desenvolvimento econÔmico, inflaÇao e …grande parte do desenvolvimento econômico ocorrido...

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DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, INFLAÇAO E REDISTRIBUICAO DE RENDA ARY BOUZAN "Acredito que haja justificação social e psicológica para uma significativa desigualdade de rendimentos e de riquezas, mae não para as grandes disparidades que existem hoje." J. M. KEYNES Todo país subdesenvolvido que deseje alcançar etapas mais elevadas de riqueza tem de submeter-se a certos sa- crifícios que, a rigor, não divergem muito daqueles supor- tados por uma emprêsa e mesmo por um indivíduo que tenham o mesmo objetivo: deve comprimir o consumo presente para liberar recursos que possam ser capitaliza- dos, a fim de que, no futuro, disponha de uma capacida- de maior de produção. Não importa o sistema econômico que adote - se socialista ou de livre emprêsa - pois o problema central que tem a resolver é sempre o de au- mentar o coeficiente de capital por unidade de trabalho. Para que possa romper o famoso "círculo vicioso da po- breza" é necessário que o país aumente a quantidade dis- ponível do fator capital de forma a permitir uma utiliza- ção mais efetiva da fôrça de trabalho, o que vale dizer, de maneira a aumentar a produtividade da mão-de-obra na- cional. (1) ARY BOUZAN_ Professor-Adjunto e Chefe do Departamento de Ciências So- ciais da Escola de Administração de Emprêsas de São Paulo. 1) Para maiores esclarecimentos sôbre o "círculo vicioso da pobreza", veja-se Ragnar Nurkse, "Problemas de Formação de Cap1tal em Países Subdesenvol- vidos", Editôra Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1957, pág. 7.

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DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO,INFLAÇAO E REDISTRIBUICAODE

RENDAARY BOUZAN

"Acredito que haja justificação social e psicológicapara uma significativa desigualdade de rendimentose de riquezas, mae não para as grandes disparidadesque existem hoje."

J. M. KEYNES

Todo país subdesenvolvido que deseje alcançar etapasmais elevadas de riqueza tem de submeter-se a certos sa-crifícios que, a rigor, não divergem muito daqueles supor-tados por uma emprêsa e mesmo por um indivíduo quetenham o mesmo objetivo: deve comprimir o consumopresente para liberar recursos que possam ser capitaliza-dos, a fim de que, no futuro, disponha de uma capacida-de maior de produção. Não importa o sistema econômicoque adote - se socialista ou de livre emprêsa - pois oproblema central que tem a resolver é sempre o de au-mentar o coeficiente de capital por unidade de trabalho.Para que possa romper o famoso "círculo vicioso da po-breza" é necessário que o país aumente a quantidade dis-ponível do fator capital de forma a permitir uma utiliza-ção mais efetiva da fôrça de trabalho, o que vale dizer, demaneira a aumentar a produtividade da mão-de-obra na-cional. (1)

ARYBOUZAN_ Professor-Adjunto e Chefe do Departamento de Ciências So-ciais da Escola de Administração de Emprêsas de São Paulo.

1) Para maiores esclarecimentos sôbre o "círculo vicioso da pobreza", veja-seRagnar Nurkse, "Problemas de Formação de Cap1tal em Países Subdesenvol-vidos", Editôra Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1957, pág. 7.

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Quase tôda a população dos países subdesenvolvidos -que representa nada menos que 2/3 da população mun-dial - tem, nos dias de hoje, consciência da luta e dossacrifícios que necessita empreender para triunfar contraa pobreza a que se encontra submetida. Ocorre que, mui-tas vêzes, o esfôrço exigido não se distribui igualmente portodos os segmentos da população, particularmente naque-les países em que predomina a iniciativa privada. É quea intensificação da formação de capital tende a promoverdesequilíbrios estruturais, que, por sua vez, são geradoresde inflação.

Neste artigo pretendemos examinar três problemas bási-cos relacionados com o processo de desenvolvimento eco-nômico: o desequilíbrio estrutural e a inflação conseqüen-te; a redistribuição da renda entre os diversos grupos so-ciais; e de que maneira as classes sociais beneficiadas pelainflação poderão utilizar seus excessos de renda.

MODIFICAÇÕES ESTRUTURAIS INERENTES AO DESENVOLV'IMENTO

O enriquecimento de um país pode dar-se com ou sem al-terações na sua estrutura de produção. Se existirem modi-ficações das quais resulte um melhor aproveitamento dopotencial de trabalho do país e, conseqüentemente, umaprodutividade "per capita" maior, haverá um autênticoprocesso de desenvolvimento econômico. Caso o maiorrendimento do país resulte apenas de uma valorização dosseus produtos no mercado internacional, por exemplo, nãoestará ocorrendo qualquer desenvolvimento econômico,mas apenas crescimento econômico. (2)

Alguns países lograram alcançar seu enriquecimento atra-vés de um processo combinado de crescimento e desenvol-vimento. Êste parece ser, tipicamente, o caso americano.Grande parte do desenvolvimento econômico ocorrido par-ticularmente no Norte dos Estados Unidos, a partir da

2) A expressão "crescimento econômico" é freqüentemente usada para ca-racterizar o fenômeno que, neste artigo. denominamos "desenvolvimento eco-nômico".

