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Discursos de ódio na internet: uma análise sobre a marginalidade dos corpos negros Huri Paz1 Pedro Meirelles2 Palavras-chave: Discurso de ódio, Racismo, Análise de comentários
Resumo: O presente artigo pretende realizar uma análise dos comentários de uma notícia veiculada pelo G1 (Portal de notícias Globo), que cita o caso de um adolescente negro que foi agredido e preso a um poste no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2014 e que, após este episódio, foi apreendido por cometer um assalto. Através da perspectiva da mídia como formadora de representações e de produção de signos sociais estigmatizantes, pretendo fazer uma construção histórica para entender quais são as bases que possibilitam a construção de discursos de ódio racistas e desumanizantes da figura deste adolescente negro, enquanto um inimigo público que precisa ser eliminado do convívio social e que é despido de todas as categorias sociais que o tornam um cidadão pleno de direitos vivendo em uma democracia.
Introdução
Em 3 fevereiro de 2014, um adolescente negro, de 15 anos, foi agredido,
despido e amarrado a um poste num bairro de classe média alta do Rio de Janeiro,
Flamengo. Acompanhado de mais três amigos (que conseguiram fugir), o jovem foi
abordado por cerca de 30 homens que chegaram até ele em motos e vestindo
camisetas de uma academia local. Durante a agressão, os autores acusaram os
garotos de serem os responsáveis por furtos a bicicletas que estavam acontecendo no
bairro. Em seu depoimento, ainda revela que foi amarrado com uma corrente de
bicicleta ao poste para que os agressores pudessem tentar capturar o restante do
grupo e só foi solto depois que o corpo de bombeiros chegou ao local.3
O objetivo deste artigo é analisar os comentários desta notícia e entender qual
foi o processo de formação histórico-social brasileiro que possibilitou que pessoas
negras sejam vistas como seres sociais que têm a vida, o bem-estar e as expressões
culturais como menos importantes do que pessoas brancas, a fim de compreender a
estrutura racista que permeia as relações sociais com pessoas negras na
contemporaneidade.
1 Graduando em Sociologia pela UFF - Universidade Federal Fluminense, email: [email protected] 2 Bacharel em Estudos de Mídia pela UFF - Universidade Federal Fluminense, email: [email protected] 3 Notícia disponível em: <https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/rapaz-preso-a-poste-diz-a-policia-ter-sido-atacado-por-30-homens-06022014>. Acesso em: 15/05/2018
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Arendt (1966) aponta que os europeus, ao encontrarem os povos africanos
integrados com a natureza, os enxergavam como selvagens. Estes seriam, por assim
dizer, seres humanos naturais, que carecem do caráter específico humano, da
realidade humana, de tal forma que, “quando os europeus os massacraram, de alguma
forma não tinham consciência de que haviam cometido assassinato” (idem, p. 192).
Portanto, enxergando a contemporaneidade como constituída dessas heranças
históricas e, além disso, enxergando o atual Estado democrático brasileiro como a
continuação da coroa portuguesa - que possibilitou e movimentou o colonialismo em
território brasileiro -, podemos enxergar, através de discursos e ações, as raízes que
estruturam a sociedade brasileira e que têm o racismo e a desigualdade racial como
estruturantes e estruturados (CARNEIRO, 2005).
Moore (2015, p. 2) afirma que o racismo se constitui como uma
consciência/estrutura que executa “funções multiformes, totalmente benéficas para o
grupo, que, por meio dela, constrói e mantém um poder hegemônico em relação ao
restante da sociedade”. Um estudo feito em 2017 pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) com a Fundação João Pinheiro (FJP) e com o Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) aponta que a renda média de Negros no Brasil
é a metade da renda média de Brancos. Como afirma Quijano (2002), durante o
colonialismo, pessoas brancas são enxergadas como dignas de receber um salário em
troca de sua força de trabalho, enquanto pessoas negras e indígenas eram enxergadas
como seres que tinham como propósito de vida servir aos brancos e não obter um
retorno financeiro pelos seus esforços. Isso se reflete na maneira com que a coroa
portuguesa concedeu a liberdade aos escravos mas não se preocupou com a sua real
integração com a sociedade, fazendo que pessoas negras não tivessem outra opção se
não a marginalidade social.
