digesto econômico

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DIGESTO ECONÔMICO - JANEIRO/FEVEREIRO 2012 - ANO LXVII - Nº 466 JANEIRO/FEVEREIRO 2012 ANO LXVII – Nº 466 – R$ 4,50

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Desindustrialização

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JANEIRO/FEVEREIRO 2012ANO LXVII – Nº 466 – R$ 4,50

Page 2: Digesto Econômico

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Page 3: Digesto Econômico

3JANEIRO/FEVEREIRO 2012 DIGESTO ECONÔMICO

Os dois lados de umamesma moeda

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SIMO Índice Nacional de Confiança (INC), medido pela

Associação Comercial de São Paulo (ACSP) e o institutode pesquisas Ipsos, mostra que o brasileiro está bastante

confiante em relação à economia. Em janeiro, o INC atingiu 178pontos, o maior valor para o período nos últimos dois anos, 17pontos acima do índice alcançado em janeiro de 2011. Se nãoocorrer um agravamento da crise europeia, tudo leva a crer que estapercepção otimista dos consumidores poderá se concretizar este ano, já que o mercadointerno continua aquecido, o emprego permanece estável e o salário mínimo subiu 14%.

Por outro lado, um importante setor da economia não está tão otimista assim. Dadosrecentes divulgados pelo IBGE mostram um fraco desempenho da produção industrial, queno total cresceu apenas 0,3% em 2011. O setor têxtil amargou uma queda de quase 15% e ode calçados e artigos de couro caiu mais de 10%. Para o economista Julio Sergio Gomes deAlmeida, diretor executivo do IEDI - Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial,está havendo uma desindustrialização em alguns setores com a invasão de produtosimportados. Para ele, "no chão de fábrica, a indústria nacional não deixa nada a desejar emrelação aos padrões internacionais. O problema está da porta da fábrica para fora". Parasalvar a nossa indústria, é preciso urgentemente reduzir os custos de produção, provocadospela alta carga tributária, encargos trabalhistas, logística precária, custos de energia, entreoutros fatores. Em entrevista para o Digesto Econômico, o diretor do IEDI diz que o governofederal deveria ser mais rígido no controle do câmbio, para que o real não fiquesupervalorizado, beneficiando as importações.

A crise dos países da área do euro é a grande incógnita hoje. Depende dos lídereseuropeus, e das soluções que eles encontrarem, se 2012 será um ano de recuperação ourecessão econômica. O artigo da economista Maria Cristina Penido de Freitas, da Fundap,analisa a trajetória da moeda europeia – que acaba de completar dez anos –, do Tratado deMaastricht, aprovado em fevereiro de 1992, até a crise atual.

Outro destaque desta primeira edição de 2012 da revista Digesto Econômico é a novaestratégia de defesa dos Estados Unidos, anunciada pelo presidente Barack Obama emjaneiro. Na análise do professor Gunther Rudzit, da Faap, o combate ao terrorismo deixa deser prioridade e o foco se volta para a China, que caminha para ser uma potência bélica.Rudzit comenta as estratégias militares dos dois países e como serão as guerras no futuro.

Boa leitura!

Rogério AmatoPresidente da Associação Comercial de

São Paulo e da Federação das AssociaçõesComerciais do Estado de São Paulo.

Page 4: Digesto Econômico

4 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2012

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3737CEP 01014-911 - São Paulo - SP

home page: http://www.acsp.com.bre-mail: [email protected]

Pre s i d e nteRogério Amato

Superintendente InstitucionalMarcel Domingos Solimeo

ISSN 0101-4218

Diretor-Resp onsávelJoão de Scantimburgo

Diretor de RedaçãoMoisés Rabinovici

Ed i to r - Ch e feJosé Guilherme Rodrigues Ferreira

Ed i to re sCarlos Ossamu e Domingos Zamagna

Chefia de ReportagemJosé Maria dos Santos

Editor de FotografiaAlex Ribeiro

Pesquisa de ImagemMirian Pimentel

Editor de ArteJosé Coelho

Projeto GráficoEvana Clicia Lisbôa Sutilo

D iagramaçãoEvana Clicia Lisbôa Sutilo

Ilustração e InfográficosMax e Zilberman

Gerente Executiva de PublicidadeSonia Oliveira ([email protected]) 3244-3029

Gerente de OperaçõesValter Pereira de Souza

I m p re s s ã oLog & Print Gráfica e Logística S.A.

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADERua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911

PABX (011) 3244-3737 REDAÇÃO (011) 3244-3055FAX (011) 3244-3046

w w w. d co m e rc i o. co m . b r

ÍNDICE

6O charme perdidoDenis Rosenfield

Valter Campanato/ABr

12A crise do judiciárioIves Gandra da Silva Martins

16A indústria pede socorroCarlos Ossamu eJosé Maria dos Santos

Tasso Marcelo/AE

22Instinto de sobrevivênciaAldo M. Azevedo

Reprodução

CAPAArte: MAX

Zilberman

Operários, obra deTarsila do Amaral, mudacom a invasão chinesa.

Page 5: Digesto Econômico

5JANEIRO/FEVEREIRO 2012 DIGESTO ECONÔMICO

24A crise na área do euro

Maria Cristina Penido de Freitas

Tony Gentile/Reuters

42O gato de DengXiaoping estácansadoGuy Sorman

48Novidades no front:o alvo agora é a ChinaCarlos Ossamu eJosé Maria dos Santos

SXC

56Um barão quevaleu milhõesCarlos Ossamu eJosé Maria dos Santos

Reprodução

62Estamos sozinhosno Universo?Valdir Sanches

Luiz

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do/L

UZ

66O apocalipse reveladoMarleine Cohen

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Page 6: Digesto Econômico

6 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2012

Denis RosenfieldGraduado emFilosofia pelaUniversidadeAutônoma do Méxicoe Doutor de Estadopela Universidade deParis I PanthéonSorbonne. Professortitular de Filosofia daUniversidade Federaldo Rio Grande do Sul

"B em-vindo aqui ao Rio Grande do Sul" disse, com um largo sorriso norosto, Tarso Genro, o governador do Estado, ao ex-terrorista CesareBattisti. Após o abraço fraternal, Battisti fez questão de agradecer ao ex-ministro da Justiça pela sua permanência no País: "Vim assistir à reu-

nião, visitar o palácio, que é muito bonito, e agradecer ao governador pela coragempolítica e pelo alto valor moral que mostrou". O homem condenado por quatro ho-micídios na Itália quando militava no grupo de extrema esquerda Proletários Arma-dos pelo Comunismo (PAC) exaltou as qualidades morais do homem que embalou edespachou para Cuba os pugilistas cubanos que pediram asilo político ao Brasil.

Temos, aqui, um emblema das contradições de um evento – e mesmo de um par-tido – que se coloca como o de um "mundo alternativo" e, ao mesmo tempo, se ca-racteriza pelas posições mais retrógradas de uma esquerda que se recusa à reno-vação, flertando, mesmo, com a violência. Pode-se dizer que, na verdade, não hánenhuma novidade aqui, pois o "flerte totalitário" faz parte da própria essência doFórum Social Temático, cujas afinidades eletivas são a ditadura dos irmãos C a s t ro ,a narcoguerrilha das FARC e o projeto "socialista bolivariano" de Chávez. O mundotão proclamado de paz está baseado na violência esquerdista, justificando-a.

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7JANEIRO/FEVEREIRO 2012 DIGESTO ECONÔMICO

O Fórum Social Temático desse ano, que ocorreu de 24 a 29 de janeiro em Porto Ale-gre, foi um fracasso, não tendo tido nem um comparecimento de público equivalenteao de anos anteriores. Taxistas e proprietários de hotéis reclamaram da pequena pre-sença de turistas, o que tinha, inclusive, servido no passado para justificar generosascontribuições de dinheiro público – municipal, estadual e federal. Na verdade, tratava-se de um argumento que tinha como função legitimar esse mau uso de dinheiro pú-blico, dinheiro dos contribuintes, para financiar um Fórum nitidamente anticapitalis -ta. Se o norte principal do evento foi a crise capitalista, só não houve crise no finan-ciamento, já que o patrocínio é exclusivamente estatal – o bolso do contribuinte bra-sileiro: Banrisul (Banco do Estado do Rio Grande do Sul) , Badesul (banco de fomentoda região sul), Fiocruz, Corsan (Companhia estadual de águas), Petrobras, etc.

Os recursos ganhos com o trabalho em uma sociedade capitalista eram – e são –ideologicamente justificados para financiar organizações que visam a destruir essasmesmas condições de trabalho. A volta do Fórum a Porto Alegre, nesse ano, serviriapara ser a antessala de um evento maior nessa mesma cidade. Assim, em todo caso, eraentendido o apoio financeiro desde uma ótica política. Ora, os próprios orga n i z a d o re sdo Fórum já deixaram claro que abandonarão no ano que vem a capital gaúcha, indo

Mesmo com a presençada presidente Dilma

Rousseff, o Fórum SocialTemático deste ano foium fracasso de público.Só não houve crise no

financiamento, já que opatrocínio foi estatal:

Banrisul, Badesul,Fiocruz, Corsan,Petrobras, etc.

Fotos:Valter Campanato/ABr

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8 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2012

pragmatismo "neoliberal" na arte de governar.Enquanto o PT estava na oposição e nos primei-ros anos do governo Lula, o charme petista ain-da vibrava. A partir do momento em que o go-verno, apesar de sua retórica, seguiu as linhasbásicas do governo anterior, falando contra asprivatizações, por exemplo, porém não as re-vertendo e mesmo ampliando, o charme tendea diminuir. Acrescente-se a isto os escândalosda era petista, com especial realce para o men-salão, para que se possa talvez melhor avaliar ofracasso desse Fórum Social. A ideologia petis-

ta parece não resistir aosgovernos petistas.

Anteriormente, o pú-bl ico jovem era muitoatraído por questões am-bientais e alternativas emgeral, primando valoresdo que poderia ser consi-derado como pol i t ica-mente correto. Discursos"utópicos", de paz e soli-dariedade, muitas vezesganhavam a cena, concor-rendo com o discurso es-querdista tradicional ,sempre presente nas gran-des mesas e debates. Erauma forma das ideias es-querdistas tradicionais selegitimarem, capturandojovens que estavam preo-cupados com políticas al-ternativas. O PT se apode-rou cada vez mais desseevento, pois ainda exerciao charme de ou não ser go-verno ou de ser jovem go-verno, que necessitava,

ainda, de tempo para implementar suas mu-danças. O encanto foi minguando.

Em eventos passados, ocorridos em PortoAlegre, os grandes jornais e os meios de comu-nicação em geral davam muito destaque a esseacontecimento, com grandes coberturas, quechegavam a ser manchetes de primeira página.Nada disto ocorreu nesse ano, com a cobertura,restrita, sem maior abrangência, ficando limi-tada a páginas interiores, sem nenhuma cha-mada. Ademais, os espaços dedicados ao even-to foram pequenos. Do ponto de vista midiáti-co, poder-se-ia dizer que o evento foi um não-evento, sem maior repercussão. No passado,muitos formadores de opinião, simpáticos aoFórum, se deliciavam com ele, dedicando-lheum enorme espaço.

Uma questão que podeser colocada é se opúblico jovem, tão

acostumado no passadoa esse tipo de evento,não estaria um poucocansado da retóricaesquerdista do PT e

do seu pragmatismo"neoliberal".

para o norte da África. Estão à procura de umpúblico, pois o atual se mostrou perdido.

Uma das razões dessa "retirada" foi a ausên-cia de público. Nada comparável a anos anterio-res, onde os hotéis ficaram lotados e casas par-ticulares vieram a albergar os participantes. Omais surpreendente aqui é que em um ano deforte crise do capitalismo, principalmente nospaíses europeus, o discurso anticapitalista, ba-seado no "fim do capitalismo", conforme prog-nosticado pelos socialistas e comunistas, não te-nha conseguido atrair multidões. Seria de se es-

perar um maior apelo de participantes globais,nacionais e locais. Nada disto aconteceu, o quesinaliza para uma questão importante no quetoca à vigência de ideias anticapitalistas no Bra-sil, que estariam se enfraquecendo. Do ponto devista eleitoral, o evento serviu para que o gover-nador Tarso Genro procurasse extrair dividen-dos políticos, assim como o candidato do PT àprefeitura de Porto Alegre. A presidente DilmaRousseff, por sua vez, apesar de sua retórica es-querdista, tampouco conseguiu angariar públi-co. Falou para uma plateia que lotou em apenas50% o recinto utilizado.

Uma questão que pode ser colocada é a de seo público jovem, tão acostumado no passado aesse tipo de evento, não estaria um pouco can-sado da retórica esquerdista do PT e do seu

Valter Campanato/ABr

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9JANEIRO/FEVEREIRO 2012 DIGESTO ECONÔMICO

Agora, a tônica foi a do desencanto, a das pe-quenas notícias, a repetição de velhos sloganssem nenhuma consistência. Mesmo a retóricado "um outro mundo é possível" não mais res-soou. O novo mundo possível do governo pe-tista parece não exercer nenhum encanto. As-sinale-se, ainda, que o Fórum Social deixouPorto Alegre quando da eleição de um prefeitodo PMDB, José Fogaça. Os organizadores doFórum deixaram claro, naquele então, que dei-xavam a cidade, pois os eleitores de Porto Ale-gre tinham abandonado o PT! De um lado, elesse diziam apartidários, de outro afirmavam oseu partidarismo.

Um pouco de passado não faz mal para re-frescar a memória. Nas primeiras edições doFórum, tivemos acontecimentos dignos domelhor esquerdismo, com o apoio explícito doPT local, tanto no nível municipal quanto esta-dual, sem contar, evidentemente, os apoios na-cionais. As FARC foram recepcionadas peloentão governador Olívio Dutra. Ou seja, osnarcoguerrilheiros foram recebidos no PalácioPiratini com tapete vermelho, embora os orga-nizadores do Fórum tivessem ficado embara-çados diante da cobrança da opinião pública eprocuraram manter certa distância. Note-seque o atual governador petista recepciona Ce-sare Battisti, o anterior as FARC. A linha decontinuidade é clara. Esse setor do partido tei-ma em não se renovar.

Hugo Chávez, por sua vez, compareceucom toda a pompa, discursando para o públicode uma das sacadas do Palácio. Militantes deesquerda uivavam em apoio ao regime comu-nista, socialista, em implantação na Venezuela.Tratava-se, para os organizadores do Fórum,de uma grande personalidade, objeto de elogioe de exemplo. Hoje, há setores do PT que que-rem distância do protoditador, enquanto ou-tros apostam ainda em trazer para o País aque-le projeto de nítidos pendores totalitários.

Assinale-se, também, que os representantesdos ditadores cubanos eram recebidos com omaior entusiasmo, participando de mesas im-portantes no Fórum e ganhando grande reper-cussão midiática. No caso, foi o presidente doParlamento cubano, instituição, aliás, inexis-tente naquele país, senão sob o modo de umamera formalidade para legitimar as decisõesdo partido comunista. No Fórum, foi apresen-tado como representante de uma instituição le-gislativa, o que é claramente uma piada.

Observe-se que a própria presidente Dilma,no Fórum Social, teve uma espécie de recaída es-querdista, logo reconfirmada em sua viagemposterior a Cuba. No que diz respeito ao Brasil,

foi assinalado que o fato de o País estar superan-do bem a crise internacional deve-se, em amplamedida, a outras soluções aqui implementadas.Um parêntese se torna aqui necessário.

Omite-se um fato absolutamente central dopassado brasileiro, que explica em boa parte anossa diferença. O País seguiu estritamente asdiretrizes do FMI enquanto condição de sanea-mento de suas contas públicas. Quando de cri-ses anteriores, que foram muitas com morató-rias e planos heterodoxos, o País praticamenteafundou. Graças ao fato de ter aceito e imple-mentado um novo receituário – neoliberal nodizer do PT –, o Brasil pode sair da situação deinsolvência na qual se encontrava. Logo, foigraças ao FMI e junto com ele, que o País crioucondições para ser o que é hoje.

Enquanto isso, os países europeus, com es-pecial menção a Grécia, Irlanda, Portugal e,também, Espanha e Itália, seguiram um cami-nho distinto, com endividamentos públicosprogressivos e, alguns, impagáveis. Foram ge-nerosos em políticas salariais e previdenciá-rias, como se não coubesse a eles o pagamentodessas. Foram fiscalmente irresponsáveis e,agora, chamados à responsabilidade, se posi-cionam contra o FMI e outras instâncias finan-ceiras internacionais. Eles se recusam a fazer oque o Brasil fez no passado. Gostariam de per-manecer na mais completa irresponsabilidadecomo se a culpa não fosse deles. Quando o pro-blema era do "outro", no caso o Brasil, foram fa-voráveis às políticas do FMI. Quando situaçãosimilar se apresenta a eles, rasgam o seu pró-prio discurso e concepção passados.

O PT tem, definitivamente, memória curta.Aproveita-se de distorções no processo de for-mação da opinião pública para avançar ideiasque não resistem a um mínimo confronto com arealidade. Foram os dois mandatos do governoFernando Henrique que criaram as condiçõesde o Brasil ser o que é hoje. Os petistas, no pas-sado, foram contra a maior parte das medidasdas quais são, hoje, beneficiários. Não se sen-tem minimamente comprometidos com qual-quer reconhecimento.

Se o Brasil não sofreu a mesma crise das ins-tituições financeiras e bancárias americanas e eu-ropeias, foi porque o governo tucano, com apoiodo PFL/DEM, empreendeu o laborioso trabalhode saneamento das finanças públicas e do siste-ma bancário público, privatizando os bancos pú-blicos estaduais, fontes de inflação e de malver-sação de fundos públicos pelos governadores.Estabeleceu, também, melhores formas de fisca-lização e regulação pelo Banco Central, que fo-ram seguidas à risca. Graças a isto, o País pode

A estabilidade monetáriado País, tendo uma

moeda forte, é fruto dosgovernos Itamar Franco e

Fernando Henrique,tendo o PT, igualmente,se posicionado contra o

Plano Real.

Marc Klein

Marc Klein

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10 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2012

enfrentar a atual crise bancária e financeira inter-nacional, pois não era aqui feito o mesmo tipo deoperação que deu origem a essa crise.

Os governos Lula e Dilma nada aqui inventa-ram e, no entanto, se colocam como se fossem osautores dessa façanha. Observe-se, aliás, que oPT foi contra todas essas medidas e, agora, se dizautor dos seus benefícios. O fato de que o PSDBnão saiba defender o seu passado e a herança quedeixou é um problema desse partido e não deuma análise voltada para a verdade.

A estabilidade monetária do País, tendo umamoeda forte, é fruto dos governos Itamar Francoe Fernando Henrique, tendo o PT,igualmente, se posicionado contra oPlano Real. Aliás, a derrota de Lulapara Fernando Henrique em muitose deve a esse grande equívoco, poiso povo brasileiro soube bem distin-guir quem estava contra a inflação, jácolhendo os seus benefícios, e quemterminava por apregoar a instabili-dade monetária, com fortes reper-cussões sociais. Ou seja, nada do queestá acontecendo no País, distinguin-do-o de outros países, teria sido pos-sível sem um Plano que conseguissecontrolar a inflação.

Outras medidas poderiam sertambém elencadas como a autono-mia operacional do Banco Central, ocomeço da reforma da PrevidênciaPública e a Lei de ResponsabilidadeFiscal. O PT foi contra todas essasiniciativas, embora as tenha também adotadoposteriormente, procurando omitir o que fa-zia. Lula falava de uma "herança maldita"quando, se tivesse um mínimo compromissocom a verdade, deveria tê-la chamado de ben-dita. O País é outro, tendo inclusive, ultrapas-sado, pelo critério do PIB, a Grã-Bretanha gra-ças, precisamente, a essa "herança bendita".

O grande desafio das oposições consiste emmostrar que se o Brasil se encontra em uma po-sição invejável em relação a outros países, istonão se deve a ter adotado uma política antica-pitalista, mas, pelo contrário, por ter seguidopolíticas que o PT hoje considera como "neoli-berais". Foi devido a medidas tomas pelos go-vernos Itamar Franco e Fernando Henrique,como o Plano Real, a Lei de ResponsabilidadeFiscal, a autonomia operacional do Banco Cen-tral e o saneamento do sistema bancário, emparticular, estadual, que o Brasil pode usufruirum longo período de bonança no comércio in-ternacional. Foi também pelo fato de ter segui-do as orientações do FMI, quando de suas cri-

ses, que o País criou condições de ser, hoje, oque é. Nada disto foi fruto de "um outro mundopossível", no dizer dos representantes do Fó-rum Social de Porto Alegre.

Em Cuba, dias depois, a presidente Dilmapreferiu se abster de condenar o desrespeitosistemáticos dos ditadores cubanos aos direi-tos humanos, contentando-se com criticar a ba-se americana de Guantánamo. Após concedero visto de entrada no País a uma dissidente cu-bana, algo novo, o seu posicionamento foi umaespécie de anticlímax para todos os que pensa-vam que a política externa lulista pudesse ter

aqui um tipo de inflexão. Aliás, umavez tendo deixado o país, a ditaduracomunista nem teve a cortesia dejustificar o ato presidencial brasilei-ro, negando à blogueira Yoani Sán-chez o direito de sair de Cuba. O Ita-maraty ficou de mãos abanando.

A presidente claramente privile-giou as posições tradicionais de seupartido, que se caracterizam por umapoio incondicional à ditatura co-munista. Fidel, em particular, conti-nua sendo um símbolo para o PT, re-vestido, inclusive, com uma aura desantidade. A própria presidentechegou a dizer que se encontraria,"com muito orgulho", com esse lon-gevo ditador.

A Secretária dos Direitos Huma-nos, Maria do Rosário, nem viajouà ilha-prisão, também relativizan-

do a violação dos direitos humanos em Cuba.O assassinato de opositores no "paredón", ascondições deploráveis das masmorras cas-tristas, a morte de dissidentes que morremem greve de forme, nada disto parece impac-tar a representante dos direitos humanos. Tu-do indica que, para esse governo, assim comopara o anterior, tudo o que acontece em Cubaé ideologicamente filtrado na ótica da "soli-dariedade" esquerdista.

O ministro de Relações Exteriores, AntônioPatriota, chegou a sair com uma pérola, a deque a situação dos direitos humanos não é"emergencial" em Cuba. Deveria ele, para terum mínimo de coerência, perguntar para osdissidentes, os que padecem em prisões insa-lubres, aos que são sistematicamente persegui-dos, aos que são objeto de um controle total dapolícia política. Se tivesse algo de memória, po-deria se socorrer do destino dos opositores doscomunistas, muitos opositores também de Ful-gêncio Batista, que foram simplesmente assas-sinados. Alguns pelas próprias mãos de Che

Em Cuba, dentre outrasviolações, a liberdade deir e vir é negada a todo

cidadão, que se torna ummero servo do Estado.Na foto, a blogueira

cubana Yoani Sánchez,impedida pelo governo

de sair de seu país.

Divulgação

Page 11: Digesto Econômico

11JANEIRO/FEVEREIRO 2012 DIGESTO ECONÔMICO

Guevara. O escárnio dos representantes do go-verno brasileiro foi total.

O conceito de direitos humanos tem seu sig-nificado historicamente dado pela afirmação dasliberdades. Em Cuba, dentre outras violações, aliberdade de ir e vir é negada a todo cidadão, quese torna um mero servo do Estado. Deslocamen-tos internos na ilha dependem da autorizaçãopolicial. A saída do país é submetida a um rígidocontrole, a polícia de fronteiras se comportandocomo se fossem guardas de um imenso presídiocoletivo. As pessoas estão tão "felizes" em Cubaque estão proibidas de lá saírem. Se essa dita "fe-licidade" estivesse assegurada, sair voluntaria-mente desse paraíso esta-ria fora de cogitação.

A liberdade de impren-sa e dos meios de comuni-cação em geral, um dosbens mais preciosos da hu-manidade, fruto de umlongo processo civilizató-rio, simplesmente inexistesob a ditadura comunista.Aliás, os esquerdistas sódefendem a liberdade deimprensa quando estão naoposição, pois, assim,abrem espaço para o seucaminho para o Poder. Jáinstalados no governo,proíbem qualquer tipo demanifestação que os con-trarie, mostrando a suaverdadeira face opressiva.Qualquer liberdade de im-prensa é identificada à"burguesia" e ao "imperia-lismo", não tendo nenhumvalor universal.

A liberdade de moradia, de comprar e/oualugar uma casa ou um apartamento tampou-co existe, tudo sendo implacavelmente contro-lado pelo Estado, que desconhece liminarmen-te o direito de propriedade. Ao vincular um ti-po de trabalho obrigatório a um tipo tambémobrigatório de moradia, aliás, de péssima qua-lidade, o regime comunista consegue, assim,controlar os cidadãos naquilo que é um dosseus mais importantes bens. A liberdade polí-tica tampouco existe. Em regime comunista vi-gora a ditadura do partido único e, em seu to-po, do ditador mor, no caso de Cuba, os irmãosCastro. Partidos políticos são proibidos e tudose faz interiormente ao partido, que controlacom mãos de ferro os seus membros. Outra pé-rola castrista consiste na recente "decisão" de

que os dirigentes comunistas terão um manda-to de 5 anos, renovável por igual período. Con-siderando que os irmãos Castro têm mais de 80anos, eles teriam ainda assegurados mais 10anos de Poder. Se forem mais longevos do queisto, certamente mudarão a nova regra.

Economicamente, o país está falido. O go-verno brasileiro está abrindo linhas de finan-ciamento para a compra de alimentos, poisnem disso a ditadura comunista dá conta. Nopassado, viveram da mesada dos comunistassoviéticos; no presente, vivem do petróleo ve-nezuelano, apropriado pelo proto-ditadorChávez. Nem açúcar conseguem produzir em

Adalberto Roque/AFP

No encontro com ocolega Raul Castro, a

presidenta DilmaRousseff preferiu seabster de condenar

o desrespeitosistemático dos

ditadores cubanos aosdireitos humanos.

quantidade suficiente para as próprias neces-sidades da população.

É essa ditadura comunista que a presidenteDilma e o seu séquito consideram como não de-vendo ser objeto de uma manifestação a respeitode suas violações sistemáticas aos direitos hu-manos. É essa ditadura que é defendida em no-me de uma relativização dos direitos humanos,como se cada ditador, em nome da soberania na-cional, pudesse tratar os seus cidadãos, verda-deiros servos, como se fossem objeto de qual-quer tipo de manipulação, dentre as quais o as-sassinato e a tortura. É essa ditadura que conti-nua a ser defendida pelo PT, o que mais uma vezmostra o longo caminho que esse partido deveainda percorrer para levar a cabo uma revisãodoutrinária, cada vez mais urgente.

Page 12: Digesto Econômico

12 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2012

A CRISEDO

JUDICIÁRIO

Em palestra proferida quando recebeu o títulode professor honorário do Centro de Exten-são Universitária, Departamento de Direitodo Instituto Internacional de Ciências So-

ciais, o Ministro Ricardo Lewandowsky fez interes-sante observação: se o Século 19 foi o século do PoderLegislativo, o Século 20 do Poder Executivo, o Século21 será o século do Poder Judiciário, pois o protagonis-mo deste poder será maior que o dos outros dois.

Nada obstante a observação do eminente doutri-nador, a quem me coube saudar naquela cerimônia, aConstituição brasileira não outorga ao Poder Judiciá-

rio forças maiores do que a de ser, somente, um legis-lador negativo, visto que, no § 2º do artigo 103, nãopermite, nas ações diretas de inconstitucionalidadepor omissão, que o Supremo Tribunal Federal edite anorma não produzida pelo Parlamento. Está o dispo-sitivo assim redigido: "§ 2º - Declarada a inconstitucio-nalidade por omissão de medida para tornar efetiva normaconstitucional,será dada ciência ao Poder competentepara a adoção das providências necessárias e , em setratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trintadias" (grifo meu).

Nada obstante, a clareza da disposição da Lei Maior,

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tem o Supremo Tribunal Federal legislado, como o fezao assegurar a nomeação de candidatos a Governadorna Paraíba e Maranhão, quando a Constituição Fede-ral exige novas eleições diretas ou indiretas, no caso decassação dos Governadores eleitos, antes ou depois de2 anos (art. 80 e 81); na definição da fidelidade parti-dária como obrigatória, quando a Constituição deixouao arbítrio dos partidos adotá-la (art. 17); na definiçãode pares do mesmo sexo como unidade familiar, quan-do a Constituição só permite que assim sejam consi-derados os casais constituídos de homem e mulher(art. 226 § 3º); e em muitos outros casos.

Em outras palavras, de guardião da Constituição(art. 102), o Supremo Tribunal Federal alterou seu per-fil para o de "constituinte derivado 'ad hoc' ", produ-zindo as normas que entende de justiça, para suprir oque considera ser omissão do Legislativo, na atividadede elaborar as leis necessárias para o País.

Não entro no mérito dos ministros que levaram àconformação desse perfil, desde a assunção do Po-der Central pelo PT (nomeação de 10 ministros parao Pretório Excelso), que jamais foi ostentado pela Su-prema Corte, nos seus mais de 100 anos de atuaçãorepublicana, embora, como velho advogado com 55

Ives Gandra da Silva MartinsProfessor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O ESTADO

DE SÃO PAULO, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército - ECEME, Superior deGuerra - ESG e da Magistratura do Tribunal Regional Federal-1a. Região; Professor Honorário das

Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia); DoutorHonoris Causa das Universidades de Craiova (Romênia) e da PUC-Paraná, e Catedrático

da Universidade do Minho (Portugal); Presidente do Conselho Superior de Direito daFECOMERCIO - SP; Fundador e Presidente Honorário do Centro de Extensão

Universitária-CEU/Instituto Internacional de Ciências Sociais-IICS.

