winnicott - o Ódio na contratransferencia

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276 D. W. WINNICOn época do nascimento pode ser fortalecida pelas experiências, mesmo que se trate de uma reação à intrusão, desde que esta não dure tempo demais. Duas intrusões, no entanto, exigem duas reações, e isto corta a psique em duas. O esforço do ego que descrevi acima é uma tentativa de manter as intrusões a distância por meio da atividade mental, permitindo que as reações a elas se dêem uma de cada vez sem ocorrer a desorganização da psique. Tudo isto pode ser muito claramente demonstrado no tratamento analítico, desde que sejamos capazes de seguir o paciente para trás no desenvolvimento emocio- nal tanto quanto ele precisa ir, pela regressão à dependência, a fim de alcan- çar ó momento anterior àquele em que as intrusões tornaram-se múltiplas e impossíveis de controlar. Por fim, repito que não existe anál ise baseada exclusivamente no trata- mento do trauma do nascimento. Para chegar a esses estágios primitivõs,é preciso que tenhamos mostrado ao paciente a nossa competência em todo o espectro da compreensão psicanalítica comum. E mais: quando um paciente que esteve inteiramente dependente começa a progredir novamente, será ne- cessário que o analista compreenda muitíssimo bem a posição depressIva,-e- também o desenvolvimento gradual rumo à primazia do genital, bem como da dinâmica dos relacionamentos interpessoais, tanto quanto o anseio por al- cançar a independência a partir da dependência. Capítulo XV o Ódio na Contratransferência (1947Y NO PRESENTE TRABALHO, gostaria de examinar um dos aspectos do tema ambivalência, a saber, o ódio na contratransferência. Creio que a tarefa do analista (chamemo-Ia analista pesquisador) que assume a análise de um psi- cótico é intensamente afetada por esse fenômeno, e que a análise de pacien- tes psicóticos revela-se impossível a não ser que o ódio do próprio analista esteja muitíssimo discernível e consciente. Isto equivale a dizer que o analis- ta deve ser ele mesmo analisado, mas implica também em afirmar que a aná- . . lise de um psicótico é irritante, se a compararmos com a de um neurótico, e que isto lhe é inerente. O manejo de um psicótico é inevitavelmente irritante, e aqui não me re- firo ao tratamento psicanalítico. De tempos em tempos tenho feito críticas contundentes às atuais tendências da psiquiatria, com seus choques elétricos fáceis demais e suas leucotomias drásticas demais (Winnicott, 1947, 1949). Justamente em razão dessas críticas por mim expressas, gostaria de ser o pri- meiro a reconhecer a extrema dificuldade inerente ao trabalho do psiquiatra, e especialmente da enfermagem psiquiátrica. Os pacientes insanos repre- sentam sempre uma pesada carga emocional para os que deles cuidam. De- vemos perdoar aos que se envolvem com esse tipo de trabalho por fazerem coisas horríveis. Isto não significa, todavia, que devemos aceitar qualquer coisa que os psiquiatras e os neurocirurgiões façam como sendo legítimas do ponto de vista da ciência. Portanto, ainda que a presente reflexão refira-se à psicanálise, ela é ver- dadeiramente importante para o psiquiatra, mesmo para aquele cujo traba- Baseado num trabalho apresentado à British Psycho-Analytical Society em 5 de fevereiro de 1947. Publicado no Int. J of Psycho-Analysis, vol. XXX, 1949.

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  • 276 D. W. WINNICOn

    poca do nascimento pode ser fortalecida pelas experincias, mesmo que setrate de uma reao intruso, desde que esta no dure tempo demais. Duasintruses, no entanto, exigem duas reaes, e isto corta a psique em duas. Oesforo do ego que descrevi acima uma tentativa de manter as intruses adistncia por meio da atividade mental, permitindo que as reaes a elas sedem uma de cada vez sem ocorrer a desorganizao da psique. Tudo istopode ser muito claramente demonstrado no tratamento analtico, desde quesejamos capazes de seguir o paciente para trs no desenvolvimento emocio-nal tanto quanto ele precisa ir, pela regresso dependncia, a fim de alcan-ar momento anterior quele em que as intruses tornaram-se mltiplas eimpossveis de controlar.

