da maior de todas as guerras -...

12
A Segunda Guerra Mundial, maior conflito da história humana, que deixou algo entre 50 milhões e 85 milhões de vítimas fatais, encerrou-se há 70 anos, em 1945, em 8 de maio (rendição alemã) ou em 15 de agosto (rendição japonesa). A guerra geral, fim de um ciclo catastrófico marcado pela Grande Guerra de 1914-18 e pela Grande Depressão deflagrada em 1929, não é passado. A ordem construída no pós-guerra, uma Pax Americana, permanece até nossos dias, ao menos nas suas linhas estruturais. Sob o influxo dos Estados Unidos, o sistema mundial de Estados passou a ser regulado por um intrincado conjunto de instituições internacionais. A ONU, cria- da na Conferência de São Francisco (1945), e diversas outras organizações de segurança coletiva tornaram-se as armaduras políticas da ordem do pós-guerra. O FMI e o Banco Mundial, criados na Conferência de Bretton Woods (1944), tornaram-se as armaduras econômicas dessa ordem. A crescente incapacidade das instituições internacionais para conservar a estabilidade geopolítica e econômica sinaliza a crise de fundo da Pax Americana. As duas datas clássicas do encerramento do conflito evidenciam que a expressão “Segunda Guerra Mundial” faz referência a duas guerras – uma ocorrida na Europa; outra, no Pacífico. A guerra europeia terminou com a divisão da Europa em blocos antagônicos, a bipartição da Alemanha e a emergência do projeto da unificação europeia. A atual crise da União Europeia assinala a erosão da ordem geopolítica na vasta área da Eurásia. A guerra no Pacífico terminou com a anulação do po- der geopolítico japonês e o estabelecimento da hegemonia naval dos Estados Unidos no maior dos oceanos. Hoje, a ascensão da China à condição de potência mundial conduz à contestação da hegemonia norte-americana no Pacífico. O mundo inventado em 1945 se desfaz em câmera lenta, diante de nós. Veja as matérias às págs. 6 a 10 O MAR DOS DESESPERADOS A guerra civil na Síria, o conflito interno no Iraque e a expansão do jihadismo em todo o arco africano que se estende da Nigéria à Somália provocam o maior deslocamento humano desde a Segunda Guerra Mundial. Só na Síria são 8 milhões de deslocados internos e cerca de 4 milhões de emigrantes. Duas rotas conduzem os desesperados rumo à Europa. Da Turquia, eles se juntam a migrantes econômicos asiáticos em busca da costa da Grécia. Da Líbia, juntam-se a migrantes econômicos africanos em busca da ilha italiana de Lampedusa. O Mare Nostrum romano converteu-se no mar dos desesperados – e no mar da morte. A União Europeia enfrenta a crise oscilando entre a timidez, a negação e a vilania. Os governos europeus imaginaram o Mediterrâneo como uma intransponível muralha – e a Europa como uma ilha. Enganaram-se: o Velho Mundo é um conjunto que abrange, além da Europa, a África do Norte e o Oriente Médio. Págs. 4 e 5 FIFAGATE ANO 23 Nº 4 AGOSTO/2015 TIRAGEM: 20 000 EXEMPLARES A SOMBRA DA MAIOR DE TODAS AS GUERRAS © Marcelo Casal Jr./Agência Brasil © Coleção particular 30 de abril de 1945: soldados do Exército Vermelho, o primeiro entre os aliados a ocupar Berlim, hasteiam a bandeira da União Soviética no topo do edifício do Reichstag (parlamento); a foto foi tirada por Vladimir Grebnev E mais... O ataque a Pearl Harbor, a batalha de Stalingrado e o Dia D, momentos decisivos da Segunda Guerra Mundial, ins- piraram obras cinema- tográficas celébres ou quase desconhecidas. Pág. 2 Editorial – O Mediter- râneo, Mare Nostrum, não é uma muralha, mas uma ponte. A Eu- ropa não se isolará da África do Norte e do Oriente Médio. Pág. 3 Há cem anos, uma tra- gédia humana monstru- osa no decadente Im- pério Turco-Otomano produziu o esboço do conceito de genocídio. Pág. 3 Cristina Kirchner não poderá disputar um novo mandato. Será o fim do longo ciclo do kirchnerismo na Argentina? Pág. 11 Recep Erdogan não conseguiu. Nas eleições turcas, um partido de origem curda mais o programa democrático bloquearam o projeto centralizador e islami- zante do presidente. Pág. 12

Upload: truongkhanh

Post on 27-Jan-2019

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

A Segunda Guerra Mundial, maior conflito da história humana, que deixou algo entre 50 milhões e 85 milhões de vítimas fatais, encerrou-se há 70 anos, em 1945,

em 8 de maio (rendição alemã) ou em 15 de agosto (rendição japonesa). A guerra geral, fim de um ciclo catastrófico marcado pela Grande Guerra de 1914-18 e pela Grande Depressão deflagrada em 1929, não é passado. A ordem construída no pós-guerra, uma Pax Americana, permanece até nossos dias, ao menos nas suas linhas estruturais.

Sob o influxo dos Estados Unidos, o sistema mundial de Estados passou a ser regulado por um intrincado conjunto de instituições internacionais. A ONU, cria-

da na Conferência de São Francisco (1945), e diversas outras organizações de segurança coletiva tornaram-se as armaduras políticas da ordem do pós-guerra. O FMI e o Banco Mundial, criados na Conferência de Bretton Woods (1944), tornaram-se as armaduras econômicas dessa ordem. A crescente incapacidade das instituições internacionais para conservar a estabilidade geopolítica e econômica sinaliza a crise de fundo da Pax Americana.

As duas datas clássicas do encerramento do conflito evidenciam que a expressão “Segunda Guerra Mundial” faz referência a duas guerras – uma ocorrida na Europa; outra, no Pacífico. A guerra europeia terminou com a divisão da Europa em blocos antagônicos, a bipartição da Alemanha e a emergência do projeto da unificação europeia. A atual crise da União Europeia assinala a erosão da ordem geopolítica na vasta área da Eurásia.

A guerra no Pacífico terminou com a anulação do po-der geopolítico japonês e o estabelecimento da hegemonia naval dos Estados Unidos no maior dos oceanos. Hoje, a ascensão da China à condição de potência mundial conduz à contestação da hegemonia norte-americana no Pacífico. O mundo inventado em 1945 se desfaz em câmera lenta, diante de nós.

Veja as matérias às págs. 6 a 10

O mar dOs desesperadOs

A guerra civil na Síria, o conflito interno no Iraque e a expansão do jihadismo em todo o arco africano que se estende da Nigéria à Somália provocam o maior

deslocamento humano desde a Segunda Guerra Mundial. Só na Síria são 8 milhões de deslocados internos e cerca de 4 milhões de emigrantes. Duas rotas conduzem os desesperados rumo à Europa. Da Turquia, eles se juntam a migrantes econômicos asiáticos em busca da costa da Grécia. Da Líbia, juntam-se a migrantes econômicos africanos em busca da ilha italiana de Lampedusa.

O Mare Nostrum romano converteu-se no mar dos desesperados – e no mar da morte. A União Europeia enfrenta a crise oscilando entre a timidez, a negação e a vilania. Os governos europeus imaginaram o Mediterrâneo como uma intransponível muralha – e a Europa como uma ilha. Enganaram-se: o Velho Mundo é um conjunto que abrange, além da Europa, a África do Norte e o Oriente Médio.

Págs. 4 e 5

FIFAGATE

■ ANO 23 ■ Nº 4 ■ AGOSTO/2015 ■

tiragem: 20 000 exemplares

a sOmbra da maiOr de tOdas as guerras

© M

arce

lo C

asal

Jr.

/Ag

ênci

a B

rasi

l

© C

ole

ção

par

ticu

lar

30 de abril de 1945: soldados do Exército Vermelho, o primeiro entre os aliados a ocupar Berlim, hasteiam a bandeira da União Soviética no topo do edifício do Reichstag (parlamento); a foto

foi tirada por Vladimir Grebnev

E mais...● O ataque a Pearl Harbor,

a batalha de Stalingrado e o Dia D, momentos decisivos da Segunda Guerra Mundial, ins-piraram obras cinema-tográficas celébres ou quase desconhecidas.

Pág. 2

● Editorial – O Mediter-râneo, Mare Nostrum, não é uma muralha, mas uma ponte. A Eu-ropa não se isolará da África do Norte e do Oriente Médio.

Pág. 3

● Há cem anos, uma tra-gédia humana monstru-osa no decadente Im-pério Turco-Otomano produziu o esboço do conceito de genocídio.

Pág. 3

● Cristina Kirchner não poderá disputar um novo mandato. Será o fim do longo ciclo do kirchnerismo na Argentina?

Pág. 11

● Recep Erdogan não conseguiu. Nas eleições turcas, um partido de origem curda mais o programa democrático bloquearam o projeto centralizador e islami-zante do presidente.

Pág. 12

Page 2: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

22015 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

E X P E D I E N T EPANGEA – Edição e Comercialização de Material Didático LTDA.

Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia)Jornalista responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)Revisão: Jaqueline OgliariPesquisa iconográfica: Thaisi LimaProjeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise

Endereço: Rua General Brasílio Taborda, 218, São Paulo – SP. CEP 05591-100. Tel/fax: (011) 3726.4069 / 2506.4332E-mail: [email protected] – www.facebook.com/JornalMundo

Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos no seguinte endereço, em São Paulo:• Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900, São Paulo Fone: (011) 3283.0340 - E-mail: [email protected]

www.clubemundo.com.br

Infelizmente não foi possível localizar os autores de todas as imagens utilizadas nesta edição. Teremos prazer em creditar os fotógrafos,

caso se manifestem.

Três batalhas ocorridas durante o segundo conflito mundial – o ataque japonês a Pearl Harbor, a batalha

de Stalingrado e o Dia D – não só foram emblemáticas como ajudaram a definir os rumos da guerra [veja a matéria à pág. 4 de História & Cultura]. Como não podia deixar de ser, o cinema – especialmente Hollywood – não deixou escapar a oportunidade de tematizar esses eventos.

