desmortos (degustação)

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Desmortos conta a história de Lorena, uma garota que sempre desejou ser invisível e que não gosta do que acontece quando o seu desejo é brevemente atendido: ao ser atropelada e morrer. Aquilo que supostamente seria o fim de sua vida acaba se tornando o começo de uma jornada muito mais complicada do que poderia imaginar: ela se tornou um zumbi e acorda numa gaveta de necrotério. Contudo, ela não estará sozinha nessa jornada, Lucas, um garoto fantasma melancólico irá guiá-la através desse admirável mundo novo onde os restaurantes possuem um cardápio especial para os sem vida, vampiros gostam de pantufas e uma república abriga aqueles perdidos entre um mundo e o Mais-Além. Lorena será jogada numa arena no Limbo, obrigada a enfrentar criaturas de todos os planos de existência e ainda encontrar um jeito de fugir. E como se isso não fosse o suficiente ela irá descobrir que existe um pouco de vida após a morte... e isso pode ser inusitado.

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desmortosMary. C. Müller

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Copyright © 2015 Mary C. Müller

Projeto de capa/miolo/editoração eletrônica: Maria Claudia MüllerRevisão: Thiago Toste

Revisado conforme o Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa de 1990 em vigor no Brasil desde janeiro de 2009.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, ou um dinossauro comerá sua cabeça.

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Para James, quem fez de mim mais estranha e mais verdadeira.

Para meus pais, irmãos e sobrinhos S2

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Parte 1 - Nascer

And hey, you, don’t you think it’s kinda cuteThat I died right inside your arms tonight

That I’m fi ne even after I have diedBecause it was in your arms I died.

Mother Mother – Arms Tonight

Goodbye my friendLife will never endAnd I feel like you

And I breath on truthLove is the life breath of all I see

Love is true life inside of meAnd I know you somehow

As I hold you in my heart, in my heartAnathema – Internal Landscapes

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PRÓLOGOOnde começa e acaba ao mesmo tempo

O enorme e colorido fone da Skullcandy não ajudava, cha-mando mais atenção na rua do que considerava aceitável.

Gostava de se sentir invisível. Diferente, sim, do resto das pessoas, mas queria que simplesmente a ignorassem, que não reparassem no cabelo desgrenhado, na calça colorida ou em sua jaqueta de vinil. As pessoas provocavam ou davam risadinhas, mas ela sempre se fazia de surda.

Por isso o fone de ouvido.A maneira perfeita de matar instantaneamente milhares de pes-

soas: era só plugar no mp3 e aumentar o volume, que tudo o mais deixava de existir. Death Cab For Cutie estava tocando quando seu desejo finalmente foi atendido e alguém resolveu ignorar a sua existência: naquela noite, o motorista não a viu atravessando a rua. Ou passou por cima dela mesmo assim.

Lorena se lembrava de livros e filmes onde os personagens morriam em paz ou não sentiam dor ao deixar a vida. Aquela, para ela, era a maior mentira de todas. As pessoas deveriam saber, diria ela, que morrer dói e que nenhum anjo bonito irá aparecer pra levar você. Não irá tocar uma música bonita e não surgirá uma luz branca.

Ela nunca se esqueceria da parte exata da música que tocava quando o carro a acertou: No blinding light or tunnels to gates of white1.

1 Nenhuma luz ofuscante ou túneis para portões brancos

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Eles estavam certos. Não havia nada. Ou pelo menos, nada de especial. Substitua a luz ofuscante por estrelas ao bater a cabeça e os túneis e portões pela escuridão total depois do primeiro baque. A música angelical é facilmente substituída por gritos de transeun-tes, pneus derrapando e ossos se partindo. A parte boa é que o carro a matou bem rápido e só precisou aguentar alguns segundos da dor. A parte ruim... bem...

Lorena não tem uma história bonita: ela não é linda, popular e delicada de cabelos sedosos – pintara-os de tantas cores diferentes que estavam ressecados e manchados. A falta de preocupação com cremes e protetor solar não a deixou com a pele mais perfeita do mundo. Era baixa e os olhos eram escuros, além de precisar dos grandes óculos de armação vermelha para enxergar.

A história de Lorena também não é uma história de amor per-feito, e, caso você esteja se perguntando, o trecho acima não é o final da história, mas sim, o começo.

E por último, a morte de Lorena não tem um final feliz.A última coisa que ela ouviu antes de apagar definitivamente

foi parte do refrão da música: I’ll follow you into the dark2.Alguém a seguiu pela escuridão.O Death Cab For Cutie acertou de novo.

2 Vou seguir você pela escuridão

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CAPÍTULO UMSobre como acordar de repente não se parece com suco de

framboesa

Nunca se considerara uma pessoa claustrofóbica, mas acordar naquele local minúsculo, escuro e gelado foi uma das piores

sensações que já tivera. Ficou tão desesperada ao ver-se ali den-tro que começou a hiperventilar. Seu coração disparou. Olhou em volta, tentando entender onde estava. Tateou, ofegante, e quando se deu conta de que se encontrava completamente trancada, come-çou a socar as paredes de metal. Uma caixa comprida e gelada onde Lorena cabia perfeitamente. Estava nua, coberta apenas por um fino pano branco. Imaginou estar vivendo uma daquelas lendas urbanas e tateou sua barriga atrás de marcas de cortes ou costuras. Nada. Aparentemente os rins permaneciam onde deveriam estar.

Os olhos arderam com as lágrimas que ameaçaram vir, e ela voltou a socar e chutar as paredes. Sentia como se elas se apertas-sem em volta do seu corpo e todo o oxigênio do lugar houvesse acabado. Começou a tremeu e suar gelado. A mente tentava buscar uma explicação para o que acontecia ou onde estava, mas nada vinha em sua memória. Não se lembrava do acidente ou de nada do que aconteceu quando fora atropelada. Continuou socando e gritou com toda a força de seus pulmões. E então, em meio ao desespero e com medo de sufocar, se levantou e bateu a cabeça com força no teto. Lorena perdeu a consciência e seus sinais vitais cessaram.

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Alguns minutos depois, acordou novamente.A cabeça girava e sentia-se nauseada. Um pensamento bobo de

que talvez pudesse estar morta e enfiada em uma gaveta de necro-tério povoou sua imaginação por um breve momento de loucura. Eu apenas desmaiei, repetia ela para si mesma. Desmaiei, desmaiei, desmaiei.

Moveu-se lentamente para evitar mais uma onda de náuseas. A cabeça doía onde havia batido. Esfregou a testa, checando se havia ficado com algum galo no local, mas não tinha nada. Tentou se acomodar o máximo que pôde naquela caixa. Precisava pensar direito se quisesse sair dali. Olhou em volta mais uma vez, repa-rando que não havia nenhuma fresta de luz. Desistiu de esperar os olhos se acostumarem com a escuridão. Afinal, o que haveria para ver? Era apenas uma grande caixa. Nada mais do que isso.

Esfregou os olhos. Pense, Lorena, pense, murmurou. E então apoiou as mãos no tórax. Foi neste momento que se deu conta do silêncio. Não havia nada. Absolutamente nada. Não havia o som de sua respiração e as batidas de seu coração também não estavam lá. Concluiu que não precisava respirar, e, por mais que seu coração não pudesse disparar no momento, nada a impediu de sentir uma pontada no peito, acompanhada de um vazio total. Uma angustia que devorava cada pedacinho de pele.

Não podia ser, não era possível, o que estava acontecendo e milhares de outras indagações tomaram conta de Lorena. Mas lá estava seu coração imóvel, jogando-lhe na cara que estava indiscu-tivelmente morta. E aquela pequena palavra de apenas duas sílabas fez com que desmoronasse. Começou com um soluço dolorido, seguido pelas lágrimas que precipitaram de seus olhos.

Agarrou a raiz dos cabelos, chorando com força, e em poucos segundos seu rosto estava encharcado. Balançou a cabeça, incré-dula e confusa. Não queria morrer. Não queria ir embora nem

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dizer adeus. Não agora, nem tão cedo.Aos poucos, foi se lembrando do acidente. Não precisou pen-

sar muito para adivinhar que o carro havia lhe matado.Não fora a melhor pessoa do mundo e não era religiosa, mas

nunca fora má. O que fizera para merecer esse tipo de fim? Pensou nos pais e em como eles estariam se sentindo. Não tinha muitos amigos, mas se perguntava o que as pessoas à sua volta estariam sentindo naquele momento. Será que deixariam recados no seu perfil na internet? Ou levariam flores e ouviriam músicas que as faziam lembrar-se dela?

Será que estavam tristes? Ou será que não se importavam, achando que não faria diferença alguma? Imaginou se os colegas de classe reparariam na sua ausência.

Talvez nem estivesse morta, pensou ela, com um sorriso louco perpassando em seu rosto. Talvez alguém tenha lido errado os seus sinais vitais. Ou talvez era algum tipo de sonho estranho, como aqueles onde você não consegue se mexer. Voltou a chorar e balan-çar a cabeça em recusa. Aquilo simplesmente não podia ser ver-dade. Deveria existir alguma explicação plausível.

Por mais que seu coração estivesse imóvel, nada a impedia de sentir uma dor perfurante nele. A garganta e o peito ardiam enquanto soluçava, mas, ainda assim, respirar surtia tanto efeito quanto pílulas de farinha e açúcar.

Começou a pensar nas coisas que nunca faria caso realmente estivesse morta. Nunca iria para a universidade ou viajaria para outro país. Nunca teria uma família ou veria a sua novamente. Nem andaria de mãos dadas com algum garoto bonito de calça xadrez. Sentiu-se estúpida ao pensar que também nunca iria a um show do Weezer. A não ser que virasse uma alma-penada, passeando por aí. Se fosse assim, assistiria ao show que quisesse, e de graça.

O som dos passos a tirou de seus devaneios. Apurou os ouvidos

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para tentar escutar melhor. O que deveria fazer? Chamar atenção para que a tirassem dali? Mas estava morta e provavelmente aquele nem era o mundo em que vivera. Não tinha como imaginar a rea-ção de alguém se a vissem.

Não precisou tomar nenhuma atitude, pois o som das gave-tas se abrindo de uma em uma foi se aproximando. Pof, pof, pof, faziam elas com força. Imaginou os corpos dos mortos balançando dentro delas ou caindo no chão. Apertou os punhos e esperou pelo momento que sua própria porta abriria. O barulho estava cada vez mais perto agora. Lorena soltou um grito quando a gaveta abriu e seus olhos cegaram com a forte luz que a atingiu.

Esfregou os olhos, tentando enxergar. A primeira coisa que viu foi uma cabeleira escura a encarando. Depois de tudo o que pas-sara, só conseguia pensar no lençol branco que cobria seu corpo nu contra a visão do garoto. Única proteção existente. “Obrigada lençol, não preciso de mais vergonha agora que estou morta.”

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CAPÍTULO DOISSobre a parte boa de ser um fantasma

Nem fazia ideia de onde tirara a habilidade para abrir fechadu-ras, mas ser um fantasma tinha vantagens óbvias. Aprendeu

rapidamente a interagir com objetos físicos e podia abrir trancas facilmente com essa faculdade. Não que precisasse abrir as portas ou janelas, já que podia simplesmente atravessá-las, mas precisava fazer isso para tirar a garota dali.

Ouvia-a gritando na sala seguinte enquanto checava o alarme. Havia um guarda, dormindo, mas com o escândalo ele provavel-mente não seguraria o sono por muito tempo. Entrou no que gos-tava de chamar de frigorífico de presuntos. Perdera um pouco da graça agora que era um fantasma, mas o apelido ainda agradava. Já o visitara quando seus pais morreram, quando a esposa do irmão morrera, quando o melhor amigo morrera. Praticamente morava no necrotério. E não era má ideia, afinal, precisava de um lugar para ficar e assombrar.

A garota estava quieta agora. O local cheirava a ferro e estava impecavelmente limpo. Abriu as gavetas enfileiradas pela parede, tentando adivinhar em qual delas a menina estaria. Flávia, o anjo da morte que lhe dera a informação, poderia ter sido mais direta e simplesmente lhe dito qual das gavetas, pensou Lucas.

Cada uma delas exigia concentração para conseguir tocá-la e cada erro lhe presenteava com uma visão pior que a outra. Costuras grosseiras, membros perdidos, olhos vidrados. Nunca gostara de

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ver sangue ou coisas mortas e o cheiro daquele lugar começou a deixá-lo enjoado. Talvez assombrar o necrotério não fosse uma boa opção no final das contas.

Foi quando escutou um grito esganiçado ao abrir uma das gavetas que soube ter acertado. Isso e o fato de o lençol não cobrir todo o corpo da garota, que estava sentada e olhando-o direta-mente nos olhos. Eles se encararam por vários segundos e caso tivessem fôlego para segurar, o teriam feito. A verdade é que Lucas mal reparou que ela estava seminua, só ficou momentaneamente paralisado pelo fato de ter sido visto por alguém.

E dando-se conta da indelicadeza, cobriu o rosto com as mãos.— Me desculpe, juro que não foi intencional — balbuciou ele,

olhando para trás. Deu uma espiada para garantir que ela havia se coberto antes de virar.

Da última vez em que havia visto uma menina nua, tinha cinco anos de idade e levara um tapa no rosto. Sem contar que a menina era sua prima.

A garota se encolheu e cobriu o corpo, olhando em volta com os olhos apertados e parecendo muito confusa.

— O que diabos está acontecendo? — perguntou ela com os olhos molhados e a voz fraca.

Teve pena dela, mas sentia-se extremamente constrangido quando alguém o fitava, mesmo naquela situação — e o fato de ela estar coberta apenas por um pano também tinha sua parcela de culpa. Nunca conseguia tirar da cabeça que o estariam julgando ou que o achavam esquisito quando o encaravam daquele jeito. Nunca tivera um pingo de autoestima e nem sequer tinha uma mãe para lhe mentir e dizer que era bonito.

Lucas desviou o olhar pensando na própria aparência. Absurdamente magro e ainda por cima alto, o que lhe dava uma aparência de desengonçado. O cabelo preto que ficava desgrenhado

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não importando o que fizesse. Uma argola no canto esquerdo da boca e os alargadores pretos. Lembrou-se imediatamente da menina que estudara com ele que sempre dizia que Lucas vivia eternamente em 2006 com suas roupas de adolescente alternativo.

Sua cara de fantasma era ainda mais pálida do que fora quando ainda tinha um corpo. Gostava do fato de não ser transparente, pois achava aquilo idiota, clichê de cinema barato. Queria ter esco-lhido outra roupa no dia fatídico em que resolvera desencarnar. A blusa de manga comprida e listrada de preto estava desbotada. Começou a enjoar do cinto de taxas e da calça apertada com All Stars.

Ele voltou a olhar para a garota, que ainda aguardava resposta.— Não sei bem — disse ele, apressando-se. — Mas sei alguém

que pode ajudar, me ajudou.— E o que é você? Isso é o inferno ou algo assim?De todos os insultos que Lucas podia imaginar, ser comparado

a um demônio, mesmo que sem querer, era definitivamente o pior deles.

— Não, cara. É só o necrotério.— O quê?Lucas conseguiu dar uma boa olhada na etiqueta presa no pé

dela antes que ela se levantasse com o lençol enrolado em volta do corpo e começasse a andar pela sala. Lorena Carvalho. Achou que ela estava em ótimas condições para um zumbi que morrera atropelado.

— Você está morta — disse Lucas, apenas para se certificar de que ela já havia percebido isso.

Ela o encarou e revirou os olhos.— Não tenho sinais vitais e acordei em uma gaveta de metal.

É, acho que percebi que estou morta. Mas quando acordei eu ainda estava respirando.

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Tentou ignorar a agressividade na voz dela e lembrou-se que ela só estava acordando agora. Não era fácil descobrir que você não tem mais nada pela frente.

— Me disseram que você é um tipo de zumbi — disse ele. — Ainda tem o seu corpo. As pessoas podem te ver como se esti-vesse viva e tudo o mais.

— Você está me dizendo que sou um zumbi? E o que é você, por acaso? Eu também estou te vendo.

