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Paradigmas do desenvolvimento cognitivo: uma breve retrospectiva Suely de Melo Santana I ; Antonio Roazzi II ; Maria das Graças B. B. Dias II I Universidade Católica de Pernambuco II Universidade Federal de Pernambunco RESUMO A cognição humana tem sido foco de diversas investigações no campo da psicologia do desenvolvimento, buscando-se construir um referencial teórico-empírico para orientar estudos e intervenções nesta direção. O debate tem se situado em torno de grandes paradigmas piagetiano, neopiagetiano, processamento informacional, contextual e biológico- maturacional/neurociência cognitiva, sendo considerados, por vezes, enquanto referencial absoluto de verdade, e percebidos como excludentes entre si. O objetivo deste trabalho consiste em realizar uma breve retrospectiva dessas vertentes teóricas, buscando identificar pontos de interlocução entre elas, na tentativa de apreendê-las enquanto um corpo de conhecimentos que se complementam e integram vários olhares sobre a mente humana. Palavras-chave: desenvolvimento cognitivo; cognição humana; paradigmas A integração de saberes advindos da biologia, da neurologia, da física e da matemática, ao longo da história da psicologia, tem em muito contribuído para desvendar a complexidade, riqueza e sutileza do funcionamento humano. O percurso histórico das concepções sobre a mente, contribuiu para o incremento das investigações no campo da psicologia do desenvolvimento, principalmente a partir do século XX, quando os estudos sobre a cognição e seus processos passaram a receber um enfoque diferenciado, resultando num avanço dos conhecimentos na área da cognição humana.

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A cognição humana tem sido foco de diversas investigações no campo da psicologia do desenvolvimento, buscando-se construir um referencial teórico-empírico para orientar estudos e intervenções nesta direção. O debate tem se situado em torno de grandes paradigmas – piagetiano, neopiagetiano, processamento informacional, contextual e biológico-maturacional/neurociência cognitiva, sendo considerados, por vezes, enquanto referencial absoluto de verdade, e percebidos como excludentes entre si. O objetivo deste trabalho consiste em realizar uma breve retrospectiva dessas vertentes teóricas, buscando identificar pontos de interlocução entre elas, na tentativa de apreendê-las enquanto um corpo de conhecimentos que se complementam e integram vários olhares sobre a mente humana.

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Paradigmas do desenvolvimento cognitivo: uma breve retrospectiva

Suely de Melo SantanaI; Antonio RoazziII; Maria das Graças B. B. DiasII

IUniversidade Católica de Pernambuco IIUniversidade Federal de Pernambunco

RESUMO

A cognição humana tem sido foco de diversas investigações no campo da psicologia do desenvolvimento, buscando-se construir um referencial teórico-empírico para orientar estudos e intervenções nesta direção. O debate tem se situado em torno de grandes paradigmas – piagetiano, neopiagetiano, processamento informacional, contextual e biológico-maturacional/neurociência cognitiva, sendo considerados, por vezes, enquanto referencial absoluto de verdade, e percebidos como excludentes entre si. O objetivo deste trabalho consiste em realizar uma breve retrospectiva dessas vertentes teóricas, buscando identificar pontos de interlocução entre elas, na tentativa de apreendê-las enquanto um corpo de conhecimentos que se complementam e integram vários olhares sobre a mente humana.

Palavras-chave: desenvolvimento cognitivo; cognição humana; paradigmas

 

A integração de saberes advindos da biologia, da neurologia, da física e da matemática, ao longo da história da psicologia, tem em muito contribuído para desvendar a complexidade, riqueza e sutileza do funcionamento humano. O percurso histórico das concepções sobre a mente, contribuiu para o incremento das investigações no campo da psicologia do desenvolvimento, principalmente a partir do século XX, quando os estudos sobre a cognição e seus processos passaram a receber um enfoque diferenciado, resultando num avanço dos conhecimentos na área da cognição humana.

Desenvolvimento cognitivo

As teorias que investigam a natureza e o desenvolvimento cognitivo humano podem ser especificadas, segundo Flavell, Miller e Miller (1999), em quatro principais abordagens, a saber: o paradigma piagetiano; a perspectiva neopiagetiana; a abordagem do processamento de informações e o paradigma contextual. Ademais, outras duas abordagens começam a ser referenciadas nesta área: a biológico-maturacional e a abordagem do conhecimento baseado em teorias.

O paradigma piagetiano

Este paradigma destaca-se, sobretudo, pela influência marcante que exerceu sobre a psicologia do desenvolvimento, sendo um dos mais representativos e mais abrangentes nesta área. Até o final dos anos 70, Piaget dedicou-se ao

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aprofundamento das teses epistemológicas e a ampliação da psicologia genética no tocante aos aspectos dinâmicos do pensamento e, posteriormente, passou a enfatizar o estudo empírico do funcionamento cognitivo e seu papel fundamental enquanto propulsor do desenvolvimento, fazendo com que o construtivismo fosse o melhor definidor de sua obra nesse período (Coll & Gillièron, 1987). Ele direcionou suas investigações para o desenvolvimento qualitativo das estruturas intelectuais através de uma análise ontogenética que favoreceu a compreensão do comportamento humano adulto a partir de uma perspectiva evolutiva (Flavell, 1988).

A inteligência, na concepção piagetiana, organiza-se através de estruturas que atuam como mediadoras entre as funções invariantes e os diversos conteúdos comportamentais. Estes últimos variam de acordo com a idade e são caracterizados pelos dados comportamentais brutos, enquanto que as funções definem a própria essência, as características amplas da atividade inteligente, e que não variam em função da idade. Os invariantes funcionais básicos são, por conseguinte, a organização e a adaptação – que se compõe dos processos inter-relacionados de assimilação e acomodação. Sendo assim, "a atividade inteligente é sempre um processo ativo e organizado de assimilação do novo ao velho e de acomodação do velho ao novo" (Flavell, 1988, p. 17). Em outras palavras, pode-se dizer que "assim como os objetos precisam ajustar-se à estrutura peculiar do organismo em qualquer processo adaptativo (assimilação), o organismo também precisa ajustar-se às exigências idiossincráticas do objeto (acomodação)" (p. 45).

A relação existente entre formação de pensamento e aquisição da linguagem, na visão piagetiana, configura-se de caráter apenas correlacional, sendo o pensamento constituído por um processo bem mais amplo que remete ao desenvolvimento da função simbólica. Desse modo, na concepção piagetiana, defende-se que a maneira como a criança faz uso da linguagem, exprime o tipo de lógica que caracteriza seu pensamento. Afora isso, advoga-se também que a linguagem da criança preenche outras funções além da comunicação, observando, por exemplo, que durante seu desenvolvimento, a linguagem pode ser duplamente categorizada, ou seja, ela pode ser apreendida enquanto uma linguagem egocêntrica ou enquanto uma linguagem socializada (Flavell, 1988). Nesta concepção, existe uma lógica das ações que precede a aquisição da linguagem e que se encontra numa fase pré-verbal, anterior ao desenvolvimento da função semiótica, contrariando a tendência do empirismo lógico de vincular a gênese de todas as operações intelectuais à linguagem, através da tentativa de explicar o caráter operativo da lógica enquanto circunscrito aos aspectos sintático, semântico e pragmático da mesma. Assim, Piaget (1973) postula a diferenciação entre linguagem e lógica, alegando que, apesar da linguagem ser um importante instrumento, uma ferramenta expressiva do conhecimento, ela não é suficiente para a formação das estruturas operatórias, principalmente das estruturas lógico-matemáticas. Em sua concepção, existe um sujeito prévio, epistêmico, capaz de organizar suas ações sensório-motoras, fazer inferências práticas a partir de seu conhecimento de mundo.

Os esquemas, já no período sensório-motor (aproximadamente de 0 a 2 anos de idade), diferenciam-se das ações pelo fato de conservarem uma certa organização interna cada vez que aparecem, constituindo-se em uma unidade básica do funcionamento cognitivo e no ingrediente elementar de todas as formas de pensamento. Assim, inicialmente, o bebê desenvolveria esquemas reflexos, que se

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configuram em ações espontâneas e automáticas diante de certos estímulos, tais como esquema de sugar, esquema de preensão, etc. Paulatinamente, esses esquemas vão sendo submetidos a um processo de diferenciação que conduz à construção de esquemas de ação que, ao se coordenarem, favorecem a construção de novos esquemas. Por volta dos 2 anos de idade, esses esquemas de ação, devido ao surgimento da função simbólica, convertem-se em esquemas representativos, ou seja, em esquema de ação interiorizado (Coll & Gillièron, 1987).

De acordo com Piaget (1973), os esquemas seriam uma espécie de conceitos práticos, decorrentes de algo generalizável a partir de uma dada ação. Estes esquemas esboçariam o início das estruturas de classes e de relações, que, ao generalizarem-se, permitiriam à criança realizar uma espécie de classificação. Estabelecidas essas classes, observa-se, por um lado, uma compreensão – das qualidades que fundamentam a generalização – e, por outro, uma extensão – que consiste no conjunto de situações a que se aplicam. Contudo, essa extensão encontra-se limitada ao comportamento observado, uma vez que a criança carece de uma função simbólica que lhe permita representá-la. Vários tipos de relações estão envolvidos nos esquemas, que, tomando-se o caso da atividade de empilhar cubos de diversos tamanhos, resultariam numa forma de seriações sensório-motoras. Desse modo, a coordenação de esquemas variados, conduziria a inferências práticas que comportariam, posteriormente, as noções de conservação e reversibilidade operatória.