Portanto, é importante entender como os constructos sociais como a raça negra,
a partir da perspectiva colonial apresentada por Quijano, ajuda-nos a entender a base
na qual está estruturada a gritante desigualdade racial-econômica no Brasil.
O negro no Brasil pós-abolicionista
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Mesmo com o fim da escravidão no Brasil, em 13 de Maio de 1888, a visão de
que negros eram cidadãos de segunda classe e desprovidos de voz, agência e de
direitos não foi superada. O trabalho de Silva (2015) constata que no período de 1879-
1884, foram noticiados como crimes: cantorias, bebedeiras e “feitiçaria” nos jornais
Mercantil e Gazeta de Porto Alegre. Como resultado, para dizer quem era o cidadão, o
homem de bem e a moça de família, recorria-se à imagem do outro. Hoje a cidadania é
apresentada como um processo de inclusão total, em que todos são cidadãos com
direitos políticos, sociais e civis, mas, na verdade, o conceito de cidadania foi criado em
meio a um processo de exclusão onde a cultura e os corpos negros eram
representados como o oposto ao que seria considerado como bom e representante dos
bons costumes.
Isso inclui, por parte do poder público, a perseguição das expressões da cultura
negra como o batuque, o samba e os cultos de religiões de matriz africana, criando
assim, um não-lugar, onde, apesar de estarem livres, pessoas negras são forçadas a
se adaptarem aos valores culturais brancos e europeus, não podendo expressar e
construir, através de suas próprias tradições, sua identidade. Sobre esse contexto,
Mbembe (2003, p.10) aponta: “a condição de escravo resulta de uma tripla perda:
perda de um ‘lar’, perda de direitos sobre seu corpo e perda de status político”, uma
perda tripla que “equivale a dominação absoluta, alienação ao nascer e morte social
(expulsão da humanidade de modo geral)”.
O papel dos jornais na representação do negro na mídia
Um autor que nos ajuda a pensar a importância do jornal na construção de
estigmas numa sociedade é Chartier (1990): para ele, os jornais exercem o poder de
produzir as representações do real e são sempre determinadas pelos interesses de
grupos que as forjam. E continua:
Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem utiliza. As percepções do social não são, de forma alguma, discursos neutros:produzem estratégias e práticas(sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas [...] (CHARTIER, 1990, p. 17).
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Utilizando-se de todas essas fontes e construções históricas sobre a população
negra brasileira, podemos começar a analisar os comentários de uma notícia4 do G1
(Portal de notícias Globo) que noticia o caso do adolescente que foi agredido e preso a
um poste no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2014 e que, após
este episódio, foi preso por cometer um assalto. Entende-se a análise de comentários
desta notícia como um importante meio para se verificar as novas formas de expressão
do racismo, já que, conforme aponta Lima et al. (2004. p. 8):
É como se o preconceito fosse um vírus latente ou adormecido, que corrói os tecidos sociais com violência discreta quando a norma da igualdade está saliente, mas que, quando encontra uma norma social qualquer que justifique a sua expressão mais virulenta, explode em fanatismo nacionalista e xenófobo.
Outro ponto que faz com que a análise do racismo propagado na internet através
de comentários e outras expressões seja importante é a sensação de que esta se
constitui como um campo sem lei, onde não há punições para o que se expressa.
