desenvolvimento cognitivo - a. r. luria2

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Desenvolvimento Cognitivo - A. R. Luria2

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  • Obs: A paginao deste livro se encontra na parte inferior da folha

    A.R. LURIA

    DESENVOLVIMENTO COGNITIVO

    cone editora

    CONTRA CAPA

    O homem no est restrito a simples reflexos estmulo-respostas. Ele consegue estabelecer conexes indiretas entre as estimulaes que recebe e as respostas que emite atravs de vrios elos de mediao. Quando introduz uma modificao no ambiente atravs de seu prprio comportamento essa modificao vai influenciar seu comportamento futuro. Luria e Vigotski aplicam o conceito de mediao quase que exclusivamente aos processos de desenvolvimento mental da criana, especialmente ao discutir o papel da linguagem no desenvolvimento. Enfatizam a idia de que o desenvolvimento mental da criana deve ser visto como um processo histrico no qual o ambiente social e no social da criana induz o desenvolvimento do processo de mediao de vrias funes mentais superiores.

    Luria um arteso brilhante no uso do mtodo clnico para investigar os processos de raciocnio usados pelos indivduos ao enfrentarem os problemas por ele propostos.

    Suas atitudes ao dirigir com muito cuidado a investigao, ao utilizar o oponente hipottico, ao incluir discusses em grupo e utilizar as intervenes como dados, no encontram paralelo na pesquisa em psicologia do nosso sculo!

    Desenvolvimento CognitivoSEUS FUNDAMENTOS CULTURAIS E SOCIAIS

    Dados de Catalogao na Publicao (CIP) internacional(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Luria Alexander Romanovich, 1902 - 1977. Desenvolvimento Cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais/ A. R. Luria; Traduo Fernando Limongeli Gurgueira. - So Paulo: cone, 1990.

    Bibliografia. ISBN 85-274-0146-0

    1. Aculturao 2. Cognio 3. Personalidade e cultura 4. Psicologia - Unio Sovitica 5. Vygotsky, Lev Semenovic, 1896 - 1934 I. Ttulo

    CCD - 153. 4-150.9247 -150.947-155.2-303.482

    90-1301

    ndices para catlago sistemtico:

  • 1. Aculturao: Sociologia 303. 4822. Cognio: Psicologia 153. 43. Personalidade e cultura: Psicologia individual 155 .24. Unio Sovitica: Psicologia 150.9475. Unio Sovitica: Psiclogos: Biografia e obra 150.9247

    A.R. LURIA

    DESENVOLVIMENTO COGNITIVOSEUS FUNDAMENTOS CULTURAIS E SOCIAIS

    cone editora

    @ Copyright, 1990, cone Editora Ltda.Todos os direitos de traduo reservados.Proibida a reproduo total ouparcial desta obra.

    Arte Final Jos Remdio

    CapaAmauri Castro Reviso Juiz Roberto Malta

    ProduoMaria Assunta Espejo Traduzido para o portugus por: Luiz Mena BrretoMarta Kol Oliveira Minam M. M. de AndradeRegina Heloisa Maciel

    Reviso Tcnica:Maria Thereza Fraga Rocco,Maria Ednia M. M. de Andrade

    NDICE EDITORA LTDA.Rua Anhangera, 56/66- Barra Funda01135-So Paulo-SP.Tels.(O11) 826-7074/826-9510

    NDICEPrefcio..................................7Prlogo (por Michel Cole).................111. O problema .............................172. Percepo...............................373. Generalizao e abstrao .............654. Deduo e inferncia ................1355. Raciocnio e soluo de problemas ....157

  • 6. Imaginao .......................1817. Auto-anlise e autoconscincia ......1938. Concluso ........................ 215 Bibliografia ......................221

    pag:5

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    PREFCIO

    A histria deste livro um pouco fora do comum. Todo seumaterial de observaes foi coletado nos anos de 1931 e1932, durante a reestruturao mais radical da UnioSovitica: a eliminao do analfabetismo, a transio para umaeconomia coletivista e o realinhamento da vida pelos novosprincpios socialistas. Este perodo ofereceu umaoportunidade nica para observar quo decisivamente todasessas reformas causaram no apenas uma abertura dehorizontes, mas tambm produziram mudanas radicais naestrutura do processo cognitivo.

    A tese marxista-lenista segundo a qual todas as atividadescognitivas humanas fundamentais tomam forma na matrizna histria social, produzindo assim o desenvolvimentoscio-histrico, foi aprofundada por L. S. Vygotsky demodo a servir como base de grande parte da pesquisasovitica em psicologia. Entretanto, nenhuma dessasinvestigaes foi suficientemente completa ou abrangentede forma a verificar diretamente as teses marxistas. Oprograma experimental descrito neste livro foi concebidocomo resposta a esta situao e a partir de uma sugesto de Vygotsky.

    Fizemos nossas pesquisas nas regies mais remotas doUzbequisto e Kirghizia, nas "kishlaks" *(vilarejos) e "dzahailaus" (terras de pastoreio nas montanhas). Contudo,nossos esforos tambm teriam tido sucesso semelhantenas regies mais remotas da Rssia europia, entre ospovos do norte, ou nos acampamentos nmades do nordeste daSibria Apesar dos altos nveis de criatividade na cincia,arte e arquitetura

    NOTA DE RODAP: * NT: Os termos em russo na verso em ingls sero mantidos.

    pag:7

    atingidos pela cultura tradicional do Uzhequisto, as massas viviam h sculos na estagnao econmica e no analfabetismo, tendo seu desenvolvimento bloqueado entre outros tutores pela religio islmica. Apenas a reestruturao radical da economia, a eliminao rpida do analfabetismo e a remoo da influncia muulmana poderiam produzir, alm da expanso da viso de mundo, uma autntica revoluo na atividade cognitiva.

    Nossos dados indicam as mudanas decisivas que podem ocorrer na transio de mtodos de pensamento grfico e funcional - concreto e prtico - para modos mais

  • tericos e abstratos introduzidos por alteraes fundamentais das condies sociais, neste caso fruto da transformao socialista de toda uma cultura. Assim, as observaes experimentais serviram para esclarecer um aspecto da atividade cognitiva humana que tem recebidopouca ateno dos cientistas, mas que corrobora a dialticado desenvolvimento social.

    Hoje eu sei bem que alguns progressos na coleta de dadosem psicologia podem garantir pesquisa moderna umametodologia mais apurada e um sistema conceitual mais adequado. Porm, o imediatismo das mudanas sociais profundase rpidas que ocorriam no momento em que nossas observaes eram feitas justifica minha deciso, acredito, de publicar esta pesquisa na forma em que os dados foram coletados.

    Este livro contrasta com um grande nmero de estudos "culturolgicos" realizados fora da Unio Sovitica nas dcadas de 40 e 50. Alguns desses estudos, de autores reacionrios, tentam aplicar teorias "raciais" aos dados com a finalidade de demonstrar a "inferioridade" de indivduos. Outros trabalhos limitam-se descrio de diferenas entre processos cognitivos encontradas em culturas "atrasadas", freqentemente referindo-se a vises de mundo mais restritas, sem investigar as caractersticas especficas da estrutura psicolgica da atividade cognitiva dessas culturas, sem estabelecer vnculos entre tais caractersticas e as formas bsicas da vida social e, escusado dizer, sem o acompanhamento das mudanas rpidas e fundamentais que ocorrem quando essas formas sofrem reestruturao radical (tenta-se apenas adaptar esses povos "cultura ocidental").

    Tenho plena conscincia de que, no livro, os vrios captulos so apresentados de forma desigual: alguns detalhes so tratados adequadamente, outros apenas delineados. A razo no

    pag:8

    entanto de ter publicado todos os captulos contribuir com material para pesquisas futuras neste campo.

    Tenho uma dvida protunda pai-a com meu mestre e amigo L. S. Vygotsky (cuja morte ocorreu logo aps a concluso deste trabalho), bem como com vrios participantes das duas expedies de pesquisa para a sia Central, dentre os quais, P. L. Leventuev, F. N. Shemyakin, A. Bagautdinov, E. Baihurov,L. S. Gazaryants, V. V. Zakharova, E. I. Mordkovtch. K. Khakiinov e M. Khodzhinova.

    A. R. L..

    Moscou1976

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    PRLOGO

    MICHAEL COLE

    Ser til ao leitor, para apreciar melhor este livro extraordinrio, saber um pouco do clima intelectual e social da poca em que Alexandre Luria, ainda jovem, partiu para a Asia central. Em 1921 ele completou os estudos de graduao em sua cidade natal, Katan. Cursou a faculdade de Humanidades (ainda no existiam cursos de Psicologia na poca) e, ao terminar esse curso, matriculou na escola de Medicina de Kazan. O interesse pela Psicologia fez com que interrompesse seus estudos de Medicina em 1923, ao aceitar um cargo no Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou.

    Luria chegou ao Instituto de Psicologia num perodo degrande fermentao. Na Psicologia, como em vrios campos da vida intelectual russa, existiam muitas idias diferentes sobre como as coisas deveriam mudar com a revoluo. O diretor anterior revoluo. G. T. Chelpanov, havia sido substitudo por K. N. Kornflov, cujo objetivo era de remodelar a Psicologia segundo o pensamento marxista. Porm, no existia um acordo firme sobre o que seria exatamente uma psicologia marxista.

    O prprio Kornilov tentou estabelecer as linhas gerais de uma psicologia marxista no seu livro A Psicologia do ponto de vista do materialismo, publicado pela perimira vez em 1926 e depois reeditado diversas vezes. Seu tema mais importante era a inadequao da psicologia fenomenolgica, na poca fazendo sucesso na Rssia e na Europa. Por sua nfase nas reaes

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    simples e na medio precisa da velocidade, forma edurao dessas reaes, sua escola "reactolgica" depsicologia tinha muitas semelhanas com o florescentebehaviorismo americano. Quando chegou a Moscou, oprprio Luria trazia uma influncia mais forte dostrabalhos alemes que dos americanos. Tinha lido osprimeiros trabalhos os psiclogos da Gestalt e chegou aescrever um pequeno ensaio, tentando unificar algumasidias de Freud a mtodos objetivos de pesquisa. (os frutos desse trabalho apareceram muito mais tarde em inglssob o ttulo The Nature of Hunwn Conflict.)

    Em 1923 Luria conheceu Vygotsky numa conferncia emLeningrado. Vygotsky foi convidado a trabalhar em Moscouem 1924 e assim comeou a colaborao que levou pesquisa descrita neste livro. Vygotsky acreditava que apsicologia dos meados da dcada de 20 estavaatravessando uma crise que produziu uma separao docampo em duas disciplinas desconectadas. Por um lado, otrabalho de Sechenov, Pavlov e outros cientistas naturaistinha sido bem-sucedido no estabelecimento de uma basematerial para os processos psicolgicos elementares.Entretanto, o enfoque reflexolgico no fornecia ummtodo adequado para a abordagem de funes psicolgicas complexas que tradicionalmente compunham uma outra preocupao importante da psicologia - memria voluntria, soluo de pr

  • oblemas abstratos e imaginaocriativa, por exemplo. Por outro lado, os psiclogos quetomavam essas funes como objeto de estudoencontravam-se confinados a descries verbais baseadasapenas na introspeco, procedimento que no satisfaziaos anseios dos acadmicos soviticos por uma psicologia objetiva. materialista.