— Eu sou só um fantasma, igual a qualquer outra pessoa que morre e continua na Terra. Nada muito emocionante.

Lorena começou a rir. Perguntou-se se era um dos estágios do luto. As risadas provavelmente eram sinais de que estava saindo do estágio da negação para o de raiva.

— Então você está me dizendo que eu sou um zumbi e você é um fantasma? — ela soltou um misto de bufada com riso — Você só pode estar tirando com a minha cara. Essa é a coisa mais imbecil que já me disseram. Se você dissesse que estamos, sei lá, na recep-ção do Céu, eu teria até pensado em acreditar. Até parece! Zumbis e fantasmas! O que vem depois? Fadinhas?

— Lorena... — disse ele bem baixo — Acho que você deveria parar de gritar. Tem um--

— Eu vou parar de berrar quando eu quiser parar de berrar!Lucas estacou onde estava, apontando para a porta. Alguém

gritando com ele daquele jeito ainda era muito melhor do que metade das coisas das quais tinha sido chamado na escola. Mas naquele momento em particular estava mais preocupado com os sons de passos apressados se aproximando.

A porta se abriu com violência e teve poucos segundos para registrar o guarda de arma em punho, disparando involuntaria-mente com o susto.

A bala atravessou o corpo de Lucas e foi se alojar na testa de

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Lorena. Ela cambaleou vários passos para trás, levando a mão à cabeça com horror.

— O que diabos você está fazendo? — gritou ela para o homem.

Não houve resposta alguma do guarda. Estava em choque. Lucas não sabia se pelo fato de ter atirado em alguém ou se por esse alguém ainda estar de pé.

Ele olhava fixamente para Lorena, que o olhava de volta com uma expressão de quem iria voltar a gritar.

— Acho que ele está em choque — observou Lucas.— Por que ainda estou viva? — perguntou ela, com o dedo no

furo da bala, passando a ignorar o guarda e se olhando no reflexo de uma das gavetas. Um filete de sangue escorria pelo furo.

— Mas você não está viva — respondeu Lucas.— Oi, eu sou um zumbi! Tiros na cabeça me matam!— Você não é um personagem de The Walking Dead, Lorena. É

só uma coisa que não está nem viva nem morta.— E como você sabe meu nome?— A etiqueta enorme no seu pé responde a pergunta?Lucas se aproximou do guarda que continuava com o braço

esticado segurando a pistola. As pernas dele tremiam.— Deveríamos sair daqui antes que ele volte a si.Lorena o ignorou e se agachou, arrancando a etiqueta do pé e a

rasgando em milhares de pedaços. Lucas deu de ombros, segurou o braço dela e a arrastou para fora do dali. Ela resmungou e pra-guejou durante todo o trajeto.

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CAPÍTULO TRÊSQuando Lorena descobre que não precisa ter medo de armas de

fogo

Foi arrastada pelo garoto de cabelos negros e piercing no lábio por toda a pequena construção que era o necrotério. Reconheceu

onde estavam quando chegaram à rua. O necrotério ficava em uma casa pequena em uma área mais afastada do centro de Balneário Camboriú. A universidade ficava por perto. Universidade esta em que nunca entraria.

Era noite e não havia ninguém em volta. Aquela área era um abandono nas madrugadas e os carros só passavam por ali para chegar à rodovia. Ou a algum dos inúmeros motéis baratos. Lorena parou na calçada e ajeitou o lençol para ter certeza que ele cobria todo seu corpo. Algumas pessoas podiam pegar retalhos e os trans-formar em bolsas, saias chiques ou lenços. Para ela, que nem fazia ideia para que servia blush, os panos multiuso eram um grande mistério.

— Deveríamos achar algum lugar para você ficar e algo que possa vestir. Depois vamos até a Flávia — disse ele, olhando de esguelha para a porta do necrotério.

— Onde você mora? — perguntou ela.O garoto deu de ombros.— Não faz diferença, ninguém pode me ver ou ouvir. Mas

você, além de poder ser vista, tem a mesma aparência, podem te reconhecer.

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Ele tinha razão. Caso ficasse naquela situação por mais tempo, precisaria se disfarçar, mesmo que não conhecesse pessoas sufi-cientes para que isso acontecesse rápido. Ela sabia o lugar perfeito para se esconder.

— Sei onde podemos ir. É a casa da minha tia, ela trabalha na Europa, vai ficar lá o mês inteiro. — “A não ser que ela venha para meu funeral, e se ela não vir eu vou ficar muito revoltada”, pensou ela.

Lucas simplesmente virou o rosto para a rua sem dizer nada. Teve que admitir que ele era bonito. Afinal, estava morta, não velha. E o fato de ele ser tão quieto era uma vantagem. Pelo menos não precisaria ficar interagindo socialmente.

— Qual o seu nome? — perguntou ela. — Por que você veio até aqui me ajudar?

Ele tentou chutar uma pedra no chão e o pé simplesmente atra-vessou a rocha. Colocou as mãos nos bolsos, ainda olhando para o chão.

— Lucas — respondeu simplesmente.— Quem é essa Flávia?— Um anjo da morte — respondeu ele. — Mas precisamos

sair daqui. Explico mais depois.Ela concordou e começou a andar. Não estavam muito longe,

em vinte minutos de caminhada deveriam chegar. Pegaria um cami-nho mais escuro e abandonado para evitar ser vista daquela forma, passando pelas diversas ruazinhas entre os blocos. A cidade estava calma naquela noite. Nenhuma festa em volta, nenhum grupo de amigos, nenhum carro com música alta. Era outono e aquela época do ano era agradável, apesar do frio que começava a fazer. Desviou de algumas poças e andou pelo asfalto durante parte do trajeto. A cal-çada ali estava totalmente quebrada e não queria sujar os pés na lama.

Foi só depois de dez minutos de caminhada que se lembrou

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de que não tinha as chaves e estacou no local. Lucas, que andava atrás dela, atravessou-a. A sensação foi idêntica a passar por baixo de uma queda de água, porém não tão gelado como imaginou que seria. Lucas se virou para fitá-la.

— O que foi? — perguntou ele.— Não tenho as chaves.— Você não precisa de chaves. Tem alarme na casa?— É um apartamento. Tem sim, mas eu sei o código.— Não tem problema. Eu consigo abrir a porta. Aí você corre

e digita o código do alarme.Lorena não se moveu. Acabara de levar o dedo até a ponte do

nariz para ajustar os óculos, que por acaso não estavam ali. Deu de ombros, resmungou uma resposta e voltou a andar. Mesmo com seis graus de astigmatismo, estava enxergando perfeitamente. Pensou em milhares de perguntas que poderia fazer, mas ficou calada. Não sabia até onde ele estava disposto a conversar. Lembrou-se de que ele não respondera quando perguntou por que ele a havia ajudado. Queria saber o motivo de ter virado um zumbi e o que acontece-ria agora que seu corpo sumira do necrotério. Procurariam pelo corpo dela? Certamente não iriam acreditar no guarda quando ele dissesse que a vira andando e sobrevivendo a um tiro. Levou a mão na testa e tateou em busca do furo da bala. Não encontrou nada. Apenas um pouco de sangue já coagulado.

Lucas, reparando nela, comentou:— Você vai regenerar sempre que se machucar. Estilo Jason.Lorena abriu a boca para fazer um comentário, mas ele a inter-

rompeu continuando sua linha de pensamento:— E antes que você faça algum comentário idiota, não, você

não é um vampiro.— Precisava ser tão babaca?— Eu fui babaca? — perguntou ele. — Desculpa, eu

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nem reparei.Achou que ele estava sendo sarcástico, mas a expressão de ino-

cência no rosto dele indicava que ele realmente não percebera a forma como falara. Talvez fosse a falta de interação com pessoas. Até agora não a fitara nos olhos nenhuma vez.

Andaram em silêncio até chegarem ao prédio. Lorena agra-deceu que não havia portaria ali. Lucas abriu a porta do hall de entrada com um pouco de dificuldade. Subiram pelo elevador e entraram no apartamento da tia.

Depois de digitar o código do alarme, Lorena se deixou cair no sofá da sala. O apartamento era pequeno, mas aconchegante e muito bem decorado. Uma das paredes era roxa e as almofadas do sofá eram de patchwork, cada uma de uma cor. Havia um grande aparelho de som ao lado de um vaso de bambu da sorte de mentira, já que a tia nunca estava em casa para cuidar de plantas. A parede oposta estava repleta de quadros e havia um velho pôster amassado do The Strokes, quase caindo.

Lucas se sentou no tapete em silêncio, fitando a estante de livros que ficava acima da televisão e correndo os olhos por tudo. Talvez, pensou Lorena, ele estivesse pensando no tempo que tinha para ler todos os livros que quisesse. Foi com esse pensamento na cabeça que adormeceu.

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CAPÍTULO QUATROGarota, você está mortinha, mortinha mesmo

Lorena adormeceu no sofá sem sequer arrumar algo para ves-tir. Lucas tirou a manta da poltrona de canto e jogou sobre

ela, que resmungou enquanto se colocava em posição fetal. Ficou imaginando o quanto ela xingaria e berraria quando acordasse e percebesse que estava respirando novamente. Lucas estava particu-larmente curioso em relação à condição dela. Queria saber por que era assim, por que ainda tinha corpo físico depois de morta e qual era a lógica de o coração dela voltar a bater sempre que dormia.

Sempre fora uma pessoa curiosa e o mundo sobrenatural era para ele um universo perfeito para ser explorado e tentava ver tudo com sua mente lógica – mesmo quando tudo parecia impossível.

A parte difícil de alimentar sua curiosidade era que os anjos da morte costumavam ser muito vagos ao responder qualquer tipo de pergunta. Não sabia se eles mesmos não sabiam a resposta para muitas delas ou se deveriam manter segredo acerca de tudo.

Entediado, andou pelo apartamento, conhecendo a cozinha excessivamente colorida e o banheiro que cheirava a melancia. A tia de Lorena deveria ser muito jovem, ou pelo menos tinha um bom gosto para decoração, música e livros. O quarto dela era enorme, com uma estante abarrotada, televisão plana em uma das paredes e pequenos vasos de plantas falsas. A cama estava bagunçada e repleta de roupas e brinquedos de criança por cima. Gravuras de Andy Warhol em molduras coloridas faziam às vezes

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de cabeceira para a cama box.A cortina estava aberta deixando entrar uma faixa de luz, o

que não era muito comum por ali. Aquela era uma sina da cidade, o excesso de edifícios fazia com que as casas e apartamentos pre-cisassem disputar o sol. Apoiou-se na janela e ficou encarando o pedaço de mar que aparecia espremido entre dois prédios. Podia ouvir as ondas quebrando na praia e o céu começou a adquirir a cor dourada do sol que nasceria em poucos minutos. As nuvens cobriam o horizonte em manchas rosadas.

Ficou ali por um bom tempo, remoendo pensamentos, até que resolveu continuar seu tour pelo lugar. Havia ainda o quarto da criança e mais um, no qual não entrou. Não teve tempo, pois ouvira um palavrão vindo da sala. Foi até lá e, quando olhou para Lorena, viu que ela encarava as próprias mãos, apertando-as e sol-tando em seguida. Ela respirava profundamente e soltava o ar bem devagar. Então deu uma pequena risada.

— Eu sabia que tudo não passava de um sonho estúpido — disse. — Parece tão idiota agora que estou lembrando. Até parece que virei um zumbi!

Lorena soltou mais um risada sem graça antes de se virar para onde estava Lucas e levar um susto. A expressão no rosto dela foi de dar pena, afinal, ver Lucas significava que aquilo realmente não havia sido um sonho.

— Por favor, me diga que ainda estou dormindo!— Não, você não está — disse ele.Ela sacudiu a cabeça e bateu no próprio peito.— Então como você explica isso, hein? — ela apontou seu

coração. — Ele tá batendo, e eu tô respirando!Lucas soltou um longo suspiro e se sentou ao lado dela, enca-

rando os próprios tênis.— Eu disse que você é diferente, uma coisa que não está nem lá

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nem aqui.As sobrancelhas dela se uniram num sinal de confusão. Lucas

parou um momento, pensando em como explicar.— É como aqueles casos de quase morte, sabe? Quando

alguém morre no hospital e volta depois? Você é assim, só que um pouco diferente. Seu corpo está morto de fato, mas é como se sua alma ainda se agarrasse à vida e isso o anima. O estado do seu corpo muda quando dorme. Da próxima vez estará como morta de novo.

Lucas continuou encarando os pés, Lorena não disse nada e não se moveu. Esperou ela começar a brigar, mas ela apenas lhe deu um sorriso frustrado.

— Então já era mesmo? — indagou ela, por fim.— Sim — respondeu Lucas. — Você tá mortinha. É como os

fantasmas, você ficou porque tem algum objetivo ou algo inaca-bado. Os anjos da morte são assim também. Ficam nessa função antes de ir para o Mais-Além.

Olhou-a de relance. Ela estava de cabeça baixa e lágrimas silen-ciosas escorriam por suas bochechas. O nariz dela era pequeno e redondo. Os olhos bem pretos. Os lábios finos tremiam no que considerou uma tentativa de não chorar. O cabelo manchado de rosa, roxo e castanho, frisado e colocado todo para o lado de forma desalinhada.

— O Mais-Além é o que? — ela perguntou.Lucas desviou o olhar e quando ela se dirigiu a ele, deu de

ombros.— Ninguém sabe. Nem os ceifadores. E sempre são bem

vagos. Flávia é a ceifadora que me ensinou tudo. Ela disse que é impossível saber, exceto quando se chega lá.

Ela balançou a cabeça, fazendo que entendia.— Vou me vestir — disse ela simplesmente. Se levantou e foi

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em direção ao corredor, agarrando o lençol.Lucas deitou no sofá, apoiando a cabeça nas mãos. Sabia por

que Flávia o mandara até ela e sabia o seu objetivo, mas desconhe-cia totalmente o objetivo de Lorena. E esse desconhecido lhe dava medo. E o fazia se perguntar se era aquilo mesmo que queria.

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CAPÍTULO CINCOE por que visitar seus pais depois de morta é uma péssima ideia

Lorena se trancou no quarto. Costumava passar os fins de semana com a tia, muito mais liberal que sua mãe, que não a

deixava sair ou escutar música alta. Tentou não pensar na família, agitando as mãos na frente do rosto como que espantando uma nuvem de pensamentos. Sentou-se na cama, bem de frente para o calendário com fotos de gatos que a tia colocara sobre a estante. Passara uma noite inteira morta numa gaveta e essa informação se demorava em seu cérebro, se recusando a ser computada.

Puxou na memória o horário que saíra dali para voltar para casa, tentando contar nos dedos há quantas horas estava morta. Não conseguia para de imaginar os pais vendo seu corpo. Caso não tivesse acordado, provavelmente seria enterrada dali poucas horas, lá no cemitério de Blumenau onde ficava o jazigo da família. Odiava aquele lugar. Quando criança, os primos sempre a assus-tavam, dizendo que os túmulos quebrados eram portais de onde vinham fantasmas. E pensar que eles estavam quase certos. E que roupa será que eles teriam escolhido para ela? Algum vestido sem sentido ou uma de suas roupas preferidas? Que flores colocariam no caixão em volta dela?

Soltou um suspiro lento com sua recém recuperada respiração.O despertador lhe dizia que eram cinco e quarenta da manhã.

Pensou em tudo que Lucas lhe dissera, sentindo uma queimação na garganta. Então se levantou. Precisava deixar aquilo de lado

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ou enlouqueceria.Vestiu uma legging preta e uma camisa branca com a frase

“Love will tear us apart” do Joy Division. Calçou o All Star, mexeu nos cabelos para bagunçá-los do jeito que gostava, colocou seus brincos de raios e uma pulseira. Apenas ao se olhar no espelho do armário que se deu conta de quão diferente ficava sem os óculos. Aproximou-se do vidro, encarando o próprio rosto. Conseguia enxergar com perfeição. Os graus de astigmatismo haviam desa-parecido completamente. Ninguém a reconheceria assim, pensou. Deu de ombros, achando que aquilo era o suficiente como dis-farce. Não se deu ao trabalho de colocar um casaco. Tinha uma boa noção de temperatura agora que estava morta, mas não sentia frio.