    Por fim, repito que no existe anl ise baseada exclusivamente no trata-mento do trauma do nascimento. Para chegar a esses estgios primitivs,preciso que tenhamos mostrado ao paciente a nossa competncia em todo oespectro da compreenso psicanaltica comum. E mais: quando um pacienteque esteve inteiramente dependente comea a progredir novamente, ser ne-cessrio que o analista compreenda muitssimo bem a posio depressIva,-e-tambm o desenvolvimento gradual rumo primazia do genital, bem comoda dinmica dos relacionamentos interpessoais, tanto quanto o anseio por al-canar a independncia a partir da dependncia.

    Captulo XV

    o dio na Contratransferncia(1947Y

    NO PRESENTE TRABALHO, gostaria de examinar um dos aspectos do temaambivalncia, a saber, o dio na contratransferncia. Creio que a tarefa doanalista (chamemo-Ia analista pesquisador) que assume a anlise de um psi-ctico intensamente afetada por esse fenmeno, e que a anlise de pacien-tes psicticos revela-se impossvel a no ser que o dio do prprio analistaesteja muitssimo discernvel e consciente. Isto equivale a dizer que o analis-ta deve ser ele mesmo analisado, mas implica tambm em afirmar que a an-. .lise de um psictico irritante, se a compararmos com a de um neurtico, eque isto lhe inerente.

    O manejo de um psictico inevitavelmente irritante, e aqui no me re-firo ao tratamento psicanaltico. De tempos em tempos tenho feito crticascontundentes s atuais tendncias da psiquiatria, com seus choques eltricosfceis demais e suas leucotomias drsticas demais (Winnicott, 1947, 1949).Justamente em razo dessas crticas por mim expressas, gostaria de ser o pri-meiro a reconhecer a extrema dificuldade inerente ao trabalho do psiquiatra,e especialmente da enfermagem psiquitrica. Os pacientes insanos repre-sentam sempre uma pesada carga emocional para os que deles cuidam. De-vemos perdoar aos que se envolvem com esse tipo de trabalho por fazeremcoisas horrveis. Isto no significa, todavia, que devemos aceitar qualquercoisa que os psiquiatras e os neurocirurgies faam como sendo legtimas doponto de vista da cincia.

    Portanto, ainda que a presente reflexo refira-se psicanlise, ela ver-dadeiramente importante para o psiquiatra, mesmo para aquele cujo traba-

    Baseado num trabalho apresentado British Psycho-Analytical Society em 5 de fevereiro de1947. Publicado no Int. J of Psycho-Analysis, vol. XXX, 1949.

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    lho jamais o leva a estabelecer um relacionamento do tipo analtico com os _seus pacientes.

    A fim de ajudar aos que praticam a psiquiatria geral, o psicanalista deveestudar os estgios primitivos do desenvolvimento emocional do indivduoenfermo, mas deve estudar tambm.a natureza da carga emocional que recaisobre o psiquiatra ao fazer o seu trabalho. O que ns 'psicanalistas chamamosde contratransferncia algo que precisa ser compreendido tambm pelospsiquiatras. Por mais que estes amem os seus pacientes, no podem evitarodi-los e tem-los, e quanto melhor eles o souberem mais difcil ser para omedo e o dio tomarem-se os motivos determinantes do modo como eles tra-tam esses pacientes.

    possvel classificar os fenmenos contratransferenciais da seguinte'maneira: .

    1. Anormalidade nos sentimentos contratransferenciais, e relacionamentos eidentificaes padronizados e reprimidos do analista. O comentrio a esse res-

    , peito o de que o analista precisa de mais anlise, e costumamos acreditar quetrata-se de um problema menos grave entre os psicanalistas do que entre os psi-coterapeutas em geral.

    2. As identificaes e tendncias oriundas da experincia e do desenvolvimentopessoal do analista, que fornecem as bases positivas do seu trabalho analtico etornam esse trabalho diferente do de outros analistas.

    3. Destes dois tipos de fenmeno eu distingo a contratransferncia verdadeira-mente objetiva ou, se isto for dificil, o amor e o dio do analista em reao personalidade e ao comportamento reais do paciente, com base numa observa-o objetiva.