    Tanto Vygotsky quanto Luria aceitavam o princpio segundo o qual todos os processos psicolgicos esto baseados em reflexos. Entretanto eles resistiam posio, muito popular nos Estados Unidos na poca (e aceita por Kornilov), de que os processos psicolgicos complexos poderiam ser reduzidos a cadeias de reflexos. Vygotsky procurava a unidade mnima adequada a uma nova psicologia cognitiva que fosse capaz de conservar as caractersticas bsicas dos processos psicolgicos exclusivamente humanos.

    A propriedade elementar, caracterstica da conscincia humana escolhida por Vygotsky foi a da mediao .Segundo esta concepo, proposta pela primeira vez por Vygotsky no incio da dcada de 20, tanto o comportamento dos animais como o do homem constroem-se sobre uma base reflexa. Porm

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    o homem no est restrito a simples reflexos tipo estmulo-resposta; ele consegue estabelecer conexes indiretas entre a estimulao que recebe e as respostas que emite atravs de vrios elos de mediao. Quando o homem introduz uma modificao no ambiente atravs de seu prprio comportamento, essa mesma modificao vai influenciar seu comportamento futuro. O reflexo simples transforma-se num sistema reflexo no qual os instrumentos usados pelo homem para aturar no seu ambiente tornam-se sinais que ele ento passa a usar para influenciar seu prprio comportamento. Vygotsky acreditava que esta formulao possibilitava tanto a conservao do princpio do reflexo material como base do comportamento quanto a anlise das funes psicolgicas humanas enquanto atos mentais mediados e complexos.

    Essa linha terica tornou-se conhecida nos Estados Unidosatravs de diversas publicaes de Vygotsky (1962) e Luria (1961). Eles aplicam o conceito de mediao quase queexclusivamente aos processos de desenvolvimento mentalda criana, especialmente ao discutir o papel da linguagem no desenvolvimento. Vygotsky e Luria enfatizam a idia de que o desenvolvimento mental deve ser visto como um processo histrico no qual o ambiente social e no-social da criana induz o desenvolvimento de processos de mediao de vrias funes mentais superiores. O "Histrico" no contexto do desenvolvimento infantil tem sido geralmente interpretado como um fenmeno limitado ao indivduo, embora Luria tenha sempre chamado a ateno para o fato de o significado das palavras fornecer criana os resultados destilados da histria de sua sociedade.

    Este livro trata do aspecto histrico do desenvolvimento mental em sentido bem diferente. Em 1930, Luria e

  • Vygotsky publicaram uma monografia intitulada "Ensaiossobre a histria do comportamento". O referido trabalholevantava a possibilidade de que os princpios aplicadospelos autores ao desenvolvimento individual poderiam terparalelos no campo do desenvolvimento scio-cultural.Exemplos claros de mediao externa foram vistos emfenmenos tais como o uso de ns em cordas para ajudar amemria entre tribos da Amrica do Sul ou o uso devaretas em rituais por aborgenes australianos.

    Esses dados tinham no mximo valor anedtico, mas acabaram recebendo muita ateno por parte dos cientistassociais soviticos na poca. Provavelmente no se trata decoincidncia o fato de uma edio de dois livros de Lvy-Bruhl sobre

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    processos primitivos de pensamento ter aparecido em1930. Embora os editores do livro manifestassem duvidassobre algumas idias de Lvy-Bruhl, eles em geralaceitavam a tese de que as mudanas sociais eramacompanhadas de mudanas fundamentais dos processos de pensamento.

    Nessa mesma poca. como Luria conta no prefcio destelivro, enormes mudanas sociais estavam acontecendo emtoda a Unio Sovitica. A campanha para implantar prticasagrcolas coletivistas no pas inteiro estava em pleno vigor. Para oscomponentes da sia Central, a nova ordem exigia defato mudanas monumentais nos velhos padres culturais.

    Assim, buscando sustentao no s para sua nova teoriapsicolgica, mas tambm procurando demonstrar evidnciasdos benefcios intelectuais da nova ordem socialista, Luriapartiu para sia Central. Vygotsky . j doente detuberculose (morreu em 1934) s pde tomar conhecimentodo trabalho de campo atravs dos relatos.

    Aps duas expedies nas quais o material deste livro foicoletado, Luria fez alguns relatos pblicos preliminares deseus resultados, porm o clima intelectual em Moscounaquele momento no era muito simptico s suasconcluses. Embora Luria enfatizasse claramente osaspectos benficos da coletivizao, os crticos diziamque seus dados podiam ser lidos como um insulto ao povocom o qual havia trabalhado (Raznylov, 1934). Oestatuto das minorias nacionais na Unio Sovitica j setornara h algum tempo assunto delicado (no muito diferente da questo das minorias tnicas dos Estados Unidos).J se tomara apropriado e bom mostrar que camponesestradicionais e incultos aprendiam rapidamente os modosde pensamento caractersticos de povos industrializadose socialistas porm j se tornara definitivamente inaceitvel dizerqualquer coisa que pudesse ser interpretada como negativasobre essa gente num momento em que sua participao na vida naciona1 era ainda to tnue.

    Em 1974. quando o presente livro foi publicado na UnioSovitica, havia mais facilidade em aceitar as implicaesde padres diferentes de comportamento intelectualcaractersticos de diferentes grupos sociais. L. I. Antsyferova,

  • importante terica sovitica, resumiu assim acontribuio deste livro: "O livro de A. Luria umacontribuio importante e, pode-se dizer, sem exagero,nica, para a metodologia e teoria da cincia psicolgica epara o desenvolvimento de seu principio bsico do historicismo (Antsyferova, 1976, p. 256).

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    Uma parte da controvrsia inicial sobre o trabalho de Luriarelativo comparao entre culturas Luria pode tersurgido da orientao desenvolvimentista dada a estetpico. Seu objetivo geral era mostrar as razes scio-histricas de todos os processos cognitivos bsicos aestrutura do pensamento depende do tipo de estruturados tipos de atividades dominantes em diferentes culturas.Desse conjunto de premissas, segue-se que o pensamentoprtico vai predominar em sociedades caracterizadas pelamanipulao prtica de objetos e que formas mais"abstratas" de atividade "terica" em sociedades tecnolgicas vo induzir a pensamentos mais abstratos, tericos.O paralelo entre o desenvolvimento social e individualproduz uma forte tendncia interpretao de todas as diferenas comportamentais em termos de desenvolvimento social e individual produz uma forte tendncia interpretao de todas as diferenas comportamentais em termos de desenvolvimento. Paradoxalmente, exatamente essa orientao, associada genialidade de Luria no uso do que ele chamava "mtodo clnico", que torna esta obra to relevante hoje.

    Luria realizou sua pesquisa antes de a Psicologia "inter- cultural" tornar-se uma disciplina aceita na Europa e Estados Unidos. Existe hoje literatura ampla e crescente sobre as questes levantadas neste livro (ver as snteses de Berry e Dasen, 1974 Cole c Scribner, 1974; ou Lloyd, 1972). Porm, ainda esto para ser resolvidas as ambigidades na interpretao de diferenas culturais que Luria to claramente documenta.

    O estilo de Luria na interpretao desses dados semelhante ao procedimento tradicional de atribuir diferenas de desempenho entre duas culturas ao mesmo processo que gera as diferenas de desempenho entre crianas mais jovens e mais velhas no interior de uma mesma cultura. Essa linha de interpretao tem uma histria respeitvel, conforme as observa no texto de Greenfield e Bruner (l966), bem como trabalhos de linha piagetiana (Dasen, 1972) tm mostrado. Dentro desse quadro, os dados de Luria so originais ao mostrar mudanas ntidas entre adultos expostos a diferentes contextos de trabalhao e a nveis mnimos de educao (embora alguns dados de natureza semelhante tenham sido obtidos por Scrihner, 1974).

    Minha interpretao pessoal desse tipo de dados um pouco distinta, uma vez que sou um tanto ctico quanto utilidade da aplicao de teorias do desenvolvimento em estudos

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  • comparativos de culturas. Assim, aquilo que Luria interpreta , como aquisio de novos modos de pensamento, tenho tendncia a interpretar como mudanas na aplicao de modos proveniente disponveis aos problemas particulares e contextos do discurso representados pela situao experimental. Entretanto, o valor deste livro no depende da nossa interpretao dos resultados de Luria. Como ele enfatiza em diversas passagens, o texto representa um projeto-piloto ampliado que jamais poder ser repetido. Ser tarefa de outros pesquisadores, trabalhando naquelas partes do mundo em que ainda existem sociedades tradicionais, aperfeioar a interpretao desses achados.

    No apenas a exclusividade das circunstncias histricas confere a este trabalho interesse atual. At onde sei, no existe na literatura intercultural nenhum exemplo de aplicao dos mtodos utilizados aqui. Luria um arteso simplesmente brilhante no uso do mtodo clnico para investigar os processos de raciocnio usados pelos indivduos ao enfrentarem os problemas propostos por ele. As atitudes de Luria ao dirigir cuidadosamente e investigao, ao utilizar o oponente hipottico ("mas algum me disse..."), ao incluir discusses cm grupo e utilizar as intervenes como dados no encontram paralelo na pesquisa em psicologia do nosso sculo. J foi dito o suficiente. As personagens de Luria dizem melhor. Veja por voc mesmo.

    pag:16

    1

    O PROBLEMA

    Parece surpreendente que a cincia da Psicologia tenha evitado a idia de que muitos processos mentais sejam scio- histricos em sua origem, ou de que manifestaes importantes da conscincia humana tenham sido diretamente formadas pelas prticas bsicas da atividade humana e pelas formas da cultura existentes.

    Num processo que teve incio em meados do sculo dezenove, a Psicologia tentou colocar-se como cincia independente, cuja aspirao era analisar objetivamente os mecanismos fisiolgicos envolvidos no comportamento. Em diversos momentos de sua histria, a Psicologia distinguiu vrios mecanismos bsicos presentes em processos mentais. Em meados do sculo dezenove as atenesestavam focalizadas nos princpios de associao, os quaisse supunha fazerem parte de todo o complexo tecida davida mental humana. J na segunda metade do sculo,alguns investigadores voltaram sua ateno para fenmenos mentais mais complexos. Wilhelm Wundt, o fundador da Psicologia enquanto cincia natural, chamava esses eventos mentais de "apercepes ativas". Na virada do sculo, a maioria dos psiclogos aceitava a noo de que esses "atos" e "funes" mentais estavam na base de todas as formas de pensamento de processos volitivos. A escola de Wurzburg um exemplo dessa nova tendncia da Psicologia.

