneno eretorciam-se em frenesi; fúrias e demônios-lobo; carniçais e outras coisas que ingeriam carne esangue humano; harpias e criaturas-morcego que escureciam o céu ao levantar corpos relutantesdentreamassadeseussemelhantes.Surgindoatravésdanévoa,arranhavamerasgavam-seunsaosoutrosemsuaansiedadeparaselibertar.

Osarcoslongosdoselfoszuniram,eumasaraivadadeflechasnegrasseparouosdemôniosmaisà frente. Os demais sequer diminuíram a velocidade, arrastando-se rapidamente sobre os corposdaqueles que tinham caído. Os arqueiros elfos atiraram de novo e de novo, gritando de raiva efrustração.Menosdecinquentametrosseparavamasduasforçaseosarqueiroscomeçaramarecuarparaos ladosenquantoa falangedianteirade lanceirosmoveu-separaotopodaelevação,comasarmasapostos.Osdemôniosavançaram,umamassadecorposqueseretorciamenquantosubiamapedrapartidadagargantaatéondeoselfosesperavam.

Comum estalo abafado, a onda quebrou-se contra amuralha da falange, as garras e as presasbuscando rasgar o que estivesse à frente. As fileiras dianteiras da defesa élfica vacilaramligeiramente,masaguentaram.Demôniosficaramempaladosnaslançaseseusgritosecoarampelodesfiladeiro estreito. Com um impulso, os caçadores élficos os jogaram de volta para o local deondevierameassistiram,horrorizados,àsformasdespedaçadasseremengolidaspelamassaqueveioem seguida. Novamente, os demônios avançaram contra os elfos e, dessa vez, vários delesconseguiram passar pela linha, apenas para morrer instantaneamente quando a fileira de trásadiantou-se para fechar os buracos na vanguarda. Mas os elfos também estavam morrendo,enterradossobamassanegradeseusatacantes,arrastadosàforçadesuasposiçõesedespedaçados.Osdemônioscontinuavamasairdaneblina,milharesdeles,espalhando-sepeloterrenodagargantae por suas paredes. As flechas os cortavam em grandes números; mas onde um caía, três outrosapareciam para tomar o seu lugar. As fileiras élficas começavam a diminuir sob o impacto dosatacantes,etodaalinhadedefesacorriaoriscodeserderrotada.

Eventine deu ordens para recuar. Os elfos saíram de posição às pressas, recuando para suasegunda linhadedefesa,umaplataformapartidade rocha logoabaixodapassagemque levavadevoltaparaocânion.Novamenteosarcoslongoszunirameumachuvadeflechasvoounadireçãodamassa agitada embaixo. Lanceiros assumiram posições, preparados para o ataque, que veio quaseimediatamente.Amaréde formasnegrasabriucaminhosobrematoepedraparaalcançaracercadelançasélficas.Centenasmorreramnainvestida,atravessadosporlançaseflechas,pisoteadosporseus companheiros. Mesmo assim as criaturas demoníacas continuaram avançando pela neblinaparaoestreitodagargantacontraasfileirasdedefensoresélficos.Oselfosjogavam-nasdevolta—uma, duas, três vezes. O Talho de Halys encheu-se de corpos negros, esmagados e sangrando,gritandodedoreódio.

Nabocado cânion,Ander assistia em silêncio ao fluxo e refluxodabatalha.Os elfosperdiamterreno. Conforme Allanon prometera, o cajado da Ellcrys havia enfraquecido os demônios que

atacavamos elfos,paraquemorressemcomosgolpes cortantesdo ferroélfico.Porém,nãoeraobastanteparaimpedirqueahordacontinuasseaavançar—nemmesmoahabilidadedossoldados,asposiçõesdefensivasescolhidas,outodooplanejamentocuidadoso.Eramsimplesmentedemôniosdemaisenãohaviaelfosobastante.

Lançou um breve olhar para seu pai,mas o Rei não o viu. Asmãos de Eventine apertavam ocomprimento retorcido do cajado da Ellcrys e toda sua concentração estava fixa na luta abaixo.Todaalinhadedefesaélficacomeçavaavacilarperigosamente.Usandoarmasarrancadasdoselfosmortos,alémdepedras,bastõesdemadeiraimprovisados,dentes,garraseforçabruta,osdemônioslutavam para romper as fileiras enfraquecidas de lanceiros que impediam sua passagem. OsVoluntários,mantidosnareservaatéomomento, lançaram-separaomeiodoexércitoélfico; seugritodebatalharessoou.Emesmoassim,osdemônioscontinuavamavançando.

—Nãovamosaguentar—murmurouEventine,preparando-separadaraordempararecuar.—Fiqueaqui—sussurrouAllanonderepenteparaAnder.Naquele mesmo momento, os demônios quebraram o flanco esquerdo e irromperam pela

garganta,emdireçãoaoshomensqueestavamna frentedabocadocânion.AGuardadaCasa foiparaafrentedoReiedeAndera fimdeprotegê-los,DardaneRhoeaumpassodecada lado.Asespadascurtasdeslizaramdasbainhasdecouro,ometalbrilhante.Apressadamente,Anderenfiouabandeira dosElessedil na terra rochosa e desembainhou sua própria arma.O suor corria por seucorpodebaixodacotademalhaesuabocaficousecademedo.

Allanon avançou. Suas vestes negras esvoaçaram quando ergueu os braços. Chamas azuisromperam a penumbra, saindo dos dedos do Druida, e o chão ao redor dos atacantes explodiu.Fumaçasubiudasrochas,dispersando-sesobreoscorposnegrosesemvida.Masnemtodoshaviamcaído. Por um instante, os sobreviventes hesitaram.Atrás deles, a brecha se fechara de novo; nãohavia como voltar. Berrando de fúria, eles avançaram, atacando a Guarda da Casa. A luta foidesesperada. Os demônios morriam pelas espadas dos caçadores élficos, porém um punhadoconseguiuatravessare se lançounadireçãodoRei.UmgoblinmagrosaltousobreAnder,comasgarras à procura de sua garganta. Freneticamente, o Príncipe Élfico ergueu a espada curta,defendendo-se do ataque. Novamente, a criatura o atacou, mas um dos Guardas apareceurapidamenteentreeles,jogandoodemônionochãocomumúnicogolpe.

Ander tropeçou para trás, horrorizado, vendo a batalha se aproximar. O flanco esquerdo serompera outra vez, e novamente Allanon avançara para encarar os inimigos. O fogo azul foilançadonosatacantes,cujosgritosencheramoambiente.Umgrupodedemôniosromperaoflancodireito também, descendo a encosta em disparada numa tentativa desesperada para ajudar oscompanheiros presos dentro da linha defensiva dos elfos. Ander ficou paralisado. Não haviahomensdaGuardasuficientesparadetê-los.

Então,demodoespantosoeimpossível,Eventinecaiu,golpeadoporumbastãolançadodeumponto da massa de atacantes. O golpe atingiu o velho Rei nas têmporas e ele foi ao chãoimediatamente,soltandoocajadodaEllcrys.Umurroergueu-sedasgargantasdosdemônios,eelespressionaramcomuma fúria renovada. Seisdosque tinhamdescidopela encosta aproximaram-sedoReiparaacabarcomele.

MasAnderjápularaparaoladodopai,esquecendo-sedoprópriomedoecontorcendoorosto,emfúria.Comumurroderaiva,atacouosinimigosmaisàfrente,goblinsnegroscomoaquelequequaseacabaracomelepoucoantes,edoisestavamcaídosantesqueosoutrostivessempercebidooque acontecera.Como se enlouquecido,Ander golpeou os outros, empurrando-os para longe doReicaído.

Porummomento, tudo ficouumcaos.Na elevação, a linhadedefesados elfos fora forçadaarecuar quase até a boca do cânion. Os demônios avançavam em grupos, golpeando os elfos quebloqueavam o caminho, berrando de alegria ao ver Eventine caído. Ander lutou paramanter osdemônios longe de seu pai. Em sua fúria, tropeçou em um dos que matara e caiu. No mesmoinstante,ascriaturasabateram-sesobreele.Garrasoalcançaram,rasgandosuaarmadurae,porumterrívelmomento,oPríncipeacreditouqueseriaumhomemmorto.MasDardaneRhoe lutaramaté chegar ao seu lado, dividindo seus atacantes e levando-o até um lugar seguro. Tonto, Andertropeçoudevoltaparaondeopaiseencontravaeajoelhou-seaoladodovelho,comincredulidadeechoque inundandoseu rosto.Suasmãosprocuraramapulsação.Encontraram,apesarde fracaelenta.Seupaiaindaestavavivo,mascaíra,perdidoparaoselfos,paraAnder—oRei,oúnicoquepoderiasalvá-losdoqueestavaacontecendo...

Allanon surgiu ao seu lado. Pegando o cajado caído, fez Ander ficar de pé com um puxão ecolocouoobjetoemsuasmãos.

—Lamente-sedepois,PríncipeÉlfico.—Eleaproximouorosto sombriododeAnder.—Porora,vocêprecisaliderá-los.Recueoselfosparaocânion,rápido.

Andercomeçouaprotestar,masparou.OqueviunosolhosdoDruidaoconvenceudequenãoeraolugarnemahoraparadiscutir.Semfalarnada,obedeceu.Ordenouquelevassemseupaidali.Depois,reuniuaGuardadaCasaaoseuredornaentradadocânionemandoumensageirosparaocentroeparaos flancosda linhadedefesa,ordenando-lhesque recuassem.ComAllanon logoaoseulado,colocou-senafrentedagarganta,ondeoselfoseoshomensdafronteirapudessemvê-lo,eobservouabatalhaavançaremsuadireção.

Por trás, surgiram os lanceiros das falanges élficas e os soldados cinzentos dos Voluntários,bloqueando a entrada do cânion. Stee Jans apareceu, o cabelo ruivo esvoaçando e uma espadaimensanasmãos.OsbraçosdeAllanonergueram-seacimadacabeça,asvestesnegrasespalharam-seaoseuredoreofogoazulfoilançadodeseusdedos.

—Agora!—comandoueleaAnder.—Devoltaaocânion!AnderlevantouocajadodaEllcrysegritou.OsúltimoselfoseVoluntáriospararamdelutare

correram de volta pelo passo que ligava a garganta ao cânion. Gritos de raiva partiram dosdemônios,queavançaramatrásdeles.

Allanonestavasozinhonaentradadopasso.Emsuaânsia,osdemôniosforamatéele,escalandoa garganta numa onda de corpos obscuros. O Druida parecia se concentrar; sua forma esguiaendireitou-secontraasombradasrochas.Novamente,ergueuasmãoseo fogoazulexplodiu.Elequeimou toda a entrada do cânion, subindo como uma barreira na frente dos demôniosenraivecidos,impedindosuapassagem.Uivandoegritando,elesrecuaram.

Dentrododesfiladeiro,Allanonvirou-separaAnder.—Ofogosóduraráalgunsminutos.—OrostodoDruidaestavaabatidoemanchadocomsuor

esujeira.—Depoiselesnosatacarãonovamente.— Allanon, como podemos resistir contra esses números...? — Ander começou a falar,

desesperado.— Não podemos... não aqui, não agora. — O Druida segurou o braço dele. — Os passos da

Linha-de-Quebraestãoperdidos.Precisamosfugirrápido.Anderjáestavagritandoordens.Seucomandomandouoexércitodeelfosdevoltapelocânion,

a reserva de cavalaria cavalgando à frente e carregando os feridos que conseguiam montar; oslanceiros e arqueiros foram logo atrás, carregando os feridos. A Guarda da Casa levava o Reiinconsciente. Allanon e Ander ficaram na retaguarda. Haviam acabado de passar pelo poço

protegido por arbustos no centro do cânion quando a chama que bloqueava a entrada opostacintiloueapagou-se.

Nomeiodafuga,oselfosolharamparatrás.Poruminstante,aentradaficouaberta,e logoosdemôniosavançaram,enchendoapassagemestreitaenquantolutavamparaalcançarodesfiladeiro.Uivando, correram atrás dos elfos fugitivos. Era tarde demais. O corpo principal do exército jáhaviaalcançadoapassagemestreitaquelevavaatéafissuraseespalhandoapartirdali.AretaguardadeVoluntários, sobocomandodeStee Jans, tomava suasposiçõesenquantoAllanon,AndereosremanescentesdaGuardadaCasacruzavamasúltimascentenasdemetrosdocânion.Nabeiradapassagem,viraram-seporummomentoparaobservaraaproximaçãodashordasdemoníacas.

Eraumespetáculosurpreendenteeassustador.Comoumaondaescura,osdemôniosencheramo desfiladeiro, espalhando-se por seu solo coberto de grama de lado a lado; seus corpos negrosarquejavam e agitavam-se como ratos fugindo das águas de uma grande inundação.A terra ficounegracomasfigurasqueseretorciamesedobravam,eoarerapontilhadoporaquelesquevoavam.ODruidaeoselfosassistiamsemacreditar.Eracomoseaquantidadedelesfosseinfinita.

Abruptamente, a onda dividiu-se no ponto em que se afastava da garganta e uma figuramonstruosaecobertadeescamassurgiu.Verdeescuraeabrutalhada,sobrepujavaseussemelhantesenquanto subia pelo passo, abrindo caminho através do cânion, espalhando os demais como sefossem folhas.Os elfos gritaram, horrorizados. Era umdragão, seu corpo de serpente coberto deespinhoseescorregadioporcausadesuassecreções.Seispatasretorcidasepoderosas,comgarrasecobertas de pelos negros, apoiavam o corpo imenso. A cabeça se contorcia no ar à procura dealguma coisa, com seus chifres e carapaça, um caroço distorcido onde brilhava um único olhoverdee sempálpebra.Quandoocheirodosangueélfico tocousuasnarinas, seu focinhoabriu-se,revelando fileiras de dentes afiados, e sua cauda bateu freneticamente atrás de si, enchendo oambientede corposdestroçados.Osdemônios abriram espaço correndo, e omonstro arrastou-separafrente,balançandoarochacomopesodesuapassagem.

Noladoopostodocânion,AllanonobservouaaproximaçãododragãoporummomentoantesdesevirarparaAnder.

—Recuemparaalémdapassagem.Rápido!Anderempalideceu.—Masodragão...—...édemaisparavocês.—AvozdoDruidasooufria.—Façaoqueeudigo.Deixemodragão

comigo.Anderandoupara trásedeuaordem, fazendooexércitodoselfosrecuaratéooutro ladoda

fenda.ComStee Jans ao seu lado,Ander virou-separa ver.Allanon estava sozinho, observandoocânion.Odragãopassarapelocentroeagoracambaleavaencostaacimanadireçãodeles.JáavistaraoDruida, aquela figuranegra solitáriaquenãocorrera comoosoutros, e ansiavaalcançá-laparaquepudesseesmagá-la.Aspatasgrossasagitaram-se,partindoaspedrasea terraembaixo.Aoseulado e atrás de si, os demônios o acompanhavam, gritando em expectativa, tropeçando para nãoficarnocaminhodeseuirmãomonstruoso.

Allanonmanteve sua posição, as vestes negras apertadas ao redor de seu corpo, até o dragãoestar a menos de cem metros. Então, suas vestes se espalharam e os braços finos se ergueram,estendendoasmãosnadireçãodomonstro.Fogoazulfoilançadodeseusdedos,atingindoacabeçaeopescoçododragão, fazendoo cheirode carnequeimadaenchero ar.Mesmoassima criaturanão diminuiu o passo, ignorando o ataque como se fosse ummero incômodo; sua forma imensaainda avançava. Novamente, o fogo o atingiu, queimando as patas da frente e o peito, deixando

trilhasdefumaçaquesubiampeloseucorpo.Seusibiloderaivasoouagudoefrio,emesmoassim,elecontinuou.

Allanonrecuouparaodesfiladeiro,movendo-sedepressaatéoladooposto.Novamente,virou-se. O dragão apareceu, avançando pela passagem estreita. Allanon atacou, lançando o fogo azulcortanteemrajadasfortesesúbitas.Odragãodeuumsibilovenenosoaogolpearoaràsuafrente,frustrado por não ser capaz de alcançar a criatura zombeteira. As paredes do desfiladeiroatrapalhavamseusmovimentos enquantoobicho se arrastavade formadesajeitada.Atrásdele,osgritosdeseuscompanheirosoinstigavamacontinuar.

Lentamente,Allanonfoisaindodabocadodesfiladeiro,encaminhando-separaapassagemqueestavacheiadefumaçaepoeira,eaformaabrutalhadadodragãofoiobscurecidapelabrumaseca.Subitamente,eleapareceu,demandíbulasabertas,famintas.Comasduasmãosunidasdiantedesi,Allanonmandouumjatodefogonadireçãodoolhodomonstro.Quandoofogooatingiu,todaacabeçadacriaturafoienvolvida.Destavez,odragãogritou,umuivoterrívelquemostravasuadore fúria. Seucorpoergueu-sedentrododesfiladeiro,batendo-se contraasparedesdepedraatéospenhascos tremerem com a força de seus golpes. Pedregulhos caíam ao redor do monstro, quearquejavaesedebatiadedor.

Pouco depois, apareceu uma rachadura larga na parede sul e o penhasco inteiro começou adeslizarlentamenteparaodesfiladeiro.Sentindooperigoemqueseencontrava,odragãoarrastou-se para frente, desesperado para sair do passo.Quase cego pela dor e pela poeira, libertou-se dodesfiladeiroenquantotoneladasderochacaíamatrásdesi,enterrandoosdemôniosquetentavamsegui-lo.Ofogoazuloatingiunomesmoinstante,masnãoteveefeito.Destavez,odragãoestavapronto, sua cabeça rugosa balançando cuidadosamente para evitar o fogo. À sua frente, estava afiguraagachadadoDruida.Silvandodefúria,omonstroarrastou-secomdificuldadenadireçãodeseuinimigo,estalandoasimensasmandíbulas.Allanondeumeia-voltaedisparou,movendo-senãonadireçãodatrilhamaisamplaàdireita,masacelerandoparatomarocaminhoestreitoquefaziaumacurvaàesquerdaporcimadabrecha.Completamenteenlouquecidoesemseimportarcomoque poderia acontecer, o dragão foi atrás dele. Apressadamente, pulou com estrondo naplataforma, procurando com a mandíbula o humano que fugia, usando as patas poderosas paratomarimpulso.

Derepente,aplataformanãoestavamaislá.Arochapartidacedeudebaixodopesodacriaturamonstruosa.Comumesforçodesesperado,odragãoavançousobreoDruida.Allanonpulouparatrás quando as mandíbulas gigantescas se fecharam a trinta centímetros de sua cabeça. Com umterrível silvo final, odragãoescorregoudaplataformaque ruía,desaparecendonoabismoescuronumaavalanchedeterraepedra,gritandodeódio.Caiunovazioesefoi.

AnderElessedil encontrava-sedo ladoopostodapassagemeassistiuaAllanon retornarpeloquesobraradaplataforma.Depoisdeumtempo,desviouoolhar.Rapidamente,viuqueodesfiladeiroestava bloqueado por toneladas de rocha. Um sorriso amargo lentamente marcou seu rostoensanguentado.Osdemôniosnãomaisconseguiriamsegui-lospeloTalhodeHalys.Oselfoshaviamganhado uma breve folga, uma chance de se reagrupar de forma a conseguir tomar posição deresistênciaemoutrolugar.

Virou-se. Atrás de si, dentro da boca do passo, os soldados do exército élfico encaravam assombras em silêncio; o cansaço e a incerteza nublavam seus rostos. O Príncipe podia ler o queestavarefletidoali.TantosdemônioshaviamsaídodaProibição—muitosmaisdoquequalquerum

deles acreditaria ser possível.Haviam falhadomiseravelmente em detê-los ali. Como os deteriamemSarandanon?

Sem dizer nada, desviou o olhar novamente. Não tinha a resposta. Perguntou-se se alguém ateria.

CapítuloXXXI

FoiumexércitodesanimadoquesaiudoTalhodeHalys,envergonhadopeladerrotaquelhesforainfligidaepasmadocomonúmerodemortoseferidos.Paraosmortos,perdidosnafugaatravésdopasso,nãohaveriao retornoapropriadodocorpoparaa terraque lhederavida.Paraos feridos,não haveria alívio da dor excruciante causada pelas chagas inflamadas pelo veneno das garras edentes dos demônios; seus gemidos e gritos perduravam de forma insuportável na quietude domeio-dia.Paraosdemais,aquelesquemarchavamparaosulcontornandoamuralhadaLinha-de-Quebra, não haveria conforto para o que haviam presenciado naquele dia, nem para o quecertamente enfrentariammais adiante. Conforme o sol a pino batia sobre eles, as bocas ficavamsecascomasedeeseuspensamentos,sombrioscomamargura.

AnderElessedil liderou-os,apesarde,emsuamente,nãoserumlíder,maspoucomaisdoquevítima dos caprichos das circunstâncias, e seus pensamentos eram lúgubres. Queria que aquiloterminasse, que seu pai recobrasse a consciência e que seu irmão retornasse. Segurava o cajadoretorcidodaEllcrysesejulgavaumtolo.Nadadissodeveriateracontecido.Porém,sabiaquedeviadesempenhar o papel que lhe fora imposto por mais algum tempo, pelo menos até o exércitochegaràFendadeBaen.Atélá,teriaterminado,misericordiosamente.

Seu olhar dirigiu-se a Allanon. O Druida cavalgava em silêncio ao seu lado, sombrio eenigmáticoemsuasvestes escuras, comospensamentoscuidadosamenteescondidosdeAnder.Sófalaraapenasumavezduranteamarchadevolta.

—Agoraentendoporqueelesnosdeixaramchegartãolonge—dissera,comavozbaixa,apesarderepentina.—Queriamqueestivéssemosdentrodestasmontanhas.

—Queriam?—questionaraAnder.— Queriam, Príncipe — respondera Allanon friamente. — Com tantos, eles sabiam que não

havianadaquepudéssemosfazerparaimpedi-los.Deixaramquenósmesmosnosencurralássemos.Umcavaleiro solitário apareceunohorizonte, suamontaria levadaquase à exaustão enquanto

galopava impetuosamente atrás da pradaria na direção dos elfos. Erguendo o cajado da Ellcrys,Ander sinalizou que parassem. Com Allanon ao seu lado, cavalgou para encontrar o cavaleiro.Desgrenhadoesujo,ohomemparoubruscamentediantedeles.Anderconhecia-o,ummensageiroaserviçodeseuirmão.

—Flyn—falouonomedoelfoemsaudação.Omensageirohesitou,olhandorapidamenteaoseuredorparaogrupodesoldados.—TenhodemereportaraoRei...—começouele.—DêsuamensagemaoPríncipe—interrompeuAllanon.—Meusenhor—saudouFlyn,orostopálido.Derepente,apareceramlágrimasemseusolhos.

—Meusenhor...—começoudenovo,massuavozfalhouenãoconseguiucontinuar.AnderdesmontouesinalizouparaqueFlynfizesseomesmo.Semdizernada,colocouumbraço

aoredordomensageiroangustiadoeconduziu-sepordiversospassosàfrente,atéondepoderiamconversaremparticular.Ali,encarouoelfodiretamente.

—Devagar,agora...medêasuamensagem.

Flynassentiuecontraiuorosto.—Meusenhor,recebiinstruçõesparadizeraoReiqueoPríncipeAriontombou.Meusenhor...

eleestámorto.Andersacudiuacabeçalentamente.—Morto?—Eracomoseoutrapessoaestivesse falando.—Comoassim,morto?Elenãopode

estarmorto!—Fomosatacadosaoamanhecer,meusenhor.—Flynchoravaabertamente.—Osdemônios...

erammuitos.Elesnosobrigaramasairdopasso.Fomossuperados.Oestandartedebatalhacaiu...equandooPríncipeAriontentourecuperá-lo,osdemôniosopegaram...

Anderrapidamenteergueuamãoparaimpediraspalavrasseguintesdoelfo.Nãoqueriaouviroresto. Era um pesadelo que não podia estar acontecendo. Seus olhos foram rapidamente atéAllanon,eencontrouorostosombriodoDruidaviradoparasi.Allanonsabia.

—Nóstemosocorpodomeuirmão?—Anderforçou-seafazerapergunta.—Sim,meusenhor.—Queroqueotragamparamim.Flynassentiuemsilêncio.—Meu senhor, tem mais uma coisa. — Ander virou-se de novo, esperando. —Meu senhor,

perdemosasCascatasdeWorl,masocomandantePindanonacreditaquepodemosretomá-las.Elepedemaiscavaleirosparafazerumavarreduraatravésdapradariadooutroladodopassoe...

—Não!—Anderointerrompeulogo,comumaurgênciarepentinanavoz.Comesforço,eleserecompôs.—Não, Flyn. Diga ao comandante Pindanon que ele deve recuar imediatamente. EledeveretornaraSarandanon.

Oelfoengoliuemseco,olhandoderelanceparaAllanon.—Perdoe-me,meu senhor,mas fui instruído a falar com oRei sobre isso.O comandante vai

perguntar...Anderentendeu.— Diga ao comandante que meu pai foi ferido. — Flyn empalideceu ainda mais e Ander

respiroufundo.—DigaaKaelPindanonqueestounocomandodoexércitodoselfosequeeledeverecuar imediatamente.Pegueumcavalodescansado,Flyn,evárápido.Tenhaumajornadasegura,mensageiro!

Flyn o saudou e apressou-se. Ander ficou sozinho, encarando a planície vazia, sentindo umentorpecimento estranho percorrer seu corpo conforme ele percebia que não haveriamais comorepararadistânciaquesempreo separaradeArion.Perderao irmãopara sempre.DecostasparaAllanon,permitiu-sechorar.

A penumbra deslizou silenciosamente sobre o vale do Sarandanon; sua sombra estendeu-se até aFenda de Baen e o exército dos elfos. Dentro de sua tenda, Eventine Elessedil dormia, aindainconsciente, com a respiração superficial e irregular.Ander estava sentado sozinho ao seu lado,encarando-o em silêncio, desejando que ele acordasse. Até que ele despertasse, seria impossívelavaliaraseriedadedoferimento.Eraumancião,eAndertemiaporele.

Impulsivamente, estendeu amão e pegou adopaina sua.Amão estavamole.O velhonão semexeu.Andersegurou-aporumtempo,paradepoissoltá-laeserecostar,cansado.

—Pai—sussurrou,quaseparasi.Levantou-se e afastou-seda cama, angustiado.Comoaquilopoderia ter acontecido—seupai,

caído,gravemente ferido; seu irmãomorto;eele transformadoem líderdoselfos—comoaquilopoderiateracontecido?Eraumaloucuraquenãoconseguiaaceitar.Certamente,semprehouveraapossibilidadedeseupaieseuirmãocaíremedeelesetornaroúltimodosElessedilparagovernar.Maseraumapossibilidadeabsurda.Ninguémacreditavaquepoderiaacontecerdeverdade,muitomenosele.Estavapoucopreparadoparaaquilo,pensou,melancólico.Oqueforaparaseupaieseuirmão alémde umpar demãos para agir sob o comando deles? Fora o destino deles governar opovoélfico,eraoquequeriam,oqueesperavam—nuncaele.Masagora...

Sacudiuacabeça,cansado.Precisariagovernar,pelomenosporumtempo.Eprecisavalideraroexércitoqueseupai lideraraantesdele.PrecisavadefenderSarandanoneencontrarumaformadeimpedir o avançodos demônios.OTalho deHalysmostrara aos elfos o quãodifícil aquilo seria.Sabiamtãobemquantoeleque,seodeslizamentodepedracausadopelabatalhaentreAllanoneodragãonãohouvessebloqueadoapassagem,osdemôniospoderiamtê-losalcançadoeaniquiladoatodos.Suaprimeiratarefa,então,seriadaraoselfosmotivosparaacreditarqueissonãoaconteceriacomelesnaFendadeBaen,apesardaperdadoReiedeseuprimogênito.Emsuma,precisavadar-lhesesperança.

Sentou-se perto do pai de novo. Kael Pindanon poderia ajudá-lo; era um veterano demuitasguerras,umsoldadoexperiente.Maseleajudaria?SabiaquePindanonestavabravoporcausadesuaordem de recuar dos passos da Linha-de-Quebra. Pindanon ainda não tinha retornado,permanecendo atrás, com a retaguarda da cavalaria élfica, para retardar o avanço dos demôniosparaSarandanon.Maspréviasdeseudescontentamentohaviamchegadoaosseusouvidospormeiode comentários emitidos por alguns de seus oficiais. Quando ele retornasse, confrontaria Anderdiretamente.Eentãoascoisasrealmentechegariamaumpontocomplicado.Anderjásabiaqueelepediriaqueocomandodoexércitolhefosseentregue.Andersacudiuacabeçamaisumavez.Seriamuito fácil fazer isso,passaro comandodoexércitoparaPindanonedeixarovelhoguerreiro seresponsabilizarpeladefesado territórioélfico.Talvezdevesse fazer isso.Porém,algodentrode siresistia a uma solução tão simplista ao seudilema; precisava de cautela paranão se livrar rápidodemaisdedeveresqueclaramenteeramseus.

— O que você faria? — perguntou a seu pai em voz baixa, sabendo que não teria resposta,emboraprecisassedeuma.

Osminutossepassarameapenumbraaumentou.Finalmente,Dardanapareceunaentradadatenda.—OcomandantePindanonretornou—anunciou.—Elepediuparafalarcomvocê.Anderassentiue,porummomento,perguntou-separaondeAllanontinhaidonaqueleínterim.

NãoviraoDruidadesdequevoltaram.Noentanto,aqueleencontrocomPindanoneraproblemaseu.Ficoudepéelembrou-sedocajadodaEllcrysqueestavanochão,aoladodacamadopai.Eleoergueuusandoasduasmãosehesitouporummomento,observandooanciãoàsuafrente.

—Descanse—suspirouporfim,virando-separasairdasala.

No aposento ao lado, encontrouPindanon esperando-o.Poeira e sangue cobriama armaduradocomandante,eseurostodebarbabrancaestavavermelhoderaivaquandoeleavançounadireçãodoPríncipeÉlfico.

—Porquevocêordenouqueeurecuasse,Ander?—vociferouele.Andermanteve-sefirme.—Baixeavoz,comandante.OReiestádeitadoalidentro.

HouveummomentodesilêncioenquantoPindanono fulminavacomoolhar.Depois,emvozbaixa,oComandanteÉlficoperguntou.

—Comoeleestá?—Dormindo—respondeuAndercomfrieza.—Agora,qualeraasuapergunta?Pindanonendireitou-se.— Por que você me mandou recuar? Eu poderia ter retomado as Cascatas de Worl. Nós

poderíamosterasseguradoaLinha-de-Quebracomoseupaipretendiaquefizéssemos!— Meu pai queria que mantivéssemos a Linha-de-Quebra o máximo possível — respondeu

Ander,comosolhosfixadosnosdePindanon.—Commeupaiferido,meuirmãomortoeoTalhodeHalysperdido,issonãoeramaispossível.NósfomosderrotadosnoTalhodeHalys,assimcomovocêfoinasCascatas.—Pindanonouriçou-se,masAnderoignorou.—ParaconseguirmosretomarasCascatas,euteriaqueterfeitoumamarchaforçadaparaonortecomumexércitoqueacabaradelutar, sabendoqueeleseria imediatamente jogadodevoltaàbatalha.Senossas forçascombinadasfossem então derrotadas, eles enfrentariam umamarcha exaustiva de volta para Sarandanon compoucas chances de descansar antes de tentarem defender este vale. E o pior de tudo, qualquerbatalha travadadentrodospassosdaLinha-de-Quebraseria semacavalariaélfica.Pararesistiraoavanço dos demônios, nós precisaríamos de toda nossa força. Foi por isso, comandante, que euordeneiquerecuasse.

Pindanonsacudiuacabeçalentamente.—Vocênãotemotreinamentodeumsoldado,meusenhorPríncipe.Vocênãotemodireitode

tomarumadecisãotãocrucialsemprimeiroconsultarocomandantedoexército.Senãofossepelaminhalealdadeaoseupai...

Anderergueuacabeçaderepente.—Nemtermineestafrase,comandante.Seuolharmoveu-seaoverqueaaberturaexternadatendaabria-separaqueAllanoneSteeJans

entrassem.AapariçãodeAllanonnãoerainesperada,masAnderficouumpoucosurpresoaoverocomandantedosVoluntáriosali.Ohomemdafronteiraacenoucomcortesia,masnãodissenada.

Andervoltou-separaPindanon.—Dequalquermodo,oassuntoestáencerrado.Fazemosmelhoremnospreocuparcomoque

temosàfrente.Quantotempoatéosdemôniosnósalcançarem?— Um dia, talvez dois — afirmou Pindanon abruptamente. — Eles precisam descansar e se

reagrupar.Allanonergueuosolhosnegros.—Amanhã,aoamanhecer.Osilênciofoiinstantâneo.—Vocêtemcerteza?—perguntouAnderemvozbaixa.—Elesestãoalémdanecessidadededormir.Amanhã,aoalvorecer.Pindanoncuspiunochãodeterra.— Então precisamos decidir agora como iremos detê-los quando chegarem aqui— declarou

Ander,percorrendolentamenteaextensãodocajadodaEllcryscomasmãos.—Ébem simples!—exclamouPindanon, impaciente.—Defender aFendadeBaen.Cercá-la.

Detê-losnosdesfiladeirosantesquealcancemovale.Anderrespiroufundo.— Foi o que tentamos no Talho de Halys. Falhamos. Os demônios venceram a falange élfica

simplesmente pela superioridade numérica. Não temos motivo para acreditar que agora seria

diferente.—Temos todos osmotivos— insistiu Pindanon.—Nossa força não estámais dividida como

estava na Linha-de-Quebra. Nem os demônios estarão renovados e descansados, se tiveremmarchado diretamente da planície. A cavalaria poderá nos dar apoio, o que não era possível noTalho.Ah,muitacoisaserádiferente,garantoavocê.Oresultadoserámuitodiferentedessavez.

AnderolhourapidamenteparaAllanon,masoDruidanãodissenada.Pindanonaproximou-se.—Ander,dê-meocomandonolugardoseupai.Deixe-meposicionaradefesacomoseiqueele

colocaria.OselfospodemdefenderaFendacontraaquelascriaturas, independentementedaforçadelas.Seupaieeusabemos...

—Comandante—falouoPríncipeemvozbaixa,mascomfirmeza.—EuvinoTalhodeHalysoqueosdemôniossãocapazesdefazer.Euvioqueelesfizeramcomumalinhadefensivaquemeupaitinha certeza que os seguraria. Estamos combatendo um tipo de inimigo diferente. Ele odeia oselfosalémdequalquercompreensão;éimpulsionadoporesseódio...tantoquemorrernãosignificanada. Nós poderíamos dizer omesmo, sendo que a vida nos é tão preciosa? Acho que não. Nósprecisamosdealgoalémdenossastáticas-padrãosequisermossobreviveraesseencontro.

Desoslaio,percebeuoligeiroassentirdeAllanon.Pindanonouriçou-se.—Vocênãotemfé,meusenhorPríncipe.Seupainãoseprecipitaria...Anderointerrompeulogo.—Meupainão está aqui.Mas se estivesse, falaria comvocê comoeu falei.Procuro sugestões,

comandante,nãoumadiscussão.Pindanonenrubesceuevirou-sesubitamenteparaAllanon.—Eoqueestedaítemadizer?Nãotemideiassobrecomopodemospararessesdemônios?OrostosombriodeAllanonestavaimpassível.—Vocêsnãopodempará-los,comandante.Sópodemretardá-los.—Retardá-los?—Retardá-losparaqueaquelaquecarregaasementedaEllcryspossaganhartempoobastante

paraencontraroFogossangueeretornar.— Isso de novo!— bufou Pindanon.—Nosso destino nasmãos daquela garota! Druida, não

acreditonaslendasdovelhomundo.SeasTerrasdoOesteforemsalvas,serãosalvaspelacoragemdeseuscombatentes,pelahabilidadeepelaexperiênciadeseussoldados.Demôniospodemmorrercomoqualquercoisadecarneeosso.

—Comoelfos—oDruidarespondeu,sombriamente.Houve um longo silêncio. Pindanon virou de costas para os demais, apertando as mãos nas

costasdeformaraivosa.Depoisdeummomento,virou-sedenovoparaeles.—DefenderemosaFendadeBaenounão,PríncipeAnder?Nãoescuteinenhumasugestãoalém

daminha.Ander hesitou, desejando que Allanon falasse alguma coisa. Mas foi Stee Jans quem deu um

passoàfrente,quebrandoosilênciocomsuavozáspera.—Meusenhor,possofalar?Ander quase esquecera que o comandante da Legião estava ali. Olhou para o homem alto e

assentiu.—Meu senhor, osVoluntários já sedepararamcomquerelas assimemmaisdeumaocasião a

serviço da fronteira. É uma questão de orgulho para nós que, enquanto nossos inimigos sejamfrequentemente mais fortes, mesmo assim nós tenhamos sobrevivido e eles não. Aprendemos

algumas liçõesdifíceis,meusenhor.Euofereçoumaparavocê.Éesta:nuncaposicioneuma linhade defesa fixa onde a superioridade numérica pode derrotá-lo. Nós aprendemos a dividir nossavanguardadefensivacomumasériede linhasmóveisque semodificamdeacordocomo fluxodabatalha.Estas linhas atacame recuamemsequência,puxandoo inimigoprimeiroparaum ladoedepoisparaooutro,sempreatacandonosflancosenquantooadversáriosevirapararepelirnovosataques,recuandoparaalémdoalcancedoinimigodepoisdogolpe.

Pindanonbufou.—Dessejeito,vocênãoganhanemmantémposições,comandante.SteeJansvirou-separaele.—Quandoo inimigotiversido levadopara longeemseusesforçosparapegá-los,quandosuas

fileiras tiveremdiminuído e sedividido, então vocêune suas forçasdosdois lados e cai emcimadeles.Dessejeito.

Eleuniuasmãosemposiçãodeprece,emitindoumestalo.Umsilêncioespantadoseguiu-se.—Nãosei—resmungouPindanon,emdúvida.—ComovocêdefenderiaaFendadeBaen?—pressionouAnder.—Usariaumavariaçãodoqueacabeidedescreveravocês—replicouSteeJans.—Arcoslongos

nasencostasdeKensrowesobreabocadaFendaparaimpediroavanço.Ainfantariaàfrente,comosevocêtencionassemanteraposiçãocomofeznoTalhodeHalys.Quandoosdemôniosatacarem,mantenha a posição por um tempo e depois recue. Deixe-os passar. Dê-lhes um coelho paraperseguirem,umcomandodecavalariaparaatraí-los.Quandoasfileirasdelesestiveremespalhadaseseusflancosexpostos,aproxime-sepelosdoislados,rapidamente,antesqueelespossamrecuaroureceberreforços.Useaslançasparamantê-loslongedevocês.Osdemôniosnãotêmasnossasarmas.Sevocêficar foradoalcance,nãopodeferi-lo.Quandovocêdestruiravanguarda,deixeocoelhoatrairumasegundafrente.Pegue-osdeoutrojeito;mantenha-osdesequilibrados.Concentre-senosflancos.

Eleterminou.Oselfosoencararam.Pindanonfranziuatesta.—Quemseriaocoelhonissotudo?SteeJansdeuumsorrisotorto.—Quemmais,comandante?Pindanondeudeombros.Anderoencarouinquisidoramente.— Pode funcionar— admitiu o velho guerreiro a contragosto. — Se o coelho valer alguma

coisa,claro.— O coelho conhece alguns truques — respondeu Stee Jans. — É por isso que ele está vivo

depoisdetantascaçadas.AnderlançouumolharparaAllanon.ODruidaassentiu.—EntãotemosumplanodedefesaparaSarandanon—anunciouoPríncipeÉlfico.Apertoua

mãodePindanonedepoisadoHomemdeFerro.—Vamosnosassegurardequesejaumsucesso.Mais tarde naquela noite, quando tudo estava pronto para a batalha do dia seguinte eAnder

Elessedilficouasós,eleparoupararefletirnasortequetiveraporSteeJansestarpresenteemseuencontrocomPindanon.Sóentãolheocorreraquepodianãotersidosorte,masumadasintuiçõestãopeculiaresdoenigmáticoviajantequeconheciamcomoAllanon.

CapítuloXXXII

EnterraramArionElessedil à primeira luzda alvorada. Seu irmão,Pindanon equatrodúziasdeGuardasdaCasaosepultaramàmaneiratradicionaldoselfos,aonascerdeumnovodia,aumnovocomeço. Levaram-no em silêncio até umbosque de carvalhos abaixo da Fenda deBaen, que davapara a extensão azul de Innisbore a oeste e para o vale verde de Sarandanon a leste. Ali, oprimogênito deEventineElessedil foi deixado, seu corpo voltando à terra que lhe dera vida, seuespíritolibertadomaisumavez.

Não deixaram nenhuma marca indicando que era o Príncipe Herdeiro. Allanon avisara quealgunsdemôniosprocurariamaquelessinaiseprofanariamosmortos.Nãohouvecanções,elogiosnemflores—nadaquemostrasseaexistênciadeArionElessedil.NãosobraranadadoprimogênitodeEventinealémdelembranças.

Ander viu as lágrimas nos olhos daqueles reunidos ali e sentiu que as memórias seriam obastante.

Menosdeumahoradepois,osdemôniosatacaramoselfosnaFendadeBaen.Desceramascolinasaonorte,seusgritoseuivosestilhaçandoaquietudedamanhã.ElesvieramcomohaviamsugeridonoTalhodeHalys,umamassadecorposescuroseretorcidos,avançandocomoaságuaslibertasdeumaenchente.

NaextremidademaisbaixadaFenda,afalangeélficaaguardava,asfileirasdelanceirosombroaombro, com armas a postos. Conforme a vanguarda dos demônios avançava na direção deles, osarcos élficos zuniam nas encostas de Kensrowe e o ar ficava cheio das flechas emplumadas. Osdemônios convulsionavam e caíam, pisoteados por aqueles que vinham atrás.Onda após onda dehastesnegrasrasgavamsuasfileiras,ecentenasmorreramnainvestida.

Mas,porfim,alcançaramafalangeelançaram-secontraela,berrandodedorquandoaspontasde ferro das hastes furaram seus corpos, transpassando-os. O ataque vacilou e foi repelido.Novamenteavançaramnumimpulsorepentinodecorposmalformados,garrasepresasávidaspordilacerar, enovamente foram repelidos.O chãona frenteda linhadedefesa élfica estava cobertocom osmortos e osmoribundos. Emesmo assim a horda de demônios os pressionava, com seusnúmerosinfindos,eporfimalinhaélficavacilouesepartiu,comseucentroparecendoseromper.Osdemôniospassarampelabrecha,pulando,saltandoerastejandoparaforadafenda.

Nomesmoinstanteencontraramumcorpodecavaleiros,vestidoscommantoscinzadebruadosde vermelho, liderados por um homem alto de rosto marcado por cicatrizes, montado em umalazão ruano.Os cavaleiros varrerama frenteda ondadedemônios, ceifandoos inimigos comaslanças. Depois se foram, virando de volta para o vale com seus mantos cinza esvoaçando; suasfiguras esguias estavam curvadas sobre as montarias enquanto galopavam para longe dali. Osdemônios perseguiam-nos em frenesi. Pouco depois, os cavaleiros deram a volta, disparando devolta para seus perseguidores com as lanças abaixadas, espalhando os corpos ao golpearemnovamente,paraemseguidaseafastarem,velozes.Osdemôniosuivaram,frustrados,earrastaram-se

atrásdeles.Subitamente,oscavaleirosdemantoscinzagiraram,formandoumalinhasólidaquebloqueavao

caminho dos demônios, e o braço do homem com as cicatrizes no rosto ergueu-se. Não maisagrupados protetoramente,mas espalhados por centenas demetros na pradaria além da boca daFenda de Baen, os demônios que haviam rompido a linha de defesa dos elfos olharam ao redor,preocupados, percebendo naquele instante o que lhes acontecera. De todos os lados, fileiras dacavalaria élfica surgiam, cercando-os como gado. Atrás deles, a abertura fora fechada por umafiguraaltavestidadenegro,depénotopodaencostamaisbaixadoKensrowe,comfogojorrandodas mãos esticadas para espalhar os demônios que vagueavam incertos pela Fenda.Desesperadamente, aqueles que estavampresos tentavam romper as fileiras à sua volta.Porém,oselfos uniram-se rapidamente, com espadas e lanças cortando ao meio as figuras escuras quetentavamalcançá-los.Eminstantes,todoogrupodedemôniosforadestruído.PelaFendadeBaenecoouogritoélficodevitória.

Nãoacabouali.Duranteorestantedamanhãecomeçodatardeabatalhacontinuou.Váriaseváriasvezes,osdemônios se reuniamparaatacara falangeélficaquebloqueavaapassagemparaaFendadeBaen.Váriaseváriasvezes,conseguiampassar,lutandocontraarqueirosélficos,ofogodoDruidae contraos lanceiros, apenaspara se flagraremcaraa caracomoscavaleiros cinzentosdaLegiãodosVoluntários.Provocadoseperturbados,elesosperseguiam.Semseimportarcomoqueencontrariam,permitiam-se seratraídos,porvezesnadireçãodamargemdo Innisbore,porvezesna direção das encostas deKensrowe ou para oVale de Sarandanon. Então, quando parecia quehaviamcapturadooscavaleirosevasivos, viam-secercadospela cavalaria élfica, comsuasprópriasfileirasenfraquecidasedesprotegidas,seuavançoostendolevadoparalongedoscompanheirosqueaindalutavamnaFenda.Furiosos,atiravam-secontraoinimigo,masnãohaviaescapatória.OselfosavançavamenovamentesuaslinhassefechavamaoredordaFenda.

Poralgumtempo,osdemôniostentaramganharasencostasdeKensrowe,desejandoacabarcomos odiosos arcos longos. Mas os arqueiros elfos, cuidadosamente posicionados, deixando suasfileirasbemprotegidaspelasrochas,faziamempedaçosaquelesquetentavamalcançá-los.Nomeiodeles, estava o gigante vestido de negro, com fogomágico fluindo dasmãos, seu poder fabulosoprotegendooselfosquelutavamabaixodele.Todosostiposdedemôniotentavamalcançá-lo—osqueseenterravamnaterra,osquevoavam,osqueescalavamasparedesdopenhascocomomoscas.Todosfalhavam;todosmorriam.

Emumataque,osdemôniosesmagaramafalangeélficanopontoemqueelacercavaamargemdoInnisbore, fazendo-avoltarparaaFendaenquantomilharesdeatacantesenxameavamsobreascolinascobertasdeareianadireçãodovaledooutrolado.Porummomento,pareceuquealinhadefensiva élfica finalmente fora rompida, mas, em uma iniciativa corajosa, a cavalaria convergiupara o leste desse novo avanço e cavalgou até lá numa investida que obrigou os demônios arecuarem até as águas do Innisbore. Novamente, os seres malignos não conseguiram se agrupar,sendoespalhadospelapraia,decostasparao lago.Oataquevaciloue separtiu,estilhaçadopelaslançasdoselfos.Aaberturanadefesafechou-senovamente.

Milhares de demônios morreram naquela tarde, em investidas irracionais, irrefletidas eselvagensemtodaaFendadeBaen.Atacaramincessantemente,avançandoemsuacorridarumoaospenhascoscomadeterminaçãocegadelemingues,desatentosàdestruiçãoqueosaguardava.Elfosehomens da Fronteira morreram com eles, pegos em seu frenesi para atravessar o Sarandanon.Porém, o que acontecera no Talho deHalys não se repetira naquele dia; várias e várias vezes osdemônios foram repelidos e a vanguarda de sua força de ataque destruída sem que tivesse a

oportunidadedereceberreforçosdamassaquevinhaatrás.Finalmente,nomeiodatarde,osdemôniosrealizaramseuúltimoataque.Agrupando-sedentro

daFendadeBaen,investiramcontraafalangeélfica,empurrando-apuramentecomaforçadeseusnúmeros,edividindo-a.Irromperampelosburacos,ederepentenãohaviamaistempoparatáticascuidadosamente elaboradas, ou para habilidades e sutilezas.Os elfos e a Legião contra-atacaram,com seus cavaleiros avançando no meio da carnificina. Espadas e lanças cortavam fundo oemaranhado obscuro de corpos retorcidos. Cavaleiros e cavalos caíram gritando. As linhas deguerreiros avançavam e recuavamdesesperadamente. E então finalmente os demônios desistiram,rosnandoearranhandoenquantofugiamdevoltaparadentrodaFenda.Ouviram-seberrosderaivavindosdomeiodeles.Dessavez,elesnãoseviraram.Continuaram,atropelandoosprópriosmortosemoribundos, tropeçando, rastejandoeescalandoas colinasalém,atéqueaFendadeBaen ficouvazia.

Os elfos observaram as figuras que batiam em retirada, cansados e incrédulos, assistindo aosúltimos demônios se desesperando na curva das colinas. O som de sua passagem lentamentetransformou-se em silêncio. Os elfos olharam ao redor e viram com clareza a grandiosidade dabatalha que acontecera. Milhares de corpos emaranhados jaziam espalhados pela planície,distribuindo-separao lestedaFendadeBaen,deKensroweatéoInnisbore,quebrados, imóveisesemvida.AFendaemsiestavacobertadeles.Oselfosficaramestarrecidos.Eracomoseavidanãosignificasse nada para os demônios, como se a morte fosse de algummodo preferível. Os olhoscomeçaramaprocurarrostosdeamigosecompanheiros.Mãosestenderam-seembuscadeoutras,apertando-se com força, eos elfos ficaramrepletosdealívio, gratospor terem,dealguma forma,sobrevividoaumadestruiçãotãoterrível.

Na boca da Fenda, Ander Elessedil encontrou Kael Pindanon e, com um impulso, abraçou osoldadoveterano.Gritosdecelebraçãocomeçaramairromperdasgargantasdeseuscompatriotasquandoperceberamqueodiaeradeles.SteeJanscavalgavaàfrentedosVoluntárioseoshomensdaFronteira juntaram-se aos elfos, erguendo as lanças em saudação. Por toda a extensão doSarandanon,orugidodevitóriacresceueecoou.

ApenasAllanonficouàparte.Encontrava-sesozinhonasencostasdeKensrowe,comseurostosombrio viradopara onorte, emdireção às colinas para as quais os demônioshaviam fugido tãorepentinamente.Perguntava-seporqueelesestavamtãodispostosadarsuasvidastãofacilmente,e,talvezaindamaisimportante,porquedurantetodoaquelemassacrenãoviranemsinaldodemôniochamadoDagdaMor.

A tardeencontrouocrepúsculoeanoitedeslizou silenciosamente.NabocadaFendadeBaen,oexércitodasTerrasdoOesteesperoupeloataquedosdemônios.Masosdemôniosnãovieram.Nemvieramaoamanhecer,apesardeelfosehomensdaFronteiraestaremnovamenteapostos.Ashorasdamanhãcomeçaramasearrastar,eumainquietaçãocrescentepermeouasfileirasdosdefensores.

Ao meio-dia, Ander foi procurar Allanon, esperando que o Druida pudesse lhe dar algumaexplicação para o que estava acontecendo. Sozinho, escalou as encostas do Kensrowe até ondeAllanonmantinha sua vigília solitária, abrigadopor umaplataformade pedra, semiescondidonasombraenquantoobservavaaextensãodoSarandanon.OPríncipeÉlficonãofalavacomoDruidadesde o dia anterior, quando Allanon subira aquelas montanhas; ninguém falara. Tomado pelaalegria da vitória dos elfos sobre os demônios, não pensaramuito na partida doDruida. Afinal,Allanoniaevinhaotempotodo,raramentedandoalgumaexplicação.Masnaquelemomento,aose

aproximardoDruida,eleseviuimaginandoporqueAllanonescolheraaquelemomentoparaficarsozinho.

ObtevesuarespostanomomentoemqueoDruidasevirouparaencará-lo.OrostodeAllanon,sempre tão sombrio, estava pálido. Linhas fundasmarcavama pele, dando-lhe um tom cansado eabatido,ehaviaumaexpressãomelancólicanospenetrantesolhosnegros.Anderparouderepente,encarando-o.

SeuolhartrouxeumsorrisofracoaoslábiosdeAllanon.—Algooperturba,PríncipeÉlfico?Anderficousurpreso.—Não,eu...ésóque...Allanon,vocêestá...ODruidadeudeombros.— Existe um preço a se pagar pela forma como usamos nossos corpos. É uma das leis da

natureza,apesardecomfrequênciaescolhermosignorá-la.MesmoumDruidaestásujeitoaela.—Elefezumapausa.—Vocêestáentendendooqueestoudizendo?

Anderpareceuinseguro.—Amagiafazissocomvocê?Allanonaquiesceu.—Amagiasugaavidadeseuusuário,drenasuaforçaeessência.Umpoucodoqueéperdido

podeserrecuperado,maséumprocessolento.Etemador...Afrasemorreu,incompleta.Andersentiuumarrepiorepentino.—Allanon,vocêperdeusuamagia?Acabeçaencapuzadaergueu-se.—Amagia não se perde enquanto seu usuário viver.Mas existem limites que não podem ser

excedidos,eoslimitesdiminuemcomopassardosanos.Todosnósenvelhecemos,meuPríncipe.—Atémesmovocê?—perguntouAnderemvozbaixa.Osolhosnegrosestavamdistantes.Allanonmudoubruscamentedeassunto.—Oqueotrouxeaqui?Anderprecisoudeummomentopararecuperarseuspensamentos.—Vimperguntarporqueosdemôniosnãoatacam.ODruidadesviouoolhar.—Porqueelesaindanãoestãoprontos.—Ficouemsilêncioporuminstante,entãoseuolhar

voltou-separaAnderoutra vez.—Masnão se engane, eles virão.Apenas adiam, eháummotivoportrásdisso.Aquelequeoslidera,aquelequechamamdeDagdaMor,nãofaznadasemmotivos.— Ele inclinou-se levemente para frente. — Pense nisso. Dagda Mor não estava entre nossosatacantesontem.

Anderfranziuatesta,preocupado.—Ondeeleestava,então?Allanonsacudiuacabeça.—Aperguntaquedevemosfazeré:ondeeleestáagora?—EleobservouAnderporuminstante

edepoispuxouasvestesaoseuredor.—Tenhopensandoqueseriainteligentemandarpatrulheirospara o norte, além deKensrowe, e para o sul, além do Innisbore, para termos certeza de que osdemôniosnãopretendemnoscercar.

Houveumlongosilêncio.—Osdemôniossãosuficientespara isso?—perguntouAnderpor fim,pensandonosmilhares

queoshaviamatacadonaFendadeBaen.

AgargalhadadeAllanonfoiáspera.—Maisdoquesuficientes.—ODruidavirou-se.—Deixe-mesozinhoagora,Príncipe.Ander desceu o Kensrowe, cheio de dúvidas. Quando retornou ao acampamento, os

patrulheirostinhamsidoenviadoseretomadoaespera.Amanhãviroutardeeatardevirounoite.Umgrupodenuvensgrossascruzouocéuqueescureciaeassombrasestenderam-serapidamente,transformando-seemnoite.

Eosdemônioscontinuaramsemaparecer.

Era perto da meia-noite quando o ataque finalmente ocorreu. Foi repentino, tão súbito que assentinelas de guarda mal tiveram tempo o bastante para soar o alarme antes que os primeirosdemôniososatacassem.VieramatravésdaFendanumainvestidamaciça,ondasdecorposnegrosecorcundassurgindonafrentedasfogueirasdevigia,oriundosdascolinasescurasaonorte.Umaporuma, as fogueiras apagaram-se, extinguidas pelos demônios ao passarem pela Fenda rumo àsencostasdeKensrowe.Comas fogueirasapagadaseocéunoturnobloqueadopelasnuvensvindasdaLinha-de-Quebra, toda aFendadeBaen estava imersana escuridão.Eraumaescuridãoqueosdemônios conheciam bem, à qual haviam se acostumado durante o tempo em que foramprisioneiros daProibição, uma escuridão que os ajudaria. Pois enquanto os elfos e os homensdaFronteirapoucoenxergavam,osdemôniospodiamvercomosefossediaclaro.Berrandocomumaempolgaçãofrenética,atacaram.

Na entrada da Fenda, unidos ao redor de Ander Elessedil e do cajado branco e brilhante daEllcrys,umafalangeélficaenfrentouainvestida.Oimpactoarremessouossoldadosparatrás,maselesmantiveram a formação. Centenas de corpos escuros chocaram-se contra eles, atacando comgarrasepresas.Oselfosresistiramcomdeterminação,comaslançascegamentegolpeandoamassade demônios que pressionava, e gritos de dor rasgavam a noite. Mas os demônios continuavamvindo, avançando contra os elfos, lutando para romper suas defesas. Por alguns minutos dedesespero, os elfos resistiram às investidas selvagens, segurando as massas que se arremessavamcontra eles.Mas a escuridão os confundia e dificultava suas ações. No final, foram superados. Afalange começou a ceder, recuando, exausta, e se separando. Segundos depois, os demôniosconseguirampassar.

Isso teriasidoo fimsenãofosseporAllanon.Alcançandoasencostas inferioresdoKensrowe,ondeosarqueirosélficosenfrentavamumabatalhaperdidaparaafastarosdemôniosqueavançavamcontraeles,oDruidapegouumpunhadodepoeirabrilhantedeumapequenabolsaamarradaemsuacinturaejogou-aparaoalto.Instantaneamente,apoeiraespalhou-sepelocéunoturnosobreoselfosembatalha,enchendoaescuridãocomumbrilhobrancoqueiluminouaterracomaclaridadedoluar.

A escuridão e a vantagens dos demônios se foram. Por trás da falange partida, irrompeu umgrito de guerra. Stee Jans e seus homens, os Voluntários da Legião, cavalgaram para a aberturaprincipal, onde omaior número de demônios avançava. Como uma cunha de ferro, separaram avanguarda do ataque. Com menos de quatrocentos homens, martelaram a horda diante deles eobrigaram-na a recuar até a entrada da Fenda de Baen. A cavalaria élfica chegou para ajudá-los,comKaelPindanonàfrente,decabeçadescobertaeocabelobrancoesvoaçando.Portodaalinhadefensiva,aslançasdoscavaleirosgolpearamosdemônioseosrepeliram.

NasencostasdeKensrowe,osdemônioshaviamrompidoas fileirasdosarqueiroseavançavamparaSarandanon.Allanonestavapraticamentesozinhonocaminhodeles,comfogoazulbrotando

de suasmãos.As criaturas avançaram sobre ele por todos os lados, uivando em frenesi quando ofogo os reduziu a cinzas. O Druida não cedeu. Quando o número cresceu demais para ele,transformouaextensãodaplanícieaoseuredornuminfernomortalporcentenasdemetros,umamuralha de fogo azul que cercou os demônios enlouquecidos, destruindo todos os que tentavamatravessá-la.

AumacentenademetrosdedistânciadaentradadeFendadeBaen,oselfoseosVoluntárioslutavam desesperadamente para impedir que o corpo principal dos demônios abrissem caminhopara Sarandanon. Foi uma batalha terrível e assustadora, e o cheiro demorte encheu a noite deverão. Àquela altura, Kael Pindanon caiu e seu cavalo tropeçou debaixo dele.O velho guerreiroficouabaladoelevantou-se,trêmulo,procurandoporsuaespada.Nomesmoinstante,osdemôniosavançaram em cima dele, uivando. Os caçadores élficos lutaram para alcançar seu comandantecercado, cortando e golpeando os demônios que surgiram no caminho.Mas os demônios foramrápidosdemais.MãoscomgarrasalcançaramPindanon,defendendo-sedosgolpesdirecionadosaeles,eovelhosoldadofoipuxadoparaamorte.

Naquele mesmo instante, um punhado de demônios escapou dos guerreiros ao seu redor eavançouparaAnderElessedil.Tentaramatravessar, pulando comogatos, o círculodaGuardadaCasaquecercavaoPríncipeÉlfico.Desesperado,eleergueuocajadodaEllcryscomoumescudoeseus atacantes encolheram-se, uivando de raiva.MasAnder estava completamente sozinho agora,cercadoporformasnegrasdistorcidas,queestendiamasgarrasemsuadireção,esperandoporumachance de romper as defesas de seu talismã.Os caçadores élficos lutavamdesesperadamente paraalcançar o Príncipe, porém os demônios bloqueavam seu caminho, estraçalhando aqueles que seaproximavamdemais, bloqueandode forma selvagemos golpes e cortes de lanças e espadas. Seusirmãosavançavamparaajudar,vendoqueoportadordoodiadotalismãencontrava-seaoalcance.Asmãosemgarrasestendiam-se,tentandopegá-lo.

Atravésdoemaranhadodelutadores,surgiuumhomemaltoederostomarcadoporcicatrizes,com o corpo envolto por um manto cinza manchado de poeira e sangue. Atirou-se contra osdemônios,cortandooscorposnegroscomgrandesgolpesdesuaespadaaté finalmentechegaraoladodeAnder.Osdemôniosderamberrosdeódioesejogaramcontraele.MasSteeJanmanteveasua posição como uma rocha, mantendo os atacantes longe de Ander enquanto chamava seushomens.Elesvieramnomesmoinstante,cavalgandoparaajudá-lo,reunindo-seaoredordelenumcírculo resistente. O comandante montou novamente seu cavalo ruano, erguendo a espada. Oscavaleirosdecinzainvestiram,fazendoseugritodeguerraecoarpelanoite.

Poruminstante,Andernãopercebeuoqueestavaacontecendo.Depois,pelobrilhoenevoadodo falso luar, avistouosVoluntários, comStee Jansà frente,o cabelovermelhoesvoaçando,umadasmãossegurandoaespadalarga,aoutra,oestandartedebatalhadosVoluntários.Sozinhos,umpunhadocontracentenas,osVoluntáriosestavamatacando!Nomesmoinstante,oPríncipeÉlficoagarrouasrédeasdeumcavalosemcavaleiro,montoueesporeouoanimal, impelindo-oadiante,gritandopor seuscompatriotas.Enquantooselfosvinhamao seuencontro, surgindode todososlugares, ele cavalgava para as fileiras de demônios, até ficar ao lado dos Voluntários da Legião.Como uma onda, os elfos e os homens da Fronteira varreram a Fenda de Baen, empurrando osdemônios à sua frente. Como homens enlouquecidos, golpeavam pelo caminho diante de si,cavalariaeinfantaria,comlançaseespadas,berrandoemuníssonoosgritosdeguerradesuasterrasnatais.

Por um instante, os demônios mantiveram a posição, urrando de raiva e ódio, atacando osloucos que se jogavam de forma tão descuidada contra eles.Mas o homem grande com a espada

largaeoestandartedosVoluntáriostrouxeranovacoragemaoselfos,coragemqueosempurravaàfrente para encarar a morte sem medo, para esquecer tudo que não fosse sua determinação emdestruirtotalmenteaquelasfigurasescurasedeformadasqueenfrentavam.Osdemôniosvacilaramerecuaram, primeiro lentamente, depois numa corrida desesperada, pois a fúria gerada dentro doexércitodos elfos eramuitomaiordoque a sua. Fugirammaisumavezpara as colinas aonorte,descendo pelas encostas de Kensrowe através das pedras e penhascos da Fenda, fugindo para assombrasprotetorasdanoite.

Nãomuito tempodepois,aFendaestava livreenovamenteoSarandanonestavanasmãosdoselfos.

Ander Elessedil encontrava-se sentado na sua tenda, nu da cintura para cima, enquanto oscaçadoresélficoscuidavamdosferimentosqueosdemônioslhehaviaminfligidoduranteabatalha.Estava em silêncio, com o corpo dolorido em razão da fadiga e da dor dos ferimentos. Osmensageiros iam e vinham, relatando o progresso do exército que se preparava para seentrincheirarmais uma vez na abertura da Fenda de Baen. AGuarda da Casa cercava a tenda; oferrodesuasarmasbrilhavaàluzdasfogueiras.

OPríncipeÉlficohaviaacabadodeterseuscurativostrocadosecolocavaaarmaduraquandoatenda se abriu subitamente e Stee Jans apareceu, sua figura gigantemanchadade poeira, cinzas esangue.Osqueestavamdentroda tenda fizeramsilêncionamesmahora.Comumaúnicapalavra,Ander fezcomquetodossaíssem.Atendaesvaziou-seeAnderavançouparapostar-seà frentedohomemdaFronteira.Semfalarnada,eleapertouamãodele.

—Vocêsalvoua todosnóshojeànoite,comandante—disseele,emvozbaixa.—Tenhocomvocêumadívidaqueserádifícildepagar.

SteeJanscontemplou-oporummomentoedepoissacudiuacabeçalentamente.—Meusenhor,vocênãomedevenada.Souumsoldado.Nadadoquefizestanoitefoimaisdo

queomeudever.Andersorriu,cansado.—Você nuncame convencerá disso. Porém, eu o admiro e o respeito demais para discutir o

assunto.Vou simplesmente agradecer.—Ele soltou amãodooutro edeuumpassopara trás.—KaelPindanonestámorto,eprecisoencontrarumnovocomandantedecampo.Querovocê.

OhomemdaFronteiraficouquietoporummomento.—Meusenhor,nãosouumelfonemsoudeseupaís.—Nãoháelfonemcompatriotamelhorparacomandaresteexércitodoquevocê—respondeu

Andernamesmahora.—EfoiseuplanoquenospermitiumanteraFendadeBaen.SteeJansnãodesviouoolhar.—Algumaspessoasquestionarãotaldecisão.—Algumaspessoasquestionam todas asdecisões.—Ander sacudiu a cabeça.—Não soumeu

pai, nemmeu irmão, nem o líder que eles acham que têm.Mas de qualquer forma, a decisão éminhaeeuatomei.Querovocêcomocomandantedecampo.Vocêaceita?

Ohomempensouporumlongotempoantesdefalar.—Aceito.Andersentiuumpoucodaexaustãodeixá-lo.—Então,vamoscomeçar...Ummovimento súbitonas sombraspertoda entrada fez comoqueosdoisparassem.Allanon

estavaali,comorostosério.—Ospatrulheiros que forampara onorte e para o sul retornaram— falouoDruida emvoz

baixa, as palavras quase um silvo quando deixaram sua boca.—Aqueles que foram para o sul nadireçãodoInnisborenãoencontraramnada.Masaquelesqueforamparaonorteencontraramumexército de demônios tão grande que tornaminúsculo o que lutou contra o nosso na Fenda deBaen. Ele vem para o sul seguindo a muralha leste do Kensrowe. Já deve ter entrado emSarandanon.

AnderElessedil encarou silenciosamenteooutrohomem, coma esperançamorrendo em seusolhos.

—Esseeraoplanodelesdesdeocomeço,Príncipe,encontrá-loaquinaFendadeBaen,comaforça menor, enquanto a maior passa pelo norte de Kensrowe para chegar ao Sarandanon pelaretaguarda, assim encurralando o exército élfico entre os dois. Se você não tivesse enviado ospatrulheiros...

Interrompeu-se com veemência. Ander começou a falar e parou, sufocando-se com suaspalavras.Subitamente,havialágrimasemseusolhos,lágrimasderaivaefrustração.

— Todos os homens quemorreram aqui; aqui e no Talho de Halys... meu irmão, Pindanon...todosmortosparaquepudéssemosmanterSarandanon...nãohánadaquepossamosfazer?

—O exército que vemdo norte contémdemônios cujos poderes excedemqualquer coisa quevocêjátenhaencontrado.—Allanonsacudiuacabeçalentamente.—Temoquesejapoderdemaispara vocês resistirem... demais. Se você tentarmanter Sarandanonpormais tempo, se tentar ficaraqui na Fenda de Baen, ou mesmo recuar para outra linha de defesa dentro do vale, você serácertamentedestruído.

OrostojovemdeAnderestavadesolado.—EntãoperdemosSarandanon.Allanon assentiu lentamente. O Príncipe Élfico hesitou, olhando para trás, na direção do

compartimento posterior da tenda, onde o Rei jazia inconsciente, sem saber o que estavaacontecendo,presonumsonodesprovidodesonhos,longedadoredarealidadequeconfrontavamseu filho angustiado. Perdidos! A Linha-de-Quebra, o Sarandanon, sua família, seu exército —tudo!Dentro de si, sentiu-se como se estivesse desmoronando.Amão deAllanon apertou o seuombro.Semsevirar,eleassentiu.

—Precisamospartirimediatamente.Decabeçaabaixada,elesaiudatendaparadaraordem.

CapítuloXXXIII

Wil Ohmsford achou o Vasto Ermo tão desolado e ameaçador quanto as histórias haviamanunciado. Apesar de o céu da tarde estar resplandecente com a luz do sol quando o rapaz eAmberle saíram da Rocha Esporão, o Vasto Ermo era um emaranhado de sombras e escuridãoúmida,isoladodomundoaoseuredorporárvoresearbustosqueseentrelaçavamesecontorciamaté parecerem formar um labirinto sem fim nem começo. Troncos engrossados pelo musgoscresciamcurvados e retorcidos, e seusgalhos espalhavam-se comopatinhasdearanhas, sufocadospor cipós e arbustos, carregados de folhas espinhentas que brilhavam em tons de prataincandescente.Galhosemadeiramortacobriamochãodovale,apodrecendo lentamentenosoloescuro, dando-lhe uma consistência desagradável e esponjosa. Úmido, mofado e podre, o VastoErmotinhaaaparênciadealgodesfiguradoegrotesco.Eracomoseanaturezahouvesseachatadoaterra e tudo o que vivia nela e depois se dobrado dentro de si mesma, para que fosse forçada arespirar,comerebeberofedorquesubiadaprópriamortelenta.

O jovem do Vale Sombrio caminhava pela estrada sinuosa, com a jovem elfa ao seu lado,espiandoaescuridãoàvoltacomolhospreocupadosecautelosos,ouvindoossonsdistantesdavidaquecaçavaecorria.Aestradaeracomoumtúnel,cujasparedeseramafloresta, iluminadaapenaspelas finas faixas de luz do sol que de alguma forma conseguiam passar pelo emaranhado acimadelesparatocarlevementeaterraúmidaabaixo.Nãohaviapássarosnaquelafloresta;Wilperceberao fato na mesma hora. Pássaros não viveriam naquela escuridão, Wil pensara consigo — nãoenquanto pudessem voar sob a luz do sol. Não havia nenhum dos pequenos animais silvestrescostumeiros, nemmesmo insetos comuns como borboletas coloridas.O que vivia ali eram coisasquesesentiammelhornaescuridão,nanoiteenassombras:morcegos,cobertosdecouroefedendoa doenças; cobras e outros caçadores escamosos que se alimentavamde criaturas que por sua vezfaziamninhosesealimentavamdeparasitashabitantesdaspoçasepântanosfétidos;felinos,ágeiserápidos, que espreitavam pelas árvores com passos silenciosos. Uma ou duas vezes, suas sombrasatravessaram a estrada e o jovem e a elfa pararam, cautelosamente. Porém, tão rápido quantosurgiram,sumiram,perdendo-senaescuridão,deixandooshumanosnocaminhovazio,encarandoansiosamenteaflorestaenquantoseapressavam.

Uma vez, quando já se encontravam numa penumbra profunda, o par ouviu algo grande semexer, empurrando as árvores como se fossem galhos frágeis, sua respiração ecoando alta naquietude que caía sobre a floresta. Arrastando-se invisível na penumbra, não viu ou não seimportoucomasduaspequenascriaturasparalisadasnatrilha.Lentaedeliberadamente,afastou-se.Nosilêncioqueseseguiu,osdoisfugiramcorrendo.

Elesencontrarampoucosviajantesenquantocaminhavampela floresta, todosapé,menosum,queestavaencarapitadoemcimadeumcavalotãomagroecansadoquepareciamaisumespíritodoqueumanimalde carne eosso.Envoltos em seusmantos e capuzes,os viajantespassaramporeles,solitáriosouempares,semcumprimentar.Porém,pordentrodasombradeseuscapuzes,suascabeças se viravam e seus olhos piscavam, como interesse frio de felinos, observando os intrusoscomosequisessemavaliaras intençõesdeles.Amedrontadosportaisolhares,osulistaeamoçase

viram lançando olhares por cima dos ombros, mesmo muito tempo depois de as formasencapuzadasteremdesaparecidodevista.

OpôrdosolseaproximavaquandofinalmentesaíramdapenumbradaflorestaparaaaldeiadoCurral Sombrio. Era difícil de imaginar uma comunidade menos acolhedora. Instalado em umpequenovale,oCurralSombrioeraumconjuntodecrépitodeconstruçõesdemadeira,construídastão próximas umas das outras que se tornava difícil distingui-las. Aquelas lojas, estalagens etabernas eram um grupo sórdido. A tinta que as coloria estava desbotada e lascada. Muitas seencontravamfechadas,comtrancasabaixadasefechadurastravadas.Placasmalescritaspendiamempostesoscilantesesobreportas,umlabirintoderetalhosfeitodepromessasepreçosembaixodosnomes dos proprietários. Através de janelas e portas, lamparinas de óleo e piche queimavam,lançandosualuzamarelaásperanassombrasdoladodeforaconformeapenumbraseabatiasobreadepressão.

Era nas tabernas e estalagens da aldeia do Curral Sombrio que seus cidadãos se reuniam, aoredordemesasrústicasebalcõesfeitosdetábuaspostassobrebarris,aoredordecoposecanecasdecerveja e vinho, com vozes altas e ásperas e suas risadas agudas. Iamde umprédio para o outro,homens e mulheres de todas as raças, com olhos duros, alguns vestidos em cores vivas, outrosesfarrapados, corajosos sob o brilho das lâmpadas, furtivos ao correrem pelos becos, muitos aostropeços,encolhendo-seecheirandoabebida.Odinheirotilintavaetrocavarapidamentedemãos,às vezes comdiscrição,outras comviolência.Ali, uma figura corcunda amontoava-se contraumaporta, adormecidanumestuporbêbado, as roupas arrancadasde seu corpo, abolsadesaparecida.Ali,uma formaesfarrapada jazia imóvel e tortaemumapassagemescura, comsangueescorrendodaferidaemsuagarganta.Aoredor,cachorrosespreitavam,famintoseemtrapos,deslizandopelassombrascomoaparições.

Ladrões e assassinos,prostitutas e charlatões,mercadoresdevida,morte eprazeres falsos.WilOhmsfordsentiuospelosdesuanucaseeriçarem.OavôdePerkestiveracertoarespeitodaquelelugar.

SegurandoamãodeAmberlecomforça,eleseguiualinhairregulardaestradaqueserpenteavaemmeio ao emaranhado de prédios. O que fariam agora? Certamente não podiam voltar para afloresta— não à noite.Wil relutava em permanecer na aldeia, mas que escolha tinham? Ambosestavamcansadosefamintos.Faziadiasquenãodormiamemumacamanemcomiamumarefeiçãoquente. Porém, as chances de conseguirem qualquer uma das duas coisas ali eram pequenas.Nenhum dos dois tinha dinheiro para comprar ou alguma coisa de valor para trocar poralojamentoecomida.HaviamperdidotudonafugadoPico.Ojovempensaraemprocuraralguémnacidadequepudesseserpersuadidoadeixá-lostrabalharemtrocadecomidaecama,masoqueviaàsuavoltasugeriaqueninguémcomtalpredisposiçãovivianoCurralCinzento.

Um gnomo bêbado cambaleou, tombando sobre Wil, tateando seu manto. Wil rapidamenteempurrou o sujeito.O gnomo tropeçouna rua e caiu, gargalhandopara o céu comoum tolo.Ojovem observou-o por ummomento e depois agarrou o braço de Amberle, apressando-se em seafastar.

Encaravamoutrosproblemastambém.Assimquesaíssemdali,comoencontrariamocaminhoaseguir? Como evitariam se perder imediatamente naquele ermo do outro lado? Precisavamdesesperadamentedealguémparaguiá-los,masemquempoderiamconfiarali?Sefossemforçadosa continuar sem amenor ideia de para onde estavam indo, precisariamqueWil usasse as PedrasÉlficas — ou pelo menos tentasse usá-las — antes de encontrarem os túneis do Sepulcro e oFogossangue, muito antes de estarem preparados para fugir. No momento em que fizesse isso,

atrairia os demônios. Porém, semusar as Pedras e sem a ajuda de um guia, não teriamnenhumachancedeencontraroSepulcro—nemmesmosetivessemumano,emvezdepoucosdias.

Wilparou,semesperanças,observandoasportasejanelasiluminadasdasconstruçõesdacidade,asfigurassombriasquesemoviamládentroeopanodefundodanaturezacomocéunoturno.Eraumdilemaimpossíveldesolucionar,eelenãotinhaideiadecomoresolveriaisso.

—Wil.—Amberlepuxouseubraço,ansiosa.—Vamossairdarua.Elelançou-lheumolhareassentiu.Tinhaqueestabelecerprioridades.Precisavamencontrarum

lugarparapassaranoite;eprecisavamcomeralgumacoisa.Orestantepodiaesperar.Com a mão de Amberle na sua, voltou a andar pela estrada, observando as hospedarias e as

tabernasdosdoislados.AndarampormaisunsquinzemetrosantesdeWilencontrarumapequenahospedaria de dois andares, um pouco afastada dos outros prédios, dentro de um bosque depinheiros. As luzes reluziam através das janelas do primeiro andar, enquanto no segundopermaneciam apagadas. Quase não dava para ouvir vozes altas e gargalhadas espalhafatosas, e aquantidadedepessoaseramenor.

Wilfoiatéopátionafrentedahospedariaeespioupelovidromanchadodeumadasjanelasquese abria para o salão principal. Tudo parecia tranquilo.Olhou para cima.A placa emumportãoindicava que o nome do lugar eraHospedaria Luz deVelas.Hesitou um poucomais antes de sedecidir.ComumacenoreconfortanteparaAmberle,quepareciabeminsegura,levou-apeloportãoepelocaminhoentreospinheiros.Asportasdahospedariaestavamabertasparaanoitedeverão.

—Ponhaocapuzdemodoacobrirorosto—sussurrouelederepentee,quandoelaoencarousem reação, rapidamente fez isto por ela. Deu-lhe um sorriso que traía a própria insegurança epegouamãodelacomfirmeza,passandopelaentrada.

Asalaestavaapinhadaecheiadefumaçadaslamparinasecachimbos.Haviaumpequenobarnafrente, onde um grupo de homens e mulheres de aparência rústica se reunia, conversando ebebendocerveja.Váriasmesascercadasdecadeiras ebancos semcostasocupavamapartede trás,algumas ocupadas por figuras encapuzadas que se curvavam sobre suas bebidas e falavam em vozbaixa.Váriasportaslevavamdaquelasalaparaoutraspartesdaconstrução,eumaescadasubiapelaparede esquerda, desaparecendo na escuridão. O chão era gasto e rachado e teias pendiam doscantosdoteto.Próximoàporta,umvelhosabujomastigavaumosso,satisfeito.