    Sugiro que se um analista prope-se a analisar pacientes psicticos ouanti -sociais ele deve estar to profundamente consciente de sua contratrans-ferncia, que lhe seria possvel identificar e examinar as suas reaes objeti-vas ao paciente. Estas incluiro o dio. Fenmenos contratransferenciaisrepresentaro, em certos momentos, o elemento central da anlise.

    Gostaria de sugerir que o paciente reconhece no analista apenas o queele mesmo capaz de sentir. Quanto s motivaes: um obsessivo tender apensar que o analista faz o seu trabalho de modo obsessivamente vazio. Umhipomaniaco, incapaz de sentir-se deprimido a no ser por uma guinada ex-tr~ma do humor, e em cujo desenvolvimento emocional a posio depressi-va no foi alcanada com toda a solidez, no sendo portanto capaz de sentirculpa, responsabilidade e concernimento de modo profundo, no conseguirperceber que o trabalho do analista tem por objetivo fazer reparaes a

    DA PEDIATRIA A PSICANLISE

    respeito de seus prprios sentimentos de culpa (do analista). Um paciente neu-rtico tender a ver no analista uma ambivalncia em relao a ele (paciente),e a esperar por uma ciso entre o amor e o dio do analista. Esse paciente, se ti-ver sorte, recebe o amor porque alguma outra pessoa est recebendo o dio.Assim sendo, no bvio que se um paciente psictico encontra-se num esta-do de 'amor e dio coincidentes' ele ter a profunda convico de que o analis-ta s capaz de relacionar-se com ele a partir desse mesmo fenmeno brutal eperigoso de 'amor e dio coincidentes'? Neste caso, se o analista demonstraramor ele certamente matar o paciente no mesmo instante.

    A coincidncia de amor e dio algo que sempre aparece caracteristica-mente na anlise de psicticos, dando margem a problemas de manejo quepodem facilmente exigir do analista mais do que ele pode dar. Essa coinci-dncia de amor e dio qual me refiro algo distinto da agressividade quecomplica o impulso do amor primitivo, e implica em que na histria dessepaciente ocorreu um fracasso do ambiente poca dos primeiros impulsosinstintivos em busca do objeto.

    Se for inevitvel que ao analista sejam atribudos sentimentos brutais, melhor que ele esteja consciente e prevenido, pois lhe ser necessrio tolerarque o coloquem nesse lugar. Acima de tudo ele no deve negar o dio querealmente existe dentro de si. O dio que legtimo nesse contexto deve serpercebido claramente, e mantido num lugar parte para ser utilizado numafutura interpretao.

    A fim de nos tornarmos capazes de analisar pacientes psicticos, deve-mos alcanar em nossas anlises os nveis mais primitivos em ns mesmos, eeste apenas mais um exemplo de que as respostas para muitos problemasobscuros da prtica psicanaltica encontram-se na anlise adicional do psi-canalista. (A pesquisa em psicanlise seria, talvez, em algum grau, uma ten-tativa do analista de levar a sua prpria anlise a um nvel mais profundo queaquele que lhe foi possibilitado pelo seu analista.)

    Uma das tarefas mais importantes na anlise de qualquer paciente a de'manter a objetividade em relao a tudo aquilo que o paciente traz, e um casoespecial desse tema a necessidade de o analista ser capaz de odiar o pacien- 'te objetivamente.

    E no que realmente existem muitas situaes em nosso trabalho nor-mal nas quais nosso dio se justifica? Durante vrios anos senti que um demeus pacientes, um obsessivo muito grave, era praticamente insuportvel.Eu me sentia muito mal em relao a isto at que a anlise deu uma guinada epassou a ser possvel gostar dele, e entoeu me dei cont de que o fato de queera impossvel sentir amor por ele era na verdade um sintoma inconsciente-

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    mente determinado. Foi realmente um dia maravilhoso para mim, quandopude contar a ele (muito tempo depois) que eu e seus conhecidos o detest-vamos, mas que ele estava muito doente para que lhe dissssemos isso. Essedia foi importante para ele tambm, representando um tremendo avano emseu ajustamento realidade'.