Luiz

Pra

do/L

UZ

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anos de exercício profissional, sempre tenha prefe-rido que o Poder Legislativo legisle, o Executivoaplique a legislação e o Judiciário faça justiça DEN-TRO DAS LEIS PRODUZIDAS PELOS PODERESPOLÍTICOS. É que o Poder Judiciário é um podertécnico, que não representa a vontade popular, nãofoi eleito pelo povo.

Neste quadro, há de se compreender que os cho-ques, interpretações, presença na mídia, divergênciaspúblicas tornem-se mais evidentes e os magistradosque, anteriormente, apenas falavam nos autos, agora,não poucas vezes, falam sobre questões que vão deci-dir, inclusive avançando suas opiniões sobre o caso.

Os tempos são outros, não cabendo – como dizia osímbolo maior da Suprema Corte do Brasil, na se-gunda metade do século 20, Ministro Moreira Alves– a nós, os velhos, julgar a atuação dos novos magis-trados. Mesmo tendo participado de três bancasexaminadoras de concurso para ingresso na magis-tratura (duas federais e uma estadual) sinto-me àvontade, como advogado da velha geração, não pa-ra julgar os novos hábitos e costumes dos magistra-dos, mas apenas para comentá-los.

O certo é que este protagonismo tem gerado ins-tabilidades, que, muitas vezes, desbordam do as-pecto técnico para o emocional, quando a matériadeveria ser apenas jurídica.

É neste quadro que a recente crise, desventradapara a sociedade, entre CNJ e STF – e que teve solu-ção definitiva no dia 2 de fevereiro último, quandopor 6x5 manteve os poderes do CNJ –, merece refle-xão exclusivamente jurídica.

O primeiro aspecto a considerar é que a EmendaConstitucional nº45/04 não criou um controle exter-no da magistratura, como a grande maioria dos ad-vogados desejava. Criou, isto sim, um controle "inter-no qualificado", visto que deslocou para uma insti-tuição de Brasília o exame dos desvios funcionais dosservidores do Judiciário, principalmente dos magis-trados. Assim é que, dos 15 conselheiros, 9 são magis-trados, 4 representam instituições fundamentais à ju-dicatura (2 advogados e 2 membros do "Parquet") eapenas 2 elementos são externos (1 representante doSenado e outro da Câmara dos Deputados).

Em audiência pública, a convite do Senador Ber-nardo Cabral, opus-me, ainda na fase de discussãodo projeto original, a um controle externo, que, ameu ver, feriria o artigo 2º da Constituição Federal,segundo o qual os Poderes são harmônicos e inde-pendentes. Naquela audiência, de que participaramos presidentes do STF, STJ e um Ministro do TST(Marco Aurélio de Mello, Costa Leite e Ives GandraFilho), expus as razões de minha postura, de resto,publicamente manifestada em palestras e artigos.

É bem verdade que o bom senso do CongressoNacional, do Ministro Márcio Thomas Bastos e deSergio Renault, terminou por desaguar em fórmula

na qual o artigo 2º da Constituição Federal não saiumaculado, outorgando-se ao CNJ competência ori-ginária, concorrente e recursal para todos os casosde desvios funcionais, no Poder Judiciário.

A inércia de grande parte das Corregedorias ouConselhos da Magistratura, que não puniam – masque tiveram suas competências preservadas (artigo103-B artigo 4º inciso V), cabendo, em face de suasdecisões, recurso ao CNJ –, levou à criação do incisoIII, do § 4º, do artigo 103-B, ou seja, o direito de o CNJconhecer, originariamente, de qualquer reclamaçãocontra servidores do Judiciário, Magistrados ou Ser-ventuários, sendo essa norma, de rigor, a mais rele-vante da E.C. 45/04 e a verdadeira razão da criaçãodo CNJ. Está o inciso III assim redigido:

"III - receber e conhecer das reclamações contramembros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contraseus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de ser-viços notariais e de registro que atuem por delegação do poderpúblico ou oficializados, sem prejuízo da competência discipli-nar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos dis-ciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidadeou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionaisao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas,assegurada ampla defesa;" (Grifos meus).

Ora, pretender que esta competência fosse ape-nas protocolar, ou seja, de receber reclamações e en-viá-las para as Corregedorias ou Conselhos de Ma-gistratura, seria, à evidência, nulificar, por inteiro, arazão de ser da criação do CNJ.

Andre Dusek/AE

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Tanto é coerente esta linha de raciocínio, que, tãologo criado e dirigido, durante seis anos, por 3 pre-sidentes do STF (Nelson Jobim, Gilmar Mendes e El-len Gracie) e integrado por 45 Conselheiros, em 3mandatos, o CNJ decidiu, no exercício de sua com-petência originária, concorrente e recursal, dezenasde processos contra Magistrados, sem que se puses-se em questão sua linha de ação, de resto, reconhe-cida pela Nação como necessária para punir desviosque existem em quaisquer instituições e realçar o fa-to de ser o Poder Judiciário, de todos os Poderes,aquele em que tais distorções menos ocorrem.

Ora, a decisão inicial do Ministro Marco Aurélio deMello, a quem devoto particular admiração – é anto-lógico o voto que proferiu na questão Raposa Terra doSol – de suspender o exercício de tal competência atémanifestação do Plenário, pareceu-me equivocada.De início, porque desautorizava seis anos de atuaçãodo CNJ no exercício das competências atribuídas pe-la Constituição; depois, porque autorizava todos osque foram punidos pela instituição a pedirem ime-diata reintegração nas funções exercidas e indeniza-ções por danos morais, em face de terem sido conde-nados por órgão incompetente.

Do ponto de vista jurídico, portanto, nada obstanteo indiscutível valor do Ministro – participei de dois li-vros organizados em justa homenagem a sua atuaçãocomo Magistrado – considerei equivocada a decisão,tanto assim que três Ministros que presidiram o CNJ e45 Conselheiros, nos seis anos de sua atuação anterior,

jamais detectaram qualquer vício de competência.Do ponto de vista político, a decisão poderia levar

o Congresso a instituir um verdadeiro controle ex-terno da Magistratura, e não um controle internoqualificado, como existe atualmente.

Por fim, do ponto de vista social, a decisão termi-nou colocando a mídia e a sociedade contra o PoderJudiciário, gerando, de rigor, uma desconfiança nomais respeitável dos Poderes, o que não é bom para ademocracia brasileira.

Tais considerações eu as faço, pelas preocupaçõesque me assaltavam, nestes meus 55 anos de exercícioprofissional, na esperança de que o Plenário da Su-prema Corte, ao examinar esta decisão, ao lado dasoutras duas prolatadas pelos Ministros Cezar Pelu-so e Ricardo Lewandowski – igualmente Magistra-dos e doutrinadores de escol neste País –, reconhe-cessem aquela competência originária, exercida,sem quaisquer contestações, durante seis anos, peloCNJ. Felizmente, foi o que ocorreu, mantendo-se acompetência originária do CNJ.

Desta forma, a injusta desfiguração do Judiciário,promovida pelos mais variados comentários, dianteda divergência, publicamente manifestada, entre osMinistros Peluso e Eliana Calmon, foi apagada. Nademocracia, que tem como símbolo maior o direitode defesa – nas ditaduras ele inexiste –, cabe ao Po-der Judiciário a relevantíssima função de garanti-lo.E um Poder Judiciário forte e respeitado é a maiorgarantia de um Estado Democrático de Direito.

Sergio Lima/Folhapress Wilson Pedrosa/AE

De guardião da Constituição, o Supremo TribunalFederal alterou seu perfil para o de "constituintederivado 'ad hoc' ", produzindo as normas queentende de justiça, para suprir o que consideraser omissão do Legislativo. Nas fotos, os ministrosRicardo Lewandowski e Cesar Peluso; acima,a corregedora do CNJ, Eliana Calmon.

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A indústriapedeSOCORROCarlos Ossamu e José Maria dos Santos

Tasso Marcelo/AE

Paulo Pampolin/Hype

No último dia de janeiro, o IBGE divulgou osdados da produção industrial de 2011. Aindústria fechou o ano passado com umaexpansão de apenas 0,3%. Os vilões pelo

fraco desempenho foram o câmbio desfavorável às ex-portações, que beneficiaram os produtos importados, e adesaceleração da economia nos meses finais de 2011,principalmente pela crise europeia. Segundo os dadosconsolidados para o ano, setores que são mais sensíveis àconcorrência de produtos importados tiveram desempe-nho negativo, como o têxtil (-14,9%), calçados e artigos decouro (-10,4%) e outros produtos químicos (-2,1). Já osbens de consumo duráveis, como eletrodomésticos, tive-ram queda de -2% e bens semi e não duráveis (alimentos,vestuários e outros) apresentaram queda de -0,2%. O se-tor de veículos automotores cresceu 2,4%, mas o respon-sável por isso foi a fabricação de caminhões. A produçãode automóveis de passeio despencou -7,8% em 2011.

Em entrevista ao Digesto Econômico, o economista ediretor executivo do IEDI - Instituto de Estudos para o De-senvolvimento Industrial, Julio Sergio Gomes de Almei-da, explica o que vem ocorrendo no setor industrial. Emsua opinião, o governo federal deveria ser mais rígido nocontrole do câmbio, para que o real não fique supervalo-

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rizado, além de reduzir os custos de produção no Brasil,principalmente a carga tributária e os encargos trabalhis-tas. "No chão de fábrica não estamos tão ruins em com-paração aos padrões internacionais. O problema está daporta da fábrica para fora", afirma Almeida.

Digesto Econômico - Fala-se muito em desindustrialização esucateamento da indústria brasileira. Isso realmente vemo correndo?

Julio Sergio Gomes de Almeida - Infelizmentesim.Es-ta discussão envolve várias dimensões. Em primeiro lugar,é preciso deixar claro que o Brasil sempre vai ter sua indús-tria, por mais que se importe, já que é um país continental.Um exemplo é o setor automotivo, que vende em torno de 3milhões de unidades. Não dá para importar tudo. Temostambém de alimentar a população, o que envolve a trans-formação de alimentos. Por mais que a gente perca a indús-tria de vestuário, e estamos perdendo muito, sempre tere-mos empresas neste setor, já que o mercado é muito pulve-rizado. Então, não precisamos temer perder toda a nossa in-dústria, mas a perda tem sido grande, sobretudo nosúltimos três anos. Desde a crise de 2008, o nosso mercadointerno consumidor, baseado no índice de varejo do IBGE,cresceu pouco mais de 35%. A nossa indústria poderia tersuprido parte desse crescimento, mas a produção indus-trial neste mesmo período não aumentou mais do que 12%.Isso significa dizer que a nossa indústria não foi capaz de

Desde a crise de2008, o mercado

interno consumidorno Brasil, baseadono índice de varejodo IBGE, cresceu

pouco mais de 35%.Já a produçãoindustrial neste

mesmo período nãoaumentou mais do

que 12%.

Zé Carlos Barretta/Hype Bobby Yip/Reuters

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acompanhar o aumento do mercado. Para mim, isso é um sinalde desindustrialização. É quando se tem um potencial de cres-cimento do mercado interno, mas a indústria não é capaz deacompanhar, a ponto de gerar essa distorção que estamos vendo– o mercado cresceu 35% e a indústria apenas 12%.

Quais setores estão sendo mais prejudicados hoje? Há setores queestão em boa situação?

Entre os mais prejudicados temos o setor químico, que vemsofrendo uma desindustrialização forte; na área de defensivosagrícolas e adubos, a queda é muito forte; a indústria de plás-tico está sendo muito prejudicada, assim como a de papel. Naárea de bens de capital, a nossa indústria de máquinas está per-dendo muito e perdendo duplamente, no produto final, a má-quina pronta, e perdendo densidade, ou seja, está se transfor-mando em uma montadora. Na indústria de bens de consumo,a indústria automobilística perdeu muito, mas o governo ele-vou o IPI para importados, o que deve melhorar a situação; osetor de vestuário vem sofrendo muito, assim como a de cal-çados; a de brinquedos já vinha sofrendo há muito tempo. Te-mos outras áreas que sofrem, mas possuem uma relativa capa-cidade para se manterem, como as siderúrgicas, de cimento eoutras. Dentre as que não estão sofrendo, que são em númerobem menor, estão a de alimentos – pois há toda uma populaçãopara se alimentar e a logística para se importar é complexa –, afarmacêutica, cosméticos e aeronaves.

Essa desindustrialização vem ocorrendo somente no Brasil outambém em outros países?

Vem ocorrendo em outros países sim, mas no caso do Brasilo efeito é mais perverso. Em um país com renda per capita de 40mil, 50 mil dólares, como no caso do Japão, que está sofrendouma forte desindustrialização, ou dos Estados Unidos, que jásofreram, a dor de perder sua indústria é a de perder aquilo queo fez grande, mas a população não sofre tanto, pois o país jáatingiu um grau de desenvolvimento grande. Eu diria que ofenômeno é grave de acordo com o momento em que o país seencontra. O Brasil tem uma renda per capita de 13 mil dólares.Para começar a pensar em ser um país desenvolvido é precisoter uma renda per capita superior a 25 mil dólares. Temos aindaque dobrar a nossa renda e a indústria tem papel fundamentalpara dar este impulso. Nós não temos ainda uma economia tãomadura a ponto de dispensar um setor, que pode compor comoutros, um contexto de levar o País ao progresso.

Diante deste quadro, o que está faltando para o Brasil? Seria umapolítica industrial?

Acho que o Brasil ficou muito tempo sem uma política indus-trial. Mas o que acontece para termos um mercado em crescimen-to e uma indústria patinando? Não acho que o problema seja tan-to a indústria, mas o País. Se olharmos por vários critérios, tudoindica de que está muito caro produzir no Brasil. Isso vale para aagricultura, para o setor de serviços e também para a indústria.Acontece que, neste caso, a indústria tem uma especificidade,que o setor de serviços e o comércio não têm, e a agricultura temum pouco: todo aumento de custo sistêmico, que aparece paratodos, poderia ser contestado por um produto importado, mas

não é o caso de serviços ecomércio – eventualmen-te, o cliente pode comprarpela internet no exterior,mas não é uma coisa corri-queira; alguns serviços épossível importar, comocall center, software, diag-nóstico médico, ensino adistância, etc, mas o grossosão serviços locais. A agri-cultura poderia ser contes-tada por produtos impor-tados, mas ela é muito for-te, os outros países é quedevem se preocupar e nãoa gente, pois temos bonspreços internacionais. Masa indústria não. Ou seja, aagricultura tem como lidarcom esse aumento de cus-tos e os setores de serviçose comércio não são contes-tados. Esse aumento decustos tira a competitivi-dade da indústria. Por issoque eu digo que o proble-ma não é a indústria, mas oPaís. Temos que discutir oscustos e como podemosproduzir neste País.

O Brasil tem uma políticai n d u s t ri a l ?

O que é política indus-trial? É olhar o setor e suasnecessidades. Nós temosuma política e acho queestamos fazendo uma boapolítica industrial, o quefalta é olharmos os problemas do País como um todo e nos dar-mos conta de que o Brasil precisa mudar. Do contrário, conti-nuaremos a perder competitividade.

Se temos uma política industrial, o governo e o setor sabem comoestaremos daqui a dez anos, por exemplo?

Eu gostaria que a nossa política fosse mais definidora, maisclara do que queremos para o futuro. É como termos "avenidas",como ocorre na China – eles têm uma política industrial muitomais clara. Mas isso exige uma articulação que o governo nãotem; exigiria algum tipo de recurso, pelo menos durante algumtempo, que eventualmente o governo não dispõe; mas o que euacho que falta, sobretudo na nossa indústria, e aí sim o governopoderia ter feito muito mais, é uma política para aumentar a pro-dutividade da indústria e dos setores que se relacionam com ela,principalmente o de serviços. Acho que a principal falha da nos-sa política industrial está na produtividade.

O queacontece paratermos ummercado emcrescimento euma indústriapatinando?Não acho que oproblema sejatanto a indústria,mas o País. Seolharmos porvários critérios,tudo indica deque está muitocaro produzirno Brasil.

Julio Sergio Gomesde Almeida, diretor

executivo do IEDI

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de produtividade nós não temos. O Japãotem no caso da indústria e o alemão a segueà risca. O Brasil ainda não se deu conta deque, para competir com os chineses, nestanova fase da economia mundial pós-crisede 2008, é preciso aumentar a produtivida-de. Quando falo Brasil, não é apenas o go-verno, mas a sociedade, os políticos, a elite,os formadores de opinião, que ainda nãoperceberam que precisamos ser um país demaior produtividade. Esse alto custo e bai-xa produtividade em comparação a pa-drões internacionais vão nos cobrar um pre-ço. Em primeiro lugar, é uma indústria queperde potencialidade. Temos visto a indús-tria do vestuário perder competitividade,assim como a de bens de capital, a de eletrô-nicos ser dizimada, a de plástico está per-dendo muita competitividade, a de papelestá sofrendo uma forte contração, a indús-tria de calçados está sofrendo muito. Outrodia, um jornalista me perguntou como erapossível exportarmos couro e não sermoscompetitivos em sapatos? Na primeiratransformação é que vêm os custos, comoencargos trabalhistas, custos tributários, ocâmbio, o custo do capital para quem nãotem acesso ao BNDES, entre outros. Isso sig-nifica que estamos perdendo gradativa-mente competitividade em setores queachávamos que, por termos a matéria pri-ma, tínhamos o produto acabado competi-tivo. Nós produzimos o produto petroquí-mico que produz o plástico, o couro que fazo sapato, a celulose de onde vem o papel. Oproblema está na transformação, onde ocusto é alto, dizimando a competitividade.

O empresário brasileiro, principalmente ospequenos e médios, sabem gerir os seus

custos de forma a serem mais competitivos?Quando a coisa é tão grave quanto é hoje, com o mercado cres-

cendo tanto e o setor tão pouco, a causa é um conjunto de fatores.A gestão é um fator, mas há outros. Nós temos de ter uma preo-cupação maior em reduzir custos e aumentar a produtividade.Mas têm custos que os empresários não comandam, como oacesso ao capital para quem não tem acesso ao BNDES, a cargatributária elevada, os custos trabalhistas, os custos de logística,de energia elétrica, etc. Parece que eu estou chorando, mas cadaum desses custos que eu falei está entre os mais altos do mundo.Se o Brasil quer ser um país desenvolvido, ele não pode se dar aoluxo de ter o custo mais alto do mundo. Isso afeta todos os se-tores, mas a indústria sofre a concorrência do importado.

Mesmo com tantos entraves que o senhor elencou, desde os altoscustos até a falta de mão de obra qualificada, ainda assim o senhorafirma que o Brasil tem uma política industrial?

Como se melhora essa produtividade?Eu falei produtividade como uma palavra síntese, que envol-

ve várias coisas, por exemplo, melhorar o maquinário. O nossoparque industrial não é ruim, mas pode ser melhorado. Não pro-duzimos mais carroças, me referindo àquela frase do ex-presi-dente Collor, mas podemos melhorar. Caberia então fazer umapolítica de produtividade neste ponto. Em relação à mão de obraqualificada, e precisamos muito disso, passa por educação, trei-namento, por informação dos empresários, incentivo ao empre-endedorismo, incentivo à pequena e média empresa. O aumentode produtividade também envolve os fornecedores que vendempara a indústria, pela eficiência no sistema de transporte, forne-cimento da energia elétrica, de serviços, nos quais o Brasil estámuito atrasado – em serviços, o aumento da produtividade pas-sa por gestão, maquinário, mas sobretudo pela educação. Ino-vação também é um tema importante – a nossa indústria precisainovar mais, assim como as empresas de serviços. Essa avenida

Newton Santos/Hype

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Sim, o Brasil tem uma política industrial. Isso tudo que eu co-mentei, a política industrial não pode cuidar. A política indus-trial abrange políticas ligadas especificamente ao setor. Onde euacho que tem uma lacuna é na questão da produtividade e nocusto industrial, que podem melhorar, não que estejamos tãoruins, mas pode melhorar. A nossa política industrial peca pornão incentivar a questão de redução de custos e melhoria da pro-dutividade. O maior problema está fora do chão de fábrica, forada porteira da fazenda, fora da loja do comércio, mas que afetatodo mundo, que é o custo de se produzir no Brasil. Se o País querser desenvolvido, ele precisa repensar isso, pois do jeito que estáfica muito difícil. A falta de competitividade já está afetando se-tores industriais tão inquestionáveis como o de celulose – temgente que está preferindo produzir celulose em outros países.Neste caso, vários fatores se misturam, há problemas de inova-ção, de custos, de produtividade, mas também há um problemado País, que enveredou por um caminho que amontoou diversosfatores de custos, somados a um câmbio desfavorável.

O senhor comentou que a desindustrialização já ocorreu nos EUA evem ocorrendo no Japão. Trata-se de um processo inevitável?

O Japão tem poucos recursos naturais e agrícolas. Ele fez oseu processo de desenvolvimento baseado na indústria, e ago-ra está se desindustrializando. Digamos que nos EUA e no Ja-pão, a indústria já cumpriu o seu papel. No Brasil, esse fenô-meno é muito precoce. A desindustrialização é um processodoloroso, os americanos continuam reclamando, ainda maiscom essa crise – uma parte dos problemas dos americanos foiessa excessiva ida para fora de suas empresas. Mas isso faz par-te do processo quando o país alcança determinado patamar.Não é esse o caso do Brasil.

A entrada de produtos chineses vem acelerandoesse processo no Brasil?

A China faz parte de um novo ciclo de desenvolvimento in-dustrial no mundo, como foi a Inglaterra na Revolução Indus-trial, Estados Unidos, Alemanha, Japão. Esse processo, até osanos 80, teve a participação de vários países industrializados,mas nenhum deles muito forte – a Coreia era uma potência mé-dia –, houve um declínio dos EUA e a emergência nos últimos25 anos da China. Esse foi o circuito dos grandes blocos de in-dustrialização, claro que há outros países no meio. O fenôme-no China é um novo ciclo industrial, mas diferente, pois é umpaís muito particular. Ela junta o que há de mais impulsiona-dor no capitalismo com uma grande capacidade de monitorare balizar, por meios não mercado, o seu desenvolvimento eco-nômico. A China tem coisas que nem os EUA tiveram, comopor exemplo uma escala de produção monstruosa e um câm-bio manipulado. Ela junta fatores da sua essência – é um paísgigantesco, com uma população muito grande – , com práticasde não mercado. Há outras questões menos éticas, que são prá-ticas desleais de mercado na área de comércio internacional.

Como competir com um país com uma mão de obra quase escrava eque manipula o seu câmbio?

Não se consegue. Além da mão de obra quase escrava, a Chi-na agrega fatores de competitividade. Já não é mais verdade

que a China é somente um país de mão de obra barata. Entre ospaíses que mais investem em pesquisa e desenvolvimento, emprimeiro aparece os EUA e em segundo está a China, já não émais o Japão. A China já é uma potência industrial fora do cir-cuito onde a mão de obra barata é o definidor de competitivi-dade. Ela já está agregando competitividade pela tecnologia. OBrasil não pode querer competir com o avanço em P&D da Chi-na, mas temos que nos proteger um pouco do câmbio chinês,que é totalmente manipulado. Já as práticas desleais de comér-cio, isso deve ser coibido de fato. O que são essas práticas des-leais? Por exemplo, temos um acordo com os países do Mer-cosul, cujos bens podem entrar no Brasil sem pagar impostos.Em alguns casos ocorre uma triangulação, em que o produto,não apenas chinês, mas também de outros países, entra primei-ro em um dos países do Mercosul e depois vem para o Brasilsem pagar imposto. Isso é uma prática desleal de comércio.

Como é possível combater o câmbio manipulado da China?Este é um ponto extremamente delicado e difícil de mensurar.

O nosso valor do dólar em relação ao real há pouco tempo estavachegando na faixa de R$ 1,60. Neste valor, não tem produtivi-dade que dê jeito, não tem redução de custos que consiga supor-tar um real tão valorizado. Agora, o câmbio chegou a R$ 1,85.Para alguns setores melhorou e não piorou significativamente ocusto de trazer produtos de fora. Na questão do câmbio, preci-samos ter o bom senso para não deixarmos o produto importadotão barato e não encarecer os nossos produtos lá fora. Da mesmaforma, também não devemos deixar o câmbio chegar a R$ 3, porexemplo. A China adota uma política para manter a sua moedasubvalorizada. Acho que o Brasil não deve adotar isso, mas tam-bém não deve deixar o real supervalorizado.

O Brasil adota a política do câmbio flutuante, que variade acordo com a entrada ou saída de dólares. O País deveriamudar essa política?

Não, mas o governo precisa ser rígido em determinadasquestões. Por exemplo: a cotação do dólar chegou a R$ 1,85,mas já está a R$ 1,75, pela onda de receios por conta da criseeuropeia. Acho que o governo deve acender uma luz amarela enão permitir mais valorização do real. Se começar a chegar aR$ 1,60, a nossa competitividade começa a ficar difícil.

O governo tem instrumentos para fazer esse controle do câmbio?O governo tem instrumentos, não é verdade que não te-

nha. Ele não tem um instrumento infalível para fixar umcâmbio, mas quando está valorizando demais, ele tem comointervir. Tem a compra de dólar no mercado à vista, e ele temfeito isso, e tem também como afetar os mercados futuros. Afixação da taxa de câmbio é um tema complexo, pois depen-de de entrada e saída de recursos, mas também depende deavaliações sobre o futuro. O governo tem que intervir nessaentrada e saída de recursos – se está entrando muito, colocaum IOF – e também tem como intervir nos mercados futurosdo dólar. O Brasil não tem de ser radical no câmbio, como aChina é. O Brasil já fez isso e não cabe fazer agora.

Dentro desse contexto, como está sendo o governo Dilma Rousseff ?

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Acho que a presidente Dilma tem maisessa visão de que o Brasil precisa melhorara sua gestão, seus custos, a sua produtivi-dade, a forma de gerir a coisa pública. Nãoé uma crítica aos governos anteriores, poisestas são características dela. Acho queagora a gente pode caminhar para umaeconomia em que as variáveis de custos,produtividade, eficiência na infraestrutu-ra, tributação, no custo de capital sejammelhor tratados, abordados nas políticaspúblicas, do que foram até agora. Essa é aminha expectativa. Mas se não fizer isso,vamos ter uma indústria relativamenteboa, mas com baixa produtividade. Tendoo fenômeno China, este problema aumentade dimensão. Para combater esse proble-ma, temos que ter compensações, não dei-xar o câmbio valorizar demais, impedir aconcorrência desleal. O que eu quero dizeré que há questões que a indústria tem queresolver ela mesma e outras depende de políticas públicas.

A China é nosso maior parceiro comercial e de certa forma ficamosreféns dela. Se dificultarmos a entrada de seus produtos aqui, elapode dificultar a entrada de nossos produtos lá.

A área comercial é assim, todo mundo é refém de alguém.Somos um grande fornecedor da China, então, de certa forma,ela também é refém do Brasil. Somos reféns dos alemães, poiscompramos bens de capital deles, ou dos softwares dos ame-ricanos. Isso é um jogo e é preciso saber coordenar. Eu acho queo Brasil não deveria ter reconhecido a China como economia demercado, porque ela não é. Se ela quer ser, tem certas coisas queela deve respeitar.

Em uma palestra na Associação Comercial de São Paulo, oex-ministro Delfim Netto comentou sobre um estudo comalgumas empresas multinacionais com fábricas aqui e na China.Eles viram que a produtividade no chão de fábrica é a mesma,quando não é melhor aqui.

Eu também acho que no chão de fábrica, ou da porteira paradentro, no caso da agricultura, nós não fazemos feio. É quandosai o produto da fábrica ou da fazenda que começamos a per-der em termos de custo. No caso da agricultura, que tem bonspreços internacionais, esse aumento de custos atrapalha, maspode ser compensada. No caso da indústria, não. Então, é umproblema do custo Brasil – eu não gosto muito da expressão,pois parece aquela choradeira. Mas também acho que, com aChina, estamos perdendo produtividade, pois ela está agre-gando cada vez mais tecnologia. Precisamos nos preocupar emmelhorar também dentro da fábrica, melhorando a produtivi-dade e os nossos custos.

A agricultura sempre caminhou com referências muito concretasde tecnologia e conhecimento, primeiramente com o IAC e depoiscom a Embrapa. No setor petroquímico, pessoas como o ex-senador Alberto Pasqualini, pensaram o desenvolvimento do

setor. Parece que na indústria de bens de consumo não ocorreuisso, o senhor concorda?