    Entretanto, a Psicologia cientfica logo mostrou-se inadequada diante da tarefa de

  • investigar todos os aspectos da vida mental ativa. Conseqentemente, um ramo da Psicologia foi proposto como disciplina independente paraocupar-se dos fenmenos mentais mais complexos: esta nova escola estava in-

    pag:17

    timamente ligada ao idealismo neokantiano sustentado pela "filosofia das formas simblicas", de Cassirer.

    A proposio dessa nova disciplina que tratava dos processos mentais complexos provocou uma forte reaoentre os psiclogos de tradio naturalista. Na primeiradcada do sculo vinte, tanto a psicologia da Gestalt na Alemanha quanto o behaviorismo americano assumiram o estudo das formas mais complexas e integrais da atividade mental ao lado das mais elementares. A Psicologia da Gestalt, restringindo-se Psicologia j estabelecida enquanto cincia natural, tentou liquidar com o atomismo e o associacionismo tpicos da Psicologia tradicional e descobrir as leis estruturais integrais encontradas mais claramente na percepo e talvez em outros processos psicolgicos. O bebaviorismo americano vislumbrou uma sada para as dificuldades da Psicologia tradicional com a recusa em estudar o mundo subjetivo e pela tentativa de encontrar leis da cincia natural para o comportamento integral. Tal enfoque apoiou-se na anlise do comportamento desenvolvida pelos fsiologistas que estudavam os processos nervosos superiores.

    Ao longo dessa trajetria, qual seja, a de tentar tornar-se uma cincia exata, a Psicologia, no entanto, procurou leis para a atividade mental "dentro do organismo". Entendia a associao como natureza estrutural da percepo; os reflexos condicionados envolvidos no comportamento eram considerados propriedades naturais e imutveis dos organismos (psicologia fisiolgica) ou como manifestaes de propriedades intrnsecas da mente (psicologia idealista). A noo de que as leis e propriedades intrnsecas da atividade mental permanecem inalteradas propiciou tambm tentativas de estabelecimento de uma psicologia social e de uma sociologia positivistas baseadas na premissa de que a atividades sociais refletem propriedades mentais que operam no interior dos indivduos. Wundt devotou a segunda metade de sua vida obra Volkerpsychologie (Psicologia do Povo), na qual tenta decifrar fenmenos sociais tais como a religio, os mitos, a moral e as leis, do ponto de vista da psicologia do ser humano individual. Para Wundt, esses aspectos do comportamento social refletem as mesmas leis naturais da associao e percepo que operam em nvel individual. As numerosas tentativas de encontrar os instintos individuais na base de todos os fenmenos sociais (comeando por Mc-Dougall e continuando com os neofreudianos e etologistas modernos, que consideram a guerra resultante dos impulsos agres-

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    sivos inatos do indivduo) representam apenas a continuidade dessa tendncia.

  • No h dvida de que a Psicologia cientfica realizou progressos considerveis no sculo passado e contribuiu muito para o nosso conhecimento da atividade mental. Apesar disso, ela quase sempre ignorou a origem social do processos mentais superiores. Os padres descritos acabam sendo os mesmos, para homens e animais, para homens de diferentes culturas e pocas histricas distintas e para processos mentais elementares e formas complexas de atividade mental.

    Alm disso, as leis do pensamento lgico, da memria ativa, da ateno seletiva e dos atos da vontade em geral, que constituem a base para as formas superiores e mais complexas caractersticas da atividade mental humana, resistiram a todas essas tentativas de interpretao causal, permanecendo assim alm da fronteira do conhecimento cientfico.

    No foi por acidente que Bergson falou das leis da "memria do esprito" como complemento das leis naturais da "memria do corpo", ao passo que os filsofos neokantianos distinguiam. alm das leis da associao que podiam ser analisadas pela cincia natural, leis das "formas simblicas", que funcionavam como manifestaes do "mundo espiritual" e no tinham nem origem nem fundamentao terica: podiam ser descritas, mas no explicadas. Apesar do progresso objetivo, portanto, um importante campo do conhecimento permaneceu divorciado das explicaes causais e no podia ser estudado de maneira significativa. Tal situao exigiu passos decisivos no reexame dos enfoques bsicos propostos para o estudo da atividade mental de modo a tomar a Psicologia uma verdadeira disciplina cientfica capaz de rejeitar decisivamente qualquer tipo de dualismo e de abrir o caminho para uma anlise causal at mesmo dos mais complexos fenmenos mentais. Este recxame implicou o abandono do subjetivismo na Psicologia e o tratamento da conscincia humana como um produto da histria social.

    A EVOLUO SCIO-HISTRICA DA MENTE

    As primeiras tentativas de abordagem dos processos mentais humanos como produtos da evoluo foram feitas na segunda metade do sculo dezenove por Charles Darwin e seu

    pag:19

    successor Herbert Spencer. Esses cientistas tentaram traar os caminhos pelos quais se desenvolvem as formas complexas de atividade mental e determinar a maneira pela qual as formas elementares de adaptao biolgica s condies ambientais se tornam mais complexas ao longo do processo evolutivo, O enfoque evolucionista, bastante adequado para o estudo comparativo do desenvolvimento mental no mundo animal, viu-se numa espcie de beco sem sada ao tentar pesquisar a evoluo da atividade mental humana. A noo segundo a qual o desenvolvimento individual repete o desenvolvimento da espcie (a "lei

  • biogentica" ou a "lei da recapitulao"), que se tornou amplamente difundida na poca, era claramente insuficiente e levava quando muito a concluses superficiais e reacionrias, como por exemplo a de que os processos de pensamento dos povos primitivos so muito semelhantes aos processos infantis (Taylor, 1874), indicando, portanto, a "inferioridade racial" dos povos atrasados.

    No incio do sculo vinte, Durkheirn recusou a interpretao dos processos bsicos da mente como manifestaes da vida espiritual interior ou como resultantes da evoluo natural, optando por localizar sua origem na sociedade (Durkheim e Mauss, 1963). As idias de Durkheim constituram as bases de outros numerosos estudos, dentre os quais os do psiclogo francs Pierre Janet e outros que desempenharam proeminente papel.

    Janet props que as formas complexas de memria, bem como as idias complexas de espao, tempo e nmero, tinham origem na histria concreta da sociedade, ao invs de surgirem a partir de categorias intrnsecas da vida espiritual. Na opinio de Janet, a lembrana no controlada e o retorno ao passado, considerados por Bergson as mais tpicas manifestaes da "memria do esprito", tm suas razes no armazenamento e transferncia de informaes na sociedade primitiva, particularmente na atividade de "mensageiro" de alguns indivduos daquelas sociedades - algum que usava tcnicas mnemnicas especiais.

    A psicologia clssica idealista considerava os conceitos de espao e tempo produtos irredutveis da conscincia. Os psiclogos franceses contrapunham, justificadamente, que as categorias conceituais bsicas de espao originavam-se da sociedade e no da biologia, remontando ao arranjo espacial do acampamento nmade primitivo. Os franceses pensaram da mesma forma em sua investigao sobre a origem do conceito

    pag:20

    de tempo nas condies da sociedade primitiva e seus modos de reconhecer o tempo. Eles tambm procuraram explicaes semelhantes para a origem do conceito de nmero.

    A escola francesa de Sociologia, entretanto, tinha uma deficincia importante que invalidou suas teorias. Recusava-se a interpretar a influncia da sociedade sobre a mente do indivduo como uma influncia do sistema scio-econmico e das formas existentes de atividade social sobre a conscincia individual. Distinguindo-se do enfoque materialista histrico, a escola francesa considerava esse processo apenas uma interao entre "representaes coletivas" ou "conscincia social" e a conscincia individual, ao mesmo tempo em que desconsiderava os sistemas sociais, histria e prticas particulares das sociedades. Ao fazer a aproximao das relaes entre trabalho e produo, enquanto atividades individuais, Durkheim via a sociedade como a esfera das convices e representaes coletivas, dando forma vida mental do indivduo. Este foi o ponto de partida para o trabalho subseqente de Durkheim como

  • tambm para o conjunto da escola francesa de Sociologia (Blondel, 1922: Durkheim e Mauss, 1963: e outros).

    A escola francesa deixou de lado tanto as formas particulares de trabalho quanto as condies econmicas que constituem a base de toda a vida social. A formao da mente no indivduo foi descrita como um evento puramente espiritual que ocorre isoladamente da prtica concreta e das condies particulares de seu ambiente fsico. Por isso as tentativas da escola francesa de Sociologia de definir as caractersticas essenciais da mente humana nos diversos estgios de desenvolvimento histrico levaram a concluses que retardaram a criao de uma psicologia verdadeiramente materialista.

    O trabalho de Lucien Lv-Bruhl (1930), representante dessa escola francesa, exerceu grande influncia. Partindo da premissa de que o pensamento humano numa cultura primitiva produzido pelas "representaes coletivas" predominantes naquela sociedade, Lvy-Bruhl concluiu que o pensamento primitivo segue suas prprias leis: ele "pr-lgico", frouxamente organizado e opera segundo a "lei da participao". O autor acreditava portanto que o pensamento primitivo era mgico, refletindo os sistemas de crenas e a mgica primitiva ao invs de refletir asrelaes prticas entre os seres humanos e a realidade.

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    Lvy-Bruhl foi o primeiro a apontar as caractersticas qualitativas do pensamento primitivo e o primeiro a tratar os processos lgicos como produtos do desenvolvimento histrico. Ele exerceu grande influncia sobre os psiclogos na dcada de 20, que tentavam ir alm dos conceitos simplistas sobre a mente vista enquanto produto derivado da seleo natural, entendendo-a como um produto do desenvolvimento scio-histrico. Suas anlises, entretanto, separavam o pensamento humano nos primeiros estgios de desenvolvimento histrico, das atividades e processos cognitivos existentes na poca, que eram ento considerados resultantes de crenas: se o povo primitivo realmente pensasse segundo as leis propostas por Lvy-Bruhl, dificilmente teria conseguido sobreviver por um nico dia.

    Os opositores de Lvy-Bruhl basearam-se em dados experimentais (Rivcrs, i926 Leroy, 1927) e buscaram apoio em antroplogos e lingistas como George Boas (1911). Em oposio aos achados de Lvy-Bruhl, eles propunham que o equipamento intelectual humano nas culturas primitivas era fundamentalmente idntico quele de povos mais avanados. Chegaram at a sugerir que os achados de Lvy-Bruhl indicavam que os homens, vivendo em condies primitivas, pensam segundo as mesmas leis da lgica que ns usamos. A nica diferena bsica no pensamento que eles generalizam os fatos do mundo exterior segundo categorias diferentes das que estamos acostumados a utilizar (Rivers, 1926). O pensamento de um povo primitivo no reflete inferioridade racial nem crenas distintas. Esse pensamento torna-se inteligvel para ns, todavia, apenas se entendermos as condies reais de vida desse povo e a linguagem por ele utilizada (Boas, 1911). Tal era o enfoque dos processos mentais humanos na poca em que iniciamos nosso trabalho.

