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Page 1: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor
Page 2: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

Renato Drummond Tapioca Neto

Mademoiselle Boullan Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

Salvador, 2014

Page 3: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

Copyright © 2013 by Renato Drummond Tapioca Neto

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou

em vigor no Brasil em 2009.

Capa

Renato Drummond Tapioca Neto

Tapioca Neto, Renato Drummond

Mademoiselle Boullan: uma história de amor e ódio na corte dos Tudor / Renato

Drummond Tapioca Neto. Salvador, 2014. Trabalho não publicado.

1. Inglaterra – História 2. Henrique VIII, Rei da Inglaterra, 1491-1547 3. Ana

Bolena, Rainha da Inglaterra, 1501?-1536.

Este trabalho foi composto apenas para uso privado e com direitos de reprodução concedidos

unicamente ao blog “Rainhas Trágicas” (www.rainhastragicas.com). A reprodução dessa

obra para fins comerciais está terminantemente proibida.

Page 4: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

Lista de Ilustrações

Figura 1 Carta de Ana Bolena ao seu pai, escrita em La Veure (1514) .................................. 13

Figura 2 Francisco I, rei da França, por Jean Clouet ............................................................... 17

Figura 3 Ana Bolena, por artista desconhecido, Castelo de Hever, Kent ............................... 19

Figura 4 Sir Thomas Wyatt, por Hans Holbein (o Jovem) ...................................................... 23

Figura 5 Carta de Henrique VIII para Ana Bolena (1528) ...................................................... 26

Figura 6 Catarina de Aragão, por Lucas Horenbout................................................................ 29

Figura 7 Possível retrato de Maria Bolena, por artista desconhecido ..................................... 33

Figura 8 Henrique VIII, por artista desconhecido ................................................................... 35

Figura 9 Cardeal Wolsey, por artista desconhecido ................................................................ 39

Figura 10 Ana Bolena como Marquesa de Pembroke, por Renato Drummond Tapioca Neto

(2014) ....................................................................................................................................... 43

Figura 11 Procissão da coroação de Ana Bolena, na Abadia de Westminster ........................ 44

Figura 12 Thomas Cranmer, por Gerlack Flicke ..................................................................... 49

Figura 13 Lady Mary, por Mestre John ................................................................................... 51

Figura 14 Thomas More, por Hans Holbein (o Jovem) .......................................................... 54

Figura 15 Jane Seymour, por Hans Holbein (o Jovem) .......................................................... 57

Figura 16 Ana Bolena, por artista desconhecido ..................................................................... 61

Figura 17 Ana Bolena na Torre, por Edward Cibot (1835) ..................................................... 65

Figura 18 Túmulo de Ana Bolena, na capela de St. Peter ad. Vincula ................................... 67

Figura 19 Anel da rainha Elizabeth I (c. 1575) ....................................................................... 70

Figura 20 Retrato de Ana Bolena em medalha de 1534 .......................................................... 72

Figura 21 Retrato de uma mulher, por Hans Holbein (o Jovem) ............................................ 76

Figura 22 Livro de orações de Ana Bolena ............................................................................ 79

Figura 23 Assinatura de Ana Bolena em seu livro de orações ............................................... 81

Figura 24 Edição do Novo Testamento que pertencera a Ana Bolena .................................... 85

Figura 25 Ana Bolena, por artista desconhecido, NPG ........................................................... 88

Page 5: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

Índice

Agradecimentos ................................................................................................ 06

Sobre esta série .................................................................................................. 09

Introdução Ana Bolena, uma perspectiva histórica .......................................... 11

Capítulo 1 Uma educação renascentista ............................................................ 13

Capítulo 2 A corte inglesa ................................................................................. 19

Capítulo 3 Uma simples dama da corte contra a grande princesa de Castela ... 26

Capítulo 4 O grande dilema do rei .................................................................... 35

Capítulo 5 “Deus salve Ana, rainha da Inglaterra” ........................................... 44

Capítulo 6 A queda de uma rainha e a ascensão de outra ................................. 57

Conclusão Ana Bolena, uma trágica heroína dos tempos modernos ................. 69

Anexo 1 As várias faces de Ana Bolena ............................................................ 72

Anexo 2 A religiosidade de Ana Bolena ............................................................ 79

Anexo 3 Vilã ou heroína? – as representações de Ana Bolena .......................... 88

Cronologia ......................................................................................................... 92

Referências bibliográficas ................................................................................ 96

Page 6: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

6 www.rainhastragicas.com

Agradecimentos

Em um dia qualquer, de um mês quem não me recordo, do ano de 2009, ouvi dos

lábios de minha professora de História que “Henrique VIII rompeu com a igreja para se casar

com Ana Bolena, que era uma concubina”. Não dei muita atenção para o que ela acabava de

dizer, até porque acreditava que o movimento reformista na Inglaterra era nada comparado

com o luteranismo ou o calvinismo. Permaneci em minha mente com a imagem de uma

mulher qualquer e indigna de atenção, até que no início do ano seguinte, quando estava no

primeiro semestre da faculdade de História da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC),

assisti à superprodução cinematográfica “A Outra” (2008), que é baseado no romance de

Philippa Gregory1.

A partir de então, me senti intrigado com os elementos iconográficos do filme,

incluindo seus personagens, dos quais a figura da rainha Ana me envolveu com uma profunda

onda de magnetismo que eu jamais sentira por qualquer outro agente da História (exceto, um

ano depois, por Maria Antonieta). Fascinado pela ótima atuação de Natalie Portman no papel

da rainha Ana, resolvi investigar mais sobre aquela personagem, que viveu em meio a uma

época de tempestades ideológicas, fomentada pelo movimento da reforma religiosa.

À medida que fui aprofundando mais em meus estudos percebi que aquela Ana

Bolena era uma pessoa totalmente diferente da que eu acreditava conhecer. Passei então a

buscar mais e mais livros e textos sobre sua vida ou que estivessem ligados ao período em que

ela viveu, e nesses três anos de exaustiva pesquisa tornou-se pra mim um fato de que era ela

quem eu queria para o meu projeto de Trabalho de Conclusão de Curso.

Mantendo contado com as obras dos principais autores encarregados da tarefa de

dissertar sobre essa mulher incrível, pus-me em frente de uma Ana multifacetada: a criança

prodígio que encantou a corte de Bruxelas e de França; a jovem apaixonada por Henry Percy;

a mulher ressentida e determinada a vingar quem causara seu infortúnio; a enamorada do rei;

a rainha; a soberana política; a patrona da reforma em Inglaterra; a mãe; a acusada; a vítima; a

esposa decapitada. Muitas fases podem ser identificadas na trajetória deste ícone, mas em vez

delas me revelarem respostas acerca de sua personalidade, me fizeram (e ainda fazem)

1 GREGORY, Philippa. A irmã de Ana Bolena. Tradução de Ana Luiza Borges. 4ª edição. Rio de Janeiro:

Record, 2010.

Page 7: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

7 www.rainhastragicas.com

levantar uma série de questionamentos para os quis talvez nunca encontre respostas. Ana

Bolena passara a ser então um mistério pra mim, e espero que assim o seja pra sempre. Creio

que esse é um de seus grandes encantos: a áurea de misticismo que carrega.

Contudo, não conseguiria completar essa série sem o auxílio de algumas pessoas que

me ajudaram durante esses três anos de pesquisa, e cujo apoio vou precisar por ainda muito

mais tempo, como minhas caras amigas Luiza Fonseca de Souza e Camila Maréga

(proprietária do blog “Tudor Brasil”). Todas as conversas que tivemos me proporcionaram a

clareza de pensamento e sensibilidade para tratar com meu objeto de estudo de forma

adequada. Também à Stéphane Lorene, pela paciência em escutar horas e horas de falatório

sobre os Tudor, e à minha irmã, Vanessa Tapioca pelo apoio e carinho incondicional. Não

obstante, possuo uma dívida eterna com Lady Antonia Fraser2, cuja biografia das seis esposas

de Henrique VIII foi uma chave para me fazer entender os acontecimentos da Inglaterra do

século XVI e dos seus principais atores.

Todavia, seria quase impossível estar pesquisando sobre a vida de mademoiselle

Boullan sem deixar de se encantar com sua suposta rival, Catarina de Aragão. Suas

determinações em não aceitar as decisões do marido também tiveram um forte peso no rumo

dos acontecimentos e ela sempre será digna de meu respeito. Acredito que a melhor biografia

já escrita sobre a filha dos reis Católicos é a de Garrett Manttingly3, e foi-me imprescindível

para compor esta análise, apesar do tratamento hostil que este autor dispensa a Ana Bolena.

Possivelmente, a melhor biografia da rainha Ana lançada até então é a do professor

Eric Ives4, ainda não publicada aqui no Brasil. Seu método de exposição difere do de Antonia

Fraser à medida que ele não se atém a uma linearidade dos acontecimentos, utilizando-se dos

fatos para explorar as várias representações da rainha. Sua escrita não é carregada do

ceticismo de Alison Weir5, por exemplo, nem do romantismo de Carolly Erikson

6. Assim

como Ives, tentei não exaltar demais a figura de Ana, mostrando-a não como uma mártir do

movimento reformista, e sim como uma mulher suscetível aos vícios humanos, mas repleta

daquela energia que tem o poder de conquistar os homens mesmo anos depois de morta.

2 FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do Nascimento E Silva. 2ª

edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. 3 MATTINGLY, Garrett. Catalina de Aragón. Tradução de Ramón de La Serna – Buenos Aires: Editorial

Sudamericana, 1942. 4 IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom: Blackwell

Publishing, 2010. 5 WEIR, ALISON. The Six Wives of Henry VIII. – New York: Grove Press, 1992. 6 ERIKSON, Carolly. Ana Bolena: Un Amor Decapitado. Tradução de León Mirlas – Buenos Aires: Atlántida,

1986.

Page 8: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

8 www.rainhastragicas.com

Ao estudar sua trajetória, não pude deixar de imaginar o que teria acontecido se seu

caminho não cruzasse com o do rei, ou se no desenrolar dessa trama ela tivesse morrido de

morte natural. Provavelmente as coisas não teriam chegado aos extremos que chegaram e só

por isso sua presença se mostra relevante. A cruel execução que sofrera proporcionou um

“quê” a mais em sua lenda: a de uma pessoa que amou e que viveu do mesmo jeito que nós,

mas que batalhou por um lugar de consideração no seio da sociedade. Sua luta, entretanto, não

despareceu com ela, mas permaneceu ativa, correndo nas veias de sua única descendente:

Elizabeth I, soberana de uma era dourada; o fruto da reforma; a filha de sua mãe.

Page 9: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

9 www.rainhastragicas.com

Sobre esta série

Mademoiselle Boullan foi a primeira série de posts escrita por Renato Drummond para

o extinto site de história Jardim de Clio. Depois de algum tempo, surgiu à oportunidade de

republicar o presente texto, mais completo e atualizado, no blog do próprio autor, o Rainhas

Trágicas, que se dedica à vida e obra de mulheres que marcaram o período em que viverem e,

como no caso de Ana Bolena, foram mal vistas por alguns pesquisadores ao longo dos anos.

Nesse sentido, é importante questionar o que favoreceu uma reinterpretação da vida dessas

personagens, que por muito tempo permaneceram como perversas e atualmente são encaradas

como uma espécie de heroínas trágicas dos tempos modernos?

Em sua monografia de conclusão de curso, Drummond7, ao analisar o romance

histórico The Secret Diary of Anne Boleyn (1997), da escritora norte-americana Robin

Maxwell8, aponta para o feminismo como um fator essencial nesse processo de reavaliação e

resgate destas personalidades do passado. Um delas e talvez a mais controversa de todas seja

a própria Ana Bolena. Até o século XIX, ela era representada na literatura como a prostituta

do rei, uma mulher cuja ambição dividira o reino, causando efeitos até hoje inalterados na

sociedade inglesa. Contudo, a Era Vitoriana se mostrara bastante gentil para com Ana,

devolvendo-lhe inclusive o título de rainha, retirado desde que o casamento da mesma com

Henrique VIII fora declarado inválido em 15369.

Em seu recente ensaio cultural sobre a vida de Ana Bolena, Susan Bordo10

avalia que

após o período da Segunda Guerra, a literatura e a historiografia em geral se mostraram muito

mais gentis com a segunda esposa de Henrique VIII, ressaltando as suas virtudes, tais como a

inteligência e a religião. Coincidentemente, essa transformação ocorre de forma paralela ao

crescimento do movimento feminista nos países ocidentais. Como todo movimento ou

instituição que procura na história elementos que legitimem suas lutas, o feminismo resgatou

do passado figuras de mulheres até então estereotipadas pela história dos homens, oferecendo

um novo viés interpretativo para a trajetória das mesmas. Foi o que aconteceu com

7 TAPIOCA Neto, Renato Drummond. A condição da mulher no século XVI: o discurso feminista em The

Secret Diary of Anne Boleyn (1997). Ilhéus, 2013. Monografia (Graduação em História). – Universidade

Estadual de Santa Cruz. 8 MAXWELL, Robin. The secret diary of Anne Boleyn. – New York: Touchstone Book, 2012. 9 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 562 10

BORDO, Susan. The creation of Anne Boleyn: a new look at England’s most notorious queen. –

New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.

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10 www.rainhastragicas.com

personagens como Cleópatra, Ana Bolena, Catarina de Médici, Margarida de Valois (a

famosa rainha Margot) e Maria Antonieta. Tais soberanas passaram para o rol de grandes

personalidades do passado, com seus feitos e méritos devidamente restaurados.

O caso de Ana Bolena, por sua vez, é particularmente interessante, pois se tem

observado um crescente interesse por parte dos veículos de cultura de massa em sua vida.

Filmes e séries de televisão se dedicaram a recontar o drama da rainha Ana utilizando-se para

isso de atrizes bem dotadas esteticamente como Natalie Portman em The Other Boleyn Girl

(2008) e Natalie Dormer em The Tudors (2007-2008). Biografias como a de Eric Ives e

romances como o da própria Maxwell caíram no gosto do grande público. Páginas na internet

foram criadas com o intuito de transmitir para o leitor através de postagens a trajetória de Ana

Bolena de uma maneira mais interativa.

Foi nesse contexto que surgiu a série Mademoiselle Boullan: uma história de amor e

ódio na corte dos Tudor, publicada em seis partes no blog Rainhas Trágicas. Um ano depois

essas partes foram unidas em um único arquivo, editadas e complementadas com novas

informações e imagens. Depois de finalizado o trabalho, acreditamos que ele possa servir de

auxílio nos estudos de pessoas interessadas na história de Ana Bolena, visto que no Brasil a

precariedade de publicações sobre a Dinastia Tudor é notória, o que acaba sendo um entrave

para o indivíduo que não tem acesso às principais publicações em inglês. Dessa forma,

oferecemos para o leitor essa pequena contribuição, na esperança de que trabalhos futuros e

mais bem fundamentados sejam publicados em território nacional.

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11 www.rainhastragicas.com

Introdução

A Europa do século XVI foi marcada por diversas transformações, que, a seu modo,

desencadearam numa ruptura de preceitos e valores na mente das pessoas. Com o advento do

movimento renascentista, as concepções estéticas da cultura greco-romana são resgatadas e

reformuladas frente às necessidades de então. Através de Lutero, o poder e a influência da

Igreja Católica, e seu monopólio sobre a consciência e o domínio econômico de seus adeptos,

começaram a ruir diante de um mundo que não mais aceitava explicações sobrenaturais para

os fenômenos que ocorriam. Em Calvino, e sua teoria da predestinação, observa-se o

surgimento de uma classe burguesa mais unificada e ansiosa por participar das decisões

políticas do Estado. Contudo, dos interstícios de uma Inglaterra menos interessante, se

comparada com as grandiosas potências da época (França e Espanha), um caso de amor entre

um rei e uma plebeia chamará a atenção dos olhos do continente, em mais um prelúdio das

calamitosas circunstâncias em que a antiga ordem feudal se encontrava.

O movimento anglicano, como posteriormente fora identificado, tivera como força

motriz as negações do Papa Clemente VII em atender ao desejo do rei Henrique VIII de se

separar de sua esposa infértil, para se unir em matrimônio com outra mulher, uma notória

camareira do séquito de Catarina de Aragão. Mas quem era Ana Bolena? Eis uma questão que

nem os principais estudiosos do período conseguiram chegar a obter conclusão comum.

Através dos anos que se seguiram à sua morte (1536), a figura dessa multifacetada senhora

tem sido duramente criticada, e até mesmo difamada, por alguns pesquisadores mais

tradicionais que jogam para o campo da irrelevância sua fundamental contribuição na

formação da nova instituição religiosa que despontava naquela pequena ilha. Em grande

maioria referindo-se a ela como “a amante do rei” e não como a rainha que foi (mesmo que

por um curto período), alguns a chamaram de bruxa, outros de meretriz, e também há quem

diga que foi uma das maiores rainhas consortes que a Inglaterra já conheceu.11

.

11 Na introdução da sua Dissertação de Mestrado, Ana Paula Lopes de Almeida diz que “a imagem de Ana

Bolena tem sido maltratada ao longo dos séculos – o seu estereótipo como ‘coquete’, ‘vulgar’ e ‘adúltera’

prevaleceu ao longo dos tempos”, contudo, “alguns historiadores, biógrafos e romancistas têm recentemente

olhado para Ana de uma forma diferente, recuperando a sua representação e reconhecendo a importância do seu

papel como Rainha, na mudança que desencadeou na própria Inglaterra”. Ver mais em: ALMEIDA, Ana Paula

Lopes Alves Pinto de. Ana dos mil dias: Ana Bolena, entre a luz e a sombra da Reforma Henriquina. Porto,

2009. Dissertação (Mestrado em Letras). – Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

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12 www.rainhastragicas.com

Entretanto, uma singularidade em particular costura todas essas interpretações acerca

de Ana Bolena: como uma jovem plebéia da corte dos Tudor manipulou o próprio destino,

numa época à qual ser mulher significava sujeitar-se a todo tipo de submissão, e acabou por

conquistar e impor suas vontades perante o mais poderoso dos homens, o rei? Diversos livros

a abordam como alguém à frente do seu tempo, o que pode ser facilmente comprovado se

levarmos em consideração o fato dela ter sido uma árdua leitora dos defensores do

protestantismo, como, por exemplo, William Tyndale (responsável pela primeira tradução da

Bíblia para o inglês). Isso, por sua vez, é somente uma dentre as muitas provas que atestam

sua excepcional fibra e coragem, na medida em que outros, por atitude semelhante, foram

punidos pelas autoridades do país, cujo rei havia sido condecorado com o título de “defensor

da fé”, pelo papa Leão X12

.

Todavia, longe de ser uma pessoa que pensava aquém de sua época, Ana Bolena

estava inserida dentro de uma pequena parcela da população inglesa que não mais suportava o

despotismo e os penosos dízimos cobrados pela Igreja Católica. Com o tempo, esse outrora

diminuto contingente de indivíduos iria crescer, ao passo em que aquela dama ganhava as

boas graças do monarca, para se tornar a voz de uma ideologia em ascensão. Ana, com toda

certeza, foi filha e vítima do movimento protestante em Inglaterra, e sua imagem se

perpetuaria num eco de coragem e labor para as mulheres da posteridade. Com base nessa

premissa, o presente estudo objetiva, de forma singela, retraçar os passos desse ícone do

imaginário popular, avaliando suas contribuições para os acontecimentos que fizeram ferver o

palco político da renascença, enquanto tenta por em xeque muitas das visões preconceituosas

que macularam a reputação de tão extraordinária persona ao longo de cinco séculos de

história.

12 Para saber mais sobre a religiosidade de Ana Bolena, ver o anexo 2.

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13 www.rainhastragicas.com

Capítulo 1

Uma educação renascentista

Figura 1 – Carta de Ana Bolena ao seu pai, Sir Thomas, escrita em 1513-1413

.

Feito as considerações iniciais, partamos então para o cerne do caso, que fez com que

essa predestinada dama, certamente nascida em Blickling Hall (Norfolk), saltasse de sua vida

aparentemente modesta para o centro do furacão que se tornara o continente europeu, no

século XVI. Filha de um cavaleiro, Sir Thomas Bolena, com uma jovem aristocrata,

Elizabeth Howard, Ana Bolena provavelmente era a mais nova de três irmãos que

sobreviveram à infância. Muito do que se sabe hoje a respeito de sua vida está voltado para o

campo das especulações. Entre elas, o ano exato de seu nascimento. Uma análise cronológica

dos acontecimentos o estabelece entre os anos de 1500 a 1507, porém, é mais plausível que se

tenha ocorrido em junho de 150114

. Uma das provas para tal suposição deriva de uma carta

que o pai, quando afundado em desonra (provocada pela queda da filha em 1536), enviou ao

13 Imagem extraída do livro Mary Boleyn: the mistress of kings. – New York: Ballantine Books, 2011. p. 158-

h, escrito por Alison Weir 14 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 157

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14 www.rainhastragicas.com

secretário Cromwell pedindo-lhe ajuda, afirmando que sua mulher, nos primórdios do

casamento, concebia uma criança por ano. É possível que tal união tenha ocorrido em 1498, já

que o dote da noiva seria pago pela família desta apenas dois anos depois, ou seja, 1500.

Dessa forma, prestemos então a devida atenção para o quão incerto os pesquisadores

se encontram em definir as origens da segunda esposa de Henrique VIII. Outros autores,

como Carrolly Erikson, adotam 1507 como uma possível data de nascimento, baseados nas

pesquisas de William Camden em 161515

. Essa sugestão perde plausibilidade quando

confrontada com o fato de Ana ter sido descrita em 1514 como tendo aproximadamente

quinze anos, e vinte em 1521. Nas palavras da historiadora Antonia Fraser:

... Essa hesitação e confusão quanto à juventude de Ana Bolena tem uma explicação

bem simples: ali está uma jovem comparativamente desconhecida, que de repente

salta para a fama (ou notoriedade) na idade adulta. Passaram-se mais alguns anos, e

ela se tornou uma espécie de ‘não ser’ depois de sua queda. Passou-se uma geração

e, vejam só, ela era a mãe do soberano que reinava...16

Sua genealogia também não era das mais ilustres (embora possamos identificar na

mesma alguns membros da nobreza, como se verá mais adiante): o pai era neto de Sir

Geoffrey Bolena, outrora prefeito de Londres (1447) e comerciante de tecidos que, com o

dinheiro que acumulou, comprou as terras de Blickling Hall, em Norfolk, e o Castelo de

Hever, em Kent. Já pelo lado materno, descendia da nobre casa dos Howard, que tinham

parentesco direto com o rei Eduardo I. Com o término da Guerra das Duas Rosas (1485), a

família Howard sofreu um duro golpe em suas finanças, visto que Thomas Howard, segundo

duque de Norfolk, lutava por Ricardo III. Como consequência, o título lhe fora tomado e ele

fora preso. Contudo, 4 anos depois ela obtinha a liberdade, conseguindo manter, inclusive, o

condado de Surrey. A família Bolena, por sua vez, gozava de crescente prosperidade naquele

período e mantinha boas relações com os Howard, de modo que foi possível arranjar um

casamento entre a filha mais velha do conde, Elizabeth, com o herdeiro dos Bolena,

Thomas17

.

Cortesão deveras experiente e fluente em mais de um idioma, Thomas Bolena

conseguiu para a filha mais jovem, e de mente mais aguçada, uma posição no séquito de

15 Escrevendo sobre as conclusões de Camden, Alsion Weir em sua biografia de Maria Bolena (2011), afirma

que “according to the marginal note made by William Camden in 1615, Anne was born in 1507, the date also

given by Henry Clifford in his memoir of Jane Dormer, Duchess of Feria, printed in 1643, long after it was

written; according to the letter, Ann was ‘not twenty-nine years of age’ at the time of her execution in 1536”.

WEIR, Alison. Op.cit. 2011, p. 15 16 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 158 17 WEIR, Alison. Op.cit. 2011, p. 9

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15 www.rainhastragicas.com

Margaret da Áustria, a regente dos países baixos (dependentes do comércio de tecidos e lãs da

Inglaterra). A corte borgonhesa era um verdadeiro centro artístico e intelectual do período.

Enviada para este espaço em 1513, foi aí que Ana desenvolveu muitos de suas aptidões para a

música, dança e pintura, uma vez que a arquiduquesa era particularmente conhecida por seu

patronato a pintores e escultores, e também pelos poemas de sua autoria. À época,

mademoiselle Boullan (como era então conhecida), deveria estar com doze ou treze anos

(idade mínima para uma fille d’honneur, o que mais uma vez corrobora para que seu

nascimento tenha ocorrido em 1501) e já havia atraído boa impressão por parte da nobreza

local. Em missiva ao pai da mesma, a regente teria escrito que a achava “tão apresentável e

tão agradável, considerando-se sua a pouca idade, que estou mais agradecida ao senhor por tê-

la mandado para mim, do que o senhor a mim (...)” 18

.

De La Vure (hoje Terveuren), quando a corte da Arquiduquesa passava o verão em

Freyr, um palácio localizado nas proximidades de Bruxelas, Ana escreveu ao pai sua primeira

carta de que se tem registro (ver a figura 1), na qual compartilhava das ambições de seu

progenitor. Escrita em francês, a missiva atesta como a autora ainda encontrava-se deficitária

no idioma comercial da Europa. A mensagem dizia o seguinte:

Senhor, eu entendo pela sua carta que você deseja que eu me torne uma mulher de

boa reputação quando eu for para a corte, e você me diz que a rainha se dará ao

trabalho de conversar comigo, e isso me dá grande alegria, de pensar em falar com

uma pessoa tão sábia e virtuosa. Isso me deixará entusiasmada para falar bem o

francês, e especialmente também porque você me aconselhou para trabalhar de

minha parte nisso, tanto quanto eu puder 19.