WilconduziuAmberleparaosfundosdasala,ondehaviaumamesavazia,comumavelagrossaque queimava devagar, e sentaram-se. Algumas cabeças se ergueram ou viraram com a passagemdeles,apenasparadesviaremoolharrapidamente.

—Oqueestamosfazendoaqui?—perguntouAmberle,ansiosa,tendodificuldadesparamanterotomdevozbaixoosuficienteparanãoseremouvidos.

Wilsacudiuacabeça.—Tenhaumpoucodepaciência.Algunsminutosdepois,umamulhercomcaradepoucosamigos,comidadeincertaecorcunda,

veioatéeles,umatoalhajogadadequalquerjeitosobreoombro.Enquantoelaseaproximava,Wilreparouqueelamancavamuito.Ele tinhaa impressãodereconheceraqueleandareasementedeumaideiacomeçouaseformar.

—Algoparabeber?—Elaquissaber.Wilsorriu,simpático.—Duascanecasdecerveja.Amulherafastou-sesemdizermaisnada.Wilaobservouafastar-se.—Eunãogostodecerveja—protestouAmberle.—Oquevocêestáfazendo?

—Sendosociável.Vocêreparouemcomoelamanca?Ajovemelfaoencarou.—Eoqueissotemaver?Wilsorriu.—Tudo.Espereeverá.Ficaramemsilêncioporumtempo,atéamulhervoltar,carregandoconsigoascanecas.Elaas

colocounamesaeseendireitou,ajeitandoumamechadecabelogrisalhoeembaraçadocomamãocarnuda.

—Sóisso?— Você tem algo para jantar? —Wil quis saber, tomando um gole da sua cerveja. Amberle

ignoroucompletamentesuacaneca.—Guisado,pão,queijo,talvezalgunsbolos...Sãofrescos,saíramhoje.—Hum,foiumdiaquenteparaficarnafrentedoforno.—Bemquente.Umdesperdício.Ninguémestáquerendo.Wilsacudiuacabeça,compreensivo.—Nãopodemosdesperdiçarumesforçodesses.—Amaioriapreferebeber—respondeuamulher,bufando.—Eutambémpreferiria,setivesse

tempo.Wilsorriu.—Achoquesim.Vocêcuidadatabernasozinha?— Eu emeusmeninos.— Ela ficoumenos hostil, e cruzou os braços.—Omarido fugiu. Os

meninosajudamquandonãoestãojogandooubebendo,oqueéraro.Eupoderiamevirarsozinhasenãofosseaperna.Tenhocãibrasotempotodo.Dóideumjeitoinsuportável.

—Vocêjátentouesquentarolugar?—Claro.Ajudaumpouco.—Misturasdeervas?Elacuspiu.—Inúteis.—Éumproblema.Háquantotempoestáassim?—Fazanos.Perdiaconta;nãoadiantaficarpensandonisso.—Bem—Wilficoupensativo.—Gosteidacomida.Achoquevamosquererumpratoparacada

um.AproprietáriadaHospedariaLuzdeVelasassentiue afastou-sedenovo.Amberle inclinou-se

parafrentenamesmahora.—Comovocêpretendepagarporissotudo?Nósnãotemosdinheiro.—Euseidisso—retrucouWil,olhandoaoseuredor.—Achoquenãovamosprecisar.Amberleolhou-ocomoseestivesseprestesabaternele.— Você prometeu que não faria mais isso. Você prometeu que me contaria o que estivesse

planejando antes de executar, lembra-se? A última vez que você tentou algo assim foi com osnômades,equasecustounossasvidas.Estaspessoassãoaindamaisperigosas.

—Eusei,eusei,masacabeidepensarnisso.Nósprecisamoscomeredescansar,eestaéamelhorchancequeteremosdeconseguirosdois.

Aelfafechouacaraporbaixodasombradocapuz.—Não gostei deste lugar,WilOhmsford.Desta estalagem, desta cidade, destas pessoas, disso

tudo.Nóspodemosficarsemarefeiçãoesemacama.

Wilsacudiuacabeça.—Podemos,masnãovamos.Shhh,elaestávoltando.Amulherretornoucomo jantar.Colocouospratos fumegantesna frentedelese sepreparava

paradeixá-losquandoWilfalou.—Fiquemaisumpouco—pediuele.Aproprietáriavirou-separaeles.—Estavapensandona

suaperna.Talvezeupossaajudar.Elaoencaroucomdesconfiança.—Oquevocêquerdizercomisso?Eledeudeombros.—Bem,achoquepossofazeradorparar.Aexpressãodesconfiadaficouaindamaisnítida.—Porquevocêfariaissopormim?—Elafezumacareta.Wilsorriu.—Negócios.Dinheiro.—Nãotenhomuitodinheiro.—Quetalumatroca?Pelopreçodascervejas,dasrefeiçõesedehospedagemporumanoite,eu

façoadorparar.Justo?— Justo. — Seu corpo recurvado caiu pesadamente na cadeira do lado dele. — Mas você

conseguefazerisso?—Tragaumaxícaradecháquenteeumpanolimpo,everemos.A mulher levantou-se de imediato e arrastou-se até a cozinha. Wil a observou se afastar,

sorrindodeleve.Amberlesacudiuacabeça.—Esperoquevocêsaibaoqueestáfazendo.—Eutambém.Comalogosóparaocasodedarerrado.Quaseterminavamarefeiçãoquandoelavoltoucomocháeopano.Wilolhouparaalémdela,

na direção dos fregueses reunidos no bar.Algumas cabeças estavam começando a se virar.O quequerquefosseacontecer,nãoqueriachamaraindamaisaatenção.Olhouparaamulheresorriu.

—Issodeveserfeitoemumlugarmaisprivativo.Vocêtemalgumlugarparaondepossamosir?Amulherdeudeombroseconduziu-osatravésdeumadasportasfechadasatéumapequenasala

quetinhaumaúnicamesacomumavelaeseisbancos.Elaacendeuavelaefechouaporta.Ostrêssesentaram.

—Eagora?—perguntouamulher.Wil tirouumaúnica folha secadeumasacolaemsuacinturaeamassou-aatévirarpó,oqual

jogounochá.Mexeuamisturaedevolveu-aparaamulher.—Beba.Vocêvaisesentirumpoucosonolenta,nadamais.Amulheranalisouocháporummomentoantesdebebê-lo.Quandoaxícaraficouvazia,Wila

pegou e jogououtro tipode folha, commaisumapequenamedidade cervejade sua caneca, quelevaraconsigo.Mexeulentamente,observandoafolhadissolver-seatévirarnada.Dooutroladodamesa,Amberlesacudiuacabeça.

— Coloque a perna neste banco— pediuWil, empurrando um banco vazio para a frente damulher,queobedientementeseguiuainstrução.—Agora,subaasuasaia.

Aproprietária lhe lançouumolharquestionador,comoseestivessepensandoemquaisseriamas intençõesdele, e subiua saiaatéas coxas.Apernaestava tensa, cheiadevarizes e cobertacommanchasnegras.Wilmergulhouopanonamisturaqueestavanaxícaraecomeçouaesfregá-lonaperna.

—Fazcócegas.—Amulherriu.Wil sorriu demodo encorajador.Quandonão haviamaismistura na xícara, pegou sua sacola

maisumavez,dessaveztirandoumalongaagulhadepratadecabeçaredonda.Amulherinclinou-separafrente,assustada.

—Vocênãovaienfiarissoemmim,vai?Wilassentiu,calmo.—Vocênemvaisentirnada, sóumapicadinha.—Elepassouaagulha lentamentepelachama

davelaquequeimavanocentrodamesa.—Agora,fiquecompletamenteimóvel.Lenta e cuidadosamente, ele inseriu a agulha na perna da mulher, logo acima da rotula do

joelho, atéqueapenasa cabeçaarredondadaestivessevisível.Ele adeixoualiporummomentoedepois a retirou. A mulher fez uma careta, fechando os olhos, e depois os abriu de novo. Wilrecostou-se.

—Pronto—anunciou,esperandoquefosseverdade.—Levante-seeande.Amulher, perplexa, encarou-o por ummomento, abaixando a saia, indignada, e ficou empé.

Comcuidado,afastou-sedamesa,testandoapernaruim.Derepente,deuumgiro,comumsorrisolargonorostobruto.

—Elasefoi!Adorsefoi!Éaprimeiravezemmeses!—Elaria,empolgada.—Eunãoacredito.Comovocêfezisso?

— Mágica. — Wil sorriu, satisfeito, mas imediatamente arrependeu-se do que tinha dito.Amberlelançou-lheumolharirritado.

—Mágica, hein?—Amulher deumais uns passos, sacudindo a cabeça.—Bem, se você diz...Parecemesmomágica.Adorsumiucompletamente.

—Nãofoirealmentemágica...—Wilcomeçoudenovo,masamulherjáestavanaporta.— Sinto-me tão bem que vou dar uma rodada de graça para todos.— Ela abriu a porta e a

atravessou.—Malpossoesperarparaveracaradelesquandoouviremisso!— Não, espere... — Wil chamou, mas a porta fechou-se atrás dela. — Confundiu tudo —

resmungouele,desejando,tardedemais,terfeitoamulherprometernãocontarnada.Amberleuniuasmãoscomcalmaeoencarou.—Comovocêfezaquilo?Eledeudeombros.—SouumCurandeiro,lembra-se?OsArmazenadoresmeensinaramalgumascoisassobredores.

—Eleinclinou-se,emtomconspiratório.—Oproblemaéqueotratamentonãodura.—Nãodura!—Amberleficouhorrorizada.Wilcolocouumdedonoslábios.—Éumtratamentotemporárioapenas.Demanhã,adorestarádevolta,entãoémelhorquejá

tenhamospartido.—Wil,vocêmentiuparaaquelamulher—gritouaelfa.—Vocêdissequepoderiacurá-la.—Não,nãofoiissoqueeudisse.Eudissequepoderiapararador.Nãodisseporquantotempo.

Umanoitedealívioparaela,umanoitedecamaecomidaparanós.Umatrocajusta.Amberlemirou-ocomexpressãoacusadoraenãorespondeu.Wilsuspirou.—Selheservedeconsolo,adornãovaisertãofortecomoantes.Masoqueelatemestáalém

dacapacidadedecuradequalquerCurandeiro;temavercomavidaqueleva,comaidadeeopeso,com uma série de coisas sobre as quais não tenho controle. Fiz tudo o que podia por ela. Vocêpoderia,porfavor,serrazoável?

—Vocêpodedaralgoparaquandoasdoresvoltarem?OjovemestendeuasmãoseapertouasdeAmberlenassuas.—Vocêérealmenteumapessoagentil,sabia?Sim,possodaralgoparaasdores.Masvoudeixar

paraqueelaencontredepoisquenósformosembora,sevocênãoseincomodar.Um barulho repentino vindo da outra sala fez com que ele se levantasse e fosse até a porta,

abrindo-a um pouco. Antes, a estalagem estivera praticamente vazia. Naquele momento,encontrava-se cheia, com pessoas entrando, vindas da estrada, atraídas pela promessa de bebidasgrátis e pelas travessuras da proprietária, que estava alegremente demonstrando sua cura recém-obtida.

—Horadeirmos—resmungouWilerapidamentetirouAmberledasala.Nãotinhamdadonemumadúziadepassosquandoamulheroschamouemumavozaguda,e

veio correndopara impedi-los.Cabeças sacudiram-se e dedos apontaramparaWil.Dedosdemaisparaapazdeespíritodojovem.

—Umacanecadecervejaparavocês?—ofereceuamulhergorda.BateunoombrodeWil,quaseoderrubandonochão.Eleconseguiudarumsorrisofraco.

—Achoquevamosdormir.Tivemosumalongajornadaeestamosmuitocansados.Amulherbufou.—Fiquemecomemorem.Vocêsnãoprecisampagar.Bebamoquantoquiserem.Wilsacudiuacabeça.—Achomelhorirmosdormir.—Dormir?Com todoessebarulho?—Amulherdeudeombros.—Fiquemcomoquartode

númerodez,subindoasescadas,nofimdocorredor.Ficanosfundosdaestalagem.Deveestarmaisquietoparavocês.—Elafezumapausa.—Estamosquites,certo?Nãodevomaisnada?

—Nada—garantiuWil,ansiosoparasairdali.Aproprietáriadeuumsorrisolargo.— Bem, você cobroumuito pouco, sabia? Eu pagaria dez vezesmais pelo que você fez. Oras,

algumashorassemaqueladorvaleacerveja,acomidaeoquarto!Vocêprecisaserespertosequerchegaraalgumlugarporaqui.Lembre-sedesteconselho,pequenoelfo.Édegraça.

Ela riu asperamente e voltou para o bar. Era hora de parar com as bebidas grátis. Com umamultidão daquelas, havia dinheiro a ser feito.Amulher corria pelo balcão, recebendo asmoedascomânsia.

WilagarrouobraçodeAmberleeaconduziudamesaatéaescadaeparaoandardecima.Osolharesdosfreguesesosacompanharam.

— E você estava preocupada com ela — resmungou o jovem do Vale Sombrio enquantoatravessavamocorredordoandardecima.

Amberlesorriu,semdizernada.

CapítuloXXXIV

Haviam dormido por várias horas quando ouviram o barulho na porta do seu quarto. Wilacordouprimeiro, sentando-sebruscamentenacama, forçando-seaenxergaratravésdaescuridãoprofundadanoite.Conseguiaouvir sonsdo ladode fora—pés se arrastando, vozes sussurrando,respiração pesada. Não eram demônios, disse a si rapidamente, mas o temor dentro de si nãodiminuiu.Afechaduradaportasacudiuenquantomãostrabalhavamemsilêncioparaabri-la.

Amberle também estava acordada, sentadado ladodele, o rosto pálido sob as sombras de seulongocabelocastanho.Wilcolocouumdedonoslábios.

—Espereaqui.Silenciosamente,deslizoudacamaefoiatéaporta.Atrancacontinuouasemexer,masojovem

doValeSombriohaviatravadooferrolho,entãooquartoestavaseguro.Inclinou-senadireçãodaportaebuscouescutar.Asvozesvinhamatéele,baixaseabafadas.

—...cuidado,seutolo...apenaslevante...—Euestoulevantando!Saiadaluz!—...perdadetempo;arrombalogo...somosobastante.—...nãoseeleusarmagia.—Oourovaleorisco...arromba!Asvozescontinuaramadiscutir,sussurrostemperadoscomoarrastarbêbadodevidoàcerveja,

misturados comgrunhidos e respiraçõesofegantes.Haviapelomenosumameiadúziadehomensali,concluiuojovem—ladrõeseassassinos,provavelmente,semdúvidalevadosatéalipelalínguasolta de alguém que ouvira a história da curamilagrosa da proprietária da estalagem e que nãoresistira a embelezar a história ao recontá-la. Afastou-se rapidamente, tateando para encontrar acama.AmãodeAmberleagarrouseubraço.

—Temosquesairdaqui—sussurrouele.Semdizernada,aelfasaiudacamaparaaescuridão.Haviamdormidocompletamentevestidose

só levaram alguns momentos para colocar as capas e as botas. Wil correu até a janela do ladooposto do quarto e a abriu. Logo abaixo, o teto da varanda era cortado em declive, saindo daparede. Da sua beirada, havia uma queda de quase quatro metros até o chão.Wil virou-se paraencontrarAmberleeatrouxeatéajanela.

—Vamoslá—sussurrouepegouobraçodela.No mesmo momento, ouviram um xingamento alto vindo do corredor, e um corpo pesado

jogou-se contra a porta, rachando a madeira e quebrando as dobradiças de metal. Os pretensosladrõeshaviamperdidoapaciência.Wilpraticamenteempurrouaelfapelajanelaaberta,olhandoapressadamente para trás para ver se os intrusos haviam conseguido romper a portacompletamente.Nãohaviam.Aportaaindaresistia.Masaportafoigolpeadadenovo.Edessavezoferrolho cedeu. Um grupo de figuras encapuzadas adentrou o quarto, tropeçando umas sobre asoutras,praguejandoegritando.

Wil não esperou para ver o que aconteceria. Arrastando-se através da janela, pulouapressadamenteparaotelhadodavaranda.

—Pule!—gritoueleparaAmberle,queestavaagachadaàsuafrente.Aelfadeslizoupelabeiradadotelhadoecaiunochãoláembaixo.Empoucotempo,Wilestava

do lado dela. Acima deles, inclinando-se pela janela aberta, as criaturas encapuzadas gritavamenraivecidas.WilpuxouAmberleparaassombrasdasconstruçõeseolhouaoredor.

—Paraonde?—resmungou,subitamenteconfuso.Sem falar, Amberle pegou a mão dele e correu para o final do muro, e em seguida para a

construçãomais próxima da estalagem.Os gritos de seus perseguidores soaram agudos, seguidospelos sons de botas no telhado da varanda. Os dois jovens correram em silêncio pela escuridãoentreosprédios, atravessandopassagens, vielas e seguindomuros, até estaremdevolta àbeiradaestradaprincipal.

Os gritos ainda estavam atrás deles. Curral Sombrio parecia ter acordado de repente; luzesacenderam-se nas casas escuras em volta e vozes elevaram-se com raiva. Amberle começou a sedirigirparaaestrada,masWilapuxouparatrásbruscamente.Amenosdetrintametros,nafrentedaLuzdeVelas,váriasformasescurassaíamnadireçãodaestrada,vasculhandocuidadosamenteassombrasàvolta.

—Precisamosvoltar—sussurrouojovem.Refizeramseuspassos,seguindoomurodoprédioatéalcançaremoseufim.Haviaumasériede

abrigos e estábulos agrupados, destacados contra o fundo escuro da floresta. Wil hesitou. Setentassem escapar para a floresta, ficariam completamente perdidos. Teriam de fazer o caminhopelosprédiosatéondeaestradaprincipalviravaparaosul,paraforadeCurralSombrio.Umavezsaindodacidade,provavelmentenãoseriammaisperseguidos.

Cuidadosamente,seguirampelapartedetrásdoprédio.Murosecercascercavam-nosportodosos lados, e barris com lixo jaziam amontoados no caminho. Mas os gritos haviam sumido, e osprédiosàfrenteaindaestavamescuros.Maisalgunsminutoseestariamlivresdaperseguição.

Elesviraramemumavielaestreitaquecorriapelosestábulosnosfundosdeumalojaderação.Cavalosrelincharamsuavementecomocheirodeles,batendooscascosimpacientesdentrodesuasbaias.Umpequenocampocercadoestendia-sediantedeles,dooutroladodeumafileiradeabrigos.

Wil encaminhou-senadireçãoda cerca comAmberle ao seu lado.Não tinhamdadonemdezpassosquandoumgritoagudoergueu-seatrásdeles.Das sombrasda lojade ração, apareceuumafiguraescura,balançandoosbraços,elevandoavozparadaroalarme.Gritosderespostaecoaramdos prédios ao redor. Surpreendidos com a descoberta repentina, os jovens tropeçaram um nooutronapressadefugir,perdendooequilíbrioecaindo.

Instantaneamente, seu perseguidor os alcançou. Braços balançaram-se e punhos socaram comviolência.Wil atracou-se comohomem,um sujeitoduro e fedendo a cerveja, enquantoAmberlerolavaparalonge.Asmãosdojovemagarraramomantodeseuatacante;comumpuxãosúbito,Wiljogouohomemnocercado.Houveumbarulhosurdoquandoacabeçadohomembateunasplacasdacerca,eelecaiutodotorto.

Wil levantou-se de um salto. Luzes apareceram nos cômodos acima da loja de ração e nosprédios ao lado. Na escuridão atrás deles, a claridade de tochas piscava na noite. Gritos deperseguição soavamde todos os lugares.O jovemdoVale Sombrio agarrou amão deAmberle ecorreram juntos pela beirada do cercado até a fileira de abrigos. Ali, viraram de volta para aestrada, seguindo uma viela estreita que corria entre duas construções abandonadas. Sombrasescureciamapassagemeosdoiscorriamàscegas,comWilliderando.Àfrente,alinhadeterradaestradasurgiu.

—Wil!—gritouAmberle,avisando.

Tardedemais.Avisãodelenãoeratãoboaquantoadaelfaeeledeudecaracomumapilhadetábuassoltas jogadasnomeiodaviela.Caiu,batendona lateraldeumprédio.Adorexplodiuemsuacabeça;eleperdeuaconsciênciacompletamenteporuminstante.Depois,dealgumjeito,pôs-sede pé outra vez, balançando para frente, tonto, a voz de Amberle um zumbido fraco em seusouvidos.Suamãofoiatéatestaevoltoumolhadadesangue.

Derepente,aelfaapareceudoseulado,envolvendoacinturadelecomumaperto.Wilapoiou-senela, forçando-seacontinuaravançandonadireçãoda luzdistantedarua.Sentiuqueperdiaaconsciência outra vez e lutava contra isso. Precisava continuar andando, precisava continuaracordado.Amberlefalavacomele,avozcheiadeurgência,masorapaznãoconseguiadistinguiraspalavras.Sentia-setolo.Comodeixaraalgotãoestúpidoacontecer?

Cambalearam para fora da viela, e viraram para a sombra de uma varanda. Tropeçaram aocaminharporelaenquantoaelfalutavaparamanterojovemempé.SangueescorriaparaosolhosdeWil,cegando-oaindamaiseeleresmungava,zangado.

Derepente,ouviuoarquejosurpresodeAmberle.Atravésdanévoaquenublavasuavisão,viuumemaranhadodesombrasaparecernaescuridão.Ouviuvozes,baixaserudes,eumsilvodeaviso.Amberle se foi, eWil sentiu que alguém o carregava.Mãos fortes o carregaram rapidamente naescuridão.Viuumrodopiodecoresnafrentedeseusolhosconfusos,misturadoaolampejodeumatocha.Foierguidodenovo,destavezatravésdeumaaberturaestreitaentredoispedaçosde lona.Uma lamparinabrilhavaao seu lado.Vozes soaramemsussurroscautelosos, eele sentiuumpanoúmidolimpandoosanguedeseurosto.Mãostrabalharamparaenrolá-loemcobertoresecolocarumtravesseirosobsuacabeça.

Abriuosolhos lentamente.Estavadentrodeumcarroçãopintadocomcoresalegreseparedesdecoradascomtapeçarias,contasesedasbrilhantes.Ficouespantado,poisconheciaaquelelugar.

Um rosto aproximou-se, escuro e sensual, emolduradopor cachos grossos de cabelonegro.Osorrisoqueosaudoueraesfuziante.

—Eudissequenosveríamosdenovo,WilOhmsford.EraEretria.

CapítuloXXXV

Porcincodias,oexércitodoselfoseosVoluntáriosdaLegião lutaramparaatravessarasTerrasdo Oeste em direção a Arborlon. Pelo vasto Vale do Sarandanon, por florestas densas eemaranhadas, e pelas estradas e trilhas irregulares, recuaram lentamente, sempre para o leste,perseguidospelashordasdosdemôniosacadapasso.Marcharamdediaedenoite,semdescansar,muitas vezes sem comer, já que as criaturas que os perseguiam não comiam nem dormiam. Semserematrapalhadospelasnecessidadesfisiológicas,livresdaslimitaçõeshumanas,osdemôniosiamatrásdeles,determinados, incansáveis, impelidospelaprópria formade loucura.Comocachorroscaçando, perseguiram o exército que recuava, beliscando e golpeando seus flancos, de vez emquando acelerando para executar um ataque completo, tentando desviá-los do caminho, feri-los,destruí-los.Oataqueera incessanteeoselfose seusaliados, jácansadospelabatalhanaFendadeBaen,ficavamcadavezmaisexaustos.Comaexaustão,veioodesesperoeemseguidaomedo.

AnderElessedilfoivítimadessemedo.ParaoPríncipe,começoudevidoaoprópriosentimentodefracasso.Osmortos,asderrotasdosdiasanteriorese tudoqueoselfoshaviamtentadorealizarsemsucesso, assombravam-no.Porém, issonãoeraopior.Pois enquanto seuexércitomassacradolutavanadireçãolesteeseuscompatriotascontinuavamamorreraoseuredor,Andercomeçavaaperceber quehavia a possibilidade denenhumdeles sobreviver à longamarchade volta.Daquelecruel entendimento, nasceu o medo, que se tornou seu próprio demônio interior— sem rosto,insidioso, esperando dentro da sombra de sua determinação. Líder dos Elfos, perguntavaastutamente,oquevocêiráfazerparasalvá-los?Vocêétãoinútilassim?Tantosjáforamperdidos— e se todos os que sobraram também se perderem? Ele provocava e atormentava, ameaçandotransformar sua resolução cansada em desespero completo. Nem a presença de Allanon ajudava,pois o Druida vestido de negro permanecia distante e isolado enquanto cavalgava ao lado deAnder, encoberto em seumundoparticular de segredos sombrios.Assim,Ander combatia aquelemedo sozinho,dentrodo silênciode suamente, com toda sua forçadirecionadaparaderrotá-lo,enquantolentaeferozmentelideravaseussoldadosdébeisdevoltaaArborlon.

No fim, foi Stee Jans quem salvou a todos. Foi naquelemomentomais escuro, de desespero efracassoiminente,queogigantedaFronteiramostrouatenacidade,aresistênciaeacoragemquetinham dado origem à lenda do Homem de Ferro. Reunindo uma retaguarda de elfos eVoluntários,começouadefenderocorpoprincipaldoexércitoenquantoestelevavaseusmortoseferidosparaolestesobacoberturadanoite.Emumasériedeataqueseesquivas,ocomandantedaLegião golpeou seus perseguidores, atraindo-os para si, primeiro para um lado, depois para ooutro,usandoasmesmastáticasqueutilizaracomsucessonaFendadeBaen.Váriaseváriasvezes,os demônios foram atrás dele, varrendo primeiro o Vale do Sarandanon, depois a floresta além.Váriaseváriasvezes,tentaramprendernumaarmadilhaosvelozescavaleirosvestidosdecinzaeosvelozes cavaleiros élficos, sempre chegandoum instante atrasados, encontrando apenas aplanícievazia, uma fenda cega, uma depressão cheia de sombras ou uma trilha coberta de arbustos quevirava em simesma. Com uma destreza que enganava e enlouquecia os demônios, Stee Jans e oscavaleiros que o seguiam realizavam um jogo mortal de gato e rato, que parecia colocá-los em

todos os lugares ao mesmo tempo, mas sempre longe do local para onde o corpo principal doexércitosedirigia,rumoàsegurançadeArborlon.

A raiva e a frustração dos demônios crescia; conforme as noites viravam dias e depois noitesnovamente,aperseguiçãotornava-secadavezmaisfrenética.Aquelesdemônioseramdiferentesdascriaturasnegraseesguiasque tinhamsaídoemenxamesdaregiãomontanhosaaonortedaFendade Baen para tomar Sarandanon. Aqueles eram demônios do leste acima do Kensrowe, maisperigosos do que seus irmãos menores, com poderes que nenhum humano comum poderiaaguentar. Alguns eram monstruosos em tamanho, cobertos de músculos e protegidos comarmaduras de escamas — criaturas feitas para a destruição irrefletida. Outros eram pequenos efluidos, e matavam com apenas um toque. Alguns eram lentos e trovejantes, outros, velozesenquanto deslizavam pelas sombras da floresta como aparições. Alguns tinhammuitosmembros,outros, nenhum.Alguns soltavam fogo, comoosdragõesde antigamente, e outros comiamcarnehumana.Porondepassavam,aterradoselfosficavanegraequeimada,devastadadeformaquenadamaispudesseviverali.Porém,oselfoscontinuavamforadoalcancedeles.

Acaçacontinuava.OscaçadoresélficoslutavamladoaladocomosVoluntáriosnumatentativadesesperada de diminuir o avanço dos demônios, observando seus números diminuíremgradativamente enquanto seus perseguidores continuavam no encalço deles. Sem Stee Jans paraliderá-los, teriam sido aniquilados. Mesmo com ele, centenas caíram pelo caminho, mortos eferidos,perdidosnaterrível lutaparaimpedirquealongafugasetornasseumaderrotacompleta.Portodoaqueleprocesso,astáticasdoComandantedaLegiãocontinuaramasmesmas.AforçadosdemôniostornavaimperativoqueoexércitoélficonãofosseobrigadoalutardenovonaqueleladodeArborlon.Entãoaretaguardacontinuavaaatacarrapidamente,fugindoemseguida,paradepoisretornaregolpearumavezeoutra—eemtodasasvezes,maisalgunscavaleiroseramperdidos.

Por fim, na tarde do quinto dia, o exército em frangalhos chegou novamente àsmargens doRiacho da Canção. Com um grito cansado, atravessou-o de volta para Arborlon. Foi quandodescobriram o preço que fora pago. Um terço dos elfos que haviammarchado para Sarandanonestavammortos.Centenas estavam feridos.Dos seiscentos soldadosdaLegiãoque tinhamseguidocomeles,restavamnomáximoduzentos.

Eosdemônioscontinuavamavançando.

OcrepúsculocaiusobreacidadedeArborlon.Odiaesfriaranofinal,grossasnuvensdetempestadetinham vindo das planícies na direção do leste e bloqueado a lua e as estrelas, enchendo o arnoturno com o cheiro da chuva. As lamparinas começaram a acender-se nas casas da cidade,enquanto famílias e amigos se reuniam para o jantar. Nas ruas e nas passarelas entre as árvores,unidadesdaGuardadaCasacomeçavamapatrulhanoturna,deslizandopelassombrasnumsilêncioinquieto.EmcimadoCarolan,naElfitchepelasmargens lestedoRiachodaCanção,ossoldadosdo exército élfico estavam a postos, olhando para a escuridão da floresta por cima de fileiras desuportesdeferrocheiosdepicheincandescente.Nasárvores,nadasemexia.

Nas câmaras do Alto Conselho Élfico, Ander Elessedil estava, pela primeira vez desde seuretorno de Sarandanon, cara a cara com os Ministros do Rei, os comandantes do exército e ospoucosforasteirosquehaviamchegadoparaajudaroselfosnalutacontraosdemônios.Cruzouaspesadas portas demadeira na extremidadeda sala do conselho, carregandoo cajadoprateadodaEllcrysnamãodireita.Poeira,suoresanguecobriamoPríncipe;aopassoquesepermitiraalgumaspoucas horas de sono, ainda não tivera tempo para se lavar, preferindo se reunir omais rápido

possível com o conselho. Ao lado dele, estava Allanon, alto, misteriosos e ameaçador, com suasombra erguendo-se nas paredes da câmara ao entrar, e Stee Jans, com as armas ainda presas aoredordocorpo,seusolhoscastanhosfrioscomoamorte.

De suas cadeirasde espaldar alto ao redordamesado conselho,dos assentosdagaleria edosbancosnabeiradoestradodoRei, aqueles ali reunidos se levantaram imediatamente.Sussurros eresmungosencheramasalaeperguntascomeçaramaser feitasaosberros,conformecadahomemesforçava-separaserouvido.Nacabeceiradamesa,EmerChiosbateuamãoabertanasuperfíciedemadeiracomumestrondo,easalaficouemsilênciodenovo.

—Sentem-se—disseoPrimeiroMinistro.Resmungando, os homens reunidos fizeram o que lhes fora ordenado. Ander aguardou um

momento e deu um passo à frente. Conhecia as regras do Alto Conselho. Quando o Rei estavaindisponível,oPrimeiroMinistropresidia.EmerChioseraumhomempoderosoerespeitado,maisainda em uma situação como aquela. Ander viera perante o Conselho com um propósitomuitoespecífico em mente, e precisaria do apoio de Chios caso quisesse atingir tal propósito. Estavacansado e ansioso,mas era necessário que ele tivesse calma para resolver os problemas da formaadequada.

—MeusenhorPrimeiroMinistro—dirigiu-seaChios.—EugostariadefalarcomoConselho.EmerChiosassentiu.—Entãoofaça,senhormeuPríncipe.Lentaepausadamente,poisnãoeraumoradorcomparávelaoseupaiouaoseu irmão,Ander

contoutudooqueaconteceracomoexércitoélficodesdesuapartidaparaSarandanon.DescreveuoferimentodoReieamortedeArion.FalousobreasbatalhasederrotasnaLinha-de-Quebra,dorecuoedapermanênciacorajosanaFendadeBaen,e finalmentedafugaatravésdoSarandanonedas florestas das Terras doOeste. Relatou a coragemdosVoluntários da Legião, da liderança deStee Jans quando Pindanon caíra. Com detalhes, descreveu a natureza do inimigo que haviamencarado — seu tamanho, seu formato, seu frenesi e seu poder. Os demônios, avisou-os,aproximavam-sedeArborlonparaexterminarorestantedopovoélfico,assolaracidadeeretomara terraquehaviamperdido séculosantes.Oqueviria eraumabatalhaemqueum ladoououtro,elfosoudemônios,seriacertamentedestruído.

Enquanto falava, estudava os rostos de seus ouvintes, procurando nos seus olhos e expressõesdelesalgumjulgamentoanteonovocomandantedesdeaperdadoReiedeseuherdeiro.Jáaceitaraqueseupaipodiamorrer,equepoderia se tornarRei; sabiaqueoAltoConselhoeopovoélficoteriamdeaceitarissotambém.Essaaceitaçãoeradifícilparaeleporque,antesdabatalhanoTalhode Halys, a possibilidade de algo assim acontecer sempre parecera muito remota, e porque nãoqueria acreditar quepoderiaperderosdois, opai e o irmão.Mas seupai agora jaziana camanacasasenhorial,comoestadoinalteradodesdesuaqueda.Portodootempoemqueoselfoslutaramna Fenda de Baen e na longa marcha de volta para casa, Ander Elessedil esperara que seu paiacordasse,recusando-seaacreditarnocontrário.MasoReinãorecobraraaconsciência,epareciaque talvez nunca mais o faria. O Príncipe compreendia isso, aceitava isso, e por conseguintedesviavaaatençãodissoparaaquiloqueprecisavaserfeito.

— Lordes élficos— terminou ele, a voz cansada e vazia.— Sou o filho do Rei e sei o que seesperadeumPríncipeÉlfico.O exército élfico voltoude Sarandanon e agoraprecisamos resistiraqui.Eupretendoresistir comele.Pretendo liderá-lo.Não faria isso seexistissealguma formadedesfazerestemomento, se tudoqueaconteceunasúltimassemanaspudesseserapagadodenossasvidas.Mas issonãoépossível.Semeupaiestivesseaqui,vocêsconvocariamtodosos seushomens

paralutarporele;euseidisso.Estouentãonolugardemeupai,pedindoquefaçamissopormim,poissouoúltimodesualinhagem.Oshomensquelutaramcomigomederamapoio.Precisododevocêstambém.Deem-meesseapoio,senhores.

Semdizermaisnada,eleesperou.Sabiaquenãoprecisavaterpedidooapoiodeles.EradeleopoderdogovernoElessedil,epoucossearriscariamadesafiá-lo.PoderiaterpedidoaAllanonparafalarporele;avozdoDruidaporsisó jásilenciariaqualqueroposição.Porém,Andernãoqueriaqueninguémintercedesseporele,nemqueriatomarnadacomocerto.OapoiodoAltoConselhoedosforasteirosquetinhamidoatéláajudá-losprecisavaserganhopeloqueelesveriamnele—nãopormedoouporqualquerdireitoquenãoseapoiassemprofundamentenaforçadecaráterqueeledemonstraranocomandodoexércitoélficodesdeomomentoqueseupaicaíra.

Emer Chios se levantou. Seus olhos escuros percorreram rapidamente os rostos ali reunidos.Virou-separaAnder.

—MeuPríncipe—ressoousuavozgrave.—TodososqueestãoreunidosnesteConselhosabemquenão sigonenhumhomemcegamente,mesmoqueele sejade sangue real e filhode reis.Eu jádisse publicamente e por várias vezes que confio mais no julgamento do meu povo do que nojulgamentodeumúnicohomem,mesmoqueelesejaReidetodoomundoconhecido.

Olhoulentamenteaoseuredor.—Porém,souoMinistrodeconfiançadeEventineElessedileseugrandeadmirador.Eleéum

Rei, senhores, umRei como todosdeveriam ser.Euqueria que ele estivesse aquiparanos liderarnessa hora tão perigosa. Mas não está. O filho dele se oferece em seu lugar. Eu conheço AnderElessedil;achoqueoconheçomelhordoqueninguém.Euoescutei;euojulgueiporsuaspalavrase por seus atos, e pelo que ele semostrou ser.Digo agora que na ausência doRei, não há outrohomememqueeucogitariaconfiarasegurançademinhasterrasedeminhavida,anãoserele.

Chios fez uma pausa, para depois colocar a mão direita no peito — o juramento élfico delealdade.Houveummomentode silêncio, em seguidaoutros se levantaramdamesa comele.Nocomeço foram poucos, depois todos tinham as mãos em cima de seus corações ao encararem oPríncipe. Os comandantes do exército élfico deram um passo à frente — Ehlron Tay, de rostoseveroesincero,que,depoisdamortedePindanon,assumiraomaiorpostodecomando;Kobold,o capitão alto e imaculadamente vestido da GuardaNegra; e Kerrin, comandante da Guarda daCasa.Empoucotempo, todososelfosreunidosnoAltoConselhoencaravamseuPríncipecomasmãoserguidasemsaudação.

DoladodeAnderElessedil,umafiguraescurainclinou-separaperto.—Agoraelesoseguem,PríncipeÉlfico—falouAllanonemvozbaixa.Anderassentiu.Quaselamentavaquefosseassim.

PassaramafalarsobreadefesadeArborlon.Preparativos para aquela defesa haviam começado quase imediatamente depois da partida do

exército élficopara Sarandanon, duas semanas antes. EmerChios, comogovernanteda cidadenaausência do Rei, reunira o Alto Conselho e os comandantes do exército que não haviamacompanhadooRei comopropósitodedecidir queprovidências tomarparaprotegerArborloncaso os demônios saíssem de Sarandanon. Uma série de medidas defensivas cuidadosamenteplanejadastinhamsidocolocadasemprática.OPrimeiroMinistrorepassou-ascomAnder.

Sóhaviaduas formasde se aproximarda cidade—pelo leste, pelas trilhasquepassavampeloValedoRhenneasflorestasdooutrolado,epelooeste,vindodeSarandanon.Onorteeosulde

Arborlon eram cercados por montanhas sem passagens, picos altos que isolavam as florestas ecercavamoCarolanemumamuralhaderocha.AllanonavisaraqueabrechanaProibiçãosurgirianasplaníciesdeHoare. Isso significavaqueosdemôniosdeviamvirdo leste,porSarandanone, anão ser que virassem para norte ou sul, contornando as montanhas que cercavam Arborlon —marchaestaqueconsumirianomínimováriosdias—,oataqueàcapitalélficaviriadooeste.

E era lá que as defesas élficas eram mais fortes. Duas barreiras naturais confrontariam osdemônios.PrimeirohaviaoRiachodaCanção,umpoucomaisestreitoondesecurvavaparalesteabaixo de Carolan, mas fundo e de difícil navegação mesmo com tempo bom. Depois, havia aprópriaelevação,umpenhascoíngremequealcançavaumaaltitudedemaisdecemmetrosnoseutopo, sua face de pedra partida por uma teia de rachaduras profundas e sufocada pela vegetaçãodensadearbustosemato.UmaúnicaponteatravessavaoRiachodaCançãoembaixodoCarolan,numtrechomaisestreito.Nãohaviatrechosrasosporquilômetrosemambasasdireções.AElfitcheraaprincipalrotadeacessoaoCarolan,emboraexistissemváriaspequenasescadariasquesubiampelaspartesarborizadasdacolinamaisaosul.

AdefesadeArborlondependiadorioedopenhasco.ForadecididoqueapontesobreoRiachodaCançãoseriadestruídaimediatamenteapósoretornodoexércitoélfico.Aquiloforafeitocomoplanejado,ressaltouChios,eoúltimoeloentreArborloneSarandanonforarompido.Namargemleste, os elfos haviam ancorado centenas de postes de piche para iluminação, caso os demôniostentassematravessarduranteanoite,ehaviamconstruídoumredutodepedraebarronabeiradorioqueseestendiaporváriosmetrosseguindoamargemdabasedopenhasco,voltando-separaaface de pedra dos dois lados da Elfitch. Amargem leste estendia-se pormais de sessentametrosentreorioeopenhasco,eamaiorpartedessaáreaeracobertadeárvoreseumadensavegetaçãorasteira.Alioselfoshaviamcolocadodezenasdearmadilhas,paracapturarqualquerdemônioquetentasseatacaroredutopelaslaterais.

MasaElfitcheraaprincipaldefesadeArborlon.TodasasescadariasmenoresquelevavamparaotopoplanodoCarolanhaviamsidodestruídas.TudooquerestaraforaaElfitch—seterampasdepedra e portões de ferro que subiam da base até o topo do penhasco. Muralhas cercavam cadaportão, fechando a passagem para os portões e rampas além. Todas as rampas e portões estavamposicionados atrás daqueles situados abaixo e, conforme a Elfitch subia, fazia uma espiral quepermitia que cada portão e cada muralha pudesse dar alguma proteção aos portões e rampasabaixo, usando arcos longos e dardos. Em tempos de paz, os portões das sete rampas ficavamabertos,asameias ficavamdesguarnecidas,anãoserpelas sentinelas,eapedraantiga ficavacheiade arbustos em flor. Mas com o recuo do exército élfico do Sarandanon, as muralhas estavamrepletasdelançasélficaseosportõesencontravam-sefechadosebloqueados.

NãohaviamconstruídonenhumadefesanotopodoCarolan.Oplatôestendia-seatéa florestanumaplanícieampla,comgruposdeárvoresaquieali,chalésisoladoseosolitárioespaçocercadodos Jardins da Vida. A leste, dentro do limite das árvores da floresta, ficava Arborlon. Se osdemônios conseguissem alcançar o Carolan, haveria poucas opções de defesa para os elfos. Se ossobreviventes fossememnúmerosuficiente,poderiamposicionar-senaplaníciepara tentarvarreros invasoresdabeiradopenhasco.Se isso falhasse, seriamforçadosarecuaratéoValedoRhenn,onde lutariam uma batalha final, com o risco de serem completamente expulsos das Terras doOeste.

Chiosfezumapausaemseurelatório.—Claroqueseelespassarempelasmontanhasevieremdoleste...—começou.Allanoninterrompeu-ologo.

—Nãovão.Tempo,agora,éumpontovitalparaeles.Virãopelooeste.Anderolhou,curioso,paraSteeJans,masocomandantedosVoluntáriossimplesmentedeude

ombros.Andervoltou-separaEmerChios.—Equaissãoasnotícias,PrimeiroMinistro?— Temo que sejam boas e más, em relação ao nosso pedido de ajuda para outras terras.

Callahornmandoumaisduzentos e cinquentas cavaleirosdaVelhaGuarda, o exército regulardaLegião. Há uma vaga promessa de mais ajuda, apesar de não termos nenhum indicação de paraquando. Nossos mensageiros relatam que os membros do Conselho das Cidades ainda nãoconseguiramresolversuasdiferençassobrequaldeveseraextensãodoenvolvimentodeCallahornnesta “guerra élfica”, e oRei decidiu não interferir. Parece que o envio deste comandodaVelhaGuarda foi,basicamente,outra soluçãodemeio-termo.Oassuntoaindaestá sendodebatido,masnãorecebemosmaisnotícias.

ConformeSteeJansjáhaviaalertado,pensouAndersombriamente.— A Federação também enviou uma mensagem, meu Príncipe. — O sorriso de Chios era

amargo.—Umamensagembreveedireta,devodizer.ApolíticadaFederaçãoénãoseenvolvernosassuntosdeoutrasTerraseoutrasraças.Seumaameaçaaoutroscomprometeasoberaniadeseusestados, a Federação age. Na presente situação, não parece ser o caso. Portanto, até a situaçãomudar,nãoajudarão.—Deudeombros.—Nãofoitotalmenteinesperado.

—EoKershalt?—perguntouAnderrapidamente.—Equantoaostrolls?Chiossacudiuacabeça.—Nada.Tomeialiberdadedeenviaroutromensageiro.Anderassentiu,deformaaprovadora.—Eosanões?—Nósestamosaqui—respondeuumavozáspera.—Algunsdenós,pelomenos.Um anão barbado e robusto avançou por entre os homens reunidos ao redor da mesa do

Conselho.Olhos azuis e ágeispiscaramemumrostomorenode sol emarcadopelo tempo, eumpardemãosnodosasagarrouabeiradamesa.

—Druida.—OanãoacenourapidamenteparaAllanonevoltou-separaAnder.—MeunomeéBrowork, Ancião e cidadão de Culhaven. Eu trouxe cem Escavadores para servirem os Elessedil.PodeagradeceraoDruidapor isso.Elenosencontrou, semanasatrás, trabalhandoemumapontesobreoRioPrateadoenosavisousobreoperigo.Allanonéconhecidopelosanões,entãoninguémquestionounada.MandamosumavisoparaCulhaveneviemosnafrente;foramdezdiasdemarcha,eumamarchadifícil.Masestamosaqui.

EleestendeuamãoeAnderapertou-acalorosamente.—Eosdemais,Browork?—perguntouAllanon.Oanãoassentiu,bastanteimpaciente.—Presumoqueestejamacaminho.Vocêteráumexércitodemilharesatéofimdasemana.—

Ele fez uma careta de reprovação paraAllanon.—Até lá, vocês tem a nós,Druida, e sãomuitosortudosporisso.Ninguémalémdenóspoderiaterguarnecidoaquelarampa.

—AElfitch—explicouChiosrapidamenteaointrigadoAnder.—BroworkeseusEscavadoresestiveram trabalhando conosco em nossas defesas. Quando estudavam a Elfitch, ele viu que erapossíveldeixaraquintarampaprontaparaserderrubada.

—Brincadeiradecriança.—Broworkacenou,dispensandoocumprimento.—Nóscortamosaparte de baixo do bloco de pedra, removemos os suportes secundários e dividimos os primeiroscomcunhasdeferropresasemcorrentes.Escondemosascorrentesnosarbustosdebaixodarampa,

puxamosatéapartemaisaltaeasligamosaumsistemaderoldanas.Seosdemôniosalcançaremaquinta rampa, é só puxar as correntes, tirar as cunhas e a rampa do quinto portão simplesmentecairáinteira.Simples.

— Simples se você tem a habilidade de um anão Escavador— Ander sorriu. —Muito bom,Browork.Nósprecisamosdevocês.

—Háoutraspessoasaquidequemvocê tambémprecisa.—AllanoncolocouamãonoombrodeAndereapontouparaoladoopostodamesadoConselho.

OPríncipeÉlficovirou-se.Umelfosolitário, todovestidodecouro,avançouecolocouamãonopeito,sinalizandosualealdade.

—Dayn,meuPríncipe—disseoelfoemvozbaixa.—SouumCavaleirodoVento.— Um Cavaleiro do Vento? — Ander encarou o jovem elfo, surpreso. Seu pai lhe contara

histórias sobre o povo que se auto intitulava “elfos do céu”, histórias que quase todos haviamesquecido, pois nenhum Cavaleiro do Vento aparecera em Arborlon nos últimos séculos.—Háquantosdevocês?—perguntou,porfim.

—Cinco—respondeuDayn.—Teríamosmais,senãofosseomedodeumataquededemôniosemAbrigodoVento,minha cidadenatal.Meupai nosmandou até aqui. Somos todosdamesmafamília.MeupaisechamaHerrol.—ElefezumapausaeolhouparaAllanon.—HouveumaépocaemqueoDruidaeeleeramamigos.

—Nósaindasomos,CavaleirodoVento—disseAllanon,emvozbaixa.DaynreconheceuocompromissodoDruidacomumacenoeretornouseuolharparaAnder.—Osentimentodeligaçãodomeupaicomoselfosdaterraémaisfortedoqueodamaioriade

nossos compatriotas, meu Príncipe, pois muitos renunciaram aos velhos costumes e ao antigogoverno. E meu pai sabe que Allanon está com os Elessedil, e isso significa muito. Por isso nosenviou.EleestariaaquinãofosseaausênciadeGenewen,suaroca,queestátreinandocomofilhodemeuirmãoparaqueelesetorneumCavaleirodoVento,assimcomoseupaifoi.Porém,aquelesque estão aqui poderão ser úteis. Podemos voar por todo o céu sobre as Terras doOeste, se forpreciso. Podemos procurar os demônios que nos ameaçam e relatar seus movimentos. Podemosespionarsuasforçasefraquezas.Pelomenosissonóspodemosoferecer.

—E aceitamos com gratidão,Dayn— retribuiuAnder a saudação doCavaleiro doVento.—Sejabem-vindo.

Daynfezumabrevereverênciaerecuou.AnderolhouparaChios.—Hámaisalguémquetenhavindonosajudar,PrimeiroMinistro?Chiossacudiuacabeçalentamente.—Não,meuPríncipe.Issoétudo.Anderaquiesceu.—Entãoestesserãoobastante.Ele gesticulou para que todos se sentassem à mesa do Conselho, e seguiu-se uma discussão

generalizadasobreassuntoscomooposicionamentodossoldados,adistribuiçãodearmas, táticasde batalha e a tomada de mais medidas defensivas. Ouviram relatórios de Ehlron Tay sobre oscaçadoresélficosdoexército,deKerrinsobreaGuardadaCasaedeKoboldsobreaGuardaNegra.Browork deu sua avaliação da eficiência da estrutura geral das defesas élficas, e Stee Jans foiconsultadosobreasestratégiasquepodiamser implementadasparadesequilibrara forçasuperiordashordasdedemônios.MesmoDaynfaloubrevementesobreashabilidadesdelutadasrocaseseuusoemcombatesaéreos.

Otempopassourapidamente,assimcomoanoite.Anderestavaficandotontocomocansaço,e

seus pensamentos começaram a vagar. Foi no meio de um desses devaneios que as portas doConselho se abriram com estrondo, fazendo-o sobressaltar-se com a entrada de um GaeldesgrenhadoecercadopelosguardasdoConselho.Semfôlego,opequenoelfocorreuatéeleecaiudejoelhosàsuafrente.

—MeuPríncipe!—arfou,orostocoradocomsuaagitação.—MeuPríncipe,oReiacordou!Anderoencarou.—Acordou?OPríncipe,então,levantou-seesaiucorrendodacâmara.

Enquantodormia,EventineElessedilsentia-secomoseestivesseflutuandoporumaescuridãocheiadecamadasfinascomoteiasdearanhaqueenvolviamseucorponumcobertorsemremendos.Umapor uma, sentia as teias enrolando-o, moldando-se ao seu redor, unindo-se a ele. O tempo e oespaçonãosignificavamnada;haviaapenasaescuridãoeateiasendotecida.Nocomeço,eraumasensaçãoquenteeacolhedora,omesmoquesentiaumacriançaaoserabraçadapelamãe,cheiadeamor e conforto. Mas o abraço pareceu ficar mais apertado, e ele começou a sufocar.Desesperadamente, lutou para se libertar e descobriu que não conseguia. Começou a afundar naescuridão,girandolentamente,seucobertorvirandomortalha,eeledeixandodeserumacriaturaviva,morrendo.Aterrorizado, sacudiu-se emsuaprisãode seda, rasgandoepuxandoo tecidoatéque,derepente,opanocedeuesumiu.

Abriu os olhos. A luz o cegou por um instante, forte e trêmula. Piscou por causa do brilho,desorientado e confuso, lutando para recuperar o senso de onde se encontrava e do que estavafazendo.Asilhuetadeumasalacomeçouatomarformaeelereconheceuocheirodelamparinaseo tato de lençóis de algodão e cobertores de lã enrolados ao redor de seu corpo. Tudo queacontecera antes de ele adormecer voltou de uma vez só, imagens enlouquecidas e soltas em suamente: a Linha-de-Quebra; o Talho de Halys e os demônios atacando, saindo da névoa densa;fileirasdearqueiroselanceirosélficosespalhadosabaixodele;gritosdedoremorte;formasescurasaproximando-sedeleatravésdeumamuralhadechamasazuis;Allanon,Ander,obrilhodearmas,umgolpesúbito...

Ele sacudiu-seviolentamenteporbaixodas cobertas e seucorpo ficoucobertode suor.A salatornou-se repentinamente nítida perante seus olhos — era o seu quarto na casa senhorial emArborlon—ehaviaumafiguravindoemsuadireção.

—Meu senhor?—Avoz assustadadeGael soou em seusouvidos eo rosto jovem inclinou-separapertodoseu.—Meusenhor,estáacordado?

—Oqueaconteceu?—resmungouele,suavozembargadaequaseirreconhecível.—Você foi ferido,meusenhor,noTalhodeHalys.Golpearamaqui.—Oelfoapontouparaa

têmpora esquerda do Rei. Você esteve inconsciente desde então. Meu senhor, estávamos tãopreocupados...

— Por quanto tempo... eu dormi?— cortou ele. Levantou amão para tocar a cabeça e a dordesceucomoumalançapeloseupescoço.

—Setedias,meusenhor.—Setedias!Gaelcomeçouarecuar.—Vouchamarseufilho,meusenhor.Amentedelegirava.

—Meufilho?—OPríncipeAnder,meusenhor.—Seuajudanteapressou-senadireçãodaportadoquarto.—

EleestáemreuniãocomoAltoConselho.Deite-sequeireitrazê-loimediatamente.Eventineoviuabriraporta,ouviuocriadofalandorapidamentecomalguémdoladodeforae

viuaportafechar-sedenovo,deixando-oemsilêncio.Tentouselevantar,maseraesforçodemaisecaiudevolta,semforças.Ander?GaeldisseraqueAnderestavaemreuniãocomoAltoConselho?OndeestavaArion?Adúvidanublouseuspensamentoseasperguntasvieramemenxurrada.OqueestavafazendoemArborlon?Oqueaconteceracomoexércitodoselfos?OqueaconteceracomadefesadoSarandanon?

Novamente, tentou se levantar enovamente caiuna cama.Umaondadenáuseapercorreu seucorpo.Sentiu-sesubitamentevelho,comoseaquantidadedeanosvividosfosseumadoençaqueoesgotasse. Cerrou a mandíbula. Ah, se tivesse de novo cinco minutos de sua juventude para terforçasobastanteparaselevantardacama!Raivaedeterminaçãooqueimavam,eergueu-sepoucoapoucoemseustravesseiros,atéestarsentadoeapoiadoneles,respirandocomesforço.

Dooutroladodasala,Manxlevantouacabeça.OReiabriuabocaparachamarovelhocão.Masderepenteosolhosdoanimalencontraramosseuseaspalavrasmorreramemsuagarganta.Haviaódionaquelesolhos—umódio tão frioqueocortavacomoageadano inverno.Elepiscou, semacreditar,lutandocontraarepulsaquesurgiudentrodesi.Manx?Oqueestavapensando?

Obrigou-se a desviar o olhar, a observar outro ponto do quarto, as paredes e seus quadros, amobília e as cortinaspuxadasnas janelas.Desesperado, tentou se recompor, semconseguir.Estousozinho,pensouderepente,irracionalmente,eficoucheiodemedo.Sozinho!OlhoudenovoparaManx.Osolhosdocachorrofixaram-senele,recompostos,escondendooqueestiveratãoevidenteantes.Ouimaginaraaquilo?Observouoanimallevantar-se,virar-seedeitar-sedenovo.Porqueelenãovematéaqui?Perguntou-seoRei.Porqueelenãovem?

Deslizoudenovonostravesseiros.Oqueestoudizendo?Aspalavrassussurravamemsuamente,e ele viu a loucura que o ameaçava. Enxergar ódio nos olhos de um animal que lhe fora fiel poranos?EnxergaremManxuminimigoquepoderiaferi-lo?Oquehaviadeerradocomele?

Ouviu vozesno corredor.Aportadoquarto se abriu e fechoudenovo, eAnder atravessouocômodoparaalcançá-loeabraçá-lo.OReiabraçouseufilhodevoltaeemseguidadesvencilhou-se,examinandoorostoensombrecidodeAnderenquantooPríncipesentava-senabeiradacama.

—Conte-meoque aconteceu—ordenouEventine gentilmente.Viu algopassarnosolhosdofilho e sentiu um súbito arrepio percorrer seu corpo. Forçou a pergunta a sair de seus lábios.—OndeestáArion?

Anderabriuabocapararesponder,masficouencarandoovelhohomemsemfalarnada.OrostodeEventinecongelou.

—Elemorreu?AvozdeAndereraumsussurro:—NasCascatasdeWorl.O Príncipe parecia procurar mais alguma coisa para dizer, mas desistiu, sacudindo a cabeça

lentamente. Os olhos de Eventine encheram-se de lágrimas e suas mãos tremeram ao apertar obraçodeseufilho.

—Arionestámorto?—Elefalouaspalavrascomosefossemumamentira.Anderassentiuedesviouoolhar.—KaelPindanontambém.Houveummomentodesilêncioatordoado.AsmãosdoReicaíram.

—ESarandanon?—Perdido.Encararam-sesemdizernada,paie filho,comosetivessemcompartilhadoumsegredoterrível

que jamaispoderia ter sidorevelado.Anderestendeuosbraçoseapertouopaicontra si.Porumlongo tempo, ficaram abraçados em silêncio. Quando o Rei finalmente falou, sua voz estavainexpressivaedistante.

—Conte-mesobreArion.Tudo.Nãodeixenadadefora.Andercontou.Comcalma,relatoucomoseuirmãomorrera,comoohaviamtrazidodaLinha-

de-QuebraatéSarandanon,ecomoohaviamenterradonaFendadeBaen.Depois,faloudetudooque acontecera com o exército dos elfos desde o primeiro dia da batalha no Talho de Halys,passandopela longamarchadevoltaaArborlon.Eventineouviuenãodissenada.QuandoAnderterminou,ele ficouolhandoo tremeluzirdaschamasporummomento.Desviouoolharparaseufilho.

—QueroquevocêvolteparaoAltoConselho,Ander.Façaoquetemdeser feito.—Hesitouporummomento,suavozfalhando.—Vá.Euvouficarbem.

Anderolhou-o,emdúvida.—PossopediraGaelparaentrar.OReisacudiuacabeça.—Não.Agoranão.Eusóquero...—Eleparou,sufocandooqueestavaquasedizendo,apertando

forte o braço do filho com a mão. — Estou... muito orgulhoso de você, Ander. Eu sei como édifícil...

Anderassentiu,comumnónagarganta.Colocouasmãosdopaientreassuas.—Gaelvaiestarnocorredorquandovocêprecisardele.Ergueu-se e foi até a porta. Suamão estava na tranca quando Eventine o chamou, com a voz

estranhamenteansiosa.—LeveManxcomvocê.Anderparou,olhouparaovelhocão,assobiouparaqueeleviesseeolevouparafora.Aporta

foifechadasuavemente.Sozinhodenovo,destavezrealmentesozinho,oReiÉlficoapoiou-senostravesseirosedeixoua

enormidadedetudooqueaconteceraatingi-lo.Empoucomaisdesetedias,omelhorexércitodasQuatro Terras fora afugentado como um rebanho acuado por lobos— afugentado da Linha-de-Quebra,deSarandanon,edevoltaparaacapital,onde teriadesedefenderoucair.Dentrodesi,sentiuumaterrívelsensaçãodefracasso.Eledeixaraaquiloacontecer.Eraoresponsável.

—Arion—sussurrouderepente,lembrando.AslágrimasencheramseusolhoseoReicomeçouachorar.

CapítuloXXXVI

–Eretria! — exclamou Wil baixinho, com a voz cansada e surpresa. Ignorando a dor de seuferimento,eleapoiou-senumcotoveloparaolharmelhor.—Oquevocêestáfazendoaqui?

—Salvandovocê,peloqueparece.—Elariu,osolhosescurostravessos.Um movimento súbito chamou sua atenção e ele olhou além dela para as sombras. Duas

mulheres nômades estavam ocupadas em uma bancada perto do fundo do vagão, lavando roupasvermelhascomosanguedeleemumabaciadeágua.Instintivamente,elecolocouamãonacabeçaepercebeu que uma bandagem fora colocada sobre o ferimento. Tocou nele com cuidado e seencolheu.

—Eunãofariaisso.—Eretriaafastouamãodorapaz.—Éaúnicapartedoseucorpoqueestálimpa.

Ojovemolhourapidamenteaoseuredor.—OquevocêfezcomAmberle?—Suairmã?—debochouela.—Estábemsegura.—Vocêvaimedesculparporestarumpoucocético.—Elecomeçouaselevantardacama.—Fiquequieto,Curandeiro.—Elao forçoua sedeitardenovo.Avozdela assumiuum tom

mais baixoparaque asmulheres atrásdelanão conseguissemouvir.—Está commedodeque euqueiramevingarpor causade suapéssimadecisãodemedeixarpara trás emTirfing?É issoquevocê pensa demim?—Amulher riu e balançou a cabeça.— Talvez agora, se vocême der umachance,possarepensaressadecisão.Épossível?

—Nemumpouco.EAmberle?—Seeuquisessemachucarvocê,WilOhmsford,ouela, euos teriadeixadoparaos assassinos

que os perseguiam no Curral Sombrio. A jovem elfa está bem. Eu a trarei aqui depois deconversarmos.

Eretriavirou-separaasmulheresnabancada.—Saiam.Deixem-nosasós.Asmulherespararamoqueestavamfazendoedespareceramporumaaberturanooutroladoda

carroça.Quandoelasseforam,Eretriavirou-sedenovoparao jovem,acabeçainclinadaparaumlado.

—Bem,oquevoufazercomvocêagora,WilOhmsford?Wilrespiroufundo.—Comovocêmeencontrou,Eretria?Elasorriu.—Muitofácil.Notíciassobreseusgrandespoderesdecuraespalharam-seportodaaaldeiado

CurralSombriodezminutosdepoisdevocêtercuradoaquelaestalajadeiragorda.Vocêachouqueumademonstraçãoassimpassariadespercebida?Vocêachaqueaqueles assassinosos encontraramcomo?

—Vocêsabiadissotambém?— Curandeiro, você é um tolo. — Ela disse isso gentilmente, erguendo a mão para tocar a

bochechadele.—Osnômadessãoosprimeirosasaberdequalquercoisaqueaconteçanoslugaresemqueviajam.Senão fosseassim,não iriamsobreviver;uma liçãoqueaparentementevocêaindaprecisaaprender.Assimqueanotíciadoseuatomaravilhosodecuraespalhou-se,ficouóbvioparaqualquer um commetade de um cérebro que haveria gente pensando que uma pessoa com seustalentosdeviaserumhomemrico.Ganânciaebebidasemisturambem,Curandeiro.Vocêtemsortedeestarvivo.

— Acho que sim — reconheceu ele a contragosto. — Eu devia ter sido um pouco maiscuidadoso.

— Um pouco. Para sua sorte, eu logo vi que era você e insisti com Cephelo para me deixarencontrá-lo assim que as notícias vieram da estalagem. De outra forma, você seria comida decachorroagora.

—Umapossibilidadeagradável.—Wil fezumacareta.Lançou-lheumbreveolhar.—Cephelosabequeestouaqui?

—Sabe.—Elasorriueamalíciavoltouaosolhos.—Issoassustavocê?—Digamosquemepreocupa—admitiuWil.—Porqueelefariaalgumacoisapormimdepois

doqueaconteceuemTirfing?Eretriaaproximou-seecolocouseusesguiosbraçosmorenosaoredordopescoçodele.— Porque a filha dele é muito convincente, Curandeiro. Tão convincente que, às vezes, ela

consegue influenciaratémesmoumhomemdifícilcomoCephelo.—Eladeudeombros.—Alémdomais,eletevetempoderefletirsobreoqueaconteceuemTirfing.Achoqueoconvencidequenãofoiculpasua,quevocênaverdadesalvouasvidasdaFamília.

Wilsacudiuacabeçaemdúvida.—Nãoconfionele.—Enemdeve—concordouela.—Masporestanoite,aomenos,vocênãoprecisasepreocupar

comele.Elevaiesperarparainterrogarvocêdemanhã.Atélá,dequalquerjeito,seusperseguidoresvãotersecansadodeperseguirsombraseterãovoltadoparaastabernas,paraacervejafrescaeumafontedelucromaistangível.

Elalevantou-se,deslizandoemumlampejodesedaazul,evoltouummomentodepoiscomumpanoúmidoeumabaciadeágualimpa,quecolocounochãopertodacama.

—Precisamoslimparvocê,Curandeiro.Vocêestáfedendoasuoresujeira,esuasroupasestãoarruinadas.—Elafezumapausa.—Tire-asparaqueeupossalimparvocê.

Wilsacudiuacabeça.—Possomelimparsozinho.Vocêpodemeemprestaralgumasroupas?Elaassentiu,masnãosemexeu.Ojovemenrubesceu.—Euprefirofazerissosozinho,sevocênãoseimporta.Aquelesorrisoreluzentesurgiunorostodamulher.—Ah,maseumeimporto.Elesacudiuacabeça.—Vocêrealmenteéincorrigível.—Vocêvaisermeu,WilOhmsford.Eujádisseisso.Osorrisosumiu,substituídoporumaexpressãotãosensualeatraentequefezWilesquecerpor

ummomentooqueestava fazendo.Quandoelacomeçoua se inclinarnadireçãodorapaz, ele seforçouasentar-serapidamentenacama.Atonturaotomou,maselesemanteveerguido.

—Vocêvaimetrazerasroupas?Poruminstante,osolhosdeEretriaescureceramderaiva.Elaselevantou,foiatéumarmário,

tiroualgumasroupaseastrouxeatéele.—Vocêpodeusarestas.—Jogou-asnocolodele.ElapassouporWil,inclinando-sederepenteparabeijá-lobrevementenoslábios.—Limpe-seevista-sesozinho,então.—Elafungou,saindodeperto.Abriu a porta no fundo da carroça e desapareceu na noite, fechando a porta atrás de si com

forçae trancando-apor fora.Wil sorriu, apesarde tudo.Quaisquerque fossemas intençõesdela,nãoodeixaria livrepara fugir.Rapidamente, tirou as roupas velhas, limpou-se e colocouaquelasqueEretria lhedera.Servirambem,embora fossemroupasdenômadee lhe fizessemsentir-seumpoucoestranhoaousá-las.

AcabaradesevestirquandoaportaseabriudenovoeEretriaapareceucomAmberle.Ajovemelfaestavavestidacomtúnicaecalçanômades,cintoeumafaixanacabeçaparaprenderseucabelolongo.Orostotinhasidoescovadorecentementeepareciaassustado.OlhouparaacabeçadeWileseusolhosimediatamentemostrarampreocupação.

—Vocêestábem?—perguntouelarapidamente.— Eu dei o que ele precisava. — Eretria ignorou a pergunta de Amberle com suavidade.

Apontouparaacamadooutro ladodeWil.—Vocêpodedormirali.Nãotentemsairdacarroçaporestanoite.

EladeuaWilumsorrisocompreensivo,virou-seefoiatéaporta.Estavanametadedocaminhoquandoolhouparatrásderepente.

—Boanoite,irmãoWil.Boanoite,irmãAmberle.Durmambem.Comumsorriso,passoupelaporta.Atrancafechou-seatrásdelacomumestalo.

Osdoisdormiramaquelanoitenacarroçanômade.Amanheciaquandoacordaram;a luzdonovodia infiltrava-se por fendas nas janelas fechadas, iluminando a penumbra acinzentada.Wil ficoudeitado em silêncioporum tempo, organizando seuspensamentos, esperandoo sonodeixar seusolhos.Depoisdeummomento,mexeudentrodatúnica,procurandoapequenabolsadecourocomasPedrasÉlficas, confirmouseaindaestavamali eguardouabolsadevolta.Cuidadodemaisnãofaria mal nenhum, pensou. Estava quase fora da cama quando Amberle mandou que voltasse,arrastando-se da outra cama até alcançá-lo. Cuidadosamente, ela examinou o ferimento de suacabeça e ajeitou a bandagem. Quando terminou, Wil levantou-se e ficou do lado dela,surpreendendo-acomumbeijobrevenabochecha.Elacoroudeleveesorriu,seurostodecriançaradiante.

Poucotempodepois,atrancadaportaseabriueEretriaentrou,carregandoumabandejacompão, mel, leite e frutas. Os membros morenos apareciam por baixo de um vestido branco etransparentequerodopiavaaoredordanômadecomofumaça.Osorrisoestonteantebrilhouparaojovem.

—Descansoubem,WilOhmsford?—Elacolocouabandejanocolodeleepiscou.—Cepheloquerfalarcomvocêagora.

ElasaiusemsedirigiraAmberle.WilolhouparaajovemelfadepoisqueEretriasefoiedeudeombros.OsorrisodeAmberlefoiforçado.

Minutos depois, Cephelo apareceu. Entrou sem bater, seu corpo alto e magro inclinando-seligeiramenteenquantopassavapelaentrada.Vestidodepretoeenroladonummantoverde-escuro,tinhaamesmaaparênciadequandoovirampelaprimeiravez,àsmargensdoMermidon.Ochapéude abas largas fora colocado de lado alegremente e ele o retirou com um floreio ao entrar, um

sorrisosurgindonorostomoreno.— Ah, os elfinhos, o Curandeiro e sua irmã. Nós nos encontramos de novo. — Ele fez uma

reverência.—Aindaprocurandoseucavalo?Wilsorriu.—Nãodestavez.Onômadeolhou-osporcimadoseunarizadunco.—Não?Perderamocaminhoentão?Arborlon,atéondeeusei,ficaparaonorte.—NósestivemosemArborlonesaímosdenovo—respondeuojovem,colocandoabandejade

lado.—VieramparaoCurralSombrio.—Nósdois,parece.—Realmente.—Ohomemaltosentou-sediantedeles.—Nomeucaso,osnegóciosmelevama

lugaresaqueeunãogostariadeir.Masevocê,Curandeiro?Oqueotrouxeaqui?Certamentenãofoiparaaplicarsuaartenoscidadãosdeumaaldeiatãohumildequantoesta.

Wilhesitouporummomentoantesde responder.Deveria termuitocuidadocomoque fossedizer para Cephelo. Já conhecia o homem bem o bastante para considerar o fato de que, se onômadedescobrissealgoquepudesseusaremvantagemprópria,seriaexatamenteoquefaria.

—Temosnossosassuntos—respondeudisplicentemente.Onômadeapertouoslábios.—Vocênãopareceestar se saindomuitobemnisso,Curandeiro.Suagargantaestariacortada

nestemomentosenãofossepormim.Wil sentiu vontade de soltar uma gargalhada. A velha raposa! Nunca admitiria que Eretria

ajudaraasalvá-los.—Parecequeestamosemdívidacomvocêmaisumavez—respondeu.Cephelodeudeombros.—FuiprecipitadoaojulgarvocêsnoTirfing;deixeiqueapreocupaçãocommeupovoofuscasse

meu bom senso.Culpei você pelo que aconteceu quando deveria ter agradecido por ter ajudado.Issotemmepreocupado.Salvarvocêaliviaasensaçãodeculpa.

—Ficogratoemsaberque se senteassim.—Wilnãoacreditaraemumapalavra.—Têmsidotemposdifíceisparaminhairmãeeu.

—Difíceis?—OrostomorenodeCepheloexpressoupreocupação.—Talvezeupossafazeralgomaisparaajudá-los,paralhesserútil.Sevocêmedisseroque,exatamente,otrouxeparaestapartetãoperigosadaregião...?

Aívem,pensouWil.Pelocantodoolho,viuorostodeAmberlesefecharemalerta.—Queriaquevocêpudesse ajudar.—Wil fezomelhorparaparecer sincero.—Porém, temo

quenão seja o caso.Oquemaispreciso éde alguémparameguiar, que conheça ahistóriadestevale,seusmarcosesuaslendas.

Cephelojuntouasmãos.—Bem,entãotalvezeupossamesmoajudá-los.JáviajeipeloVastoErmováriasvezes.—Ergueu

umdedocompridoatéalateraldasuacabeça.—Conheçoalgunsdeseussegredos.Talvez,pensouWil.Etalveznão.Elequersaberoqueestamosfazendoaqui.Ojovemdeudeombros.—Sintoquenãodevoabusardesuahospitalidade,envolvendo-oemmeusassuntos.Minhairmã

eeupodemosresolver.Orostodonômadeestavainexpressivo.

—Porquenãomecontaoqueotrouxeaquiemedeixaavaliarseérealmenteumabuso?A mão de Amberle apertou o braço de Wil, mas ele a ignorou, mantendo o olhar fixo em

Cephelo.Sabiaqueprecisavacontaralgumacoisaaonômade.—Háumadoençana famíliaElessedil,quegovernaoselfos.—Elebaixouavoz.—Anetado

Rei estámuito doente. O remédio de que ela precisa é um extrato de uma raiz que só pode serencontrada aqui, noVasto Ermo. Somente eu sei disso; eu eminha irmã. Viemos aqui em buscadessaraiz,poisseaencontrarmosealevarmosparaoReiÉlfico,arecompensaserágrande.

SentiuoapertodeAmberleemseubraçodiminuirderepente.Nãoseatreveuaolharparaela.Cepheloficouemsilêncioporummomentoantesderesponder.

—VocêsabeondeessaraizpodeserencontradanoVastoErmo?Ojovemassentiu.—Hálivros,livrosantigosdecuradovelhomundo,quefalamdaraizedeondeelaseencontra.

Maséumnomehámuitotempoesquecido,hámuitotempoapagadodosmapasqueasraçasusamagora.Duvidoqueessenomesignifiquealgumacoisaparavocê.

Onômadeinclinou-separafrente.—Diga-oassimmesmo.—Sepulcro—declarouWil,estudandoorostodooutro.—OnomeéSepulcro.Cephelopensouporummomentoesacudiuacabeça.— Você tinha razão, esse nome não me diz nada. Porém... — Ele fez uma pausa deliberada,

sacudindo-selevemente,comoseestivessepensando.—Temalguémquepodeconheceressenome,alguémfamiliarcomosvelhosnomesdestevale.Poderialevá-losatéele,suponho.Ah,Curandeiro,mas o Vasto Ermo é um lugar muito perigoso; você certamente sabe disso, já que com certezacruzouumapequenaparteda florestaparachegaraoCurralSombrio.Oriscoparaomeupovoepara mim seria muito grande se ajudássemos numa busca tão perigosa. — Deu de ombros,desculpando-se.—Alémdisso, temosoutros compromissos, outros lugaresparaondeprecisamosir,outrosnegóciosdequeprecisamoscuidar.Tempoéalgomuitopreciosoparapessoascomonós.Certamentevocêpodeprezarisso.

—Oquevocêquerdizercomisso?—perguntouojovememvozbaixa.—Quesemmim,vocêfracassaráemsuabusca.Quevocêprecisademim;queeuquerooferecer

a minha ajuda. Mas ajuda como a de que você precisa não pode ser dada sem, hum... umarecompensaadequada.

Wilassentiudevagar.—Querecompensa,Cephelo?Osolhosdonômadebrilharam.—AsPedrasquevocêcarrega.Aquelasquetêmpoder.Ojovemsacudiuacabeça.—Elasseriaminúteisparavocê.—Seriam?Osegredodelaséassimtãosombrio?—OsolhosdeCepheloestreitaram-se.—Não

pensequesoutolo.VocênãoéumsimplesCurandeiro.Issoficouóbviodesdeomomentoemquenosencontramos.Porém,nãomeimportocomquemvocêé,apenascomoquevocêtem.VocêtemopoderdasPedraseeuoquero.

—Amagiadelas é élfica.—Wil seobrigouapermanecer calmo,desejandodesesperadamentenãoterperdidoocontroledasituação.—Apenasalguémdesangueélficopodeusaroseupoder.

—Vocêmentemal,Curandeiro.—Otomdevozdohomemaltoeracruel.—Eleestáfalandoaverdade—intrometeu-seAmberlerapidamente,seurostoassustado.—Se

nãofossemasPedras,elesequerteriatentadoabusca.Vocênãotemodireitodepedirqueeleasdêparavocê.

—Eutenhoodireitodepediroqueeuquiser—retrucouCephelo,desfazendoaspalavrasdelacomumaceno.—Dequalquerforma,nãoacreditoemnenhumdevocês.

—Acreditenoquevocêquiser.—AvozdeWilestavafirme.—NãolhedareiasPedras.Os dois homens encararam-se em silêncio, o rosto do nômade duro e ameaçador. Porém,

também havia medo ali — medo gerado pela lembrança nítida que Cephelo possuía do poderdentrodasPedrasÉlficas,umpoderqueWilOhmsforddominara.Commuitoesforço,eleseforçouasorrir.

—O que vocême daria então, Curandeiro?Você espera que eu preste esse serviço de graça?Esperaqueeuarrisquevidasepropriedades semnenhumarecompensa?Deve teralgumacoisadevalorquevocêpossamedar,algoquetenhaomesmovalordasPedrasquevocêserecusaamedar.Eentão?Oquevocêmedaria?

Wil tentou desesperadamente pensar em alguma coisa, mas não estava carregandoabsolutamente nada que valesse mais do que alguns centavos. Porém, no momento em queconcluíraqueasituaçãonãotinhajeito,Cepheloestalouosdedos.

—Voufazerumacordocomvocê,Curandeiro.VocêdissequeoReidosElfosirárecompensá-lo se você levar o remédio para curar a neta.Muito bem. Farei tudo o que eu puder para ajudarvocêadescobriralgosobreesselugarchamadoSepulcro.Ireilevá-loatéalguémquepodeconheceressenome.Fareiissoenadamais.Eemtroca,vocêprecisamedarmetadedequalquerrecompensaqueoReilheder.Deacordo?

Wil pensou por ummomento. Era um acordo curioso, concluiu.Nômades raramente, se nãonunca,davamalgosemprimeiroconseguiralgumacoisaemtroca.OqueCephelopretendia?

—VocêquerdizerquevaimeajudaradescobriralocalizaçãodoSepulcro...—Seeupuder.—...masquenãoirácomigoencontrá-lo?Cephelodeudeombros.—Nãoqueroarriscarminhavidasemnecessidade.Encontraroremédioefazê-lochegaràneta

doReiÉlficoéproblemaseu.Minhapartedoacordoésomenteajudá-loaencontrarocaminho.—Ele fez umapausa.—Porém,nãopresumaque quandonos separarmos você estará livre demim.Qualquertentativademeenganarsobreoquevocêmedeveterminarámuitomalparavocê.