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primeira metade do século XIX, e que se caracterizoupela formação de uma estrutura industrial, foi acompa-nhada por aumentos nos ganhos dos produtos agrícolasde exportação, especialmente do algodão, que passou ater posição privilegiada no mercado internacional, em con-seqüência da revolução industrial. (3)

Mesmo o Brasil registra experiência análoga. A partir dasprimeiras décadas do presente século, principalmente, con-siderável parte dos ganhos obtidos com o café nos merca-dos estrangeiros foi encaminhada para o setor industrial,constituindo-se num dos fatôres importantes para que sedesenvolvesse aqui uma economia de mercado interno.

o fato de o enriquecimento ser obtido através da modifi-cação da estrutura de produção, ou da melhoria das rela-ções de troca (isto é, das relações entre os preços dos bense serviços importados e exportados), tem um significadomuito mais importante do que parece à primeira vista.Tôda vez que a capacidade produtiva evolui para formasmais eficientes, asseguram-se, além de maior capacidadepresente de produzir maior volume de bens e serviços eco-nômicos, condições para crescimento posterior da própriaestrutura. No caso de haver simples crescimento econô-unico .não existe qualquer garantia 'de continuidade decrescrimento e, mais do que isso, é muito provável que aeconomia possa evoluir para níveis de renda mais baixos.

Bons exemplos dêsse enriquecimento efêmero ofereceramPortugal e Espanha durante a fase de exploração econô-mica da América Luso-Espanhola. Ambos os países, prin-cipalmente a Espanha, atravessaram fase de grande pros-peridade conseqüente das riquezas trazidas das novas ter-ras. A capacidade produtiva interna dêsses países, no en-tanto, jamais evoluiu no sentido positivo, de maneira que,terminado o apogeu colonial, seus níveis de renda nacio-nal caíram sensivelmente e entraram num estado de pros-

3) Veja-se, a respeito, Celso Furtado, "Formação Econômica do Brasil", Edi-tôra Fundo de Cultura Econômica, Rio de Janeiro, 1959, pág. 127.

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tração econômica, do qual, a rigor, ainda hoje não se re-cuperaram.

Os países subdesenvolvidos de hoje, na sua maioria, vêem--se pràticamente impossibilitados de obter seu enriqueci-mento através da melhoria das relações de troca, pois sãocomumente exportadores de produtos primários (agríco-las, minerais etc. ), os quais registram normalmente pro-curas de baixa elasticidade, além de - em muitos casos- tendência declinante no nível de preços. Isso limita,senão impede, que êsses países possam aumentar suas ren-das "per capita" através da melhora de sua posição rela-tiva no comércio internacional. É por isso que quase todosvêem nas suas atividades relacionadas com o mercado in-terno, particularmente na industrialização, a forma de au-mentar a capacidade produtiva média das suas populaçõese, em conseqüência, alcançar o seu desenvolvimento eco-nômico.

Para tais países, o problema medular do desenvolvimentoeconômico é o da formação de capital. Êste consiste emdotar cada unidade de trabalho de quantidade cada vezmaior de capital, que possibilite aproveitamento mais efe-tivo do esfôrço humano. É preciso, por exemplo, substituira ferramenta primária pela máquina e esta por outras ain-da mais complexas. Só assim o trabalhador conseguiráproduzir mais. É claro que muito mais difícil que utili-zar o capital é obtê-lo. Capital pressupõe poupança, aqual, por sua vez, pressupõe renda; esta, como se sabe, ébaixa por definição nos países subdesenvolvidos. Deixa-do de lado o aspecto de arregimentação do capital, doqual nos ocuparemos mais tarde, examinemos o aumentoda capitalização como condição para o desenvolvimentoeconômico.

Iniciado o esfôrço concentrado sôbre o setor que produzbens de capital, deve ocorrer certo desequilíbrio entre aprocura de bens de consumo e a produção dêsses bens.Isso porque, na medida em que se acentua a atividade eco-nômica nesse setor e nêle se amplia o nível de emprêgoe de renda, cria-se também uma demanda adicional de

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bens de consumo sem qualquer aumento de produção quelhe corresponda. O desequilíbrio só não se manifestará sefôr atendida no mínimo uma das seguintes condições: 1.a)que a receita cambial seja capaz de ampliar-se de manei-ra a permitir a importação de bens de consumo em mon-tante igual à diferença entre o aumento verificado no con-sumo e a produção nacional; 2.a) que tenha havido umplanejamento econômico de tal forma eficiente que hajapermitido que a produção de bens de consumo cresça nomesmo ritmo em que está crescendo a demanda dêssesbens.