Fitou o relógio mais uma vez. Que mal faria, pensou, ninguém ficaria sabendo. Lucas acharia que estava se arrumando. A casa dos pais era logo ali, a uns três quarteirões. Não faria mal algum dar uma espiada.

Abriu a porta lentamente e espiou pelo corredor. Nem sinal de Lucas. Trancou a porta atrás de si e andou pé ante pé até a cozinha. Havia uma pequena área de serviço nos fundos e lá, a porta da área de serviço.

A chave sempre ficava na fechadura, já que só a usavam para colocar o lixo pra fora. Saiu do apartamento o mais silenciosa-mente que pode. Cobriu o rosto com o cabelo ao passar por alguns moradores no hall de entrada e partiu em disparada.

Fechou os punhos com força e correu, sentindo o ar entrar nos seus pulmões, seus pés batendo no chão e a dor no diafragma ao correr. Sentiu o coração bater acelerado. A vida em cada um de seus dedos, no ar que batia no rosto e nas lágrimas que des-ciam pelas bochechas. Não se iludia em pensar que aquilo era vida de verdade, mas era o que desejava que fosse. Naquele momento,

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perdeu toda e qualquer vontade de descobrir qualquer coisa que fosse sobre aquele novo mundo.

Os milhares de prédios, pessoas, carros e lojas, passando por ela como borrões, sendo completamente ignorados. A vida da cidade começando cedinho. O ar fresco da manhã e o sol que apensa começava a despontar. As pessoas indo para o trabalho usavam suas jaquetas grossas e cachecóis no pescoço, falando ao telefone e comendo pães de queijo ao mesmo tempo.

Ia andando, pisando nas folhas secas, ouvindo-as esfarelar-se sob seus pés. Chutava pedregulhos espalhados pelo chão e juntou um pacote de salgadinhos, jogando-o no lixo.

Quantas vezes já não pensara na morte enquanto viva? Ou sentira que sua vida era inútil e não valia a pena? Precisou morrer para apreciar cada pulsação no peito. Mais do que nunca, queria estar viva. Sentir frio e calor. Levar um sermão dos pais. Tomar um sorvete vendo algum filme bobo. Se apaixonar por um cara que não valia nada. Fazer um amigo. Perder um amigo. Qualquer coisa.

Cada metro que se aproximava do que um dia fora sua casa, sua garganta se apertava mais. Diminuiu o passo, apertando o peito dolorido e ofegante. Andou as três casas seguintes e se sentou de frente para a rua, no muro baixo de um terreno baldio.

Ficou de olhos fechados, ouvindo o som do vento nas árvores e secando as lágrimas do rosto. O nariz coçava com o esforço que fazia para não chorar igual uma criança. Esperou até criar coragem para abrir os olhos. Quando o fez, um pequeno sobrado surgiu à sua frente. Ficava bem na esquina. Um quintal pequeno, decorado com flores simples e um fícus de dois metros ao lado da porta. A árvore estava plantada em um grande vaso vermelho, que ela mesma pintara quando mais nova.

Naquele bairro os prédios rareavam em comparação com o grande centro da cidade, e, naquela calmaria, parecia que estava

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em outro mundo. A brisa da manhã bagunçou ainda mais seus cabelos enquanto ela encarava a casa em que nunca mais entraria. Estava tudo fechado. Apenas olhando, ninguém poderia adivinhar que aquela família acabara de perder a filha. Um menino passou de bicicleta, atirando jornais nos quintais das casas. Viu o vizinho idoso levando água para o cachorro. Uma mulher fumava um cigarro, apoiada na janela da varanda. Tudo parecia extremamente normal.

Voltou a olhar para a casa dos pais. Havia um enfeite novo na porta. Algum símbolo chinês. Também haviam trocado a velha caixa de correio por uma nova.

Deu-se conta do quão insignificante era. Não como pessoa, mas de maneira geral. Quantas pessoas morriam por dia? Por que ela faria diferença? O mundo estava cheio de gente, e por mais que sua morte fizesse diferença para sua família, não afetaria em nada o resto do mundo. Tudo continuava completamente normal, mesmo no número 87 daquela rua pacata. A vida continuava. Todos conti-nuavam. Como uma barata morta a chineladas em uma infestação. Não faria a menor diferença matar aquela barata se as outras con-tinuavam vivas.

A não ser que ela voltasse como zumbi e ficasse andando por aí, pensou Lorena. Ela soltou um longo soluço e cobriu os olhos com as mãos, segurando o choro. Fitou a casa por entre os dedos e, sem conseguir se conter, começou a chorar. Seu corpo inteiro tremeu.

Lembrou-se do cheiro que a mãe tinha. Das mãos ásperas do pai. Da priminha que ficava com eles quando a tia viajava. Aquela coisa pequena de risada irritante que riscava seus cds. Lembrou-se de tudo isso, sabendo que nunca mais poderia ficar com eles. Não teria mais chocolate na Páscoa ou surpresas no Natal. Seu pai já tinha dito que estava muito velha para presente de dia das crianças,

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e ele tinha razão. Sua mãe não prepararia mais estrogonofe de camarão no seu aniversário. Seu preferido. Nunca mais iria até a praia para escolher conchas e pedras para brincar com a prima. Nem encontraria os amigos na pracinha na noite de sexta. O que faria quando a tia voltasse da Europa? Iria assombrar um cemité-rio? Vagaria por aí sem rumo? Será que haviam outros como ela? Eram muitas as coisas que ela não sabia. E por mais que quisesse e precisasse entender esse novo mundo, queria ficar longe das respostas. Como se elas fossem a confirmação de todos os seus temores.

Foi quando alguém se sentou ao lado dela. Sabia que era Lucas. Afinal, era o único que faria isso agora que estava morta. Ele tam-bém tinha um cheiro, que nem a mãe dela. Mas era diferente. Era cheiro de carro, aquele cheiro dos assentos novos misturado com algo a mais.

— Vai embora — disse ela.— Você não deveria estar aqui.Lorena não se importou. Só queria ser deixada sozinha.— Eu sei que é difícil. Se foi para mim, imagino como é para

você, que tem família.Surpreendeu-se com aquelas palavras. Então ele não tinha

família? Virou o rosto parapoder enxergá-lo. Lucas continuou:— Por favor, só entenda o que eu quero dizer — ele desviou

o olhar. — Você pode lamentar o quanto quiser, mas não pode ser vista de forma alguma.

— Ninguém vai me ver aqui. E não é como se eles esperassem me ver. Nem vão me reconhecer.

Ele balançou a cabeça.— Você está enganada. Quando a gente perde alguém, começa

a ver essa pessoa em todos os lugares. Qualquer um que passe,

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você acha que é essa pessoa andando por aí. Um cabelo parecido, alguém da mesma altura. Um borrão. Tudo nos faz pensar que a pessoa voltou. No começo, bastante, depois, menos. Até que você se acostuma e aceita que não a verá mais. Aí para de ver.

Lucas olhava em frente, com olhos desfocados. Seu rosto não expressava muita coisa. Continuava estático como sempre esti-vera. Mas os olhos não mentiam, havia algo ali. Não estava apenas falando de perder alguém, estava relatando a própria experiência. Pela primeira vez desde que acordara morta, Lorena percebeu que não era a única pessoa sozinha. Fez a pergunta antes de perceber o que estava fazendo.

— Quantos anos você tinha quando morreu?Ele hesitou por um instante.— Dezenove.— Hum — Lorena esperou, mas ele não disse mais nada. —

De quem você estava falando?Ele virou o rosto lentamente quando ela fez a pergunta. Agora

olhava diretamente para ela. Primeira vez que fez aquilo. — Minha mãe — ele ficou quieto um tempo antes de conti-

nuar. — Minha mãe morreu quando eu tinha uns seis anos. Eu a via em qualquer pessoa. Segurava na mão de estranhos na rua achando que poderia ser ela.

Lorena baixou a cabeça. Nunca perdera ninguém próximo, não fazia ideia de como era ter de dizer adeus. Até os avós estavam todos vivos. O máximo que ela havia perdido tinha sido um hams-ter, e nem era tão apegada ao animal, que sempre a mordia no dedo. Seu pensamento foi interrompido pelo barulho do portão abrindo.

Lucas se levantou num pulo, se colocando na frente dela em uma tentativa obviamente inútil de ocultá-la da pessoa que havia saído da casa. Lorena sabia que deveria abaixar a cabeça, se

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esconder, mas não conseguiu. Ficou olhando fixamente para sua mãe do outro lado da rua.

— O que você está fazendo? — Gritou Lucas. — Se esconda, vamos!

Nada. Lorena sequer se moveu. Ficou olhando para o cabelo castanho e ondulado dela, tentando se lembrar da textura que tinha. E, naquele instante, sua mãe se virou para ela.

Lucas tentou puxar Lorena pelo braço, mas não conseguiu tocá-la. As mãos atravessando seu corpo como se fossem nada.

Tentou se livrar do fantasma, olhando fixamente para a mãe que a fitava de volta do outro lado da rua. A boca dela se abrindo em uma vogal não dita. Sabia que precisava sair dali, que não podia ser reconhecida e que se mãe acreditasse que aquela era Lorena de fato, tudo seria ainda mais difícil para os pais. Como aceitar que a filha estava morta se uma “sósia” dela aparecia na rua de casa um dia depois de sua morte?

A mulher deu alguns passos em sua direção. Lucas desistiu de tentar arrastá-la dali e simplesmente ficou na frente de seu rosto e suplicou:

— Por favor, Lorena, vá embora!Dando-se conta da besteira que estava fazendo, levantou-se do

muro e saiu correndo. Virou na primeira esquina, apoiando as cos-tas na parede de um prédio qualquer sem força alguma para impe-dir as lágrimas de descerem pelo rosto. Começou a chorar sem se importar se alguém a visse e sem medo de passar vergonha. Tudo o que queria, lá dentro de seu coração morto, era correr de volta para casa e abraçar a mãe. Dizer a ela que a amava, coisa que nunca havia feito em vida e agora perdera todas as chances de fazer.

Queria poder reviver cada um dos momentos que tivera com eles, os bons, os ruins, os péssimos e os maravilhosos. Se tivesse sido mais obediente e fosse menos teimosa, será que ainda estaria

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viva? Será que tudo teria sido diferente?Lucas olhava a garota chorar sem saber o que fazer. Os soluços

não diminuíam e entre eles, pedidos de desculpas e lamentos de que nunca mais poderia ver seus amigos ou família. A garota sentou-se no chão, esfregando os olhos sem conseguir secar o rosto, se esfor-çando para conseguir parar de chorar. Ficou ali, vendo o garoto se abaixar na sua frente e passar a mão em seu cabelo, tirando-o do rosto, desgrudando os fios colados à pele pelas lágrimas.

— Vai ficar tudo bem — disse ele, colocando a franja com-prida atrás da sua orelha. Ficou ali durante todos os dez minutos que Lorena levou para se acalmar.

Então foi deixada sozinha com seus pensamentos e agradeceu por isso. Não queria precisar dividir aquilo tudo com um completo estranho. Naquele momento, preferiu a solidão. Pouco tempo depois, o fantasma voltou e sentou-se ao seu lado mais uma vez.

— Lorena, só, por favor, não faça mais isso. Existem umas regras que--

Ele parou de falar quando a garota bufou em sua direção, dando uma meia risada e balançando a cabeça com um sorriso irônico no rosto.

— Você realmente acha que eu tô preocupada com regras e anjos da morte e fantasmas? Vocês todos podem ir pro inferno. Só me deixa em paz, por favor.

— É sério. — Lucas insistiu. — Existem caçadores nesse mundo e eles podem vir atrás de você. Sem falar que o povo do Mundo Espiritual fica possesso de raiva quando um de nós aparece por aí.

Não impressionada, Lorena se colocou de pé e chutou com força um pedregulho, que foi parar em um terreno baldio perto dali.

— Eu morri, você é um cara que veio do completo nada e acha

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que pode ficar largando regra na minha vida – perdão – não vida. Não, obrigada.

— Okay, então — ele respondeu, jogando os braços para cima e começando a se afastar — Boa sorte quando vieram atrás e você. E boa sorte achando seu ceifador sozinha.

Ficou parada na esquina, vendo ele se afastar e se sentindo mais sozinha a cada passo que ele dava na direção oposta. Ele podia ser chato com todo aquele papo de regras, podia ser um sabichão que achava saber de tudo sobre a morte, mas era tudo o que ela tinha. E, apesar da raiva que sentia pelo que havia acontecido, sabia que ele tinha razão. Não é como se mortos ficassem aparecendo o tempo todo por aí, afinal eram um segredo que só alguns poucos se dignavam a acreditar.

Deixou o orgulho de lado e o seguiu. Ele parou de andar, tor-ceu a boca para ela:

— Mudou de ideia?— Vamos embora, esse lugar me deprime.Começaram a andar de volta para o apartamento, mas, antes de

virar na esquina da avenida, Lorena parou por um tempo e ficou ali plantada sem me mexer. Não tinha mais um lugar no mundo. Só o apartamento, e mesmo assim teria de abandoná-lo em breve. Olhou para Lucas à sua frente. A única coisa que tinha agora. Um total desconhecido. E só. Sabia que precisava se ater àquilo.

Andou alguns passos, sentindo o sol bater no seu rosto. Então virou-se para trás, dando uma última olhada nas janelas, no fícus, no portão. Gravou aquela imagem o máximo que podia na memó-ria. Até as partes descascadas da pintura, lá onde o guidão da bici-cleta raspou na parede.

— Adeus — disse ela baixinho.E nunca mais voltou lá.

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CAPÍTULO SEISNo qual a campainha toca e cabelos são pintados de azul

Lucas acompanhou Lorena até uma farmácia antes de voltarem para o apartamento. Ficaram quietos durante todo o tempo.

Ele não sabia muito bem o que dizer a ela e preferiu ficar quieto, evitando falar alguma besteira. Não reparou muito no que ela com-prou lá, apenas esperou do lado de fora. Nunca gostara do cheiro de farmácias, remédios ou hospitais. Ela voltou com um grande saco de papel e com a promessa de que arrumaria um disfarce melhor. Agradeceu pelo surto de bom senso. Lucas não queria pro-blemas por falta de responsabilidade dos outros.

Já no apartamento, Lorena se trancou no banheiro e ele ficou na sala. Desejava poder dormir. Estava cansado de ficar acordado o tempo todo. Já tentara ficar deitado de olhos fechados, mas não acontecia nada. Técnicas de meditação eram inúteis. Tinha que haver algo que pudesse fazer para simular um sono e ter alguns instantes de paz.

Foi até o estéreo e passou os olhos pelos cds que estavam nos suportes. Talvez, colocando música alta e fechando os olhos pudesse fingir que estava dormindo. Ou, pelo menos, descansar. Aquela pequena missão que haviam lhe dado estava começando a incomodar. Achava que precisaria ajudar apenas uma garota qual-quer, mas Lorena era diferente. Identificava-se com ela. Em muito tempo, foi a primeira pessoa que pensou em, quem sabe, consi-derar como amiga. E só estavam juntos há poucas horas. Talvez

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Flávia estivesse certa: o destino deles estava entrelaçado. Seus olhos encontraram o que sua mente precisava. Colocou o cd em uma das gavetas, aumentou o volume, acionou o repetir e deitou no sofá de olhos fechados. Ouviu Comfortably Numb várias vezes. E o efeito foi exatamente o que esperava. Fora o mais perto de dormir que tivera em dias. Podia ficar ali sem pensar em nada e relaxar a mente por pelo menos um pouquinho de tempo.