Outros trabalhos com o de Pinto (2016) utilizam os comentários da rede social
Facebook para analisar o caso de um adolescente que teve sua testa tatuada com a
frase “sou ladrão e vacilão” após ser pego roubando. Com a aprovação de aparatos
estatais de combate ao racismo como a Lei Nº 7.716, que torna o racismo um ato
criminoso, se faz imperioso entender as novas formas de expressão do racismo, já que,
como já apontado por Carneiro (2005), o racismo se constitui como estrutural em nossa
sociedade, demandando ações que vão muito além da punição por expressões
racistas, mas ações que humanizem corpos negros e que entendam a sociedade
brasileira como verdadeiramente plural, ações que façam com que cidadãos
enxerguem a diferença racial e cultural não como ameaça, mas como constituintes da
formação de uma sociedade democrática.
Os comentários em análise: metodologia e resultados
4 Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/02/menor-agredido-e-preso-poste-e-detido-no-rio-apos-assaltar-turista.html>. Acesso em: 11/05/2018
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Um dos maiores desafios deste trabalho era dar conta dos mais de 3.000
comentários que a notícia registra. Como método alternativo a uma análise de
conteúdo que enquadrasse os comentários em determinadas categorias conceituais
(um trabalho exaustivo e que exigiria certo pragmatismo analítico impróprio à
subjetividade do tema), optamos por utilizar um software de linguística computacional
para encontrar as nuances e os padrões discursivos que se fizeram presentes na
seção de comentários. Após a coleta manual de todos os comentários, portanto,
processamos os dados no programa WORDij (DANOWSKI, 2010),
A aplicação WordLink faz uma análise da co-ocorrência entre termos para
produzir uma lista de palavras mais frequentes, uma lista de pares de palavras mais
frequentes e uma rede de conexão entre as palavras. O método aqui aplicado,
portanto, segue os passos de Yuan et. al (2013, p. 5) ao mapear “a relação entre
palavras indexando os pares de conceitos”, produzindo uma análise de rede semântica
que “revela a estrutura de sentido manifestada no texto e indiretamente representa a
estrutura cognitiva do coletivo dentre os criadores do texto”. Sobre a legitimidade dessa
metodologia, os autores (id., ibid.) pontuam:
A análise de rede semântica tem sua origem na literatura da ciência cognitiva, que argumentava que existe um sistema de sentido estrutural na memória humana (Collins & Quillian, 1972). Em consonância, teóricos de redes semânticas argumentam que a frequência, co-ocorrência e distância entre as palavras e os conceitos permitem que os pesquisadores explorem os sentidos incorporados no texto (Danowski, 1993; Doerfel, 1998).
O resultado da rede, após devido tratamento no software Gephi, está
apresentado na Figura 1 abaixo. Essa é composta por nós (neste caso, os termos mais
frequentes nos comentários) e por laços (neste caso, as conexões de co-ocorrência
identificadas pelo WordLink). No layout selecionado para a composição do grafo
(ForceAtlas2), os nós mais conectados são distribuídos ao centro da rede e os nós
menos conectados aparecem às margens. Os tamanhos dos nós são proporcionais à
quantidade de conexões que ele estabelece na rede, e a aproximação entre as
palavras se dá pela intensidade de conexão entre si.
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Figura 1 – Rede completa dos comentários da notícia. Fonte: Os autores.
Os termos “casa”, “direitos humanos”, “sociedade”, “bandido” e “poste” estão em
destaque devido à quantidade de conexões que possuem com toda a rede - ou seja,
são as palavras com maior frequência de co-ocorrência. Para aprofundar a nossa
análise, entretanto, o cálculo de modularidade - algoritmo matemático que identifica
grupos conectivos mais coesos entre si - fez-se necessário para a classificação dos
clusters, que são subconjuntos de nós com mais conexões entre si do que com o
restante da rede. Na nossa análise, identificamos oito clusters que classificamos como
discursos semânticos frequentes: punitivismo, justiça e cidadãos de bem, o papel do
Estado, direitos humanos, Yvone Bezerra Mello, maioridade penal e vira-latismo.