É fácil compreender que raramente qualquer dessas con-dições pode ser satisfeita. A primeira porque, como já evi-denciamos, tanto o preço como a elasticidade de procurados bens de exportação pràticamente impedem a amplia-ção da rceita cambial. Depois, porque a própria amplia-ção do setor que produz bens de capital implica, desde logo,no aumento das necessidades de importar para êsse setor.A segunda condição é talvez mais difícil de ser satisfeita,se tivermos em conta o volume de dados e informaçõesque pressupõe, sem falar - no caso dos países não socia-listas - na dificuldade em fazer com que a atividade pri-vada se desenvolva de conformidade com o planejamento.

Numa economia de mercado, êsses aumentos sistemáticosna demanda seriam absorvidos através de sucessivos rea-justamentos no nível de preços. Ou, em outras palavras,mantida a oferta, os aumentos de procura seriam absor-vidos através de aumentos de preços dos produtos de con-sumo. Normalmente, tais aumentos propagar-se-iam atra-vés dos demais setores da economia, de forma a tornar ge-neralizado o aumento dos preços.

Outras razões, ainda, poderiam concorrer para o apareci-mento da inflação. O importante, no entanto, é compreen-der que a própria natureza do processo de desenvolvimen-to econômico quase certamente levará à inflação. Restasaber que conseqüência trará a depreciação sistemática damoeda.

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A REDISTRIBUIÇÃO DA RENDA

As conseqüências da inflação, que já se encontram bastan-te bem definidas no plano teórico, são em boa parte dedomínio popular naqueles países que, como o Brasil, vivemo fenômeno de longa data e sentem o seu agravamentoquase diário. Na verdade, são diversas as conseqüênciasda inflação, muitas das quais extremamente importantes.Pretendemos aqui examinar apenas uma delas, exatamen-te aquela que é tida como a mais grave: a redistribuiçãoda renda entre os diversos grupos sociais.

Sabe-se que, iniciado o aumento geral dos preços, que re-presenta também aumento de custos, seja de custos Ideprodução ou de custo de vida, as perdas ou ganhos queêsse aumento determina dependem da velocidade com queas diversas classes sociais consigam repor o seu poder decompra. Aquelas que pedem reajustar-se ràpidamentepouco perdem; outras que só conseguem aumentar seusganhos monetários em períodos mais longos pasam a per-der sistemàticamente poder de compra, na medida em queevolui a inflação.

Examinemos o problema baseando-nos numa pirâmidesocial, em cujo ápice se encontre a classe dos empresários;na base os operários e camponeses e, finalmente, no centroda pirâmide, a classe média. A primeira dessas classes -a dos empresários - é, indiscutivelmente, aquela que rea-justa seus ganhos com maior velocidade. Mais que isso,talvez na maior parte das vêzes, os reajustamentos sedêem antes mesmo que os custos de produção tenham sidoalterados. É prática altamente disseminada entre os pro-dutores a fixação de preços com base nos custos de repo-sição não nos custos atuais de produção. Além disso, tam-bém é muito comum que os reajustamentos se façam emtaxa superior à do incremento de custo. É verdade queos aumentos de preços só serão aquêles permitidos pelaelasticidade da procura. Por outro lado, porém, em paísescomo o Brasil, em que a produção de grande parte dosbens do mercado interno é vendida com antecedência -daí dizer-se que integram um "mercado de vendedor" -

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a elasticidade da oferta tende a ser bastante baixa, o quepermite que os produtores aumentem seus preços deacôrdo com suas decisões. Com isso, na pior das hipóteses,a classe dos empresários reajustará seus ganhos tão ràpi-damente quanto o aumento dos custos, o que quer dizerque não será alcançada pela inflação. Pelo contrário,devido às suas possibilidades de reajustar por antecipaçãoe mais que proporcionalmente, é a classe que se beneficiada redistribuição da renda determinada pela inflação.

A seguir, encontramos a classe média que, reconhecida-mente, é uma das que arcam com o ônus maior da inflação.Boa parte dela está composta por pessoas que têm rendi-mentos regulados por contratos, de tal sorte que os rea-justamentos de seus rendimentos estão condicionados aosprazos fixados pelos contratos. Historicamente, a inflaçãotem reservado maior rigor a essa classe. A grande infla-ção que viveu a Alemanha na década de 20, durante afamosa "República de Weimar", representou quase com-pleto aniquilamento da classe média. (4) O impacto dainflação torna-se tanto mais profundo quanto mais rápidae violentamente ela surja.

Num caso como o brasileiro, por exemplo, em virtude dalonga permanência do fenômeno inflacionário entre nós,tôdas as classes, inclusive a média, desenvolveram certosmecanismos de defesa que tendem a amenizar-lhes as per-das. E, por exemplo, o caso de contratos de aluguéis comvalôres variáveis ao longo do período; ou de salários quese fixam com base no valor de moeda estrangeira, ou emíndices de depreciação monetária. De qualquer forma,ainda que tais reajustamentos se dêem num período detempo relativamente curto, deverá haver perda para a clas-se, exceto quando a taxa de reajustamento fôr superioràquela da depreciação da moeda.