Perfeitamente. Aqui precisamos pensar a seguinte coisa: o nos-so sistema industrial está sofrendo. Tudo o que se individualizarestá correto, mas não dá a dimensão do sistema. O nosso sistemaindustrial está em xeque, não conseguimos responder ao dina-mismo do mercado. Essa sua colocação é uma função da políticaindustrial. Nós ficamos muito tempo sem ter uma política indus-trial. Precisamos ter políticas para desenvolver os setores que te-mos mais potenciais. Acho muito bom termos uma Petrobras,com gente lá pensando nas cadeias de produção, para fornecerpara a indústria de petróleo e gás – e tomara que eles tenham afelicidade de acertar e desenvolver a nossa indústria e equipa-mentos e serviços associados à economia do petróleo. Acho que éisso justamente o que falta no Brasil: gente do Estado que, junta-mente com a iniciativa privada, com as associações empresariais,pensem o desenvolvimento do setor. Mas a coordenação deve serdo Estado. Para mim, política industrial é, sobretudo, olhar parafora para ver o que está acontecendo, olhar para dentro para saberdas potencialidades e tentar juntar uma coisa com outra, hora fo-mentando o empresariado nacional com iniciativas em alguns se-tores promissores, hora trazendo de fora as empresas que já acu-mularam capacitações para produzir aqui dentro aquilo que agente ainda não produz, mas que pode ser um vetor do futuro. Anossa indústria automobilística nasceu assim: atraímos para cáempresas de fora e construímos uma cadeia de fornecedores deautopeças. Por outro lado, deixamos muitas oportunidades pas-sarem, como na eletrônica, em tecnologia da informação, farma-cêutica – a Coreia desenvolveu uma indústria naval ao mesmotempo em que nós dizimamos a nossa aqui. Tem coisas que pas-saram e agora não adianta chorar, mas ainda temos como pegarcarona em algumas áreas. Na farmacêutica, tenho ouvido decla-rações de que temos muito potencial. Política industrial para mimé pensar essas potencialidades e articular os instrumentos para oseu desenvolvimento, tipos de incentivos, o potencial do merca-do, financiamentos, etc., para transformar isso em realidade.

Petar Kujundzic/Reuters

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Percorre o Brasil todo um anseio de reerguimentomoral. Se, às vezes, esse poderoso sentimentoprovém de uma semente demagógica, a verdade éque há outros pontos de partida e outras origens, cuja

realidade e solidez ninguém pode negar. Generaliza-se portodas as camadas da população brasileira a convicção de quebasta de abusos e que chegou o momento de corrigir osdefeitos e fraquezas do regime, restabelecendo entre nós aausteridade e a honestidade nos negócios públicos. A hora éde definições. Não é possível declinar da responsabilidadede assumir uma posição clara a esse respeito. Tambémnenhum homem, qualquer que seja a sua situação social eatividade econômica, por mais conceituado que se julgue,está em condições de isentar-se de uma sincera prestação decontas às autoridades e ao público.

É exato que nessa corrente benéfica que visa umaregeneração político-administrativa se encontramaproveitadores. Fato inevitável que, entretanto, não teráforça suficiente para desvirtuar os objetivos da grandemaioria. No ponto em que chegou a desordem moral doBrasil, a separação do joio do trigo não pode, como naparábola do Salvador, realizar-se desde já. Devemos esperarmais um pouco, pacientemente, até que a erva daninha sedenuncie e facilite, pela evidência da diversidade de essênciae de finalidade, uma separação inequívoca e justa.

A reação do povo diante dos escândalos oficialmenteapurados e relatados é uma esperança que vem tranquilizaraqueles que de há muito vinham advertindo a nação,preocupados com o rumo que tomavam seus negócios, cadavez mais orientados pelo interesse particular dos agentesgovernamentais e cada vez mais indiferentes ao verdadeirointeresse público. A ausência de espírito público naquelesque aceitavam encargos oficiais, seja em mandatos políticos,seja em funções burocráticas, estava se tornandoimpressionante. As poucas e honrosíssimas exceçõesisolavam-se impotentes diante do realismo brutal do avança.

O povo brasileiro, em sua tradicional benevolência,alimentada por infantil boa fé, custou muito para realizar aexploração de que era vítima. A razão principal dessademora se encontra no fato muito comum, que entre nós serepetiu, de encontrarem-se entre os que mais gritam ser

Texto publicado noDigesto Econômico nº 108 -

novembro de 1953

sobrevivência

Instinto de

Aldo M. Azevedo

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amigos do povo, seu defensor e advogado, exatamente osmais audaciosos exploradores. Também sob esse aspectofuncional, a conjuntura política a que chegamos serviu delição, e de dolorosa lição, abrindo os olhos crédulos dosbrasileiros para a malícia da situação.

Devemos aceitar e estimular essa extraordinária reaçãopopular como a vitalização do instinto de sobrevivência danação brasileira. O Brasil ainda possui energiassuficientes para reagir e enveredar pelo caminho dahonestidade político-administrativa, escoimando dasposições de relevo, eletivas ou de nomeação, oselementos moralmente incapazes. O processo seletivoe separador é lento, mas não devemos desanimar poresse motivo. A vida de uma nação como o Brasil seconta por séculos e não por anos ou lustros. Poucoimporta que levemos cinco ou dez anos dedepuração, contanto que não interrompamos acura. O processo infeccioso levou anos paradominar o nosso organismo e tornar-se odeprimente espetáculo, com as supuraçõesrepugnantes que estamos sofrendo.

As acusações, porém, são fáceis. Hánumerosos "atravessadores" que desejamaproveitar a confusão para expandir ódiosrecalcados e sentimentos pessoais deantipatia, às vezes em função de competiçõese rivalidades que não interessam ao povo,testemunha insuspeita dos acontecimentos.Por conseguinte, é indispensável que opovo seja bem informado pelas rigorosasapurações, ouvidos os acusadores eacusados, cumprindo seguir o aforismojurídico de que o ônus da prova cabe aoacusador. Como é sabido, é muito difícil auma pessoa provar que "não é elefante..."

O Brasil está presentementetransformado em um vasto tribunal.Todos os brasileiros com senso deresponsabilidade devem ficarpreparados para prestar o seudepoimento, não só comotestemunhas, mas eventualmente,como acusados. Ninguém é bastante importanteou conceituado para julgar-se dispensado desse dever.Ninguém é bastante humilde ou desconhecido para não serouvido, quando tiver o que declarar.

Queira Deus que essa onda milagrosamente nascida docaos moral em que nos encontrávamos possa purificar-se e,no devido tempo, extirpar do organismo brasileiro asimpurezas que o atormentam, contaminando gerações sobregerações, em terrível tara hereditária. Essa onda popular é osinal de que a hora é chegada. Que ninguém fique indiferenteou ausente a ela, a não ser que seja usufrutuário da sordidezque vamos eliminar. Mas, mesmo para esses, oarrependimento é possível e a penitência os absolverá.

Essa hora é decisiva e marcará a sobrevivência danacionalidade brasileira.

Reprodução

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Esse artigo foi elaborado com informações disponíveis até odia 9 de dezembro de 2011. A autora agradece os comentários daequipe do Grupo de Economia da Fundap, bem como a leituraatenta e sugestões de Daniela Magalhães Prates e Maria LuizaLevi, responsabilizando-se pelos erros e omissões remanescentes.

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Maria CristinaPenido de FreitasDoutora em Economia,

consultora do Grupode Economia / Fundap

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Introdução

E ste artigo tem como objetivo traçar um panorama dagrave crise econômica e financeira em curso na áreado euro, cujos determinantes podem ser encontra-dos no arranjo institucional da União Monetária Eu-

ropeia (UME). Como ponto de partida apresenta-se um bre-ve retrospecto da criação da moeda única e suas implicaçõespara os países-membros da união monetária. A seguir, exa-mina-se a evolução da crise mais recente e seus desdobra-mentos. Na sequência, discutem-se os prováveis impactos eas perspectivas futuras.

Do Tratado de Maastricht à crise financeira

Nos últimos meses, o mundo acompanha, com um misto deperplexidade e temor, o aprofundamento da crise na área do euro,que ameaça a própria sobrevivência da União Monetária Euro-peia (UME). Esta crise, a mais grave enfrentada pela Europa des-de o final da Segunda Guerra Mundial, teve início em meados demaio de 2010, a partir das crescentes dificuldadesde financiamento de um dos países economica-mente mais fracos da zona do euro, a Grécia, quese encontrava fortemente endividada junto abancos e investidores estrangeiros. Naquela oca-sião, o aumento da desconfiança quanto à capa-cidade do governo grego em honrar seus com-promissos financeiros reavivou as dúvidas sobrea qualidade dos balanços dos bancos. Em conse-quência, inúmeros bancos, sobretudo na Europa,enfrentaram sérios problemas na obtenção defunding nos mercados interbancários (1).

Desencadeada no momento em que as princi-pais economias avançadas se recuperavam dasevera recessão associada à crise sistêmica de2008/09, a crise transbordou no segundo semes-tre de 2010 para os demais países da periferia daárea do euro, como Irlanda e Portugal (2). Não obstante as situa-ções econômicas nacionais diversas, todos esses países se defron-taram com elevação dos custos, tanto de financiamento da dívidasoberana, como de captação dos seus bancos. Como Grécia e Ir-landa, Portugal também precisou de ajuda financeira da Comu-nidade Europeia e do Fundo Monetário Internacional, a qual foisolicitada em abril de 2011.

Como um efeito dominó, a crise de confiança se espalhou eas turbulências atingiram, ainda no final de 2010, a Espanha etambém, a partir de meados de 2011, países centrais do bloco,como Itália e França, esta última em menor medida. Nem mes-mo a maior e mais forte economia do bloco escapou da descon-fiança crescente dos investidores. Além de enfrentar dificulda-des na venda dos bônus de 10 anos leiloados no dia 23 de no-vembro, a Alemanha está atualmente sob ameaça de perder orating triplo A, concedido pela agência de classificação de riscoStandard & Poor's (3).

Inéditos, esses acontecimentos são reveladores da dimen-são que a crise pode alcançar em curto espaço de tempo se nadafor feito para alterar e aperfeiçoar a complexa arquitetura ins-

titucional da UME, definida pelo Tratado da União Europeia,também conhecido como Tratado de Maastricht, aprovado emfevereiro de 1992 pelos 12 membros da Comunidade Euro-peia(4) (EU, 1992). Essa arquitetura apresenta falhas que estãona origem dos problemas enfrentados atualmente pelos paísesda área do euro, dos quais a crise soberana grega foi somente aprimeira manifestação mais séria.

Um dos pilares institucionais fundamentais da UME é o Sis-tema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) e o Banco CentralEuropeu (BCE), cujo Conselho é responsável pela emissão doeuro e pela formulação e execução da política monetária co-mum dos países-membros do euro. O SEBC é formado peloBCE e pelos bancos centrais nacionais dos estados-membrosque aderiram à moeda única. Com a união monetária, essesbancos centrais perderam a atribuição de formular e executar apolítica monetária, função exclusiva do Conselho do BCE, quedefine a taxa básica de juros comum a todos os países da área doeuro. Igualmente, com a entrada em vigor do euro, esses ban-cos centrais deixaram de executar a política cambial. Por exi-gência da Alemanha, o Tratado de Maastricht instituiu a esta-

bilidade dos preços como objetivo primordialdo BCE e do SEBC, subordinando todas as suasdemais atribuições a esse objetivo. Estabeleceuigualmente a total e completa independênciado BCE e dos bancos centrais nacionais em re-lação a qualquer órgão ou entidade da Comu-nidade Europeia e dos governos nacionais (5).

O BCE e o SEBC respondem também pela es-tabilidade financeira da área do euro. Contudo,existe uma contradição entre a função de garan-tir a estabilidade dos preços e a função de garan-tir a estabilidade financeira. Ao atuar comoprestamista em última instância para evitaruma crise sistêmica, cumprindo o seu papel es-sencial de fornecer aos bancos toda a liquidez deque necessitam em momentos de graves dificul-dades, o banco central é obrigado a deixar de la-

do suas preocupações com a estabilidade dos preços. Como aestabilidade dos preços é o seu objetivo primordial, o BCE temevitado adotar medidas mais efetivas para a resolução da crisena área do euro, a qual exige sua atuação como prestamista emúltima instância do sistema bancário e, indiretamente, dos go-vernos, garantindo ampla monetização das dívidas soberanas,à semelhança do que fez o Federal Reserve na crise de 2008/9 nocaso das dívidas bancárias privadas (6).

Pela mesma razão, o BCE demorou bem mais do que seus con-gêneres americano, japonês e inglês para cortar a taxa básica dejuros quando a crise financeira se revelou sistêmica (ver Gráfico 1Ano Apêndice). Ademais, no primeiro semestre de 2011, em meio aoaprofundamento da crise na área do euro, o BCE subiu por duasvezes, em abril e em julho, a meta da taxa oficial de juros para con-ter as pressões inflacionárias que levaram a inflação a superar azona considerada de conforto (abaixo de 2% ao ano).

O Tratado também estabeleceu critérios de convergênciamacroeconômica para a adesão à moeda única – estabilidadede preços (7), estabilidade das taxas nominais de câmbio dasmoedas nacionais (8), estabilidade de juros (9) e viabilidade das

Como um efeitodominó, a crise deconfiança se espalhou eas turbulênciasatingiram, ainda no finalde 2010, a Espanha etambém, a partir demeados de 2011, paísescentrais do bloco, comoItália e França.

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contas públicas (definindo teto de 3% do PIB para o déficit fiscale de 60% do PIB para a dívida pública). Entre 1º de janeiro de1994 e 31 de dezembro de 1998, os países-membros deveriamcoordenar as suas políticas econômicas e monetárias para al-cançar esses objetivos fixados quantitativamente para a redu-ção da inflação, dos juros e das flutuações do câmbio entre asmoedas nacionais europeias e para o controle do déficit e da dí-vida pública. Esses critérios quantitativos foram tornados per-manentes e complementados por regras de ajuste fiscal defini-das no âmbito do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Apro-vado em 1997, esse Pacto foi firmado com o propósito de coibirpolíticas fiscais irresponsáveis dos países-membros da UniãoEuropeia, que em caso de desrespeito às regras sofreriam san-ções financeiras. Todavia, não houve observância estrita doscritérios de convergência quando o processo de constituição daUnião Monetária e Econômica entrou em sua terceira e últimafase. Iniciada em janeiro de 1999, essa última fase teve comomarco a entrada em funcionamento do BCE e do SEBC e a in-trodução do euro como unidade de conta de todos os ativos fi-nanceiros em 11 dos 15 países-membros da Comunidade Eu-ropeia. Além da Grécia, cuja adesão ao euro só foi aprovada emjunho de 2000 (10), a Bélgica e a Itália, com dívida pública supe-rior a 110% do PIB em 1999, estavam em flagrante desacordocom as regras de Maastricht (ver Tabela 1A no Apêndice).

Terceira maior economia do bloco e membro de primeira ho-ra da Comunidade Econômica Europeia, seria, obviamente,

insustentável excluir a Itália da União Monetária. Porém, ne-nhuma sanção foi imposta à Itália por não proceder aos ajustesprevistos no Pacto de Estabilidade e Crescimento. De igualmodo, não foram aplicadas sanções a Alemanha, França, Por-tugal e outros que, nos anos seguintes à introdução do euro,também descumpriram as regras de Maastricht relativas aodesequilíbrio das contas públicas.

Ao invés de a União Monetária ser complementada pelaunião fiscal e a formulação de uma política econômica co-ordenada e comum, com transferências fiscais entre os paí-ses-membros em caso de necessidade, ocorreu afrouxamen-to das regras do Tratado. O poder executivo da ComissãoEuropeia foi sendo paulatinamente esvaziado, com transfe-rência de algumas de suas atribuições para o Conselho Eu-ropeu, o qual é formado pelos chefes de estado e de governodos países-membros.

Além disso, não foi estabelecido, seja no Tratado, seja no Pac-to de Estabilidade, qualquer limite ou recomendação para acomposição da dívida do setor público ( 11 ) . Com a introdução damoeda única, e consequente eliminação do risco cambial, os go-vernos de vários países-membros passaram a se endividar, emeuros, no mercado internacional, o que resultou na ampliaçãodo endividamento junto a investidores não residentes, deixan-do os países potencialmente expostos aos humores voláteis dosmercados financeiros. Não foi previsto no Tratado, contudo, ne-nhum limite para o endividamento externo como proporção da

Kai Pfaffenbach/Reuters

Como a estabilidade dos preços é o seu objetivo primordial, o BCE tem evitado adotar medidas mais efetivas contra a crise.

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dívida nacional total. Com a crise sistêmica de2008/9, essa questão viria a se mostrar umenorme problema.

Para os grandes bancos americanos, inglesese europeus, bem como para os grandes fundosde pensão americanos e japoneses, a constitui-ção da área do euro representou imensas opor-tunidades de negócios, lucrativos e de baixorisco. Bancos americanos e ingleses propu-nham ativamente seus serviços de conversãode dívida em títulos negociáveis, tanto parabancos provinciais europeus como para em-presas públicas e governos de municipalidadesem distintos países da zona do euro, ao mesmotempo em que concediam empréstimos ou or-ganizavam emissões de títulos de dívida públi-ca e privada nos mercados internacionais.

Até a quebra do banco de investimentoamericano Lehman Brothers, não havia gran-de diferença entre os rendimentos pagos pe-los bônus alemães e os rendimentos pagospor bônus de Portugal, Irlanda ou mesmoGrécia. Isto porque as emissões soberanasdos países-membros da área do euro eramconsideradas de baixo risco e, portanto, pos-suíam grau de investimento. O grau de inves-timento dos bônus soberanos europeus eli-minava, no caso dos bancos, a exigência decapital adicional determinada pelo Acordode Basileia (capital mínimo equivalente a 8%dos ativos ponderados pelos riscos) e atendiaa exigência de prudência no caso dos grandesfundos de pensão americanos.

De acordo com a revista alemã Der Spiegel, em 2003 os bônusgregos pagavam apenas 0,09 p.p. acima dos títulos alemães dematuridade comparável (THE TICK…, 2011). Isto porque preva-lecia a crença entre os bancos e os investidores de que, não obs-tante a cláusula de não resgate dos países membros (12)prevista noTratado de Maastricht, os países economicamente mais fortes so-correriam os mais fracos em caso de surgimento de dificuldades.Esse típico comportamento míope do sistema bancário e dos in-vestidores, já sublinhado por Keynes na década de 1930, está naorigem da crise da área do euro, tal como nas demais crises finan-ceiras que eclodiram nas últimas duas décadas.

Tampouco se definiu qualquer mecanismo de correção parapotenciais desequilíbrios em transações correntes, que certa-mente surgiriam em razão dos diferenciais de inflação e decompetitividade dos países-membros (ARESTIS e SAWYER,2011). Como principal economia exportadora do bloco, a Ale-manha se beneficiou particularmente dessa lacuna no Tratado(PRIEWE, 2011) (13). Nos anos que se seguiram à introdução doeuro, a Alemanha ampliou de forma considerável seus saldos,tanto comercial como em transações correntes, vis-à-vis os de-mais países da área do euro (Gráfico 1). Após um déficit daordem de 1,2 bilhão de euros em 1999, a Alemanha registrou,desde então, saldos positivos em transações correntes, os quaiscresceram em média 29,8% ao ano em termos nominais ao lon-

go do período 2000-2008, beneficiando-se da introdução damoeda comum, mais desvalorizada do que o marco alemão.

Parte do sucesso da máquina exportadora alemã pode seratribuído à política governamental de reforma do mercado detrabalho e do welfare state, implementada pelo governo de coa-lizão dos sociais-democratas e dos verdes entre 2003 e 2005,com o intuito de estimular a economia e reduzir o déficit fiscal.Sob a liderança do primeiro-ministro Gerhard Schroder, o go-verno alemão flexibilizou a legislação trabalhista e promoveua redução da proteção social concedida aos desempregados esuas famílias. Ao permitir a contratação a tempo parcial e aoreduzir o auxílio-desemprego de longa duração e alocações fa-miliares, as reformas propostas por Schroder asseguraram aevolução dos salários abaixo da produtividade e a redução docusto unitário do trabalho na Alemanha (Gráfico 2). Comonos demais países da área do euro, os salários nominais subi-ram (Gráfico 3, as vantagens competitivas da Alemanha au-mentaram ainda mais (UNCTAD, 2010).

Na ausência de um mecanismo de ajuste dos desequilíbriosem transações correntes, países como Alemanha, mas tambémHolanda, Finlândia e Bélgica, lograram ampliar seus superá-vits, enquanto os demais parceiros do bloco tornaram-se cadavez mais deficitários. Com livre movimentação de capitais ins-tituída pelo Tratado (14), esses déficits, por sua vez, eram finan-

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ciados com crescente endividamento bancário externo, tantopúblico como privado, bem como fluxos de investimento es-trangeiro de portfólio, originários dos países-membros supe-ravitários que, por sua vez, alimentaram espirais ascendentesde preços de ativos, dando origem a bolhas imobiliárias, taiscomo as da Irlanda, Espanha, Holanda e Grécia.

A unificação monetária viabilizou uma crescente interde-pendência das posições financeiras credoras e devedoras entreos países-membros e entre os bancos, estimulada pela inexis-tência de risco cambial, que não foi adequadamente monitora-da pelo SEBC. Essas interrelações altamente explosivas vieramà tona quando eclodiu a crise sistêmica de 2008/9 (15). Embora aGrécia não tivesse exposição aos ativos financeiros tóxicos queconduziram à quebra do Lehman em setembro de 2008, o epi-sódio do default da Islândia (167) de 2008 chamou a atenção dasagências internacionais de classificação de risco de crédito parao elevado endividamento de alguns países europeus comoproporção do PIB. Assim, no dia 14 de janeiro de 2009, apenascinco dias depois de ter anunciado que o rating soberano grego

estava sob observação, a agência americanaStandard & Poor's (S&P) rebaixou a classifica-ção de risco da Grécia de "A" para "A-" e, nasemana seguinte, cortou as notas da Espanhae Portugal; em março, rebaixou a nota dos tí-tulos soberanos da Irlanda (17). Subjacente a es-ses rebaixamentos estava a avaliação dos ana-listas da S&P de que as medidas de estímulofiscal adotadas por esses países para combatera recessão econômica resultariam em séria de-terioração das contas públicas.

O rebaixamento da classificação de risco decrédito desses países da periferia da área doeuro desencadeou o temor de alguns investi-dores de que esses países pudessem deixar depagar as suas dívidas, o que se traduziu naexigência de prêmio de risco mais alto. No ca-

so da Grécia, em particular, a aversão ao risco foi tão forte, quebastou o anúncio da perspectiva de rebaixamento para que odiferencial entre o rendimento pago pelos bônus soberanosgregos e alemães de maturidade equivalente disparasse (verGráfico 4), alcançando 232 pontos base no dia 12 de janeiro de2009, quase 10 vezes acima do nível de 2007, o que levou algunsanalistas a sugerir, caso do colunista do Financial Times JohnAuthers, que a moeda única até poderia se dissolver em con-sequência da moratória da dívida soberana (18).

Não obstante o rebaixamento na classificação de risco comconsequente elevação do custo de financiamento, os demais paí-ses da periferia do euro mantiveram o grau de investimento, oque lhes garantiu o acesso aos mercados financeiros. Passado oimpacto inicial do corte da nota de crédito, as diferenças de ren-dimento nos bônus governamentais entre a Alemanha e as eco-nomias mais fracas do bloco também se reduziram consideravel-mente. Com o recuo dos prêmios de risco exigidos pelos inves-tidores, as pressões sobre essas economias também diminuíram.Desse modo, mesmo a Grécia, considerada a economia mais fraca

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e mais vulnerável à elevação do custo de refinanciamento de suasdívidas, logrou captar 50 bilhões de euros ao longo de 2009.

Todavia, nos meses finais de 2009, com a crise da dívida so-berana de Dubai em novembro de 2009 (19) e o reconhecimentopúblico pelo recém-empossado governo grego de que a dívidasoberana do país era muito mais elevada do que se sabia, a Gré-cia voltou a sofrer com as desconfianças dos investidores, quetemiam um novo default. Para isso contribuíram, sem dúvida,os alertas emitidos pelas agências de rating. No dia 7 de dezem-bro de 2009, a S&P colocou a nota da Grécia em perspectiva ne-gativa, sinalizando que a classificação do país poderia baixar,dentro de dois meses, de AA para A-, a mais baixa notação detodos os 16 países da zona do euro, o que desencadeou quedanos preços das ações e elevação dos prêmios de risco dos bônusdo governo. A essa iniciativa seguiu-se a decisão da agênciaFitch de rebaixar a dívida da Grécia para "BBB+". Assim, pelaprimeira vez em 10 anos, um país da área do euro recebeu umanota inferior a "A" de uma das três principais agências inter-nacionais de classificação de risco de crédito.

A decisão da Fitch foi sancionada pela S&P, que, antecipandoo alerta emitido no dia 7 de dezembro de 2009, rebaixou a clas-sificação dos títulos soberanos gregos de AA- para BBB+ no dia16. Como justificativa para o corte de dois níveis na classificaçãogrega, a S&P considerou que, como a crise econômica e finan-ceira em curso aprofundava a perda de competitividade da eco-nomia grega, o governo enfrentaria dificuldades para rolar umadívida que superava 110% do PIB, ou seja, quase o dobro da per-mitida pelo Pacto de Estabilidade, a qual, além disso, era detida,majoritariamente, por não residentes. De fato, grandes fundosamericanos, de investimento e de pensão, e grandes bancos eu-ropeus, em particular os alemães e franceses, possuíam alta ex-posição ao risco soberano grego. Em movimento similar, no dia23 de dezembro, a agência Moody's também rebaixou a classi-

ficação soberana grega, mesmo após o anúncio pelo governogrego de medidas de austeridade fiscal, as quais, contudo, fo-ram consideradas insuficientes pelos analistas.

Esse rápido rebaixamento do rating soberano grego, que foio primeiro de uma série, revelou aos bancos e aos investidoresa existência de diferença expressiva de qualidade de risco decrédito entre os países-membros do euro (20). Além disso, esseepisódio mostrou quão contagiosa poderia ser a deterioraçãoda situação financeira de um pequeno país, como a Grécia. Co-mo na fábula da roupa nova do rei, a partir daí ficou exposta aenorme fragilidade do euro.

Percebida inicialmente como uma crise de dívida soberana,a crise na área do euro é na verdade uma crise com várias di-mensões, fortemente imbricadas, que evoluem em simultâ-neo. Como será visto a seguir, a demora dos líderes europeusem enfrentá-la com tempestividade e determinação só temagravado os problemas, com ampliação dos seus custos eco-nômicos e sociais, ao mesmo tempo em que propicia lucros pa-ra os especuladores financeiros.

A crise e seus desdobramentos recentes

Com a rápida deterioração da classificação de risco da dívidasoberana grega (21)e a crescente desconfiança dos investidores, ex-pressa na exigência de maiores prêmios de risco em relação aosdemais países da periferia do euro com déficit fiscal elevado, co-mo Irlanda, Portugal e Espanha, o euro passou a ser objeto de ata-ques especulativos nos primeiros meses de 2010. Além desses ata-ques, contribuíram para sua forte desvalorização em relação àmoeda americana, nos primeiros meses de 2010, os movimentosde realocação de portfólio dos bancos e administradores de recur-sos dos EUA, os quais diminuíram as aplicações na Europa, comrepercussão nos diversos mercados de dívida, pública e privada.

A crise teve inícioem meados demaio de 2010,

a partir dascrescentes

dificuldades definanciamento da

Grécia, que seencontravafortemente

endividada juntoa bancos e

investidoresestrangeiros.

John Kolesidis/Reuters

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Como essas instituições possuem patrimônio de grande magni-tude (US$ 3 trilhões em conjunto, considerando apenas os fundosmútuos de investimento de curto prazo), qualquer realocação deportfólio por menor que seja causa turbulência nos mercados.

Também os grandes bancos europeus, principais credoresdos governos dos países em dificuldade, passaram a enfrentarcrescentes dificuldades de captação nos mercados financeirosinternacionais em razão da elevação do risco de contraparte(22). No mercado interbancário em euro, o temor dos bancos eu-ropeus em conceder empréstimos até de curto prazo a outrosbancos ocasionou um empoçamento da liquidez similar aoque havia ocorrido em 2008/2009, pois os bancos preferiamdepositar suas disponibilidades junto ao BCE (23). Em conse-quência, alguns dos bancos passaram a depender crescente-mente do refinanciamento do BCE.

As turbulências na área do euro intensificaram-se a partir dofinal do mês de abril, quando a S&P rebaixou o rating soberanogrego para o nível especulativo(junk bond), ou seja, com alta proba-bilidade de a dívida não ser paga emsua integralidade, inviabilizando orefinanciamento da Grécia nos mer-cados financeiros (24). O anúncio dorebaixamento causou violentosprotestos populares em Atenas,porque sinalizava que novas medi-das de austeridade seriam adota-das. No mesmo dia 27, essa agênciacortou a nota de Portugal de "A+"para "A-", e no dia seguinte fez omesmo com relação à nota da Espa-nha. Assim, a classificação para a dí-vida de longo prazo desse país pas-sou de "AA+" para "AA", com pers-pectiva negativa.

Para conter os movimentos es-peculativos contra o euro, bem como o efeito contágio e aameaça de grave crise de confiança em relação ao sistemabancário, os governos da área do euro fecharam, no início demaio de 2010, depois de demoradas negociações, um acordo,com participação do Fundo Monetário Internacional (FMI),para a criação de uma rede de segurança para a defesa do euroe para as economias fragilizadas. Além do pacote de suportefinanceiro de 110 bilhões de euros da Grécia (25), a um customédio de 5,2% a.a., foi criado, em caráter temporário, o Fun-do Europeu de Estabilização Financeira (EFSF), com recursosda ordem de até 750 bilhões de euros, dos quais 440 bilhões deeuros sob a forma de garantia de empréstimos, 60 bilhões deeuros de funding de emergência da CE e contribuição poten-cial de 250 bilhões de euros do FMI.