Em seu desenvolvimento, a criança constrói vários e diferenciados esquemas que tendem a formar combinações, dando origem às estruturas cognitivas, que traduzem uma forma particular de equilíbrio na interação do indivíduo com o ambiente. Na perspectiva piagetiana, a linguagem apenas favorece a interiorização das ações quando as estruturas já estão elaboradas, possibilitando a assimilação de informações verbais que estejam consoantes com o nível de elaboração das mesmas. As crianças em idade pré-escolar, nesta concepção, ainda não conseguem fazer a distinção entre estados mentais e físicos, assim como também apresentam dificuldades outras que remetem à questão do egocentrismo, uma vez que a criança pequena percebe-se como centro do universo, "pois ela não tem consciência de que as outras vêem as coisas de modo diferente, isto é, que seu ponto de vista é apenas um entre muitos outros" (Flavell, 1988, p. 278).

A linguagem, em seu desenvolvimento, nivela-se ao jogo simbólico, à imitação diferida e à imagem mental enquanto imitação interiorizada. Consoante com os pressupostos de Wallon, Piaget (1973) concebe que a imitação garante a transição das condutas sensório-motoras para as condutas simbólicas ou representativas, uma vez que sua diferenciação e interiorização permitem a distinção entre significantes e significados. Essa acepção vincula-se diretamente ao desenvolvimento da função simbólica, a qual favorece o aparecimento da representação simbólica (símbolo) e da representação conceitual (signo). Piaget (1978) situa os primórdios desse desenvolvimento no índice sensório-motor – que consiste apenas em uma parcela ou aspecto do objeto que permite antecipá-lo sem representação mental, simplesmente por meio de uma ativação do esquema interessado. A presença desse índice, por exemplo, encontra-se no fato de que a "criança de oito a nove meses já saberá reencontrar um brinquedo debaixo de uma coberta qualquer, quando a forma estufada desta serve de indício à presença do

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objetivo" (p. 129). De forma diferente, no entanto, Piaget salienta a distinção em relação ao símbolo, que já consiste numa representação, uma vez que repousa numa semelhança entre o objeto presente (significante) e o objeto ausente (significado), visto que uma situação passada é mentalmente evocada. Observa-se, no entanto, que existe a necessidade, nessa representação simbólica, de uma correspondência com o significado, fazendo com que o símbolo seja caracteristicamente motivado, o que já o distingue substancialmente do signo, cujo caráter primordial reside na arbitrariedade e na pressuposição de uma relação social que o legitime.

Essa conquista assegura o estabelecimento da função simbólica que subsidia o pensamento representativo, uma vez que permite o envolvimento simultâneo de eventos isolados, de forma a promover uma síntese interna e única. Em outras palavras, possibilita à criança evocar o passado, representar o presente e antecipar o futuro, por meio de um ato organizado e temporalmente curto (Flavell, 1988). Com a função simbólica, há uma diferenciação dos esquemas de ação em esquemas representativos. "A possibilidade de executar uma série de ações organizadas se enriquece com a possibilidade de se imaginar e de executar tais ações através de representações" (Coll & Gillièron, 1987, p. 39). Na concepção piagetiana "a função simbólica é uma aquisição muito geral e básica que torna possível a aquisição de símbolos privados e de signos sociais" (Flavell, 1988, p. 157). As operações consistem em sistemas relativamente complexos que estão aquém e além da linguagem, mas, no entanto, com relação às operações proposicionais que se desenvolvem entre 11 e 15 anos de idade, há uma maior dependência da linguagem, já que se encontram mais relacionadas à comunicação verbal e, deste modo, seria difícil concebê-las sem o uso da linguagem (Piaget, 1973). Durante esse período, observa-se que as operações se desvinculam paulatinamente do plano concreto, favorecendo o surgimento do raciocínio hipotético-dedutivo, cuja utilização permite ao indivíduo "agrupar representações de representações em estruturas equilibradas" (Coll & Gillièron, 1987, p. 41). Em outros termos, essa aquisição viabiliza ao adolescente pensar sobre o próprio pensar, evidenciando assim, a conquista de uma habilidade metacognitiva.

Foi justamente na tentativa de ratificar experimentalmente as postulações piagetianas que os pesquisadores começaram a identificar algumas inconsistências que tentaram suprir através de conhecimentos advindos de outras perspectivas teóricas. Assim, surge um novo referencial teórico, representado pela perspectiva neopiagetiana, que abordaremos a seguir.

A perspectiva neopiagetiana

Esta abordagem, de acordo com Flavell et al. (1999), resgata como paradigma básico a concepção estruturalista piagetiana, estabelecendo, no entanto, uma recorrência a outros paradigmas para preencher as lacunas evidenciadas na teoria, que, em linhas gerais, são expressas através da variabilidade do comportamento em função do contexto social, do tipo de tarefa, dos materiais e das instruções fornecidas às crianças. Sendo assim, a linguagem, na concepção dos teóricos pós-piagetianos (e.g., Astington, 2000; Flavell et al., 1999; Karmilloff-Smith, 1986; Olson, 1988), assume um papel bem mais preponderante na formação do pensamento do que o admitido na perspectiva piagetiana. Atribui-se a variabilidade a uma

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inconsistência observada na prática, quando crianças que deveriam apresentar as características de um determinado estágio não o fazem (por exemplo, deveriam conservar, mas não conservam; estão no período operatório-formal, mas demonstram um pensamento tipicamente operatório-concreto). De um modo mais específico, as divergências postas entre o pensamento piagetiano e os pós-piagetianos, residem em torno de quatro pontos básicos: noção de estrutura, mudanças qualitativas, passagens abruptas e coincidências (Flavell et al., 1999).

Quanto à noção piagetiana de estrutura enquanto um conjunto unificado de conhecimento ou habilidades cognitivas, os teóricos neopiagetianos tendem a considerá-la, sendo contrários, no entanto, à concepção de que estas estruturas operatórias têm um tipo definido e específico de organização, que obedece a modelos lógico-matemáticos que definem como a cognição estrutura-se nos estágios operatórios, concreto e formal. Esta contraposição respalda-se no fato desses modelos serem, por vezes, inconsistentes enquanto descrições teóricas dos processos mentais fundamentais. No tocante às mudanças de um estágio a outro, não se demonstram tão qualitativas nem tão abruptas quanto a concepção piagetiana fazia acreditar, sendo as mudanças mais graduais, importantes e extensas no tempo, assim como menos coincidentes do que seria de se esperar para uma caracterização de estágio. Alega-se, conforme citam Flavell et al. (1999), que a estabilidade que deveria suportar um estágio, na verdade, traduz-se num processo de mudança e transição contínuos, fazendo com que essa perda de previsibilidade reduza o valor científico do conceito de estágios, já que seria de se esperar que as competências advindas de um mesmo locus cognitivo emergissem mais ou menos ao mesmo tempo no desenvolvimento.

Isto posto, a perspectiva neopiagetiana busca suprir as incompletudes evidenciadas na teoria piagetiana através de outras abordagens, especialmente pelos processos de mudança providos pelo processamento de informação, uma vez que os conceitos são expressos mediante os processos de memória, atenção e estratégias em determinado ambiente, e a limitação da memória de curto prazo dificulta a expressividade dos mesmos. Flavell et al. (1999) comentam que a teoria de Case (1985, 1992) acerca da mudança cognitiva é considerada bem representativa dessa abordagem, enfatizando que:

o desenvolvimento cognitivo é uma seqüência de procedimentos cada vez mais poderosos para a solução de problemas, juntamente com um conjunto cada vez mais eficiente de estruturas conceituais de conhecimento. Em uma tentativa de alcançar seus objetivos e subobjetivos, as crianças constróem novas estratégias ou empregam estratégias preexistentes adequadas. (Flavell et al., 1999, p. 18)

Esta constatação encontra ressonância nas considerações tecidas por Karmilloff-Smith (1986), no tocante ao processo de mudança pelo qual passam as representações internas das crianças. Na concepção desta autora, a consciência metalingüística exerce um papel essencial no desenvolvimento em geral, e o processo representacional sofre mudanças através de níveis de explicitação progressivos. Em linhas gerais, a transformação do conhecimento ocorreria, contrariamente à concepção piagetiana de desequilíbrio adaptativo, através da estabilidade, do equilíbrio. Assim, teria início a partir de um nível implícito – em que não se tem acesso consciente e não se encontra definido representacionalmente –,

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passando para um nível de explicitação primária – que envolve uma redescrição do código anterior –, que pode ser operado internamente, sem, contudo, ser diretamente acessível à consciência. Transpondo a dicotomia usual do implícito/explícito, ela defende a existência de um nível de explicitação secundária – no qual há uma segunda redescrição deste código representacional –, agora com acesso consciente, que evolui para um nível de explicitação terciária – no qual a múltipla representação do mesmo conhecimento em diferentes códigos torna-se explicitamente ligada por um código comum, abstrato, propiciando ao sistema cognitivo humano uma grande flexibilidade. Sendo assim, diferentemente da perspectiva piagetiana, os neopiagetianos "abordam a especificidade do domínio das habilidades cognitivas e dos aumentos evolutivos da capacidade mental" (Flavell et al., 1999, p. 24).