Incorrem em engano aquêles que imaginam que um es-quema de reajustamento de rendimentos, segundo o qual,

4) Veja-se a propósito, E. M. Burns, "História da Civilização Ocidental", Edi-tôra Globo, Rio de Janeiro, 1957, pâg, 840.

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periodicamente, O interessado receba um aumento de ren-dimento em percentagem igual àquela da inflação, lheassegure um mesmo poder aquisitivo. Para que isso fôsseverdade, seria necessário que a taxa de reajustamentofôsse superior àquela da inflação a fim de que, no períodoposterior, pudesse haver uma compensação das perdashavidas no período anterior.

GRAFICO ISALÁRIO E CUSTO DE VIDA

LUo~~-'>«",LU00o~"''''LU::>u uzs1:

A B

3

-- SALÁRIO ---- CUSTO DE VIDA

E='i-'-l ÁREAS DE PERDAS ~ ÁREAS DE COMPENSAÇAO

Representando gràficamente o problema (Vide Gráfico 1,A e B) e supondo que o rendimento e a capacidade aqui-sitiva da moeda fôssem fixados em 100 no período 1 eainda que, ao fim dêsse lapso de tempo, viessem a igua-lar-se outra vez, as perdas, em têrmos reais, da classe emquestão, seriam iguais à área do triângulo ABC, do Grá-fico l-A. Para que essas perdas pudessem ser compensa-das seria necessário que, ao fim do período 1, a taxa dereajustamento fôsse superior ao índice de depreciação damoeda, a fim de que pudesse formar-se o triângulo A', B',C'. do Gráfico 1-B. Se ABC fôsse igual a A', B', C', nãohaveria ganhos ou prejuízos.

É evidente que, ao representar o nível geral de preçoscomo uma função linar, estamos fazendo uma simplifica-

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ção que pode não ser verdadeira. Contudo, dadas as razõesjá discutidas, pode-se aceitar êsse tipo de crescimento parao índice de preços. O fato realmente relevante é que osperíodos de reajustamento da classe média são muito maislongos que aquêles da classe empresária, o que resulta,inevitàvelmente, em perdas para a primeira.

Na base da pirâmide social encontramos os trabalhadoresrurais e urbanos. Uma vez que nos países subdesenvolvi-dos, particularmente, o problema do reajustamento entreos dois tipos de trabalhadores é sensivelmente diverso,convém analisar cada um dêles em separado.

Diversos sociólogose economistas têm-se ocupado dos pro-blemas relacionados com a organização da fôrça do tra-balho nas áreas urbanas. (5) Parece haver hoje poucadúvida de que o trabalhador ligado à atividade industrialtenha maiores possibilidades de organizar-se que aquêlededicado à atividade rural. Historicamente, o desenvolvi-mento das entidades de classe parece ter seguido de pertoo próprio desenvolvimento industrial, já que os trabalha-dores compreenderam desde logo a necessidade de aumen-tar seu poder de barganha, evoluindo de um mercado detrabalho em que disputavam emprêgo individualmentepara outro em que suas reivindicações se externavam atra-vés de uma entidade. Para usar a terminologia econômica,evoluíram de um mercado de livre concorrência para outrodo tipo monopolístico. Na medida em que tal organiza-ção se realizou, a classe operária passou a participar maisativamente do produto social, além de obter para si me-

5) No seu famoso trabalho "O Desenvolvimento Econômico da América La-tina e Seus Principais Problemas" (popularizado com o nome de "Tese Pre-bish"), o professor RaulPrebish deu grande destaque à organização "das mas-sas operárias" nas áreas industrializadas (veja-se "Revista Brasileira de Eco-nomia", setembro de 1949, pág. 59 principalmente). Êsse trabalho encontroupoteriormente intensa crítica de diversos economistas, Entre elas encontra-se ado professor Gottfreid Haberler, que contestou quase tôdas as premissas daargumentação de Prebish. No que respeita à organização da fôrça de trabalhonas áreas industriais, contudo, reconheceu Haberler a validade dos argumentosdo Presidente da CEPAL (vide Gottfried Haberler - "International 'I'radeand Economic Development", Pub. National Bank of Egypt, 1958, pág. 22).

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lhores condições de trabalho, como demonstram hoje aseconomias dos países industrializados.

No que respeita aos países subdesenvolvidos em processode desenvolvimento industrial, o poder de barganha queos operários vão adquirindo permite-lhes defender-se, emcerta medida, contra a inflação. Nos grandes centros indus-triais, como São Paulo, por exemplo, já nos acostumamosaos freqüentes acôrdos intersindicais que, em última aná-lise. representam a pressão exercida pelas entidades declasse dos trabalhadores a fim de atualizar seus rendi-mentos.