Ojovemfranziuocenho.—Comovocêsaberáseeutivesucessoounãosenãoforcomigo?Cephelodeuumagargalhada.— Curandeiro, eu sou um nômade, eu vou saber. Vou saber tudo que acontecer com você,

acredite.Seu sorriso era tão cruel que por um instante Wil teve certeza de que havia outro sentido

naquelaspalavras.Havia algo errado, podia sentir.Porém,precisariamde ajudapara encontrar ocaminho dentro do Vasto Ermo— ajuda que permitiria que ele não usasse as Pedras Élficas. SeCephelo desse tal ajuda, poderia ser a diferença entre sucesso e fracasso para encontrar oFogossangueantesdosdemônios.

—Deacordo?—perguntouCephelodenovo.Wilsacudiuacabeça.Testariaonômade—Metadeémuitacoisa.Possolhedarumterço.—Umterço!—OrostodeCepheloobscureceumomentaneamente,relaxandodepois.—Muito

bem.Eusouumhomemrazoável.Umterço.Aquilo fora fácil demais, pensou Wil. Olhou para Amberle e viu em seus olhos a mesma

desconfiançaquedançavanosdele.Masaelfanãodissenada.Estavadeixandoqueeledecidisse.—Vamos,vamos,elfinho—pressionouCephelo.—Nãotenhoodiatodo.Ojovemassentiu.—Muitobem.Deacordo.—Bom—Cephelo levantou-se imediatamente.—Partiremos assim que nossos negócios aqui

terminarem.Mas vocês precisam ficar no vagão por um tempo; não devem ser vistos de novonoCurralSombrio.Assimqueestivermosdentrodafloresta,poderãosair.

Deu um sorriso largo, mexendo no chapéu de abas largas em cumprimento, e passou pelaentrada.Aportafechou-sesuavementeatrásdeleefoitrancada.WileAmberleseencararam.

—Nãoconfionele—sussurrouAmberle.Wilaquiesceu.—Nemumpouco.Poucodepois,acarroçadeuumsolavancoecomeçouaandar.AjornadadelesnoVastoErmo

recomeçara.

CapítuloXXXVII

Ovelhocantarolavabaixinhoparasimesmo,sentadoemsuacadeiradebalanço,eolhavaparaafloresta que escurecia. Mais para o oeste, do outro lado da muralha de árvores que cercavacompletamenteaclareiraemqueseencontrava,alémdovaledoVastoErmoedasmontanhasqueoenvolviam,osoldescianohorizonteea luzdodiasumianocrepúsculo.Eraahora favoritadovelho,ocalordomeio-diaesfriandoatévirarasombradanoite,comopôrdosolcolorindoocéudeescarlateeroxo,tornando-seaospoucosumazulescuro.Notopodacristadasmontanhas,ondeas árvores se afastavam o bastante para permitir avistar relances do céu, da lua e das estrelas nomeio da tela de galhos e ramos, o ar tinha um cheiro limpo, livre da umidade e do mofo quecarregavaduranteamaiorpartedodia, e as folhasda floresta sussurravamna levebrisanoturna.Era como se, naqueles poucos instantes, o Vasto Ermo fosse como qualquer outro lugar, e umhomempudesseencará-locomoumvelhoamigoíntimo.

O velho frequentemente enxergava o vale daquele jeito, mais naquele momento do que emqualqueroutrododiaoudanoite,massemprecomaquelamesmasensaçãodeprofundaeperpétualealdade. Poucos poderiam sentir-se como ele, mas poucos conheciam o vale como ele. Oh, eratraiçoeiro—duroecheiodeperigoscapazesdecapturaredestruirumhomem.HaviacriaturasnoVasto Ermo que não podiam ser encontradas em nenhum outro lugar, a não ser como históriascontadasàbeiradefogueiras,emsussurrosapressadoseolharesassustados.Haviamorteali,mortequevinhanapassagemdecadahora,dura,cruelecerteira.Eraumaterradecaçaecaçadores,cadacriaturasendoumpoucodeambos,eovelhoviraomelhoreopiordecadaumanossessentaanosemqueovaleforaseular.

Tamborilou os dedos no braço da cadeira e lembrou-se de outros tempos. Lá se iam sessentaanosdesdequechegaraaoVastoErmo—umlongotempo,masquepassararápido.Aquele lugarfora sua casadurante todos aqueles anos e eraum lar queumhomempodia respeitar—não erasimplesmentemaisumlugarcomcasasepessoasamontoadasemsegurança,asalvo,entorpecidas,masumlugardesolidãoe intensidade,dedesafioseemoções,umlugarnoqualapenaspoucosseaventuravam, pois apenas aqueles poucos a ele pertenciam. Poucos como ele, pensou, e só elerestava daqueles que haviam ido para aquele vale. Todos os outros se foram, reclamados pelanatureza,enterradosprofundamenteemalgumlugardaquelasterras.Claroquehaviaaquelestolosque se amontoavamcomocães assustadosnas choupanasmiseráveisda aldeiadoCurral Sombrio,trapaceandoeroubandounsaosoutrosequalquertoloobastanteparaentrarnomeio.Masovalenãoeradelesejamaisseria,poisnãoentendiamsobreoqueeraovale,nemqueriamaprender.Eraamesmacoisaquesepretenderemnobresporestarempresosnoarmáriodeumcastelo.

OstolosdeCurralSombrioochamavamdeLouco.Loucoporviveremumlugartãoselvagem,sendovelhoe sozinho.Deuumsorriso tortoaopensarnisso.Uma loucuramuitopeculiarao seudono,talvez;maspreferiaestaàloucuradeles.

— Vagabundo — chamou ele num resmungo, e o monstruoso cachorro preto que jaziaestendido aos seus pés acordou e levantou-se, um animal gigantesco que parecia tanto um ursoquanto um lobo, com o corpo imenso coberto de pelos eriçados. Seu focinho abriu-se em um

bocejolargo.—Ei, você!—grunhiu o velho e o cachorro foi até ele, deitando a cabeçorrano colode seu

dono,esperandoquesuasorelhasfossemcoçadas.O homem fez-lhe a vontade. Em algum lugar na escuridão crescente, um grito soou, alto e

agudo,perdurandonarepentinaquietudecomoumeco,atésumir.Vagabundoergueuosolhos.Ovelho assentiu.Gato do pântano.Umdos grandes.Alguma coisa cruzara seu caminho e pagara opreço.

Oolhardohomemvagou,distraído,distinguindoas formas e figuras familiaresnapenumbra.Atrás de si, estava a cabana em que vivia, uma estrutura pequena, mas sólida, feita de madeirarejuntadacomcimento.Haviaumtelheiroeumpoçonapartedetrás,assimcomoocercadodesuamula,umabancadadetrabalhoelenhacortada.Elegostavadeentalhar,gostavatantoquepassavaboapartedodiadandoformaeentalhandoamadeiraquerecolhiadasgrandesárvoresaoredordaclareiraemquinasecantosquelheeramagradáveisdeolhar.Inúteis,supunha,paraqualqueroutrapessoa além dele, mas não ligava muito para os outros, então tudo bem. Via outras pessoaspouquíssimasvezes,emesmoissoeramaisdoqueobastante,enãoprocuravadarmotivosparaqueo procurassem. Vagabundo era toda a companhia de que precisava. E aqueles gatos inúteis quevagavamporaliprocurandoporlugaresnovosparadormireporrestosdecomida,comosefossemsimplescarniceiros.Alémdesuamula,umacriaturaestúpida,masnaqualpodiaconfiar.

Espreguiçou-see levantou-se.O sol já sepuseraeocéunoturnoestavaenfeitadodeestrelas eluar.Erahoradeprepararalgoparaeleeocãocomerem.Olhouporummomentoparaotripéeapanela que jaziam sobre uma fogueira a vários metros diante de si. Era o resto da sopa do diaanterior,eumrestoprecioso—talvezfosseobastanteparamaisumarefeição.

Adiantou-separaafogueira,sacudindoacabeça.Eraumhomemmiúdo,velhoerecurvado,comocorpomagrocomoumgravetocobertoporumacamisarasgadaecalçascomaspernascortadas.O cabelo branco cercava a cabeça calva num círculo fino de neve que cobria a extensão entre amandíbula arredondada e umabarbamanchadade sujeira e serragem.Apelemorena e enrugadacobria seu corpo velho e duro como couro, seus olhos mal eram visíveis em meio às pálpebrasinchadasecaídas.Andavacomomovimentocurvadocomoalguémquehaviaacabadodeacordare,sentindoosmúsculoscontraídospelosono,tentavafazerpassararigidez.

Parou do lado da panela e a analisou, tentando decidir o que poderia fazer para tornar seuconteúdomaisatrativo.Foinaquelemomentoqueouviucavalosecarroçaseaproximando,aindalonge,perdidosnaescuridãoemalgumpontodatrilhaquelevavaatésuacabana,aproximando-sede forma incerta. Ele virou-se e encarou a noite, esperando. Ao seu lado, Vagabundo rosnou deformapouco amigável, e o velho lhe deuum tapa como aviso.Osminutos passaram e os sons seaproximaram.Finalmente,umafileiradesombrasemergiudapenumbra,descendodaelevaçãonafrentedaclareira—umaúnicacarroçacomcavalosnafrenteeumameiadúziadecavaleirosatrás.Ohumordovelhoazedounahoraemqueviuacarroça.Eleaconheciamuitobem,sabiaqueeradosnômades,sabiaquepertenciaaosafadodoCephelo.Cuspiuparao lado,desgostoso,epensouseriamenteemsoltarVagabundoemcimadeles.

Os cavaleiros e a carroça pararam perto do limite da clareira. A figura sombria de Cephelodesmontoueavançou.Quandoalcançouovelho,ochapéudeabaslargasdonômadefoisacudidoemsaudação.

—Prazeremvê-lo,Hebel.Boanoite.Ovelhobufou.—Cephelo.Oquevocêquer?

Cephelopareceuchocado.— Hebel, Hebel, não é assim que duas pessoas que fizeram tanto uma pela outra se

cumprimentam. Não é assim que homens que compartilharam os infortúnios e as desgraças dahumanidadesecumprimentam.Olá!

Onômadeestendeuamãoparapegaramãodovelhoeasacudiucomforça.Hebelnãoresistiu,mastambémnãosemostrouativoemseugesto.

—Ah,vocêestáótimo.—Cephelosorriude formacativante.—Estaregiãoaltaéboaparaasdoreseincômodosdaidade,imagino.

— Dores e incômodos da idade, é? — Hebel cuspiu e franziu o nariz. — O que você estávendendo,Cephelo;algumcura-tudoparadoentes?

Cephelo olhou para aqueles que haviam vindo consigo e deu de ombros, como se pedissedesculpas.

—Vocêémuitorude,Hebel,muitorude.Ovelhoacompanhouseuolhar.—Oquevocêfezcomorestantedoseubando?Elesfugiramcomoutroladrão?Dessavez,orostodonômadeficouligeiramentemaissério.—Euosmandeinafrente.Estãoseguindopelaestradaprincipalparaolesteevãoesperarpor

mim em Tirfing. Estou aqui com alguns poucos por causa de um assunto importante. Podemosconversar?

—Vocêestáaqui,nãoestá?—ressaltouHebel.—Faleoquantovocêquiser.—Epartilhardoseufogo?Hebeldeudeombros.—Nãotenhocomidaparaalimentartodosvocês;enãoalimentariasetivesse.Talvezvocêtenha

trazidoalgumacoisa,hein?Cephelodeuumsuspiroexagerado.—Nóstrouxemos.Nestanoite,dividiremosnossojantarcomvocê.Ele chamou os outros. Os cavaleiros desmontaram e começaram a cuidar dos cavalos. Uma

mulher de idade conduzia a carroça em companhia de um jovem casal. Ela desceu, recolhendoprovisõeseutensíliosdecozinhadofundodacarroçaeseguiuatéafogueirasemdizerpalavra.Osdoisqueestavamcomelahesitaramporummomento,masavançaramaoconvitedeCephelo.Umajovemmagradecabelosescuros,queestiveracavalgando,uniu-seaeles.

Hebel virou-se sem falar mais nada e voltou a sentar-se na cadeira de balanço. Havia algoestranho nos dois que desceram da carroça,mas ele não conseguia perceber bem o que era. Elespareciamnômades,masaomesmotemponãopareciam.EleosviuseaproximaremcomCepheloeamoçadecabelosescuros.Osquatrosentaram-senagramaaoredordovelho—amoçadecabelosnegrosescorregandoparapertodojovemdeformasugestivaedando-lheumapiscadelaaudaciosa.

—Minha filhaEretria.—Cephelo lançou-lheumolhar irritado ao apresentá-la.—Estesdoissãoelfos.

—Não sou cego— retrucou Hebel, percebendo naquele momento porque eles pareciam sermaisdoquenômades.—Oqueestãofazendocomvocê?

—Nóstemosumamissão—anunciouonômade.Hebelinclinou-separafrente.—Umamissão?Comvocê?—Eleolhouparaojovem,orostoenvelhecidoenrugando-semais.

—Vocêpareceumtipointeligente.Porquedecidiusejuntaraele?—Eleprecisadeumguianestaregiãomiserável—respondeuCepheloporWil.Talvezrápido

demais, pensou Hebel. — Por que, Hebel, você insiste em morar nestas paragens selvagens eesquecidas? Um dia, passarei aqui e encontrarei seus ossos, seu velho, e tudo porque você erateimosodemaisparalevarestecorpoinútilparaumlugarmaisseguro.

—Como se eu ligasse— resmungouHebel.—Para alguémcomoeu, esta região é tão seguraquandoqualqueroutra.Euaconheço,conheçotudoqueapercorre,querespira,quecaçanela.Seicomomemanteràdistânciaequandodevomostrarosdentes.Euvouenterrarvocê,nômade,podeanotarisso.—Elesereclinounacadeira,vendoasombraescuradeVagabundoacomodar-seatrásdesi.—Oquevocêsqueremcomigo?

Cephelodeudeombros.—Sóconversar,comoeudisse.ArisadadeHebelfoiáspera.—Sóconversar?Oras,Cephelo,oquevocêquer?Nãodesperdicemeu tempo,poisnão tenho

muitosobrando.—Paramim, nada. Para estes jovens elfos, umpouco do conhecimento guardado nessa velha

cabeçacareca.Foiumgrandeesforçoparamimchegaratéaqui,masexistemcausasquemerecem...Hebelouviraobastante.—O que vocês estão cozinhando ali?— Ele se permitiu ser distraído pelo cheiro da comida

fervendonapanela.—Oquetemali?—Comoeuvousaber?—replicouCephelo,irritadopelaaparentefaltadeatençãodohomem

maisvelho.—Carne,acho.Carneevegetais.—Hebelesfregouasmãosenvelhecidas.—Achoquedevemos

comerantesdeconversar.Trouxecervejanômadecomvocê,Cephelo?Comeram pratos de cozido, pão adormecido, frutas secas e nozes, com copos de cerveja para

ajudar a descer. Não falaram muito enquanto comiam, apesar de terem trocado um númeroconsiderável de olhares, e estes olhares falarammais a Hebel sobre a situação do que quaisquerpalavras que seus visitantes pudessem ter dito. Os elfos, concluiu, estavam ali por não teremescolha.Eles se importavamcomCephelo e seubando tantoquando ele próprio.Cephelo, claro,estava ali porque ia ganhar alguma coisa com aquilo,mas o que seria, com certeza ficariamuitobemescondido.Eraamoçadecabeloescuro,afilhadonômade,quemaisointrigava.Ojeitocomoelaolhavaparaorapazdelatavaumpoucodoqueelaqueria,porémhaviamaisneladoqueaquilo,maisdoqueelaqueriamostrar.Ovelhoficavacadavezmaiscuriosoquantoaoquepoderiaser.

Finalmente, a comida acabou e a cerveja foi bebida. Hebel pegou um cachimbo comprido,acendeuseuconteúdocomumapederneiraesoltouumaamplabaforadadefumaçanoarnoturno.Cephelotentoudenovo.

—Estejovemelfoesuairmãprecisamdasuaajuda.Elesjápercorreramumlongocaminho,masnão serão capazes de continuar avançando se você não os ajudar. Eu disse a eles, claro, que vocêajudaria.

Ovelhobufou.Conheciaaquelejogo.— Não gosto de elfos. Eles se acham bons demais para este lugar, para pessoas como eu. —

Ergueu uma sobrancelha.—Não gosto de nômades também, como você sabemuito bem. Gostomenosaindaemcomparaçãoaoselfos.

Eretriasorriu.—Parecequevocênãogostadeummontedecoisas.—Caleaboca!—estourouCephelo,orostoficandosevero.EretriasecaloueHebelviuaraiva

surgiremseusolhos.

Eleriubaixinho.—Nãoa culpo,menina.—OlhouparaCephelo.—Oquevocêmedará se euajudaros elfos,

nômade?Umatrocajusta,sevocêquiseroqueeusei.Cephelofechouacara.—Nãotestedemaisminhapaciência,Hebel.—Ah!Vocêvaicortarminhagarganta?Vejaquepalavrasencontraráassim!Agora, fale:oque

vocêvaimedar?—Roupas,cama,couro,seda,nãoimporta.—Onômadedispensouapergunta.—Tenhotudoisso—cuspiuHebel.Cepheloprecisoudeumesforçomonumentalparasecontrolar.—Bem,entãooquevocêquer?Fale,velho!Detrásdacadeiradebalanço,Vagabundodeuumrosnadodeaviso.Hebelestendeuamãopara

trásedeuumtapanocachorro.— Facas— anunciou.—Meia dúzia de boas lâminas. Ummachado e cunhas. Duas dúzias de

flechasdefreixoeemplumadas.Eumapedradeamolar.Ohomemaltoassentiu,nãoparecendoestarsatisfeito.—Deacordo,ladrão.Agora,medêalgoemtrocadissotudo.Hebeldeudeombros.—Oquevocêsqueremsaber?Cepheloapontouparaojovem.—O elfo é umCurandeiro. Ele está procurando uma raiz que produz um remédio raro. Seus

livros de cura dizem que pode ser encontrada aqui, no Vasto Ermo, em um lugar chamadoSepulcro.

Houve um longominuto de silêncio enquanto o nômade e o velho se encaravam e os outrosaguardavam.

—Bem?—perguntouCephelo,afinal.—Bemoquê?—retrucouooutro.—Sepulcro!Ondeé?Hebeldeuumsorrisotorto.—Onde sempre esteve, imagino.—Elenotou a surpresano rostodooutro.—Eu conheçoo

nome,nômade.Umnomeantigo, esquecidopor todos,menospormim,acho.Túmulosdealgumtipo;catacumbasdebaixodeumamontanha.

— É isso! — O jovem se levantou com o rosto rubro. Viu que todos o olhavam e sentou-senovamente. — Pelo menos era assim que os livros o descreviam — acrescentou, sem muitaconvicção.

—Elesdescrevem,é?—Hebel jogou-separatrás,soltandofumaça.—ElestambémfalaramdoVazio?

Ojovemsacudiuacabeçaeolhouparaaelfa,quetambémsacudiuacabeça.FoiCepheloqueseinclinouparafrente,semicerrandoosolhos.

—QuerdizerqueoSepulcroficadentrodoVazio,velho?Havia um tom na voz de Cephelo que não passara despercebido por Hebel. Cephelo estava

assustado.Hebelriu.—DentrodoVazio.ContinuaprocurandopeloSepulcro,nômade?Ojoveminclinou-se.

—OndepodemosencontraroVazio?— Para o sul, a um dia de caminhada— respondeu o velho. Era hora de acabar com aquela

baboseira.—Lugarescuroefundo,elfo;umfossoondetudoquecai,somedevistaeseperdeparasempre.Morte, elfo.Nada que vai para oVazio volta.Aqueles que vivem lá escolherammantê-loassim.

Ojovemsacudiuacabeça.—Nãoentendi.Eretriamurmuroualgumacoisa,disfarçadamente,eseusolhosdirigiram-serapidamenteparao

rostodojovemelfo.Hebelviuqueelasabia.Suavozdiminuiuparaumsussurro.—As Irmãs Bruxas, elfo.Morag eMallenroh. OVazio pertence a elas e às criaturas que elas

criaramparaservi-las,criaturasdepoderdebruxa.—Mas onde dentro do Vazio está o Sepulcro?— insistiu o outro.—Você falou sobre uma

montanha...?—NoAltoPináculo;umpicosolitárioqueseerguenoVaziocomoumbraçoesticadosaindo

deseutúmulo.Ali ficaoSepulcro.—Ovelhoparou,dandodeombros.—Ouficava.NãovouaoVaziohámuitos,muitosanos.—Sacudiuacabeça.—Ninguémmaisvailá.

Ojovemassentiudevagar.—Conte-mealgumacoisasobreessasIrmãsBruxas.OsolhosdeHebelestreitaram-se.—Morag eMallenroh, as últimas de sua espécie. Antes, elfo, existiammuitas como elas,mas

agorasóexistemasduas.AlgunsdizemqueelaseramascriadasdoLordeFeiticeiro.Outrosdizemqueexistiammuitoantesdele.PoderquerivalizacomodosDruidas,algunsdizem.—Eleabriuasmãos. — A verdade está escondida com elas. Procure-as, se quiser. A perda de outro elfo nãosignificanadaparamim.

Deu uma gargalhada áspera, engasgando-se um pouco até erguer o copo e beber um ou doisgolesdecerveja.Seucorpomagrocurvou-seaoprocurarosolhosdojovem.

—São irmãs,MorageMallenroh. Irmãsde sangue.Maselas seodeiam,emuito,umódioqueveiode algomuito antigo; se real ou imaginário,não seidizer,nemninguém.Mas elas lutamnoVazio, elfo.Morag domina o leste,Mallenroh o oeste, cada uma tentando destruir a outra, cadaumatentandopegarparasiaterraeopoderdairmã.EnocentrodoVazio,bemnomeiodasduas,ficaoAltoPináculo,eoSepulcroembaixodele.

—VocêviuoSepulcro?—Eu? Eu não.OVazio pertence às irmãs.O vale tem espaço o bastante paramim.—Hebel

reclinou-se,recordando.—Umavez,hátantosanosqueperdiaconta,saíparacaçarnoslimitesdoVazio.Foitolodeminhaparte,maseuaindaestavadeterminadoaconhecertodaaterraquetinhaescolhidoparasermeular,eashistóriaseramapenashistórias.CaceipordiasnasombradoVazio,sem ver nada. Uma noite, enquanto eu dormia, só com as brasas de minha fogueira comocompanhia,elaveioatémim:Mallenroh,alta,umacriaturasaídadossonhos,ocabelocinzalongoe tecido comomatiz da noite, seu rosto comoo da SenhoraMorte. Ela veio atémim, disse queprecisava falarcomalguémde sanguehumano,alguémcomoeu.Duranteo restantedanoite, elafalouemecontousobreelaesuairmãMorag,edaguerraparaconquistaroVazio.

Eleestavaperdidoemsuaslembranças;avozsoavadistanteesuave:—Demanhã, ela já não estava lá, quase como se nuncahouvesse estado. Jamais a vi de novo,

claro,nãodesdeentão.Eupoderiaterachadoqueimagineiaquilo,quenãoforareal,maselalevouumapartedemimconsigo;umpedaçodaminhavida,vocêdiria.

Elesacudiuacabeça,lentamente.— Amaior parte do que ela me contou espalhou-se como os fragmentos de um sonho.Mas

lembrodesuaspalavrassobreoSepulcro,elfo.CatacumbasembaixodobraçodoAltoPináculo,eladisse.Umlugardeoutraépocaondealgumamagiaestranhaforafeitaumavez.Tãoantigaquenemasirmãssabiamseusignificado.Elamecontouisso,Mallenroh.Eumelembro...disso,pelomenos.

Ficouemsilêncio,pensandonopassado.Mesmodepoisdetodosaquelesanos,amemóriadelaera tãonítidaquantoos rostosdaqueles sentados ao seu redor.Mallenroh!Era estranho,pensou,lembrar-setãobemdela.

Ojovemfalavaemvozbaixa,tocandoacadeiradebalançocomamão.—Vocêselembradosuficiente,Hebel.O velho olhou para o elfo, surpreso, sem entender. Foi quando viu nos olhos do outro sua

intenção. Ele pretendia ir até lá, percebeuHebel.Queria ir para oVazio. Impulsivamente, ele seabaixou.

—Nãová—sussurrouele,sacudindoacabeçalentamente.—Nãová.Ojovemdeuumsorrisofraco.—Eupreciso,paraqueCephelotenhasuarecompensa.Onômadenãodissenada, seu rostomoreno indecifrável. Eretria lançou-lheumolhar duro e

depoissevirouparaojovem.—Curandeiro,nãofaçaisso—implorouela.—Escuteoqueovelhodisse.OVazionãoélugar

paravocê.Procureesseremédioemoutrolugar.Oelfosacudiuacabeça.—Nãoháoutrolugar.Deixeparalá,Eretria.Por um momento, o corpo inteiro da jovem nômade ficou rígido, seu rosto moreno

enrubescendo com as emoções que brigavam para se libertar. Porém, ela as mantevecuidadosamentesobcontrole,erguendo-seeencarando-odeumjeitofrio.

—Vocêéumtolo—declarouelaecaminhouparaaescuridão.Hebel observou o jovem, viu seus olhos seguiremEretria enquanto ela se afastava. A elfa não

olhou,seusestranhosolhosverdesintrospectivosepraticamenteperdidosnasombradeseucabelocomprido,quecaíaemseurostoinfantil.

—Essa raiz é tão importante?—perguntouo velho, curioso,não apenas ao jovem,mas à suacompanheiratambém.—Nãopodeserencontradaemoutrolugar?

—Deixe-os—falouCephelorepentinamente,seusolhosescurosindoderostopararosto.—Adecisãoédelesejáfoitomada.

Hebelfranziuatesta.— Está tão ansioso assim paramandá-los para amorte certa, nômade? E essa recompensa da

qualoelfofalou?Cepheloriu.—Recompensasvêmevãodeacordocomoscaprichosdodestino,velho.Ondeseperdeuma,

ganha-seoutra.Oelfoprecisafazeroqueescolheu,eleesuairmã.Nósnãopodemosjulgá-lo.—Precisamos ir— falou a jovembaixinho, pela primeira vezdesdeque se sentaram, olhando

profundamentenosolhosdovelho.—Bem—Cephelo levantou-se.—Chega desse assunto.A noite não acabou e temos uma boa

cerveja nômade para beber.Vamos dividi-la, amigos.Vamos falar do que já se passou, em vez detentarmosadivinharoqueacontecerá.Hebel,vocêprecisaouviras tolicesqueaquelaspessoasdoCurral Sombrio têm feito ultimamente. Loucuras que só um homem como você e eu podemos

apreciardeverdade.Chamou bruscamente a velha, que correu para o lado dele com uma jarra de cerveja. Vários

outrosnômadesaproximaram-separajuntarem-seaeles,eCepheloserviuacervejalivrementenoscoposdetodos.Rindoebrincando,começouumasériedehistóriasfantásticasdelugaresaosquaisprovavelmentenuncaforaedepessoasquecertamentenuncavira.Onômadeeravalenteecalmo,esuasfalasencheramanoitecomasrisadasdoseupovoeotilintardoscoposquebrindavam.Hebelescutava, desconfiado. Cephelo fora rápido em desprezar seu aviso para os elfos e em negarinteressenasupostarecompensaquesóviria,aparentemente,seojovemelfoencontrasseoremédioqueestavaprocurandoeconseguissevoltar.Rápidodemais,pensouele—poisonômadesabiatãobemquandoelequeninguémvoltavadoVazio.

Balançou devagar na cadeira com encosto de bambu, abaixando a mão distraidamente paraencontrar a cabeça peluda de Vagabundo. Que outro aviso poderia dar ao elfo?, pensou. O quepoderiadizer,alémdoquejádissera,paradesencorajaraquelatolice?Talveznada:orapazpareciadeterminadoair.

Ele se perguntou então se o elfo encontraria Mallenroh como ele fizera tantos anos antes;pensandoque,sefosseocaso,eleoinvejava.

Poucotempodepois,WilOhmsfordlevantou-sedomeiodosdemaisecaminhouparaopoçologoatrásdacabanadovelho.Amberle jáestavadormindo,enroladaemcobertorespertoda fogueira,exauridapelodiadeviagemepeloseventosanteriores.Tambémsesentiaespecialmentesonolento,mesmotendobebidopoucacervejanômade.Aágua friapoderiaajudar,pensou,assimcomoumaboanoitedesono.Acabaradedarumlongogoleemumcopodemetalpresonacorrentedobaldedopoço,quandoEretriasaiudassombraseficouàsuafrente.

—Nãoentendovocê,Curandeiro—disseela,grosseira.Elerecolocouocopodentrodobaldeesentou-senabeiradopoço.Eraaprimeiravezquevia

Eretriadesdequeelaochamaradetolonafrentedosoutros.—EupasseipormausbocadosparasalvarsuavidanoCurralSombrio—continuouela.—Não

foifácilconvencerCephelodequeeledeviamedeixarajudarvocê,nemumpouco.Agora,parecequemeusesforçosforamemvão.Poderiamuitobemterdeixadoosassassinoscuidaremdevocê,devocêedessaelfaquevocêfingesersuairmã.Apesardosavisosquelhederam,vocêinsisteemiratéoVazio.Euquerosaberporquê.Cephelotemalgumacoisaavercomisso?Nãoseiqueacordovocêfechoucomele,masnadadoqueele tenhaprometidovaleo risco, isso seele tivera intençãodecumprirapartedele,oqueeuduvido.

—Cephelonãotemnadaavercomisso—respondeuWilemvozbaixa.—Seeleoameaçoudealgumjeito,euficareidoseu lado,contraele—declarouamoçacom

firmeza.—Euajudovocê.—Euseidisso.MasCephelonãotemnadaavercomaminhadecisão.—Entãoporquê?Porquevocêprecisafazerisso?Ojovemabaixouosolhos.—Precisamosdoremédio...— Não minta para mim!— Eretria sentou-se do lado dele na lateral do poço, com o rosto

irritado.— Cephelo pode acreditar nessa bobagem sobre raízes e remédios, mas ele vê apenas averdadedesuaspalavras,Curandeiro,enãoadosseusolhos.Vocêpodedisfarçaraprimeira,masnunca a segunda. A elfa não é sua irmã; é seu encargo, uma responsabilidade pela qual você

claramentetemmuitoapreço.Nãosãoraízeseremédiosquevocêprocura,masalgomais.OqueéquetemdentrodoVazio,então?

Wil ergueuo rosto lentamentepara encontraroolhardela e encará-la.Porum longo tempo,ficoumirando-a,semresponder.Numimpulso,elaesticouasmãos,agarrandoasdele.

—Eununcatrairiavocê.Nunca.Eledeuumsorrisofraco.—Talvezsejaaúnicacertezaqueeutenhasobrevocê,Eretria.Eulhedigooseguinte:existeum

perigoqueameaçaestaterra,queameaçatodasasTerras.AcoisaquenosprotegerácontraissosópodeserencontradanoSepulcro.Amberleeeufomosenviadosparaencontrá-la.

Osolhosdajovemnômadeencheram-sedefogo.—Entãomedeixeircomvocê.Leve-mecomvocêagora,comodeviaterlevadoantes.Wilsuspirou.—Como posso fazer isso?Você acabou deme dizer que sou um tolo por insistir em ir até o

Vazio. Agora você quer que eu a trate como tola também.Não. Seu lugar é com seu povo, pelomenosporora.Émelhorquevocêcontinueindoparaoleste,paralongedasTerrasdoOesteedoquevaiacontecer.

— Curandeiro, eu serei vendida por aquele demônio disfarçado de pai no momento em quealcançarmosascidadesdasTerrasdoSul!—Avozdelasooudura,áspera.—Devoacharqueéumdestinomelhordoquequalquerumquevocêváencontrar?Leve-mecomvocê!

—Eretria...— Escute! Eu conheço alguma coisa desta região, pois os nômades viajam por ela desde que

nasci.Possosaberdealgoqueoajude.Senão,pelomenosnãovouatrapalharvocê.Seimecuidar,melhor do que sua elfa. Não estou pedindo nada, Curandeiro, que você não pediria se nossassituaçõesfosseminvertidas.Vocêprecisamedeixarir!

—Eretria,mesmoseeuconcordassecomisso,Cephelojamaisadeixariair.—Cephelonãosaberiaatésertardedemaisparafazeralgumacoisa.—Avozdelaestavarápida

eempolgada.—Leve-mecomvocê,Curandeiro.Diga-me“sim”.Elequasedisse.Elaeratãomaravilhosamentelindaquejáseriadifícilrecusarqualquercoisaem

circunstânciasnormais.Masali,sentadaaoladodele,comosolhosbrilhantesdeexpectativa,haviaumdesesperoemsuaspalavrasqueocomoveram.AmoçatemiaCepheloeoqueelefariacomela.Ela não imploraria, o jovem sabia, mas chegaria o mais perto possível disso para convencê-lo aajudá-laaselibertar.

Mas o velho dissera que o Vazio era morte certa. Ninguém ia para o Vazio. Seria difícil obastantetendoquecuidardeAmberle;eapesardoqueEretriadisserasobretomarcontadesi,Wilsabiaque,seadeixasseir,elesepreocupariacomelatantoquantosepreocupavacomaelfa.

Sacudiuacabeçalentamente.—Nãoposso,Eretria.Nãoposso.Houveumlongosilêncioenquantoelaoencarava,adescrençaearaivadilatandosuaspupilas;

aempolgaçãoeaexpectativaesvaneceram.Lentamente,elaselevantou.— Apesar de eu ter salvado a sua vida, você não vai salvar a minha. Muito bem. — Eretria

afastou-seumpasso, com lágrimasmanchando seu rosto.—Porduasvezesvocême rejeitou,WilOhmsford.Vocênãoteráachancedefazerissodenovo.

Elavirou-seecomeçouaseafastar,parandoalgunspassosàfrente.—Prometoavocê,Curandeiro,quechegaráumahoraemquevocêdesejaránão ter recusado

tãoprontamenteminhaajuda.

E ela se foi, perdendo-senas sombrasdanoite, deixandoo jovemencarandoo lugar onde elasumira. Wil ficou onde estava por mais um tempo, desejando desesperadamente que as coisaspudessemserdiferentes,desejandoquehouvessealgumjeitosensatodedaraajudadaqualEretriaprecisava.

Porfim,eleselevantou,ocansaçoaumentando,esearrastouparairdormir.

CapítuloXXXVIII

OamanhecersurgiucinzentoetaciturnosobreoVastoErmo,envolvendoaflorestaemsombrasque se espalhavam como manchas de sangue pela terra escura. As nuvens mascaravam o céu damanhã, grossas, pairando imóveis sobre o vale, e uma sensação de expectativa preenchia o ar,avisando sobre a aproximação de uma tempestade de verão.No topo da elevação, Cephelo e seupequenobandocomeçaramadescerascolinas, seguindoa trilhaqueos levariadevoltaàestradaprincipal,numacontinuaçãodaviagememdireçãoaoVazio.Osnômadessaíramdoacampamentode Hebel tal como haviam chegado, como sombras perdidas; os cavaleiros conduziam a únicacarroça, que levavaWil e Amberle, demãos erguidas em uma breve despedida para o velho queestavadepé,emsilêncio,nafrentedapequenacabana,observando-ospartir.Lentamente,entraramnapenumbradafloresta,ondeárvoresimensasentrelaçavam-seacimadeles,atéqueapenasasmaisfinasfaixasdeluznãoerambloqueadas.Nãohavianadaalémdaestrada,estreita,irregulareescura,enfiando-senasprofundezasdovale.

Nomeiodamanhã, alcançarama estradaprincipaldenovo e viraram-separa leste.Aneblinacomeçavaaseacumularnochãodovale,enredando-sepelasárvoresconformeodiaesquentavaeofriodanoiteviravavapor.WileAmberleseguiamemsilêncioao ladodavelha,pensandonoqueestava por vir. Não haviam conversado mais com Hebel, pois tinham dormido profundamentenaquela noite e, quando acordaram, Cephelo fizera de tudo para garantir que eles ficassem àdistância. Eles se perguntavam o que mais ele poderia ter dito se tivesse a chance. Enquantorefletiam sobre aquilo, Cephelo voltou para falar com eles, apesar de seu sorriso e seumodo defalar parecerem forçados e carente de um motivo real. O líder nômade apareceu várias vezesdurante a manhã e toda vez foi a mesma coisa. Era quase como se ele procurasse alguma coisa,porémnemojovemdoValeSombrionemaelfatinhamamenorideiadoqueelebuscava.Eretriaficou afastadadeles o tempo todo, e emboraAmberle estivesse confusa coma súbitamudançadecomportamentodanômade,Wilsabiamuitobemosmotivos.

Erapertodomeio-diaquandoCepheloordenouumaparadaemumaencruzilhadaestreita,emalgumlugarbemdentrodafloresta.Àdistância,trovõesressoavamdeformaagourenta,eoventosopravarajadasinesperadasquebalançavamasárvores,levantandofolhasepoeira.CephelofoiatéacarroçaeparoudoladodeWil.

—Éaquiquenosseparamos,Curandeiro—declarouele.Apontouparaaencruzilhada.—Seucaminho ficaparao sul,pelaestradamenor.Basta semanternele.Vocêdevechegarao limitedoVazioantesdocairdanoite.

Wilcomeçouafalareonômadeergueuamãorapidamente.—Antesquevocêdigaqualquercoisa,deixe-meavisá-loparaquenãopeçaqueeuvácomvocê.

Nãofoioqueconcordamos,etenhooutroscompromissosquepretendocumprir.— Eu estava prestes a perguntar a você se podemos levar algumas provisões conosco —

informouWilfriamente.Onômadedeudeombros.—Sóparaumoudoisdias,nãomais.

Ele assentiu para a velha, que entrou na carroça. Wil observou o nômade remexer-sedesconfortavelmenteemsuasela.AlgumacoisaincomodavaCephelo.

—Comooencontrareiparalhedarasuapartenarecompensa?—perguntouWilderepente.—Recompensa?Ah,sim.—Cephelopareciaterseesquecidomomentaneamentedoacordo.—

Bem,comoeudisse,sabereiquandovocêforpago.Euireiprocurá-lo,Curandeiro.O jovem assentiu, levantou-se e desceu da carroça, virando-se para ajudar Amberle. Olhou

rapidamente enquanto a baixava. A elfa estava tão desconfortável quanto ele diante docomportamentodonômade.Elevirou-separaCephelo.

—Vocêpoderianosdarumcavalo?Umpoderia...Cepheloointerrompeu.—Nãotemoscavalossobrando.Agoravocêdeveir.Umatempestadeseaproxima.A velha reapareceu e entregou uma pequena sacola para Wil. O jovem colocou-a sobre um

ombroeagradeceu.Ergueuorostoparaonômademaisumavez.—Tenhaumajornadatranquila,Cephelo.Ohomemaltoassentiu.—Evocê,tenhaumajornadarápida,Curandeiro.Adeus.Wil pegou o braço deAmberle e a levou por entre os cavaleiros reunidos até a encruzilhada.

Eretria estava sentadaemseucavalo castanho, comocabelonegroesvoaçando livre comoventoque passava por ela rodopiando.Quando o jovempassou ao seu lado, parou por ummomento eestendeuamão.

—Adeus,Eretria.Elaassentiu,orostomorenoimpassível,frioebelo.Semumapalavra,elacavalgouatéCephelo.

Ojovemaobservouporumtempo,masamoçanãooolhououtravez.Wilvirou-separaocaminhoquelevavaaosul.Apoeirabatiaemseusolhos,eeleosprotegeucomamão,semicerrando-osparaenxergarnapenumbra.ComAmberleaoseulado,seguiuadiante.

Hebel passou a manhã na bancada de trabalho atrás da pequena cabana, curvado sobre umaescultura de um gato do pântano. Enquanto trabalhava, sua mente flutuava de volta para osacontecimentosdanoite anterior,paraos elfos e sua estranhabusca, eo avisoquedera,que foraignorado. Não conseguia entender. Por que eles tinham se recusado a escutá-lo? Certamente,deixara bemclaroque eramorte certa ir até oVazio.E comcerteza tambémdeixara claroqueodomíniodasIrmãsBruxasnãopodiaserviolado.Oquelevariaaquelesdoisirmãosairematéláporcausadeumasimplesraizmedicinalobscura?

Foi quando lhe ocorreu que talvez houvesse mais alguma coisa. Pensou naquilo por ummomento, e quantomais pensava, mais plausível lhe parecia. Afinal, eles não seriam tão tolos apontodeconfiaraverdadeaumbandidocomoCephelo;não,nãoaquelejovem—eleeraespertodemaisparaisso.OSepulcroficavanasprofundezasdoAltoPináculo;quetipoderaizcrescerianofundodecatacumbasdentrodeumamontanha,ondenenhumaluzdosol jamaispoderiaalcançarpara garantir seu crescimento?Masmagia fora feita no Sepulcro, a bruxa sussurrara para ele—magiadeoutraépoca,perdidaeesquecida.Seráqueoselfosqueriamrecuperá-la?

Acimadele,océuficavacadavezmaisescuroenquantoatempestadeaproximava-se,vindadoslimitesdoVastoErmo;ouivodoventonas árvores elevou-seatéumsilvoagudo.Ovelhoparouseutrabalhoeolhouparacimaporummomento.Aquelaseriaumadasgrandes,pensou,distraído.Outro mau sinal para aqueles elfos, que seriam pegos em campo aberto, pois a tempestade os

alcançariaantesquechegassemaoVazio.Sacudiuacabeça.Iriaatrásdelesseachassequeadiantariaalguma coisa, mas eles obviamente estavam decididos. Mesmo assim, era um desperdício. O quequer que procurassem no Sepulcro, fosse uma raiz medicinal ou magia, teria sido melhor setivessemignoradocompletamente.Jamaissobreviveriamparausá-la.

Aos seus pés, Vagabundo levantou a cabeça peluda e farejou o vento. Abruptamente, o cãorosnou,umrosnadobaixo,graveeraivoso.Hebelfitou-o,curioso,eolhouaoredor.Assombrasdasárvorescaíamnaclareira,masnadasemexia.

Vagabundo rosnou de novo e os pelos da sua nuca eriçaram-se. Hebel olhou ao redor,cautelosamente. Havia alguma coisa ali, alguma coisa escondida na penumbra. Ele ergueu-se,procurandoseumachado.Cautelosamente,adiantou-separaasárvores,comVagabundosentadoaoseulado,aindarosnando.

Masentãoeleparou.Nãoentendeuporqueparara,atésubitamentesentiralgogeladoafundaremseucorpo,enregelando-otãocompletamentequeelemalconseguiusemanterdepé.Aosseuspés,Vagabundo estava deitado, ganindo como se houvesse sido golpeado, encolhendo seu corpogrande.Ovelhoviualgoderelance,movendo-se—umasombra, imensaeencapuzada,queestavaali em um momento e sumira no outro. Um medo perpassou-o, tão terrível que não conseguiaencontrar dentro de si a vontade de se livrar dele. Ele o agarrara cruelmente, aprisionando-oenquantoencarava indefesoa florestaescura,desejandocomtodasas forçasque lhe restavamqueconseguissevirar-seefugir.Omachadocaiudesuasmãosebateunaterra,inútil.

Asensação,então,deixou-o,tãorapidamentequantoviera.Aoseuredor,oventouivava,eumarajadadechuvabatianorostocurtido.Inspirandofundo,pegouomachadoe,comVagabundobempróximodesi,recuoulentamenteatésentirsuaspernasencostaremnabancadadetrabalho.Parou,agarrandoopescoçodocãocomumadasmãos,afimdeimpedirquetremessem.Comumacertezaassustadora sabia que, nos sessenta anos de luta pela sobrevivência naquele vale perigoso, jamaisestiveratãopertodemorrer.

Wil e Amberle caminhavam havia menos de uma hora quando a tempestade os alcançou. Asintermitentes gotas grossas que deslizavam implicantes através da copa densa das árvoresrapidamentetransformaram-senumtemporal.Camadasdechuvavarriamocaminho,direcionadaspelo vento oeste, e os trovões ressoavam e ecoavam pela floresta encharcada. À frente deles, apenumbradatrilhaestreitaescureceuaindamaiscomachuva,eosgalhosdeárvores,pesadoscomaágua,começaramacairaoredordeles.Ficaramensopadosemminutos,naausênciadosmantosdeviagemquehaviamseesquecidodepegardevoltacomosnômades, juntamenteaorestantedesuasroupas.Asvesteslevesquetrajavamlogoficaramagarradasemseuscorpos.Nãohavianadaquepudessem fazer para aliviar aquele desconforto, então simplesmente abaixaram a cabeça econtinuaram.

Por várias horas, a chuva continuou a cair em um ritmo contínuo, exceto por breves pausasocasionais que alimentaram a falsa esperança do fim da tempestade. Enfrentando tudo aquilo, ojovem e a elfa continuaram a avançar, com água escorrendo de suas roupas e seus corpos, lamacobrindo suas botas, olhos fixos no caminho à frente. Quando finalmente a chuva diminuiu e atempestade seguiu para leste, a neblina começou a verter da floresta,misturando-se à escuridão.Árvores e arbustos brilhavam em formas escuras e reluzentes através da névoa, e a água pingavafazendobarulhonosúbitosilêncio.Acimadeles,océucontinuavanubladoeescuro;parao leste,trovões ressoavam, distantes e prolongados. A névoa começou a engrossar e os viajantes

diminuíramopasso.Foi então que o caminho começou a descer, uma queda ligeira, que a princípio passou

despercebida,masquefoiaumentandogradativamente.Osdoisjovensescorregavametropeçavamnaterraenlameadaenquantodesciam,espiandoapenumbracomesperança,porémsemencontrarnada alémdo túnel escuro da estrada com sua cobertura de árvores.A quietude tornou-se aindamais evidente. Mesmo os leves sons dos insetos cantando com o fim da tempestade haviamesvanecidoatésesilenciarem.

Subitamente, tão de repente que era como se alguém tivesse removido um véu da frente dosolhosdeles,asárvoresdasflorestassedistanciaram,aencostasumiueagrandeeescuradepressãodoVazioespalhou-sediantedosjovens.Ojovemeaelfapararamondeestavam,nocentrodatrilhaenlameada, e olharamparabaixo, para aquela vastidão impressionante. SouberamnamesmahoraquehaviamencontradooVazio;aqueleabismoimensocobertode florestaescuranãopoderiaseroutra coisa.Era comose tivessemencontradoummonstruoso lago inerte, imóvel e semvida, suasuperfícieescuratãocobertadevegetaçãoquesópoderiamimaginaroquejaziasobsuaságuas.Deseu centro imerso em sombras erguia-se o Alto Pináculo, uma coluna solitária de pedra que seelevava na escuridão, estéril e marcada. O Vazio era desolado como um túmulo aberto quesussurravasobreamorte.

Os dois jovens ficaram em silêncio à margem, lutando contra uma sensação de repulsa quecrescia a cadamomento que passavam olhando para a escuridão silenciosa.Nada do que tinhamencontradoatéentãopareceratãodesolado.

—Nóstemosquedescer.—Wilaventurou-seadizerenfim,odiandoaideia.Amberleassentiu.—Eusei.Ele lançou um olhar ao redor, esperando encontrar um caminho para seguirem. Adiante, a

trilhapareciaterminardevez.Porém,quandoWilandouumpouco,viuquenãoterminava,massedividiaaomeio,cadaladodescendoparaassombrasabaixo.Hesitouporummomento,estudandoos dois caminhos, tentando decidir qual seria mais fácil de descer, e escolheu o que ia para aesquerda.EstendeuobraçoparaAmberle,queoagarroucomfirmeza.Indonafrente,elecomeçouadescer, sentindo suasbotas escorregaremquandoa terraúmida e aspedras cediamempedaços.Amberlemanteve-seporperto,apoiando-semuitonele.Comcuidado,avançaram.

Abruptamente,Wilperdeuoequilíbrioecaiu.Amberlecaiucomele,tropeçandonaspernasdojovem, saindo do caminho enlameado e desaparecendo com um grito agudo na escuridãoarborizada. Freneticamente,Wil arrastou-se atrás dela, abrindo caminhopor arbustos densos querasgavamsuaroupaecortavamseurosto.Poderianãotê-laencontrado,nãofosseasedabrilhanteda roupa nômade que ela usava, umamancha vermelha na escuridão.A elfa jazia encolhida nummontedevegetação,semfôlego,comorostosujodelama.Seusolhospiscaramincertosquandoeleatocou.

—Wil?Elecolocou-asentada,tomando-anosbraços.—Vocêestábem?Vocêsemachucou?—Não,achoquenão.—Elasorriu.—Vocêébemdesajeitado,sabiadisso?Eleassentiu,sorrindoaliviado.—Vamoscolocarvocêdepé.Envolveuacinturadelacomobraçoetirou-adomeiodomato,sentindoocorpopequenoleve

comoumapenaaoerguê-la.Nomesmo instante, elagritoue caiudenovonochão, segurandoo

tornozelo.—Estátorcido!Wilsentiuotornozelo,verificandoosossos.— Não tem nada quebrado, é só uma torção séria. — Sentou-se ao lado dela. — Podemos

descansarumpoucoedepoiscontinuar.Possoajudarvocêadesceraencosta;possocarregarvocê,seforpreciso.

Amberlesacudiuacabeça.—Wil,medesculpe.Eudeveriatersidomaiscuidadosa.—Você? Fui eu que caí.—Ele riu, tentando parecer animado.—Bem, talvez uma das Irmãs

Bruxasamigasdovelhoapareçamparanosajudar.—Não temgraça.—Amberle fechouacara.Olhouao redor, inquieta.—Talvez fossemelhor

esperaratéamanhecerparacontinuarmosdescendo.Meutornozelopodeestarmelhorentão.Alémdomais,sechegarmosláantesdeanoitecer,teremosquepassaranoitelá,enãoqueroisso.

Wilconcordou.—Nem eu. E tambémnão acho que seja uma boa ideia tentarmos achar o caminho de noite.

Logo,logoteremosaluzdodia.—Talvezsejamelhorvoltarmosparaotopo.—Elaoolhou,esperançosa.Ojovemsorriu.— Você realmente acredita na história do velho? Você acha que tem bruxas morando lá

embaixo?Elaoencarousombriamente.—Vocênão?Elehesitouedeudeombros.—Eunãosei.Talvez.Sim,achoquesim.Achoqueacreditoemquasequalquercoisaagora.—

Ele sentou-sedevagar, abraçandoos joelhos.—Sehouvermesmobruxas, esperoque elas tenhammedodasPedrasÉlficas,pois sãoaúltimaproteçãoquenos restou.Claro, se eu tiverqueusarasPedrasparadeixá-lascommedo,estaremoscomgrandesproblemas.

—Achoquenão—respondeuelaemvozbaixa.—Vocêaindaachaqueeuconsigousá-las,nãoé?MesmodepoisdoqueaconteceunoPico?—Sim.Masvocênãodeve.Eleaencarou.— Você disse algo parecido antes, lembra? Depois de Tirfing, quando acampamos no

Mermidon.Vocêestavapreocupadacomigo.VocêdissequeeunãodeviausarasPedrasdenovo,mesmoquefosseparasalvarvocê.

—Lembro.— E depois, quando fugimos do Pico, eu disse que não podiamais usar as Pedras, que tinha

perdidoopodersobreelas,quemeusangueélficonãoeraforteobastante.Vocêfalouqueeunãodeviaserprecipitadoaomejulgar,queconfiavaemmim.

—Eumelembrodissotambém.— Bem, olhe só o que andamos dizendo. Acho que devo usar as Pedras, mas acho que não

consigo.Vocêachaqueconsigo,masquenãodevo.Engraçado,nãoé?—Wilsacudiuacabeça.—Enós ainda não sabemos quem está certo, não é? Aqui estamos, quase no Sepulcro, e ainda nãodescobri...

Eleparouderepente,percebendooqueestavaprestesadizer.— Bem, não importa — terminou, olhando para outro lado. — Será melhor se nunca

descobrirmos.Émelhorquesejamdevolvidasaomeuavô.Ficaramemsilêncioporummomento.Quasesempensar,Wilcolocouamãodentrodatúnica

nômadeeergueuosacocomasPedrasÉlficas.Eleoapertou,distraído,eestavaprestesaguardá-loquandosentiualgoestranho.Franzindoatesta,abriuosacoecolocouoseuconteúdonapalmadamão.Viu-seolhandoparatrêspedrascomuns.

—Wil!—exclamouAmberle,horrorizada.Ojovemencarouaspedrinhasemsilêncio,surpreso,comamentefervendo.—Cephelo—sussurrouporfim.—Cephelo.Dealgumjeito,eletrocouasPedrasporisso.Na

noitepassada,provavelmente,enquantodormíamos.Temqueserisso;elasestavamnabolsanaquelamanhã noCurral Sombrio, eu conferi.—Ele levantou-se devagar, ainda falando.—Mas hoje demanhã,euesqueci.Estavacansadodemaisnanoitepassada,evocêadormeceuassimquedeitou.Eledeveterdrogadoacervejaparatercertezadequeeunãoacordaria.Porissoestavatãoansiosoparase livrar de nós. Por isso fez pouco do aviso de Hebel sobre o Vazio. Ele ficaria feliz se nuncavoltássemos.A recompensanãoquerdizernadapara ele. EramasPedrasÉlficas que ele queria otempotodo.

O jovem começou a subir a trilha com o rosto pálido. De repente, lembrou-se de Amberle.Voltando-se, ergueua jovemnosbraços, apertando-a contra si, e subiudevoltaparao topo.Porummomentoolhouaoredor,edepoisseguiuparaumamontoadodearbustosaltos,váriosmetrosatrás.Passandoporbaixodoabrigodosgalhos,colocouaelfanochão.

—PrecisovoltarepegarasPedrasÉlficas—declarouemvozbaixa.—Seeudeixarvocêaqui,vocêvaificarbem?

—Wil,vocênãoprecisadasPedras.Elesacudiuacabeça.—Se for para testar essa teoria, prefiro fazer isso comasPedrasnamão.Vocêouviuoqueo

velhodissesobreoVazio.AsPedrassãotudooquetenhoparaprotegervocê.OrostodeAmberleestavabranco.—Cephelovaimatarvocê.—Talvez.Talvezeleestejatãolongequeeunãoconsigaalcançá-lo.MasAmberle,precisotentar.

Seeunãoencontrá-loatéamanhecer,prometoquevolto.ComousemasPedrasÉlficas,vouestarcomvocêparaentrarmosnoVazio.

Elacomeçoua falar,masparou.Lágrimascorriampor suasbochechas.Suasmãos seergueramparatocarorostodele.

—Eugostodevocê—sussurrouela.—Gostomesmo.Eleaencarou,surpreso.—Amberle!—Vá.—Elaoincentivou,comavoztrêmula.—Cephelodeveterparadoparapassaranoitee

vocêconseguiráalcançá-losecorrer.Mastenhacuidado,WilOhmsford.Nãoentreguesuavidapornada.Volteparamim.

Elainclinou-separabeijá-lo.—Vá.Rápido.Eleaencarousemfalarnadapormaisuminstanteeseergueudeumsalto.Semolharparatrás,

correueemsegundossumiunaescuridãodafloresta.

CapítuloXXXIX

Na manhã do mesmo dia em que Wil e Amberle lidavam com o desaparecimento das PedrasÉlficas, os demônios atacaram Arborlon. Com um berro assustador que quebrou a quietude damanhãereverberoupelasflorestasdasterrasbaixas,elessurgiramderepente,vindosdascopasdasárvores, uma imensa onda de corpos corcundas e retorcidos que se estendia por todo ocomprimentodoCarolan.Emumfrenesiquedeixavarazãoepensamentode lado,ascriaturasdaescuridãosaíramdapenumbraqueaindaeradensanaflorestaensombrecidaeatiraram-senaságuasdoRiachodaCanção.Comoumagrandemanchaespalhando-senaágua,encheramorio,grandesepequenos, lentos e velozes, pulando, rastejando, corpos desajeitados investindo contra a correnterápida.Alguns nadavamnas águas do rio, impulsionando-se combraços e pernas para chegar dooutro lado.Osmais leves e ágeisvoavamporcima,pulavamoudeslizavampela superfíciedo rio.Outros, tão grandes que podiam caminhar pelo fundo do rio, avançavam desajeitadamente, comfocinhose trombasesticadasparacima,balançandoemergulhando.Muitosnavegavamjangadasecanoasrústicas,jogando-sedequalquermaneiranaságuas,agarrando-secomforçaaqualquercoisaoucriaturaaoalcance,paraseremlevadosemsegurançaouarrastadosparaofundojuntamenteaosquenãoconseguiamajudá-los.Aloucuratomavacontadahordademoníaca,nascidadafrustraçãoedoódiopeloinimigoqueesperavaapoucascentenasdemetros.Daquelavez,comcerteza,veriamaqueleinimigoserdestruído.

Mas os elfos não entraram em pânico. Apesar da quantidade, tamanho e ferocidade dosdemônios que vinhamna direção deles ser suficiente para acabar como espírito de umdefensormenosdeterminado,oselfosmantiveramsuasposições.Aquelaseriaabatalhafinal.Erasuacidadenatalquedefendiam,ocoraçãodaterraqueforadelesdesdequeasraçassurgiram.Todoorestantedesde oeste doRiacho daCanção fora perdido.Mas os elfos estavamdeterminados a não perderArborlon.Eramelhorquelutassememorressemali,atéoúltimohomem,mulherecriança,aseremcompletamenteexpulsosdesuaterranatal,páriasemterrasestrangeiras,caçadoscomoanimaisporseusperseguidores.

No topo das fortificações da Elfitch, Ander Elessedil observava amaré de demônios avançar.Allanonpermaneceuaoseulado.Nenhumdosdoisfalava.Depoisdeumtempo,Anderlevantouosolhos.Bemacima,umpequenopontoapareceunoazul límpidodocéudoamanhecer, crescendoenquanto descia em círculos até tomar forma. Eram Dayn e Dançarina, sua roca. Voavam parabaixo,planandoaoladodospenhascosdoCarolanatéfinalmentepousarnarampaabertanafrentedeAnderedoDruida.Depoisdedesmontar,DaynfoicorrendoatéondeoPríncipeaguardava.

—Quantos?—perguntouAndernamesmahora.Daynsacudiuacabeça.—Nemaflorestaeaneblinaconseguemescondertodos.Osqueestamosvendonanossafrente

sãoapenasumpunhado.Ander aquiesceu. Eram tantos, pensou sombriamente. Mas Allanon dissera que seria assim.

Conteve-separanãoolharparaoDruida.—Estãotentandonosflanquear,Dayn?

OCavaleirodoVentosacudiuacabeça.— Estão vindo direto para o Carolan, todos eles. — Olhou para baixo, para os demônios

atacantes que se debatiamnas águasdoRiachodaCanção, então se virou e começou a andar emdireçãoàsameias.—VoudeixarDançarinadescansarpormaisunsminutos,depoisvoaremosparadarmaisumaolhada.Boasorte,meuPríncipe.

Andermaloescutou.—Precisamosaguentar—murmurou,quaseparasi.Abatalhajáestavaacontecendo.Nabeiradorio,fileirasemaisfileirasdearcosélficoszuniam,e

hastesnegrasvoavamatéamassadecorposofegantesqueenchiaaságuasdoRiachodaCanção.Asflechasbatiamcomosefossemgravetos inofensivosnosdemôniosprotegidosporescamasecourogrosso,porémalgumasencontravamseusalvoseosgritosde suasvítimaseramouvidosporcimados gritos de guerra. Formas negras contorciam-se e afundavam nas águas agitadas, perdidas naonda de corpos que vinha atrás. Flechas com pontas de fogo golpeavam as canoas, jangadas etroncos, mas a maioria logo era apagada e as embarcações improvisadas prosseguiam. Várias evárias vezes, os arqueiros atiraram na horda que saía da floresta para o rio, mas os demônioscontinuaram, escurecendo totalmente a margem oeste e as águas enquanto lutavam para ganharterrenonamuralhadefensivadoselfos.

Entãoveioumgritodo topodoCarolanevivas ressoaram.Napenumbradoamanhecer, elfosviraram-se, apressados, para olhar com incredulidade e alegria estampadas um cavaleiro alto egrisalhosurgir.PelaextensãodaElfitch,ogritopassoudebocaemboca.PortodaalinhadedefesadoRiachodaCanção, atrás de barricadas emuralhas, ele se ergueupelamanhã até se tornarumurroensurdecido.

—Eventine!Eventineestávindosejuntaranós!Emum instante, os elfos se transformaram, cheios de uma nova esperança, uma nova fé, uma

novavida.PoisaliestavaoReiqueosgovernavafaziasessentaanos—paramuitos,portodaavida.AliestavaoReiqueenfrentaraefinalmentetriunfarasobreoLordeFeiticeiro.AliestavaoReiqueatravessara com eles todas as crises que aquela terra encarara. Ferido no Talho de Halys,aparentemente perdido, ele estava de volta.Com seu retorno, certamente nenhummal, pormaismonstruosoquefosse,poderiaprevalecer.

Eventine!Porémalgoestavaerrado;Andersoubedissonomomentoemqueseupaidesmontouevirou-se

paraencará-lo.AquelenãoeraoantigoEventine,comoseupovoacreditava.ViunosolhosdoReiumadistânciaqueseparavaogovernanteélficodetudoqueestavaacontecendoaoredor.Eracomoseeletivesseserecolhidoemsi,nãopormedoouinsegurança,poispoderiadominarisso,masporuma profunda e duradoura tristeza que quebrara seu espírito. O Rei parecia forte o bastante, amáscaradeseurostorefletindodeterminaçãoevontadeférrea,esaudouaspessoasaoredorcomasmesmas velhas palavras familiares de incentivo. Porém, seus olhos traíam a perda que sentia, odesânimo que arrancara seu coração. Seu filho conseguia enxergar isso, e percebia que Allanontambém. Era apenas a casca do Rei cavalgando naquela manhã para estar com seu povo. TalvezfossemasmortesdeArionePindanonque tivessemfeitoaquilo;ou fosseculpado ferimentoquesofrera no Talho de Halys, da derrota de seu exército lá, ou da terrível devastação de sua terranatal;porém,maisprovavelmente,eratudoaquilojuntoemaisalgumacoisa—aideiadofracasso,o conhecimento de que, se os elfos perdessem aquela batalha, permitiriam que um malincontrolável se espalhasse pelasQuatroTerras, ummal que se abateria sobre todas as raças e asdevoraria.Aresponsabilidadepor issoseriadoselfos,masprincipalmentedeEventine,poiserao

Rei.Anderabraçouopaicomcarinho,disfarçandoatristezaquesentia.Emseguida,deuumpasso

paratráseestendeu-lheocajadodaEllcrys.—Istopertenceavocê,meuRei.Eventinepareceuhesitarporummomento,esacudiuacabeçadevagar.—Não,Ander.Pertenceavocêagora.Vocêdevecarregá-lopormim.Ander encarou seu pai sem falar nada.Viunos olhos dele o quenão percebera antes. Seu pai

sabia.Elesabiaquenãoestavabem,quealgumacoisadentrodesimudara.Afarsaqueexibiaparaosoutrosnãoeraexibidaparaseufilho.

Anderrecolheuocajado.—Entãofiquecomigonamuralha,meusenhor—pediuele,baixo.Seupaiassentiu,ejuntossubiramasameias.Enquanto faziam isso, avanguardadahordademoníacaganhavaamargem lestedoRiachoda

Canção.Elevaram-se,saindodorio,arquejandocomberrosselvagensejogando-secontraaslançase piques que se erguiam por trás das defesas élficas. Emminutos, demônios emergiam das águasescuras do rio por toda a extensão da linha defensiva, atacando com chifres e garras, umemaranhado de membros e mandíbulas rasgando e cortando os defensores que bloqueavam ocaminho.No centro, Stee Jans e o que restava dosVoluntários ancoravam a defesa, o gigantescoruivo à frente de seus homens, a espada erguida.Nos flancos, EhlronTay eKerrindaGuardadaCasagritavamparaseussoldados:Aguentem,caçadoresélficos,aguentem!

Masfinalmentenãoconseguiammaisaguentar.Cercadoseemdesvantagemnumérica,viramsuadefesa começar a ruir. Demônios imensos investiram contra os defensores, arrebentando asmuralhas mais baixas, abrindo buracos para os que os seguiam. As águas do Riacho da Cançãoestavam escuras com sangue de demônios e seus corpos retorcidos;mas, para cada um que caía,outrostrêssurgiam,umacorridaselvagemqueumaforçamenornãoteriacomoparar.NotopodosportõesdosegundoníveldaElfitch,Anderdeuaordempararecuar.Rapidamente,oselfoseseusaliados abandonaram a muralha em ruínas e correram para a floresta, seguindo atalhoscuidadosamentememorizadosatéasegurançadarampa.Antesqueosdemôniostivessemtempodeentenderoqueestavaacontecendo,osdefensoresencontravam-seatrásdasmuralhas, fechandoosportõesatrásdesi.

Instantaneamente, os demônios começaram a perseguição. Pululando pela floresta na base daelevação, entraramemconflitocomascentenasdearmadilhaseburacosqueoselfoshaviam lhespreparado. Por alguns momentos, a investida inteira parou. Mas conforme seus númerosaumentavam nas margens do rio, eles superavam aquele que haviam sido pegos em armadilhas,alcançandoarampadaElfitch.Reunindo-serapidamente,atacaram.Investiramcontraasmuralhasdoprimeiroportão, subindouns em cimados outros até passarempor cimadasdefesas donívelmaisbaixo.Oselfosforamforçadosarecuar;oprimeiroportãocaiupoucodepoisqueosportõesdo segundo nível foram fechados. Sem diminuir o ritmo, os demônios continuavam em frente,escalandoarampaparaosegundoportão.Apinhavam-sepelasmuralhasemesmopelafaceíngremedopenhasco,agarradosnarochacomoinsetos.Oscorposarranhavam,pulavamesaltavamalateraldarampaeafacedopenhasco,berrando,famintos.Oselfosficaramatônitos.Orionãoimpediraosdemônios.As defesas namargemhaviam sido superadas emminutos.Oprimeironível daElfitchforaperdidoenemopenhascopareciaretardá-los.Começavaaparecerquetodasasdefesasseriaminúteis.

Corpos de demônios colidiam contra os portões da segunda rampa, tentando subir. Lanças

golpeavamparabaixo,trespassandoosatacantes.Asdobradiçasdosportõesrangiamcomopesodainvestida. Porém, daquela vez, os defensores aguentaram, com ferro e músculos fortalecendo osportõeserepelindooataque.Gritosdedoremorteenchiamoar,eaforçademoníacatornava-seumamassadeformasqueestrebuchavaeimpeliairracionalmentecontraasmuralhasdarampa.Domeio deles veio um punhado de Fúrias, figuras esguias e cinzentas que pularam no topo dasmuralhas de pedra, com os rostos de traços felinos retorcidos de ódio. Os defensores élficosrecuaram diante delas, arranhados por suas garras, gritando de medo. O fogo azul de Allanonirrompeu entre as Fúrias, espalhando-as com selvageria. Os elfos contra-atacaram, jogando ascriaturasfelinasdasmuralhas,atéaúltimasumirnamassaescuraabaixo.

ODruidaeosElessedilsubiramparaoterceiroportão.Dali,assistiramaoataquedosdemôniosganhandoforça.Osdefensorescontinuavamresistindo;osarqueirosnosníveismaisaltosajudavamoslanceirosabaixo.Osdemôniosagarravam-seàlateraldopenhascoaoredordarampadaElfitch,dirigindo-separacima,emdireçãoaotopo,numaescaladaárduaelenta.Doaltodopenhasco,osEscavadoresanõesusavamarcoslongosepedrasparafazerasfigurassombriassesoltarem.Umapósoutro,osdemônioscaíam,gritandoeretorcendo-seatéasrochasabaixo.

Subitamente,umdemôniomonstruosoelevou-sedomeiodosatacantesqueinvestiamcontraosportões da segunda rampa, uma criatura escamosa que ficava de pé nas patas traseiras como umhomem,mascomacabeçaeocorpodeumlagarto.Silvandocomfúria,elajogouseupesocontraosportões,partindoastravasesoltandoasdobradiças.Emdesespero,oselfostentaramempurrá-ladevolta,masamonstruosidadesimplesmenteignorouosgolpes;asarmasélficaspartiam-secontraocorpocouraçado.Jogou-secontraosportõesumasegundavez,quecederam,estilhaçando-seemcimados elfos.Os defensores recuaramnamesmahora, fugindopelaElfitch até o terceironível,onde o par seguinte de portões encontrava-se aberto para recebê-los. A criatura-lagarto e seuscompanheirosforamatrás,pousandonarampa.

Por um instante, pareceu que os elfos não conseguiriam fechar os portões da terceira rampaantesqueosdemôniosaultrapassassem.Steen Jansapareceunaentradadarampacomuma lançaimensanasmãos.LadeadopelosveteranosdosVoluntários,alémdeKerrinealgunsdaGuardadaCasa,eleavançouatéa frentedosdemônios.Agachando-se,odemônio-lagarto tentoualcançá-lo.Masohomemerarápidodemais.Desviando-sedainvestidadomonstro,golpeouparacimacomalança, atrás das mandíbulas abertas. Sibilando, engasgado, o lagarto voltou a ficar de pé, com ahasteenfiadanacabeça.GarrastentavamgolpearocomandantedaLegião,masosVoluntárioseoselfos ficaram ao seu lado, defendendo-o. Em segundos, estavam de volta à segurança das ameias,com os portões se fechando atrás de si. Por um instante, o demônio lagarto ficou no centro darampa,tentandoselibertardahastemortal.Massuavidaseesvaiueelecaiudecostasnomeiodeseuscompanheiros,derrubando-osdarampaenquantotombavaporcimadamuralhaatéaflorestaabaixo.

Rosnando, os demônios renovaram o ataque.Mas haviam perdido o ímpeto. Espalhados pelaextensãodaElfitch, pareciamnão conseguirmanteruma investida coesa.Omaior entre eles foramorto; sem outro para tomar o lugar, eles vagaram incertos pelas muralhas da rampa abaixo.Animados pela coragem dos Voluntários e da Guarda, os defensores revidaram. Flechas e lançasatingiam o meio da multidão, e centenas de formas escuras caíram na rampa. Mesmo assim, osdemônioscontinuavamaescalar,porémconfusosevulneráveis.

Ander reconheceu a oportunidade. Deu o sinal para contra-atacar. Assim que Kerrin deu aordem,osportõesda terceirarampaforamescancaradoseoselfossaíramcorrendo.Golpearamamassadedemônios, fazendo-osdescer pelaElfitch até os portões estilhaçadosda segunda rampa.

Varrendo-a, os defensores foram lutando enquanto desciam até os limites dos portões inferiores,antesqueosdemôniosfinalmentesereunissem.Elesvoltaram,reforçadospelosmilharesqueaindaemergiam do Riacho da Canção na base do penhasco. Os elfos aguardaram por ummomento, eentãorecuaramapenasatéosportõesdosegundonível, reforçando-osnovamentecommadeiraeferro,ealipermaneceram.

Assimfoipelorestantedodiaetambémpelanoite.Paracimaeparabaixonasrampas,abatalhacontinuou, da base do penhasco até os portões do terceiro nível. Elfos e demônios cortavam erasgavamunsaosoutrosnumalutaondenãosepediarendiçãoenenhumaeradada.Porduasvezes,os demônios retomaram o segundo conjunto de portões e forçaram o terceiro. Por duas vezes,foram expulsos, e uma vez até a base do penhasco. Milhares morreram, embora boa parte dosmortos fossemdemônios,pois lutavamsemnenhumapreocupaçãocomsuavida,desperdiçando-adeboavontadecontraasformaçõescuidadosamenteplanejadasdosdefensores.Porém,elfosforamperdidos também, mortos e feridos, e seus números começavam a minguar constantemente,enquantoonúmerodedemôniosnãopareciadiminuir.

Abruptamente, sem avisar, os demônios desistiram do ataque. Por toda a extensão da Elfitch,elescomeçaramabateremretirada,semfugirnemcorrer,maslentaerelutantemente,rosnandoeresmungando enquanto voltavampara a floresta.As figuras negras encolhiam-se na penumbra danoite, agachadas, imóveis e em silêncio como se esperassem algo acontecer. Do outro lado dosportõesemuralhasdaElfitch,notopodoCarolan,osdefensoresexaustosobservavamaescuridão.Eles não questionaram o que acontecera; simplesmente ficaram gratos. Por pelomenosmais umdia,acidadedeArborlonestavaasalvo.

Naquela mesma noite, pouco mais de duas horas depois dos demônios terem se refugiado naescuridãodasárvoresembaixodoCarolan,ummensageiroveioatéEventineeAnderenquantoelessereuniamcomosministroselfosnoAltoConselho.Comumavozanimada,eleanunciouqueumexército de trolls das pedras chegara de Kershalt. Apressadamente, o Rei e seu filho saíramcorrendodoprédiodoconselho,comosdemaislogoatrás,paraencontraropátiocompletamentetomadopor fileiras e fileiras de formasmaciças, coma aparência de tronco, cobertas de couro eferro.Espadaselançasbrilhavamnaluzenfumaçadadastochasquecercavamogrupo,eummardeolhosfundosfixou-senosrostossurpresosdoselfos.

Ocomandantedelesdeuumpassoà frente,umtroll imensocomumgrandemachadodedoisgumespresonascostas.Comumaolhadarápidaparaosoutroselfos,colocou-senafrentedoRei.

—EusouAmantar,omaturendesteexército.—Einformou,falandonorudedialetodostrolls:—Temosumaforçademilequinhentoshomens,ReiEventine.Viemosajudaroselfos.

Eventine ficou sem palavras. Haviam praticamente desistido dos trolls, acreditando que oshabitantesdasTerrasdoNortetinhamescolhidonãosemeternaqueleconflito.Encontrá-losali,derepente,justamentenomomentoemquepareciaquenãoreceberiammaisnenhumaajuda...

AmantarpercebeuasurpresadovelhoRei.—ReiEventine,vocêprecisasaberquepensamosmuitonoseupedidodeajuda—grunhiuele.

— Antes, trolls e elfos sempre lutaram uns contra os outros; fomos inimigos. Isso não pode seresquecido de uma vez. Porém, para todos há ummomento de recomeçar. Estemomento chegouparaelfose trolls.Sabemossobreosdemônios. Já tivemosencontroscomumgrupodeles.Houveferidos, houve mortos. Os trolls de pedra entendem a ameaça que os demônios oferecem. OsdemôniossãoummaltãograndequantooLordeFeiticeiroeascriaturasdaCaveira.Ummalassim

ameaçaatodos.Foiporissoquevimosqueelfosetrollsprecisamcolocarsuasdiferençasdeladoeresistir juntos a esse inimigo em comum.Nós viemos,meus compatriotas e eu, para ficar ao seulado.

Foiumadeclaraçãoeloquente.Amantarterminoue,comumgestocuidadosamenteplanejado,baixou-sesobreumjoelho,simbolizandosualealdadeàmaneiradostrollsdepedra.Atrásdele,seushomensimitaram-no,silenciososaoseajoelharemdiantedeEventine.

Ander viu as lágrimas que apareceram subitamente nos olhos do velho. Por um momento,Eventinevoltoupor completodo lugaronde se escondera, ehavia esperança eumorgulho ferozemseurosto.Lentamente,elecolocouasuamãodireitasobreseucoração,retribuindoogestodostrollsàmaneiraélfica.Amantarlevantou-seeosdoisapertaramasmãos.

Andersentiuvontadedeovacionar.

AllanoncaminhoupelastrilhasestreitasdosJardinsdaVidadebaixodeumcéunoturnonublado,atravésdoqual a lua e as estrelaspassavamcomopresas. Solitário e sem fazerbarulho, sua figuraalta passava pela escuridão refrescante e perfumada dos canteiros floridos e das cercas-vivasesculpidas,comacabeçacurvadaparaocaminhodiantedesieosbraçosrecolhidosnasdobrasdesualongavesteescura.Seurostoduroestavaperdidonasombradocapuz,aexpressãofinamarcadacom linhas de preocupação e de uma determinação amarga. Pois naquela noite, dirigia-se a umencontrocomamorte.

CaminhouatéopédaelevaçãocercadapelossoldadosdaGuardaNegra.Impaciente,ergueuamãoepassouporelescomadestrezadeumideiadesgarradaeelesnãooviram.Lentamente,subiuaté o topo da elevação, sem querer olhar para o que tinha vindo ver, olhos abaixados e fixos naencostagramadaquepercorria.

Quando alcançou o topo, ergueu a cabeça. À sua frente, estava a Ellcrys, os galhos, outroraesguios e graciosos, retorcidos e gastos comoosossos ressecadosde algomorto.A fragrância e acor haviam sumido, de modo a não restar nada além de uma sombra do que antes fora tãoincrivelmente bonito.As folhas vermelhas jaziam espalhadas no chão como se fossempedaços depapelamassado.Aárvoreestavanua,destacadacontraocéunoturnoemumaconfusãodegalhosecasca.

Allanoncongelou.Nemmesmoeleestavapreparadoparaaquilo,nemparaoquevia,nemparao que sentia ao ver. A tristeza acumulou-se dentro de si pela inevitabilidade do que estavaacontecendo.Nãopossuíapoderpara impediraquilo,poisatémesmoosDruidasnãopossuíamodomdavidaeterna.Todasascoisasumdiadeveriamdeixaraterra,eodiadelaestavachegando.

Esticouamãopara tocar seusgalhos envelhecidos,masadeixoucair.Nãoqueria sentir adordela.Porém,sabiaqueprecisavaternoçãododanodaárvore,e levantouamãodenovo,devagar,tocando-acomgentileza.Manteveotoqueporapenasuminstante,desejandoqueumasensaçãodeconforto e esperança fluísse de suamente para a dela, então recuou.Mais umdia oudois, talveztrês.Nãomaisdoqueisso.Entãoelaestariamorta.

Endireitou o corpo alto, as mãos caídas frouxas nas laterais, enquanto os olhos escurospermaneciamfixosnaárvoremoribunda.Tãopoucotempo.

Virou-se,imaginandoseessepoucotemposeriaobastanteparatrazerAmberledevolta.

CapítuloXL

WilOhmsfordcorreudevoltapela florestadoVastoErmo, seguindoa terra escuradaestradaque se afunilava, através da neblina e da penumbra. Galhos baixos e trepadeiras pesadas com aumidade arrastavam-se e batiamno rapaz enquanto ele corria, e água espalhava-se das poças quepontilhavamatrilhaencharcadapelachuva,deixando-osujodelama.Masojovemnãosentianadadisso;suamenteestavarepletadeemoçõesquegiravamerodopiavam,deixando-oconfusocomodesesperoporterperdidoasPedrasÉlficas,raivadeCepheloemedoporAmberle,alémdoespantocomaspalavrasqueelalhedissera.