Lorena continuava trancada no banheiro. Podia ouvir o baru-lho do chuveiro agora. O que ela iria achar quando descobrisse a verdade sobre ele? Começava a sentir-se mal com o que estava fazendo e o que estava escondendo. Não tinha certeza se era o certo a ser feito, mas foi a ceifadora quem sugeriu. Ela provavel-mente tinha razão sobre aquilo e o que era melhor para a garota. Queria contar a ela toda a verdade, mas simplesmente não pode-ria. Não tão cedo. Ela sequer havia se acostumado com a ideia de estar morta. E, de preferência, deveria deixá-la acreditando que ele estava morto há muito tempo, ou não teria confiança nele. Sim, pensou ele. Seu foco era ajudar ela, não a si mesmo. E faria o que fosse preciso para fazer isso.

Sua mente estava longe quando ouviu as batidas na porta. Não se moveu. Elas continuaram. Não queria levantar, queria ficar des-cansando e aproveitar aqueles breves instantes de silêncio mental. Novas batidas, mais fortes e insistentes. Sentou-se no sofá com uma carranca, desligou o rádio e continuou ouvindo. Seja lá quem fosse, seria óbvio pra eles que havia alguém em casa, de tão alto que estava o volume do som.

Voltou-se para o corredor ao ouvir uma porta se abrindo. Praticamente não reconheceu a pessoa que veio para a sala com passos apressados. O cabelo estava azul e cortado acima dos ombros em um chanel desordenado. O corte a deixava mais nova e emoldurava o rosto redondo. Não teve tempo de ficar reparando

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na aparência nova de Lorena, pois ela se dirigiu diretamente para a porta. Lucas foi até ela de um salto, tentando puxá-la para trás, mas não teve tempo de impedi-la.

Quando a garota tocou a maçaneta, uma grande mão branca atravessou a porta e a agarrou pelo pescoço. Lucas deu um pulo na direção dela, mas a mão começou a subir, tirando os pés de Lorena do chão. Ela soltou um grito, tentando se desvencilhar e agarrando o enorme punho branco. Lucas ficou paralisado. Sabia quem eram as pessoas do outro lado.

A porta se abriu com força, batendo em Lorena e atirando-a ao chão. Pela porta, vieram duas figuras, a maior delas um grande fantasma esbranquiçado, usando uma boina preta e um charuto apagado no canto da boca. O segundo, mais baixo, não era translú-cido como seu colega. Usava um terno risca de giz com tênis. Um chapéu panamá na cabeça, completamente deslocado.

Lorena se arrastou até ficar de pé, respirando com dificuldade. O homem mais baixo começou a rir.

— Ora, ora, olha o que encontramos, não é uma gracinha? — Sua voz era estridente e irritante.

O mais alto começou a rir também. Flávia havia falado sobre eles, eram fiscais. Tomavam conta para que fantasmas, zumbis como Lorena e outros seres não aparecessem em público. Imaginou que uma hora eles apareceriam. Principalmente depois do que ela fizera.

— Quem são vocês? — perguntou ela, a voz esganiçada.— Quem faz as perguntas aqui somos nós, pirralha — disse o

mais baixo e gordo. — Quem é o incompetente do seu ceifador?Lucas estava certo de que ela falaria besteira só de ver a expres-

são na cara dela. Desejava que ficasse quieta para que ele mesmo pudesse responder. Percebia agora que deveria ter respondido as dúvidas dela, explicado mais. Achou que teria tempo de levá-la até

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Flávia antes que algo acontecesse. Mas não. Ela teve de correr até a casa de seus pais.

— O quê? — Perguntou Lorena.Novas risadas vieram dos fiscais.— Quem é seu Anjo da Morte? Quem ceifou você? Disse capuf,

tchau vida? Te empacotou. Cortou o cordãozinho de prata. Preciso desenhar?

Lorena fitou Lucas com os olhos assustados.— É Flávia — disse Lucas, indo à frente. — A enfermeira do

Hospital Santo Agostinho.Os dois fiscais se entreolharam e balançaram a cabeça, entrando

no apartamento e fechando a porta atrás deles.— Menina, menina... — começou o baixinho, se aproximando

de Lorena que dava passos para trás. — O que diabos vocês estava fazendo morta e apodrecida na frente da sua avivada mãe?

— Eu, eu... — Lorena continuava recuando, até que suas per-nas bateram na mesa de centro e teve de parar.

O fiscal ficou na ponta dos pés para se aproximar do rosto dela, mas ainda não passava da altura de sua barriga.

— Sua ceifadora por acaso lhe explicou o que acontece com zumbizinhos metidos a vivos? — Ele balançou o dedo curto e gordo.

Lorena se limitou a balançar a cabeça. Ele se afastou, deu meia volta e continuou encarando a garota.

— Assim como nos filmes idiotas que fazem para vocês ado-lescentes, existem caçadores. E eles não querem saber se você é boazinha ou o fantasminha camarada como esse cara aí — apon-tou para Lucas com a cabeça. — Você pode se ajoelhar e implorar e jurar que é do bem, mas eles vão te matar definitivamente mesmo assim. Ah, e eles sabem como fazer isso. Não é, Gasparzinho?

Lucas afirmou com a cabeça. A verdade é que sabia muito

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pouco sobre os caçadores ou sobre qualquer outra coisa. Flávia disse que zumbis podiam pegar fogo e mesmo assim voltariam, então, se nem isso acabava com um deles, o que poderia?

— Sem contar no povo que pode levar vocês para o inferno — ele soltou uma risada engasgada. — Isso é um aviso — gri-tou, quase cuspindo. — Na próxima vez que seu rostinho aparecer perto de um parente, vou te levar algemada e te prender até que você aprenda. Quer se matar, vá em frente, mas pare de colocar nosso delicado equilíbrio em jogo.

Lorena balançou a cabeça em concordância rapidamente. Parecendo satisfeitos, os dois fiscais foram para a porta.

— Vamos embora — disse o mais baixo.— Sim, chefe — respondeu o fantasma enorme e o seguiu.— Precisamos ter uma séria conversa com aquela doida e achar

um médium pra esses dois.Lucas e Lorena se entreolharam. Os dois fiscais resmungaram

alguma coisa em tom baixo um com o outro. Antes de fecharem a porta, o chefe concluiu:

— É bom vocês ficarem longe de problema, moleques.E bateram a porta com força na saída.

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CAPÍTULO SETESobre jornais mal educados

Lorena continuou olhando para a porta fechada durante um bom tempo depois que os homens foram embora. Massageou

o pescoço onde havia sido agarrada. Ainda conseguia sentir as mãos do fantasma a esmagando.

— Quem eram eles? — perguntou depois de algum tempo.— Fiscais — respondeu Lucas, se aproximando. — Eles é que

protegem o segredo do Mundo Espiritual e tudo o mais.Ele balançou a cabeça e murmurou um palavrão, agarrando os

cabelos pretos.— Eu deveria ter te levado direto ao hospital. Droga!Lorena bufou e deu de ombros. Danem-se fiscais ou caçadores

ou qualquer coisa. E a tal de Flávia também! Ela quem deveria ter lhe explicado as regras já que era sua ceifadora, não deveria ter mandado Lucas para fazer o serviço sujo dela. Se Flávia não tinha o menor interesse em ajudar, ela é que não correria atrás. Aquilo tudo era ridículo. Como assim, a mulher a ceifava e depois desa-parecia, deixando tudo para um garoto que aparentemente sabia tanto do mundo espiritual quanto ela? Fitou Lucas, que estava com uma feição preocupada, e exclamou:

— Dane-se isso, cara! Se a Flávia não fez o trabalho dela não é você quem tem que fazer.

— Você não entende... — ele começou a dizer.— Entendo sim — ela respondeu, querendo colocar um basta

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naquele assunto. — Agora vamos sair daqui. Que se exploda essa porcaria toda!

Lorena tentou agarrar o punho dele, mas sua mão simples-mente o atravessou. Ficou olhando para ele, intrigada.

— Vai me deixar encostar em você ou o que?Lucas se afastou um passo.— Onde você está indo?— Qualquer lugar que não seja esse! Eu estou morta, você está

morto. Podemos fazer o que bem entendermos agora. Oras, se eu quiser ir assombrar um boteco na China, eu vou!

Ela tentou agarrar o punho dele mais uma vez, inutilmente, então simplesmente se virou e foi para a porta. A verdade é que não tivera tempo para processar a própria morte e tudo o que acontecera até então. E como fazer para aceitar aquilo? Não que-ria manter a mente no assunto nem ficar remoendo o passado, mas mal acordara morta e já sentia uma saudade absurda de seu quarto, sua cama, suas coisas. Até da escola e das horríveis aulas de química. Só queria ser deixada em paz, mas, ao mesmo tempo, não queria ficar sozinha, pois eram naqueles momentos em que pensava em todas as coisas que nunca faria. Foi quando percebeu algo e virou-se para ele mais uma vez:

— Como você soube onde me achar quando fui pra casa?Lucas pareceu confuso por um segundo, depois soltou uma

exclamação e pegou algo no sofá, entregando para ela. Uma edição de um jornal local. Lorena suspirou assim que viu o logotipo no topo da página. Não podia ser coisa boa. Aquele era um jornaleco de quinta, com manchetes absurdas e linguagem popular que lhe davam uma profunda agonia.

— Já tinha me esquecido de entregar a você — disse ele. — Chegou aqui pela manhã.

Lorena passou os olhos pela página aberta, tentando entender

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por que diabos a tia assinava aquilo. Tinha uma foto da fachada de sua casa. Agora, Lorena não passava de uma pequena nota no canto da página, que se resumia a dois parágrafos sobre o corpo de uma garota que havia desaparecido do necrotério na noite anterior.

Odiou ler sobre si mesma naquele jornal vulgar, cheio de gírias e erros de gramática. Fitou com raiva a frase “corpo desaparecido da garota atropelada por carro”. Amassou o tabloide com raiva e o atirou ao outro lado da sala.

— Quem eles pensam que são pra escrever essas coisas? — Gritou ela. — E ainda escreveram meu nome com dois “n’s”! Bando de analfabetos!

— Lorena... — Lucas se aproximou.Ela ignorou o gesto dele quando tentou tocá-la e come-

çou a andar de um lado para o outro, resmungando e xingando. Sobressaltou-se quando algo agarrou seu braço e a puxou para trás. Ela teve de olhar para cima para fitar os olhos claros dele. Lucas deveria ser pelo menos um palmo mais alto que ela. Sua boca estava apertada, como se ele não soubesse muito bem o que fazer. E, vendo mais de perto, talvez ele mesmo não estivesse em paz. Se é que fosse possível ficar em paz naquele estado em que se encontravam.

— Se acalme — disse ele. — Isso não tem importância. Não mais.

Lorena o fitou por um longo momento, tentando se manter forte. Mas foi em vão. Não conseguia ficar fingindo que estava tudo okay e que era uma garota firme e decidida. Não era. Só estava se sentindo sozinha, confusa e com medo. A pergunta que todos se faziam, “há vida após a morte?”, fora quase respondida para ela, mas para onde iria depois dali? Para o céu? Ou reencarnaria? Lorena não queria ir para lugar algum, queria continuar no seu can-tinho de mundo, onde nascera e vivera. Era tão cedo ainda, fizera

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tão poucas coisas em sua vida. Sentia-se injustiçada, frustrada. Só queria voltar a viver.

Seus joelhos fraquejaram e caiu para frente. As lágrimas rola-ram pelas bochechas, sem embaraço. Lucas a segurou, apoiando o queixo em sua cabeça. Ela o apertou de volta e chorou, soluçando alto e sem se importar com o total estranho que ele era para ela. Segunda vez no mesmo dia que chorava na frente dele. Lucas deve-ria achá-la uma idiota e uma fraca.

Mas não importava. Era tudo o que tinha agora. Aquele garoto que parecia água ao toque. Depois de alguns momentos abraça-dos, parou de sentir o frio que vinha dele, a textura estranha da pele a envolvendo como um lençol.

— Você tem que deixar isso para trás ou ficará presa aqui para sempre.

A voz dele era macia e calma. Como se falasse à distância. Mas ele estava bem ali, e tinha certeza que poderia até sentir sua respi-ração e batimentos cardíacos se estivesse vivo. Pouquíssimas vezes ficara tão perto de um garoto. E agora que estava, não passava de uma menina morta. Perguntou-se o que acontecera com ele para que agisse de forma distante, como se estivesse vivendo em um mundo paralelo.

— O que você quer dizer com ficar presa? — perguntou ela com a voz trêmula.

— Quanto mais você se apega a coisas terrenas, é mais difícil ir ao Mais-Além.

— E por que eu iria querer ir para lá?Ele balançou a cabeça.— Acho que um dia vamos descobrir.Lucas se afastou, desviando o olhar dela. Lorena sabia que pre-

cisava parar de pensar naquilo ou ficaria louca. Estava morta. Mas como se acostumar com aquilo?

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— Se você quiser, não precisamos ir ao hospital — sugeriu Lucas — Podemos ir a outro lugar primeiro. O que você quiser. Eu te acompanho e até finjo ser um cara legal.

Lorena secou as lágrimas e sorriu.— Acho que podemos fazer isso — disse ela — Você acha que

estou diferente o bastante?Lorena abriu os braços e girou na frente dele, olhando para os

próprios pés.— Parece idiota, mas a falta dos óculos já me deixa bem

diferente.Ele apenas a olhou rapidamente e assentiu com a cabeça. Dessa

vez, quando Lorena tentou arrastá-lo para a porta, conseguiu segu-rar em seu braço.

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CAPÍTULO OITOOnde há um cardápio para mortos

Havia uma espécie de alívio tranquilo que ele costumava sentir quando ouvia o som do carro do irmão deixando a garagem.

Ou ao deitar-se na cama quente numa noite de inverno. Agora sentia isso ao atrasar ainda mais sua ida ao hospital. Pretendia deixar que Lorena fosse sozinha, mas sabia que talvez tivesse de acompanhá-la, e ele não gostava de ir até lá.

Lucas deixou Lorena segurar seu braço quando ela disparou para a porta. Ela era quente, ao contrário de tudo o mais que tocava, mas, ao mesmo tempo, era como se encostasse em água. A sensa-ção o lembrou de como era ter um corpo e a melancolia tomou conta dele. Quis estar sentado na frente da praia de noite, sentindo a maresia bater em seu rosto enquanto compunha alguma música no violão. Alguma canção que ninguém além dele mesmo jamais ouviria. Ignoraria a existência de qualquer pessoa que pudesse estar em volta e ficaria lá, improvisando e anotando coisas no caderno vez ou outra. Como fizera tantas vezes antes. Lembrou-se de como costumava pensar na morte há um tempo e se sentiu a pessoa mais tola na face da Terra. Ficar vagando por aí como um fantasma sem poder falar com ninguém, sem que ninguém pudesse lhe ver.

Tinha sorte de ter a garota, ou apodreceria de tédio. A ceifa-dora de suicidas no hospital havia dito aquilo para ele. Suicidas quase sempre viravam fantasmas. Já estavam na rua quando deixou seus pensamentos de lado.

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— Onde você está indo?— Onde nós estamos indo, você quer dizer. Não sei, algum

lugar para tomar café da manhã.Lucas sacudiu a cabeça.— Você é doida. Eu sou um fantasma e você é um zumbi.Lorena o encarou de boca entreaberta.— Eu não posso comer? — Perguntou ela.— Pode. Mas tem que vomitar depois.Lorena balançou a cabeça, fazendo cara de nojo.Além de dormir, devorar sorvete de chocolate era a segunda

coisa da qual Lucas mais sentia falta. Ou um pacote de biscoito recheado com refrigerante na frente do computador. Ou macarrão instantâneo. Ou hambúrguer. Qualquer coisa que pudesse masti-gar, na verdade.

— Tipo, qualquer coisa que eu coma? — Ela mostrou a língua. — Que horror!

— Eu sei. E eu posso até provar comida, mas é asqueroso demais. Tipo... você, morde e tal, mas a comida vai meio que caindo pelo queixo do sujeito.

Ela deu uma risada com cara de nojo e voltou a andar. Observou a forma como ela agia agora, como se nem estivesse chorando há poucos minutos. O braço dela agarrado no seu. Se perguntou o que os humanos normais estavam vendo quando olhavam para ela. Uma garota em uma posição estranha e falando sozinha.