Os dois filmes mais conhecidos sobre os eventos dramáticos de 7 de dezembro de 1941 são Tora! Tora! Tora! e Pearl Harbor. O primeiro, lançado em 1970, uma produção nipo-americana sob a direção de Richard Fleischer, Kinji Fukasaku e Toshio Matsuda, tem caráter mais documental. A presença de diretores japoneses na montagem da obra cinematográfica garantiu, pelo me-nos parcialmente, uma visão dos dois lados em luta. A película tem excelentes cenas de ação, o que influenciou outros filmes sobre o tema. Por conta dessas cenas, o filme recebeu o prêmio de melhores efeitos especiais no Oscar daquele ano.

Pearl Harbor (de Michael Bay, 2001) tem outro caráter, já que a trama central é baseada num triângulo amoroso entre dois pilotos norte-americanos que disputam o amor de uma enfermeira, tendo como pano de fundo o ataque japonês. Drama, romance e ação, um filme bem ao gosto do grande público. Nas cenas de ação, ficam evidentes as influências de Tora! Tora! Tora!.

No que se refere à batalha de Stalingrado, o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001), dirigido por Jean-Jacques Annaud. O filme, que buscou inspiração em fatos reais, aborda o duelo entre dois atiradores de elite – o russo Vassili Zaitsev e o alemão major Konig – em meio à sangrenta batalha pela conquista da cidade. O tema de fundo é a discussão sobre a manufatura do herói por meio da propaganda.

Vassili, que se revela um exímio atirador, foi “desco-berto” por Danilov, um comissário político responsável pela propaganda de guerra. O atirador russo funcionou como estímulo para a manutenção da moral da resistência contra os nazistas. Por isso, do ponto de vista alemão, devia ser eliminado. Era essa a missão do major Konig, enviado a Stalingrado pelo Estado-maior alemão. Zaitsev não foi eliminado por Konig e recebeu diversas condecorações do governo soviético. Em Stalingrado, caíram vítimas de sua mira certeira 242 soldados e oficiais alemães. Morreu em 1991, aos 76 anos. Em Volgogrado, ergueu-se uma estátua em sua homenagem.

Há um filme recente, quase desconhecido, sobre o tema, chamado Stalingrad (de Fyodor Bondarchuk, 2013). Sua peculiaridade principal é a de ter sido produzido na Rússia atual – e, portanto, com uma visão russa e nacionalista do evento histórico, fugindo dos padrões hollywoodianos.

Vários filmes retrataram o Dia D, sob inúmeros ân-gulos. Os mais célebres são O mais longo dos dias (de Ken Annakin, 1962) e O resgate do soldado Ryan (de Steven Spielberg, 1998), que deram destaque quase exclusivo ao desembarque das forças norte-americanas na Praia de Omaha. O primeiro, repleto de atores famosos na época, foi o primeiro grande filme a tratar do tema.

A trama do filme de Spielberg, realizado mais de três dé-cadas depois, articula-se em torno da epopeia de um pelotão que desembarca na Normandia durante o Dia D e recebe a missão de encontrar o soldado Ryan – que, por decisão do presidente Franklin D. Roosevelt, deveria ser levado de volta aos Estados Unidos porque seus três irmãos haviam perecido em combate. Os primeiros 20 minutos, que mostram o de-sembarque na Praia de Omaha, são de tirar o fôlego.

O buraco da agulha (de Richard Marquand, 1981), bem menos conhecido, baseou-se no livro homônimo de Ken Follett, publicado em 1978, que foi o primeiro grande sucesso desse autor de best-sellers. Misturando realidade e ficção, trata da história do espião nazista Henry Faber, o “Agulha”, enviado à Grã-Bretanha com a missão de desco-brir quando e onde seria realizada a invasão da França.

Follett é autor de vários outros livros, verdadeiros roteiros cinematográficos, que tomam a Segunda Guerra Mundial como pretexto. São os casos de A chave para Rebecca (de David Hemmings, 1985), adaptado para o cinema, e também de As espiãs do Dia D, livro de 2001, republicado em 2015, que não chegou às telas.

a segunda guerra mundial, nas lentes dO cinema

© Im

agen

s: D

ivu

lgaç

ão

20º cOncursO naciOnal de redaçãO Mundo e H&C – 2015Caros(as) professores(as) e alunos(as),

Temos o prazer e a honra de informar que a 20a edição de nosso concurso reuniu 182 trabalhos oriundos de 48 escolas do país. Várias promoveram concursos internos, com o objetivo de escolher as cinco melhores de cada uma delas. Por isso, as redações que chegaram até nós representam um universo bem maior de participação.

Somos especialmente gratos aos professores, coordenadores e diretores das escolas participantes do concurso pelo estímulo a seus alunos, assim como pelo privilégio da parceria pedagógica.

Informamos também que na edição de outubro será publicada a redação vencedora com um resumo dos co-mentários feitos pela banca examinadora. Em nosso site (www.clubemundo.com.br) ficará disponível o comentário integral, que também aparecerá para todas as redações premiadas em nossa publicação, a serem enviadas a todas as escolas no final de novembro.

Page 3: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 3 AGOSTO 2015

A vida é perigosa em qualquer lugar. posso morrer num canteiro de obra, aqui mes-

mo”, explicou um operário de gana já em meio à jornada, num café de bamako, a capital do mali. o ganês seguia rumo à costa africana do medi-terrâneo para se juntar a centenas de milhares que esperam a oportunidade de embarcar clan-destinamente. o antigo Mare NostruM romano tornou-se uma ponte líquida entre a áfrica e o oriente médio, de um lado, e a europa, de outro [veja as matérias às págs. 4 e 5]. a resposta da união europeia à crise migratória é um vergo-nhoso desastre humanitário.

na massa humana que aguarda a chance de ar-riscar a vida em embarcações improvisadas, que são geridas por máfias de traficantes de gente, mistu-ram-se refugiados e migrantes econômicos, como

é o caso do operário ganês. todos os países têm o direito de regular o ingresso de imigrantes, segundo suas próprias leis. mas tratados internacionais e leis europeias definem os direitos dos refugiados, ou seja, daqueles que fogem de guerras e perseguições políti-cas, étnicas ou religiosas. a união europeia pretende diluir suas obrigações no caldo cinzento da confusão entre refugiados e migrantes econômicos.

inicialmente, em 2013, a itália lançou a operação Mare NostruM, destinada a salvar as vidas dos embar-cados. um ano depois, esgotada, desistiu de agir sozi-nha – e não obteve apoio dos parceiros europeus. no lugar da vasta operação humanitária, improvisaram-se ações menores, mais voltadas à repressão contra os traficantes que ao resgate de vidas. o resultado foi uma trágica expansão do número de vítimas – sem, é claro, qualquer redução no fluxo migratório. “a

vida é perigosa”, raciocinam as pessoas em desespe-ro, usando uma lógica que escapa à compreensão dos governantes europeus.

a grande migração no mediterrâneo funciona como sinal de alarme nos discursos da extrema-di-reita europeia. os governos, acovardados, curvam-se à gritaria xenófoba, ao invés de enfrentá-la munidos com os princípios da civilização consagrados nas leis. a obrigação moral e legal da união europeia é restaurar uma operação como a Mare NostruM – para salvar vidas. depois, em terra, é preciso separar refugiados de migrantes econômicos, assegurando os direitos dos primeiros e oferecendo as oportuni-dades possíveis a uma parcela dos segundos. apesar da crise econômica, a união europeia tem os meios para agir como um emplastro civilizatório, reduzindo o sofrimento e o desespero. virar as costas é crime.

E D I T O R I A L

afOgandO Os refugiadOs

O papa Francisco chamou atenção, no último 13 de abril, para um tema

tabu: o massacre dos armênios praticado pelo Império Turco-Otomano, há cem anos, no quadro da Primeira Guerra Mun-dial. O pontífice qualificou o evento como o primeiro genocídio do século XX.

A discussão sobre o genocídio revela como a sensibilidade humana evolui em seus padrões civilizatórios, reavaliando valores e práticas anteriormente tolerados. Primeiro, vem a condenação ética, segui-da pela tradução desse valor em termos linguísticos, com palavras que definem novos conceitos; por fim, a criação de leis que tratam do tema, o que significa que o Estado reconhece um valor social a ser protegido e prevê a punição dos que rompem o “contrato social”.

Com o advento dos Estados centra-lizados na Europa moderna, surgiu a necessidade de se regular as relações entre eles, a fim de minimizar os conflitos – eis a origem do Direito Internacional. Mas, até o século XX, à luz do princípio da so-berania, assumia-se que o que ocorria no interior de cada país não era da alçada dos demais. O cenário começou a mudar com os movimentos nacionalistas que despon-taram nos séculos XIX e XX, trazendo o problema da relação dos Estados com suas minorias nacionais.

A novidade, no caso armênio, esteve no fato de o massacre ter sido executado pelo Estado otomano, com deportações e assassinatos em massa, confisco de pro-priedades e destruição de igrejas. Tudo isso relatado, minuciosamente, por diplomatas e missionários que viviam no Império Tur-

co-Otomano. A tragédia começou em 24 de abril de 1915, quando foram presos e executados 250 intelectuais e líderes armê-nios, e estendeu-se até 1922 com um saldo estimado de 1 a 1,5 milhão de mortos.

Os armênios ocupavam uma área es-tratégica no Cáucaso, próxima à fronteira russa [veja o mapa]. O Império russo era o grande protetor dos cristãos orientais, como os armênios, seus aliados. Com rus-sos e turcos em lados opostos na Primeira Guerra Mundial, o temor de um levante impulsionou os otomanos rumo à barbárie. A República da Turquia, que sucedeu o Império Turco-Otomano em 1923, con-verteu o tema em tabu, responsabilizando os próprios armênios pelo morticínio.