    A pesquisa relatada neste livro, realizada h quarenta anos sob a iniciativa de Vygotsky e num contexto de mudanas sociais e culturais sem precedentes, adotou o po

  • nto de vista de que as atividades cognitivas superiores guardam sua natureza scio-histrica e de que a estrutura da atividade mental -- no apenas seu contedo especfico, mas tambm as formas gerais bsicas de todos os processos cognitivos - muda ao longo do desenvolvimento histrico. Por isso nossa investigao permanece vlida ainda hoje.

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    psicologia sovitica, usando o conceito de conscincia enquanto "existncia consciente" (das bewiste Sein) como ponto de partida, rejeitou o enfoque segundo o qual a conscincia representa uma "propriedade intrnseca da vida mental", invariavelmente presente em qualquer estado mental e independente do desenvolvimento histrico. Alinhando-se com o pensamento de Marx e Lenin, a psicologia sovitica sustenta que a conscincia a forma mais elevada de reflexo da realidade: ela no dada a priori, nem imutvel e passiva, mas sim formada pela atividade e usada pelos homens para orient-los no ambiente, no apenas adaptando-se a certas condies, mas tambm reestruturando-se.

    A idia de que os processos mentais dependem das formas ativas de vida num ambiente apropriado tornou-se um princpio bsico da psicologia materialista. Essa psicologia tambm admite que as aes humanas mudam o ambiente de modo que a vida mental humana um produto das atividades continuamente renovadas que se manifestam na prtica social.

    O modo pelo qual as formas da atividade mental humana historicamente estabelecidas se correlacionam com a realidade passou a depender cada vez mais de prticas sociais complexas. Os instrumentos usados pelos homens em sociedade para manipular o ambiente, alm de produtos de geraes anteriores que ajudam a formar a mente da criana em desenvolvimento, tambm afetam essas formas mentais. Na criana em desenvolvimento, as primeiras relaes sociais e as primeiras exposies a um sistema lingstico (de significado especial) determinam as formas de sua atividade mental. Todos esses fatores ambientais so decisivos para o desenvolvimento scio-histrico da conscincia. Novos motivos para a ao aparecem sob a forma de padres extremamente complexos de prticas sociais. Assim so criados novos problemas, novos modos de comportamento, novos mtodos de captar informao e novos sistemas de refletir a realidade.

    A partir de seu incio, as formas sociais da vida humana comeam a determinar o desenvolvimento mental humano. Considere-se o desenvolvimento da atividade consciente na criana. A partir do nascimento, as crianas vivem num mundo de coisas, produtos histricos do trabalho social . Elas apreendem a comunicar-se com os outros a sua volta e desenvolvem

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    relaes com objetos atravs da ajuda de adultos. As crianas assimilam a linguagem - um produto do desenvolvimento scio-histrico - e usam-na para analisar, generalizar e codificar suas experincias. Elas nomeiam objetos, usando expresses estabelecidas anteriormente na histria, enquadrando assim esses objetos em categorias e adquirindo conhecimentos. Uma

  • vez tendo chamado um objeto de "relgio" (chosy), a criana imediatamente incorpora esse objeto em um sistema de objetos relacionados com o tempo (chas); chamando um objeto que se move de "avio" (paravoz), a criana com naturalidade isola propriedades que definem esse objeto - movimento (vazit') produzido por vapor (par). A linguagem, que medeia a percepo humana, resulta em operaes extremamente complexas: a anlise e sntese da informao recebida, a ordenao perceptual do mundo e o enquadramento das impresses em sistemas. Assim as palavras - unidades lingsticas bsicas - carregam, alm de seu significado, tambm as unidades fundamentais da conscincia que refletem o mundo exterior.

    Entretanto o mundo de objetos particulares e de significados de palavras que os homens recebem das geraes anteriores organiza no apenas a percepo e a memria (assegurando assim a assimilao de experincias comuns a toda humanidade), mas estabelece tambm algumas condies importantes para o desenvolvimento posterior e mais complexo da conscincia. Os homens podem mesmo lidar com objetos "ausentes" e assim "duplicar o mundo" atravs de palavras que mantm o sistema de significados, esteja ou no a pessoa em contato direto com os objetos referidos pelas palavras. Dessa forma surge uma nova fonte de imaginao produtiva: fonte que pode tanto reproduzir objetos como reordenar as relaes entre esses objetos, servindo assim como base para processos criativos altamente complexos Os homens usam um sistema complexo de relaes sintticas entre as palavras de uma sentena e so em seguida capazes de formular relaes complexas entre entidades, gerar pensamentos e opinies. Em funo do sistema hierrquico de cada sentena, do qual as construes verbais e lgicas so um exemplo tpico, os homens tm sua disposio um poderoso instrumento objetivo que lhes permite tanto expressar objetos ou situaes particulares quanto criar cdigos lgicos objetivos. Esses cdigos tomam as pessoas capazes de ultrapassar a experincia direta e extrair concluses que tm tanta objetividade quanto os dados da experincia sensorial direta. Em outras palavras, a histria social

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    estabeleceu o sistema de linguagem e os cdigos lgicos que permitem ao homem saltar do sensorial ao racional: para o fundadores da filosofia materialista, tal transio to importante quanto a da matria inanimada para a matria viva.

    A conscincia humana deixa, portanto, de ser uma "qualidade intrnseca do esprito humano", sem histria e inacessvel anlise causal. Comeamos a entend-la como a forma mais elevada de reflexo da realidade criada pelo desenvolvimento scio-histrico: um sistema de agentes que existe objetivamente produz a conscincia humana, e a anlise histrica a torna acessvel.

    A importncia dos pontos de vista expostos neste livro no se limita ao fato de eles abordarem a conscincia humana como produto da histria social e apontarem na direo de uma anlise histrico-cientfica: a importncia deriva tambm do fato de estudarem os processos de ampliao dos limites da conscincia e de criao de cdigos como resultantes da vida humana em sociedade. Mais do que isso, alguns processos mentais no podem desenvolver-se fora das formas apropriadas de vida social. Esta ltima observao decisiv

  • a para a Psicologia, abrindo perspectivas novas e inesperadas.

    Ao aprender atividades complexas com objetos, corrigindo seu prprio comportamento atravs de relaes sociais e adquirindo sistemas lingsticos complexos, as crianas so levadas, invariavelmente, a desenvolver novas motivaes, criar novas formas de atividade consciente e propor novos problemas. A criana substitui suas brincadeiras iniciais de manipulao por outras que envolvem temas e papis inditos. Aparecem ento regras socialmente condicionadas para essas brincadeiras que se tornam regras de comportamento.

    Sob a influncia da linguagem dos adultos, a criana distingue e estabelece objetivos para seu comportamento: ela repensa as relaes entre os objetos: ela imagina novas formas de relao criana-adulto. reavalia o comportamento dos outros e depois o seu: desenvolve novas respostas emocionais e categorias afetivas, as quais se tornam, atravs da linguagem emoes generalizadas e traos de carter. Todo esse processo complexo, intimamente relacionado com a incorporao da linguagem na vida mental da criana, resulta em uma reorganizao radical do pensamento, que possibilita a reflexo da realidade e o prprio processo da atividade humana.

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    Nos momentos Iniciais da infncia, os objetos desconhecidos no so nomeados; os processos mentais usados por uma criana so diferentes daqueles empregados por um adolescente que j dominou a linguagem e analisa as informaes atravs de significados verbais. A criana que desenvolve hbitos tirando concluses de sua experincia pessoal imediata usa esquemas mentais diferentes daqueles empregados pelo adolescente, cujo comportamento mediado por normas estabelecidas atravs da experincia social. As impresses diretas, dominantes na criana, do lugar no adolescente s abstraes e generalizaes ipresentes da falta interna e externa.

    Vygotsky, ao analisar as mudanas fundamentais no desenvolvimento dos processos mentais (mudanas que expressam sucessivas formas de reflexo da realidade), observou que, enquanto a criana pensa atravs de lembranas, o adolescente lembra atravs do pensamento. Assim, a construo de formas complexas de reflexo da realidade e de atividade se d juntamente com mudanas radicais nos processos mentais que afetam essas formas de reflexo e constituem o substrato do comportamento. Vveotskv chamou essa proposio de estrutura semntica e sistmica da conscincia.

    Agora o psiclogo pode ir alm da descrio das diferentes formas de conscincia e de suas mudanas na criana e no adulto: ele pode tambm analisar as mudanas na estrutura dos processos mentais subjacentes atividade mental ao longo dos diferentes estgios do desenvolvimento e desvendar as mudanas at agora desconhecidas nas "relaes interfuncionais" entre esses processos. O psiclogo pode assim investigar o desenvolvimento histrico dos sistemas mentais.

    Nos primeiros anos da psicologia sovitica, os pesquisadores voltaram-se mais para as mudanas no desenvolvimento mental das crianas. As descobertas brilhantes ocorridas nos ltimos cinqenta anos mudaram drasticamente os conceitos tericos da Psicologia: a descrio da evoluo do significado das palavras, feita por Vveotsky: a anlise das mudanas ao longo do desenvolvimento da organizao da realidade na criana, proposta por Leontiev; a descrio da formao de aes voluntrias complexas (Zaporozhets, 1960) e as investigaes de Galpern (1937) e Elkonin (1960) sobre a formao de "aes mentais" internalizadas. Apesar dessas mudanas profu

  • ndas e alteraes recentes em seu perfil, a Psicologia est apenas iniciando o estudo dos processos mentais do ponto de vista especfico de sua formao scio-histrica. Ainda no sa-

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    bemos se as mudanas de estruturas scio-histricas ou mudanas na natureza da prtica social produzem apenas ampliao da experincia, aquisio de novos hbitos e conhecimentos, alfabetizao e assim por diante, ou se essas mudanas produzem uma reorganizao radical dos processos mentais, alteraes do nvel estrutural da atividade mental e formao de novos sistemas mentais. A demonstrao dessas consequncias teria importncia fundamental para a Psicologia enquanto cincia da histria social.

    Poucas tentativas tm sido feitas para abordar esse problema na Psicologia, em parte devido s poucas ocasies nas quais um investigador pode observar a maneira pela qual um sistema social em reestruturao produz alteraes aceleradas de formas de atividade social e mudanas rpidas das formas de conscincia: em parte, devido s tentativas - conscientes ou no - dos estudiosos de povos "atrasados" em justificar as desigualdades encontradas.

    Nossa pesquisa foi realizada durante um perodo de reorganizao rpida e profunda das estruturas sociais. Assim, foi possvel observar a formao scio-histrica dos processos mentais e preencher uma lacuna importante na cincia da Psicologia.

    A SITUAO DE PESQUISA

    A finalidade de nossa investigao - uma anlise da formao scio-histrica dos processos mentais - determinou a escolha de condies para obteno dos melhores resultados. Essas condies existiam no incio da dcada de 30 em regies remotas da Unio Sovitica. No final da dcada de 20 e incio dos anos 30, tais regies vivenciaram uma reestruturao radical de seu sistema scio-econmico e de sua cultura.