Todavia, esse documento também demonstra certa maturidade e independência por

parte da jovem, pois no segmento do mesmo, ela escreve em linhas bem delineadas que

redigia a missiva sem a orientação de Symonnet, seu tutor. Isso, por sua vez, denota que a

filha desejava mostrar ao pai como seus estudos estavam progredindo. Ao atingir as

expectativas de Sir Thomas, um destino ainda mais brilhante aguardava Ana, quando fora

convocada para integrar, um ano depois, o grupo de damas de Mary Tudor, que viajava a

França para se casar com o idoso rei Luís XII20

.

18 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 163 19 Tradução de: “Sir, I understand from your letter that you desire me to be a woman of good reputation [toufs

onette fame] when I come to court, and you tell me that the queen will take the trouble to converse with me, and

it gives me great joy to think of talking with such as wise and virtuous person. This will make me all the keener

to persevere in speaking French Well, and also especially because you have told me to, and have advised me for

my own part to work at it as much as I can” IVES, Eric W. Op.cit. p. 19 20 Segundo Antonia Fraser, aos 13 anos, Ana Bolena já tinha idade para demonstrar sua inteligência,

convencendo seu pai de que vai a pena continuar investindo nela. Não obstante, “tinha um personalidade muito

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16 www.rainhastragicas.com

Ana, certamente, teve acesso à coleção de manuscritos iluministas de Margaret,

incluindo livros e objetos de arte, e rapidamente absorveu boa parte da ideologia que aquela

atmosfera renascentista poderia lhe oferecer21

. Em 14 de agosto de 1514, Sir Thomas escreveu

à arquiduquesa pedindo permissão para que esta dispensasse sua filha das atividades na corte.

Sendo assim, após ter passado pouco mais de um ano nos países baixos, onde adquiriu uma

educação sofisticada, mademoiselle Boullan juntou-se à sua irmã mais velha no serviço de

Mary Tudor, que deixou a Inglaterra com extensa comitiva em outubro, e foi coroada rainha

consorte da França em seis de novembro daquele ano22

. Porém, a irmã mais nova de Henrique

VIII não conservaria por muito tempo o status de soberana do país mais requintado da

Europa, pois seu marido, o rei, já muito doente e idoso, faleceu. A princesa Mary, porém,

retornaria à pátria novamente casada, dessa vez com Charles Brandon, sem que os demais

soubessem. Enquanto isso, a filha mais nova dos Bolena permaneceria subordinada à nova

rainha, Claudia de Valois, em um universo pecaminoso e repleto de glamour, onde uma dama

facilmente se entregaria aos jogos de amor, cujo maior prêmio era sua honra23

.

Os anos franceses

Se discorrer sobre a infância de Ana Bolena e suas atividades na corte da arquiduquesa

Margaret da Áustria já é tarefa complicada, investigar os sete anos que passou na França

constitui-se num campo ainda mais especulativo. Eric Ives24

, autor da biografia mais completa

(atualmente) sobre a segunda esposa de Henrique VIII, aponta para o fato de que seu nome

não constava na lista de damas que partiram com Mary Tudor para Paris em outubro de 1514,

mas apenas o de sua irmã, Maria. Não obstante, as circunstâncias que fizeram Ana

permanecer a serviço da rainha Cláudia são ainda mais misteriosas. Provavelmente, os

atributos da jovem chamaram a atenção da consorte do novo rei, Francisco I: nos países

baixos ela tornara-se extremamente notável na dança, uma arte que era muito apreciada nos

grandes centros renascentistas; seu francês estava muito mais sofisticado; era inteligente e

diferente da de sua doidivanas irmã Mary; muito mais inteligente e muito mais aplicada”. FRASER, Antonia.

Op.cit. pp. 163-4 21 IVES, Eric W. Op.cit. p. 22 22 Contudo, Eric Ives aponta para o fato de que “ in august 1514, therefore, Anne was one yhe list for France, bur

what happened then is no clear. Her sister Mary was also to go, and a list in the French archives shows that Mary

Boleyn was one of the ladies in the household of the new queen of France, but it no mention of Anne” Idem. p.

27 23 Ibid. p. 29 24 Ibid. p. 27

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17 www.rainhastragicas.com

esforçada, inclusive em atividades caseiras, como corte e costura. Enfim, o conjunto dessas

habilidades recomendou aquela adolescente ao séquito de aias de Cláudia de Valois.

Figura 2 – Rei Francisco I de França, atribuído da Jean Clouet25

.

Entretanto, para uma dama ser bem sucedida na corte de França, especialmente uma

com a idade tão precoce como a de Ana Bolena, era preciso dominar o jogo do amor cortês,

que, em tese, incluía demonstrações de cordialidades entre uma mulher e um homem. Mas na

nova monarquia do rei Francisco, as coisas eram muito mais extravagantes do que deveriam

ser, e o que era apenas uma forma de demonstrar amizade diferenciada, acabava resultando

em escandalosos casos sexuais, e extraconjugais. Carolly Erikson diz-nos o seguinte:

... Para uma menina, constituía-se uma educação temerária observar o tumultuoso e

sensual jogo galante entre ambos os sexos e o alto preço do temor e dor que as

mulheres logo pagavam. Na realidade, Ana devia conhecer, na idade adulta, todo o

alcance dessas modas eróticas, toda a variedade do amor, desde a amizade até o

prazer...26.

Sendo assim, não deve ter sido raro para a filha de Sir Thomas Bolena presenciar

separações de casais que muitas vezes resultavam em morte, especialmente da mulher. Era

25 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-g,

escrito por David Starkey. 26 ERIKSON, Carolly. Op.cit. p. 33

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18 www.rainhastragicas.com

preciso muito autocontrole e perspicácia para dominar o jogo de amor cortês em França, e

provavelmente Ana possuía tal atributo, uma vez que não chegou ao conhecimento dos

historiadores nenhum desvio de sua conduta nos anos em que passou na corte do rei

Francisco.

De acordo com IVES27

, existe ainda uma possibilidade de Ana Bolena ter conhecido

Leonardo da Vinci, um dos maiores nomes do renascimento, quando este, a convite e

pensionado pelo rei, chegou a Amboise, no ano de 1516. Também é aceitável de que tenha

acompanhado Cláudia e Louise de Savóia na jornada cerimonial de boas vindas a Francisco I

(ver a figura 2) depois de sua vitória em Marignano, em outubro de 1515. Outro evento de que

Ana provavelmente fez parte foi no triunfo pessoal da rainha em maio de 1516, quando ela foi

coroada em Saint Dennis e em seguida, quando fez sua entrada estatal em Paris. Sabe-se

também que estabeleceu laços amigáveis com Margaret D’Angoulême, futura rainha de

Navarra e irmã do rei, uma mulher muito culta e que mais tarde seria conhecida por ser uma

defensora do protestantismo. Para a maioria dos biógrafos de Ana, a figura de Margaret

exercera uma forte ascendência sobre a personalidade mademoiselle Boullan, principalmente

por ser uma defensora da influência feminina. Mais tarde, em 1535, Ana se referiria a

Margaret como “uma princesa que sempre amara de verdade” 28

.

A educação de Ana Bolena, inclusive, a credenciava a agir como intérprete nas

missões inglesas em França, como, por exemplo, em 22 de dezembro de 1818, quando houve

um banquete dado na Bastilha para a delegação de Henrique VIII, que estava a negociar o

casamento de Delfim com a filha do rei Tudor. Outra grande ocasião em que ela pode mostrar

sua utilidade foi no “Campo do tecido de ouro”, que celebrou o encontro entre os monarcas da

França e da Inglaterra, de 7 a 23 de junho d 152029

. É possível que sua mãe e irmãos também

estivessem presentes na ocasião, visto que Sir Thomas Bolena agia como embaixador.

Entretanto, ainda é muito cedo pra dizer que Henrique teria se encantado por ela em tal

ocasião. Naquele tempo, porém, Ana era uma jovem que acabava de entrar na casa dos 20

(caso adotemos 1501 como a data de seu nascimento), uma idade ideal para que a mulher

fosse escalada pela família para um casamento vantajoso, tal qual acontecera com Maria

Bolena. E o noivo já estava em vista: James Butler, filho de conde de Ormonde.

27 IVES, Eric W. Op.cit. p. 30 28 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 165 29 IVES, Eric W. Op.cit. p. 31

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19 www.rainhastragicas.com

Capítulo 2

A corte inglesa

Figura 3 – Ana Bolena, por artista desconhecido. Cópia de um retrato original perdido do

séc. XVI30

.

O retorno de mademoiselle Boullan à Inglaterra esteve ligado aos planos de casamento

que seu tio, Thomas Howard (então conde de Surrey) e o cardeal Wolsey (chanceler do reino)

estavam a fazer entre ela e James, filho de Piers Butler, conde de Ormonde. Não obstante, o

início da terceira década do século XVI foi marcado pelas hostilidades entre Henrique VIII e

Francisco I, logo após as comemorações do “Campo do tecido de ouro”. A questão do

matrimônio, por sua vez, afigurou-se como uma tentativa de apaziguar as ambições de Sir

Thomas Bolena à herança de sua mãe, Margaret (filha do velho conde de Ormonde, que

morreu tendo apenas duas filhas, fazendo com que um primo distante, Piers Butler,

reivindicasse a patente). Ao que parece, o pai de Ana ainda não estava satisfeito por ter aberto

30 Imagem extraída do livro Mary Boleyn: the mistress of kings. – New York: Ballantine Books, 2011. p. 158-

d, escrito por Alison Weir.

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20 www.rainhastragicas.com

mão do título, em troca de algumas posses31

. Nesse processo, é importante também colocar

que era desejo do próprio Henrique que a união entre ambos os jovens, com idades

aproximadas, se procedesse32

.

Em outubro de 1521, Wolsey escreveu ao rei em Calais uma carta na qual dizia que

quando regressasse à corte “dedicar-me-ei em pleno ao aperfeiçoamento desse casamento” 33

.

Naquele tempo, James Butler era membro da casa do cardeal, enquanto a noiva, juntamente

com outros cortesãos, retornaria de França, passando a integrar o séquito de aias da rainha

Catarina de Aragão. Sua primeira grande aparição na corte de que se tem registro foi numa

peça teatral ao lado de damas influentes, como a ci-devant rainha da França, Mary Tudor

(agora duquesa de Suffolk), na qual representara o papel de perseverança, aprisionada com

outras virtudes numa fortaleza guardada por outras jovens que simbolizavam alegoricamente

os vícios humanos34

. O rei, que se sabe um grande admirador de tais festividades, participou

da dramatização disfarçado de cavaleiro, liderando o assalto ao castelo, ao que se seguiu uma

simulação de luta na tradição borgonhesa, e de um baile, com paços de dança

coreograficamente elaborados35

.

Qual a aparência de Ana Bolena quando de seu retorno é outro fator de discussão entre

seus principais biógrafos. Se tomarmos como referência os retratos da mesma, perceberemos

ali uma moça que não se enquadrava nos padrões estéticos daquele período, que valorizava

mulheres loiras e de olhos azuis36

. Segundo David Loades,

... O aspecto de Ana nesta fase foi descrito ou recordado por muitos escritores, que

discordam em considera-la favoravelmente ou não, mas que são unânimes em certos

aspectos. Ela não era de uma beleza deslumbrante, mas tinha uma sexualidade

eletrizante: ‘Muito eloquente e graciosa, e razoavelmente bem-parecida’, escreveu

um contemporâneo que a conhecia bem, apesar de se tratar de um padre que

dificilmente comentaria os seus atrativos...37.

31 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 166 32 IVES, Eric W. Op.cit. p. 35 33 LOADES, David. As Rainhas Tudor – o poder no feminino em Inglaterra (séculos XV-XVII). Tradução

de Paulo Mendes. – Portugal: Caleidoscópio, 2010. . 128 34 O evento se passou em 1 de março de 1522 e ficou conhecido como “the assault on ‘the Château Vert” (o

assalto ao castelo verde): “there were eight court ladies involved, each cast as one of the qualities of the perfect

mistress of chivalric tradition – Beauty, Honour, Perseverance, Kindness, Constancy, Bounty, Mercy and Pity”.

A princesa Mary ficou com o papel da “beleza”, enquanto Maria, irmã de Ana, que também estava presente na

celebração, interpretou a “gentileza”. IVES, Eric W. Op.cit. p. 37 35 LOADES, David. Op.cit. p. 128 36 Para uma melhor descrição da aparência física de Ana Bolena e de seus retratos, ver o apêndice 1: “As várias

faces de Ana Bolena”. 37 LOADES, David. Op.cit. p. 129

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21 www.rainhastragicas.com

Porém, a descrição mais confiável provém de um diplomata veneziano que estava

presente na corte inglesa na época: “Não é uma das mulheres mais bonitas do mundo, tem

estatura média, compleição escura, pescoço cumprido, boca larga, um peito não muito saliente

e olhos que são negros e lindos...” 38

. Antonia Fraser39

discorre acerca da possibilidade de Ana

ser usuária de cosméticos, preparados a partir de urtiga, folhas de hera, cinabre, enxofre e

açafrão, para clarear sua tez cor de oliva e os cabelos, que eram muito escuros, geneticamente

herdados de sua avó irlandesa40

.

Contudo, o que fascinava os rapazes na compleição física de Ana Bolena era o fato de

que, nas palavras de Eric Ives41

, “ela irradiava sexo”. Passara tantos anos na corte do rei

Francisco que quando retornou, fora descrita como mais francesa do que inglesa. Seus modos

coquetes, aliados à maneira de vestir-se, contribuíam para uma opinião como essas acerca de

sua personalidade. Além disso, sabia tocar diversos instrumentos e manter uma conversa

interessante por várias horas, tanto em sua língua natal, como em francês. Porém, os homens

sentiam-se também intimidados pelo seu caráter, dotado de fortes opiniões, o que, por sua

vez, desagradavam-nos. As negociações de casamento com Jaime Butler simplesmente não

foram adiante, ora por que o conde de Ormonde precisou retornar para a Irlanda a fim de

resolver um entrave político, ora por que Sir Thomas não estava satisfeito com o acordo pré-

nupcial. Todavia, “a jovem e viçosa donzela” já estava enamorada de um dos grandes

herdeiros do reino, de quem, suspeita-se, teria extraído uma promessa de matrimônio: Henry

Percy, filho do quinto conde de Northumberland42

.

Os amores de Ana Bolena

A relação que mademoiselle Boullan desenvolveu com Henry Percy, herdeiro do

quinto conde de Northumberland, serviu para inúmeras passagens de livros de romancistas

como Robin Maxwell em The Secret Diary of Anne Boleyn (1997) e Philippa Gregory em The

Other Boleyn Girl (2001). Porém, a maior fonte de que dispomos como referencial da 38 Idem. p. 129 39 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 167 40 Ao se referir sobre os cosméticos utilizados no século XVI para branqueamento da pele, Antonia Fraser sugere

que “teria sido necessária uma grande quantidade de açafrão e enxofre para clarear a tez cor de oliva de Ana

Bolena. Este era outro elemento sobre o qual os comentadores concordavam, quando classificavam a sua cor de

‘muito escura’ (fúscula) ou pálida (subflavo), ‘como sofrendo de icterícia’, ou ‘não tão esbranquiçada quanto (...)

acima de tudo possamos avaliar”. Idem. 41 IVES, Eric W. Op.cit. p. 45 42 FRASER, Antonia. Op.cit. pp. 169-70

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22 www.rainhastragicas.com

veracidade de tal união é a biografia que George Cavendish, serviçal do cardeal Wolsey,

escreveu anos mais tarde sobre seu amo. Segundo ele, Percy, que era membro da comitiva do

cardeal, tinha o costume de frequentar a câmara privada de Catarina de Aragão inicialmente

“para se distrair”, e lá teria se deparado com uma jovem dama de olhos negros e penetrantes.

Passavam horas a fio conversando e se entretendo na melhor tradição do amor cortês, uma

espécie de amizade em forma de galanteria muito comum no período. Mas, com o andar dos

dias as coisas foram ficando mais sérias de modo que “desenvolveu-se tal amor secreto entre

eles que depois de um certo tempo os dois ficaram garantidos’ (isto é, ficaram unidos por uma

promessa de casamento ou pré-contrato)” 43

.

A natureza de tal relacionamento e até que ponto ele teria avançado ainda permanece

um mistério. Naquele período, Henry Percy estava prometido à jovem Mary Talbot, filha do

conde de Sherewsbury (embora, inicialmente, as negociações de noivado entre eles tivessem

se esfriado). Northumberland era um grande senhor de terras do norte e, como tal, enviou o

filho de 14 anos para o sul, onde receberia uma educação apropriada44

. Como membro da casa

de Wolsey, cabia ao cardeal a responsabilidade pela conduta de seu aprendiz, e um caso com

uma jovem de ascendência comum não fazia parte dos planos da família deste. Nas palavras

de Francis Hackett,

... A esbelta moça de olhos negros e o rapaz tinham-se descoberto, e não tardaram

em apaixonar-se de tal forma que era impossível ocultá-lo. Percy não tinha a menor

ideia da imprudência que cometera até a noite fatal em que, voltando da corte com o

seu senhor, foi rudemente avisado de que o Cardeal o esperava na grande galeria...45.

O círculo estava voltado contra Percy, e Wolsey estava disposto a acabar de vez com

as ambições do jovem em relação à senhorita Bolena. Mesmo tendo feito uma intrépida defesa

de sua escolha, na qual ressaltou sua nobre linhagem como justificativa para agir como bem

entendesse, o chanceler foi mais astuto e mandou chamar o próprio conde de Northumberland,

que dissolveu as pretensões do filho com um rude sermão, ressuscitando o compromisso deste

com Mary Talbot.

De acordo com alguns historiadores, esse fora o início da desilusão de Ana Bolena,

que de donzela apaixonada, passou a nutrir incontido rancor por quem considerava o

responsável pelo seu infortúnio: o cardeal Wolsey. Fora então despachada da corte para o

castelo de sua família, em Kent, e lá permaneceria até obter o perdão real. Todavia, o

43 Idem. p. 170 44 Ibid. 45 HACKETT, Francis. Henrique VIII. Tradução de Carlos Domingues. – São Paulo: Pongetti, [1950]. p. 174

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principal agente da empreitada que levou ao rompimento de Ana e Henry Percy foi o próprio

Henrique VIII, que se beneficiaria com o casamento entre os filhos de dois dos mais

importantes nobres da região norte do país46

. Não podemos saber se a essa altura (algures em

1523) o rei já tinha posto os olhos naquela moça, que vira na figura do cardeal um bode

expiatório para todas as suas raivas, e embora muitos tendam a supor que o exílio de Ana fora

longo, Carolly Erikson47

afirma que na verdade durara bem menos do que se pensa (o que

pode ser um forte indicador dos interesses do soberano, que não queria manter longe por

muito tempo o alvo de suas paixões).

Figura 4 – Sir Thomas Wyatt, por Hans Holbein (o Jovem) 48

.

Contudo, pouco depois de mademoiselle Boullan retornar à corte, seu nome estaria

ligado ao de outro homem: o poeta Thomas Wyatt (ver a figura 4). Tal como os Bolena, a

46 Em nota à página 171, Antonia Fraser (2010) diz o seguinte: “George Cavendish, como outro membro da

criadagem de Wolsey (ele era escudeiro dele) foi testemunha do romance de Percy com Ana Bolena; por isso,

seu depoimento sobre o desenvolvimento desse é valioso. Mas ele não foi testemunha dos colóquios entre o rei e

o cardeal sobre o assunto. Trinta anos depois – na década de 1550 –, quando redigiu a biografia de Wolsey, foi

fácil demais reduzir as datas e partir do pressuposto de que Henrique tinha sido contra o casamento de Percy por

desejar Ana Bolena”. 47 ERIKSON, Carolly. Op.cit. p. 59 48 Imagem extraída do livro The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books,

2010. p. 202-j, escrito por Alison Weir.

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família Wyatt morava em Kent, próximo ao castelo de Hever. Sendo assim, é possível que ele

e Ana tivessem se conhecido ainda crianças. De acordo com uma biografia que o neto, George

Wyatt, escreveu sobre o avô, Thomas apaixonara-se por aquela jovem dama desde sua volta

da França. John Lelanden o descreveu como um rapaz “alto, de vigorosos músculos e tendões,

agregados a um belo rosto” 49

. Era, acredita-se, mais novo um ou dois anos do que ela.

Entretanto, em princípios de 1526, pouco antes de sua viagem para o exterior, já estava

casado com Isabel Brook e com um filho, de modo que não estava livre para desposá-la.

Desse modo, é provável que o envolvimento entre ambos não tenha ido além das regras de

amor cortês, incluindo rejeições por parte dama, que não queria tornar-se amante do rapaz50

.

Há muitas referências à Ana na poesia dele, e consequentemente de suas recusas aos

avanços amorosos do mesmo. Dentre elas, a que mais ilustra sua situação de sentimento não

correspondido é aquela em que ele faz referência à mulher que o seduzira e depois o

abandonara:

Quem quiser ir à caça? Eu sei onde está uma corça

Mas, de minha parte, ai de mim já não posso

Este trabalho vão cansou-me cruelmente

Eu sou um dos últimos chegados

E contudo o meu espírito lasso não pode desprender-se

Da sua pressa, e enquanto ela foge

Eu busco em vão segui-la. Finalmente detenho-me:

seria o mesmo querer perder o vento nas malhas de uma rede.

Quem quer dar-lhe caça? Eu posso assegurar-lhe

Que, como eu, perde o seu tempo em vão

Em redor de seu colo, em letras de diamante

está claramente escrito:

Noli me tangere, porque eu sou de Cesar

E difícil de reter, embora pareça domesticada51

.

49 Idem. p. 61 50 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 173 51 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 177

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Os versos finais são bastante claros acerca dos motivos que levaram o poeta a não

mais investir naquela dama: o César, de que faz menção, nada mais era do que o próprio rei

Henrique VIII, que foi mais uma vítima dos encantos de Ana Bolena. Uma vez que se tornara

fruto dos desejos do rei, significava que nenhum homem além dele podia tê-la. Todavia, a

última frase do poema revela um aspecto fundamental acerca do caráter da dama: ela podia

parecer dócil à primeira vista, mas era alguém cujas convicções e ambição eram difíceis de

apaziguar.

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Capítulo 3

Uma simples dama da corte contra a grande princesa de Castela.

Figura 5 – Uma das 17 cartas que Henrique VIII escreveu para Ana Bolena52

.

Não se sabe ao certo quando Henrique VIII começou a questionar a validade do

casamento com sua consorte, e ambicionou contrair matrimônio com a jovem filha de Thomas

Bolena. A princípio, sua intensão era toma-la como amante, tal como fizera com a irmã da

mesma, Maria53

. Todavia, Ana era mais determinada, e não queria comprometer sua virtude

sem a certeza de que poderia sair desse relacionamento com a reputação ilesa. Por outro lado,

não tinha como barrar as investidas do rei, encantado por aquela mulher de aparência tão

díspar e de energia tão cativante que lhe traria o conforto que não mais encontrava nos braços

52 Imagem extraída do livro The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom:

Blackwell Publishing, 2010. p. 202-l, escrito por Eric Ives. 53 As intenções do rei de fazer Ana Bolena sua amante ficou exposta em uma das cartas que o mesmo enviou a

ela, onde dizia “se vos aprouver cumprir os deveres de uma sincera e leal amante, e entregar-se a mim de corpo e

alma, eu serei, como sempre fui, o vosso servidor mais leal (se o vosso rigor não mo vedar), e prometo-vos que

não vos darei só o nome de amante; vós o serei efetivamente, eu afastarei do meu pensamento e da minha afeição

todas aquelas que possam competir convosco, e não servirei senão a vós”. HACKETT, Francis. Op.cit. p. 183

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da esposa de 40 anos. Provavelmente, pelo idos do carnaval de 1526, o rei já se tinha deixado

enamorar pela dama em questão54

; em abril do ano seguinte, estava claro que queria uma

anulação do seu casamento com Catarina de Aragão, pois foi quando se deu início às

primeiras reuniões para avaliar a validade do matrimônio entre o oitavo Henrique e a filha dos

reis católicos, que, em dezoito anos de casamento, não lhe dera filhos homens saudáveis,

exceto uma garota de compleição debilitada.

A determinação do rei em conquistar mademoiselle Boullan está bem documentada

pelas apaixonadas cartas que este lhe escreveu, onde demonstra uma jovialidade e interesse

pouco comuns para um rei de 35 anos. Ao todo, existem 17 dessas correspondências (ver a

figura 5), arquivadas por meios misteriosos na Biblioteca do Vaticano55

. Nenhuma delas,

porém, está datada, mas algumas referências internas ajudam a coloca-las numa espécie de

ordem56

. Em tais missivas, podemos perceber o sangue e o amor do autor, quando ele diz:

Revolvendo no meu pensamento o conteúdo das vossas últimas cartas, eu me acho

nos tormentos mais dolorosos, não sabendo se elas me são desfavoráveis, como

compreendo em muitos pontos, ou favoráveis, como me parecem em alguns outros;

eu vos suplico agora, com o mais intenso ardor, que me façais conhecer inteiramente

as vossas intenções, pelo que respeita ao amor entre nós dois...57.

A partir deste trecho percebemos como Ana ainda tentava recusar as investidas do rei.