Mas há pessoas que mudam a História pela força de suas convicções. É o caso de Raphael Lemkin, o criador do conceito

de genocídio. Estudante de Linguística e Filosofia, especializou-se em Direito convicto de que as palavras e as leis poderiam proteger pessoas de violências deliberadas como as praticadas contra os armênios. À Liga das Nações propôs que “barbárie” (entendida como extermínio deliberado de uma população) e “vanda-lismo” (destruição de patrimônio cultural, visando à aniquilação da história de um grupo) fossem transformados em crimes de guerra. Sem sucesso.

O judeu Lemkin fugiu para os Esta-dos Unidos em 1942 e foi convidado a integrar o Departamento de Guerra, em Washington. Nessa época, ele cunhou o termo “genocídio”, juntando a palavra grega gen (família, grupo) com o sufixo latino cídio (assassinato). E mais: carac-terizou os passos de uma ação genocida: a demonização do grupo; depois, a destruição de sua cultura; a restrição de liberdades e direitos; por fim, o impulso para o extermínio. Os norte-americanos pensavam nisso durante a instauração do Tribunal de Nuremberg (1945). Mas ge-nocídio ainda não era crime, e os nazistas foram julgados por outros atos. Lemkin trabalhou incessantemente para que a recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) aprovasse, em 1948, a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.

Os armênios ainda cobram do gover-no turco o reconhecimento do genocí-dio. O presidente Recep Erdogan chegou a lamentar as mortes dos armênios por serem “cidadãos do Império Turco”, mas negou se tratar de genocídio. Atualmente vários países reconhecem o genocídio armênio, mas isso sempre depende de cálculos diplomáticos. Para os turcos, a questão não é só semântica: a admissão do crime poderia implicar em reivindica-ções de reparação financeira e devolução de terras para a vizinha República da Armênia. O governo armênio afirma que só quer o reconhecimento do genocídio. Mas, numa época de recrudescimento de conflitos etno-religiosos e nacionalismos, quem vai apostar nisso?

dO massacre de armêniOs nasceu O cOnceitO de genOcídiO

Cem anos depois, os armênios ainda cobram do governo turco o reconhecimento do genocídio

© M

use

u In

stit

uto

do

Gen

ocí

dio

, Ere

van

.uja

sur.

org

0

EUROPA

ABC

No interior dos círculos a % da população armênia

FuturaTurquia europeiaFuturo território da SíriaFuturo território do Iraque

A

BC

35

35

35

40 55I M P É R I O O T O M A N O

IMPÉRIORUSSO

RS

IA

Ancara

Istambul

100 200 km

MAR NEGRO

MAR MEDITERRÂNEO

Presença da população armênia no Império Otomano(Principais regiões antes de 1915)

50

Page 4: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

42015 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

Berço de grandes civilizações da Antiguidade, entre as quais a egípcia, a fenícia, a grega, a cartaginesa e

a romana, o Mar Mediterrâneo, chamado pelos césares de Mare Nostrum (“Nosso Mar”), vem se transformando, nos últimos anos, em um verdadeiro cemitério líquido. No dia 19 de abril, cerca de 800 dos 950 refugiados que estavam num barco clandestino morreram afogados nas costas da Sicília. A maior parte dos passageiros era proveniente da Síria, da Eritreia e da Somália. Com essa tragédia, o número de mortes por naufrágio naquela região chegou a quase 2 mil pessoas, só em 2015. No ano passado, cerca de 220 mil pessoas cruzaram o Mediterrâneo em condições extremamente precárias – e pelo menos 3,5 mil delas morreram [veja o gráfico 1]. “Quantas mortes serão necessárias para a União Europeia agir?”, questionou Judith Sunderland, da Human Rights Watch.

Mare Nostrum, aliás, foi o nome dado à operação humanitária montada pela Itália em outubro de 2013, logo depois que um naufrágio semelhante matou 360 refugiados na Ilha de Lampedusa. A operação conseguiu, segundo especialistas, salvar a vida de cerca de 170 mil imigrantes provenientes da África e do Oriente Médio, mas foi desativada um ano depois. Isso porque os demais países da União Europeia se recusaram a ajudar a Itália a bancar a operação – meros 108 milhões de euros por ano. Além disso, países como a Grã-Bretanha argumentavam que uma operação como aquela, por garantir o resgate, encorajava o aumento da imigração ilegal. No lugar da Mare Nostrum, a agência europeia de segurança de fron-teiras (Frontex) montou a Operação Triton, de cunho mais limitado e defensivo, voltada mais para combater a imigração ilegal do que para salvar vidas. Outra proposta aprovada pela União Europeia foi um plano militar para atacar barcos das gangues que fazem o tráfico da Líbia para países da Europa, principalmente Itália.

“Os refugiados não fazem os trajetos sozinhos. São iludidos por gangues criminosas, percorrendo muitas vezes caminhos árduos – como, por exemplo, partindo da Síria, através da Turquia, ou da Argélia, pelo deserto para a Líbia e, depois de barco, rumo ao ‘continente da esperança’, a Europa. Isso se não forem abandonados pela tripulação do navio e morrerem afogados. Esse moderno comércio de escravos já se tornou há muito tempo um negócio bilioná-rio – e cínico”, explica Alexander Kudascheff, editor-chefe da rede alemã Deutsche Welle. Então, completa ele, os refugiados chegam, são amontoados em abrigos, às vezes recebem tratamento médico – mas, frequentemente, são deportados após um curto período de tempo. Ou então submergem na ilegalidade, com empregos muitas vezes degradantes, para poder sustentar suas famílias.

O medo da imigração se espalha com um rastilho de pólvora em um continente ainda acossado pela crise eco-nômica mundial que teve início em 2008 e trouxe recessão e desemprego para a maioria dos países, principalmente da Europa meridional. “Barcos à deriva, vindos da Turquia, da Síria ou da Líbia, manifestações na Suécia e Alemanha,

Espanha e Grécia. Isso faz com que estes países fiquem com o ônus de quase todos os pedidos de asilo. Como os países setentrionais, para onde a maioria dos refugiados deseja ir – principalmente Alemanha, Holanda e países nórdicos –, cruzaram os braços, os meridionais deram um “jeitinho” de enviar os refugiados para aquelas plagas. É verdade que Alemanha e Suécia foram os que mais emitiram vistos de refugiados em 2014 [veja o gráfico 3]. Mas o problema agora se complicou porque essa crise humanitária acabou diluindo a diferença entre os que cruzam o Mediterrâneo em busca de asilo e os que o fazem fugindo da miséria.

O fato é que a União Europeia não tem respostas adequadas a essa crise – como foi incapaz de lidar com a desagregação da Iugoslávia nos anos 1990. Afinal, o projeto gestado em Maastricht em 1992 contempla a livre circulação – mas apenas de cidadãos europeus...

polêmicas na França e Grã-Bretanha. A imigração é o sujeito político da Europa em 2015”, resumiu uma TV francesa. Segundo a Frontex, quase 60 mil imigrantes irregulares foram interceptados no primeiro trimestre de 2015 [veja o gráfico 2]. Esse número representa o triplo do mesmo período do ano passado, quando já tinham sido quebrados todos os recordes. Nesse contexto, os dirigentes políticos da União Europeia estão cada vez mais reféns do clima de medo do “imigrante ladrão de empregos” alimentado pela extrema-direita xenófoba que se enraizou em consideráveis setores das populações europeias.

A crise no Mediterrâneo fez a Europa se defrontar com sua histórica incapacidade de forjar políticas comuns para problemas graves. O sistema Dublin, que regula o direito de asilo, determina que o refugiado peça guarida ao pri-meiro país de entrada na Europa. Ora, a porta de entrada da União Europeia são os países meridionais, como Itália,

nOssO mar, nOssO cemitériOunião EuroPEia

Mais uma vez a Europa se mostra incapaz de criar políticas comuns para enfrentar a tragédia de grandes proporções que se desenrola no Mediterrâneo

Refugiados da Líbia são resgatados numa situação de desespero a cerca de 200 km de

Trípoli, capital do país, de onde embarcaram

© B

un

des

weh

r/W

inkl

er/F

oto

s P

úb

licas

Cláudio CamargoEspecial para Mundo

Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo

Gráfico 1 Gráfico 2

240

200

160

1.500

80

120

1.250

40

1.000

0

Fontes: UNHCR, International Organization for Migration (IOM), Economist.com

2014 2015*201220102008*até 21 de abril

750

500

250

0

Chegadas por ano(mil pessoas)

Mortos e desaparecidospor mês

Imigrantes para a Europa, via Mediterrâneo

Fontes: Frontex, Economist.com

60504020 30100

Mali

Afeganistão

Desconhecido

Eritreia

Síria

70

Gâmbia

Nigéria

Somália

Palestina

Senegal

Imigrantes ilegais segundo suas origens(principais países em mil detidos)

Asilos concedidos e recusados a imigrantes(2014)

604020 1000 80

França

Suíça

Itália

Suécia

Alemanha

Holanda

Grã-Bretanha

Bélgica

Bulgária

DinamarcaFontes: Eurostat, UNHCR, Economist.com

2,4

12,2

1,3

7,4

3,8

4,5

2,0

2,7

0,6

2,4

Refugiados pormil habitantes dapopulação do país

Concedido Recusado

Gráfico 3

Page 5: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 5 AGOSTO 2015

Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), divulgado em 18 de

junho, revelou que o deslocamento global provocado por guerras, conflitos e perseguições atingiu 59,5 milhões de pessoas em todo mundo. Isso significa que, a cada dia do ano passado, nada menos que 42,5 mil pessoas se tornaram refugiadas, solicitantes de refúgio ou deslocadas interna-mente. Trata-se do maior número de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial. Em 2013, esse número era de 51,2 milhões – diferença de 8,3 milhões – e, uma década atrás, 37,5 milhões.