    Antes da revoluo, o povo do Uzbequisto Vivia numa economia atrasada, baseada principalmente no cultivo do algodo. Os habitantes das kishlak (vilas) mostravam resqucios de uma cultura importante no passado, ao lado de um analfabetismo virtualmente total, bem como influncia forte da religio islmica.

    Quando a revoluo eliminou a dominao e a submisso como formas de relaes entre as classes sociais, aquele povo oprimido na vspera viu-se livre no dia seguinte. Pela primeira

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    vez esse povo sentiu-se responsvel peio prprio futuro. O Uzbequisto tornou-se uma repblica com produo agrcola coletivizada: iniciou-se tambm o desenvolvimento industrial. O surgimento de um novo sistema econmico trouxe consigo novas formas de atividade social: a avaliao coletiva de projetos de trabalho, o reconhecimento e a correo de falhas e a distribuio das funes

  • econmicas. A vida scio-econmica dessas regies sofreu assim uma transformao completa. As mudanas radicais na estrutura de classes da sociedade fizeram-se acompanhar por novas mudanas culturais.

    Uma extensa rede de escolas foi aberta em regies perifricas nas quais o analfabetismo tinha sido de 1000% durante sculos. Apesar de sua natureza de curta durao, os programas de alfabetizao familiarizaram um grande nmero de adultos com elementos da tecnologia moderna. Os estudantes adultos deixaram de lado suas atividades cotidianas por algum tempo e comearam a lidar com os elementos de questes simples, porm de natureza "terica". Ao adquirir os rudimentos da leitura e da escrita, as pessoas tinham de desmembrar a lngua falada em seus componentes e codific-la segundo um sistema de smbolos. Elas aprendiam o conceito de nmero, que utilizavam apenas nas atividades prticas e agora se tornava uma entidade abstrata a ser compreendida por sua prpria natureza. Como resultado, as pessoas no s conheciam novos campos do conhecimento, mas tambm adquiriam novas motivaes para a ao.

    Muitos outros cursos especiais de curta durao foram introduzidos, principalmente em educao pr-escolar e agronomia elementar. Esses programas, que aceitavam alunos sem nenhuma educao formal, fora significativos no apenas pelo treinamento fornecido, mas tambm pela reestruturao da conscincia dos alunos, levando-os alm das preocupaes prticas imediatas, ampliando sua viso de mundo e trazendo-os para os nveis tericos da atividade.

    Escolas secundrias e institutos tecnolgicos foram ento criados (uns poucos no comeo, depois em maior nmero) nas quais os jovens recebiam educao mais avanada, iniciando-se nos fundamentos da cultura e da cincia modernas. A influncia islmica comeou a desaparecer: durante sculos ela havia retardado o desenvolvimento do pensamento independente atravs da sujeio do povo a dogmas religiosos e padres rgidos de comportamento. Todas essas circunstncias criaram a base para mudanas profundas do perfil ideolgico e

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    psicolgico dessa sociedade. Assim, o lugar e a poca de nossa pesquisa preenchiam os critrios exigidos pelo nosso projeto.

    Escolhemos vilarejos remotos do Uzbequisto e tambm alguns das regies montanhosas de Kirghizia como locais de trabalho. O alto nvel cultural do Uzbequisto est at hote preservado na magnfica arquitetura de Samarkand, Bukhara e Khorezm. Digna de nota tambm a produo cientfica e potica excepcionais de personagens como Ulug-Bek, matemtico e astrnomo responsvel pelo notvel observatrio nas proximidades de Samarkand, o filsofo Al-Bir-uni, o mdico Ali-ibn-Sinna (Avicenna), os poetas Saadi, Nizami e outros.

  • Entretanto, como tpico em uma sociedade feudal, o analfabetismo era generalizado, e o povo vivia isolado em vilarejos. dependendo completamente dos ricos proprietrios de terras e de poderosos senhores feudais. A economia individualista completamente desregulada centrava-se na agricultura - principalmente no cultivo do algodo - e na horticultura. A criao de animais dominava nas regies montanhosas de Mirghirzia adjacentes ao Uzbequisto: famlias dedicadas pecuria ficavam meses nas pastagens das montanhas.

    Para qualquer projeto importante, era necessria a adeso dos lderes religiosos. A religio islmica ajudava a manter ausentes os direitos das mulheres. Ao longo de sculos as mulheres tinham de ficar nos ichkari (alojamento das mulheres), s podendo sair cobertas por vu e tendo contato apenas com um crculo restrito de pessoas.

    Como seria de se esperar, essas regies da Unio Sovitica sofreram mudanas scio-econmicas e culturais Profundas. O perodo de nossas observaes incluiu o comeo da coletivizao e outras mudanas scio-econmicas radicais. alm da emancipao das mulheres. Pelo fato de se tratar de um perodo de transio, conseguimos tornar nosso estudo at certo ponto comparativo. Assim, pudemos observar tanto grupos subdesenvolvidos, de analfabetos (moradores dos vilarejos), quanto grupos j envolvidos na vida moderna, que experimentavam as primeiras influncias do realinhamento social.

    Nenhum dos diversos grupos observados havia recebido de fato nenhum tipo de educao superior. Mesmo assim, eram grupos muito diferentes em suas atividades prticas, modos de comunicao e perfis culturais. Os indivduos que ns observamos faziam parte de um dos seguintes grupos:

    1. Mulheres que viviam nos ichkari, em vilarejos afastados, analfabetas e sem nenhum envolvimento em atividade so-

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    cial moderna. Havia ainda um nmero considervel de mulheres desse tipo quando fizemos nosso estudo. As entrevistas foram realizadas por mulheres, uma vez que s elas tinham direito de entrar nos alojamentos.

    2. Camponeses que viviam em lugarejos afastados, mantendo ainda uma economia individualista, ainda analfabetos e que no participavam de nenhum tipo de trabalho socializado.

    3. Mulheres que freqentavam cursos de curta durao para trabalho em creches. Em geral essas mulheres no haviam recebido nenhuma educao formal e quase nenhum treino em alfabetizao.

    4. Trabalhadores de fazendas coletivas (kolkhoz) e jovens que haviam feito cursos rpidos. Estavam envolvidos ativamente no trabalho das faz

  • endas - administradores, funcionrios de escritrios do kolkhoz ou ainda lderes de brigadas. Esse grupo demonstrava experincia considervel no planejamento da produo, na distribuio de trabalho e no controle da produtividade do trabalho. Eles lidavam com outros membros do kolkhoz e tinham adquirido uma viso bem mais ampla do que aquela dos camponeses isolados. Porm, sua experincia escolar havia sido bem curta e muitos eram ainda semi-alfabetizados.

    5. Mulheres estudantes admitidas em escolas como professoras, aps dois ou trs anos de estudos. Suas qualificaes escolares eram, todavia, de nvel bem baixo.

    Apenas os ltimos trs grupos tinham vivido sob as condies necessrias para alguma mudana psicolgica radical. Havia agora novas motivaes para a ao, bem como novas formas de acesso cultura tecnolgica e ao domnio de mecanismos como a leitura e outras formas novas de conhecimento. A transio para uma economia socialista trouxe consigo novas formas de relaes sociais e, com elas, novos princpios de vida. Os dois primeiros grupos foram muito menos expostos a condies que pudessem produzir mudanas to fundamentais.

    Nossa suposio era que, nos dois primeiros grupos, deveramos encontrar um claro predomnio daquelas formas de cognio derivadas da prtica grfico-funcional,* ao passo que os outros indivduos mostrariam mais pensamentos com mediao. Ao mesmo tempo espervamos que as necessidades de comunicao das pessoas envolvidas no planejamento do trabalho coletivo nas fazendas tivessem algum impacto explcito sobre seu pensamento.

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    Ao comparar os processos mentais desses grupos, estvamos assumindo ser possvel observar as mudanas causadas pelo realinhamento scio-econmico e cultural.

    Procedimentos

    Nosso mtodo de pesquisa no poderia limitar-se a observaes simples: nossa proposta aproximava-se de um esquema experimental completo, o que acarretou dificuldades inevitveis. Um experimento psicolgico de curta durao poderia ter sido vivel no laboratrio - onde poderamos preparar adequadamente os indivduos - porm seria muito problemtico nas condies de campo. Estranhos recm-chegados, fazendo perguntas aos moradores dos vilarejos. colocando questes sobre coisas que no faziam parte das atividades habituais, naturalmente causariam surpresa e mesmo suspeitas, uma vez que ramos desconhecidos, e nossos objetivos ignorados pelos moradores. A aplicao de "testes" isolados, portanto, poderia fornecer resultados no representativos das capacidades: reais dos indivduos. Como em qualquer pesquisa de campo com populao, optamos por reforar o contato preliminar com a populao: tentamos estabelecer relaes amistosas de modo que os procedimentos

  • experimentais pudessem ser encarados com naturalidade, sem agressividade. Tivemos sempre o cuida do de evitar apresentaes apressadas ou mal preparadas do material dos testes.

    Nossas sesses experimentais comeavam, como regra geral, por longas conversas (algumas vezes repetidas) com os indivduos na atmosfera tranqila de uma casa de ch - onde os moradores dos vilarejos passavam a maior parte de seu tempo livre - ou ainda em acampamentos nas pastagens dos vales e montanhas ao redor de fogueiras noite. Essas conversas aconteciam geralmente em grupos: mesmo em entrevistas individuais, o experimentador e outros indivduos formavam pequenos grupos, escutando atentamente e algumas vezes intervindo na entrevista. A conversa freqentemente tomava a forma de troca de opinies entre os participantes, e um problema particular podia ser resolvido simultaneamente por dois ou trs indivduos, cada um dando uma resposta. O experimentador introduzia gradualmente as questes preparadas, que se pareciam com as "adivinhaes" que faziam parte dos hbitos da populao e se tornavam assim uma extenso natural da conversa.

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    Uma vez colocado um problema, os experimentadores no se limitavam a anotar a resposta, conduzindo sempre a conversa numa direo "clnica". A resposta de um indivduo estimulava novas perguntas ou debates, produzindo novas respostas, sem interrupo do fluxo de troca livre de idias.

    Para reduzir as complicaes nessas discusses livres (em Uzhek), o experimentador deixava o registro dos resultados a cargo de um assistente que se colocava geralmente perto do grupo de discusso, tomando cuidado para no atrair a ateno dos participantes. Anotaes eram feitas de forma contnua e apenas no final o material era passado a limpo e os dados processados. Esse procedimento, bastante trabalhoso, ocupava metade de um dia para uma curta sesso de discusso, porm era o nico mtodo adequado s situaes de campo.