Gostode você, ela dissera, de verdade.Gostode você.Era tão estranhoouvi-la dizer-lhe algoassim.Antes,ojovemjamaisacreditariaquefossepossível.Amoçaressentia-sedeleenãoconfiavanele; deixara isso bem claro. E ele não gostara muito da jovem elfa. Mas a longa jornada quecomeçara na aldeia do Refúgio Firme lhes ensinara muito um sobre o outro, e os perigos edificuldadesquehaviamencontradoesuperadoosaproximara.Suasvidas,naquelecurtoespaçodetempo, haviam se tornado inextricavelmente entrelaçadas.Não era realmente tão inesperado quedesselaçosurgissealgumtipodeafeto.Aspalavraspulsavamemsuamente,repetindo-se.Gostodevocê.Aelfagostava,elesabia,eperguntou-sederepenteoquantogostavadela.

Perdeuoequilíbrioecaiu,tropeçandonalamaenaumidade.Levantou-se,zangado,limpandoalamaeaáguaomelhorqueconseguiu,econtinuouacorrer.Atardeminguavarápidodemais;eleteria sorte se conseguisse voltar à estrada principal antes de a noite chegar. Quando issoacontecesse, teria que encontrar o caminho na escuridão completa, sozinho em um terradesconhecida,desarmado,àexceçãodeumafacadecaça.Estúpido!Essaeraadescriçãomaissuavequepodiadarparaoquefizera,deixandoCepheloenganá-lo,pensandoquepoderiacontarcomaajudadonômadeemtrocadeapenasumapromessavaga.OsagazWilOhmsford,eleseironizou,araivaqueimandodentrodesi.EAllanonpensouquevocêfosseoúnicoaquemelepudesseconfiarasegurançadeAmberle!

Seusmúsculos jácomeçavamaficarcomcãibraspeloesforçodacorrida.Odesesperoovarreuaopensar em tudoqueAmberle e ele haviamaguentadopara chegarnaquele ponto, apenas paraarriscar perderem tudo por causa de umdescuido. Sete caçadores élficos tinhamdado suas vidaspara que ele e Amberle pudessem alcançar o Vasto Ermo. Incontáveis outros poderiam já estarmorrendoemdefesadasTerrasdoOestecontraosdemônios,poiscertamenteaProibiçãojáteriacaídoaessaaltura.Tudopornada?Tudopornada,alémdisso?Vergonhaedeterminaçãocorrerampor ele, levando embora o desespero. Nunca desistiria — nunca! Recuperaria as Pedras Élficasroubadas. Voltaria para Amberle. Ele a levaria em segurança para o Alto Pináculo, para oFogossangueedevoltaaArborlon.Fariatudoissoporquesabiaqueprecisava,poisqualquercoisaamenosseriafracassar—nãoapenascomAllanonecomoselfos,masconsigo.Nãodeixariaaquiloacontecer.

Enquanto o pensamento cruzava sua mente, uma sombra apareceu na trilha à frente,materializando-senapenumbracomosefosseumaaparição,altaesilenciosaenquantoesperavaquese aproximasse. O jovem parou logo, tão assustado que quase saiu pulando do caminho para a

floresta.Comarespiraçãoofegante,eleencarouasombra,percebendosubitamentequeolhavaparaumcavaloeseucavaleiro.Ocavalomoveu-senatrilhaebateuospés.Wilavançoucomcuidado,osustovirandoincredulidadeefinalmentesurpresa.

EraEretria.—Surpreso?—Avozdelaerafriaecautelosa.—Muito—admitiuele.— Eu vim salvá-lo pela última vez,Wil Ohmsford. Desta vez, acho, você vai ouvir commais

atençãooqueeutenhoadizer.Wilfoiatéelaeparou.—CepheloestácomasPedras.—Eusei.Eledrogouseuvinho,eastiroudevocêduranteanoite,enquantovocêdormia.—Evocênãofeznadaparameavisar?—Avisarvocê?—Elasacudiuacabeçalentamente.—Eupoderiateravisadovocê,Curandeiro.

Poderia ter ajudadovocê.Mas vocênãomeajudou, lembra-se?Tudooquepedi foi que vocêmelevasse consigoquandopartisse. Se tivesse feito isso, eu teria reveladoosplanosdeCepheloparacomasPedrasÉlficaseteriaajudadovocêamantê-lasseguras.Masvocêmedesprezou,Curandeiro.Vocêmedeixouparatrás.Vocêseachoucapazdesevirarbemsemmim.Muitobem,eudecidi,vouveroquãobemoCurandeirosevirasemmim.

Elainclinou-separaexaminá-lo,avaliando-ocomosolhos.—Nãomeparecequevocêestejasevirandobem.Wilassentiulentamente,comamenteacelerada.Nãoeraahoradedizeralgoestúpido.—Amberleestáferida.Elacaiuetorceuaperna,enãoconsegueandarsozinha.Tivequedeixá-

lanabeiradoVazio.—Vocêparecesermuitobomemabandonarmulheresemperigo—zombouEretria.Elecontrolou-se.—Achoquedevopassaressaimpressão.Masàsvezesnósnãoconseguimosfazeroquequeremos

paraajudarosoutros.—Foioquevocêdisse.Achoquedeveacreditarnisso.Vocêdeixouaelfaparatrás,então?—ApenasatéeupegarasPedrasdevolta.—Algoquevocênãovaiconseguirsemmim.—Algoquevouconseguir,comousemvocê.Anômadeoencarouporummomentoeaexpressãodelasuavizou-se.—Achoquevocêacreditanissotambém,nãoé?Wilcolocouamãonalateraldocavalo.—Vocêestáaquiparameajudar,Eretria?Elaoobservousemdizernadaporuminstante,paradepoisassentir.—Sevocê,porsuavez,meajudar.Destavez,vocêtemqueajudar,vocêsabe.—Comoelenão

respondeu,elacontinuoufalando:—Umatroca,WilOhmsford.EuvouajudarvocêarecuperarasPedrassevocêconcordaremmelevarcomvocêquandoasrecuperar.

—ComovocêvaipegarasPedrasdevolta?—perguntouele,cuidadosamente.Ela sorriupelaprimeiravez, aquele sorriso familiar e estonteantemente lindoque lhe tiravao

fôlego.—Comovoupegá-las?Curandeiro, sou criadosnômades e a filhadeum ladrão, comprada e

quitada.Ele as rouboudevocê, eu as roubareidele.Eu conheçoo assuntomelhordoque ele. Sóprecisoencontrá-lo.

—Elenãoestáprocurandoporvocêagora?Eretriasacudiuacabeça.—Quando deixamos vocês, eu lhe disse que queria ir na frente, para alcançar a caravana. Ele

concordou,poisoscaminhosdoVastoErmosãobemconhecidospelosnômadeseeuestaria forado vale quando a noite caísse. Como você sabe, Curandeiro, ele quer garantir minha segurança.Bens danificados não rendem um bom preço. De qualquer modo, cavalguei pouco mais de umquilômetroalémdaCristadoAssobio,epegueiumatrilhasecundáriaquecortaparaosulevoltapara esta aqui vários quilômetrosmais para trás. Achei que fosse alcançar você ao anoitecer, noVazio ou voltando, se tivesse descoberto mais cedo a perda das Pedras. Então Cephelo não vaiperceberoqueeufizatéalcançaracaravanaprincipal.Acarroçaoatrasa,logoelesóosalcançaráamanhã.Hojeànoite,elevaiacamparnaestradaquelevaparaforadovale.

—EntãotemosquerecuperarasPedrashoje—completouWil.—Tempoo bastante— respondeu ela.—Masnão se continuarmos a ficar aqui conversando.

Alémdomais,vocênãoquerdeixaraelfasozinhanoVaziopormuitotempo,quer?AmençãoaAmberlefezcomelesemexesse.—Não.Vamos.—Ummomento.—Eretriaafastouocavalodele.—Primeiro,dêsuapalavra.Quandoeutiver

ajudadovocê,serásuavezdemeajudar.Vocêmelevará juntoquandotiverrecuperadoasPedras.VaimedeixarficarcomvocêatéestarmosaumadistânciaseguradeCephelo;esereieuadecidirquandoseráisso.Prometa,Curandeiro.

Haviamuitopoucoqueelepudessefazer,excetotirarocavalodela,enãotinhacertezadequeconseguiriafazerisso.

—Muitobem.Euprometo.Elaassentiu.— Ótimo. Para ter certeza de que você vai manter sua palavra, eu vou ficar com as Pedras

quandoasrecuperaratéqueestejamosasalvoeforadestevale.Subaatrásdemim.Wilmontou sem fazeroutro comentário.Nãohavia comodeixá-la ficar comasPedrasÉlficas

depois que ela as recuperasse de Cephelo, mas era inútil argumentar isso naquele momento.Acomodou-seatrásdagarota,quesevirouparaolhá-lo.

—Vocênãomereceoque estou fazendopor você, e sabedisso.Mas gostode você; gostodaschances que você tem na vida, especialmente comigo ao seu lado para ajudar. Ponha asmãos naminhacintura.

Wilhesitou,masfezcomoelamandou.Eretriarecostou-senele.— Muito melhor — ronronou ela, sedutora. — Prefiro você assim do que como você fica

quandoaelfaestáporperto.Agora,segure-se.Com um grito repentino, ela bateu as botas contra os flancos do cavalo. O animal assustado

empinou-se com um relincho e disparou pela trilha. Cavalgaram pelo caminho coberto devegetação, curvados sobre o pescoço do cavalo, com galhos batendo em si enquanto voavam naescuridão. Eretria parecia ter olhos de gato, guiando a montaria com confiança e prática sobregalhos e troncos caídos, sobre poças e atoleiros formados pela chuva inesperada, descendo umaencostaenlameadaesubindoaencostaseguinte.Wilagarrava-sedesesperadamente,perguntando-seseelateriaenlouquecido.Naqueleritmo,cairiamcomcerteza.

Surpreendentemente,nãocaíram.Muitopoucotempodepois,Eretriafezocavalosairdatrilhaporumabrechaestreitaentreasárvores,praticamenteescondidapelavegetação.Comumpulo,oanimalpassoupelosarbustos,paracairemumasegunda trilha—umaqueWilnãoperceberaem

sua viagempara oVazio— e prosseguiuna penumbranebulosa.Continuaram em frente, amoçanômade e o jovem do Vale Sombrio, sem reduzir o ritmo com os obstáculos que bloqueavam ocaminho adiante, correndo para a escuridão crescente.A pouca luz que havia, começava a sumirconforme o crepúsculo se aproximava.O sol, perdido em algum lugar alémda copa das árvores,mergulhavaatrásdocontornodasmontanhas.Assombrasaprofundavam-se,oaresfriavae,mesmoassim,Eretrianãodiminuíaavelocidade.

Quando finalmente pararam, estavam de novo na estrada principal. Eretria fez o cavalo frearabruptamente,batendonosflancossuadosdoanimaleolhandoparaWilcomumsorrisotravesso.

— Isso foi só para você saber que eume garanto com qualquer um.Não preciso de ninguémcuidandodemim.

Ojovemsentiu,seuestômagocomeçandoaseacalmar.—Issojáficouclaro,Eretria.Porqueparamosaqui?—Apenas para verificar— respondeu ela, e desmontou. Seus olhos examinaram a trilha por

algunsmomentoseelafranziuatesta.—Estranho.Nãotemtrilhadecarroça.Wilaseguiu.—Temcerteza?—Ele estudoua estrada, semacharmarcasde rodas.—Talvez a chuva tenha

limpado.—Acarroçaerapesadademaisparaachuvalimparcompletamenteossinaisdesuapassagem.—

Ela balançou a cabeça lentamente. — Além disso, a chuva estaria quase no fim quando elesalcançassemesteponto.Nãoentendo,Curandeiro.

Aluzficavacadavezmaisfraca.Wilolhouaoseuredor,preocupado.—SeráqueCepheloparouparaesperaratempestadepassar?—Talvez.—Maselapareciaemdúvida.—Émelhordarmosmeiavolta.Suba.Elesmontaramdenovoe foramnadireçãooeste,de tempos em temposolhandoparao chão

enlameado àprocurade algum sinal da carroça.Nãohavianada.Eretria fez o animal andarnumtrotelento.Àfrentedeles,aneblinasaíadaflorestanosdoislados,faixasfinasquedeslizavamcomotentáculos pela escuridão. Os sons da noite vinham das profundezas da floresta conforme ascriaturasdovaleacordavamecomeçavamacaçar.

Umnovosomseergueudealgumpontoà frente, fraconocomeço,perdurandocomoumeconomeiodebarulhosmaisagudoserápidos,depoismaisforteemaisinsistente.Tornou-seumuivo,agudoefantasmagórico,comoseadorimpostaaumaalmatorturadativessepassadooslimitesdesuaresistênciaetudooquesobraraantesdamortefosseaquelegritofinaleterríveldeangústia.

WilapertouoombrodeEretria,alarmado.—Oqueéisso?Elaolhouparatrás.—ACristadoAssobioestálogoàfrente.—Anômadedeuumsorrisonervoso.—Oventofaz

essesomàsvezes.Osomficoupior,umgritomaiscortanteeduro,eaterracomeçouaseerguernafloresta,em

umaencostarochosaqueoslevouparacimadaneblina,asárvoresseabrindopararevelarpequenospedaços do céu noturno.O cavalo começara a responder aos sons, bufando nervoso, dançando edesviando do caminho, enquanto Eretria tentava acalmá-lo. Seguiram mais devagar, avançandopelo crepúsculo até estaremno topoda crista.Dooutro lado, a estrada endireitava-sedenovo edesaparecianaescuridão.

Wil viu algo, uma sombramovendo-se na direção deles, materializando-se como se houvessesaído do uivo do vento e da noite. Eretria também viu e parou o cavalo de repente. A sombra

aproximou-se.Eraumcavalogrande,semcavaleiro,asrédeasarrastandonochão.Veiolentamenteaté eles e esfregou o focinho na montaria deles. Os dois o reconheceram imediatamente. Era ocavalodeCephelo.

Eretriadesmontouimediatamente,entregandoasrédeasdeseucavaloparaWil.Semfalarnada,amoçaexaminouooutroanimal,andandorapidamenteaoredordele,dandotapinhasdeleveemseu pescoço e nas laterais para mantê-lo calmo. Não havia marcas no animal, porém ele suavamuito.QuandoEretriaolhoudenovoparaWil,orostodelaestavainseguro.

—Algumacoisaaconteceu.Ocavalodelenãosairiacorrendo.Ojovemassentiu.Começavaaterumpressentimentomuitoruimquantoàquilo.EretriasubiunocavalodeCepheloepegouasrédeas.—Vamosavançarumpoucomais—decidiuela,porémhaviadúvidanasuavoz.Ladoa lado,cavalgarampelabeiradadacrista,oventoassobiandoseugritomelancólicopelas

rochas altas epelas árvoresda floresta.Acimadeles, as estrelas surgiampiscando, comsuapálidaluzbrancabrilhandonaescuridãodoVastoErmo.

Foiquandooutracoisa surgiunaescuridão,outra sombra,destaveznegraequadrada, imóvelna trilha.Osdois jovensdiminuíramavelocidade, fazendoosanimais seguiremcomcuidado, seudesconforto refletindo-se em seus olhos.Gradualmente a sombra começava a tomar forma. Era acarroçadeCephelo,ascoresfortesesmaecidasàluzdasestrelas.Aproximaram-seeseudesconfortovirou horror. A junta de cavalos que puxava a carroça estava morta, os animais retorcidos edestruídos,aindapresosaosarreiosdecouroeprata.Váriosoutrosanimaisjaziamcaídosporpertoe, com eles, seus cavaleiros, espalhados pela trilha como espantalhos, rasgados e amontoados, aroupabrilhantemanchadacomosanguequevazavapelotecidoparamisturar-seàterraenlameada.

Rapidamente,Wilolhouaoredor,espionandoas sombrasda floresta,procurandoalgumsinaldo que havia feito aquilo.Nada semexia.Olhou para Eretria. Estava sentada reta em seu cavalo,tendo a cor fugidode seu rosto enquanto ela observava fixamenteos corposna trilha. Suasmãoscaíram lentamente em seu colo, deixando as rédeas livres. Wil desmontou, recolheu as rédeascaídas,tentandoentregá-lasdevoltaàjovemassustada.QuandoEretrianãofezmençãoparapegá-las,eleagarrouasmãosdela,colocouasrédeasdosdoiscavalosentreseusdedoseosapertou.Elaoobservavasemfalarnada.

—Espereaqui—ordenouele.Caminhou até a carroça, estudando as formas retorcidas ao seu redor. Estavam todosmortos,

atémesmoavelhaquedirigiaacarroça,oscorposquebradoscomomadeiravelha.Ojovemsentiusuapeleeriçar-se.Sabiaoquefizeraaquilo.Umporum,eleosexaminouatéfinalmenteencontrarCephelo. O grandalhão também jazia morto, sua figura alta completamente esticada no solo, omanto verde escuro rasgado, as feições angulares congeladas numa expressão horrorizada. Seucorpoestavatãoarruinadoqueeraquaseimpossívelreconhecê-lo.

Wilabaixou-se.Lentamente,vasculhouaroupadonômademorto,procurandoasPedrasÉlficas.Nãoachounada.Omedoapertouseuestômago.PrecisavaencontrarasPedras.Reparounasmãosde Cephelo. A mão direita estava enfiada na terra, em um gesto que falava de uma agoniainsuportável.Aesquerdajaziaafastadaefechadaemumpunho.Ojovemrespiroufundoepegou-a.Abriuosdedosrígidosumporum.UmaluzazulpiscouentreeleseWilsentiuoalíviopercorrerseu corpo. Enfiadas na carne da palmadamão estavam as Pedras Élficas.Cephelo tentara usá-lascomo viraWil fazer emTirfing,mas as Pedras não haviam respondido ao nômade e elemorreracomelasnopunho.

Ojovempuxou-asdoapertodasmãosdomorto, limpou-asnatúnicaeascolocoudevoltano

sacode couro.Levantou-se, ouvindoouivodovento assobiandopela crista.Uma tontura tomouconta dele ao sentir o cheiro damorte encher suas narinas. Apenas uma coisa poderia ter feitoaquilo. Ele se lembrou dos elfosmortos no acampamento na Floresta de Drey e na fortaleza doPico.Apenasumacoisa.OCeifador.Mascomoeleosencontraranovamente?ComoosseguiraportodaadistânciaentreoPicoeoVastoErmo?

Ele estabilizou-se e apressou-se para voltar até Eretria. Ela ainda estava sentada no cavalo deCephelo,comosolhosescurosbrilhandodemedo.

—Vocêoencontrou?—perguntouelaemumsussurro.—Cephelo?Wilassentiu.—Eleestámorto.Estãotodosmortos.—Fezumapausa.—PegueiasPedrasdevolta.Elanãopareceuterouvido.— Que tipo de coisa poderia ter feito isso, Curandeiro? Algum animal, talvez? Ou as Irmãs

Bruxas?Ou...?—Não.—Elesacudiuacabeçarapidamente.—Não,Eretria,seioquefezisso.Acoisaquefez

issotemseguidoAmberleeeudesdeArborlon.PenseiqueativéssemosdespistadonooutroladodaAgulhadePedra,masdealgumjeitoelanosencontroudenovo.

Avozdelasooutrêmula.—Éumdiabo?— Um tipo especial de diabo. — Olhou de relance para os mortos na trilha. — É chamado

Ceifador. — Pensou por um momento. — Ele dever ter achado que estivéssemos viajando comCephelo.Talvezachuvaotenhaconfundindo.Seguiuonômadeeopegouaqui...

—PobreCephelo—murmurouela.—Foiúltimogolpe.—ElafezumapausaeolhouparaWil,abruptamente.—Curandeiro, essa coisa agora sabe que você não veio para o leste comCephelo.Paraondeelavaiagora?

Osdoisseentreolharamsemfalarnada.Ambossabiamaresposta.

NolimitedoVazio,Amberleencontrava-seencolhidanoabrigodearbustosondeWilaescondera,e escutava os sons noturnos. A escuridão descera sobre o Vasto Ermo como uma mortalha,profunda e impenetrável, e a jovem elfa estava presa dentro dela, incapaz de enxergar além dacoberturadearbustos,ouvindoascriaturasquehabitavamaescuridão.SabendoqueWilsóvoltariadepoisdoamanhecer,passouumtempotentandodormir.Masosononãoveio;seutornozelodoíaesuamenteenchia-sedeperguntassobreWileamissãoquetinha,sobreseuavô,sobreosperigosao seu redor. Por fim, desistiu. Com os joelhos encostados no corpo, curvou-se para frente,decididaasetornarumapartedaflorestaomáximoquepudesse,imóvel,semservista.

Porumtempo,conseguiu.Nenhumadascriaturasdaflorestaaproximou-sedela,permanecendonasáreasmaisafastadas, longedo limitedoVazio.OVazioemsiestavaenvoltonumsilêncio tãoprofundoqueajovemeracapazdeouvi-lotãoclaramentequantoouviaossonsnoturnos.Umaouduasvezesalgumacoisapassouvoandodiretopor seuabrigo,o rápidobaterdeasasquebrandoaquietude brevemente e depois se afastando. O tempo passou e ela começou a baixar a cabeça,sonolenta.

Um arrepio a percorreu de repente, como se o calor tivesse sido sugado do ar ao redor.Acordou e esfregou os braços com força.O arrepio passou e o calor da noite de verão voltou acobri-la. Insegura,passouosolhospor seuabrigo.Tudoestavacomoantes;na escuridão,nada semexia,nadafaziaruído.Respiroufundoefechouosolhosoutravez.Oarrepiovoltou.Dessavezela

esperou antes de se mover, mantendo os olhos fechados com força, tentando descobrir a fontedaquele frio. Descobriu que vinha de algum lugar dentro de si. Não entendeu. Um frio, um frioamargo,dentrodesi,rasgandosuacarne,entorpecedorcomootoqueda...morte.

Arregalouosolhos.Entendeunomesmo instante.Estava sendoavisada—apesardenão sabercomo — que algo estava indo matá-la. Se fosse qualquer outra pessoa, poderia ter ignorado asensação comonão sendonada alémde sua imaginação.Mas era extremamente sensível; já tiverasensações assim antes e sabia que era bom não ignorá-las. O aviso era real. Apenas a fonte aconfundia.

Curvou-se para frente, momentaneamente indecisa. Algo seguia em sua direção, algomonstruoso,algoqueadestruiria.Nãopodiaseesconder,nãopodiaenfrentá-lo.Sópodiafugir.

Ignorando a dor no tornozelo, ela saiu de debaixo dos arbustos, agachou-se além deles, daíexaminouapenumbrada floresta.Acoisaqueaperseguiaestavaperto;podia sentir suapresençaclaramenteenquantoacriaturamovia-sesilenciosamentepelanoite.PensousubitamenteemWil,edesejou desesperadamente que ele estivesse ali para ajudá-la. Mas não estava. Precisava se salvarsozinhaeprecisavafazerissorápido.

Só havia um lugar para ir, um lugar no qual seu perseguidor talvez não entrasse— o Vazio.Cambaleouatéabeiradaeolhouparaaescuridãosemfimláembaixo.Omedotomoucontadela.OVazioeratãoassustadorquantoacoisaqueaperseguia.Tomoucoragem,varrendoaescuridãocomosolhosatéatorredoAltoPináculo.Eraparaláqueprecisavair.EraláqueWiliriaprocurá-la.

Encontrouumcaminhoquedesciaecomeçouasegui-lo,pisandocomcuidadonassombras.Emminutos,estavaenvoltapelaescuridão;aluzdasestrelasedaluaseperderaacimadasárvores.Seurosto infantil ficou tenso com determinação, e analisou o caminho à frente. Movia-se tãosilenciosamentequantopodia,esóumleveraspardesuabotanaterraenaspedrasdenunciavasuapassagem.Abaixo,sóhaviasilêncio.

Porfim,chegouaoVazio.Fezumapausa,sentando-secomascostasapoiadasemumtroncodeárvore,esfregandocautelosamenteotornozeloferido.Estavamuitoinchado,piorandopeladecisãode andar apoiada nele. O suor banhava seu rosto enquanto ela olhava para a escuridão acima eapuravaosouvidos.Nãoouviunada.Nãoimporta,disseparasi.Oquequerqueaprocurasse,aindaestava lá emcima,buscando.TinhadeentrarmaisnoVazio.Seusolhoscomeçavama seajustaràescuridão;conseguiadiscernirvagamenteasformasdeárvoresedearbustosaoredor.Erahoradecontinuar.

Amberle se ergueu e foi em frente, cambaleando no escuro, tentando não apoiar o peso notornozelomachucado.Movendo-se de uma árvore para outra, descansava ummomento em cadauma, escutando ansiosamente o silêncio profundo. A dor piorava, uma pulsação contínua queparecia se intensificaracadapasso.Osmúsculosdapernaboahaviam ficadodurosecomcãibrascomoandarmancoconstante;elajácomeçavaasecansar.

Finalmente, teve que parar. Respirando com dificuldade, agachou-se do lado de um pequenomatagaleesticou-senaterrafria.Comcuidado,acalmou-seetentoureencontrarafontedoaviso.Por um momento nada aconteceu. Mas o arrepio voltou a percorrê-la, penetrante, cortante.Prendeuofôlego.AcoisaqueaperseguiaestavadentrodoVazio.

Ficou de pé de novo e continuou, mancando às cegas na escuridão. Em determinado pontoocorreu-lhe que podia estar caminhando em círculos, mas logo deixou a ideia de lado. Caíaconstantemente. Em várias vezes tombou com tanta força que quase desmaiou.Todas as vezes elaficava de joelhos, lutando para respirar, levantava-se e se obrigava a prosseguir. Os minutos sepassaram até que ela perdeu completamente a sensação de tempo. Ao seu redor, o silêncio e a

escuridãocresciam.Por fim, não conseguiu mais avançar. Caiu de joelhos; o som da própria respiração chegou

áspero aos seus ouvidos. Chorando de frustração, começou a engatinhar. Pedras e madeiraarranhavam suas mãos e joelhos enquanto abria caminho entre os arbustos, com seu tornozelolatejando de dor. Não desistiria, jurou em silêncio. Aquela coisa não a teria. Voltou seuspensamentosparaWil.Reviuemsuamenteaexpressãodorapazquandocontouquegostavadele.Nãodeviaterditoaquilo,sabia.Masquiseratantocontaraelenaquelemomento;precisaracontaraele.Ficarasurpresacomoquantoprecisaracontar.Easurpresanosolhosdele...

Desmoronou de cara no chão, chorando. Wil! Ela sussurrou o nome como se este fosse umtalismãqueaprotegeriadomalqueaperseguianaescuridão.Ergueu-seecontinuouasearrastar.Suamentedivagouepareceu sentir apresençadeoutras criaturas ao redor,movendo-se comelapelanoite,rápidasepraticamentesemfazerbarulhoalgum.Pessoaspequenas,pensouela.Maseacoisa,ondeestavaacoisa?Oquãopertoestavadesi?

Amberle arrastou-se sem parar até suas forças se esvaírem completamente; quando issoaconteceu, estirou-se no solo da floresta. Era o seu fim, ela sabia. Não tinhamais de onde tirarforças.Seusolhosfecharam-seeelaesperouamorte.Ummomentodepois,adormeceu.

Aindadormiaquandogrossosdedosdemadeiradeumadúziademãosretorcidasergueram-naelevaram-nadali.

CapítuloXLI

O jovemdoValeSombrioeagarotanômadecavalgarampelatrilhacobertadepedrasparaforada Crista do Assobio, o vento zumbindo ao passar por suas orelhas. Voavam na escuridão dafloresta, com as sedas nômades esvoaçando enquanto eles se inclinavam nos pescoços de seuscavaloseespiavam,cegos,aescuridão.Asárvoresrapidamentese fecharamaoredordeleseocéunoturno desapareceu. Sem nenhuma preocupação com suas vidas, continuaram a cavalgar,confiandonahabilidadedesuasmontariasenasorte.

Não discutiram a respeito disso; não havia tempo para discussão. No momento em queWilpercebeuqueoCeifadorrefariaocaminhodosnômadesatéencontrara trilhaqueeleeAmberletinhamtomadoparaosulatéoVaziodepoisdesesepararemdosnômades,suamenteesvaziou-sedequalquerpensamento,excetoum—Amberleestarianofimdaquelatrilha,sozinha,machucadaedesprotegida. Se não a alcançasse antes do Ceifador, ela morreria, e seria culpa dele, porquedecidiradeixá-la.Umaimagemdoscorposestraçalhadosdosnômadeslargadosnatrilhalampejouem sua mente. Naquele momento, esqueceu tudo, exceto a necessidade de alcançar Amberle.Escalandoseucavalo,fezoanimaldaravoltaesaiugalopando.

Eretriaoseguiu imediatamente.Elapodia teragidodeoutra forma.ComCephelomorto,nãoprecisavamais da proteção deWil. Não pertencia amais ninguém: era finalmente dona de si. Amoça poderia ter virado o cavalo para o outro lado e cavalgado a salvo para fora do vale e paralongedacoisaterrívelquemataraCepheloeosoutros.MasEretriasequerparouparapensarnisso.PensouapenasemWil,cavalgandoparalongesemela,deixando-aparatrásmaisumavez.Orgulho,teimosiaeaestranhaatraçãoquesentiapelojovemincendiaram-sedentrodela.Nãopodiapermitirqueelefizesseaquilodenovo.Semhesitar,foiatrásdele.

Assim começou a corrida para salvar Amberle.Wil Ohmsford, cavalgando como se fosse umhomem possuído, rapidamente perdeu a noção de onde se encontrava. A escuridão e a neblinadeslizavamaoseuredorquandosaiudasmontanhasparaafloresta,eelemalconseguiudistinguiras formas escuras das árvores de cada lado quando passaram velozmente por ele. Porém, nãodesacelerou;nãopodia.Ouviuosomdeoutrocavaloaproximando-se,epercebeuqueEretriavieraatrás. Resmungou um xingamento: já não tinha bastante com que se preocupar? Mas não tinhatempo para se aborrecer com a nômade. Ele a retirou de seus pensamentos e concentrou seusesforçosemencontraroatalhoquelevavaparaosul.

Mesmoassim,passoudiretoporele.SeEretrianãootivessechamado,orapazteriacontinuadoa cavalgar para o leste, até as montanhas. Virando-se, surpreso, voltou a correr. Mas Eretriaassumira a liderança, esporeando sua montaria para que seguisse à frente na trilha. Maisfamiliarizadadoqueelecomatrilha,elagalopounadianteira,ordenandoparaqueWilaseguisse.Novamentesurpreso,eleobedeceu.

Foiumajornadaangustiante.Aescuridãoeratantaquemesmoavisãoaguçadadanômademalpodiadistinguirocaminhoqueserpenteavapelanoitedafloresta.Porváriasvezes,oscavalosquasecaíram,desviandoporumtrizdeburacosetroncoscaídossobreatrilhaestreita.Maseramcavalosnômades, treinados pelos melhores cavaleiros das Quatro Terras, e reagiam com uma rapidez e

agilidadequetraziamgritosferozesaoslábiosdanômadeedeixavamojovemdoValeSombriosemfôlego.

Subitamente,estavamdevoltaàestradaqueAmberleeWilhaviamseguidonadireçãosul,rumoaoVazio,galhosecipósbatendoneles,águaenlameadaespalhando-sedaspoçasfundasquehaviamseformadonatrilha.Semdiminuir,viraramparaosul.Osminutosescorriam.

Finalmente,saíramdaflorestajánasbordasdoVazio,seucírculonegroespalhadoàfrentedelescomo um abismo sem fim cavado na terra. Puxando as rédeas dos cavalos bruscamente, pularampara o chão, observando a escuridão da floresta ao redor. O silêncio pairava sobre o Vazio,profundo e penetrante.Wil hesitou por apenas um segundo antes de começar a procurar pelosarbustosemqueesconderaAmberle.Encontrou-osimediatamenteeempurrouosgalhosatéchegarao centro. Não havia ninguém ali. Por um momento, ficou em pânico. Vasculhou a áreaprocurando um sinal do que poderia ter acontecido à elfa, mas não havia nada. Seu pânicoaumentou.Ondeelaestava?Levantou-se,saindodosarbustos.Talvezaquelesnãofossemosarbustoscertos, pensou de repente, e começou a procurar por outros. Parou quase imediatamente. Nãohavianenhumgrupodearbustosparecidospertoobastanteparaseremvistos.Não,eleaesconderaali.

Eretriaadiantou-separaseulado.—Ondeelaestá?—Eunãosei—sussurrouele,comorostofinosuando.—Nãoconsigoencontrá-la.Recuperouoautocontrolecomesforço.Raciocine,disseeleparasi.OuelafugiuouoCeifador

apegou.Seela fugiu,paraonde iria?OlhounamesmahoraparaoVazio.Lá, concluiu—paraoAltoPináculo,ouomaispertoqueconseguisse.Ese tivesse sido levada?MasWilpercebeuqueaelfanãoforalevadaporquenãohavianenhumsinaldeluta.Elateriaresistido;teriadeixadoalgumsinal.Se tivesse fugido,poroutro lado, teria tomadoocuidadodenãodeixarnadaquemostrasseaoseuperseguidorparaondesedirigira.

Inspirou fundo. Amberle provavelmente fugira. Mas então um pensamento o atingiu. EstavapresumindoqueAmberlefugiradoCeifador.MasesenãotivessesidooCeifador,masalgumacoisaque saíra do Vazio? Cerrou os dentes, frustrado. Não havia como dizer. Naquela escuridão, nãotinha esperança de encontrar uma trilha.Ou teria de esperar até amanhecer, quandopoderia sertardedemaisparaajudarAmberle,ou...

OuteriaqueusarasPedrasÉlficas.ElejáaspegavaquandoamãodeEretriaagarrouseubraçocomforça,fazendo-opulardesusto.—Curandeiro!—sussurrouela.—Alguémestáseaproximando!Wilsentiuoestômagosecontrair.Poruminstante,simplesmenteficouali,seuolharseguindo

odela,subindoparaonorte,pelocaminhoondehaviamacabadodepassar.Algosemovianochãocheiodesombras.Omedocresceudentrodele.Suamãoremexeu-sedentrodatúnica,libertandoasPedrasÉlficas.Aoseu lado,Eretria tirouumaadagadeaparênciaperversadedentrodesuabota.Juntos,osdoisencararamasombraqueseaproximava.

—Esperemumpouco!—Umavozfamiliaroschamou.WilolhouparaEretria,queolhouparaele.Lentamente, abaixaramasPedraseaadaga.Avoz

pertencia aHebel.Eretria resmungoualgumacoisa e foi recuperaros cavalos,quehaviam fugidoparaafloresta.

Pelocaminho,vinhaHebel,comaformapeludadeVagabundologoatrás.Usavaumaroupadecouroadequadaparatrabalharnaflorestaecarregavaumsacoamarradonascostas,comumarcolongoeflechassobreumdosombros,alémdeumafacadecaçanacintura.Elemovia-sedeforma

peculiar,agachado,apoiando-senumabengalaretorcida.Conformeseaproximava,podiamverqueestavacobertodelamadacabeçaaospés.

—Vocês quase passaram por cima demim, sabiam?— exclamou.—Olhem paramim! Se eutivesse sido tolo o bastante para ficar na trilha mais do que fiz enquanto seguia vocês até aqui,estaria coberto de marcas de ferraduras, além de lama! O que vocês acham que estão fazendo,cavalgandonaflorestadessejeito?Estáescurocomoumtúmuloaquievocêsandamcomosefossediaclaro.Porquenãopararamquandogritei,diabos?

—Bem...porquenãoouvimosvocê—respondeuWil,confusoesurpreso.— Isso porque vocês não estavam ouvindo como deveriam! — Hebel não estava disposto a

desculpá-los.Mancoudiretamenteparaojovemdovale.—Demoreiodiainteiroparachegaraqui,odia inteiro.Semcavalo,devoressaltar.Porquevocêdemoroude formatãodesconcertante?Daformacomovocêsestavamcavalgandoagora,poderiamtervindoaquievoltadoumameiadúziadevezes.

EleviuEretria,quereapareceucomoscavalos.—Oquevocêestáfazendoaqui?Cadêajovemelfa?Aquelacoisanãoapegou,pegou?Wiladmirou-se.—VocêsabesobreoCeifador?—Ceifador?Seéassimqueaquiloéchamado,seisim.Elefoiatémeuacampamentohojemais

cedo,logodepoisquevocêsseforam.Procurandovocê,éoqueachoagora,apesardenahoranãotercerteza.Nãochegueiavê-lo,apenasderelance.Achoquesetivessevistodemaisperto,estariamorto.

—Também acho— concordou o jovem.—Cephelo e os outros estãomortos.OCeifador osalcançounaCristadoAssobio.

Hebelassentiu,sério.— Cephelo estava destinado a acabar daquele jeito, mais cedo ou mais tarde.— Olhou para

Eretria.—Desculpe,menina,maséaverdade.—Voltou-separaWil.—Agora,ondeestáapequenaelfa?

—Eunãosei—respondeuWil.—Eupreciseivoltar...—Elehesitou.—Eutivequevoltarparapegar uma coisa que eu tinha deixado comCephelo.Amberlemachucou o tornozelo, então eu aescondi nuns arbustos. Segui outro caminho quando voltei, ou provavelmente também estariamorto. Encontrei Eretria, ou elame encontrou, acho; e depois que vimos o que aconteceu comCephelo,voltamosparacáomaisrápidoquepudemos.MasagoraAmberlese foi,enãoseioqueaconteceu a ela. Não tenho nem como saber ao certo se o Ceifador esteve aqui ou se ainda estátentandonosencontrar.

— Já veio e já voltou—disseHebel.—Vagabundo e eu estivemos rastreando-o enquanto elerastreava vocês. Perdemos a trilha na encruzilhada porque oCeifador foi para leste, até aCrista,enquantoVagabundo e eu viemospara o sul atrás de você.Mas então a trilha começoudenovo,maisparaosul.Essacoisadeve terpassadopelomeioda floresta.Seelaconsegue fazer isso,elaéperigosa,elfo.

—PergunteaCephelooquãoperigosa—resmungouEretria,olhandoparaassombrasaoseuredor.—Curandeiro,podemossairdaquiagora?

—NãoatédescobrirmosoqueaconteceucomAmberle—insistiuWil.Hebelbateuemseubraço.—Mostreondevocêadeixou.Wilfoiatéosarbustos,sendoseguidoporEretria,pelovelhoepelocachorro,daíapontoupara

a entrada.Hebel abaixou-se, examinouo interior edeuumassobio, chamandoVagabundo.Falouem voz baixa com o cão e o animal avançou, farejou ao redor deles e foi até a borda do Vazioenquantoosoutrosobservavam.

— Ele captou o cheiro, pegou sim — grunhiu Hebel, satisfeito. Vagabundo parou e rosnousuavemente.—ElaestáláembaixonoVazio,elfo.OCeifadorestálátambém.Provavelmenteaindaatrásdela.Talcomopensei.

—Entãotemosqueencontrá-lalogo.—Wilcomeçouaavançar.Hebelagarrouobraçodele.—Nãoprecisacorrer,elfo.EstamosfalandodoVazio,lembra-se?Nãohánadaláembaixo,além

das IrmãsBruxas edas criaturas a serviçodelas.Qualqueroutra coisaqueponhaospés lá épegaimediatamente. Sei disso pelo que Mallenroh me contou sessenta anos atrás. — Ele sacudiu acabeça.— Por ora, a garota e a coisa que estava atrás dela estão fazendo companhia a uma dasIrmãs.Isso,ouestãomortos.

Wilficoubranco.—AsBruxasvãomatá-los,Hebel?Ovelhorefletiusobreaquilo.—Ah,agarotanão, euacho.Não imediatamente. Jáa criatura, sim.Enãopensequeelasnão

sejamcapazes,jovemelfo.— Não sei mais o que pensar — respondeu Wil lentamente. Ele abaixou os olhos para a

escuridãodoVazio.—SóseiquevouatéláevouencontrarAmberle.Agora.ElecomeçouadizeralgumacoisaparaEretria,masanômadeointerrompeu.—Nãodesperdicesaliva,Curandeiro.Euvoucomvocê.Ojeitoqueelafalounãodavamargemparadiscussão.OlhouparaHebel.—Eutambémvou,elfinho—anunciouovelho.—Masvocêmesmodissequeninguémdevia iratéoVazio—relembrouWil.—Nãoentendo

nemporquevocêestáaqui.Hebeldeudeombros.—Porquenãoimportamaisondeestou,elfo,ejánãoimportahámuitotempo.Souumhomem

velho, já fiz nesta vida as coisas que queria fazer, estive onde quis estar, vi o que queria ver.Nãosobroumaisnada,excetoumaúnicacoisa.EuqueroveroquetemlánaqueleVazio.

Sacudiuacabeça,melancólico.—Pensonissohásessentaanos,devezemquando.Sempredisseamimmesmoqueumdiaeu

descobriria, como se pensasse num lago fundo: você sempre imagina o que tem lá embaixo. —Esfregouoqueixobarbado.—Bem,umhomemsãonãoperderia tempocomalgoassim,eeuerasãoquandoeramaisnovo,emboranãoachasseisso.Agoraestoucansadodesersão,cansadodesópensar em ir até lá em vez de realmente ir. Vocême fez decidir.Quando vocême contou o quepretendiafazer,eupenseiemconvencê-lodocontrário,assimcomosempremeconvenci.Eutinhacertezadequevocêperderiaointeressebemrápidoseescutasseoqueeudisse.Estavaenganado.Euviqueoquequerquevocêestejaprocurandoeratãoimportantequeomedonãoimportava.Entãoporquedeviame importar?,pensei.Depoisdisso,quandoaquelacriatura,oCeifador,passoupormimemefezveroquãopertoestoudemorrer,percebiquenãomeimportava.SóoquerealmenteimportaédescobrirmaissobreoVazio.Aívimatrásdevocê.Decidiquedevíamosdescobrirjuntos.

Wilentendeu.—Sóesperoquenósdoisencontremosoqueestamosprocurando.— Bem, talvez eu possa ajudar você.—O velho deu de ombros.— Esta parte do Vazio é de

Mallenroh.Elapodeselembrardemim,elfo.—Porummomentoseupensamentovagouantesdevoltar a encararWil.—O Vagabundo pode farejar pelo tempo que for preciso.— Assobiou.—Leve-nosláprabaixo,cão.Vamos,garoto.

VagabundodesapareceunabordadoVazio.Eretriatirouasselaseosarreiosdoscavalosebateunelescomforça,mandando-osparalongeagalopepelafloresta.Depois,juntou-seaWileaovelho.Emfila,começaramadescerparaoVazio.

—NãovamosprecisarconfiarnoVagabundopormuitotempo—declarouHebelcomfirmeza.—Mallenrohvainosacharbemrápido.

Sefosseassim,Wilseflagroupensando,esperavaqueelativesseencontradoAmberletambém.

AmberleacordounaescuridãodaflorestadoVazio.Foio levebalançardomovimentoondulantede estar sendo carregada que a acordou, e por um momento ela entrou em pânico. Dedosretorcidosaseguravam,prendendocomforçaseusbraçosepernas,seucorpo,mesmoopescoçoeacabeça—dedos tãoásperosquepareciamser feitosdemadeira.Suaprimeira reação foi tentar selibertar,masela resistiucomumesforçodesesperadoe se forçoua ficarquieta.Quemquerqueativesse capturado, ainda não sabia que estava acordada. Se fosse para ela ter alguma vantagemnaquela situação, era aí. Pelo menos por um tempo, tinha que continuar fingindo que dormia,descobrindooquepudesse.

Não tinha ideiadequanto tempodormira.Podia ter sidoporminutos,horasouatémais.Noentanto, pensava que ainda era amesmanoite. Era o que a lógica lhe dizia.Tambémachava que,quem quer que fosse seu captor, não era a coisa que estava lhe perseguindo até o Vazio. Se oCeifadorativesseencontrado,teriasimplesmenteamatado.Aquilo,portanto,deviaseroutracoisa.Ovelho,Hebel,falaraparaWileelaqueoVazioeraodomínioparticulardasIrmãsBruxas.Talvezfosseumadelas.

Sentiu-se um pouco melhor depois de ter pensado naquilo e relaxou um pouco, tentandodesvendaroterrenopeloqualpassava.Eradifícilfazerisso:asárvoresbloqueavamomenorvestígioda lua e das estrelas, deixando tudo envolto numa noite profunda. Se não fossem os aromasfamiliares da floresta, não saberia que havia uma floresta ao redor. O silêncio era intenso. Ospoucossonseramdistantesebreves,gritosquevinhamdoermoforadoVazio.

Ela se corrigiu,poishaviaoutro som,umbarulho ligeiro comooagitardegalhosnabrisa—mas não havia nenhuma brisa e o som vinha de debaixo de si, não de cima. O que quer que aestivessecarregando,eraoresponsávelpelobarulho.

Osminutossepassaram.PensoubrevementeemWil, tentandoimaginaroqueele fariaemseulugar.Sorriu,apesardasituaçãoemqueseencontrava.QuempoderiapreveroqueoloucodoWiltentarianumasituaçãodaquelas?Elaseperguntouseoveriadenovo.

Começava a ter cãibras, e decidiu ver se poderia fazer algo para aliviar o desconforto sem seentregar. Fez uma tentativa e esticou as pernas, fingindo estar semexendo no sono, testando osdedosqueaseguravam.Elessemoveramcomela,massemsoltar.

Osomdeáguacorrentechegouaos seusouvidos, ficandomais forteacada segundo.Amberlepodia sentir seucheiro, frescoeperfumadocom flores selvagens—umriachoque se contorcia eborbulhavanaquietudedafloresta.Depois,estavadebaixodela,eobarulhodegalhoseossonsdanoitesumiramcomobarulho.Passosecoavamocosemtábuasdemadeira,eaelfasabiaqueestavasendocarregadasobreumaponte.Oborbulhardoriachoficoumaisbaixo.Correntestilintarameressoaramcomoseestivessemsendoreunidas,eouviuumabatidaseca.Algofoifechadoatrásdesi

—umaportamuitopesada.Umatravadeferroe trancasforamcolocadasno lugar.Pôdeouvi-lasclaramente. O ar noturno correu sobre ela como antes, mas carregava consigo o cheiroinconfundíveldepedraecimento.Omedosurgiudentrodajovemelfamaisumavez.Encontrava-se dentro de uma área cercada pormuros, um pátio talvez, e acreditava estar sendo levada paraalgum tipo de prisão, e se não conseguisse se libertar logo, não conseguiria se libertar nunca.Porém,osdedosqueaprendiamnãodavamsinaisdeafrouxaremseuaperto,eerammuitos.Seriaprecisoumtremendoesforçoparasesoltar,eachavaquenãotinhamaistantaforça.Alémdomais,pensoudesanimada,mesmoseconseguisseselibertar,paraondeiria?

Àfrente,outraportaseabriu,rangendoumpouco.Porém,nenhumaluzsurgiu;nãohavianadaalémdeescuridãoaoseuredor.

—Coisinhabonita—disseumavozderepente,eaelfasobressaltou-se,surpresa.Amberle continuou sendo carregada. Atrás de si, a porta fechou-se e os cheiros da floresta

desapareceram.Estavadentro—masdentrodoquê?Virandoedobrando,seuscaptoresalevaramporpassagensquecheiravamaumidadeemofo;porém,haviaoutrocheiro,umtipodeincenso,umperfume.Aelfarespiroufundoeocheirofezsuacabeçagirarporummomento.

Semqueelaesperasse,apareceuumaluzsúbita,brilhandologoàfrente,dentrodeumaarcadaalta.Amberlepiscoucomaclaridadeestranha,seusolhosaindaacostumadoscomaescuridão.Foicarregadapelaarcadaeparabaixoporumaescadariasinuosa.Aluzpiscouacimadela,ficandoparatrásporummomento,retornandologodepois,oscilandoeseespalhandonaescuridão.

Paroude ser levada em frente. Sentiu-se sendobaixada atéuma tapeçaria grossa, e osdedos asoltaram.Elase levantou,apoiando-senoscotovelosesemicerrouosolhosnadireçãoda luz,quepairou na sua frente por um instante, e depois recuou lentamente por trás de umamuralha debarrasdeferro.Aportasefechoucomforçaealuzsefoi.

Maspoucoantesdedesaparecer,aelfaviuderelanceseuscaptores,suasformasfinasmarcadascomclarezanobrilhobranco.Pareciamfeitosdegravetos.

NosolodoVazio,Wilmandouqueparassem.Estavatãoescuroquemalconseguiaenxergaramãonafrentedorosto;nãoconseguiaverHebelouEretria,enemelesconseguiamvê-lo.Setentassemcontinuar naquelas condições, logo se separariam e ficaram irremediavelmente perdidos. Eleesperouporalgunsmomentosquesuavisãoseacostumasse.Foioqueaconteceu,masnãomuito.OVaziocontinuousendoumamassaescuraequaseimperceptíveldesombras.

Foi Hebel quem concebeu um plano para resolver aquele problema. Assobiando paraVagabundo,tirouumpedaçodecordadasacolaquecarregavaeamarrouumapontanocachorro;oresto,prendeuemsuacinturaenascinturasdojovemedanômade.Amarradosassim,poderiamseguirumaooutrosemcorreroriscodesesepararem.OvelhotestoualinhaefaloubaixinhocomVagabundo.Ocachorroavançou.

ParaWil,pareceuqueandarampeloVazioporhoras,tropeçandoporumlabirintoinfinitodeárvores e arbustos, praticamente cegos na escuridão impenetrável, confiando nos instintos docachorro que os liderava.Não falaram nada uns com os outros,movendo-se pela floresta omaissilenciosamente que podiam, conscientes demais do fato de que em algum lugar daquela florestaestavaoCeifador.Wilnuncasesentiratãoindefesoatéentão.Jáeraruimobastantenãoconseguirenxergarnada; erapiorainda saberqueoCeifadorestava lácomele.PensavaconstantementeemAmberle.Seestavaassustado,comoeladeveriaestar?Seumedoodeixavaenvergonhado.Nãotinhaodireitodeestarcommedo,nãoquandoeraelaquemestavasozinhaedesprotegida,eforaeleque

adeixaraassim.Porém,omedocontinuoucomele.Parabloqueá-lo,agarrouabolsacomasPedrasÉlficasnuma

dasmãos,apertando-ascomforça,comoseestandoali,elaspudessemdealgumaformaprotegê-locontraoquequerqueestivesseescondidonafloresta.Porém,dentrodesi,continuavaosentimentode que as Pedras Élficas não poderiam ajudá-lo, que seu poder estava perdido e que ele nãoconseguiria recuperá-lo.Não faziadiferençaoqueAmberle lhedisseraouque eledisserapara si.Aquele sentimento não tinha razão nem propósito; simplesmente estava ali — assombrando-o,malignoeaterrorizante.OpoderdasPedrasÉlficasnãoeramaisseu.

Ainda estava tentando se libertar da sensação quando a corda diante de si ficou subitamentefrouxa. Quase tropeçou sobre Hebel, que parara por completo. Eretria trombou nele, e os trêsficaramagrupados,examinandoaescuridão.

—Vagabundoencontroualgumacoisa—sussurrouovelhoparaWil.Ficando de joelhos, ele foi com cuidado até onde Vagabundo estava farejando, com Wil e

Eretriaseguindodeperto.Bateuafetuosamentenacabeçadocãoetateoupelaterraporumtempo,antesdelevantar.

—Mallenroh—faloueleonomecomsuavidade.—Elaestácomaelfa.—Vocêtemcerteza?—sussurrouWilemresposta.Ovelhoassentiu.—Temque estar.Aquele tal deCeifador está em algumoutro lugar.OVagabundonão sente

maisocheirodele.Wil não entendia como Hebel podia ter certeza daquilo, especialmente por estar tão

impossivelmenteescuro,masnãofaziasentidodiscutiroassunto.—Oquevamosfazeragora?—perguntou,ansioso.—Vamoscontinuar—grunhiuele.—Vagabundo,vamos,garoto.Ocachorroavançoumaisumavez,ostrêshumanosseguindologoatrás.Osminutospassaram-se

egradualmentea florestacomeçouaclarear.Aprincípio,Wilpensouqueseusolhosoestivessemenganando, mas finalmente percebeu que a noite estava terminando e um novo dia começava.Árvores e arbustos começaram a tomar forma ao redor dele, a penumbra sumindo lentamenteconforme o sol jogava seu brilho fraco pelo teto da floresta. À sua frente, a cabeça peluda doVagabundo estava visível pela primeira vez desde que começaram a descer até o Vazio, a cabeçaabaixadaatéochãoenquantofarejavaocaminhopelaterraúmida.

Abruptamente,acabeçorra levantou-seeocãoparou.Oshumanospararamcomele,osrostossurpresos.Diantedeles,estavaacriaturamaisestranhaquejátinhamvisto.Eraumhomemfeitodegravetos—doisbraços,duaspernas,eumcorpototalmentefeitodegravetos,comraízesretorcidascurvando-senaspontasdosbraçosepernasparaformarosdedos.Nãotinhacabeça.Eleosencarava— ou pelo menos era o que pensavam, já que as raízes que formavam os dedos pareciam estarapontadas na direçãodopequeno grupo. Seu corpo fino balançava lentamente como se fosse umbrotopegoporumaventaniasúbita.Elevirou-seecomeçouaandardevoltaparaafloresta.

Hebelolhourapidamenteparaosoutrosdois.—Eudisseavocês.ÉobradeMallenroh.Gesticulando apressadopara eles, seguiu a criatura.Wil eEretria se entreolharamemdúvida,

para depois seguirem também. Sem falar, a pequena procissão marchou pela penumbra, dandovoltas e voltas pelo labirinto da floresta. Depois de um tempo, outros homens-graveto iguais aoprimeirocomeçaramaaparecer,criaturasretorcidasesemcabeça,semfazeroutrosruídosalémdofarfalhar leve que produziam ao andar. Antes que se dessem conta, havia dezenas de criaturas

cercando-os,andandocomofantasmaspelassombras.—Eudisse—continuouHebel,sussurrandoparaosdois,comorostoenrugadointenso.Abruptamente, a floresta tornou-semenos densa.Diante deles havia uma torre solitária, com

seu torreãoescuroerguendo-seentreasárvoresquecresciamaoseuredor.Situava-seno topodeuma pequena elevação, uma construção quase sem janelas, com pedras gastas e envelhecidas, ecobertas de vinhas emusgo.Omonte era uma ilha circuladapor um córregoque fluía de algumlugar na floresta, fazendo seu caminho emuma série de voltas e curvas antes de serpentear pelasárvores à esquerda deles. Uma muralha baixa cercava a torre, construída perto da margem docórrego; à frente, uma ponte levadiça encontrava-se aberta e vazia, com correntes pendendofrouxamentedepequenasvigiasdecadaladodeumapesadaplataformademadeiraqueatravessavapor cima das águas. Ao redor de tudo, havia carvalhos imensos, árvores antigas, cujos galhos seentrelaçavamebloqueavamocéudamanhã,deixandoailhacomoorestantedoVazio,imersaemsombrasprofundas.

O homem-graveto que haviam seguido parou. Virou-se levemente, como se seu corpo semcabeçaquisessesecertificarseestavamali.Emseguida,começouaandarnadireçãodaponte.Hebelmancouatrásdele semhesitar, tendoVagabundoao seu lado.Wil eEretria ficarampara trásporum momento, menos seguros do que o velho quanto a continuar avançando. A torre era umaestrutura ameaçadora; sabiam que não deviam colocar os pés entre suasmuralhas, sabiam que játinham ido muito além de onde deviam. Mas o jovem sentiu, de algum modo, que era ali queencontrariaAmberle.OlhouparaEretriaeosdoisavançaram.

O pequeno bando desceu até a beira do córrego, seguindo o silencioso homem-graveto, comseus companheiros ao redor.Comexceçãodos sonsde seusmovimentos edo fluxodocórrego, aflorestajaziaenvoltaemsilêncio.Ohomem-gravetopisounaponteeaatravessou,sumindodevistana sombra do portão. Os homens, a jovem e o cachorro passaram pela ponte logo atrás; Wil eEretrialançavamolharesapreensivosparaaimensatorrenegradooutrolado.

Viram-sediantedoportão.Ohomem-graveto reapareceuna frentedeles,depé, logoalémdoarco escuro. Seguiram em fila, observando a criatura voltar a avançar em direção à torre. Malhaviamatravessadooportãoquandoouviramosomrepentinodecorrentesrangendoeestalando.Atrásdeles,apontelevadiçaseergueuefechou-secontraamuralha.

Nãohaviamais comovoltar. Juntos, foramaté a torre.Ohomem-graveto esperava, dentrodeumaalcovaaltaqueabrigavaumpardeportas largasdemadeira.Umadelasencontrava-seaberta.O homem-graveto passou por ela e sumiu.Wil olhou para cima, para a impressionante face depedrada torre,ecolocouamãodentroda túnica,puxandoosacocomasPedrasÉlficas.Comosoutros,atravessouaportaacaminhodaescuridão.

Poruminstante,ninguémsemexeu,paradosbemnaentrada,examinandoàscegasaescuridão.Aporta fechou-se com força atrás deles, as travas estalando.A luz brilhou emuma lamparinadevidrosuspensaacimadogrupo,comobrilhobrancoesuave,vindonãodeóleooupiche,masdealgo que não gerava chamas ao queimar. Havia homens-graveto à sua volta, lançando sombrasretorcidascontraasparedesdepedraqueoscilavamdelicadamentecomaluz.

Da escuridão atrás, uma mulher apareceu, envolta em negro e longas tiras esvoaçantes evermelhas.

—Mallenroh—sussurrouHebel,eWilOhmsfordsentiuoaraoseuredorvirargelo.

CapítuloXLII

OsegundodiadabatalhaporArborlonpertenceuaAnderElessedil.Foiumdiadesangueedor,demorteegrandebravura.Portodaanoite,ashordasdemoníacashaviamcontinuadoaatravessarseuscompanheirospelaságuasdoRiachodaCanção,sozinhoseemgrupos,atéque,pelaprimeiravez desde que tinham escapado da Proibição, seu exército inteiro reunira-se para o ataque,agrupadonabasedoCarolan,desdeafrontedopenhascoatéamargemdorio,estendendo-separao norte e para o sul até onde os olhos conseguiam enxergar, fantásticos, terríveis e em númerosinfinitos.Aoamanhecer, atacarama cidade.Avançarampara cima, contra asmuralhasdaElfitch,levaapósleva,enlouquecidoseuivandodeódio.Explodiramcontraaselevações,subindocomsuasgarrasnomeiodeumasaraivadadeflechas.Continuaramemfrente,comoumaondaquevarreriaosdefensoresqueesperavameosdeixariaenterrados.

Foi Ander Elessedil quem fez a diferença. Era como se naquele dia ele tivesse finalmente setornadooRei que seupai fora, oRei que liderara os elfos contra o exércitodoLordeFeiticeirocinquentaanosantes.Ocansaçoeadesilusãohaviamsumido.AdúvidaqueoassombravadesdeoTalhodeHalyssumira.Acreditavadenovoemsienadeterminaçãodaquelesquelutavamconsigo.Era um momento histórico, e o Príncipe Élfico se tornara o seu foco. Reunidos ao redor deleestavamosexércitosdequatroraças,comosestandartesdebatalhaesvoaçandonoventomatutino.Aliestavamaságuiasdeguerraprateadaseocarvalhoamplodoselfos,afaixavermelhaecinzadosVoluntários, e os cavalos negros da Velha Guarda; lá voavam o verde floresta dos Escavadoresanões, dividido pela curva do Rio Prateado, e o martelo e as duas montanhas azuis gêmeas dostrolls de pedra de Kershalt. Nunca antes haviam voado juntas. Na história dasQuatro Terras, asraçasnuncahaviamseunidoparaformarumadefesacomum,paraservirumbemcomum.Trolleanão, elfo e humano—os seres donovomundo resistiam juntos a ummal de tempos antigos. Enaqueleúnicoeformidáveldia,AnderElessediltornou-seafaíscaquedeuvidaatodos.

Estava em todos os lugares aomesmo tempo, da beira do penhasco aos portões da Elfitch, àsvezesacavalo,àsvezesapé,sempreondeabatalhaeramaispesada.ComacotademalhabrilhandoeocajadodaEllcryserguido,permaneceunafrentedosdefensoresdacidadecontraosdemôniosqueavançavamparamatá-lo.Ondequerquefosse,seuchamadoseelevavaeosdemaiscorriamparase juntar a ele. Sempre emmenor número, sempre pressionado, mesmo assim o Príncipe e seuscompanheiros de batalha empurravam os atacantes para trás. Ander Elessedil foi algo de sobre-humanonaqueledia, lutandocom tanta ferocidadequepareciaquenadapodia resistir a ele.Porvárias vezes, os demônios tentaram derrubá-lo, reconhecendo que aquele único homem era ocoração da defesa élfica. Por várias vezes, parecia que conseguiriam, cercando Ander com umenxamede corpos negros em fúria.Mas em todas as vezes ele lutou para se libertar. Em todas asvezes,osdemôniosforamrepelidos.

Foiumdiadeheróis,pois todososdefensoresdeArborlonforaminspiradospelacoragemdoPríncipeÉlfico.EventineElessedilestavacomseu filhoe lutoubravamente,dandoforçaaoselfosaoseuredorcomsuapresença.Allanontambémestavalá,suaformaencapuzadaladoaladocomoshomens de armadura à sua volta, enquanto o fogo azul saía de seus dedos em arco até atingir o

meio dos demônios enraivecidos. Por duas vezes, os demônios irromperam pelos portões daterceirarampa,eporduasvezesostrolls,sobocomandodeAmantar,fizeram-nosrecuar.SteeJanse os Voluntários interromperam um terceiro ataque, contra-atacando com tanta selvageria quevarreram os demônios de volta à segunda rampa e por algum tempo ameaçaram retomar seusportões.AcavalariaélficaeosEscavadoresanõesrepeliraminvestidasemaisinvestiasaolongodabeira do Carolan, jogando para baixo centenas de demônios que conseguiram escalar a face dopenhascoeameaçavamoflancodosdefensoresnaElfitch.

Mas era Ander que os liderava, Ander que renovava as forças deles quando parecia que nãoconseguiriam mais suportar, Ander que os unia em todas as ocasiões. Quando o dia finalmenteterminou e a escuridão começou a cair, os demônios foram forçados a recuar mais uma vez,voltandoparaas florestasalémdopenhasco,berrandode raivae frustração.Pelo segundodia,osdefensoresdeArborlonhaviamresistido.FoiomelhormomentodeAnderElessedil.

Mas a sorte dos defensores da cidade sofreu um revés. Com a chegada da noite, os demôniosatacaramdenovo,esperandoapenasquealuzdosolsumisseparasairdaflorestaeinvestircontraadefesa élfica. Uma por uma, apagaram as tochas que haviam sido acesas na parte mais baixa daElfitch, batalhando enquanto subiam até os portões da terceira rampa. Desesperadamente, osdefensores prepararam-se para o ataque, os imensos trolls de pedra bloqueando os portõesenquantooselfoseossoldadosdaLegiãolutavamdotopodasmuralhas.Masainvestidafoifortedemais; os portões sacudiram-se e romperam-se. Pela brecha, os demônios emergiram, abrindocaminhocomasgarras.

Também no alto os demônios começavam a romper as defesas. Dezenas de formas escuraspassavam pelas linhas de cavalaria que patrulhavam a elevação e espalharam-se selvagemente emdireçãoàcidade.Destes,maisdeumacentenaconvergiramparaosJardinsdaVida,conscientesdeque dentro de seus portões estava a coisa que por tantos séculos os mantivera prisioneiros. Alificaram cara a cara com os soldados da Guarda Negra, que estavam prontos para cumprir opropósito de sua ordem e defender até o último homem a árvore antiga que era seu encargo.Enlouquecidos, além da razão, os demônios atacaram. Avançaram contra as lanças abaixadas daGuardaNegraeforamdespedaçados.

Na ponta sul do Carolan, outro bando de demônios conseguiu fazer um túnel por baixo dasarmadilhas dos anões, colocadas numa escadaria secundária desmontada, que subia doRiacho daCanção, e alcançou o topo. Desviando da Guarda Negra e dos Jardins da Vida, deslizaram paraleste, para longe do Carolan, rastejando pelas sombras além da linha de tochas colocadas nabeirada, e correram para a cidade. Seis elfos feridos, voltando para suas casas da batalha, forampegosemortos.OutrospoderiamtermorridosenãofosseumapatrulhadeEscavadoresanõesqueconcordaraemajudaroselfosavigiaroperímetrodacidade.Percebendoqueosdemônioshaviampassado pelos defensores do penhasco, seguiram os gritos dos moribundos e caíram sobre seusassassinos. Quando a luta terminou, apenas três anões continuavam de pé. Todos os demôniosjaziammortos.

Na aurora, a parte alta estava livre, e os demônios haviam sido repelidos novamente. Mas aterceira rampa da Elfitch fora perdida e a quarta estava ameaçada. Na base do penhasco, osdemôniosvoltavamasereunir.Gritosressoavampelaquietudedamanhãenquantoelesavançavampelarampa,emformaçãosólida,comavanguardalevandoumimensoaríetedemadeira.Bateramoaríete contra os portões, partindo a barreira de madeira e atravessando-a. Trolls e elfosrapidamente assumiram a formação de falange, umamuralha com lanças de ferro que cortavamfundoasformasescuras.Masosdemônioscontinuaramavançando,investindocontraosdefensores

atormentados,atéqueestesfossemforçadosarecuarparaafortalezadaquintarampa.Foiummomentodesesperador.QuatrodosseteníveisdaElfitchforamperdidos.Osdemônios

estavamnametadedo caminhoparao topo.Ander reuniuosdefensores, ladeadoporAmantar eKerrin, e cercado pela Guarda da Casa. Os demônios atacaram, investindo contra os portõesdaquelarampa.Masquandopareciaqueconseguiriampassar,Allanonapareceunamuralhacomosbraçoserguidos.Umachamaazulcorreupelarampaabaixodele,dividindoainvestidademoníaca,transformandooaríeteemcinzas.Momentaneamenteatordoados,osdemôniosrecuaram.

Por toda amanhã, os demônios procuraram romper a defesa da quinta rampa. Aomeio-dia,finalmenteconseguiram.Umpardeogrosmonstruososavançouatéavanguardade seus irmãosejogou-se contra os portões — uma, duas vezes. Madeira e ferro estilhaçaram-se e os portõespartiram-se.Osogrosirromperamnarampadooutrolado,espalhandoosdefensores.Umpunhadodetrollsdepedratentouimpedi-los,masosogrosempurraramostrollscomoseestesfossemfeitosde papel. Novamente, Ander uniu os soldados, instando-os a avançarem. Mas os demôniosdespejavam-sepelosportõesarruinados,arrasandoosdefensores.

O cavalo de Eventine Elessedil foi morto embaixo dele enquanto cavalgava de volta para asegurançadosportõessuperiores,eovelhoReicaiunarampa.Osdemôniosviramsuaqueda.Comum uivo, avançaram. Tê-lo-iam pego se não fosse por Stee Jans. Com uns poucos legionários, ohomemdaFronteirasurgiunocaminhodelescomasespadasapostos.Atrásdeles,Eventinelutouparaficardejoelhos,confusoeensanguentado,masvivo.Rapidamente,KerrintrouxeaGuardadaCasapararesgataroReielevaram-nodabatalha.

OsVoluntáriosaguentarampormaisumpouco,eentãotambémforamvencidos.Osdemônioscontinuaram em frente, empurrando os elfos que tentavam bloquear o caminho. Liderando oataque estavam os ogros que haviam forçado os portões, esmagando tudo ao seu alcance. AnderElessedilpulouparadetê-los,erguendoocajadoenquantochamavaosdefensoresdacidadeparaseuniremaele.Masainvestidafoifortedemais.AmantareSteeJanslutavamporsuasvidasnabeiradarampa,incapazesdealcançaroPríncipe.Porummomentoaterrador,Anderficoupraticamentesozinhodiantedainvestidademoníaca.

Porém,apenasporummomento.No topodosportõesda sexta rampa,AllanonassobiouparaDayndasmargensdoCarolan. Semdizernada, arrancouas rédeasdeDançarinadasmãosdeumsurpreso Cavaleiro e montou em cima da roca gigante. No instante seguinte, eles voavam parabaixo,easvestesnegrasesvoaçavamatrásdelecomovelas.Dançarinagritouumavez,paradepoiscair no meio dos demônios que ameaçavam Ander, com garras e bico prontos para atacar.Berrando, as formas negras espalharam-se. Fogo azul brotou dos dedos do Druida e a rampa àfrente foienvoltaemchamas.PuxandoumAnderatônitoparacimadaroca,AllanongritouparaDançarinaearocaergueu-senoar;láembaixo,oúltimodefensorrecuou,passandopelosportõesdasextarampaparaficaremsegurança.

Por mais alguns segundos, o fogo do Druida queimou antes de enfraquecer e apagar.Enraivecidos,osdemônios investiramcontraosdefensores em fuga.Porém,osEscavadores anõesdotopojáhaviamsidoalertados.Correiaseroldanascomeçavamasemexerconformeascorrentesenroladasnosapoiosdarampaerampuxadas.AarmadilhacuidadosamenteescondidadeBroworkestava prestes a ser usada. Por baixo da Elfitch, os suportes já enfraquecidos voaram para longe,estalandoe separtindoconformeas correntesos libertavamcomuma torção.Comum tremor, arampaabaixodosextonívelafundouesepartiu.Osdemôniospegosemcimadeladesapareceramemumanuvemdeescombros.Gritoseberrosencheramoareapartedebaixodarampasumiudevista.

Quando a poeira baixou, a Elfitch era uma pilha de pedras quebradas e tábuas de madeirapartidas desde os portões da sexta rampa até a quarta. Corpos de demônios espalhavam-se pelasuperfíciedopenhasco,presospelos escombros,quebradose semvida.Aquelesque sobreviveram,recuaram para a base do penhasco, desviando-se de pedras e entulho que caíam ao redor, atédesapareceremnasflorestasabaixo.

OsdemôniosnãoavançarammaisnaquelediacontraacidadedeArborlon.

Sofrendo de mais um ferimento na cabeça, bem como de vários pequenos cortes e arranhões,EventineElessedil foi carregadodabatalhanaElfitch até aproteçãode sua casa senhorial.O fielGael estava lá para cuidar dele, para limpar e cobrir seus ferimentos e ajudá-lo a ir para a cama.Então,comDardaneRhoeparavigiá-lo,oReiÉlficofoidormir.

Mas Eventine não dormiu. Não conseguiu. Jazia na cama, apoiado nos travesseiros de penas,encarandodesconsoladooscantosescurosdeseuquarto,sentindoodesesperoinvadi-lo.ApesardetodaaajudadadapelaLegião,pelosanõesepelos trollsaoselfos,abatalhaestavasendoperdida.Todasassuasdefesashaviamfalhado.Maisumdia,doistalvez,eosextoeosétimoportõestambémcairiam,eosdemôniosestariamnotopodoCarolan.Issoseriao fim.Eminferioridadenumérica,osdefensoresseriamrapidamentesobrepujadosedestruídos.AsTerrasdoOesteseriamperdidaseoselfosespalhadospelosquatroventos.

As implicações por trás do que estava pensando queimavam dentro de si. Se os demôniosvencessemali,significariaqueEventineElessedilfalhara.Nãosócomoprópriopovo,mascomospovosdetodasasTerras—poisosdemôniosnãoparariamnasTerrasdoOeste,estando livresdaProibição.Equantoaosseusancestrais,quehaviamaprisionadoosdemôniostantosséculosantes,emumaépoca tãoremotaqueelemalconseguia imaginá-la?Tambémteria falhadocomeles,quehaviamcriadoaProibição,masconfiadoseuscuidadosàquelesqueseseguiram,dependendodelesparamantê-laforte.Porém,aProibiçãoforaesquecidaaolongodosséculos,comainsurreiçãodovelho mundo e o renascimento das raças, esquecida por todos. Mesmo os Escolhidos haviampassadoapensarnelacomopoucomaisdoqueumapartedistantedesuahistória,umalendaquepertenciaaoutraera,aopassadoouaofuturo,masjamaisaopresente.

Sentiu um aperto na garganta. Se Arborlon caísse, se as Terras do Oeste fossem perdidas, ofracassoseriadele.Dele!Seuspenetrantesolhosazuisendureceramcomaraiva.Por82anosviveranaquela terra; por mais de cinquenta deles, fora o líder de seu povo. Conseguira muita coisanaquele tempo — e agora tudo seria perdido. Pensou em Arion, seu primogênito, o filho quedeveriatervividoparaperpetuaroqueeletrabalharatãoduroparaobter,eemKaelPindanon,seuvelho companheiro de batalhas, seu leal seguidor. Pensou nos elfos que haviam morridodefendendooSarandanoneArborlon.Todosmortos,epornada.

Deitou-se,recostando-senacamadebaixodascobertas,ruminandoasescolhasquerestavam,astáticas que aindapodiam ser empregadas, os recursosquepoderiamutilizar quandoosdemôniosviessemoutravez.Suamenteencheu-sedeles,elánofundosentiudesespero.Nãoeramobastante;jamaisseriamobastante.

Procurando respostas para as perguntas que ele mesmo se fazia, lembrou-se subitamente deAmberle. Sobressaltou-se ao pensar nela, e sentou-se na cama. Na confusão dos últimos dias,esquecera-sedesuaneta,elaqueeraaúltimadosEscolhidos,aquelaqueAllanondisseraseraúnicaverdadeiraesperançaparaseupovo.Triste,perguntou-seoqueteriaacontecidocomAmberle.

Deitou-sedenovoeficouolhandopelassombrasdacortina,observandoaescuridãocrescente

dooutro lado.AllanondisseraqueAmberleestavavivaeno interiordapartebaixadasTerrasdoOeste;masEventinenãoacreditavaqueoDruidarealmentesoubesse.Opensamentoodeprimiu.Seela estivesse morta, não queria saber, decidiu de repente. Seria melhor assim, ficar sem saber.Porém,eraumamentira.Precisavadesesperadamentesaber.Aamarguracresceudentrodesi.Tudoescorria por entre seus dedos— sua família, seu povo, seu país, tudo que amava, tudo que davasentidoàsuavida.Haviaumainjustiçabásicanaquiloquenãoconseguiaentender.Não,eramaisdoqueisso.Ainjustiçabásicadaquilotudoeraalgoquenãoconseguiaaceitar.Seaceitasse,sabiaqueseriaseufim.

Fechouosolhosporcausadaluz.OndeestavaAmberle?Precisavasaber,insistiu,comteimosia.Precisavaacharummeiodealcançá-la,deajudá-la,casoelaprecisasse.Precisavaencontrarumjeitode trazê-la de volta. Inspirou fundo uma vez e depois outra. Ainda pensando em Amberle,adormeceu.

Estava escuroquandooRei acordou.Nocomeço,não tinhacerteza sobreoqueo fizera acordar,suamente ainda entorpecida de sono, seus pensamentos desconexos.Um som, pensou, um grito.Ergueu-secontraomontedetravesseiroseexaminouaescuridãodoquarto.Aluzdalua,pálidaebranca, infiltrava-se pelo tecido das cortinas fechadas, iluminando vagamente os contornos dasjanelasduplastrancadas.Inseguro,esperou.

Ouviuoutro som,umgrunhido abafado, rápido e surpreso, sumindoquase imediatamentenosilêncio.Vieradoladodeforadoseuquarto,docorredorondeDardaneRhoeestavamdeguarda.Sentou-se devagar, observando a penumbra, esforçando-se para ouvirmais alguma coisa.Mas daíveio apenas o silêncio, profundo e agourento. Eventine escorregou até a beira da cama e baixoucautelosamenteumapernaaochão.

Aportadeseuquartoabriu-se ligeiramenteea luzdas lamparinasdocorredorespalhou-senasala.ORei congelou. Pela abertura, passouManx, com seu corpo pesado avançando agachado, acabeçagrisalhabalançandonadireçãodeondeseumestreencontrava-sesentadonacama.Osolhosdocãobrilhavamcomoosdeumgato,e seu focinhoescuroestavacobertodesangue.Mas foramsuaspatasdianteirasquesurpreenderammaisoRei;na luzfraca,pareciamterviradoosmembrosemgarradeumdemônio.

Manx passou da luz das lamparinas para as sombras e Eventine piscou, surpreso. Naqueleinstante,tevecertezadequeoqueestavavendoeramvestígiosdeumsonho,quetinhaimaginadoqueManxnãoeraManx,massimoutracoisa.Ocãomoveu-senadireçãodele lentamenteeoReipôdeverqueseurabobalançavadeformaamigável.Suspiroualiviado.EraapenasManx,disseparasi.

—Manx, bomgaroto...— começou a dizer, interrompendo-se ao avistar a trilha avermelhadaqueocachorrodeixaranochãoatrásdesi.

Manxpulounadireçãodesuagarganta,rápidoesilencioso,comamandíbulaabertaeasgarrasestendidas.MasEventine foimaisrápido.Arrancandoascobertasdacama,capturouManxcomotecido. Torcendo as cobertas ao redor do cão que se debatia, o Rei golpeou o animal com forçacontra a cama e correu até a porta aberta. Em um instante, atravessou-a, batendo-a atrás de si,ouvindoatrancaencaixar-senolugar.

Osuorcorreuporseucorpo.Oqueestavaacontecendo?Atordoado,cambaleouparalongedaporta, quase tropeçando no corpo sem vida de Rhoe, que jazia estirado a poucos metros dedistância comagarganta rasgada.AmentedeEventine rodopiou.Manx?PorqueManx...?Viu-se

pensando. Mas não era Manx. O que quer que houvesse avançado contra ele no quarto não eraManx,somentealgoquesepareciacomele.Entorpecido,percorreuocorredor,procurouDardan.Encontrou-opertodaentradadafrentecomumalançaatravessadaemseucoração.

Aportadeseuquartoabriu-seeacoisaquepareciaManxequecomcertezanãoerasurgiuemseucampodevisão.Desvairado,Eventinecorreuparaaportade entrada, forçandoasmaçanetas.Estavamemperradas,comas trancas lacradas.OvelhoReivirou-se,vendoabestanocorredorvirlentamenteemsuadireçãocomasmandíbulasvermelhasabertas.OmedocresceuemEventine,ummedo tão terrível que por um instante ameaçou dominá-lo totalmente. Estava preso na própriacasa.Nãohavianinguémparaajudá-lo,ninguémcomquempudessecontar.Estavasozinho.