Grande parte desse êxodo é consequência direta da tão incensada Primavera Árabe, iniciada em 2011 em vários países do Oriente Médio e da África do Norte. A tal prima-vera revelou-se um inverno de sangue para a maioria dos países onde eclodiu (Síria, Líbia e Egito), que passaram a sofrer com guerras civis, tribalização do Estado e repressão continuada. Para a Europa, que incentivou muitas dessas revoltas, a “primavera” virou um pesadelo tenebroso. Mas não se pode esquecer que a crise dos refugiados também está sendo alimentada pelo acirramento de conflitos ét-nicos e políticos na África do Norte e no Oriente Médio, particularmente pela ação de grupos terroristas, como o Estado Islâmico na Síria e no Iraque e o Boko Haram na Nigéria. Sem falar nos conflitos internos no Iêmen, na Eritreia, em Chade, no Sudão e no Sudão do Sul e do conflito crônico em Israel/Palestina [veja o mapa 1].

“A questão dos fluxos migratórios da África para a Europa através do Mediterrâneo não pode continuar sendo tratada como uma emergência”, diz Marta Dassù, ex-vice-ministra do Exterior da Itália. “É um fenômeno estrutural [...] – e, assim, a pressão migratória continuará com números crescentes. E não creio que possa haver uma resposta puramente humanitária (uma Europa aberta capaz de absorver crescentes fluxos, quanto mais não seja por razões políticas), nem uma resposta puramente ‘secu-ritária’ (uma Europa fechada capaz de devolver imigrantes ao ponto de partida).” Ou seja: se correr o bicho pega; se ficar o bicho come.

união EuroPEia

A Primavera Árabe derrubou o regime ditatorial na Líbia. Hoje, o país convulsionado, fragmentado em poderes rivais, converteu-se na porta giratória do fluxo de migrantes que

buscam a Europa

Nesse drama, a Líbia, antigo domínio do coronel Muammar al-Kaddafi, um dos tiranos depostos pela Primavera Árabe, virou a porta giratória da União Euro-peia. É por lá que todos os dias milhares de refugiados políticos e famélicos da terra passam buscando alcançar a “terra prometida”. Segundo órgãos especializados, mais de 90% dos migrantes que chegam à costa italiana passam pela Líbia, que hoje se tornou um arremedo de país, um pseudo-Estado dominado por centenas de milícias em guerra endêmica entre si, entre elas o Estado Islâmico. E também um lugar onde os traficantes de seres humanos agem com total impunidade [veja o mapa 2].

Assim, a Líbia é hoje uma ameaça estratégica para a Europa muito maior do que era na época de Kaddafi. Ela tem a maior costa da África do Norte (1,7 mil qui-lômetros) e 5 mil quilômetros de fronteira terrestre com países vizinhos. São áreas desérticas sem qualquer controle – uma tentação para os milicianos do Estado Islâmico. Na época da ditadura de Kaddafi (1969-2011), o governo líbio controlava o fluxo de imigrantes e o usava como elemento de chantagem junto à União Europeia. Agora, a Líbia é uma “terra de ninguém”, com dois governos rivais, um estabelecido em Trípoli e outro em Tobruk, além de inúmeras milícias autônomas locais. O primeiro dos governos é reconhecido por Itália, Qatar e Turquia; o segundo, por Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Na prática, trata-se de um país sem Estado.

Cláudio CamargoEspecial para Mundo

a maldiçãO de Kaddafi

Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo

Mapa 1

Mapa 2

MALTA

Fonte: BBC

Mortes de migrantes no Mediterrâneo (2014-15)

Mar Mediterrâneo

Número de migrantesmortos em cada acidente

Acidente de 19 de abril de 2015com mais de 800 mortos

LÍBIAEGITO

TURQUIAGRÉCIA

ITÁLIA

SicíliaLampedusa

© M

arin

ha

Mili

tar

Ital

ian

a/Fo

tos

blic

as

Operação Mare Nostrum: Marinha italiana resgata imigrantes que tinham como destino a

costa da Sicília

Os caminhos tortuosos da imigração ilegal

Países da Europa que mais têm recebido ilegaisque utilizam a via marítima do Mediterrâneo

Países envolvidos em vários graus com a imigração ilegal(origem dos imigrantes, facilidades no trajeto e falta de vigilância)

RÚSSIA

IRÃ

JORD.

ARÁBIASAUDITA

EGITOLÍBIA

SUDÃO

SUDÃODOSUL

ETIÓPIA

CHADE

NIGÉRIA

NÍGERMALI

ARGÉLIA

MAR NEGRO

GOLFO DA GUINÉ

OCEANOATLÂNTICO

MARMEDITERRÂNEO

Grandes rotas terrestres

Rotas secundárias de imigração

IÊMEN

TURQUIA

SÍRIA

ESPANHA

FRANÇA

ITÁLIA

MARROCOS

MAURITÂNIA

GRÉCIA

SOMÁLIA

ERITREIA

TUNÍSIA IRAQUE

Page 6: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

�2015 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

estadOs unidOs teceram a Ordem mundial dO pós-guerra

A ordem do pós-guerra foi tecida, es-sencialmente, pelos Estados Unidos. Suas raízes encontram-se na visão estratégica do presidente Franklin D. Roosevelt, que imaginou uma ordem de paz sustentada por instituições econômicas e de segu-rança, “tão interligadas quanto as lâminas de uma tesoura”, nas palavras de um de seus assessores. A ONU seria a Liga das Nações refeita e corrigida, fincada no ali-cerce de pedra das cinco grandes potências do Conselho de Segurança. O FMI e o Banco Mundial assegurariam uma ordem econômica liberal, aberta, vacinada contra os protecionismos que, desde a grande crise de 1929, arrastaram o mundo na direção do precipício de 1939.

Na visão de Roosevelt, a aliança da guerra se desdobraria numa perene aliança de paz. Contudo, dois anos após sua mor-te, o cristal da aliança da guerra partiu-se definitivamente – e a rivalidade estraté-gica e ideológica entre Estados Unidos e União Soviética degenerou na Guerra Fria. Então, com a Doutrina Truman, o Plano Marshall e a Otan, a ordem mundial do

a sustentabilidade do poder dos estados unidos depende, em última análise, da extensão da crença dos demais atores em que ele é empregado não apenas para favorecer os interesses norte-americanos [...]. na sequência de seu triunfo na segunda guerra mundial, os estados unidos lideraram o esforço não só para criar novas instituições

de segurança, como a onu e a otan, mas também regimes destinados a promover a reconstrução econômica, o desenvolvimento e a prosperidade, como o plano marshall, o sistema monetário de bretton Woods e o acordo geral de comércio e tarifas. tais instituições e regimes preservaram e expandiram o poder dos estados unidos, mas de um

modo que beneficiou todos os participantes. o desafio para os estados unidos é fazer o mesmo hoje.

[james m. lindsay e ivo h. daalder, BrookiNgs review, inverno de 2003]

A ONU nasceu em abril e maio de 1945, na Conferência de São Fran-

cisco. Sob sua inspiração, surgiriam organi-zações regionais de segurança, como a OEA, nas Américas (1948), a OUA, atual UA, na África (1963), e a CSCE, atual OSCE, na área da Europa e Atlântico Norte (1975). Além disso, no interior do sistema das Nações Unidas, seriam criados regimes de controle de armas nuclea-res (Agência Internacional de Energia Atômica, em 1957) e de armas quími-cas (Organização para a Proibição de Armas Químicas, em 1997).

A Otan, aliança militar entre Estados Unidos, Canadá e Europa Ocidental, nasceu em 1949, quando a Alemanha foi bipartida na RFA e na RDA. Durante a Guerra Fria, o modelo da Aliança Atlântica foi replicado pelos Estados Unidos na Ásia e no Oriente Médio. Após a dissolução da União Soviética, em 1991, a Otan incorporou os países do antigo bloco soviético.

No verão de 1944, ainda antes do desenlace da guerra mundial, a Confe-rência de Bretton Woods, patrocinada pelos Estados Unidos, estabeleceu um sistema monetário global baseado no dólar e criou o Fundo Monetário In-ternacional (FMI) e o Banco Mundial. Menos de três anos depois surgiria o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT), antecessor da atual Organização Mundial de Comércio (OMC).

A ordem econômica de Bretton Woods patinou durante três anos. Só começou a funcionar, de fato, com o lançamento da Doutrina Truman (1947) e do Plano Mar-shall, que financiou a reconstrução europeia entre 1948 e 1952. A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca), esboço inicial da atual União Europeia, foi estabelecida em 1951, sob o impulso do Plano Marshall.

A teia compacta de instituições inter-nacionais que forma a ordem mundial não existia antes de 1945. A Liga das Nações, primeiro esboço de uma organização mundial de segurança coletiva, apareceu como resultado da Conferência de Paris (1919), que encerrou formalmente a Pri-meira Guerra Mundial, mas entrou em irreversível declínio na década de 1930. Da Liga das Nações, resta atualmente apenas a Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma das menos relevantes institui-ções internacionais. Todas as demais são filhas da catástrofe imensa batizada como Segunda Guerra Mundial.

pós-guerra sofreu uma inflexão decisiva, convertendo-se numa ordem ocidental baseada ainda mais claramente na hege-monia dos Estados Unidos. Os parâmetros que definem até hoje o edifício geopolítico global foram traçados em Washington, no período compreendido entre a derrota da Alemanha nazista e os primeiros anos da Guerra Fria.

No vácuo entre os imperativos do-minantes da segurança e da economia, o pós-guerra proclamou a universalidade dos direitos humanos. Sob o impacto político devastador da exposição do genocídio nazista, a ONU patrocinou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, firmada em 1948, numa última janela de oportu-nidade, quando a Guerra Fria ainda não fechara todos os caminhos de cooperação diplomática. Antes da Segunda Guerra Mundial, já existia o direito humanitário, ou seja o direito de guerra, formulado inicialmente na Convenção de Genebra de 1864. Mas só depois é que se construiu o conceito de direitos humanos universais [veja a matéria à pág. 7].

James M. Lindsay e Ivo H. Daalder, do Instituto Brookings, um centro norte-americano de análises das relações inter-nacionais, escreveram, em 2003, que as instituições criadas no pós-guerra “preser-varam e expandiram o poder dos Estados Unidos, mas de um modo que beneficiou todos os participantes”. De fato, com a exceção óbvia da União Soviética e seu bloco geopolítico, “todos os participantes” encontraram abrigo à sombra da Pax Ame-ricana. Lindsay e Daalder acrescentaram, exatamente quando George W. Bush pre-parava a invasão do Iraque, à margem da ONU e contra as posições da Alemanha e da França, que “o desafio para os Estados Unidos é fazer o mesmo hoje”.