— Velho, isso tudo é muito bizarro.Lucas deu um meio sorriso e a acompanhou. — Seja lá aonde formos — disse ele — não temos como pagar.Lorena tirou um cartão do bolso e o balançou.— Dinheiro de plástico. — Dinheiro de plástico é rastreável. Não que você se importe

com isso.

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Ela balançou a cabeça confirmando que não.— Vão achar que pegaram minha carteira no acidente ou

qualquer coisa assim. Eu tinha só esquecido na casa da minha tia mesmo. Pelo menos uma vez minha falta de memória vai me ajudar.

Andaram mais quinze minutos até chegarem a um café na Terceira Avenida. Um punhado de pessoas entrava e saía, com-prando café da manhã para mais um dia entediante de suas vidas, sem saber que, em volta delas, pessoas mortas viviam como se fossem gente. Lorena foi em frente e entrou.

— Não fale comigo ou vão achar que você é doida — disse Lucas.

— Da próxima vez trago um fone de ouvido pra acharem que estou no telefone.

Ela sequer se deu o trabalho de falar baixo. Realmente não se importava com nada. Por dentro, o café era escuro, iluminado por lustres alaranjados. Andaram até os fundos onde se sentaram a uma mesa de cadeiras acolchoadas.

— Você realmente vai fazer isso? — perguntou ele. Achava a ideia de comer repugnante.

Zumbis precisavam vomitar já que seus sistemas digestivos não funcionavam mais. Era simplesmente pelo prazer de provar a comida. Fantasmas também podiam sentir o gosto das coisas, mas só de imaginar a cena sentia a barriga embrulhar. Afinal, precisaria levar comida – flutuante para qualquer não morto olhando a cena – e mastigar, deixando a comida simplesmente cair no chão depois. Horroroso, pensou ele, se esforçando para seu asco não transpa-recer na face. Uma garçonete de rosto redondo e simpático foi até eles e deu uma risadinha.

— Olá! Vejam só, temos crianças novas aqui hoje!Lucas e Lorena se entreolharam e voltaram a fitar a garçonete

que continuou falando. Duas grandes bolas de blush na bochecha.

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Crianças. Ela havia usado o plural, o que significava que via os dois sentados ali.

— Vocês vieram no horário dos humanos — disse a garçonete rechonchuda de rosto feliz. — Então, menino, nada para você. Não queremos assustar ninguém. E menina, este é seu menu. E sem vomitar no nosso banheiro. Se quiser, venha de novo depois das onze da noite.

Ela entregou o cardápio e saiu apressada. Lucas e Lorena vol-taram a se entreolhar. Ambos espantados.

— Você sabia disso? — Perguntou ela.— Não! — Exclamou. — Não tinha ideia.— Como ela soube o que éramos?Lucas deu de ombros. Realmente não fazia ideia.— Sei lá, talvez ela também esteja morta ou é algum tipo de

criatura ou tenha olhos mágicos.Lorena deu uma risadinha, tampando a boca.— Não duvido nada. É tão estranho, pois estamos na mesma

cidade de sempre, mas a impressão que tenho é a de estar em outro mundo.

— Eu sei o que você quer dizer. Antes de te encontrar eu vi uma bruxa. Mas tipo, uma bruxa que voava e tudo o mais, só que ela não usava uma vassoura. Veio me perguntar pra que lado ficava Camboriú.

A garota simplesmente sorriu, girando o cardápio nas mãos. Lucas resolveu parar de falar naquilo, pois não queria que ela sou-besse que ele era um fantasma há pouco tempo.

Ele próprio fazia as mesmas perguntas que ela. O que havia depois da morte, para que estavam ali e o que era o mundo espiri-tual afinal.

Fitou o cardápio nas mãos dela e leu a descrição de uma das comidas na primeira página em voz alta:

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— “Fatia de torta. Receita especial. Deliciosa e fácil de expe-lir”. Perdoe-me por achar isso além de repugnante. Não vou te acompanhar mais se resolver começar a comer.

— Pois é. Depois de ver isso estou tendo sérias considerações sobre comer ou não.

— Ótimo. Foi a coisa mais inteligente que você disse até agora.— Lucas — chamou ela de repente.— O que?— Como você morreu?A pergunta o pegou de surpresa. Será que poderia ficar ainda

mais pálido do que já era? Lucas não falava com ninguém sobre sua vida e não pretendia começar a fazer isso agora. Especialmente agora. Gostava de Lorena, ela era legal, mas aquilo não signifi-cava que estava pronto para se abrir ou compartilhar nada com ela. Principalmente sobre aquele assunto específico. Queria distância. Ele ficou quieto por tanto tempo que Lorena deve ter percebido que nenhuma resposta viria dele. Ela baixou os olhos.

— Desculpe, eu não deveria me intrometer.Lucas balançou a cabeça. Não queria que ela achasse que não se

importava e por isso não falava nada, mas não podia fazer aquilo. E ela nunca entenderia.

— Qualquer coisa, menos isso — disse ele, se perguntando por que estava amenizando a situação ao invés de ficar quieto.

Ela assentiu e começou a batucar na mesa com as unhas.— Eu tenho... ahm, tinha dezesseis anos — começou ela. Podia

ver que fazia esforço para não voltar a chorar. — Estava voltando para casa depois de passar o fim de semana na casa da minha tia.

Lucas apertou os punhos embaixo da mesa quando ela come-çou a falar. Se pudesse, não ouviria mais nenhuma palavra.

— Eu estava com o fone de ouvido no volume máximo para não ouvir nada. Eu costumava fazer isso para não ouvir os carros

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ou cantadas de estranhos. Sequer prestei atenção no sinal ou qualquer coisa. Mal percebi o carro se aproximando. Na verdade — houve uma pausa quando a voz dela tremeu e ela engoliu um soluço — nem me lembro de ter visto o carro. Talvez eu apenas tenha imaginado ele em cima de mim.

Suspirou aliviado quando a garçonete parou do lado deles per-guntando se iriam querer algo, fazendo Lorena parar de falar. Sabia que não poderia fugir de ouvir a história dela para sempre, mas agradeceu por ter algum tempo a mais. Definitivamente não estava preparado para aquilo.

Lorena simplesmente balançou a cabeça para a garçonete e ela saiu, um pouco irritada por ter perdido tempo com os dois. Passaram os próximos quinze minutos discutindo o que acontece-ria com a cidade no caso de uma invasão de zumbis comedores de cérebro. O debate foi inconclusivo por não saberem como matar um zumbi de verdade. Estavam todos perdidos.

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CAPÍTULO NOVEQue se passa num local de gente morta onde ocorre um tumulto

Lorena não costumava precisar de muitas coisas para ficar feliz. Comer salgadinho de cebola na frente do computador

era apenas um dos fatos simples que faziam seu dia melhor. Ou quem sabe quando um garoto sorria para ela de forma tímida, mas não achava que isso já tivesse acontecido. Provavelmente não. Mas naquele momento, o que a fez feliz foi poder simplesmente gastar um dia inteiro com futilidades. Nada de estudar para prova, nem fazer dever de casa. Sem arrumar a cama ou lavar a louça. Sem pre-cisar comer alface ou se preocupar com o horário de estar em casa.

Como Lorena se recusou a ir ao hospital de qualquer jeito naquele dia, ela e Lucas ficaram perambulando pela cidade, apro-veitando o ar fresco e o sol que brilhava suavemente. Sentaram na frente da praia em total silêncio, observando as gaivotas investindo contra as redes dos pescadores. Depois foram assistir as tentativas frustradas das pessoas patinando no gelo da pista montada em um terreno baldio na Avenida Brasil.

Lorena fitava Lucas com o canto dos olhos, prestando atenção se ele sorriria sempre que alguém caia, mas foi em vão. O mais perto de um sorriso esboçado por ele foi ao mexer na argola no canto do lábio distraidamente, os olhos brilhando ao passarem por uma sorveteria.

Gostava da companhia dele. Não era desagradável ou intro-metido como muitas das pessoas de sua escola ou da vizinhança.

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Ficava no canto dele e lhe dava espaço. Desistiu de entrar em assuntos pessoais após o acontecido no café, então conversaram sobre música, livros e seriados, descobrindo que tinham mais em comum do que imaginaram, mesmo ele preferindo a melancolia de Sunny Day Real Estate e ela o otimismo de I’m From Barcelona. Lucas revelou que tocava violão e piano desde criança, mas que não gostava de ser observado fazendo isso. Em troca, Lorena lhe contou que tentara aprender violino aos onze anos de idade, mas descobrira ter habilidades nulas para música. Depois daquilo, con-centrou-se em apenas ouvir e colecionar os álbuns. Não pretendia ensurdecer ninguém.

Tentou fazê-lo prometer que tocaria uma música para ela, mas a desculpa de que não havia nenhum violão disponível não foi o suficiente para que Lorena desistisse. Só parou de incomodá-lo com aquilo quando ele, cansado, disse “ok, tudo bem, desde que você pare de falar sobre isso”.

Enquanto os dois andavam pelas calçadas movimentadas, a vida em volta deles continuava. A cidade apinhada de pessoas comprando e comendo, e indo e voltando compulsivamente. As sacolas de compras lotadas e as crianças derrubando seus picolés no chão, abrindo um berreiro. Os carros com homens estúpidos que passavam devagar na rua apenas para irritarem as mulheres na praia. Reparou na quantidade de pessoas em roupas de banho, mesmo no frio.

Já era perto das cinco quando voltaram para o apartamento, decididos a irem ao Café dos Mortos – como passaram a chamar o lugar – mais tarde. Queriam saber como ele seria com fantasmas e zumbis por dentro. Lorena resolveu que tentaria comer alguma coisa e tentou persuadir Lucas a fazer o mesmo, mas ele continuou recusando.

Percebeu que ele não estava contente com a ideia de ficar

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passeando ao invés de irem ao hospital, mas ele não disse nada, por isso, simplesmente ligou o videogame e deixou o assunto de lado. Lucas foi massacrado por ela por duas partidas seguidas antes de ter sua merecida vitória e vingança. A tarde passou rápido ali dentro e tudo o que faltava para ficar quase perfeito era um balde de pipoca quando desistiram do jogo e ligaram a televisão.

Quando o relógio bateu onze da noite, saíram de casa. Lorena com botas pretas por cima do jeans e uma camisa azul de caveira. Queria sua jaqueta de vinil de volta. Perguntou-se pra onde teriam levado suas coisas depois do acidente.

Lucas contava a história de quando entrara na universidade enquanto andavam. Surpreendeu-se por saber que ele cursava Física, o tipo de coisa que nenhuma pessoa sã deveria gostar. Lorena caminhava do seu lado sorrindo. Um dos seus sonhos sem-pre fora entrar para a faculdade. Sequer sabia direito o que queria cursar, mas não aguentava mais a escola. Queria se formar, sair da casa dos pais e arrumar um emprego. Nunca tinha trabalhado na vida. O máximo que chegou de um trabalho foi ajudar a mãe na lanchonete que ela abrira uma vez.

Lorena riu da revolta de Lucas quando ele contou sobre como a maioria dos alunos preferia ficar no bar bebendo ao invés de ir às aulas, como foi zoado no dia do trote por não querer participar e como ganhava dinheiro fazendo o trabalho dos outros.

Ao chegarem ao café, já havia diversas pessoas rindo e conver-sando nas mesas altas colocadas do lado de fora, na calçada. Olhou para eles, mas não conseguiu distinguir quem estava vivo ou quem era um fantasma ou zumbi.

— Você tem ideia de quem é o que só de olhar para eles? — Perguntou ela.

— Não faço ideia. Tem um cara meio transparente ali — Lucas apontou um homem de pé ao lado da porta.

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Ele tinha uma barba espessa e usava boné. Era translúcido, mas não era esbranquiçado como o fiscal que os visitara pela manhã.

— São tipos diferentes de fantasma? — perguntou ela.— Talvez. Ou acho que tem a ver com o tempo em que estão

mortos. Ou quem sabe são poltergeists — ele considerou.— E você já brincou de poltergeist? — Lorena riu. — Tipo,

quebrar abajur, bater porta, sacudir cortina, coisa assim?Lucas a olhou com a sobrancelha arqueada.— Eu tenho cara de quem fica entrando na casa dos outros pra

tentar assustá-los?A zumbi deu de ombros, sorrindo para ele. Voltou o olhar para

o fantasma ao lado da porta e massageou o pescoço mais uma vez onde fora erguida do chão pelo fiscal. Ficou olhando todas aquelas pessoas, imaginando quantas já conhecera que eram na verdade seres sobrenaturais. Será que também existiriam vampiros, lobi-somens e monstros? Abriu a boca para perguntar quando Lucas pegou sua mão e a levou para dentro do café. O gesto anuviou seus pensamentos.

O lugar estava pululando de gente por dentro. Lorena reco-nheceu Bloc Party vindo dos alto-falantes. Procuraram um lugar para sentar e acabaram na mesma mesa que estiveram pela manhã. Lucas se sentou ao lado dela, abriu o cardápio que estava sobre a mesa e suspirou audivelmente. Lorena riu.

— Você realmente vai comer alguma coisa? — perguntou ela, incrédula.

Lucas a fitou por um longo momento e os dois olharam em volta. Lorena apontou o que ambos estavam procurando.

— Ali — disse ela, fazendo uma careta.Uma garota de roupas coloridas mastigava um bolo como se

nunca tivesse comido antes. Acontece que o bolo mastigado caía de sua boca e pescoço direto para a mesa e o chão, já que era uma

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fantasma e a comida a atravessava. Ficava em sua boca por tempo suficiente para que sentisse o gosto.

Deu uma risada vendo a expressão no rosto de Lucas. Parecia que estava assistindo a alguma cena asquerosa envolvendo cadáve-res e vermes.

— Ok, isso é horrível. Se algum dia você resolver comer perto de mim não espere que eu fique por perto — disse ela com um esgar.

Lucas balançou a cabeça, desviando os olhos.— Vou para o inferno antes que isso aconteça.Os dois jovens foram surpreendidos pela garçonete de rosto

redondo daquela manhã. Ela parou ao lado deles e soltou uma risada esganiçada. Fios de baba voaram para a mesa.

— Um dia você sentirá falta de chocolate, meu amigo. Um dia. Aí você virá correndo e pedirá uma torta bem enorme. E então, alguém aqui criou coragem? Ora, vamos, como se você nunca tivesse vomitado por culpa de comer algo — acusou a garçonete apontando Lorena com a caneta que segurava.

— Não! Não mesmo! — defendeu-se ela, balançando a cabeça e os braços.

— Bem, decidam logo — disse ela indo embora.Lorena e Lucas se entreolharam mais uma vez quando ela saiu.

Ela deu uma meia risada, dando de ombros.— Essa mulher deve ter dado a gargalhada mais macabra que

já ouvi — disse Lucas.Lorena sorriu, reparando como os dedos dele eram finos e

suas mãos, delicadas, como as de nenhum menino que tivesse visto antes.

Sentiu o rosto ruborizar e virou para o outro lado, para ter certeza que ele não a veria. Observou o local em busca de possí-veis casais. Será que pessoas mortas podiam ficar juntas? Sentiu-se

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ridícula pelo pensamento. Sempre que gostava de alguém acabava se machucando ou descobrindo que o cara era um completo idiota. Agora que achara alguém legal, estava morta. Ambos estavam mor-tos. Mas não importava, já que ele certamente não teria nenhum tipo de interesse por ela. Além disso, a porta de entrada acabara de ser aberta com um chute e seus pensamentos ficaram mais preocu-pados com as três figuras enormes que entraram no café.

Pelo menos uma de suas perguntas foi respondida. Existiam sim várias criaturas sobrenaturais pelo mundo, pois os seres que entraram pela porta estavam longe de ser humanos. Suas pernas eram peludas, avermelhadas, e lembravam a parte de baixo de um canino enorme, com duas caudas saindo das calças esfarrapadas. O torso musculoso deles estava nu. As mãos eram garras e o rosto era comprido e lembrava uma raposa raivosa.