No cluster lilás (Figura 2), referente a uma ideia de punitivismo, palavras como
“poste”, “matar”, “menor”, “prender”, “preso”, “adianta”, “matado”, “amarrado”, “roubar”,
“jovens” são as mais frequentes. Já no cluster verde, em discurso sobre a ineficiência
da justiça para proteger cidadãos de bem, são termos frequentes: “pessoas”, “bem”,
“bandidos”, “justiça”, “povo”, “mãos”, “roubando”, “policiais”, “autoridades”, “bacana”. No
cluster azul, entretanto, uma contra-argumentação às duas primeiras linhas de discurso
questionam o papel do estado, com palavras como “sociedade”, “educação”, “pobre”,
“governo”, “estado”, “culpa”, “vítima”, “menino”, “filho”.
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Figura 2 – Cluster de punitivismo (azul) e justiça brasileira (lilás). Fonte: Os autores.
A Figura 4 evidencia a conexão entre o cluster rosa e laranja, ambos em
discursos reacionários e opositores ao senso comum sobre os Direitos Humanos: o
primeiro mais abrangente, com termos como "bandido", "direitos", "humanos",
"marginal", "cadê", "defensores", "adote"; e o segundo mais específico, referente à
artista plástica que se posicionou em defesa do jovem - por isso as palavras "casa",
"artista", "yvone", "plástica", "leva", "comida", "manda". Já na Figura 5, três clusters
dialogam entre si num senso de vira-latismo em comum, com palavras como “"nada",
"país", "faz", "problema", "aqui", "menores", "crimes", "nesse", "mudar", "lei".
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Figura 3 – Clusters da narrativa contra os Direitos Humanos. Fonte: Os autores.
Figura 4 – Clusters do discurso vira-lata sobre o Brasil. Fonte: Os autores.
Por fim, a Figura 5 traz os últimos dois clusters identificados, que se referem à
esfera social e midiática da notícia: a discussão sobre a maioridade penal (à direita,
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palavras como "penal", "anos," idade", "maioridade", "redução", “maior”, “trabalho”,
“senado”), em intenso debate na sociedade brasileira à época; e atores midiáticos que
fizeram parte dessa discussão, como Joaquim Barbosa, Jair Bolsonaro e Rachel
Sheherazade ("rachel", "benedita", "presidente", "bolsonaro", "jornalista", “sbt”,
“criticaram”, “certa”).
Figura 5 – Clusters da repercussão midiática e social da notícia. Fonte: Os autores.
As redes semânticas identificadas na nossa análise nos fornecem insumos
relevantes para pontuar quais são as linhas de discurso que os comentários seguem
em resposta à notícia. Em consonância com Yuan et. Al (2013, p.5), argumentamos
que “as dimensões emergentes da rede não são categorias com limites fixos, mas
áreas nas quais identificamos padrões únicos em detalhe”. Desta forma, conseguimos
“mapear a tipografia da rede discursiva”, facilitando a descoberta de temáticas,
argumentos e retóricas relevantes para a nossa discussão.
Os engendramentos do racismo nos comentários desta notícia
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Figura 6 – Comentários citam controle de natalidade e culpabilizam o bolsa família. Fonte: Portal
de Notícias Globo (G1)
Figura 7 – Comentário citando a mãe do adolescente Fonte: Portal de Notícias Globo (G1)
Ao analisar este comentário, conseguimos perceber o quanto existe um
apontamento, implícito, para a figura de uma mulher negra. O uso do indicativo “essas”
não é à toa, ele estabelece que existe uma diferença entre a mulher que fala e as
mulheres que o comentário indica. Conforme aponta Vilma Reis (2005 p.49):
Qualquer entendimento dos discursos de criminalização de jovens-homens-negros passa pela leitura do que se pensa a sociedade sobre mulheres negras, pois são a elas que se imputa a culpa pelo nascimento, em grande medida, a responsabilidade legal de uma geração, que o conservadorismo considera “indesejada”.