Não é um desafio banal, na hora em que a Pax Americana do pós-guerra parece ingressar em lento, mas irreversível, declí-nio. A ordem europeia completou-se com a consolidação da União Europeia, uma moldura para a solução da “questão alemã” [veja a matéria à pág. 8]. Hoje, porém, a hegemonia da Alemanha unificada na Europa e a crise do euro, que é uma crise

os 70 anos da sEgunda guErra

mundial

Em fevereiro de 1945, em Yalta (Crimeia), os líderes aliados da Segunda Guerra (da esq. à dir.) Winston Churchill, Franklin D. Roosevelt e Josef Stalin iniciaram conversações para definir o desenho europeu após a derrota do nazismo...

© N

AR

A

...que seriam concluídas na

Conferência de Potsdam

(Alemanha), aberta em 17 de junho de 1945, com a participação do sucessor

de Roosevelt, Harry Truman

(sentado de costas para a

câmera), Stalin e Churchill

Page 7: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO � AGOSTO 2015

a invençãO dOs direitOs humanOs

estadOs unidOs teceram a Ordem mundial dO pós-guerraa sustentabilidade do poder dos estados unidos depende, em última análise, da extensão da crença dos demais atores em que ele é empregado não apenas para favorecer

os interesses norte-americanos [...]. na sequência de seu triunfo na segunda guerra mundial, os estados unidos lideraram o esforço não só para criar novas instituições de segurança, como a onu e a otan, mas também regimes destinados a promover a reconstrução econômica, o desenvolvimento e a prosperidade, como o plano marshall, o sistema monetário de bretton Woods e o acordo geral de comércio e tarifas. tais instituições e regimes preservaram e expandiram o poder dos estados unidos, mas de um

modo que beneficiou todos os participantes. o desafio para os estados unidos é fazer o mesmo hoje.

[james m. lindsay e ivo h. daalder, BrookiNgs review, inverno de 2003]

Os direitos humanos são tão importantes e recentes quanto os saltos na saúde e na longevidade, a maior produtividade agrícola no cultivo de alimentos ou as tec-

nologias que mudaram o padrão de vida daqueles que têm acesso a elas. Há uma relação importante entre direitos humanos e sua formulação no campo da linguagem. Essa

pequena expressão de duas palavras – “direitos humanos” – passou a dar nome a um problema enfrentado durante séculos, mas que não era visto propriamente como problema em questões básicas como a integridade do corpo ou as liberdades religiosa e política.

Não teria sido possível falar em direitos humanos quando, até o século XVI, prevalecia na Europa a ideia de que a ordem divina comandava a ordem secular. O indivíduo fazia parte dessa imensa engrenagem e, mesmo reprimido, pouco poderia acrescentar a ela. O mesmo vale, aproximativamente, para os “direitos naturais”, derivados de uma relação idealizada entre o homem e a natureza. Por ela, no entanto, já se levantava o direito à vida e à sua universalidade, razão pela qual os chamados direitos naturais e os direitos humanos se confundem em suas certidões de nascimento.

Historicamente, a bandeira dos direitos humanos foi levantada no final do século XVIII, mas apenas em termos nacionais. Era válida para os limites de nações – nos Estados Unidos (1776) e na França (1789) – em seu conteúdo político, mas já com a implícita ampliação desses direitos aos econômicos e sociais. Estavam lançadas as raízes para que se garantissem, pelo direito positivo (aquele ao qual todos devem se submeter), as liberdades de pensamento, de expressão e de organização das correntes diversas da sociedade.

O século XIX e a primeira metade do século XX foram eficientes na elaboração e discussão de modelos políticos. Mas estiveram paralelamente enfraquecidos pela prevalência do Estado-nação e da consequente impossibilidade de se criar normas no plano multilateral. Dentro desses Estados, e fora da esfera das políticas públicas, levantou-se pela primeira vez, no século XIX, o que se chamaria, dois séculos depois, de direito alimentar. Tratava-se de estimular mecanismos para que não faltassem vitaminas aos pobres de regiões urbanas (que permaneceram carentes em proteína animal).

Duas experiências derivadas do espírito de filantropia: a da Grã-Bretanha, que adotou um modelo de urbanização em que privilegiou a horta familiar, em terreno apropriado atrás dos sobradinhos geminados, ou da Alemanha, em que uma área pública próxima das cidades era dividida para que os mais pobres cultivassem suas frutas e legumes.

Mas vejamos outro chifre pelo qual se segura o mesmo touro. Uma imensa carnificina ocorreu na Europa, a Batalha de Solferino (1859), em que a Áustria-Hungria tentou impedir a independência do Piemonte, enfrentando as tropas francesas de Napoleão III. Morreram 5,5 mil soldados. Na falta de uma codificação dos direitos dos feridos ou prisioneiros de guerra, foi assinada multilateralmente a Convenção de Genebra, em 1864. Nem por isso a guerra se tornou mais “humana” (o que seria uma contradição nos termos), tanto que a Primeira Guerra Mundial (1914-18) ampliou ainda mais as atrocidades, com seus 9 milhões de mortos – um militar para cada sete mobilizados. As convenções de Genebra – e a última delas foi a de 1949 – foram importantes não por ignorar prioritariamente os direitos humanos dos civis, mas por demonstrar que apenas negociações amplas entre Estados poderiam servir de referência para surtir algum efeito.

A Liga das Nações, criada em 1920, que entraria vagarosamente em colapso até o fim da década de 1930, bem que pro-curou praticar um multilateralismo jurídico. Mas não abordou os direitos humanos como um todo, dividindo-o em combate à escravidão, abrigo aos refugiados e direitos da mulher, cada tema com sua própria comissão.

O multilateralismo – em que os Estados abrem mão de seus monopólios jurídicos para se submeter a propostas negociadas com um amplo grupo de outros Estados – em verdade nasceu em sua atual versão com as Nações Unidas e, para o que nos é pertinente, em 10 de dezembro de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O mundo estava saindo da Segunda Guerra Mundial (1939-45) e das barbaridades cometidas contra populações civis que não eram em nada responsáveis por crimes que não cometeram – o Holocausto, praticado pelos nazistas contra os judeus, mas também e sobretudo a destruição em massa de cidades pelos dois lados de beligerantes.

O ano de 1945, excetuada a expansão do monolitismo comunista ao Leste Europeu, foi em muitos pontos bastante singular para a Europa. A democracia liberal deixou de se limitar a poucos países, como a Grã-Bretanha, passando a abranger os Estados do antigo nazifascismo. A ideia de democracia está diretamente associada à de direitos humanos. E foi nesse caldo de cultura que prosperaram as Nações Unidas e suas iniciativas para que esses direitos fossem universalizados ao máximo.

Não sejamos ingênuos a ponto de acreditar que a ONU instalou entre os mortais uma espécie de paraíso jurídico no qual o ser humano se tornou o beneficiário central. Mas, sem a ONU, para tomar um episódio recente, o presidente Omar al-Bashir, do Sudão, não estaria sendo hoje caçado pelo genocídio de 300 mil compatriotas, durante a Guerra de Darfur (que acabou gerando o Sudão do Sul). A ideia era levar o ditador sudanês ao Tribunal Penal Internacional (em Haia, Holanda) – onde permaneceu preso por cinco anos, vindo a morrer em 2006, antes da sentença, o criminoso de guerra e ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic, e onde hoje continua a ser julgado o sérvio-bósnio Radovan Karadzic. Tanto Milosevic quanto Karadzic são responsáveis por genocídio, durante a Guerra Civil na antiga Iugoslávia (1991-2001).

E, finalmente, não sejamos, mais uma vez, ingênuos ao supor que prevalece uma ordem jurídica transnacional que garanta os direitos humanos ou que seja capaz de punir crimes coletivos praticados por motivos políticos, étnicos ou religiosos. Essa ordem sim-plesmente não existe. Temos exemplos trágicos e impunes, como o dos Estados Unidos no Vietnã ou da Rússia, mais recentemente, na Ucrânia. De qualquer modo, no entanto, é uma prova de civilização que a ONU se preocupe não apenas com o ser humano, mas particularmente com as mulheres, com as crianças, com as minorias nativas ou, em resumo, com a integridade e com a vida.

João Batista nataliEspecial para Mundo

da União Europeia, abalam os alicerces do edifício europeu.

Além disso, crucialmente, a China emerge como potência mundial – e, no horizonte de longo prazo, como rival principal dos Estados Unidos. A ordem do pós-guerra no teatro do Pacífico repousa sobre os pilares do poder naval norte-ame-ricano e da virtual eliminação do Japão como potência militar. A ascensão chinesa, que se manifesta também na forma de uma acelerada modernização aeronaval, começa a evidenciar os limites da tradicional he-gemonia, produzindo tensões crescentes [veja a matéria à pág. 9].

A ordem internacional produzida pela Paz de Vestfália, em 1648, durou um sé-culo e meio, até as Guerras Napoleônicas. A ordem internacional restaurada pelo Congresso de Viena, em 1815, durou um século, até a deflagração da Primeira Guerra Mundial. A Pax Americana do pós-guerra dá sinais de fadiga de material, após 70 anos. Felizmente, dessa vez, não há indícios de uma guerra geral no horizonte visível.

© N

AR

A

Page 8: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

�2015 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

de “ilha do capitalismo” cercada de socialismo por todos os lados. A divisão seria fisicamente consagrada em agosto de 1961, com a construção do Muro de Berlim.