Os três farejaram o local com os longos narizes. Os olhos ver-melhos faiscando e as presas a mostra. Tudo ficou absolutamente silencioso. Ninguém sequer piscava. Todos estavam voltados para eles, e, se eles sentiam medo, Lorena calculou que também deveria. Agarrou o braço de Lucas quando um deles olhou diretamente na sua direção. Um frio percorreu toda sua coluna, de cima abaixo.

Um homem de uns cinquenta anos veio correndo dos fundos, segurando uma espingarda apontada contra eles.

— Vocês não deveriam estar aqui — ameaçou o homem. — Negócios são negócios, e já resolvemos nosso problema com sua laia.

Lucas segurou seu ombro e a apertou contra si.— São caçadores — disse ele entre os dentes, ao seu ouvido.Lorena sentiu cada pelo de sua nuca arrepiando. Encolheu-se

contra ele e não disse nada para não chamar atenção.— Negócios? — grasnou um deles. Ele bufou e olhou em volta,

dando uma risada — O trato não era esse. Você está deixando um

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bando de seres se esbaldarem no meio da cidade onde qualquer humano pode ver.

— Mas não podem ver nada! — defendeu o homem. — Temos prot--

— Não interessa o que você tem ou deixa de ter. Um zumbi foi avistado por um humano que saiu por aí dizendo que tinha visto a filha morta. Ela vai conosco, não interessa o que diabos você tem arranjado. Negócios... — bufou a criatura, dando um sorriso sinistro ao enunciar a última palavra. Cada dente à mostra.

Lorena apertou os dedos contra o braço de Lucas ao ouvir aquilo. Não sabia do que se tratava, mas ela era um zumbi que fora visto por um humano. Seja lá de que trato eles estivessem falando. Tinha de ser ela.

Viu o homem balançar a cabeça, resignado, e abaixar a arma.— Seja rápido e não quebre nada.Ao dizer estas palavras, ouve uma onda de barulho dentro do

lugar. Pessoas começaram a correr e derrubar mesas e cadeiras. Copos faziam estardalhaço caindo no chão ao mesmo tempo. Uma das janelas foi quebrada em meio ao tumulto e várias pessoas pas-saram por ela para fugir.

Lorena e Lucas se levantaram e tentaram passar pela multidão que se espremia entre as mesas.

— Saia daqui! — gritou Lorena — Você pode atravessar pelas paredes! Vá embora!

— Não! — Exclamou ele. — Venha!Lucas a puxou pelo braço, mas Lorena estava paralisada, fitando

de olhos vidrados o cano da pistola apontada para sua testa. E então, tudo ficou escuro. Outra vez.

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CAPÍTULO DEZE a dor de cabeça sempre que chego perto daquele lugar

Lucas corria com toda a velocidade pelas ruas de Balneário Camboriú. Como não se cansava, conseguia cobrir uma boa

distância em um tempo considerável, mas ainda assim, desejava saber como flutuar ou surgir de repente em algum lugar.

Precisava de ajuda. Esperava encontrar Flávia ou sua própria ceifadora no hospital. Uma delas deveria saber como ajudar Lorena. Lucas não fazia ideia do que fazer e ninguém em volta do café se propôs a ajudar ou sequer responder suas dúvidas. Todos pareciam ter medo demais para falar algo, o que o assustou mais ainda. Onde será que a tinham levado e o que acontecia nesse lugar?

Correu pelas ruas atravessando tudo à sua frente, carros, pes-soas e muros. Quanto mais próximo do hospital chegava, mais sua cabeça doía. Gostaria de nunca mais precisar chegar perto daquele lugar de novo. Apertou os dentes e continuou sua corrida. A cabeça latejou com força ao pisar na recepção do hospital.

Ficou parado ali por alguns instantes, massageando as têmpo-ras. Fez o máximo que pode para ignorar a dor e foi em frente, subindo as escadas.

Foi andando devagar, olhando dentro de cada um dos quartos, tentando reconhecer a cabeleira branca de Flávia ou Ixtab, a cei-fadora de apelido estranho. Virou no fim do corredor e já estava prestes a entrar na enfermaria quando uma garota atravessou a parede e o encarou com um sorriso nos lábios finos. Ela era esguia

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e usava roupas pretas que cobriam todo o seu corpo. Botas pesadas por cima das calças, com o cabelo liso escorrendo em volta do rosto branco.

Lucas caiu no chão de joelhos. A cabeça explodindo de dor.— Preciso da sua ajuda — implorou, já quase sem forças. — Lucas! — exclamou ela — Deve estar mesmo desesperado

pra vir até aqui.— Okay, é isso mesmo. Agora será que podíamos sair daqui?A garota lhe sorriu e o agarrou pela gola da camiseta, levan-

tando-o do chão de forma bruta. No segundo seguinte o corredor havia desaparecido. O cheiro de remédio substituído pelo odor salgado do mar.

Seus pés voltaram a se firmar no chão e olhou em volta, reco-nhecendo o local. Estavam no grande píer da Barra Sul, as luzes dos postes todas acesas, ofuscando sua visão da praia. As ondas arrebentavam nas rochas, levando água até eles. Estava de pé exa-tamente no centro da rosa dos ventos desenhada no chão. A dor de cabeça havia desaparecido.

— Longe o suficiente?Lucas assentiu com a cabeça e agradeceu.— O que você quer de mim? — perguntou ela, cruzando os

braços no peito. Tudo nela era pequeno. O nariz, as orelhas a boca e o corpo. Menos os olhos.

— Eles levaram a Lorena embora. Os caçadores — Lucas explicou.

Ixtab crispou os lábios, desgostosa.— Você deveria se preocupar consigo mesmo, Lucas. Sinto

muito por Lorena, mas não há nada que você possa fazer.Lucas sentiu o chão ruir a seus pés. Não havia nada que pudesse

fazer? Tinha de haver alguma coisa.— Você não entende — começou ele, mas foi interrompido

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pela garota.— Eu não entendo? Escuta aqui, garoto, você não passa de um

moleque que fica se metendo onde não é chamado. Vá cuidar dos seus problemas, que não são poucos. Quer ajudar alguém? Arruma outra pessoa, tem um monte de zumbis por aí querendo colo!

Ele a fitou de olhos cansados sem saber como reagir àquelas palavras. Abriu a boca para responder, mas não veio nada.

— E mais uma coisa — disse ela. — Não é problema meu. Meu trabalho é ceifar suicidas, não cuidar de zumbis. E depois, não há nada que você possa fazer, pois não tem como chegar lá.

— Lá onde?— Você não sabe de nada mesmo, não é? Como consegue fin-

gir pra ela que é o sabichão?— Só me diga onde ela está, não preciso de mais nada.Ela voltou a rir.— Existem duas coisas que os caçadores fazem quando pegam

alguém. Uma delas é simplesmente matar a criatura. Lorena é um zumbi, mas você pode picotar tudo que eles continuam voltando. Agora use sua imaginação e pense nas coisas horríveis que podem fazer com eles. Se quiserem destruir um zumbi, eles conseguem. A alma que ainda está presa ao corpo vai embora e nunca chega ao Mais-Além. Mas acontece que eles gostam de dinheiro, os caçado-res. E às vezes, vendem os seres que capturam para uma arena que fica no Limbo.

— No Limbo? Você quer dizer, tipo, no Inferno?Ela assentiu.— Não temos como saber se é lá que Lorena está. A única

forma é descer e checar. Mas você ainda não está pronto para isso. Se eu te mandasse pro Inferno, duvido que poderia subir de volta.

Lucas deixou os ombros cairem, frustrado. Pouco se impor-tava com o que aconteceria com ele, mas considerava Lorena uma

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responsabilidade sua. Precisava fazer alguma coisa para ajudar.A ceifadora continuou encarando Lucas, mas agora de forma

quase piedosa.— Você não pode me ensinar a voltar de lá? Eu preciso fazer

isso — disse o garoto.Ela suspirou alto e começou a andar de um lado para o outro.

Murmurou algumas palavras para si mesma.— Olha aqui, garoto — ela disse depois de um tempo. — A

zumbi não é meu problema. Mas você é. Eu sugiro você desistir da ideia e ir assombrar algum cemitério por aí, mas se você fizer questão de descer...

Lucas se aproximou enquanto Ixtab roía uma unha, conside-rando o que dizer a seguir.

— O esquema é o seguinte — disse ela. — O Limbo é tipo a porta de entrada do Inferno. Você pode até conseguir entrar e sair, mas a consistência daquele mundo é diferente daqui. Tudo é mais pesado. As coisas serão mais densas e difíceis de atravessar. A entrada é um grande túnel com almas presas a ele. Se uma delas encostar em você, estará perdido.

Lucas assentia, concordando com que ela falava e tentando gravar tudo na memória. Estava com um pouco de medo de fazer aquilo, mas era preciso.

— Todos poderão te ver, mas não há fantasmas lá, então nem se preocupe com isso. Para voltar, você vai precisar subir o túnel de volta. Mas, como eu disse, você não sabe flutuar ainda. Vai ter que aprender. Não tem segredo. É só pular. Segure a menina e pule. E nunca, nunca, nunca encoste nas paredes do túnel. Não temos tempo a perder. O tempo passa diferente lá em baixo. Tem certeza de que quer fazer isso?

Lucas fez que sim e Ixtab se aproximou. Murmurou algumas palavras e tocou o indicador na testa do garoto. Imediatamente,

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tudo ficou escuro. A garota desapareceu aos poucos e Lucas sentiu uma ventania forte contra seu rosto. E então percebeu que estava caindo.

Sua visão começou a clarear e reparou que estava de cabeça para baixo, caindo em um túnel enorme. As paredes eram de argila e tudo fedia. Para seu horror, incrustadas na parede, havia milha-res de pessoas. Elas esticavam a mão para ele enquanto passava e, por duas vezes, uma daquelas coisas quase encostou nele. Suas bocas estavam escancaradas com expressões de pavor. O som que emitiam fazia seu coração gelar, como se cada murmúrio transmi-tissem a dor que sentiam.

Lucas fechou os olhos e tapou os ouvidos em uma tentativa de abafar os sons dos lamentos. Depois do que lhe pareceu uns dez minutos, olhou para baixo e avistou uma gigantesca construção. Estava bem acima de uma cidade rodeada por grandes muralhas, e tudo parecia desgastado pelo tempo. Começou a diminuir de velo-cidade e se aproximar de algo que parecia uma praça, ou mercado a céu aberto. Não houve impacto quando tocou o chão e percebeu que seu corpo parecia mais sólido agora que estava ali. Abriu e fechou as mãos, percebendo que a sensação era muito similar a de quando tinha mãos de verdade.

O céu estava preenchido por nuvens revoltas que giravam em volta do grande túnel logo acima. Parecia haver uma espécie de poeira avermelhada por tudo, inclusive no ar. Pessoas maltrapilhas andavam de um lado para outro cuidando de seus afazeres de forma extremamente silenciosa. Chegava a ser incômodo. Carregavam liteiras cheias de repolhos estragados, montavam barracas e tos-siam. Arrastavam os pés de um lado para o outro. Não conver-savam e os ruídos não eram mais que o necessário deixando uma sensação desagradável no ambiente, que era agravada pelo cheiro. O vento passava entre os pequenos prédios e barracas emitindo

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um som fantasmagórico. Ninguém prestou atenção nele. Andou em volta procurando onde pudesse ir e até tentou chamar atenção de alguém, mas foi completamente ignorado. Entrou em uma ruela cercada por muros sujos de lama e cheio de lixo espalhado pelo chão. E foi ali, pregado ao muro, que viu um cartaz. E a criatura ilustrada no papel gelou seu corpo.

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CAPÍTULO ONZEE o vampiro simpático com o qual divido minha cela

A primeira coisa que Lorena fez quando acordou foi levar a mão a testa e tatear em busca do furo da bala. Mas assim

como da outra vez, não havia mais nada ali. Sequer doía. Soltou um gemido de enjôo quando se sentou e o cheiro do lugar invadiu suas narinas. Não sabia bem o que era, mas parecia uma mistura de ratos mortos com urina. Tampou o nariz fazendo um esgar.

Lembrou que não precisava respirar e se concentrou por alguns segundos. Era estranho ficar ali parada, sem ar entrando nos pulmões.

Estava escuro. Não conseguia discernir muito bem o local, mas o chão estava coberto de areia lamacenta. A pouca iluminação que entrava ali vinha das frestas de um alçapão fechado no teto.

Não deveria estar ali. Era para estar em um café, ou na praia ou em casa com Lucas, segura e morta. Não tinha achado que as coisas poderiam piorar ainda mais.

— Meu dia de sorte.Lorena se encolheu no seu canto da parede ao ouvir aquelas

palavras. Vieram do outro lado do aposento. Uma voz masculina, macia e fria.

— Quem está aí? — perguntou ela. Não conseguia ver nada.— Eles devem estar com as celas todas lotadas para colocar

alguém como você no mesmo buraco que eu. E vejam só, você vai direto para a arena hoje.

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Arena? Cela? O que diabos estava acontecendo? Voltou a olhar em volta, procurando uma saída, mas não havia nada. Aproximou-se da parte escura, mantendo distância da voz e tateando a parede. Encontrou sulcos ali. Provavelmente uma porta muito bem selada. O homem começou a rir:

— Sabe, eles adoram fazer isso. Pegam alguém novinho, de roupas bonitinhas, com uma carinha lindinha... e colocam lá em cima. Direto. A luta de hoje será pela manhã e, bem... não posso me bronzear nesse delicioso sol do Inferno. O público adora a confusão nos olhos dos novatos. São uns doentes mentais, se me perguntar.

— Inferno? — perguntou Lorena. A voz esganiçada — Como assim, onde estou?

O dono da voz começou a vir à frente, entrando lentamente no seu campo de visão. Seu cabelo negro era escorrido e seboso, com a lateral direita totalmente raspada. Usava óculos grandes de arma-ção preta e alargadores grandes nas orelhas. Suas roupas estavam surradas e pareciam ter saído do armário de David Bowie. Camisa bufante e colorida, com calças roxas apertadas e botas brancas. A composição não fazia muito sentido.

— Como você se chama, menina? — perguntou ele.Depois de vê-lo, imaginou que agora podia parar de sentir

medo dele. Ou não, considerando que apenas alguém meio louco vestiria aquilo.

— Lorena — respondeu ela, com a voz menos trêmula agora.— Então, Lorena, funciona mais ou menos assim: tente não

ser acertada pela criatura. Tente não deixá-la dilacerar você. Não a deixe mordê-la. Se você ficar inteira por tempo suficiente, talvez eles não a usem de boneco de pano contra quimeras diariamente. Não é divertido quando não tem muito sangue. Ah, e o mais importante: não seja devorada.

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— Você quer dizer que isso é uma arena de verdade? Estilo Roma?

Ele sorriu largamente. Viu um par de presas na boca dele. Vampiros existiam, afinal.

— Tipo Roma, só que pior. Lá eles morriam. Aqui usam vam-piros, zumbis, e qualquer outra coisa que se regenere. Aí é mais barato do que comprar escravos. Eu sou Sonny, a propósito.

Ele estendeu a mão de unhas descuidadas e compridas para ela. Parecia estar ali naquele buraco há muito tempo. Lorena vacilou antes de apertá-la. A pele dele era gélida, ainda mais que Lucas.

Lucas! O que será que havia acontecido com ele? Será que ele tentaria tirá-la dali ou havia ficado na Terra?

Não teve muito mais tempo para pensar naquilo, pois o alçapão começou a se mover. Uma fresta de luz entrou na cela e Sonny se escondeu em seu canto novamente.

— Lembra do que eu te disse, senhorita Lorena. Apenas fuja. Tente durar o máximo de tempo. Se eles acharem que você vale a pena, vão te trazer pra cá de volta pra que trabalhe outras vezes.

— E se eu não conseguir? — ela gritou.Ele abanou a cabeça, os lábios contraídos e ombros caídos.— Não pense muito nisso. Se você der sorte... — Ele hesitou

por um instante, parecendo pensar um pouco sobre algo. Enquanto isso, a rampa descia cada vez mais. Lá de cima podia ouvir o ruivo de uma platéia enlouquecida. — Se você der sorte vão ter te dado armas. Tá vendo ali?