    Nas anlises mais comuns no dificil para o nalista administrar o seuprprio dio. Esse dio mantm-se latente. O ponto importante aqui, obvia-mente, que atravs de sua prpria anlise o analista tenha se livrado de am-plos estoques de dio inconsciente pertencente ao passado e aos seus conflitosinternos. H outras razes pelas quais o dio permanece oculto e mesmo des-percebido enquanto tal:

    A psicanlise a profisso que escolhi, o modo pelo qual posso lidar me-lhor com a minha prpria culpa, atravs dela que posso expressar-me damaneira mais construtiva.Sou pago, ou estou em formao a fim de conquistar um lugar na sociedadeatravs do meu trabalho psicanaltico.Estou fazendo descobertas.Tenho gratificaes imediatas ao identificar-me com meu paciente que estmelhorando, e espero gratificaes ainda maiores no futuro, quando o trata-mento terminar.Alm do mais, enquanto analista, eu tenho meios de expressar meu dio. Odio expresso pela existncia do final da 'sesso'.

    Acredito que isto verdade mesmo quando no ocorre dificuldade algu-ma e o paciente fica contente em ir embora. Em muitas anlises tudo isto bvio, e portanto poucas vezes mencionado, e o trabalho da anlise se fazpor meio de interpretaes verbais da transferncia que emerge do incons-ciente do paciente. O analista assume o papel de uma ou outra figura confi-vel da infncia do paciente. Ele fatura o sucesso daqueles que fizeram o tra-balho braal, quando o paciente era um beb.

    Tudo isto faz parte da descrio do trabalho psicanaltico rotineiro, quena maioria dos casos lida com pacientes cuj os sintomas so de natureza neu-rtica. Na anlise de psicticos, porm, o analista est sujeito a uma tensocuja qualidade e dimenso so inteiramente diferentes, e precisamente essa

    . diferena que estou procurando descrever.

    Relembrando: Este trabalho de 1947. Foi s em 1952 que a idia do falso-eu, que pe em ques-to a idia mesma de um "ajustamento realidade", tornou-se clara para Winnicott ("Psicose eCuidados Maternos", apresentado em maro de 1952) (embora em "A Reparao Relativa De-fesa Organizada da Me contra a Depresso", de 1948, j seja possvel vislumbrar seus primr-dias) N.T.

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    Recentemente ocorreu que, durante alguns dias, tive a sensao de estartrabalhando mal. Cometi erros a respeito de cada um de meus pacientes. Adificuldade era minha, e era em parte pessoal, mas estava associada em suamaior parte a um clmax ao qual eu havia chegado com uma de minhas pa-cientes psicticas (de pesquisa). A dificuldade esclareceu-se quando tive umsonho que chamamos de 'curativo'. (Diga-se de passagem que durante a mi-nha anlise e nos anos seguintes ao seu trmino tive uma longa srie dessessonhos 'curativos', que apesar de serem muitas vezes desconfortveis, mar-caram cada um a minha chegada a um novo patamar de desenvolvimentoemocional. )

    Nesse episdio especfico percebi o significado do sonho assim queacordei, ou talvez mesmo antes de acordar. O sonho tinha duas fases. Na pri-meira fase eu estava no alto da galeria de um teatro, olhando para as pessoasna platia muito l embaixo. Senti uma forte ansiedade, como se fosse perderum dos membros. Isto associava-se sensao que tive no alto da Torre Ei-fel, de que se eu pusesse minha mo para fora da amurada ela cairia ao solodistante. Esta seria uma ansiedade de castrao comum.

    Na fase seguinte do sonho percebia que as pessoas na platia estavamassistindo a uma pea, e eu me conectava atravs delas com o que ocorria nopalco. Surgiu um novo tipo de ansiedade. O que eu sabia era que simples-mente no tinha o lado direito do corpo. Este no era um sonho de castrao.Tratava-se da sensao de no ter aquela parte do corpo.

    Quando acordei, percebi que eu havia compreendido num nvel muitoprofundo qual era a minha dificuldade naquele momento especfico. A pri-meira parte do sonho representava as ansiedades comuns que podem surgir arespeito de fantasias inconscientes dos meus pacientes neurticos. Eu corriao risco de perder minha mo ou meus dedos, se esses pacientes viessem a seinteressar por eles. Com esse tipo de ansiedade euj estava acostumado, eera comparativamente tolervel.