Ecoando as preocupações de Churchill, em fevereiro de 1947, Truman pronunciou um discurso ao Congresso norte-americano no qual se comprometia a conter o “avanço comunista” em todas as partes do planeta. A Europa era o centro de suas preocupações. Por essa razão, Washington financiou a reconstrução dos principais alia-dos europeus, mediante a concessão de créditos e capitais, segundo uma estratégia formulada, em junho de 1947, pelo então secretário de Estado George Marshall. O plano

alemanha, “nó górdiO” da eurOpa

os 70 anos da sEgunda guErra mundial

Em junho de 1941, Adolf Hitler invadiu a União Soviética com o objetivo de aniquilar o “câncer

comunista”. Rasgava, unilateralmente, o Pacto Molotov-Ribbentrop (nomes dos respectivos chanceleres soviético e alemão), de não agressão mútua, secretamente celebrado em 24 de agosto de 1939. A estratégia nazista contava, então, com a simpatia do primeiro-ministro britânico Winston Churchill, que torcia pela destruição mútua de Alemanha e União Soviética. Após três anos de guerra em solo soviético, e quase 30 milhões de mortos, o Exército Vermelho reverteu a situação e iniciou sua marcha rumo a Berlim, onde foi o primeiro entre os aliados a chegar, no final de abril de 1945. Cercado, o führer cometeu suicídio, em 30 de abril. Em 8 de maio, a Alemanha capitulou.

O Exército Vermelho ocupava, então, uma vasta área da Europa Central e Oriental, compreendendo os Estados Bálticos, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Bulgária e Romênia. Além disso, havia uma possibilidade concreta de tomar o poder na França, onde o Partido Comunista havia desempenhado um papel central na organização da resistência aos nazistas. Obviamente, essa perspectiva jamais seria aceita por Washington e Londres. Como consequência, em 17 de julho de 1945, Stalin, Churchill e Harry Truman (presidente dos Estados Unidos) iniciaram uma conferência para negociar um acordo sobre os destinos da Europa. O encontro foi realizado em Potsdam, capital do estado de Brandemburgo, perto de Berlim.

Truman já começou a reunião com um trunfo militar: no dia anterior, uma equipe de cientistas formada pelo governo norte-americano fizera o primeiro teste bem-suce-dido de explosão nuclear, no Deserto de Alamogordo, no estado de Novo México. Truman deixou claro que poderia fazer uso da arma, contra o avanço do comunismo na Eu-ropa. Ele não blefava, como se verificou nos bombardeios nucleares a Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto de 1945 [veja a matéria à pág. 1 de História & Cultura]. Estava pavimentado o caminho para a Guerra Fria.

Mas Stalin apresentou um fato consumado: o Exército Vermelho não se retiraria da região da Europa situada entre o Báltico e o Mar Negro, mais tarde batizada como Europa do Leste. Para obrigá-lo, os antigos aliados teriam que declarar nova guerra. Não havia clima político, nem condições materiais para isso. O novo mapa geopolítico europeu seria anunciado, em março de 1946, em tom de alerta, por Churchill, durante um discurso pronunciado em Fulton (Missouri), nos Estados Unidos, em que ele denunciou a “cortina de ferro” que Moscou havia criado no Velho Continente.

O caso específico da Alemanha foi o ponto nevrálgico das negociações de Potsdam pelo valor estratégico, histó-rico e simbólico da potência europeia. Stalin ambicionava controlar completamente Berlim, mas os Estados Unidos e a Grã-Bretanha impuseram a divisão do país, incluindo sua capital. O processo de partilha consumiu mais de quatro anos de negociações, ameaças mútuas e mobilização mili-tar e quase levou à guerra. Berlim adquiriu a configuração mais bizarra. Sua parte ocidental tornou-se uma espécie

Assim como a divisão do país, no pós-guerra, deu origem aos blocos da Guerra Fria, sua reunificação, sobre os escombros do Muro de Berlim, permitiu a criação da zona do euro

foi também oferecido à União Soviética, mas Stalin não o aceitou, temendo ser absorvido pelas dívidas com o capitalismo.

O Plano Marshall previa a reforma econômica na parte da Alemanha que estava sob controle dos Estados Unidos. Criou-se uma nova moeda, o marco alemão, que circulava nas três zonas alemãs de ocupação ocidental, inclusive em Berlim Ocidental. Stalin não poderia aceitar a circulação do marco, que ele não controlava, num território que considerava seu: a reforma econômica havia se tornado uma ameaça à estabilidade e ao modelo de economia es-tatizada que ele pretendia implantar na “sua” Alemanha. Como resposta, em 24 de julho de 1948, Moscou ordenou o bloqueio total de Berlim Ocidental.

Para enfrentar o cerco, os aliados criaram uma ponte aérea para abastecer a área bloqueada com carvão, água potável e alimentos. Realizaram, em média, mil aterrissa-gens diárias nos aeroportos de Tempelhof, Gatow e Tegel. Em maio de 1949, finalmente Stalin admitiu a derrota. O bloqueio foi suspenso, mas precipitou a criação da República Federal da Alemanha (RFA), ou Alemanha Ocidental, tendo Bonn por capital. No lado socialista foi criada a República Democrática Alemã (RDA), ou Alemanha Oriental.

Pouco antes do bloqueio de Berlim Ocidental ter-minar, em abril de 1949, os Estados Unidos criaram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). A tensão entre Washington e Moscou estava, então, no auge. Dos dois lados, as tropas estacionadas na fronteira entre as duas Alemanhas realizavam manobras militares provocadoras, chegando a concentrar tanques de guerra como se estivessem prestes a atacar. No início de maio de 1955, a RFA declarou sua adesão à Otan. Foi a gota d’água: Nikita Kruschev, o novo dirigente soviético, anunciou em 14 de maio a criação do Pacto de Varsóvia. Consagrava-se a divisão da Europa nos dois grandes blocos geopolíticos.

Durante a Guerra Fria, a Casa Branca adotou a es-tratégia iniciada por Truman: mantinha no horizonte a possibilidade de usar a força militar, ao passo que investia na reconstrução econômica europeia, da qual participava em condições vantajosas, como emissor da moeda uni-versal. Assim, promoveu a integração militar combinada com a econômica. Sob esse pano de fundo, firmaram-se os tratados de Roma (1957), que constituiu a Comunidade Europeia (atual União Europeia), e de Maastricht (1992), que lançou a base para a zona do euro.

A Alemanha foi sempre o “nó górdio” da equação europeia. Sua bipartição, em 1949, assinalou a divisão da Europa em blocos antagônicos e abriu caminho para a unificação política e econômica da Europa Ocidental. Sua reunificação, sobre os escombros do Muro de Berlim, em 1990, abriu caminho para a expansão da União Europeia e a criação da zona do euro. Hoje, a crise do euro aparece como uma crise da hegemonia alemã sobre a União Eu-ropeia, enfraquecendo os alicerces que sustentam a ordem geopolítica no continente.

Caricatura publicada em junho de 1941 ironiza o pacto secreto de não agressão entre

Hitler (o noivo) e Stalin, assinado pelos chanceleres Molotov, da União Soviética, e

Ribbentrop, da Alemanha (foto abaixo)

© B

iblio

teca

do

Co

ng

ress

o, W

ash

igto

n D

.C.

© N

AR

A

Page 9: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO � AGOSTO 2015

no Pacífico e no Índico. Nessa trajetória, a China entra em potencial conflito com os Estados Unidos.

Há pouco, a doutrina naval chinesa sofreu uma alteração sutil, mas decisiva. No lugar da “proteção das águas costeiras”, a Marinha passa a desempenhar a função de “defesa em alto-mar”. O ensaio de projeção de poder começou no Mar da China Orien-tal, compartilhado com Japão, Coreia do Sul e Taiwan. Naquele cenário, os chineses contestam o controle japonês sobre as Ilhas Senkaku, um pequeno arquipélago situado nas proximidades de Taiwan, a 330 quilô-metros da linha de costa da China e a 410 quilômetros das ilhas meridionais do Japão. Entretanto, as tensões logo se estenderam ao Mar da China Meridional, onde os chi-neses reclamam soberania sobre uma série de arquipélagos reivindicados pelo Vietnã, pela Malásia e pelas Filipinas. Nos mapas chineses, uma linha tracejada circunda completamente a área, indicando a vontade da potência de transformá-la em um “Mare Nostrum” chinês [veja o mapa].

Washington já opera, há anos, no novo cenário estratégico. O governo de Barack Obama enga-se num “giro para o Pacífi-co”, tentando reduzir a presença militar norte-americana no Oriente Médio para intensificar a presença no Oriente. A ordem

é articular pactos de cooperação e defesa com os países da região, que temem a ascensão chinesa. A Malásia, as Filipinas e até mesmo o Vietnã firmaram acordos mili-tares com os Estados Unidos. Uma preocupação crucial norte-americana é com o controle das rotas marítimas que conectam o Ocidente ao Oriente, através dos estreitos entre os oceanos Índico e Pacífico [veja a seção “o meio e o Homem”, à pág. 10].

O Japão, potência econômica e tecnológica, é peça es-sencial no “giro para o Pacífico” de Washington. Os Estados Unidos pressionam o governo japonês na direção de uma “reinterpretação” do artigo 9 da Constituição, que é uma renúncia à guerra como meio de solução de disputas. A releitura proposta possibilitaria a adoção de leis de “defesa coletiva”, um eufemismo para a participação das forças aeronavais japonesas em operações militares conjuntas.

No Japão, o governo de Shinzo Abe gostaria de ir ainda mais além, reescrevendo trechos inteiros da Constituição, mas enfrenta forte resistência da opinião pública. Uma pesquisa recente indica a oposição de três quintos do eleitorado aos projetos de lei de “defesa coletiva”. Yasuo Hasebe, um especialista selecionado pelo partido governis-ta para opinar sobre o assunto, surpreendeu o governo ao declarar que as mudanças legais representariam inaceitável violação constitucional. O jogo apenas começou.

nO pacíficO, a baleia desafiada

No final de maio, uma aeronave norte-americana de vigilância sobrevoou

uma das ilhas artificiais construídas pela China em um grupo de recifes do mar da China Meridional, com jornalistas e câmeras de TV a bordo. Como previsto pelos norte-americanos, a Marinha chinesa enviou ao avião uma mensagem exigindo que se afastasse, pois havia ingressado em uma “zona de alerta militar”. O pequeno incidente, que se repete com frequência na região, evidencia o fim de uma era. Desde a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos operam como potência naval hegemônica no vasto teatro do Oceano Pacífico. Hoje, a China desafia a tradicional hegemonia norte-americana.