Considerando-se que as reflexões demandadas pelos estudos neopiagetianos foram marcadas pelas novas conceitualizações advindas da perspectiva do processamento de informações, apresenta-se, a seguir, esta outra abordagem.

A abordagem do processamento de informação

Esta abordagem surgiu com o advento tecnológico após a Segunda Guerra Mundial e como uma contraposição ao paradigma behaviorista. As descobertas neste âmbito promoveram uma revolução em diversas áreas de conhecimento, sendo particularmente influentes no campo da psicologia do desenvolvimento. Trouxeram um novo referencial para o estudo dos processos mentais, elucidando uma análise minuciosa e detalhada do desenvolvimento cognitivo. De acordo com Carvalho (1998), o físico e matemático A. Newell e o economista H. A. Simon, representantes desse paradigma computacional, defendiam que qualquer máquina capaz de processar símbolos poderia simular também os processos mentais. Nesta abordagem, a inteligência era considerada enquanto um processo de busca, por meio de estratégias heurísticas cada vez mais eficientes, para resolução de problemas.

Este novo paradigma, caracteristicamente simbolista e conexionista, concebe a mente enquanto um sistema complexo de caráter lógico e não físico, buscando legitimar-se por meio de uma analogia estabelecida entre a mente humana e o computador (Carvalho, 1998). Utilizando-se desta metáfora computacional para simular os processos mentais, esta abordagem considera que a mente humana apreende uma informação, faz sua conversão para uma representação mental, atribuindo-lhe um significado através da comparação com outras informações anteriormente processadas e, por fim, a conserva armazenada na memória (Flavell et al., 1999).

As informações processadas variam quanto à natureza, ao tamanho e aos níveis de complexidade. Existem informações do tipo declarativas, que remetem ao sentido das palavras e fatos, e informações procedimentais, que esclarecem a forma de operacionalização para a resolução do problema. As informações podem se organizar em unidades pequenas e elementares ou, ainda, como um todo organizado em um nível mais abstrato, composto por várias unidades elementares, tais como scripts de eventos (festa de aniversário, de casamento, etc.) e planificação de estratégia para a resolução de problema (Flavell et al., 1999). A mudança

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cognitiva, nesta perspectiva, seria impulsionada pela automatização dos processos mentais, definida por Siegler (1991) como uma progressiva e eficiente execução de procedimentos que promove a liberação de recursos mentais para outras finalidades. Esta eficiência seria alcançada em decorrência da prática e aprimoramento das estratégias. Outros elementos impulsionadores do desenvolvimento seriam o aumento na velocidade e a ampliação da capacidade de processamento. Modelar o processamento cognitivo em tempo real, de maneira tão precisa, explícita e detalhada, que seja viável acionar o modelo como um programa de computador, além de poder realizar previsões específicas sobre o comportamento de uma criança e de um computador, por exemplo, submetidos a uma determinada tarefa em condições específicas, consiste na meta mais idealizada e desejada desta abordagem (Flavell et al., 1999).

Contudo, existem limitações, até o momento, que inviabilizam esse objetivo e que são provenientes do quantitativo de informações que o sistema consegue simultaneamente processar, assim como das operações cognitivas (tais como codificar, comparar e recuperar informações da memória) que, em geral, requerem tempo e são realizadas de forma serial. Estas limitações citadas fazem com que a realização de apenas uma tarefa possa acarretar numa sobrecarga do sistema, por requerer uma quantidade de procedimentos que excedam a sua capacidade (Flavell et al., 1999). Afora estas, uma outra limitação, como já mencionada inicialmente, remete à consideração de que a perspectiva de trazer a mente de volta às ciências humanas, advogada inicialmente pela revolução cognitiva, foi substituída por uma ênfase acentuada nos processos de informação, negligenciando-se assim, a descoberta e descrição formal dos processos de produção de significados que emergem da interação entre os seres humanos e o mundo (Bruner, 1997). Ademais, e talvez, a mais complexa de todas as limitações, seja a questão singular da consciência ou, em outras palavras, o fato da mente humana, não apenas realizar tarefas, mas primordialmente ter a capacidade de vivenciá-las, de experimentar a consciência de seus processos. Talvez, como salienta Carvalho (1998), a consciência seja um princípio fundamental irredutível, da mesma maneira que a carga elétrica, o espaço e o tempo.

As considerações relativas à questão da construção de significados e da consciência, negligenciadas pela abordagem do processamento de informações são, de uma maneira bastante diferenciada, valorizadas enquanto foco essencial de interesse dentro do paradigma contextual, que será abordado a seguir.

O paradigma contextual

Este paradigma representa uma nova e importante fronteira na ciência psicológica, devido ao forte papel atribuído às interações no ambiente social enquanto propulsoras do desenvolvimento cognitivo. Aqui, toda psiquê humana constitui-se a partir do coletivo (percorrendo um caminho que vai do exógeno para o endógeno), sendo substancialmente distinta das concepções anteriores em que se advoga uma constituição intrinsecamente individual e interna, delegando-se ao contexto social, no máximo, a função de facilitar ou dificultar o desenvolvimento. O marco referencial dessa perspectiva sócio-interacionista vem principalmente dos trabalhos de Lev Semenovich Vygotsky, revolucionário marxista que adotou como referencial o materialismo dialético, desenvolvendo suas pesquisas ao longo de 10

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anos em parceria com Alexander Romanovich Luria, Alexei Nikolaevich Leontiev e Leonid Solomonovich Sakharov. Devido a sua morte prematura, muitas de suas idéias não chegaram a ser concluídas (Vygotsky, 1993).

Na concepção vygotskyana, o estudo da consciência configura-se de primordial importância para a ciência da psicologia. Sua veemente oposição às duas correntes de pensamento dominantes na psicologia da época – a mecanicista e a idealista –, apoiava-se, por um lado, na desconsideração da consciência enquanto objeto de estudo da psicologia – evidenciada pelo behaviorismo – e, por outro, na abordagem à consciência sob os caminhos da introspecção, considerando-a enquanto fenômeno mental puramente subjetivo e exclusivamente interno. Assim, contrapondo-se à análise atomística e funcional da consciência, na qual os processos psíquicos eram investigados de maneira isolada, ele adotava uma perspectiva monista-holística (sistêmica), de que o desenvolvimento psíquico deveria ser estudado por meio dos sistemas psicológicos que integram a estrutura interfuncional da consciência (Leóntiev, 1999).

A gênese da consciência é atribuída, na concepção vygotskyana, à internalização dos processos interativos estabelecidos no ambiente social. Esta internalização, por sua vez, tem um caráter bastante dinâmico, não sendo caracterizada apenas como uma exata cópia interna das experiências (Wertsch, 1985). Ocorreria sim, por meio de uma reconstrução e resignificação dessa experiência, preservando, desta maneira, a unicidade e singularidade de cada indivíduo que partilha daquela interação social. Em outras palavras, o processo de internalização da experiência atuaria traduzindo-a de um nível interpsicológico para um intrapsicológico (Reig & Gradolí, 1998). Então, a consciência, enquanto subjetividade, delineia-se a partir das relações interpessoais mediadas por ferramentas – instrumentos materiais – e signos – instrumentos psicológicos (Rego, 1995), e por mediação social através das atividades cooperativas entre os indivíduos (Alvarez & Del Rio, 1996).

A defesa de um método dialético que contemple o estudo histórico dos processos de mudança, adotando uma análise do processo, das relações dinâmico-causais explicativas, possibilitando reconstruir todos os pontos do processo até a origem de uma certa estrutura, caracteriza o método vygotskyano enquanto experimental-desenvolvimentista. Estando além da análise fenotípica que identifica apenas as semelhanças externas dos fenômenos psíquicos, este método assegura a análise genotípica das funções psicológicas superiores, focalizando seus processos de construção e operacionalização, possibilitando abordar o desenvolvimento da criança em sua dialética complexidade (Vygotsky, 1998a). Afora a consideração histórica, este paradigma também postula a importância de se contemplar na análise as dimensões temporais (tempo filogenético, ontogenético, microgenético e tempo da história da humanidade), como caracteristicamente distintas e complementares (Lyra & Seidl de Moura, 2000; Wertsch, 1985).

Na análise das mudanças cognitivas, o conceito de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) assume um papel fundamental, que permite abordar o relacionamento existente entre o funcionamento intrapsicológico e interpsicológico. Esta apreensão favorece identificar a distância existente entre o nível de desenvolvimento potencial e o nível de desenvolvimento atual da criança (Wertsch,

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1985), caracterizando o período intermediário que precede a evolução dos processos psicológicos humanos. Em linhas gerais, a ZDP consiste em um momento transitório no qual a criança, potencialmente capaz, consegue solucionar um determinado problema quando está em interação com outra criança mais evoluída ou com um adulto, mas ainda não consegue resolvê-lo por si mesma, sem a ajuda de terceiros (Flavell et al., 1999).