    Uma outra condio para garantir a naturalidade da condio experimental referia-se ao contedo das tarefas apresentadas aos indivduos. Teria sido tolice propor problemas que pudessem ser considerados sem significado pelos indivduos. Testes desenvolvidos e validados em outras culturas produziriam fracassos repetidos, comprometendo nossos objetivos. Dessa maneira, no utilizamos testes psicomtricos padronizados; trabalhamos exclusivamente com testes desenvolvidos especialmente, testes com significado para os indivduos e abertos a diversas solues, cada um deles indicando algum aspecto da atividade cognitiva. Por exemplo, os estudos de generalizao foram elaborados de forma a permitir solues tanto grfico-funcionais e situacionais quanto abstratas e categricas. O indivduo podia tanto resolver problemas envolvendo raciocnio dedutivo atravs

  • do uso de sua experincia prtica disponvel, quanto transferindo a situao para alm dos limites de sua experincia. A abertura dos problemas a diversas solues permitia uma anlise qualitativa dos resultados.

    Introduzimos tambm algumas tarefas de aprendizagem nos experimentos. Oferecendo ajuda aos indivduos em alguns momentos, tentamos demonstrar como e quanto eles poderiam usar essa ajuda na soluo de um problema e no procedimento para resolver outros problemas.

    Plano de pesquisa

    Nossos experimentos s poderiam ser bem-sucedidos se refletissem adequadamente as diferenas principais existentes

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    no pensamento de pessoas em etapas diferentes de desenvolvimento scio-histrico, revelando assim um padro ou uma sndrome. As caractersticas essenciais dos processos mentais dependem do modo pelo qual eles refletem a realidade: assim, uma forma particular de atividade mental deve corresponder a um nvel particular de reflexo.

    Nossa hiptese era a de que pessoas cujo processo de reflexo da realidade fosse primariamente grfico-funcional mostrariam um sistema de processos mentais distinto daquele encontrado em pessoas cuja abordagem da realidade fosse predominantemente abstrata, verbal e lgica. Quaisquer alteraes nos processos de codificao deveriam, invariavelmente, aparecer na organizao dos processos mentais subjacentes a essas atividades. Os problemas propostos por ns podiam ser resolvidos tanto em nvel concreto. grfico-funcional, quanto em nvel abstrato, verbal e lgico.

    Comeamos com alguns processos bsicos de percepo, ou seja, de codificao lingstica do material sensorial mais evidente. Aps essa etapa introdutria, estudamos o desempenho dos indivduos nos processos de abstrao e generalizao, especificamente na comparao, discriminao e agrupamento (ou classificao) de objetos - processo fundamental e determinante de outros estgios.

    Partimos da hiptese de que os indivduos seriam incapazes de agrupar objetos - ou mesmo de identificar suas caractersticas abstratas - segundo categorias semnticas abstratas. Tnhamos muitas razes para supor que esses indivduos recriariam situaes grfico e substituiriam os significados abstratos dominantes por situaes envolvendo experincia prtica concreta. Tnhamos tambm razes para supor que os significados das palavras seriam bem diferentes (uma vez que as palavras so os instrumentos bsicos do pensamento) e experimentos de descoberta de significados de palavras mostrariam tambm grandes diferenas de contedos de conscincia e estrutura de processos mentais. Se o nosso

  • raciocnio estivesse correto, poderamos dizer que os indivduos estudados apresentavam caractersticas especficas tanto nos seus sistemas de codificao da realidade percebida quanto nos prprios processos de pensamento. Acreditvamos que os sistemas de modos verbais e lgicos de soluo de problemas e de inferncia se apresentariam de forma diferenciada nos sujeitos estudados; o modo de pensar grfico-funcional adequado experincia prtica, poderia ser bem menos til em operaes

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    verbais e lgicas. Precisvamos, portanto, estudar a forma pela qual nossos sujeitos percebiam premissas lgicas e que tipo de processos especficos (grfico-funcionais ou lgico-verbais) eram utilizados para tirar concluses a partir dessas premissas. A etapa seguinte foi uma anlise psicolgica do uso de silogismos, cujas premissas pertenciam ou no ao sistema de experincia grfico-funcional. tal etapa levou-nos a uma investigao do raciocnio e a uma anlise psicolgica dos processos de discurso melhor estudados na soluo de problemas. Nesse caso precisvamos examinar a forma pela qual os processos de raciocnio ocorriam; se esses processos faziam parte da experincia prtica direta dos indivduos e que alteraes sofriam quando o raciocnio ultrapassava os limites da prtica grfico-funcional e penetrava no domnio do pensamento terico ou formalizado. A observao desse tipo de processo mental deveria revelar algumas das caractersticas particulares da atividade cognitiva dos sujeitos estudados.

    A etapa seguinte foi o estudo dos processos de imaginao, a mudana do nvel da percepo imediata para a operao em um nvel puramente simblico, verbal e lgico. Diferenas entre imaginao por reproduo e imaginao por construo constituram nosso material de estudo. Assumimos a hiptese de que a capacidade dos indivduos em criar abstraes a partir de sua experincia imediata, grfico-funcional, seria limitada e restrita sua prtica imediata. Se demonstrssemos esse fato nos nossos indivduos, obteramos outro atributo valioso da conscincia prtica cujas caractersticas fundamentais estvamos investigando.

    A ultima etapa dessa seqncia foi o estudo da auto-anlise e da autoconscincia. Espervamos rejeitar a noo cartesiana do primado da autoconscincia, que atribui papel secundrio percepo do mundo exterior e das outras pessoas. Assumimos a posio oposta: a percepo de si resultado da percepo clara dos outros, e os processos de autopercepo so construdos atravs da atividade social, o que pressupe colaborao com os outros, bem como uma anlise dos padres de comportamento. Assim, o objetivo final de nossa investigao foi o estudo de como a autoconscincia construda no exerccio da atividade social humana.

    Esse plano representou o esquema bsico do nosso estudo comparativo e permitiu-nos atingir o objetivo fundamental: uma demonstrao das alteraes psicolgicas fundamentais que ocorreram na conscincia humana

  • durante um realinha-

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    mento revolucionrio vigoroso da histria social - o desenraizamento rpido de uma sociedade de classes e a convulso cultural que criou perspectivas de desenvolvimento da sociedade jamais imaginadas.

    NOTA DE RODAP: * Nota do Editor: A expresso grfico-funcional" refere-se atividade dirigida pelas caractersticas fsicas dos objetos com os quais o trabalha em circunstanciais prticas.

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    2

    PERCEPO

    A anlise de alguns aspectos da percepo fornecer certamente evidncia clara da formao histrica dos processos psicolgicos. A psicologia tradicional tratou a percepo visual como um processo natural acessvel investigao pelos mtodos mais elementares da cincia natural. No estudo da percepo de cores., por exemplo, os primeiros investigadores se concentraram em processos fisiolgicos tais como a decomposio do pigmento visual, mistura de cores e contraste de cor; eles assumiram que as leis subjacentes a esses processos eram independentes das prticas sociais e no sofriam mudanas no curso da histria social. Os cientistas que estudavam as leis psicolgicas da percepo da forma tambm permaneciam dentro dos limites da cincia natural. Ao encararem esses fenmenos como comuns a toda a humanidade e no mutveis atravs da histria, os psiclogos esperavam encontrar as leis fisiolgicas ou mesmo fsicas a eles subjacentes.

    Nas ltimas dcadas, contudo, o desenvolvimento da psicologia solapou essas noes naturalsticas sobre a simplicidade relativa e imediatismo da percepo. A evidncia acumulada sugere que a percepo um processo complexo envolvendo complexas atividades de orientao, uma estrutura probabilstica, uma anlise e sntese dos aspectos percebidos e um processo de tomada de deciso. Em resumo, percepo um processo complexo e estruturalmente similar aos processos subjacentes s atividades cognitivas mais complexas (ver Lindsay e Norman, 1972). Exemplos retirados da percepo de cor e de forma demonstram essa afirmao.

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    O psiclogo americano Jerome S. Bruner notou corretamente

  • que toda percepo um processo ativo, inerentemente complexo de classificar informaes novas em categorias conhecidas, sendo um evento intimamente ligado s funes de abstrao e generalizao da linguagem. O olho humano pode distinguir at dois ou trs milhes de matizes diferentes, mas o ser humano possui somente vinte a vinte e cinco nomes de cores; uma pessoa que percebe um determinado matiz isola seus aspectos primrios e o classifica em uma categoria de cor. O mesmo verdade para a percepo de formas geomtricas, que raramente se adaptam ao ideal geomtrico. Portanto, a percepo humana deve invariavelmente incluir as tarefas de isolar os aspectos essenciais da forma e catalog-las na categoria geomtrica mais prxima. Todas as simulaes da percepo pelo computador envolvem um processo complexo de anlise e sntese incluindo a "tomada de deciso", que situa qualquer forma dada em uma categoria estrutural particular. Desde que reconheamos que a percepo uma atividade cognitiva complexa que emprega dispositivos auxiliares e envolve uma participao ntima da linguagem, devemos alterar radicalmente as noes clssicas de percepo como um processo no mediado, dependente somente de leis relativamente simples da cincia natural.

    Podemos ento concluir que, estruturalmente, a percepo depende de prticas humanas historicamente estabelecidas que podem no s alterar os sistemas de codificao usados no processamento da informao, mas tambm influenciar a deciso de situar os objetos percebidos em categorias apropriadas. Podemos, portanto, tratar o processo perceptual como similar ao pensamento grfico: ele possui aspectos que mudam com o desenvolvimento histrico.

    A abordagem histrica requer que prestemos ateno aos cdigos historicamente estabelecidos envolvidos na percepo, inclusive naquele referente a objetos e propriedades relativamente simples. Ela nos fora a duvidar de que as leis da cor e da forma permanecem "imutveis" para sempre. De fato, essas leis possuem uma natureza historicamente limitada. Por exemplo, as categorias familiares da percepo de cores (vermelho. amarelo, verde, azul) ou da percepo de formas (quadrados, tringulos, trapzios e assim por diante) somente expressam regras perceptuais tpicas dos seres humanos,cuja conscincia vem sendo formada sob a influncia de categorias estabeleci-

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    das durante um perodo particular de tempo, notadamente sob a influncia de determinados conceitos aprendidos na escola.

    Como a percepo muda nos diferentes estgios do desenvolvimento? Quais so as relaes entre a percepo e a experincia prtica? Como podemos caracterizar a percepo das pessoas que, alm de no terem freqentado a escola, tambm no possuem as faculdades conceituais

  • adquiridas somente atravs da instruo sistemtica? Como as pessoas designam as cores ou formas geomtricas, como as generalizam e, finalmente, de que maneira elas analisam e sintetizam as formas visuais?

    Nossa hiptese que nem o processamento da informao visual elementar nem a anlise dos objetos visuais se conformam com as leis tradicionais da Psicologia. Alm disso, afirmamos que essas leis se aplicam somente a um perodo relativamente breve da histria, Nosso objetivo aqui analisar a nomeao e classificao das cores e das figuras geomtricas. De forma suplementar, discutiremos ainda as iluses visuais, que tambm indicam o carter histrico da percepo. Nossa anlise comea com a perspectiva de Vygotsky, segundo a qual a natureza semntica e sistemtica dos processos psicolgicos se aplica tanto percepo quanto s outras atividades mentais.