Porém, a insistência do mesmo a deixava sem saída. Em determinado momento, ela deve ter

percebido que garantir a atenção do monarca poderia lhe garantir muitos benefícios. Além do

mais, como súdita, ela não podia simplesmente rejeitar as atenções do rei.

Muitas das cartas de Henrique para Ana eram escritas em francês, haja vista que

ambos dominavam esse idioma, enquanto que a maioria dos demais cortesãos não58

. Isso, por

sua vez, ajudava a manter o conteúdo de tais correspondências em segredo. Em outras delas, o

escritor já demonstra mais felicidade e segurança quanto à afeição que a amada lhe tinha,

quando agradece por um presente que esta havia lhe dado (um pingente com uma donzela

dentro de um barco, que navegava num mar revoltoso), dizendo também que:

54 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 175 55 Em nota à página 176, Antonia Fraser (2010) diz o seguinte: “Lá, elas receberam de um arquivista

desconhecido a numeração que é usada desde então: não há dúvida de que ela não é cronológica. São várias as

teorias sobre a maneira pela qual as cartas do rei chegaram a Roma: talvez um espião papal as tenha roubado em

1529, já que não parece que o legado papal, cardeal Campeggio, tentasse contrabandeá-las, como certa vez foi

sugerido. Outra possibilidade é de que as cartas tenham ficado na Inglaterra: poderiam, por exemplo, ter ficado

em Hever, ter sido passadas pelo proprietário da época, o católico Edward Waldegrave, a um padre que ele

estava protegendo e que as levou para Roma...” 56 Ibid. 57 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 183 58 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 176

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... As vossas demonstrações afetuosas são tais, os delicados pensamentos da vossa

carta são expressos tão cordialmente que me obrigam para sempre a honrar-vos,

amar-vos e servir-vos sinceramente, suplicando-vos que persistais com firmeza e

constância no vosso sentimento; e asseguro-vos que, de minha parte, não só vos

corresponderei, mas, se possível, vos superarei em plena lealdade de coração...59.

Curiosamente não sobraram quaisquer respostas de Ana a essas cartas do rei, talvez

porque ele mesmo as destruiu a fim de preservar o segredo de seu relacionamento com ela.

Entretanto, em breve todas as cortes da Europa saberiam que Henrique VIII de Inglaterra

desejava anular seu casamento com uma esposa estéril (lembremos que o divórcio não era

permitido pelas leis bíblicas) e se casar com uma mulher mais jovem. Wolsey tencionava

arrumar-lhe como noiva a princesa Renata da França, mas seu senhor já tinha em vista a

candidata que considerava ideal.

No entanto, as circunstâncias não eram tão favoráveis como Henrique imaginava. Por

mais de trinta anos os franceses e uma sucessão de inimigos (mais recentemente os

Habsburgos) vinham lutando pelo domínio da Itália. Em maio de 1527 essa situação atingiu

seu clímax quando as tropas do Imperador Carlos V saquearam a cidade de Roma. Por muitos

meses o Papa Clemente VII ficou como prisioneiro em sua própria cidade e depois em um

paupérrimo refúgio60

. Além disso, uma série de outras questões contribuiu para o que ficou

conhecido como “o grande caso do rei” não apresentasse uma solução rápida e fácil. Em

grande parte, isso se deveu à perseverança de uma mulher determinada a continuar no lugar

que na sua convicção Deus lhe destinara, dispondo para tanto de todo seu poder e influência

na tentativa de assegurar a herança de sua filha, e a impedir que Ana Bolena, a quem chamou

certa vez de “o escândalo da cristandade”, se tornasse rainha da Inglaterra.

Um casamento, a priori.

Para compreender os motivos pelos quais Henrique VIII decidiu se separar da esposa,

primeiro é preciso remontar os passos desta, empreendendo assim uma viagem que se inicia

na Espanha, quando os reis Católicos estavam em campanha contra os mouros de Granada.

Catarina de Aragão (ver a figura 6) era filha legítima dos dois mais famosos monarcas da

História do cristianismo: Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão. Nascera praticamente

59 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 184 60 IVES, Eric W. Op.cit. p. 46

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no meio do campo de batalha, em 1485, e desde cedo fora prometida em casamento ao filho

mais velho do rei Henrique VII da Inglaterra, Arthur. A dinastia Tudor acabara de chegar ao

poder naquela ilha, há anos devastava pela Guerra das Duas Rosas. Sendo assim, um

casamento com uma potência estrangeira ajudaria a solidificar os alicerces da autoridade do

novo rei, e a escolha para tal tarefa recaíra na figura da figura da mais jovem entre as filhas de

Fernando e Isabel. Destarte, sua mãe providenciou-lhe uma excelente educação, nos moldes

do catolicismo; tornara-se fluente em mais de uma língua, como, por exemplo, o latim e o

francês, e passava horas a deleitar-se com os inúmeros livros da biblioteca de seus pais, além

de ser uma hábil costureira61

.

Figura 6 – Catarina de Aragão, atribuído a Lucas Hornebolt62

.

Em 1501, já com 16 anos, fora enviada à corte Inglesa e condecorada com o título de

princesa de Gales, em virtude de seu matrimônio com o príncipe Arthur. Mas, para infortúnio

de Catarina, o jovem príncipe era de saúde precária e morreu seis meses após a celebração de

casamento. Contudo, uma dúvida pairava na cabeça de todos os cortesãos: teriam os dois

61 Sobre a educação de Catarina de Aragão, assim como outras passagens de sua vida, é imprescindível a

consulta do livro Catherine of Aragon (1942), escrito por Garret Mattingly. Ver mais em MATTINGLY, Garret.

Op.cit. pp. 15-37. 62 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-e,

escrito por David Starkey.

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jovens consumado ou não a união? Essa questão até hoje salta aos olhos dos pesquisadores,

que divergem em suas opiniões. Quando o príncipe de Gales morrera, muitos acreditaram que

Catarina poderia estar carregando um filho dele, mas à medida que seu corpo não apresentava

mudanças, essa esperança logo desapareceu. Dona Elvira, representante da rainha Isabel em

Inglaterra, afirmou que sua protegida ainda era virgem, o que não era impossível, dada à idade

precoce dos noivos (ela tinha 16 e ele 15) e à fragilidade física de Arthur63

.

Contudo, a afirmação que o príncipe teria feito após a lua de mel do casal, de que

passara a noite “no meio da Espanha” é bastante confusa. O mais provável é que este estivesse

a contar vantagens por uma coisa que não fez, pois se assumisse o fracasso, seria

ridicularizado diante da corte, e reprimido pelo próprio pai64

. De acordo com Antonia Fraser,

Num período em que os casamentos eram, com frequência, contratados por motivos

de Estado entre crianças ou entre seres em torno das fronteiras da infância e da

adolescência, tomava-se mais, e não menos, cuidado quanto ao momento da

consumação. Uma vez oficialmente completado o casamento, poderiam passar-se

alguns anos para que se julgasse que o momento adequado chegara...65.

Para uma mulher de mentalidade extremamente cristã como a de Catarina, o que

estava em jogo não era apenas o destino que acreditava ser o seu (o de tornar-se rainha da

Inglaterra), mas sua alma imortal perante Deus. Confiando na palavra da filha, o rei Fernando

recorreu ao papa Júlio II para emitir uma bula, permitindo uma nova união entre a princesa

viúva e Henrique, irmão de seu finado marido. Porém, tal documento constava uma cláusula

na qual o casamento tornava-se válido mesmo a princesa fosse virgem ou não66

.

Esse ponto demonstra diversas interpretações: a) os reis católicos queriam ver sua filha

coroada rainha da Inglaterra; b) Henrique VII queria garantir a outra parte do dote da noiva

que ainda não havia sido paga. Então, com a dispensa pronta, começaram-se os preparativos

para um novo contrato de casamento entre uma mulher de quase 20 anos e um rapaz de 11.

Muitos anos ainda se passariam até que aquela princesa alcançasse seu destino. Desde a morte

de Arthur, em 1502, até a coroação de Henrique VIII, em 1509, Catarina passaria anos difíceis

na Inglaterra, com pouco orçamento para manter sua casa e criadagem. O rei, à medida que

63 Segundo a história de Catarina, que ela mesma contara no confessionário ao cardeal Campeggio em 1529, ela

e Arthur só haviam compartilhado o leito por sete vezes, mas em momento algum ele a “conhecera”. FRASER,

Antonia. Op.cit. p. 44 64 Sobre essa afirmação, Antonia Fraser ressalta que “não existe registro contemporâneo algum da opinião do

príncipe Arthur sobre o assunto, e não há dúvida que não se deve dar crédito a boatos vulgares divulgados muito

convenientemente vários anos depois por cortesãos que, estava evidente, esperavam atender aos interesses de seu

senhor”. Idem. p. 45 65 Ibid. p. 44 66 Ibid. pp. 54-5

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31 www.rainhastragicas.com

Fernando não pagava o restante do dote, pouco se interessava pelo destino dela (embora tenha

cogitado a possibilidade de ser casar com a própria, o que foi duramente recusado pelos pais

da moça). Quando sua sogra, Isabel de York, morreu, em 1503, e a rainha Isabel um ano

depois, a princesa viúva não tinha ninguém que intercedesse a seu favor. Os embaixadores

espanhóis pouco faziam para recomendá-la ao favor de Henrique VII, já muito doente. A

situação da infanta havia-se tornado, então, um impasse para as coroas de Inglaterra e

Espanha67

.

Todavia, logo a sorte agiria em seu favor, quando o seu sogro morreu, passando a

coroa para o jovem príncipe Henrique, aos 17 anos. Tão logo subiu ao poder, o novo rei tratou

de tomar por esposa a viúva de seu irmão, coroando-a rainha. A felicidade daquela dama de

24 anos não podia ter mais fim: finalmente ela cumprira a função para o qual havia sido

enviada: tornara-se soberana. Uma vez no poder, eram vivíeis as suas qualidades, tanto como

esposa, quanto como monarca. Segundo um de seus principais biógrafos:

... Catarina pensou sempre que seu dever primordial era aconselhar o marido e o fato

de que a caridade e a educação absorveram seu tempo, não significa dizer que parara

de se interessar pela política externa. Porém, estava começando a compartilhar os

ideais pacifistas de More, Colet e Erasmo...68.

A partir do excerto acima, percebemos como a rainha se interessava pelos ideais do

humanismo, legando seu patronato, inclusive, aos principais pensadores da época e a grandes

universidades, a exemplo de Cambridge. Tornara-se uma mulher cada vez mais amada pelos

súditos, por seu caráter bondoso e compassivo. No entanto, ao passo em que não gerava um

herdeiro saudável para a coroa, o desapontamento do rei começa a surgir.

Em 1509, havia abortado uma garota, mas como era sua primeira gestão, não

significava que algo estivesse errado. O ano de 1513 trouxera mais felicidade para o casal,

quando um príncipe chegou. Organizaram-se torneios e festas para celebrar o nascimento do

pequeno Henry, que, infelizmente, viveria pouco mais de um mês. Ao todo, Catarina

engravidara sete vezes, das quais apenas uma menina sobrevivera: a futura Maria I. Mas

Henrique não queria como sua sucessora uma mulher, e sim um varão capaz de domar aquele

reino. Essa situação se complicara ainda mais quando o rei se deparou com um texto bíblico

do livro Levítico, que condenava a união entre um homem e a mulher de seu irmão, com a

penalidade de não vingarem filhos dos dois. Embora eles tivessem uma garota, Henrique

relacionou a palavra “filhos” a rebentos do sexo masculino. Como conforto pra seu desânimo,

67 Ibid. pp. 56-7 68 MATTINGLY, Garret. Op.cit. p. 235

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32 www.rainhastragicas.com

passou a procurar aconchego nos braços de amantes, como Bessie Blount, que lhe dera um

menino bastardo, batizado de Henry Fitzroy, e Maria Bolena, a filha mais velha de Sir

Thomas Bolena, conhecida pela alcunha de “a grande prostituta”.

Ana e Maria, verdade e ficção.

A relação entre Ana e Maria Bolena foi tema do best-seller da escritora Philippa

Gregory, The Other Boleyn Girl (2001). Adaptado tanto para a televisão (2003), quanto para o

cinema (2008), o enredo da obra em questão traz uma série de fatos que nem sempre

conferem com os registros históricos. O público brasileiro, provavelmente, já deve ter tido

contato com a narrativa do romance através do filme “A Outra” (2008), que trás muitas

estrelas hollywoodianas em um cenário muito bem contextualizado, com banquetes em

grandes salões de palácios, e figurinos bem ilustrativos. Entretanto, a presente trama foi

também responsável por uma análise diferenciada de seus personagens, ao mostrar Maria

como a boa filha e sua irmã como a vilã. Em realidade, os registros nos mostram outra versão

deste caso, não tanto animadora ou cheia de paixões e intrigas como nos mostra Gregory, mas

mesmo assim fascinante. Nesse contexto, o que se afigura é a condição de submissão das

mulheres pelo que se denominava inferioridade do sexo feminino.

De acordo com o que vimos anteriormente, Maria (ver a figura 7) provavelmente era

a mais velha de seus irmãos Ana e George, tendo nascido por volta de 149969

, também em

Blickling Hall. Assim como acontece com a Bolena mais nova, muito do que se sabe hoje a

respeito da segunda amante de Henrique VIII baseia-se em especulações. Poucos são os

pesquisadores que se interessam em destrinchar a vida desta mulher, que representou um caso

de coragem na Inglaterra no século XVI. Segundo as opiniões de contemporâneos do período,

Maria apresentava todas as características valorizadas em uma dama: tinha cabelos e peles

claros, assim como um tom de tez muito apreciado, ou nas palavras de Carrolly Erikson, “era

sensual e precocemente atraente”. Todavia, o fato de seu pai não a ter enviado para a corte de

Margaret da Áustria, assim como fez com Ana, pode significar que este depositava mais

esperanças no sucesso da filha mais nova, do que na mais velha70

.

69 Alison Weir, em sua mais recente biografia sobre Maria Bolena (2011), sugere que a filha mais velha de

Thomas Bolena e Elizabeth Howard nascera em 1498 ou 1499 e que seu nome deriva da Virgem Maria. Nesse

caso, ela estipula a data de seu nascimento nas proximidades da festa da Anunciação (25 de Março), quando

muitas garotas eram batizadas em homenagem à mãe de cristo. WEIR, Alison. Op.cit. 2011, p.17 70 FRASER, Antonia. Op.cit. p.163

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33 www.rainhastragicas.com

Figura 7 – Possível retrato de Maria Bolena, por atrista desconhecido71

.

Porém, logo a oportunidade de Maria chegaria: em 1514, ela foi escalada como dama

de companhia da Mary Tudor. Eric Ives72

sugere que quando a princesa retornou à Inglaterra,

é provável que a Bolena mais velha tenha ido junto com ela, mas não sua irmã menor, que

permaneceu no serviço da nova rainha. Contudo, Maria regressou com a reputação maculada

pelos escândalos pertinentes àquela corte. Erikson, ao discorrer sobre esse fato, diz que:

Francisco I se referia a ela com os termos ‘uma potranca’ ou ‘essa égua inglesa’, que

ele e muitos outros haviam desfrutado, cavalgando-a durante sua permanência em

França. E duas décadas depois de sua partida para a Inglaterra, a chamavam ainda de

uma ‘grande prostituta, mais infame que qualquer outra...73.

Todavia, Maria haveria tipo pouco tempo para construir tão negativo conceito em

França. Se os boatos forem verossímeis, podemos então supor que ela não voltou com Mary

Tudor para Inglaterra, mas permaneceu na corte francesa a serviço da nova rainha até 1519,

um ano antes de se casar.

71 Imagem extraída do livro Mary Boleyn: the mistress of kings. – New York: Ballantine Books, 2011. p. 158-

a, escrito por Alison Weir. 72 IVES, Eric W. Op.cit. p. 29 73 ERIKSON, Carolly. Op.cit. p. 34

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O noivo da moça era um mercador nobre de baixa extração, William Carey. A escolha

do pretendente de linhagem simples, por sua vez, poderia simbolizar a pouca expectativa

que Sir Thomas nutria pela filha mais velha, enquanto que para a mais nova havia projetado

um união com um conde irlandês. Porém, o Senhor e a Senhora Carey haveriam tido pouco

tempo para desfrutar da lua-de-mel, pois mais tarde naquele ano Henrique VIII resolvera

toma-la por amante. Como consequência, a família Bolena recebeu novos títulos e

propriedades, além de obter maior influência na corte. Mas o relacionamento entre eles não

duraria sequer um ano, terminando em 1521, antes de mademoiselle Boullan voltar para casa.

Dessa forma, há que se desfazer a opção de que o romance entre Ana e Henry Percy poderia

fragilizar o caso que o rei mantinha com Maria, pois quando isso aconteceu, os dois já

estavam separados. Em 1524, ela deu à luz sua primeira filha com o esposo, batizada de

Catarina74

. Dois anos depois, veio um menino, chamado Henrique.

Em 1528, William Carey morreu de uma epidemia que dizimou boa parte da

população da época; conhecida como a febre do suor, o enfermo passava horas a fio

agonizando e transpirando em cima do leito. Poucos foram os contagiados que conseguiram

sobreviver (entre eles a própria Ana). Recluída no campo desde que se tornara viúva, Maria só

retornou à corte (algures em 1533) quando sua irmã estava no auge de sua carreira política.

Mas, poucos anos depois cairia no desagrado da família por contrair bodas secretas com

William Stafford, um mero serviçal75

. Com uma reputação de meretriz, a Bolena mais velha

teve sorte de encontrar alguém que a aceitasse e desse um nome para seus filhos. Passaria por

muitos anos difíceis ao lado do novo cônjuge, mas preferia “mendigar o pão ao lado dele, a

ser a maior rainha ungida da cristandade” (como disse em carta ao secretário Cromwell) 76

.

Sua decisão contrária aos anseios dos parentes demonstra grande fibra e coragem, duas

características não muito encontradas nas mulheres do período.

74 Alison Weir sugere que o nome da primeira filha de Maria Bolena foi escolhido em homenagem à rainha

Catarina de Aragão. Para a historiadora, é possível que o relacionamento do rei com a filha mais velha de

Thomas Bolena se estendera até a época da primeira gravidez dela, fazendo do rei um possível pai da criança.

Posteriormente se levantaria a suspeita de que as duas crianças fossem bastardos reais, embora o rei nunca os

tenha reconhecido como seus. WEIR, Alison. Op.cit. p. 151 75 WILKINSON, Josephine. Mary Boleyn: the true story of Henry VIII’s favourite mistress. –

Gloucestershire: Amberley Publishing, 2010. p. 151 76 WILKINSON, Josephine. Op.cit. p. 150

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35 www.rainhastragicas.com

Capítulo 4

O Grande dilema do rei

Figura 8 – Henrique VIII, por artista desconhecido77

.

O ano de 1527 trouxe alguns obstáculos para os envolvidos no caso que ficou

conhecido como o “grande problema do rei”. Era ele ou não casado com sua esposa? Teria

sido uma mentira os 18 anos que os dois passaram em união conjugal? Pelo menos o rei

estava confiante nesta certeza, mas não a rainha. Quando ele foi expor seus argumentos a ela,

esta se negou a acreditar naquelas palavras e logo em seguida caiu em prantos78

. Naquele ano,

Henrique tinha ordenado ao cardeal Wolsey que organizasse um tribunal secreto para avaliar a

validade de seu matrimônio, mas três semanas depois não haviam chegado a uma conclusão79

.

Enquanto isso, mademoiselle Boullan se negava veemente a tornar-se amante real, o que, por

77 Imagem extraída do livro Mary Boleyn: the true story of Henry VIII’s favourite mistress. –

Gloucestershire: Amberley Publishing, 2010. p. 96-c, escrito por Josephine Wilkinson. 78 Garret Mattingly escreve que as lágrimas de Catarina deixaram Henrique profundamente enervado e sem

reação perante tamanha demonstração de sentimentos por parte da esposa. MATTINGLY, Garret. Op.cit. p. 302 79 A sessão “secreta”, que ficou conhecida como inquisitivo ex officio teve lugar no palácio de Wolsey, York

House, em maio de 1527 e contou com a presença do cardeal, do Arcebispo de Canterbury, William Warham,

entre outros. O objetivo do conchavo era julgar a validade da bula emitida por Júlio II e, como era esperado,

declarar nulo o casamento do rei. MATTINGLY, Garret. Op.cit. p. 301

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sua vez, só acentuava o interesse do soberano em sua pessoa. Contudo, deve-se desfazer o

credo de que Henrique (ver a figura 8) só queria desfazer-se da mulher para tomar Ana como

sua esposa. Seu desejo maior era obter um herdeiro varão para a coroa e assim garantir a

sucessão dos Tudor80

.

Embora o Papa Júlio II tivesse emitido uma bula em 1503 autorizando o casamento

entre o rei e a viúva de seu irmão, para Henrique o vigário de cristo não tinha poder sobre as

leis bíblicas, que condenavam tal união81

. Segundo o cardeal Wolsey, havia ocorrido um erro

na época:

... Se Catarina deixara o leito de Arthur ainda virgem, então ela e Henrique

precisavam de uma autorização ‘de honestidade pública’, isto é, para desfazer um

casamento publicamente prometido ou contratado, mas nunca consumado. A

autorização do Papa fora de ‘afinidade’ – para um relacionamento consumado entre

um casal com parentesco demasiadamente próximo82.

Wolsey, que não era muito favorável aos espanhóis, ansiava por um tratado com a

França, estabelecendo assim a paz entre esses dois reinos. Porém, o que ele não contava era

com a astúcia de Catarina de Aragão, que conseguira enviar uma carta secreta ao sobrinho,

Imperador Carlos V, pedindo-lhe ajuda83

. Seria politicamente danosa para a Espanha uma

aliança franco-inglesa, e como tal anulação deveria vir do Papa, feito prisioneiro pelas tropas

do Imperador, Carlos resolveu então agir em favor da tia.

O povo da Inglaterra amava sua soberana católica, enquanto detestava o chanceler,

cardeal Wolsey, que gozava a muito tempo do favor real. Muitos nobres, como os duques de

Norfolk e Suffolk também o odiavam, devido a sua baixa extração84

, e viram em Ana Bolena

uma oportunidade para rebaixá-lo. O atual chefe da Igreja, Clemente VII, estava perdido no

meio dos interesses estatais: de um lado o Imperador o pressionava a não anular o casamento,

mas se não o fizesse poderia perder a fidelidade da Inglaterra, quando muitos outros países

europeus já haviam aderido ao protestantismo. Sua alternativa foi, então, adiar o máximo que

pode (em dezembro de 1527 havia conseguido fugir de seu cativeiro, mas ainda não estava

livre para tomar quaisquer medidas). Em dezembro de 1528, o rei ordenou que a rainha

deixasse seus aposentos no palácio de Greenwich, adjacentes aos seus, para serem ocupados

80 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 184 81 Levítico, capítulo 20, versículo 21: “Se alguém tomar como esposa a própria cunhada, estará cometendo uma

torpeza. Terá ofendido o seu próprio irmão, e morrerão sem filhos”. 82 DWYER, Frank. Os Grandes Líderes: Henrique VIII. Tradução de Edi G. de Oliveira. – São Paulo: Nova

Cultural, 1988. P. 45 83 MATTINGLY, Garret. Op.cit. p. 306 84 Wolsey era filho de um açougueiro.

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por Ana, que estava sempre ao seu lado em audiências e constantemente dava conselhos ao

soberano85

. Naquele instante, o cardeal percebeu que aquela dama, longe de ser alguém

insignificante, representava uma ameaça.

Desconfiando das atitudes de Wolsey, que havia viajado para França em 1528 para

tentar uma solução com os cardeais de lá, Henrique decidira enviar dois emissários, Stephen

Gardner e Edward Fox, ao Papa para interceder em seu nome, mas estes também não

lograram êxito86

. Tampouco Clemente queria permitir que o núncio inglês tomasse as

decisões por ele, algo que também foi desencorajado pelos cardeais franceses. O único jeito

era, por hora, autorizar que uma comissão avaliasse essa situação em Inglaterra. Para julgar o

caso ao lado de Wolsey, o Papa enviou o cardeal Campeggio como legado. “Embora isso não

fosse a plena comissão decretal pública que Wolsey esperava – era apenas para os olhos do rei

–, era um começo promissor” 87

. Naquele tempo tudo podia acontecer, como, por exemplo, a

rainha ou o rei poderiam morrer, ou este se desinteressar por Ana Bolena. Mas não foi isso

que aconteceu. Catarina também não aceitou a proposta de ir para um convento, deixando o

esposo livre, pois não tinha “vocação para a vida sacerdotal”.

Campeggio, com a permissão do rei, fizera uma série de visitas a Catarina. Segundo o

relatório do cardeal enviado a Roma, em um de seus encontros com a rainha, Cataria se

confessara com ele, alegando sob juramento sacramental que estava intacta e incorrupta da

lui comme venne dal ventre di sua madre88

, ou seja, que saíra de seu primeiro casamento da

mesma forma como viera ao mundo: virgem. Para Antonia Fraser89

, seria impossível imaginar

que alguém como Catarina, sempre conhecida por seu caráter firme e piedoso, mentisse

daquela maneira e naquela altura dos fatos. Para manter as aparências, o rei voltou a partilhar

do leito de sua esposa, mas nada mais poderia acontecer entre aquele homem de 38 anos e a

mulher de 44. A corte legatícia se reunira em Blackfriars Hall, a 31 de maio de 1529, para

julgar o casamento entre Henrique VIII e a infanta de Castela e Aragão. Nem o rei ou a rainha

estavam presentes na ocasião, se encontrando no tribunal apenas três dias depois.