Dada a gravidade da situação dos bancos europeus, alta-mente expostos ao risco soberano, o BCE, inicialmente reticen-te, concordou em participar do plano, comprando títulos so-beranos em poder dos bancos em suas operações de mercadoaberto (26). Como emissor do euro, o BCE é a única instituição daUnião Europeia em condições de atuar com a rapidez neces-sária, fornecendo liquidez às instituições e aos mercados.

Proibido pelo Tratado de Maastricht de conceder créditos,quer sob forma descoberta, quer sob qualquer outra forma, e aqualquer instituição, autoridade ou entidade do setor público daComunidade ou dos estados-membros, excetuando as institui-ções de crédito público, bem como de realizar compra direta detítulos de dívida emitidos por essas entidades, o BCE adquiriuno mercado secundário 60,1 bilhões de euros de dívida soberanaem poder dos bancos entre maio e julho de 2010 (27). No início deagosto de 2011, com o aprofundamento da crise e o contágio daEspanha e da Itália, o banco central retomou e ampliou o pro-grama de compra de bônus soberanos no mercado secundário,realizando a aquisição de 22 bilhões de euros na semana do dia13 de agosto. Em quatro meses (até o dia 28 de novembro), já fo-ram comprados 143,2 bilhões de euros em dívida soberana dazona do euro (Gráfico 5), bem mais do que o dobro do volumeadquirido ao longo de 10 meses em 2010 (28).

Com as contas públicas abaladas pelo custo do resgate dosistema financeiro e pela ampliaçãodo gasto para estimular a reativaçãoda economia, em um contexto de ar-recadação de tributos em queda, osgovernos europeus permaneceramsob intensa pressão dos mercadosfinanceiros e dos políticos conserva-dores para reduzir os gastos e dimi-nuir o endividamento. Assim, na se-quência do anúncio do acordo entreos líderes da EU e do compromissode um novo ajuste fiscal assumidopela Grécia, vários outros países daárea do euro (e também o Reino Uni-do) anunciaram, em junho de 2010,medidas de consolidação fiscal, quecombinavam corte de gasto, inclusi-ve de investimentos públicos, e ele-vação de imposto sobre consumo.

Estes foram os casos da Itália, Espanha, Irlanda, Portugal,França, Alemanha, embora as situações nacionais fossem bas-tante diversas. Além do congelamento de salários do funcio-nalismo público, de pensões e aposentadorias, redução de pes-soal, diminuição expressiva de benefícios sociais, alguns paí-ses, como Grécia, Espanha, Itália, França e Alemanha, eleva-ram igualmente a idade mínima para aposentadoria.

Contudo, nem a criação do Fundo Europeu de EstabilizaçãoFinanceira, nem a adoção de políticas de austeridade fiscal, co-memoradas pelo BCE e pela CE como uma sinalização positivapara os mercados de dívida soberana, acalmaram os investi-dores. Os prêmios de risco dos bônus governamentais dos paí-ses da periferia do euro continuaram a se descolar do prêmiodos bônus alemães de maturidade comparável (Gráfico 1).Em um claro movimento de fuga para a qualidade dos inves-tidores, o rendimento dos bônus de 10 anos da Alemanha de-clinou ao longo de 2010 e de 2011, enquanto, em contrapartida,os rendimentos dos títulos dos demais países aumentavam àmedida que a crise se aprofundava.

Em um cenário de fraco crescimento econômico e desem-prego elevado e persistente, o espraiamento da desconfiança

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crescente em relação à capacidade financeira dos países alta-mente endividados resultou, ao longo de 2010-2011, em um cír-culo vicioso de rebaixamento da classificação de risco da dívi-da soberana pelas três principais agências internacionais de ra-ting e elevação do custo de financiamento dos governos já fra-gilizados, bem como dos seus bancos credores, pressionadospara fortalecer o capital (29). Para evitar novas pressões sobre ocusto financeiro da dívida, os governos da área do euro se com-prometem com novos cortes de gastos que só agravam a situa-ção econômica já bastante frágil.

A Espanha procurou evitar, sem sucesso, o terceiro rebaixa-mento da sua classificação de risco pela S&P (ameaça concre-tizada em 14 de outubro de 2011) com a rápida aprovação peloParlamento, em meados de setembro de 2011, de uma emendaconstitucional que introduz uma regra de ouro para manter nofuturo o déficit fiscal dentro do limite estrito do Pacto de Es-tabilidade. Também, em setembro, a Itália aprovou, depois desemanas de acaloradas discussões no Parlamento, a propostade redução de gasto da ordem de 50 bilhões de euros para o or-çamento de 2013. Novos planos de austeridade fiscal têm sidoadotados também por países centrais da área do euro, como é ocaso da França, que respondeu à ameaça de rebaixamento dasua classificação de risco triplo A com o anúncio de mais umpacote de ajuste fiscal, em novembro de 2011.

Esse círculo vicioso de degradação dos ratings de crédito dospaíses da periferia do euro e elevação do custo de rolagem das dí-vidas tornou-se uma fonte de lucros consideráveis para os espe-culadores, que passaram a comprar credit default swap (CDS) paratítulos soberanos gregos, portugueses, irlandeses, espanhóis etambém italianos. Embora os CDS tenham surgido como um ins-trumento de proteção adquirido de terceiros por um credor con-tra o risco de um devedor dar calote em suas dívidas, esses con-tratos tornaram-se objeto de especulação, podendo ser adquiri-dos por qualquer investidor que queira lucrar com apostas de umeventual default de um devedor (30). Desse modo, à medida que a

situação financeira da Grécia se deteriorava, os prêmios dos CDSgregos aumentavam progressivamente (Gráfico 6) (31)

A divulgação, em julho de 2010, dos detalhes e resultadosdos testes de estresse (32) realizados pelos bancos europeus oca-sionou uma reversão apenas momentânea na trajetória ascen-dente dos prêmios de risco exigidos de governos e bancos. Dos91 bancos europeus submetidos ao teste, apenas sete não fo-ram aprovados – o banco estatal Agricultural Bank of Greece,cinco caixas de poupança espanholas (resultado já esperado,em razão da forte exposição à crise do mercado imobiliário es-panhol em decorrência do estouro da bolha especulativa) e oalemão Hypo Real Estate, estatizado pelo governo em 2009 –,por terem ficado aquém do piso de 6% definido pelo conselhode supervisão do SECB para os requisitos de capital (capital ní-vel 1 na classificação de Basileia), com um déficit conjunto decapital de 3,5 bilhões de euros. Esse volume de capital extra re-velado pelo teste foi largamente inferior às estimativas dosanalistas dos mercados financeiros e, sobretudo, das agênciasde rating, que se basearam em cenários com percentuais de de-ságio sobre as dívidas soberanas, sobretudo a grega, muito su-periores aos definidos como referência para o cenário adversopelos supervisores europeus (33). Desse modo, as desconfian-ças sobre a solidez do sistema bancário europeu ressurgiramcom força e com elas as pressões sobre os países altamente en-dividados da periferia do euro.

Em agosto, a Irlanda começou a enfrentar dificuldade pararolar suas dívidas, desencadeando novas ondas de especulaçãocontra o euro e pressões sobre Portugal e Espanha. Os líderes eu-ropeus reagiram com o anúncio de um pacote de socorro finan-ceiro da ordem de 85 bilhões de euros para a Irlanda (34) no dia 28de novembro. Na mesma ocasião, decidiu-se pela criação, emcaráter permanente, do Mecanismo Europeu de Estabilidade(ESM na sigla em inglês), que sucederá o EFSF em 2013. Em con-trapartida ao suporte, que contou com a contribuição financeirado Reino Unido, Suécia e Dinamarca, países da União Europeia

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que não adotam o euro, a Irlanda, a exemplo da Grécia, assumiuo compromisso de adotar cortes de gasto da ordem de 15 bilhõesde euros nos próximos quatro anos (35).

Tão logo a ajuda à Irlanda se tonou conhecida, os especula-dores concentraram suas apostas em Portugal (ver Gráficos4 e 6), o que, depois de inúmeros desmentidos, tanto pelo go-verno português como pelo presidente da CE, se tornou maisuma profecia autorrealizada do chamado "mercado". A eleva-ção do custo de rolagem da dívida soberana a partir de dezem-bro de 2009 fragilizou ainda mais a situação fiscal do país. As-sim, em abril de 2011, após uma grave crise política em razãodas sucessivas medidas de austeridade adotadas, Portugalformalizou o pedido de ajuda financeira à CE e ao FMI. E emmeados de maio de 2011, os Ministros das Finanças da UniãoEuropeia e o FMI aprovaram um pacote de assistência finan-ceira a Portugal no montante de 78 bilhões de euros, a partir decontribuição do FMI, do EFSF e do recém-criado ESM de 26 bi-lhões de euros cada.

Também a partir de abril de 2011, a Grécia voltou a sofrerpressões dos investidores. Boatos sobre uma possível rees-truturação da dívida soberana grega e as exigências de ado-ção de novas medidas de austeridade fiscal pelo governo, co-mo condição para a EU liberar mais uma tranche do pacote deajuda financeira de abril de 2010, levaram os prêmios de risco

exigidos para os títulos gregos a atingir re-cordes históricos sucessivos (ver Gráfico 2).Igualmente, o custo do CDS para os títulosgregos explodiu (Gráfico 6), atingindo nomês de junho o seu patamar mais elevado atéentão (2.500 pontos-base). Esse recorde foibatido, várias vezes, entre os meses de setem-bro e novembro, mesmo após a aprovação deum novo pacote de ajuda financeira da or-dem de 109 bilhões de euros à Grécia em julhoe do acordo voluntário de redução de 50% dadívida soberana com os credores privados,fechado em outubro (36).

Os crescentes rumores de reestruturaçãoda dívida grega e de que o país seria forçadoa abandonar o euro repercutiram fortemen-te nos bancos europeus ao longo de 2011. Emconjunto, esses bancos detinham, em junhode 2011, direitos da ordem de 127 bilhões deeuros sobre devedores gregos, públicos eprivados (Gráfico 7). Desse total, os ban-cos franceses e alemães respondiam, respec-tivamente, por 40,5% e 26,4% (Gráfico 8).Uma eventual reestruturação da dívida so-berana da Grécia implicaria contabilizaçãode prejuízos pelos bancos credores e corres-pondente reforço de capital para adequaçãodas normas de Basileia.

Com a exposição cruzada dos bancos eu-ropeus com dívidas públicas e privadas deterceiros, países alcançavam, segundo da-dos do BIS, a expressiva magnitude de 8 tri-lhões de euros (posição em junho de 2011), a

ocorrência de uma grave crise sistêmica, com consequên-cias similares à que se seguiu à falência do Lehman Brothers,tornou-se uma possibilidade concreta. Afinal, além de osbancos alemães, franceses, holandeses estarem altamenteexpostos ao risco da Espanha e Itália, assim como os bancosespanhóis estão altamente expostos ao risco de Portugal evice-versa (Gráfico 8), grandes bancos americanos, britâ-nicos, japoneses e suíços também são detentores de direitossobre devedores dos cinco países mais endividados da áreado euro (Gráfico 9).

Os bancos da área do euro têm sido particularmente afe-tados pelo agravamento da crise e pela demora excessivados líderes europeus em adotar ações mais efetivas. De umlado, como detêm parcela importante das dívidas dos go-vernos, essas instituições sofrem o impacto do rebaixamen-to da classificação de risco dos países nos seus próprios ra-ting de crédito, o que resulta em maior custo de captação. Deoutro lado, enfrentam dificuldade de obtenção de f u n di n gde capital porque os investidores, ao buscarem reduzir suasexposições ao risco na área do euro, se desfazem não só dostítulos soberanos, como também de suas participações nosbancos europeus. Em consequência, os bancos estão redu-zindo seus graus de alavancagem, vendendo ativos e redu-zindo a concessão de crédito, o que é um ingrediente a mais

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de enfraquecimento da demanda interna depaíses que, além de desemprego elevado,estão sob forte austeridade fiscal.

Com o agravamento da crise e o espraia-mento da desconfiança dos investidores pa-ra além da periferia da área do euro, expres-so na elevação dos prêmios de risco dos títu-los da Itália (37) e Espanha (38), o BCE voltou adeixar de lado sua excessiva preocupaçãocom a inflação. A partir do início de agostode 2011, como já mencionado, recomeçou acomprar títulos de dívida soberana no mer-cado secundário.

Em outubro, com o sinal de alerta da quasefalência do banco franco-belga Dexia, que, ví-tima de um ataque especulativo contra assuas ações negociadas em bolsa, foi socorridopelos governos da França, Bélgica e Luxemburgo, o BCE lan-çou um novo programa de empréstimos emergenciais ilimita-dos de um ano mediante a compra de ativos, denominados co-vered bonds (39). E em novembro, já sob o comando do novo pre-sidente, o italiano Mario Draghi, o BCE surpreendeu efetuan-do um corte de 0,25 pontos percentuais na meta oficial de juros,trazendo-a para 1,25%, não obstante a inflação em 12 meses daárea do euro permanecer no patamar de 3,0% ao ano.

A decisão de reduzir a meta da taxa de juros em 0,25% foirepetida no dia 8 de dezembro, na última reunião de 2011 doconselho de política monetária do BCE. Nessa mesma data, oBCE anunciou a adoção de novas medidas de suporte ao sis-tema bancário, que incluem: duas operações de refinancia-mento de longo prazo, com vencimento de 36 meses, com op-ção de pagamento antecipado após um ano; redução de 2% pa-ra 1% da alíquota dos depósitos compulsórios; e ampliação dostipos de colaterais elegíveis, com redução da classificação derisco mínimo para "A" em certos ativos e admitindo, em carátertemporário, que empréstimos bancários sejam aceitos comocolaterais pelos bancos centrais nacionais.

Também no dia 8 de dezembro, os 27 líderes de governodos países-membros da EU reuniram-se para discutir a refor-ma do Tratado de Maastricht, com vistas a superar a crise esalvar o euro e, com ele, o projeto político da Europa unifica-da. Os principais pontos da proposta discutida nessa cúpulaforam previamente acordados pelos primeiros-ministros daAlemanha e França. Após longas e duras negociações, foi fe-chado um acordo, no qual 27 países concordaram em estabe-lecer um novo Tratado que assegure a estabilidade fiscal, im-pondo severas limitações aos déficits orçamentários (teto de0,5% do PIB para o déficit estrutural anual) e estabelecendopunições automáticas por desobediência se o déficit ultra-passar o teto de 3% do PIB. Para tanto, os organismos daUnião Europeia terão poder de intervenção nos orçamentosdos países signatários, os quais terão de incluir regra de ouroem suas constituições nacionais, tal como fez a Espanha nomês de outubro. Apenas o Reino Unido recusou a adesão aonovo Tratado, cuja redação será finalizada até 2012, enquantoa Suécia, República Checa, Polônia condicionaram sua ade-são à posterior aprovação dos respectivos Parlamentos. O

mesmo fez a Hungria, que voltou atrás da sua recusa inicial aonovo Tratado (MEVEL, 2011).

Os líderes europeus também decidiram que os países da áreado euro, junto com alguns outros integrantes da União Euro-peia, irão fornecer até 200 bilhões de euros em recursos extraspara o Fundo Monetário Internacional (FMI), para que sejamusados para ajudar os países a consolidar suas contas fiscais. Foiacertado igualmente que o ESM, fundo de resgate permanenteda Europa, criado em novembro de 2010, irá substituir o EFSFem julho de 2012, ou seja, um ano antes do previsto. Isto porque,como instituição permanente que possui capital integralizado,semelhante a um banco, o ESM é considerável mais crível pelosparticipantes do mercado financeiro do que o EFSF, o qual estásob controle dos governos da área do euro.

A tomada de decisão no ESM foi simplificada em situaçõesde emergência, dando à maioria de 85% dos detentores de ca-pital o poder de decidir a concessão de socorro a um país. Ouseja, a decisão poderá ser tomada à revelia dos governos dospequenos países. Contudo, foram flexibilizadas as regras re-lativas à assunção obrigatória de perdas pelos credores priva-dos (outros investidores privados) em caso de socorro finan-ceiro do ESM de um país-membro.

Impactos e perspectivas

A irrupção da crise atual da área do euro desencadeada apartir da revelação do excessivo endividamento da Grécia e damaquiagem das contas públicas conduziu à interpretação er-rônea de que os problemas atuais do bloco foram causados porcomportamentos irresponsáveis dos governos das economiasda periferia do euro. Essa é a visão que prevalece na Alemanhae em outros países setentrionais, bem como entre o corpo bu-rocrático da CE, que defendem a revisão das medidas de aus-teridade fiscal do Tratado e do Pacto de Estabilidade, com en-durecimento das exigências e punições.

É fato que houve fraude contábil e endividamento excessivona Grécia, mas o mesmo não se aplica à Espanha e à Irlanda,países que até a eclosão da crise de 2008/09 estavam enqua-drados nos critérios de Maastricht. O endividamento recentedos governos desses países e de outros da área do euro decor-

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reu das medidas adotadas para socorrer os bancos privados epara sustentar a demanda agregada em contexto de profundarecessão. A reversão prematura dos incentivos fiscais e os su-cessivos planos de austeridade adotados na área do euro em2010 e 2011 como resposta às pressões dos investidores inter-nacionais contribuíram tão somente para aprofundar a fragi-lidade de vários dos países do bloco, com sérias repercussõessobre o sistema bancário europeu como um todo, em razão dascomplexas e intrincadas relações financeiras entre bancos, go-vernos e empresas da área do euro, construídas em um am-biente de finanças globalizadas e desregulamentadas.

A crise tem, como foi visto acima, raízes bem mais profun-das e múltiplas causas interrelacionadas. Para o seu efetivoenfrentamento será necessário aperfeiçoar a arquitetura ins-titucional da UME, tarefa difícil e demorada, porque depen-de de acordos políticos e decisões que precisam ser referen-dadas pela população de cada um dos 27 países-membros daUnião Europeia. Contudo, o risco sistêmico é uma ameaça sé-ria que exige pronta resposta tanto do BCE como dos gover-nos da área do euro.

As recentes decisões tomadas pelo BCE, bem como a ins-tituição em caráter permanente do fundo de estabilidade fi-nanceira, foram passos importantes, porém insuficientes, pa-ra reduzir a incerteza e o risco sistêmico nos mercados finan-

ceiros. O montante de dívidas soberanas que precisam ser re-financiadas no curto prazo é de tal magnitude que apenas oBCE, enquanto emissor do euro, teria condição de garantirmercado para esses papéis, seja mediante a ampliação desuas compras no mercado secundário, seja mediante refinan-ciamento do EFSF e do seu sucessor, o ESM. Ainda que essaalternativa possa resultar em pressões inflacionárias, seriamelhor opção do que o desmembramento da área do euroe/ou uma profunda crise sistêmica.

Quanto à reunião de cúpula, os seus resultados não pode-riam ser mais decepcionantes. Não obstante a decisão de avan-çar na construção da união fiscal europeia, nada foi decididopara resolver as sérias lacunas na arquitetura da UME, dentreas quais se destacam a estabilidade dos preços como objetivoprimordial do BCE e a ausência de regras para os desequilí-brios em transações correntes entre os países da área do euro.Ademais, a ênfase excessiva na austeridade fiscal pode se re-velar um agravante da já difícil situação dos países menoscompetitivos e já altamente endividados.

Mesmo a Alemanha, que se opõe ferozmente à ajuda do BCEaos países fragilizados, sofreria consideráveis perdas econô-micas com o fracasso do projeto da moeda única, sem falar docusto social e político. Estimativas feitas por analistas de ins-tituições financeiras indicam que a saída da Alemanha do euro

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implicaria expressiva redução do PIB, que varia de 12% até25% no primeiro ano (BÖCKING, 2011).

Caso seja a Grécia que abandone o euro, haveria conse-quências deletérias para os demais países do bloco em razãodas dívidas cruzadas dos bancos. Como a dívida grega é de-nominada em euro, o país teria dificuldade ainda maior emhonrar seus compromissos financeiros, o que ampliaria aspressões de reforço do capital dos bancos, agravando a amea-

ça de crise sistêmica. Afinal, além do ônus financeiro da pró-pria dívida, a Grécia passaria a enfrentar problema de desca-samento de moedas, tendo que gerar receitas em uma moedadesvalorizada (dracma) para o serviço da dívida denomina-da em moeda forte (euro). Essas instituições já precisamatualmente de 114,7 bilhões de euros de capital adicional, deacordo com recomendações divulgadas no dia 8 de dezembropela Autoridade Bancária Europeia.

Apêndice

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Mais umpacote deausteridade

Protestos violentosem Atenas contra opacote do governo

Oparlamento grego aprovou no último dia12 de fevereiro um pacote de austeridade,que resultou em violentas manifestações

por parte da população na capital do país. O pacotefaz parte das exigências dos credores para a liberaçãode 130 bilhões de euros da União Europeia e doFundo Monetário Internacional, vital para que aGrécia possa honrar uma dívida de 14,5 bilhões deeuros, que vence no próximo dia 20 de março.

O pacote de austeridade prevê uma redução de

Yiorgos Karahalis/Reuters

mais de 20% no valor do salário mínimo e cortesde mais de 3 bilhões de euros em pensão,remuneração e empregos públicos. A aprovaçãodas medidas restritivas deve também acelerar oprograma de privatizações, que poderá arrecadarneste primeiro semestre 4,5 bilhões de eurospor meio da venda de empresas nacionais defornecimento de gás e água, de exploração depetróleo e de jogos de azar. Os novos cortes sãoo quinto plano de austeridade do país.

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Notas(1) Sobre os eventos sucessivos que culminaram na irrupção dacrise atual da área do euro, ver, entre outros, BIS (2010).(2) Por serem países relativamente menos desenvolvidos, Grécia,Portugal, Espanha e Irlanda são conhecidos como paísesperiféricos da área do euro, enquanto Alemanha, França e Itáliacompõem o centro.(3) No dia 5 de dezembro, essa agência colocou sob revisãonegativa quinze países da área do euro, incluindo os seis quepossuem a notação máxima - Áustria, Alemanha, Finlândia,França, Holanda e Luxemburgo. Alguns deles poderão perderaté duas posições na escala do rating se não houver uma açãorápida e coordenada para enfrentamento e resolução da crise.Essa ameaça de rebaixamento contribuiu para o aumentodas pressões sobre o euro. Esse ponto será retomado na seçãofinal do artigo.(4) Na época, a Comunidade Europeia era integrada pelaAlemanha, Bélgica, França, Holanda, Luxemburgo,Dinamarca, Irlanda, Reino Unido, Portugal, Espanha e Grécia.Posteriormente, em 1995, Áustria, Finlândia e Suécia aderiramao Tratado de Maastricht. A adesão ao Tratado não significava,contudo, a adoção do euro como moeda única. Assim,optaram por ficar de fora da zona do euro o Reino Unido,a Dinamarca e a Suécia.(5) O Tratado estabeleceu um prazo para que os países queaderissem ao euro modificassem a legislação nacional paraassegurar a independência de seus bancos centrais.(6) Como será visto na próxima seção, o BCE realizou comprasde títulos de dívida soberana no mercado secundário em 2010 evoltou a fazê-lo a partir de agosto de 2011 com o agravamento dacrise grega e o contágio da Itália. Contudo, tais compras são emquantidades muito limitadas ante a magnitude da dívidasoberana nas mãos dos bancos da área do euro.(7) O critério de estabilidade de preços estabeleceu que, em umperíodo de um ano, o índice de inflação não deve superar em maisde 1,5% a média dos três estados-membros da UE com menoríndice de inflação. Para o cálculo da inflação, definiu-se o índicede preços ao consumidor (IPC) harmonizado, levando emconsideração as diferenças nas definições nacionais.(8) De acordo com o critério de estabilidade do câmbio, a taxa decâmbio nominal da moeda nacional não poderia flutuar além dos15% em torno de sua paridade central durante os dois anosanteriores à adesão do país à UME.(9) Para assegurar a estabilidade das taxas de juros, ficouestabelecido que a taxa de juros nominal média a longo prazosobre a dívida pública não podia superar em mais de 2% a médiados três estados-membros da UE que registram as menoresinflações do bloco.(10) Em 2004, com troca no comando do governo grego, aComissão Europeia foi informada da manipulação contábil quepermitiu a entrada da Grécia na área do euro. A fraude foidenunciada pelo novo governo, o qual efetuou novasmaquiagens nas contas públicas com a ajuda do banco deinvestimento americano Goldman Sachs, descobertas no final de2009 com o retorno do partido trabalhista ao poder. Em

dezembro, o primeiro ministro George Papandreou admitiu quea dívida grega havia atingido 300 bilhões de euros, o equivalentea 113% do PIB, o que desencadeou o rebaixamento do rating dogoverno e dos bancos gregos.(11) Na avaliação de Arestis e Sayer (2011), as regras deMaastricht e do Pacto de Estabilidade seriam falhas, entreoutras razões, por serem assimétricas em condiçõesdeflacionárias, ao determinarem teto apenas para os déficitsfiscais, sem estabelecer um limite para os superávits.(12) A cláusula de não resgate dos países-membros do Tratadoestabelece que, excetuando garantias financeiras mútuas paraa execução conjunta de projetos específicos, nem a CE nemestados-membros são responsáveis pelos compromissos dosgovernos centrais, das autoridades regionais ou locais, ou deoutras autoridades públicas, dos outros organismos do setorpúblico ou das empresas públicas de qualquer estado-membro,nem assumirão esses compromissos.(13) De acordo com Priewe (2011), a Alemanha respondesozinha por entre 70 a 80% do superávit da área do euro.Também são superavitários Holanda, Áustria, Finlândia,Luxemburgo e Bélgica.(14) A plena liberalização da circulação de capitais (que se aplicanão somente aos países membros da UE, como também aterceiros países) constituía a primeira fase prevista pelo Tratadopara a UME e para a introdução do euro, devendo ser concluídaaté 31 de dezembro de 1993.(15) A constatação de que houve falha no monitoramento esupervisão do sistema bancário europeu levou à criação, peloParlamento Europeu, da Autoridade Bancária Europeia (ABE),em 24 de novembro de 2010, a qual, ao lado de outros trêsorganismos - o Comitê Europeu de Risco Sistêmico, aAutoridade Europeia de Valores Mobiliários e a AutoridadeEuropeia de Seguro e Pensões Profissionais -, integra o novosistema europeu de supervisão financeira.(16) Em decorrência da estatização do seu sistema bancáriofortemente exposto aos ativos americanos de alto risco, ogoverno da Islândia declarou-se insolvente, em outubro de 2009,sendo resgatado pelo FMI e pelos demais países nórdicos(Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia), que, em novembro,concederam empréstimos no montante total de US$ 4,2 bilhões.Os recursos do FMI seriam liberados em oito tranches, sujeitoa revisão trimestral.(17) No dia 19, a dívida soberana de longo prazo da Espanhaperdeu seu triplo A, a melhor nota da escala dessa agência,caindo para "AA+". No dia 21, a nota de Portugal passou de"AA-" para "A+", porque, na avaliação da agência, ao tentarimpulsionar a competitividade e elevar o crescimentopersistentemente baixo, Portugal enfrenta desafios cada vezmais difíceis em razão da elevada carga da dívida pública. E nodia 30 de março, alegando piora na condição das contas públicasdo país, a S&P retirou a classificação triplo A da Irlanda, cujanota caiu para "AA+".(18) Segundo Auther, uma eventual moratória da dívida soberanade um país-membro da área do euro acarretaria uma fuga de