    A questo se a percepo de cores muda de acordo com o desenvolvimento cultural da sociedade tem sido bastante estudada. Desde os primrdios da psicologia fisiolgica, os investigadores observaram que as bases fisiolgicas da percepo de cores permaneceram imutveis atravs do desenvolvimento histrico. Contudo, desde o incio, eles chamaram ateno para as profundas diferenas estruturais no vocabulrio das cores nos, diferentes sistemas de linguagem e tambm para os possveis efeitos que essas estruturas poderiam ter sobre os processos cognitivos. Tal hiptese, primeiramente proposta por Humboldt e aceita por vrios lingistas, veio a ser chamada de hiptese de Sapir-Whorf: os aspectos lingsticos tm um impacto sobre a percepo e em particular sobre a percepo de cores. As lnguas podem distinguir entre certas diferenas de cor e ignorar outras, algo que inevitavelmente leva a diferentes agrupamentos. Os eruditos estudaram o nome das cores na linguagem bblica, nas lnguas africanas (Virchow, 1878, 1879; Rivers, 1901), e diferenas em termos referentes a cores na lngua grega e nas lnguas ndicas (Allen, 1879; Magnus, 1877, 1880, 1883).

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    Essas descobertas levaram a vrias tentativas experimentais para determinar se as diferenas esto restritas esfera da linguagem ou se elas influenciam, e dessa forma propiciam, diferenas reais na percepo de cores. Rivers (1901), por exemplo, realizou alguns experimentos sobre a discriminao e a comparao de diferentes cores de amostras de l (primeiramente utilizadas por Holmgren); ele concluiu que quando uma lngua possui somente um nome para o azul e o verde, tais cores so freqentemente confundidas. Concluses similares so encontradas no trabalho de Woodwortli (1905-1906), Ray (1952), Levi-Strauss (1953), Brown e Lenneberg (1954), Lenneberg e Roberts (1956) e Conklin (1955).

    Todos esses cientistas notaram que a ausncia de nomes especiais para grupos de cores, bem como a presena de um grande nmero de subcategorias para outras cores no um fato resultante das peculariedades fisiolgicas da

  • percepo de cores, mas decorrente da influncia da cultura: o interesse" que as pessoas apresentam por certas cores e a falta de interesse em relao a outras (Rivers, 1901; Woodworth, 1905-1906; Ray, 1952: Whorf, 1956: e muitos outros). Eles tambm concluram que o grande nmero de expresses existentes para certas cores e a pobreza lingstica de semelhantes termos para outras cores so o resultado das diferenas observadas na importncia prtica que as diferentes cores possuem em diferentes culturas. Por exemplo, muitas lnguas de populaes que vivem prximas ao rtico contm dzias de termos para nuanas de branco (expresses para se referirem a diferentes tipos de neve - um fato de importncia prtica), enquanto nuanas de vermelho e verde - que no possuem a mesma importncia prtica - faltam em seu vocabulrio (ver Hunt, 1962; Hoijer, 1954; e outros).

    Em algumas culturas primitivas, nomes categoriais de cores no so predominantes: ao invs disso, as pessoas se utilizam de nomes figurativos associando cores a situaes concretas que possuem significncia prtica para elas (Rivers, 1901, e outros). Assim, estudos interculturais sobre a nomenclatura da percepo de cores corroboram as concluses de que o nome das cores se desenvolve por meio de estreita associao prtica, afetando a percepo. De que modo as diferentes formas de atividade prtica interferem no nome das cores? Que ocorrncias na atividade prtica levam a determinadas mudanas no nome das cores? Como uma atividade prtica particular

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    afeta a manipulao e a associao de cores, ou a comparao e generalizao de cores?

    PROCEDIMENTO

    Vrias cores so apresentadas a um sujeito. Solicita-se a ele que as nomeie e ento as categorize, dividindo-as em tantos subgrupos quantos lhe parea apropriado para classific-las em grupos de cores similares. Experimentos especiais foram conduzidos para obter agrupamentos forados". Nessas tentativas, os sujeitos devem dividir as cores ou formas em um determina do nmero de grupos ou avaliar algum grupo formado pelo experimentador. Para determinar as bases da classificao, utilizamos objetos que so similares em alguns aspectos, mas no em outros (por exemplo, tringulos desenhados com linhas contnuas, linhas pontilhadas, cruzes, e assim por diante).

    Foi realizado tambm um experimento em separado, envolvendo a avaliao (e classificao) de figuras incompletas. Atravs da observao de como os sujeitos nomeiam e classificam as formas incompletas, pudemos verificar se as mesmas "leis da percepo", que os psiclogos da Gestalt consideravam invariantes em todos os perodos histricos, estavam presentes nesses sujeitos.

    Um nmero entre cinqenta e oitenta sujeitos foi envolvido nesse experimento; conforme observamos, eles provinham de diferentes grupos populacionais com qualificaes educacionais e experincia diversificadas: mulheres "ichkari" (analfabetas), homens camponeses

  • (analfabetos), ativistas de fazendas coletivas, mulheres estudantes em cursos pr-escolares (semi-alfabetizadas), e mulheres estudantes de uma escola de professores. O material foi coletado pelo autor, juntamente com L. S. Gazaryants e E. N. Mordkovich.

    Designao e Classificao dos Matizes de Cores.

    A maioria das lnguas modernas possui um nmero limitado de nomes gerais para as categorias de cores (amarelo, vermelho, azul e verde, por exemplo); a maior parte desses nomes perdeu a conexo que uma vez teve com nomes de objetos, embora em alguns casos (laranja, rosa, violeta) vestgios dessa ligao ainda persistam. Nomes categoriais so usados para denotar a grande maioria das cores, enomes de objetos

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    so usados para se referir a uma pequena minoria. Almdisso, nas culturas modernas, a nomeao de cores quaseuniforme, mas no assim em culturas menos desenvolvidas; cores de significncia prtica so nomeadas por um nmero bem maior de termos do que as cores de pouca importncia prtica.

    A nomeao de cores em Uzbek similar de outras lnguas indo-europias. Uma exceo o "koa lngua Uzbek, que pode referir-se ou ao verde ou ao azul.

    Designao de cores. Apresentava-se aos sujeitos pequenos novelos de l (ou seda) de diferentes cores:

    1. rosa-brilhante2. vermelho3. vermelho-vinho4. amarelo-escuro5. amarelo-claro6. amarelo-esbranquiado7. amarelo-limo 8. amarelo-esverdeado9. palha10 - 13. nuanas de verde14. preto15 - 17. nuanas de azul18. azul celeste19. azul-celeste-claro20. violeta 21. laranja22. marrom23. rosa-claro24. rosa-escuro25. rosa-saturado26. cinza27. castanho

    Solicitava-se aos sujeitos que nomeassem essas cores. Os ativistas das fazendas coletivas e as estudantes responderam aproximadamente como as crianas em idade escolar de Moscou e como os estudantes. Eles freqentemente designavam as cores atravs de nomes

  • categoriais (azul, vermelho, amarelo), com refinamentos ocasionais (amarelo-claro, azul-escuro). Os sujeitos algumas vezes tinham dificuldades na nomeao das cores(particularmente as de nmero 16, 18, 19, 23, 24 e 26), emencionavam a inadequao de seu vocabulrio. Asrespostas freqentemente ocorriam da seguinte forma:"Para ns, uzbeks, uma mquina de costura chamada de"mquina" um forno, de "mquina", e um trator tambm uma "mquina". E o mesmo com as cores. Os homens noconhecem as cores e as chamam todas de "azul" (estesujeito era Yunus, um trabalhador das fazendas coletivas,fazendo um curso de educao para adultos). Nomes deobjetos (pistache, cor da rom, e assim por diante) foram empregados raramente ( 16% ). As mulheres ichkarl forneceram resultados no outro extremo do contnuo objeto-categoria. Elas deram nomes de cores mais ricos e mais diversificados do que os trabalhadores das fazendas coletivas e

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    estudantes. A relao entre nomes categoriais e de objetos grficos se mostrou inteiramente diferente. Os dois grupos forneceram aproximadamente o mesmo nmero de nomes categoriais de cores (9 no primeiro, 7 no segundo). Contudo, o primeiro grupo forneceu trs vezes mais nomes categoriais modificados. Nomes grficos e de objetos predominaram claramente no segundo grupo (9 no primeiro, 21 no segundo). Uma pequena lista dos nomes grficos e de objetos encontrados nos dois grupos torna este ponto mais claro (os nmeros em parnteses indicam quantas vezes o nome do objeto foi utilizado).

    Trabalhadores em fazendas coletivas e estudantes. Mulheres ichkari

    ris (9) mancha de fruta (4) ris (1)rom (1) pssego (7) fgado (1)pssego (2) rosa (1) algodo estragado (3)pistache (3) pistache (10) acar mascavo (1)tabaco (2) estrume de vitelo (10) dente canudo (1)fgado (2) estrume de porco (10) broto de algodo (1)vinho (1) ervilha (1) esfregado (1)tijolo (1) lago (1) um monte de gua (1)algodo estragado (7) cu (1) difcil detraduzir (3) (duas verses) papoula (1) (?) ar (1)

  • Em termos da distribuio de freqncia, os nomes categoriais predominaram no primeiro grupo, mas foram relativamente pouco freqentes no segundo, enquanto que a situao se reverteu no tocante aos nomes grficos e figurativos. Houve uma predominncia clara dos nomes grficos e de nomes de

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    objetos entre as mulheres ichkari, e de nomes categoriais entre os trabalhadores das fazendas coletivas.

    O sumrio dos dados de todos os grupos, apresentados na Tabela 1, exibe o mesmo padro.

    Tabela 1

    Grupo Nmero de Sujeitos Nomes Figurativos

    Mulheres tchkari 11 59,5%Mulheres em cursospr-escolares 15 30,5%Ativistas dasFazendas coletivas 16 16,7%Mulheres das escolas de professores 10 16.3%

    Agrupamento de Cores

    Essas diferenas na nomeao das cores so refletidas nos agrupamentos ou nas classificaes?

    O resultado do agrupamento de cores variou nos diferentes grupos. Sujeitos com nvel de desenvolvimento cultural relativamente alto (ativistas das fazendas coletivas, jovens com algum tipo de educao formal) no tiveram dificuldades na classificao das cores, separando-as em vrios grupos. Eles inspecionavam os novelos de l ou seda e os dividiam em grupos, que algumas vezes identificavam com os nomes categoriais apropriados e sobre os quais outras vezes simplesmente diziam: "Esta a mesma cor, somente um pouco mais clara" ou alguma coisa assim. Freqentemente arrumavam as cores em sete ou oitogrupos. Quando instrudos a modificar a classificao etomar os grupos maiores, combinando as cores em cincogrupos, faziam isso imediatamente. Somente em algunspoucos casos esses sujeitos comeavam a agrupar as coresde acordo com a sua saturao ou brilho: contudo, quando requisitados, eles imediatamente modificavam o princpio e colocavam os novelos em grupos de cores.