Além da dimensão social, a perspectiva vygotskyana considera as dimensões cognitiva e afetiva enquanto constituintes da consciência, vinculadas por meio de uma relação indissociável de construção e reconstrução dinâmica ao longo de todo o processo de desenvolvimento. Esta consideração integrada entre cognição e afeto apresenta-se como marcantemente distintiva com relação às demais teorias do desenvolvimento cognitivo, uma vez que, partindo-se de uma análise realizada por Vygotsky (1998b) sobre os estudos anatômicos, fisiológicos e psicológicos acerca da emoção, apesar de haver uma gradual e importante transferência da vida emocional de um locus extra-cerebral para a área cerebral e de uma esfera orgânica para uma psíquica, as emoções continuavam a ser consideradas de ordem inferior e isoladas de outros processos psíquicos considerados superiores. As concepções de que o fluxo de pensamentos não seria autônomo e desvinculado dos interesses e necessidades pessoais daquele indivíduo que pensa (Oliveira, 1992) e, ainda, que as emoções poderiam sofrer evolução e refinamento, transformando-se de maneira qualitativa de emoções primitivas infantis a emoções superiores dos adultos (van der Ver & Valsiner, 1996) encontram respaldo na visão monista-holística, adotada por esta perspectiva.

Muitas das idéias germinadas no paradigma vygotskyano foram resgatadas por várias teorias contextualistas mais contemporâneas. Bruner (1997), por exemplo, investiga o locus da produção de significados na ação humana, assim como sua natureza e modelagem cultural, por meio do estudo de narrativas que constituem a psicologia popular. Ele defende o estatuto canônico dessa psicologia, alegando que ela sintetiza tanto o que as coisas são quanto o que deveriam ser. Dentro dessa concepção ele postula que "a psicologia popular trata de agentes humanos que fazem coisas com base em suas crenças e desejos, empenhando-se no atendimento a metas, encontrando obstáculos que eles dominam ou que os dominam, tudo isso se estendendo ao longo do tempo" (p. 46).

A metáfora da criança enquanto aprendiz lastreia o processo de mudança cognitiva para os contextualistas. Rogoff (1990) salienta que esta posição permite à criança iniciante não apenas acessar os aspectos explícitos da habilidade, mas também o acesso aos processos internos mais ocultos do pensamento. Os adultos nesse processo atuariam como incentivadores cognitivos na medida em que orientam e estimulam as crianças a desenvolverem todo seu potencial.

O paradigma vygotskyano também se configura como bastante contributivo, influenciando de maneira mais ou menos intensiva, os construtos teóricos elaborados em outras áreas, como a da neurociência cognitiva.

A abordagem biológico-maturacional: neurociência cognitiva

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A abordagem biológico-maturacional sustentada pela neurociência cognitiva, apesar de apresentar algumas nuanças, enfatiza basicamente que o processo da mudança cognitiva ocorre devido à dotação genética e à maturação cerebral. Considera-se, por exemplo, que a maturação do lobo frontal influencia na noção de permanência de objeto (Diamond, 1991; citado por Flavell et al., 1999) e que a mente constitui-se por módulos mentais inatos (Fodor, 1983; citado por Flavell et al., 1999). Uma abordagem à consciência que se configura inovadora dentro desta área merece uma referência nesse momento: a neurociência cognitiva.

Damásio (2000) traz mais uma importante contribuição para os estudos da mente com o resgate da abordagem à consciência, já priorizada nos estudos de Luria e Vygotsky. Ele afirma que a mente consciente é constituída em parte, por um sentido do self. A sua concepção de mente refere-se a um processo que abrange tanto operações conscientes quanto inconscientes. De acordo com sua concepção, na perspectiva da neurobiologia, o problema da consciência consiste na combinação de dois problemas inter-relacionados. O primeiro diz respeito a entender como o cérebro humano engendra os padrões mentais denominados de imagens de um objeto e, o segundo, remete a como, paralelamente ao engendramento desses padrões mentais, o cérebro também engendra um sentido do self no ato de conhecer. Este segundo problema induziria à descoberta dos alicerces biológicos da capacidade humana em construir tanto padrões mentais de objetos quanto padrões mentais que transmitem o sentido de um self no ato de conhecer.

A neurociência cognitiva tem contribuído no sentido de associar, de maneira mais concreta, determinados comportamentos a marcadores específicos de estrutura ou atividade cerebral. As descobertas nesse campo têm contribuído para a identificação da arquitetura neural que sustenta a consciência, revelando a existência de uma relação entre alguns aspectos dos processos da consciência e as operações de regiões e sistemas cerebrais específicos. Ainda, têm comprovado que os estados de vigília e a atenção básica são distintos da consciência e, também, que consciência e emoção são processos indissociáveis, visto que o comprometimento de uma afeta a outra, e vice-versa. Por fim, duas descobertas foram de especial importância, denotando que a consciência humana não é um monólito, podendo ser separada em tipo simples e complexo e que as funções cognitivas como linguagem, memória, razão, atenção e memória operacional, são necessárias, apenas, aos níveis superiores da consciência ampliada.

A necessidade da consciência reside no fato de que ações eficazes requerem imagens eficazes, uma vez que estas permitem não apenas escolher a ação mais adequada e otimizar sua execução, mas, principalmente, porque permitem inventar novas ações apropriadas a situações inéditas e fazer planos para ações futuras (grifos nossos). Desta forma, o surgimento da consciência prenuncia a antevisão do indivíduo, ou seja, seu potencial para realizar inferências e interpretações. Origina-se como um sentimento que acompanha a produção de qualquer imagem (visual, tátil, etc.) dentro do organismo e torna-se conhecimento.

Em linhas gerais, Damásio (2000) salienta que a consciência tem início quando o cérebro adquire o simples poder de contar uma história sem palavras, uma história de que existe vida no organismo e que este vivencia incessantes mutações, dentro dos limites do corpo, a partir de suas relações com objetos e eventos ou por

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pensamentos e ajustes internos do processo da vida. Segundo ele, pode existir mente sem consciência, porque consciência e mente são instâncias distintas. A consciência seria uma parte da mente relacionada ao sentido manifesto do self e do conhecimento. Ele advoga uma possível relação de privilégio entre consciência e sentimento, uma vez que o sentimento pode estar situado no limiar entre o ser e o conhecer. Contudo, os processos da emoção (conjunto de reações, em geral, de caráter público e não exclusivamente humano) e do sentimento (experiência mental de uma emoção, de caráter privado), independem da consciência.

Através das ligações estabelecidas com as idéias, princípios e valores, as emoções tornam-se especialmente humanas. O sentimento gerado por estas emoções, intermediando-a do público ao privado, propicia seu impacto sobre a mente. Contudo, a consciência apresenta-se necessária ao impacto integral e duradouro do sentimento, já que seu conhecimento requer a integração com um sentido de self. Ao falar das emoções, Damásio (2000) adota a distinção entre primárias ou universais (tais como alegria, tristeza, medo, raiva, surpresa), secundárias ou sociais (ciúme, culpa, orgulho) e emoções de fundo (bem ou mal-estar, calma, tensão). Salienta que as emoções são conjuntos complexos de reações químicas e neurais que formam um determinado padrão e que estão ligadas ao corpo, sendo seu papel regulador o de preservar a vida do organismo. Elas são processos determinados biologicamente, dependendo de mecanismos cerebrais inatos e automatizados. Contudo, o desenvolvimento e a cultura influenciam marcantemente o seu produto final, seja adequando o indutor à determinada emoção, seja modelando alguns aspectos de sua expressão ou, ainda, moldando a cognição e o comportamento decorrentes de sua mobilização.

Para este teórico, haveria uma consciência central, que se caracteriza por ser uma estrutura simples, estável, encontrada também em animais não humanos, responsável pelo fornecimento de um sentido do self ao organismo no momento imediato (aqui e agora); e uma consciência ampliada, que corresponde a uma estrutura mais complexa, que se constitui num processo histórico-evolutivo, que varia em níveis e graus, fornecendo um sentido do self mais completo ao organismo, conferindo-lhe a conquista de uma identidade individual. Essa última, em seus níveis mais elevados, depende da memória convencional e da operacional, só sendo encontrada em seres humanos e intensificada pela linguagem. Assim, para ele, há uma coordenação desses dois tipos de consciência, uma sobreposição que unifica essas duas instâncias no funcionamento da consciência, observando-se que a consciência central constitui-se num alicerce da consciência ampliada. Esses dois tipos de consciência remetem também a distintas formas de self, que se mantêm inter-relacionadas.