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recursos do já fragilizado sistema bancário, o que forçaria esse paísa abandonar o euro e a imprimir moeda. Essa avaliação foifortemente refutada pelo também colunista do Financial TimesWillem Buiter, na época professor da London School of Economic eatual economista do Citigroup, para quem um país-membro daárea do euro que porventura declarasse moratória teria todo ointeresse em permanecer na UME. Isto porque, como a dívida dopaís é denominada em euros, o abandono resultaria numa enormedesvalorização da nova moeda e, consequentemente, no aumentoabrupto da dívida em proporção ao PIB, piorando ainda mais a jádifícil situação financeira do país (BUITER, 2009).(19) No dia 24 de novembro de 2009, a Dubai World, companhiaestatal de Dubai, anunciou suspensão do pagamento de parteda dívida contraída no mercado financeiro internacional,desencadeando um temor sobre a solvência do próprioEstado de Dubai.(20) Na sequência da divulgação do relatório da S&P sobre a Grécia,a gestora de investimentos americana PIMCO, que controla ativosfinanceiros da ordem de 1,3 trilhão de dólares e é o maior investidorem bônus governamentais do mundo, desfez-se, em poucassemanas, de suas posições em títulos gregos (THE TICK…, 2011).(21) Para essa rápida deterioração contribuiu a divulgação, em 12 dejaneiro de 2010, de um relatório da União Europeia condenando asgraves irregularidades nos procedimentos contábeis da Grécia,confirmando a denúncia feita em outubro de 2009 pelo primeiro-ministro recém-eleito sobre a existência de um rombo nas finançaspúblicas do país. A revisão das contas fiscais gregas revelou que odéficit fiscal de 2009 era na verdade equivalente a 12,7% e não a3,7% (como informado pelo governo grego à Eurostat, o órgão deestatística da CE), superando em mais de quatro vezes o máximopermitido pelo Tratado.(22) As instituições financeiras americanas também reduziram osempréstimos de curto prazo para bancos europeus, especialmenteos da Grécia, Espanha e Itália. Um dos maiores bancos espanhóis,o BBVA, por exemplo, perdeu acesso ao mercado monetárioamericano, onde rotineiramente obtinha funding de curto prazoem dólar mediante a emissão de commercial papers; e, em maio,enfrentou sérias dificuldades para rolar US$ 1 bilhão em linhas decurto prazo que estavam vencendo. Igualmente, os grandes bancosfranceses e britânicos com forte exposição ao risco soberano gregosofriam dificuldade de refinanciamento no interbancário em dólar,expressa na elevação dos prêmios de risco pagos acima da Libor(ENRICH et al, 2010).(23) No início de maio de 2010, o volume diário de depósitos dosbancos europeus junto ao BCE alcançou cerca de 290 bilhões deeuros, nível três vezes mais elevado do que o patamar pré-crise de2008-09 (ENRICH et al, 2010).(24) No dia 14 de junho de 2010, a agência Moody's também fez omesmo, cortando de uma só vez quatro notações da dívida soberanagrega, que passou de A3 para Ba1, nível de grau especulativo.(25) Em contrapartida ao suporte financeiro de 110 bilhões de euros,que incluiu empréstimo stand-by de 30 bilhões de euros do FMI, ogoverno grego se comprometeu com um programa de ajustebastante duro, que incluiu congelamento dos salários e pensões,

elevação de impostos, imposição de teto para os bônus de férias,com vistas a reduzir o déficit fiscal do patamar atual de 13,6% doPIB para 3,6% em 2013 e abaixo de 3,0% em 2014.(26) Além disso, o BCE renovou as linhas de swaps com osprincipais bancos centrais - Federal Reserve, Banco da Inglaterra,Banco do Canadá, Banco Nacional da Suíça - para emprestardólares e outras moedas aos bancos europeus, que enfrentamdificuldades para captar no interbancário. Esse tipo de swap jáhavia sido utilizado após a falência do Lehman Brothers, emsetembro de 2008, para assegurar liquidez em moeda estrangeiraaos bancos domésticos. Tal expediente voltou a ser utilizado emoutubro de 2011 quando houve nova rodada de agravamento dacrise na área do euro e o BCE se viu premido a adotar novasmedidas emergenciais de empréstimos aos bancos europeus.(27) Enquanto a Grécia possuía grau de investimentos, os seustítulos serviam de colateral nos empréstimos realizados pelosbancos junto ao BCE para obtenção de liquidez. Com orebaixamento da classificação de risco soberano para grauespeculativo, esses títulos não eram mais elegíveis para servir decolateral nas operações de refinanciamento. Com a crise da áreado euro, o BCE passou a comprar, no mercado secundário, títulosgregos e de outros países altamente endividados em poder dosbancos. Em maio de 2010, por exemplo, o BCE adquiriu cerca de25 bilhões de euros em títulos gregos, em uma decisão fortementecriticada pelo então presidente do Bundesbank, Axel Weber, quealertava para as pressões inflacionárias dessa ação de socorroindireto aos países da periferia do euro.(28) Boatos circularam na imprensa em novembro de 2011 a respeitodo limite semanal de compra do BCE, o qual é mantido em segredopara evitar movimentos especulativos. De acordo com notíciaveiculada pelo jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung no dia 18 ereproduzida por toda mídia mundial, o limite semanal seria daordem de 20 bilhões. Como era de se esperar, essa notícia provocoureação indignada do ministro da Economia da Alemanha, país quese opõe frontalmente à decisão do BCE de comprar títulos da dívidasoberana no mercado secundário com o objetivo político de ajudaros países da zona do euro. Ante as pressões da Alemanha e parareafirmar o seu compromisso com a ortodoxia monetária queimpera no BCE desde a sua criação, o novo presidente do BCE,Mario Draghi declarou, no dia 8 de dezembro, que as compras detítulos públicos realizadas pelo BCE no mercado secundário sãolimitadas e temporárias, reiterando que a instituição não podeatuar fora de seu mandato, estabelecido pelo Tratado, que é mantera estabilidade dos preços.(29) As agências de rating desempenharam papel central noaprofundamento e transbordamento da crise da área do euro. Ocusto da dívida soberana de Portugal (e, por consequência, dos seusbancos e empresas) passou a subir depois que a agência Moodysdivulgou um relatório, publicado a 13 de janeiro de 2010, no qualequiparava as situações de Portugal e Grécia (CARREGUEIRO,2010). Depois de veementes protestos do governo português ecríticas de analistas portugueses, a agência publicou, no dia 10 defevereiro de 2010, outro relatório, intitulado, "Espanha, Portugal eGrécia: contágio ou confusão", no qual reiterava a necessidade de

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diferenciar os riscos entre Portugal, Espanha e Grécia. Porém,o mal já estava feito e os prêmios de risco exigidos pelosinvestidores para os títulos soberanos portugueses desde entãoacompanharam a forte subida ocorrida nas obrigações gregas,o que agravou a fragilidade financeira de Portugal.(30) Nesse tipo de CDS, também conhecido como "naked" creditdefault swap, um investidor compra a proteção contra aocorrência de um evento de crédito (moratória, reestruturação)mesmo sem deter direito sobre a dívida, apostando no ganho queobterá ao comprá-la, no futuro, a um preço bem mais barato.(31) Por considerar que esse tipo de instrumento financeirocontribuiu para exacerbar a crise no mercado europeu de dívidasoberana, o Parlamento Europeu aprovou, no dia 16 denovembro de 2011, a proibição desse tipo de CDS a partir do dia1º de dezembro de 2011 em todos os 27 países-membros da UE.Espera-se que com essa regra se torne impossível adquirir umCDS apenas com o propósito de especular com o risco de um paísdeixar de honrar a sua dívida. Uma tentativa anterior de baniros "naked" CDS já havia sido feito em julho de 2011, porémalguns países, dentre os quais a Itália, se opuseram à decisãopor temer que tal medida pudesse dificultar o refinanciamentodas dívidas. Para superar essa oposição, chegou-se a um acordopelo qual uma autoridade nacional poderá suspender a proibiçãopor até 12 meses se o seu mercado de dívida soberana não estiverfuncionando corretamente e, eventualmente, ampliá-la porseis meses.(32) Os testes de estresse são realizados para verificar se os bancospossuem nível de capital próprio adequado para enfrentarcenários hipotéticos, mas plausíveis, de condições econômicas efinanceiras extremamente adversas, que implicariam elevação deinadimplência e contabilização de prejuízos em seus balanços.Quanto maior a adequação de capital dos bancos, maior suaresistência à ampliação dos riscos. A realização desses testestornou-se uma exigência a partir do Acordo de Basileia de 2001,também conhecido como Basileia II. Em geral, os bancos centraise/ou autoridades de supervisão bancária não divulgam osdetalhes dos resultados dos testes de estresse realizados pelosbancos. Contudo, com o intuito de acalmar os "mercados" ereduzir as pressões sobre os países da periferia do euro, os lídereseuropeus concordaram em divulgar pela primeira vez oresultado do teste de estresse, seguindo o exemplo dos EstadosUnidos, que também haviam adotado tal procedimento, o queocorreu em duas etapas, na segunda quinzena do mês de julho.(33) O cenário de estresse para as dívidas soberanas europeiasprevia deságios de 23% sobre a dívida soberana grega, 14% nocaso de Portugal, 12% da Espanha e 10% do Reino Unido. Essesdeságios, baseadas no valor dos bônus de cinco anos no fim de2009, foram considerados insuficientes pelos analistas, emrazão, especialmente, da dramática queda no valor da dívidagrega no mês de abril. Naquela ocasião, quando rebaixou a notagrega para grau especulativo, a S&P havia estimado que osdetentores de títulos soberanos gregos poderiam sofrer perdas deaté 70%. Assim, nas estimativas dos analistas do mercadofinanceiro, os bancos europeus poderiam precisar de até 100

bilhões de euros em capital adicional, o que representavaexcelentes oportunidades de negócios para os bancos deinvestimento que se encarregariam de estruturar as emissõespara captação dos recursos junto aos investidores privados.(34) Do valor total do pacote, 17,5 bilhões de euros serãoaportados pela própria Irlanda e 67,5 bilhões de euros serãoconcedidas sob a forma empréstimo de três anos, com customédio e 5,8% ao ano. Do total, 10 bilhões de euros se destinarama capitalização imediata dos bancos irlandeses; 25 bilhões deeuros para constituição de fundo de contingência para o sistemabancário e 50 bilhões de euros para o financiamento das despesascorrentes do governo.(35) As medidas de austeridade da Irlanda incluíram: reduçãode 7% do quadro de pessoal do serviço público; aumento dosimpostos (redução de isenção do IR; novo imposto sobreimóveis), elevação da idade para aposentadoria e cortes debenefícios sociais.(36) Como o acordo de redução da dívida (haircut) soberana gregaprevê a adesão voluntária dos credores, o deságio de 50% nãoserá considerado um "evento de crédito" capaz de acionar osseguros dos CDS gregos. A soma de CDS para a Grécia édesconhecida, bem como a identidade das instituiçõesfinanceiras que venderam a proteção contra o default, o quetorna o seu risco incalculável.(37) No dia 19, a agência S&P rebaixou a classificação de longoprazo da dívida soberana da Itália de "A+" para "A", comperspectiva negativa, em razão das perspectivas de baixocrescimento e dificuldades políticas que limitam a capacidadedo governo italiano de responder à deterioração dos cenáriosmacroeconômicos externo e doméstico. A classificação da dívidasoberana de longo prazo da Itália pela agência Moody's, emobservação desde o mês de julho, cortou a nota, no dia 4 deoutubro, de "Aa2" para "A2", com uma perspectiva negativa,em razão das incertezas políticas e econômicas para atingir osobjetivos de consolidação fiscal do governo.(38) Em julho, a agência Moody's colocou em revisão o rating"Aa2" da Espanha para possível rebaixamento, citando oaumento da vulnerabilidade das finanças do governo às pressõesdo mercado financeiro. No início de outubro, a agência Fitchrebaixou a Espanha em dois graus, para "AA-", citando aintensificação da crise da zona do euro e o enfraquecimento docrescimento econômico. Uma semana depois, no dia 13 deoutubro, o rating soberano da Espanha sofreu novorebaixamento na escala de classificação de risco de crédito daagência S&P, caindo para "AA-", devido às perspectivasde fraco crescimento para o país e os desafios do setor privadoespanhol na busca de financiamento externo para rolar os altosníveis de dívida externa. Também foram rebaixadas asclassificações de risco de 10 bancos espanhóis, inclusive as dosdois maiores, Banco Santander e do Banco Bilbao VizcayaArgentaria S.A. (BBVA), cuja nota de crédito de longo prazopassou de "AA" para "AA-".(39) Os convered bonds são pacotes de hipotecas e outrosempréstimos garantidos por colateral.

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Dado Ruvic/Reuters

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O gato de DengXiaoping está cansado

Deng Xiaoping

Não importa se um gato é branco ou preto,ele é um bom gato quando pega o rato.

SXC

Reprodução

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"E m cinco anos, o regimecomunista terá desaparecido",afirma Michael Anti, semhesitação. Se ele tivesse de

indicar o começo do fim dessa ditadura, ele osituaria em 23 de julho de 2011. Naquela noite,um trem-bala de Pequim a Xangai descarrilouna estação de Wenhzou, matando 40passageiros e ferindo outras centenas. Ogoverno tentou abafar o caso ou minimizá-lo.Qualquer menção aoacidente na internet foicensurada e aqueles quefalavam dele viamdesaparecer dos monitoresas imagens e os comentáriosque tinham postado.Censura inútil. Uma horadepois da catástrofe, a Chinainteira sabia o que houverealmente graças ao Weibo.

Weibo, uma traduçãopara "microblog" e que, por causa daambivalência dos ideogramas chineses,significa também "tipoia". A China com tipoia.Criados nos telefones celulares, os microblogs,que não podem ultrapassar os 140 caracteres,se conectam entre cerca de 300 milhões dechineses. Eles eram apenas 60 milhões de 2010,o primeiro ano dessa versão local do Twitter. Ogoverno não consegue censurar o Weibo tãofacilmente quanto a internet, umacomunicação instantânea de textos e fotos.

Após o acidente de Wenhzou, o governonegou o acidente, depois minimizou sua

gravidade, depois anunciou que o serviçode trens iria recomeçar. Mas a verdadeestava lá, em todas as cabeças. Duas horasmais tarde, conta Michael Anti, o Partidoentregou as armas e a agência oficial denotícias, a Xinhua, admitiu defeitos domaterial de fabricação chinesa e suspendeuo serviço, que só voltou a funcionar bemdepois, a uma velocidade reduzida. "OPartido", comenta Michael Anti, "perdeu a

batalha da informação e ocontrole das mentes".

Para 80% dos chinesescom menos de 40 anos,segundo um estudo daAcademia de CiênciasSociais, órgão, portanto,subserviente ao Partido, oWeibo se tornou a únicafonte de informação sobre asatualidades chinesas einternacionais.

Evidentemente, no Weibo encontram-setambém as trapaças, os sites das celebridades,os boatos. Contudo os fatos verdadeirosprevalecem. Sem capacidade para controlaressa nova mídia, o governo tentadesajeitadamente concorrer com ela: asadministrações centrais e os governosprovinciais criam seus próprios microblogspara "conter os boatos" como se diz no Partido.

Michael Anti, que não tem 40 anos e cujomicroblog tem diariamente milhares deleitores, pertence à nova geração instruída ecosmopolita que encarna a nova China. Sua

Divulgação

Guy SormanEditor contribuinte

do City Journal, autor de"A economia não mente"

e outros livros

Tradução:Rodrigo Garcia

Liang

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Michael Anti: oregime comunista

começou a ruirapós o acidente

com o trem-bala.A censura foi

driblada peloWeibo.

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formação e suas relaçõesfamiliares lhepermitiram se unir àclasse dirigente, a dos"novos ricos" integradosao aparelho do Partido,para fazer carreira efortuna. Mas o Partidoperdeu essa classemédia, que foi durante30 anos a base política esocial de sualegitimidade. Agorapoucos se filiam e creemnele porque suasmentiras se tornaraminsuportáveis e porquesua rigidez o impede degovernar de outro modoque não seja pela coação."A sociedade mudou",afirma Michael Anti, "os chineses sãoinformados, a economia perde o fôlego, mas oPartido continua com seus rituais, suas regrasde sucessão, sua brutalidade, suaincapacidade de respeitar as minorias, de seadaptar a um contexto econômico emtransformação". Como essa esclerose fazparte de sua própria natureza, ele nãoconsegue evoluir e vai morrer. O que vaisubstituí-lo, ninguém sabe.

Nossa "Revolução das Peônias", afirma ofilósofo liberal Liu Junnin, assemelha-se às domundo árabe: Sabemos o que não queremosmais, porém estamos mal preparados paraassumir o poder porque o Partido destruiu asorganizações intermediárias e reduziu aosilêncio todos os líderes democráticos.

Isso também é característica dessarevolução Weibo, ela não tem estrutura, nãotem hierarquia, não tem organização. "Umanova geração nasceu", me disse Cui Weiping,professor de artes – vigiado de perto por terassinado a carta democrática escrita peloNobel de Paz Liu Xiaobo – uma "geração quese educou pela internet e pelo Weibo". Essageração é diferente da velha guarda dosdissidentes, os Wei Jinsheng, os Liu Xiaobo,que atacavam a ditadura diretamente, comgolpes de declarações democráticas no estilodas revoluções europeias soviéticas. A novageração evita o confronto que só abre ocaminho para a violência e para o fiasco, poiso Partido e o Exército dispõem de forçassuperiores. Essa geração Weibo inventa ummundo novo, sem líderes – porque elesdesconfiam dos líderes – e suas palavras deordem variam, em função das circunstâncias.Para além dessa anarquia deliberada, osprincípios comuns aparecem, ressaltados porLiu Junnin e Michael Anti. Deseja-se, peloWeibo, uma China descentralizada, compoderes locais autônomos e responsáveis,deseja-se votar neles; deseja-se uma Chinaconfederada onde os direitos das minorias(budistas, uiugures, taiwaneses e outras)serão respeitados.

O crescente encanto dos jovens chineseseducados pelo budismo e pelas religiõescristãs, protestantes sobretudo, contribuemcom essa esperança em uma China livre eplural: o Dalai Lama, um diabo para oPartido, é idolatrado no Weibo.

A força da verdade (o Satyagraha deMahatma Gandhi) será o suficiente paraderrubar o Partido Comunista Chinês? NaÍndia, a verdade foi o suficiente para expulsaros colonizadores ingleses porque no fundoeles mesmos compartilhavam os valorespropagados por Gandhi. De uma certamaneira, Gorbatchev também compartilhavaos valores ocidentais de Andrei Sakharov e deSoljenitsyne: essa consciência cruel daNomenklatura soviética contribuiu para suaqueda. No dia em que Gorbatchev ordenouque não se atirasse contra os manifestantesindependentistas da Letônia, a URSS ficoucondenada, porque o comunismo semviolência está destinado a desaparecer. NaChina, duvida-se do estado de ânimo dosapparatchiks comunistas. Mas, os dissidentesobservam, por qual motivo os dirigenteschineses enviam suas famílias aos EstadosUnidos para estudar e muitas vezes morar?Eles são chamados em Pequim de os "just in

Os jovens idolatramo Dalai Lama, líderespiritual do Tibete,no Weibo, a versãochinesa do Twitter.A crise na Europa

afetou o crescimentoda China e as

fábricas já nãoconseguem absorver

o fluxo detrabalhadores quesaem do campo.

Karen Bleier/AFP

AFP

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case": nunca se sabe. Os líderes não estãototalmente tranquilos sobre o futuro pessoaldeles na China. Gorbatchev não comprou,por precaução, uma casa na Califórnia, mas aNomenklatura chinesa sim.

O Weibo, até o momento, certamente não é osuficiente para derrubar uma máfia poderosa,de 60 milhões de apparatchiks que controlamo poder político e a economia, embora elestenham perdido a guerra da informação.

A verdadeira ameaça, segundo oeconomista Mao Yushi, de 85 anos,respeitado por todos, incluindo seusadversários, seria uma crise econômica. Ela épossível. O crescimento se desacelerou porcausa da relativa estagnação da demandamundial. Recuando de 10% para 8% decrescimento anual, a indústria chinesa nãoconsegue mais receber o fluxo detrabalhadores rurais que deixam os camposmiseráveis para trabalhar nas fábricas. Ossalários são pequenos, mas pelo menos estãomenos ameaçados pela fome e pelasdoenças. Para restaurar a taxa decrescimento, o regime comunista,

paradoxalmente, recorreu à panópliakeynesiana: a diminuição das taxas de jurosbancários e um aumento das obras públicas.

As leis da economia são aplicadasuniversalmente, mesmo na China. Algumasrodovias e aeroportos extras se mostraramuma solução provisória para o desemprego,sem melhorar nem os empregos duráveisnem os investimentos produtivos. Pior, aqueda nas taxas de juros agravou aespeculação imobiliária, salpicando oterritório com moradias e escritórios vazios,características atuais de todas as cidades daChina. Pelo terceiro ano consecutivo, ospreços dos imóveis caíram, o que arruína ospoupadores: Os imóveis são o mealheiro daclasse média chinesa que não tem outrosinvestimentos já que a moeda nacional não éconversível. Esse desastre imobiliário arruínatambém os governos das províncias, nosquais a venda de terrenos é a principal fontede renda e também meio de enriquecimentopara os apparatchiks. Os bancos locais quefinanciaram generosamente essas aventurasestão virtualmente quebrados. O governo

Christian Barthold/Image Source/Folhapress

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anunciou que o sistema bancário chinêsconseguiria sobreviver a uma queda de 40%do valor do imóvel. Segundo Mao Yushi, issose aproxima. "As classes médias chinesasrenunciaram, há duas gerações, à liberdade,mas se elas vierem, além disso, a perder suaseconomias, jamais vão perdoar o Partido!"

Os imóveis afundam e o poupadordesaparece; o mercado interior vai substituiruma demanda externa cambaleante? Essemito da força interior é um fantasma, bastanteevocado na China. O mercado interior, emseu estado atual, continua bem modesto, poisa renda média por habitante na China é deUS$ 4 mil por habitante, o centésimo lugar noranking mundial. Alguns milionáriospequineses não formam um mercado interiore eles, aliás, só consomem produtos de luxonão chineses. A saída definitiva seria ainovação. A China vai entrar no campo dosinovadores, como o Japão e a Coreia do Sul?Poucos indícios estão sendo vistos. Apirataria que é a norma nos setores de ponta(transporte, energia, biotecnologia,comunicações) substitui a inovação nacionale condena as empresas chinesas acontinuarem sendo as eternas copiadoras(isso já foi entendido no Japão e na Coreia doSul, onde a inovação se tornou originalidade).

Liu Junnin completa que, no momento, ascondições intelectuais não estão reunidas: Asciências sociais estão em um estado de grandedeterioração, o que, segundo Liu, cria umclima desfavorável à compreensão do mundoe à sua melhoria. Quanto às escolas deengenharia, cujo nome e a própria qualidadecausaram inveja ao mundo ocidental, seunível, afirma Liu, é só o suficiente para seradmitido a continuar os estudos superioresna América do Norte ou na Europa.Inovações decisivas, por enquanto, não estãosendo esperadas.

A China deveria mudar de modelo, abrircaminho para as pequenas empresasinovadoras, como no Japão, se desfazer dosgrandes conglomerados industriais públicosque continuam numerosos, poluentes ecaros? Ela deveria se interessar finalmenteao desenvolvimento da agricultura, àtransformação dos produtos alimentares, àeconomia da saúde? Para evitar o crash, sim.Em resposta aos estudantes deadministração pública na Universidade doPovo, eu propus que se aposentasse ofamoso gato de Deng Xiaoping.

Em 1979, Deng iniciou uma nova era,observando que não importava a cor do gato,

contanto que ele pegue o rato. Tendo sidoencerrado a época da ideologia maoísta e odireito ao enriquecimento proclamado, os"ricos" empresários foram encorajados econvidados a se filiar ao Partido Comunista.Esse gato fez seu trabalho: Tirou da pobrezacentenas de milhões de chineses, pôs a China nomapa do mundo, criou uma casta demilionários vermelhos e uma classe média quecompartilha os valores ocidentais. Esse gatopermitiu que os ocidentais baixassem os preçosde nossos brinquedos, roupas, computadores...tudo, de passagem, sacrificando alguns denossos empregos. Mas o gato de Deng estácansado: Pega menos ratos, não tem espíritocriativo, abandonou na miséria metade dapopulação chinesa que lhe parece improdutiva.Esse gato tem direto à aposentadoria.

Os estudantes aplaudiram e depois meperguntaram pelo que substituí-lo? Por umaeconomia livre, sem dúvida, na qual a moedaseria conversível, a propriedade intelectualrespeitada, os créditos concedidos sob oscritérios da eficiência econômica e não os doclientelismo político.

SXC

A sociedade mudou, os chinesessão informados, a economiaperde o fôlego, mas o Partidocontinua com seus rituais, sua

brutalidade, sua incapacidade derespeitar as minorias, de se

adaptar a um contextoeconômico em transformação. Ta

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Também é importante escutar, tanto naChina como em outros lugares, os que nãocompartilham de nossa visão de mundo.Zhao Tingyang, filósofo de tradiçãoconfucionista, tira do Weibo e da incertezaeconômica, conclusões opostas às minhas ouàs de Michael Anti, Cui Weiping ou LiuJunnin. Segundo ele, sendo os valores daChina radicalmente diferentes dos doOcidente, o governo da China jamais poderáser democrático nem liberal. Isso seria inútil econtraproducente. Por que, me perguntaZhao, se unir a uma democracia europeia ouaos Estados Unidos, incapazes de resolverum problema técnico tão simples quanto o dadívida? Sabe-se o que precisaria ser feito, masa democracia impede que se faça. Assim,seria preferível uma tecnocracia esclarecida,com um partido sob uma forma moderna dodespotismo esclarecido da tradição chinesa.Eu perguntei a Zhao quando o despotismoimperial chinês tinha sido realmenteesclarecido. "Sob a era das Três Dinastias, há2.500 anos." Isso pode parecer antigo, eleadmite, mas a experiência mostra que épossível, ao passo que os ocidentais não têm àdisposição nenhum modelo de referência quedefiniria um governo perfeito.

Além disso, de acordo com Zhao, o Weibo,ao fotografar a cada instante os desejos dopovo, tornaria a democracia mais inútil doque nunca: a tecnocracia agora sabe a

qualquer momento o que o povo quer. Nafilosofia chinesa (que Zhao identificarapidamente ao confucionismo, fazendo oimpasse com Lao Zi, o anarquista), aeficiência seria mais importante do que aliberdade e a liberdade não existiria em simesmo, mas só dentro de uma relação com ooutro. Por dedução, o melhor governopossível seria aquele que garantisse osinteresses concretos da comunidade e não aliberdade dos indivíduos. Graças ao Weiboesse melhor governo possível estaria maisacessível do que nunca. A China de amanhã,segundo Zhao: a aliança do confucionismocom o microblog.

A influência de Zhao Tingyang, medisseram, seria crescente. O suficiente parasalvar a Nomenklatura vermelha? Euduvido, mas a China surpreende ainda maisquando ela está inquieta. A um jornalista daChina Weekly, próximo ao Partido, que mefazia pergunta sobre as mudanças em seupaís, desde minha primeira visita em 1967,eu respondi: Qual China? A cada viagemdesde então eu encontro uma nova China.Apesar de suas imperfeições, tirania,pobreza, corrupção, cada uma se revela comcerteza preferível a anterior. Mas a China sóavançava depois de um século, de umarevolução a outra. Espera-se que, a próximarevolução, a primeira vez em 40 anos, possaser democrática.

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Após a morte de Osama BinLaden no ano passado, osEstados Unidos anuncia-ram agora sua nova estra-

tégia de defesa: o combate ao terroris-mo cai para segundo plano e entra namira a China, que além de invadir co-mercialmente o mundo com seus pro-dutos, também vem investindo pesa-damente em armamentos e no desen-volvimento de tecnologias bélicas.Nesta entrevista para o Digesto Eco-nô mi co, Gunther Rudzit, professor ecoordenador dos cursos de graduaçãoe pós-graduação em Relações Interna-cionais da Faculdade de Economia daFaap, fala sobre essa nova estratégiade defesa norte-americana, da corridaarmamentista da China e sobre a guer-ra do futuro, com aviões e tanques nãotripulados e ataques cibernéticos.Rudzit é Doutor em Ciência Políticapela Universidade de São Paulo, comtema na área de Segurança Internacio-nal, Mestre em National Security pela Georgetown University eMestre em Geografia Humana na área de Geopolítica pela Uni-versidade de São Paulo.

Digesto Econômico - No início de janeiro, o presidente norte-americano, Barack Obama, anunciou a nova estratégia de defesados Estados Unidos, que também inclui cortes no orçamentomilitar de quase 500 bilhões de dólares em dez anos. O que mudouna estratégia?

Gunther Rudzit - Odocumentodivulgadomostracomoelesvão articular suas forças armadas, que tipo de equipamento vãoutilizar para atingir os objetivos que foram estabelecidos na es-tratégia de segurança nacional. Isso é importante, porque noBrasil, por exemplo, há uma confusão entre defesa e segurançanacionais. No artigo que eu escrevi para o Digesto Econômico

na série especial Propostas para o Pró-ximo Presidente (nº 460 de julho de2010), eu chamo a atenção para isso. Anossa política de defesa nacional nãomostra a estrutura militar que o Paísvai ter. Ao ler o documento (de estra-tégia de defesa nacional) elaboradopelo governo brasileiro, se entendeque há o desejo de comprar produtosfeitos aqui com transferência de tec-nologia, mas ficamos sem saber qual aestrutura militar que o Brasil quer ter;quais são as situações que o governovê como sendo necessárias o uso daforça militar. No documento norte-americano isso é explícito.

Isso significa que não temos umapolítica de defesa?

Nós não temos uma política de de-fesa como ela é entendida no mundodesenvolvido. A nossa política falade objetivos de defesa, mas tambémde objetivos que são alcançados por

outros instrumentos do governo, como por exemplo, garantira integridade territorial e garantir a unidade nacional. Em umseminário recente eu coloquei esta questão: como se garante aunidade nacional? O Brasil tem uma unidade como nação? Épossível fazer isso com o Exército, com a Marinha, a Aeronáu-tica? A resposta é não. Isso é feito com educação, saúde, etc. Asociedade deve olhar para Brasília e se reconhecer naquele go-verno. Esta preocupação com unidade nacional seria impor-tante para países com movimentos separatistas, o que eu nãovejo no Brasil. Os movimentos separatistas do Rio Grande doSul acabaram há muito tempo. Nem na Amazônia isso existe.Lá há duas instituições com forte atuação: o Exército e a Funai.O Exército brasileiro tem uma das principais forças de selva domundo, pois os soldados são indígenas. Com isso, quero dizerque existe um foco errado do que deve ser uma política de de-

Novidades nofront: o alvoagora é a China Carlos Ossamu e

José Maria dos Santos

Luiz Prado/LUZ

Rudzit: o foco agora é a Ásia/Pacífico.

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fesa. No documento sobre a nova estratégica de defesa dos Es-tados Unidos você só encontra o que vai ser feito na estruturade defesa militar norte-americana.