O monstro vinha pelo corredor; o som de sua respiração era um ruído áspero e lento nosilêncio.Umdemônio,pensouEventinehorrorizado,umdemôniofingindoserManx,ovelhoefielManx. Lembrou-se de quando acordara depois da queda de Sarandanon e de ter visto Manx, eachado irracionalmente que não eraManx,mas outra coisa. Uma ilusão, pensara—mas estiveraerrado.Manxsefora,mortofaziamuitosdias,talvezsemanas...

Entãoaterrívelverdadeabateu-sesobreele.SeusencontroscomAllanon,osplanosquetinhamlutadotantoparamantersecretos,ocuidadoquehaviamtomadoparaprotegerAmberle—Manxestivera lá. Ou o demônio que se parecia comManx. Havia um espião no acampamento élfico,Allanonavisara—umespiãoqueficaraotempotodoomaispróximoqueconseguiamimaginar.OvelhoReipensounasvezesemqueacariciaraaquelacabeçagrisalha,esentiuumarrepionapele.

O demônio estava a poucos metros de si, avançando pouco a pouco pelo chão com asmandíbulasabertaseaspatasdianteirascurvadas,cheiasdegarras.Eventinesoubenaqueleinstantequeeraumhomemmorto.Entãoalgoaconteceudentrodesi,algotãosúbitoqueoReificoucegoparatodoorestante.Araivavarreuseucorpo—raivacomaenganaçãodaqualforavítima,raivapelasmortesquehaviamacontecidoporcausadetalenganaçãoe,principalmente,raivaporestarsesentindoindefeso,presocomoestavadentrodaprópriacasa.

Seucorpoenrijeceu.PróximaaocaídoDardanjaziaaespadacurtaqueforaaarmafavoritadocaçador élfico. Mantendo os olhos fixos nos do demônio, Eventine afastou-se lentamente dasportas.Seconseguissealcançaraespada...

Odemôniooatacouderepente,saltandopeloespaçoqueosseparava,lançando-senacabeçadoReiÉlfico.Eventineergueuosbraçosparaprotegerorostoecaiupara trás,chutandocomforça.Dentes e garras rasgaram seus braços, mas seus pés atingiram a parte de baixo da criatura,arremessando-adesajeitadamenteparaos recessosescurosdaentrada.Rolou rápidopara ficar empé, jogando-se sobre Dardan e agarrando a espada caída. Levantou-se de novo e virou-se paraencararseuatacante.

Seurostoficoulívidodeespanto.Nocantoescuroondecaíra,odemônioencolhia-se,nãomaisManx, mas algo completamente diferente. Transformando-se enquanto caminhava na direção doRei,mudandodeManxparaumacriaturaesguiaepreta,musculosa,decorpoesbeltoesempelos.Avançou em quatro patas que terminavam em mãos com garras, e sua boca arreganhou-se comdentesbrilhantes.RodeouoRei,levantando-sedetemposemtemposnaspatastraseiras,simulandoataque com as mãos como um boxeador, sibilando de ódio. Um Metamorfo, pensou Eventine,engolindoumanovaondadepavor.Umdemônioquepodiaseroquequisesse.

O demônio investiu contra ele de repente, rasgando seu ombro e seu flanco com as garras,deixando-oferidoeensanguentado.Golpeouacriaturacomaespada—tardedemais.Estavalongedele antes que conseguisse atingi-la. O demônio voltou a rodeá-lo lentamente, como um gatoobservando sua presa encurralada. Preciso ser mais rápido desta vez, pensou o Rei consigo. O

demônioavançoudenovo,dirigindo-seaoseupeitoepassandoporbaixodoarcodesuaespada,rasgandoosmúsculosdesuapernaesquerda.Adorespalhou-seporsuapernaeelecaiudejoelhos,lutando paramanter-se ereto. Por ummomento, sua visão ficou embaçada, mas clareou-semaisumavezenquantoseforçavaalevantar-se.

Nafrentedele,oMetamorfoabaixou-se,esperando.Quandoficoudepé,voltouarodeá-lomaisuma vez. O sangue escorria pelo corpo de Eventine e ele sentia-se enfraquecer. Estava perdendoaquela batalha também, pensou, desesperado, e aquilo terminaria com sua morte caso nãoencontrasse um jeito de tomar a iniciativa contra aquelemonstro. Balançando e inclinando-se, odemônio o observava.ORei tentou acuá-lo num canto,mas a criatura afastou-se com agilidade,rápido demais para o velho ferido. Eventine parou a perseguição; não o levava a nada.Observouenquantoodemôniocontinuavaarodeá-lo,sibilando.

Emuma tentativadesesperada,oReiÉlfico fingiu tropeçare cair,balançando-sepesadamentesobre seus joelhos.Ador o varreu,mas o truque funcionou. Pensandoque era o fimdo velho, oMetamorfo avançou. Mas daquela vez, Eventine estava esperando. Pegou o monstro no peito,cortandofundo,ossosemúsculos.Gritandodedor,odemônioarranhouemordeuoarnadireçãodo Rei, libertando-se com um puxão. O sangue escorreu do ferimento, um pus esverdeado quemanchavaocorponegroeliso.

Agacharam-se, cara a cara, Rei e demônio, os dois feridos, um esperando o outro baixar aguarda.Mais uma vez, o demônio começou a rodeá-lo, deixandoum rastro de sanguepelo chão.Eventine Elessedil preparou-se, girando para acompanhar o movimento do demônio. Estavacobertodesangueesuaforçaodeixava.Adorarruinavaseucorpoferido.Sabiaquesóaguentariamaisalgunsminutos.

Abruptamente,oMetamorfopulouemsuagarganta.AconteceutãodepressaqueoReisótevetempo de recuar aos tropeções, levantando os braços diante do rosto com a espada erguida. Odemôniocaiuemcimadele,jogando-onochão,golpeandocomgarrasedentes.Eventinegritoudedorquandoasgarrasrasgaramseupeitoeamandíbulafechou-seaoredordeseuantebraço.

As portas da casa senhorial arrebentaram-se, as trancas partiram-se e as dobradiças foramarrancadas.Gritosecoarampelaentradaescuraqueseenchiadehomensarmados.Emumanévoadeangústia,Eventinechamou.Alguémouvira!Alguémviera!

De cimadoRei caído,oMetamorfo ergueu-se, berrando.Naquele instante,deixoua gargantaexposta. A espada de Eventine subiu, brilhando. O demônio voou para trás, com a cabeça quaseseparada do corpo, a voz perdida num arquejo repentino. Quando caiu, os salvadores do Reiaproximaram-se,enfiandoasespadasfundonocorpodacriatura.

OMetamorfoestremeceucomoimpactodosgolpesemorreu.Eventine Elessedil ergueu-se, hesitante, ainda apertando a espada namão, comos olhos azuis

duros e fixos. Uma sensação entorpecedora espalhou-se por seu corpo quando se virou para verAnderseaproximando.OReiÉlficocaiu,eanoitefechou-sesobreele.

CapítuloXLIII

Ela foiatéoshumanoscomoaMorte,maisaltaatémesmoqueAllanon,ocabelocinza longoetrançadocombeladonas,asvestesnegrasesvoaçandoaoredordeseucorpoesguio,umsussurrodesedanoprofundosilênciodaTorre.Eralinda,derostodelicadoedeproporçõesfinas,eapeletãopálida que parecia quase etérea. Tinha uma aparência intemporal, uma atemporalidade, como sefossealgoquesempreexistiraequesemprefosseexistir.Oshomens-gravetorecuaramquandoelaseaproximou,oestalardesuaspernasdemadeirafazendoumlevemurmúrionapenumbra.Amulherpassou por eles semolhar, com seus estranhos olhos violeta sem jamais deixar os três que jaziamfascinados em sua presença. Suasmãos estenderam-se, pequenas e frágeis, seus dedos curvando-secomoseafimdetrazê-losparaperto.

— Mallenroh — sussurrou Hebel o nome dela por uma segunda vez, com a voz cheia deexpectativa.

Elaparou,suas feiçõesperfeitasdesprovidasdeexpressãoaoolharparaovelho.Virou-separaEretriaefinalmenteparaWil.Ojovemestavatãogeladoquetremia.

—EusouMallenroh—disseelacomavozsuaveedistante.—Porqueestãoaqui?Ninguémfalou,osolhospresosnela.Abruxaaguardouummomentoepassouamãopálidana

frentedeles.—OVazioéproibido.Nenhumhumanoépermitidoaqui.OVazioéomeu lar edentrodele

tenhoopoderdevida emorte sobre todas as criaturas.Para aquelesquemeagradam, concedoavida.Paraquemmedesagrada,morte.Semprefoiassim.Sempreserá.

Elaolhouparacadaumdeles,cuidadosamente,fixandoosolhosvioletanosdeles.Porfim,seuolharpousouemHebel.

—Quemévocê,velhohomem?PorquevocêveioatéoVazio?Hebelengoliuemseco.—Euestavaprocurandopor...porvocê,acho.—Suaspalavrastropeçavamumasnasoutras.—

Eutrouxealgoparavocê,Mallenroh.Elaestendeuamão.—Oquevocêtrouxeparamim?Hebelpegouasacolaquecarregava,abriueremexeuseuconteúdo,procurando.Ummomento

depois,mostrouumafigurademadeirapolida,umaestátuaesculpidaemumpedaçodecarvalho.Era Mallenroh, reproduzida tão perfeitamente que parecia ter saído da escultura para vida. Elapegoua figuradasmãosdele e a examinou,passando seusdedos finos lentamentepela superfíciepolida.

—Muitobonita—disse,porfim.—Évocê—acrescentouHebel,rapidamente.Elavoltouaolhá-loeWilnãogostoudoqueviu.Osorrisoqueeladeuparaohomemfoifraco

egélido.—Conheçovocê—disseela,e fezumapausaenquantoseusolhosestudavamdenovoorosto

enrugado.—Muitotempoatrás,nasbordasdoVazio,quandovocêaindaerajovem.Eulhedeiuma

noite...— Eu lembrei — sussurrou Hebel apontando rapidamente para a figura de madeira. — Eu

lembrei...comovocêera.AospésdeHebel,Vagabundoencolheu-senochãodepedradatorreeganiu.Masovelhonãoo

ouviu.EstavacompletamenteperdidonosolhosdaBruxa.Elasacudiuacabeçagrisalhalentamente.—Foiumcapricho,tolo—sussurrouela.Segurandoaestátua,passouporele,indoparaondeEretriaseencontrava.Osolhosdanômade

ficaramarregaladoseassustadosquandoaBruxaaproximou-sedela.—Oquevocêtrouxeparamim?—AperguntadeMallenrohfoiumaprovocaçãoemmeioao

silêncio.Eretrianãotinhaoquedizer.Desesperada,olhouparaWiledepoisparaMallenroh.Amãoda

Bruxa passou novamente na frente dos seus olhos num gesto ao mesmo tempo reconfortante eimperativo.

—Coisabonita—Mallenrohsorriu.—Vocêtrouxeasimesma?OcorpoesguiodeEretriasacudiu-se.—Eu...não,eu...—Vocêse importacomesseaqui?—MallenrohapontousubitamenteparaWil.Virou-separa

encará-lo.—Eleseimportacomoutrapessoa,acho.Umajovemelfa,talvez?Éisso?Wil assentiu lentamente. Os olhos estranhos dela estavam fixos nos seus e suas palavras o

alcançavam,ousadaseinsistentes.—Évocêquecarregaamagia.—Magia?—Wilgaguejouaoresponder.Asmãosdelaescorregaramparadentrodasvestesnegras.—Mostre-me.SuavozeratãoconvincentequeantesqueWilOhmsfordpercebesseoqueestavafazendo,tinha

abertoamãoqueseguravaabolsadecouro.Elaassentiudeleve.—Mostre-me—repetiu.Incapazde resistir, o jovem jogou asPedrasÉlficasnamão estendida.Aninhadasnapalmade

suamão,brilhavamefaiscavam.Mallenrohinspiroufundoeergueuamãoparaelas.— Pedras Élficas — disse ela em voz baixa. — Azuis para aquele que procura. — Seus olhos

encontraramosdeWil.—Elassãoseupresenteparamim?Wil tentou falar,maso friodentrode si apertoueaspalavrasnãovinhamaté seus lábios.Sua

mãotravounafrentedesienãoconseguiurecolhê-las.OsolhosdeMallenroholhavamfundonosseus;oqueeleviualioaterrorizou.ABruxaqueriaqueorapazsoubesseoquepodiafazercomele.

ABruxadeuumpassoparatrás.—Tufo—chamouela.Das sombras, surgiu uma pequena criatura peluda, parecia um gnomo com o rosto de um

homemenvelhecido.CorrendoparaoladodeMallenroh,acriaturaolhouorostofrio,ansiosa.—Sim,senhora.Tufosóserveasenhora.—Temospresentes...—Elasorriudeleve,avozsumindonosilêncio.Semmaisfalar,entregouaTufoaestátuadesimesmaemoveu-seatéficardenovonafrentede

Hebel.Tufocorreuatrásdela,encolhendo-senasdobrasdeseumanto.—Velho.—Eladirigiu-seaHebel,aproximandoseurostopálidododele.—Oquevocêquer

queeufaçacomvocê?Hebel pareceu ter recuperado os sentidos. Seus olhos não estavam mais distantes ao mirar

rapidamenteaBruxa,desviando-osemseguida.—Eu?Nãosei.Osorrisodelaeraduro.—Talvezvocêdevaficaraqui,noVazio.— Não importa — insistiu ele, como se de alguma forma soubesse que a Bruxa faria o que

quisessecomele.Ergueuosolhos.—Masoselfos,Mallenroh.Ajude-os.Vocêpode...—Ajudá-los?—Elaointerrompeu.Ovelhoassentiu.—Sevocêquiserqueeufique,eufico.Nãotenhomaisnada.Masosdeixeir.Dêaajudadeque

elesprecisam.Elariu,baixinho.—Talvezvocêpossafazeralgoparaajudá-los,velho.—Eujáfiztudooquepodia...—Talveznão.Seeudissessequehámaisalgumacoisaquevocêpodefazer,vocêestariadisposto

afazê-la,nãoestaria?Seusolhosfixaram-senovelho.WilviuqueaBruxabrincavacomele.Hebelpareceuinseguro.—Eunãosei.—Claroquesabe—disseelacomsuavidade.—Olheparamim.—Eleergueuacabeça.—Eles

sãoseusamigos.Vocêquerajudá-los,nãoquer?O jovem doVale Sombrio estava nervoso.Alguma coisa estava terrivelmente errada,mas não

conseguia semexer nem falar para avisarHebel. Viu de soslaio o rosto assustado de Eretria. Elatambémsentiaoperigo.

Hebeltambémsentia.Mastambémpressentiaquenãopodiaescapar.SeusolhosencontraramosdaBruxa.

—Euqueroajudá-los.Mallenrohassentiu.—Entãovocêofará,velho.Elaestendeuamãoparatocarorostodele.HebelviunosolhosdaBruxaoqueaconteceriacom

ele. Vagabundo ergueu-se, com os dentes à mostra, mas a mão de Hebel pousou na nuca docachorro e o segurou. O momento de resistir terminara. Os dedos da Bruxa acariciaramgentilmenteabochechabarbadadovelhoeocorpodeleficourígidoderepente.Não!Wiltentougritar,masjáeratardedemais.OmantodeMallenrohenvolveuHebeleVagabundoeelessumiramdevista.Omantoficouaoredordelesporummomentoedepoisdesceu.Mallenrohestavasozinha.Emumadasmãosseguravaumaesculturaperfeitamenteentalhadadovelhoedocachorro.

—Dessaforma,vocêpoderáajudá-losmelhor.—Elasorriufriamente.AmulherdeuasfigurasdemadeiraparaTufo,queasreuniu.Virou-separaEretria.—Agora,oquefareicomvocê,moçabonita?—sussurrouela.Ergueuamãoeapontoucomumúnicodedo.Eretriafoiforçadaaficardejoelhoscomacabeça

abaixada.Os dedos curvaram-se e asmãos de Eretria estenderam-se na direção da Bruxa, em umgestodesubmissão.Lágrimasescorriamporseurosto.Mallenrohobservousemdizernadaporummomento,depoisolhouabruptamenteparaWil.

—Você quer que ela vire uma estátua demadeira também?—A voz dela tinha um tom quecortavao jovemcomose fosseuma faca.Porém,ele continuava semconseguir falar.—Ouaelfa,talvez?Claroquevocêsabequeestoucomela.

Nãoesperoupelarespostaquesabiaqueelenãopoderiadar.Deuumpassoàfrente,suafiguraaltacurvando-seatéseurostoestarpróximoaodele.

—EuqueroasPedrasÉlficasevocêasdaráparamim.Vocêirádá-lasparamim,elfinho,poiseuseique se forem tomadasdevocê agora, serão inúteis.—Seusolhosvioletasoqueimavam.—Euqueroamagiadelas, entendeu?Euconheçoovalordelasmelhordoquevocê.Soumaisvelhadoqueestemundoesuasraças,maisvelhadoqueosDruidasquebrincavamemParanorcommagiaquedesdeentãopertencesóaminhairmãeamim.ÉassimcomasPedrasÉlficas.Apesardeeunãoser de linhagem élfica,meu sangue é o sangue de todas as raças e eu posso comandá-las. Porém,nemeupossoquebrar a lei que invocaopoderdelas.AsPedrasÉlficas têmde serdadasde livrevontade.Eassimserá.

Suamãoaproximou-sedorostodele,quaseotocando.—Tenhoumairmã,elfo;Moragécomoelachamaasi.PorséculosnósvivemosnoVazio,sendo

chamadas de Irmãs Bruxas, as últimas de nossa assembleia. Uma vez, há muito tempo, ela erroucomigoeeununcaaperdoei.Euteriame livradodela,porémnossospoderesseequivalemde talforma que nenhuma de nós consegue prevalecer. Ah, mas as Pedras Élficas são uma magia queminhairmãnãopossui,umamagiaquemepermitirádarumfimaela.Morag,odiosaMorag!Serádoce fazê-lame servir como estes homens de graveto! Será doce calar aquela voz odiosa! Ah, euespereidemaisparamelivrardela,elfinho.Demais!

A voz dela se ergueu enquanto falava, até as palavras ressoarem contra as pedras da torre,ecoando através da quietude profunda. O rosto belo e frio afastou-se do jovem, os braços finosdobrando-senasvestesnegras.WilOhmsfordconseguiasentirosuorescorrendoporseucorpo.

—AsPedrasÉlficas serão seupresenteparamim— sussurrou ela.—Meupresentepara vocêserásuavidaeasvidasdestasmulheres.Aceitemeupresente.Lembre-sedovelho.Penseneleantesdeescolher.

Ela parou quando a porta da torre abriu-se para deixar passar um grupo de homens-graveto.Eles vieram até a Bruxa, arrastando as pernas demadeira, reunindo-se ao redor dela.Mallenrohabaixou-sepertodelesporummomento,depoisendireitou-separaolharfriamenteparaWil.

—VocêtrouxeumdemônioparaoVazio—gritouela.—Umdemônio,depoisdetodosessesanos!Precisoencontrá-loedestruí-lo!Tufo,opresentedele!

A criatura peluda apressou-se e tirou a bolsa e as Pedras Élficas do jovem indefeso. O rostoenvelhecidoofitou,depoisserecolheuàsdobrasdomantodeMallenroh.ABruxaergueuamãoeWilsentiu-sefracoderepente.

—Lembre-se do que viu, elfo.—A voz dela pareceu distante.—Eu tenho o poder de vida emorte.Escolhasabiamente.

MallenrohpassouporWiledesapareceupelaportaaberta.Aforçadelecomeçoua falhar,suavisãoficouembaçada.Aoseulado,Eretriadespencounochãodatorre.

Eletambémcaiu.Aúltimacoisaquesentiuforamosdedosdemadeiraapertando-seaoredordeseucorpo.

CapítuloXLIV

–Wil.—Osomdeseunomesooucomoumecoperdidonaneblinanegraqueoenvolvia.Avozparecia vir de muito longe, flutuando pela escuridão para tocá-lo enquanto ele dormia. Eleremexeu-se devagar, sentindo como se estivesse preso e soterrado.Comgrande esforço, alcançoudentrodesimesmo,procurando.

—Wil,vocêestábem?AvozpertenciaaAmberle.Elepiscou,forçando-seaacordar.—Wil?Ela estava com a cabeça dele acomodada no colo e o rosto inclinado para perto do dele, seu

longocabelocastanhoenvolvendo-ocomoumvéu.—Amberle?—perguntou, sonolento, levantando-se comesforço.Estendeuosbraçospara ela

semdizermaisnadaeapertou-acontrasi.—Penseiquetivesseperdidovocê—conseguiudizer.— E eu, você. — A moça riu baixinho, os braços ao redor do pescoço dele. — Você está

dormindoháhoras,desdequeotrouxeramparacá.Ojovemassentiunoombrodela,subitamenteconscientedocheiropungentedeincensonoar.

Percebeuque erao incensoqueo fazia sentir-se tão tonto.Gentilmente, soltou a elfa eolhouaoredor.Estavampresosemumacelasemjanelas,escura,excetoporumaúnicaluzquevinhadeumrecipientede vidro suspensoporuma correntedo teto, outradaquelas luzesquenãoqueimavamóleooupicheenãosoltavamfumaça.Umaparededacelaeracompostadebarrasde ferropresasverticalmente na pedra do chão e do teto. Uma única porta abria-se nas barras, presa pordobradiças de um lado e uma imensa fechadura do outro.Dentro da sala, haviam colocado umajarradeágua,umabaciade ferro, toalhas, cobertores e três colchõesdepalha.Emumdeles jaziaEretria,quetinhaarespiraçãoprofundaeregular.Dooutroladodaparededebarrasdeferrohaviaumapassagemquelevavaatéumlancedeescadasedepoisdesaparecianaescuridão.

Amberleseguiuoolhardeleatéajovemnômade.— Acho que ela está bem, só está dormindo. Até agora, eu não tinha conseguido acordar

nenhumdevocêsdois.—Mallenroh—sussurroueleaolembrar.—Elamachucouvocê?Amberlesacudiuacabeça.—Mal faloucomigo.Naverdade,nocomeçoeusequer sabiaquemtinhame feitoprisioneira.

Oshomens-gravetometrouxeramaquieeudormiporumtempo.Depoiselaveio.Dissequehaviaoutraspessoasmeprocurando,que eles seriam trazidos até ela assimcomoeu fora.Depois ela sefoi.—Seusolhosverdescomoomarprocuraramosdele.—Elameassusta,Wil.Elaé linda,mastãofria.

—Elaéummonstro.Comoencontrouvocê?Amberleempalideceu.—Alguma coisame caçou eme fez entrar noVazio.Não a vi,mas podia senti-la, uma coisa

malignaquemeprocurava.—Elafezumapausa.—Corrioquantopudeedepoisrastejei.Porfim,

apenas desmaiei. Os homens-graveto devem ter me encontrado e me trazido até ela. Wil, foiMallenrohquemeusenti?

Ojovemsacudiuacabeça.—Não.FoioCeifador.Elaoencarousemfalarnadaporumtempo,depoisdesviouoolhar.—EagoraeleestánoVazio,nãoé?Ojovemassentiu.—ABruxajásabesobreele.Foiprocurá-lo.—Sorriusombriamente.—Talvezelessedestruam.Aelfanãosorriudevolta.—Comovocêconseguiumeencontrar?Wilcontou-lhetudoquelheaconteceradesdequeadeixaraescondidanosarbustosnabordado

Vazio—oencontrocomEretria,asmortesdeCepheloedosnômades,a recuperaçãodasPedrasÉlficas, a fuga peloVasto Ermo, o encontro comHebel e Vagabundo, a jornada para dentro doVazio,adescobertadohomem-gravetoeoconfrontocomMallenroh.FinalizoucontandosobreoqueaBruxafizeracomHebel.

—Pobrevelho—sussurroua elfa, com lágrimasnosolhos.—Elenãoqueriaomaldela.Porqueelafezissocomele?

—Ela não se importa nada comnenhumde nós— respondeu o jovem.—Ela só se interessapelas Pedras Élficas. Ela quer obtê-las, Amberle. Hebel foi só um exemplo conveniente para orestantedenós,principalmenteeu.

—Masvocênãoasdaráparaela,dará?Eleaencarou,inseguro.—Seissosalvarnossasvidas,eudou.Nósprecisamossairdaqui.Aelfasacudiuacabeçadevagar.—Achoqueelanãonosdeixarápartir,Wil,nemmesmosevocêderoqueelaquer.Nãodepois

doquevocêmecontousobreHebel.Eleficouemsilêncioporummomento.—Eu sei.Mas talvez consigamosbarganhar comela.Ela concordaria comqualquer coisapara

conseguirasPedras...—Parouderepente,apurandoosouvidos.—Shhh.Alguémestávindo.Em silêncio, observarama escuridãodo corredor atravésdasbarrasde ferroda cela.Ouviram

umlevefarfalharnasescadas.Umafiguraapareceudentrodoslimitesdaúnicaluz.EraTufo.—Algo para comer— anunciou alegremente, segurando uma bandeja com pedaços de pão e

fruta. Bamboleando até a cela, passou a bandeja por uma estreita abertura nas barras na base daporta.

—Boacomida—disseele,virando-separairembora.—Tufo!—chamouWil.Acriaturapeludavirou-se,encarandoojovem,curioso.—Vocêpode

ficareconversarconosco?—perguntouWil.Orostoenvelhecidoabriu-senumsorriso.—Tufovaiconversarcomvocês.WilolhouparaAmberle.—Otornozelo...vocêconsegueandar?Elaassentiu.—Estámuitomelhor—respondeuela.Wilpegouamãodelaealevouatéabandejadecomida.Semfalarmaisnada,sentaram-se.Tufo

agachou-senodegraumaisbaixodaescadaescura,inclinandoacabeça.Wilserviu-sedeumpedaço

depão,mastigoueassentiuemapreciação.—Muitobom,Tufo.Opequenosersorriu.—Muitobom.Wilsorriu.—Háquantotempovocêestáaqui,Tufo?—Muitotempo.Tufoserveasenhora.—Asenhorafezvocê,comoelafezcomoshomens-graveto?Acriaturapeludariu.—Homens-graveto, estalos. Tufo serve a senhora, mas não é feito demadeira.— Seus olhos

iluminaram-se.—Elfo,comovocê.Wilficousurpreso.—Mas você é tão pequeno. E esse cabelo?—Ele apontou para os próprios braços e pernas, e

depoisparaTufo.—Elafezissocomvocê?Oelfoassentiu,feliz.—Bonitinho,eladisse.FazerTufoficarbonitinho.Rolarepularebrincarcomhomens-graveto.

Bonitinho.—EleparoueolhouparaondeEretriadormia.—Coisabonita.—Apontou.—Amaisbonitadetodas.

—Oque você sabe sobreMorag?—pressionouo jovem, ignorandooóbvio interessedelenajovemnômade.

OrostodeTufofechou-senumacareta.—Moragmá.Muitomá.Elavivehámuito temponoVazio, ela e a senhora. Irmãs.Moragno

leste,asenhoranooeste.Homens-gravetoparaasduas,masTufosóparaasenhora.—ElassaemdoVazio?Morageasuasenhora?Tufosacudiuacabeça,solene.—Nunca.—Porquenão?—NãohámagiaalémdoVazio.—Tufodeuumsorrisoastuto.Aquilomostrou aWil algodo qual ele não tinha suspeitado.Opoder das IrmãsBruxas tinha

seus limites; não se estendia para fora do Vazio. Aquilo explicava por que nunca ninguém asencontraraemnenhumoutrolugarnasTerrasdoOeste.Começouaterumlampejodeesperança.SeeleconseguisseencontrarumaformadefugirdoVazio...

—PorquesuasenhoraodeiatantoMorag?—perguntouAmberle.Tufopensouporummomento.—Háumtempo,haviaumhomem.Bonito,asenhoradiz.Asenhoraoqueria.Moragtambém.

Cada uma tentou ter o homempara si.O homem...—Ele apertou asmãos, juntando os dedos edepoisosesticando.—Nãomais.Sefoi.—Elesacudiuacabeça.—Moragmatouohomem.Moragmalvada.

Mallenrohmalvada,pensouWil.Dequalquermodo,ficoubastanteclarocomoasIrmãsBruxassesentiamemrelaçãoumaàoutra.OrapazdecidiudescobriroquemaisTufosabiasobreoVazio.

—Vocêsaidatorredevezemquando,Tufo?—quissaberele.Orostoenvelhecidoabriu-senumsorrisoorgulhoso.—Tufoserveasenhora.Wilassumiuqueaquiloeraumsim.—VocêalgumavezjáfoiaoAltoPináculo?—perguntouele.

—Sepulcro—respondeuTufonamesmahora.Houve um silêncio repentino. Amberle apertou o braço deWil e o fitou. O jovem ficou tão

admiradocomabrusquidãodarespostaque,poruminstante,nãosoubeoquefalar.Recompondo-se, inclinou-se para frente, curvando o dedo conspirativamente. Tufo aproximou-se um pouco, acabeçainclinada.

— Túneis emais túneis que ventam e se retorcem— disseWil.— É fácil se perder naquelestúneis,Tufo.

Oelfopeludosacudiuacabeça.—Tufonãoseperde.—Não?—desafiouele.—Equantoàportafeitadeumvidroquenãoquebra?Tufopensouporummomento,depoisbateupalmas,animado.—Não,não,apenasfingeservidro.Tufoconheceovidrofingido.Tufoserveasenhora.WiltentavadecifraraquelarespostaquandoTufoapontouparatrásdeles.—Olha.Coisabonita,olá,olá.O jovemeaelfaviraram-se.Eretria sentava-senocolchãodepalha, finalmenteacordada,com

seus cachos negros caindono rosto enquanto ela esfregava a nuca. Lentamente, amoça ergueu orosto,começouafalar,porémpercebeuodedodeavisodeWilquandoeleopassousobreoslábios.Olhou além dele, para onde Tufo se encontrava, agachado a poucos metros das barras da cela,sorrindoabertamente.

—Coisabonita,olá—repetiuTufo,erguendoamãotentativamente.—Olá—respondeuela, insegura.AoverobreveacenodeincentivodeWil,deuoseusorriso

maisresplandecente.—Olá,Tufo.—Falarcomvocê,coisabonita.—Tufoesquecera-secompletamentedeWileAmberle.Eretria levantou sem firmeza, piscando, sonolenta, foi até onde estavam seus companheiros e

sentou-se.Examinourapidamenteasescadaseocorredor.—Qual éo seu jogoagora,Curandeiro?—sussurrouelapelo cantodaboca.Haviamedoem

seusolhosescuros,maselamanteveavozfirme.OjovemnãodesviouosolhosdeTufo.—Sótentandodescobriralgumacoisaquenostiredaqui.Elaassentiu,aprovando,efranziuonariz.—Quecheiroéesse?— Incenso.Não tenho certeza,mas acho que ele age como uma droga quando você o aspira.

Achoqueéoquenosdeixatãofracos.Eretriavoltou-separaTufo.—Oqueoincensofaz,Tufo?Oelfopeludorefletiuedeudeombros.—Cheirobom.Sempreocupações.—Mesmo— resmungou a jovem nômade, lançando um olhar paraWil. Ela ofereceu outro

sorriso largo para Tufo.—Você pode abrir a porta, Tufo?— perguntou ela, apontando para asbarras.

Tufosorriudevolta.—Tufoserveasenhora,bonita.Vocêfica.Eretrianãoalterouaexpressão.—Asenhoraestáaquiagora,natorre?—Elaestáprocurandoodemônio—respondeuTufo.—Muitomau.Quebratodososhomens-

graveto.—Seurostoenvelhecidotorceu-seemumacareta.—Elavaiferirodemônio.—Esfregoudois dedos juntos. — Fazer o demônio ir embora. — Ficou animado. — Tufo pode mostrar asestátuasdemadeiraparavocê.Homenzinhoecachorro.Nacaixa,coisasbonitascomovocê.

ApontouparaEretria,queficoupálidaesacudiuacabeçarapidamente.—Achomelhornão,Tufo.Apenasfalecomigo.Tufoassentiu,concordando.—Apenasfalar.Ouvindoaconversadeles,Wil teveuma ideiarepentina.Sentou-semaisà frente,agarrandoas

gradesdacela.—Tufo,oqueasenhorafezcomasPedrasÉlficas?Tufoofitou.—Nacaixa,asalvonacaixa.—Quecaixa,Tufo?Ondeasenhoraguardaacaixa?Tufo apontou desinteressado na direção do corredor escuro atrás de si, sempremantendo os

olhosfixosemEretria.—Fale,coisabonita—pediu.WilolhouparaAmberleedeudeombros.Nãoestavatendosucessoemdescobrirmaiscoisasde

Tufo.OsujeitoestavainteressadoapenasemfalarcomEretria.Ajovemnômadecruzouaspernasàsuafrenteeinclinou-separatrás.—Vocêpodememostraraspedrasbonitas,Tufo?Possovê-las?Tufoolhouaoredor,furtivamente.—Tufo serve a senhora.Tufo fiel.—Ele fez umapausa, considerandoo assunto.—Mostro a

vocêasfigurasdemadeira,bonita.Eretriasacudiuacabeça.—Apenasfale,Tufo.PorquevocêtemqueficaraquinoVazio?Porquevocênãovaiembora?—Tufoserveasenhora.—Tuforepetiusuarespostapreferidaeseurostoficouperturbado.—

NuncadeixaoVazio.Nãopodedeixar.Dealgumlugarnoaltodatorre,umsinotocouumavezeparou.Tufolevantou-se,apressado.—Asenhorachama—falouele,subindoasescadas.—Tufo!—Wilochamou.Opequenoparou.—Asenhoranosdeixaráiremboraseeulhederas

PedrasÉlficas?Tufopareceunãoentender.—Irembora?—SairdoVazio?—insistiuWil.Tufosacudiuacabeçarapidamente.—Nunca sair.Nunca. Figuras demadeira.—AcenouparaEretria.—Coisa bonita paraTufo.

Tomacontadacoisabonita.Falarmais.Falarmaistarde.Ele virou-se e subiu as escadas correndo, na escuridão. Sem falar nada, os prisioneiros

observaram-nopartir.Acimadeles,osinosoouporumasegundavez,seuecoressoandonosilêncio.

Wilfoioprimeiroafalar.—Tufopode estar errado.Mallenrohquermuito asPedrasÉlficas.Achoque elanosdeixaria

sairdoVazioseeuconcordasseemdá-lasaela.Agruparam-seencolhidosnafrentedaportadacela,olhosvagandoinsegurospelaescuridãoda

escadaria.— Tufo não está errado. — Amberle sacudiu a cabeça lentamente. — Hebel nos falou que

ninguémvematéoVazio.Edissequeninguémsaidaquitambém.— A elfa está certa — concordou Eretria. — A Bruxa jamais nos deixará partir. Ela nos

transformaráemfigurasdemadeira.—Bem,entãoémelhorpensarmosemoutroplano.—Wilagarrouasgradesdacela, testando

suaforça.Eretrialevantou-se,olhandocomcuidadoaescuridãodaescadaria.—Eutenhooutroplano,Curandeiro—dissebaixinho.Elacolocouamãodentrodabotadireita,separandoasdobrasinternasdecouro,eretirouum

bastão fino demetal com um estranho gancho na ponta. Depois, pôs amão na bota esquerda epuxou a adaga que mostrara aWil quando foram surpreendidos por Hebel na borda do Vazio.Ergueuaadagacomumsorrisorápido,eacolocoudevoltanabota.

—ComoMallenrohnãoviuisso?—perguntouWil,surpreso.Anômadedeudeombros.— Ela não se preocupou em fazer os homens-gravetosme revistarem. Estava ocupada demais

fazendonossentirmosindefesos.Foiatéaportadacelaecomeçouaexaminarafechadura.—Oquevocêestáfazendo?—Wilfoiatéela.—Estounostirandodaqui—declarouEretria,olhandocomcuidadopelafechadura.Lançou-

lheumolharbreveeapontouobastãodemetal.—Éumagazua.Nenhumnômadeandaporaísemuma.Várioscidadãosmalinformadosgastamseutempotentandonosmantertrancados.Achoquenãoconfiamemnós.—PiscouparaAmberle,quefranziuocenho.

—Talvezalgunsdelestenhambonsmotivosparanãoconfiaremvocês—sugeriuAmberle.— Provavelmente.— Eretria soprou a poeira da fechadura.— Todos nós enganamos uns aos

outrosàsvezes,nãoé,irmãAmberle?—Espere um pouco.—Wil abaixou-se ao lado dela, ignorando a interação.—Quando você

conseguirabrirestafechadura,oquevamosfazer?Anômadeolhou-ocomoseelefosseumidiota.—Nóscorremos,Curandeiro,omaisrápidoqueconseguirmos,paraomaislongepossíveldeste

lugar.Ojovemsacudiuacabeça.—Nãopodemos.Temosqueficar.—Temosqueficar?—repetiuela,incrédula.—Pelomenosporenquanto.—WilolhourapidamenteparaAmberleetomouumadecisão.—

Eretria, acho que agora é uma boa hora para deixar de lado algumas das mentiras que vocêmencionou.Escutecomatenção.

Gesticulou para que Amberle se unisse a eles, e os três se agruparam juntos na penumbra.RapidamenteWil explicou para a jovem nômade a verdade sobre quem Amberle era e sobre si,revelouporquehaviamidoparaoVastoErmoeoquerealmenteestavamprocurando.Nãodeixounadadeforadesuanarrativa,poisprecisavaqueEretriaentendesseaimportânciadaprocurapeloFogossangue. Estavam em grave perigo naquela torre, mas o perigo não diminuiria, mesmo queconseguissem fugir. Se alguma coisa acontecesse a ele, queria ter certeza de que a jovemnômadefariaopossívelparaqueAmberleescapassedoVazio.

EleterminoueEretriaoencarou,semfalarnada.Virou-separaAmberle.

—Étudoverdade,elfa?Achoqueacreditomaisemvocê.Amberleassentiu.—Étudoverdade.—EvocêestádeterminadaaficaratéencontrarotaldeFogossangue?Amberleassentiuoutravez.Ajovemnômadesacudiuacabeça,emdúvida.—Possoverasementequevocêestácarregando?AmberlepegouasementedaEllcrys,queestavacuidadosamenteenroladaemumtecidobranco

dentrodesua túnica.Desenrolou-oeestendeuasemente, sua formaperfeitaeprateada.Eretriaaencarou.Adúvidadeixouseusolhoseelavirou-senovamenteparaWil.

— Eu vou aonde você for, Wil Ohmsford. Se você diz que precisamos ficar, o assunto estáencerrado.Porém,aindaprecisamossairdestacela.

—Tudobem—concordouWil.—EdepoisprecisamosencontrarTufo.—Tufo?— Precisamos dele. Ele sabe ondeMallenroh escondeu as Pedras Élficas e sabe tudo sobre o

Sepulcro,seustúneiseseussegredos.EleconheceoVazio.Seotivermoscomoguia,entãoteremosumachancedefazeroqueprecisamoseaindaassimescapar.

Eretriaaquiesceu.— Primeiro, temos que fugir daqui. Vou demorar um pouco para entender essa fechadura.

Fiquembemquietosevigiemaescada.Cuidadosamente,colocouobastãodemetalnafechaduraecomeçouatrabalhar.WileAmberleforamparaoladoopostodasgradesdeferro,ondepoderiamobservarmelhoro

corredor escuroque levava ao lancede escadasda torre.Osminutos sepassaram, eEretria aindanãoabriraaporta.Olevearranhardobastãomexendo-senafechaduracortavaosilêncioprofundo,ajovemnômaderesmungandoquandoomecanismolheescapava.Amberleabaixou-se,encostando-seemWil,esuamãopousoudelevenojoelhodele.

—Oquevocêvaifazerseelafalhar?—sussurrouaelfadepoisdeumtempo.Wilmanteveosolhosnocorredor.—Elanãovaifalhar.Amberleassentiu.—Massefalhar,oquevaiacontecer?Elesacudiuacabeça.— Eu não quero que você dê as Pedras Élficas paraMallenroh— anunciou Amberle em voz

baixa.—Nósjádiscutimosisso.Tenhoquetirarvocêdaqui.—AssimqueelativerasPedras,elavainosdestruir.—Nãoseeulidarcomissodamaneiracerta.—Escute!—AvozdeAmberlesoouzangada.—Mallenrohnãoseimportacomavidahumana.

Humanos não servem para nada a seus olhos, além da utilidade que têm para ela. Hebel nãoentendeuissoquandoaencontroupelaprimeiravez,sessentaanosatrás.Tudooqueeleconseguiuenxergarfoiabelezaeamagiacomqueelaseenvolvia,ossonhosqueelateceucomsuaspalavras,aimpressãoqueeladeixoucomoencontro; tudofabricado.Elenãoviuomalqueestavaporbaixodissoatésertardedemais.

—EunãosouHebel.Elainspiroufundo.

—Não.Mas estoupreocupada,pois suapreocupação comigoe comoquevim fazer aqui estácomeçando a moldar seu julgamento. Você tem tanta determinação, Wil. Você acha que podesuperar qualquer obstáculo, não importa o quão formidável seja. Invejo sua determinação; é algoqueinfelizmentenãotenho.

Aelfapegouasmãosdeleentreassuas.—Eusóqueroquevocêentendaquedependodevocê.Chamedoquequiser;masprecisodasua

força, da sua convicção, da sua determinação. Só que nem isso nem o que você sente por mimpodemdistorcerseujulgamento.Seforassim,estamosperdidos.

— Determinação é tudo que tenho — respondeu ele, os olhos indo para os dela por ummomento.—Enãoconcordoquevocênãotenhaessadeterminação.

—Mas não tenho,Wil. Allanon sabia disso quando escolheu você para sermeu protetor. Elesabia, acho, como sua determinação seria importante para nossa sobrevivência. E sem isso,Wil,estaríamosmortoshámuito tempo.—Ela fezumapausa, suavoz tornando-seaindamaisbaixa,apontode ficarquase inaudível.—Masvocê está erradoquandodizque tenhoessadeterminação.Nãotenho.Nuncative.

—Nãoacreditonisso.Elapercebeuqueeleolhousubitamenteparabaixo.—Vocênãomeconhecetãobemquantoachaqueconhece,Wil.Eleestudouorostodela.—Oqueissoquerdizer?—Querodizerquehácoisassobremim...—Elafezumapausa.—Querodizerquenãosoutão

fortequantogostariadeser;nemtãocorajosanemtãodignadeconfiançaquantovocê.Lembra-se,Wil,dequandocomeçamosajornadanoRefúgioFirme?Vocênãomeachavagrandecoisa.Queroquevocêsaibaqueeutambémnãomeachavagrandecoisa.

—Amberle,vocêestavaassustada.Issonão...—Ah,euestavamesmoassustada—interrompeuela.—Aindaestou.Emeumedoéarazãode

tudoqueaconteceu.À porta da cela, Eretria resmungou zangada e recostou-se, olhando a barreira ainda

completamentetrancada.LançouumolharaWilevoltouatrabalhar.—Oquevocêestátentandomedizer,Amberle?—perguntouWilemvozbaixa.Amberlesacudiuacabeçalentamente.—Achoqueestoutentandocriarcoragemobastanteparadizeraúnicacoisaquenãofuicapaz

demeobrigaralhedizerdesdequecomeçamosestajornada.—Elavoltouaolharointeriorescurodapequenacela.—Achoquequerodizeravocêagoraporquenãoseisevouteroutrachance.

—Entãodiga.—Eleaencorajou.Amberleergueuseurostoinfantil.—OmotivopeloqualdeixeiArborlonenãocontinueicomoumaEscolhidaaserviçodaEllcrys

foiporquefiqueicomtantomedodelaquenãoconseguiasuportarsequerficarporperto.Seiqueparece bobagem, mas me escute, por favor. Nunca contei isso a ninguém. Acho que minha mãeentendia,masninguémmaisentendeu.Nãopossoculpá-los.Poderiatermeexplicado,maspreferinãofazê-lo.Sentiquenãopodiacontaraqualquerum.

Elafezumapausa.— Depois que fui escolhida por ela, foi difícil para mim. Eu sabia o quão única fora minha

seleção. Sabia que era a primeiramulher a ser escolhida emquinhentos anos, a primeira desde aépocadaSegundaGuerradasRaças.Aceiteiisso,apesardemuitosteremquestionadoabertamente.

Porém,eueraanetadeEventineElessedil;nãoera tãoestranhoqueeu fosseescolhida,pensei.Eminha família,principalmentemeuavô, ficoumuitoorgulhosa.Masdescobriquea singularidadedeminhaseleção iaalémdo fatodeeusermulher.Desdeomeuprimeirodia, tudoeradiferentepara mim em relação aos demais Escolhidos. Todos sabiam que a Ellcrys raramente falava comalguém. Praticamente não se sabia de casos em que ela conversasse com os Escolhidos depois daescolha,salvoemrarosmomentos.Mesmoassim,umaconversacomelapoderiaacontecerumavezduranteotempototaldeserviçodeumEscolhido.Masdesdeoprimeirodia,elafaloucomigo;nãoumaouduasvezes,masdiariamente;nãoumpouco,nãovagamente,mas conversas longas e commotivos.Eusempreestavasozinha,osdemaisnãoestavamlá.Elamediziaquandoir,eeuia,claro.Eume sentia incrivelmente honrada; eu era especial para ela,mais especial do que qualquer umhaviasido,esentiamuitoorgulhodisso.

Elasacudiuacabeçacomalembrança.—Nocomeço,foimaravilhoso.Elamecontoucoisasqueninguémmaissabia,segredosdaterra

edavidaquetinhamsidoperdidosfaziaséculos,perdidosouesquecidos.ElamefaloudasGrandesGuerras,dasGuerrasdasRaças,donascimentodasQuatroTerrasede seuspovos,de tudooqueaconteceradesdeocomeçodonovomundo.Elamecontouumpoucodecomoeraovelhomundo,massuamemóriaerafalhasobretemposmaisantigos.Partedoqueelamecontoueunãoentendi.Masentendimuitacoisa.Entendioqueelamefalousobrecriarcoisas,plantarenutrir.Essefoiopresentedelaparamim,ahabilidadedefazercoisascrescerem.Foiumbelopresente.Easconversaserammágicas,sódesercapazdeouvirsobretantascoisasmaravilhosas.Issofoinocomeço.Quandoeu tinha acabado de começar meu serviço e as conversas eram tão novas e empolgantes que euaceitava o que estava acontecendo sem questionar. Mas logo algo muito desagradável passou aacontecer. Podeparecer estranho,Wil, porémeu sentia que estavameperdendonela.Comecei aperdertodoosensodequemeuera.Eunãoeramaiseu;eraumaextensãodela.Aindanãoseisefoiintencional ou se foi só o resultadonatural denossa amizadepróxima.Naquela época, achei quefosse intencional. Fiquei assustada com o que estava acontecendo comigo; assustada e depoiszangada.Seráqueesperavamqueeu,comoEscolhida,deixassedeladominhapersonalidade,minhaidentidade, para satisfazer às necessidades dela? Senti que estavam brincando comigo, que estavasendousada.Eraerrado.OsoutrosEscolhidoscomeçaramavermudançasemmim.Começaramadesconfiar, acho, que havia algo diferente na minha relação com a Ellcrys. Senti que eles meevitavam,quemeobservavam.Aomesmo tempo, eu estavameperdendonela,umpoucomaisdemim sumindo a cada dia. Fiquei determinada a impedir isso. Comecei a evitá-la assim como osdemaisEscolhidosmeevitavam.Eumerecusavaa ir até elaquandoelapedia;mandavaoutroemmeu lugar.Quando elame perguntou o que estava acontecendo, eu não disse. Estava commedodela,envergonhadademimmesmaebravacomasituação.

Amberleapertouoslábios.— Finalmente, decidi que o verdadeiro problema era que eu não deveria ter sido uma dos

Escolhidos.Nãomeachavacapazdelidarcomaresponsabilidade,deentenderoqueesperavamdemim. Ela havia feito algo comigo que não tinha feito com nenhum outro escolhido; algomaravilhoso, e eu não era capaz de aceitar. Era erradome sentir desse jeito; nenhumdos outrosteriareagidocomoreagi.MinhaseleçãocomoEscolhidaforaumerro.Então,euparti,Wil,poucomaisdeummêsdepoisdaescolha.Conteiàminhamãeeaomeuavôqueestavaindoembora,quenãopodiacontinuaraservir.Nãolhesconteioporquê.Nãoconseguifazerisso.MeufracassocomoumaEscolhida jáera ruimobastante.Mas fracassarporqueelapediacoisasdemimquequalquerumteriaprazerematender...não.Eupodiaadmitirparamimmesmaoquehaviaacontecidoentre

mimeaEllcrys,masnãopodiaadmitirparamaisninguém.Minhamãepareceuentender.Meuavônão.Trocamospalavrasdurasquenosdeixaramamargos.SaídeArborlonemdesgraçaperantemimmesmaeperanteminha famíliaemeupovo,determinadaa jamaisretornar.Fizumvotoélficodeservirforadaminhaterra;eufariameularemumadasoutrasterraseensinariaoquesabiasobreapreservaçãodaterraedavida.ViajeiatéencontraroRefúgioFirme.Lásetornoumeular.

Havialágrimasemseusolhos.— Mas eu estava errada. Posso dizer isso agora, preciso dizer isso. Eu abandonei uma

responsabilidadequeeraminha.Fugiporcausadosmeusmedoseminhasfrustrações.Desaponteiatodose,nofim,deixeimeuscompanheirosEscolhidosparamorreremsemmim.

—Vocêestásendomuitoduraconsigo.—Wilaadmoestou.—Estou?—Torceuaboca.—Tenhomedodenãoserduraobastantecomigomesma.Setivesse

ficadoemArborlon,talvezaEllcrystivesseavisadomaiscedosobresuamorte.Eracomigoqueelafalavaantes,nãocomosoutros.Elessequerperceberamoqueestavaacontecendo.Elapoderiaterfalado comigo cedo o bastante para encontrar o Fogossangue e plantar a semente antes que aProibiçãocomeçassearuireosdemôniosaatravessar.Vocênãovê,Wil?Seéassim,todososelfosmortospesamnaminhaconsciência.

—Éigualmentepossível—apontouojovem—,quesevocênãotivessesaídodeArborlon,mastivesseficado,comodiz,oavisodaEllcrysnãotivessevindoantes.Entãovocêestariamortacomosoutrosenãoteriautilidadenenhumaparaoselfosqueaindavivem.

—Vocêestámepedindoparajustificarminhasaçõescomconhecimentodoquejáaconteceu.Elesacudiuacabeça.—Estoupedindoparaquevocênão tenteadivinharoquepoderia teracontecidonopassado,

baseando-se no que já aconteceu. Talvez a Ellcrys quisesse que tudo se desse da forma queaconteceu. Você não tem como saber.— Endureceu a voz.— Agorame escute por umminuto.SuponhaqueaEllcrystenhadecididoescolheroutrodeseuscompanheiroscomoaquelecomquemelafalaria.EsseEscolhidoteriareagidodeformadiferentedecomovocêreagiuaessaexperiência?Outrapessoateriasidoimuneàsemoçõesqueafetaramvocê?Achoquenão,Amberle.Euconheçovocê. Talvez eu a conheça melhor do que qualquer um, depois do que passamos. Você tem umcaráterforte,temconvicçãoe,apesardoquediz,temdeterminação.

Eleergueuoqueixodelanasmãos.— Eu não conheço ninguém, Amberle, que teria aguentado esta jornada e todos os perigos

melhordoquevocê.Achoqueestánahorade lhedizeroquevocêfeztantaquestãodemedizer.Acrediteemsi.Parededuvidar.Paredesearrepender.Apenasacredite.Confieumpoucomaisemvocê.Amberle,vocêmereceessaconfiança.

Aelfachoravaabertamente,emsilêncio.—Eugostomesmodevocê.—Eeudevocê.—Eleabeijounatesta,semduvidarmais.—Muito.A elfa baixou a cabeça no ombro de Wil, que a abraçou. Quando ela o olhou de novo, as

lágrimashaviamsecado.—Queroquevocêmeprometaumacoisa—disseAmberle.—Tudobem.—Queroquevocêmeprometaquevaigarantirqueeuchegueaofinaldessamissão;queeunão

hesite,queeunãopercaocaminho,queeunão falhenoquevimfazer.Sejaminha forçaeminhaconsciência.Prometa.

Elesorriugentilmente.

—Prometo.—Aindaestoucommedo—confessouela,suavemente.Naportadacela,Eretrialevantou-se.—Curandeiro!Wilficoudepé,Amberlecomele,ejuntoscorreramatéondeestavaanômade.Osolhosnegros

deladançavam.Semdizernada,eladeslizouobastãodemetaldafechaduraedevolveu-oàsuabota.PiscandoparaojovemdoValeSombrio,elasegurouasgradesdeferrodaportaepuxou.Aportaseabriusilenciosamente.

WilOhmsforddeuumsorrisotriunfante.AgorasóprecisavamencontrarTufo.

CapítuloXLV

Eles o encontraramquase imediatamente.Haviam saído da cela, ido até a escada e olhado paracimana escuridão, tentandover alguma coisa, quandoouviramo somdepassos se aproximando.Rapidamente,WilcolocouEretriadeumladodaabertura,enquantopuxavaAmberleparaooutro.Encostados à pedra, esperaram ansiosos, ouvindo os passos se aproximarem, um som ligeiro efamiliarqueWilreconheceunamesmahora.

Segundosdepois,orostoenvelhecidodeTufosaiudaescuridãodapassagem.—Moçabonita,olá,olá.FalecomTufo...?AmãodeWilagarrouopescoçodelecomforça.Tufoarquejoucommedo,lutandoloucamente

paraselibertarenquantoojovemolevantavadochão.—Fiquequieto—sussurrouWil,avisando-o,virandoapequenacriaturaparaquepudessever

quemocapturara.Tufoarregalouosolhos.—Não,nãopodemsair!—Silêncio!—Wilo sacudiuatéqueele ficasseparado.—Maisumapalavraeeu torcerei seu

pescoço,Tufo.Tufo assentiu freneticamente, seu corpo peludo retorcendo-se com o aperto do jovem. Wil

apoiou-seemumjoelho,baixandoseuprisioneiroatéochão,aindasegurando-ofirmementepelopescoço.OsolhosdeTufoestavamarregalados.

—Agora,escutecomatenção,Tufo—disseo jovem.—EuqueroasPedrasÉlficasdevolta,evocêvaimemostraroqueaBruxafezcomelas.Entendeu?

Tufosacudiuacabeçacomviolência.—Tufoserveasenhora.Nãopodesair!—Estãonumacaixa,vocêdisse...—Wiloignorou.—Leve-meatéondeeladeixaessacaixa.—Tufo serve a senhora! Tufo serve a senhora!— repetiu o sujeitinho, desesperado.—Vocês

ficam!Voltem!Wil ficoumomentaneamente semsaberoque fazer.MasEretriadeuumpassoà frente, como

rostomorenoa centímetrosdo rostodeTufo.Retiroua adagadabotanummovimento rápidoeapertou-acontraopescoçodacriatura.

—Escute,suabolinhadepelo!—disseela.—SevocênãonoslevaratéasPedrasÉlficasagora,voucortarsuagargantadeorelhaaorelha.Vocênãovaiserviramaisninguémentão.

Tufofezumacaretahorrível.—Nãomachuque Tufo,moça bonita. Gosto de você,moça bonita. Preocupo com você. Não

machuqueTufo.— Onde estão as Pedras Élficas? — perguntou ela, apertando a lâmina da adaga mais forte

contraagargantadoelfo.Abruptamente,osinodatorresoou—uma,duas,trêseporfim,quatrovezes.Tufosoltouum

gemido assustado e debateu-se violentamente contra o aperto de Wil. O jovem o chacoalhava,irritado.

—Oqueestáacontecendo,Tufo?Oqueéisso?Tuforelaxouocorpo,indefeso.—Moragvem—ganiuele.—Morag?—Wilsentiuumasúbitaondadedesespero.OquetrariaMoragatéafortalezadesua

irmã?OlhourapidamenteparaAmberleeEretria,masaconfusãonosolhosdelasrefletiaasua.—Tufoserveasenhora—murmurouTufo,ecomeçouachorar.Wilolhouaoredorapressadamente.—Vamosprecisardealgumacoisaparaamarrarasmãosdele.EretriasoltouafaixaenroladaemsuacinturaeausouparaamarrarasmãosdeTufoàscostas.

Wilpegouaspontassoltaseasenrolouemumadasmãos.—Escute,Tufo.—Eleergueuoqueixodoelfochorãoatéseusolhosseencontrarem.—Escute!

—Tufoprestouatenção.—QueroquevocênosleveatéondeasenhoramantémasPedrasÉlficas.Sevocêtentarfugiroutentardaralgumalerta,sabeoquevailheacontecer,nãosabe?

EsperoupacientementeatéTufoassentir.—Entãonãosejatoloobastanteparatentar.ApenasnosleveatéasPedrasÉlficas.Tufocomeçouadizeralgumacoisa,masEretrialevantouaadaganamesmahora.Resignado,ele

assentiumaisumavez.—Bomparavocê,Tufo—Wilsoltouoqueixodele.—Agoravamos.Emfila,subiramaescada,comTufoàfrente,Wilumpassoatrás,segurandocomfirmezaafaixa

que prendia os braços de Tufo, e Eretria e Amberle na retaguarda. Andaram pela escuridão, osolhossemenxergar,asmãostateandoparaencontrarasparedesdepedradapassagem.Porváriosminutos,ficaramnaescuridãototal,atéumanovaluzbrilharadianteeumalevesilhuetadaescadareaparecer.Umglobosimilaraoqueiluminavaacelasurgiunocampodevisãoeelespassaramporbaixodele.Àfrente,outrosbrilhavamnapenumbra.

A subida continuou; a escada espiralou-se para cima, atravessando a torre. De tempos emtempos, passavampor corredores escuros e vazios, túneis na pedra, e portas isoladas e trancadas,mas Tufo não diminuiu o passo.Os sinos haviam parado depois daquele primeiro toque; a torretoda se encontrava envolta em silêncio. O cheiro almiscarado do incenso queimava mais forteconforme subiam, enchendo a escada com seu odor pungente. Deixava os três tontos e elestentavam não aspirá-lo.Wil começou a ficar desconfiado ao ver os minutos se passarem. TalvezTufofossemaisespertodoqueparecia.

Mas alcançaram uma plataforma e Tufo parou. Apontou para um corredor fracamenteiluminado que se estendia por uma curta distância e terminava numa porta imensa. De trás daporta,ouviamosomdevozes.

Wilinclinou-serapidamente.—Oqueéisso,Tufo?Orostoenvelhecidoestavafurtivoemolhadodesuor.—Morag—sussurrouTufo,sacudindoacabeça.—Muitoruim.Muitoruim.Wilendireitou-se.—NãotemosquenospreocuparcomMorag.OndeestãoasPedrasÉlficas?Tufoapontouparaaportanovamente.Wilhesitou,encarando-o,inseguro.SeráqueTufofalava

averdade?Eretriaajoelhou-sedoladodapequenacriatura,destavezfalandocomvozgentilesemmostraraadaga.

—Tufo,vocêtemcerteza?Tufoaquiesceu.

—Semmentiras,moçabonita.NãomachuqueTufo.—Nãoqueromachucarvocê—assegurouela,seusolhosmantendo-se firmesnosdele.—Mas

vocêserveasenhora,nãoanós.Podemosacreditarnoquevocêdiz?—Tufoserveasenhora.—Tufoconcordoufracamenteedepoissacudiuacabeça.—Tufonão

mente.Pedrasbonitasali,depoisdograndecorredor,nasalapequenanotopodaescada,nacaixacomfloresbonitas,vermelhasedouradas.

Eretriaoencaroupormaisummomento,depoisolhouparaWileassentiu.Acreditavanele,eraoquedizia.Wilassentiudevolta.

—Háoutramaneiradechegarmosàcaixa?—Wilpressionouopequenoelfo.Tufosacudiuacabeça.—Umaporta.—Apontouparaocorredor.Wilofitouemsilêncioporuminstante,egesticulouparaqueosoutrososeguissem.Semfazer

barulho, arrastou-se pelo curto corredor até estar na frente da porta. Do outro lado, vozeserguiam-se,agudasezangadas.Oquequerqueestivesseacontecendoali,Wilnãoqueriaparticipar.Inspiroufundoe,lentamente,comtodoocuidado,soltouatrancaqueprendiaaportaepuxou.Aportaabriuapenasumafresta.Ojovemespiouporela.

Do outro lado, ficava o salão onde Mallenroh os capturara, imenso e cheio de sombras,fracamenteiluminadoporumpunhadodasestranhasluzessemfumaçaquependiamcomoaranhasdeumtetoinvisível.Imediatamentenafrentedaporta,ochãodesciaemumasériededegrausemsemicírculo até o piso do salão. Ali, centenas de homens-graveto encontravam-se apertados unscontra os outros, circundando duas figuras em negro que se encaravam amenos de dez passos egritavamcomosefossemgatosbrigando.

Wil Ohmsford observou. As Irmãs Bruxas, Morag e Mallenroh, as últimas de sua assembleia,amargas inimigas em um conflito de séculos esquecido por todos, exceto por elasmesmas, eramgêmeas idênticas.As vestes negras esvoaçavampara trás de suas figuras altas, o cabelo cinzento etrançado com beladonas, pele branca e perfeita, fantasmagóricas na escuridão — era como umespelho. As duas eram requintadamente formadas, esguias e delicadas. Mas naquele momento, abeleza estava manchada pelo ódio que contorcia suas feições e endurecia os olhos violeta. Aspalavras delas alcançaram o jovemdoVale Sombrio,mais baixas, já que a gritaria parara, porémduraseferinas.

—Meupoder é tão forte quantoo seu, Irmã, enão temonadadoque vocêpossa fazer.Vocêsequerconseguememanterforadesteseuterrívelrefúgio.Somoscomopedraerocha,enenhumadenósprevalecerá.—Aquefalavabalançouacabeça,debochando.—Masvocêmudariaisso,Irmã.Você procuraria se armar commagia que não lhe pertence. Fazendo isso, você trará um fim aonossodomíniocompartilhadosobreoVazio.Tolice,Irmã.Vocênãopodemantersegredosdemim.Eu conheço suas intenções tanto quanto vocêmesma.— Ela fez uma pausa.— E eu sei sobre asPedrasÉlficas.

—Vocênãosabedenada—berrouaoutra,queWilviuserMallenroh.—Saiademinhacasa,Irmã.Váenquantoaindaconsegue,oudescobrireiumaformadefazervocêdesejarterfeitoisso.

Moragriu.—Cale-se,suatola.Vocênãomeassusta.Vouemboraquandotiveroquevimbuscar.—AsPedrasÉlficas sãominhas!—exclamouMallenroh.—Eu as tenho e ficarei comelas.O

presenteeraparamim.— Irmã, nenhum presente será seu se eu não quiser. Poder igual ao das Pedras Élficas deve

pertenceràquelaqueestámelhorpreparadaparausá-lo.Estasoueu.Semprefuieu.

—Vocênunca foiamelhorpreparadaparanada, Irmã—Mallenrohcuspiuaspalavras.—Eupermitiquevocêdividisseestevalecomigoporquevocêeraaúltimademinhas irmãs,eeusentiapenadealguémtãofeiaesempropósitocomovocê.Pensenisso,Irmã.Sempretivemeuquinhãodecoisasbonitas;masvocê,vocênãotemnadaalémdacompanhiadosseushomens-gravetomudos.—Suavozvirouumsibilo.—Lembra-sedohumanoquevocêtentoutirardemim,aquelebonitoqueerameuequevocêqueriatanto?Lembra-se,Irmã?Vocêperdeuatémesmoaquelehomembonito,nãofoi?Foitãodescuidadaqueodeixouserdestruído.

Moragempertigou-se.—Foivocêquemodestruiu,Irmã.—Eu?—Mallenrohriu.—Umtoqueseueelesecoudehorror.OrostodeMoragficoulívidoderaiva.—Dê-measPedrasÉlficas.—Nãodareinada!Encolhido e imóvel atrásda imensaportademadeira,WilOhmsford sentiu alguém tocar seu

ombroepuloudesurpresa.Eretriaespioualémdelepelafresta.—Oqueestáacontecendo?—Fiquelonge—sussurrouele,eseusolhosvoltaramparaoconfrontoqueacontecianosalão.MoragavançaraeestavadiretamentenafrentedeMallenroh.—Dê-measPedras.Vocêprecisadá-lasparamim.—Volte para o buracode onde saiu rastejando, lagarto.— zombouMallenroh.—Volte para

seuninhovazio.—Cobra!Vocêsealimentariadesuaprópriafamília!Mallenrohgritou.—Coisafeia!Saiaagora!AmãodeMorag saiu rapidamentededebaixode suas vestes edeuum forte tapano rostode

Mallenroh.O som ressoouno silêncio.Mallenroh cambaleou para trás, surpresa.Osmembros demadeira dos homens-graveto sacudiram-se enquanto eles se mexiam ansiosamente pelo salãocavernoso,afastando-sedasduasantagonistas.

AgargalhadadeMallenrohsoouagudaeinesperada.—Você édesprezível, Irmã.Vocênãopodeme ferir.Vápara casa.Espereque euvá até você.

Esperequeeulhedêamortequemerece.Vocênãovalesequersermantidacomoescrava.Moragavançoueagolpeoudenovo,umtaparápidoerepentinoquecausouumgritoderaiva

deMallenroh.—Dê-measPedrasÉlficas!—AvozdeMoragtinhaumtomdesesperado.—Euasterei,Irmã!

Euasterei!Dê-me!Ela investiucontraMallenroh, fechandoasmãosnagargantada irmã.Mallenroh foipara trás

denovo,comseubelorostocontorcidoderaiva.Ambascaíramnochãodatorre,arranhando-seeestapeando-secomogatos.Mallenrohlibertou-seeficoudepé.Estendeuumadasmãos.Nomesmoinstante, uma imensa raiz quebrou o chão aos seus pés e foi se enrolar com força ao redor deMorag, que se debateu. A raiz subiu, na direção da escuridão, carregando umaMorag frenética,crescendo, ficando alta e imensa enquanto se esticava para além do brilho das lâmpadas.Moraggritou. Abruptamente, a escuridão iluminou-se com um brilho repentino, e um fogo verdequeimouaraiz, transformando-aemcinzas.Araizencolheu-sesemvida,a fumaçagrossasubindoemespiraldeseusrestosnochão.Moragreapareceu,flutuandoparabaixonaescuridãocomoumaaparição,eficoudepénovamentenochãodatorre.

Mallenrohberroude frustaçãoeo fogoverdesurgiudeseusdedos,engolfandoa irmã.Moragcontra-atacou.Poruminstante,asduasestavamsendoconsumidaspelofogo,seusgritosenchendoosalão.OfogosumiueasIrmãsficaramcaraacaranovamente,altasformasnegrasquecirculavam,umpoucodistantesumadaoutra.

—Voumelivrardevocêdestavez—sussurrouMallenroh,suavozcheiadeumafúriagelada,esaltousobreairmã.

Morag resistiuà investidaeempurrouMallenrohdevolta.Novamenteo fogoverde surgiudeseusdedos.OgritodeMallenrohfoialtoeterrível,eeladesapareceuemummurodefumaça.Uminstante depois, emergiu poucos metros à direita, com fogo saindo de suas mãos. As Irmãsatacaram-se repetidamente, num redemoinho frenético. Faíscas de fogo verde choveram sobre osindefesoshomens-graveto;empoucotempo,dezenasdelesestavamemchamas.

Mais uma vez, as Irmãs aproximaram-se, atracando-se com selvageria, o fogo saindo de seusdedos.Asvestesnegrasesvoaçaramquandocaíramjuntas,eofogoexplodiucomoumimensopilardo chãodepedra embaixodelas.Umberrohorrível saiudasduas gargantasquando suasmãos seagarraramesuasformasaltasseaprumaramcomaforçadaquelabatalha.Aschamasespalhavam-secomo água por todos os cantos do salão, atingindo e queimando os homens-graveto. O calorexplodiu do pilar de fogo com tanta intensidade que passou pela fresta na porta atrás da qual ojovemeseuscompanheirosencontravam-seagachados,echamuscouseusrostos.

Atorreemsicomeçoua tremer,pedraemadeira libertando-seemlascasepedaçosquecaíamem cascata pela fumaça e pela escuridão. Wil viu o pilar de fogo subir das Irmãs para lamber,faminto, ospilaresdemadeiraque eramos suportesda torre.Oshomens-gravetoqueimavamemtodososcantos,espalhandoaschamaspelosalãotodo.

Wil ficoudepéapressadamente.Secontinuassemondeestavam,aschamas iriamaprisioná-los.Pior,a torretodapoderiacairesoterrá-los.Teriamquesairdalinaquele instante.Seriaperigoso,masmenosdoqueseficassemondeestavam.

EleempurrouTufoparaafrentedafrestanaporta.—Onde fica a sala com a caixa, Tufo?— Tufo gemia e soluçava.Wil o sacudiu, irritado.—

Mostreasala.Tufo apontou pela porta. Longe, à direta, quase do lado oposto do salão, havia uma escada

estreitaeespiraladaquesubiaatéumaplataformaeumaportasolitária.WilolhourapidamenteparaAmberle.Otornozelomachucadopoderiaatrapalhá-la.—Vocêconsegue?—perguntou.Amberleassentiuemsilêncio.OlhouparaEretria,quetambém

assentiu.Respiroufundo.—Entãovamos.ComTufodebatendo-seeaprisionadodebaixodeumbraço,Wilabriucompletamenteaporta

demadeiraeaatravessoucorrendo.Ocalordas chamasbateunele comoummuro, tostando seurosto, queimando sua garganta. Ele abaixou a cabeça, seguindo a parede da torre à sua direita edescendo os degraus em semicírculo. Homens-graveto corriam a esmo, mas Wil os empurrou,abrindocaminhoparasuascompanheiras.Desceramatéochãodatorre,desviando-sedosfocosdefogoespalhadosporlá,empurrandoeandandonadireçãodaescadadistante.

Abruptamente, o pilar de fogo lançou-se para cima numa explosão que os jogou ao chão.Confusos, levantaram-se e ficaram de joelhos, vendo a luta entre as duas irmãs intensificar-se. Ofogo subitamente começou amudar do verdemístico para um amarelo reluzente, cor de chamasverdadeiras,naturais.As Irmãsgritaram.O fogodesciapor seusmembrosesguios,pelamassadoslongoscabeloscinza.Elasestavamqueimando.

—Irmã!—gritouumanumlamentocheiodemedoecompreensão.

Houveocrepitardecarnequeimando;comrapidezsurpreendente,aconflagraçãocurvou-seaoredordasIrmãsBruxascomoumamortalhaeelasforamconsumidas.Numminuto,elasestavamali,presasnumabatalha furiosa;nooutro,haviamsumido. Imunesaopoderumadaoutra,nãoeramcapazes de sobreviver à união dos dois. Tudo o que restou foi um monte de cinzas e carneenegrecida.

WilouviuoarquejohorrorizadodeAmberle.Oshomens-gravetocaíam,desmontando-secomobonecasdepano,braçosepernasseparando-sedoscorpos,dedosencolhendo-seaténãorestarnadaalémdeumavastapilhademadeiramortaefumegante.Amagiaqueosconstruíraeosmantiveravivos morrera com as Irmãs Bruxas. No salão incandescente, nada estava vivo, além dos trêsforasteirosedeTufo.

Otempodelesestavaacabando.Engasgandocomafumaçaqueoenvolvia,Wilergueu-sedeumsalto.SegurandoTufocomforça,avançoupelaschamasepelafumaça,chutandooquerestavadoshomens-graveto, gritando loucamente para que Amberle e Eretria o seguissem. Tufo chorava eresmungava,masWiltinhapoucapaciênciaparaaquiloeoignorou,lutandoparasubiraescadanolado oposto da sala, galgando os degraus aos tropeços. No patamar, agarrou a maçaneta quemantinhaaportafechada,rezandoparaqueabrisse.Abriu.Comosolhosmarejando,agargantaemcarneviva,queimando,abriucaminhoparaentrar.

O rugido do fogo o seguiu, abafando os gritos frenéticos deTufo.A sala era um labirinto desedas escuras e beladona que se estendiam pelas paredes e por treliças de ferro. Ansiosamente, ojovemespiouaescuridão,finalmenteencontrandooqueprocurava.Emumamesadooutroladodacâmara, acomodada entre pencas de ornamentos e jarras de incenso e perfume, havia uma caixagrande e intricadamente entalhada, sua tampa adornada com flores pintadas de vermelho edourado.As Pedras Élficas!Uma alegria feroz o varreu. Tufo gritava loucamente,masWil não oouviu, confuso pelo calor e pela fumaça, preocupado em recuperar as Pedras Élficas. Ele estavavagamenteconscientedeEretriaeAmberleentrandonasalaatrásdesiquandofoiaostropeçosemdireçãoàcaixa.EstendiaamãoparaatampaquandoEretriagritouemavisoeoderrubou.

—Quantasvezesvouprecisarsalvarvocê,Curandeiro?—gritouelaparaserouvidaporcimadobarulhodofogo.Pegandoumabarradeferrodeumganchonaparede,foiatéumladodacaixaeesticouabarracuidadosamenteparaabrira tampa.Umamanchaverdepuloudedentrodacaixa,enrolando-secomfirmezanabarra.Rapidamenteajovemnômademartelouabarracontraochãodepedra,transformandoacoisaaindaenroladaaoseuredoremumacascasemvida.

Wilaencarou,horrorizado.Eraumavíbora.—Eleestavatentandoavisarvocê!—EretriaapontouparaTufo.Opequenoserestavabanhado

emlágrimas.Wil ficou tãoabaladoqueporummomentonãoconseguiu semovernemfalar.Umamordida

daquelavíbora...Eretriacutucouacaixademadeiracomsuaadaga,empurrando-adamesa.Acaixacaiunochãodacâmaraeumpunhadodepedraspreciosas e joias esparramou-se.Nomeiodelas,jaziaabolsadecouro.Ajovemnômadeapegou,segurando-aporummomentocomoseestivessedecidindo o que fazer com aquilo, e depois a entregou para Wil. Ele a pegou sem falar nada,afrouxouosnóseespiou.

Umbrevesorrisotocouseuslábios.AsPedrasÉlficaseramsuasmaisumavez.Umnovo tremor sacudiu a torre; no salão, umdos imensos pilares demadeira cedeu, caindo

numachuvadechamas.WilcolocouasPedrasÉlficasnatúnicaefoiemdireçãoàporta,puxandoTufoeEretriaconsigo.Tinhamdesairdaliimediatamente.

Porém,umsúbitomartelardedentrodeumdosimensosarmáriosdemadeiraofezparar—um

martelar que se misturava a gritos abafados e o rosnado grave de algum animal. Wil olhourapidamente para Eretria. Alguma coisa estava presa dentro do armário. O jovem hesitou porapenas ummomento. O que quer que fosse, merecia uma chance de sair da torre. Correu até oarmário e acionou a maçaneta que o fechava. As portas abriram-se e uma imensa forma escurapulounadireçãodeWil,jogando-oparatrás.GritossoarampelacâmaraenfumaçadaenquantoWiltentavaseprotegerdeseuatacante.Entãoacriaturafoipuxadarudementeparaoladoeumrostofamiliarsurgiu.

—Hebel!—exclamouWil,surpreso.—Para trás,Vagabundo!—Ovelhodeuum tapa forteno cachorro, estendendo amão.—O

queestáacontecendoaqui?Oqueeuestavafazendonaquelearmário,diabos?Wilficoudepé,inseguro.—Hebel!ABruxa,Mallenroh, ela transformouvocê emmadeira!Vocênão se lembra?—Ele

sorriualiviado.—Pensamosquetínhamosperdidovocê!Nãoseicomovocê...Amberlesegurouobraçodele.—Foiamagia,Wil.QuandoMallenrohmorreu,amagiadelatambémacabou.Foiporissoque

os homens-graveto desmontaram-se, a magia se foi. Deve ter acontecido isso com Hebel e ocachorro.

Umanovaondadefumaçapassoupelaportaaberta,eEretriagritou,ansiosa.— Precisamos sair daqui. — Wil foi em direção à porta mais uma vez, ainda carregando o

aterrorizadoTufodebaixodobraço.—TragaAmberle—disseparaHebel.Na plataforma, pararam, desanimados. O salão inteiro estava em chamas. Homens-graveto

incendiadoslotavamochão.Asmadeirasquesuportavamotetoemarcoencontravam-severgadasequebradas,sendocompletamenteconsumidaspelofogo.Mesmoasparedesdepedracomeçaramabrilharemtomvermelhocomocalor.Nafrentedosalão,asportasdeentradaestavamfechadasebloqueadas.Hesitantemente,Wil começouadescer a escada,procurandoatravésdas chamas edafumaçaumcaminhoqueolevasseatéasportas.

Subitamente,asportasabriram-secomumestrondo,batendocontraaspedrasporalgoqueasquebravampor fora.No fimda escadaria estreita,WilOhmsford e os outros pararam, surpresos,olhando através da muralha de fogo. A luz do dia espalhava-se pela abertura quebrada e Wilpensou, por apenas ummomento, ter visto uma forma sombriamover-se para o salão. Inseguro,encarouaschamas,tentandoconcluiroquetinhavisto.Teriaeleimaginadoaquelasombra...?

Aunspoucospassosatrás,Vagabundoagachou-serapidamente,rosnandoeganindo.Eentãoelesoube.OCeifador!Esquecera-sedoCeifador.—Tufo!—gritou ele, nervoso, sacudindoo elfo com tanta força queo rosto envelhecido foi

para frente epara trásdiantede si.—Comopodemos sairdaqui?Escute!Mostreoutro caminhoparasair!

—Tufo...sai...porali.—Umbraçoapontoucomfraqueza.Wil viu uma porta à esquerda deles, a uns vinte metros além do fogo. Ele sequer hesitou.

Falando para seus companheiros seguirem-no, tropeçou pelas chamas e pela fumaça até a porta.QuasepodiasentirarespiraçãodoCeifadorsobreseuombro.Emalgumlugaratrásdesinaquelesalão,eleestavavindoatrásdeles.

Alcançaram a porta. Engasgando e sufocando, Wil encontrou a maçaneta e a girou. Aquelaportatambémestavadestrancada.Empurrouosoutrosparaquefossemnafrente,depoisosseguiu,batendoaportaenquantodavaumsuspiroefechandoatrancacomforça.