    A segunda parte do sonho, porm, referia-se ao meu relacionamentocom a paciente psictica. Essa paciente exigia que eu no me relacionasse demodo algum com seu corpo, nem mesmo na imaginao. Ela no tinha umcorpo reconhecido como seu, e se de algum modo ela existia, era-lhe poss-vel sentir a si mesma apenas como uma mente. Qualquer referncia ao seucorpo provocava ansiedades paranides, porque afirmar que ela tinha umcorpo equivalia a persegui-Ia. O que ela precisava de mim era que eu tivesseapenas uma mente falando com a sua mente. No auge da minha dificuldadena noite anterior ao sonho, eu fiquei irritado e disse a ela que o que ela preci-sava de mim no passava de ninharias. A conseqncia foi desastrosa, e v-

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    rias semanas se passaram at que a anlise recuperou-se do meu erro. O pon~to crucial, entretanto, era o de que eu tinha que compreender a minha prpriaansiedade, e esta estava representada em meu sonho pela ausncia do ladodireito do meu corpo no momento em que tentei entrar em contato com apea que as pessoas da platia assistiam. Esse lado direito do meu corpo era olado que tinha uma ligao com essa paciente especfica, sendo conseqen~.temente afetado por sua necessidade de negar totalmente at mesmo uma re~lao imaginria entre os nossos corpos. A negao estava provocando emmim essa ansiedade de tipo psictico, muito menos tolervel que a ansieda,de de castrao comum. Fossem quais fossem as outras interpretaes cab-.veis a esse sonho, a conseqncia de eu t-lo sonhado e t-lo recordado foi ade me ser possvel retomar essa anlise e fazer com que se recuperasse do'dano causado pela minha irritao, cuja origem era uma ansiedade reativa deum tipo compatvel com esse contato com uma paciente que no tinha corpo ..

    O analista deve estar preparado para suportar a tenso sem esperar que .'!__paciente saiba coisa alguma sobre o que ele est fazendo, talvez por um lon-go perodo de tempo-Para consegui-lo ele deve ter facilidade em dar-se con-"ta de seu medo e de seu dio. Ele se encontra na mesma posio da me -deum beb recm-nascido ou ainda no nascido. Mais cedo ou mais tarde po-der contar ao paciente por que coisas ele passou a fim de ajud-lo (ao pacien-te), mas nem sempre as anlises conseguem chegar a esse ponto. Em certos.. ~casos o paciente teve to poucas experincias positivas em seu passado que

    , no h muito sobre o que trabalhar. O que acontece quando no houve expe-rincias satisfatrias no incio da vida que o analista possa utilizar na transfe-rncia?

    H uma enorme diferena entre os pacientes que tiveram experincias po-sitivas no incio, pois estas podem ser descobertas na transferncia, e aquelescujas experincias iniciais foram to deficientes ou distorcidas que o analistater de ser a primeira pessoa na vida do paciente a fornecer certos elementosessenciais do ambiente. No tratamento de pacientes deste ltimo tipo, muitascoisas normais da tcnica analtica tomam-se de importncia vital, coisas quepassam por bvias no tratamento de pacientes do tipo anterior.

    Perguntei a um colega se ele fazia anlise no escuro, e ele disse: 'Ora,no! Nosso trabalho consiste certamente em proporcionar um ambiente co-mum, I e a escurido seria um elemento singular.' Ele ficou surpreso com aminha pergunta. Sua orientao dirigia-se anlise da neurose. No entanto,

    No fossem as inevitveis ressonncias do termo, eu teria traduzido aqui a palavra 'ordinary' por'normal'. N.T.

    DA PEDIATRIA PSICANLISE 283

    essa proviso e manuteno de um ambiente rotineiro pode ser em si mesmade importncia vital na anlise de psicticos, e de fato pode revelar-se, porvezes, mais importante at que as interpretaes verbais que tambm devemser feitas. Para o neurtico, o div, o calor e o conforto podem simbolizar oamor da me. Para o psictico seria mais correto dizer que essas coisas so aexpresso fsica do amor do analista. O div o colo ou o tero do analista,eo calor o calor vivo do corpo do analista. E assim por diante.