O que lhe chamou atenção nesse documento?Lá eles dizem que, como uma superpotência, os EUA têm

interesses em todas as regiões do planeta, já que fazem comér-cio com o mundo todo e há empresas e cidadãos americanosem outros países. O documento traz por ordem quais são as re-giões de interesse. No topo está a Ásia-Pacífico. Isso mostra umdeslocamento do Oriente Médio/Sul da Ásia, que era o prin-cipal foco do governo George W. Bush. É a mudança do foco decombate ao terror como principal ameaça aos Estados Unidos,para a tradicional visão de que as principais ameaças estão li-gadas a Estados. O terrorismo não deixou de ser uma ameaça,o documento deixa isso claro, mas não é isso que vai moldar aestrutura militar americana. Quem prestar atenção vai notarque estamos voltando a janeiro de 2001. Quando o presidenteBush assumiu o governo dos EUA, ele dizia que a China era aprincipal concorrente dos americanos – não dizia inimiga.

Em sua opinião, esse deslocamento de foco para a Ásia tem a vercom a morte de Osama Bin Laden? Se ele ainda estivesse vivo, essanova estratégia poderia ser diferente?

Sim, acredito nisso. Eu tive a sorte de estar em Washingtonno dia 1º de maio de 2011 a convite do Departamento de Estadoamericano, no dia em que Bin Laden foi morto. Vi a festa que osamericanos fizeram. No elevador do hotel, um senhor que eununca tinha visto perguntou se eu estava mais feliz naquele dia– um americano perguntar isso para uma pessoa que ele nuncaviu antes, mostra o seu grau de euforia. Para eles, o capítulo foiencerrado, virou-se a página, ou como eu vi muito nos jornaisde lá: a justiça foi feita. É bem o espírito americano, parece coisado velho oeste.

O senhor está dizendo que 11 de setembro foi um episódio quedesviou o foco de uma política traçada em 2001, favorecendomuito a China, já que a atenção estava em outra direção. Em suaopinião, se não houvesse o atentado às torres gêmeas, isso

influenciaria a invasão de produtos chineses no mundo, incluindoaqui no Brasil?

A invasão comercial se daria de qualquer jeito. A China en-trou na OMC (Organização Mundial do Comércio) em novem-bro de 2001. Ela aceitou as regras da OMC, mas a OMC tambémaceitou as regras da China, baseada em uma mão de obra quaseescrava – 26 centavos de dólar a hora em média, o que significaque tinha gente ganhando menos, enquanto que a média dotrabalhador americano era de 60 dólares a hora. Não é à toa queas empresas saíram dos EUA e foram para a China, que cresceudevido a isso. Apesar do combate ao terrorismo que o governoBush sempre colocou como foco principal, o olho na Chinasempre esteve presente. A estrutura militar americana é divi-dida em comandos regionais no mundo: o Comando Sul tomaconta da fronteira com o México até a Terra do Fogo (sul da Ar-gentina); tem o Comando Europeu, junto com a África; o Co-mando da Ásia, que cobre todo o continente; e o Comando doPacífico. Depois de 11 de setembro, eles criaram o Comando daAmérica do Norte – os americanos perceberam que deviam sepreparar para agir internamente, coisa que a constituição proi-bia, mas eles tiveram de criar uma estrutura de comando paraagir em território americano. Então, o foco ficou com o Coman-do da Ásia, que atua na Ásia Central – os oficiais dessa área pas-saram a ser os mais prestigiados. Cabia a eles combater o ter-rorismo no Afeganistão, Iraque e naquela região como um to-do, incluindo o Iêmen, onde vários integrantes da Al-Qaedaforam mortos, incluindo um americano que se juntou a estegrupo terrorista. Este comando teve muito prestígio. O Co-mando do Pacífico estava em segundo lugar, seguido do Co-mando da América do Norte, Europa, depois vinha a Américado Sul e África. Com a desestruturação da Al-Qaeda, a mortede Bin Laden e esse sentimento que se virou a página, o focomudou. Onde estão as ameaças aos principais interesses ame-ricanos? Na região asiática. Por quê? Aí aparece outro lado daarmadilha que o governo Bush caiu: aumentar excessivamen-te os gastos militares, fazer cortes de impostos e ter de reanimara economia. Isso tudo só pode resultar em déficit orçamentá-rio, pois a conta não fecha. Os gastos ficaram excessivos e elesagora têm de se adequar ao orçamento. Em 2010, Michael Man-

Com a morte de Bin Laden, o capítulo foi encerrado, virou-se a página. O foco agora já não é o combate ao terrorismo.

Russell Boyce/Reuters Nicholas A. Hernandez/AFP

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delbaum escreveu o livro "The Frugal Superpower" (A Super-potência Frugal), chamando a atenção para isso. Existe umageração do "baby boomers" (que nasceram após a SegundaGuerra Mundial, de 1946 a 1964) que está se aposentando. Es-sas obrigações o governo americano vai ter de pagar. Os tra-balhadores podem adiar por alguns anos, mas em algum mo-mento eles vão se aposentar. E existe o aumento dos gastos mi-litares e o orçamento ficou menor. Em algum lugar eles vão terde cortar. Na aposentadoria não pode ser, então será nos gastosmilitares, que eles chamam de política externa. Se discute issodesde 2010. O governo de George W. Bush deixou essa herançamaldita. O Obama está tendo de arrumar a casa, priorizar osobjetivos e os instrumentos, não dá mais para fazer tudo comoeles sempre fizeram.

O povo americano já não está cansado de tantas guerras?Com esse novo quadro – fim do Bin Laden, enfraquecimento

da Al-Qaeda, a Europa despencando na importância desde ofim da Guerra Fria, sobraram os interesses comerciais e estra-tégicos no leste e sul da Ásia. Com a diminuição dos gastos, épreciso se readequar. Depois de dez anos de guerra no Afega-nistão, o povo americano não vai mais aceitar outra guerra.Afeganistão era uma guerra que eles não tinham como evitar,pois Bin Laden e a Al-Qaeda arquitetaram o ataque de lá. O Ira-que, como o próprio Obama colocou, foi uma guerra por op-ção, uma opção errada – não tinha de ter entrado lá, desviou,inclusive, recursos do Afeganistão. Os americanos já saíram doIraque e em 2014, ou até antes, eles vão sair do Afeganistão. Ou-tra guerra terrestre o povo americano não vai aceitar. Eles vãodiminuir o exército e reforçar a marinha, que sempre foi a es-pinha dorsal do poder americano. Desde a 2ª Guerra, o poderficou para quem tem o domínio aéreo. Antes, as guerras erambidimensionais, aconteciam em terra. Com o avião, se torna-ram tridimensionais. Quem tem o domínio aéreo tem liberda-de de ação e opções. Os americanos aprenderam isso na 2ªGuerra Mundial. O famoso Dia D na Normandia só foi possíveldepois que eles acabaram com a Luftwaffe, a força aérea alemã.Com isso eles puderam fazer o que bem entender. Não teveconfronto aéreo na Normandia. Os americanos conseguiram

também acabar com a força aérea japonesa e seus porta-aviões,e foram avançando ilha a ilha. A força aérea é fundamental emqualquer guerra, por isso a importância dos porta-aviões. Osamericanos terminaram a 2ª Guerra Mundial com 15 grandesporta-aviões, que existem até hoje, garantindo a projeção dopoder norte-americano.

Quinze porta-aviões são suficientes para eles cobrirem omundo todo?

Sim, atualmente são. Os jornais divulgaram que já são doisporta-aviões americanos no Golfo Pérsico por causa da ten-são com o Irã. Olhando a foto, eu contei no convés de cada um32 caças, sem contar aviões de reabastecimentos e alerta aéreoantecipado. Ainda pode ser que na parte de baixo haja maisaviões. A Força Aérea divulga essas fotos justamente paramostrar o seu poderio. Um porta-aviões desses tem uma ca-pacidade militar maior que 80% das forças aéreas do mundo.Com isso, eles têm a capacidade de projetar o seu poder nomundo. E o porta-aviões não vai sozinho, mas com um grupode batalha. São 10 a 15 outros navios e submarinos, que ga-rantem a sua proteção. Um porta-aviões é um alvo estratégi-co. Foi um desses que os argentinos tentaram afundar dos in-gleses na Guerra das Malvinas, mas não conseguiram. Pegarum desses vira manchete em todos os jornais. Um porta-aviões tem capacidade de atacar num raio de 300 km, ou umdiâmetro de 600 km. Por isso, na crise do Estreito de Taiwan,em 1998, quando o primeiro presidente eleito de Taiwan pe-diu visto de entrada para fazer palestras em duas universi-dades na Califórnia, e foi concedido pelo governo americano,Pequim elevou o tom, dizendo que era o primeiro passo paraos americanos reconhecerem a independência de Taiwan. AChina então realizou o maior exercício militar da sua história,com munição real, no Estreito de Taiwan. O presidente BillClinton reuniu dois desses grupos de batalhas, a maior forçaaero-naval desde a Guerra da Coreia, e mandou passar peloEstreito também. Foi um claro aviso de que, se os chineses ten-tarem retomar Taiwan pela força, os EUA vão intervir. O Es-treito de Taiwan tem 300 km de largura. Imagine dois dessesporta-aviões passando lá.

Porta-aviões USS Abraham Lincoln, que atualmente se encontra no Golfo Pérsico por causa da tensão entre EUA e Irã.

AFP Alaor Filho/AE

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Nessa época, a China ainda não possuía porta-aviões, eles estãotestando o seu agora e desejam ter outros.

Naquela época eles ainda não tinham. Os chineses aprende-ram com essa crise. Eles não sabiam onde esses porta-aviões ame-ricanos estavam, ficaram à mercê. O que eles fizeram? Desde en-tão, os chineses vêm investindo muito em tecnologia espacial.Eles agora têm satélites. Todo esse programa espacial chinês, comestação espacial, vem daí. Eles viram a necessidade de ter essecontrole do que está acontecendo. Eles sabem que o único em-pecilho que pode atrapalhar os interesses chineses na região sãoos Estados Unidos. Os chineses estão desenvolvendo uma armaque é o terror para os militares americanos: um míssil balísticoantinavio, apelidado de Matador de Porta-aviões, que ainda estáem desenvolvimento. Eles lançam um míssil que terá a capaci-dade, na reentrada da atmosfera, de procurar o porta-aviões e iratrás. Como se para uma arma dessas? É o programa antimísseisGuerra nas Estrelas que os americanos estão tentando desenvol-ver. Já existe essa corrida armamentista na região, pois os chine-ses perceberam que não podem deixar os americanos chegaremperto do litoral. Se isso ocorrer, eles não conseguem fazer maisnada. Os chineses começaram também a desenvolver submari-nos nucleares de ataque, não só balísticos, mas que vão caçar ou-tros submarinos, para tirar os inimigos de suas águas. Ter o pró-prio porta-aviões era outra parte que faltava, pois ele significa aprojeção do poder. Com ele, os chineses poderão começar a sairde seu litoral – a marinha chinesa ainda é de litoral.

É difícil construir um porta-aviões?Sim, pois ele requer diversas competências. Lançar e captu-

rar um avião em pleno mar, num espaço aproximado de umcampo de futebol, com o navio chacoalhando, é uma habilida-de muito difícil. Mas tecnologicamente, talvez mais difícil sejaconstruir um submarino. Ele depende de uma série de válvu-las, que enchem e expelem água do mar, que é corrosiva. Sãopoucos os países que dominam essa tecnologia e o Brasil é umdeles. A Marinha brasileira pegou um submarino argentino,trouxe para o Rio de Janeiro, dividiu em três e recuperou tudopor dentro. Fazer um submarino submergir e emergir não épouca coisa. A China vem desenvolvendo isso faz tempo.

Como os EUA estão vivendo essa nova realidade no campo militar?A nova estratégia divulgada dá ênfase a esse novo campo de

batalha. É uma nova realidade, em que não faz sentido gastarem tudo indiscriminadamente, como eles fizeram na GuerraFria. Isso não existe mais. Eles tiveram de dar prioridades, fi-zeram cortes fundamentalmente no Exército e estão investindomuito em tecnologia, até para não perder mais pilotos, como é ocaso dos aviões não tripulados. Perder um piloto é muito caro.Quando ele é capturado, é a pior coisa: o inimigo usa aquilo co-mo propaganda. Se ele morre, o inimigo também usa isso, maso governo perde eleitores e um investimento gigantesco. É maiscaro um piloto do que um avião. Hoje, se calcula que 40% dafrota de aviões americanos já são não tripulados. As guerras noAfeganistão e Iraque fizeram isso. Boa parte desses aviões ficacirculando e os pilotos estão em Nebrasca, Wyoming, no no-roeste dos EUA. São jovens, que estão sentados lá em frente auma tela de computador – até o joystick eles estão mudando,pois a nova geração de pilotos está acostumada com aqueles co-mandos de videogames. E essas novas gerações de aviões nãotripulados já podem vir armados. Por enquanto, são aviões depatrulha, pois não foram desenhados para combates aéreos. Osamericanos estão desenvolvendo aviões não tripulados que te-nham a capacidade de combate aéreo. Esses aviões seriam con-trolados por um piloto em um avião, que pode não entrar di-retamente no combate. Há uma discussão nos EUA sobre isso,pois, se não irá mais morrer americanos em combate, a tendên-cia é de o país entrar cada vez mais em guerra.

A cultura americana é militarizada, não é mesmo?Sim. Quem já viveu algum tempo nos EUA sabe que, em

qualquer festinha tem sempre um militar presente. É um paísque, depois da 2ª Guerra Mundial, tem a tradição de fazer in-tervenções militares no mundo para defender os seus interes-ses. O grande problema sempre foi a morte de soldados. Se nãotiver isso, essa barreira política tende a cair. Acadêmicos de éti-ca e política estão começando a discutir isso. Além de aviões,haverá tanques de guerra controlados a distância. Não se tratade um futuro tão longe, mas daqui a 20 anos. A atual estratégiamilitar vai nessa direção.

EUA têm investido em aviões não tripulados para evitar morte de soldados.

Johannes Eisele/AFP

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Em apenas algumas décadas, a China saiu de uma situaçãoeconômica precária para a segunda maior economia do mundo,pulando etapas. Militarmente, isso também vai ocorrer?

Eles estão dando saltos. Desenvolveram submarinos pró-prios. Antes, eles compravam dos russos, desmontavam e me-lhoravam. Hoje, eles estão desenhando os próprios submarinosnucleares de ataques e lançadores de mísseis balísticos. A TV es-tatal chinesa mostrou testes do míssil balístico antinavio paradestruir porta-aviões, é um orgulho para eles. A tecnologia es-pacial está sendo usada para programas militares. Muitos ana-listas americanos afirmam que o orçamento oficial militar chinêsnão é de 80 bilhões de dólares, chegaria a 160 bilhões de dólares,pois há vários outros programas, que recebem a chancela de civil,como o programa espacial, que seriam de ciência e tecnologia,mas no fundo têm uso militar. Um caso curioso é o da última vi-sita do agora ex-secretário de defesa Robert Gates a Pequim. Eleestava lá para ressuscitar as relações militares entre os dois países.Na pista do aeroporto, os chineses deixaram um caça invisível aradares que eles desenvolveram (com as mesmas característicasdo caça americano F-22 Raptor) para todos fotografarem. Os chi-neses estão começando a focar em tecnologia. Eles sabem que nãoserão os 3 milhões de homens do Exército de Libertação Popularda China que farão a diferença na guerra do futuro, mas a tec-nologia. Tanto que a economia deles começa a mudar. Eles nãoquerem somente ser mão de obra barata, eles começam a investirem tecnologia. Isso casa com os interesses militares.

Em quanto tempo os chineses poderiam equiparar sua força militarao dos americanos?

Isso é muito difícil de prever. O grande medo dos americanosé que outro país, como a China, consiga o que eles chamam de"breaking through", uma descoberta que proporcione um grandesalto tecnológico. Esse receio dos americanos serve de justifica-tiva para que eles gastem cada vez mais em tecnologia. Há umtempo atrás, a China conseguiu derrubar um satélite deles mes-mo, que estava inoperante, por meio de um míssil. A razão é sim-ples. Um avião não tripulado é comandado via satélite. Esse é o"calcanhar de aquiles" americano. Eles dependem da rede Inter-net transmitida por satélite. Bem ao estilo Sun Tzu (autor de A

Arte da Guerra), eles se preparam, não para uma guerra frontal,mas indireta, cortando as comunicações americanas.

Isso também inclui a ciberguerra, a guerra eletrônica?Toda série de ataques de hackers aos computadores do go-

verno americano, e também de empresas americanas, é frutoda guerra cibernética que a China vem travando, pois eles sa-bem que é esse o ponto fraco dos EUA. Alguns ataques são dehackers civis, protestando contra alguma atitude do governo,mas muitos, principalmente ataques ao Departamento de De-fesa, de Estado, são sim dessa guerra cibernética que já existe.Na viagem que fiz em maio do ano passado aos EUA, eu per-guntei a um professor americano de segurança nacional quaiseram as maiores ameaças aos EUA. Ele disse que, em primeirolugar, era a guerra cibernética, pois o país não está preparado ea sociedade depende disso. A China vem se preparando paraesse outro tipo de guerra.

Os americanos inventaram o computador, o microprocessador, aInternet. Não soa estranho eles não estarem preparados para umaguerra cibernética?

Eles se preparam para utilizar isso a seu favor. Eles sabem hámuito tempo que a comunicação é fundamental. Forças arma-das só existem como tal se tem o que eles chamam de C3I - Con-trole, Comando, Comunicação e Informação. No mundo ci-bernético de hoje isso só funciona nas forças armadas ameri-canas por meio da Internet. Todo soldado americano tem hojeuma espécie de iPad na mão. O soldado do futuro que eles pla-nejam vai carregar uma câmera e ter um visor nos olhos. O queele está vendo será transmitido para um comandante que estáem Washington. Ao mesmo tempo, ele vai receber informa-ções em sua tela do que está acontecendo ao seu redor.

O senhor acredita que há condições hoje de ocorrer uma novaGuerra Fria? E dentro do atual contexto, como ficam as armasn u c l e a re s ?

Uma Guerra Fria nos moldes que ocorreu não deve acontecer,pois na época havia dois blocos muito claros: um capitalista de-mocrático e outro socialista comunista, ou seja, americanos e so-

A China já desenvolveu seu caça invisível a radares.

Reuters

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viéticos. Dificilmente haverá isso hoje no mundo. Por mais que ocapitalismo de Estado esteja crescendo em vários países, não éum bloco fechado como era o soviético. Está muito mais difuso,mas uma rivalidade entre EUA e China, isso está claro. As armasnucleares são uma grande discussão hoje nos EUA. Qual é o ta-manho do arsenal necessário para uma dissuasão nuclear? Ummodelo tradicional que ainda prevalece diz acima de mil ogivas.Se há mil de um lado e mil do outro, se um dos lados conseguirpegar o outro desprevenido e destruir 2/3 do arsenal, ou seja, tu-do que está em terra e só sobrassem os submarinos, abaixo de milogivas seria insuficiente para contra-atacar. Portanto, acima demil iria garantir que nenhuma das partes começasse uma guerra.Mas isso também começa a ser questionado. Em minha últimavisita aos EUA eu ouvi de alguns professores civis que 200 a 300ogivas já seriam suficientes. Em minha opinião, ainda é muito.Uma única bomba de hidrogênio acabaria com a cidade de SãoPaulo inteira. Em apenas um milissegundos mataria milhões depessoas. Há outros que dizem que, quanto mais, melhor. OlheÍndia e Paquistão. O medo da destruição é tão grande que os doisacabam não entrando em guerra. Por isso, ter um programa glo-bal de contenção, impedindo que outros países tenham armasnucleares, é tão importante. Isso inclui hoje a questão do Irã, coisaque muita gente em Brasília ainda não entendeu. O Irã é uma dasquestões centrais para o mundo, não só para os EUA, tanto queos europeus aprovaram o embargo econômico.

A questão do Irã pode mudar a estratégia de defesa dos EUA?No documento sobre a nova estratégia militar americana, o

Oriente Médio aparece em segundo lugar como foco. Não éque deixou de ter importância, continua tendo, mas não tantoquanto na guerra ao terror do governo Bush. Eles deixam claroisso por causa das ameaças iranianas – a nuclear e a de fechar oEstreito de Ormuz, por onde passam 40% do petróleo do mun-do. O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, já disseque, se eles forem atacados, será pouco se o preço do barril depetróleo subir para 200 dólares.

Como a nova estratégia militar americana atinge o Brics, emparticular o Brasil?

O soldado do futuro estará conectado via satélite.

É importante esclarecer que o Brics nasceu de uma avaliaçãode um banco de investimentos, o Goldman Sachs em 2001, emque se previa quais seriam as maiores economias do mundo. Osquatro países (Brasil, Rússia, Índia e China), depois a África doSul, formaram depois um bloco político, mas não existe unidadeentre esses países. Veja uma questão que é cara ao Brasil, a docâmbio. Você pode manipular o câmbio? O Brasil, com o minis-tro Mantega, diz que não. Mas pergunta isso a Pequim, quemantém o câmbio deles mais barato que o dólar. Agora, pareceque até o ministro Mantega está acordando, o problema não sãoos Estados Unidos, é a China que mantém o câmbio artificial-mente barato. Qualquer que seja a questão, seja câmbio, libera-lização comercial, segurança nacional, cada um fala uma coisa,não há unidade entre os Brics. O Brasil precisa ver quais são osnossos reais interesses e defendê-los no exterior, seja pelas viasdiplomáticas, econômicas e, se preciso for, militarmente.

Divulgação Divulgação

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Existe uma discussão ampla e profunda de quais são osinteresses do Brasil?

Ainda não, mas começa a ter. O Brasil só está há 20 anos nestadiscussão de internacionalização – até o governo Collor, o Bra-sil era um dos países mais fechados do mundo. Só depois nogoverno FHC, com o "exportar ou morrer" (frase de efeito quedisse em 2001), que se começou a discutir sobre competitivi-dade, interesses comerciais, Alca, Rodada Doha etc.

O Brasil tem recursos para investir em um bom sistema de defesa?Sim, tem. Basta pegar qualquer instituto internacional e ver

os gastos do Brasil nesta área. Não vamos olhar a liga principal,com Estados Unidos e China, mas uma intermediária em ascen-são, como a Índia, que gasta por ano não muito mais que o Brasil.Um dos maiores problemas que temos, que é sempre muito de-licado, é que gastamos em torno de 70% do orçamento com folhade pagamento. Sobra pouco para manutenção, e só com gastosextra do orçamento se compra alguma coisa. Desses 70%, 54%são de aposentadoria. Isso é muito complicado para os militares.Foram criadas leis que beneficiaram várias gerações e que nãoexistem em nenhum lugar no mundo, seja para civil ou militar,como se aposentar e ganhar mais – o Brasil fazia isso até 2002.Fora as famosas pensões para filhas de militares, que também jácomeçou a ser mexido. O orçamento brasileiro fica entre 16 e 18bilhões de dólares, o que nos deixa no patamar da Índia.

O Brasil tem fama de ser um país pacífico...O Itamaraty adora repetir isso, de que somos o único a ter

fronteiras com dez países e estarmos há mais de 140 anos semguerra. Mas isso não significa que vamos ter mais dez anosde paz. Em 1980, alguém imaginava na Inglaterra que a Ar-gentina iria atacá-los? O povo brasileiro precisa ter a clarezade que o Brasil tem os seus interesses, e neste mundo cadavez mais instável, é preciso ter o seu seguro como nação, quese chama forças armadas.

Fala-se muito na rivalidade com a Argentina, mas aVenezuela parece ser uma ameaça maior, por causa do petróleo.O senhor concorda?

A nossa relação militar com a Argentina é muito melhorque a política e mais ainda que a econômica. Existe uma in-teração muito forte. E militarmente, a Argentina ficou paratrás. Na região, há uma série e circunstância que podem afe-tar os interesses brasileiros, como por exemplo, uma deses-tabilização interna da Bolívia. O governo venezuelano dei-xaria Evo Morales ser derrubado do poder, mesmo por umarevolta popular? Se a Venezuela tentar alguma intervenção,só tem um jeito de levar tropas para lá, que já existem: pelo ar,pela Amazônia brasileira. Como o governo brasileiro reagi-ria? Este é um cenário extremo que muitos vão dizer quenunca vai acontecer, mas não é implausível, ao contrário,pois a situação na Bolívia está ficando cada vez mais com-plicada. Muita gente esquece aqueles aviões líbios, que noinício dos anos 80 estavam indo para a América Central epousaram na Amazônia cheia de armas militares. E se acon-tece isso com um avião venezuelano?

Quando se fala em riquezas naturais, lembra-se muito daAmazônia, mas temos agora o petróleo do pré-sal.

Muito bem lembrado. Uma das justificativas de todos osgastos com submarinos e aviões é defender o pré-sal – o ex-pre-sidente Lula adorava falar isso. Olha a dificuldade da Petro-bras em explorar o pré-sal, utilizando o litoral brasileiro comobase. Que empresa ou governo teria capacidade de fazer issosem um território do lado como base? Não existe. Um segundoargumento que eu uso: veja a Quarta Frota dos Estados Unidos(divisão da marinha americana responsável pelo AtlânticoSul). De todos os países que os EUA importam petróleo, em ter-ceiro lugar está a Venezuela. Quando se passa a ser um forne-cedor dos EUA, eles passam a te defender, pois querem um flu-xo constante, não pode faltar como em 1973. Eles compram,vendem, arrecadam imposto, geram emprego, é isso que o go-verno americano quer. Por outro lado, pelo o que eu tenho vis-to, os americanos querem acabar com a dependência do petró-leo – meio de transporte baseado em petróleo está com os diascontados lá. Eles estão indo para carros híbrido, elétrico ou hi-drogênio, não se sabe qual será. Como foi até hoje, base única,só gasolina, não será mais.

O Brasil é um dos poucos países a dominar a tecnologia de submarinos.

Fábio Motta/AE

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Em meados de 2010, pesquisadores descobriram umvírus eletrônico altamente sofisticado e destrutivo,que de jeito algum foi criado por um jovem nerd nocomputador de seu quarto. Tudo indica que foi finan-

ciado por governos. Batizado de Stuxnet, este vírus não pre-judica computadores comuns. Ele foi especialmente desenvol-vido para atacar sistemas industriais que utilizam CLPs (Con-troladores Lógicos Programáveis) da Siemens com sistemaoperacional Scada. São esses CLPs que controlam as centrífu-gas de enriquecimento de urânio do Irã e de outros países. De-pois de infectar as máquinas, o vírus esconde suas ações – tudoparece normal, mas as centrífugas passam a operar em uma ve-locidade extremamente alta, danificando os equipamentos. Ogoverno iraniano chegou a admitir que o Stuxnet era uma dasrazões para o atraso sem seu programa nuclear, ao mesmo tem-po em que acusava os Estados Unidos e Israel de terem desen-volvido o vírus eletrônico para sabotar suas instalações.

Em sua edição de 15 de janeiro de 2011, o jornal The New YorkTimes publicou uma matéria assinada por William J. Broad,John Markoff e David E. Sanger, em que procurava explicar co-mo os Estados Unidos e Israel desenvolveram o Stuxnet e comofoi feito o ataque às instalações iranianas de Natanz. Segundo ojornal, este foi o vírus eletrônico mais sofisticado já colocado em

Reuters

ação, uma verdadeira arma cibernética, e que há evidências deque foi o principal responsável pelo retardamento do ritmo dedesenvolvimento nuclear do Irã. As fontes do jornal afirmamque a praga fez as centrífugas girarem sem controle, provocan-do rachaduras, e que um quinto delas foram destruídas.

Os autores da matéria dizem ter ouvido especialistas militaresfamiliarizados com este tipo de operação. Segundo eles, o vírusfoi desenvolvido em Israel, no complexo de Dimona, no desertode Negev, famoso por abrigar o programa nuclear israelense,com várias fábricas de enriquecimento urânio. As centrífugasque lá operaram são as mesmas usadas pelo Irã nas instalaçõesde Natanz. "Para verificar se o vírus é eficiente, você tem que co-nhecer as máquinas", disse um especialista americano em inte-ligência nuclear. "A razão pela qual o vírus tem sido eficaz é queos israelenses fizeram estes testes." Segundo o jornal, para cien-tistas da computação, especialistas de enriquecimento nuclear eex-funcionários de governo ouvidos, não há dúvidas de que oStuxnet foi um projeto conjunto entre os governos americano eisraelense, com alguma ajuda, voluntária ou não, de britânicos ealemães, já que a Siemens é uma empresa alemã.

Como as centrífugas não estão conectadas à internet, a con-taminação utilizou uma estratégia arriscada e com graves efei-tos colaterais: o vírus foi disseminado para centenas de milha-

res de computadores conectados à inter-net, principalmente no Irã, até que algumfuncionário da usina conectasse um pendrive ou notebook à rede interna, con-cluindo a infecção. Porém, o Stuxnet tam-bém afetou máquinas nos Estados Uni-dos, Indonésia, Austrália, Inglaterra, Pa-quistão e Malásia. Uma outra ameaça empotencial é que alguém agora pode teracesso ao vírus e ao seus códigos, estudá-lo e modificá-lo, criando uma nova versão.Há sites na internet em que é possível fazero download do vírus. Essa é uma práticacomum no mundo cibernético: quandoum vírus fica famoso, logo em seguidasurgem as suas variantes. (C.O.)