Nesse dia, numa cena imortalizada por Shakespeare, Catarina se levantou de sua

cadeira e se dirigiu ao marido, ajoelhando-se diante dele e proferindo um apaixonante

discurso:

85 DWYER, Frank. Op.cit. p. 49 86 Idem. p. 46 87 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 200 88 Idem. p. 202 89 Ibid.

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Senhor, eu imploro por todo amor que houve entre nós, permita que me seja feita

justiça e que se cumpra o direito. Tenha por mim um pouco de piedade e compaixão,

pois sou uma pobre mulher e uma estrangeira, nascida fora de vossos domínios. Não

tenho aqui amigos e muito menos conselho imparcial, por isso peço-vos como

representante da justiça em vosso reino... Tomo a Deus e a todo o mundo por

testemunho de que fui vossa fiel, humilde e obediente esposa, sempre dócil a vosso

gosto e vontade..., estando sempre disposta e contente com todas as coisas que lhe

causavam diversão ou prazer, pouco ou muito... Presei a todos por que presaste, só

por vós, com vontade ou sem ela, fossem eles meus amigos ou inimigos. Em vinte

anos ou mais fui vossa fiel esposa, e por mim teria tido diversos filhos, embora

tenha sido a vontade de Deus leva-los. E quando me tivestes pela primeira vez, tomo

a Ele como juiz de minhas palavras, eu era virgem e nenhum homem tinha me

tocado. E se isso é verdade ou não, eu deixo ao encargo de vossa consciência90.

Depois de tão devotadas palavras, a plateia do tribunal fora a júbilo. Catarina recebera

uma calorosa acolhida da multidão do lado de fora91

. Havia triunfado sobre seus inimigos, ao

menos agora. O rei, por sua vez, precisava descontar sua frustração em alguém e o alvo já

tinha sido escolhido: o cardeal Wolsey.

A Queda do cardeal

Enquanto a rainha Catarina tentava a todo custo manter sua posição e a herança da

filha, pelo menos podia ter satisfação ao ver seu outrora arque inimigo caindo em desgraça.

Wolsey estava ficando cada vez mais sem recursos e a quem apelar, pois o rei (acredita-se que

também influenciado por Ana Bolena) o estava responsabilizando pelo insucesso do tribunal

legatício, dissolvido por ordem de Clemente VII em julho de 152992

. O “grande caso do rei”

havia sido transferido a Roma para ser julgado lá. Em outubro daquele ano, após ter sido

negligenciado pelo soberano em inúmeras ocasiões, o cardeal finalmente perdeu o seu poder.

90 “Señor, os imploro por todo ela amor que há habido entre nosotros: permitid que se me haga justicia y se

cumpla el derecho, tened de mí un poco de piedad y compasión, pues soy una pobre mujer y una extranjera,

nacida fuera de vuestros dominios. No tengo aquí amigo seguro y mucho menos consejo imparcial. Acudo a

Vos como cabeza de la justicia en vuestro reino...”

“Tomo a Dios y a todo el mundo por testigo que he sido vuestra fiel, humilde y obediente esposa, siempre dócil a

vuestro gusto y voluntad..., estando siempre complacida y contenta con todas las cosas que os causaban

diversión o goce, poco o mucho... Quise a todos los que quisisteis, sólo por Vos, con causa o sin ella, fueran mis

amigos o mis enemigos. Estos veinte años o más he sido vuestra fiel esposa, ‘and by me ye have had divers

children’, y en mí habéis tenido varios hijos, aunque plugo a Dios llevarlos de este mundo...” Se afirmó. Cuando

continuó, su voz era clara. Llegaba el momento decisivo. “Y cuando me tuvisteis por primera vez, tomo a Dios

por juez de mis palabras, era doncella sin mengua, sin contacto de varón. Si esto es o no verdad, lo dejo a vuestra

conciencia”. MATTINGLY, Garret. Op.cit. p. 343 91 Depois desse dia, Catarina de Aragão não mais compareceu a qualquer das sessões do julgamento, que

procedera sem a presença da mesma. FRASER, Antonia. Op.cit. p 218 92 Para saber mais sobre Ana Bolena e a que de Wolsey ver Anne Boleyn and the fall of Wolsey. In: IVES, Eric

W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom: Blackwell Publishing, 2010. p.

110-126.

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Quando o novo embaixador imperial veio para a Inglaterra, Catarina teria lhe dito que não

apresentasse suas credenciais a Wolsey (como era de costume), porque a situação dele estava

muito difícil93

. Todavia, o ex-chanceler do reino possuía inimigos muito mais poderosos do

que Catarina de Aragão ou mademoiselle Boullan, que lucrariam muito com a ruína deste,

como os duques de Norfolk e Suffolk.

Figura 9 – Cardeal Thomas Wolsey, por artista desconhecido94

.

A situação do cardeal Wolsey ficara ainda mais complicada quando fora selado o

tratado de Cambrai (ou “Paz das Danas”, em virtude de ter sido intermediado por Louise de

Sabóia, mãe de Francisco I, e Margaret da Áustria, tia de Carlos V), entre os franceses e os

Habsburgo, no dia 5 de julho. A Inglaterra, por sua vez, estava politicamente isolada95

.

Desesperado, o prelado se refugiara em seu palácio de York Place, mas em breve o rei lhe

desferiria o golpe final. Para Antonia Fraser:

A ascensão do cardeal fora demorada e dura, com diligência, paciência e serviço

árduo acompanhando cada passo. Sua queda foi rápida. Uma série de golpes brutais

tirou-lhe os poderes, a começar com o procurador-geral em 9 de outubro, que o

93 Idem. p. 222 94 Imagem extraída do Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-h, escrito

por David Starkey. 95 DWYER, Frank. Op.cit. p. 51

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acusou de praemunire, ou seja, exercer os poderes de legado papal em território do

rei, depreciando, assim, a autoridade do rei...96.

Não obstante, o grande selo de chanceler lhe fora tirado; seus belos palácios e bens

luxuosos foram confiscados pela coroa, como o próprio York Place (rebatizado de Withehall)

e Hampton Court. O cardeal passara então a vaguear pela suas residências menores em Esher,

onde adoeceria gravemente.

Em carta ao seu ex-secretário, Cromwell, que agora estava a serviço de Henrique,

Wolsey rogava para que o desagrado de Ana Bolena não fosse tão grande como imaginava97

.

A partir disso, percebe-se até que ponto aquela dama estava à frente dos assuntos do rei, tanto

que enviara ninguém menos que Henry Percy, seu romance passado, para notificar ao prelado

de que ele seria preso e julgado por alta traição. Porém, em 29 de novembro de 1530, antes de

chegar a Londres, o cardeal deu o seu último suspiro. Como comemoração, Sir Thomas

Bolena oferecera um grandioso banquete, com um espetáculo no qual o Wolsey descia ao

inferno98

. Sua queda deixara grandes lacunas na vida política da corte, que logo foram sendo

preenchidas, como, por exemplo, o cargo de chanceler, que passara para as mãos de Sir

Thomas More, advogado e erudito inglês mais conhecido por seu trabalho “A Utopia” (1516),

em que descrevia uma sociedade justa e igualitária, algo não muito adequado ao contexto da

Inglaterra de 1530.

Incapaz de obter uma decisão firme do Papa, Henrique VIII decidiu agir dentro de

suas possibilidades. Na medida em que substituía seus ministros, entrara em contato (por

intermédio de Ana Bolena99

) com “A obediência do Homem Cristão”, de William Tyndale,

que afirmava a primazia do rei em seus domínios, e não do Papa100

. A partir de então,

qualquer um que negasse sua soberania, tanto em assuntos de Estado, quando em religiosos,

seria acusado de praemunire. Essa medida fora apresentada ao soberano por Thomas

Cromwell, seu novo secretário, e logo recebeu a aprovação dos clérigos e do Parlamento,

temerosos de que pudessem desfrutar do mesmo fim que o cardeal Wolsey. Enquanto isso,

Henrique rejeitava cada vez mais Catarina: na manhã de 11 de julho de 1531, o rei e sua Lady

saíram de Windsor para cassar, deixando um ordem expressa de que a rainha deveria

abandonar o palácio, com séquito reduzido, e que não mais teria permissão de escrever para o

96 FRASER, Antonia. Op.cit. p 223 97 Idem. p.224 98 DWYER, Frank. Op.cit. p. 52 99 Ana Bolena era uma leitora voraz de obras escritas por autores como William Tyndale e Simon Fish, que teria

apresentado ao rei Henrique. Para saber mais sobre a religiosidade de Ana Bolena, ver o anexo 2. 100 DWYER, Frank. Op.cit. p. 57

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rei, ou ver sua filha, a não ser que concordasse com a anulação do casamento, o que ela não

estava disposta a aceitar.

“De Dover à Calais”

Com a partida de Catarina de Aragão da corte, Ana Bolena definitivamente tornara-se

rainha em tudo, menos no nome. O desejo que Henrique mantinha pela favorita era tamanho,

que aceitava inclusive os repentinos ataques de humor dela. Segundo relatos de

contemporâneos, a referida dama não possuía o comportamento que se esperava de uma

fidalga: tinha a língua ferina, gostava de desafiar os outros intelectualmente, e era dada a

explosões de raiva quando alguma coisa lhe contrariava101

. Antonia Fraser102

salienta que esse

gênio explosivo pode ser um traço que Ana Bolena herdara de seu pai. Pelos relatos do

embaixador imperial Chapuys em outubro de 1530, Sir Thomas havia caluniado o Papa e os

cardeais de tal forma, que o enviado de Carlos V fora forçado a se retirar da sala. Esse gênio,

apesar de tudo, era mais aceitável em um homem que em uma mulher, e em breve Ana teria

motivo para ficar mais preocupada e irritada: Mary Talbolt, mulher do então conde de

Northumberland, se queixara acerca da validade de seu matrimônio, partindo do princípio de

que seu marido tinha um pré-contrato com a favorita do rei103

.

A questão do casamento pré-contratado era bastante delicada: um casal, que jurasse

em nome de Deus se unir no sagrado estado do matrimônio, perante testemunhas, estava

comprometido, e só a intervenção de uma autoridade eclesiástica poderia desfazer o acordo,

mediante concessão das duas partes. Porém, se os noivos copulassem antes da cerimônia,

então estavam casados aos olhos de Deus, e ninguém, a não ser o Papa, poderia desfazer essa

conjunção. Sendo assim, se Ana Bolena e Henry Percy estiveram prometidos um ao outro, e

em seguida feito amor, nesse caso estariam casados, e a dama não mais estaria livre para o

rei104

. Quando esse escândalo vazou, logo os agentes de Henrique VIII recorreram ao conde

de Northumberland para interroga-lo. Ele, por sua vez, negou que tivesse mantido qualquer

101 ALMEIDA, Ana Paula Lopes Alves Pinto de. Op.cit. p. 6 102 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 229 103 Idem. p. 171 104 “Até que ponto foi, de fato, o namoro de Percy com Ana Bolena?”, questiona Antonia Fraser. Se um pré-

contrato fosse consumado, adquiria a validade de um casamento. Contudo, ressalta a historiadora, alguns beijos e

carícias que, por sua vez, levassem às chamadas preliminares amorosas, mas que parassem por aí, significava

que não havia um compromisso. A virgindade técnica, por assim dizer, era um fato muito mais preocupante para

as mulheres daquele período. Ibid. p. 172

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envolvimento marital com a filha de Sir Thomas, para grande alívio do rei, que em 1532 já

estava a aproximadamente 6 anos esperando por aquela mulher.

Muitos dos responsáveis pelos boatos envolvendo mademoiselle Boullan foram os

espanhóis, fiéis partidários da rainha, entre eles Eustace Chapuys. Homem poucos anos mais

novo que Catarina de Aragão, Chapuys era um católico convicto e grande detrator de Ana.

Em suas crônicas a Carlos V, podemos ver com frequência ele se referindo a ela com termos e

adjetivos nada amigáveis105

. Isso valeu àquela dama uma má reputação em todo o continente

europeu, enquanto Catarina era vista como a injustiçada. Segundo Frank Dwyer:

A influência de Ana sobre o rei era cada vez maior, o povo a odiava e estava

começando a odiar Henrique também. Nos bastidores, Cromwell organizava seus

espiões e sua polícia secreta, engabelando, pressionando, subornando, conspirando e

colocando seus homens em postos importantes para persuadir o parlamento a apoiar

o divórcio do rei...106.

Não obstante, o rei, por sugestão de Thomas Cranmer, um clérigo relativamente

desconhecido, encomendou o caso da anulação de seu casamento a todas as universidades do

continente e demais igrejas protestantes, na esperança de que apoiassem a sua causa107

. O

resultado, contudo, fora bastante ambíguo: a maioria dos teólogos julgou de acordo com a

vontade de seus chefes políticos, mesmo tendo sido subornados pela Inglaterra108

.

Em 1532, o soberano estava disposto a se encontrar com Francisco I de França para

negociar uma nova paz e lhe pedir que intercedesse em seu favor junto ao Papa. O encontro

entre os dois reis seria organizado na cidade de Calais (uma possessão inglesa na França).

Para a ocasião, Ana não iria somente como dama da corte: Henrique a investira com o título

de marquês de Pembroke (ver a figura 10), e ao pai dela com o de conde de Wiltshire. Não

obstante, o rei solicitara de Catarina as joias de rainha da Inglaterra para adornar a nova

favorita109

. Depois de muito protelar, a ci devant rainha aceitou entregá-las, mas mesmo assim

as nobres francesas, como a irmã de Francisco, Margaret d’Angoulême (outrora amiga de

105 Os relatos de Eustace Chapuys se constituem numa importante fonte para se estudar os acontecimentos do

período, desde que levemos em consideração sua natural tendência imperialista. Ele serviu na corte da Inglaterra

por mais de 16 anos como embaixador de Carlos V e nesse tempo criou uma eficiente rede de serviço secreto.

Ibid. 225 106 DWYER, Frank. Op.cit. pp. 58-59 107 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 224 108 A Universidade de Paris apresentou um veredito positive, pois o divórcio interessava a Francisco I, que queria

criar hostilidades entre Henrique VIII e Carlos V. Na Itália, os eruditos se dividiram, enquanto os da Espanha

foram totalmente contra. A maioria das opiniões em Oxford e Cambridge, por sua vez, foi a favor do rei. Idem.

p. 236 109 Quando os emissários do rei solicitaram a Catarina as joias da coroa, ela negara-se afirmando que não

entregarias as peças para “uma pessoa que é uma vergonha para a cristandade e está trazendo escândalo e

desgraça para o rei”. Ibid. p. 249

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Ana) e a rainha Eleonor (sobrinha de Catarina de Aragão), se recusaram a comparecer ao

evento110

. Henrique teria respondido que pouco o importava, pois já estava farto de mulheres

espanholas (uma referência à sua esposa e à de Francisco).

Figura 10 – Ana Bolena como Marquesa de Pembroke (ilustração de Renato Drummond

Tapioca Neto, 2014).

Não obstante, a figura de Thomas Wyatt logo voltaria a estar envolvida em escândalos

juntamente com a de Ana, o que mais uma vez a deixava numa situação difícil. Para desfazer

os boatos de que sua amada e Thomas Wyatt tinham sido amantes, o rei resolveu convida-lo

para a viagem. Em sua poesia podemos encontrar ainda referências ao seu amor não

correspondido pela favorita do monarca: “E agora sigo em brasas que precisam ser extintas.

De Dover para Calais, contra a minha vontade...” 111

. Aquela viagem à França seria de

fundamental importância para o rei e sua Lady, pois ali, acredita-se, poriam término a 6

longos anos de espera. Depois de Calais, tudo estaria mudado.

110 Ibid. p. 248 111 Ibid. p. 174

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Capítulo 5

“Deus salve Ana, Rainha da Inglaterra”

Figura 11 – A coroação de Ana Bolena, na Abadia de Westminster, em junho de 1533 (Mary

Evans Picture Library) 112

.

O segundo encontro entre Henrique VIII e Francisco I fora concebido de forma a

beneficiar ambos os reinos. Não só o rei inglês partilharia das pretensões de Francisco contra

o imperador Carlos V, como receberia o apoio francês na anulação de seu casamento com

Catarina de Aragão113

. Fora então organizada uma grande cerimônia em Calais, na qual um

grupo de damas mascaradas dançou perante os monarcas. Entre elas, mademoiselle Boullan,

reconhecida por Francisco e escolhida pelo mesmo para ser seu par. Era a primeira vez, desde

que deixara a corte onde servia a rainha Cláudia de Valois, que Ana Bolena via o soberano de

França, um homem conhecido por sua luxúria e vaidade. Porém, aquela conjunção entre os

dois reinos se mostraria infrutífera para Henrique, pois Clemente VII mostrava-se relutante

em sua decisão de liberar a sentença de anulação do casamento, fazendo assim com que o

soberano agisse clandestinamente. Com um título de marquês nas mãos, Ana Bolena tinha

quase certeza de que seu destino estava traçado. Era apenas questão de tempo até tornar-se

rainha da Inglaterra.

112 Imagem extraída do livro Os Grandes Líderes: Henrique VIII. Tradução de Edi G. de Oliveira. – São

Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 68, escrito po Frank Dwyer. 113 Ibid. p. 246

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Ao longo de 7 anos de espera, é provável que Ana Bolena tenha se permitido algumas

brincadeiras eróticas com Henrique VIII, a fim de manter a atenção e o desejo dele voltados

para ela. Um método muito utilizado pelas mulheres para não engravidarem era o coitus

interruptus, ou seja, quando no ato sexual, o homem estivesse prestes a ejacular, ele retirava

seu membro da genitália feminina, impedido assim que sua parceira concebesse um filho114

.

Dessa forma, não é impossível que o rei e sua Lady tenham feito amor, porém tomando

cuidado para que ela não carregasse em seu ventre mais um bastardo real (algo que Henrique

não queria). Segundo Antonia Fraser:

Por volta do fim da primeira semana de dezembro de 1532, a lady marquês de

Pembroke ficou grávida (isto para presumir uma gestação de nove meses para a

criança que nasceu no dia 7 de setembro do ano seguinte). Em princípios de janeiro,

ela deve ter desconfiado – ter tido a esperança – disso...115.

De acordo com os cálculos da historiadora, quando Ana ficou grávida do rei eles

estavam em Calais, durante o período de negociações com Francisco I. Os planos dos dois já

estavam bem traçados, e assim que Henrique descobriu o estado de sua amada, percebeu que

era hora de agir.

De volta à corte inglesa, Ana Bolena estava em estado de graça. Declarara para

Thomas Wyatt em alto e bom som para que todos escutassem que desejava comer uma maçã,

pois “há três dias que tenho uma vontade louca de comer maçãs”. Wyatt olhou-a com espanto,

mas Ana desatou a rir e continuou falando:

“Sabeis o que isso significa, na opinião do Rei?”

O olhar atônito de Wyatt fê-la rir tão alto que muitos se voltaram para eles, o que lhe

aumentou a alegria. “O Rei diz que é sinal de que estou grávida!” E aqui a sua

hilaridade foi tão ruidosa que todos, inclusive Wyatt, a contemplaram penosamente

surpresos.

“Mas não é verdade, não é verdade!” E rindo loucamente Ana voltou-se e fugiu,

deixando todos pasmados e constrangidos116.

Henrique, que não queria ter seu herdeiro nascido antes do casamento, apressou-se em

organizar o matrimônio com a filha de Sir Thomas. De acordo com a crença popular, eles se

casaram secretamente no dia 25 de Janeiro de 1533, no de Palácio de Whitehall117

.

114 Ibid. p. 232 115 Ibid. p. 252 116 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 244 117 Segundo Carolly Erikson, nenhum dos convidados para a cerimônia sabiam que aquilo se tratava de um

casamento secreto. De acordo com os despachos de Chapuys para a Espanha, estavam presentes na ocasião os

pais da noiva, seu irmão e duas damas de companhia. ERIKSON, Carolly. Op.cit. p. 193

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Ana estava cada vez mais orgulhosa de sua barriga protuberante. Havia engravidado

do rei de forma rápida, exaltando assim sua fertilidade em detrimento da de Catarina. Em 23

de maio daquele ano, o novo arcebispo de Canterbury, Thomas Cranmer (nomeado ao cargo

pelo papa Clemente VII, que pensou com isso estar apaziguando o temperamento de

Henrique) proclamou nula a união do rei com a filha de Isabel e Fernando, com base no fato

de que Catarina havia consumado seu primeiro casamento com Arthur e que, portanto, ela não

era rainha da Inglaterra, mas sim “princesa viúva de Gales”. 5 dias depois, o arcebispo

declarou a união de Henrique VIII com Ana Bolena válida118

. Assim que soube do ocorrido, o

Papa se apressou em decretar nula a conclusão de Cranmer, alegando que o caso ainda estava

sendo avaliado em Roma119

. Mas Henrique não mais se importava com as decisões de

Clemente. Durante todo o seu reinado agira em nome da fé católica, e agora a mesma lhe

voltava às costas em um assunto tão importante como esse.

O estado de espírito do rei era tão entusiasta, que logo começou a preparar a coroação

de Ana Bolena. Cada detalhe fora meticulosamente planejado, desde seus aposentos na Torre

de Londres, até o percurso que faria na cidade rumo à abadia de Westminster. Para reafirmar a

nobreza de sangue de Ana, fora apresentada uma árvore genealógica dela, em que se

poderiam encontrar duques, condes, e até mesmo um rei. Dessa forma, pretendia-se “limpar”

a linhagem da dama, incluindo membros da alta nobreza, tornando-a, assim, numa boa

candidata ao posto de consorte real. Ainda existem alguns detalhes de sua coroação (ver a

figura 11): sabe-se que na ocasião ela estava de cabelos soltos, com um vestido de cor

púrpura, e a cerimônia seguiu todo o protocolo imposto às rainhas de Inglaterra. Poetas,

músicos e demais artistas se puseram a trabalhar para que tudo corresse bem; carpinteiros e

vidraceiros trataram logo de eliminar os vestígios de Catarina de Aragão dos palácios e

demais residências reais, substituindo seu símbolo, a romã de Granada, pelo falcão coroado de

Ana Bolena120

.

A população londrina se mostrou hostil à sua nova soberana, não lhe fazendo as

devidas homenagens enquanto ela desfilava pela cidade. Estava claro que ainda amavam a

rainha Catarina e não aceitariam “a rameira do rei” 121

no lugar antes ocupado por uma

118 DWYER, Frank. Op.cit. p. 62 119 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 263 120 Conta-se uma história de que Ana Bolena fizera questão de usar a barcaça de Catarina para subir o riu Tâmisa

rumo à Torre de Londres, onde todos os reis e rainhas permaneciam um dia antes da coroação. Henrique, por sua

vez, teria ficado nada contente ao saber que sua esposa eliminara todos os vestígios de Catarina gravados na

barcaça. Esse relato, contudo, fora oferecido pelo duque de Norfolk ao embaixador Chapuys. Como o nobre

vivia aflito com a possibilidade de uma ameaça imperial, então é provável que sua versão dos fatos não seja

imparcial. Idem. p. 263 121 ERIKSON, Carolly. Op.cit. p. 193

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princesa espanhola. Mas, dado ao seu estado de gravidez, as pessoas passaram a interessar-se

por sua figura. Era consenso geral de que Ana Bolena carregava em seu ventre um sucessor

varão para apaziguar o país. Até mesmo os principais astrólogos afirmaram que um menino

estava a caminho. De acordo com David Loades,

A rainha que era também mãe de um herdeiro varão era duplamente afortunada. Não

tinha só cumprido o seu dever mais elevado – tinha também aumentado a autoridade

do marido a um nível incalculável e demonstrado que Deus via favoravelmente o seu

governo. O papel de uma rainha consorte dependia então até certo ponto de sua

condição de mulher, mas também variava com as circunstâncias e com a sua própria

personalidade...122.

Se fosse bem sucedida na tarefa de uma consorte real, então estaria provado que Deus

via com bons olhos o novo casamento do rei, mas se o contrário acontecesse então todo o

esforço que fora feito até então se mostraria infrutífero. Na época, porém, todos estavam na

expectativa de que os desejos do rei se cumpririam e que uma grande surpresa os esperava.

Uma garotinha para Ana

Para o nascimento do futuro príncipe de Gales, foram planejadas inúmeras

festividades, incluindo torneios, justas, queima de fogos e grandiosos banquetes. Os pais da

criança estavam jubilosos e a nova rainha em uma posição extremamente vantajosa. Como era

costume na época, é provável que no período de gestação Ana e o rei tivessem cessado de

manter relações sexuais, por medo de prejudicar o bebê de algum modo. Os Bolena logo

ficaram em alerta, por temer que nesse tempo Henrique tomasse uma amante para apaziguar

seus desejos carnais. Todavia, não sobrou qualquer registro de aventura extraconjugal que ele

pudesse ter mantido durante a gravidez de sua segunda esposa123

. Pelo contrário. Seu

comportamento para com ela era dotado de extrema atenção e carinho, pois afinal ela

carregava no ventre o rebento real, por quem o rei usara de intermináveis recursos para obter.

Em 11 julho de 1533, quando a rainha já estava em estado avançado de gestação,

chegara de Roma uma bula na qual o Papa declarava quaisquer filhos provenientes da nova

união do rei inválidos, e o excomungava, a menos que retornasse para Catarina de Aragão e

122 LOADES, David. Op.cit. p. 14 123 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 265.

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repudiasse a “concubina” 124

. Mas isso em pouco ajudava a situação da princesa viúva, ou de

sua filha Maria, que era repudiada pelo próprio pai. Enquanto isso, mademoiselle Boullan

abandonava a vida pública em 26 de agosto daquele ano, duas semanas antes de dar à luz o

herdeiro do trono. Segundo Antonia Fraser:

De acordo com o costume, a rainha Ana recolheu-se a seus aposentos com

antecedência para aguardar o nascimento do filho homem. O precedente era

extremamente importante naqueles casos, muito embora tivesse havido uma

mudança de rainha... 125.