De acordo com Damásio (2000), anterior ao sentido do self, há um precedente biológico pré-consciente, denominado de proto-self, que se define enquanto "um conjunto coerente de padrões neurais que mapeiam, a cada momento, o estado da estrutura física do organismo nas suas numerosas dimensões" (p. 201). A estrutura do proto-self não é constituída pela linguagem, não tem capacidade de percepção e não tem conhecimento. O proto-self é um conjunto de padrões neurais de primeira ordem que ocorre do tronco cerebral ao córtex cerebral, emergindo "dinâmica e continuamente de vários sinais em interação que abrangem diversas ordens do sistema nervoso" (p. 201). Posterior ao estabelecimento do proto-self, encontra-se o

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desenvolvimento de um self central, que tem caráter transitório e recria-se a cada interação do cérebro com os objetos; e um self autobiográfico, que mantém um caráter de dependência com lembranças sistematizadas de situações nas quais houve uma participação da consciência central no processo de conhecimento dos aspectos mais invariáveis da vida do organismo.

Em uma tentativa de compreender o processo do surgimento da consciência central, poder-se-ia dizer, de modo bastante insípido, que seu estabelecimento ocorre por meio da geração de um relato imagético, não-verbal, proveniente dos mecanismos cerebrais de representação, na medida em que o organismo sofre alteração em seu estado, decorrente do ato de processar um determinado objeto, suscitando um realce de sua imagem e, conseqüentemente, destacando sua existência espaço-temporal.

A conquista da consciência ampliada, na concepção de Damásio (2000), possibilita ao ser humano

atingir o ápice de suas capacidades mentais, tais como: criar artefatos úteis, levar em consideração a mente de outra pessoa, entender as mentes de uma coletividade, (...) valorizar a vida (...), levar em conta os interesses de outra pessoa e da coletividade, (...) perceber uma discordância de sentimentos e depois uma discordância de idéias abstratas, o que é a origem do senso da verdade. (p. 294)

Nesse processo, ele dá especial destaque à primeira, pela possibilidade de superação dos próprios limites de sobrevivência e, à segunda, pelo fato de que é a "percepção crítica de discordâncias, que leva à busca da verdade e ao desejo de criar normas e ideais para o comportamento e para a análise dos fatos" (p. 295), possibilitando, dessa maneira, alcançar a consciência moral, considerada enquanto uma função verdadeiramente humana.

 

Considerações Finais

Almejar uma conceituação única e, ao mesmo tempo, explicativa de todas as nuanças da cognição, apresenta-se como uma perspectiva de improvável êxito, visto que sua definição requer, já a priori, uma diferenciação de sujeito – ser humano ou não-humano –, além da adoção de uma determinada teoria que lhe sirva de lastro. Em outras palavras, a discriminação dos aspectos filogenético e ontogenético que caracterizam a cognição, requer o suporte de um paradigma específico que, necessariamente, conduz a relevância de certos atributos e ao descarte de outros.

Considera-se, pois, em consonância com Flavell et al. (1999), que os paradigmas anteriormente apresentados tendem a ser mais complementares que excludentes, uma vez que priorizam aspectos distintos do desenvolvimento cognitivo, refletindo a riqueza e complexidade da mente humana.

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Linguagem e atividade no desenvolvimento cognitivo: algumas reflexões sobre as contribuições de Vygotsky e Leontiev

Carolina Lampreia1

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

 

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ResumoAs noções de linguagem e atividade foram consideradas centrais para o estudo do desenvolvimento cognitivo por Vygotsky e Leontiev. Vygotsky queria analisar como a atividade prática contribui para a formação da consciência. Contudo, suas pesquisas permaneceram centradas na linguagem. Conseqüentemente, não ficou clara, em seu trabalho, a relação existente entre linguagem e atividade. Leontiev desenvolveu uma teoria cuja unidade de análise passou a ser a atividade. Mas não desenvolveu a análise do papel da linguagem. Assim, embora ambos tenham considerado a relevância desses dois aspectos do desenvolvimento cognitivo, nenhum dos dois os abordou simultaneamente. Por outro lado, as reflexões filosóficas do ‘segundo’ Wittgenstein a respeito da linguagem permitiram-lhe concebê-la como uma forma de ação não sendo possível separar atividade e linguagem. Juntando-se a autores com preocupações similares, esta perspectiva pode permitir elaborar uma abordagem eminentemente contextualista do desenvolvimento cognitivo inspirada nas formulações de Vygotsky e Leontiev. Mas é preciso analisar e discutir suas noções de linguagem e atividade no contexto da perspectiva wittgensteiniana. Palavras-chave: Linguagem; atividade; Vygotsky; Leontiev; Wittgenstein

As noções de linguagem e atividade têm sido consideradas centrais para o estudo do desenvolvimento cognitivo por autores como L.S. Vygotsky e A.N. Leontiev.

Uma das idéias iniciais de Vygotsky (1979) foi analisar de que maneira a atividade prática contribui para a formação da consciência. Contudo, suas pesquisas se centraram principalmente na linguagem, não desenvolvendo simultaneamente, e na mesma medida, a análise do papel da atividade. Conseqüentemente, como será discutido adiante, não ficou clara, em seus estudos, a relação existente entre atividade e linguagem.

Com o objetivo de sanar esta lacuna nos trabalhos de Vygotsky, Leontiev (1978; 1981; 1984) desenvolveu uma teoria cuja unidade de análise passou a ser a atividade. Mas ele também não desenvolveu na mesma medida a análise do papel da linguagem.

Assim, embora Vygotsky e Leontiev tenham considerado a relevância desses dois aspectos do desenvolvimento cognitivo, nenhum dos dois os abordou simultaneamente; pelo menos de forma explícita.

As reflexões filosóficas do ‘segundo’ Wittgenstein (1958, 1969) a respeito da linguagem permitiram-lhe concebê-la como uma forma de ação. Neste caso, já não é mais possível separar atividade e linguagem. Linguagem é ação, atividade, pois fazemos coisas através da linguagem, e atividade é linguagem por envolver significação.

Aproximando-se de autores com preocupações similares (ver, por exemplo, Wertsch, 1979; Wertsch, Minick & Arns, 1984; Hayes, Hayes, Reese & Sarbin, 1993;

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Jost, 1995; Van der Merwe & Voestermans, 1995; Ratner, 1996), este enfoque pode nos permitir entrever a possibilidade de elaboração de uma outra abordagem teórica sócio-cultural do desenvolvimento cognitivo, eminentemente contextualista, que poderia inspirar-se nas formulações de Leontiev e Vygotsky. Mas, antes disso, seria absolutamente necessário, como uma reflexão inicial, analisar e discutir suas noções de linguagem e atividade no contexto da perspectiva wittgensteiniana. É este primeiro passo, esta reflexão inicial, o objetivo do presente trabalho.

Linguagem e atividade em Wittgenstein

A noção de linguagem de Wittgenstein (1958; 1969) deve ser entendida de uma forma muito mais ampla do que costuma ser feito quando se adota uma visão cartesiana, representacional de linguagem.

Tradicionalmente, a linguagem tem sido concebida como uma forma de representação das coisas ou pensamento; como uma designação. Algumas vezes, esta concepção é ampliada para incluir aspectos contextuais tais como a situação atual de comunicação, a entonação, expressões faciais, etc. Neste caso, concebe-se uma situação concreta de dimensões físicas, que participa da determinação do significado.

Para Wittgenstein (1958; 1969), ao contrário, esta fisicalização torna-se sem sentido pois quando uma pessoa entra em um contexto de comunicação, ela já traz uma rede de pressupostos e significações, a partir dos quais o contexto atual é interpretado. Esta rede de significações e pressupostos envolve a forma de vida, a mitologia e as crenças de uma cultura. Isto é, as crenças mais básicas que aprendemos desde que nascemos. Em On Certainty, Wittgenstein (1969) argumenta que:

"Quando começamos a acreditar em algo pela primeira vez, aquilo em que acreditamos não é uma proposição única, é todo um sistema de proposições". (§141, grifo do autor)

"Me é dito, por exemplo, que alguém escalou essa montanha há muitos anos atrás. Será que eu sempre investigo sobre a confiabilidade da pessoa que contou essa história, e se a montanha já existia anos atrás ? Uma criança aprende que existem informantes confiáveis e não confiáveis muito depois de aprender fatos que lhe são contados. Ela não aprende de nenhuma maneira que essa montanha existe há muito tempo: isto é, a questão de se é assim não é levantada. Ela engole essa conseqüência, de certa forma, junto com aquilo que aprende". (§143, grifo do autor)

"A criança aprende a acreditar em muitas coisas. Isto é, ela aprende a agir de acordo com essas crenças. Pouco a pouco se forma um sistema daquilo em que se acredita, e nesse sistema algumas crenças são inabaláveis enquanto outras são mais ou menos passíveis de mudança. Aquilo que é inabalável o é não porque seja intrinsecamente óbvio ou convincente; é inabalável por causa daquilo que está a sua volta". (§144)

Desta maneira, o contexto de comunicação não pode ser fisicalizado porque a própria situação física pode ser interpretada de diferentes maneiras. É o contexto

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mais amplo das crenças e mitologia que dá significado à atividade que ocorre em um contexto específico (Lampreia, 1992).