O vampiro apontou uma espécie de trava na abertura no teto. Parecia ser algo usado para selar a porta.

— Um golpe bem dado com uma espada vai quebrar a trava e essa porta vai abrir. Quem sabe consegue comprar um pouco de tempo.

— Ninguém nunca tentou isso antes? — conseguiu perguntar.

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A voz vacilando entre cada palavra.— Claro que sim, fazem isso o tempo todo. O público acha

divertido. Mas se seu adversário for grande, não vai conseguir te pegar aqui em baixo.

— Mas e você — ela perguntou. Afinal, se ela abrisse a porta, o vampiro poderia ser atacado também.

— Não se preocupe com isso.Lorena apertou os punhos e agradeceu, mal conseguindo abrir

a boca para dizer “obrigada”. Tremia tanto que não tinha certeza se conseguiria se manter de pé.

— Boa sorte, garota.A porta do alçapão bateu com força no chão, formando uma

rampa. A iluminação avermelhada feriu seus olhos e ela cobriu o rosto com o braço. O som de milhares de pessoas gritando veio lá de cima, junto de palmas e pés batendo no chão. Ouviu a voz de um locutor falando alegremente.

— Eeeee bom dia senhoras e senhores, meninos e meninas! Hoje começaremos com nosso tradicional desmembramento de zumbis!

E mais uma onda de gritos entusiasmados vieram da plateia. Lorena ficou petrificada onde estava. Não conseguiu mover um músculo. Fitou o local onde Sonny se escondera em busca de apoio. E ele veio, mas não da forma como desejava.

— Melhor subir — disse ele. — Não é legal quando te obri-gam a subir.

Buscou força de onde não tinha e colocou os pés sobre a rampa, que voltou a subir no mesmo momento, a levando para cima. Como faria para fugir se mal conseguia se mover? Engoliu em seco, olhou em volta tentando decorar a localização do alçapão e abraçou o próprio corpo.

— Boa sorte para mim.

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CAPÍTULO DOZEQue se passa no coliseu do inferno

Por que todos o ignoravam? Lucas se perguntava. Era pior que na casa do irmão, quando era pequeno. As pessoas ali defini-

tivamente o viam. Desviavam dele e, às vezes, o encaravam longa-mente antes de seguir seu caminho.

Depois de quase esfregar o cartaz sobre a Arena na cara de um camponês, alguém finalmente reagiu. O homem aproximou o papel dos olhos antes de apontar um caminho largo entre duas grandes construções decoradas por colunas.

— Siga reto, depois esquerda e depois direita — respondeu lacônico, com a voz totalmente desprovida de emoção.

Sem esperar, correu para aquele lado. Assim que virou à direita começou a ver uma certa aglomeração. Havia saído daquela praça circundada por casinhas e lojas toscas e estava se aproximando de algo que parecia ser um centro muito movimentado.

As pessoas ainda falavam baixo, mas o murmúrio de todas falando junto fazia barulho.

Virou à esquerda, seguindo a multidão, que também parecia se encaminhar para lá, e deu de cara com uma construção enorme. Paredes arredondadas e gigantescas que pareciam ter saído direta-mente de um filme de gladiadores.

Gritos podiam ser ouvidos lá de dentro e as pessoas na com-prida fila em frente ao local esboçavam sorrisos ou carrancas, bem diferentes das que havia visto anteriormente. Homens, crianças,

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mulheres e idosos. Todos entusiasmados com uma boa matança.Resolveu ignorar a fila e começar a atravessar todo mundo, mas

teve que fazer força para isso. Era bem diferente de como aconte-cia na Terra, onde mal sentia quando passava por algo. As pessoas notaram e logo começaram a xingar e gesticular em sua direção. Apertou o passo e foi parar em um corredor de pedras amareladas sujas e mal esculpidas. Marcas de mãos e outras manchas que dese-jou não saber o que eram estavam por todos os lados. O corredor o levou a uma escada espiralada e subiu, junto dos outros mor-tos. Quando chegou ao topo, viu-se no primeiro patamar de uma enorme arquibancada repleta de pessoas, que berravam e agitavam os braços, cuspiam no chão e brigavam entre si.

A cena era apavorante. Aquele monte de gente morta e conde-nada ao Limbo se reunindo para ver carnificina. O chão tremia e o ar estava completamente preenchido pelos gritos.

Apoiou as mãos no parapeito e olhou para o centro da arena – um enorme átrio redondo coberto de areia – que estava vazia. Localizou algumas portas com grades e imaginou que seria por ali que os desafiantes entrariam. Precisava encontrar o local onde a haviam prendido e depressa, antes que a colocassem para lutar. Não acreditava que fariam isso tão cedo, logo após ela chegar. Talvez tivesse tempo.

Foi então que um alto-falante provou que estava errado. Uma voz alta, que se fez ouvir em meio aos berros de milhares de pes-soas. Um locutor começou a gritar de algum lugar da plateia:

— Eeeee bom dia, senhoras e senhores, meninos e meninas! Hoje começaremos com nosso tradicional desmembramento de zumbis!

A plateia foi à loucura. Levantaram-se de seus assentos, pulando e jogando objetos na arena, gritando ainda mais que antes, como se isso fosse possível.

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Uma porta no chão do campo se abriu e Lucas rezou para que o zumbi que seria desmembrado não fosse Lorena.

— E hoje, temos uma surpresa para todos — continuou o locu-tor. — Sabemos como vocês adoram carne fresca e inexperiente. Principalmente se tiver acompanhado de um rostinho bonito!

Se Lucas tivesse sangue em suas veias, ele teria congelado naquele momento. As pessoas gritavam enquanto ele fitava a porta aberta no chão boquiaberto. Carne fresca e inexperiente? Rostinho bonito? Lorena, toda pequena, de cabelo azul e carinha redonda e sardenta poderia muito bem ser o rostinho bonito do qual ele falava.

E como prova de que Lucas deveria continuar tão cético como sempre por não ter suas preces atendidas, uma cabeleira bagunçada subiu a rampa e adentrou a arena.

Lorena se envolvia nos próprios braços, olhando em volta con-fusa, de olhos arregalados. A multidão pulava e gritava palavrões e obscenidades para ela. Quis correr e tirá-la dali, mas provavel-mente não seria o melhor momento. Precisava esperar e pensar ou tudo daria errado.

O locutor começou a rir. Lorena soltou os braços e começou a olhar em volta, como se procurasse o dono da voz.

— Assustada ela, não é pessoal? — a multidão concordou em uníssono, como se aquilo fosse ensaiado. — E o que vocês gostam que os novinhos façam na arena?

Sentiu o corpo gelar quando responderam em perfeita sinto-nia: “Sangrem”, gritaram eles. Um mal estar se apoderou dele e jurou que teria vomitado se isso fosse possível. Lorena, por sua vez, mostrou o dedo do meio para eles.

Uma das gigantescas portas gradeadas se abriu com um estrondo, fazendo Lucas pular de susto. Lorena deu vários passos para trás tentando se afastar da criatura gigantesca que adentrou a

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arena, rugindo com as três bocas de suas três cabeças.Parecia um gigantesco felino com o corpo coberto de escamas.

A cabeça do meio era indiscutivelmente a de um leão, mas no local da juba, havia uma massa parecida com fogo, que se movimentava violentamente. A outra era uma serpente de presas enormes, que avançava e sibilava para ela. A terceira parecia de um bode, com chifres enormes e afiados. A quimera tinha asas nas costas, mas estavam dilaceradas e balançavam inertes conforme a criatura se movia. Provavelmente fizeram aquilo com ela para que não esca-passe voando da arena.

Lorena soltou um grito e a multidão começou a rir quando ela tropeçou nos próprios pés e caiu. Não prestou atenção no locutor, mas um cavalete repleto de armas surgiu perto dela.

Não esperou mais nem um segundo. Uma única patada do monstro e Lorena seria feita em pedaços. Pulou de onde estava diretamente para o chão da arena no momento que a criatura investia contra ela. Não fazia ideia do que faria, mas quem sabe, poderia distrair a criatura.

Lorena agarrou uma pequena espada do suporte e rolou no chão, para fora do caminho da besta. Houve um som de surpresa da plateia quando Lucas disparou em direção à garota.

— Lucas? — Lorena o fitou com o rosto sujo manchado de lágrimas. Seus ombros tremiam e parecia fazer esforço para ficar de pé.

— Cuidado! — gritou Lucas quando a quimera disparou para cima dela novamente. Ela correu para o lado na mesma hora, fazendo a criatura se chocar contra o suporte de armas, espalhando-as para todos os lados. A cabeça de serpente tentava abocanhá-la à distância enquanto o leão rugia, se preparando para atacar novamente.

Lucas gritou para a quimera, tentando chamar sua atenção,

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mas ela o ignorava completamente. Catou algumas pedras do chão e tacou nela, acertando suas costas. A quimera se virou, rugindo incomodada. Olhou fixamente na direção de Lucas e voltou sua atenção para Lorena que corria para longe.

Era impossível que até a quimera o ignorasse naquele mundo. Talvez, pensou ele, ela não o enxergasse, como no mundo humano. Lucas pegou a primeira arma que viu no chão, um machado, e correu para alcançar Lorena. Passou a mão pela alça de couro na base da arma e a girou no ar gritando, tentando chamar atenção da quimera, rezando para que o bicho pudesse ver o machado.

Lucas não estava prestando atenção na plateia, mas se estivesse, teria percebido que agora todos olhavam para ele. O locutor per-guntava quem era o invasor e parecia não saber se aquilo era emo-cionante ou muito errado.

Em todo o caso, a quimera não prestou atenção no machado que girava sozinho perto dela. Desta vez, Lorena não conseguiu escapar do ataque. A criatura lhe deu uma patada que a jogou longe, rasgando a blusa e abrindo um imenso corte em sua barriga.

O sangue dela espirrou quando um grito fraco escapou da gar-ganta da menina. Ela rolou pelo chão, imóvel. Uma pequena poça de sangue se formando.

— Lorena!Lucas berrou, esperando alguma reação da garota, mas não

houve nada. Ele sabia que nada aconteceria com ela, e que em breve seu corpo se regeneraria e ela levantaria do chão, mas isso não significava que gostava do sangue que se empapava a areia.

Agradeceu por não ter estômago, ou nunca teria aguentado ver aquilo. Se recompôs quando a quimera finalmente fitou o machado. Agora que não tinha mais a garota para distraí-la, a besta correu para ele imediatamente. Não teve muito tempo para pensar. Nunca, em seus poucos dezenove anos de vida, imaginara

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estar naquela situação. Provavelmente sequer havia segurando um machado antes. E agora havia um monstro enorme de três cabeças raivosas disparando em seu encalço.

Soltou um palavrão e correu na direção oposta, já preparado para se concentrar de forma a atravessar o corpo da criatura. Pelo menos não podia ser atingido. A quimera se aproximou cada vez mais e Lucas tacou o machado para longe imaginando que o bicho seguiria o objeto. Infelizmente ela continuou atrás dele.

— Droga, droga, droga!O que estava pensando quando entrou ali? Que lutaria de

forma heróica contra aquela criatura? Não passava de um fantasma franzino, o que possivelmente poderia fazer? Chamar a quimera para um duelo de guitarra?

A besta o alcançou e atravessou seu corpo, atacando seu rosto sem fazer efeito algum. A sensação era horrível, mas não sentiu dor alguma. Pelo menos atraiu a atenção dela por tempo suficiente para Lorena acordar. Lá atrás, ao longe, a garota procurava uma espada entre os restos do suporte. O corpo imundo do próprio sangue. Achou que ela correria na sua direção, mas não foi o que fez. Ela agarrou uma espada, correu para o centro da arena e começou a golpear o chão.

O que diabos ela estava fazendo? Foi quando um grande buraco se abriu bem ao lado dela. A mesma porta pela qual ela havia entrado na arena.

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CAPÍTULO TREZEEm que, bem, já faz um tempo que não te vejo sorrir

Lorena se levantou do chão enlameado com o próprio sangue. Lá ao longe, a quimera atacava Lucas sem conseguir atingi-lo

ou abocanhá-lo. Seria o momento perfeito para tentar seguir as instruções de Sonny. Será que daria certo?

Foi até os restos do suporte de armas e começou a procurar em volta. Qualquer coisa fina o suficiente para atravessar o sulco no chão e atingir a trava. Quando encontrou o que estava procurando, a agarrou e saiu correndo para o centro da arena, onde ficava a abertura. Havia marcado o chão com um xis, usando os pés, minu-tos atrás.

Empunhou a espada com ambas as mãos e enfiou no sulco da abertura, errando a trava várias vezes até acertar. Não aconteceu nada. Talvez não fosse forte o suficiente. Tentou de novo e de novo, até ouvir um “crack” e a porta desabar alçapão abaixo.

A multidão urrou ao ver o que ela havia feito. Agora Lorena só precisava descobrir como distrair a quimera para que Lucas pudesse lhe seguir.

— Lucas! – ela gritou.O garoto não respondeu, sem parar de se afastar cada vez mais.

A besta mordia e investia, cada vez mais irritada por não conseguir tocá-lo. Sem muitas opções, Lorena correu na direção dele, segurou a espada com força e fez um corte patético na lateral da criatura.

Foi o suficiente para que parasse de prestar atenção no fantasma.

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Ela soltou um rugido com suas três cabeças e Lucas disparou até Lorena, segurando a mão dela com força.

— Vamos cair fora daqui — ele disse — Não gostei muito desse destino de férias.

Lucas a olhou fixamente quando começaram a correr, então sorriu e começou a rir. Os dentes brancos à mostra, os olhos bri-lhando de excitação. Até parecia vivo agora, pensou ela. A eterna olheira em seus olhos se dissipando. Seu coração teria palpitado se estivesse batendo e sentiu um frio na espinha reparando no quão bonito ele parecia, com seu cabelo bagunçado e os olhos grandes e claros. Apertou a mão dele de volta, mal reparando na quimera enorme que trotava mais uma vez na direção deles.

Foi levada de volta à realidade com a multidão gritando e o locutor falando quando os portões em volta da arena se abriram e milhares de soldados adentraram.

— Mais rápido! — ela gritou, sabendo que não tinha como correr mais depressa que aquilo.

A poeira levantava quando os soldados pisavam o chão com força, fazendo barulho. Começavam a formar um círculo em volta deles. Lá do alçapão, veio a voz de Sonny, os apressando.

— Depressa!Lorena puxou Lucas e pulou no alçapão sem pensar duas vezes.

Assim que tocaram o chão o vampiro partiu até Lucas, aflito.— Eu estava ouvindo tudo — veio a voz de Sonny no escuro.

— Você é um fantasma, garoto? Se for, abra agora essa porta ou estamos perdidos.

— Onde? — perguntou Lucas, olhando em volta, sem ver nada.

— Venha — Sonny o arrastou com pressa, pegou a mão do garoto e a colocou sobre a parede.

— Essa parede é uma porta. Vê? Consegue ver a luz nos sulcos?

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Você pode abrir do outro lado.Lorena observou Lucas atravessar a porta cerrada sem hesitar.

Alguns segundo de espera depois e a porta estava sendo arrastada para o lado, abrindo para um fino e escuro corredor.

— Vamos logo — chamou Sonny, adentrando.O fantasma trancou a porta novamente e todos ouviram o som

dos guardas descendo a rampa até a cela.— E como vamos passar por eles? — perguntou Lorena —

Pra onde vamos agora?— Nós vamos passar pela gaiola. Venham, depressa.— Gaiola? — Lucas perguntou num grito. — Você não está

falando do lugar onde guardam esses bichos, não é?— Esse mesmo. Mas não se preocupem, com sorte estarão

adormecidos — ele respondeu, com os dois garotos ao seu encalço.— Sorte? Com sorte?— Deixa de frescura, Lucas — censurou Lorena. — Prefiro

monstros a esse povo doido do inferno.Lorena o fitou a tempo de ver um sorriso cínico nos lábios do

vampiro. Ele deu uma pequena corrida e apontou a porta no final do corredor.