Conforme cita a mesma autora, o tempo que uma soberana passava no confinamento

variava na medida em que esperava para sentir as dores do parto. No caso de Ana, pensava-se

que a criança era prevista para algures depois de agosto, pois segundo o rumor, o rei e sua

Lady se casaram em 14 de novembro de 1532.

Dessa forma, não necessitariam usar da desculpa de um parto prematuro para que a

criança escapasse da acusação de bastardia, uma vez que um filho concebido antes do

casamento era considerado ilegítimo. No dia 7 de setembro, Ana finalmente deu à luz um

herdeiro para a coroa, mas não era o tão esperado menino que apaziguaria o reino da

Inglaterra, mas uma linda garotinha, que recebera o nome de Elizabeth, em homenagem à mãe

do rei (se fosse homem seria nomeado de Eduardo ou Henrique). Segundo a historiografia

tradicionalista, o rei tomou-se de raiva e ressentimento ao saber da notícia, e teria culpado a

esposa pelo infortúnio. Entretanto, a criança era perfeitamente saudável, e Henrique

regozijou-se com esse fato: se Ana fora capaz de gerar uma filha bem formada logo na

primeira vez que engravidou, então era um sinal de que filhos homens também viriam a

seguir126

. Não obstante, a pequena Elizabeth era a imagem viva do pai, com sua pele leitosa e

bastos cabelos ruivos. Por outro lado, todos os festejos programados para a ocasião foram

cancelados.

Podemos avaliar a natureza do constrangimento causado pela situação através da carta

que a rainha emitiu para as demais cortes anunciando o nascimento de sua filha. Como se

acreditava que a criança que Ana esperava era um menino, então o documento já estava

preparado para ser entregue. Nela, continha o seguinte texto:

124 Idem. p. 263 125 Ibid. p. 267 126 Susan Bordo aponta para o fato de que na Europa do século XVI, o índice de mortalidade infantil era muito

alto, de modo que o nascimento de uma criança saudável, fosse ela do sexo masculino ou feminino, não

constituía motivo pra tanta frustração. BORDO, Susan. Op.cit. p. 75-76

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E por ter agradado a bondade de Deus Todo-Poderoso, em sua infinita mercê e

graça, enviar a nós, neste momento, a bênção no parto e o nascimento de um

príncipe (...). A Deus Todo-Poderoso, profundos agradecimentos, glória, louvor e

exaltação; e rezar pela boa saúde, prosperidade e continuada preservação do referido

príncipe127.

O curioso desse trecho é que príncipe, em inglês, se escreve “prince”, enquanto que

princesa “princess”. Desse modo, apenas acrescentou-se as duas letras “s” no final da palavra

“prince” para reaproveitar as cartas que já estavam redigidas. Interiormente, o rei poderia

estar desesperado128

. Afinal, arriscara seu reino e sua alma diante de Deus, por uma filha,

quando tudo que ele queria era um varão? Os que pensavam assim começaram a caçoar dele,

enquanto o mesmo tentava manter o equilíbrio pessoal.

Figura 12 – Thomas Cranmer, por Gerlack Flicke129

.

Contudo, Ana não se esquecera da ci-devant rainha, Catarina de Aragão, que para ela

estaria jubilosa com seu malogro em produzir um menino. Solicitara à reclusa princesa viúva,

estabelecida em The More, a roupa de batismo que ela trouxera da Espanha especialmente

127 FRASER, Antonia, Op.cit. p. 268 128 Idem. 129 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-q,

escrito por David Starkey.

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para ocasiões como essa. Catarina prontamente recusou-se a oferecer qualquer ajuda a um

“caso tão horrível como este”, segundo suas palavras130

. A pequena Elizabeth teria como

padrinhos Thomas Cranmer (ver a figura 12) e Agnes, duquesa viúva de Norfolk, e após a

cerimônia de batizado, conforme a tradição, toda a corte se dirigiu ao quarto da rainha para

prestar-lhe suas homenagens pelo fato de ter sobrevivido ao parto e dado ao rei uma prole

saudável. A princesa logo fora declarada pelo arauto real como sendo o primeiro filho

“legítimo” do rei, em detrimento da princesa Maria, filha de Henrique e Catarina. Embora a

dissolução formal do casamento de seus pais tivesse sido declarada em maio de 1533, até

então nenhum passo fora dado para declara-la teoricamente ilegítima131

. Por hora, a nova

rainha encontrava-se com um desafio nas mãos: precisava gerar um herdeiro varão para a

coroa e o quanto antes, melhor.

Anna Regina

O nascimento de uma princesa deixara a posição de Ana Bolena bastante

enfraquecida. Agora seus inimigos sentiam-se mais uma vez livres para agirem contra ela,

implicando-lhe toda sorte de apelidos que logo se espalharam por toda parte do continente

europeu, tais como “putain”, rameira do rei, prostituta de olhos esbugalhados (em alusão aos

grandes olhos negros e brilhantes dela), corvo negro, feiticeira, etc132

. Três meses depois de

seu nascimento, a pequena Elizabeth fora enviada para Hatfield House, onde constituiria sua

própria morada, assim como fizeram outros bebês de sangue real antes dela. Destarte, aquela

linda garotinha contaria com uma criada especial em seu séquito: a filha de Catarina de

Aragão, Maria, agora conhecida por todos como “Lady Mary” (ver a figura 13) 133

. Segundo a

crendice popular, Ana fora a responsável pela humilhação infligida à outrora princesa de

Gales, e que estaria planejando uma grande vingança contra ela sua mãe.

130 Pelo menos dessa vez, ao contrário do que aconteceu com as joias da coroa, Catarina foi bem sucedida em sua

recusa. Ao que parece, o rei não estava tão interessado nos trajes para o batismo da filha. FRASER, Antonia,

Op.cit. p. 269 131 Sobre isso, escreve Antonia Fraser: “Na lei canônica, era possível que a situação de filhos cujos pais, como

Henrique e Catarina, tivessem se casado de boa fé fosse regularizada: em situações assim, a Igreja não agira

como rigor”. Antes de Ana dar á luz a situação da princesa fora tratada com cautela, visto que a rainha poderia

morrer de parto ou a criança nascer defeituosa. Nesse caso, seria insensatez declarar uma herdeira saudável,

como Maria, ilegítima. Só após o nascimento de Elizabeth que essa situação mudou. Idem. p. 269-270 132 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 252 133 FRASER, Antonia, Op.cit. p. 270

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Figura 13 – Lady Mary (futura rainha Maria I da Inglaterra), por Master John134

.

Por outro lado, as demais cortes européias contestavam a legitimidade de Elizabeth. O

embaixador imperial Chapuys, por exemplo, se referia a ela em seus despachos a Carlos V

como “a bastarda” 135

. Era então preciso tomar medidas eficazes, e o rei não tardou em

providenciá-las. Em 1534, fora aprovada pelo parlamento uma lei pela qual todos os herdeiros

advindos do segundo matrimônio de Henrique VIII eram legítimos e inclusos na linha

sucessória, que, por sua vez, excluía quaisquer outros filhos do monarca, a exemplo de Maria.

Não obstante, “a Ato de Sucessão”, como ficara conhecido, “declarava formalmente a

validade do casamento do rei Henrique e da rainha Ana” 136

, e deveria, portanto, ser ratificado

por todo povo inglês, independente de status social. Aquele que se negasse a fazê-lo seria

acusado de traição e condenado à morte. Para Francis Hackett137

, o “Ato de Sucessão era a

pedra final do novo edifício que Ana e Henrique estavam construindo”.

Essa medida, entretanto, não foi aderida de boa vontade por muitos súditos que ainda

tinham em conta a rainha Catarina, como Thomas More (que havia renunciado a chancelaria

do reino em 1532 para “cuidar de sua alma”) e o bispo John Fisher. Henrique, que tinha

134 Imagem extraída do livro Elizabeth e Mary: primas, rivais, rainhas. Tradução de Alda Porto. – Rio de

Janeiro: Rocco, 2004. P. 160-g, escrito por Jane Dunn. 135 Idem. p. 280 136 Ibid. p. 279 137 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 257

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grande estima e respeito por More, infelizmente não podia abrir uma exceção para ele sem

também conceder para os demais insatisfeitos. Dessa forma, não lhe restara opção a não ser

enviar o erudito e o clérigo para Torre e esperar até que se submetessem à lei ou pagassem

pelo preço de suas ações138

. O rei, conforme se perceberia, viu-se diante da extrema

popularidade que sua ex-mulher e a filha mantinham no coração das pessoas, enquanto seu

novo casamento era mal quisto por todos os países católicos. Nem mesmo Paulo III, sucessor

de Clemente VII no trono de São Pedro, tinha intenção de aliviar sua situação.

Para desespero de Ana, seu marido tomara uma nova amante (de quem não sobrou

registro de nome ou qualquer outro vestígio, exceto o fato de que era uma dama muito linda).

Mademoiselle Boullan, com seu temperamento explosivo, não tardou em rechaçar a rival,

sofrendo por isso com a cólera do rei, que dissera à esposa pra abaixar a cabeça e aceitar os

fatos “da mesma forma que pessoas melhores fizeram antes de ti” (uma clara alusão a

Catarina de Aragão e ao seu sangue real espanhol) 139

. Os Ingleses favoráveis ao Imperador

Carlos V acreditavam que Ana esperava pelo momento em que Henrique a deixaria como

regente para por um fim às vidas de Catarina e de Maria através do veneno. Contudo, suas

intenções para com a ex-princesa e sua mãe não eram tão extremas como a crônica espanhola

induz a acreditar. Em várias ocasiões, a rainha tentou se aproximar da enteada e foi

cordialmente rechaçada pela mesma. No entanto, Maria tinha a seu lado o povo, que apoiava

sua pretensão ao trono, enquanto a de Elizabeth apenas pelas aparências.

Em uma moeda datada do ano de 1534, o rosto oval de Ana usando um capelo inglês

aparece em volta de uma inscrição que dificilmente representava seu estado espírito naquele

momento: “The Most Happy” (A mais feliz – ver a figura 20). Para muitos, ela estava

convicta de que enquanto Catarina e Maria vivessem, ela não poderia cumprir os desejos do

rei, o de ter um filho varão140

. Provavelmente engravidara no segundo semestre daquele ano,

mas infelizmente não conseguira manter a gestação, tendo sofrido um aborto141

. Seus

inimigos se regozijavam cada vez mais com a situação dela, mas em sua obstinação, Ana

Bolena estava decidida a cumprir com zelo seu papel de soberana, não renegando seu

patrocínio à causa da reforma e incitando o rei ao mesmo142

. Enquanto ainda aparentasse apta

138 Idem. 139 Quando Ana reclamou com Henrique sobre a corte que ele fazia à “jovem muito bonita”, o rei, num acesso de

cólera exclamara que Ana “tinha bons motivos para estar contente com o que fizera por ela, o que ele agora não

faria se fosse preciso recomeçar, e que ela devia pensar de onde tinha vindo e coisas mais”. FRASER, Antonia.

Op.cit. p. 293-294. 140 “Ela é a minha morte e eu sou a dela”, teria declarado Ana Bolena no outono de 1535 diante da discórdia

causada pela enteada. Idem. p. 297 141 Ibid. 142 Sobre a religiosidade de Ana Bolena, ver o anexo 2.

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para produzir herdeiros, a coroa permaneceria em cima de sua cabeça. Porém, como os

acontecimentos seguintes provariam, não por muito tempo.

O Prelúdio do fim

O ano de 1535 começou em estado de tensão para os reais personagens dessa trama:

era evidente que o rei estava se desinteressando aos poucos pela sua rainha, que, por sua vez

possuía escassos amigos na corte e muitos inimigos, inclusive entre os comuns. Enquanto isso

jazia nas celas da Torre o Bispo Fisher e o humanista Thomas More, que aguardavam no

conforto da fé que acreditavam verdadeira o dia em que seriam julgados pelos pares do reino.

Não obstante, Henrique começava a dar sinais de sua periódica impotência, frustrando assim

as pretensões de Ana de engravidar durante o inverno daquele ano143

. Ela e sua família

precisavam que o rei se mantivesse entretido, enquanto ela tentava dar à coroa o tão esperado

herdeiro. Além do mais, seria perigoso que ele tomasse por conta própria uma nova amante,

que representasse uma facção oposta à dos Bolena. Sendo assim, fora escolhida uma moça

ligada à rainha pelo sangue e que estava a serviço de sua casa naqueles tempos: sua prima

Margaret Shelton, carinhosamente apelidada de “Madge” 144

.

Entretanto, a prima “Madge” (que se dizia ter lindas covinhas de sorriso no rosto) não

estava apenas encarregada de estimular sexualmente o rei. A rainha a encarregou

pessoalmente de conversar com Lady Mary sobre as afáveis disposições de sua ama para com

ela. A jovem, naquele ano, já contava com 18 anos de idade e apresentava muito do caráter e

obstinação herdados de sua mãe. Em janeiro de 1536, por exemplo, depois de demasiadas

tentativas, Ana Bolena enviou uma carta à sua aia na qual dizia:

Senhora Shelton, peço-vos que não façais mais nenhum esforço para demovê-la do

seu capricho, porque a mim ela não pode fazer bem nem mal. Cumpri os vossos

deveres para com ela, segundo as ordens do Rei, como estou certa de que fazeis e

fareis, e aconteça o que acontecer achareis sempre em mim a vossa boa senhora,

ANA R 145.

Em outras correspondências, Ana pedia à Medge para desistir de apelar para o bom

senso de Maria, acrescentando que quando tivesse um filho, “o que espero que será em breve,

143 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 295 144 Idem. P. 291 145 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 277

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sei o que acontecerá com ela” 146

. Tampouco Henrique VIII se mostrava satisfeito com o

comportamento de sua filha. Ele esperava submissão total perante seus desígnios, algo que a

jovem não estava disposta a passar por cima de sua consciência para ceder.

Figura 14 – Thomas More, por Hans Holbein (o Jovem) 147

.

Em meados de 1535, a cólera do rei estava se fechando em torno de seus opositores.

Para acentuar ainda mais o seu estado de espírito, o Papa Paulo III resolvera elevar o bispo

Fisher à categoria de cardeal, e, dessa forma, averiguar se Henrique VIII teria coragem de

assassinar um príncipe da igreja. Em tom sarcástico, o soberano respondera: “Mandarei a

cabeça a Roma para o chapéu” 148

(o bispo fora executado em Tower Hill a 22 de junho). Para

completar o quadro, havia ainda Thomas More e seus escrúpulos, que muito além de

representar um afronta à autoridade real, denotava um embate entre duas ideologias de vida: a

antiga (católica) e a nova (protestante). Para Francis Hackett,

Essas convicções, que Thomas More sustentava, feriam profundamente Henrique.

Embora se servisse de Cromwell, moralmente o desprezava; também ele fazia

profissão de um amor cristão não inferior ao do ex-chanceler. Mas não podia obter

146 Idem. 147 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-h,

escrito por David Starkey. 148 Ibid. p. 265

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de More aquele respeito interior de que a sua consciência precisava. More recusava-

lhe o grão de incenso. Por isso, durante a longa prisão na Torre, teve de sofrer

rigores e privações, contínuos mortejos e propostas de compromisso, tentativas de

arrastá-lo a uma discussão e de seduzir seu espírito.

Thomas, porém, era o único homem para quem Henrique não era o Messias, um

homem que possuía coragem moral e inteligência lúcida149.

Destarte, o humanista havia sido acusado de se corresponder com a monja de Kent,

que há pouco tempo atrás tinha sido executada por alta traição por profetizar contra a sorte do

rei. Diante do veredito de culpabilidade, Thomas More teria dito à corte jurídica que “embora

vossas senhorias tenham sido os juízes que me condenaram na terra, nós poderemos

encontrar-nos depois jubilosamente no céu para a nossa salvação eterna” 150

. Em 6 de julho de

1535, sua cabeça rolou perante os olhos de uma multidão pasmada, depois de ter pronunciado

as breves palavras de que morria “como um leal súdito do rei, mas que Deus vinha em

primeiro lugar”.

A execução de More (ver a figura 14) chocou todo o continente europeu e contribuiu

para diminuir a popularidade do rei. Ana fazia o que podia para lhe aquietar a mente,

apresentando-o a novos livros de reformistas e se empenhando na educação da pequena

Elizabeth. Porém, seu estado de espírito também não era dos mais pacíficos: o rei havia se

cansado de Madge Shelton e voltara seus olhos para outra dama do círculo da rainha, uma

mulher sem muitos atrativos físicos e de comportamento modesto, Jane Seymour (ver a figura

15). A prova disso consiste no fato de que no itinerário daquele ano tinha sido acrescentado

um lugar em Wiltshire conhecido como Wolfhall, lar família Seymour151

. Foi lá que

mademoiselle Boullan pode avaliar de perto sua rival. Entretanto, Eric Ives ressalta:

Não há, portanto, nenhuma razão para suspeitar de alguma fenda no casamento real,

logo após o casal ter deixado os Seymours. Na verdade à medida que 1535 avançava e

chegava ao fim, Ana começou a ter esperanças de que seu maior desafio estava prestes

a ser cumprido – quando viesse a primavera, haveria um príncipe152.

Os anseios da rainha poderiam ser comprovados pela carta que enviara à sua amiga

Margarida de Angoulême (irmã de Francisco I), de que seus dois maiores desejos eram revê-

la e dar um herdeiro varão para a coroa153

.

149 Ibid. p. 263 150 Ibid. 151 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 269. 152 “There is , thus, no reason to suspect a rift in the royal marriage when the couple lefts the Seymours. Indeed,

as the 1535 progress came to an end, Anne began to hope that her ultimate challenge was about to be met – come

the spring, there would be a prince”. IVES, Eric W. Op.cit. p. 293 153 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 269.

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Cada vez mais, Ana demonstrava abertamente seus ciúmes para com o marido. Em

uma ocasião, por exemplo, ofendera sem querer o embaixador francês com suas histéricas

gargalhadas. O motivo que provocara as mesmas, entretanto, não fora devido à presença do

emissário, e sim ao fato de que o rei “tinha saído com a desculpa de conversar com um amigo,

mas no caminho se tinha detido ao encontrar uma de suas amantes”. Henrique estava ficando

aborrecido com essas cenas protagonizadas pela rainha, apesar de todos os esforços que ela

fazia para agradá-lo. Enquanto isso chegou aos ouvidos do embaixador imperial Chapuys

notícias de que Catarina de Aragão jazia moribunda em seu leito no castelo de Kimbolton,

acometida de uma forte febre e que lhe restavam poucos dias de vida. Quando chegara o natal,

por exemplo, diziam que estava sucumbindo154

. Todavia, as festas de ano novo estavam a

todo vapor na corte, principalmente após a notícia de que Ana Bolena estava mais uma vez

grávida.

154 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 299

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Capítulo 6

A queda de uma rainha e a ascensão de outra.

Figura 15 – Jane Seymour, por Hans Holbein, o Jovem

155.

Enquanto toda a corte celebrava as festas de início de ano, Catarina de Aragão tentava

se apegar aos últimos fios de vida que ainda lhe restavam. Em sua reclusão, tinha à sua

disposição poucos serviçais, entre eles uma amiga que a acompanhara desde sua viagem para

a Inglaterra em 1501, Maria de Salinas. Chapuys, por sua vez, obteve permissão para visita-la,

mas enquanto subia à barca rumo ao castelo de Kimbolton, fora detido pelo conde de Suffolk,

que portava uma mensagem do rei na qual se lhe dizia que Catarina estava in extremis, e que

dificilmente chegaria a tempo de encontrá-la com vida156

. Mesmo assim, o embaixador

conseguira um salvo-conduto para visitar a tia de seu amo, chegando ao castelo de Kimbolton

na manhã de ano novo de 1536. Encontrou-a em condições de saúde gravíssimas. A visita do

emissário, juntamente com a presença de sua amiga Maria de Salinas, animou o coração

155 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-j,

escrito por David Starkey. 156 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 273

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daquela mulher de 50 anos, a ponto de fazê-la se sentir melhor. Entretanto, seria apenas um

alívio passageiro157

.

Segundo o parecer dos médicos, Catarina sofria de “violentas dores de estômago,

flatulência, vômitos e debilidade geral. Os seus anos de reclusão, a sua dieta, a má saúde

anterior podiam explicar o seu esgotamento” 158

. Não obstante, a ci devant rainha apresentava

os sintomas de uma hidropisia cardíaca. Na tarde do dia 6 de janeiro, conseguira levantar-se e

pentear os próprios cabelos, mas à meia noite seu estado teve uma grave piora. Sentindo que

sua hora final se aproximava, quis ouvir a missa em latim durante as quatro da manhã (hora

canônica), recebeu a extrema unção e ditou a última de suas cartas, direcionada ao seu

“caríssimo senhor, rei e marido”:

... Aproximando-se a hora da minha morte, eu não posso pelo amor que vos tenho,

deixar de recordar-vos a salvação da vossa alma, que deveis preferir a todas as

considerações do mundo ou da carne, quais quer que sejas. Pelas quais, todavia,

causastes tantas desventuras a mim, e tantos embaraços a vos mesmo. Mas eu vos

perdôo tudo e peço a Deus que faça outro tanto. Quanto ao mais, recomendo-vos

Maria, nossa filha, suplicando-vos que sejais para ela um bom pai, como eu até aqui

tenho desejado...159.

Em sua triste correspondência, Catarina ainda pedia ao rei para que cuidasse dos

criados que tinham ficado ao seu serviço, pagando-lhes os salários atrasados e provendo bons

casamentos para suas damas. Por fim, em um tom que pode parecer quase patético160

, ela

terminava a missiva dizendo que “finalmente, juro-vos que os meus olhos os desejam acima

de tudo”. Falecera às duas da tarde do dia 7.

O embaixador Chapuys só teve notícia da morte de Catarina apenas no dia 9161

. O rei,

de acordo com uma das versões do caso, caiu em prantos ao saber da notícia; em outro relato,

juntou-se à Ana Bolena nas festividades, todo vestido de amarelo, a cor da alegria (na opinião

de Antonia Fraser162

, é possível que ele tenha demonstrado ambas as reações). Para David

Loades,

... Não há dúvida de que nos últimos anos de vida [Catarina de Aragão] assumiu

uma qualidade de quase mártir e retirou uma satisfação lúgubre do fato de, em 1533,

a filha ter sido também afetada por causa dela. [...] Sem de fato o desejar, tornou-se

157 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 305 158 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 273 159 Idem. p. 274 160 Assim Antonia Fraser define a última frase da carta de Catarina de Aragão à Henrique VIII. FRASER,

Antonia. Op.cit. p. 304 161 Eustace Chapuys não compareceu ao enterro de Catarina de Aragão, pois achara um insulto ela ser sepultada

com as honras de uma princesa viúva de Gales, mas não as reservadas a uma rainha da Inglaterra. Idem. p. 308 162 Ibid. p. 306

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a alavanca para o sobrinho penetrar ma política inglesa e um fulcro que o imperador

considerava valioso para lidar com o rei da Inglaterra. Apesar de ter passado mais de

35 anos na Inglaterra e de ter conhecido sorte e azar, Catarina nunca esqueceu que

tinha sangue real espanhol...163.

Junto com a ex-rainha, ia embora o medo que Henrique tinha de uma retaliação

imperial. Logo após a morte de Catarina, Carlos V começou a demonstrar intenções de

estabelecer uma nova aliança com os ingleses. Contudo, uma virada de sorte acabaria por

mudar todo o destino da política tudoriana e de sua soberana: mademoiselle Boullan perdera o

bebê164

.

Os acontecimentos que levaram Ana Bolena a sofrer um aborto prematuro em 29 de

janeiro são muito confusos. De acordo com a narrativa mais aceita, ela ficara histérica ao

saber que o rei sofrera um grave acidente de justa, ficando desacordado por cerca de 2 horas.

Outro caso bastante utilizado pelos romancistas seria de que Ana, grávida de 15 semanas,

teria surpreendido Jane Seymour sentada no colo de seu marido aos beijos com ele. Destarte,

a violência impactante com que esses fatos chegaram ao conhecimento dela foi suficiente para

fazê-la abortar165

. Ao se dirigir ao leito da parturiente, Henrique teria dito:

“Vejo bem que Deus não quer dar-me filhos homens”.

Ela tentou responder-lhe. Tinha sido a notícia da sua queda, disse-lhe. “Porque vos

amo muito mais do que vos amava Catarina, o meu coração se parte quando vos vejo

fazer a corte a outras”.

“Quando estiverdes restabelecida”, respondeu Henrique, “eu vos falarei” 166.

Henrique estava começando a acreditar que Deus havia amaldiçoado este casamento

do mesmo jeito que fizeram com o primeiro. Naquele período já era um homem de 45 anos, e

sem nenhum sucessor legítimo ao trono. Aos seus mais chegados havia confidenciado que

fora “seduzido e forçado a esse casamento por feitiçaria. Por isso Deus não permite que eu

tenha filhos varões. E por isso eu quero realizar uma nova união” 167

. A sucessora de Ana

Bolena, contudo, já havia sido escolhida. Para Antonia Fraser,

A essa altura, o relacionamento do rei com Jane Seymour adquiriu um novo

significado, com a primeira rainha morta e a segunda, de acordo com a opinião

generalizada, incapaz de gerar filhos homens. Uma paixão que poderia, em

circunstâncias muito mais felizes – isto é, mais felizes para Ana Bolena –, ter sido

agradável, mas transitória, tornou-se o foco de especulação universal168.