Na visão de Wittgenstein (1958) "...imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida" (§19) e "...o termo ‘jogo de linguagem’ quer chamar atenção do fato de que falar uma linguagem é parte de uma atividade, ou de uma forma de vida" (§23, grifo do autor). Isto significa que, para ele, uma linguagem não é uma forma de representação, é algo usado em atividades humanas, e deve ser visto como uma forma de ação, i.e., como um aspecto da ação humana. Ela é parte da teia de ação humana e tem significado apenas em relação a complexos contextos de formas de vida humana. A linguagem sempre ocorre em ações e como ações, mas a linguagem não é equivalente a tais ações; as ações já são lingüísticas (Baker & Hacker, 1984; Hacker, 1986; Ribes, 1993).

De acordo com Baker e Hacker (1984), para Wittgenstein,

"...uma linguagem é um aspecto da ação humana, enraizada no comportamento humano. Ela não surgiu a partir de algum tipo de raciocínio. Falar é agir; e verbalizar palavras e sentenças está entrelaçado a atividades humanas que ocorrem dentro do mundo do qual somos parte. Uma linguagem em uso é parte de uma forma de vida" (§133)

Isto significa que para se compreender o significado de uma verbalização é necessário conhecer o padrão de atividade dentro do qual ela está inserida. É o contexto da atividade, no sentido amplo, que define o uso de verbalizações e seu significado. As diferenças no significado não estão nos atos mentais de significação mas em fatores externos e pragmáticos. O significado de um nome não é uma entidade empírica nem mental ou abstrata mas é dado por explicações de significado. Baker e Hacker (1985) consideram que segundo a visão de Wittgenstein:

"No ensino, ao contrário do treino, explicamos os significados das palavras. O significado é o que é dado por uma explicação de significado, e explicações de significado são dadas no ensino a aqueles que dominaram suficientemente a linguagem para pedí-las. Explicações de significado são normativas". (§33)

Isto significa que uma explicação dá uma regra para o uso da expressão que ela explica. Uma explicação do significado é uma explicação da aplicação da palavra. Como exemplos de explicação temos o apontar para uma mesa para explicar o que é "mesa", apresentar uma amostra verde para explicar o que é "verde", dar um exemplo, parafrasear uma verbalização, dar um sinônimo da palavra a ser explicada.

É por isso que a linguagem é concebida como um jogo por Wittgenstein (1958); jogamos diferentes jogos com as palavras e as sentenças. No parágrafo 23, ele menciona uma série de exemplos de jogos de linguagem, como: dar ordens e obedecê-las; descrever a aparência de um objeto, ou dar suas medidas; relatar um acontecimento; especular sobre um acontecimento; formar e testar uma hipótese; fazer uma piada e contá-la; resolver um problema de aritmética aplicada; pedir, agradecer, praguejar, cumprimentar, rezar.

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Desta maneira, uma palavra não tem um significado único, mas variável dependendo do 'jogo de linguagem' dentro do qual está inserida. É o contexto de uso que irá dizer se a verbalização é uma ordem, uma descrição ou um pedido. O conceito de jogo de linguagem tem a intenção de "enfatizar os aspectos interativos de atividades lingüísticas e outras atividades" (Schulte, 1993, p. 11). Por isto, só poderemos pegar os diferentes tipos de finalidades de expressões lingüísticas se investigarmos suas maneiras de funcionamento em diferentes contextos de uso. Um jogo de linguagem é jogado em um setting. Wittgenstein parece querer enfatizar elementos das atividades lingüísticas que, embora não obviamente envolvidas na explicação do significado das expressões constituintes, são pertinentes para seu significado. É nas atividades constituintes de um jogo de linguagem que a finalidade de expressões lingüísticas fica evidente (Baker & Hacker, 1985).

Em suma, se, por um lado, linguagem é ação, por outro, qualquer atividade humana está impregnada de linguagem porque ocorre em um ambiente que foi construído através da linguagem. Conseqüentemente, os conceitos não têm uma definição única, correta ou verdadeira, mas várias definições dependendo do jogo de linguagem dentro do qual estão inseridos. Eles não são fixos mas envolvem 'semelhanças de família’ (Bouveresse, 1976; Hacker, 1986).

Wittgenstein (1958) faz a esse respeito a seguinte análise:

"Considere, por exemplo, os processos aos quais chamamos ‘jogos’. Quero dizer os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, os jogos de bola, os jogos Olímpicos, etc. O que é comum a todos eles ? – Não diga: ‘Tem de haver alguma coisa em comum, ou não seriam chamados de ‘jogos’’ – mas olhe e veja se há algo em comum. – Porque se você olhar para eles, não verá algo que seja comum a todos, mas semelhanças, relações...Olhe, por exemplo, para os jogos de tabuleiro com suas variadas relações. Agora passe para os jogos de cartas; aqui você encontrará muitas correspondências com o primeiro grupo, mas muitos aspectos em comum desaparecem, outros aparecem. Quando passamos a seguir para jogos de bola, muito do que é comum permanece, mas muito é perdido. – São todos ‘divertidos’ ? ... Ou há sempre ganhar e perder, ou competição entre os jogadores ? Pense na paciência. Nos jogos de bola há ganhar e perder; mas quando uma criança joga sua bola na parede e a apanha de novo, esse aspecto desapareceu... E o resultado dessa análise é: vemos uma rede complicada de semelhanças que se sobrepõem e se cruzam: algumas vezes semelhanças gerais, algumas vezes semelhanças de detalhe". (§66)

"Não consigo pensar em melhor expressão para caracterizar essas semelhanças do que ‘semelhanças de família’; porque as várias semelhanças entre os membros de uma família: constituição, traços faciais, cor dos olhos, andar, temperamento, etc. etc. se sobrepõem e cruzam da mesma maneira. E eu direi: ‘jogos’ formam uma família". (§67)

Linguagem e atividade em Vygotsky e Leontiev

Algumas formulações de Vygotsky e Leontiev os aproximam de Wittgenstein enquanto outras os afastam. Vygotsky parece conceber a linguagem ora como ação, ora como representação. Ao tratar primordialmente da atividade da fala, em vez de

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linguagem, Vygotsky se aproxima da visão de Wittgenstein. Ele se refere à amálgama de fala e ação e observa que:

"À frase bíblica ‘No princípio era o Verbo’, Goethe faz Fausto responder: ‘No princípio era a Ação’. O objetivo dessa frase é diminuir o valor das palavras, mas podemos aceitar essa versão se a enfatizarmos de outra forma: No princípio era a Ação. A palavra não foi o princípio – a ação já existia antes dela; a palavra é o final do desenvolvimento, o coroamento da ação". (Vygotsky, 1987, §131, grifo do autor)

Vygotsky (1987) também considera que desde os primeiros dias do desenvolvimento da criança, suas atividades adquirem um significado próprio em um sistema de comportamento social. Como primeiro exemplo disto, temos sua análise da transformação do gesto de pegar em gesto de apontar que mostra que:

"Inicialmente, este gesto não é nada mais do que uma tentativa sem sucesso de pegar alguma coisa, um movimento dirigido para um certo objeto, que desencadeia a atividade de aproximação. A criança tenta pegar um objeto colocado além de seu alcance; suas mãos, esticadas em direção àquele objeto, permanecem paradas no ar. Seus dedos fazem movimentos que lembram o pegar. Nesse estágio, o apontar é representado pelo movimento da criança, movimento este que faz parecer que a criança está apontando um objeto – nada mais do que isso.

Quando a mãe vem em ajuda da criança, e nota que seu movimento indica alguma coisa, a situação muda fundamentalmente. O apontar torna-se um gesto para os outros. A tentativa mal-sucedida da criança engendra uma reação, não do objeto que ela procura, mas de outra pessoa. Conseqüentemente, o significado primário daquele movimento mal-sucedido de pegar é estabelecido por outros. Somente mais tarde, quando a criança pode associar seu movimento à situação objetiva como um todo, é que ela, de fato, começa a compreender esse movimento como um gesto de apontar. Nesse momento, ocorre uma mudança naquela função do movimento: de um movimento orientado pelo objeto, torna-se um movimento dirigido para uma pessoa, um meio de estabelecer relações. O movimento de pegar transforma-se no ato de apontar....Suas funções e significado [do gesto] são criados a princípio, por uma situação objetiva, e depois pelas pessoas que circundam a criança". (Vygotsky, 1984, § 63-64, grifos do autor)

Como segundo exemplo da relação entre fala e ação, em um contexto social, podemos citar a análise da função indicativa da palavra. Aqui, Vygotsky (1981) diz que:

"Primeiro, o adulto usa palavras para dirigir a atenção da criança. Essas palavras criam indicações suplementares para dirigir a atenção da criança – por exemplo, apontando para objetos à sua volta. Desta maneira o adulto desenvolve estímulos poderosos para indicar através de palavras. Mais tarde, a criança começa a participar ativamente nesta indicação e a usar, ela própria, a palavra ou som como um meio de indicar, i.e., de dirigir a atenção dos adultos para um objeto que a interessa. Todo esse estágio de desenvolvimento da linguagem da criança...é, em nossa opinião, o estágio da fala como indicação". (§220, grifo do autor)

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Finalmente, a função do brinquedo no desenvolvimento também mostra uma percepção da união entre palavra e ação, de como a origem do significado se encontra no contexto da ação (Vygotsky, 1984).