Correram—descendoumaescadariaqueiaemespiralparamaisfundoporbaixodatorre,atravésdapenumbra levemente iluminadapelas lamparinas sem fumaça,naumidademofadaqueesfriavaseuscorposacalorados,tropeçandoecambaleando,seuspassosecoandopelaquietude.Ojovemsóse virou duas vezes para falar enquanto guiava os demais para fora da torre arruinada, uma parafalar o nome de seu perseguidor, outra para avisar que o Ceifador os encontrara, finalmente.Depois,ninguémmaisfalou.Sócorreram.

No fim da escada, uma passagem abria-se à frente, formando um túnel através da luz de umconjunto daquelas lâmpadas e torcendo-se até sumir de vista. Seguiram pelo corredor; WilcarregavaaformaencolhidadeTufo,quegemiaechoravaacadapasso;Hebel—comVagabundoaoseu lado—eEretriaapoiavamAmberle,queaindamancava, fracamenteapoiadano tornozelomachucado. A passagem contorcia-se e virava-se dentro da terra, indo primeiro numa direção,depoisemoutra,cheiadeinsetosquerastejavamepoeiraquevoavaconformepassavam.

Por várias vezes, Wil olhou para trás por cima do ombro. Algo se movera? Ouvira algumbarulho?Lágrimas embaçavamsuavisão e ele as limpou, irritado.Onde estavaoCeifador?Eleosrastrearapor todoocaminhodeArborlonatéaquele túnel.Estavaali,perto;podiasentir.Estavaali,caçando.

Adiante,apassagemterminavaeumasegundaescadariacurvava-separacima,escuraevazia.Aseus pés, o jovem parou até que os outros estivessem perto, e depois liderou rapidamente ocaminho pelas escadas. Por longosminutos, eles subiram pela escuridão, observando a curva dosdegrausdeslizarprovocativamenteà frente,procurandoossonsdacriaturaqueosperseguia.Masnãoouviramnadaalémdeseusprópriosmovimentos.Osilêncioenvolviaapassagemeaquelesqueapercorriam.

Aescadariaterminavaemumalçapão,umatravapresacomforçanapedra.Wilforçouatravaeaabriu,encostouseuombroeempurrouparacima.Comumabatidaabafada,oalçapãocedeu;aluzfracadeumdianubladoespalhou-sepelapassagem.Rapidamenteoshumanoseocachorrosaíramaostropeções.

Encontravam-se novamente noVazio, cinza, enevoado e silencioso.Atrás deles, a fortaleza daMallenroh, envolta em fumaça que se erguia entre as árvores e retorcia-se para baixo entre asmuralhaseofosso,despedaçava-selentamenteatéasruínas.

Aflorestaaoredorestavavazia.OCeifadornãoestavaemlugarnenhum.

CapítuloXLVI

Wilolhouaoredor,inseguro.Anévoaeaescuridãocobriamtudo,excetoascentelhasbrilhantesdofogoqueaindaqueimavadentrodatorredeMallenroh.Nadamaiseradistinguível.OjovemdoValeSombrionãotinhaamenorideiadeparaondedeveriamirdali.

—Hebel,ondeéoAltoPináculo?—perguntou,apressado.Ovelhosacudiuacabeça.—Nãotenhocerteza,elfo.Nãoconsigoenxergarnada.Wilhesitouedepoisseajoelhourapidamentenosolodafloresta,tirandoaformaencolhidade

Tufodebaixode seubraço.Tufo enterrarao rostonasmãos e seu corpopeludo estava enroladonuma bola. Por mais que tentasse, o jovem não conseguia fazer o pequeno elfo se desenrolar.Finalmente,desistiu,segurandoTufopelosombrosesacudindo-ocomurgência.

—Tufo,escute.Tufo,vocêprecisafalarcomigo.Olheparamim,Tufo.Acriaturaespiourelutanteporentreosdedos.Seucorposesacudia.—Tufo,ondeficaoAltoPináculo?—perguntouWildepressa.—Vocêprecisanoslevaratélá.Tufonãorespondeu,encarando-oatravésdosdedosseparadoscomoumacriançafascinadapor

ummomento,edepoisfechouosdedos.—Tufo!—Wilosacudiudenovo.—Tufo,meresponda!—Tufo serve a senhora!—exclamouo elfo subitamente.—Serve a senhora! Serve a senhora!

Serve...Wilsacudiu-ocomtantaforçaqueseusdentesrangeram.—Parecomisso!Elamorreu,Tufo!Asenhoraestámorta!Vocênãoaservemais!Tufoficouimóvelelentamenteasmãoscaíramdeseurosto.Elecomeçouachorar,comgrandes

soluçosquesacudiamtodoseupequenocorpo.—NãomachuqueTufo—implorouele.—BomTufo.Nãomachuque.Ele caiu enrolando-se de novo, chorando e rolando no chão como um animal ferido.Wil o

observou,semsaberoquefazer.—Muitobem,Curandeiro—Eretriasuspiroeaproximou-se.—Vocêquaseomatoudesusto.

Elevaisermuitoútilagora.—Elaagarrouobraçodojovemeoergueu,colocando-oforadeseucaminho.—Deixe-mecuidardisso.

WilfoiparaoladodeAmberleeobservaramemsilêncioajovemnômadeajoelhar-sedoladodeTufoeaninharoelfosoluçanteemseusbraços.Sussurrandosuavemente,elaoapertoucontrasieacariciouacabeçapeluda.LongosminutossepassaramefinalmenteTufoparoudechorar.Ergueuumpoucoacabeça.

—Moçabonita?—Estátudobem,Tufo.—AmoçabonitavaicuidardeTufo?— Eu vou tomar conta de você. — Ela lançou um olhar duro para Wil. — Ninguém vai

machucarvocê.— Ninguém machuca Tufo? — O rosto envelhecido ergueu-se para encontrar o dela. —

Promete?Eretriadeu-lheumsorrisoreconfortante.—Prometo.Masvocêtemquenosajudar,Tufo.Vocêfaráisso?Vocêvainosajudar?Opequenoassentiu,ansioso.—Ajudarvocê,moçabonita.Tufobonzinho.—Tufo bonzinhomesmo— concordou Eretria. Ela se inclinou paramais perto dele.—Mas

precisamosnosapressar,Tufo.Odemônio,oquenosperseguiuatéoVazio,aindaestánoscaçando.Seelenosencontrar,vainosmachucar,Tufo.

Tufosacudiuacabeça.—NãodeixemachucarTufo,moçabonita.—Não,ninguémvaimachucarvocê,Tufo,nãosenosapressarmos.—Elaacariciouabochecha

dele.—Masprecisamosencontraressamontanha...Curandeiro,qualéonomemesmo?—AltoPináculo—respondeuWil.Elaassentiu.—AltoPináculo.Vocêpodenosmostrarcomochegarlá,Tufo?Vocêpodenoslevarlá?Tufo olhou incerto paraWil e depois para além dele, para a torre que queimava. Seus olhos

ficaramfixosnatorreporummomentoedepoisvoltaramparaEretria.—Eulevovocê,moçabonita.Eretrialevantouepegouamãodele.—Agora,nãosepreocupe.Voutomarcontadevocê,Tufo.QuandopassaramporWil,anômadepiscou.—Eudissequevocêprecisariademim,Curandeiro.Eles misturaram-se à penumbra da floresta. Tufo liderava, passando como uma enguia pela

névoaepeloemaranhadodasárvores, amãodeEretriaapertadacomforçanadele.Hebel seguiacom Vagabundo, depois vinha Wil com o braço ao redor da cintura de Amberle para apoiá-laenquantoelamancavacomdificuldadeaoseu lado.Quase imediatamente,osoutroscomeçaramaaumentar a distância entre eles; tentando alcançá-los,Amberle tropeçou e caiu.Wil nãohesitou.Ele simplesmente pegou a garota élfica e continuou, aninhando-a nos braços. Para sua surpresa,Amberlenãoreclamou.Haviaesperadoisso,jáqueelaforaferozmenteindependenteportodasuajornada.Elaestavaquieta,descansandoacabeçanoombrodele,comosbraçossoltosàvoltadoseupescoço.Nãotrocaramumaúnicapalavra.

Wilrefletiusobreaquelecomportamentoporummomento,emseguidasuamentecorreuparaoutros assuntos. Já trabalhava em um plano para fugirem— não só do Vazio, mas do Ceifadortambém. Pois não adiantaria nada sair do Vazio, se não escapassem do Ceifador. Certamente, oVazioeraperigoso,maseraoCeifadorquerealmenteassustavaWil—umcaçadorincansável,quenadapareciasercapazdedeter,umacriaturaquedesafiavaas leisdarazãoedasprobabilidadesesimplesmentecolocavadeladoosobstáculosqueatrapalhavamsuabuscapelafrágilmenina-mulherque o jovem do Vale Sombrio carregava. Sabia que não podia deixá-lo encontrá-la. Mesmo asPedras Élficas, se encontrasse uma forma de liberar aquele poder fantástico, poderiam não ser obastanteparadeteraquelacriatura.Precisavamescapardela,erápido.

Pensouquetinhaosmeiosparaisso.EraoquintodiadesuadescidanoVastoErmo—oúltimodiaemquePerkvoariacomGenewenpelovaleantesdevoltarparacasa.Ojovemabaixouumadasmãosporummomentoparasentirocontornodopequenoobjetoquejaziaaninhadonobolsodasua túnica—oapitodeprataquePerk lhederapara convocarGenewen.Eraoúnico elo comojovemCavaleirodoVento,eWiloguardaracomcuidado.SabiaqueprometeraaAmberlequenão

chamaria omenino se a situação não fosse desesperadora,mas com certeza não poderia sermaisdesesperadora do que aquilo. Caso fossem obrigados a caminhar de volta pelo Vazio, depoisatravessar o Vasto Ermo e refazer todo o caminho pela parte inferior das Terras do Oeste paraalcançar a segurança de Arborlon, jamais conseguiriam. O Ceifador encontraria a trilha e ospegaria.Seria toliceacreditar emoutracoisa.Precisavamdeoutra formadevoltar, e aúnicaqueele conhecia era usando Genewen. O Ceifador continuaria atrás deles, assim como continuaraantes,masatéláestariamasalvoeforadoseualcance.

Talvez, ele acautelou-se. Talvez.Ainda precisavamde tempopara escapar, e o tempo que lhesrestava escorregava rapidamente entre seusdedos.Nãohaviamuito, para começar, e amaioria jápassara.OCeifadoroscaçava.MesmoqueotivessemdespistadonasruínasdatorredaIrmãBruxa,aindaconseguiria encontrá-los rápidoobastante.Para escapar,precisavamencontraroSepulcro,localizaroFogossangue,imergirasementedaEllcrys,ganharasalturasdoAltoPináculo,sinalizarPerk,quepodiaestaremqualquerlugaracimadoVastoErmo,subiremGenewen,seagranderocapudesse carregar a todos, e voar para um lugar seguro — tudo isso antes que o Ceifador osalcançasse.ErapedirmuitoeWilsabia.

AflorestaoarranhavaesufocavaenquantoeleseguiaaformaesguiadeEretria;galhosecipósbatiamemseurosto.AcomodouAmberlemaisperto.Oesforçodecarregá-la jáse faziasentiremseusbraços.Aoseuredor,aflorestajaziaimóvel.

RefletiuporummomentosobreArborloneoselfos.Àquelaaltura,osdemônios jádeviamteratravessado a Proibição e inundado as Terras doOeste, e o povo élfico devia estar envolvido nadefesa de sua terra natal.O terrível conflito queEventine tentara evitar estaria acontecendo. E aEllcrys?Allanonteriaencontradoumaformadeprotegeraárvoremoribunda?OpoderdoDruidateria sido forte o bastante para aguentar a investida dos demônios? Apenas o renascimento daEllcryspoderiasalvaroselfos,Allanondissera.Porém,quantotemporestavaantesqueatéparaissofossetardedemais?Perguntassemsentido,repreendeu-seWilOhmsford.Perguntasquenãopodiaresponder, pois não tinha como saber o que estava acontecendo fora do Vazio. Porém viu-sedesejando se possível Allanon o alcançasse, contasse alguma coisa do que estava acontecendo naterradoselfos,eofizessesaberqueaindadavatempo—seWilconseguisseencontrarumcaminhoparavoltar.

Odesesperootomou,repentino,assustadoremsuacerteza—comoseelesoubesseque,mesmoqueconseguissetersucessonoqueprocuravafazerali,aindaseriatardedemaisparaquemesperavaseuretorno.Esefosseassim...

WilOhmsfordnãodeixouopensamentosecompletar.Aqueleeraocaminhodainsanidade.Oterrenocomeçouaerguer-se,primeirogentilmente,edepoisderepente.Encontravam-senas

encostas doAlto Pináculo.Deslizamentos de pedra e amontoados de rochamaterializaram-se nomeio do emaranhado de árvores, e uma trilha estreita enrolava-se para cima na névoa.Prosseguiram. Gradativamente, a névoa começou a sumir e o teto da floresta se afastou deles.Largasfaixasdecéucinzaapareceramporfrestasentreasárvores,eapenumbradaparteinferiordafloresta começou a se dissipar em pequenas faixas de luz do sol. Lenta e cuidadosamente, osescaladores fizeram o caminho pelas encostas, tendo pequenos relances, através das árvores, doVazioespalhadoabaixodelesnummardegalhosemaranhados.

Abruptamente,asárvoresabriram-sediantedogrupoeviram-seemumpenhascoquedavaparaoVazioequeseestendiaabaixodelesatéasaltasmuralhasdoVastoErmo.Montesdearbustosemadeira surgiam de grandes touceiras de grama e espalhavam-se pela face do penhasco, até umaimensacavernaqueseabrianoAltoPináculocomoumagrandegargantaescura.

Tufo levou o pequeno grupo até a entrada da caverna, desviando-se do labirinto de arbustosdensos,parandobemàportaevirando-serapidamenteparaEretria.

—Sepulcro,moçabonita.Ali.—Eleapontouacaverna.—Túneisetúneisquesedobramesecurvam.Sepulcro.BomTufo.

AjovemnômadesorriudemodoreconfortanteeolhouparaWil.—Eagora?Wil avançoue analisou inutilmente a escuridão.ColocouAmberledepéporunsmomentos e

virou-separaTufo.Osujeitinhoescondeu-senamesmahoraatrásdeEretria,ocultandoorostonasdobrasdascalçasdela.

—Tufo?—chamouWil comgentileza,masTufonãoquerianadacomele.Wil suspirou.Nãohaviatempoparaaquelabobagem.

—Eretria,pergunteaelesobreaportafeitadeumvidroquenãoquebra.Ajovemabaixou-senovamenteatéestardenovoencarandoTufo.—Tufo, está tudo bem.Não vou deixar ninguémmachucar você.Olhe paramim, Tufo.—O

baixinhoergueuacabeçaesorriu,inseguro.Eretriaacariciouabochechadele.—Tufo,vocêpodenosmostraraportafeitadeumvidroquenãoquebra?Vocêconheceumvidroassim?

Tufoinclinouacabeça.—Jogaumjogo,moçabonita?JogacomTufo?Eretriasentiu-seperdida.OlhourapidamenteparaWil,quedeudeombroseassentiu.—Claroquepodemosjogar,Tufo.—Eretriasorriu.—Vocêpodenosmostraressaporta?OrostodeTufoenrugou-sedealegria.—Tufopodemostrar.Elesaltitou,correndoatéabocadacaverna,masvoltouparapegarnamãodeEretriaeapuxou

atrásdesi.Wilsacudiuacabeça,semteroquefazer.Tufoestavaumpoucoenlouquecido,fosseportudooqueaconteceradurante seuconfinamentonoVaziooupelochoquequesofreraaoperdersua senhora, e eraumgrande riscoacreditarqueelepodia levá-losatéa câmaradoFogossangue.Porém,nãotinhaescolha.Olhoudenovoparaaescuridãodacaverna.

—Euodiariameperderali—resmungouHebelaoseulado.Eretriapareciapensarigual.—Tufo,nãopodemosvernada.—Elaofezparar.—Precisamosarranjaralgumastochas.Tufocongelou.— Sem tochas, coisa bonita. Sem fogo. Fogo queima, destrói. Machuca Tufo. Fogo queima a

torredasenhora.Asenhora...Tufoserve...Ele se desmanchou subitamente; lágrimas encheram seus olhos e seus pequenos braços

agarraram-secomforçaaoredordaspernasdanômade.—NãomachucaTufo,moçabonita!—Não,não,Tufo—assegurouela,pegando-oeabraçando-o.—Ninguémvaimachucarvocê.

Masprecisamosdeluz,Tufo.Nãopodemosvernessacavernasemluz.Tufoergueuorostomanchadodelágrimas.—Luz,moçabonita?Ah,luz...háluz.Vem.Alitemluz.Resmungandomaisparasidoqueparaosoutros,eleos levoumaisumavezparaaentradada

caverna.Indoparaaparedemaispróxima,esticouamãoatéumpequenonichonapedraeextraiuum par das estranhas lamparinas. Conforme adentrava a caverna com eles, o interior cercado devidrosiaclareandocomamesmaluzsemfumaçaquequeimavanatorredaIrmãBruxa.

—Luz.—Tufosorriuansioso,entregandoaslamparinasparaEretria.

Elaaspegou,ficandocomumaeentregandoaoutraaWil.Ojovemvoltou-separaHebel.—Vocênãoprecisaprosseguirconoscosenãoquiser—ressaltouele.— Não seja estúpido — bufou o velho. — E se vocês ficarem perdidos aí? Vão precisar de

Vagabundoedemimparatirarvocêsdaí,nãovão?Alémdomais,querodarumaolhadanessetaldeSepulcro.

Wil podia ver quehaviapouco a ganhar caso continuassediscutindoo assunto.AssentiuparaEretria. A jovem apertou a mão de Tufo com força; segurando a lâmpada na frente dos dois,adentrouacaverna.WilergueuAmberlenosbraçoseseguiuEretria.HebeleVagabundoiamatrás.

Avançaram com cautela.Aos poucos, seus olhos se ajustaram, e puderamver que a caverna iabemparaocentrodoAltoPináculo,seutetoeparedesforadoalcancedobrilhodaslamparinas.Opiso da caverna era irregular, mas livre de obstáculos, e eles andaram envoltos na escuridão.Finalmente,Tufoosguiouatéaparedefinaldacaverna.Diantedeles,haviaumasériedeaberturas,poucomaisquefrestasestreitasnarocha,muitoparecidasentresi,dividindoaparededacavernaesumindodevista.

Tufonãoteveproblemasparadecidirqualaberturaqueria.Semhesitar,escolheuumaeguiouocaminho.Levou-osporumlabirintodevoltasecurvas,seguindoevoltandoporumaconfusãodetúneis que se inclinavam continuamente para baixo. Os outros logo ficaram irremediavelmenteperdidos.ETufocontinuavalevando-osemfrente.

Subitamente, viram-se diante de uma escada e o ambiente dos túneis sofreu uma mudançabrusca.Asparedes,tetoechãoderochanaturalmenteformadosseforam.Asescadaseapassagemao seu redor eram formadas de blocos de pedra, imensos e rudemente cortados, masinquestionavelmentemoldadospormãos.Manchasdeumidadebrilhavamnasparedesenotetodapassagem, e pequenos rios de água corriam pelos degraus. Ouviram sons na escuridão abaixo.Pequenoscorposespalharam-se,comoarranhardepezinhoseguinchosaborrecidos.Lampejosdemovimentorevelavamasformasescurasemagrasderatos.

Tufo os guiou pela escuridão das escadas. Por dezenas de metros, a escadaria continuava,curvando-se em ângulos estranhos, nivelando-se uma ou duas vezes empequenas rampas, para seretorcermaisparaofundodamontanha.Aoredordeles,noslimitesdaluzdaslamparinas,osratoscorriampelaescuridão,seusguinchosfracosedesagradáveisnaquietude.Oartornara-sepungentecom o cheiro de umidade,mofo e podridão. Continuaram descendo, vendo os degraus sumiremdiantedeles.

Por fim, os degraus acabaram. Encontravam-se em um grande salão, com teto alto em arcoapoiadoemimensascolunas.Bancosdepedraquebradosenchiamacâmara,arrumadosemfileiraslargasaoredordeumaplataformacircularbaixa.Haviamarcasestranhasentalhadasnapedradascolunas e das paredes, e postes e estandartes de ferro enferrujavam-se sobre a plataforma. Wilpensouque,emoutraépoca,aquelacâmaraforaumasaladeconselhooudereuniões,outalvezumlugar de oferendas e rituais estranhos. Em outros tempos, outras pessoas haviam se reunido ali.Fitou seus arredores por um momento, antes de Tufo levá-los pelas fileiras de bancos, além daplataforma,atéumaimensaportadepedraqueseencontravaentreabertanoladoopostodosalão.Dooutrolado,maisumlancedeescadaslevavamaisparabaixo.

Desceram aquela nova escadaria. Wil estava bem preocupado. Haviam percorrido um longocaminhopelamontanhaeapenasTufotinhaalgumaideiadeondeestavamagora.SeoCeifadorospegasseali...

Os degraus acabaram. Foram para outra passagem.Wil pensou ter ouvido o som de água emalgum lugar à frente, como se um rio despencasse através da rocha. Tufo apressava-os,

nervosamente,puxandoamãodeEretria,olhandoansiosamentesobreoombro,comosequisessetercertezadequeelaaindaoseguia.

Depoisdeatravessaremapassagem,entraramemumagrandecaverna.Osblocosdepedraquehaviamformadoasparedesdostúneisqueos levaramatéaliseforam.Aquelacavernaeraobradanatureza, com paredesmarcadas e rachadas, o teto umamassa de estalactites irregulares, o chãorachado e coberto de pedras quebradas. Na escuridão além do círculo de luz projetado pelaslamparinas,podiamouviráguacorrendo.

Tufoosconduziuatéooutroladodacaverna,pisandocomcuidadonaspedras,resmungando.Naparedeopostahaviaummontederochasquepareciamseroresultadodeumdeslizamento.Nomeiodelas,umestreitofiodeáguacorriaparasejuntaraumalagoaqueseespalhavaemumasériederiachos,agitando-seetorcendo-seatéfinalmentedesaparecernaescuridão.

—Aqui—anunciouTufoalegremente,apontandoaquedad’água.WilbaixouAmberleeencarouosujeitosementender.—Aqui—repetiuTufo.—Aportafeitadevidroquenãoquebra.JogodivertidoparaTufo.—Wil,eleestáfalandodacachoeira—falouAmberlederepente.—Olhebemparaondeaágua

seespalhaentreaquelaspedrasacimadalagoa.Wilolhou,vendooqueaelfaenxergara.Ondeaáguaseesparramavasobreopoço,caíaemuma

cortinafinaeregular,ficandoparecidacomumaportafeitadevidro.Avançouváriospassos,vendoaluzdesualamparinarefletir-sedevoltadasuperfíciedaágua.

—Masissonãoévidro!—exclamouEretria.—Éapenaságua!—MasaEllcrysselembrariadisso?—argumentouAmberlerapidamente,aindafalandoparao

jovem.—Foihátantotempoparaela.Muitodoqueelaantesconhecia,esqueceucomapassagemdotempo.Eemmuitacoisa,elaestáconfusa.Talvezelaselembredestacachoeirasóporcomoelaaparentaser;umaportafeitadevidroquenãoquebra.

EretriaolhouparaTufo.—Estaéaporta,Tufo?Temcerteza?Tufoassentiu.—Jogodivertido,moçabonita.JogueojogodivertidocomTufodenovo.—Seestaéaporta,entãodevehaverumacâmaraatrás...—Wilcomeçouaavançar.—Tufopodemostrar—Tufopassouàfrentedele,puxandoEretriaconsigo.—Olhe,olhe,coisa

bonita!Venha!Ele arrastou a jovemnômade consigo até estaremàdireitada cachoeira, ao ladoda lagoa em

que ela se derramava.O rosto envelhecido olhou para trás por um instante e Tufo soltou amãodela.

—Olhe,coisabonita.Noinstanteseguinte,elepisoudebaixodacachoeiraedesapareceu.Anômadeficouolhandoo

lugarondeelesumira.Quaseimediatamente,elevoltoucomopelocoladoaocorpoeorostofeliz.—Olhe—recomendouele,epegouamãodelamaisumavez,puxando-a.Emumnó,opequenogrupopassoupelacachoeira,aindasegurandoaslamparinassemfumaça

àfrente,protegendoosolhosenquantodeslizavampelaspedras.Haviaumaalcova logodepoisdacachoeira,comumapassagemestreitalevandoalém.Pingando,elesaseguiram,Tufonafrente,atéchegaremaofim,ondehaviaoutracaverna,muitomenoreinesperadamenteseca,livredaumidadeedomofoqueenchiaaoutra,o chãoelevando-senaescuridãonumasériedeplataformas largas.Wil inspiroufundo.SeacachoeiraeraaportafeitadevidroquenãoquebravaqueaEllcryshaviaindicado,entãoseriaali,naquelacâmara,queencontrariamoFogossangue.Andouemsilêncioaté

ofundodacavernaevoltou.Nãohaviaoutrostúneissaindodali,nemoutraspassagens.Asparedes,ochãoeotetorochososdacavernarefletiamobrilhodesualamparinaenquantoeleaerguiaparaolharcomcuidadoaoredor.

Acâmaraestavavazia.

NabocadacavernaqueseabriaparadentrodoAltoPináculo,umasombrapassoudoemaranhadodevegetaçãodopenhascoedesapareceusemfazerruídodentrodoSepulcro.Apóssuapassagem,aflorestaficarasubitamenteemsilêncio.

Umasériedepensamentosapressadospovooua imaginaçãodeWilOhmsfordenquantoeleestavade pé naquela caverna vazia fitando-a, sem saber o que fazer. Não havia nenhum Fogossangue.Depoisde tudooquehaviampassadopara alcançaro Sepulcro,nãohavianenhumFogossangue.Estava perdido, talvez não estivessemais ali fazia séculos, desaparecido com o velhomundo. Eraumaficção,umavãesperançaconcebidapelaEllcryscomaproximidadedesuamorte,umamagiaque desaparecera juntamente à terra dos feéricos. Ou se havia ainda o Fogossangue, não era ali.Estava em algum outro lugar do Vasto Ermo, outro lugar que não aquelas cavernas, e nunca oencontrariam.Estavaalémdoalcancedeles.Estavaescondido...

—Wil!OchamadodeAmberlequebrouosilênciodeformasúbita.Elevirou-separavê-ladepélonge

dele,comumadasmãosacenandonafrentedocorpocomoseestivessecegaetentassetatearalgo.—Wil,estáaqui!OFogossangueestáaqui!Eupossosentir!Suavoz tremiadeempolgação.Osoutrosaencararam,observando-abambolearpara frentena

penumbradacaverna,vendoomovimentohipnotizantede seusdedosenquantoeles seesticavamcomotentáculosnaescuridão.

Eretriaaproximou-sedeWil,aindasegurandoamãodeTufo,queseencolhiaatrásdela.—Curandeiro,oqueelaestá...?Ele ergueu a mão para silenciá-la. Sacudiu a cabeça lentamente e não disse nada. Seus olhos

continuaram fixos na elfa. Ela fora para um dos níveis mais altos da caverna, uma pequenaplataformaque jaziaquaseno centroda câmara.Dolorosamente,mancoupara frente,pisandonaplataforma.Na ponta oposta, havia uma pedra imensa.Amberle foi bamboleando até lá e parou,estendendoasmãosparatocarnasuasuperfície.

—Aqui.—Apalavrasaiucomoumsuspiro.Wil avançou namesma hora, adiantando-se para o patamar. Amberle virou-se imediatamente

paraencará-lo.—Não!Nãoseaproximemais,Wil!Ojovemparou.Algumacoisanotomdevozdelaoforçouaparar.Encararam-seemsilênciona

penumbra da caverna por um instante, e nos olhos da elfa havia desespero e medo. Seus olhosfixaram-senosdelepormaisummomentoeelasevirou.Colocandoseucorpofinocontraarocha,elaempurrou.Comosefossefeitadepapel,arochaafastou-se.

Umfogobrancoexplodiu,vindodaterra.Subiuatéotetodacaverna,achamareluzindocomogelo líquido. Queimava branco e brilhante ao se erguer, mas não soltava calor. Lentamente,começouaficardacordosangue.

Wil Ohmsford cambaleou para trás, em choque, sem perceber que, com a investida do Fogo,Amberlesumiracompletamente.Atrásdesi,ouviuTufogritarhorrorizado:

—Queimar!Tufo vai queimar!VaimachucarTufo!—Sua voz tornou-seumberro. Seu rostoenvelhecido contorceu-se ao ver o fogo inundar a caverna com a luz vermelha.— A senhora, asenhora,asenhora...queima,elaqueima!Tufo...serve...a...queima!

Amentedeleestourou.Libertando-sedeEretriacomumpuxão,elecorreudacâmara,gritandoumlongolamentodeangústia.Hebeltentouagarrá-lo,masnãoconseguiu.

—Tufo,volteaqui!—gritouEretria.—Tufo!Mas era tarde demais. Ouviram-no passar pela cachoeira e sumir. No brilho escarlate do

Fogossangue,ostrêsquesobraramencararam-seemsilêncio.

CapítuloXLVII

No instante seguinte, Wil Ohmsford percebeu que não podia mais ver Amberle. Hesitou,pensandoquedealgumaformaseusolhosoenganavam,queoFogoaescondiaemsuamisturadesombraseluzesvermelhas,queelaaindadeviaestarnaquelaplataformadepedraondeestiveraummomentoantes.Porém,seassimfosse,porqueelenãoconseguiaenxergá-la?

Estava indo na direção do Fogossangue para descobrir quando o grito soou— alto e terrívelenquantoperduravanosilêncio.

—Tufo!—sussurrouEretriahorrorizada.Ela já estava indo na direção da passagem quandoWil a alcançou e a puxou de volta para o

Fogossangue.Hebelrecuoucomeles,umadasmãosagarrandoopescoçodeVagabundoenquantoocachorrogrunhiaemalerta.

Ouviramalgumacoisapassarpelacachoeira.WilsabiaquenãoeraTufo;eraoutracoisa,muitomaiordoqueTufo.Osomdesuapassagemdeixavaissoclaro.EsenãoeraTufo...

OspelosnanucadeVagabundoeriçaram-sedemedoeocachorroagachou-se,rosnando.—Atrásdemim.—WilgesticulouparaqueEretriaeHebelfossemparatrás.Elejáestavacomamãodentrodatúnica,puxandoabolsacomasPedrasÉlficas.Decostaspara

aplataformadepedraondeoFogossanguequeimava,comosolhosfixosnaentradadacâmara,elepuxouoscordõesdecouro,osdedostrabalhandofreneticamente.

EraoCeifador.Sua sombramoveu-se pela entrada da câmara, silenciosa como a passagemda lua.OCeifador

andava como um homem, apesar de ser muitomaior do que um humano comum, uma criaturaimensa e sombria,maior até do queAllanon.Vestes e um capuzda cor de cinzasmolhadas eramtudoo que podiamver.Conforme se afastava da passagem, a luz escarlate do Fogo caía em cimadelecomosangue.

OsilvoassustadodeEretriaquebrouosilêncio.AformaquebradadeTufopendiadoconjuntodegrandesgarrasemgancho.

Aadagacurvada surgiu instantaneamentenamãodanômade.Dedentroda sombraescuradocapuz,oCeifadorencarou-a,semrostoeimplacável.Wilsentiuquecongelava,ficandomaisgeladodoquequandoviraMallenrohpelaprimeira vez. Sentiaomal absolutonapresençadoCeifador.Pensouemsuasvítimas,naguardaélficana florestadeDrey,emCrispin,DilpheKatsinnoPico,em Cephelo e os nômades na Crista do Assobio— todos eles destruídos por aquele monstro. Enaquelemomentoelevierapegá-lo.

Começouatremer,omedodentrodesitãofortequeeracomoseestivessevivo.Nãoconseguiatirarosolhosdodemônio,nãoconseguiadesviaroolhar,apesardecadafibradeseuserimplorarqueofizesse.Aoseulado,orostodeEretriaestavapálidodepavor;seusolhosescurosvoaramparaosdojovem.HebelrecuoumaisumpassoeorosnadodeVagabundovirouumganidoassustado.

Quando o Ceifador afastou-se da parede da câmara, o movimento foi ágil e silencioso. WilOhmsford preparou-se. A mão que segurava as Pedras Élficas ergueu-se. O Ceifador parou, seucapuz sem rosto levantando-se ligeiramente. Mas não foi o jovem que o fez hesitar. Foi o Fogo

escarlate que queimava atrás dele. Havia algo no Fogo que incomodava o Ceifador.Silenciosamente,odemônioobservouaschamasvermelhasenquantoestaslambiamasuperfícielisadaplataformadepedrae seerguiamparao tetodacâmara.OFogonãoparecia serumaameaça;simplesmenteardia,frio,semfumaçaecontínuo,semdeixarmarcas.OCeifadoresperoupormaisummomento,vigiando.Eavançou.

Os sonhos voltaram à mente de Wil Ohmsford naquele instante, os sonhos que haviamatormentadoseusononoRefúgioSombrioedepoisnafortalezadoPico,ossonhoscomacriaturaqueocaçavaatravésdanévoaedanoite,acoisadaqualnãopodiaescapar.Ossonhosvinhamatéele tal como vieram enquanto dormia, e todas as sensações que sentira renasceram,mais fortes eaterrorizantes.ForaoCeifadorqueoperseguira,seurostonuncaàvistaenquantooseguiadeummundode sonho para outro, sempre apenas a umpasso de distância—oCeifador que saíra dospesadelos para a realidade.Mas desta vez não tinha para onde fugir, nemonde se esconder, nemcomoacordardosono.Daquelaveznãohaviaescapatória.

Allanon!Ajude-me!Ele se recolheu em si e encontrou as palavras do Druida flutuando em um mar de medo

irracional.Acrediteemsi.Acredite.Confie.Confioemvocêmaisdoquetudo.Eudependodevocê.Juntouaquelaspalavras.Comamãofirme, invocouamagiadasPedrasÉlficascomtudooque

conseguiureunir.MergulhoufundonasPedras,sentindo-secairporcamadasdeluzazul.Suavisãoficouembaçadaenquantocaía,eobrilhoescarlatedoFogossanguepareceuficaracinzentado.Eleestavatãopertoagora.ConseguiasentirofogodopoderdasPedrasÉlficas.

Masnadaaconteceu.Wilentrouempânicoeporummomentoomedoodominoutãocompletamentequequasese

desesperouesaiucorrendo.Sóresistiuporquepercebeuquenãohaviaparaondecorrer.Abarreiraaindaestavalá,dentrodesi—assimcomoestiveradepoisdoencontrocomodemônioemTirfing—assimcomosempreestariadentrode si,poisnãoeraumverdadeiromestredasPedrasÉlficas,nemseulegítimoportador,nadaalémdeumtolohomemdoValeSombrioquepresumirasermaisdoquerealmenteera.

—Curandeiro!—gritouEretria,desesperada.Novamentetentouenovamentefalhou.OpoderdasPedrasÉlficasnãopodiaserinvocado.Não

conseguia alcançá-lo, não conseguia comandá-lo.O suor banhava seu rosto e ele as apertou comtantaforçaqueaspontascortaramasuapele.Porqueopodernãovinha?

Eretriaafastou-sedele, simulandoumataquerapidamentecomaadaga,chamandoodemônioaté ela. O Ceifador virou-se, o capuz vazio seguindo-a enquanto ela descia lentamente pelaplataformadepedra, comosequisesseescaparpassandopelaentradadacâmara.Wilpercebeunahoraoqueelaestavafazendo;estavaconseguindotempoparaele—unspoucospreciososminutosamaisparaelefazeropoderdasPedrasÉlficasreviver.Wilquisgritar,dizerànômadeparavoltareavisarquenãoconseguiamaisusaramagia.Porém,viu-seincapazdefalar.LágrimasescorriamdoscantosdeseusolhosenquantolutavaparavencerabarreiraqueoimpediadeusarasPedrasÉlficas.Elaiamorrer,pensoufreneticamente.OCeifadoririamatá-laenquantoeleficariaali,assistindo.

Descuidadamente,oCeifador jogouoquerestaradeTufoparao lado.Debaixodesuasvestes,garrascurvasesticaram-seàluzavermelhadadoFogossangue,estendendo-separaajovemnômade.

Eretria!O que aconteceu a seguir ficaria gravado namente deWil como se esculpido em pedra. Em

poucossegundosdetempocongelado,passadoepresenteseuniramcomoumsó;comoaconteceraanteriormentecomseuavô,WilOhmsfordficoucaraacaraconsigomesmo.

Wil pareceu escutar Amberle falando, sua voz vinda do brilho vermelho lançado peloFogossanguenaspedrasda câmara, firme, calmae cheiade esperança.Aelfa falou comele comofalaranaquelamanhãdepoisquefugiramdoPico,quandooMermidonoslevaraasalvoparaosul,longedohorrorpassadonanoiteanterior.Elalhedisse,comodisseraantes,queapesardetudooqueacontecera,opoderdasPedrasÉlficasnãoseperdera,queaindaeradeleequeelepodiausá-lo.

Mas o poder estava perdido. Ela vira o que acontecera na passarela da fortaleza.Wil desejaradesesperadamentedestruirodemôniodepoisdoqueelefizeracomovalenteCrispin!Porém,ficaralá, comasPedrasÉlficasapertadas inutilmenteemsuamão, incapazde fazerqualquercoisa.Seoventonãotivessederrubadoapassarela,oCeifadoros teriaalcançado.CertamenteAmberledeviaenxergarqueopoderestavaperdido.

O suspiro dela voltou, um sussurro na mente de Wil. Não estava perdido. Wil se esforçavademais, tentando tanto que se afastava do poder das Pedras Élficas, algo que não estariaacontecendo se não fosse por sua incapacidade de entender a natureza do poder que procuravacontrolar. Precisava entender. Precisava lembrar que a magia élfica era apenas uma extensão dequemausava...

AvozdeAmberlesumiueadeAllanontomouseulugar.Coração,menteecorpo—umaPedraparacada.AuniãodostrêsdariavidaàsPedrasÉlficas.MasWilprecisavacriaraquelaunião.Talveznãofossetãosimplesparaelecomoforaparaseuavô,porqueeleeraumapessoadiferentedeseuavô.Haviaumadiferençadeduasgeraçõesentreeleeo sangueélficodeSheaOhmsford,eoqueaconteceracomseuavôporapenasumpensamentonãoviriatãofácilparaele.Muitacoisadentrodesiresistiaàmagia.

Sim,sim!,gritouWilparasi.Osanguehumanoresistia.EraosanguehumanoqueoimpediadeusaropoderdasPedrasÉlficas.Eraosanguehumano,apartedesiquenãoeraélfica,querejeitavaamagia.

A risada de Allanon era baixa e debochada. Se fosse assim, então como fora capaz de usar asPedrasÉlficasumavez...?

AvozdoDruidatambémsumiu.EWil Ohmsford viu amentira que criara dentro de si desde omomento em Tirfing em que

invocara o poder das Pedras Élficas e sentira a magia fluir por ele como fogo líquido. Deixaraaquelamentiracrescer,alimentadapeladúvidasobreopoderdasPedrasÉlficas, seerarealmenteseuparausar,esemquererreforçaraissocomachocanterevelaçãofeitaporAllanondequeapenaso sangue élfico dava controle sobre as Pedras. O rapaz rapidamente concluíra que seu sanguehumanoeraomotivopelofracassoemusardenovoomesmopoderqueusaranoTirfing—mesmoseamisturadesanguehumanoeélficodentrodesinãofossediferentedoqueforaantes.

Enganara-secompletamente!Talvezsemsaber,talvezsemquerer,masseenganaramesmoassim,eaofazerisso,perderaopoderdasPedrasÉlficas.Comoaquiloacontecera?Amberleaproximara-sedaverdadequando,porduasvezesduranteaviagem,oavisaraque,quandousaraasPedrasemTirfing,pareceraqueelefizeraalgoconsigo.Nãoprestaraatençãoaoaviso,tentandodeixardeladoa preocupação dela — mesmo admitindo que ela estava certa. Ele tinha feito alguma coisa a siquandousaraasPedrasÉlficas.Porém,nãoconseguiarastrearaquilo.Tinhaachadoqueoquefizeraforadenaturezafísica,masnãoencontrounadaerrado.Amberlesugeriraquepodiaseralgomais,que amagia élfica tambémpodia afetar o espírito.Mas elenãoqueria acreditarnaquilo.Quandodescobriuquenadaestavaaparentementeerrado,rapidamenteesqueceraoassunto,bloqueando-odesuamentecompletamente,porquenãopoderiasedaraoluxodeperdertempopreocupando-seconsigoquando tinhaquecuidardeAmberle.Aquilo foraumerro imenso.Deveria terpercebido

então que Amberle estava certa, que seu uso das Pedras Élficas com certeza fizera algo com seuespírito,algoquecausaraumdanotãograndeque,atéseacertarcomaquilo,opoderdasPedrasestariaperdido.

PoisoqueaconteceraaWilOhmsfordéqueficaracommedo.Já podia admitir. Precisava admitir. Era ummedo que não conseguira reconhecer até aquele

momento,facilmenteconfundido,astutamenteescondido.Durantetodasaquelassemanas,estiveraalieelenãooreconhecerapeloqueera.Poisnãosetratavadomedodacriaturaqueoperseguiranos sonhos,oudodemônioquecaçaraAmberleeeledesdeArborlon.Eramedodacoisaemqueconfiara para protegê-los, das Pedras Élficas e do efeito que o uso do seu poder fabuloso eimprevisívelpoderiatersobresi.

Acompreensãoo inundou.Nãoeraamisturade seu sanguehumanoeélficoqueobloqueavaparausaropoderdasPedras.Eramedodamagia.

Elemesmofizera isso.TãodeterminadoestavaemtersucessonatarefaqueAllanon lhederaeque nada poderia impedi-lo de executá-la, que enterrara aquele medo no momento em que elenascera,poçodedeterminação.Recusara-seaadmitirqueelesequerexistia,eoesconderaatédesimesmo.Depoisdeum tempo,omedopassara a interferirnousodasPedrasÉlficas.Nãopoderiahaverumauniãodesimesmo,decoração,menteecorpocomopoderdasPedrasenquantoaquelemedo não fosse reconhecido. Permitira-se acreditar que estava sofrendo uma rejeição da magiaélficaao seu sanguehumano.Com isso, tornaraamentiracompleta, eousoposteriordasPedrasficaraimpossível.

Atéaquelemomento.PassaraaentenderanaturezadabarreiraqueoimpediadeusaropoderdasPedrasÉlficas.EraomedoqueoafastaradasPedras—epodialidarcomisso.

Voltou-separadentrodesi,umatorápidoedeliberado,unindoseucoração, suamentee seucorpo,determinação,pensamentoeforça,emumúnicopropósitoinquebrantável.Nãofoifácil.Omedo ainda estava lá. Ergueu-se na frente dele como uma muralha, avisando-o para recuar,minandosuamotivação.Eraforte,tãofortequeporummomentoWilpensouquenãoconseguiriacontinuar.

Havia perigo em usar as Pedras Élficas, um perigo que não conseguia enxergar nem tocar,definir nem entender. Estava lá, real e tangível, e poderia danificar seu corpo e sua menteirreparavelmente.Poderiadestruí-lo.Pior,poderiadeixá-lovivo.Haviacoisaspioresqueamorte...

Lutoucontraaquilo.Pensouemseuavô.QuandoSheaOhmsfordusaraaEspadadeShannara,sentira o perigo, mas não compreendera. Ele contara a Wil. Porém, a magia da Espada eranecessáriaeaescolhaqueseuavôfizeratambém.EntãonaquelemomentoeraavezdeWil.Haviaumanecessidademaiordoqueasua.Haviamconfiadonele,ehaviavidasquesóelepodiasalvar.

Jogou-semaisfundonaluzazuldasPedrasÉlficas,eomedoestilhaçou-seàsuafrente.OsanguehumanodeulugaraoélficoeopoderdasPedrasveioàtonadentrodesi.

Passadoepresentesedividirameossegundosseforam.Eretria!O Ceifador movia-se, saltando silenciosamente pelo brilho avermelhado do Fogossangue na

direçãodanômade.Wil ergueu asPedrasÉlficas e o fogodelas explodiunodemônio, jogando acriaturaparatrás,batendonaparededacaverna.

NãohouvesomquandooCeifadoratingiuapedra—apenasumsilêncio terrívelquandosuasvestes caíram sobre a rocha.No instante seguinte, ele estava de pé novamente, pulando contra ojovem.Wilnãoconseguiuacreditarqueerapossívelalgo tãograndesemover tãodepressa.Antesquepudesseagir,oCeifadorestavadiantedesi,asgarrasrasgandoparabaixo.Novamenteo fogo

azul emergiu das Pedras Élficas, atingindo o demônio, lançando-o para trás como se fosse umabonecadepano.Novamente,nãohouvesom.Wilsentiuofogodentrodeseucorpo,correndoporelecomosefosseseusangue,easensaçãoeraamesmaquesentiraemTirfing.Algoforafeitocomele—algoquenãoerainteiramenteagradável.

Porém,não tinha tempodepensarnaquilo.A formaacinzentadadoCeifador lançou-se comosombra pela penumbra numa investida silenciosa. O fogo saiu da mão estendida do jovem, masdaquela vez o Ceifador foi rápido demais. Desviando-se do ataque, ele avançou.Novamente,Wiltentou impedi-lo, e novamente falhou. Cambaleou para trás, tentando, nervoso, manter a magiaélfica,massuaconcentraçãoforaquebradaeofogocomeçouaespalhar-se.OCeifadorarremessou-seentreaschamas,agigantando-seàsua frente.Noúltimominutopossível,Wilconseguiuunirofogodiantedesi,comosefosseumescudo.OCeifadorvoouemcimadele,jogando-oparatráscomforça.Elecaiu,batendoacabeçanaspedrasdochãodacâmara.Poruminstante,achouque fossedesmaiar.Garrasrasgavamofogoazul,tentandoalcançá-lo.Masojovemlutoucontraatonturaeador,eamagiadasPedrasÉlficascontinuouviva.OCeifadorpulouparatrásecomeçouarodeá-losilenciosamente.

Confuso,Wilficoudepé.SeucorpodoíacomaforçadoataquedoCeifador,esuavisãoestavacheia de pontos dançando. Com esforço, manteve-se ereto. As coisas não estavam saindo comohavia esperado. Pensara que, quando conseguisse alcançar amagia élfica, o pior já teria passado,que finalmente ele possuía o domínio de uma arma contra a qual o Ceifador não conseguiriaresistir, que por mais poderoso e perigoso que aquele demônio fosse, não seria páreo para asPedras.Agora,nãotinhamaistantacerteza.

Lembrou-se de Eretria. Onde ela estava? Dentro de si, o fogo élfico retorcia-se como umacriatura aprisionada. Por um terrível momento teve medo de ter perdido completamente ocontrole. Naquele momento, o Ceifador atacou de novo. Surgiu das sombras, ágil e silencioso,pulando no brilho do Fogossangue e na direção do jovem. Quase por vontade própria, a magiaélfica flamejou entre os combatentes numa explosão ofuscante que jogou os dois para fora daplataformaestreita.Ojovemdesprevenidofoiarremessadocontraaparededacaverna,costelaseocotovelo de sua mão livre quebrando como madeira velha quando atingiu a pedra. Uma dorlancinantepassouporseucorpoeseubraçoficoudormente.

Dealgummodo,conseguiulevantar-se,apoiando-senaparede.Lutandocontraadoreanáuseaque o percorriam, gritou por Eretria. A nômade lançou-se das sombras, alcançando-o um passoantes doCeifador.Comum impulso silencioso, omonstro foi até eles, rápidodemais para queoWil,aindatonto,pudessereagir.EleosteriaalcançadosenãofosseporVagabundo.Esquecidoportodos, o imenso cão libertou-se das mãos de Hebel e se jogou contra o demônio. O monstrocambaleou para trás, uma mancha de pelos eriçados e dentes rasgando as vestes cinza. Por uminstante,osdoisdesapareceramnassombrasdacaverna.OrosnadodeVagabundoeraprofundoeterrível. O Ceifador ergueu-se num impulso, jogando o valente animal para longe, estapeando-ocomosefosseumamosca.Vagabundovooupeloarebateucontraaparededacaverna,caindocomumganidosurpresoesilenciando-se.

Porém, aquelas poucos segundos deram a Wil o tempo que precisava para se recuperar.Levantou o braço instantaneamente e o fogo azul emergiu. Pegou o Ceifador em um golpe derelance,enovamenteacriaturadesviou-se,andandoemcírculopelapenumbradacavernaatéqueopilardoFogossangueoescondesse.

O jovem aguardou, varrendo a câmara com os olhos. Não havia nenhum sinal do demônio.Freneticamente, procurou nas sombras, sabendo que ele atacaria novamente. Não conseguia

encontrá-lo.Eretriaagachou-se, soluçandoaoseu lado,amãoaindaapertandoaadaga, seurostomanchadode sujeira e suor.Hebel inclinou-se perto deVagabundo, sussurrando.Os segundos sepassaram.Nadasemoviaainda.

Wilolhouparacima.OCeifadorestavanotetodacaverna.Ele o viu no momento em que a criatura se jogava nele, as vestes cinzentas esvoaçando.

EmpurroufreneticamenteEretriaeergueuasPedrasÉlficas.Comoumgato,odemôniopousounafrente deles, imenso e silencioso. Eretria gritou e recuou, horrorizada. Bem devagar, o buraconegrodocapuzaumentou,congelandoWilOhmsfordcomseuolharvazio.Ojovemnãoconseguiusemexer.Aescuridãoosegurou,profundaesemrosto.

Então o Ceifador investiu contra ele e, por apenas um instante,Wil sentiu-se engolido pelacriatura.TeriamorridosenãofossepelopoderdasPedras.Pedrasdebusca,foracomoAllanonaschamara, e o aviso surgiu em sua mente — procure o rosto do Ceifador! Mais rápido que umpensamento, amagia agiu, deixando-o cego para o terrívelmonstro, para seumedo e sua dor, eparatudoquenãofosseseuinstintoprimitivodesobrevivência.Ouviuseuprópriogrito,eofogoazul explodiu. Penetrou o capuz sem rosto do Ceifador, agarrando o bicho como um torno aoredordesuacabeçainvisíveleaseguroucomforça.Contorcendo-sedesesperadamente,omonstroprocurouse libertar.AsmãosdeWilOhmsfordfecharam-seàsuafrente,eamagiaélfica fluiudeseucorpomachucadoparaoCeifador,erguendo-o,arremessando-ocontraaparededacaverna.OCeifadorficoususpensoali,trespassadopelofogoazul,debatendo-seemfúriaenquantoqueimava.Um minuto depois, o fogo desceu pelas vestes do demônio e explodiu numa chama de luzofuscante.

Quando o fogo se extinguiu, tudo o que sobrara doCeifador era a silhueta calcinada de suasvestesretorcidasqueimadasnarochadacaverna.

CapítuloXLVIII

OFogossangueenvolveuAmberleElessedilcomotoquegentildemãosmaternas.Aoseuredor,as chamas se erguiam, uma muralha escarlate que bloqueava o mundo inteiro além, mas semmachucar a jovemmaravilhada. Como é estranho, pensou, o Fogo não queimar. Porém, quandoempurraraapedraeoFogoexplodiraaoseuredor,dealgumjeitosouberaqueseriaassim.OFogoa consumira, mas não sentira dor; não houvera calor, nem fumaça nemmesmo cheiro. Houveraapenas a cor, umvermelho escuro enebuloso, e a sensaçãode estar envolvida emalgo familiar ereconfortante.

Uma sonolência tomou conta de si e a dor e o medo dos dias anteriores pareceram sumirlentamente.Seusolhosvaguearamcuriosospelaschamas,tentandover,mesmoquesóderelance,acavernaqueacomodavaoFogoeoscompanheirosquetinhamvindocomela.Masnãohavianada.HaviaapenasoFogo.Pensouematravessá-loporummomento,paraenxergaralémdanévoa,masalgoadissuadiudefazê-lo.Sentiuquedeviacontinuarali.Deviafazeroquevierafazerali.

Oqueelaviera fazerali—ela repetiuaspalavrase suspirou.Forauma jornada tão longa,umsacrifício tão grande.Mas agora terminara. Encontrara o Fogossangue. Subitamente, pensou queeracuriosocomoaquiloacontecera.Estavanaquelacavernaescuraevazia,tãodesanimadaquantoseuscompanheirosaoverquenãohavianenhumFogossangueparaserencontradoalémdaportafeita de vidro que não quebrava, que todos os seus esforços haviam sido em vão, quando derepente... de repente sentira apresençadoFogo.Hesitou emdescrever assim,masnãohaviaumaformamelhor.AsensaçãoerasimilaraoqueexperimentaranabeiradoVazioquandoseesconderadentrodaquelemontedearbustosparaesperaravoltadeWil,similaràquiloqueaavisarasobreaaproximaçãodoCeifador.Eraumsentimentoquevinhadofundodesi,dizendoqueoFogossangueestavadentrodaquelacavernaequeprecisavaencontrá-lo.Tatearaocaminho,acreditandoemseusinstintos,sementenderoqueafaziaagirdaquelejeito.MesmoquandoencontraraoFogodebaixoda plataforma da caverna e avisara a Wil que se mantivesse longe, mesmo quando empurrara arochaparalibertarofogo,nãoentenderaoqueeraaquiloqueaguiava.

O pensamento a perturbava. Ainda não entendia. Algo a tocara. Precisava saber o que era.Fechouosolhoseprocurou.

Acompreensãoveiodevagar.Primeiro, pensou que fosse o Fogossangue, pois fora atraída para ele. Porém, o Fogo não era

consciente;eraumaforçaimpessoal,antiga,vivaerevitalizante,porémsempensamentos.NãoeraoFogo. Pensou depois que, se não era o Fogo, devia ser a semente que carregava, aquele pequenopedaço de vida dado pela Ellcrys. A Ellcrys possuía consciência; a semente dela também podiapossuir.Asementepodiatê-laavisadosobreoCeifadoreoFogo...Masissotambémestavaerrado.A semente da Ellcrys não tinha vida até ser mergulhada nas chamas do Fogossangue. Estavaadormecida;oFogoeranecessárioparaacordá-la.Nãoeraasemente.

MassenãoeraoFogossangueenãoeraasemente,oquesobrava?Entãopercebeu.Eraela.AlgodentrodesiaavisarasobreoCeifador.Algodentrodesiaavisara

sobreoFogossangue.Osavisos tinhamvindodedentrodesiporque lhespertenciam.Eraaúnica

respostaque fazia sentido.Abriuosolhos, surpresa,e rapidamenteos fechoudenovo.Porqueosavisos eram dela? Lembrança da estranha influência que a Ellcrys exercera sobre si fluíram e ainundaram,da forma como a árvore começara a dominá-la até que ela se sentisse poucomais doque uma extensão da Ellcrys. A árvore fizera aquilo com ela? Teria sido afetada mais do quepensava?

Ficoumomentaneamenteassustadacomapossibilidade,comosempreficavaaopensarnaformacomo a Ellcrys a roubara de si. Com esforço, controlou seumedo. Não havia motivo para ficarassustada. Tudo aquilo ficara para trás. A jornada para encontrar o Fogossangue fora concluída.Suaspromessasforammantidas.TudooquefaltavaeradarvidadenovoàEllcrys.

Suamão deslizou pela túnica e se fechou ao redor da semente que era a fonte daquela vida.Estava quente e viva, como se previsse o fim de sua dormência. Estava prestes a retirar a mãoquandoosmedosretornaram,súbitoseintensos.Hesitou,sentindosuaforçadevontadecomeçaradeclinar.Haviamaisnaqueleritualdoqueelapensava?OndeestavaWil?Eleprometeraestarcomela,prometeraquegarantiriaqueelanãovacilaria.Ondeeleestava?Precisavadele;precisavadelealicomela.

MasWilOhmsfordnãoiriaatélá,estavaalémdamuralhadoFogo,eaelfasabiaquenãopodiaalcançá-la. Precisava fazer aquilo sozinha. Era a tarefa que recebera; era a responsabilidade queaceitara. Inspirou fundo. Um segundo para colocar a semente da Ellcrys nas chamas doFogossangueeatarefaestariaterminada.Eraoquevierafazer;agorafaria.Porém,omedopersistia.Omedoapreenchiacomoumadoença,eAmberleodiavaisso,porquenãoentendia.Porqueestavatãoassustada?

Emsuamão,asementecomeçouapulsarsuavemente.Olhouparabaixo.Mesmoaquelasementeaassustava,mesmosendoapenasumapequenaparte

da árvore. Lembranças vieram e se foram. No começo, ela e a Ellcrys eram próximas. Não haviamedo, apenas amor. Havia alegria e partilha. O quemudara isso? Por que ela começara a sentircomo se estivesse se perdendo na árvore? Aquilo fora tão assustador!Mesmo naquelemomento,issoaindaaassombrava.QuedireitoaEllcrystinhadefazeraquilocomela?QuedireitoaEllcrystinhadeusá-laassim?Quedireito...?

A vergonha a tomou. Aquelas perguntas eram despropositadas. A Ellcrys estava morrendo eprecisavadeajuda,nãoderecriminações.Opovoélficoprecisavadeajuda.AjovemabriuosolhosepiscounobrilhoescarlatedoFogossangue.Nãohaviatempoparamergulharemsuaamarguranemexplorarseusmedos.Sóhaviatempoparafazeroquevierafazer—banharasementequeseguravanoFogo.

Elaassustou-se.OFogo!Porqueasementenãoforaafetadapelofogo?Seráqueaschamasnãoalcançavamdentrodesuatúnica?Seráquenãoatocaram?Fariadiferençaseatirassedatúnica?

Maisperguntas.Perguntasinúteis.Novamentecomeçouapuxarasementeenovamenteomedoa impediu.Lágrimasencheramseusolhos.Ah,sehouvesseoutrapessoapara fazeraquilo!ElanãoeraumadosEscolhidos!Nãoeraadequada!Nãoera...elanãoera...

Com um grito, puxou a semente da túnica com força e a segurou na chama escarlate doFogossangue. Ela flamejou em sua mão, viva ao toque do Fogo. De dentro da jovem elfa veionovamente a sensação, amesmaque a avisara sobre a aproximaçãodoCeifador, a sensação que achamara até o Fogossangue, inundando-a com umamiríade de imagens deslumbrantes, agitandoemoçõestãointensasdentrodesiqueAmberlecaiudejoelhos,semforças.

Lentamente, trouxe a semente da Ellcrys para o peito, sentindo a vida dentro dela semexer.Lágrimascorriamporsuasbochechas.

Eraela.Eraela.Finalmente,entendeu.ApertouasementecontrasieatraiuoFogossangue.

CapítuloXLIX

Encolhidoscontraaparededacaverna,WilOhmsfordeEretriaviramobrilhoescarlatedoFogopiscar e apagar.Aconteceu de repente, umúltimo lampejo da chama, e depois o Fogossangue sefora.Tudooquerestoupara iluminaraescuridãodacaverna foramas lamparinasque trouxeramconsigo,seubrilhobrancofracoepequeno.

Os dois piscaram com a noite súbita, tentando enxergar nas sombras. Lentamente, a visãocomeçou a se aguçar e eles viram movimento no topo da plataforma em que o Fogossanguequeimara. Com cuidado, Wil levantou a mão com as Pedras Élficas e a magia ergueu-se numlampejodefogoazul.

—Wil...EraAmberle!Elaemergiudaescuridãocomoumacriançaperdida,suavozumsussurrofracoe

desesperado.Ignorandoadorqueassolavaseucorpo,ojovemfoinadireçãodela,comEretrialogoatrás. Alcançaram-na no momento em que ela caía da plataforma, pegando-a em seus braços esegurando-a.

—Wil—murmurouelabaixinho,soluçando.A elfa levantou a cabeça e seu longo cabelo castanho saiu da frente do rosto. Seus olhos

queimavam,vermelhos,comoFogossangue.—Pelassombras!—exclamouEretria,afastando-sedela.Wil pegouAmberle nos braços; apesar da dor que subiu pelo braço ferido, aninhou-a em seu

peito. Ela estava leve comoumapluma, como se os ossos tivessem se dissolvido dentro dela e sórestasseumacascadecarne.Amberleaindachoravacomacabeçaenterradanoombrodele.

—Oh,Wil,euestavaerrada,euestavaerrada.Nuncafoiela.Eraeu.Semprefuieu.Aspalavrasvieramcorridas,comoseelaquisessefalaromaisrápidopossível.Ojovemacariciou

suabochechapálida.—Estátudobem,Amberle—sussurroueleemresposta.—Acabou.Aelfaoencarou,osolhosvermelhoscomosangue,fixoseterríveis.—Eunãoentendia.Elasabia...o tempotodo.Elasabia,e tentou... e tentoumedizer,me fazer

ver...maseunãoentendia;euestavaassustada...—Nãofale.—Ojovemapertou-acomforça,ummedosúbitoeirracionaltomandocontadesi.

Tinham que sair daquela escuridão. Tinham que voltar para a luz. Virou-se rapidamente paraEretria.—Pegueaslamparinas.

Anômadenãodiscutiu.Recuperouasluzessemfumaçaevoltouparapertodele.—Estoucomelas,Curandeiro.—Entãovamossairlogodesta...—Elecomeçouafalareseinterrompeu.AEllcrys.Asemente.

A elfa tinha...? — Amberle — sussurrou ele gentilmente. — Você colocou a semente no Fogo?Amberle?

—Está...estáfeito—disseela,tãobaixoqueWilmalconseguiuouvir.Quantoaquilocustaraàelfa?,perguntou-seele,amargamente.Oqueaconteceracomeladentro

do Fogo...? Mas não, não havia tempo para isso. Precisavam correr. Precisavam sair daquelas

catacumbas, voltar para a encosta do Alto Pináculo e de lá voltar para Arborlon. Ali, Amberlepoderiaficarboadenovo.Ali,elaficariabem.

—Hebel!—chamou.— Aqui, elfo. — A voz do velho soou fraca e rouca. Ele surgiu das sombras, aninhando

Vagabundoemseusbraços.—Apernaestáquebrada.Etalvezoutraspartes.—Havialágrimasnosolhosdele.—Nãopossodeixá-lo.

— Curandeiro! — O rosto moreno de Eretria aproximou-se de repente. — Como vamosencontrarnossocaminhodevoltasemocão?

Wilaencaroucomosetivesseesquecidoqueelaexistia,eanômadeficouvermelhadevergonha,achandoqueeleestavabravocomsuareaçãoaAmberle.

—AsPedrasÉlficas—resmungoueleporfim,enãoparouparapensarsepodiausá-las.—AsPedrasvãomostrarocaminho.

Ele equilibrouopesodeAmberlenos braços, fazendouma careta quando adorde seu corpopartidosubiuemondas.

Eretriaagarrouseubraço.—Vocênãopodecarregá-laeusarasPedrasaomesmotempo.Deixe-mecarregá-la.Elesacudiuacabeça.—Douumjeito—insistiuele.QueriaqueAmberleficassepertodele.— Não seja tão teimoso — pediu ela com suavidade. Cerrou os dentes e continuou com

dificuldade.—Seicomovocêsesenteemrelaçãoaela,Curandeiro.Eusei.Masissoédemaisparavocê.Porfavor,deixe-meajudar.Dê-meaelfaparaqueeuacarregue.

SeusolhosseencontrarammomentaneamentenapenumbraeWilviuaslágrimasquebrilhavamnorostodela.Admitiraquilohaviadoído.Lentamente,eleassentiu.

—Vocêestácerta.Nãopossofazerissosozinho.EledeuAmberleparaanômade,quea embaloucomose fosseumbebê.AcabeçadeAmberle

deslizounoombrodeEretria,adormecida.—Fiqueporperto—pediuWil,pegandoumadaslâmpadasevirando-se.Atravessaramacachoeiradevolta,assimcomoacavernaondeelaestava,escolhendoocaminho

comcuidadopelochãocobertodepedras.SangueesuorsemisturavamnocorpodeWilOhmsforde a dor ficava pior.Quando alcançaram a passagemque levava até o labirinto, elemal conseguiaandar. Porém, não havia tempo para descansar. Precisavam alcançar Perk rápido, pois era seuúltimodiadetreinamento.TinhamquesairdoSepulcro,voltaràsuperfíciedoVazio,atéaencostadoAltoPináculo,antesqueosolsepusesseouopequenoCavaleirodoVentopartiria.Aquiloseriaofimparaeles.SemPerkeGenewenparalevá-losatéArborlon,jamaissairiamdoVastoErmo.

Parandoaostropeçõesantesdapassagemdaentrada,Wilremexeuoscompartimentosdabolsaquecarregavanacintura.Aliestavamaservaseasraízesqueajudavamacurar.Depoisdeprocurarumpouco,elepegouumaraizroxa,dedezcentímetrosetodaenrolada.Eleasegurou,hesitante.Seacomesse,osumoaliviariaador.Seriacapazdecontinuaratéchegaremàsencostasdamontanha.Mas a raiz tinha outros efeitos. Ele ficaria sonolento e, com o tempo, inconsciente. Pior, ficariagradativamentemenoscoerente.Sefizesseefeitorápidodemais,antesqueconseguissemencontrarocaminhoparaforadascatacumbas...

Eretriaobservava-aemsilêncio.Wilolhouparaelaeparaocorpofrágilquecarregava,mordeuaraizecomeçouamastigar.Eraumriscoqueprecisavacorrer.

Avançaramaos tropeçõesnaescuridão.Quandoo labirintocomeçoua seabrirdiantedeles,ojovem ergueu amão que segurava as Pedras Élficas e invocou suamagia. Veio rápido dessa vez,

fluindo por ele como um calor súbito, passando por seus membros e explodindo na escuridão.Comoumfarol,curvou-sediantedelespelascatacumbas,guiando-os.Seguiram,comosombrasnapenumbra da passagem. Continuaram; o combalido jovem do Vale Sombrio impelia o fogo azulparaqueosdirecionasse,anômadelogoatrás,segurandoaelfaadormecidacomcuidado,eovelhocarregandoocão.Osminutospassaramlentamente.

Adordos ferimentos sofridosnabatalhacomoCeifadordiminuiu, eWilOhmsford sentiu-seflutuarpelaescuridãocomosefossefeitodear.Lentamente,osumodaraizespalhou-se,minandosuasforçascomoseseucorpofossefeitodeargilamolhada,minandoseuraciocínioatésuamentelimitar-seànoçãodequeprecisavacontinuar.Entretantoamagiaélficamexiacomseusangueeelesentia-se mudando de maneira inexplicável. Não era mais o mesmo, sabia. Jamais seria. Amagiaqueimava dentro de si, deixando uma cicatriz permanente e invisível em seu corpo e em suaconsciência.Indefeso,deixouacontecer,imaginandoqueefeitosaquiloteriaemsuavida.

Porém,aquilonãoimportava,disseasi.Nadamaisimportava,sólevarAmberleemsegurança.O pequeno grupo continuou seguindo o fogo azul, e os túneis, os corredores e as escadas

desapareceramnaescuridãoatrásdeles.

QuandofinalmenteirromperampelaentradadacavernadoSepulcro,paraoarlivreealuzdovale,estavam exaustos. Eretria carregara Amberle por todo o caminho e sua energia se fora.Wilmalestava consciente, entorpecidopela raiz analgésica, flutuandopela coerência como se caminhassesem direção por um denso nevoeiro. AtéHebel estava exausto. Juntos, ficaram de pé no alto dopenhasco,nasencostasdoAltoPináculoepiscaramnacombinaçãoentrealuzdosolqueesvaneciaeassombrasquecresciam,seusolhosseguindo-aspelaextensãodoVazionadireçãodooeste,ondeosolsepunhalentamentealémdafloresta,umachamadefogodourado.

Wilsentiusuasesperançasfraquejarem.—Osol...Eretria!Anômadefoiatéelee,juntos,deitaramAmberlenochão,caindodejoelhosquandoacabaram.

Aelfaaindadormia, sendosuarespiraçãosuaveoúnicosinaldevidaqueelamostraraemtodaaviagem desde as catacumbas. Ela mexia-se de leve, como se pudesse acordar, mas seus olhoscontinuavamfechados.

—Eretria...aqui—chamouWil,remexendonatúnica.Seusolhosestavampesadoseaspalavrasembolavam-se.Sualínguapareciagrossaeinútil.Lutandoparaficarsentado,tirouopequenoapitodeprataepassou-oparaagarota.—Aqui...use...rápido.

—Curandeiro,oqueeuvou...?—começouela,maselepegouamãodela,zangado.—Use!—arquejouele,ecaiuparatrás,semforças.Tardedemais,pensou.Tardedemais.Odia

terminara.Perksefora.Estava perdendo consciência rapidamente — em apenas mais uns poucos minutos, estaria

adormecido. Suamãoainda apertava asPedrasÉlficas, e ele sentia aspontas lhe cortandoapele.Maisalgunsminutos.Oqueosprotegeriaentão?

Viu Eretria se levantar e colocar o apito nos lábios. Ela virou-se para ele, os olhos escurosinterrogativos.

—Nãotemsom!Eleaquiesceu.—Sopre...denovo.Elaofezevirou-seumasegundavez.

—Observe...—Eleapontouparaocéu.Eretriavirou-se.HebelcolocaraVagabundonumacamadegramaeocachorrolambiasuamão.

WilinspiroufundoeolhouparaAmberle.Estavapálida,comoseavidalhetivessesidodrenada.Odesesperotomoucontadele.Tinhaquefazeralgumacoisaparaajudá-la;nãopodiadeixá-ladaquelejeito.PrecisavamuitodePerk!Setivessemsidoumpoucomaisrápidos,maiságeisnafuga!Seelenãotivessesidoatrapalhadopelosseusferimentos!Agoraodiaterminara!

Assombrascaíramsobreeleseotopodamontanhafoienvoltopelaluzcinzentadocrepúsculo.Osoldeslizaranooeste,umapequenabordadouradaflamejandocontraadistantecopadasárvoresenquantomorria.

Perk,nãová,choroueleemsilêncio.Ajude-nos.—Wil.Virouacabeçabruscamente.Amberleencarava-ocomolhosinjetados.Amãodelaencontroua

dele.—Estátudobem...Amberle.—Eleconseguiufalar,engolindoemseco.—Nós...saímos.— Wil, me escute — sussurrou ela. Suas palavras estavam mais claras, não mais vagas ou

apressadas, apenas fracas. Ele tentou responder, mas os dedos dela se ergueram para fechar seuslábioseelasacudiuacabeçalentamente.—Não,meescute.Nãofale.Sóescute.

Eleassentiu,inclinando-separabaixoenquantoelaseaproximava.—Euestavaerrada sobreela,Wil, sobreaEllcrys.Elanãoestava tentandomeusar;nãohavia

nenhumjogosendojogado.Omedo...nãoeraintencional,causadopelomeufracassoementenderoqueelaestavafazendo.Wil,elaestavatentandomefazerenxergar,meinformarporqueeuestavalá,porqueeueratãoespecial.Veja,elasabiaqueseriaeu.Elasabia.Otempodelatinhaacabado,eelaviu...

Elaparou,mordendooslábioscontraasemoçõesqueseacumulavamdentrodesi.Aslágrimascomeçaramadescerporseurosto.

—Amberle...—Wilcomeçouafalar,maselasacudiuacabeça.—Escute.Eufizumaescolhaládentro.Foiminhaescolhaearesponsabilidadeésóminha.Você

entende?Demaisninguém.Eua fizporque tinhaque fazer.Fizpormuitosmotivos,pormotivosquenãoposso...—Avozfalhoueelasacudiuacabeça.—PelosEscolhidos,Wil.PorCrispin,Dilphe pelos outros caçadores élficos. Pelos soldados na floresta deDrey. Pelo pobre e pequenoTufo.Estão todosmortos,Wil, e eu não posso deixar que seja em vão. Entenda, você e eu temos... queesqueceroquenós...

Aspalavrasnãovierameelacomeçouasoluçar.—Wil,euprecisodevocê,precisotanto...OmedocorreupelocorpodeWil.EstavaperdendoAmberle.Podiasentir,bemnofundodeseu

ser.Lutouparaselivrardadormênciaquepesavasobresi.Eretria chamou-os com a voz aguda de empolgação. Eles se viraram, erguendo os olhos para

seguiralinhadeseubraçoesticado,apontadoparaocéu.Nooeste,atravésdanévoadaluzdosolmoribunda,umgrandepássarodouradovoavanadireçãodopenhasco.

—Perk!—chorouWil.—Perk!ObraçodeAmberlefoiatéeleeoabraçou.

Depois,Wilfoicarregadoe,emmeioaonevoeirodasonolência,ouviuavozdePerkfalandocomele.

—Foi a fumaça daquela torre,Wil. Genewen e eu circulamos o dia todo. Eu sabia que vocêestavaaquiembaixo.Eusabia.MesmoquandoodiaestavaquaseterminadoejáerahoradevoltarparaoAbrigodoVento,eunãopudeirembora.Eusabiaqueasenhoraprecisariademim.Wil,elaestátãopálida.

OjovemdoValeSombriosentiu-sesendocolocadonascostasdeGenewen,eosbraçosmorenosefinosdeEretriacomeçaramaprenderosarreiosaoredordele.

—Amberle—sussurrouele.— Ela está aqui, Curandeiro— respondeu a nômade em voz baixa.— Estamos todos a salvo

agora.Wildeixou-secaircontraela,suaconsciênciadeslizandolentamente,conformeanoiteaoredor

delesseaprofundava.— Elfinho. — Uma voz chamou gentilmente e seus olhos abriram-se para encontrar o rosto

enrugadodeHebelolhandoparacima.—Adeus,elfinho.Eunãovoumaiscomvocê.OErmoéomeular.Fizminhabuscaomaislongequequis.EVagabundo,elevaificarbem.Ameninanômademeajudouafazerumatalaparaapata,eelevaificarmuitobem.Eleéossoduro,aquelecão.

Ovelhoseinclinouparamaisperto.—Vocêeameninaelfa...desejosorteavocês.Wilsentiuumnónagarganta.—Nós...devemosavocê,Hebel.—Amim?—Ovelhoriu,gentilmente.—Amimnão,elfinho.Nãodevenada.Sorte.Ele afastou-se e se foi. Amberle apareceu, encolhendo seu corpo frágil diante dele, e Perk

voltou,rapidamenteverificandoascordaseosarreios.Ummomentodepois,oestranhochamadosoou;comumsúbitoimpulso,Genewenlevantou-selentamenteparaocéu,estendendoasgrandesasasporcimadaescuridãodoVazio.Arocagiganteergueu-se,deixandoasflorestasdoVastoErmoparatrás.Àdistância,amuralhadaAgulhadePedracomeçouaaparecer.

Os braços de Wil Ohmsford apertaram-se ao redor de Amberle. Um momento depois,adormeceu.

CapítuloL

AnoitecaiusobreArborlon.NasolidãodosJardinsdaVida,Allanonandousozinhoatéotopodapequenaelevaçãoonde ficavaaEllcrys.Suasvestesnegrasestavamenroladasaoseuredorparaprotegê-lo do frio da noite, e levava o cajado prateado que a árvore lhe confiara aninhado nosbraços.Foraaté elapara confortá-lada formaquepudesse,paradar a elao companheirismoquepudesse. Aquelas seriam suas últimas horas; o fardo que lhe fora dado tantos anos antes estavaprestesaseraliviado.

Eleparouummomento,examinando-a.Pareceriaestranhoparaquemvissedefora,pensou—oDruidaeaEllcrys,silhuetasnegrascontraocéuenluaradodeverão,ohomemparadoemsilênciona frente da árvore seca e retorcida, como se perdido em algum devaneio particular, seu rostosombrio,umamáscarainexpressivaquenãodizianadasobrequaissentimentospoderiamestarporbaixo. Mas ninguém viria. Ele decretara que a árvore e ele passariam aquela noite a sós e queninguémdeveriatestemunharamortedela,alémdele.

Allanondeuumpassoàfrente,sussurrandoonomedelaemsuamente.Osgalhosestenderam-seemsuadireção imediatamente, assustados eurgentes, e seuspensamentos forampara confortá-la.Não se desespere, ele a acalmou.Naquelamesma tarde, enquanto a batalha para salvarArborlonestavaemseumomentomaisraivoso,enquantooselfoslutavamcomtantavalentiaparaimpediroavançodosdemônios,algoinesperadoacontecera,algoquedeverianosdaresperanças.Longe,bemaosul,naescuridãodasflorestasermas,aondeaEscolhidafora,seuprotetortrouxeraamagiadasPedras Élficas à vida. No momento em que ele o fez, eu soube. Eu o alcancei e toquei seuspensamentos com os meus — rapidamente, apenas por um momento, pois Dagda Mor poderiasentir o que fiz.Mesmo assim, aquelemomento foi o bastante.GentilDama, eles encontraram oFogossangue!Orenascimentoaindapodeacontecer!

Cheiosdeexpectativas,ospensamentoscorreramdele.Porém,nadaveiodevolta.Enfraquecidaquaseaopontodeperderossentidos,aEllcrysnãoouviranementendera.SótinhaconsciênciadapresençadoDruida,percebeuele,conscienteapenasdofatodenãoestarsozinhaemseusúltimosmomentos.Oque eledizianão terianenhumsignificado; a árvore estava cegapara tudoquenãofossesualutadesesperadaparacumprirsuatarefa—vivereassimprotegeropovoélfico.

Atristezaotomou.Vieratardedemais.Ficouemsilêncio,poisnãohaviamaisnadaquepudesse fazeralémde ficarcomela.Otempo

passou,agonizantementelento.Vezporoutra,pensamentosaleatóriosdelaoalcançavam,filtradoscomopedaçosespalhadosdecornamente,algunsperdidosnahistóriadoquejáacontecera,outrosenvoltos emdesejos e sonhosdoque aindapoderia ser, todos irremediavelmente embaralhados efragmentadospelaproximidadede suamorte.Pacientemente, elepegouaquelespensamentosqueescapavamdaárvoreea fezsaberqueestavaali,queouvira,queestavaescutando.Pacientemente,compartilhoucomelaasarmadilhasdamortequeprocuravamenvolvê-la.ODruidasentiuo friodaquelas armadilhas, pois elas falavam muito claramente de sua própria mortalidade. Tudoprecisavapassar,comoelaestavapassando,sussurravam.AtémesmoumDruida.