163 LOADES, David. Op.cit. p. 120 164 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 310 165 Idem. p. 310-311 166 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 278 167 Idem. 168 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 311

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A família Seymour possuiu nobres ancestrais. O pai de Jane, Sir John, fora feito

cavaleiro por Henrique VII e havia acompanhado o sucessor deste nas comemorações do

“campo do tecido de ouro” em 1520. Uma vez que toda a corte tinha observado como se dera

a ascensão dos Bolena, chegara o tempo de outra família aristocrata repetir a fórmula utilizada

pelos mesmos169

.

Enquanto isso, Ana fechava-se cada vez mais em sua corte íntima, composta por

cavaleiros da câmara privada do rei, como Henry Norris, William Brereton e Francis Weston,

além de seu próprio irmão George e de mais algumas damas, que se deleitavam ao som das

cordas de um tocador de alaúde chamado Mark Smeaton, a quem Ana havia resgatado da

miséria. Mal sabia o círculo de amigos que em meados de abril, Thomas Cromwell já estava

reunindo provas contra a rainha, suficientes para declarar seu casamento inválido e culpá-la

por alta traição. Os acontecimentos daqueles primeiros meses de 1536 só fizeram corroborar

para o desespero que estava tomando conta dela: em 23 de abril, Nicholas Carew (que fazia

parte da facção anti Bolena, e estava intercedendo a favor de Jane Seymour) havia sido

nomeado cavaleiro da Ordem da Jarreteira, em vez de George Bolena170

. Sua situação

mostrava-se mais complicada a cada passo, partindo do pressuposto de que Catarina não fora

julgada ou condenada por Henrique devido ao fato de ter em seu apoio o Imperador; já Ana,

não tinha qualquer personalidade poderosa pronta a tomar partido de sua causa. Em fins de

abril, durante um torneio de justa, seria a última e derradeira vez em que a rainha veria

Henrique.

Julgamento e execução

É difícil dizer até que ponto os acontecimentos dos primeiros meses de 1536

influenciaram na queda de Ana Bolena em fins de abril daquele ano. A cronologia de

acontecimentos que interferiram nesse processo já vem sendo discutida há muito tempo pelos

principais historiadores do período. É possível, portanto, dizer que quando as comemorações

do primeiro de maio estavam acontecendo (com o torneio de justa), a rainha não sabia

absolutamente de nada do que estava sendo feito, embora pudesse sentir o cerco se fechando

169 Idem. p. 312 170 Ibid. p. 317

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ao seu redor171

. No domingo de 30 de abril, o músico Mark Smeaton havia sido preso na

Torre de Londres após confessar que mantinha relações sexuais com sua senhora, além de

indicado os nomes de Weston, Norris e Brereton como amantes da mesma. Segundo

informações de uma testemunha ocular, o tocador de alaúde havia sido convocado à casa do

secretário Cromwell e lá fora torturado por dois lacaios com o intuito de fazer-lhe confessar

justamente aquilo que o Mestre Secretário desejava ouvir172

.

Figura 16 – Ana Bolena, como ela provavelmente se parecia no tempo de sua queda, por

artista desconhecido173

.

Um dia depois, enquanto o rei e a rainha presidiam o torneio em Greenwich, Henrique

recebera uma mensagem de conteúdo misterioso. Após ler tal missiva, levantou-se e partiu do

lugar sem sequer se despedir da esposa (da mesma forma que fizera com Catarina de Aragão

em 1531). Fizera-se, entretanto, acompanhar-se de Norris, que estaria competindo com o

irmão da rainha neste dia. Durante o percurso, o rei notificou o cavalheiro das acusações feitas

171 LOADES, David. Op.cit. p. 140 172 Antonia Fraser acredita que a história da tortura de Mark Smeaton não era impossível, visto que não era um

nobre, para ser tratado com gentileza, mas um jovem de origens humildes. Boatos dão conta de que ao chegar à

casa de Cromwell para uma suposta ceia, uma corda fora amarrada em torno de seu pescoço e torcida com um

porrete, enquanto outros diziam que ele fora “cruelmente torturado”. Tais fatos, ainda hoje, carecem de maiores

provas. FRASER, Antonia. Op.cit. p. 324 173 Imagem extraída do livro Imagem extraída do livro The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New

York: Ballantine Books, 2010. p. 202-a, escrito por Alison Weir.

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por Smeaton no domingo passado. Apesar dos protestos de inocência por parte de Norris, ele

fora levado para a Torre174

. Lá, os presos foram novamente interrogados. O mais estranho

nesse processo foi que o próprio irmão da rainha, George Rochford, também havia sido

capturado. As provas contra ele foram oferecidas pela própria esposa, Jane Parker, que não

possuía um casamento estável com o marido e sempre teve um dom especial para intrigas.

Conforme consta no auto de acusação contra Lorde Rochford, sua esposa afirmara que havia

certa “familiaridade indevida” entre ele e sua irmã, Ana175

.

Para Antonia Fraser176

, os motivos que levaram a esposa de George a fazer tal

acusação contra seu esposo continuam obscuros. Sabe-se que o pai dela, Lorde Morley, fora

um dedicado defensor de Catarina de Aragão, e a própria Jane pretendera colaborar com a

causa da filha de Catarina, Maria. Por outro lado, como alternativa, ela pretendia permanecer

do lado vencedor (como, de fato, aconteceu), e se afastar o máximo possível da sombra da

“culpa” do marido. Jane ainda teria afirmado que Ana lhe dissera em certa ocasião que o rei

era incapaz de copular com a própria esposa e que não possuía nem habilidade nem virilidade.

O efeito de tais palavras condenaria a rainha com demasiada eficiência, visto que ninguém

poderia fazer uma crítica desse nível ao monarca e esperar viver (especialmente se houvesse a

preocupante possibilidade de a acusação ser verdadeira) 177

.

Após ter interrogado os membros do séquito de Ana, e feito alguns prisioneiros na

Torre, Cromwell pode finalmente concluir um auto de acusação contra ela, e tão logo o

apresentou ao rei. Em tal documento, era ainda possível identificar os amantes da soberana e,

inclusive, as datas em que ela se relacionara com eles:

Ana tivera procedimento licencioso fazia já quase três anos. Um mês apenas depois

do nascimento de Isabel, era acusada de infidelidade com Norris. Dizia-se que

enganara Henrique. Com Brereton a 16 de Novembro, de novo com Norris a 19,

ainda com Brereton a 8 de Dezembro de 1533. Cinco meses depois era acusada de

alternar, com curiosa regularidade, Smeaton e Weston: e finalmente, enquanto

Smeaton, Weston, Brereton e Norris continuavam a fazer parte de seu círculo íntimo

muito tempo depois que ela cessara de conceder-lhes os seus favores, suspeitava-se

que se entregara a seu irmão, precisamente na solenidade da semana de natal, e

quando se achava em estado da adiantada gravidez178.

174 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 286 175 No dia de seu julgamento, em 15 de Maio, ao saber que fora a esposa quem oferecera tal prova, George

Bolena exclamara com amargor perante os seus juízes: “Com base no depoimento de apenas uma mulher, os

senhores estão dispostos a acreditar que cometi esse grande pecado”. FRASER, Antonia. O.cit. p. 336. 176 Idem. pp. 336-337 177 Ibid. 178 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 285

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Segundo Alison Weir179

, o rei parece que não ponderou as informações que acabavam

de lhe ser passadas por seu secretário e, aparentemente, acatou como verdadeiras todas

aquelas acuações de adultério, extraídas através de meios duvidosos. Não obstante, Eric

Ives180

ressalta que investigações, além disso, mostraram que mesmo depois de quase 500

anos, três-quartos daquelas alegações poderiam ser refutadas. Em doze casos, por exemplo,

Ana estava em outro lugar, ou então com um homem diferente.

Na madrugada de 2 de Maio, a rainha recebera uma mensagem na qual era convocada

a comparecer diante o Conselho, presidido pelo duque de Norfolk. Lá ficou sabendo de que

estava sendo acusada de adultério e de que devia tomar a barca rumo à Torre. Empalidecida

pela falta de cortesia dos pares do reino, ela replicou: “Ser rainha e ser tratada assim é uma

coisa nunca vista” 181

. A condução que a levaria à sua prisão chegou por volta das duas da

tarde. Sendo transportada em plena luz do dia e sob os olhares de uma incrível multidão, ela

finalmente avistou os portões do recinto. Ao aportar, fora recepcionada pelo guardião do

lugar, mestre Kingston, a quem perguntou: “Mestre Kingston, tenho de ir para um torreão?”.

Ao passo que ele respondeu: “Não, Senhora, ireis para o aposento que ocupaste no tempo da

vossa coroação”. Agradecida pela gentileza de seu carcereiro, Ana exclamou que “é bom

demais pra mim. Jesus tenha piedade de mim” 182

. Em seguida, caiu de joelhos, em um choro

que depois se transformou numa gargalhada incontida, que surpreendeu a todos ali presentes.

A rainha, por sua vez, também não podia deixar de se preocupar com seu irmão, de quem não

soubera o paradeiro desde o dia anterior. Quando questionou Kingston se este sabia alguma

coisa a respeito de George, ele respondeu que o havia deixado em York Place, mas na verdade

ele tinha sido levando também para a Torre pouco antes do meio dia183

.

Uma vez encarcerada (ver a figura 17), Cromwell designou algumas camareiras

chefiadas pela mulher de Kingston para relatar todos os atos de Ana em sua cela. Segundo tais

senhoras, em alguns momentos a prisioneira era tomada por fortes sentimentos de desespero,

para depois cair em uma gargalhada descontrolada. Todas as palavras que saiam de sua boca

eram relatadas ao secretário do rei para que fossem usadas no julgamento184

. Na opinião de

Antonia Fraser:

179 WEIR, ALISON. The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books, 2010. pp.

87-89 180 IVES, Eric W. Op.cit. p. 344 181 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 287 182 Idem. 183 Ibid. 184 Ibid. p. 289

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Por que se considerava essencial livrar-se da rainha Ana de uma vez? A resposta

esta no comportamento de sua antecessora. Certa vez, o rei e seus ministros tinham

previsto uma retirada digna da rainha Catarina do palco, possivelmente para um

convento. Em vez disso, tinham enfrentado sete anos de protesto, assumindo formas

tão variadas como uma ameaça imperialista do exterior e apoio pessoal a Catarina

dentro do país. Não dariam a mesma oportunidade a Ana Bolena185.

Como estava convicto de que mademoiselle Boullan não poderia lhe dar um herdeiro

varão, o rei não queria mais uma ex-esposa causando problemas justo quando a morte acabava

de lhe livrar da primeira. Tornou-se então um fato de que Ana Bolena precisava desaparecer,

para que não se tornasse uma pedra no caminho das pretensões dinásticas de Henrique VIII.

No dia 4, Sir Francis Weston e William Brereton foram finalmente presos. Novas

provas foram levantadas: dizia-se que a rainha havia conspirado com Norris para assassinar o

rei e depois casar-se com ele, o que logicamente implicava num crime de alta traição. Pouco

antes do acontecido, o dito fidalgo havia contraído bodas com a prima da rainha, Madge

Shelton. De acordo com os relatos, Ana se tinha impacientado com a demora do casamento e

então proferiu as comprometedoras palavras: “você lucraria com a morte de uma pessoa, pois

se algo de mal acontecesse ao rei, você procuraria me conquistar” 186

. No entanto, esse

diálogo, que poderia ter se sucedido de forma despretensiosa, fora transformado em uma arma

no inquérito estabelecido contra a rainha. No dia 8, Thomas Wyatt, antigo admirador de Ana,

também fora preso, mas logo foi solto por falta de provas mais conclusivas. Quatro dias

depois, os três membros da câmara do rei, mais o tocador de alaúde Mark Smeaton, foram

julgados culpados. Weston, Norris e Brereton foram condenados a morrerem decapitados,

enquanto o Smeaton, por não ser um fidalgo, seria enforcado até quase morrer, eviscerado,

depois castrado e por fim esquartejado187

.

O julgamento de Ana e de seu irmão seria realizado no dia 15 no Grande Salão da

Torre de Londres. Corajosa e orgulhosa como sempre, a rainha se dirigiu com calma aos pares

do reino, chefiados pelo seu tio, duque de Norfolk, e entre os quais se encontrava sua paixão

de outrora: Henry Percy. Apesar de ter feito uma brilhante defesa, na qual alegava sua

inocência diante daqueles horríveis crimes que atacavam mais sua fidelidade conjugal que

qualquer outra coisa, ela foi considerada culpada e sentenciada a morrer decapitada ou

queimada na fogueira conforme a vontade do rei. Logo depois foi a vez de seu irmão. Todos

achavam que ele seria exonerado da culpa, já que as provas de incesto careciam de maior

fundamento. Entretanto, Lorde Rochford cometeu a insensatez de ler em voz alta a suposta

185 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 327 186 Idem. p. 333 187 Ibid.

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declaração que Ana fizera à Jane Parker sobre a virilidade do rei, o que constituía numa

afronta direta à pessoa do monarca, contribuindo, dessa forma, para que o júri condenasse o

réu à morte em circunstâncias iguais às de sua irmã188

. No dia seguinte, o Arcebispo Cranmer

declarou o segundo casamento do rei, inválido189

.

Figura 17 – Ana Bolena na Torre de Londres, por Edward Cibot, 1835 190

.

No dia 17, debaixo da janela da cela da em que estava presa, os cinco homens com os

quais fora acusada de manter relações sexuais, foram executados. Quanto à própria Ana, seria

decapitada por um espachim francês no próximo dia, mas por algum motivo o carrasco se

atrasou, dando à vítima mais algumas horas de vida. Kingston havia relatado que a ci-devant

rainha havia se queixado do atraso e ainda fazia piada do ocorrido: “ouvi dizer que o carrasco

é muito hábil, e eu tenho um pescoço tão fino!” 191

. Logo depois, começou a rir. Na manhã de

sexta (dia 19), vestindo um manto de arminho sobre uma túnica, e um vestido de damasco

188 Ibid. 337 189 A anulação, por sua vez, fora preparada depois de uma confissão que Ana Bolena fizera ao arcebispo. Até

hoje não se sabe o conteúdo da declaração da rainha. É possível que ela tenha feito algumas afirmações na

esperança de se salvar ou para preservar a segurança de seus familiares. Apesar de o decreto da nulidade do

casamento ser datado de 17 de maio, o mesmo só fora assinado em 10 de junho e aprovado pelas duas casas do

Parlamento em 28 de junho, quando a rainha já estava morta. Ibid. p. 340 190 Imagem extraída do livro The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books,

2010. p. 202-i, escrito por Alison Weir. 191 HACKETT, Francis. Op.cit. p.292

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escuro e uma anágua vermelha, Ana subiu no patíbulo armado em frente à Torre Branca, e

proferiu o seguinte discurso para os espectadores presentes na ocasião:

Bom povo Cristão, venho aqui para morrer, de acordo com a lei, e por ela fui julgada

para morrer, e por isso não direi nada contra ela. [...] Não venho aqui para acusar

qualquer homem, nem falar nada a respeito daquilo de que fui acusada. [...] Eu rezo

e peço a todos vocês, bons amigos, que rezem pela vida do rei, meu senhor soberano

e de vocês, que é um dos melhores príncipes na face da terra, e que sempre me tratou

tão bem. [...] Dessa forma, eu me despeço deste mundo, e de vocês, e imploro para

que rezem por mim 192.

Em seguida, ela pagou ao carrasco pela sua execução um total de 24 libras, ajoelhou-

se, e enquanto encomendava sua alma a Deus, recebeu o golpe de misericórdia, que calou

para sempre sua oração. Logo após, tiros de canhão foram disparados, para anunciar que a

vítima finalmente partira para a imortalidade. Ninguém se importava; ninguém além de

poucas serviçais se interessou e dar um destino digno a seu corpo. Ela partira deste mundo

deixando no ar seus medos e desilusões, num verdadeiro eco de misticismo que se propagaria

para muitas gerações a posteriori.

192 “Good Christian people, I am come hither to die, according to de low, for bay the low I am judged to die, and

therefore I will speak nothing against it. […] I come hither to accuse no man, nor to speak anything of that

whereof I am accused […]. I pray and beseech you all, good friends, to pray for the life of the King, my

sovereign lord and yours, who is one of the best princes on the face of the earth, who has always treated me so

well that better could not be […]. Thus I take my leave of the world, and of you, and I heartily desire you all to

pray for me…” WEIR, Alison. Op.cit. 2010, p. 281

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Conclusão Ana Bolena, uma trágica heroína dos tempos modernos

Figura 18 – Túmulos de Ana Bolena (esquerda) e Catarina Howard (direita) na Capela de St.

Peter ad Vincula193

Até que ponto um homem é capaz de chegar para satisfazer suas pretensões? Qual é o

limite dos poderes de um rei? Em tempos de monarquia absolutista, acreditava-se que o

soberano era um representante de Deus na terra, e que sua autoridade e direito de reinar

emanava dos céus. Sua vontade era lei, e quem a contrariasse ou interferisse no curso dos

acontecimentos seria duramente castigado. Sem dúvida, Ana pode comprovar por si mesma

que “a cólera do rei, era a morte”. Para muitos, tanto ela quanto os outros cinco homens que

morreram em maio de 1536 nada mais eram do que joguetes nas mãos de indivíduos

ambiciosos e prontos para conseguirem aquilo a que estavam dispostos a ter, machucando a

quem tivesse de machucar para isso, groigne qui groigne194

. Mas seria Ana Bolena um

joguete ou uma jogadora? Quem, por exemplo, poderia prever que em 1533, quando a rainha

193 Imagem extraída do livro Imagem extraída do livro The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New

York: Ballantine Books, 2010. p. 202-q, escrito por Alison Weir. 194 Referência ao lema de Ana Bolena Ainsi sera, groigne qui gorigne – É assim que será, por mais que o povo

possa resmungar. FRASER, Antonia. Op.cit. p. 211

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carregava o presuntivo herdeiro varão da coroa em seu ventre, os acontecimentos tomariam

rumo tão catastrófico? Naqueles anos, estava no ápice de sua influência, mas o jogo acabou

virando contra ela mesma.

O fato é que Ana foi uma mulher impressionante, talvez uma das mais interessantes

das seis esposas de Henrique VIII. Seu desempenho e obstinação, em um mundo governado

por homens, marcou a história. Mas que foi feito dela, após pagar o preço máximo por seus

atos? Os despojos do que um dia fora a mulher mais desejável da corte inglesa foram

transladados para uma sepultura insalubre, indigna da posição que um dia ocupara. Ana

Bolena não morreu como rainha da Inglaterra, uma vez que seu casamento com Henrique fora

declarado inválido desde o princípio. Todavia, se nunca estivera casada com o rei, como

poderia ter cometido adultério? Ao olhar contemporâneo, essa é uma das maiores falhas do

processo levantado contra a mesma. Seria executada não como soberana, mas como senhora

marquês de Pembroke195

. Entretanto, é possível presumir que aquele a quem outrora chamara

de marido, guardara um pouco de misericórdia para com aquela mulher. Em vez de sofrer

uma morte dolorosa na fogueira, mademoiselle Boullan seria decapitada por um espadachim

francês. O golpe da espada foi tão rápido e silencioso que apenas em um piscar de olhos, a

dama já estava morta. Não obstante, o saco de moedas com que pagara ao carrasco fora

custeado pelo próprio rei.

Alguns diziam que seu espírito jamais encontrou paz após a morte, vagando pelos

lugares que marcaram a sua vida. Outros, que era uma bruxa; que conquistara o rei através de

sortilégios; que em todo aniversário de sua execução, várias lebres corriam descontroladas

pelos campos (a lebre era tida como um dos símbolos da feiticeira) 196

. A partir daí a história

se tornou lenda, acrescentando um “quê” a mais de misticismo em sua figura. Mas às vezes os

acontecimentos se mostram demasiado irônicos, pois quis o destino que o grande sucessor de

Henrique VIII não fosse o garoto por quem tanto lutara, mas uma menina: Elizabeth, sua filha

com Ana Bolena. Após a morte da mãe, a pequena órfã fora considerada uma bastarda, tal

como sua meia-irmã Maria. Dez dias depois da execução da ci-devant rainha, o rei se casou

com Jane Seymour, a quem mais tarde chamaria de sua “verdadeira esposa”. Jane cumpriu

com suas obrigações como rainha consorte, dando ao marido um herdeiro para o trono, mas

logo após o parto contraiu febre puerperal e morreu em seu leito de parturiente poucos dias

depois.

195 Idem. pp. 338-339 196 Ibid. p. 343

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Em 1540, o rei desposou uma princesa alemã, outra Ana, filha do duque de Cléves.

Dois anos se passaram desde a morte de Jane Seymour, e os ministros do rei decidiram que

era hora de unir a Inglaterra em uma aliança que prejudicasse as pretensões do Imperador

Carlos V. Todavia, Henrique não gostara daquela moça de comportamento alienígena ao seu.

Sentira-se enganado pelo retrato que Holbein pintara dela. Em consequencia, despejara toda a

sua cólera nos ombros de Thomas Cromwell, já que fora ele o arquiteto do casamento. Quatro

anos após planejar a queda de Ana Bolena, agora era a vez do secretário de rei perder a

cabeça. Com apenas seis meses de matrimônio, o arcebispo Cranmer mais uma vez decretava

inválida a união do soberano, para que ele contraísse bodas com Catarina Howard, uma dama

com menos de vinte anos e que era prima de sua segunda esposa. A pobre jovem também teria

um trágico fim, ao contrário de sua antecessora, que aceitara o divórcio sem nenhuma objeção

e fora agraciada pela bondade de Henrique pela sua atitude. Em 1541 os ministros do rei,

temendo a influência do duque de Norfolk sobre o mesmo, reuniram provas contra a nova

rainha, acusando-a de adultério. Seu destino fora o mesmo dos traidores: a decapitação.

Estando muito velho e doente, Henrique precisa de alguém com quem dissipar seus

infortúnios, e a família Seymour não tardou em arranjar uma candidata ideal para o posto de

rainha, uma viúva de 32 anos e que já tinha certa experiência em cuidar de maridos enfermos:

Catarina Parr. Era uma protestante convicta e defensora da causa da reforma, e apesar de suas

crenças lhe terem causado alguns problemas futuros, viveu com o rei até a morte dele, em

janeiro de 1547. A partir daí, Henrique fora sucedido pelo seu filho com Jane Seymour, que

ascendeu ao trono do pai sob a nomenclatura de Edward VI, com apenas nove anos de idade.

Infelizmente, o jovem príncipe era de compleição debilitada e morreu seis anos depois,

deixando a coroa para a herdeira de Catarina de Aragão. Em seu desejo de trazer a Inglaterra

de volta á crença da mãe, Maria I mergulhou o país nas chamas da inquisição, causando por

isso grandes tumultos internos na Inglaterra.

Seu casamento frustrado com Felipe da Espanha (filho do imperador Carlos V), aliado

às falsas gravidezes por que passou, acabou por exaurir suas forças. Morreu em 1558,

deixando a coroa para sua meia-irmã. Elizabeth herdara não somente um Estado fraco, mas

também as dívidas e querelas de três reinados anteriores. Mas as provações por que passara na

infância e adolescência, juntamente com a refinada educação que recebera, prepararam-na

para o papel de soberana de uma nação orgulhosa de si mesma. Com Elizabeth I, a Inglaterra

teve um de seus mais notórios monarcas. Ela fortalecera a marinha, a moeda, além de

estabelecer preciosos contratos mercantis com os reinos vizinhos. Em 1588 derrotara a

armada espanhola de Felipe II, o que fez com que os ingleses se tornassem os verdadeiros

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senhores das águas nórdicas. Sua gestão fora chamada de a Idade de Ouro e a decisão da

mesma de nunca se casar, valera-lhe o epíteto de a “Rainha Virgem”.

Figura 19 – Ane de Elizabeth I contendo um retrato seu ao lado de uma dama em trajes da

corte francesa, provavelmente Ana Bolena197

.

Após sua morte em 1603, tendo governado por aproximadamente 45 anos, a dinastia

Tudor terminou. Não era só o fim de uma Era, mas também o desmoronamento do

absolutismo naquele país, sob o domínio dos Stuarts. Hoje, o poder da realeza inglesa em

nada se assemelha aos dos tempos de Henrique VIII, mas é realmente curioso que sob a filha

de Ana Bolena e de tantas outras soberanas, a exemplo de Vitória e Elizabeth II, ficou

provado que o governo das mulheres era tão eficaz, ou inclusive mais magnânimo, que o dos

homens. Poucos sabemos do interesse de Elizabeth por sua mãe. Ela nunca se prontificara em

restaurar a reputação da segunda mulher de seu pai. Contudo, um pequeno artefato seu nos

mostra o carinho que a rainha guardava pela sua progenitora: em um pequeno anel de pedras

preciosas, fora adicionado um fecho que ocultava a efígie de duas mulheres; uma delas se

trata logicamente da soberana, mas na outra podemos ver uma dama de capelo inglês, rosto

oval, maçãs do rosto salientes como as de Elizabeth, além de lábios carmim que revelavam

197 Imagem extraída do livro Imagem extraída do livro The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New

York: Ballantine Books, 2010. p. 202-q, escrito por Alison Weir.

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um encantador sorriso de Mona Lisa; se trata de ninguém menos que Ana Bolena (ver a figura

19).