    Espero que esteja havendo uma progresso no modo como formulo aquesto. O dio do analista fica em geral latente, e pode continuar assim commuita facilidade. Na anlise de psicticos o analista encontra-se sob umapresso muito maior para manter o seu dio latente, e s poder faz-lo se es-tiver plenamente consciente do mesmo. Gostaria de acrescentar que em cer-tos estgios de certas anlises o dio do analista na verdade buscado pelopaciente, e nesses momentos necessrio expressar um dio que seja objeti-vo. Quando o paciente est procura de um dio legtimo, objetivo, ele deveter a possibilidade de encontr-lo, caso contrrio no se sentir capaz de al-

    . canar o amor objetivo.Aqui seria talvez relevante mencionar os casos de crianas que vm de

    lares desfeitos ou que no tm pais. Uma criana nessas condies vive in-conscientemente em busca de seus pais. A idia de levar Uma criana dessaspara casa e am-Ia notoriamente inadequada. Ocorre que aps algum tem-po a criana assim adotada readquire a esperana, e passa a testar o ambientepor ela encontrado a fim de reunir provas de que os que dela cuidam so ca-pazes de odiar objetivamente. Ao que parece, a criana poder acreditar que amada somente depois que conseguir sentir-se odiada.

    Durante a Segunda Guerra Mundial um menino de nove anos foi inter-nado numa instituio para crianas, tendo sido mandado para fora de Lon-dres no em razo das bombas mas por vadiagem. Eu esperava poder trat-I ominimamente durante a sua estada na instituio, mas seus sintomas vence-ram e ele fugiu, como sempre fez em todos os lugares desde que fugira decasa aos seis anos. No entanto, eu havia estabelecido um contato com elenuma dada entrevista, em que pude perceber e interpretar atravs de um de-senho seu que, ao fugir, ele estava inconscientemente tentando salvar o inte-rior de seu lar e protegendo a sua me de ser agredida, ao mesmo tempo emque procurava fugir de seu mundo interno cheio de perseguidores.

    No fiquei muito surpreso quando ele apareceu na delegacia de polciamais prxima minha casa. Essa era uma das poucas delegacias em que eleainda no era um velho conhecido. Minha esposa trouxe-o para casa genero-samente e o manteve conosco por trs meses, trs meses de inferno. Ele era a

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    mais encantadora e a mais enlouquecedora das crianas, e muitas vezes pa-recia completamente louco. Felizmente sabamos o que esperar. Lidamoscom a primeira fase, dando-lhe total liberdade e um shilling sempre que elesaa'. Ele precisava apenas telefonar para que ns fssemos apanh-l o na de-legacia para onde tinha sido levado. ..,

    Logo ocorreu a esperada mudana, e o sintoma da vadiagem transfor-mou-se numa dramatizao do assalto ao mundo interno. Isto acarretavauma trabalheira em tempo integral, e quando eu estava fora aconteciam ospiores episdios.

    Era preciso interpret-lo a qualquer minuto do dia ou da noite, e muitasvezes a nica maneira de resolver a crise era encontrar a interpretao corre-ta, como se o menino estivesse em anlise. A interpretao correta era o queele valorizava acima de tudo.

    O ponto importante em relao a este trabalho o modo como o desen-volvimento da personalidade do menino provocava dio em mim, e o que eufiz a esse respeito.

    Bati nele? A resposta no, nunca. Mas eu teria tido que bater nele se--no soubesse tudo a respeito do meu dio, e se no o fizesse saber tambm.Nas crises eu o pegava com toda a minha fora fisica, sem raiva ou acusa-es, e o colocava para fora pela porta da frente, fosse qual fosse o tempo queestivesse fazendo de dia ou noite. Havia uma campainha especial que elepodia tocar, e ele sabia que se a tocasse ns o traramos para dentro e nenhu-'ma palavra seria dita sobre o que se passou. Ele tocava a campainha, assimque o ataque manaco amainava.

    O importante que sempre que eu o punha para fora eu lhe dizia algo. Eulhe dizia que o que ele havia feito levou-me a sentir dio por ele. Isto era fcilporque era a pura verdade.

    A meu ver, essas palavras eram importantes do ponto de vista do seuprogresso, mas elas eram importantes principalmente porque me permitiamtolerar a situao sem me descontrolar, sem perder a cabea e sem assassi-n-lo de vez em quando.