Aquilo o fez pensar momentaneamente na inevitabilidade da própria morte. Mesmo que

dormisse para prolongar sua vida muito além das vidas dos homens comuns, um dia tambémmorreria. E, assim como a árvore, era o último dos seus. Não haveriamais Druidas depois dele.Quandosefosse,quempreservariaossegredospassadosentregeraçõesdesdeotempodoPrimeiroConselho em Paranor? Quem usaria a magia que apenas ele controlava? Quem seria então oguardiãodasraças?

Ergueu o rosto misterioso. Ainda haveria tempo, perguntou-se subitamente, para encontraraqueleguardião?

A noite caminhou com passos silenciosos e a luz pálida damadrugada começava a surgir naescuridão do céu oriental. Nas vastas florestas das Terras do Oeste, a vida começava a se agitar.Allanon sentiu algo mudar no toque da Ellcrys. Ele a estava perdendo. Olhou fixamente para aárvore,apertandocomforçaocajadoprateadocomose,aosegurá-lo,pudesseseguraravidaqueseesvaía da árvore. O céu da manhã clareou; quando isso aconteceu, as imagens ficaram menosfrequentes.Adorquevinhaatéelediminuiu,substituídaporumcuriosodistanciamento.Poucoapouco, o isolamento aumentou a distância entre eles. No leste, a crista do sol subiu acima dohorizonteeasestrelasdanoitesumiram.

Asimagenscessaramcompletamente.Allanonenrijeceu.Emsuasmãos,ocajadoficarafrio.Eraofim.

Gentilmente,colocouocajadoembaixodaárvore.Depoissevirou,saindodosJardinssemolharparatrás.

AnderElessedilestavasilenciosoaoladodacamadeseupai,olhandoparaovelhohomem.Feridoe enfraquecido, o corpo frágil do Rei jazia enrolado em bandagens e cobertores, e apenas o levesubir e descer do seu peito dava mostras de vida. Ele dormia, um sono irrequieto e agitado,flutuandonazonacinzentaentreavidaeamorte.

UmaconfusãodesentimentosvarreuoPríncipe,espalhando-secomofolhasaoventoforte.ForaGaelqueoacordara,assustadoeinseguro.Ojovemassistentevoltaraparaacasasenhorial,inquietoe sem conseguir dormir, pensando em trabalhar um pouco e se preparar para o dia seguinte.Porém, as portas estavam emperradas— e sem sentinelas. O Rei estava dormindo sem guardas?Deveriam fazer algumacoisa?Em instantes,Ander estavadepé e correndopara forade sua casa,chamandoosguardas.Rapidamente,arrombaramaentradaprincipal, escutandoosgritosdoRei,vindosdedentro.Alihaviamtestemunhadoofinaldabatalhamortalentreseupaieomonstro—odemônio que se disfarçara de Manx. Seu pai recobrara a consciência por um breve momentoenquanto eles o carregavam, sangrando e quebrado, até seu quarto, para contar em sussurroshorrorizados sobreabatalhaque travaraea traiçãoque sofrera.Depoisa consciênciaodeixaraeeleadormecera.

Como seu pai conseguira sobreviver?Onde encontrara aquela força? Ander sacudiu a cabeça.Apenas os poucos que o haviam encontrado podiam ter alguma noção do que fora preciso. Osoutros,osministroseoscomandantes,osguardaseosserviçais,vieramdepois.Nãotinhamvistoovelho Rei estirado na entrada suja de sangue, arranhado e ferido. Não tinham visto o queaconteceraaele.

Havia especulações, claro— que alimentavam rumores. O Rei estava morto, cochichavam. Acidade estava perdida. Ander cerrou os dentes. Ele os silenciara rápido o bastante. Seria precisomaisdoqueumdemônioparamatarEventineElessedil.

Ajoelhou-se de repente do lado do pai e tocou a mão imóvel. Teria chorado se ainda lhe

restassem lágrimas. Como o destino fora cruel com o velho Rei. Seu primogênito e seu melhoramigoestavammortos.Suanetaamadaestavaperdida.Seupaísestavatomadoporuminimigoquenãopodiaderrotar.Elemesmoforatraídopeloanimalemquemconfiara.Tudolheforatirado.Oqueomantinhavivodepoisdetudooquesofrera?Comcertezaamorteseriaumalíviobem-vindo.

O Príncipe lhe apertou a mão com gentileza. Eventine Elessedil, Rei Élfico — nunca maishaveriaumReicomoaquele.Eleeraoúltimo.Eoquerestariadeleparaserlembradoalémdeumaterra destruída e um povo no exílio? Ander não estava amargurado por si mesmo, sabia disso.Estavaamarguradopelopai,quepassaraavidainteiratrabalhandoparaaquelaterraeparaaquelepovo.TalveznãodevessemnadaaAnderElessedil.Maseaquelevelhocujocoraçãosecasaracomaquela terra que seria devastada e com aquele povo que seria destruído?Nãomerecia nada? EleamavaasTerrasdoOesteeoselfosmaisdoqueavidaqueestavaprestesadar,eserforçadoavertudoissolhesertirado...eraterrivelmenteinjusto!

Anderinclinou-seebeijouopainabochecha.Aprumou-seesevirou.Atravésdasjanelas,pôdever o céu clareando com o novo dia. Precisava encontrarAllanon, pensou de repente.ODruidaaindanãosabia.Depois,teriaquevoltarparaoCarolan,ficarcomseupovocomoseupaificaria,sefosse capaz. Sem se importar com a amargura. Sem se importar com arrependimentos. O queprecisavaeradamesmacoragemedamesmaforçaqueseupaimostraranaúltimabatalha,corageme força que sustentariam os elfos. O que quer que acontecesse naquele dia, precisava honrar olegadodeseupai.

Ajeitandoaarmadura,AnderElessedilsaiuapressadodoquartoescuro.

No limiar da entrada da casa senhorial, parou por um momento e espiou o céu que clareava.Círculosescurosensombreciamseusolhoseseurostoestavaabatidoeextenuado.Oardaalvoradaveio frio e ele apertoumais omanto contra si. Lá atrás, as janelas da casa senhorial brilhavam, ecaçadoresélficosdeexpressõessériaspercorriamoscorredorescomocãesdecaça.

—Inútilagora...—murmurouparasi.Seguiuemdireçãoaosportões,caminhandosozinhopelatrilhadecascalho,suamentenublada

pelosono.Porquanto tempodormiraantesdeGaelviratéele?Umahora?Duas?Nãoconseguiamais se lembrar.Quando tentava, erao rostodo seupaiqueaparecia, cobertode sangue, comospenetrantesolhosazuisfixosnosseus.

Traído,osolhosgritaram.Traído!Atravessou os portões de ferro para a rua, sem notar a gigantesca figura que emergiu das

sombrasondeoscavalosdeguerraestavamamarrados.—PríncipeAnder?Eleparouderepenteaoouvirseunome,evirou-se.Afiguraaproximou-seemsilêncio,coma

luzdamanhãbrilhandonacotademalha.EraocomandantedosVoluntários,SteeJans.—Comandante—assentiuele,cansado.Ooutrohomemmeneouacabeçaemresposta,orostomarcadoimpassível.—Noiteruim,medisseram.—Entãovocêsabe?SteeJanslançouumolharparaacasasenhorial.—UmdemônioconseguiuentrarnacasadoRei. Seusguardas forammortos, e elemesmo foi

feridoquandomatouacriatura.Vocênãopodeesperarquecoisasassimfiquememsegredo,meusenhor.

— Não, e nem tentei — Ander suspirou. — O demônio era um Metamorfo. Ele assumiu aaparênciadocachorrodomeupai,umanimalqueestevecomeleporanos.Nenhumdenós sabepor quanto tempo ele esteve aqui, jogando esse jogo, mas esta noite ele resolveu que o jogoacabaria.Matouosguardas,trancouasportasexternaseatacouoRei.Ummonstro,comandante;vioquesobroudele.Nãoseicomomeupaiconseguiu...

Sua voz sumiu com o desespero e ele sacudiu a cabeça. Os olhos do homem da fronteiravoltaramparaele.

—EntãooReiaindavive.Anderassentiudevagar.—Maseunãoseioqueomantémvivo.Ficaramemsilêncio,voltandoseusolharesnadireçãodacasa iluminadaedas figurasarmadas

quepatrulhavamoterrenocheiodesombras.—Talvezeleestejaesperandopelorestantedenós—falouSteeJansemvozbaixa.Seusolhosseencontraram.—Oquevocêquerdizer?—perguntouAnder.—Querodizerqueotempoestáacabandoparatodosnós.Anderrespiroufundo.—Quantotempoaindatemos?—Hoje.Orostoduropermaneceusemexpressão,comoseestivessefalandodealgotãotrivialquantoo

climanaqueledia.Anderendireitou-se.—Vocêparececonformadocomisso,Comandante.—Souumhomemhonesto,meusenhor.Disse issoquandonosencontramos.Vocêgostariade

ouviralgoquenãofosseaverdade?—Não.—Ander sacudiuacabeçacomfirmeza.—Não temosnenhumachancederesistirum

poucomais?SteeJansdeudeombros.—Sempreháumachance.Meça-acomovocêmediriaaschancesdoReidesobreviveraestedia.

Éachancequetemos.OPríncipeassentiulentamente.—Aceitoisso,Comandante.—Estendeuamão.—Oselfosforamafortunadosdetervocêeos

soldadosdosVoluntáriosaonossolado.Queriaquehouvesseumaformamelhordeagradecer.OHomemdeFerroagarrouamãoestendida.—Queriaquepudéssemoslhedarestaoportunidade.Boasorte,PríncipeAnder.Elefezasaudaçãoesefoi.Anderficouolhando-oafastar-seporummomentoantesdesevirare

continuarseucaminho.

Momentos depois, Allanon encontrou-o quando ele estava se preparando para cavalgar até oCarolan.ODruida cavalgou emArtaq pela penumbra que antecedia o alvorecer, sombras negrasdeslizandopelaneblinadafloresta.AnderficouemsilêncioquandoooutrohomemparouArtaqeolhouparabaixo.

—Seidoqueaconteceu.—Avozgraveressooucomsuavidade.—Lamento,AnderElessedil.Anderassentiu.

—Allanon,ondeestáocajado?—Elesefoi.—ODruidaolhouparaalémdele,paraacasasenhorial.—AEllcrysestámorta.Andersentiuaforçaseesvairdele.—Entãoéofim,nãoé?SemamagiadaEllcrysparanosajudar,estamosacabados.OsolhosdeAllanoneramduros.—Talveznão.Anderencarou-o,incrédulo,masoDruidajáestavavirandoArtaqdevoltaparaaestrada.—Ireiesperá-lonosportõesdosJardinsdaVida,Príncipe—falouele.—Siga-merápido.Ainda

háesperançaparanós.Allanonapertouoscalcanharesnoflancodocavalonegroedesapareceramdevista.

CapítuloLI

Oraiardodiaficaraumahoraparatrásquandoosdemôniosatacaram.ElessubiramalateraldoCarolannumenxame,escalandoasruínasdaElfitchparachegaràsmuralhaseaosportõesdasextarampa.SemestaremenfraquecidospelopoderdaEllcrysnemcontidospeloanátemadaProibição,osdemôniosignoravamasflechaselançasquechoviamsobreeleseavançavam.Ondaapósondadecorpos escuros surgiam da floresta. Em instantes, cobriram as encostas. Ganchos de escaladaprimitivosforjadoscomarmascapturadaselongoscipós,eramjogadosnotopodasmuralhasedosportõesparaseagarraremnosblocosdepedra.Mãoapósmão,osdemônioscomeçaramaescalar.

Osdefensoresestavamprontos—KerrineaGuardadaCasanotopodosportões,SteeJanseosVoluntáriosnamuralhaesquerda,Amantareos trollsdepedranadireita.Conformeosatacantesescalavam na direção deles, os defensores cortavam e golpeavam as cordas. Os demônios caíamgritando.Osarcosélficoszumbiam,eumasalvade flechaspretasgolpeouosatacantes.Porém,osdemônioscontinuavamvindo,jogandomaisganchos,maiscipós.Toraspesadasdemadeiras,feitascomárvores inteirase entalhadascomdegraus, eram jogadascontraosportõesparaosdemôniossubirem. Bastões e pedras voavamdamassa negra embaixo, cortando os defensores que tentavamresistir ao ataque. Várias e várias vezes os demônios foram forçados a recuar. Mas no fim,alcançaram as muralhas e os elfos, e seus aliados viram-se travando um feroz combate corpo acorpo.

De cada lado da Elfitch, os demônios espalhavam-se pelas faces do penhasco, determinados aabriro caminhoparao topodoCarolanusandoas garras.Ali lhes aguardava a cavalaria élfica, aVelha Guarda da Legião, os anões Escavadores e unidades espalhadas das outras companhiasdefensoras. Ehlron Tay estava no comando. Liderando investida após investida nos enxames deatacantes que apareciam acima da borda do penhasco, ele os jogava para trás, varrendo-os doCarolan.Masasfileirasdosdefensoreseramparcaseopenhascoeracompridoecheiodepedaçosdeflorestaqueescondiamaaproximaçãodosdemônios.Gruposisoladoscomeçaramaatravessar,eosflancosélficoscomeçaramaceder.

Na Elfitch, os demônios romperam os portões da sexta rampa. Irrompendo pelas fileiras dosdefensores,estilhaçaramastrancasetravasqueseguravamosportõeseosescancararam.Passarampelaentrada,abrindocaminhocomasgarrasatravésdoscorposdeseusprópriosmortos.Amantarainda mantinha a muralha da direita, mas Stee Jans e seus homens dizimados eram forçados arecuar.Nocentrodadefesaélfica,KerrinreuniaaGuardadaCasaecontra-atacavaainvestidadosdemônios,tentandodesesperadamenteempurrá-laparatrás.Oscaçadoresélficosatacaramamassauivante, diminuindo a velocidade da investida. Por um instante, parecia que a Guarda da Casarecuperariaosportões.Porém,umpunhadodeFúrias lançou-sedasmuralhasnoselfos, rasgandocom unhas e dentes. Kerrin tombou, moribundo. O contra-ataque diminuiu e depois parou,interrompido.

Lentamente, os defensores recuaram para cima da Elfitch pelos portões abertos da sétima eúltimarampa,mantendoasfileirasemformaçãoenquantooinimigotentavapassar.ComAmantareSteeJansegurandoocentro,osdefensorespassaramparatrásdasmuralhasefecharamosportões

comforça.Abaixodeles,osdemôniossereuniamdenovo.A trezentosmetrospara lesteda rampa,AnderElessedil encaravaocampodebatalhae sentia

suas esperanças começarem a sumir. Às suas costas, os soldados da Guarda Negra circulavam osJardinsdaVida.OlhouderelanceparaKobold,queestavaàfrentedeles,edepoisparaAllanon.ODruida encontrava-se ao seu lado, sentado em Artaq, o rosto sombrio impassível enquantoobservavaamarédabatalhamudardeumladoparaoutro.

—Allanon,precisamosfazeralgumacoisa—sussurrouporfim.ODruidanãosevirou.—Aindanão.Espere.Por toda a beira do Carolan, os demônios continuavam a rastejar até o topo do penhasco,

lutandoparaderrotarosflancosdoselfos.Aosul,eleshaviamganhadoumaposiçãonopenhascoeengrossavam suas fileiras, repelindo os ataques da cavalaria élfica que procurava desalojá-los. Aonorte, os Escavadores anões aindamantinham suas posiçõesmesmo depois de repetidos ataques,como sagazBrowork unindo cavaleiros e soldados de infantaria emuma sucessão de golpes queporváriasvezesarremessouosdemôniosdasalturasdopenhasco.EhlronTaycavalgavaparaosul,liderandoumacompanhiareservadecavalariapararetomaràencostainferior.Dispararamcontraos demônios com as lanças abaixadas. Houve um terrível embate de corpos, gritos e berroselevando-se, e a batalha estava tão intensa que, à distância, era impossível distinguir amigo deinimigo.Masquandofinalmentea lutaacabou,eramoselfosquerecuavam.Oflancoesquerdodadefesaenrodilhou-serapidamenteeosdemôniosavançaram,uivandodealegria.

Os portões da sétima rampa racharam-se e partiram-se, e os demônios atravessaram-nos. Osdefensoresforamjogadosparatrás,epareceuqueseriamcompletamentederrotados.Masostrollslideraram um contra-ataque súbito e selvagem que varreu os demônios pelos portões, e por uminstanteretomaramasmuralhas.Osdemôniossereuniram;osmaioreseosmaisbrutaistomaramadianteira,eahordaatravessoudenovo.Destavez,atémesmosostrollsforamincapazesdeimpediro avanço. Arrastando seus feridos consigo, os defensores abandonaram os portões emoveram-sepelarampaemdireçãoaotopodopenhasco.

Àquela altura, os demônios haviam ganhado a ponta norte do Carolan assim como a sul,empurrandoosdeterminadosanões,eosflancossemoveramparaopontocentral.Lentamente,osJardinsdaVidatornaram-seumailhanocampodebatalhaenquantoosdemôniosconvergiamemsua direção. Ehlron Tay caiu, arrancado de seu cavalo. Ferido e espancado, foi puxado por seussoldados até estar em segurança e levado para fora do penhasco. Browork sofrerameia dúzia deferimentos e os demônios o cercavam.AVelhaGuarda perdera um terço de sua força.Dois dosCavaleirosdoVentohaviamcaídoeos trêsque sobraram, incluindoDayn, tinhamvoadoparaosJardinsdaVidaparaficarcomAllanon.Portodoolado,oselfoseseusaliadosrecuavam.

OsdefensoresnaElfitchhaviamsidoforçadosavoltarparaocomeçodarampapelosatacantes.SteeJansmantinhaaposiçãocentraldadefesa,cercadoporseussoldados.Elfosetrollsseguravamos flancos. Estava claro para todos que não aguentariammuito tempo. O homem de cicatriz norostoreconheceuoperigodesuaposiçãocomumaolhada.Abaixodeles,osdemôniossereuniamparaoutroataque.Dosdois ladosdabeiradopenhasco, as fileirasdedefesahaviamsucumbidoeespremiam-senapontadarampa.Emmomentos,seriampegosnumapertoinescapável.Precisavamrecuar imediatamente, para refazer as fileiras no perímetro dos Jardins da Vida, onde poderiamconsolidar sua forçaeganhar reforçodaGuardaNegra.Porém,precisavamde tempopara isso, ealguémprecisavalhesdaressetempo.

Comocabeloruivoesvoaçando,ocomandantedosVoluntáriosagarrouoestandartedebatalha

vermelho e cinza de sua companhia e o enfiou entre as pedras da rampa. Ali, os Voluntáriosmanteriamposição.UnindooshomensdaFronteiraaoseuredor, formouumafalangeestreitanocentrodarampa.Ordenouaoselfoseaostrollsquerecuassem.Ninguémquestionouaordem;SteeJans receberao comandodo exército.Rapidamente, abandonaramaElfitch,movendo-sede voltana direção das fileiras da Guarda Negra que cercava os Jardins da Vida. Em momentos, osremanescentesdosVoluntáriosestavamsozinhos.

— O que ele está fazendo? — gritou Ander para Allanon, horrorizado. Mas o Druida nãorespondeu.

Os demônios atacaram. Investiram rampa acima, uivando com raiva. Inacreditavelmente, osVoluntários aguentaram o assalto e o repeliram. Ao mesmo tempo, os defensores élficoscontinuaramasairdolaçoqueameaçaraprendê-los.Novamente,osdemôniossubiramaElfitch,enovamente os Voluntários os repeliram. Não restavam mais do que duas dúzias de homens daFronteira vivos. À frente deles, estava a figura alta de Stee Jans. Reagrupando-se na frente dosJardins da Vida, os defensores que haviam fugido da Elfitch olharam para trás, observando opequeno grupo de homens que ainda resistia à investida dos demônios.Um silêncio baixou pelassuasfileiras.Sabiamcomoaquiloacabaria.

Todo o Carolan estava desimpedido. Stee Jans puxou o estandarte de batalha, erguendo abandeiracinzaevermelhasobresuacabeça,eogritodebatalhadosVoluntáriosressoou.Lentaedeliberadamente, o pequeno grupo começou a semover peloCarolan, na direção dos defensoresquecercavamosJardinsdaVida.Nenhumdelessaiudeformação.Nenhumdelescorreu.

ArespiraçãodeAndersaiudeseuslábiosemumsilvo.Eraumaretiradasemesperança.Aoseucotovelo,apareceuorostomaltratadodeBrowork.

—Estálongedemais,homensdaFronteira!—murmurouele,quasequeparasi.Umaondadedemôniossurgiu,subindopelapontadarampa,rosnando.Aonorteeaosul,eles

começaramasereunir.—Corra!—sussurrouAnder.—Corra,SteeJans!Masnãohaviamaistempoparacorrer.Berrosencheramoardamanhã,quebrandoaquietude

momentânea,eoexércitointeirodosdemôniosavançou.

FoiquandoAllanonsemoveu.UmapalavrarápidaparaDayneasrédeasdeDançarinaestavamemsuasmãos.Ummomentodepois,elemontavanarocagiganteeerguia-senocéu.AnderElessedileaquelesqueestavamcomeleobservavamoDruida,atônitos.AllanonvoouacimadosJardins,comas vestes negras esvoaçando atrás de si, os braços finos erguidos. No Carolan, os demôniosdiminuíramavelocidadeabruptamenteeolharamparacima.Uma trovoadamonstruosaestourounaplaníciecomoseaterrahouvesserachado,eofogoazulirrompeudosdedosdoDruida.Emumarcoqueiadeumapontadoexércitodemoníacoatéaoutra,ofogovarreuafileiraposteriordosatacanteseosreduziuacinzas.Uivosegritosvieramdosdemôniosenquantoumamuralhadefogoergueu-sediantedeles,forçando-osaseafastardosVoluntáriosencurralados.

Umurrodeempolgaçãoveiodoselfos.Umapassagemestreitaseabriranoanelde fogoatéosjardins e o exército élfico posicionado. Os homens da Fronteira passaram por aquele corredor,rapidamente,poisaarmadilhapodiasefecharnovamenteaqualquermomento.Aoredordeles,osdemônios enraiveciam-se,maso fogoosmantinhaàdistância.Corram!,pediaAnder emsilêncio.Aindaexisteumachance!OsVoluntárioscorriameadistânciaentreelesdiminuía.AlgumasFúriasosperseguiram,enlouquecidas,lançando-seatravésdaschamas.MasAllanonasviu.Amãomorena

se ergueu em punho. O fogo Druida se lançou nas criaturas felinas e elas desapareceram numaexplosão brilhante, um pilar de fogo erguendo-se para o céu emarcando o seu fim.Mais acima,Dançarinadeuseugritodeguerra.

ESteeJanseseusVoluntáriossaíramdofogoevoltaramàsegurançadasfileirasélficas.Gritosevivasossaudaram,eosestandartesdebatalhadasQuatroTerrasseergueramnoarmatutino.

NoCarolan,o fogoDruidaqueimavamaisbaixo,porémosdemônioscontinuavamsemtentaratravessá-lo. Tendo as fúrias sido destruídas tão facilmente, ninguém queria encarar Allanonsozinho.Remexendo-seportrásdamuralhadechamas,elesrosnavameberravamcontraovoadorsolitário.Eesperavam.

ODruidaplanouporcimadeles,procurandocomosolhos.Sabiaoqueaconteceriaagora.Umdesafioforafeitoealguémentreosdemôniosdeveriaresponder.ApenasDagdaMorpossuíapoderpara isso— eAllanon acreditava que ele responderia, pois não tinha escolha.DagdaMor podiasentir a magia das Pedras Élficas tão bem quanto Allanon. Ele também devia saber que WilOhmsfordusara asPedras,que abuscapeloFogossangue forabem-sucedida equeoque elemaistemiaaindapoderiaacontecer—umrenascimentodaodiadaEllcrysearestauraçãodaProibição.Era um momento perigoso para o Lorde Demônio. Seu Metamorfo estava morto. Seu Ceifadorfalhara.Seuexércitoforaimpedido.Separasseagora,mesmoquetudooquerestassedasTerrasdoOesteestivessesobseudomínio, seriaumaderrota.AEllcryseraachaveparaasobrevivênciadosdemônios.Aárvoremãeprecisavaserdestruídaeosoloemqueelacrescia,arrasado,paraquenadanascessemaislá.EntãoasementeseriacaçadaeaúltimaEscolhidaencontrada.Osdemôniosentãoteriamcertezadequenãoseriammaisbanidos.Porém,nadadissoaconteceriaseAllanonnãofossedestruídoprimeiro.DagdaMorsabiadissoeteriaqueagir...

Umguincho terrível veio domeio dos demônios.De baixoda bordadoCarolan, uma imensasombranegraergueu-senocéudamanhã.Allanonvirou-se.EraacriaturaaladaquequasepegaraWilOhmsfordeAmberlenoValedoRhennnafugadoRefúgioFirme.ODruidapodiaveracoisaclaramente, um morcego monstruoso, fino e coberto de couro, com seu focinho curto abertorevelando presas brilhantes, as pernas tortas e com garras.Ouvira rumores sobremorcegos assimvivendo nas profundezas dasmontanhas das Terras doNorte,masmesmo ele jamais vira um atéaquelemomento.Eleflutuousobreashordasdemoníacas,seugritoumguinchoaltoeirritantequecongelouamassaescuraabaixoemumaimobilidadesúbita.

Allanonficoutenso.SentadodeladonopescoçocurvodacriaturaestavaDagdaMor.Odesafioforaaceito.

O Druida virou Dançarina bruscamente. O morcego voou para baixo, a forma corcunda dodemônio curvada em seu pescoço. Em uma dasmãos, o Cajado do Poder começou a brilhar emvermelho.Allanonesperou,segurandoDançarinafirmementeembaixodesi.Omorcegogritouemexpectativa.DoCajadodePoderdodemônio,surgiuofogovermelho,mastardedemais.Dançarinadesviou-serapidamente,guiadapelotoquedoDruida,depoisgirouabruptamenteparaaesquerda.Enquanto omonstro alado descia, comos pés em garramirando e errando, e o fogo demoníacoexplodindonoCarolan,AllanonmanobrouDançarina.Omorcegoeralentoepesadoemseuvoo;enquanto ele se erguia, oDruida voou por baixo dele e atacou.O fogo azul queimou as asas e ocorpodomonstro,calcinandosuapeleencouraçada,fazendo-osoltarumgritoagudo.

MaselevoouparatrásenovamenteDagdaMorusouoCajado.Ofogodemoníacoatravessouocéudamanhã,varrendoàfrentedoDruidaesuamontaria.Umamuralhadechamaspairounoaràfrentedeles,edestaveznãohaviacomovirar.Dançarinanãohesitou.Comumgrito,arocapulouparacima,carregandoAllanonsemtocaro fogo,depoisseendireitouemergulhoupeloCarolan.

DosJardinsdaVida,vivasseerguiamdasgargantasdoselfoseseusaliados.Novamente,odemônioatacou, seu imenso transportebaixando-se comagilidade.Novamente,

Dançarinafoimaisrápida.Arocavoouparaooutroladodopenhasco.OfogodemoníacosaiudoCajado, passando pela roca, incinerando a grama abaixo até virar cinzas. Dançarina virou para adireita e depois para a esquerda, mudando de direção tão rapidamente que Dagda Mor nãoconseguia atingi-la com o fogo. E nesse tempo, Allanon golpeou, o fogo Druida rasgando omorcegomonstruoso,queimandoequeimandoatésairfumaçaemtorvelinhosdocorpoarruinadoenquantoelefugia.

Abatalhacontinuou,umdueloaterrorizantequelevavaDruidaedemônioparatodososladosdasuperfíciemarcadadoCarolan,torcendo-seevirando,umtentandodesviar-sedooutro.Porumtempo, a luta esteve equilibrada e nenhum deles conseguiu vantagem. O morcego era pesado efacilmente atingível, mas também era forte e não parecia ter sido afetado pelos ferimentos.Dançarinaerasimplesmenterápidademais;ofogonuncaatocava.Masconformeotempopassavaeabatalhanão chegava aum fim, a roca começava a cansar.Voara embatalhapor trêsdias e suasforçasestavamseesvaindorápido.Cadavezque sobrevoavaopenhasco,o fogo inimigoqueimavamais perto. O silêncio caiu nas fileiras dos defensores. Em cada mente, passava o mesmopensamento.Maiscedooumaistarde,aroca iria fraquejarouoDruidairiaerrar.Então,oLordeDemônioosdominaria.

Momentosdepois, seusmedosseconcretizaram.O fogo foi lançadonocaminhodeDançarinaquandoarocavirousubitamenteparaaesquerda,estilhaçandoaasadograndepássaro.Nomesmoinstante, Dançarina fraquejou e começou a cair em espiral na direção do Carolan. Um gritohorrorizado subiu dos elfos. Novamente o Cajado brilhou e novamente o fogo queimou a rocaferida.Omorcegomergulhou,comospésemgarracurvados.Desesperadamente,Allanonvirouaoveracriaturamonstruosavindoemsuadireção,estendendoosbraçosparacima,asmãosfechadascom força. O morcego estava quase em cima deles quando o fogo azul irrompeu dos dedos doDruida.Acabeça inteiradomorcegoexplodiuedesapareceu.Masa inérciao levouparacimadacombalidaDançarina.DezmetrosacimadoCarolan,omorcegoea rocacolidiram,batendocomuma força terrível. Presos um no outro, caíram para a terra, carregando seus cavaleiros consigo.Mergulharam,atingindoochãocomforçaesmagadora.Dançarinatremeuumavezeficouimóvel.Omorcegosequersemoveu.

Naqueleinstante,pareceuatodosqueabatalhaestavaperdida.Dançarinaeomorcegoestavammortos. Allanon jazia estirado no chão, imóvel e queimado. E DagdaMormovia-se. Uma pernaestavaesmagada,masodemôniolibertou-sedomorcegoabatidoeavançounadireçãodoDruida.Allanon remexeu-se, levantando a cabeça. Lentamente, Dagda Mor arrastou-se até estar a trêsmetrosdoDruidacaído.Emsuasmãos,oCajadodoPodercomeçouabrilhar.

—Allanon!—AnderElessedilouviu-segritar,eoecoreverberounosilênciorepentino.TalvezoDruida tivesseescutado.Dealgummodo,eleseergueu,desviando-sedoraiode fogo

quepassouporele,movendo-setãorápidoqueestavaemcimadeDagdaMorantesqueoCajadodoPoderpudesseserusadopelasegundavez.OdemôniotentoubaternelecomoCajado,masasmãosdeAllanonseagarraramemsuasuperfícieretorcida.Ofogododemônioacendeu-sedentrodoCajadoeadorpercorreuAllanon.Massuaprópriamagiaseergueuemsuadefesa,eofogoazulmisturou-se ao vermelho.ODruida e o demônio lutavamde um lado para outro, fazendo força,cadaumtentandolibertaroCajadodasmãosdooutro.

Allanon alcançou uma reserva final de força no fundo de seu ser, e o fogo azul explodiu dedentro de si. Irrompeu de suas mãos e percorreu todo o Cajado do Poder, apagando o fogo

demoníaco,passandoparaocorpodeDagdaMor.Osolhosdodemônioarregalaram-sedehorroreeledeuumgrito,altoeterrível.Allanonlevantou-se,empurrandoaformacontorcida,forçandolentamente o demônio a se ajoelhar. Novamente o demônio gritou, o ódio escorrendo dele.Desesperadamente, lutou contra o fogo que envolveu seu corpo, esforçando-se para quebrar ocontroledoDruida.MasasmãosdeAllanonfecharam-sesobreassuascomoalgemas,prendendo-as com força aoCajado.DagdaMor tremeu violentamente e ficoumole, seu gritomorrendo atévirarumsussurro,eosterríveisolhosficaramvazios.

OfogoDruidapassouporeledesimpedido,cobrindo-ocomumamortalhadeluzazulatéoseucorpoexplodiremcinzasesumir.

OsilênciocaiusobreoCarolan.AllanonestavasozinhocomoCajadodoPoderaindaapertadonasmãos.Olhousemfalarnadaparaoarruinadopedaçodemadeira,incineradoesoltandofumaça.Então,partiu-oejogouospedaçosnochão.

Virando-se na direção dos Jardins daVida, assobiou para queArtaq viesse. Sozinho, o cavalonegrotrotoudasfileirasélficas.Allanonsabiaquelherestavampoucosminutos.Suaforçaseforaeeleestavaempésomenteporpuraforçadevontade.Àsuafrente,amuralhadefogoquemantinhaosdemôniosafastadosmorria.Eles já se agrupavamno seuperímetro, comolhos famintospresosnele,esperandoparaveroqueaconteceriaemseguida.AdestruiçãodeDagdaMornãosignificavanadaparaeles.Oqueimportavaeraoódioquesentiampeloselfos.ODruidaretribuiuosolhares,com um sorriso breve e debochado. Tudo o que os detinha era o medo que tinham dele. Nomomentoemqueoperdessem,atacariam.

Artaqcutucouseuombroerelinchousuavemente.Semdeixardeencararosdemônios,Allanonandouparatráscomcuidadoatéconseguiragarraracrinaeosarreiosdocavalo.Dolorosamente,ergueu-se até a sela, quase desmaiando com o esforço. Agarrando as rédeas, ele virou Artaq.Aparentementesempressa,começouocaminhodevoltaàsfileirasdadefesaélfica.

Foiumafugaagonizantementelenta.ManteveArtaqempasso,deliberadamente;umtrotemaisrápido teria sidodemaispara ele.Metro ametro, os JardinsdaVida aproximaram-se.Pelo cantodosolhos,podiavermovimentonasfileirasdosdemônios.Unspoucosentreelesjátentavampassarpelaschamasquemorriam,gritandoatrásàs suascostas.Outros rapidamentecomeçarama imitá-los.Eleagarrouaselacomasduasmãosenãosevirou.Embreve,pensou,embreve.

Subitamente, o grupo inteiro atravessou, uivando e girando. Por todos os lados, os demôniosvinhamatrásdele. Soubenamesmahoraque ainda estava longedemaisdos JardinsdaVidaparaescapardelesnaqueleritmo.Nãotinhaescolha.ApertouosflancosdeArtaqcomoscalcanhareseocavalopulouàfrente.OanimalcorreupeloCarolan,forçandoocorpopoderoso.AtonturatomouoDruidaesentiuseuapertofraquejar.Iacair.

Porém, de algum jeito, não caiu. De algum jeito, conseguiu segurar até finalmente estardefronteàs fileirasélficas.Comumimpulso,Artaqpassou,carregando-opelasasmãosestendidasdeelfos,trollseanõesatéosportõesdeferrodosJardins,ondefinalmenteparoucomestrondo.

Mesmoentão,Allanonnãocaiu.Suadeterminaçãoférreaomanteveemcimadocavalo.Comorostocobertodesuor,virou-separaolharoCarolanenquantoashordasdemoníacasaproximavam-sedosJardins.Nasmuralhas,osdefensorespreparavam-se.

Pelomenos,elestêmumachanceagora,pensou.Pelomenos,eulhesdeiisso.Umaconfusãodegritosergueu-seaoseuredoremãosapontaramparaoscéus.Daynestavaao

seulado,suadescrençaaparentenogrito.—Genewen!ÉGenewen!OsolhosdoDruida se ergueram.Parao sul,quase invisívelnobrilhodo soldomeio-dia,um

grandepássarodouradovoavanadireçãodeArborlon.

CapítuloLII

WilOhmsfordolhouparabaixohorrorizado.Osoleraumaexplosãodeslumbrantedeluzbrancaqueofaziaapertarosolhos.Dentrodesi,afebreaindaqueimava.Sentia-sefracoetonto,comsuorescorrendopelocorpo,secandoaovento.Genewenocarregavanoalto,acimadapaisagemverdedasTerrasdoOeste,comasasasestendidasenquantoplanavanascorrentesdevento.Ascorreiasdecouro prendiamWil à roca, e seu braço estilhaçado estava numa tala, amarrado. Na frente deleestava Perk, balançando o corpo pequeno com os movimentos de Genewen, suas mãos e vozguiandoovoodela.AninhadapertodopequenoCavaleirodoVento,quaseperdidadentrodeumacoberturadevestes,estavaAmberle.OsbraçosaoredordesuacinturaeramdeEretria.Virou-seeosolhosescurosdanômadeencontraramosseus.Suaexpressãoeradesolada.

Abaixodeles estava a cidade élfica deArborlon.Corpos cobriamoCarolan, fogoqueimava asfaces do penhasco e a Elfitch estava em ruínas. Cavaleiros e lanceiros, alabardeiros e arqueiroscercavamosJardinsdaVidacomoumaparededeferro.Aoredordelas,umaondadecorposnegroseretorcidos,milharesdeles,epareciaqueaqualquermomentoosdefensoresseriamderrotados.

Osdemônios,sussurrouele,semsom.Osdemônios!Subitamente,percebeuqueAmberleseremexia.Aelfaajeitara-se,aindacurvadapertodePerk,

efalavacomogaroto.AmãopequenadelaapertouoombrodoCavaleirodoVento.Eleassentiu.Genewen começou a descer suavemente na direção doCarolan e dos Jardins daVida.Os Jardinseramumailhadesebesesculpidasecanteirosde florescuidadosamenteorganizadoseserenos,nomeiodeummardegramaqueimadaedemôniosgritando.Wilobservouobrilhodasarmasàluzdosol enquanto os defensores combatiam as hordas que vinham contra eles. As criaturas negras jáestavamavançando.Algunspoucosseencontravamdentrodasmuralhas.

NapequenaelevaçãonocentrodosJardins,acascasemvidaqueforaaEllcrysjaziaesquecida.Genewen gritou de repente, um guincho penetrante que cortou o barulho da batalha que

aconteciaabaixo.Poruminstante,todososolhossevoltaramparaaroca.Elamergulhou,comoumpedaçocadentedesol.Gritosdereconhecimentosurgiramdentreoselfos.UmCavaleirodoVento,gritavam,eprocuravamfutilmenteporoutros.

Genewen adentrou os Jardins, descendo lentamente no sopé da pequena elevação.As grandesasassedobrarameacabeçaescarlateabaixou-se.Perkdesmontou,trabalhandoagilmenteparaabriras correias que prendiam os outros. LibertouAmberle primeiro, e ela escorregou sem forças dascostasdeGenewen,caindode joelhosquandoseuspéstocaramochão.Wil lutouparaalcançá-la,masafebreoenfraqueceraeascorreiasnãoabriam.

Alémdassebesecanteiros,ossonsdabatalhaseaproximavam.—Amberle!—chamouele.Ela estavadepénovamente, apoucospassosdele, erguendoo rosto infantil.Porum instante,

seusolhosinjetadosfixaram-senosdeleepareceuqueelaiafalaralgo.Depois,semdizernada,elavirou-seecomeçouasubiraelevação.

—Amberle!—gritouWil,esedebateucontraascorreiasqueoprendiam.Genewenremexeu-se,gritando,ePerklutouparaacalmá-la.

—Fique quieto, Curandeiro— Eretria tentou avisá-lo,mas ele estava em um ponto além deaviso.SóviaAmberleafastando-sedele.Estavaperdendo-a.Podiasentirisso.

Genewencomeçouaerguer-se,assustadacomojovemsedebatendo.Perkagarrouseusarreiosesubiu, tentandoemvãocontrolá-la.A facadeEretriasurgiu,cortadoascorreiasqueseguravamaela e Wil. Um instante depois, os dois estavam caindo, tombando de cabeça em um monte dearbustos. A dor correu pelo corpo ferido do jovem enquanto ele lutava para ficar de pé. Eretriachamou-o,maseleaignorou,cambaleandoatrásdaelfaqueseafastava.Elajáestavanametadedaelevação,movendo-selentamentenadireçãodaárvore.

Uivos vieram demuito perto. De repente, meia dúzia de demônios irrompeu das sebes. PerkaterrissaraGenewendenovo,acabaradedesmontareestavaindoatrásdeWil.Nomesmoinstante,osdemôniosavançaramcontraele.MasojovemdoValeSombriojáosvira.Seupunhovirou-senadireçãodeles,apertandoasPedrasÉlficas.Ofogoazulexplodiunosdemônios,quedesapareceram.

—Saiadaqui!—gritoueleparaPerk.—Voe,CavaleirodoVento.Eretriatropeçouatéalcançá-lo.Outrosdemônioscomeçaramaaparecerdascercas-vivasqueos

escondiam, guinchando ao se aproximar. Um destacamento da Guarda Negra surgiu parainterceptá-los,vindocomas lançasapostos.Masosdemôniospassaram lutandopeloselfos, indona direção deWil. Ele se virou para enfrentá-los e novamente as Pedras Élficas brilharam. Perkestava de novo montado em Genewen, mas em vez de voar para um lugar seguro, o pequenoCavaleiro tinha virado a roca gigante na direção dos atacantes, fazendo-os recuar. Porém, haviadezenasdeles,vindodetodososladosenemofogodasPedrasÉlficaseraobastanteparaimpedi-los.

Umúnicogritoagudoergueu-seporcimadosberrosdosdemôniosepareceuficarsuspensonocalordomeio-dia.Wilvirou-se.NotopodaelevaçãoestavaAmberle,comosbraçosesticadosparaagarrar o tronco da Ellcrys. Com seu toque, a árvore pareceu cintilar como as águas de um riopegaspelosraiosdosoledesintegrar-senumachuvadepoeiraprateadaquecaiuaoredordaelfacomoneve.Elaficousozinha,debraçoserguidos,endireitandoocorpofrágil.

EAmberlecomeçouamudar.—Amberle!—gritouWilumaúltimavez,caindodejoelhos.O corpo da jovem elfa começou a perder a forma, a figura humana derretendo, as roupas se

rasgando e caindo. Suas pernas uniram-se e seus pés estenderam-se para deslizar na terra;lentamenteseusbraçoserguidosesticaram-seedividiram-se.

—Oh,Wil!—sussurrouEretriaaocairdejoelhosaoseulado.Amberlese fora.Emseu lugar,estavaaEllcrys,perfeitamente formada,cascaprateadae folhas

vermelhasbrilhandonosol,nascidadenovonomundodoselfos.Um lamento angustiado ergueu-se entre os demônios.A Proibição foi restaurada. Por todo o

Carolan, eles gritavam ao serem arrastados de volta por ela. Freneticamente, tentavam fugir,lutandopara escapar da escuridão que se fechava inexoravelmente ao redor deles.Mas não haviaescapatória. Um por um, eles foram sumindo da luz, centenas e depois milhares, grandes epequenos,formasescurasquesedebatiam,atéquefinalmenteoúltimodesapareceu.

OsilênciorecaiusobreosdefensoresdeArborlonenquantoolhavamaoredorsemsaberoquefalar.Eracomoseosdemôniosjamaistivessemexistido.

NosJardinsdaVida,WilOhmsfordchorava.

CapítuloLIII

Os elfos encontraram-no aliminutos depois. Por ordemdeAnder Elessedil, carregaram-no atéArborlon.ChocadodemaiscomaperdadeAmberleparaargumentar,comocorpodevastadopelafebre,deixouqueolevassem.FoicarregadoatéacasasenhorialdosElessedil,pelosseuscorredoresepassagens,silenciososesombrios,atéumquartoondeocolocaramnacama.Curandeirosélficoslimparam e cuidaramde suas feridas e consertaram seu braço estilhaçado.Deram-lhe um líquidoamargo para beber que o deixou tonto, e enrolaram-no com cuidado em lençóis e cobertores.Depoisodeixaram,fechandoaportaemsilêncioaosair.Segundosdepois,adormeceu.

Enquanto dormia, sonhou que perambulava por uma escuridão profunda e impenetrável,irremediavelmenteperdido.EmalgumlugardentrodamesmaescuridãoestavaAmberle,masnãoconseguia encontrá-la; quando chamava, a resposta dela era fraca e distante. Gradualmente,tornou-seconscientedeoutrapresença, fria,máe estranhamente familiar—algoqueencontraraantes. Aterrorizado, começou a correr, cada vez mais rápido, lutando para abrir caminho entreteias de silêncio negro. Mas a coisa o perseguia; apesar de não fazer ruído; conseguia senti-la,sempre um passo atrás. Finalmente, seus dedos tocaram-no e o rapaz gritou de medo.Abruptamente a escuridão desapareceu. Havia jardins ao seu redor, belos e cheios de cores, e acriatura se fora.Oalívioopercorreu; estavaa salvonovamente.Masno instante seguinte,ochãoembaixodeseuspéssacudiu-seeele foi jogadoaoar.Subitamente,pôdeverquealémdos jardinsuma onda negra aproximava-se lentamente, fechando-se ao redor dele, erguendo-se como umoceanonoqualeleseafogaria.Desesperado,virou-separaencontrarAmberle,eaviu,dardejandocomoumaapariçãomudapelocentrodo jardim—umvislumbree sumiu.Váriaseváriasvezesachamou,masnãohouveresposta.Aondanegraquebrouemcimadeleeelecomeçouaafundar...

Amberle!Acordou sobressaltado, com o corpomolhado de suor. Em uma pequenamesa, encostada na

paredeoposta,umavelasolitáriaqueimava.Assombrasenvolviamoquartoeoanoitecercaíasobreacidade.

—WilOhmsford.Elevirou-seaoouvirseunome,procurando.Umafiguraaltaeencapuzadaestavasentadanasua

cama,negraesemrostonobrilhofracodachamadavela.Ojovempiscoulentamenteaoreconhecê-lo.Allanon.Tudo voltou à suamente de uma vez. A amargura remexeu-se dentro de si, tão tangível que

conseguiusentirseugosto.Quandofinalmenteconseguiufalar,suavozeraumsilvobaixo.—Vocêsabia,Allanon.Vocêsempresoube.Nãohouveresposta.AslágrimasqueimavamnosolhosdeWil.Eleselembroudaquelaprimeira

noite, em Storlock, quando conhecera o Druida. Ali, ele já soubera que não podia confiar emAllanon, que não devia confiar nele. Flick o avisara; Allanon era um homem de segredos, e osescondiabem.

Masaquilo—comopodiaterescondidoaquilo!

— Por que você não me contou? — As palavras eram um sussurro. — Você podia ter mecontado.

Houvemovimentodentrodassombrasdocapuz.—Nãoteriaajudadosevocêsoubesse,jovem.—Não teria ajudado você, é isso que quer dizer, não é? Vocême usou! Você deixou que eu

pensasseque,sepudesseprotegerAmberledosdemônios,seelapudessesertrazidadevoltaasalvoatéArborlon,tudoficariabem.Vocêsabiaqueeuacreditavanissoesabiaquenãoeraassim!

ODruidaficouemsilêncio.Wilsacudiuacabeça,incrédulo.—Vocênãopodiaaomenostercontadoparaela?—Não,meu jovem. Ela não teria acreditado emmim. Ela não se deixaria acreditar emmim.

Seria pedir demais dela. Pense no que aconteceu quando falei com ela no Refúgio Seguro. ElasequerqueriaacreditarqueaindaeraumadentreosEscolhidos. InsistiaemdizerquesuaEscolhatinhasidoumerro.Não,elanãoteriaacreditadoemmim.Nãonaquelemomento.Elaprecisavadetempoparaaprenderaverdadesobresieentenderaquelaverdade.Nãoeraumacoisaqueeupodiaexplicaraela;eraalgoqueelaprecisavadescobrirporsisó.

AvozdojovemdoValeSombrioestavatrêmula.—Palavras,Allanon,vocêé tãobomcomelas.Podeconvencerosoutros tão facilmente.Você

meconvenceuumavez,nãofoi?Maseunãovouserconvencidodestavez;euseioquevocêfez.—Entãovocêtambémdevesaberoqueeunãofiz—respondeuAllanonemvozbaixa.Inclinou-

separafrente.—Adecisãofinalfoidela,Wil,nãominha.Eunemestavaláparatomaressadecisão,apenasgarantiqueelativesseaoportunidadedetomá-la.Eufizissoenadamais.

—Nadamais?Vocêgarantiuqueeladecidissecomovocêqueria.Eunãochamariaissodenada.—Eugarantique ela entendessequais seriamas consequênciasdadecisão,oquequerque ela

decidisse.Issoéalgocompletamentediferente...—Consequências!—AcabeçadeWilergueu-secomviolênciadotravesseiroesuarisadasúbita

soou cheiade ironia.—Oque você sabe sobre consequências,Allanon?—Avozdele tremeu.—Vocêsabeoqueelasignificavaparamim?Vocêsabe?

Lágrimascorriamporseurosto.Lentamente,elesedeitoudenovo,sentindo-seestranhamenteenvergonhado. Toda a amargura o deixara, e o vazio que ela deixara doía. Desviou o olhar deAllanon, constrangido, e os dois ficaram em silêncio. Na escuridão do quarto, o brilho da velasolitáriaostocavasuavemente.

Passou-semuitotempoantesdeojovemvoltaroolharparaoDruida.—Bem,estáacabadoagora.Elasefoi.—Orapazengoliuemseco.—Vocêpoderiapelomenos

explicarporquê?ODruida não disse nada por ummomento, encolhido nas sombras protetoras de suas vestes.

Quandofinalmentefalou,suavozeraquaseumsussurro:—Entãoescute.Elaéumacriaturamaravilhosa,essaárvore,aEllcrys,umpedaçovivodemagia

formadopelauniãodeumavidahumanacomofogo-terra.FoifeitaantesdasGrandesGuerras.Osmagos élficos a conceberam quando os demônios foram finalmente derrotados e havia anecessidadede impedi-losdeameaçarnovamentea terradas fadas.Oselfos,você lembra,nãosãoumpovoviolento.Apreservaçãodavida era suamotivaçãoe seu trabalho.Mesmocomcriaturastãodestrutivasemalignascomoosdemônios, elesnãoconsiderariamaaniquilaçãodeliberadadeuma espécie. Banimento da terra parecia ser a alternativa mais aceitável, mas eles sabiam queprecisava serumbanimentocompoderobastanteparaquemilharesdeanosdepoisosdemôniosainda estivessem sujeitos a suas leis.O banimento teria de ser para um lugar onde não pudessem

ferir os outros.Entãoosmagos élficosusaram suasmagiasmaispoderosas, aquelas quepediamomaior dos sacrifícios, o presente voluntário de uma vida. Foi esse presente que permitiu que aEllcryssurgisseeaProibiçãofossecriada.

Eleficouquietoporummomento.—Vocêprecisaentenderomododevidadoselfos,anaturezadocódigoquegovernaessemodo

de vida, para apreciar o que a Ellcrys realmente representa por que, então, Amberle decidiu setransformarnela.Oselfosacreditamquetêmumdébitocomaterra,poisaterracriaeprovémportodaavida.Oselfosacreditamquequandoalguém tiraalgoda terra, alguémprecisadaralgodevolta. Essa crença é tradicional; é ritual. Eles recebem suas vidas, portanto precisam dar vida devolta.Conseguemisso,jovem,comumavidamarcadapeloserviçoàterra,esforçando-secadaumàsuamaneira para que a terra seja preservada. A Ellcrys é uma extensão dessa dedicação. Ela é apersonificaçãodacrençadequeaterraeoselfossãomutuamentedependentes.AEllcryséauniãoda terra comavida élfica,umauniãoconcebidaparaprotegê-los contraummalquedestruiria aambos.Amberleentendeuissonofim.ElaviuqueoúnicojeitopeloqualasTerrasdoOesteeseupovopoderiamsersalvoserapelosacrifíciodela,suadeterminaçãoemsetornaraEllcrys.Elaviuqueasementequecarregavasópoderiaficarvivasealguémlhedesseessavida.

Ele parou e inclinou-se para frente lentamente, projetandouma sombra sobre o jovematentocomsuafigurasombria.

—PercebaqueaprimeiraEllcrystambémeraumamulher;nãoéporacasoquenosreferimosàárvore como uma dama. A Ellcrys deve ser sempre uma mulher, pois apenas uma mulher podereproduziroutrosdesuaespécie.Osmagospreviramessanecessidadedeprocriação,apesardenãopoderem prever a frequência com que essa procriação se mostraria necessária. Escolheram umamulher, uma jovem que, imagino, era muito parecida com Amberle, e a transformaram. Entãoestabeleceram a ordem dos Escolhidos para que ela pudesse ser protegida e que quando a horachegasse pudesse ter como selecionar sua sucessora. Mas eram homens, não mulheres, que elaescolhiaportodosessesanos,excetoporalgunspoucos.Ashistóriasnãoregistramoporquê,nemela sabiamais.As seleções foramfeitasporhábitodurantemuito tempo;ela sóescolhiamulheresquandoeranecessário.Talveztivessealgoavercomsuacriaçãonotempodosmagosélficos.Talvezlhehouvessemprometidojovenshomensparaservi-la,talvezelahouvessepedido.Talvezaescolhade jovenshomens fossemaisaceitávelparaoselfos.Nãosei.Dequalquer forma,quandoescolheuAmberle,aEllcrysjádesconfiavaquepoderiaestarmorrendo.Nãopodiatercerteza,claro,porqueeraaprimeiradesuaespécieeninguémjamaissouberaquandosuamortechegariaouquaissinaisindicariam isso. Na verdade, muitos acreditavam que ela não podia morrer. E as característicasfísicasdapartedela que forahumanahaviamevoluídopara algo completamentediferente, entãodali não tinha como vir nenhuma ajuda.Houve outras vezes em que ela pensou estarmorrendo,quandopensouestarcorrendoperigoosuficienteparaprecisarescolheraquelaqueiriasucedê-la.Acadavezelaselecionavaumamulher...poucasvezesapenas.Aúltimavezfoiháquinhentosanos.Nãoseioquecausouisso,entãonãopergunte.Nãofoirealmenteimportante.QuandoAmberlefoiEscolhida, a primeiramulher emquinhentos anos, a surpresanão foi pouca entreos elfos.Mas aseleçãodeAmberletinhaumaimportânciamaiordoquequalquerumperceberaporqueaEllcrys,aoescolhê-la,estavaolhandoparaelacomoumapossívelsucessora.Emaisdoqueisso,naverdade:olhavaparaAmberle comoumamãe vê seu filhonão-nascido.Uma caracterização estranha, vocêpodedizer,maspensenas circunstâncias. Se a árvore estavaprestes amorrer, elaproduziriaumasemente,eesta sementeeAmberle iriamse tornaruma,umanovaEllcrysnascidapelomenosempartedaantiga.AseleçãodeAmberlefoifeitacomessaprevisão,enecessariamentecarregavaemsi

muitodo sentimentoqueumamãe tempelo filhonão-nascido. Fisicamente, amulher que fora aEllcryshaviamudado,masemocionalmenteelamantevemuitodoque fora.E foiumpoucodissoqueaárvoresentiunajovem.Foiporissoquesetornaramtãopróximasnocomeço.

Elerefletiuporummomento.— Infelizmente, foi essa proximidade que acabou causando problemas. Quando cheguei a

Arborlon, acordadopela erosãodaProibição epela ameaçada travessiadosdemônios, fui atéosJardins daVida para falar com aEllcrys. Elame contou que depois de selecionarAmberle comoumaEscolhida,elatentoureforçaroslaçosqueligavamajovemaela.Fezissoporsentiradoençacrescendodentrodesi.Percebeuquesuavidaestavachegandoaofim;asementequecomeçavaaseformardentrode si deveria ser passada aAmberle.Namorte, ela respondeu à jovem comaquelemesmoinstintomaternal.Elaqueriaprepará-laparaoqueviria,paraquevisseumpoucodabeleza,da graça e da paz que ela apreciara em vida.Queria queAmberle fosse capaz de entender o quesignificaria se unir à terra, ver sua evolução através dos anos, experimentar suas mudanças —suponhoquequeriaqueelaentendesseumpoucodoqueécrescer,coisaqueumamãesabeeumacriançanão.

Wil assentiu lentamente. Estava pensando naquele sonho que Amberle e ele haviamcompartilhadodepoisqueoReidoRioPrateadoos resgataradosdemônios.Naquele sonho, elesprocuravamumpelooutro—eledentrodeumbelojardim,tãolindoquedavavontadedechorar;elanoescuro,chamando-oenquantoeleestavaàsuafrente,massemconseguirresponder.Nenhumdosdoisentenderaqueaquele sonhoeraumaprofecia.NenhumdosdoisentenderaqueoReidoRioPrateadolhesderaumvislumbredoqueestavadestinadoaacontecer.

ODruidacontinuou:—AEllcryserabem intencionada,mas superprotetora.ElaassustouAmberlecomsuasvisões,

suasadvertênciasmaternaisconstanteseaconfusãocomaidentidadedeAmberle.Aelfanãoestavaprontaaindaparaa transiçãoqueaEllcrys estavaansiosaparaqueacontecesse.Ficouassustadaebrava, e deixou Arborlon. A Ellcrys não entendeu; continuou esperando que Amberle voltasse.Quandoadoençatornou-seirreversíveleasementeficoucompletamenteformada,elachamouosEscolhidos.

—MasnãoAmberle?—Wilouviacomatençãoagora.—Não,nãoAmberle.ElapensouqueAmberleviriasozinha,sabe.Elanãoqueriachamá-lapor

que, quando fizera isso antes, afastara mais a garota. Ela tinha certeza de que, quando Amberlesoubessequeelaestavamorrendo,viria.Infelizmente,aEllcrystinhamenostempodoquepensava.A Proibição começou a se erodir e ela não conseguiamaismantê-la. Um punhado de demôniosatravessou e os Escolhidos foram mortos; todos menos Amberle. Quando eu apareci, a Ellcrysestavadesesperada.ElamedissequeAmberleprecisavaserencontrada,entãofuiatrásdela.

Umvestígiodenovaamarguraescureceuorostodojovem.—EntãonoRefúgioSeguro,vocêjásabiaqueaEllcrysaindaconsideravaAmberlemembrodos

Escolhidos.—Sabia.—EsabiaqueeladariaasementeparaAmberlecarregar.—Voulhepouparo trabalhode fazermaisperguntas.Sabiade tudo.AshistóriasdosDruidas

emParanorrevelaramaverdadedecomoaEllcryssurgiu,averdadedecomoelaprecisavavoltarasurgir.

Houveumabrevehesitação.—Entendaumacoisa, jovemdoValeSombrio.Eutambémgostavadela.Eunãoqueriamentir

paraela, sevocê insisteemchamarminhasomissõesdementiras.MaseranecessárioqueAmberledescobrisse a verdade sobre si de outra forma. Eu dei a ela um caminho para seguir; não dei ummapa que o explicaria em todas as suas voltas e curvas. Pensei que as escolhas que poderiam sernecessáriasfossemdela.Nemvocê,eu,nemninguémtinhaodireitodefazeressasescolhasporela.Apenaselapossuíaessedireito.

WilOhmsfordbaixouosolhos.—Talvez.Etalveztivessesidomelhorseelativessesabidodesdeocomeçoparaondeocaminho

que vocêmostrou a levaria.— Ele sacudiu a cabeça devagar.— Estranho. Eu pensei que ouvir averdadesobretudoqueaconteceuajudaria.Masnão.Nãoajudouemnada.

HouveumlongosilêncioeWillevantouoolhardenovo.—Dequalquermodo,não tenhoodiretode culpar vocêpelo que aconteceu.Você fez o que

tinha que fazer, eu sei disso. Sei que as escolhas foramdeAmberle. Eu sei.Mas perdê-la assim, émuitodifícil...

ODruidaassentiu.—Lamento,jovem.ElecomeçouaselevantareWilperguntousubitamente:—Porquevocêmeacordouagora,Allanon?Paramecontarisso?Ohomemaltoseendireitou,escuroesemrosto.—Paracontarissoeparamedespedir,WilOhmsford.Wiloencarou.—Despedir?—Atéoutrodia,jovemdovale.—Masparaondevocêestáindo?Nãoobteveresposta.Wilsentiu-sesonolentodenovo;oDruidaestavadeixando-ovoltarparao

sono do qual o acordara. Teimoso, lutou contra. Ainda tinha coisas a dizer, e queria dizê-las.Allanonnãopodiadeixá-loassim,desaparecendonanoitedeformatãoinesperadaquantosurgira,encapuzadocomoumladrãoquetemessequeomenorrelancedeseurostooentregasse...

Umasúbitasuspeitaatravessousuamentenaqueleinstante.Fracamente,eleestendeuasuamãoeagarrouafrentedaroupadoDruida.

—Allanon.Osilêncioencheuopequenoquarto.—Allanon,deixe-meverseurosto.PorummomentopensouqueoDruidanãooouvira.Allanonficousilenciosoaoladodacama,

encarando-odassombrasdeseumanto.Ojovemesperoue,lentamente,asgrandesmãosdoDruidaergueram-seepuxaramocapuzparabaixo.

—Allanon!—WilOhmsfordsuspirou.O cabelo e a barba do Druida, antes pretos como carvão, estavam cheios de mechas cinza.

Allanonenvelhecera!—O preço a se pagar pelo uso damagia.—O sorriso deAllanon era lento e debochado.—

Destavez,temoterexagerado;eladrenoudemimmaisdoqueeuqueriadar.—Deudeombros.—Sótemosumaquantidadedeterminadadevidaemnós,jovem,issoenadamais.

—Allanon—chamouWilbaixinho.—Allanon,desculpe.Nãosevá.AllanoncolocouocapuzdevoltaeestendeuasmãosparapegarasdeWil.— Está na hora de ir. Nós dois precisamos descansar. Durma bem,Wil Ohmsford. Tente não

pensar mal de mim; acredito que Amberle não pensaria. Encontre conforto nisso: você é um

CurandeiroeumCurandeiropreservaavida.Foioquevocêfezaqui,peloselfosepelasTerrasdoOeste.EapesardeparecerquevocêperdeuAmberle,lembre-sedequevocêsempreaencontraránaterra.Toque-aeelaestarácomvocê.

Elefoiparaaescuridãoeapagouavelacomosdedos.—Nãová—chamouWil,sonolento.—Adeus,Wil.—Avozgravepareceuvirdeumnevoeiro.—DigaaFlickqueeleestavacerto

sobremim.Elevaigostardisso.—Allanon—murmurouojovembaixinho,eadormeceu.

Pelos corredoresmal iluminadosda casadosElessedil, oDruidapassou, tão silenciosoquanto assombrasdanoite.AGuardadaCasapatrulhava aqueles corredores, caçadores élficos quehaviamlutado e sobrevivido à batalha da Elfitch, homens duros e que não se intimidavam facilmente.Porém,abriampassagemparaAllanon;algonoolhardoDruidasugeriaquedeviamfazê-lo.

Momentosdepois,eleestavanoquartodoReiÉlfico,fechandoaportadevagaratrásdesi.Aluzdevelasiluminavaoambientecomumbrilhofracoenebulosoqueseinfiltravapelaescuridãoatéoscantosescurosenichosescondidoscomootoquedeumhomemcego.Asjanelasencontravam-sefechadaseascortinaspuxadas,cobrindooquartoemsilêncio.Emumacamalargadoladooposto,jaziaEventine,enroladoembandagensecobertoresdelinho.Aoseulado,Andercochilavaemumacadeiradeespaldaralto.

Semfalar,Allanonavançouatéopédacama.OvelhoReidormia,suarespiraçãolentaedifícil,sua pele da cor de pergaminho novo. O fim de sua vida estava próximo. Era o fim de uma era,pensou o Druida. Todos teriam partido agora, todos os que lutaram contra o Lorde Feiticeiro,todososqueajudaramnabuscapelaelusivaEspadadeShannara—todomenososOhmsford,SheaeFlick.

Umsorrisoirônicoesombrioperpassoulentamenteseuslábios.Eele,claro.Eleaindaestavaali.Elesempreestavaali.

Porbaixodascobertasdelinho,Eventinemexeu-se.Vaiaconteceragora,Allanondisseasi.Pelaprimeiraveznaquelanoite,umtoquedeamargurasurgiuemseurostoduro.

Silenciosamente,voltouparaassombrasnofundodoquartoeesperou.

Ander Elessedil acordou com um sobressalto. Com os olhos embaçados de sono, espioucuidadosamente o quarto vazio, procurando por fantasmas que não estavam ali. Uma sensaçãoassustadoradesolidãoovarreu.Tantosdosquedeviamestaralinãoestavam—Arion,Pindanon,Crispin,EhlronTay,Kerrin.Todosmortos.

Jogou-separa trásna cadeira, entorpecidopelo cansaço aténão sentirmaisnada alémdadordasjuntasemúsculos.Porquantotempodormira,perguntou-se?Nãosabia.Gaellogoiriaestardevolta, trazendo comida e bebida, e juntos continuariam aquela vigília, vigiando o Rei abatido.Esperando.

Aslembrançasoassombraram,memóriasdeseupaiedoqueacontecera,imagensespectraisdopassado, de tempos, lugares e acontecimentos que jamais se repetiriam. Eram agridoces, umalembrançadaalegriacompartilhadaedesuaefemeridade.Preferiaqueas lembrançasodeixassemempaznaquelanoite.

PensousubitamenteemseupaieemAmberle,nocarinhoespecialquesentiamumpelooutro,na proximidade que perderam e reencontraram — tudo se fora. Ainda era difícil entender a

transformaçãopelaqualAmberlepassara.Tinhaqueficarselembrandoqueforareal,quenãotinhaimaginado. Ainda conseguia enxergar o pequeno Cavaleiro do Vento, Perk, contando o quetestemunhara, seu rosto de criança admirado e assustado ao mesmo tempo, tão determinado epreocupadoquenãopodiaduvidardele.

Sua cabeça pendeu para trás e seus olhos se fecharam. Poucos sabiam da verdade. Ainda nãodecidirasedeviaounãocontinuarassim.

—Ander.Eleseendireitoucomumsobressalto,eosolhosazuisdeseupaiencontraramosseus.Ficoutão

surpresoqueporuminstantesimplesmenteencarouovelho.—Ander,oqueaconteceu?AvozdoReiÉlficoeraumsussurrofracoeásperonosilêncio.RapidamenteAnderajoelhou-se

aoseulado.—Acabou—respondeucomsuavidade.—Nósvencemos.Osdemôniosestãopresosmaisuma

veznaProibição.AEllcrys...Nãoconseguiuterminar.Aspalavraslhefaltaram.Amãodeseupaisaiudedebaixodascobertas

paraencontrarasua.—Amberle?Anderinspiroufundoehavialágrimasemseusolhos.Eleseobrigouaretribuiroolhardopai.—Asalvo—sussurrouele.—Estádescansandoagora.Houveumalongapausa.Umtraçodesorrisopassoupelorostodeseupai.Seusolhossefecharam.Ummomentodepois,estavamorto.Allanonficounassombrasporváriosminutosantesdedarumpassoàfrente.—Ander—chamouele,baixo.OPríncipelevantou-se,soltandoamãodeseupai.—Elesefoi,Allanon.—EvocêéoRei.SejaoReiqueelequeriaquevocêfosse.Andervirou-se,osolhosprocurando.—Vocêsabiadisso,Allanon?Euestivemeperguntando,desdeaFendadeBaen.Vocêsabiaque

issotudoaconteceriaequeeumetornariaoRei?As feições doDruida pareceram se fechar por ummomento e o rosto sombrio perdeu toda a

expressão.—Eunão conseguiria ter impedido que acontecesse o que aconteceu, Príncipe— respondeu,

lentamente.—Apenaspodiatentarprepará-loparaoqueviria.—Entãovocêsabia?Allanonassentiu.—Eusabia.EusouumDruida.Anderrespiroufundo.—Voufazeromeumelhor,Allanon.—Entãovocêvaifazerbem,AnderElessedil.EleobservouoPríncipevoltaratéoReimorto,oviucobriropaicomocobririaumacriança

adormecidaeajoelhar-sedenovoaoladodacama.Allanonvirou-seesaiusemruídodoquarto,dacasasenhorial,dacidadeedaterra.Ninguémo

viupartir.

Amanhecia quandoWilOhmsford foi sacudido gentilmente e acordou, a luz cinza infiltrando-sepelascortinasparaespantaraescuridão.Piscoulentamenteeviu-seencarandoPerk.

—Wil?—OrostodopequenodoCavaleirodoVentoeraumamáscaradeseriedade.—Olá,Perk.—Comovocêestásesentindo?—Umpoucomelhor,acho.—Issoébom.—Perktentousorrir.—Estavamuitopreocupado.Wilsorriudevolta.—Eutambém.Perksentou-senabeiradacama.—Desculpeporteracordadovocê,maseunãoqueriairemborasemmedespedir.—Vocêestáindoembora?Ojovemassentiu.— Eu deveria ter ido na noite passada, mas precisava descansar Genewen. Ela estava muito

cansada depois daquele longo voo. Eu deveria ter voltado ao Abrigo do Vento dois dias atrás.Provavelmenteestãomeprocurando.—Elefezumapausa.—Masvãoentenderquandoeuexplicaroqueaconteceu.Nãovãoficarzangados.

—Esperoquenão.Nãoqueroisso.—Meu tioDayndisseque vai explicarpara eles também.Você sabiaquemeu tio estava aqui,

Wil?Meuavôoenviou.TioDayndissequeeuagicomoumverdadeiroCavaleirodoVento.DissequeoqueGeneweneeufizemosfoimuitoimportante.

Wilergueu-seumpouconostravesseiros.—Efoimesmo,Perk.Muitoimportante.—Eunãopodiadeixarvocês.Eusabiaquevocêspodiamprecisardemim.—Nósprecisávamosmuitodevocê.—Enãoachoquemeuavôváseimportarseeudesobedecersódessavez.—Nãoachoqueeleváseimportar.Perkbaixouoolharparasuasmãos.—Wil,eulamentooqueaconteceucomasenhoraAmberle.Lamentomesmo.Wilassentiulentamente.—Eusei,Perk.—Elarealmenteeraencantada,nãoera?Elaeraencantadaeoencantamentoatransformouna

árvore.—Levantourapidamenteosolhos.—Eraoqueelaqueria,nãoera?Viraraárvoreparaosdemôniosdesaparecerem?Eraassimquedeviaacontecer?

OjovemdoValeSombrioengoliuemseco.—Sim.—Eu fiqueimuito assustado, sabe— disse Perk em voz baixa.—Não tinha certeza se aquilo

deviaounãoacontecer.Foitãoderepente.Elanuncadissenadasobreaquiloparamimantesqueacontecesse;então,quandoaconteceu,eumeassustei.

—Nãoachoqueelaquisesseassustarvocê.—Tambémachoquenão.—Elasónãotevetempodeexplicar.Perkdeudeombros.—Ah,euseidisso.Foitudotãorepentino.FicaramemsilêncioporummomentoeopequenoCavaleiroselevantou.

—Eusóqueriamedespedir,Wil.Vocêvaimevisitaralgumdia?Oueupoderiavisitarvocê,massóquandoeuformaisvelho.MinhafamílianãovaimedeixarvoarparaforadasTerrasdoOeste.

—Euvouvisitarvocê—prometeuWil.—Logo.Perkdeuum tipode acenoe foi até aporta. Suamãoestavanamaçanetaquandoeleparoue

olhouparaojovem.—Eurealmentegostavadela,Wil,muito.—Eutambémgostavadela,Perk.OpequenoCavaleirodoVentodeuumbrevesorrisoedesapareceupelaporta.

CapítuloLIV

Foramparacasa,todosaquelesquetinhamidoatéArborlonficaraoladodoselfos.Todosmenosdois.

OsCavaleiros doVento foramprimeiro, ao amanhecer do dia emque começou o reinado deAnderElessedilcomoonovoReidosElfosdaTerra—ostrêsquerestavamdoscincoquehaviamvoadopara o norte juntos e omenino chamadoPerk. Foram embora quietos, semmal falar comninguémalémdojovemRei,ehaviampartidoantesdeosolterseerguidototalmenteporcimadasflorestas orientais, suas rocas de tons dourados caçando a noite que fugia como se fossem osprimeirosraiosdosoldamanhã.

Aomeio-dia,ostrollsdepedrapartiram,comAmantaràfrente,tãoferozeseorgulhososcomohaviamchegado, erguendoasarmasemsaudaçãoenquantoopovoélfico se reunianas ruasenasárvoresparasaudarsuapassagem.Pelaprimeiravezemmaisdemilanos,trolleelfossedespediamnãocomoinimigos,mascomoamigos.

Osanões ficaramporváriosdias,concedendoaoselfosobenefíciodeseuvastoconhecimentode engenharia para ajudar nos esboços dos projetos para reconstruir a arruinada Elfitch. Aquelareconstruçãoseriaumatarefamuitodifícil,poisnãosóeranecessáriosubstituiraquintarampaquefora demolida, como amaioria do que sobrara da estrutura precisava de reparos. Era o tipo dedesafio que o irredutível Browork apreciava; com a ajuda dos Escavadores ainda capazes detrabalhar,eletraçouparaoselfosospassosparaqueatarefapudessesermelhorcumprida.Quandofinalmente deixou Ander e o povo élfico, ele o fez com a promessa de que outro grupo deEscavadores—umemmelhorescondiçõesdeservirdoqueoseu—seriaenviado imediatamenteparadarqualquerajudanecessária.

—Nóssabemosquepodemoscontarcomosanões.—AnderapertouamãoásperadeBroworkaosedespedir.

—Sempre—concordouoanãocascudo.—Lembre-sedissoquandonósprecisarmosdevocês.Finalmente foi a vez dos homens de Callahorn partirem— os poucos dos Voluntários e da

Velha Guarda da Legião que haviam sobrevivido à feroz batalha para proteger a Elfitch. Nãosobrara nem uma dúzia dos primeiros, e destes, nem seis lutariam de novo. O comandopraticamentedeixaradeexistir,oscorposdeseussoldadosespalhadosentreospassosdaLinha-de-Quebra e Arborlon. Porém, mais uma vez, o alto homem da Fronteira chamado Stee Janssobreviveraondemuitosoutrosnãoconseguiram.

Ele veio até Ander Elessedil cedo na manhã do sexto dia após a vitória sobre as hordasdemoníacas, cavalgandoseuruanoatéondeoRei seencontrava,nabeiradoCarolan, revendoosplanosfeitospelosanõescomseusengenheiros.Pedindodesculpas,Anderandourapidamenteatéondeo comandantedosVoluntários desmontara e esperava. Ignorandoo aceno respeitosoqueohomemlhedera,Anderpegouamãodeleeaapertoucomforça.

—Estábemnovamente,comandante?—cumprimentouele,sorrindo.—Bemobastante,meusenhor.—SteeJansretribuiuosorriso.—Vimagradeceremedespedir.

ALegiãoestávoltandoparaCallahorn.

Andersacudiuacabeçalentamente.—Vocênãoprecisameagradecer.Eueopovoélficoéquelheagradecemos.Ninguémdeumais

de siparanós enossa terradoqueoshomensdosVoluntários.Evocê, Stee Jans,oque faríamossemvocê?

OhomemdaFronteiraficouquietoporummomentoantesdefalar.—Meusenhor,achoqueencontramosumacausapelaqualvaliaapenalutarnestepovoenesta

terra.Tudooquedemos,demoslivremente.Evocênãoperdeualuta,éissoqueimporta.—Comopoderíamosperdercomvocêdonossolado?—Anderapertouamãodelenovamente.

—Oquevocêvaifazeragora?SteeJansdeudeombros.—OsVoluntáriosseforam.Talvezelessejamreconstruídos.Talveznão.Senão, talvezhajaum

novocomandonaLegião.Euvoupedir,dequalquerjeito.Anderassentiulentamente.—Peça-me, Stee Jans, peça-me eo comandoé seu. Seriaumahonraparamim tê-lo.Eparao

povoélfico.Vocêéumdenós.Vaipensarnisso?Ohomemsorriu,virou-seemontoudenovo.—Jáestoupensando,ReiAnderElessedil—saudou-oastutamente.—Aténosvermosdenovo,

meusenhor.Forçaavocêeaoselfos.Usouasrédeasparavirarocavalo,acapacinzavoandoatrásdesi,ecavalgouparaolestepelo

Carolan.Anderficouobservando-oafastar-se,acenandoparaele.Aténosvermosdenovo,homemdaFronteira,respondeuelesemfalar.

Assimforamtodosparacasa,todososquetinhamvindoatéArborlonparaficarcomoselfos,oscorajosos,menosdois.

UmeraojovemdoValeSombrio,WilOhmsford.

A luzdosolespalhava-sepeloCarolancomoumcobertordecalorebrilhonebulosoconformeomeio-dia se aproximava e Wil Ohmsford aproximou-se dos portões que levavam aos Jardins daVida.O jovem caminhoupelo cascalho da trilha dos Jardins, seus passosmedidos e iguais, e nãohavia sinaldehesitação.Porém,quando finalmente estavadiantedosportões,não teve certeza seconseguiriaavançar.

Demorou uma semana para chegar tão longe.Os primeiros três dias depois de ter desmaiadonaquelesmesmos jardins haviam sidopassados em seus aposentos na casa senhorial dosElessedil,adormecidoduranteamaiorpartedo tempo.Maisdois sepassaramno isolamentodo terrenoaoredor da velha casa, lutando contra a confusão de emoções que o percorria quando lembrançassobreAmberleiamevinham.Osdoisúltimosdiaselepassaracuidadosamenteevitandooquevierafazer.

Wil permaneceu um longo tempo na entrada dos Jardins, olhando para cima, para o arco deprata emarfim,para asmuralhas cobertasdehera eparaospinheiros e cercas-vivasque levavamparadentro.Cabeçasseviraramnadireçãodeleinterrogativamente,conformeopovodacidadeiae vinha, passando pelos portões onde ele estava. Estavam ali pelo mesmo motivo que ele,perguntando-se,aovê-lo,seelenãoestavaaindamaisfascinadoeinsegurodoqueeles.Sentinelasda Guarda Negra estavam rígidas e concentradas de cada lado, os olhos movendo-semomentaneamenteparaobservarafiguraimóveldeWilerapidamentesedesviando.Mesmoassim,WilOhmsfordnãoavançava.

Porém,sabiaqueprecisava.Pensaranaquilocuidadosamente.Precisavavê-lamaisumavez.Pelaúltimavez.Nãoficariaempazatéfazerisso.

Quase sem perceber, atravessou os portões, seguindo a curva no caminho que o levaria até aárvore.

Sentiu-seestranhamentealiviadoaoprosseguir, comose,ao tomaradecisãode iratéela,nãoestivesse fazendo algo somente necessário,mas também certo.Um pouco da determinação que ofizera atravessar tanta coisanasúltimas semanas retornou—determinaçãoque se esvaíraquandoperdera totalmente a jovemelfa, pois acreditava que falhara comela. Pensava entendermelhor osentimento agora. Não era tanto uma sensação de fracasso que experimentara, porém era maisperceberasprópriaslimitações.Vocênãopodefazertudoquedeseja,disseraseutioFlickcertavez.EmborativessesidocapazdesalvarAmberledosdemônios,nãoconseguirasalvá-ladese tornaraEllcrys. E salvá-la disso, ele sabia, era algo que nunca estivera dentro de seus poderes. Estiverasomente dentro do poder dela. A escolha dela, comoAmberle dissera— comoAllanon tambémdissera.Nenhumaquantidadederaiva,amarguraouremorsomudariaaquilooulhedariaapazdeque precisava. Precisava se reconciliar com o que acontecera de outra forma. Achou que tivessedescobertocomo.Visitá-laeraoprimeiropasso.