Na última fase de seu trabalho teórico, envolvendo os anos 1933-1934, Vygotsky também parece se aproximar da perspectiva wittgensteiniana. De acordo com Minick (1987), que cita trabalhos de Vygotsky a respeito da psicologia da criança, este autor passa a considerar a análise da situação social que define a vida da criança. Isto é, Vygotsky passa a considerar a situação social de desenvolvimento que é específica de cada idade, que define o modo de vida da criança, sua existência social, como sendo a tarefa básica para a análise do desenvolvimento.

As divergências entre as posições de Vygotsky e Wittgenstein começam a aparecer quando nos detemos em algumas análises mais específicas, elaboradas pelo primeiro autor, a respeito da significação e formação de conceitos.

Em análises que se aproximam de uma perspectiva wittgensteiniana, Vygotsky (1984; 1987) considera que no início do desenvolvimento, o significado é dado por todo o comportamento no momento e a situação na qual ocorre. Neste caso, o quadro de referência da criança é situacional, i.e., externo e também social. Os exemplos de Vygotsky de atribuição do significado ao gesto (1984) e da função indicativa da palavra (1981), citados anteriormente, mostraram de que maneira o significado é socialmente dado com base em uma atividade atual.

Contudo, Vygotsky analisa principalmente situações específicas sem considerar os pressupostos que estão por trás da situação atual. Sua abordagem não apresenta nenhum conceito que se aproxime das noções de mitologia, forma de vida ou crenças básicas de Wittgenstein. Sua abordagem é sócio-histórica, é sócio-cultural, mas ele não trata disso. Fala envolve atividade mas Vygotsky não analisa o contexto mais amplo da atividade. Zinchenko (1984), seguindo este tipo de questionamento, critica as interpretações de Vygotsky nos estudos sobre memória, por exemplo. Segundo este autor, Vygotsky parece reduzir suas análises aos estímulos físicos e processos cognitivos sem perceber que o que dá significado ao comportamento de lembrar não são os processos cognitivos mas o tipo de atividade, a natureza da tarefa a ser desempenhada. De acordo com Zinchenko, a memória involuntária "se caracteriza pelo fato de que o lembrar ocorre dentro de uma ação de natureza diferente, uma ação que tem uma tarefa, fim, e motivo definidos e um significado definido pelo sujeito, mas que não está diretamente orientada para a tarefa de lembrar". Por outro lado:

"O lembrar voluntário é uma ação especial destinada ao lembrar. Aqui, o lembrar não é apenas um aspecto de uma ação, mas constitui o próprio conteúdo de uma ação especial associada a uma tarefa de memória. O sujeito está consciente do objeto da ação como sendo um objeto de lembrança. Ele tem um motivo e fim definidos, focalizados especificamente na tarefa de lembrar". (p. 77-78)

A mesma crítica pode ser feita a seus experimentos sobre formação de conceitos com blocos de madeira e palavras sem sentido onde Vygotsky (1987) analisa a formação de conceitos fora de uma situação contextual, social.

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Nesta época, i.e., em 1930, Vygotsky concebe a formação de conceitos como envolvendo a participação tanto de fatores sensoriais como de fatores lingüísticos. Assim sendo, ele usa o método da dupla estimulação, ou método Sakharov, que utiliza blocos de madeira de diferentes formas e tamanhos, e palavras sem sentido, para estudar o desenvolvimento dos conceitos. O pressuposto é que é possível deduzir o uso de pensamento concepual pelo sujeito segundo o grupo de objetos que ele forma e o procedimento por ele utilizado. Os resultados de experimentos com crianças de diferentes idades e adultos fizeram Vygotsky discriminar 3 fases na formação de conceitos. Na primeira, a da agregação desorganizada, o significado das palavras denota um conglomerado de objetos isolados já que a criança faz um amontoado de objetos desiguais, agrupados sem qualquer fundamento. Na segunda, a dos complexos, já é possível encontrar a formação de grupos baseados em relações realmente existentes entre os objetos. Mas, essas relações objetivas não são refletidas da mesma maneira que o pensamento conceptual. Elas ainda são concretas e factuais, baseadas na experiência direta, e não lógicas e abstratas. Segundo Vygotsky (1987), a criança pensa "em termos de nomes de famílias; o universo dos objetos isolados torna-se organizado para ela pelo fato de tais objetos agruparem-se em ‘famílias’ separadas, mutuamente relacionadas". (§53) Isto significa que a criança se baseia ora em um, ora em outro aspecto dos elementos para estabelecer relações entre eles, enquanto que no conceito propriamente dito a criança baseia-se em um atributo único. O resultado mais importante disto é que as palavras designam então grupos de objetos e não conceitos. No entanto, Vygotsky reconhece que freqüentemente na vida diária, o adulto também pensa concretamente através de complexos.

Como as análises mais específicas de Vygotsky não consideram o contexto mais amplo da atividade, sua explicação acaba sendo cognitivista. É por isso que ele considera que os conceitos evoluem cognitivamente, que o conceito da criança não é o do adulto e que até determinada idade ela não possui ainda conceitos propriamente ditos, i.e., científicos, mas complexos e pseudoconceitos, embora reconheça que na maior parte do tempo os adultos pensam em termos de complexos (Vygotsky, 1987).

A terceira fase da formação dos conceitos, a dos conceitos propriamente ditos ou conceitos científicos, ele analisou mais especificamente em 1932. Neste momento, sua abordagem volta a mudar e Vygotsky (1987) passa a enfatizar o papel do social já que a formação de conceitos científicos se dá na escola a partir da cooperação entre a criança e o professor que, trabalhando com o aluno, explica, dá informações, questiona, corrige e faz o aluno explicar. Ao contrário dos conceitos espontâneos que, na versão de Vygotsky, a criança, aparentemente, forma sozinha através de sua relação com o meio, os conceitos não-espontâneos ou científicos são formados a partir da mediação social.

Uma análise wittgensteiniana destas observações seria que o uso de conceitos científicos envolve um certo jogo de linguagem específico que as crianças não dominam porque ainda não aprenderam a jogar este tipo de jogo, o que só irá ocorrer quando forem para a escola. Ou seja, usamos um ou outro tipo de conceitos de acordo com a situação e não com o tipo de pensamento. Os conceitos não se desenvolvem cognitivamente. Os conceitos científicos não envolvem um tipo superior de pensamento mas uma prática diferente que serve a certos propósitos. É

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por esta razão que adultos que usam conceitos científicos, na maior parte da vida diária, usam complexos, para adotar a terminologia de Vygotsky. Ou seja, o uso de conceitos científicos e de conceitos não-científicos não depende de capacidades cognitivas mas de certas práticas, de determinados contextos de uso. Dito de outra forma, o significado das palavras não é dado pelo pensamento, como afirma Vygotsky em Pensamento e Linguagem, mas pelo uso; por regras sociais normativas de uso, de acordo com o contexto.

Em suma, embora a noção de atividade seja central na teoria de Vygotsky, em termos de pressupostos, ela está pouco presente em suas análises. A linguagem serve à ação mas ela não pode ser vista como uma forma de ação. O significado não é dado pelo uso mas pelo nível de desenvolvimento cognitivo. Logo, a noção de significado de Vygotsky parece aderir à visão representacional de linguagem. A essência do significado da palavra é o ato de pensamento. Como na visão cartesiana, o pensamento parece representar a realidade (vide a noção de conceitos espontâneos) e ser representado pela linguagem.

O tratamento dado por Vygostky ao papel do significado, aliado ao fato de não ter desenvolvido simultaneamente, e na mesma medida, a análise do papel da atividade, deu margem a que alguns de seus seguidores considerassem sua posição como sendo idealista, portanto insatisfatória.

Leontiev e Luria (1968) criticaram seus estudos sobre formação de conceito concluindo que um dos principais defeitos de sua abordagem foi a consideração insuficiente do papel formativo da atividade prática na evolução da consciência. Estes autores observam que:

"Uma criança não preenche realmente sozinha o ‘conteúdo’ das palavras, porque seu significado ainda é desconhecido para ela. Ela assimila significados prontos de palavras – significados fixados no uso social da linguagem. Por outro lado, uma palavra que a criança encontra, não pode crescer em significado por si mesma; as palavras não são o demiurgo do significado. Portanto, o processo pelo qual os significados evoluem não é redutível ao processo de uma criança dominar a realidade associada às palavras, nem é redutível ao processo de assimilação independente das próprias palavras – portadoras de significados particulares". (Leontiev & Luria, 1968, p. 350)

Outro tipo de crítica a Vygotsky pode ser encontrada nos estudos do grupo de Kharkov que estiveram centrados na internalização e na relação na criança entre atividades externas e operações mentais correspondentes (Kozulin, 1986).

Em decorrência disto, a teoria da atividade de Leontiev tem como objetivo sanar algumas das contradições de Vygotsky. Sua unidade de análise passa a ser a atividade que serve de elo mediador entre o sujeito e a 'realidade objetiva', e não mais o significado como em Vygotsky.