    A histria completa desse menino no pode ser contada aqui. Ele foi in-ternado num reformatrio. Seu relacionamento profundamente enraizadoconosco ficou sendo uma das poucas coisas estveis em sua vida. Esse epis-dio da vida cotidiana pode servir para ilustrar o tema geral do dio legtimo nopresente. preciso distinguir esse fenmeno do dio que s se justifica numoutro contexto, mas que deflagrado por algum ato de um paciente.

    Dada a grande complexidade do problema do dio e suas razes, gosta-ria de resgatar um determinado aspecto, pois acredito que ele seja especial-

    .mente importante para os analistas de pacientes psicticos. Sugiro que a meodeia o beb antes que este a odeie, e antes que ele possa saber que sua me oodeia.

    Antes de prosseguir, gostaria de mencionar uma idia de Freud. Em OsInstintos e suas Vicissitudes (1915), onde apresenta tantas coisas originais eesclarecedoras sobre o dio, ele diz: "Somos capazes de dizer sem pensarmuito que o instinto 'ama' o objeto pelo qual anseia para fins de satisfao,mas se dissermos que o instinto 'odeia' um objeto isto nos soar muito estra-nho, e assim percebemos que as atitudes de amor e dio no podem caracte-rizar o relacionamento do instinto com o objeto, mas devem ficar restritas ao

    _ relacionamento do ego como um todo com os seus objetos ... " Acredito queesta uma afirmao verdadeira e importante. Significaria isto que a perso-

    _ nalidade deveria estar integrada antes que possamos dizer que o beb odeia?T1Io cedo quanto possa ocorrer a integrao - e talvez ela acontea antes

    - num auge de excitao ou raiva - h um estgio teoricamente anterior noqual o que quer que o beb faa que seja capaz de machucar no feito a par-tir do dio. Utilizei a expresso amor impiedoso para descrever esse estgio.Seria isto aceitvel? medida que o beb torna-se capaz de se sentir umapessoa inteira, o termo 'dio' passa a ter sentido para descrever um certoconjunto de seus sentimentos.

    A me, no entanto, odeia o seu beb desde o incio. Acredito que Freudachava possvel que a me, em determinadas circunstncias, sentisse apenasamor por seu beb do sexo masculino. Mas disto podemos duvidar. Conhe-cemos o amor da me e o admiramos por ser to forte e to real. Permi-tam-me apresentar certos motivos pelos quais a me odeia o seu beb,mesmo que seja um menino:

    a beb no uma concepo (mental) sua.a beb no aquele das brincadeiras da infncia, um filho do papai, ou do ir-mo etc.a beb no produzido magicamente.a beb um perigo para o seu corpo durante a gestao e o parto.a beb interfere com a sua vida privada, um obstculo para a sua ocupaoanterior.Mais ou menos intensamente, a me sente que o beb algo que a sua prpriame deseja, e ela o produz para aplac-Ia.a beb machuca os seus mamilos mesmo quando suga, o que inicialmenteimplica em mastigao.Ele impiedoso, trata-a como lixo, uma serva sem pagamento, uma escra va.Ela tem que arn-lo, com suas excrees e tudo omais, pelo menos no incio,at que ele venha a ter dvidas sobre si prprio.

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    Ele tenta machuc-Ia, volta e meia a morde, e tudo por amor.Ele se decepciona com ela.

    Seu amor excitado um 'amor de tigela', significando 'amor interesseiro'),de modo que ao conseguir o que queria ele ajoga fora como uma casca de la-ranja.No incio o beb dita a lei, preciso proteg-Io de coincidncias, a vida devefluir no ritmo dele, e tudo isso exige da me um contnuo e detalhado estudo.Por exemplo, ela no deve ficar ansiosa quando o segura etc.No incio ele no faz idia alguma do quanto ela faz por ele, do quanto ela sa-crifica por ele. impossvel para ele suportar principalmente o seu dio.Ele desconfiado, recusa a comida to boa que ela preparou e Jaz com que.ela duvide de si mesma, mas com a tia ele come tudo.Depois de uma manh horrvel, ela sai com ele e ele sorri para um estranho,que diz: 'No uma gracinha?' "-Se ela falha com ele no incio, sabe que ele se vingar para sempre.Ele a excita mas a frustra - ela no pode devor-lo nem fazer sexo com ele.