Passouporumaaberturaemumafileiraaltadeárvoreseelaapareceudiantedesi.AEllcrysseerguia contra o azul límpido do céu domeio-dia, o tronco prateado e alto, as folhas escarlatestremeluzindoàluzdouradadosol,algodeumabelezatãoprofundaquenomomentoemqueaviu,lágrimasvieramaosseusolhos.

—Amberle...—sussurrou.Reunidas no pé da pequena elevação onde ela estava, havia famílias da cidade, com os olhos

fixosnaárvore,suasvozesbaixaseapressadas.WilOhmsfordhesitou,masjuntou-seaelas.—Viu,adoençasefoi—diziaumamãeparaumagarotinha.—Elaestábemdenovo.Esuaterraeseupovoestãosalvos,acrescentouojovemsilenciosamente.PorcausadeAmberle

—porqueela se sacrificaraporeles.Orapazrespirou fundo,erguendooolharparaaárvore.Eraalgoqueelaquiserafazer,algoqueelativeraquefazer—nãosóporqueerapreciso,masporque,nofim,elaacreditaraseropropósitodesuaexistência.Aéticaélfica,ocredoqueguiaraavidadela—algodesideveriaserdevolvidoàterra.MesmoquandoelasebaniradeArborlon,nãoseesquecera.Isso se refletira em seu trabalho com as crianças do Refúgio Firme. Fora parte domotivo que afizeraretornarcomeleparadescobriraverdadesobreseudestino.

Algodesideveserdevolvidoparaaterra.Nofinal,eladeratudo.Deu um sorriso triste.Mas Amberle não tinha perdido tudo. Ao virar a Ellcrys, ganhara um

mundointeiro.—Elavaimanterosdemônioslongedenós,mamãe?—estavaperguntandoamenininha.—Muito,muitolongedenós.—Amãesorriu.—Evaisemprenosproteger?—Sim,vaisemprenosproteger.Osolhosdameninaforamdorostodamãeparaaárvore.—Elaétãolinda.—Suavozpequenasooucheiadeadmiração.Amberle.Wilolhoupormaisuminstante,depoissevirouesaiulentamentedosJardins.AcabaradeatravessarosportõesdeentradaquandoviuEretria.Elaestavadoladodocaminho

que vinha da cidade, os olhos escurosmovendo-se rapidamente para encontrar os dele. As sedas

brilhantes dos nômades sumiram, substituídas por vestimentas élficas comuns. Porém, jamaishaveria nada comumemEretria. Estava tão deslumbrantemente bonita comona primeira vez emqueWil pousara os olhosnela. Seu longo cabelonegro brilhava à luz do sol enquantodescia emondasobreseusombros,eaquelesorrisoestonteandosurgiunorostomorenoaovê-lo.

Sem falar nada, Wil foi até ela para cumprimentá-la, permitindo-se um ligeiro sorriso emresposta.

—Vocêpareceestarinteirodenovo—disseelacomleveza.Eleassentiu.—Ocréditoétodoseu.Foivocêquemefezlevantardenovo.Osorrisodelasealargoucomoelogio.Emtodososdiasdasemanaanterior,Eretriaforaatéele

— alimentando-o, cuidando de suas feridas, fazendo-lhe companhia quando sentia que eleprecisava,deixando-oempazquandoviaqueeleprecisava ficarsozinho.Suarecuperação, físicaeemocional,eradevidaemgrandeparteaosesforçosdela.

—Disseramquevocêtinhasaído.—ElalançouumolharrápidonadireçãodosJardins.—Nãoprecisava de muita imaginação para saber para onde você tinha ido. Então pensei em seguir eesperar você.—Olhou novamente para ele, o sorriso ainda amplo.— Todos os fantasmas estãodescansandofinalmente,Curandeiro?

Wilviuapreocupaçãonosolhosdela.Anômadeentendiamelhordoquequalquerumoqueaperda de Amberle fizera com ele. Conversaram sobre isso constantemente no tempo em quepassaram juntos enquanto ele se recuperava. Fantasmas, ela os chamara — todos aquelessentimentosdespropositadosdeculpaqueoassombraram.

—Achoquetalvezelesestejamdescansandoagora—respondeuele.—Viraquiajudou,ecomumpoucomaisdetempo,talvez...

Suavozsumiu;eledeudeombrosesorriu.—Amberle acreditavaquedevia algo à terrapela vidaque recebeu.Umavez elamedisseque

essacrençaerapartedesuaherançaélfica.Minhaherança também,achoque foi issoqueelaquissugerir. Entenda, Amberle sempre pensou emmimmais como umCurandeiro do que como umprotetor.EusereiumCurandeiro.UmCurandeirodáalgoparaaterraatravésdocuidadoquetemcomopovoquecuidadela.Esteserámeupresente,Eretria.

Elaassentiu,solene.—EntãovocêvoltaráparaStorlockagora?—Primeiroparacasa,paraoValeSombrio,depoisparaStorlock.—Logo?—Achoquesim.Achoquedevoiragora.—Pigarreou,inseguro.—VocêsabiaqueAllanonme

deixouocavalo,ogaranhãoArtaq?Comopresente.SuponhoqueelesentiuquepodiacompensaraperdadeAmberle.

Eretriadesviouoolhar.—Suponhoquesim.Podemosvoltaragora?Semesperar resposta, elacomeçoua refazer seuspassospelaestrada.Wilhesitou,confusopor

ummomento,depoiscorreuatrásdela.Juntos,caminharamemsilêncio.—VocêdecidiuficarcomasPedrasÉlficas?—perguntoueladepoisdeváriosminutos.Wildissera-lheumavez,quandoadepressãoestavapior,quepretendiadesistirdelas.Amagia

élficafizeraalgocomele,sabiadisso.TãocertamentequantotinhaenvelhecidoAllanon,afetara-otambém — porém, ele ainda não sabia dizer como. Esse poder ainda o assustava. Porém, aresponsabilidadeporaquelepoderaindaeradele;nãopodiasimplesmentepassardescuidadamente

paraoutros.—Vouficarcomelas—respondeu.—Masjamaisasusareidenovo.Jamais.—Não—disseelaemvozbaixa.—UmCurandeironãoprecisausarasPedras.PassarampelosmurosdosJardinseviraramparadescerpelocaminhonadireçãodeArborlon.

Nenhumdeles falava.Wil podia sentir a distância que os separava, um abismo crescente causadopelacertezadeladequeeleadeixarianovamente.Eretriaqueriaircomele,claro;semprequiseraircomele.Masnão iapedir—nãodestavez,nãodenovo.Seuorgulhonãodeixaria.Ele remoeuoassuntoemsuamente.

—Paraondevocêvaiagora?—perguntouelepoucodepois.Eladeudeombros,casualmente.—Ah,eunãosei.TalvezparaCallahorn.Estamoçanômadepodeirparaondequiser,seroque

elaquiser.—Ela fezumapausa.—Talvezeuvávê-lo.Vocêpareceprecisarmuitodealguémquecuidedevocê.

Ali estava.Eladissede formadescontraída,quasebrincando,mas semdisfarçara intenção.Eusousua,WilOhmsford,disseraelanaquelanoiteemTirfing.Estavadizendodenovo.Wil fitouorostomoreno,pensandorapidamenteemtudoqueamoçafizeraporele,emtudoquearriscaraporele. Se a abandonasse agora, ela não teria ninguém. Ela não tinha casa, família ou povo. Antes,quando quisera ir com ele, houvera motivos para recusar. Quais eram os motivos naquelemomento?

—Foisóumaideia—completouela,dispensandooassunto.—Umabelaideia—disseeleemvozbaixa.—Maseuestavapensandoquetalvezvocêquisesseir

comigoagora.As palavras saíram quase sem ele perceber o que havia decidido. Houve um longo, longo

silêncio, e eles continuaram andando pelo caminho, sem olhar um para o outro, quase como senadativessesidodito.

—Talvezeuqueira—respondeuelaporfim.—Massósevocêquisermesmo.—Euquero.Wilviuosorriso—aquelemaravilhoso,esfuziantesorriso.Eretriaparouevirou-separaele.—Éreconfortantever,WilOhmsford,quevocêfinalmenteviuarazão.Estendeuamãoeapertouadelecomforça.

Cavalgando pelo Carolan de volta para a cidade, com amente ainda ocupada com pensamentossobre a reconstrução daElfitch,AnderElessedil viu o jovemdoVale Sombrio e amoçanômadesaindodosJardinsdaVida.Parandoseucavaloporummomento,viuosdoisqueaindanãotinhamidoparacasa,osviupararedepoisviuamoçapegarnamãodojovem.

Umsorrisolentamentesurgiuemseurostoquandoeledesviouocavalodocaminhoemqueelesseencontravam.PareciamesmoqueWilOhmsfordtambémiriaparacasa.Masnãoiriasozinho.

Sobreoautor

©JudineBrooks2011

Com12milhões de livros impressos e 18 títulos consecutivos na lista demais vendidos doTheNewYorkTimes,TerryBrooks é consideradoumdosmestresda fantasia.Elenasceuem1944, emIllinois,eestudounaHamiltonCollege,ondeseformounaFaculdadedeDireito.

Brooks sentiu-se inspirado a escrever fantasia depois de ler O Senhor dos Anéis. Apesar detrabalharcomoadvogadoduranteodia,ànoitededicava-seàescritae,em1977,publicouAEspadadeShannara.Olivrofoiumsucessoimediatoesetornouaprimeiraobradeficçãoafigurarnalistade livros de bolso mais vendidos do The New York Times, onde permaneceu por mais de cincomeses.

TerryBrooksvivecomaesposa,Judine.OsdoismorampartedotempoemSeattleepartenoHavaí.

Leiaumtrechonaspáginasseguintesde

MAGO–ASTREVASDESETHANONRaymondE.Feist

VentosmalignossopramsobreMidkemia.Aslegiõesnegrasergueram-separaesmagaroReinodasIlhaseescravizá-locomoterrívelpoderdesuamagia.AbatalhafinalentreaOrdemeoCaosestáprestesacomeçarnasruínasdeumacidadechamadaSethanon.

AgoraPug,omestreconhecidoporMilamber,teráàsuafrenteaincríveleperigosamissãodeviajar até a aurorado tempoe lidar comumantigo e temível inimigo.Odestinodemilmundosdependeráapenasdele.

EnquantooPríncipeAruthaeosseuscompanheirosreúnemassuashostesparaabatalhafinalcontra ummisterioso demônio ancestral, o temido necromanteMacros, o Negro, libertou maisuma vez a sua magia negra. O destino de dois mundos será decidido numa luta colossal sob asmuralhasdeSethanon,quandosãorestauradososlaçosentreKelewaneMidkemia.

OformidáveleúltimovolumedeASagadoMago,clássicatetralogiadefantasiadeRaymondE.Feist,

iniciadacomMagoAprendiz.

Prólogo

VentosNegros

Oventosopravadelugarnenhum.Ganhandovidacomobaterdomarteloqueprofereumasentença,emanavaointensocalorde

umaforjaquepreviaumaguerraexaltadaemortesimplacáveis.Ganhavavidaapartirdocentrodealguma terra perdida, emergindo de algum local misterioso entre a realidade e o imaginário.Soprava do sul, do tempo em que as serpentes andavam eretas e falavam uma língua antiga.Enraivecido, cheirava a umamaldade ancestral, que ecoava longas profecias esquecidas. O ventorodopiavaemfrenesi,girandonovácuo,comoseprocurasseumadireção,edepoispareciasedeter,paraentãosopraremdireçãoaonorte.

Enquanto costurava, a velha ama murmurava uma cantiga simples que, durante gerações, foratransmitida de mãe para filha. Fez uma pausa para contemplar seu trabalho. As duas criançasdormiamsobsuaproteção,comospequenosrostosserenosenquantotinhambrevessonhos.Devezemquando,osdedosseflexionavamouoslábiossefranziamemmovimentosdesucção,paradepoissossegaremnovamente.Erambebês lindos, que iriam se tornarbonitos rapazes,disso a ama tinhacerteza. Quando atingissem a idade adulta, teriam apenas vagas recordações da mulher que osprotegia naquela noite, mas, por ora, pertenciam tanto a ela quanto à própria mãe, queacompanharaomaridoemum jantar social.Foientãoqueumestranhoventoentroupela janela,causando-lhe um arrepio, apesar do calor. Produzia um ruído que lembrava uma misteriosa eretorcida dissonância, uma quase imperceptível entoação malévola. A ama estremeceu econtemplouosmeninos.Elesficaraminquietos,comoseestivessemprestesadespertaraosprantos.A ama foi apressadamente à janela e fechou as venezianas, impedindo a entrada do estranho eperturbador arnoturno.Por instantes, pareceuqueo tempoparara,masdepois, comoum tênuesuspiro,abrisadiminuiueanoiteretornouàtranquilidade.Aamaaconchegouoxaleemvoltadosombros e os bebês agitaram-se inquietos durante mais uns instantes, até caírem em um sonoprofundoesereno.

Em outro quarto, ali perto, um jovem dedicava-se a uma lista, esforçando-se para ignorar seusgostospessoaisenquantodecidiaquemdeveriaescolherparaserviremumapequenacerimônianodiaseguinte.Eraumatarefaquedetestava,masquerealizavacomdestreza.Entãooventoempurrouas cortinas da janela para o interior. Instintivamente, o jovem se levantou da cadeira, levandohabilmenteamãoaumpunhalnocanodabota,assimqueseusensodedefesa,adquiridonasruas,alertou-o do perigo. Em posição de combate, permaneceu imóvel, com o coração palpitando,

durantemuito tempo, coma certezada iminênciadeuma luta até amorte, quenunca tivera emtodaumavidarepletadeconflitos.Aoperceberquenãohavianinguémali,o jovemfoirelaxandoaospoucos.Omomentopassou.Balançouacabeça,perplexo.Umaestranhainquietaçãoinstalou-seem seu estômago enquanto se aproximava lentamente da janela. Permaneceu longos minutosolhandofixamente,atravésdanoite,paraonorte,ondesabiaqueestavamasgrandesmontanhas,eparaalémdelas,ondeuminimigodeformaobscuraoaguardava.Osolhosdojovemseestreitaramfitando a escuridão, como que tentando vislumbrar algum perigo à espreita nas trevas. Depois,quandooúltimoresquícioderaivaetemorseesvaiu,retornouàsuatarefa.Porém,duranteorestodanoite,passouaolharocasionalmentepelajanela.

Na cidade, um grupo de boêmios perambulava pelas ruas, à procura de outra estalagem e deoutros companheiros alegres. O vento soprou entre eles e os fez parar por instantes, trocandoolhares. Um deles, um mercenário de pele bronzeada, recomeçou a caminhar, mas logo parou,pensativo. Perdendo subitamente o interesse pela diversão, despediu-se dos companheiros eregressouaopalácioondemoravahaviaquaseumano.

O vento soprou sobre o mar, onde um navio regressava ao porto de origem após uma longapatrulha.Ocapitão,umvelhoaltocomorostomarcadoeumolhobranco,imobilizou-sequandoovento fresco soprou. Estava prestes a dar ordens para baixarem as velas quando seu corpo foipercorridoporumestranhocalafrio.Olhouparaseuimediato,quehaviaanosoacompanhava,umhomem com a cara cheia de marcas de varíola. Trocaram olhares, mas logo o vento passou. Ocapitão fezumapausa,deuordensparaoshomenssubiremaosmastros,e,apósoutro instantedesilêncio,mandouqueseacendessemmaislampiõesparailuminaraopressivaescuridãoquesefaziasentir.

Mais ao norte, o vento soprou por entre as ruas da cidade, formando pequenos redemoinhosempoeiradosquedançavamsobreascalçadas,deslizandosobreosolocommovimentosdesconexos.Naquelacidade,viviamhomensdeoutromundoentreosnativos.Entreasforçasdaguarnição,umhomemdooutromundolutavacomoutrocriadoamenosdeumquilômetrodolocalondeoduelose travavae faziam-seapostasentreosespectadores.Osdoishomens jáhaviamcaídoumavez,eopróximo a ir ao chão seria considerado derrotado. Subitamente, o vento estalou e os doisadversários se detiveram, olhando em volta. A poeira atingiu os olhos dos espectadores e váriosveteranos queimados de sol tentaram esconder os calafrios. Sem trocar uma palavra, os doisoponentesabandonaramocombateeaquelesquetinhamfeitoapostaspegaramseusinvestimentossem protestar. Os presentes regressaram em silêncio aos seus aposentos e o ambiente festivo doduelodesapareceuantesdoventocortante.

Oventoseguiurumoaonorteatéseabatersobreumaflorestaondepequenascriaturassimiescas,delicadas e tímidas, se enroscavamnos galhos, procurando o calor que apenas a proximidade docontatofísicopodiaproporcionar.Maisabaixo,nochãodafloresta,estavaumhomemsentadoemposturameditativa.Tinha as pernas cruzadas e descansava os punhos sobre os joelhos, formando,

comospolegareseos indicadores,círculosquerepresentamaRodadaVidaàqual todososseresestão vinculados. Seus olhos se abriram repentinamente assim que sentiu o primeiro contato doenigmáticovento,econtemplouosersentadodiantedele.Umelfoancião,querevelavaapenasosleves traçosda idadecaracterísticosde suaraça, contemplouohumanopor instantes, captandoaperguntanãoproferida.Acenoudelicadamentecomacabeça.Ohumanoapossou-sedasduasarmasqueestavamaoseulado.Embainhouocompridosabreeaadaganacintura;comumsimplesacenodedespedida, ele se foi, caminhandoentreas árvoresda floresta edando inícioà sua jornadaemdireção ao mar. Lá, procuraria outro homem que também era amigo dos elfos, e trataria dospreparativosparaoconfrontofinalqueembrevecomeçaria.Enquantooguerreiroseguiacaminhorumoàcosta,asfolhasdasárvoressussurravamacimadesuacabeça.

Emoutrafloresta,folhastambémestremeciam,emumatodesimpatiaparacomaquelesqueeramperturbadospelapassagemdovento enigmático.Atravésdeumgigantescoabismode estrelas, aoredor de um Sol amarelo-esverdeado, rodopiava um planeta quente. Nesse mundo, debaixo dacalotadegelodoPoloNorte,existeuma florestagêmeadaquelaqueoguerreiroviajanteacabarade deixar. Nas profundezas dessa segunda floresta reunia-se em círculo um grupo de serescontemplados por uma eterna sabedoria. Eles teciammagia. À sua volta, formava-se um tênue eaconchegantebrilho,enquantopermaneciamsentadossobreosolodesprotegido,vestindotúnicasimaculadasericamentecoloridas.Mantinhamosolhosfechados,masconseguiamobservartudooque precisavam. Um deles, mais antigo do que a memória dos restantes poderia calcular,encontrava-se sentado acimado círculo, suspensono ar pelo poder do feitiço que juntos haviamtecido.Seuscabelosalvospendiam-lhesobreosombroseerampresosporumsimplesfiodecobrequeostentavaumapedradejadeàsuafrente.Mantinhaaspalmasdasmãosviradasparacimaeparaa frente, e conservava os olhos fixos em outros olhos, nos de um humano de túnica negra quepairava adiante.O humano era sustentado pelas correntes de energia secreta que formavam umamatriz ao redor, transmitindo sua consciência ao longo dessas linhas, de modo a dominar essamisteriosa magia. O humano de túnica negra sentava-se à sua frente na mesma posição, com aspalmas das mãos viradas para cima, mas mantendo os olhos fechados enquanto absorvia osensinamentos. Acariciou mentalmente o tecido da antiga magia dos elfos e sentiu as energiasentrelaçadas de todos os seres vivos da floresta, recebidas e de bom grado oferecidas, nuncaforçadas,paraobemdacomunidade.EraassimqueosTecedoresdeFeitiçosusavamseuspoderes:com delicadeza, mas persistentemente, tecendo fibras com as energias naturais onipresentes emuma espiral de magia que podia ser utilizada. O homem tocou mentalmente a magia ecompreendeu.Compreendeuqueseuspoderescresciamalémdoentendimentohumano,assumindocontornos divinos em comparação com o que, em outros tempos, julgara ser o limite de seustalentos.Aprenderamuitonoúltimoano,massabiaqueaindahaviamuitoaseraprendido.Porém,graças aos ensinamentos que recebera, já dispunha de meios para encontrar outras fontes deconhecimento. Compreendia que os segredos, dominados apenas pelos grandes mestres, erampossíveis: passar entre mundos usando apenas o poder da mente, viajar no tempo, e até mesmoenganaramorte.E,graçasaessesconhecimentos,percebeuqueumdiadescobririaumamaneiradedominartaissegredos,setivessetemposuficiente.Eotempourgia.Asfolhasdasárvoresecoavamofarfalhardoventomisteriosoao longe.Quandoambosafastaramamentedamatriz,ohomemdenegrofitoucomseusolhostambémnegrosoanciãoquelevitavadiantedele.Valendo-sedopoderdamente,ohomemdenegrodisse:Tãocedo,Acaila?

O outro sorriu, e olhos azul-claros se destacaram com uma luz própria, uma luz que, aoprimeirovislumbre,haviaassustadoohomemdenegro.Agorasabiaqueaquelaluzemanavadeumpoderprofundoquesesobrepunhaatodosospoderesqueconheceraemseresmortais,excetoemum.Masesseeraumpoderdiferente,nãoosuntuosopoderdooutro,masantesobrandopoderdavida,doamoredaserenidade.Aquelesereraefetivamenteunocomtodososqueorodeavam.Fitaraqueles olhos cintilantes era fazer parte de umamesma entidade, e seu sorriso era reconfortante.No entanto, os pensamentos que atravessavam a distância que os separava enquanto pairavam nadireçãodosoloeramperturbados.Jásepassouumano.Seriaótimosetivéssemosmaistempo,porémotemponãopara,epodeserquejáestejapreparado.Emseguida,comumatexturadepensamentoqueohomemdetúnicanegraaprenderaquesetratavadehumor,acrescentouemvozalta:

—Mas,preparadoounão,échegadaahora.Os restantes se levantaram aomesmo tempo e, durante um instante de silêncio, o homemde

negrosentiusuasmentesseuniremàsua,emumadespedida final.Elesoenviariamdevoltaparaonde uma luta estava sendo travada, uma disputa na qual desempenharia um papel fundamental.Porémoenviariamcommuitomaisdoquepossuíaquandochegaraatéeles.

Sentiuoúltimocontatoedisse:—Obrigado.Voltareiaumlocaldeondepossachegarsemdemoraameular.Sem dizer mais nada, cerrou os olhos e desapareceu. Os seres que formavam o círculo

permaneceramemsilêncioporalgunssegundos,depoisregressaramaseusafazeres.Nosgalhos,asfolhascontinuavamaseagitar;oecodoventomisteriosodemoravaadesaparecer.

Oventomisteriososoprouatéchegaraumcaminhoestreitonocumedeumvale,ondeumgrupode homens se escondia. Por um breve momento, viraram-se para o sul, como se procurassem aorigemdaqueleventoenigmáticoeinquietante,depoisvoltaramaobservarasplaníciesabaixo.Osdois que estavam mais próximos da beirada haviam cavalgado por muito tempo e a toda avelocidadeemrespostaaorelatodeumapatrulhadeumpostoavançado.Láembaixo,reunia-seumexércitosobestandartesdeaspectoameaçador.Olíder,umhomemalto,comumtapa-olhopretosobreoolhodireitoecujocabelocomeçavaaficarbranco,estavaagachadoabaixodocume.

—Asituaçãoétãogravequantoimaginávamos—sussurrou.O outro homem, não tão alto quanto ele, porémmais robusto, coçou a barba grisalha ao se

agacharaoladodocompanheiro.—Não,éaindapior—murmurou.—Julgandopelonúmerodefogueiras,háumatempestade

infernalseformandoaliembaixo.O homem de tapa-olho permaneceu sentado em silêncio durante algum tempo e depois

acrescentou:— Bem, de algum modo, ganhamos um ano. Eu esperava que eles nos atacassem no verão

passado. É bom que estejamos preparados, pois agora eles certamente vão atacar.—Deslocou-seaindaagachadoatéolocalondeumhomemaltoelouroseguravasuamontaria.—Vocêvem?

— Não — o segundo homem respondeu —, acho que vou ficar observando por mais algumtempo.Vendoquantoschegamecomquefrequência;assimpodereiadiantarcomquantoshomenselenosatacará.

Oprimeirohomemmontouocavalo.—Queimporta?—disseolouro.—Quandoeleatacar,virácomtodososquetemdisponíveis.—Achoquesimplesmentenãogostodesurpresas.

—Quantotempo?—indagouolíder.—Dois,trêsdiasnomáximo;depoisdisso,tudoficarálotadodemais.—Elescertamentetêmpatrulhasnoterreno.Doisdias,nomáximo.—Comumsorrisosinistro,

completou: — Vocês não são grande coisa como companheiros, mas, ao fim de dois anos, mehabitueiatê-losporperto.Tenhamcuidado.

Osegundohomemesboçouumlargosorriso.—Osentimentoé recíproco.Vocêsbateramtantonelesduranteosúltimosdoisanosqueeles

adorariamchegaràsportasdacidadecomsuascabeçasespetadasemlanças.— Issonãovai acontecer— respondeuohomem louro.O sorriso franco contrastava com seu

tomdevoz,transmitindoumadeterminaçãoqueosoutrosdoisconheciambem.—Sim,ébomquenãoaconteça.Agora,desapareçamdaqui.Acompanhiaavançou,deixandoparatrásumcavaleiroparaauxiliarohomemrobustoemsua

vigília.Passadoumminutodeobservação,elemurmurouemtombrando:—Oqueestáplanejandodestavez,seucaradepaudesgraçado?Oqueestápreparandocontra

nósnesteverão,Murmandamus?

1

Festival

Jimmypassoupelocorredor,apressado.Osúltimosmeseshaviamsidoumaépocadecrescimentoparaele.Seudécimosextoaniversário

seria celebradonodia do solstíciode verão, emboraninguém soubesse sua idade exata.Dezesseisparecia uma boa aposta, embora pudesse estar mais próximo dos dezessete ou até mesmo dosdezoitoanos.Sempretiveraporteatlético,seusombros tinhamsealargadoehaviacrescidoquaseumacabeçadesdequechegaraàcorte.Jáostentavaumaaparênciamaisadultadoquejuvenil.

Mas algumas coisas nunca mudam e o senso de responsabilidade de Jimmy era uma delas.Emborapudessemconfiarneleparatarefasimportantes,seudesprezopelastarefasdodiaadiamaisumavezameaçava tornarumcaoso tribunaldoPríncipedeKrondor.Presumia-sequeele, comoEscudeiroSuperiordaCortedoPríncipe,fosseoprimeiroacompareceràAssembleia,mas,comodehábito,eramaisprovávelquefosseoúltimo.Dealgummodo,apontualidadepareciaesquivar-sedele,demaneiraqueouchegavatardedemais,oucedodemais;raramentenahoramarcada.

OEscudeiroLocklearencontrava-seàportadosalãomenor,utilizadocomopontodeencontrodos escudeiros, acenando freneticamente para que Jimmy se apressasse. De todos os escudeiros,apenasLocklear se tornara seuamigo,depoisque regressara comAruthada jornadaembuscadoEspinho de Prata.Apesar de sua primeira, e rigorosa, impressão de que Locklear era, emmuitosaspectos,umacriança,ofilhomaisnovodoBarãodoLimiardaTerrademonstraracertapropensãoparaadisplicência,oquesurpreendeueagradouseuamigo.IndependentementedodesleixocomoqualJimmyelaboravaqualquerplano,demaneirageralLocklearconcordavacomele.QuandoforaapanhadonomeiodeumadasbrincadeirasdeJimmy,quetiravamapaciênciadosoficiaisdacorte,Locklear aceitara o castigo de bom grado, considerando-o o preço justo a pagar por ter sidoapanhado.

Jimmyentrouno salãocorrendoe foideslizandopelomaciopisodemármorequando tentouparar.Duasdúziasdeescudeirosvestidosdeverdeemarromformavamduasfileirasorganizadasnosalão. Ele olhou ao redor, reparando que todos se encontravam em seus respectivos lugares.OcupouseulugarnoinstanteemqueBriandeLacy,oMestredeCerimônias,irrompeupelaporta.

Quando fora nomeado Escudeiro Superior da Corte, Jimmy pensara que o cargo acarretariaapenasprivilégiosenenhumaresponsabilidade.Suaopiniãonãotardaraamudar.Emborafosseumcargo modesto, era parte integrante da corte, e, quando não cumpria suas obrigações, eraconfrontado com o fato mais importante que todos os burocratas de qualquer país ou épocaconhecem:seussuperioreshierárquicosnãoestãointeressadosemdesculpas,apenasemresultados.Jimmyreuniatodososerrosquepodemsercometidospelosescudeiros.Atéomomento,oanonãoforabomparaele.

Compassoscalculados,atúnicarubraenegrafarfalhando,oaltoedignoMestredeCerimôniasatravessou o aposento e se colocou atrás de Jimmy, tecnicamente seu primeiro assistente, logoabaixo doMordomo-Mor da Casa Real, mas frequentemente o seumaior problema. Ao lado doMestre deLacy estavam dois pajens da corte, vestidos com uniformes mesclados de púrpura eamarelo,filhosdeplebeusqueiriamsereducadosparaseremcriadosnopalácio,aocontráriodosescudeiros que um dia estariam entre os senhores do Reino Ocidental. O Mestre deLacy bateudistraidamenteabotacomrevestimentodeferronochãoedisse:

—Conseguiuchegarantesdemimoutravez,nãofoi,EscudeiroJames?Mantendoaexpressão inalterável,apesardasgargalhadasabafadasquealgunsdosrapazesmais

atrásnaformaçãoderam,Jimmyrespondeu:— Não falta ninguém, Mestre deLacy. O Escudeiro Jerome se encontra em seus aposentos,

dispensadodevidoaumalesão.Comumaresignaçãocansadanavoz,deLacydisse:—Sim, euouvi sobre suapequenadesavençaontemno campode jogos.Nãonos alonguemos

comsuas constantes confusões com Jerome.Recebioutro comunicadodopaidele.Creioque,nofuturo,ireimelimitaraapenastransmitiressescomunicadosavocê.—Jimmytentoumanterumarinocente,masnãoconseguiu.—Agora,antesdepassaraoscasosdehoje,achoadequadosalientaruma questão: espera-se que todos vocês se comportem como jovens cavalheiros. Por isso, creiotambém ser apropriado desencorajar a nova tendência de se fazer apostas naqueles jogos onde abolasupostamentedeveentraremumbarrilequesãojogadosnosSextosDias.Entenderam?—Apergunta parecia dirigir-se ao grupo de escudeiros, porém, naquele instante, a mão de deLacypousousobreoombrodeJimmy.—Apartirdehoje,acabaram-seasapostas,amenosquesejaemalgo aceitável, como nas corridas de cavalos, é claro. Para que não restem dúvidas: isto é umaordem.

Todos os escudeiros murmuraram, concordando. Jimmy acenou solene com a cabeça.Secretamente, sentia-se aliviado por já ter feito sua aposta na partida que se realizaria naquelatarde.Aquele jogodespertara tanto interesse entreopessoal e abaixanobrezaque Jimmyandavatentando,comafinco,descobrirumamaneiradecobrarentrada.OpreçoapagarseriaelevadocasoMestredeLacydescobrissequeJimmyjáfizerasuaapostanojogo,masJimmysentiaquesuahonraforasatisfeita.DeLacynãodisseranadasobreapostasjáfeitas.

OMestre deLacy analisou rapidamente o cronograma que Jimmy elaborara na noite anterior.QualquerquefosseaqueixaqueoMestredeCerimôniaspudessefazersobreoEscudeiroSuperior,nada tinha a reclamar sobre o trabalho do jovem. Todas as tarefas que Jimmy assumia eramdevidamente concluídas; oproblemanormalmente estava emconvencê-lo a assumi-las.Depoisdeatribuirastarefasdamanhã,deLacyacrescentou:

—Quinzeminutosantesdasduashorasdatarde,nósnosreuniremosnosdegrausdopalácio.Àsduas em ponto, o Príncipe Arutha e sua comitiva chegarão para a Apresentação. Assim que acerimôniaterminar,podemtirarorestododiadefolga.Porisso,quemtemfamílianacidadepodese juntar a ela. Mas dois de vocês deverão permanecer a postos para dar apoio aos familiares eamigos do Príncipe. Escolhi os escudeiros Locklear e James para desempenhar essas funções. OsdoisseapresentarãoimediatamentenosaposentosdoCondeVolney.Istoétudo.

Jimmy permaneceu muito tempo estático em um silêncio mortificado, enquanto deLacy seafastava e a companhia de escudeiros se dispersava. Locklear caminhou até ele e, encolhendo osombros,disse:

— Bem, que sorte a nossa! Todos podem passear, comer, beber e... — olhou de soslaio para

Jimmy,sorrindo—beijargarotas.EnóstemosdepermanecercomSuasAltezas.—Euvoumatá-lo—disseJimmy,libertandosuaraiva.Locklearabanouacabeça.—Jerome?—Quemmais?—Jimmy fez sinalparaque seuamigoo seguissepara forado salão.—Foiele

quemnosdedurouadeLacysobreasapostas.Foiparasevingardoolhoroxoquelhedeiontem.Locklearsuspirou,resignado.—Não temos chance de vencerThorn, Jason e os outros aprendizes se não jogarmos hoje.—

Locklear e Jimmy eram os doismelhores atletas da companhia de escudeiros. Apenas Jimmy eramaisrápidodoqueLocklearnousodaespada.Eramosdoismelhoresjogadoresdeboladopalácio;e, uma vez impossibilitados de participar do jogo, era quase certo que os aprendizes seriam osvencedores.—Quantofoiquevocêapostou?

—Tudo—respondeuJimmy.Locklearestremeceu.Haviamesesqueosescudeirosreuniamsuaprataeseuouroparaaquelejogo.—Bem,comoéqueeupoderiasaberquedeLacyviriacomessa?Alémdisso,ajulgarpornossasderrotas,aprobabilidadedeosaprendizesvenceremédecincoparaduas. — Jimmy passara meses calculando a estatística de derrotas no jogo dos escudeiros,antecipando aquela grande aposta.— Pode ser que ainda haja uma solução— ele ponderou.—Pensareiemalgo.

— Você não foi pego hoje por um triz. O que foi que o atrasou? — perguntou Locklear,mudandodeassunto.

Jimmysorriuesuasfeiçõessedesanuviaram.— Estava conversando comMarianna.—Depois sua expressão assumiu novamente um ar de

repulsa.—Ela ia se encontrar comigodepois do jogo,mas agora temosde aturar oPríncipe e aPrincesa.

Outra coisaquemudara em Jimmynoverão anterior forao fatode terdescoberto as garotas.Subitamente,estarnacompanhiadelaseoqueelaspensavamdelepassaramaserfatoresessenciais.Considerando sua educação e seus conhecimentos, mormente em comparação com os outrosescudeiros da corte, Jimmy parecia muito mais velho. O antigo ladrão passara vários meses sefazendo notar entre as garotasmais jovens que serviam no palácio.Marianna foi simplesmente aúltima a simpatizar com ele e a ficar maravilhada com aquele jovem escudeiro inteligente,espirituoso e bonito. Seus cabelos castanhos encaracolados, seu sorriso fácil e seus olhos negrosflamejanteserammotivodepreocupaçãoparaospaisdasváriasmoçasqueintegravamaequipedecriadasdopalácio.

Locklear tentava se mostrar desinteressado, uma atitude que rapidamente se desgastava àmedidaemqueeleprópriosetornavacadavezmaisocentrodasatençõesdasgarotasdopalácio.Acadasemanaquepassava,cresciamaisejápareciateramesmaalturadeJimmy.Seuscabeloslouros,escuros e ondulados, seus olhos de um azul-celeste enquadrados por cílios quase femininos, seusorriso encantador e seusmodos amistosos e simples contribuíampara suapopularidade entre asmeninasdopalácio.Aindanãosehabituaraàcompanhiadosexooposto,poisemsuacasasótinhairmãos, mas a convivência com Jimmy já lhe revelara que as garotas tinham algo a mais do queachavaquandoviviaemLimiardaTerra.

— Bem — disse Locklear, acelerando o passo —, se deLacy não encontrar um motivo paradespedirvocê,ouJeromenãocontrataralgumvalentãoparalhedarumasurra,algumajudantedecozinha ciumento ou um pai zangado não hesitará em pentear seu cabelo com um cutelo. Masnenhumdeles terá chance se chegarmos atrasados ao tribunal, pois oCondeVolney não pensará

duasvezesparaespetarnossascabeçasemestacas.Vamos.Com uma gargalhada e uma cotovelada nas costelas, Locklear se apressou a percorrer os

corredores,seguidodepertoporJimmy.Umvelhocriadoquelimpavaopólevantouacabeçaparaobservar os dois rapazes correndo, e, por um momento, refletiu sobre a magia da juventude.Depois,resignadocomoefeitodotempo,retomouseusafazeres.

Os cidadãos aplaudiram quando os arautos começaram a descer os degraus do palácio.Aplaudiram porque, primeiro, seriam governados por seu Príncipe, que, embora tivesse estadodistante,erabemrespeitadoeconhecidoporser imparcial.Aplaudiramporque,alémdisso, iriamver aPrincesa que tanto adoravam.Ela era um símbolo da continuaçãoda antiga linhagem, umaligaçãoentreopassadoeofuturo.Mas,acimadetudo,aplaudiramporqueseencontravamentreosfelizardosescolhidosqueteriamautorizaçãoparacomeremdadespensadoPríncipeebeberemdesuaadega.

OFestivaldeApresentação realizava-se trintadias apósonascimentodequalquermembrodafamília real. Sua origem ainda permanecia envolta em mistério, mas se achava que os antigossenhores da soberana Rillanon eram obrigados a mostrar ao povo de todas as classes que osherdeirosdotronohaviamnascidoimaculados.Atualmente,paraopovo,eraumferiadodeboas-vindas,poiseracomosefosseconcedidoaelesumFestivaldoSolstíciodeVerãoadicional.

Osacusadosdepequenosdelitos foramperdoados, asquestõesdehonra foramresolvidas eosduelos,proibidosduranteuma semanaeumdia após aApresentação; todas asdívidas contraídasdesdeaúltimaApresentação(adaPrincesaAnita,haviadezenoveanos)foramesquecidas;duranteaquela tarde e noite, as classes sociais seriam ignoradas, a plebe e a nobreza comeriam juntas àmesmamesa.

QuandoJimmyocupouseulugaratrásdosarautos,compreendeuquesemprehaviaalguémqueprecisava estar trabalhando.Alguém tinha de preparar todos os alimentos que seriam servidos, ealguém arrumaria tudo à noite. E ele precisava estar a postos para servir Arutha e Anita casoprecisassem. Soltando um suspiro, refletiu novamente sobre as responsabilidades que pareciamencontrá-loondequerqueseescondesse.

Locklearcantarolavaemvozbaixaenquantoosarautosassumiamsuasposições,seguidospelosmembros da Guarda da Casa Senhorial de Arutha. A chegada de Gardan,Marechal da Corte deKrondor, e do Conde Volney, na qualidade de Chanceler do Principado, era sinal de que ascerimôniasestavamprestesacomeçar.

O soldado de cabelo grisalho, com uma expressão de quem se divertia estampada no rostonegro,acenoucomacabeçaparaocorpulentoChanceler,depoisfezsinalparaqueMestredeLacyiniciasseoprotocolo.ObastãodoMestredeCerimôniasbateunochãoeostocadoresdetamborede trombeta emitiram rufos e floreios. A multidão emudeceu quando o Mestre de Cerimôniasvoltouabatercomobastãonochão,eoarautoclamou:

— Escutem! Escutem! Sua Alteza, Arutha conDoin, Príncipe de Krondor, Senhor do ReinoOcidental, Herdeiro do trono de Rillanon. — A multidão aplaudiu, embora fosse mais umaformalidadedoquepropriamenteumentusiasmogenuíno.Aruthaeradaqueletipodehomemqueinspiravanopovoadmiraçãoerespeitoprofundos,masnãoafeto.

Umhomemalto, esguio e de cabelos negros entrou, trajando vestesmarrons de tecidos finos,comummantovermelho,típicodeseuposto,descendopelosombros.Fezumapausa,cerrandoosolhoscastanhos,enquantooarautoanunciavaaPrincesa.QuandoaesbeltaPrincesadeKrondorse

juntou aomarido com os seus cabelos ruivos, o lampejo de felicidade que transpareceu em seusolhosverdesfezcomqueelesorrisse,eamultidãocomeçouaovacionarfervorosamente.AliestavasuaamadaAnita,filhadeErland,opredecessordeArutha.

Embora a cerimônia propriamente dita não fosse muito demorada, a apresentação de todosdemorou muito tempo. Um núcleo de nobres e de convidados do palácio tinha direito aapresentaçãopública.Anunciaramoprimeiropar:

—SuasAltezas,oDuqueeaDuquesadeSalador.Um jovem louro e bonito oferecia o braço a uma mulher de cabelos negros. Laurie, antigo

menestreleviajante,atualmenteDuquedeSaladoremaridodaPrincesaCarline,acompanhousuabela esposa até o local onde estava o irmãodela.Haviam chegado aKrondor havia uma semana,paravisitaremossobrinhos,eficariammaisumasemana.

Oarautocontinuoufalandoenquantoapresentavaosoutrosmembrosdanobrezae,finalmente,os convidados de honra, incluindo o Embaixador keshiano. Lorde Hazara-Khan entrouacompanhado por apenas quatro guarda-costas, renunciando à habitual pompa keshiana. OEmbaixador vestia-se ao estilo dos homens do deserto de Jal-Pur: um pano cobria-lhe a cabeça,deixandoentreverapenasosolhos,eusavaumlongomantoíndigosobreatúnicabranca,ascalçasenfiadas nos canos das botas que iam quase até seus joelhos. Os guarda-costas vestiam negro dacabeçaaospés.

Aotérminodasapresentações,deLacyavançouedisse:—Deixemqueopovoseaproxime.—Váriascentenasdehomensemulheresdediversasclasses,

desdeomaisdesgraçadomendigoatéoplebeumaisabastado,reuniram-senosdegrausdopalácio.AruthaproferiuoshabituaisdizeresdaApresentação:—Celebra-se,hoje,otricentésimodécimodiadosegundoanodoreinadodonossoSenhorRei,

LyamPrimeiro.Hoje,apresentamosnossosfilhos.DeLacybateucomobastãonochãoeoarautogritou:—SuasAltezasReais,osPríncipesBorriceErland.Amultidão irrompeuemum frenesidebrados evivas enquantoos filhosgêmeosdeAruthae

Anita, nascidos ummês antes, eram apresentados ao público pela primeira vez. A ama escolhidaparacuidardosmeninosavançoueentregou-osàmãeeaopai.AruthapegouBorric,quereceberaonomeemhomenagemaopaidele,eAnitapegouErland,batizadoemhomenagemaopaidela.Osdoisbebêssuportaramaapresentaçãoempúblicocomgraciosidade,emboraErlandrevelassesinaisde impaciência. A multidão continuou a dar vivas, mesmo depois de Arutha e Anita teremdevolvidoos filhos à ama.Aruthapresenteouamassaque se apinhavaao fundodosdegraus comoutrorarosorriso.

—Meus filhos são saudáveis e fortes, nasceram semqualquer problema. São apropriados paragovernar.Aceitam-noscomofilhosdaCasaReal?

Amultidãogritouemconcordância.Anitaespelhouosorrisodomarido.Aruthaacenouparaopovo.

—Nossos agradecimentos,meuqueridopovo.Atéobanquete.Despeço-medesejando a todosumbom-dia.

A cerimônia terminara. Jimmy apressou-se a se juntar a Arutha, como era sua obrigação,enquanto Locklear se colocou ao lado de Anita. Locklear era formalmente um escudeirosubordinado, porém era tantas vezes destacado para servir a Princesa que frequentemente otomavamporescudeiropessoaldasoberana.JimmysuspeitavaquedeLacydesejavamantê-lopertode Locklear para que dessemodo fossemais fácil vigiá-los.O Príncipe lançou a Jimmy ummeio

sorrisodistraído,enquantoobservavaamulherea irmãatarefadascomosgêmeos.OEmbaixadorkeshianoretirouovéutradicionalquelhecobriaorostoesorriuaovê-las.Osquatroguarda-costasmantinham-seporperto.

—VossaAlteza—disseokeshiano—éumapessoaamplamenteabençoada.Bebêssaudáveissãoumadádivadosdeuses.Esãoambosdosexomasculino.

Arutha estava alegre por contemplar sua esposa, que parecia radiante enquanto observava osfilhosnosbraçosdaama.

—Muitoobrigado,LordeHazara-Khan.Éumprazerinesperadoencontrá-loentrenósesteano.—O tempoemDurbinestáhorrível—respondeuabsorto, enquantocomeçavaa fazercaretas

paraopequenoBorric.Subitamente,recordou-sedopostoqueocupavae,assumindoumtommaisformal, acrescentou:—Alémdisso,VossaAlteza, temosumpequeno assunto a tratar, relativo àsnovasfronteirasaquinoOcidente.

Aruthasoltouumagargalhada.—Noseucaso,meucaroAbdur,pequenosassuntostransformam-seemgrandespreocupações.

Nãotenhomuitavontadedemesentarcomvocêoutravezàmesadenegociações.MastransmitireiaSuaMajestadetodasassuassugestões.

—AguardareiavontadedeSuaMajestade—disseokeshianocomumareverência.Aruthapareceurepararnosguardas.—NãovejoseusfilhosnemLordeDaoud-Khanentreospresentes.— Ficaram encarregados das obrigações de que habitualmenteme ocupo entremeu povo em

Jal-Pur.—Eestes,quemsão?—indagouArutha, indicandoosquatroguarda-costas,vestidosdepreto

da cabeça aos pés, até mesmo nas bainhas de suas cimitarras; embora seus hábitos em tudo seassemelhassem aos dos homens do deserto, eram diferentes de tudo o queArutha já vira em umkeshiano.

—Estessãoizmalis,Alteza.Sãominhaproteçãopessoal,nadamais.Arutha optou por não dizer mais nada quando o aglomerado de pessoas à volta dos bebês

pareceu se dispersar.Os izmalis eram famosos como guarda-costas, amelhor proteção disponívelpara a nobreza do Império doGrande Kesh,mas corriam rumores de que também eram espiõesaltamente especializados e, ocasionalmente, assassinos. Suas capacidades eram quase lendárias.Tinham reputação de conseguirem se aproximar e se afastar de uma pessoa sem serem notados,comosefossemespectros.Aruthanãoapreciavaaideiadeterentresuasparedeshomensqueerampraticamenteassassinos,masAbdurtinhadireitoàsuacomitiva;alémdisso,achavapoucoprovávelqueoEmbaixadorkeshianotrouxesseparaKrondoralguémquepudesserepresentaralgumperigoparaoReino.Inquieto,Aruthaficouemsilêncio.

—TambémtemosdefalarsobreoúltimopedidodeQueg,relativoaosdireitosdeatracaçãonosportosdoReino—disseLordeHazara-Khan.

Aruthamostrou-sefrancamentesurpreso.Depois,suaexpressãoganhoutraçosdeirritação.—Presumo que umpescador de passagem tenha falado com vocês sobre esse assunto quando

desembarcaramnasdocas,não?—Alteza,Kesh tem amizades emmuitos lugares— respondeu o Embaixador comum sorriso

insinuante.—Bem,certamentedenadavalerácomentar sobreoCorpo ImperialdeEspionagemdeKesh,

pois ambos sabemos que—Hazara-Khan adiantou-se e disseram emuníssono:— tal organizaçãonãoexiste.

AbdurRachmanMemoHazara-Khanfezumareverênciaeperguntou:—VossaAltezapodemedarlicença?Aruthafezumaligeirareverência,enquantookeshianosedespedia,depoissevirouparaJimmy.—Oquê?Vocês estãode serviçohoje, seus patifes?— Jimmy encolheuos ombros, indicando

quenãohaviasidoideiasua.Aruthareparounaesposadandoinstruçõesàamaparaquelevasseosgêmeosparaoberçário.—Ora,devemteraprontadoalgumacoisaedeixadodeLacyirritado.Masnão podemos permitir que percam toda a diversão. Parece que haverá um jogo de bola-e-barrilespecialmenteinteressanteagoraàtarde.

Jimmysimulousurpresa,enquantoorostodeLocklearficavavermelho.—Ouvidizerquesim—disseJimmydesinteressadamente.Indicandoaosrapazesqueoseguissemquandoacomitivacomeçouasedirigirparaointerior,

Aruthacomentou:— Então devemos ir assisti-lo, não é? — Jimmy piscou o olho a Locklear. Depois, Arutha

acrescentou: — Além disso, se vocês perderem a aposta, não valerão nada quando os outrosescudeirosospegarem.

JimmynãodissenadaenquantosedirigiamparaoGrandeSalãoeparaarecepçãodosnobres,antesdedaremautorizaçãodeacessoaosplebeusparaobanquetequeseriaservidonopátio.

Algumtempodepois,murmurouparaLocklear:—Aquelehomemtemohábitoirritantedesempresaberoqueestáacontecendo.

Ascelebraçõesatingiramoapogeu,comnobressemisturandoaosplebeusaquemforaconcedidoodireitode entrarnopátiodopalácio.Mesas compridashaviam sidodispostas comalimentos ebebidas,e,paramuitosdospresentes,aquelaseriaamelhorrefeiçãoqueteriamnoano.Emboraasformalidades estivessem sendo ignoradas, os plebeus mantinham o respeito por Arutha e suacomitiva, fazendo pequenas reverências e dirigindo-se a eles de modo formal. Jimmy e Locklearmantinham-seporperto,paraocasodealguémprecisardeles.

Carline e Laurie seguiam de braços dados atrás de Arutha e Anita. Desde seu casamento, osnovosDuqueeDuquesadeSaladorhaviamsetornadoumpoucomaistranquilos,oquecontrastavacomoconhecidoetempestuosoromancenacortedoRei.

—Muitomealegraofatodepoderficartantotempo—disseAnita,dirigindo-seàcunhada.—NopaláciodeKrondor,sóháhomens.Eagora,então,comdoisrapazes...

—Acoisavaipiorar—concluiuCarline.—Fuicriadaporumpaiedoisirmãos,seibemoquequerdizer.

AruthaolhouparaLaurieporcimadeumdosombrosedisse:—Issosóquerdizerqueelafoidescaradamentemimada.Laurie soltou uma gargalhada, mas pensou melhor sobre o comentário que ia fazer quando

percebeuosolhosdesuaesposaseestreitandosobreele.—Dapróximavez,queroumamenina—disseAnita.—Edepoispodemmimá-ladescaradamente—arriscouLaurie.—Quandopensamterfilhos?—indagouAnita.Arutha se viroudamesa trazendoum jarrode cerveja e encheu sua caneca e a deLaurie.Um

criadoapressou-seaservircoposdevinhoàsdamas.— Será quando Deus quiser. Não é por falta de tentativas, acredite — respondeu Carline,

virando-separaAnita.

Anita escondeu uma risadinha atrás da mão, enquanto Arutha e Laurie trocavam olhares.Carlineobservouosrostosdosoutrosedisse:

—Nãomedigamqueficaramenvergonhados?—Virou-separaAnitaeacrescentou:—Homens.—A últimamensagem de Lyam dizia que a RainhaMagda talvez estivesse grávida. Creio que

teremoscertezaquandoeleenviarapróximaremessademensagens.—Pobre Lyam, sempre tão interessado nas damas, e teve de se casar por razões de Estado—

disseCarline.—Elaéumamulherdecente,aindaqueumpoucoinsípida,maseleparecebastantefeliz.

— A Rainha não é insípida — afirmou Arutha. — Comparado a você, até um esquadrão decavaleiros queguianos é insípido.— Laurie nada disse,mas seus olhos azuis concordaram com ocomentáriodeArutha.—Sóesperoquesejaummenino.

Anitasorriu.—AruthaestáansiosoparaqueoutrosetornePríncipedeKrondor.Carlinecontemplouoirmãodemodosignificativo.—Mesmoassim,asquestõesdeEstadonãoestariamresolvidas.Agora,comamortedeCaldric,

Lyam dependerámais de você e deMartin do que nunca.— Lorde Caldric de Rillanon falecerapouco tempodepois do casamento doRei com a PrincesaMagda deRoldem, deixando vagos oscargosdeDuquedeRillanon,deChancelerRealedeConselheiroPrincipaldoRei.

Aruthaencolheuosombrosenquantoescolhiaacomidaparaseuprato.—AchoqueelenãoencontrarácandidatosparaocargodeCaldric.— O problema é exatamente esse — interveio Laurie. — Muitos nobres procuram ganhar

vantagemsobreseusvizinhos.TivemostrêsconflitosdignosdenotaentrebarõesnoOriente.NadaquejustifiqueLyamenviarseupróprioexército,masosuficienteparadeixaropovoalestedeCruzdeMalac nervoso. É por essemotivo que Bas-Tyra continua sem duque. Trata-se de um ducadomuito poderoso para Lyam entregá-lo a qualquer um. Se você não tiver cuidado, poderá sernomeadoDuquedeKrondoroudeBas-Tyra,seMagdaderàluzummenino.

—Basta—disseCarline.—Hojeédiadefesta.Hojenãosefalamaisdepolítica.AnitatomouAruthapelobraço.— Vamos. Fizemos uma boa refeição, um festival está prestes a começar e os bebês estão

dormindo tranquilamente. Além disso — acrescentou com um sorriso —, amanhã temos decomeçaranospreocuparcomcomovamospagareste festivaleoFestivaldeBanapisnopróximomês.Hoje,desfrutamosdaquiloquetemos.

JimmyconseguiuchegarpertodoPríncipeeperguntou:—VossaAltezaestariainteressadoemassistiraumconfronto?—Trocouolharespreocupados

comLocklear,poisjápassaradahoraprevistaparaoiníciodojogo.Anitalançouumolharquestionadoraomarido.— Prometi a Jimmy que iríamos assistir a um jogo de bola-e-barril no qual ele planejou

participarhoje.— Issodeve sermaisdivertidodoqueoutro espetáculodemalabaristas e atores—comentou

Laurie.—Você diz isso porque passou amaior parte da vida commalabaristas e atores— interveio

Carline.—Quandoeueramaisnova,eracostumenossentarmosparaverosrapazesseestapearememumjogodebola-e-barril todososSextosDias,enquanto fingíamosquenãoosvíamos.Eu ficocomosmalabaristaseatores.

—Porquevocêsdoisnãoacompanhamosrapazes?—adiantouAnita.—Hoje,ainformalidade

impera.Vamosnos encontrarmais tardenoGrande Salão para assistirmos ao entretenimentodanoite.

LaurieeAruthaconcordarameseguiramosrapazesporentreamultidão.Abandonaramopátiocentral do palácio e atravessaram uma série de corredores que ligavam o complexo central dopalácio a edifícios exteriores. Atrás do palácio existia um enorme campo de treino, perto dosestábulos, onde os guardas do palácio faziam exercícios. Uma enorme multidão se aglomerara,ovacionando intensamente quando Arutha, Laurie, Jimmy e Locklear chegaram. Eles abriramcaminho até a frente, afastando os espectadores. Alguns se viraram para reclamar ao seremempurrados,mas,aoavistaremoPríncipe,nãovoltaramareagir.

Arranjaram-lhesum lugaratrásdosescudeirosquenão jogavam.AruthaacenounadireçãodeGardan, que estava do lado oposto do recinto, comumbatalhão de guardas que não estavamdeserviço.

—Isso,agora,estámuitomaisorganizadodoqueantes—disseLauriedepoisdeobservarojogoporalgumtempo.

— São coisas do deLacy— emendouArutha.—Ele elaborou as regras do jogo depois de tervindo reclamar do número de rapazes que ficavam doloridos demais para conseguirem trabalharapós umapartida.—Então apontou.—Está vendo aquele sujeito com a ampulheta? É ele quemcontrolaotempodapartida.Ojogoagoratemaduraçãodeumahora.Sópodemjogarumadúziaderapazesdecadalado,edevemmanter-seentreaquelaslinhastraçadasagiznochão.Jimmy,emqueconsistemasoutrasregras?

Jimmyestavasepreparando,tirandoocintoeaadaga.—Éproibido jogar comasmãos, comosempre—explicou.—Quandoumdos ladospontua,

recua-se para além do meio do campo e os oponentes podem avançar com a bola. É proibidomorderouagarraroadversário,etambémnãosãopermitidasarmas.

—Nãosãopermitidasarmas?—indagouLaurie.—Meparecemuitoinofensivo.Locklearjáhaviatiradoocasacoeocinto,etocounoombrodeoutroescudeiro.—Comoestáoresultado?O escudeiro não desviou o olhar da partida. Um rapaz de estrebaria, que levava a bola à sua

frente com os pés, levou uma rasteira de um dos colegas da equipe de Jimmy, mas a bola foiinterceptadaporumaprendizdepadeiro,quehabilmenteachutouparaumdosdoisbarrisqueseencontravamnasextremidadesdocampo.Oescudeiroresmungou:

—Issoospõeàfrenteporquatroadois.Efaltammenosdevinteecincominutosdejogo.Jimmy e Locklear olharamparaArutha, que acenou coma cabeça.Dispararam emdireção ao

campo,substituindodoisescudeirossujoseensanguentados.Jimmyrecebeuaboladeumdosdoisjuízes,outrainovaçãodedeLacy,echutou-aparaalinha

que dividia o campo. Locklear, que se posicionara precisamente ali, apressou-se a chutá-lanovamente para Jimmy, para surpresa dos vários aprendizes que corriam em sua direção. Rápidocomo um relâmpago, Jimmy passou por eles antes que conseguissem se recuperar do choque,agachando-separaescapardeumcotoveloquemiravasuacabeça.Chutouabolaparaaaberturadeumbarril.Elabateunabordaecaiuparafora,masLocklearesquivou-sedoaglomeradoechutou-anovamente.Osescudeiroseumgrandenúmerodepessoasdapequenanobrezaaplaudiramdepé.Osaprendizesestavamvencendoporapenasumponto.

Umapequenadiscussão teve inícioeos juízesnão tardarama intervir.Comonãohouvedanosmaiores,retomaramojogo.Osaprendizesavançaramcomabola;LockleareJimmyrecuaram.Umdosescudeirosmais corpulentosdeuumempurrãoemumajudantedecozinha, fazendocomque

batessecontraojogadorqueconduziaabola.Jimmyatirou-seàbolacomoumgato,chutando-anadireçãodeLocklear.Oescudeiromenorconduziu-ahabilmentepelocampoafora,passando-aparaoutroescudeiro,queseapressouapassá-lapara trásquandováriosadversárioscorreramparaele.Um robusto rapaz de estrebaria passou correndo por Locklear. Em vez de tentar jogar a bola,abaixouacabeçaearrastouLockleareabolapara forada linha lateral.Umabriga irrompeueosjuízes,depoisdesepararemosenvolvidos,ajudaramLocklearase levantar.Orapazestavaabaladodemaisparacontinuarefoisubstituídoporoutroescudeiro.Comoosdoisadversáriosestavamforadoslimitesdorecinto,ojuizconsiderouqueabolanãopertenciaanenhumadasequipeselançou-a para o centro do campo. Os jogadores dos dois lados tentaram recuperá-la em meio a umaconfusãodecotovelos,joelhosepunhos.

—Assiméqueestejogodeveserjogado—comentouLaurie.Subitamente, um rapazde estrebaria libertou-se, e nãohavianinguémentre ele e o barril dos

escudeiros. Jimmy correu velozmente atrás dele e, ao perceber que não conseguiria interceptar abola, atirou-se contra o rapaz, repetindo a técnica que fora usada em Locklear. O juiz voltou adeclararqueabolanãopertenciaanenhumadasequipeseoutrabrigatomouomeiodocampo.

EntãoumescudeirochamadoPaulganhouapossedabolaecomeçouaconduzi-laemdireçãoao barril dos aprendizes com uma destreza inesperada. Dois imponentes aprendizes de padeirointerceptaram-no,maseleconseguiupassarabolasegundosantesdeoderrubarem.Abolaacabouindo para o escudeiro Friederic, que a passou para Jimmy. Ele esperava outro ataque dosaprendizes,masficousurpresoaoconstatarquerecuavam.Tratava-sedeumanovatática,quevisavacontraporospassesrápidosqueJimmyeLockleartinhamimpostoaojogo.

Osescudeiros,aoladodaslinhaslaterais,gritavampalavrasdeencorajamento.—Agorasófaltamalgunsminutos—gritouumdeles.JimmyfezsinalparaqueFriedericseposicionasseaseulado,gritourápidasinstruçõesedepois

arrancou.FezummovimentoparaaesquerdaedepoispassouabolanovamenteparaFriederic,querecuou para o meio-campo. Jimmy seguiu para a direita e depois recebeu um passe bemdirecionadoqueFriedericfizeranadireçãodobarril.Esquivou-sedocarrinhodeumadversárioechutouabolaparadentrodobarril.

Amultidãoaplaudiuemreconhecimento,poisaquelapartidatraziaalgodenovoaojogo:táticaehabilidade.Noquesempreforaumjogoduro,aprecisãoforaadicionada.

Houve,então,maisumabriga.Osjuízesapressaram-seaencerrá-la,masosaprendizesrelutavamimplacavelmenteempôrfimàconfusão.Virando-separaLaurieeArutha,Locklear,cujosouvidostinhamdeixadodezunir,disse:

—Estãotentandoimpedirqueojogoprossigaatéacabarotempo.Sabemquevamosganharsetivermosoutraoportunidadedepegarabola.

Finalmente, a ordem foi imposta. Locklear achou que estava apto a regressar e substituiu umrapazque se lesionaranabriga. Jimmy fez sinalparaque seus escudeiros recuassem,murmurandorápidas instruçõesparaLocklear,enquantoosaprendizes traziam lentamenteabolaparaa frente.Tentaram realizar os passes feitos por Jimmy, Friederic e Locklear, mas demonstraram poucadestreza.Porduasocasiões,quasechutaramabolaparaforadasquatrolinhasantesderecuperaremo controle dos passes extraviados. Foi então que Jimmy e Locklear atacaram. Locklear fingiuinvestircontraoqueconduziaabola,obrigando-oapassá-la,depoiscorreuatodaavelocidadeemdireçãoaobarril. Jimmyseguiu-odeperto,eosoutros,agindocomcautela,conseguiramdeteropassemaldirecionado,chutandoabolaparaLocklear.Orapazmenoscorpulentorecebeuopasseepartiuparaobarril.Umdefensortentouimpedi-lo,masnãoconseguiuagarraroescudeiro,queera

maisveloz.FoientãoqueoaprendiztiroualgodedentrodacamisaearremessoucontraLocklear.Aos espectadores atônitos, pareceu que o rapaz simplesmente caiu de cara no chão e a bola

transpôsalinhalateral.Jimmycorreuatéseucolega,depoislevantou-sesubitamenteecorreuatrásdo rapaz que estava tentando trazer a bola de volta para o campo. Sem qualquer pretensão deretomar o jogo, Jimmy bateu no rosto do aprendiz, fazendo-o tombar para trás. Iniciou-se outrabriga,masdessavezváriosaprendizeseescudeirosdosdoisladosjuntaram-seàconfusão.

—Acoisapodeficarfeia.Achaquedevointervir?—perguntouAruthaaLaurie.Lauriepercebeuqueabrigaaumentavadeintensidade.—Sim,sequerteralgumescudeirointeiroparaoserviçodeamanhã.Arutha fez um sinal a Gardan, que ordenou a alguns soldados que entrassem em cena. Os

guerreiros bronzeados não tardaram a repor a ordem. Arutha atravessou o recinto de jogo eajoelhou-seaoladodolocalondeJimmyestavasentado,embalandoacabeçadeLocklearnocolo.

—Oimbecilacertouanucadelecomumaferradura.Eleestádesmaiado.Aruthaobservouorapazcaído;depois,virou-separaGardaneordenou:—Leveessesgarotospara seusaposentosechameocirurgiãoparaexaminaresteaqui.O jogo

acabou— afirmou, virando-se para o homem que controlava o tempo. Jimmy parecia prestes aprotestar,masdepoisachoumelhornãofazê-lo.

—Apartidaestáempatadaemquatroaquatro.Nãohávencedores—proclamouohomemquecontrolavaotempo.

—Pelomenos,tambémnãoháperdedores—disseJimmy,soltandoumsuspiro.DoisguardaslevantaramLockleareolevaramembora.—Continuaaserumjogomuitoviolento—disseArutha,virando-separaLaurie.Oantigomenestrelaquiesceucomacabeça.—DeLacydeveelaborarmaisalgumasregrasantesquecomecemaquebrarcabeças.Jimmy voltou ao local onde deixara a túnica e o cinto, enquanto a multidão se dispersava.

AruthaeLaurieoseguiram.—Qualquerdia,tentamosoutravez—disseojovem.— Seria interessante— concordouArutha.—Agora que já conhecem seu truque, estarão de

sobreaviso.—Nessecaso,teremosdeinventaroutracoisa.—Bom,sendoassim,achoquevaleriaapenamarcarumadata.Digamos,dentrodeumaouduas

semanas.—AruthapousouamãosobreoombrodeJimmy.—Achoquevoudarumaolhadanasregras do deLacy. Laurie tem razão. Se vão correr de maneira aleatória por todo o campo, nãopodemospermitirqueatiremferradurasunsnosoutros.

Jimmypareceuperderointeressepelojogo.Algonomeiodamultidãodespertarasuaatenção.—Estávendoaquelesujeitoali?Aqueledetúnicaazulechapéucinzento?OPríncipeolhounadireçãoindicada.—Não.—EleseagachouexatamentequandoVossaAltezasevirou.Maseuoconheço.Possoinvestigar?Haviaalgono tomdevozde Jimmyquedeixavaclaroqueaquilonãoeraoutroplanopara se

esquivardesuasobrigações.—Vá.Masnãodemoremuito.LaurieeeuvamosregressaraoGrandeSalão.Jimmy correu para o local onde avistara o sujeito pela última vez. Parou e olhou ao redor,

depois avistou a silhueta familiar ao lado de uma escadaria estreita que dava para uma entradalateral. O homem estava encostado na parede, oculto por sombras, comendo de um prato. Só

levantouoolharquandoJimmyseaproximou.—Ora,aíestávocê,Jimmy,aMão.— Não atendo mais por esse apelido, Alvarny, o Veloz. Agora sou o Escudeiro James de

Krondor.Oantigoladrãoriuentredentes.—Tambémnãoatendomaisporesseapelido.Emboraeufosserealmenteveloznomeutempo.

—Baixandoavozparaquemaisninguémconseguisseouvi-lo,acrescentou:—Meuamoenviaumamensagem para o seu.— Jimmy percebeu imediatamente que algo de grave estava acontecendo,poisAlvarny, oVeloz, era oMestreDiurno dosZombadores, aGuilda dos Ladrões.Não era umsimples andarilho errante, mas um dos colaboradores mais graduados e de maior confiança doJusto.—Nãotenhonadaescrito,masmeuamodizqueasavesderapina,quetodospensavamquetinhamabandonadoacidade,regressaramdoNorte.

Jimmysentiuumcalafrionoestômago.—Aquelasquecaçamànoite?O ladrão já velho concordou coma cabeça enquanto enfiavaumapasta amarronzadanaboca.

Fechou os olhos por um instante e soltou um som de satisfação.Depois, fitou Jimmy fixamente,estreitandoosolhosenquantofalava:

—Lamentoque tenhanosdeixado, Jimmy, aMão.Você erapromissor. Poderia ter ido longeentreosZombadoresseconseguisseevitarquecortassemsuagarganta.Mas,comosediz,sãoáguaspassadas.Vamosnosateraotemadamensagem.EncontraramojovemTyburnReemsboiandonaságuas da baía. Em alguns locais próximos dali, os contrabandistas costumavam fazer suasnegociações; um desses locais é de pouca importância para os Zombadores e, por isso, énegligenciado.Podeserqueseja láocovildastaisaves.Éisso,nãotenhomaisnadaaacrescentar.—Semproferiroutrapalavra,Alvarny,oVeloz,MestreDiurnodosZombadoreseantigochefedosladrões,dirigiu-sevagarosamenteparaamultidão,sumindoentreoscidadãos.

Jimmynãohesitou.CorreuvelozmenteparaolocalondedeixaraAruthapoucosminutosantese,comonãooencontrou,encaminhou-separaoGrandeSalão.Amultidãoqueseapinhavadiantedopalácio o impediude avançar com rapidez.Ver os corredores cheios de rostos desconhecidosdeixou Jimmy subitamente alarmado. Nos meses desde que ele e Arutha haviam regressado deMoraelin com o Espinho de Prata para curar Anita, tinham permanecido envolvidos pela vidanormalnopalácio.Subitamente,ojovemviaaadagadeumassassinoemcadamão,venenoemcadacopo de vinho, e um arqueiro em cada sombra. Passando com dificuldade entre os comensais,seguiuapressadamenteseucaminho.

Jimmy passou como uma flecha por entre o aglomerado de nobres e outros convidados menosdistintos no Grande Salão. Perto do palanque, juntava-se um grupo de pessoas absortas emconversas. Laurie e Carline conversavam com o embaixador keshiano, enquanto Arutha subia osdegraus para o trono.Um grupo de acrobatas executava seu número com destreza no centro dosalão, obrigando Jimmy a contornar a clareira que formavam, enquanto dezenas de cidadãosassistiamàcenamaravilhados.Aosedeslocarpeloemaranhadodepessoas,Jimmyolhouparacima,para as janelas do salão, onde as profundas sombras de cada cúpula o assombravam comrecordações.Sentia-se imensamentedesgastado.Acimadequalqueroutrapessoa,eledeveriasaberasameaçasquepodiamserocultadasemtaislugares.

JimmypassouapressadamenteporLaurieechegouatéondeAruthaestavaquandooPríncipejá

se sentavano trono.NãoavistavaAnitaem lugaralgum.Olhourapidamenteparao lugarqueeladeveriaocuparefezumsinalinterrogativocomacabeça.

—Elafoivercomoestãoosbebês.Porquê?—perguntouArutha.Jimmydebruçou-sesobreArutha.—Meuantigosenhorenviouumamensagem.OsFalcõesNoturnosregressaramaKrondor.AexpressãodeAruthatornou-sesombria.—Éumaespeculaçãoouumacerteza?—Emprimeiro lugar, o Justo não enviaria quem enviou se considerasse que o assunto não é

sérioequeprecisadeumarápidasoluçãoExpôsumdosZombadoresmaisgraduados.Emsegundolugar,há, oumelhor,havia,um jovem trapaceiroque atendiapelonomedeTyburnReems equecostumavaperambularpelacidade.UsufruíadeisençõesespeciaisdosZombadores.Permitiamqueelefizessecoisasaquepoucosdenossaguildatinhamdireito.Agora,entendiomotivo.Eleeraumagente pessoal de meu antigo amo. Reems está morto. Creio que o Justo foi alertado sobre apossibilidadedoregressodosFalcõesNoturnosemandouReemsdescobriroparadeirodeles.Elesestãonovamente escondidos em algum lugar da cidade.Onde, exatamente, o Justonão sabe,massuspeitaquesejanosarredoresdoantigoredutodoscontrabandistas.

Enquanto falava com o Príncipe, Jimmy olhava ao redor do salão. Quando finalmente olhouparaele,ficousemfala.OsemblantedeAruthaeraumamáscararígidaderaivacontrolada,apontodelhedeformarorosto.Algunsdospresentesseviraramparaobservá-lo.

—Entãoacoisavairecomeçar?—perguntouaJimmyemummurmúriodissonante.—Parecequesim—respondeuJimmy.Aruthalevantou-se.—Nãometornareiumprisioneiroemminhaprópriacasa,comguardasemcadajanela.OsolhosdeJimmyvasculharamosalãoparaalémdopontoondeaDuquesaCarlinefascinavao

embaixadorkeshiano.—Issoéótimo,mashojeéumdiaemquesuacasaestárepletadedesconhecidos.Obomsenso

recomendaqueseretiremaiscedoparaseusaposentos,pois,sealgumdiahouveumaoportunidadedeouroparaalguémseaproximardevocê,essediaéhoje.—Seusolhospulavamdeumrostoparaoutro, em busca de algum sinal. — Se os Falcões Noturnos estão novamente em Krondor,certamente estãoneste salão ou a caminho, enquanto a noite cai. Pode ser que os encontre ao irdaquiparaseusaposentos.

Subitamente,Aruthaarregalouosolhos.—Meusaposentos!Anitaeosbebês!O Príncipe começou a correr, ignorando os rostos exasperados à sua volta, com Jimmy logo

atrás.CarlineeLaurieperceberamquealgodeerradoestavaacontecendoeosseguiram.Empoucosinstantes,dezenasdepessoasseguiamoPríncipepelocorredor.Gardanobservaraa

saídaapressadaejuntou-seaJimmy.—Oqueaconteceu?—FalcõesNoturnos—respondeuJimmy.O Marechal da Corte de Krondor não precisava ouvir mais nada. Agarrou pela manga o

primeiroguardaqueviunosalãoeindicouaoutroqueosseguisse.—ChameoCapitãoValdisemande-ovirfalarcomigo—ordenouaoprimeiro.—Ondeeledeveencontrá-lo,senhor?—indagouosoldado.Gardanafastou-ocomumempurrão.—Digaaeleparanosprocurar.

Enquanto seguiam apressadamente, Gardan reuniu cerca de uma dúzia de soldados para oacompanharem.QuandoAruthachegouàportadeseusaposentos,hesitouporuminstante,comoquereceosodoquepoderiaencontrarládentro.

Depoisdeabrir aporta,deparou-secomAnita sentadaao ladodosberçosondeos seus filhosdormiam.Elaergueuoolhareseusemblanteassumiuprontamenteumaexpressãodealarme.

—Oqueaconteceu?—Anitaperguntou,dirigindo-seaomarido.Aruthafechouaportaàssuascostas,indicandoaCarlineeaosoutrosqueesperassemláfora.—Nada,por enquanto.—Fezumapausa.—Queroquevá fazerumavisita à suamãe comos

bebês.—Elaficariamuitofeliz—respondeuAnita,masseutimbredevozdeixouclaroquesabiaque

haviaalgomaisdoquelheforarevelado.—Elajávenceuadoença,emboraaindanãosesintacomforçasparaviajar.Vaificarmaravilhada.—Emseguida,fitouAruthacomumolharinquisidor.—Eestaremosmaisprotegidosnapequenapropriedadedeladoqueaqui.

AruthasabiaquedenadaadiantavatentaresconderalgodeAnita.—Sim.TemosdenospreocuparoutravezcomosFalcõesNoturnos.Anita aproximou-se do marido e encostou a cabeça em seu peito. A última tentativa de

assassinatoquaselheroubaraavida.—Nãoreceiopormim,masosbebês...—Partirãoamanhã.—Tratareidospreparativos.Aruthabeijou-aeencaminhou-separaaporta.— Volto logo. Jimmy aconselha que não saiamos dos aposentos enquanto o palácio estiver

repletodedesconhecidos.Umbomconselho,masdevomemanterempúblicodurantemaisalgumtempo.OsFalcõesNoturnosnãosabemqueestamoscientesdeseuregresso.Nãopodemospermitirquepercebam,aomenos,nãoagora.

— Jimmy continua querendo ser o Conselheiro Principal do Príncipe? — disse Anita,encontrandodisposiçãoparariremmeioaoterror.

Aruthasorriuaoouvi-la.—HáquaseumanoquenãodiznadasobresernomeadoDuquedeKrondor.Porvezes,acho-o

maisaptoparaocuparessecargodoquemuitosdosoutrosqueprovavelmentevãoassumi-lo.AruthaabriuaportaeencontrouGardan, Jimmy,LaurieeCarlineàespera.Osoutros tinham

sidoafastadosporumacompanhiadaGuardadaCasaReal.OCapitãoValdisaguardavaaoladodeGardan.

—Capitão,pelamanhã,queroumbatalhãocompletode lanceirospreparadosparaavançar—ordenou Arutha. — A Princesa e os Príncipes vão se deslocar até as propriedades da mãe daPrincesa.Vocêdeveprotegê-losbem.

OCapitãoValdisbateucontinênciaevoltou-separadarordens.Aruthavirou-separaGardaneordenou:

—Comeceaposicionarlentamentehomensportodoopalácioeesquadrinhetodosospossíveisesconderijos.Sealguémperguntarpormim,digaqueSuaAlteza,aPrincesa,está indispostaequeestou fazendo companhia a ela durante algum tempo. Em breve, regressarei aoGrande Salão.—Gardanacenoucomacabeçaeafastou-se.—Queroquetransmitaumrecadomeu—disseArutha,dirigindo-seaJimmy.

—Partireiimediatamente.—Oqueachaquevaifazer?—indagouArutha.

—Iràsdocas—respondeuorapazcomumsorrisosinistro.Aruthaacenoucomacabeça,novamentefelizesurpresocomaperspicáciadorapaz.—Sim,procureanoiteinteira,seforpreciso.Mas,assimqueforpossível,encontreTrevorHull

eotragaatémim.

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CréditosMapaPrefácioCapítuloICapítuloIICapítuloIIICapítuloIVCapítuloVCapítuloVICapítuloVIICapítuloVIIICapítuloIXCapítuloXCapítuloXICapítuloXIICapítuloXIIICapítuloXIVCapítuloXVCapítuloXVICapítuloXVIICapítuloXVIIICapítuloXIXCapítuloXXCapítuloXXICapítuloXXIICapítuloXXIIICapítuloXXIVCapítuloXXVCapítuloXXVICapítuloXXVIICapítuloXXVIIICapítuloXXIXCapítuloXXXCapítuloXXXICapítuloXXXIICapítuloXXXIIICapítuloXXXIVCapítuloXXXVCapítuloXXXVICapítuloXXXVIICapítuloXXXVIIICapítuloXXXIXCapítuloXL

CapítuloXLICapítuloXLIICapítuloXLIIICapítuloXLIVCapítuloXLVCapítuloXLVICapítuloXLVIICapítuloXLVIIICapítuloXLIXCapítuloLCapítuloLICapítuloLIICapítuloLIIICapítuloLIVSobreoautorLeiaumtrechodeoutrolivrodaColeçãoBang!

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