Além da defesa originada do poder de barganha da pró-pria classe. encontramos, no Brasil, a própria legislaçãode salário mínimo, que algumas vêzes traduz mais que osinterêsses dos operários; traduz também o interêsse daspessoas que visam obter prestígio junto às populações ur-banas. Dessa forma, tanto a organização da fôrça do tra-balho, na forma de entidades de classe, como as leis quefixam níveis mínimos de salário, fornecem à classe de tra-balhadores urbanos armas com que se defendem, ainda queparcialmente, tios efeitos da inflação. Como os reajusta-mentos de rendimentos só se fazem periodicamente, essaclasse está também submetida ao processo triangular des-crito no Gráfico n.? 1, A e B. No caso brasileiro, no entan-to, como o reajustamento de alguns períodos foi, em têr-mes percentuais, superior ao crescimento do custo de vida,pode-se depreender que se formaram triângulos com áreaspositivas, minimizando, senão eliminando as perdas dês-se grupo social. (6)

6) Conjuntura Econômica, n.? 11, de 1960, pág. 98, publica o seguinte quadrorelativo aos aumentos de salário mínimo e cu-to de vida:

Período Aumento doCusto de Vida

Aumento doSalário Mínimo

janeiro 1952/julho 1954julho 1954/agôsto 1956agôsto 1956/janeiro 1959

54,4%51,4%47,8%

100,0%58,3%57,9%

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Quando nos referimos à outra parte componente da baseda pirâmide, ou seja, à classe dos trabalhadores rurais, oproblema torna-se sensivelmente mais complexo. Partedessa classe, num país como o Brasil, está constituída pelasáreas de economia de subsistência, onde o volume de tran-sações é, em princípio, muito pequeno e quase todo efe-tuado em espécie, fora, portanto, da economia monetária.Não sendo utilizada moeda nas transações, os efeitos dainflação pràticamente não existem, já que êstes se exter-nam através da perda de poder aquisitivo da moeda.

Por outro lado, é comum encontrar-se uma economia desubsistência ao lado de outra que envolve certo grau deespecialização e que é constituída pela produção de cer-tos produtos agropecuários destinados à venda no merca-do interno. Como a inflação representa aumento no nívelgeral de preços - e, no caso brasileiro, particularmentedos preços dêsses produtos agropecuários de mercado in-terno - a tendência é haver reajustamento da renda dês-ses produtores, na forma de recebimento de preços maisaltos. É preciso, todavia, que não se esqueça que, em eco-nomias como a nossa, grande parte do aumento de preçosé absorvida pela distribuição da produção, recebendo oprodutor parte apenas dos acréscimos de preço dessaprodução.

Quando, porém, as relações de trabalho rural estão re-guladas por contratos que pressupõem salários monetá-rios, como ocorre em grande parte da agricultura e pecuá-ria especializadas, particularmente nas grandes plantaçõespara exportação, as perdas sofridas pelo trabalhador ruralpassam a ser violentas, pois nesse setor não há fôrça detrabalho organizada que seja capaz de defender seus in-terêsses; tampouco a êle se aplica a legislação sôbre salá-rio mínimo. Dessa forma, nas áreas rurais em que preva-lece o salário monetário, os trabalhadores ficam totalmen-te indefesos face aos efeitos da inflação e, em conseqüên-cia, a sua participação no produto social chega a ser detal forma baixa, que não raro torna-se incompatível comum mínimo de dignidade humana.

88 REDISTRIBL'IÇAO DE RENDA R.A.E.!'?

Em síntese, o que se pode concluir do exposto é que, numaeconomia inflacionária, as perdas das diferentes classessociais em conseqüência da desvalorização do poder decompra da moeda estão na razão inversa da velocidadecom que possam ajustar os seus vencimentos aos novosníveis de custo: quanto mais ràpidamente se processar oreajustamento, tanto menores serão as perdas.

No caso brasileiro, a classe média e parte da classe de tra-balhadores rurais são aquelas que sofrem com maior rigora perda de poder aquisitivo determinada pela inflação.Os trabalhadores urbanos são capazes de minimizar ouanular suas perdas, graças às suas armas de defesa, quesão as entidades de classe e a legislação de salário mínimo.Os empresários, por sua vez, por poderem ajustar-se muitoràpidamente, ou ainda, ajustar-se por antecipação e emtaxas maiores que aquelas do aumento de custos, conse-guem, não só não perder com a inflação, mas, o que émais importante, fazer com que a redistribuição da rendalhes seja benéfica.

Constatada a redistribuição da renda em favor do ápiceda pirâmide social, resta saber como utilizará os ganhosadicionais a classe favorecida.

A UTILIZAÇÃO DOS FRUTOS DA REDISTRIBUiÇÃO

Ao comentar um dos postulados clássicos sôbre o proble-ma do emprêgo, Lord Keynes afirmou que, ainda que ostrabalhadores se negassem a aceitar salários monetáriosmenores, dificilmente se insurgiriam contra uma reduçãonos salários reais que se manifestasse através de um au-mento de preços das mercadorias. (7)

Raciocínio muito parecido com êsse pode ser feito comrelação aos países subdesenvolvidos que se esforçam parasuperar o estado de pobreza em que vivem. Haveria grande

7) John M. Keynes, "T'he General Theory of Etnployment, Intetest andMoney", McMiflan, Lcndon, 1960, pág. 9.