Os ossos de mademoiselle Boullan só foram descobertos em 1877, durante reformas

na capela de Saint-Peter ad Vincula. Após um estudo, concluiu-se que o esqueleto pertencia

rainha decapitada. Embora alguns historiadores contestarem esse fato198

, só se pode louvar a

atitude daqueles que se prontificaram a dar um sepulcro razoavelmente digno para aquela

mulher (ver a figura18), devolvendo-lhe, inclusive, o título de rainha da Inglaterra. Ha quem a

considere uma mártir; outros, apenas uma pessoa vil, cujo desígnio era apenas arruinar a vida

de seus inimigos. O fato é que mesmo quase quinhentos anos após sua morte, Ana Bolena

ainda continua tendo cruéis detratores, mas também aqueles que a defendem com ardor199

.

Seria um equívoco dizer aqui que se não fosse por ela, Henrique jamais teria se separado de

Catarina de Aragão ou rompido com a Igreja Católica. Todavia, a ascensão e queda desta

senhora fora um marco divisor de águas, e como tal um estudo detalhado acerca da vida de

sua personalidade torna-se necessário. Jamais conseguiremos desvendar todos os segredos que

ela carregara para a cova, mas pelo menos podemos nos forçar à tentativa de estudá-la em

toda a sua magnitude.

198 Alison Weir argumenta que os ossos que repousam no túmulo de Ana Bolena pode não ser dela, uma vez que

durante a exumação do corpo, constatou-se que o esqueleto tinha um pescoço curto, enquanto Ana Bolena fora

descrita em seu tempo de vida como tendo um pescoço comprido. WEIR, Alison. Op.cit. 2010. p. 343. 199 Sobre as representações de Ana Bolena ao longo dos anos, ver o anexo 3.

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Anexo 1

As várias faces de Ana Bolena

Figura 20 – Retrato de Ana Bolena em medalha, com a inscrição A.R. THE MOOST HAPPI

ANNO 1534200

.

Entre os muitos mistérios ligados à figura de Ana Bolena, está a sua aparência física.

Perguntas do tipo “como ela era?” já renderam (e ainda rendem) bastante assunto para

discussão. O fato de haverem tantos retratos dela, cada um apresentando diferenças faciais

significativas, ajuda em quase nada na solução deste problema, principalmente quando

levamos em consideração a evidência de que quase todos os quadros foram pintados depois da

morte da rainha, baseados em descrições da mesma e/ou em algum retrato original que não

sobrevivera aos últimos séculos. A única e indisputável imagem criada durante sua vida é uma

medalha (hoje no Museu Britânico) datada de 1534 (ver a figura 20) na qual podemos ver

uma mulher de rosto oval, usando um capelo inglês, com a inscrição A. R. (Anna Regina) e o

motto ‘The Moost Happi’ (the most happy – a mais feliz). Contudo, o nariz e o olho direito de

200 Imagem extaída do livro IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United

Kingdom: Blackwell Publishing, 2010, escrito por Eric Ives.

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Ana apresentam-se irremediavelmente danificados, o que torna a medalha numa fonte pouco

fidedigna de sua aparência201

.

E como Ana Bolena se parecia? As primeiras descrições de seu físico datam do ano de

1527, quando o caso entre ela e Henrique VIII tornou-se alvo do interesse público. Segundo

Sanuto202

, um diplomata veneziano que esteve na corte inglesa durante aquele período, “a

Senhora Ana não é uma das mulheres mais bonitas do mundo, tem estatura média, compleição

escura, pescoço comprido, boca larga, um peito não muito saliente e olhos que são negros e

lindos”. William Barlow, um dos capelães favoritos de Ana, chegou inclusive a compará-la

com Bessie Blount, ao descrever a ex-amante de Henrique VIII como mais bonita, embora

reconhecesse que Ana era “mais eloquente e graciosa” que a outra203

. Tais características,

contudo, não se encaixavam nos moldes do que era considerado belo no período: enquanto

cabelos escuros, lábios salientes, olhos grandes e negros, aliados de uma pele em tons de oliva

são traços físicos amplamente valorizados na mulher do século XXI, no XVI quem reinavam

eram as loiras.

Dos retratos da virgem Maria ao de Vênus (especialmente na pintura de Botticelli de

1496), inclusive na literatura com Guinevere às heroínas do amor cortês, observamos uma

verdadeira celebração de mulheres loiras, com pele leitosa, olhos azuis e lábios finos. Não

obstante, esse modelo estético atuava como um divisor de classes, separando as mulheres da

nobreza das outras com uma tez mais escura e de cabelos castanhos204

. Nesse contexto, Ana

não poderia ser considerada uma grande beldade, mas o fato de ela ter atraído a atenção de

tantos homens, como Henry Percy, Thomas Wyatt e o próprio rei, significa que ela possuía

um charme natural que, por sua vez, tornava-a mais interessante do que as suas

contemporâneas. Escrevendo sobre Ana Bolena, George Wyatt (neto de Thomas Wyatt) a

descreveu como uma mulher de “rara e admirável beleza”.

Com efeito, George Wyatt tivera acesso a relatos de pessoas que conheceram Ana

Bolena para compor um manuscrito intitulado Life of Queen Anne Boleigne (Vida da Rainha

Ana Bolena), que ele passou para seu sobrinho em 1623. Seu ponto de vista é visivelmente

favorável à Ana, exceto por algumas descrições que ainda permanecem enraizadas na cultura

popular:

201 BERNARD, G.W. Anne Boleyn: fatal attractions. – London: Yale University Press, 2010. p. 198 202 LOADES, David. Op.cit. p. 129 203 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 19 204 BORDO, Susan. Op.cit. p. 26

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... ali encontrava-se, de fato, em cima do lado de sua unha, em cima de um de seus

dedos, uma pequena amostra de unha [extra], mas tão pequena, que pelo relato

daqueles que a viram numa ocasião, parecia que fora trabalhada para dar maior

graça à sua mão, como a ponta de um de seus outros dedos poderia ser, e geralmente

era escondido por ela sem qualquer defeito a ele. Do mesmo modo, disserem que

sobre algumas partes de seu corpo incidiam pequenas manchas...205.

Antonia Fraser206

considera que essas manchas atuavam no corpo de Ana como

pequenos sinais que a embelezavam sem, contudo, desfigura-la. Assim como ela, Eric Ives207

acredita que uma simples malformação em um de seus dedos poderia ser possível, ou uma ou

duas manchas, mas nunca o desastre que Nicholas Sander, autor de De Origine ac Progressu

Schismatis Anglicani (1585), descreveu. De acordo com Sander, um católico que deixou a

Inglaterra durante o reinado de Elizabeth I e depois se tornou jesuíta, Ana Bolena era

desfigurada por uma imensa papeira que ela escondia com a gola alta de seus vestidos, uma

grande quantidade de verrugas cobria seu corpo, seis dedos em uma das mãos e um dente

projetado para fora dos lábios. Entretanto, Sander tinha apenas 9 anos quando Ana morreu

(1536) e é provável que nunca a tenha visto208

. Além do mais, golas altas em vestidos não

eram usadas durante o reinado de Henrique VIII. Destarte, é de presumir que dificilmente

uma deformidade como essas chamaria a atenção dos homens, especialmente do rei.

Entretanto, seu relato coincide com o de outros quanto às outras características de

Ana, tais como: estatura mediana, cabelo escuro e rosto oval, e parece também concordar com

George Wyatt no que diz respeito aos seis dedos. Para Bordo:

Desde a morte de Ana, os corpos enterrados na capela de St. Peter ad Vincula foram

exumados e nenhum dos esqueletos apresentou evidência de um sexto dedo. No

entanto, há quem acredite atualmente que o corpo de Ana não descansa ali. Mas

remanescentes humanos à parte, se durante sua vida Ana possuía seis dedos, porque

o olho de águia de Chapuys falhou em reportar isso?209

De fato, Eustace Chapuys, embaixador imperial na Inglaterra, era um dos mais

virulentos atacantes de Ana. Em seus despachos, ele não cansava de diminuir a figura da

segunda esposa de Henrique VIII, referindo-se a ela como prostituta e relatando (e muitas

vezes exagerando) as más opiniões da população e da corte sobre ela. Por que ele deixaria de

205 “there was found, indeed, upon the side of her nail, upon one her fingers, some little show of a nail, which yet

so small, by the reports of those that have seen her, as the work master seemed to leave it an occasion of greater

grace to her hand, which, with the tip of one of her other fingers might be, and was usually by her hidden without

any blemish to it. Likewise there were said to be upon some parts of her body, certain small moles…” IVES,

Eric W. Op.cit. p. 40 206 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 167 207 IVES, Eric W. Op.cit. p.40 208 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 167 209 BORDO, Susan. Op.cit. pp. 29-30

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mencionar a evidência de um sexto dedo numa das mãos da mesma, que poderia ser

facilmente interpretado como um toque do diabo e sinal de bruxaria? Isso só reforça a

conclusão de que para além dos cabelos e olhos escuros, a pele em tons de oliva, as pequenas

manchas, e a evidência de uma pequena unha em seu dedo mindinho, nós ainda não estamos

muito certos sobre como Ana Bolena realmente se parecia. Depois de sua morte, Henrique

ordenou que todos os pertences dela fossem destruídos, inclusive seus retratos originais. Os

que sobreviveram são cópias e/ou interpretações discordantes entre si210

. Voltemos agora

nosso foco para uma análise dos quadros da rainha Ana.

Como dito no início desse texto, a única imagem contemporânea de Ana Bolena que

sobreviveu à posteridade é um medalha de 1534, feita possivelmente para comemorar sua

segunda gravidez211

. Contudo, os retratos mais associados a ela são os do Castelo de Hever

(Kent – ver a figura 3) e o da Galeria Nacional de Retratos de Londres (National Portrait

Gallery – ver a figura 25), que trazem as seguintes inscrições: Anne Bolina Angliae Regina

(Ana Bolena Rainha da Inglaterra) e Anna Bolina Uxor Henrici Octavi (Ana Bolena Esposa

de Henrique VIII), respectivamente. Existem várias versões dessas duas imagens, espalhadas

por outras galerias. Na maioria delas, observamos uma mulher usando roupas pretas seguindo

a moda da primeira metade do século XVI, um capelo francês adornado com pérolas, um

pingente como o “B” de Bolena, e com as mesmas características descritas em Ana. Porém,

quando comparamos os quadros observamos discordância faciais significativas, derivadas do

olhar diferenciado de cada pintor.

Na opinião de G. W. Bernard212

é possível que os retratos expostos em Hever e na

NPG possam ser cópias, feitas a partir de um original da década de 1530, a julgar pelas roupas

de Ana. Não obstante, os contornos dos rostos nos dois retratos são claramente definidos sem

sinais de reformulação, o que implica a dependência de um modelo original. Uma sugestão

argumentada por Bernard é que o retrato original tenha sido pintado por Lucas Horenbout,

considerado o autor de duas supostas miniaturas de Ana Bolena, uma localizada na coleção do

Duque de Buccleuch e a outra no Royal Ontario Museum (Toronto). No retrato em Toronto,

podemos ler a inscrição “ano xxv”, o que significa dizer que a mulher na imagem tinha 25

anos. Se Ana nasceu em 1501, como geralmente acredita-se, então a miniatura fora pintada

entre 1526-27. Entretanto, explica Bernard213

, alguns historiadores acreditam que essa data é

muito cedo para que Henrique VIII, já apaixonado, comissionasse algum retrato da amada.

210 Idem. p. 30 211 IVES, Eric W. Op.cit. p.41 212 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 197 213 Idem. p. 196

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Outros, por sua vez, argumentam que a existência dos retratos poderia demonstrar uma

evidência independente do tempo de Ana Bolena antes de seu relacionamento com o rei.

Figura 21 – Retrato de uma mulher, exposto no castelo de Windsor, feito por Hans Holbein

(o Jovem) 214

.

Outra sugestão de autoria para o retrato que serviu de modelo para o de Hever e o da

NPG recai sobre os ombros de Hans Holbein, que estava na Inglaterra desde 1532 e

provavelmente pintara Ana. Existem dois rascunhos feitos por ele, parte de um livro de

desenhos adquirido por Henrique VIII após a morte de Holbein. Em um deles (hoje localizado

no Museu Britânico), lemos a inscrição em latim feita em 1649 que diz: “Ana Bolena,

decapitada em 19 de maio de 1536”, e “Ana Bolena Rainha”, no outro (pertencente à Coleção

Real do Castelo de Windsor – ver a figura21). Nas duas imagens não vemos a mesma pessoa,

e apesar do rascunho no Museu Britânico apresentar certa semelhança com os retratos de

Hever/NPG, no de Windsor observamos uma mulher com trajes informais e provavelmente

vestida para dormir. A identificação deste último retrato, por sua vez, fora oferecida por Jonh

Cheke, tutor do príncipe Edward e que estava numa aparente posição de autoridade para fazê-

lo.

214 Imagem extraída do livro Anne Boleyn: fatal attractions. – London: Yale University Press, 2010. p. ii,

escrito por G. W. Bernard.

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Todavia, Eric Ives215

argumenta que o trabalho de Cheke é suspeito, pois muitas de

suas supostas identificações de outros rascunhos de Holbein acabaram se mostrando

incorretas, e nesse caso é possível que a imagem com a inscrição “Ana Bolena Rainha” esteja

ligada à família Wyatt. Não obstante, por que uma rainha iria comissionar um retrato seu em

trajes tão informais? Na opinião de Bernard216

, é possível que a imagem estivesse inacabada e

que o artista ainda estaria trabalhando para deixa-la com um aspecto mais formal. Em todo

caso, não podemos tomar os rascunhos do Museu Britânico e o do Castelo de Windsor como

evidências sérias da fisionomia de Ana Bolena. Por outro lado, existem dois retratos

adicionados ao fecho de um anel da Rainha Elizabeth I que pode oferecer mais luz a essa

questão (ver a imagem 19). Um deles representa a própria monarca, enquanto no outro

observamos um mulher de rosto oval, vestida de acordo com moda nos tempos de Henrique

VIII e que provavelmente se trata da mãe da soberana. Porém, sua identidade ainda não é

conclusiva.

Durante o período elisabetano, tornou-se popular entre a nobreza e a gentry expor

retratos de reis e rainhas em suas casas, especialmente em corredores e longas galerias como

forma de demonstrar lealdade. A maioria dessas imagens não é fruto de um trabalho de

grande qualidade, como podemos notar entre as muitas versões dos quadros de Ana Bolena.

Em alguns casos, os artistas pintavam aquilo que acreditavam que seus patronos queriam em

vez de uma cópia fidedigna. Sendo assim, não era difícil alguma confusão pudesse acontecer.

Por exemplo: o retrato que por muito tempo fora tido como de Lady Jane Grey, acabou sendo

identificado como de Catarina Parr, da mesma forma que em 2013 um especialista da NPG

chegou à conclusão que um dos supostos quadros da sexta esposa de Henrique VIII, na

verdade representava sua primeira, ou seja, Catarina de Aragão.

Recentemente especulou-se que os retratos de Ana Bolena, incluído o de Hever e o da

NPG, poderiam ser cópias ou variações de um original não de Ana, mas de Mary, irmã de

Henrique. Um suporte circunstancial para essa sugestão, além da semelhança de traços faciais,

é que o colar de pérolas com o broche “B” não significava Bolena, e sim Brandon, sobrenome

do segundo esposo de Mary, Charles, duque de Suffolk. Contudo, G. W. Bernard217

desacredita essa suposição ao levantar o fato de que Henrique VIII, em suas cartas de amor,

usava as inicias A.B. de sua amada. Além disso, Mary era irmã do Rei da Inglaterra e Rainha

viúva da França, então porque ela seria pintada, mesmo se tratando de um retrato da segunda

215 IVES, Eric W. Op.cit. p.41 216 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 197 217 Idem. p. 199

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metade do século XVI, fazendo referência a uma família de linhagem não tão distinta? O mais

intrigante para Bernard é que a mulher do retrato da NPG apresenta cabelos e olhos castanhos,

diferentemente dos cabelos e olhos escuros descritos em Ana. Sobre esse aspecto, é

interessante recordar o verso que o Rei Francisco I escreveu, e que é geralmente aceito como

sendo para Ana:

Venus était blonde, on m’a dit

L’on voit bien, qu’elle est brunette218

.

Brunnette, ressalta Bordo219

, pode ser traduzindo em inglês para “brown” (marrom), o

que nos permite supor que os cabelos de Ana poderiam ser de um tom castanho escuro e o

fato de no retrato da NPG eles aparecerem mais claros, pode ser interpretado como um

recurso do artista para deixar a modelo mais adequada aos padrões de beleza do período. Por

último, há a miniatura pintada por John Hoskins (c. 1590-1664/5), que provavelmente tivera

acesso ao mesmo modelo original que serviu de base para os quadros de Hever e da NPG.

Nesse sentido, Ives220

conclui que os retratos mais fiéis à Ana Bolena são a medalha de 1534,

a mulher no anel de Elizabeth, as duas versões no castelo de Hever e na Galeria Nacional de

Retratos e Londres, e a miniatura de Hoskins. Em todas elas, o que fica marcante é o seu

sorriso enigmático de Gioconda, como se estivesse rindo de alguma coisa que o observador

não sabe, e que dificilmente virá a descobrir.

218 WEIR, Alison. Op.cit. 1992, p. 151 219 BORDO, Susan. Op.cit. p. 32 220 IVES, Eric W. Op.cit. p.43

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Anexo 2

A religiosidade de Ana Bolena

Figura 22 – Livro de orações que pertenceu a Ana Bolena. Castelo de Hever, Kent

221.

O hábito de escrever nas páginas de um livro pode parecer vulgar para algumas

pessoas, mas quando o “infrator” se trata de uma personalidade histórica, a coisa pode mudar

um pouco de sentido: numa sala do castelo de Hever, permanece aberto um pequeno livro de

orações que oferece maior interesse ao cômodo, especialmente pelo fato de conter numa de

suas páginas a assinatura da antiga proprietária, Ana Bolena (ver a figura 22). Não menos

interessante que o desenho da esfera armilar que acompanha a firma da rainha, o visitante

poderá ler a inscrição “Le temps viendra” (os tempos virão), abreviação do provérbio francês

que diz: “virá o dia em que pagaremos por tudo” 222

. Acima da inscrição, uma ilustração do

dia do juízo final toma quase todo o espaçamento da página, fazendo uma clara referência à

passagem do livro do Eclesiastes (12:13): “Deus fará dar contas, no dia de juízo, de tudo o

221 Imagem extraída do livro The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom:

Blackwell Publishing, 2010. p. 202-q, escrito por Eric Ives. 222 IVES, Eric W. Op.cit. p. 277

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que está oculto, quer seja bom, quer seja mal”. Mas até que ponto esse fato ilustra a

concepção religiosa da mulher que esteve no centro do movimento reformista na Inglaterra? É

isso que observaremos no seguinte texto.

A religiosidade de Ana Bolena, por muito tempo, tem sido alvo de debates entre vários

estudiosos. Era protestante ou católica? O fato dela não ter deixado qualquer documento

escrito expressando suas crenças só dificulta ainda mais a questão. Catarina Parr (sexta esposa

de Henrique VIII), por exemplo, expressou sua fé protestante e conhecimentos doutrinários

em muitos trabalhos de sua autoria, especialmente no livro Lamentation of a Sinner223

.

Entretanto, alguns elementos podem ajudara esclarecer um pouco mais esse assunto, como o

patronato que Ana concedeu a escritores protestantes, notadamente William Tyndale e Simon

Fish, e seu empenho na tradução e difusão da bíblia na língua inglesa. Contudo, para entender

a ação religiosa da rainha, precisamos olhar além do cisma entre a Igreja da Inglaterra e a de

Roma, e retroceder alguns anos em sua história, quando ela era uma jovem promissora na

corte de França a serviço de Cláudia, esposa de Francisco I. Ali, Ana Bolena teria entrado em

contato com grandes pensadores e também com uma das mulheres mais importantes de sua

geração, Margaret D’Angoulême, irmã do rei.

A futura rainha de Navarra fora uma grande patrona das letras, de poetas e filósofos,

além de uma das maiores entusiastas da reforma da Igreja em França, mesmo quando o

protestantismo ainda dava seus primeiros passos na Europa. Conforme diz ABREU224

muitos

teólogos e humanistas faziam parte do círculo de amizades de Margaret, a exemplo de

Erasmo, Lefèvre d’Étaples, Rabelais, Melanchthon, Bucer, Calvino e o poeta Clément Marot,

que contribuíra de maneira significativa para causa protestante naquele país. Sob esse ponto

de vista, muitos escritores assumiram que a personalidade responsável pela religiosidade de

Ana Bolena fora a irmã do rei Francisco. Na opinião de alguns, como Nicholas Sander, a

“infecção” passara de Margaret para Ana, e desta para a Inglaterra. Porém, ressalta IVES225

,

Ana nunca fizera parte do círculo da duquesa e, em suas cartas, ela aparece mais como uma

visitante do que como uma discípula.

Com efeito, é possível dizer que a figura excêntrica de Margaret D’Angoulême

exercera uma forte influência sob a personalidade de Ana Bolena, o que pode ser comprovado

pela correspondência entre ambas e pelo esforço que a segunda esposa de Henrique VIII

empreendeu, depois de rainha, para encarnar diante dos olhos dos súditos o modelo de

223 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 96 224 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. A reforma da Igreja em Inglaterra: acção feminina, protestantismo e

democratização política e dos sexos. – Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 224 225 IVES, Eric W. Op.cit. p. 278

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soberana cristã representado por Margaret. Não obstante, muitas das obras que Ana

colecionava provinham de autores e/ou editores protegidos pela rainha de Navarra, e tanto

uma quanto a outra tinham o mesmo hábito de expressar suas crenças em belos manuscritos,

como podemos observar através da inscrição em seu livro de orações: “Le temps viendra / je

Anne Boleyn” (ver a figura 23). Ainda de acordo com IVES226

, é possível que Ana possuísse

uma cópia da obra de Margaret publicada em 1531, intitulada Le Miroir de l’âme pécheresse,

e que teria sido esse mesmo exemplar utilizado em 1545 por sua filha, Elizabeth, para um

trabalho de tradução, destinado à madrasta, Catarina Parr.

Figura 23 – Inscrição feita por Ana Bolena em seu livro de orações (detalhe da figura 22): Le

temps viendra / je Anne Boleyn227

.

Teria sido durante sua estadia em França que Ana Bolena fora introduzida a uma

prática religiosa que se concentrava numa experiência espiritual nutrida pela leitura pessoal da

Bíblia. Todavia, não existem provas de que ela tivesse entrado em contato “com doutrinas

religiosas mais extremistas, que visassem um cisma com a Sé de Roma” 228

. Nesse caso,

poderíamos dar confiança à observação de Eustace Chapuys, que a descreveu como “mais

luterana do que o próprio Lutero”? Para BERNARD229

, o problema com a mente do

embaixador imperial é que para ele romper com Roma significava uma evidência de

luteranismo. Não obstante, em seus relatos o diplomata vendia a imagem de Ana como a da

mulher responsável pelo repúdio de Catarina de Aragão e pela introdução da “heresia

protestante” na Inglaterra. A despeito das alegações hostis de Chapuys, não podemos ignorar

o fato de que Ana possuía livros de Simon Fish e William Tyndale que, por sua vez, eram

influenciados por Martinho Lutero.

226 Idem. 227 Imagem extraída do livro The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom:

Blackwell Publishing, 2010. p. 202-q, escrito por Eric Ives. 228 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Op.cit. p. 225 229 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 95

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Em Obedience of a Christian Man (1528), Tyndale condenava certas doutrinas, ritos e

dogmas da Igreja Católica, tais como a adoração de imagens, os milagres, a confissão, a

penitência e a absolvição. Além do mais, ele defendia a difusão da Bíblia em vernáculo, sob a

alegação de que “Deus dera aos filhos de Israel a lei pelas mãos de Moisés em sua língua

materna”, acrescentando também que “todos os profetas haviam escrito em sua língua

materna”. Nesse sentido, ele não via razão para que a Bíblia fosse composta em latim230

.

Acredita-se que fora Ana Bolena quem recomendara a leitura da obra de Tyndale a Henrique

VIII, que após o término da mesma teria exclamado: “esse livro é para ser lido por mim e

todos os príncipes”. Afinal, em Obedience, Tyndale denunciava a legitimidade do pode papal,

assim como enfatizava a autoridade dos governantes seculares, um argumento que servia às

intenções do rei durante os anos do processo de anulação de seu casamento com Catarina de

Aragão.

Teria sido Ana Bolena quem também fizera chegar às mãos de Henrique o livro de

Simon Fish, Supplicattion for the Beggars (1529), onde o autor confrontava a opulência do

clero com a indigência dos destituídos. A julgar pelas intenções do rei de espoliar o clero

inglês, é possível supor que a análise desta obra teria reforçado a atitude do monarca. Retha

Warnicke231

argumenta que o esforço que Ana empreendia no estudo de obras religiosas não

ortodoxas pode ser entendido, ao menos em parte, pela vontade que ela tinha de agradar o rei,

apresentando-lhe livros que ele certamente gostaria de ler, visto que Henrique VIII enxergava

a si próprio como um teólogo amador. Com efeito, era uma forma dela também fazer a leitura

das mesmas, para assim discuti-las com o rei. De acordo com um de seus capelães, William

Latimer, Ana “debatia as escrituras” com o rei enquanto tomavam a refeição. Para agradar ao

monarca, em 1532 ela informara a Nicholas Hawkins, diácono de Ely que estava fora em uma

missão diplomática, de que o rei estava interessando em obter trabalhos que discutissem o

poder papal.