A teoria da atividade de Leontiev (1978; 1981; 1984) envolve a análise de três níveis. No primeiro, temos a atividade ligada a um motivo. Mas a atividade só se realiza em termos de ações ligadas a um objetivo, i.e., a o que fazer. Este é o

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segundo nível. Por fim, o terceiro nível trata do como levar a cabo a ação, ou seja, trata da operação e o meio de realizá-la.

Embora o tratamento dado à atividade por Leontiev não faça um aprofundamento da análise de seu conteúdo lingüístico e social, essa relação não é por ele ignorada. Com relação à questão social, Leontiev (1981) considera que: "as condições sociais trazem com elas os motivos e objetivos de sua atividade, seus meios e modos...Em uma palavra, a sociedade produz a atividade dos indivíduos que ela forma". (p.47-48) Quanto à questão da linguagem e sua relação com a atividade, ele considera que para que um fenômeno possa ser significado e refletir-se na linguagem, ele deve ser destacado, o que ocorre inicialmente na atividade prática. Subjacentes às significações, há os modos de ação socialmente elaborados pois elas representam a forma de existência ideal do mundo concreto, de suas propriedades, ligações e relações como revelados pelo conjunto da prática social. Assim, aprendendo a executar uma ação, a criança aprende a dominar as operações correspondentes que são representadas nas significações. Os conceitos resultam então da assimilação e internalização das operações lógicas, de um processo de assimilação de significações 'prontas', elaboradas historicamente que se efetua no curso da atividade da criança, no quadro de suas relações com o meio (Leontiev, 1978; 1984). Essa abordagem parece aproximá-lo da visão wittgensteiniana.

Contudo, Leontiev (1984) considera que "as significações se individualizam e se 'subjetivizam'", ganhando um sentido pessoal, "no sentido de não evoluirem mais diretamente do sistema das relações sociais; elas entram em um outro sistema de relações, seguem um outro movimento". (p. 163) Aqui, Leontiev passa a ignorar o contexto e a adotar uma posição intelectualista.

Apesar de Leontiev ter tentado formular uma articulação entre sociedade, linguagem e atividade ainda há autores que consideram que as pesquisas da teoria da atividade não conseguiram desenvolver várias idéias centrais de Vygotsky como aquelas associadas com a importância da interação social e o desenvolvimento do significado da palavra na ontogênese (Minick, 1987).

A questão central da disputa, entre Leontiev e Vygotsky, parece envolver a unidade de análise adotada, o elo mediador: significado ou atividade prática. Na abordagem de Vygotsky, a unidade de análise deve ser o significado. Este é o elo mediador entre o indivíduo e a realidade já que a atividade, para preencher o papel de ferramenta psicológica, deve necessariamente ter um caráter semiótico. Enquanto na abordagem de Leontiev, a unidade de análise deve ser a atividade prática. Este é o elo mediador entre o indivíduo e a realidade já que a assimilação das significações se efetua no curso da atividade.

A disputa entre a mediação semiótica e a mediação pela atividade deriva da não compreensão de que não há tal oposição. Toda atividade está impregnada desde o início de significação. E toda significação se dá no contexto de uma atividade. Além disso, a própria noção de mediação denota a dualidade presente no pensamento de ambos os autores. Eles permancem presos à lógica dualista do cartesianismo.

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O que parece estar faltando às teorias de Vygotsky e Leontiev, quando vistas a partir de uma abordagem wittgensteiniana, é uma perspectiva que leve em conta o contexto, como visão de mundo, que abarque categorias sociológicas e antropológicas mais amplas de análise.

Gostaria de apresentar e comentar, a título de conclusão, dois trabalhos de Wertsch que, apoiando-se em Vygotsky e Leontiev, exemplificam a utilidade e riqueza de uma análise mais ‘fina’ do contexto de ação/significação e parecem se aproximar de uma perspectiva wittgensteiniana.

O primeiro (Wertsch, Minick & Arns, 1984), mais diretamente ligado à abordagem de Leontiev, procura realizar uma análise da atividade de copiar um modelo tridimensional. Um grupo de crianças é auxiliado por suas mães e um outro grupo por suas professoras. Como visto anteriormente, na teoria de Leontiev, a atividade é analisada em três níveis: atividade/motivo, ação/objetivo, operação/meio. Os autores do experimento consideram que, para o grupo auxiliado pelas professoras, a ação de copiar o modelo se dá de forma semelhante ao contexto da atividade escolar, sendo o seu motivo a aprendizagem. Para o grupo auxiliado pelas mães, a ação de copiar o modelo se dá de forma semelhante ao contexto da atividade doméstica, sendo o desempenho sem erro o seu motivo. É por esta razão que no primeiro grupo há uma regulação indireta por parte das professoras já que o motivo é a aprendizagem, enquanto que no segundo a regulação por parte das mães é direta visando o desempenho sem erro.

Os autores concluem que devemos observar diferenças entre os grupos quanto às atividades levadas a cabo pelos grupos e aos meios de que lançam mão para realizá-las. No que diz respeito à atividade, os grupos diferem quanto à interpretação do setting, a partir de expectativas e suposições relativas a outros settings (escola e casa). E isto acarreta uma diferença nos processos conjuntos e individuais no setting da tarefa, i.e., nos meios de implementação da ação (operação).

Em outras palavras, a atividade de copiar o modelo é interpretada pelas professoras como uma atividade escolar que visa a aprendizagem, e não o treino, e por esta razão seu papel como professora deve envolver uma regulação indireta da ação da criança. Por outro lado, a atividade de copiar o modelo é interpretada pelas mães como uma atividade doméstica que visa um desempenho sem erro já que, em casa, as tarefas desempenhadas pelas crianças não devem envolver erro pois o erro poderia ser anti-econômico para a mãe em termos financeiros ou em termos de tempo. Por esta razão, o papel da mãe deve envolver uma regulação direta da ação da criança.

A conclusão dos autores é que uma análise ao nível apenas da ação (construção do modelo) não dá conta destas diferenças.

O segundo trabalho de Wertsch (1979), mais antigo, está mais próximo de uma inspiração wittgensteiniana já que o autor tenta aproximar o conceito de jogo de linguagem de Wittgenstein e a noção de função reguladora da fala e zona de desenvolvimento proximal de Vygotsky.

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Aqui também encontramos uma situação experimental na qual as mães devem auxiliar crianças de 2 anos e meio a 4 anos e meio a copiar um modelo tridimensional.O objetivo do experimento é examinar a transição da regulação da ação da criança pelo adulto para a auto-regulação. Para isto, são registrados comportamentos da mãe tais como apontar, olhar, segurar uma peça, falar.

Wertsch (1979) identifica quatro níveis de transição. No primeiro, a compreensão que a criança de dois anos e meio tem da situação é tão limitada que a comunicação é muito difícil. Embora a criança possa interpretar algo da fala da mãe, mãe e criança participam de jogos de linguagem diferentes. Por exemplo, quando a mãe diz "janela", a criança olha para a janela da sala onde se encontram em vez de olhar para a janela do caminhão que deve ser copiado. No segundo nível, a criança começa a se dar conta que as verbalizações da mãe estão ligadas à tarefa, mas não compreende toda a extensão da conexão entre fala e atividade. Sua definição da situação seria limitada. No terceiro nível, a criança já é regulada pela mãe, interpretando as ordens mesmo quando elas não são explícitas, e já apresenta um início de auto-regulação, tomando parte da responsabilidade pela tarefa. Finalmente, no quarto nível, a criança de quatro anos e meio toma a si toda a responsabilidade; já há auto-regulação.

A conclusão de Wertsch (1979) é que não é o caso de primeiro a criança levar a cabo a tarefa porque compartilha a definição da situação do adulto. É o contrário: a criança passa a compartilhar a definição porque ela leva a cabo a tarefa, através da regulação da mãe. Em outras palavras, seria possível afirmar que a mãe usa ordens que requerem uma definição da situação que vai além do nível da criança e então ensina como responder. Assim, a criança passa a compreender a ordem porque desempenhou o comportamento.

As duas pesquisas de Wertsch parecem mostrar a impossibilidade de se dissociar linguagem e atividade. Na primeira, a atividade é interpretada pelos adultos, ou seja, ela é significada. E é a partir da significação que se dá o seu desempenho. No caso, regulação direta ou regulação indireta das ações das crianças. Não há atividade sem significação ou, melhor dito, para que possa haver atividade é necessário haver significação. Na segunda pesquisa, a compreensão da situação pela criança, ou seja a significação da situação, se dá a partir do seu desempenho regulado pela mãe. Neste caso, a mãe cria a partir de suas ações o significado de sua fala.

Em suma, estes exemplos parecem reforçar a importância das implicações das idéias de Wittgenstein quanto à relação entre linguagem e atividade para o estudo do desenvolvimento cognitivo. E elas são particularmente relevantes quando se trata de compreender este desenvolvimento em diferentes grupos sociais ou culturas.

Psicol. Reflex. Crit. vol.12 n.1 Porto Alegre  1999

DISPONIVEL EM: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721999000100015> 

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