    Contudo, o grupo das mulheres ichkari nos apresentou um sistema totalmente diferente. Como regra, a instruo de

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    dividir as cores em grupos criava uma completa confuso e trazia baila respostas do tipo: "Isto no pode ser feito", "nenhuma delas a mesma, voc no pode coloc-las junto". "Elas no se parecem nem um pouco", ou "Isto

  • parece excremento de vitelo, e isto como o pssego" As mulheres freqentemente comeavam por colocar diferentes novelos juntos, e ento tentavam explicar seu agrupamento de cor, mas balanavam a cabea com perplexidade e falhavam completamente na realizao da tarefa. Algumas substituam o agrupamento solicitado, de cores primrias, por um arranjo de brilho ou saturaodecrescente. A srie resultante inclua o rosa-claro, oamarelo-claro e o azul-claro, ou uma srie nica de um contnuo de cores sem distino clara. Devido persistente sugesto, muitos sujeitos chegaram a resolver o problema separando as cores em grupos, mas ficou bvio que assim o faziam como uma concesso ao experimentador, continuando eles prprios convictos de que as cores "no se pareciam e no poderiam ser colocadas juntas".

    Aproximadamente 20% dos sujeitos nesse grupo ou continuavam a se recusar a colocar as cores em grupos que "no se pareciam" ou separ-las em um grande nmero de pequenos grupos. Enquanto regra, isso envolvia uma classificao mista, alguns grupos incluindo nuanas de uma mesma cor (vermelho. verde e outras), outros incluindo cores organizadas por brilho ou saturao (azul-escuro, vermelho-escuro e verde-escuro ou rosa-claro, amarelo-claro e branco). Esses sujeitos podiam atribuir algumas nuanas de uma cor a uma categoria especfica, isto , dar-lhes uma classificao unitria.

    O comportamento idiossincrtico dos sujeitos nesse grupo foi particularmente acentuado nos experimentos de classificao "forada". Quando solicitados a agrupar as cores em cinco grupos, os sujeitos se recusaram, afirmando que "no podia ser feito", que ento "elas no se pareceriam", ou que "as escuras e as claras ficariam juntas". ou que "elas no ficam bem juntas". Somente quando lhes foi dito para usarem mais do que cinco grupos, que um tero dos sujeitos foi capaz de realizar a tarefa; novamente aqui, eles incluram nuanas de cores diferentes, escolhendo cada grupo com base no brilho e saturao.

    A Tabela 2 mostra que um quinto das mulheres ichkari falhou na classificao, enquanto um quarto delas substituiu a classificao requisitada por um arranjo em srie contnua de saturao crescente ou decrescente. Somente metade dos sujeitos foi capaz de separar os matizes em grupos isolados; esses grupos incluam tanto matizes de mesma colorao quanto ma

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    tizes de diferentes coloraes de brilho ou saturao similar. Os demais sujeitos, que agruparam as cores de acordo com categorias-padres. no demonstraram a mesma dificuldade na classificao

    Tabela 2

    Grupo Ndm, de Falha na Arranjo por Classif. por Sujeitos classificao nuanas em srie cores primrias

  • Mulheres ichkari. 11 18,2% 27,3% 54,5%Mulheres na pr-escola. 15 0 6,3 93,7%Ativistas das fazendas coletivas. 16 0 5,8 94,2%Mulheres das escolas de professores. 10 0 0 100%

    Nenhuma das mulheres ichkari separou as cores em um pequeno nmero de grupos (Tabela 3). Por outro lado, 20% dessas mulheres mostraram uma tendncia para separ-las em um grande nmero de pequenos grupos, combinados pela cor, saturao ou brilho. A caracterstica mais tpica desse grupo foi no s de recusa em fazer uma classificao "forada", mas tambm de demonstrao de uma completa inabilidade para dividir as matizes em um pequeno nmero de grupos. Os outros sujeitos no apresentaram um nico episdio de talha em realizar uma classificao "forada". A maioria deles podia facilmente dividir as cores em cinco (ou algumas vezes em seis ou sete) categorias solicitadas.

    Apesar da ausncia de expresses de uma s palavra em uzbek para denotar categorias de cores-padro (similares quelas de outras lnguas), o uso de nomes categoriais e a funo que eles possuem na classificao das cores diferiam daqueles de sistemas mais desenvolvidos.

    Como vimos, entre as mulheres ichkari, que so altamente familiarizadas com o bordado, predominam nomes grficos e de objetos para as cores, ao invs de nomes categoriais. Conseqentemente, o processo pelo qual elas, agrupam e classificam as cores to diferenciado que impede de design-las nas categorias distintas descritas na literatura sobre a psicologia da percepo e codificao das cores. Geralmente, indivduos com educao formal no apenas possuem uma srie de

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    Tabela 3. Classificao Livre e Forada dos Matizes de Cores (nmero mdio de maneiras de classificao de 25 a 27 matizes; porcentagens)

    Grupo Classificao livre Classificao (nmero de grupos) forcada

    N. Recusas. 12-17.10-12.7-10. 5-7. Recusas 5 5

    Mulheres ichkari. 10 20 20 10 50 0 70 30 0Mulheres na pr-escola. 15 0 6,1 18,3 63,4 12,2 0 18,2 81,8 Ativistas Das Fazendas Coletivas. 16 0 5,8 35,4 58,8 0 0 25 75Mulheres dasEscolas deProfessores. 10 0 11,2 22,3 55,4 11,2 0 57,2 42,8

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  • designaes categricas para as cores, mas tambm as colocam em uso, enquanto o nosso grupo de sujeitos emprega um procedimento de classificao bastante diferente.

    Um nmero considervel de mulheres ichkari se recusou a realizar qualquer operao de classificao abstrata, substituindo-a por uma de "seleo" de cores, e arranjando-as em determinado espectro em termos de combinaes de saturao, brilho ou cor. Seus agrupamentos de cores eram tipicamente fracionados. As tentativas de obteno de um agrupamento de cor, no qual somente a cor primria aparecesse em cada grupo- tentativas de forar o desengajamento de sua percepo de cor no imediata - levaram a uma falha na realizao da tarefa. Essa forma no mediada de se relacionar com as cores, sem fracion-las pelo prisma dos nomes categoriais, bastante caracterstica desse grupo, porque sua experincia prtica imediata se relaciona a esse tipo de operao com as cores.

    Uma operao de tal natureza com as cores desaparece entre os grupos mais desenvolvidos, visto que a nomeao categrica das cores se torna mais e mais proeminente. Este ltimo tipo de nomeao comea a ter um papel importante na designao das cores em grupos especficos. Em resumo, o processo de classificao das cores assume a forma familiar de manipulao de categorias de cores, abstraindo-se as nuanas diretamente percebidas de brilho e saturao. Podemos, portanto, concluir que mudanas psicolgicas profundas devem ter acontecido.

    A NOMEAO E A CLASSIFICAO DE FIGURAS GEOMTRICAS

    No primeiro quarto do sculo vinte, uma das mais importantes reas da investigao psicolgica era a percepo de figuras geomtricas. Os psiclogos da Gestalt tentaram descrever as leis bsicas da percepo estrutural a fim de encontrar os processos que uniam a Psicologia e a Fsica e constituam as bases naturais dos processos cognitivos humanos. No entanto, um aspecto essencial desse estudo da percepo geomtrica residia no fato de que o tipo de sujeitos utilizados era extremamente limitado. Em geral, os sujeitos eram bem educados- usualmente com treino universitrio, apresentando umpassado acadmico tanto em Psicologia quanto emGeometria. Assim

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    como nos experimentos da escola de Wrzburg sobre apsicologia do pensamento, nos quais os membros das faculdades serviam como sujeitos, tambm o trabalho dos psiclogos da Gestalt sobre a percepo das formas geomtricas demonstrava principalmente a percepo de pessoas com um treinamento altamente especializado.

    Nosso objetivo era determinar se as leis da percepo descritas pelos psiclogos da Gestalt eram as mesmas para sujeitos criados em diferentes sistemas scio-econmicos.

  • Nossa hiptese era a seguinte. Se a percepo das figuras geomtricas abrange um processo com uma estrutura semntica complexa, baseado em um sistema que envolve o isolamento de aspectos-chave, a escolha dentre vrias alternativas e a "deciso", este processo depender consideravelmente da natureza da experincia prtica do sujeito. Uma pessoa cuja atividade diria caracterizada principalmente por condies concretas, grfico-funcionaise pela prtica, obviamente distinguir e perceberaspectos geomtricos diferentemente de uma outra quepode basear-se no treino terico e em um sistema deconceitos geomtricos bastante diferenciado.

    Algumas investigaes recentes sugerem que a percepo das formas geomtricas depende muito das condies culturais, sendo portanto diferente, em diferentes condies culturais (HaIlowell, 1951, 1955: Segall, Campbell, e Herskovits, 1966). Alguns investigadores observaram, por exemplo, que pessoas vivendo em um "mundo tecnologicamente mais avanado" tendem a isolar ngulos e linhas retas, enquanto outras, vivendo em condies diferentes no fazem isso (Brunswick e Kamiya, 1953: Segall Campbell, e Herskovits, 1966). Experimentos envolvendo a rotao de um crculo em seu eixo mostraram uma constncia de forma maior nos povos togo da frica do que entre europeus (Beveridge, 1935, 1939). Essas observaes isoladas sugerem que a percepo das formas geomtricas varia de uma cultura para outra. Em particular, tais fatos propem que, sob condies culturaisdiferentes, a maneira de enxergar as formas geomtricas, que so objetos reais, pode criar padres de percepo da estrutura geomtrica bastante diferentes daqueles descritos pelos psiclogos da Gestalt.

    Uma vez que desejvamos verificar o palpite de que a percepo da forma dependeria bastante da experincia prtica do sujeito, conduzimos uma srie de testes nos quais sujeitos de diferentes grupos avaliavam ou nomeavam diferentes figu-

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    ras geomtricas e ento classificavam as formas similares em grupos separados.

    Para tornar a anlise (isolamento dos principais aspectos. designao das figuras sob certos termos e o agrupamentode figuras) acessvel investigao, apresentamos ossujeitos figuras geomtricas pertencentes mesma categoria, mas tendo formas diferentes. As figuras podiam estar completas ou incompletas, "claras" (somente o contorno) ou "escuras" (solidamente colorida: podiam ser formadas por linhas contnuas ou por elementos discretos (pontos, cruzes e outros: ver figura 1). Determinamos ento que aspectos os sujeitos isolavam c mo bsicos, as categorias s quais eles designavam cada figura em particular, bem como seus critrios para classificar as figuras. Como nas sries precedentes., os sujeitos eram mulheres ichknri. mulheres da pr-escola, ativistas kolkhoz, e mulheres estudantes de uma esco