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reação contra o govêrno que tentasse, nesses países, dimi-nuir o consumo através de impostos que visassem obterrecursos para acelerar o processo de formação de capital.Porém. se a diminuição do poder aquisitivo se processarna forma de aumento no nível de preços - o que valedizer através de inflação - a reação contra a redução deconsumo é muito mais inexpressiva, a não ser nos casosem que a taxa de inflação se torna demasiado alta. Épor isso que a inflação pode também ser entendida comouma forma compulsória de obter poupanças.

O grande problema, no entanto, é que tais poupanças ten-dem a acumular-se em mãos de apenas uma ou poucasclasses sociais. De qualquer forma, ainda que o processoinflacionário implique numa forma de acumulação social-mente injusta porque beneficia uns com o sacrifício deoutros, êle representa a criação de um potencial de inves-timentos. Resta saber em que medida êsse potencial re-verterá em benefício da própria economia.

Os recursos acumulados no ápice da pirâmide podem tertrês destinações principais: podem transformar-se em in-vestimento, transformar-se em consumo, ou emigrar parao exterior.

Quando os empresários transformam em investimentos osganhos obtidos através da redistribuição da renda, estão,em última análise, acelerando o processo de formação decapital, isto é, alimentando o desenvolvimento econômicodo país. Seria, no entanto, enganoso imaginar que se se con-seguisse manter a inflação por longo prazo ela traria con-tínuas contribuições à formação de capital do país. Nãopodemos esquecer que, numa economia baseada na livreemprêsa, os incentivos para investir são conseqüentes dacapacidade de compra da população. Assim, um proces-so inflacionário que levasse ao empobrecimento paulatinoa maior parte da sociedade representaria, desde logo, umadiminuição no potencial de compra dessa sociedade, o queeliminaria qualquer estímulo a investir. É necessário, por-tanto, que a acumulação sistemática de capital seja se-

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guida por expansões na capacidade real de compra dapopulação.

Estas observações parecem deixar claro, à primeira vista.que os ganhos transferidos de uma a outra classe jamaispoderão gerar investimentos, pois para que determinadaclasse tenha agora uma renda real maior seria necessárioque outra já haja registrado uma diminuição no poder decompra. Há, no entanto, algumas ponderações que podemainda ser feitas. Atentemos, por exemplo. para algumas dascaracterísticas das economias subdesenvolvidas.

Nelas se nota que, quanto mais pobre é o setor primário(agricultura, pecuária, pesca etc.), tanto maior é sua par-ticipação, quer na formação da renda, quer na utilizaçãoda fôrça de trabalho. (8) É outra característica dêssespaíses a diferença de produtividade entre o setor primárioe o secundário. Neste, por envolver normalmente maioríndice de capital "per capita", a produtividade por ho-mem empregado no processo produtivo é sensivelmentemaior. (9) Como o setor secundário e terciário normal-mente oferecem vantagens maiores que o primário, a ten-dência dos novos investimentos é de se localizarem depreferência nesses setores, o que determina outra ca-racterística do processo de desenvolvimento econômico:transferência de mão-de-obra do setor primário para o se-cundário e terciário. À medida que êsse movimento seprocessa, aumenta o número de pessoas que se alojamnum setor em que a renda comparativa é maior. Dessaforma, ainda que a inflação implique num empobrecimentode determinadas classes sociais, a perda de poder de com-pra da economia como um todo poderia não ser grande,ou talvez até inexistir, se o número de pessoas produzin-do nos setores que apresentam maior produtividade "percapita" fôsse cada vez maior.

8) Veja-se, a respeito, Simon Kuznets "Six Lectures on Economic Growtb"The Free Press of Glencce, Illinois, pág. 45. '

9) Veja-se Simon Kuznets, op. cit., pág. 46.

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.É ainda digno de menção o fato de que os setores pri-mários dessas economias operam, em muitos casos, sob aforma de "desemprêgo disfarçado" da fôrça de trabalho,o que significa que há mais mão-de-obra que a necessáriaà produção efetivamente obtida, de maneira que sua trans-ferência para os setores secundário e terciário, não impli-caria, necessàriamente, numa redução da produção nosetor primário. ( 10)

Resumidamente, podemos dizer que é perfeitamente pos-sível que os recursos obtidos através de diminuição com-pulsória de consumo de determinadas classes sociais sejamorientados para o setor de investimentos e, assim, possambeneficiar o processo de desenvolvimento econômico dopaís.Não se pode, por outro lado, imaginar que essa seria umaforma de, a longo prazo, acelerar a formação de capital dopaís. Se o fenômeno inflacionário se mantiver por períodosmuito longos, as distorções que promoverá nos investimen-tos, os mecanismos de defesa que desenvolverão as clas-ses prejudicadas e outras deformações dêsse tipo impe-dirão que qualquer contribuição positiva possa ser obtidado processo de redistribuição de renda.