A pauta e a luta de alguns setores da sociedade para ditar a reprodução de
mulheres negras não é nova. O movimento feminista negro enfrentou questões como
essa durante as décadas de 1980 e 1990, as denúncias eram de que políticas de
controle de natalidade teriam como alvo principal a população negra no país. Mariana
Damasco (2012) mostrou em seu artigo que agentes do Estado também
compactuavam com essa ideia.
Outro ponto importante que merece ser analisado é o Programa Bolsa Família
(PBF), citado no comentário. O PBF consiste na transferência monetária direta às
famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza que, por outro lado, são
obrigadas a contribuir cumprindo com as condicionalidades do programa, como uma
presença escolar satisfatória de crianças e adolescentes, cumprimento do calendário
de vacinações, entre outros.
Das 14 milhões de famílias beneficiárias do PBF, 73% são de negros e pardos.
E 68% delas são chefiadas por mulheres negras, segundo dados do Ministério do
Desenvolvimento Social. O PBF se coloca como uma importante ferramenta para a
promoção da cidadania para parcelas mais pobres da população brasileira, pois, para
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além da transferência direta de renda, ele está articulado com outros programas sociais
que visam aumento do acesso à educação, saúde e assistência social.
Figura 8 – Comentário incitando o enforcamento e longa exposição ao sol. Fonte: Portal
de Notícias Globo (G1)
Figura 9 – Comentário incitando métodos de tortura ao adolescente. Fonte: Portal de Notícias
Globo (G1)
Figura 10 – Comentário incitando chicotadas ao adolescente. Fonte: Portal de Notícias Globo (G1)
Os comentários acima têm em comum a forma desumana com que o corpo e a
vida de um adolescente negro é tratado. Conforme exposto anteriormente, as
dinâmicas das relações sociais são totalmente atravessadas por esta hierarquização
racial. Enforcamentos, longas exposições ao sol e a marcação na pele com ferro
quente eram práticas utilizadas por senhores de engenho para punir escravos que
tentavam fugir ou usar como exemplo de sua força contra corpos negros5. Conforme
articula Borges (2018. p.62):
O discurso político não se estabelece no abstrato, mas sobre corpos. O sujeito coletivo é construído de modo subalterno por estas práticas políticas e discursivas. Neste sentido, afeta o corpo não apenas o biológico, mas o
5 Conforme articula Soares (2007 p.232), a morte, por enforcamento, geralmente eram condenados os escravos que assassinavam os senhores, os familiares destes e os feitores, ou que ainda se envolviam ativamente em rebeliões. Os enforcamentos continuavam a ter uma função exemplar e preventiva para o conjunto dos cativos. Estes eram realizados em patíbulos, montados exclusivamente para estes atos, nas principais praças da cidade, depois do sentenciado ter sido conduzido pelas ruas, por uma escolta de soldados, a toque de caixa para atrair a multidão.
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religioso, o moral, a classe, o gênero, etc. O corpo também, portanto, é um espaço de ideologia.
Para Reis (2005), é no corpo que se inscrevem marcas profundas e
emblemáticas de representações negativas do negro. Para garantir o controle desses
corpos foi, então, aplicada a “pedagogia do medo”, na qual a punição, o
constrangimento, a violência e a coerção fora impingida para que se estabelecesse
explicitamente a mensagem de qual lugar negros e negras teriam na sociedade
baseada nestas hierarquizações.
É possível enxergar na contemporaneidade e através da ótica dos comentários
acima expostos, que a forma de tratar o corpo negro através da violência e do cárcere
persiste. Tomando como perspectiva a forma com que corpos e expressões de
pessoas negras foram interpretados ao longo da história brasileira, fica mais fácil de
compreender como discursos, como os dos comentários acima expostos, são ditos
com tanta naturalidade e como o próprio ato de linchar, violentar psicologicamente e
amarrar ao poste um adolescente negro, é visto e legitimado como uma maneira de se
enfrentar o problema da violência no Brasil e da ineficiência do Estado em ressocializar
adultos, jovens e crianças infratoras.