O próprio Henrique também não era contra a difusão da Bíblia em vernáculo. Em

1524 ele havia sugerido que não havia problema em ler as sagradas escrituras em qualquer

língua, exceto na versão de Lutero232

. Entretanto, mesmo que o rei tivesse explorado a

possibilidade de traduzir a Bíblia para o inglês, ele relutava em permitir que seus súditos,

mesmo estudantes universitários, lessem livros considerados heréticos. É lógico que isso não

impediu que obras dessa natureza entrassem no país e é provável que Ana Bolena soubesse

230 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Op.cit. p. 226 231 WARNICKE, Retha M. The rise and fall of Anne Boleyn: family politics at the court of Henry VIII. –

UK: Cambridge University Press, 1989. p. 110 232 Idem.

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dos riscos que estava correndo ao consumir esse tipo de literatura. Assim como o soberano,

ela acreditava que as escrituras deveriam ser lidas em vernáculo, e após Henrique assumir

uma postura contrária à autoridade papal, surgiu uma possibilidade para que diversos grupos

de protestantes o apoiassem em seu desafio à supremacia de Roma. Nesse aspecto, Ana se

transformava numa peça fundamental para aqueles que não mais suportavam o despotismo da

Igreja Católica e rogavam por uma reforma religiosa na Inglaterra.

Uma vez coroada rainha da Inglaterra, Ana Bolena aparentemente exerceu

significativa influência sobre a pequena facção protestante na corte, liderada por Thomas

Cromwell e Thomas Cranmer. A elevação deste último ao posto de arcebispo de Canterbury,

por sua vez, fora um passo decisivo no processo de separação entre o rei e sua primeira

esposa, Catarina de Aragão. É possível que Ana tenha interferido de maneira relevante na

nomeação de Cranmer, que na época se encontrava em missão diplomática junto a Carlos V,

em Nuremberg. De volta à Inglaterra, o clérigo trouxe na sua bagagem um profundo

conhecimento e apego pelas doutrinas luteranas, tornando-se com o tempo defensor e

promotor da Reforma da Igreja no país. Em 1534, por exemplo, ele emitira licenças a clérigos

protestantes para que se juntassem à sua arquidiocese, atitude tão audaciosa que, se levarmos

em consideração a timidez e a prudência de caráter do mesmo, provavelmente só terá sido

tomada com a certeza da proteção da rainha233

.

Com o apoio de Ana Bolena e Henrique VIII, Cranmer convidara o luterano Hugh

Latimer para oficiar os serviços religiosos da Quaresma. O rei teria ficado tão bem

impressionado com a eloquência de seu novo capelão que, mais tarde, o nomeara bispo de

Worcester. Na opinião do martirologista John Foxe, a elevação de Latimer fora feita graças à

intervenção da rainha, provavelmente em colaboração com Thomas Cromwell. No ano de

1533, Ana conseguira a nomeação de outro luterano, Matthew Parker, para seu capelão, assim

como distribuíra proteção e apoio a outros clérigos protestantes234

. Ainda de acordo com

Foxe, o luteranismo de Ana Bolena era conhecido por todo o reino, sendo ela “uma especial

entusiasta e ajudante de todos aqueles que professavam o evangelho de cristo, tanto daqueles

mais eruditos quanto dos menos instruídos” 235

. É possível que haja algum exagero na fala de

Foxe, visto que sua propagação de um forte protestantismo por parte de Ana Bolena teria

como finalidade estimular a filha desta, Elizabeth, a perseverar na Reforma da Igreja em

Inglaterra.

233 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Op.cit. p. 228 234 Idem. 235 Ibid. 227

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Segundo G. W. Bernard236

, um dos aspectos mais interessantes no testemunho de Foxe

é que para ele, uma mulher tão religiosa e cheia de virtudes como Ana Bolena não poderia ser

considera culpada pelos adultérios de que ela fora acusada em 1536. William Latymer, um

dos capelães de Ana, argumenta que a rainha ajudava a todos aqueles que sofriam de

perseguição, demonstrando “constante afeição para com os pobres evangelistas” 237

. Devemos

a Latymer a famosa história de que em certa ocasião a rainha teria repreendido uma de suas

damas, Madge Shelton, por escrever em seu livro de orações “poesias tolas”, assim como se

escandalizara com o rei pelas notas de amor que ele deixara no mesmo livro. Entretanto,

argumenta Eric Ives238

, tanto Latymer quanto Foxe estavam mais preocupados em promover a

imagem de Ana como uma espécie de “boa matriarca” da reforma e, portanto, devemos olhar

para o testemunho deles com alguma reserva.

Todavia, um campo muito mais seguro para se avaliar a religiosidade de Ana Bolena,

conforme vimos antes, consiste no interesse dela pelas Sagradas Escrituras em vernáculo. O

próprio Latymer escrevera que ela era “muito experiente na língua francesa, exercitando-se

continuamente na leitura da Bíblia em francês assim como em outros trabalhos do mesmo

efeito” 239

. Ela possuía, inclusive, uma edição de 1534, feita em Antuérpia, da tradução da

Bíblia em francês por Lefèvre, em 1528. Ainda de acordo como William Latymer, Ana

constantemente discutia as Sagradas Escrituras como o rei, o que não é impossível, apesar de

Latymer ser a nossa única fonte sobre isso. Contudo, um valioso suporte acerca do interesse

da rainha pela Bíblia em vernáculo provém de uma carta que ela escrevera em favor Richard

Hermon, um mercador e cidadão de Antuérpia, que reclamava por ter sido privado de suas

relações com a Inglaterra apenas por importar para o país algumas cópias do Novo

Testamento em inglês, ainda nos tempos em que o Cardeal Wolsey era chanceler do reino240

.

O mais interessante na atitude de Herman, é que ele poderia ter pedido pela ajuda de

Cranmer ou Cromwell, mas preferira apelar à rainha, que, por sua vez, atendera ao seu

pedido. Esse fato corrobora a tese de ABREU241

de que o favor de Ana Bolena a tais

protestantes fora de grande relevância para a penetração do luteranismo em solo inglês. Em

1534, Richard Herman já estava liberto de sua prisão imposta por Wolsey, e se encontrava em

Londres a exigir indenização pelos danos que a sua detenção lhe causou. Foi por essa época

também que William Tyndale estava ocupado com a impressão de uma edição melhorada de

236 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 94 237 Idem. p. 92 238 IVES, Eric W. Op.cit. p. 279 239 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 96 240 Idem. pp. 97-98 241 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Op.cit. p. 229

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sua tradução do Novo Testamento e tomou conhecimento do caso de Herman. Sentindo-se

tocado pela atuação da rainha inglesa, especialmente por saber que uma mulher como ela

apreciava seu trabalho, além de proteger e apoiar tantos outros que sofriam perseguições por

suas crenças, Tyndale decidira presentear a sua patrona com um exemplar de luxo da sua nova

edição do Novo Testamento242

.

Figura 24 – Cópia do Novo Testamento de William Tyndale dedicada à Ana Bolena243

.

A cópia que William Tyndale encomendara para Ana Bolena era impressa em

pergaminho, recheada de ricas ilustrações e encadernada em marroquim azul. Na capa do

livro, lê-se em letras grandes e douradas em fundo vermelho: Anne Regina Angliae (Ana

Rainha da Inglaterra – ver a figura 24). Para ABREU244

é provável que tivesse sido com o

apoio da rainha que o Novo Testamento de Tyndale fora publicado pela primeira vez na

Inglaterra, em 1536. Apesar de esse ano coincidir exatamente com o da execução da soberana,

o processo de edição da obra se iniciara muito antes, quando ela ainda estava em posse de

seus poderes. Vale ressaltar também que a tradução das Sagradas Escrituras por Tyndale era a

242 Idem. p. 230 243 Imagem extraída do livro The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom:

Blackwell Publishing, 2010. p. 202-s, escrito por Eric Ives. 244 Ibid. pp. 230-231

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melhor feita até então, tendo servido como base para traduções posteriores da Bíblia, ainda

durante o reinado de Henrique VIII.

Retha Warnicke245

ressalta que como rainha, Ana Bolena exigia de suas damas um

comportamento exemplar. Elas deveriam comparecer aos sermões diariamente e se reportar a

um livro de devoção, exposto em seus aposentos, que continha algumas orações e salmos em

inglês. Teria sido este o cenário para a história contada por Latymer, sobre Ana discutindo

com sua prima e dama de companhia, Madge Shelton, por rabiscar alguns versos no referido

livro. Embora no passado Ana Bolena tivesse sido uma amante de poesias, especialmente das

de Thomas Wyatt, sua elevação ao posto de rainha alterou essa situação. Ela queria seguir os

passos de sua antecessora, Catarina de Aragão, assim como Margaret D’Angoulême, rainha

de Navarra, e da princesa Renata da França, duquesa de Ferrara, e se tornar um exemplo de

mulher cristã para toda a Europa. Uma vez que os governantes daquele tempo acreditavam

que a segurança da dinastia dependia da bênção de Deus e do suporte que davam à Igreja,

então Ana teria razões mais do que políticas para enfatizar sua devoção em assuntos

espirituais246

.

Apesar de tudo o que fora até aqui exposto, devemos classificar Ana Bolena como

luterana? Por causa de sua posição favorável à tradução da Bíblia, mais tarde muitos

reformadores a descreveram como protestante247

. As evidências para tal afirmação existem,

mas ainda não são conclusivas quanto a esse aspecto. Entretanto, se Ana não era protestante,

em seu breve reinado era demonstrara grande afinidade por aqueles que eram. Já para Karen

Lindsey248

, ela não era um catalisador na reforma inglesa, mas sim um elemento dentro dessa

equação. Durante a ascenção da princesa Elizabeth ao trono em 1558, muitas famílias

passaram a alegar que a sua ascendência protestante provinha de sua família materna,

especialmente por parte de sua mãe e seu tio, George. Entretanto, na era elisabetana, a

comunidade cristã já se encontrava consolidada em dois campos distintos: protestante e

católico. No período henriquino, por sua vez, “muitos dos ímpetos reformadores de indivíduos

que desafiavam o poder do Papa e defendiam a Bíblia em vernáculo não significavam uma

completa conversão à Fé Protestante” 249

.

245 WARNICKE, Retha M. Op.cit. p. 151 246 Idem. p. 152 247 Ibid. 153 248 LINDSEY, Karen. Divorced, Beheaded, Survived: A Feminist Reinterpretation of the Wives of Henry

VIII. – Cambridge, M A: Da Capo Press, 1995. p. 100 249 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Op.cit. p. 233

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Nesse caso, Ana Bolena poderia ter sido uma “reformadora” da Igreja Católica, sem

ser uma completa defensora da Reforma Protestante. Na opinião de Eric Ives250

, é mais seguro

classifica-la como uma evangelista nos moldes do humanismo francês. Segundo o

martirologista John Foxe e William Latymer, a rainha fora vítima de um complô papista para

derrubá-la do trono. Contudo, não devemos resumir a queda de Ana Bolena em maio de 1536

a questões religiosas, quando na verdade uma série de outros fatores interferiu na questão,

principalmente a sucessão da coroa, haja vista que ela não fora capaz de gerar um herdeiro

varão para o trono. Em seu último discurso, proferido de cima do patíbulo em 19 de maio de

1536, também podemos perceber alguma evidência de suas convicções religiosas, mas

existem tantas versões do mesmo que, por sua vez, acabam tornando essa numa fonte

inconclusiva. Por fim, deixo a palavra final para a própria rainha, extraída de uma conversa da

mesma com William Kingston enquanto se encontrava presa na Torre: “eu deverei ir para o

céu, pois eu fiz coisas boas em meus dias” 251

.

250 IVES, Eric W. Op.cit. p. 287 251 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 106

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Anexo 3

Vilã ou heroína? – as representações de Ana Bolena

Figura 25 – Ana Bolena, por artista desconhecido. Cópia de um retrato original perdido do

séc. XVI252

.

Ana Bolena é uma das personagens mais controversas da história inglesa e talvez uma

das mulheres mais interessantes do mundo. Sua vida até hoje permanece um mistério para

muitos pesquisadores, devido às várias lacunas factuais não preenchidas pela historiografia.

Não sabemos, por exemplo, a data exata de seu nascimento, ou qual de seus retratos melhor a

representa (todos, ou nenhum?). Decapitada em 19 de maio de 1536, ela passara a ser uma

espécie de não ser depois de sua morte. Uma geração depois, as coisas mudam e ela já era a

mãe da monarca reinante. Esse fascínio que Ana exerce nas pessoas, ressalta a biógrafa

Antonia Fraser, é explicável pelo fato de que nela observamos a trajetória de uma garota

desconhecida que de repente salta para a fama ou notoriedade. Pouco tempo depois sua estrela

252 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-I,

escrito por David Starkey.

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cai, até que ela é resgatada por escritores como Shakespeare e mais recentemente por

romancistas e cineastas, transformando-a de concubina a ícone da cultura popular.

Mas porque Ana Bolena é tão fascinante? Susan Bordo253

, autora de um belíssimo

ensaio cultural sobre a rainha Ana, responde essa pergunta afirmando que não devemos

pensar além do óbvio: a história de sua ascensão e queda é tão instigante, de roteiro

inteligente, que pouco se diferencia de um filme da vida real. Neste enredo, observamos o

longo sofrimento de uma esposa na pós-menopausa; a infidelidade de um marido apaixonado

por uma mulher mais jovem e sexy; um momento de glória para a amante. De repente a

paixão e o desejo acabam e então o círculo se fecha em torno da protagonista, culminando no

seu derradeiro fim. Essa fórmula, por sua vez, fora amplamente aproveitada por romancistas

ao longo de mais de 200 anos. Desde Francis Hackett até Philippa Gregory, a imagem de Ana

Bolena sofreu uma profunda transformação, sempre acompanhado as principais correntes

ideológicas ao longo dos anos.

De prostituta a rainha, de vilã a heroína, as representações de Ana variaram de acordo

com os séculos e os escritores. Garrett Mattingly, por exemplo, em sua célebre biografia sobre

Catarina de Aragão lançada em 1942 usara de palavras pouco lisonjeiras para descrever a

mulher que suplantara a filha dos reis católicos no posto de rainha da Inglaterra. Contudo, o

posicionamento deste autor pode ser explicado devido ao fato de que até o final da Segunda

Guerra Mundial (1945), Ana Bolena ainda era vista com hostilidade por parte de alguns

pesquisadores. Com o término do conflito, ela retorna para o campo literário e historiográfico

sob uma perspectiva mais delicada e mesmo favorável às suas atitudes como mulher e

soberana254

. Mas o que possibilitou essa transformação da imagem da segunda esposa de

Henrique VIII, que de concubina, passa a ser encarada como um exemplo de força e coragem

para a sociedade ocidental?

Mais uma vez, para responder essa pergunta talvez não precisemos ir além do que está

nítido: a partir da década de 1960, a mulher emerge como objeto de estudo nas ciências

humanas e particularmente na história. Até então, ela atuava na família, geralmente confinada

em casa ou, como diz a historiadora Michelle Perrot255

, ela era “invisível”. Na primeira

Epístola a Timóteo (2, 12-14), estava escrito: “Que a mulher conserve o silêncio, diz o

apóstolo Paulo. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi

seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em regressão”. Aquelas que quebrassem a ordem

253 BORDO, Susan. Op.cit. p. xiii 254 Idem. p. 171 255 PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Tradução de Angela M. S. Corrêa. 2ª edição. São Paulo:

Contexto 2013. p. 17

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natural das coisas, tal como Ana Bolena fizera em meados do século XVI, seriam uma espécie

de abominação para os países cristãos, dando assim margem a todo tipo de acusação,

inclusive de bruxaria. O próprio Henrique VIII, quando queria se livrar da segunda esposa,

afirmara que teria sido seduzido àquele casamento através sortilégios e, portanto, sua união

não era válida aos olhos de Deus.

Vários anos depois, Ana Bolena ainda permanecia como um mau exemplo a ser

seguido e sua morte brutal servia de lição para aquelas que ambicionassem algo maior do que

lhes era permitido, como mais tarde provaram sua prima, Catarina Howard, sua cunhada Jane

Rochford, a rainha da Escócia, Mary Stuart, e quase três mais tarde, Maria Antonieta, última

rainha da França. Todas essas mulheres pagaram com a própria vida por crimes que

supostamente haviam cometido em decorrência de uma conduta duvidosa. Desse modo, a

herança de Ana Bolena viria para assombrar todas aquelas que transgredissem as normas

sociais de suas respectivas épocas. A Revolução Francesa (1789), contudo, fora um momento

onde a mulher tivera maior espaço para lutar por seus direitos. A partir daí, as portas estavam

abertas para que mais de um século depois o movimento feminista ganhasse adeptas (e

também adeptos) em todo o mundo.

Sendo assim, como em quase todo movimento que busca na história elementos que

legitimem sua luta, o feminismo resgatou do silêncio mencionado por Perrot, personagens

antes tidas como vis e diabólicas, a exemplo de Cleópatra, Maria I Tudor, Catarina de Médici,

Margarida de Valois (a popular rainha Margot), Maria Antonieta e a própria Ana Bolena.

Nesse caso, um dos veículos mais utilizados para que esse resgate se tornasse possível fora a

literatura. Romances como os de Jean Plaidy, Muder Most Royal (1949), e Norah Lofts, The

Cuncubine (1963), ganharam rapidamente o gosto do grande público, especialmente por trazer

para o leitor uma Ana diferente daquela mulher perversa e mal intencionada que é retratada

nos despachos do embaixador imperial Chapuys, e que fora ratificada posteriormente por

algumas biografias, como a de Garrett Mattingly.

Na segunda metade do século XX, personagens dependentes e passivas já tinham

deixado de ser apreciadas pelo público de leitoras de classe média. Conta-nos Susan Bordo:

A Ana da ficção não é mais produzida no século XX como uma maligna com ódio

no sangue. Em vez disso, ela é uma jovem mulher de temperamento forte, com

qualidades pessoais que são bastante atraentes, mas que, quando desencadeada sua

elevação, mostraram-se perigosas para ela256.

256 “the Anne of most twentieth-century fiction is not bred-in-the-bone she devil. Rather, she is a strong-willed

young woman with personal qualities that are quite attractive but, when unleashed by her elevation, proved

dangerous to her” BORDO, Susan. Op.cit. p. 165

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Depois do período de Guerras, Ana Bolena retornara para o mundo da ficção com mais força

e independência que antes. Não era mais a concubina e sim a heroína injustiçada, que pagou

com a própria vida por crimes que não cometeu. Nesse sentido, a ideologia feminista

constituíra-se num fator decisivo para que romancistas e depois biógrafos reinterpretassem o

papel da rainha Ana tanto como mulher quanto como soberana dentro da sociedade inglesa do

século XVI.

Dessa fase, surgem excelentes biografias que vão desde autores como Hester W.

Chapman257

, The Challenge of Anne Boleyn (1974), a Eric Ives, The Life and Death of Anne

Boleyn (2004). Através filmes como Anne of The Thousand Days (1969) e a série televisiva

The Tudors (2007-2010), Ana Bolena salta do mundo dos livros para o das telas. Sua história

passa a ser mais acessível, variando de acordo com a posição de cada autor e/ou diretor.

Entretanto, em quase todas essas produções modernas, é possível vermos uma personagem

romântica, mas também determinada a conseguir o que queria, representando assim um tipo

de força amplamente valorizada pela mulher moderna, que não mais aceitava ficar surdinada à

vontade dos homens e confinada no ambiente da casa, criando os filhos e cuidando do lar

enquanto eram sustentadas pelos maridos. Com isso, a Ana do final século XX deixara de ser

a vilã para se tornar num exemplo de heroína trágica para as mulheres de então.

A partir daí, Ana Bolena faz uma entrada triunfal no século XX, celebrizada por uma

porção livros, filmes, séries de TV e peças de teatro. Ultimamente, tem-se verificado um

grande aumento na rede de blogs dedicados a ela e ao período em que vivera. A quantidade de

informações que tem sido veiculada sobre a segunda esposa de Henrique VIII não para de

cessar. É interessante notar que mesmo o rei tendo se empenhado em apagar dos registros a

memória de sua ex-consorte ao mandar destruir retratos, objetos e documentos referentes à

mesma, o fascínio que ela exerce na mente das pessoas, mesmo naquelas que não simpatizam

com sua história, é tanto que ultrapassou as barreiras do tempo, da literatura, do sexo, das

mídias, etc. Vilã ou heroína, é inegável que Ana Bolena fora uma mulher incrível, e a julgar

pelo caminhar das coisas é provável que sua fama esteja longe de chegar ao fim.

257 CHAPMAN, Heste W. The Challenge of Anne Boleyn. New York: Coward, McCann & Geoghegan, 1974.

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Cronologia

1485

- 15 de dezembro: nascimento de Catarina de Aragão

1486

- 19 de setembro: nascimento de Arthur, príncipe de Gales

1491

- 28 de junho: nascimento de Henrique VIII

1501

- 14 de novembro: casamento de Catarina de Aragão com Arthur, príncipe de Gales

- possível ano do nascimento de Ana Bolena

1502

- 2 de abril: morte de Arthur, príncipe de Gales

1509

- 22 de abril: morte Henrique VII aos 52 anos e ascenção de Henrique VIII ao trono, com 17

anos

- 11 de junho: casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão

1513

- provável ano em que Ana Bolena passou a fazer parte da corte de Margaret da Áustria, nos

países baixos, como dama de honra, aos 12 anos

1514

- ano em que Ana Bolena deixou a corte de Margaret da Áustria e passou a integrar o séquito

da princesa Mary Tudor, na França

1515

- Mary Tudor retorna para a Inglaterra e Ana Bolena passa a fazer parte do grupo de damas

de Cláudia de Valois, a nova rainha da França.

1516

- 18 de fevereiro: nascimento da rainha Maria I da Inglaterra, filha de Henrique VIII e

Catarina de Aragão

Page 93: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

93 www.rainhastragicas.com

1520

- de 7 a 23 de junho: Celebrações do “Campo do Tecido de Ouro”

1522

- Ana Bolena retorna para a Inglaterra

- 1° de março: primeira aparição registrada de Ana Bolena na corte no Château Vert

1526

- possível ano em que Henrique VIII se interessou por Ana Bolena

1527

- início da correspondência amorosa entre Henrique VIII e Ana Bolena

- maio: reunião do tribunal inquisitivo ex officio, presidido pelo cardeal Wolsey para discutir a

validade do casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão

1528

- Ana Bolena contrai a doença do suor, mas se recupera

1529

- 31 de maio: a corte legatícia se reúne em Blackfriars Hall para julgar a validade do

casamento de Henrique VIII e Catarina de Aragão

1530

- 29 de novembro: morte do cardeal Wolsey

1531

- 11 de julho: Catarina é banida da corte

1532

- 1 de setembro: Ana Bolena é investida com o título de marquesa de Pembroke

1533

- 25 de janeiro: possível data do casamento secreto de Henrique VIII com Ana Bolena

- 23 de maio: Thomas Cranmer, arcebispo de Canterbury, declara inválido o casamento de

Henrique VIII com Catarina de Aragão

- 28 de maio: Cranmer declara o casamento de Henrique VIII com Ana Bolena válido

- 1° de junho: Ana Bolena é coroada rainha da Inglaterra

- 11 de junho: Henrique VIII é excomungado pelo Papa Clemente VII

- 7 de setembro: nascimento da princesa Elizabeth

Page 94: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

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- 10 de setembro: batizado da princesa Elizabeth em Greenwich

1534

- é aprovado pelo Parlamento o “Ato de Sucessão”

- possível aborto de Ana Bolena

1535

- 22 de junho: execução do bispo Jonh Fisher

- 6 de julho: execução de Sir Thomas More

1536

- 7 de janeiro: morte de Catarina de Aragão, aos 50 anos

- 29 de janeiro: Ana Bolena aborta um filho

- 2 de maio: Ana Bolena é presa na Torre de Londres

- 12 de maio: julgamento de Norris, Weston, Brereton e Smeaton

- 15 de maio: julgamento de Ana e George Bolena

- 17 de maio: execução de Norris, Weston, Brereton, Smeaton e George

- 19 de maio: execução de Ana Bolena

- 20 de maio: Henrique VIII fica noivo de Jane Seymour

- 30 de maio: casamento de Henrique VIII e Jane Seymour

- 1° julho: Elizabeth é declarada bastarda

1537

- 12 de outubro: nascimento do príncipe Edward

- 24 de outubro: Jane Seymour morre de febre puerperal

1540

- 28 de julho: execução de Thomas Cromwell

1543

- junho: Maria e Elizabeth são readmitidas na linha de sucessão

1547

28 de janeiro: morte de Henrique VIII, aos 55 anos

20 de fevereiro: Edward é coroado rei da Inglaterra, aos 9 anos

1553

- 20 de julho: Maria é coroada rainha da Inglaterra

1558

Page 95: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

95 www.rainhastragicas.com

- 17 de novembro: morte de Maria I, aos 42 aos e ascenção de Elizabeth I ao trono

1559

- 15 de janeiro: coroação de Elizabeth I

1603

- 24 de março: morte de Elizabeth I, aos 69 anos

Page 96: Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor

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1.3 – Sites

2 http://rainhastragicas.com/ acesso em 09 de dezembro de 2013.

3 http://tudorbrasil.wordpress.com/ acesso em 09 de dezembro de 2013.

4 http://boullan.org/ acesso em 09 de dezembro de 2013.

5 http://onthetudortrail.com/Blog/ acesso em 09 de dezembro de 2013.

6 http://tudorhistory.org/ acesso em 09 de dezembro de 2013.