As classes beneficiadas pela inflação podem optar por umasegunda solução: podem simplesmente utilizar os recursosobtidos com a redistribuição para transformá-los em gas-tos de consumo, quer no próprio país, quer no estrangeiro.Êste constitui um dos aspectos mais intensivamente dis-cutidos na literatura relacionada com o desenvolvimentoeconômico. Na verdade, no momento em que recursos sãoextraídos de classes como a dos camponeses, por exem-plo, e são transferidos para a dos empresários, maior capa-cidade de consumir está sendo dada à classe que temmaiores hábitos de consumo e que, normalmente, está mais

10) A existência do "desemprêgo disfarçado" não constitui ponto pacíficoentre os economistas. O professor Jacob Vinner, por exemplo, argumenta con-tràriamente à sua existência. Veja-se seu trabalho intitulado "Some Reilectionson the Concept 01 Disguised Unemployment" in "Contribuicõcs à Análise doDesenvolvimento Econômico", Editôra Agir, Rio de Janeiro: 1957, pág. 345 eseguintes,

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sujeita ao fenômeno conhecido como "efeito-demonstra-ção", que traduz a tendência de as populações de paísespobres imitarem os hábitos de consumo dos países ricos.É fácil entender que, na medida em que os recursos ob-tidos pela inflação são despendidos em gastos de consumo,a retransferência de rendas só terá aspectos negativos.Traduzirá simplesmente um esfôrço efetuado por deter-minados segmentos da população em favor de outras par-tes dessa mesma população.

Ainda que êsse comportamento seja em princípio negativo,vale a pena determo-nos um pouco mais na sua análise.Os gastos efetuados com consumo podem realizar-se den-tro e fora do país. Se forem realizados dentro do país, suasconseqüências serão menos graves do que se forem reali-zados externamente. Suponhamos que determinada pessoautilizasse a renda que a inflação lhe propiciou para com-prar automóveis de diferentes marcas e modelos e que,para tanto, gastasse três vêzes mais do que exigiria a suaposição social. É verdade que dois terços do dispêndio totalpoderiam ter tomado a forma de investimento reprodu-tível e, assim, assegurar melhores condições de desenvol-vimento econômico. Mas é também verdade que, tradu-zindo-se em consumo de artigo produzidos por fabricantesnacionais, êsses dois terços estarão ativando a produçãonesses setores e, em conseqüência, mantendo ou amplian-do o índice de emprêgo etc. Tais gastos podem e devemmesmo ser criticados, por não representarem aquilo queé mais fundamental para o país pobre que quer desenvol-ver-se econômicamente : investimentos. Têm, no entanto,essa capacidade de incentivar a atividade econômica.

Imaginemos, agora, que, em lugar de comprar automóveisnacionais, houvesse a citada pessoa decidido importar umcarro esporte ou ou fazer uma viagem de turismo pelaEuropa. Em primeiro lugar, êsses gastos não incentivariamatividades econômicas dentro do país, mas sim no exteriore, portanto, não teriam o mínimo de positividade apresen-tada no exemplo anterior. Em segundo lugar, para que apessoa pudesse ultimar êsses gastos de consumo, teria que

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concorrer no mercado de câmbio, contribuindo para agra-var a posição do balanço de pagamentos que, como sabe-mos, é um dos problemas mais sérios para quase todos ospaíses subdesenvolvidos. Neste caso, portanto, os gastosde consumo assumem características muito mais negativasque nos primeiros.

Suponhamos agora que os beneficiados pela inflaçãooptassem por uma terceira solução. Não quisessem fazerinvestimentos, tampouco quisessem consumir no país ouno estrangeiro, mas decidissem enviar para o exterior osganhos adicionais. Não importa examinar aqui as razõesque levariam essas pessoas a proceder dessa maneira. Im-porta verificar que conseqüências adviriam dessas re-messas.

Em primeiro lugar, elas implicariam em compra de moedaestrangeira, o que quer dizer que, a exemplo do que ocor-re com o consumo de produtos ou serviços estrangeiros,em pressão sôbre o balanço de pagamentos. Em segundolugar, haveria o problema da fuga de capitais, que é muitomais importante que a pressão mencionada. Como todossabemos - e ao longo dêste artigo temos dado grandeênfase a êsse ponto - país subdesenvolvido é exatamenteaquêle em que um dos recursos produtivos, ou, mais es-pecificamente, o capital é escasso. Dessa forma, quasetôda a luta que empreendem essas nações contra a pobrezaestá altamente identificada com o esfôrço para arregimen-tar êsse fator escasso.

Ora, na medida em que os capitais saem do país, à procurade outras praças no exterior, ocorre um fato totalmenteparadoxal: o capital foge da estrutura econômica em queé escasso e, por isso mesmo, fundamental e encaminha-separa economias normalmente desenvolvidas, em que a suaquantidade em relação aos demais fatôres de produção égrande e por isso mesmo menos essencial. É claro que,sempre que os produtos obtidos através de um processoinflacionário encontrem essa destinação, estaremos vi-vendo, ao lado de um esfôrço totalmente inglório realizado

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por - determinadas facções da população, um autênticoprocesso de descapitalização, que representa o que de piorpoderia acontecer a qualquer dessas nações que muitasvêzes já concordaram até, como se diz comumente, emsacrificar as gerações presentes em benefício daquelas queestão por vir.