— Abra essa, garoto.Lucas passou as mãos pela madeira maciça, pensando.

Atravessou sua mão no local da fechadura e apertou os lábios, fazendo força. A fechadura se abriu e eles atravessaram a passa-gem, trancando-a em seguida, indo parar em um largo corredor fracamente iluminado por tochas esparsas. Havia diversas portas de metal ao longo do local e não quis saber o que eram os sons que vinham de suas janelas gradeadas.

— Não vão nos procurar aqui.— É, a não ser que os guardas saibam que tem um fantasma

conosco, o que, vejam só! Eles de fato sabem — desdenhou Lorena.

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— Não há rádios nem celulares no Limbo. Até eles descobri-rem onde nos escondemos, já estaremos bem longe. Vamos.

Sonny guiou o caminho, atravessando o longo corredor. Ouviu gemidos e rugidos das jaulas. Tentou não prestar atenção neles durante o percurso, ignorando ao máximo o cheiro de podre. Passaram por mais duas portas trancadas, até que pararam de andar e Sonny apontou um portão.

Lorena e Lucas se entreolharam fitando o interior da sala seguinte. Viram jaulas e pesadas correntes presas aos pés dos mais diversos tipos de criaturas. Uma quimera, leões, tigres, bicho-que--não-sabia-o-nome, animal-apavorante-desconhecido, entre outros dentro de suas celas. Viu até mesmo um elefante e uma girafa. Todos os animais dormiam pesadamente.

— Todos são postos a dormir. Só os que serão usados no dia ficam acordados. Deve ter uns tigres apenas cochilando aí dentro.

— Eles ficam apenas aqui? — perguntou Lorena, sentindo um pouco de pena das criaturas.

— Oh, não — respondeu ele. — Estão aqui para ficarem sem comida e estressados.

Lucas fez uma careta e balançou a cabeça.— Eu tudo bem, mas como vocês vão passar por isso aí?— Quietos, de preferência.Lorena engoliu em seco e trancou a respiração, que só usava

por hábito naquele corpo morto. Machucar-se doía apenas um pouco, mas ainda assim não era agradável. Além disso, ser dilace-rada significaria muito tempo para regenerar. Olhou para as jaulas e para os animais presos apenas por correntes.

— Eles podem fugir?— Se quiserem, sim. Estão há dias sem comer, mas não cos-

tumam receber palestras de motivação, então devem ficar por aí mesmo. Sem problemas.

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— E o que acontece se formos comidos?— Acredite, você não quer saber.Lucas, aparentemente, não acreditava que Lorena não queria

saber, pois respondeu mesmo assim.— Seu corpo é destruído e sua alma se perde ao invés de ir ao

Mais Além. Afinal, não pode se regenerar se for um montinho de esterco.

Ficou totalmente sem reação ao ouvir aquilo, tentando avaliar o que seria morrer definitivamente, agora que sabia que havia algo após a morte. Sonny riu baixinho e mandou Lucas abrir a porta de uma vez.

Lorena apertou os olhos e os punhos. Tentou se concentrar ao máximo para não fazer barulho. Lucas abriu a porta e os três adentraram o bestiário.

Deram apenas alguns passos, com Sonny à frente antes de Lorena perguntar:

— Sonny... — chamou Lorena — é dia lá fora... como você vai sair se não pode pegar luz?

Sonny deu de ombros na escuridão. Demorou um pouco até que respondesse:

— É a luz do sol que pode matar vampiros. Aquela bola de luz estúpida lá de cima, da Terra. Essa luz do Limbo só me machuca. Se formos rápidos, nada demais vai acontecer.

Os dois jovens andaram pé ante pé logo atrás do vampiro, que se movia sem fazer som algum. Lorena ia grudada na parede, se afastando o máximo que podia das criaturas. Um grande animal que parecia uma mistura de ave com lagarto se virou para ela quando passou. Seu corpo era coberto por penas escuras e esverdeadas que pareciam escamas. Lorena estacou onde estava. O animal a olhou fixamente nos olhos com seus glóbulos oculares redondos e com-pletamente negros. As patas dianteiras eram garras de águia, mas

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as de trás, eram de lagarto, acompanhando a cauda comprida que balançava lentamente – um tufo de penas na extremidade. Mesmo assustada, Lorena não conseguiu desviar o olhar. Ele parecia can-sado. Cansado demais até para querer atacá-la ou se alimentar. Os olhos eram duas esferas negras, as pálpebras caídas e manchas escuras em volta deles. Suas patas estavam feridas e sangravam onde as correntes apertavam.

Ele bufou gentilmente, balançando a cauda de lagarto de um lado para o outro. Deitou a cabeça pesada sobre as patas dianteiras, sem tirar os olhos dela. A cena era digna de pena. Não importava que aquelas criaturas a devorariam sem pensar no assunto. Teve de admitir que aquele animal provavelmente seria belo se estivesse em outro ambiente.

— O que você está fazendo? – perguntou Lucas, voltando para onde ela estava. Lorena não tirou os olhos do animal. Afastou Lucas com a mão e deu um passo para frente.

— Ô, garota! – Sonny a chamou com um cochicho, mas ela não respondeu.

Algo a chamava. Como se precisasse ir até lá. Certa urgência que fazia seus pés se moverem na direção do animal ferido. Nada muito claro passou na sua mente naquele momento. Lucas e Sonny a chamavam, mas não teve nenhuma reação. Seus pés se moviam sozinhos, passo a passo. Talvez a estivesse hipnotizando para um lanchinho fácil, mas nem este pensamento pôde fazê-la parar de andar.

Sonny já havia desistido de chamá-la e partiu sozinho. Lucas tentou agarrar seu braço, mas Lorena já se ajoelhava na frente do animal.

Ela levou a mão trêmula até o focinho e o acariciou, sob o olhar horrorizado de Lucas. Então, voltou a si.

Sentiu o estômago despencar ao ver-se cara a cara com aquele

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bicho enorme. Parecia um dinossauro alado, coberto de penas brancas manchadas. Cambaleou para trás e caiu de bunda no chão, mas não estava assustada. Maravilhada? Não sabia se era aquela palavra que descrevia a sensação.

O animal havia se comunicado com ela de alguma forma. Vira várias imagens em sua cabeça como se ele lhe mostrasse algo. Estava pedindo ajuda.

— Você pode nos ajudar a sair daqui? – perguntou Lorena ao animal.

Lucas soltou um palavrão ao ver a criatura balançar a cabeça afirmativamente.

— Lucas, abra as correntes dele.— Você está louca? Ele só quer comer você.— Não... ele falou comigo, ele quer ajuda. E pode nos ajudar a

sair daqui também.Sonny surgiu do seu lado fazendo-a se assustar mais uma vez.— Não vai querer dar uma de defensora dos animaizinhos

agora, né?O animal voltou a olhá-la fixamente, e em sua cabeça viu um

enorme abismo entre nuvens revoltas. Viu o animal estender suas asas e voar pelo abismo, carregando três pessoas consigo.

— Nós precisamos dele, Sonny. Ou você sabe voar? E você Lucas, consegue flutuar e levar alguém com você? Precisamos voltar pelo abismo, ele pode nos levar.

— Ótimo — exclamou Lucas. — Vamos levar um vampiro e um monstro ao mundo humano.

— Certo, não interessa agora. Precisamos ir antes que os outros acordem. Estamos fazendo muito barulho — disse Sonny.

— Lucas, por favor, confie em mim.Lucas a fitou incrédulo. Sabia que o que pedia a ele deveria

parecer uma loucura. Ele balançou a cabeça e se ajoelhou ao

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lado dela, resignado.— Não acredito que vou fazer isso. Você está me devendo,

Lorena.Ele apoiou as mãos nas correntes e elas se abriram, uma a uma.

Os três se afastaram quando o animal começou a se levantar fraca-mente. Sonny caçoou:

— Claro, ele mal consegue se levantar e vai levar nós três lá pra cima.

Lucas deu a volta no monstro, analisando suas asas.— Vocês dois. Eu não tenho peso. As asas dele estão inteiras.

Não destruídas como as daquela quimera.— Deve ser novo aqui — disse Sonny. — Vamos acabar com

isso de uma vez.Lorena andou ao lado do animal que mancava até a saída, um

corredor largo cheio de poças de lama ao chão. Sonny apontou a frente e disse que aquela era a última porta. Depois daquilo, esta-riam livres.

E foi ali que voltaram a ouvir os sons dos guardas. Os três se voltaram para trás ao mesmo tempo. A grade que levava ao bestiá-rio abriu-se com um estrondo e três guardas apareceram no final do corredor.

Um deles pareceu dar alguma ordem, mas Lorena não ouviu absolutamente nada do que ele disse, pois a criatura soltou um grito alto e agudo, disparando contra eles na mesma hora.

Sua cauda de lagarto os acertou em cheio, fazendo os homens voarem de volta para o bestiário. O animal logo se voltou para o grupo e disparou novamente, dando-os pouco tempo para desviar de seu corpo maciço. A cabeçorra acertou a porta fazendo-a voar para trás, jogando pedaços de madeira por todos os lados. O cor-redor se iluminou com a luz avermelhada.

Lucas apertou os punhos quando Lorena soltou um palavrão

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ao olhar para fora. Estavam rodeados de guardas que apontavam lanças para os três. Sonny olhou em volta com os olhos apertados ante a luz.

— Espero que o periquitinho aqui consiga voar — reclamou ele, agarrando o pescoço do animal e montando sem se importar com os guardas que avançaram contra eles.

Lorena correu para o animal e Sonny a ajudou subir. Segurou nele com força e só então fitou uma flecha completamente imóvel bem em frente a seus olhos. E haviam muitas mais como aquela em volta deles. De cima do animal, viu os guardas forçarem suas lanças contra uma barreira invisível e a cara dos arqueiros embasbacados atrás destes.

O alívio foi imediatamente substituído por medo ao ver Lucas agarrando os cabelos de olhos apertados, esticando a mão na dire-ção dos guardas. Ele havia parado as flechas.

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CAPÍTULO QUATORZEQuando finalmente percebo a leveza

–Vá embora — disse Lucas entre os dentes — Você tem que ir.

— Não vou a lugar algum! Venha!— Se eu parar eles conseguem chegar até vocês!Olhou em frente com os olhos semicerrados para a multidão

em volta deles. A mão estendida à frente e a outra agarrando o cabelo. Cada pedaço de seu cérebro latejando. Cerrou os dentes e apenas desejou que eles fossem embora logo. Não sabia por quanto tempo conseguiria manter aquela barreira entre eles e os guardas. As flechas paralisadas no ar começaram a tremer quando ele hesitou por um momento.

Viu Lorena esticando a mão na sua direção antes da grande águia-lagarto bater as asas e dar meia volta, alçando voo em direção aos céus.

Pensou tê-la ouvido gritar por seu nome. Imaginou-a esten-dendo o braço e jurando que não iria embora sem ele, mas por que ela faria isso? Era apenas sua imaginação lhe dando mais impor-tância do que verdadeiramente tinha. Estava sozinho agora. A sen-sação de abandono só não foi maior por saber que aquilo era o melhor para ela. Agradeceu pelo vampiro. Sabia que se dependesse dela, Lorena nunca teria ido. Ou, pelo menos, queria de pensar assim. Que ela não o deixaria para trás.

A cabeça de Lucas latejou com força e percebeu que já havia

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alcançado seu limite. Flávia havia lhe dito que conseguiria interagir com coisas físicas mais facilmente que fantasmas normais, mas ali no limbo tudo parecia mais difícil e dolorido.

Quando baixou a mão, centenas de flechas passaram por ele e dezenas de soldados atravessaram suas lanças no nada. Lucas fechou os olhos e simplesmente se deixou afundar no solo.

Abraçou o próprio corpo, descendo e descendo, abrindo os olhos apenas para ver a escuridão total do solo que atravessava. Acomodou-se ali, em baixo da terra. Até que era confortável, pen-sou. Quente e macio. Agarrou os joelhos se sentindo a pessoa mais inútil da Terra ou do Inferno. Que tipo de fantasma era ele, que podia interceptar flechas, mas não podia flutuar para longe dali para ir embora? Sabia o que precisava fazer, bastava dar um pulo e voar, como qualquer outro fantasma normal faria. Então flutuaria para fora dali, pelo túnel, chegaria ao píer e encontraria Lorena lhe esperando com o cabelo esvoaçando ao vento e pequenas gotas de água salpicando seu rosto redondo e pequeno. Ela correria, lhe daria um abraço e ele desejaria a vida como nunca fizera antes.

De que adianta ficar me iludindo, pensou ele. Já era tarde demais para pensar na vida e só havia espaço para arrependimento em seu coração. Aquilo que sentia pela garota nunca poderia se transformar em nada, seus caminhos estavam separados desde o princípio. Pensar no que seria se estivessem vivos não levaria a lugar algum além de fazê-lo se sentir ainda mais melancólico.

Teve vontade de chorar. De deitar ali em baixo da terra para sempre. Como se pudesse tentar se matar uma segunda vez. Havia sido tão ingênuo, achando que podia simplesmente ajudar a garota. Sentiu raiva de Flávia por ter colocado nele aquela responsabilidade. Ver o estado em que a ceifadora chegara sendo uma desmorta lhe assustou. Era jovem quando morreu, mas hoje já tinha aparência de uma idosa. E o mesmo poderia acontecer com Lorena.

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Flávia morreu com dezesseis anos, na mesma ocasião que Ixtab – que quando viva, se chamava Alice. A mesma idade que Lorena. E agora, Flávia parecia ter uns setenta. Ao invés de se preservar no corpo de uma jovem, o sofrimento pelo qual passara fez com que seu corpo murchasse e morresse aos poucos, e cada dia decaía mais e mais. Sabia a dor que ela sentia e como isso consumia sua alma. Não desejava aquilo para ninguém. Já havia experimentado o que uma alma sente quando é ferida e não era nenhuma maravilha.

Apoiou a cabeça nos joelhos admitindo o quão tolo era por achar que podia ajudá-la a escapar daquela maldição que era ser um zumbi. A alma não podia alcançar o Mais-Além, destinada a ficar na Terra por anos a fio, fazendo o corpo se deformar aos poucos.

Nunca fizera nada de útil em vida e desejara de coração fazer algo que valesse a pena agora, mas estava enganado. Não passava de um incompetente. Um completo idiota, incapaz se dar um sim-ples pulo para escapar do Inferno. De ser honesto com Lorena e de encarar sua situação de frente.

Levou alguns segundos para Lucas perceber a luz que batia em seus olhos, escondidos pelos braços. Estava na superfície de novo, flutuando a exatos dois centímetros do chão. Lucas se levantou, abismado e fitando os pés que não tocavam o solo. Ele flutuara lá de baixo e lá de trás até ali sem perceber. Estava em uma área descampada e podia ver a cidadela a quilômetros dali. Olhando para cima, viu o túnel que levava a Terra. Por quanto tempo havia flutuado?

Foi então que percebeu. Todas as vezes que tentou voar, fizera um grande esforço para isso. Pulando, se jogando de locais altos, forçando a mente. Mas agora, ao simplesmente se deixar levar, flu-tuara sem sequer perceber.

Será que é isso então? Pensou ele. Simplesmente deixar tudo ir? Me deixar levar pelo vento e esquecer de toda carne e osso que

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tive um dia? Lucas abriu os braços e fechou os olhos. Esvaziou a mente.

Não aconteceu nada. Tentou de novo, lembrando que Peter Pan dizia para pensar em coisas boas: Sua mãe lhe ensinando a tocar piano. O som da risada dela quando ele acertava as notas. As sar-das em volta do nariz de Lorena. Sorvete de chocolate com calda de morango. Ouvir a mesma música dez vezes seguidas. Terminar uma composição. E ele foi subindo e subindo, lentamente, então cada vez mais rápido. E longe dali, longe de seus olhos e ouvidos e interesses, o alarme de um aparelho hospitalar começou a apitar.

Para ler o livro completo, vá em marycmuller.tumblr.com

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