Instalações nucleares iranianas de Natanz, alvo do vírus Stuxnet

O presidenteiranianoMahmoudAhmadinejadvisita asinstalações deNatanz, onde oIrã estariadesenvolvendoarmasnucleares

AFP

A guerra ciber néticajá

começou

A guerra ciber néticajá

começou

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56 DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2012

Um barãoque valeumilhõesCarlos Ossamu eJosé Maria dos Santos

O s mais antigos devem selembrar da sua efígie im-pressa na nota de cinco cru-zeiros, lançada em 1942,

quando Getúlio Vargas trocou a moeda réispelo cruzeiro. Outros, já não tão velhos, devemse lembrar do vasto bigode estampado na cédulade mil cruzeiros, que começou circular em 1978,Desta vez, por representar valor tão alto, seu títulonobiliárquico – barão – passou a significar o top dodinheiro. É possível que, se não fossem tais aparições,o Barão do Rio Branco, aliás, José Maria da Silva Pa-ranhos Júnior (1845-1912) seria menos conhecido entreos brasileiros. No entanto, a História do País ensina quea nação lhe deveria tributar mais reconheci-mento, pois lhe deve a preservação do territó-rio e o alargamento de suas fronteiras dilatadas.Essas evocações vêm a propósito do seu cente-nário de morte, transcorrido em 10 de fevereiropassado, que passou praticamente em branco. Éverdade que seu nome está inscrito no livro dosheróis, guardado no Panteão da Pátria, em Brasí-lia. Mas quem sabe disso, além de historiadores ediplomatas? O embaixador Rubens Ricúpero, 74anos, é um desses gatos pingados. Acresce que, porser embaixador, sabe valorizar com maior proprie-dade os extraordinários feitos diplomáticos do barão,conforme atesta na entrevista que se segue.

Mas os seus contemporâneos souberam valorizá-la em vi-da. A cada vitória territorial nos tribunais internacionais em fa-vor do Brasil era recebido como herói no Rio de Janeiro. Nãopor acaso, quando faleceu, o jornal "A Noite" escancarou amanchete que pretendia resumir o sentimento nacional. "Amorte do Barão do Rio Branco é uma tragédia nacional". Eranatural que tal projeção cercasse sua vida pessoal de lendas.Uma das mais conhecidas referia-se às opulentas noitadas nos

Fotos: Reprodução

velhos restauran-tes portugueses do Rio, pois, além de

gourmet refinado, também era um bon vivant. Uma dassuas características, segundo levanta Ricúpero, era o hábito deatulhar sua mesa de trabalho com livros e papéis e não permitirque ninguém a arrumasse para ele não perder o senso de orien-tação naquela desordem. Mas esta prática o fez ser vítima daprópria bagunça. Quando era vencido por uma mesa atulha-da, sem qualquer possibilidade de reordená-la, mandava viroutra a qual dava o mesmo destino. Consta que, ao morrer, ha-via mais de 10 delas atravancando seu gabinete.

Após cem anos desua morte, o Barão

do Rio Branco évenerado até hoje

como o maiordiplomatabrasileiro.

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57JANEIRO/FEVEREIRO 2012 DIGESTO ECONÔMICO

Digesto Econômico - Qual é a real importância do Barão do RioBranco na história da diplomacia brasileira?

Rubens Ricúpero - Rio Branco foi o verdadeiro Founding Fa-ther da nossa diplomacia. Antes que ele se tornasse ministro dasRelações Exteriores, em dezembro de 1902, a política externa danação independente já havia completado 80 anos e possuía umarespeitável tradição. Contudo, os problemas e as soluções da faseheroica da criação e consolidação do novo Estado – o reconheci-mento da Independência, as pressões britânicas contra o tráfegode escravos, a política das "intervenções" no Uruguai e na Argen-tina, a partir de 1850, no início sob a orientação do Visconde doUruguai – se haviam esgotado após a Guerra da Tríplice Aliançacontra o ditador paraguaio Solano López. Coube a Rio Branco atarefa de reinventar e modernizar a política exterior, tornando-senesse processo o criador da moderna diplomacia brasileira. A co-meçar pelo próprio instrumento físico da diplomacia – a chance-laria ou Secretaria de Estado, que era em 1902 repartição acanha-da, com duas dezenas de empregados, como eram chamados. Éverdade que esse número não incluía as carreiras diplomática econsulares, que permanece-riam separadas até 1934. Cou-be-lhe ampliar e profissionali-zar os quadros, construir no-vas instalações, criar a bibliote-ca, a mapoteca, organizar osarquivos, dar ao ministériomeios eficazes de trabalho.

Como foi exatamente essareinvenção da nossadiplomacia?

A obra de Rio Branco, quese estende de 1902 a 1912 po-de, de forma esquemática,ser resumida nas seguintesrealizações: 1) solução siste-mática e completa de todosos problemas de limites her-dados do passado; 2) a concepção e execução do primeiro pa-radigma abrangente e consistente de política externa para oBrasil, numa espécie de "aliança não-escrita" com os EstadosUnidos, a potência hegemônica emergente. Essa aproxima-ção era concebida pragmaticamente como meio de utilizar ainfluência norte-americana em favor dos interesses brasilei-ros em relação às potências imperialistas europeias vizinhasna zona das Guianas e a fim de neutralizar manobras de even-tuais rivais latino-americanos;

3) a construção de relações de cooperação concreta com osvizinhos latino-americanos, uma vez superados os conflitos li-mítrofes, recorrendo ao entendimento e coordenação entre astrês principais potências do sul do Continente – a Argentina, oBrasil e o Chile –, o pacto do A.B.C., antecipação da atual po-lítica de integração sul-americana;

4) a projeção do prestígio e dos interesses do País mais alémdos limites da política hemisférica, buscando posição de reco-nhecimento nas esferas da grande política mundial, comoocorreu, por exemplo, na 2ª Conferência de Paz de Haia.

"O Barão teve competência e sorte.É um filho político de Maquiavel"

Quais foram as circunstâncias ou virtudes pessoais que explicamesse sucesso?

Rio Branco desfrutou das duas condições que, segundo Ma-quiavel, são indispensáveis para o êxito do Estadista: virtù e for -tuna, isto é, competência e sorte. Em realidade, pode-se dizer quesua virtù é que tornou possível a sua boa fortuna. Após estudosde Direito, sem distinção particular e início frouxo como promo-tor, professor e deputado em duas legislaturas, levou uma exis-tência obscura, vivendo 26 anos esquecido na Europa, a maiorparte do tempo como cônsul-geral em Liverpool. Só era lembra-do como o filho do Visconde do Rio Branco. Durante esse perío-do, dedicou-se a suas paixões intelectuais: a história militar e na-val do Brasil, a história colonial, a geografia colonial das Amé-ricas, o estudo dos mapas e de documentos de velhos arquivos.Acumulou assim a erudição assombrosa de especialista que lhe

serviu para vencer em nomedo Brasil a questão de Palmasou Missões, com a Argentina,submetida à decisão arbitraldo presidente Cleveland, dosEUA em 1895. De um dia parao outro, aos 50 anos, alcançoua notoriedade. Era uma idadeavançada para a época. Só te-ria a viver ainda 17 anos. Suareputação se consolidou comnovo triunfo, contra a Françadessa vez, na questão da fron-teira do Amapá com a GuianaFrancesa, entregue ao julga-mento do presidente da Con-federação Suíça, Walter Hau-ser em 1900.

Além do triunfo diplomático, essas vitórias tiveram algumpeso na, vamos dizer, auto-estima da jovem repúblicaque tentava se firmar?

Essas vitórias sucessivas produziram efeito extraordináriono Brasil do começo da República, fase ingrata marcada pelasintervenções militares, o Encilhamento na economia, as atroci-dades de Canudos, da Revolta da Armada, da Rebelião Fede-ralista, no Rio Grande do Sul. Quando parecia que o Brasil se ti-nha convertido em mais uma republiqueta sul-americana, ins-tável e sujeita a caprichos de chefes militares, os sucessos do Ba-rão restituíram aos brasileiros o sabor da vitória, a recordação doantigo prestígio dos dias do Império. Paradoxalmente, coube aum monarquista convicto como ele, Paranhos Júnior, forneceros primeiros êxitos que legitimaram a República aos olhos doscontemporâneos. Essa constituiu a primeira razão da imensapopularidade que atingiria, a ponto de ser então considerado o"maior de todos os brasileiros", ao que ele respondia sempre queo maior dos brasileiros havia sido o imperador D. Pedro II, e osegundo seu pai, o Visconde do Rio Branco.

Rubens Ricupero: sem o Barão, o mapa do Brasil seria outro.

Raimundo Paccó/Folhapress

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"Era a prudência e a firmeza.Era suave, mas enérgico"

O senhor se referiu a duas grandes conquistas, mas ainda nãomencionou a importantíssima questão do Acre, de l903.

A reputação de vencedor, a prudência com que se mantevelonge das disputas políticas internas, o fizeram o candidato na-tural a ministro quando a agravamento daquestão do Acre havia convertido as rela-ções internacionais num problema perigosoe imediato no momento da inauguração doperíodo de Rodrigues Alves. A maneira ma-gistral com que conduziu a questão a um fe-liz desfecho acabou por consolidar sua famae o Barão passou a ser visto como figura àsvezes mais importante e indispensável atémesmo do que os presidentes sob cujas or-dens teoricamente servia. Desse modo, en-quanto viveu, era considerado ministroobrigatório em todos os governos, só dei-xando o Itamaraty por morte.

Essa prudência a qual o senhor se refere, seconfundiria om recato?

Como ele próprio era o primeiro a recordar,Rio Branco não possuía as qualidades bri-lhantes de orador, escritor e historiador deJoaquim Nabuco e outros. Havia, no entanto,acumulado erudição sólida nos domínios desua especialidade. De acordo com os depoi-mentos de contemporâneos, era dotado deextraordinária capacidade de concentração,de inteligência analítica que esgotava todos osaspectos de uma questão, do poder de se de-dicar a cada desafio com espírito sistemático eabrangente. Gostava de lembrar que muitodo que sabia havia sido aprendido na sala devisitas do pai, político excepcional que che-fiou o gabinete de mais longa duração do Se-gundo Império. Foi o produto acabado da es-cola de estadistas da monarquia, resultado daeducação elitista que se ministrava aos integrantes da classe di-rigente no Liceu D. Pedro II e nas Academias de Direito de SãoPaulo e Recife (apesar de que nem o pai, nem ele jamais tiveramterras e fortuna, dependendo essencialmente de empregos pú-blicos para ganhar a vida e havendo constantemente enfrentadodificuldades financeiras). Embora costumasse dizer que lhe fal-tavam as qualidades necessárias para a política interna, talvez omais correto fosse afirmar que preferiu aplicar em outro campo,o das relações internacionais, as virtudes políticas herdadas eaperfeiçoadas. A historiografia brasileira exaltou com certo exa-gero o que se devia à erudição e ao conhecimento histórico nassuas vitórias. Com efeito, a afirmação é procedente no caso dosdois arbitramentos citados, o de Palmas e do Amapá. Em outrasquestões, muito mais complicadas e arriscadas, como a do Acre,por exemplo, a erudição desempenhou papel extremamente se-

cundário. O fator decisivo nessas e na maioria das questões quevaleram a Rio Branco a reputação de grande diplomata foi a com-petência magistral no manejo do poder político, aquilo que os an-glo-saxões denominam de political craftmanship, que não se con-funde de forma alguma, com o uso da força. O Barão foi um mes-tre do que modernamente o professor Joseph Nye batizou de softpower, o poder brando ou suave, o recurso à negociação, à tran-sação, à oferta de compensações e de smart power, o poder inte-

ligente, o poder que nasce da cultura, a supe-rioridade oriunda do conhecimento, a somados quais no fundo corresponde à habilidadeno uso da diplomacia para resolver conflitos,ganhar concessões e aumentar a influência,sem a imposição pela força.

Pela descrição do senhor, o Barão era umdiplomata perfeito.

Mas além desses dotes políticos e intelec-tuais, sua personalidade sobressaía por ou-tras virtudes diplomáticas: a prudência asso-ciada à firmeza ("suave na forma, enérgico noconteúdo"), o equilíbrio, o comedimento, amoderação, o horror à prepotência, à arro-gância, ao excesso de ênfase e de retórica, ocuidado extremo de jamais cantar vitória, denão humilhar os adversários. Típicos do seutemperamento calculista e ao mesmo tempogeneroso eram traços como o de procurar in-variavelmente apresentar todos os resulta-dos, inclusive os das arbitragens, como vitó-rias dos dois lados, o esforço de minimizarseu próprio triunfo, frases como "há vitóriasque não se devem comemorar".

Neste caso, houve algum outro nome que setenha equiparado em habilidade diplomática?

Nenhum outro governo ou ministro che-gou perto de realizar obra de envergadura eimportância comparável, antes ou depois,nem é provável que isso possa ocorrer de no-vo. O Barão dispôs para isso de tempo, tantoo tempo físico, a continuidade sob quatro

presidentes (Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha eHermes da Fonseca), quanto do tempo espiritual, isto é, as con-dições favoráveis de época em que se acreditava nas virtudesdo arbitramento e a influência nefasta do nacionalismo exacer-bado não tinha envenenado os espíritos, conforme ocorreriadepois da Primeira Guerra Mundial.

"Sem ele, o mapa do Brasilseria provavelmente outro"

Se vivo fosse, teria o Barão espaço na diplomacia atual?Certamente um homem com as qualidades de exceção de

Rio Branco se distinguiria em qualquer época e quaisquer fos-sem os problemas. Não gozaria hoje, entretanto, de uma van-

No alto, o diplomata JoaquimNabuco; acima, o presidente

Rodrigues Alves.

Reprodução

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tagem que o favoreceu de maneira particular. No mundo emque viveu e atuou, era pouco frequente que os chefes de Estadoou de governo se envolvessem diretamente na diplomacia. Es-sa era domínio que se deixava de bom grado aos especialistas eprofissionais. Em nossos dias, a diplomacia presidencial abremenos espaço aos ministros e, quanto mais poderoso o país,maior é a ingerência do círculo imediato do presidente na con-dução das grandes iniciativas da política exterior. O Barão, ho-mem centralizador, seguro de si mesmo, pouco inclinado a so-frer interferências, não desfrutaria das condições ideais ao seutemperamento e provavelmente a glória quase exclusiva dosacertos não lhe seria atribuída tão facilmente.

O mapa do Brasil seria outro sem a atuação de Rio Branco?Provavelmente sim. Até a chegada do Barão, os governos e

ministros que se sucederam reconheciam como boliviano o ter-ritório do Acre e é bem possível que não tivessem tido a clari-vidência e a energia para aproveitar a rebelião chefiada por Plá-cido de Castro para reabrir e ganhar a questão. Também nos doisarbitramentos contra a Argentina e a França, não é certo que oBrasil tivesse alcançado vitória tão completa com advogados demenor competência. Mas eu chamo a atenção pelas dificuldadesdo problema acreano logo no início de sua gestão. A propósito,Rio Branco decidiu resolver, um por um, todos os contenciososexistentes ou potenciais em matéria de fronteira. Tendo contri-buído decisivamente para definir a fronteira com a Argentina naquestão de Palmas ou das Missões (1895) e com a França noAmapá (1900), prosseguiu essa obra pela assinatura do Tratadode Petrópolis com a Bolívia (1903), com o Equador, ressalvadosos eventuais direitos peruanos (1904), com a Guiana Inglesa, pe-la arbitragem do rei da Itália (1904), com a Venezuela (1905), aHolanda-Suriname (1906), a Colômbia (1907), com o Peru (1909)e o tratado retificatório da fronteira com o Uruguai (1909). Comoele mesmo declarou, havia "construído o mapa do Brasil". Trata-se de uma "das maiores realizações da história diplomática dequalquer país, em qualquer tempo", conforme escreveu o em-baixador Álvaro Teixeira Soares.

Não há um certo ufanismo na afirmação?A afirmação não é exagerada. O Brasil ocupa posição rara: a

de ter dez vizinhos (que teriam podido ser onze, com o acrés-cimo do Equador). Poucas são as nações com número compa-rável de vizinhos, bastando pensar em países de grande exten-são como o Canadá, os EUA, a Austrália, sem vizinhos ou compouquíssimos. O que é notável na obra de Rio Branco é que to-das as fronteiras foram definidas por negociações ou arbitra-mento, sem que houvesse o recurso a guerras e a violências. Selembrarmos da tradição histórica belicosa da Rússia, Alema-nha, França, China, Índia, apreciaremos melhor o caráter ex-cepcional de tamanha façanha.

"Para ele, o perigo não vinha dos EstadosUnidos, mas da França e Inglaterra"

Vamos então falar detalhadamente de cada vitória. Qual é osignificado no caso do contencioso com a França, levando em

conta tratar-se de uma das grandes potências mundiais da época?Rio Branco estava convencido de que, por ocasião dos cho-

ques armados nos garimpos do Calçoene, com mortos e feridos,a França não havia ocupado militarmente a zona litigiosa ape-nas por temer a eventual reação dos Estados Unidos, guardiãesda Doutrina Monroe. Pouco antes do arbitramento sobre oAmapá, o presidente Cleveland, dos EUA, o mesmo que fora ojuiz da questão de Palmas, se referira de forma quase ameaça-dora à Grã-Bretanha, que mantinha um dissídio de fronteiracom a Venezuela na região do Essequibo, limite com a GuianaInglesa. Os britânicos, envolvidos na Guerra dos Boers, na Áfri-ca do Sul, aceitaram submeter o problema a um tribunal arbitral,tendo posteriormente ganho a pendência. Julgava também oBarão que os franceses receavam a interferência inglesa, pois eraaguda naquele momento a rivalidade entre França e Grã-Bre-tanha na luta por colônias e por zonas de influência. Aliás, paraque o leitor de hoje possa compreender na sua justa importânciaa gravidade das questões limítrofes contra potências europeiascomo eram as vizinhas do Brasil, é preciso recordar que se estavano auge do imperialismo europeu, que não hesitava em recorrerà sua esmagadora superioridade militar para dividir a Áfricaentre diversos países da Europa, ao mesmo tempo em que im-punha concessões humilhantes à China imperial, colonizava aIndochina, enfraquecia o Império Otomano.

Quer dizer que a França e Reino Unidos se nos apresentavamcomo uma ameaça?

Para Rio Branco, Joaquim Nabuco e seus contemporâneos, aameaça ao Brasil não provinha dos Estados Unidos do presi-dente Teddy Roosevelt, o homem que brandia o big stick, o ca-cetão, na tradução de Oliveira Lima. Isso seria problema para oMéxico, a América Central, o Caribe. Para o Brasil, longe dosEUA, mas vizinho territorial de possessões europeias, o perigovinha da França e do Reino Unido. Daí a racionalidade da di-plomacia de Rio Branco e Nabuco, ao buscar a aliança norte-americana como proteção contra potências extracontinentais.Para isso estavam dispostos a oferecem a Washington o apoio

Reprodução

Mapa doBrasil antesdo Tratadode Petrópolis,sem o Acre.

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do Brasil na política ianque no Hemisfério, em especial na fun-dação da União Panamericana, início do panamericanismo.

"Teríamos uma tira de Terra e o Rio Grandedo Sul ficaria até separado"

Qual a importância do litígio de Palmas com a Argentina. Em casode derrota, o Brasil teria perdido Itaipu?

A importância da questão era, na época, não econômica,mas político-estratégica. Aliás, a tendência de querer percebera motivação econômica nos problemas de fronteiras é novida-de de nossos dias. Fora exemplos excepcionais como o do Acre,onde já existia uma riqueza importante em exploração, a bor-racha, na maior parte dos litígios, a disputa se referia quasesempre em torno de territórios desertos, só povoados por in-dígenas ou quase desertos, como era a zona de Palmas. O Barãonão gostava de denominar a questão com o nome hispânico deMissões, por sustentar que a zona jamais havia feito parte dasmissões jesuíticas, patrimônio reclamado por paraguaios, ar-gentinos e uruguaios. Estava convencido de que, se porventu-ra pudesse existir algum direito, além da área propriamente di-ta, esse direito caberia aos paraguaios e nunca aos argentinos,que, em sua opinião, jamais haviam tido qualquer presençahistórica nessas terras. Na época nem se sonhava com o apro-veitamento hidrelétrico na zona. De qualquer modo, a área li-tigiosa se situa mais ao sul da confluência das três fronteiras.

Mas o senhor estava falando de questões estratégicas da região.A extensão total do território em disputa era de menos de

40.000 km². O problema é que esse é o ponto onde mais se es-treita o território brasileiro, onde menor é a distância que me-deia entre a fronteira oeste do Brasil e o Oceano Atlântico. Parase entender bem a intensidade do interesse e das paixões des-pertadas pela questão, deve-se ter presente a viva rivalidadeque ainda separava o Brasil da Argentina. Cada um desses paí-ses olhava o outro como o inimigo estratégico tradicional. Osplanos do Estado Maior de um e outro previam um conflitobrasileiro-argentino, razão que explica porque até muito tardenão se abriam estradas, nem se construíam pontes na regiãofronteiriça, a fim de não facilitar eventual invasão das tropasvizinhas. Ora, caso se perdesse a zona de Palmas, no extremooeste dos estados do Paraná e de Santa Catarina, o territóriobrasileiro ficaria reduzido a uma tira delgada na região, o quepossibilitaria em tese, em caso de conflito, cortar o Brasil emdois, isolando o Rio Grande do Sul do resto do País.

"Eram cerca de 60 mil brasileirosno território do Acre"

Chegamos finalmente à questão do Acre. Como foi ocontexto dela?

A questão do Acre apresenta singularidade que a distinguede todas as demais disputas de limites. A primeira delas é que setrata do único litígio em torno de um território onde já existiauma importante fonte de riqueza em pleno processo de explo-

ração: a borracha. Seria quase o equivalente nos dias atuais a umterritório rico em petróleo. A segunda especificidade é que o ter-ritório era disputado não só por outro país – a Bolívia – mas tam-bém pelo Peru (que pretendia chegar quase até Manaus!). Alémdisso, como a Bolívia havia cedido por 30 anos seus direitos a umconsórcio de investidores internacionais, o Bolivian Syndicate,havia o risco, nada fantasista para os costumes da época, de en-volvimento ativo dos países das nacionalidades dos investido-res, dentre os quais os Estados Unidos e a Grã-Bretanha.

Havia variados interesses em jogo. Qual era o nosso?Diversamente dos demais litígios, o Acre havia sido coloniza-

do e povoado por brasileiros, em grande parte provenientes doNordeste, que chegavam talvez a 60.000 pessoas, contra um pu-nhado insignificante de bolivianos. Não obstante essa maciçapresença de brasileiros, todos os governos do Brasil, da Monar-quia e da República, tinham reconhecido como de soberania bo-liviana a maior parte do Acre, em decorrência da fronteira esti-pulada pelo Tratado de La Paz de Ayacucho, assinado em 1867,durante a Guerra do Paraguai, em momento no qual o Brasil bus-cava evitar fornecer razões para agravar a antipatia que lhe de-votavam outros países hispano-americanos. Excepcional foi tam-bém a história da contenda, já que, antes do envolvimento oficialdo Brasil, a região tinha sido o cenário de várias sublevações deseringalistas brasileiros, apoiados sub-repticiamente pelos go-vernos estaduais de Manaus (não, porém, pelo governo federal),das quais as mais importantes foram as chefiadas pelo espanholGálvez e a de Plácido de Castro, esta última de consequênciasmais decisivas. Tal aspecto levou alguns escritores a comparar aquestão do Acre à do Texas, entre os Estados Unidos e o México.

Na verdade, o Acre foi seu primeiro desafio como chanceler, postoque assumiu em l902.

Foi o primeiro e o mais difícil de todos, tanto pelas caracterís-ticas resumidas acima, quanto pela intensa e expressiva oposiçãoque teve de vencer no Congresso e na imprensa. A arma da eru-dição histórica e geográfica de pouco servia num caso precedidopor longa tradição de reconhecimento da soberania boliviana pe-lo Brasil. O problema era essencialmente de natureza política eassim teria de ser resolvido. O Barão compreendeu isso perfeita-mente e desde o início afirmou e repetiu que existia apenas umarazão para que o governo brasileiro desejasse adquirir o Acre: ofato de sua população ser totalmente brasileira. No Acre se ma-nifesta em toda a sua força a maestria de Rio Branco no manejolegítimo do poder, isto é, de todos os elementos legais válidos pa-ra obter seu objetivo exceto o uso da força militar em guerra deconquista. Para tanto, teve de continuamente dosar e alternar ati-tudes enérgicas com ofertas de concessão. Começou por recusarnegociar com os adversários em conjunto, como pretendia o Peru.Separou, um por um, os contendores, concentrando-se, no prin-cípio, no consórcio de investidores. Desejava eliminar a possibi-lidade de intervenção americana ou inglesa e para isso, renovou aproibição decretada pelo governo anterior (de Campos Sales) denavegação do rio Amazonas por parte do consórcio. Como essaera a única via de acesso ao Acre, a concessão passava a não ternenhum valor para os investidores, obrigando-os a negociar. Em-bora a concessão fosse erro cometido pelo governo boliviano, o

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Barão dispôs-se a pagar uma indenização para levar os investi-dores à desistência, o que aplacou os governos de origem dos es-peculadores. Em seguida, voltou-se para a Bolívia, dispondo-se aadquirir o Acre. Ante a recusa de La Paz e ao anúncio de que ogeneral Pando, presidente da Bolívia e seu ministro da Guerra sepreparavam para marchar contra os sublevados de Plácido deCastro à frente de forças importantes, Rio Branco obteve do pre-sidente Rodrigues Alves a decisão de ocupar provisoriamente oterritório com tropas brasileiras, o que se fez em meio a inúmerasdificuldades, dado o nosso despreparo militar. Iniciada a nego-ciação, ela rapidamente se concluiu com a assinatura do Tratadode Petrópolis, de novembro de 1903, pelo qual a Bolívia cedia oAcre ao Brasil, em troca de alguns pequenos trechos de terra emMato Grosso povoados por bolivianos, do pagamento de somaequivalente hoje a mais de 200 milhões de dólares e ao compro-misso de construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que as-seguraria à Bolívia uma saída pelo Atlântico pelo rio Madeira.

"Fez nossa primeira embaixada nosEstados Unidos em 1905"

Por que ele teve tanta oposição do Congresso Nacional?Rio Branco sofreu oposição violenta durante todo o proces-

so. Destacavam-se os opositores ao governo liderados pelo se-nador gaúcho Pinheiro Machado e os parlamentares de MatoGrosso, contrários à perda de parte (insignificante) do seu ter-ritório. Opositor perigoso foi o senador Rui Barbosa, que haviasido um dos plenipotenciários na negociação e tinha renuncia-do por discordar também da cessão de terras. Rui Barbosa acre-ditava erroneamente que o Brasil teria maiores chances de vi-tória numa arbitragem. Apesar desse evidente engano (umavez que o Brasil reconhecera durante décadas a soberania bo-liviana), o prestígio de Rui enfraquecia muito a posição de RioBranco, que acabara de ser nomeado ministro e não adquiriraainda a projeção e influência que teria mais tarde. Também fo-ram contrários os monarquistas, os positivistas, O Correio daManhã e outros órgãos da imprensa.

Qual é o significado da política de fronteiras de Rio Branco nocontexto mais amplo de sua diplomacia?

A definição das fronteiras, do espaço dentro do qual se exerce asoberania, é uma espécie de ato fundador da política externa. Paí-ses que não logram completar o processo de forma rápida e efi-ciente permanecem reféns do problema por décadas e até séculos,como se pode ver dos inúmeros exemplos existentes no mundo ena América Latina. Igualmente conta de maneira decisiva a for-ma pela qual se efetua a definição do perfil territorial. Um dos mé-ritos primordiais da orientação de Rio Branco foi o de ter levadoavante o projeto de modo invariavelmente fiel à opção de resolvertodas as questões por métodos pacíficos e jurídicos – negociaçõese arbitragens – sem o recurso à imposição pela força militar. Criouassim as condições para uma política de conteúdo positivo de co-laboração, sem deixar ressentimentos.

Essa doutrina de fronteiras também é de sua lavra?Não foi obra exclusiva do Barão, herdeiro de rica tradição des-

de a monarquia, com destaque para nomes como o de Duarte daPonte Ribeiro, Miguel Maria Lisboa, o Visconde do Uruguai; seupai, o visconde do Rio Branco, entre outros. Tal doutrina resultoude uma construção jurídica, como todas as orientações desse tipoe correspondeu perfeitamente à situação concreta de um país nascondições do Brasil, para o qual era mais interessante valorizar aimportância da ocupação efetiva do território do que os títulos ju-rídicos em si mesmos. Estes, desde o Tratado de Tordesilhas e,mais tarde, os de Madri e, sobretudo, de Santo Ildefonso, haviamsido superados pela expansão brasileira secular e pelos aconte-cimentos. Daí a doutrina brasileira, segunda a qual os derradeirostratados coloniais, Madri e Santo Ildefonso, não passaram deacordos provisórios, não seguidos pela demarcação completa noterreno e, de qualquer forma, anulados por eventos subsequen-tes. O mais relevante seria, portanto, a aplicação do princípio douti possidetis de facto, isto é, a ocupação efetiva, com ou sem títulojurídico. Uma vez definido o perfil da fronteira, passaram a existircondições para políticas de cooperação, que dependiam, contu-do, da disponibilidade de vias de transporte e do desenvolvimen-to das relações econômicas, o que apenas vai ocorrer progressi-vamente. Rio Branco era sensível à importância das considera-ções econômicas e comerciais.