Trata-se, como se vê, de matéria que merece a melhordas ponderações.

CONCLUSÃO: DUAS PALAVRAS SÔBRE o CASO BRASILEIRO

Até 1930, a economia brasileira esforçou-se por alcançaro seu desenvolvimento econômico através do modêlo clás-sico, ou seja, através da especialização internacional dotrabalho, concentrando a maior parte das suas preocupa-ções no setor exportador. A partir dessa data, as atividadeseconômicas voltadas para o mercado interno passaram apredominar, em decorrência da conjugação de dois fatô-res particularmente importantes: por um lado, a queda nacapacidade de importar devida a fatôres como a crise de1929, ou a guerra; por outro, a manutenção e ampliaçãoda renda interna, devido, principalmente, à própria polí-tica de defesa do café que, ao assegurar a compra dosprodutos não vendidos no comércio exterior, mantinha,em última análise, a renda do setor cafeeiro e dos demaisligados a êle,

Êsse binômio, particularmente favorável ao produtor na-cional, constituir-se-ia na pedra basilar do desenvolvimen-to econômico, particularmente da industrialização. ( 11)A inflação brasileira que, até aquela data, refletia simples-mente a política monetária e creditícia imprimida pelogovêrno, passou a revelar problemas de estrutura.

Já agora o fenômeno inflacionário refletia com maior oumenor intensidade os desajustamentos verificados entre acapacidade nacional de produção e o consumo agregado.

11) Veja-se, a respeito, Celso Furtado, op. cit., capítulos 31 a 35.

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Por isso, na medida em que a economia se manteve emtransição do setor de comércio externo para aquêle demercado interno, a inflação desenvolveu-se com maior in-tensidade, particularmente depois de 1954, quando o go-vêrno federal passou a fazer também grandes dispêndiosna forma de investimentos públicos.

Como não podia deixar de ocorrer, o surto inflacionáriopromoveu a redistribuição de renda, favorecendo parti-cularmente os empresários industriais, os comerciantes e aclasse de empreiteiros ligados às grandes obras do govêr-no. O impacto maior da inflação fêz-se sentir, por outrolado, com maior intensidade, sôbre a classe de trabalha-dores rurais e diversos segmentos da classe média.

Na verdade, incorreríamos em engano se imaginássemosque todo o ganho auferido pelas classes empresariais nasúltimas décadas resultou da inflação. Grande parte dêleoriginou-se de uma participação mais que proporcionalque a classe teve nos ganhos obtidos pelo País, em certasfases, no comércio internacional. O eterno desequilíbriodo balanço de pagamentos e a natureza do sistema cambialvigente em determinados períodos contribuíram decisiva-mente para dar a essa classe posições altamente vantajo-sas, que lhe permitiram reter a maior parte do crescimentoobtido pela renda nacional. (12)

o aceleramento que o processo industrial brasileiro temexperimentado parece confirmar que grande parte dos ga-nhos da classe empresária reverteu para o processo eco-nômico na forma de investimentos. O consumo ostensóriorealizado no exterior tornou-se bem mais difícil depois de1947, quando foi reformulado o sistema cambial. Aindaassim, ao que parece, constitui ainda parcela ponderáveldos gastos realizados no exterior, particularmente em via-gens internacionais. Sôbre os capitais enviados para refor-çar as contas bancárias ou os investimentos de brasileiros

12) Veja-se Celso Furtado. cp, cit., capítulo 34, especialmente.

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no exterior, ninguém sabe ao certo. Parece, no entanto,que parcelas substanciais de capitais nacionais têm sidoremetidas para outros países, particularmente nos últimosanos. (13)

o que dissemos acima parece não deixar dúvidas quantoaos aspectos particularmente graves, tanto do ponto devista econômico, quanto do ponto de vista moral, queassumem essas remessas de recursos financeiros. No casobrasileiro sabemos qual tem sido o sacrifício a que deter-minadas classes têm sido submetidas para contrair o seuíndice de consumo, particularmente nas áreas em que talíndice era irrisório, como nas zonas rurais. Coloca-se, as-sim, um problema de grande gravidade, que fica fran-queado à meditação dos homens que têm responsabilida-des empresariais e públicas no Brasil.

13) Em discurso proferido no Rotary Club de São Paulo, o ex-ChancelerSan Thiago Dantas fêz a seguinte menção a respeito da fuga de capitais: "atra-vés de mil mecanismos, desde a compra de câmbio até o subfaturamento, oBrasil, como OS demais países Iatino-americanos, tem formado no exterior, hoje,uma massa de recursos que, no tocante ao Brasil, podemos dizer que equivalea uma vez e meia ao máximo que nós esperamos obter da "Aliança para oProgresso". Veja-se o semanârío Servir, da entidade, de 20 de julho de 1962,pág.9.