    Creio que na anlise de psicticos e nas ltimas fases da anlise de pa-cientes normais o analista ir encontrar-se numa posio comparvel dame de um beb recm-nascido. Numa regresso profunda o paciente notem como identificar-se com o analista ou apreciar o seu ponto de vista, damesma forma que um feto ou um beb recm-nascido incapaz de sentir-simpatia pela me.. A me deve ser capaz de tolerar o sentimento de dio contra o beb semfazer nada a esse respeito. Ela no pode express-Io para ele. No caso de te-mer a sua prpria reao, ela no conseguir odiar adequadamente quandomachucada, e poder cair no masoquismo, e a meu ver isto que leva falsateoria de um masoquismo natural s mulheres. O ponto mais interessante arespeito da me a sua capacidade de ser to agredida e sentir tanto dio porseu beb sem vingar-se dele, e sua aptido para esperar por recompensas quepodem vir ou no muito mais tarde. Quem sabe recebe alguma ajuda das can-es de ninar que ela canta e que felizmente o beb no pode compreender?

    'Rockabye baby, on the tree top,When lhe wind blows the cradle will rock,When the bough breaks lhe cradle will fali,Down will come baby, cradle and ali. '

    Nana nenm no galho l em cima,Se o vento sopra o bero se inclina,Se o galho se parte o bero despenca,

    O beb cai no cho e o bero arrebenta.

    DA PEDIATRIA PSICANLISE 287

    Penso na me (ou no pai) brincando com o beb. O beb adora a brinca-deira, e no sabe que o pai ou a me esto expressando dio com suas pala-vras, por vezes em termos de smbolos ligados ao nascimento. No se tratade uma cano sentimental. O sentimentalismo no tem utilidade para ospais, pois consiste numa negao do dio, e do ponto de vista do beb o senti-mentalismo na me muito prejudicial.

    No creio que uma criana humana ao desenvolver-se seja capaz de to-lerar toda a extenso de seu dio num ambiente sentimental. Ela precisa dedio para poder odiar. Se isto verdade, no podemos esperar que um pa-ciente psictico em anlise consiga tolerar o seu dio pelo analista a no serque o analista possa odi-lo.

    Se tudo isto for aceito, fica para ser discutida a questo de como interpre-tar o dio do analista pelo paciente. Trata-se obviamente de um problema queimplica em perigo, exigindo o mais cuidadoso timing possvel. Creio, porm,que uma anlise permanecer incompleta, enquanto mesmo em sua ltimafase no seja possvel ao analista contar ao paciente o que ele, analista, fez semque o paciente soubesse, por estar to doente nas fases iniciais. Enquanto estainterpretao no for feita, o paciente permanecer de algum modo na condi-o de uma criana - incapaz de entender o que ela deve sua me.

    O analista deve dispor de toda a pacincia, tolerncia e confiabilidadeda me devotada ao beb. Deve reconhecer que os desejos do paciente sonecessidades. Deve deixar de lado quaisquer outros interesses a fim de estardisponvel e ser pontual e objetivo. E deve parecer querer dar o que na verda-de precisa ser dado apenas em razo das necessidades do paciente.

    _Pode ocorrer um longo perodo inicial no qual o ponto de vista do analis-ta no poder ser apreciado (mesmo inconscientemente) pelo paciente. No possvel esperar por reconhecimento porque, na primitiva raiz do pacienteque est sendo pesquisada, no existe a capacidade para a identificao como analista. E obviamente est fora do alcance do paciente perceber que o diodo analista muitas vezes deflagrado precisamente por aquilo que o pacien-te faz a partir de seu modo bruto de amar.

    Na anlise (de pesquisa) ou no manejo rotineiro de pacientes de tipo psi-ctico, uma forte tenso imposta ao analista (psiquiatra, enfermeira psiqui-trica), tomando importante o estudo dos modos pelos quais as ansiedades denatureza psictica e tambm o dio so provocados nos que trabalham compacientes psiquitricos gravemente doentes. Somente desta maneira podere-mos evitar as terapias que se adaptam mais s necessidades do terapeuta doque s necessidades do paciente.