“Segunda Guerra Mundial” é o nome que se dá a duas guerras distintas, uma no teatro da Europa, África e Atlântico, outra no teatro do Oriente. As duas guerras entrelaçaram-se pela entrada do Japão no Eixo, a aliança político-militar liderada pela Alemanha, e pela participação decisiva dos Estados Unidos em ambos os teatros. Na Europa, a guerra produziu a partição do continente nas esferas de influência dos Estados Unidos e da União Soviética. No Pacífico, produziu a eliminação do Japão como potência militar e o estabelecimento de uma Pax Americana.

A rivalidade nipo-americana no Pacífico desenhou-se na transição entre os séculos XIX e XX, com as anexações norte-americanas do Havaí e das Filipinas, em 1898, e com a expansão japonesa rumo a Taiwan e às Ilhas Sacalinas (1905) e a ocupação da Coreia (1910). A tensão entre as potências navais concorrentes marcou o entreguerras, épo-ca na qual a linguagem política norte-americana inventou a expressão “perigo amarelo” e desaguou no devastador ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941.

Na “guerra do Pacífico”, concluída pelos bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945, definiu-se a sorte geopolítica do Japão. A ocupação militar do arquipélago japonês pelos Estados Unidos, entre 1945 e 1951, terminou com uma reforma geral do Estado nipô-nico. Dos anos de ocupação, emergiu um Japão monár-quico mas parlamentarista, apoiado numa Constituição pacifista, que substituiu as Forças Armadas por forças de autodefesa. Foi sobre esse pano de fundo que os Estados Unidos passaram a desempenhar o papel geopolítico da Baleia – isto é, da potência naval incontestável nos mares do Oriente.

A Guerra Fria fez o resto. Após a Revolução Chinesa de 1949 e a Guerra da Coreia, entre 1950 e 1953, os Es-tados Unidos estacionaram forças militares permanentes na Coreia do Sul, assumiram o compromisso de proteção

Desde 1945, a ordem geopolítica no teatro do Oceano Pacífico baseia-se na hegemonia naval dos Estados Unidos. Mas a ascensão estratégica e militar chinesa começa a contestar a hegemonia tradicional

do regime anticomunista criado em Taiwan e firmaram um tratado de defesa do Japão. O pacto do “guarda-chuva nuclear”, de 1954, colocou o arquipélago japonês num perímetro de defesa assegurado pelos Estados Unidos, de forma a garantir a segurança do novo aliado diante de ameaças potenciais da União Soviética e da China.

Paradoxalmente, a longa Pax Americana serviu aos in-teresses soviéticos e chineses, pois evitou a remilitarização japonesa. Quando a Coreia do Norte deflagrou seu progra-ma nuclear, nos anos 1990, russos e chineses se juntaram aos norte-americanos para limitar as ambições militares do regime norte-coreano. O imperativo era impedir que, movido por uma sensação de insegurança estratégica, o Japão tomasse a decisão de mudar sua Constituição e de adquirir um arsenal nuclear, um passo capaz de desestabi-lizar a frágil arquitetura geopolítica de toda a região.

A velha ordem começa, agora, a ser contestada pela emergência da China à condição de grande potência. Os chineses cunharam a expressão “ascensão pacífica” para descrever a orientação de sua política externa. Contudo, recentemente, a potência asiática multiplicou seus inves-timentos estratégicos e militares, engajando-se na moder-nização da Força Aérea e da Marinha. O antigo Império do Centro, que dominou os mares do Oriente nos séculos XIV e XV, engaja-se na construção de uma poderosa força naval, a fim de adquirir a capacidade de projetar poder

os 70 anos da sEgunda guErra mundial

Tensões geopolíticas na área da Ásia do Pacífico

CHINA

JAPÃO

Pequim

INDONÉSIA

RÚSSIA

TAIWAN

FILIPINAS

Ilhas Curilas(RÚSSIA)

Presençaconstanteda 7ª frotados EUA

OCEANOPACÍFICO

VIETNÃ

COREIADO NORTE

COREIADO SUL

Espaçosmarítimosreivindicadospela China epor paísesvizinhos

IlhasSenkaku/Diaoyu

Jazidas depetróleoe gás

Espaçosmarítimosreivindicadospelo Japão

1

2

2

1 Ilhas Paracelso

Ilhas Spratly

Page 10: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

102015 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

No mundo globalizado de hoje, ne-nhum dos países que fazem parte

da comunidade internacional é totalmente autossuficiente em relação aos recursos que necessita para seu desenvolvimento. Todos dependem, em maior ou menor grau, do comércio internacional. A matriz de transportes do comércio internacional é dominantemente marcada pela navegação marítima, já que cerca de 90% do trans-porte de mercadorias é realizado através de navios. Ademais, a importância econômica dos oceanos e mares é enorme. Além da tradicional atividade pesqueira, inúmeros recursos minerais, como ouro, níquel, magnésio e hidrocarbonetos (petróleo e gás) são encontrados nas águas rasas ou profundas dos oceanos. Por serem locais de passagem, de contatos comerciais e também por se constituírem em fonte de recursos diversificados, a exploração dos espaços marítimos tem sido objeto de crescente competição internacional.

As rotas marítimas mais importantes do Oriente atravessam os oceanos Índico e Pacífico. O primeiro banha cerca de 40 países, localizados entre a costa leste da África e o litoral ocidental da Austrália. Em virtude de seus recortes litorâneos, existem no Índico estreitos de grande importância estratégica, como os de Bab-el-Mandeb, Ormuz e Málaca, além de inúmeros arqui-pélagos e penínsulas [veja o mapa].

Atualmente, três países – Estados Unidos, Índia e China – possuem grandes interesses geopolíticos na região do Índico. Como única potência verdadeiramente global, os Estados Unidos estão ali presen-tes através de bases militares e facilidades oferecidas por países aliados. A presença da superpotência ampliou-se a partir de 2001, em decorrência da intervenção militar no Afeganistão. O ponto mais importante é a base de Diego Garcia, situada a meio caminho entre a África e a Indonésia.

Com mais de 7 mil quilômetros de linha costeira, a Índia é o único dos três países que possui litoral no Índico. Sua vasta Zona Econômica Exclusiva exige constante vigilância, especialmente porque o país vê com preocupação o aumento da presença chinesa na área. A Índia julga fundamental tornar seguras suas rotas marítimas e, por isso, procura a cooperação com os governos da área para dispor de bases permanentes ou facilidades de escala.

nelson Bacic olicDa Redação de Mundo

as rOtas marítimas dO Oriente

Para a China, o Índico é de importância crucial. Por ali transitam cerca de um quarto de suas exportações e 15% das importações. Aproximadamente 75% das importações chinesas de hidrocarbonetos, essenciais para sua segurança energética, circulam por este oceano. A estratégia de Pequim é dispor de bases navais e facilidades nesse espaço marítimo para garantir a segurança de seus navios e, no caso de um conflito, defender seus interesses geopolíticos. O Estreito de Málaca se constitui na passagem mais vul-nerável. Este estreito, juntamente com o de Cingapura, constitui-se numa das principais artérias comerciais do mundo, já que por ali passa o essencial dos fluxos comerciais entre a Europa e Ásia.

Outra preocupação da China diz res-peito à forte presença dos Estados Unidos na região. Supondo uma eventual crise entre os dois países, os norte-americanos não teriam grandes dificuldades em pa-ralisar o comércio chinês, estrangulando a passagem pelo Estreito de Málaca. Esse sentimento de vulnerabilidade é ainda

mais acentuado pelo fato de a China não possuir nenhuma base naval operacional na região. No momento, a estratégia naval de Pequim se apoia principalmente na cooperação com Mianmar, Bangladesh, Maldivas e Paquistão.

As águas do Pacífico banham 40 países da Ásia e das Américas. A sua vertente asiá-tica é palco de inúmeras tensões resultantes das disputas entre países que reivindicam soberania sobre espaços marítimos, nos principais teatros de operações da Marinha chinesa. Uma rápida observação de um mapa da região mostra os “constrangimen-tos” geográficos que limitam a projeção marítima de Pequim. Quase todo o extenso litoral chinês é cercado por um cinturão insular controlado, em grande parte, por rivais geopolíticos da China, especialmente Japão e Taiwan.

Além disso, a Marinha de guerra dos Estados Unidos está presenta na região, através da 7ª Frota, cuja área de atuação se estende também para o Índico. O poderio norte-americano no teatro do Pacífico

materializa-se em centenas de navios, in-clusive porta-aviões e submarinos cujas principais bases de apoio estão nas ilhas de Guam, Okinawa e no Japão, além de forças terrestres estacionadas na Coreia do Sul, Japão e Taiwan. Os líderes chineses sabem o quanto é difícil competir com essa imensa máquina de guerra [veja a matéria à pág. 9].

Nada disso, todavia, evita que os espa-ços marítimos no Mar da China Oriental e no Mar da China Meridional conheçam tensões crescentes relacionadas a minús-culas ilhas e arquipélagos, cuja soberania é disputada pela China e por países vizi-nhos como Vietnã, Filipinas, Indonésia e Taiwan. As disputas sobre o controle dos pequenos arquipélagos existentes nesses mares se acirraram com a valorização econômica da plataforma continental, tanto para o aproveitamento dos recursos pesqueiros, que são base importante da dieta alimentar dos países da região, quan-to para a exploração de riquezas minerais, especialmente hidrocarbonetos.

Um exemplo dessas disputas é a que envolve a China e o Japão, relacionada ao Arquipélago de Senkaku (Diaoyu, segundo a denominação chinesa). A ocorrrência de incidentes entre os dois países tem tido o condão de reavivar lembranças dolorosas de conflitos passados.

No Mar da China Meridional veri-ficam-se diversas disputas oceânicas. As Ilhas Paracelso são pleiteadas por Vietnã e China. O Arquipélago de Spratly é rei-vindicado, parcial ou integralmente, por Malásia, Filipinas, Brunei, China e Vietnã. Várias ilhas e rochedos foram ocupados militarmente pelos países litigantes, em especial pela China. Supondo que a China consiga a soberania sobre essas ilhas, ela teria praticamente o controle total sobre as águas dos mares da China Oriental e Meridional [veja o mapa à pág. 9].