O Barão teve clarividência ao criar nossa primeira embaixada emWashington ainda em l905?

Uma das razões que o levaram a criar em Washington, em1905, a primeira embaixada do Brasil (até então só tínhamos le-gações, chefiadas por ministros plenipotenciários) e, conformedeclarou, "deslocar de Londres para Washington o eixo de nossadiplomacia", foi a constatação de que, desde 1870, os EstadosUnidos se tinham tornado o maior mercado para as exportaçõesbrasileiras. Os americanos adquiriam praticamente metade docafé exportado pelo Brasil e eram também os maiores compra-dores do cacau e da borracha nacionais. Os EUA chegaram a ab-sorver 36% do total das exportações brasileiras (hoje a cifra os-cila entre 10% e 11%). O Brasil ocupava em 1905-06 o sexto lugarno intercâmbio total dos EUA, vindo logo após da Grã-Breta-nha, Alemanha, França, Canadá e Cuba (açúcar) e nessa mesmaépoca atingiu o posto de terceiro maior fornecedor do mercadoamericano. Tratava-se de intercâmbio altamente favorável aoBrasil, que acumulou vultosos superávits.

Estrada de ferro Madeira-Mamoré: acordo com a Bolívia.

Reprodução

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omo a ciência busca vestígios de vida fora daTerra? Marte, nosso velho conhecido, está a cur-ta distância: 60 milhões de quilômetros. Pode-semandar uma sonda, que em um ano e meio deviagem o alcança. E em distâncias infinitamente

maiores, fora do Sistema Solar, como a busca é feita? A respostaé (para os cientistas) simples: estudando cores. As mesmas doarco-íris, e as não visíveis a olho nu.O astrobiólogo Douglas Galante, da Universidade de São Pau-lo (USP), e seus pares, procuram desvendar não pouca coisa:origem, evolução e futuro da Terra e do Universo. E a questãoeletrizante: há vida em outros planetas? Estaremos sós na in-finidade do espaço? Até hoje, não foi encontrado nenhum ves-tígio comprovadamente de vida fora da Terra.Douglas conta que os estudos fora do sistema solar são feitoscom telescópios cada vez mais potentes. O pioneiro e revolu-cionário Hubble, com espelho de 2,5 metros de diâmetro, lan-çado ao espaço em 1990, é pequeno, comparado com o que seestá preparando hoje. O James Webb (da Nasa, como o primei-ro) terá um conjunto de 18 espelhos hexagonais, que somarão18 metros de diâmetro.O maior telescópio terrestre do mundo (lente de 42 metros dediâmetro) será construído no Chile, por um consórcio europeude 15 países, entre eles o Brasil. Os trabalhos de detecção de vi-da em outros planetas não são mais tarefa de um só país, mas deconsórcios internacionais.

Digesto Econômico - O que se vê pelos telescópios apontados parafora do Sistema Solar?Douglas Galante - Os planetas distantes estão orbitando em

EstamossozinhosnoUniverso?Valdir Sanches

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suas estrelas. São sistemas planetários como o nosso, como aTerra, o Sol. Toda vez que um planeta passa em frente de suaestrela, a luz da estrela atravessa a atmosfera do planeta, parachegar até a gente. O que eu faço é estudar essa luz. Quandoatravessa a atmosfera, a luz é modificada pela composiçãoquímica dessa atmosfera. Então, comparando a luz que vem

Imagem do telescópio Hobble, lançado ao espaço em 1990.

Fotos: Divulgação

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da estrela, sem o planeta, e a luz que vem quando atravessa aatmosfera do planeta, eu consigo dizer a composição químicada atmosfera. Dessa forma, é possível fazer a comparaçãocom a nossa atmosfera. Se for muito parecida com a atmosferaterrestre, então tem chance de ter vida; ou pode ser uma at-mosfera só feita de hidrogênio, sem vida.

Como se pode saber a composição química só de enxergar?Com o uso de equipamentos especiais que fazem isso. Eles pegama luz da estrela, que é composta pelas diferentes cores ou pelo di-ferente espectro eletromagnético. Todas as cores, desde o ultra-violeta até o infravermelho, invisíveis, passando pelas visíveis,vermelho, laranja, amarelo, verde, azul e todas as cores do arco-íris. Então, você decompõe a luz no seu espectro eletromagnético,e o que acontece é: os elementos químicos, as moléculas, absor-vem luz de maneira característica. Então, se você coloca oxigênio,ele vai absorver tais cores do seu espectro. Se você tem hidrogê-nio, ele vai absorver outras cores. Se você tem metano, vão ser ou-tras cores. Essa análise é feita com o espectrógrafo. Ao olhar paraa luz, você vai ver exatamente essas linhas, você vai ver essas ab-sorções de cores. Você olha e diz 'ah, aqui tem a característica típicado oxigênio'. Então, naquela atmosfera tem oxigênio.

Já detectaram oxigênio em algum planeta?Oxigênio ainda não, tem poucas detecções. Foram detectadasalgumas poucas moléculas. Já foi detectada água, na atmosferade alguns planetas. É uma técnica muito difícil, porque vocêprecisa de instrumentos extremamente sensíveis. Hoje em diaa gente não tem telescópios grandes e sensíveis para fazer isso.O telescópio Hubble é pequeno para o que precisa ser feito. Apróxima geração de telescópios, como o James Webb, prova-velmente vai conseguir.

Como estão as pesquisas para identificar vida fora da Terra?Aqui mais perto, no Sistema Solar, o homem pisou na Lua há 43anos (1969). Robôs foram mandados em sondas para Marte e Vê-nus, e para a lua Titã, de Saturno. Os robôs estudam o planetaRobôs foram mandados em sondas para Marte e Vênus.

Galante: analisando ascores dos planetas épossível conhecer a

composição da atmosfera.

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Um olhono céu,outro naTe r r a

diretamente no solo. Fazem uma série de testes químicos, bio-lógicos, físicos, para tentar detectar a presença de vida. Quandovocê manda uma sonda dessas, tem que saber o que está pro-curando. Obviamente, ela não está buscando homenzinhos ver-des, e nada de civilização. Mas sim indícios químicos da vida.

De que tipo?Enquanto a gente vive, produz uma série de metabólicos (resul-tados do metabolismo) liberados na atmosfera. Moléculas que agente libera e podem ser usadas como indício de vida. Quandorespiramos, por exemplo, liberamos CO2, gás carbônico, na at-mosfera. E em princípio ele pode ser relacionado ou não com apresença de microorganismos. Diversas plantas e animais libe-ram metano. O metano é um gás que, quando presente na at-mosfera, pode ser relacionado com a presença de vida. Nós mes-mos liberamos uma série de outras moléculas que podem ser in-dicativo de vida. Por exemplo: ureia (eliminada pela urina) e vá-rios outros que são subprodutos típicos da vida. Quando vocêmanda uma sonda, ela procura essas moléculas que são normal-mente sintetizadas por organismos vivos.

Há algumas mais evidentes?Existe uma pergunta na ciência, hoje, que é: qual é a melhor mo-lécula indicativa de vida? Isso não tem uma resposta fácil. Muitagente dizia que era o oxigênio. Porque se eu tenho oxigênio emum planeta, ele foi produzido por plantas ou organismos fotos-sintetizantes (que têm clorofila e obtém nutriente pela energia daluz). Hoje em dia a gente sabe que existem maneiras não bioló-gicas de produzir oxigênio. Então, mesmo que eu detecte oxigê-nio em outro planeta, não quer dizer que lá tem plantas. Pode serque exista alguma outra fonte produzindo isso. O que parece amelhor resposta, hoje é: não se pode procurar uma única molé-cula, tem que se procurar uma série de moléculas presentes jun-tas. Você precisa ter água, oxigênio, metano, CO2. Quando vocêtiver a combinação certa, vai poder dizer com maior segurançaque ali tem vida. Essas moléculas são chamadas de bioassinatu-ras. As pessoas que se dedicam a isso estudam bioassinaturas.

O envio de sondas e robôs é importante?Quando se envia uma sonda para Marte, digamos, há a vantagemde se tentar encontrar moléculas mais complexas, de clorofila, porexemplo. Se tem um organismo fotossintetizante, ele deve ter clo-rofila, a molécula verde que faz a fotossíntese. Você pode usar mé-todos químicos para tentar detectar essas moléculas, espalhadas nosolo. Isso pode indicar a presença de vida no passado de Marte.

Até hoje, não foi encontrado vestígio de vida fora da Terra.

ouglas Galante não passa seus dias só em la-boratórios do Instituto de Astronomia e Geo-física (IAG) da Universidade de São Paulo(USP), onde trabalha. Com frequência viajapara lugares como a região do deserto de Ata-

cama (do Chile ao Peru), de onde voltou recentemente.Esta é uma parte de seu trabalho, o de coleta. No Atacama,recolheu bactérias que resistem a temperaturas 5 mil vezes

mais altas do que supor-ta o ser humano. Os cien-tistas como Douglas fa-zem suas pesquisas e co-letas na Antártica, emdesertos (ele esteve emmuitos), no fundo domar, em ambientes ex-tremos do planeta.Os microorganismos re-colhidos são trazidospara o laboratório, ondeDouglas busca respos-tas para esta questão:por que eles são capazesde sobreviver a condi-ções tão difíceis, às altase baixas temperaturas, àradiação solar e outrassituações adversas?No laboratório, entra asegunda fase das pes-quisas, a das simula-ções. Estudam-se os mi-

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Douglas Galante, em seulaboratório na USP.

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croorganismos e isolam-se os mais resistentes. Estes são cha-mados extremófilos, gostam de ambientes extremos. "Serãousados como modelo para a vida que pode existir fora da Ter-ra", diz Douglas.Os extremófilos são colocados no acelerador de partículas,"numa condição como se fosse fora da Terra". Ficam em vácuo,para simular o espaço. Ou em alta radiação de luz ultravioleta,ou de partículas, para simular uma explosão estelar. Ou aindaem situação que pareça a mesma de Marte, entre outras.O computador também entra nas simulações. Muitas vezes

não é possível simular todas as condições necessárias, no la-boratório. Vem então um estudo teórico, no computador, "paraestudar a radiação sobre a vida, sobre as moléculas".O resultado de tudo é este: "Nossas pesquisas vão nos dizer co-mo a vida pode suportar condições tão adversas. E a gente vêcomo esses organismos terrestres se comportariam em um am-biente fora da Terra." Afinal, se conseguem entender como es-ses organismos conseguem sobreviver aqui na Terra, enten-dem como eles poderiam sobreviver fora do nosso planeta.Uma pesquisa à qual Douglas também se dedicou é a das su-pernovas: saber como as criações nucleares acontecem duran-te um processo de explosão estelar, chamado de supernova."Nesse processo tem uma liberação enorme de energia. Umaestrela, como se fosse o nosso Sol, explode e libera essa energia,e boa parte dela serve para produzir reações nucleares." Estasprovocam um processo de transmutação. "Alguns elementosse transformam em outros, alguns são quebrados, alguns fun-didos. Então você tem vários processos nucleares, que modi-ficam a abundância química do Universo.""O nosso Sol, na verdade, não vai virar uma supernova porqueé muito pequeno (mesmo assim, um milhão de vezes maiorque a Terra). Mas uma estrela grande consegue ter elementosquímicos até o ferro. Os mais pesados, como urânio, não sãoproduzidos em processos estelares normais. Mas quando umaestrela explode, produz energia suficiente para produzir todosesses elementos químicos."Douglas e seus pares querem saber como esses processos fí-sicos de associações nucleares acontecem durante o proces-so de explosão de uma estrela. "Hoje, na verdade, o meca-nismo físico que faz com que uma estrela exploda não é to-talmente conhecido. Ainda é um grande problema a ser re-solvido." (V. S . )Galante também estuda o processo de explosão estelar.

O maior telescópioterrestre do mundo, comlente de 42 metros, está

sendo construído no Chile,no deserto de Atacama,por um consórcio de 15

países, entre eles o Brasil.O cientista Douglas

Galante já esteve diversasvezes no Atacama, onderecolheu bactérias que

resistem a temperaturas 5mil vezes mais altas do

que suporta o ser humano.

Fotos: Divulgação

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O apocalipserevelado

Marleine Cohen

Reprodução

Para Elaine Pagels, "é possível atribuir algum interesse antro-pológico redentor aos mitos da criação, quando constatamosque eles são versões condensadas de valores culturais". Mas estenão é o caso do Livro do Apocalipse: "Aqui, não há ideias. Nemo menor ensinamento de ética social. Apenas visões fantásticasde seres monstruosos, prostitutas e anjos lutando contra demô-nios. Como explicar, então, que desde que foi escrito, o livroexerce enorme influência sobre a cultura ocidental?"

Para esclarecer este fenômeno, aponta a historiadora, énecessário voltar no tempo e entender inicialmente quemescreveu o livro – e o que pretendia ao fazê-lo. Em seguida, épreciso se perguntar por que, em meio a tantos outros regis-tros de revelações que estavam sendo produzidos quase si-multaneamente, este – e apenas este – teve apelo suficientepara fazer parte da Bíblia. E mais: teria sido sua influência decunho psicológico, literário ou político?

Segundo a historiadora, todas as evidências apontam que oLivro do Apocalipse foi escrito por João, o apóstolo, um profetajudeu exilado na Ilha de Patmos, perto da costa da Turquia, naÁsia Menor, por volta do ano 90 d.C. Ele teria transcrito as pa-lavras que lhe foram sopradas por Jesus Cristo – sendo, por-tanto, o escriba, não o autor do texto –, quando, ao olhar paracima, certo dia, ouviu uma voz convidando-o para "ir até o céu"e viu uma porta se abrir no firmamento.

Em transe extático, João de Patmos relata que avistou otrono de Deus tal como Ezequiel o havia descrito cerca de600 anos antes, em sua profecia, emergindo em meio a laba-redas, relâmpagos, trovões e clarões de luz formando um ar-co-íris e um mar de cristais brilhantes. Deus, que se apresen-tava numa forma angelical e luminosa – exatamente como oprofeta Daniel teria enunciado, seis séculos antes –, tinha aoseu lado um cordeiro imolado que lhe revelou, então, o queestava por acontecer.

De cabo a rabo, o Livro do Apocalipse (também cha-mado, erroneamente, de Apocalipse de São João) –que integra as páginas da Sagrada Bíblia do cristia-nismo – não passa de um instrumento de pregação

ideológica que tem na figura de Jesus Cristo seu melhor e maisinfluente garoto-propaganda.

Escrito em linguagem simbólica, onírica, profética, sua maiorqualidade está no fato de se prestar a várias interpretações, a co-meçar pelo mal-entendido gerado pela tradução do termo apo-calipse, do grego apokálypsis, que significa "revelação" – a re-velação divina de fatos até então mantidos secretos a um profetaescolhido por Deus (João de Patmos) –, e não tem o sentido obs-curo que lhe foi atribuído, de Armagedom: fim dos tempos.

Mas esta é apenas uma das muitas revelações que a histo-riadora e professora de Religião da Universidade de Princeton,Elaine Pagels, faz no livro que acaba de lançar no mercado nor-te-americano, The Book of Revelation: Prophecy and Politics.

"O Livro do Apocalipse é o mais estranho da Bíblia, o mais con-troverso. Ele não apresenta histórias; não propõe nenhum apren-dizado moral. Reúne unicamente alegorias, devaneios, sonhos.Poucas pessoas afirmam tê-lo entendido, pois é de difícil inter-pretação. No entanto, por quase dois mil anos, ele se manteve ex-tremamente popular. Como justificar isso?", questiona a tambémautora dos livros The Gnostic Gospels e Beyond Belief.

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De fato, a estrutura do Livro do Apocalipse obedece a uma li-nha cronológica: após um prólogo, apresenta o momento atuale, a partir do quarto capítulo, trata do futuro.

É justamente neste tempo futuro revelado ao profeta porDeus que reside, segundo Elaine Pangels, o caráter dúbio, enig-mático do livro e sua posterior utilização como peça de propa-ganda e, em seguida, como instrumento de catequização.

Explorando o medo e carregando nas cores do infortúnio –guerras, fome, cataclismos, devastação ambiental, privações–, o tempo futuro descrito por João de Patmos abre caminho,segundo interpretações, para uma era de muito sofrimento naTerra e, por fim, para a volta de Cristo para salvar seus fiéis,pretensamente no ano de 2000.

Difamação por escrito

Para Elaine Pagels, não há como entender o Livro do Apoca-lipse sem levar em conta que João era um refugiado. Viveu emtempo de guerra e testemunhou o levante de judeus no ano de66, depois que o Império Romano invadiu e devastou a terranatal deles, a Judeia. João também presenciou o massacre demilhões de pessoas quando, quatro anos depois da chamada"Guerra dos Judeus", 60 mil romanos invadiram Jerusalém,mataram, estupraram, saquearam e, por fim, incendiaram oGrande Templo, que ocupava o centro da cidade.

Segundo a professora de Religião, "o que João fez, no Livro doApocalipse, foi colocar o seu próprio grito de angústia na boca depessoas que ele afirma ter visto aos pés do trono de Deus".

Seguidor de Cristo, o apóstolo havia sido convencido de queEle era o rei de Israel, embora para o imperador Nero e os ro-manos não passasse, naquele momento, de um simples mili-tante judeu que havia incitado a rebelião contra o Império.

Uma geração antes, João de Patmos havia ouvido dizer queJesus voltaria à Terra para acabar com o mal, cuja última en-carnação, aos olhos dele, eram os romanos. Fugido da Judeia,viu se passarem 15 anos, e depois 20, e por fim 30 anos sem quea profecia se realizasse.

Em lugar disso, o que testemunhou por todas as provínciasdo Império Romano por onde passou, foi a consolidação dopoderio militar do inimigo: templos majestosos, bustos colos-sais, painéis retratando sucessivos imperadores subjugando ehumilhando os mais fracos, numa grande campanha iniciadapor Augusto para enaltecer a força e a presença de Roma emtodos os territórios ocupados.

Diante desta incontestável superioridade, só restava aosconquistados o exercício lento da contrapropaganda. Estespanfletos arcaicos, escritos por turcos, gregos, judeus e sírios,são os chamados documentos apócrifos, que, segundo ElainePagels, teriam tido por função expurgar o medo e a esperança,a raiva e o sentimento de vingança dos povos subjugados pelosromanos – sentimentos estes escondidos por trás da fé em Deuse na ressurreição.

O Livro do Apocalipse se inscreve neste contexto, segundo aprofessora. "João aproveitou os recursos culturais de seu povopara criar uma propaganda antiromana. Usou, em especial, asreferências e registros de profetas clássicos, como Isaías, Danielou Ezequiel" – que profetizou por meio das visões que teve du-

rante o exílio da Babilônia, quase 600 anos antes de Cristo, e an-teviu a queda de Jerusalém e a construção de um mundo novo. Aprincipal motivação do escriba, de acordo com a estudiosa, eradenegrir o Império Romano, abreviar seus dias, e, neste sentido,"o Apocalipse surge como uma ideia radical": "Tal como nos li-vros da Revelaçãode origem egípcia e babilônica, cuja finalidadeera fundamentar o divino numa nova era, admitindo a incapa-cidade dos povos conquistados de suplantar Roma no plano mi-litar, João passa a pregar o fim do mundo e o surgimento do reinode Cristo, numa alusão à queda do Império Romano".

Assim, o grande mérito da obra de Pagels consiste em con-textualizar os simbolismos e arquétipos que persistem até hoje– como o número 666, da "besta", uma alusão ao trágico ano de66 d.C., quando os judeus foram aniquilados pelos romanos –e dar nome aos terríveis personagens míticos evocados porJoão, como a própria "besta", que nada mais seria do que o im-perador Nero.

Tecendo uma trama sórdida – que o homem moderno estápropenso a associar às grandes mazelas atuais –, estes diasde sofrimento para os povos subjugados têm um fim previs-to, no Livro do Apocalipse de João de Patmos: a volta deCristo à Terra para promover a justiça divina, não sem antesocorrer o Armagedom.

Um medo e uma esperança que movem o mundo até hoje.

Reprodução

O grande mérito da obra de ElainePagels consiste em contextualizaros simbolismos e arquétipos que

persistem até hoje.

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Um golpe de mestre

Ese o Livro do Apocalipse, escrito por um refugiado deguerra, João de Patmos, durante um transe extático,nada mais fosse do que uma praga que ele rogou aos

romanos por ter devastado sua terra natal, a Judeia?E se a descrição dos eventos que antecedem a volta de

Cristo à Terra, tão profetizada nos sagrados livros, repre-sentasse apenas uma alegoria cheia de verve, dor e desejode vingança deste exilado político que clama por Justiçaperante Deus e o exorta a destruir Roma?

Esta é a surpreendente tese que Elaine Pagels, profes-sora de Religião da Universidade de Princeton, desenvol-ve no seu novo livro The Book of Revelation: Prophecy and Po-litics. Para ela, o Apocalipse se resume a uma crítica mor-daz ao Império Romano e constitui uma fagulha de espe-rança de que Roma entre em decadência, o quanto antes.

Por algum motivo, porém, a obra extrapolou o seu sen-tido original – e é nisto que reside seu maior interesse, se-gundo a historiadora.

Debulhando mito atrás de mito nas páginas do seu novolivro, Elaine Pagels nos conta que textos apócrifos, como ode João de Patmos, eram na verdade muito numerosos nosprimeiros séculos após a morte de Cristo, "uma época emque o poder militar de Roma sufocava todo o mundo oci-dental – do Oriente Baixo (Síria e Turquia), aos gauleses,britânicos, gregos, egípcios e judeus". Assim sendo, "rogarpragas já fazia muito sucesso naqueles tempos, e há pas-sagens particularmente terríveis no Apocalipse que dãouma noção da angústia e do desejo de vingança dos povosconquistados, como aquela onde João anuncia o retornode Cristo para acorrentar a "besta" (Nero) e aprisioná-lonum lago de angústias e aflições por milhares de anos".

Mas se tudo isso era normal, o que parece ter fugido aoprevisível é o uso que se fez, posteriormente, deste regis-tro, e a reinterpretação que se impôs aos fatos.

Com efeito, em meio à consolidação da nova religião,cerca de três séculos depois da morte de Cristo, quandotudo o que se pregava era o batismo em nome de Jesus –isto é, a conversão dos gentios –, o Livro do Apocalipsepareceu atender perfeitamente aos objetivos da nova po-lítica de Roma, agora conduzida por Constantino, o pri-meiro imperador romano a professar o cristianismo eperseguir a criação de uma igreja católica, apoiada peloImpério Romano: o Sacro Império Romano.

Assim, uma vez assumido o cristianismo como religiãooficial e erguida a igreja católica em Roma, esta assumiu afunção de órgão oficial de censura aos panfletos apócrifos.E, com a edição de seus cânones, passou a determinar quais

documentos apócrifos podiam ser publicados, sendo o No-vo Testamento uma espécie de resenha dos registros permi-tidos pelo Império Romano através da sua igreja.

"Mas o que é mais interessante", conta Elaine Pagels, "éque, naquele momento em que o divino passava a funda-mentar o Sacro Império e os bispos estavam escolhendo os27 livros que iam compor o Novo Testamento, justamente oLivro do Apocalipse chamou a atenção de Atanásio, o bispode Alexandria, no Egito, em meio a dezenas de outros".

"Eu me perguntei: o que fez Atanásio lançar um olhardiferente sobre o Apocalipse?", questiona ela, para em se-guida explicar: "É o fato de ele ter realmente podido rein-terpretar todas as profecias de João. Em vez de tomá-lascomo uma referência à vitória de Deus sobre os poderesdo mal encarnados por Roma, Anastásio decidiu aplicara visão da guerra cósmica de João à luta do imperadorConstantino contra os hereges". Em suma, a "besta" po-deria não ser Roma, mas a heresia – sua associação ao Ar-magedom e todas as consequências que implica.

Estava assim inventada a contrapropaganda. E umaverdade oficial. (M.C.)

Reprodução

O Apocalipse é uma crítica mordaz ao Império Romano.

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Um olharcríticosobre ocristianismodos homens

Aprofessora de História da Religião daUniversidade de Princeton Elaine Pa-gels não tinha 13 anos quando come-

çou a colocar em xeque verdades tidas comoabsolutas. Autora de vários livros, abando-nou ainda na puberdade a zona de conforto doprotestantismo, onde seus pais a tinham edu-cado, para começar a frequentar uma igrejaevangélica. Pouco depois, porém, tambémlargou o culto quando anunciaram que umaamiga dela iria para o inferno, pois não tinha"nascido de novo".

Nos anos 70, não hesitou em mergulharnas aulas de grego e copta (egípcios cujos an-cestrais se tornaram cristãos) para destrin-char as origens do cristianismo e, em 1972, in-tegrou uma equipe de tradutores que haviatido acesso antecipado a uma mina de ouro:os manuscritos de Nag Hammadi – conjuntode 52 textos sagrados, alguns tão antigosquanto os evangelhos, descobertos por umcamponês egípcio que estava à procura defertilizantes, em 1945.

"Percebi que os conceitos tradicionais da fécristã que eu conhecia haviam sido simples-mente inventados e constatei que vários episó-dios da história do cristianismo primitivo ti-nham sido deixados de fora", relata.

De fato, o que mais tarde se denominou deevangelhos gnósticos é um olhar crítico – here-ge para alguns – sobre a evolução do movimen-to cristão e as evidências de um feroz debateteológico antes do cristianismo. "O que desco-brimos ali", sustenta Elaine Pagels, "é muitodistinto da história que nos foi contada, como

cristãos, porque a Igreja cristã escolheu nos daruma versão simplificada dela".

As pesquisas da historiadora resultaramnum primeiro best seller, Gnostics Gospels(Evangelhos Gnósticos), e uma carreira re-pleta de sucessos. No entanto, quis o destinocolocar novamente à prova as convicções deElaine Pagels – e em 1987, ela amargava amorte do filho único, Mark, com seis anos deidade. Um ano depois, Heinz, seu marido ealma-gêmea, também desapareceria em umacidente de alpinismo.

"Pode-se pensar: eu tenho feito o bem. Logo,as coisas deveriam andar bem. Mas quando vo-cê faz isso e as coisas dão errado, o primeiro im-pulso, por causa da nossa tradição, é jogar aculpa sobre nós mesmos. Afinal, está dito no li-vro do Gê ne sis que quem faz o bem, colhe obem. Mas isso não é verdade, e fatos como estecertamente têm o poder de acabar com qual-quer tipo de fé convencional."

Longe de abalar seus valores mais arragai-dos e o trabalho de dar alguma luz a estes textosantigos – tirando-os da instituição acadêmica etrazendo-os ao cotidiano dos comuns mortais–, os percalços de vida de Elaine Pagels não só adesafiaram num plano pessoal, mas tambémacabaram por enfraquecer a visão histórica dareligião que domina o Mundo Ocidental.

Em uma palestra na Califórnia em julho doano passado (cujo vídeo pode ser visto no en-dereço http://edge.org/conversation/-the-bo ok -o f- re ve lat io n- prop he cy -an d- po li ti cs ed-ge-master-class-2011), Elaine Pagels respon-deu a algumas questões do público presente.

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Por que as religiões ainda persistem?Elaine Pagels: Penso que é uma questão

emocional. Não é conceitual. As pessoas quetratam do assunto como se ele se resumisse aacreditar ou não em Deus, não entenderam na-da. Dito assim, acaba por ser demais intelec-tualizado. Religião tem a ver com esperança emedo. Com a forma como sonhamos. E creioque estas imagens todas – os monstros, as pros-titutas, os animais –, tudo isso tem a ver commedo e esperança. Revanche e raiva. Tudo issoainda funciona para algumas pessoas.

Você acha que a crença que Jesus é Deus foiexcessivamente enfatizada no cristianismo?

Creio que sim. A maioria das pessoas acre-dita que quando se fala de religião, o que se co-loca sobre a mesa é o fato de acreditar em Deuse que Cristo seja o filho de Deus. Não se per-gunta ao seu interlocutor no que ele acredita,por exemplo, se está comprometido com o fatode a vida ser sagrada. O que se busca são os va-lores partilhados.

Algumas pessoas dizem que você estariasugerindo uma religiosidade da Nova Era.

De fato, ouvi dizerem que isso parecia serum ensinamento ligado à Nova Era. Bem, sevocê considerar que dois mil anos é 'novo', en-tão, tenho de concordar....

Depois da morte de seu filho e de seu marido,você nunca imaginou ser possível ser feliznovamente. Agora, 15 anos depois, você está

novamente casada e quem sabe tenhadesenvolvido sua espiritualidade mais do quejamais tenha imaginado poder fazer....

Percebi que não posso viver sem uma dimen-são espiritual na minha vida. Isto é, eu fui levadaa acreditar que havia uma espécie de relíquia ar-caica sem a qual podíamos viver. Não creio maisque isso seja verdade. A dimensão espiritualtem um sentido extremamente importante navida e as comunidades religiosas são igualmen-te importantes. A questão de acreditar em umconjunto de cânones é muito menos importante,porque percebo que o movimento cristão pros-perou, e com isso pôde se impor sobre outroselementos da tradição. (M.C.)

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A dimensão espiritual tem um sentidoextremamente importante na vida.

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