Figura 11 – Comentário recomendando trabalhos servis ao adolescente. Fonte: Portal de Notícias
Globo (G1)
Figura 12 – Comentário citando o trabalho árduo de europeus no Brasil. Fonte: Portal de Notícias
Globo (G1)
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Conforme aponta Santos (2016. p.36-37), o racismo pode ser verificado
historicamente nas leis brasileiras em diversos momentos:
Durante o período de 1888 a 1914 houve auxílios financeiros, aberturas de créditos, concessão de passagens no objetivo de impulsionar a migração. Conclui o autor que aproximadamente 2,5 milhões de portugueses, italianos, alemães, espanhóis, austríacos, japoneses tiveram a oportunidade de se emancipar no país ao contrário de mulheres e homens negros que não tiveram este direito. Os crimes raciais e sexistas do nosso Estado também se respaldaram na instituição de leis para dificultar qualquer tentativa da população negra em sobrepujar a nova exclusão instaurada após a extinção do trabalho escravizado.
Portanto, se constitui uma falácia dizer que a atual desigualdade social entre
brancos e negros no Brasil se dá pela via individual, como se pessoas negras fossem
preguiçosas e escolhessem viver em situações de marginalidade social. A abolição da
escravatura foi um longo processo que culminou com a Lei Áurea, entretanto, a
abolição não foi feita em sintonia com políticas sociais que combatessem o racismo e
que possibilitassem uma reparação pelo tempo de escravidão nem de inserção social
dessas pessoas libertas, pelo contrário, como mostrado acima, a mão de obra escrava
foi trocada pela mão de obra branca, europeia e asiática, tendo como objetivo o
branqueamento do Brasil.
Isso se mostra claramente no comentário da Fig. 11, onde se naturaliza que o
adolescente em questão desempenhe os trabalhos de recolher e vender papelão e
latinhas na rua, mostrando que a imagem que ele tem deste adolescente negro é numa
posição de servidão, onde o dinheiro que ele receberá, através desse trabalho, será o
suficiente apenas para garantir sua sobrevivência, não servindo como ferramenta de
ascensão social.
Resgatando aqui a discussão sobre o Programa Bolsa Família - PBF, como
mostrado por REGO et al (2013), existe um predomínio da visão liberal na sociedade
brasileira, que conduziu à histórica culpabilização dos pobres pelo seu insucesso em
conseguir ascender socialmente e passar a adquirir bens de consumo, com isso,
atribuiu-se estereótipos pejorativos e racistas, como o do negro preguiçoso. O PBF,
como desenvolvido pelos autores, é importante do ponto de vista que transfere a
responsabilidade da desigualdade social e econômica para o Estado, faz com que a
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dívida social com os setores mais pobres da sociedade, majoritariamente negro, seja
reconhecido a nível estatal.
Considerações finais
O presente artigo se propôs a analisar as construções históricas que sustentam
os discursos de ódio racistas encontrados na notícia analisada. Mesmo que sejam
comentários que não são, diretamente, um ataque à raça e à cultura negra, atualmente
as pessoas expressam estas atitudes de forma indireta para não serem condenadas
pelas convenções morais. No entanto, como demonstrado, a forma com que corpos
negros eram vistos e castigados durante a escravidão no Brasil continua permeando a
forma como os justiceiros olharam para o adolescente que foi espancado e preso ao
poste e a forma com que os comentários que incitam o ódio e a violência se constroem.
O resgate histórico como perspectiva para analisar esses comentários se faz
importante no sentido de que permite-nos entender como o corpo negro passou por
diversos processos de desumanização que possibilitaram tamanha violência infligida
aos seus corpos e a sua cultura. Analisar estas heranças se faz mister para entender
como os altos índices de assassinato de jovens negros e de mulheres negras no Brasil
não geram políticas públicas efetivas de combate a esses índices. E esse
silenciamento, por parte do Estado e seus agentes, mostra as consequências de
termos uma sociedade que é permeada pelos estereótipos negativos relacionados a
esses jovens e a territórios periféricos.
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