Tais disputas colocam em risco as rotas mais importantes do comércio entre Oriente e Ocidente, que são cruciais para o intercâmbio externo da China, do Japão e da Coreia do Sul. Contudo, nunca se deve esquecer que apenas os Estados Unidos dispõem de bases militares, tropas e meios logísticos para exercer influência decisiva sobre o conjunto desse espaço cada vez mais sensível na geopolítica global.

A Bacia do Índico

Países banhados pelo Índico

Principais Estreitos (1- Bab-el-Mandeb / 2 - Ormuz / 3 - Málaca)

Região afetada por atos de pirataria

OCEANOPACÍFICO

GOLFO DEBENGALA

C H I N A

IRÃAFEG.

PAQUISTÃO

ÍNDIA

BANGL.MIANMAR

TAIL.

AUSTRÁLIA

I N D O N É S I A

TURQUIA

EGITOARÁBIASAUDITA

SUDÃO

ETIÓPIA

QUÊNIA

TANZÂNIA

MA

DA

GA

SCA

R

MALDIVAS

ILHASSEYCHELLES

SRILANKA

ILHASMAURÍCIO

Base deDiego Garcia

(EUA)

Rota

do Cabo

ILHASCOMORES

TASMÂNIA

OCEANOÍNDICO

Equador

Projecão Bertin

ÁFRICADO SUL

MO

ÇA

MB

IQU

E

SOM

ÁLI

A

OMÃ

IÊMEN

G. PÉRSICO

VIETNÃ

MALÁSIA

CING.

1

2

3

Page 11: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 11 AGOSTO 2015

KirchnerismO tenta sObreviver à prOva de fOgO

argEntina

Segundo as pesquisas, as eleições presidenciais de outubro na Argentina são uma competição a dois.

O candidato de oposição, Mauricio Macri, cuja Proposta Republicana tem como forte alavanca o controle da pre-feitura de Buenos Aires, é tido como de centro-direita. O pretendente situacionista, Daniel Scioli, pertence a uma sublegenda do Partido Justicialista, de nome “Frente Para a Vitória” (FPV). Trata-se de um legado do peronismo, onde estão a presidenta Cristina Kirchner e seu círculo mais íntimo [veja o boxe]. Scioli ainda teria adesões saídas da centro-esquerda, cujo potencial se esvai enquanto ele se fortalece, mesmo enfrentando dificuldades.

Scioli não é o candidato dos sonhos de Cristina. A hostilidade palaciana, inclusive da própria presidente, mistura-se com questionamentos à lealdade do candidato à corrente principal do peronismo. Scioli participou de evento organizado pelo Grupo Clarín. O jornal e a tele-visão do grupo de comunicações não poupam o governo. No círculo de Cristina, o gesto foi taxado de insubordi-nação. Do palácio, veio a punição retórica: “Ou você está de um lado, ou está do outro.” Ele, no entanto, com dois mandatos de governador da poderosa província de Buenos Aires, procura estar em paz com os dois lados, tanto do governo como da oposição.

Bem que Scioli esforçou-se para ser visto como candi-dato da “continuidade”, mas não cessaram de multiplicar os entrechoques com Cristina e os seus. O ministro do Interior e Transporte Florencio Randazzo parecia a ponto de se tornar “oficialmente” o candidato da FPV. Mas, numa pesquisa entre membros do partido, Scioli ficou com 51% das preferências, contra distantes 42% de Randazzo. Numa grande concentração, a 25 de maio, data da Independência, Cristina de novo se recusou a manifestar em público seu apoio a um determinado candidato (leia-se “Scioli”).

Ela pediu aos manifestantes que deixassem o novo presidente tomar as mesmas medidas tomadas por ela, “porque estou segura de que se tratam de decisões certas”. Falou do passado, não do futuro em palácio, como os apoiadores de Scioli esperavam que ela falasse. A presidente limitou-se a pedir confiança nas políticas adotadas por ela mesma – e, antes, por seu falecido marido, Néstor Kirch-ner, já que se trata de projeto “coletivo”, e não de uma só pessoa. “A continuidade depende de todos vocês”, disse Cristina. Mais recado a um Scioli à espera de adoção?

Um dia antes, Scioli declarou que, se eleito, não implementará “medidas de austeridade”. Recado com endereço certo: a Casa Rosada de Cristina – mas dito sem mencionar nomes. Segundo analistas, é a atitude de quem quer apoio sem oferecer submissão, algo novo na longa história do peronismo. Argentinos se perguntam como esse ex-corredor de motonáutica, que perdeu o braço direito num acidente, suporta tantas pressões e tantos ataques públicos de amplos setores do kirchnerismo pelo simples fato de querer se mostrar autônomo.

Em meio a indagações, sobreveio um golpe suposta-mente de mestre, mas com diferentes interpretações. Scioli

Na tentativa de atrair a linha-dura do Partido Justicialista, o candidato presidencial peronista reaproxima-se de Cristina Kirchner. A Argentina vai às urnas dividida ao meio

anunciou que Carlos Zannini, um ultra-kirchnerista, será seu companheiro de chapa como candidato a vice-presi-dente. O Página /12, jornal da intimidade do poder, no entanto, ilustrou sua análise da escolha de Zannini com a charge de um pinguim, acompanhada pela legenda de animal domesticado. O que foi interpretado como mais um recado da Casa Rosada a Scioli. Ele teria de se enquadrar.

Zannini exerce no governo o cargo de secretário para questões técnicas e legais. Sua escolha foi saudada inclusive pela linha-dura do kirchnerismo. Quanto a Scioli, talvez como salva-vidas interno, mas ao mesmo tempo deixando claro que a escolha foi sua, disse em entrevista à uma tele-visão que convidou Zannini depois de uma conversa com a presidenta. Queria alguém com experiência de governo, explicou, mas numa sentença com forte acento no “eu”. A reaproximação de Scioli com o kirchnerismo explica-se pela esperança de se fortalecer na disputa eleitoral, com o apoio da corrente mais significativa de centro-esquerda, a Frente Renovadora, que está em queda nas pesquisas.

Há um ano, Cristina parecia acabada. Tudo indicava que a presidente seria um fardo pesado demais nas costas do candidato peronista. Contudo, surpreendentemen-te, a presidente estabilizou, ao menos por enquanto, a situação econômica – e reconquistou uma taxa quase razoável de popularidade. O oposicionista Macri pode vencer, colocando um ponto final na aventura populista do kirchnerismo. Mas nada está definido. Cristina ainda tem uma chance de dar a volta por cima, elegendo um sucessor aprisionado na teia partidária peronista, que hoje se confunde com o kirchnerismo.

© S

ilvin

a Fr

ydle

wsk

y/M

inis

téri

o d

e C

ult

ura

da

Arg

enti

na/

Foto

s P

úb

licas

newton CarlosDa Equipe de Colaboradores

de Perón a KirchnerO caudilho Juan Domingo Perón governou a Argentina por duas vezes, entre 1946 e 1955 e entre outubro de 1973 e

1o de julho de 1974, data de sua morte. No poder, em 1947, junto com sua primeira esposa, Eva Perón (Evita), o caudilho criou o Partido Justicialista (peronista), que se converteria no eixo principal da política argentina.

Na sua longa história, o Partido Justicialista oscilou loucamente entre o populismo corporativista, o autoritarismo semifascista e o esquerdismo anti-imperialista. O movimento dos Montoneros, de extrema-esquerda, ativo nas décadas de 1960 e 1970, nasceu no interior do peronismo. Entre 1974 e 1976, sob o comando formal da segunda esposa de Perón, Isabel (Isabelita), mas dirigido realmente por José López Rega, o justicialismo trocou o anti-imperialismo por um ferrenho anticomunismo, que preparou o terreno para a instalação da ditadura militar.

O Partido Justicialista voltou ao poder com Carlos Menem, em 1989. Na década de Menem, o peronismo conheceu uma nova metamorfose, transformando-se no veículo de uma política econômica ultraliberal, que finalmente redundaria em colapso financeiro e crise nacional. Da tormenta, emergiu a liderança de Néstor Kirchner, eleito em 2003 e sucedido por sua esposa, Cristina, em 2007. A “era dos Kirchner” reativou a alma populista do peronismo, bem como o discurso anti-imperialista.

O kirchnerismo tem uma retórica social voltada para os mais humildes, talvez condição de semelhança desejada pelos seus apoiadores com os dias gloriosos de Perón. É, de fato, o movimento que mais busca restaurar o legado do caudilho, sem que faltem ações concretas que escapem, pelo menos um pouco, de meros discursos. São exemplos a criação de um subsídio, Ajuda Universal por Filho, que favorece milhões de pessoas, e proteções diversas à combalida indústria nacional, com incontáveis barreiras às importações. O kirchnerismo vocifera contra o imperialismo, mas nunca constituiu-se como um verdadeiro movimento de massas, como foi o peronismo de Perón.

Até hoje, o kirchnerismo conserva uma base estimada em mais ou menos 30% de apoio popular. Já o peronismo de Perón, em seus áureos tempos, talvez tivesse ultrapassado, e muito, os 50%. Nem de longe é possível comparar, por exemplo, o que foram os enterros de Perón e de Néstor Kirchner. Perón foi sepultado como ícone nacional; Néstor, como um cacique de província. Como herança pesada, os que ficaram em palácio tem, a todo momento, de tentar explicar de onde vieram suas fortunas.

A presidente argentina Cristina Fernández de Kirchner ainda extrai força do peronismo, encarnado pelo Partido Justicialista, cujo prestígio será colocado sob duro teste nas eleições de outubro

Page 12: da maiOr de tOdas as guerras - acessoeducar.com.bracessoeducar.com.br/materias/geografia/rev1.pdf · A Segunda Guerra Mundial, ... o filme mais famoso é Círculo de fogo (2001),

122015 AGOSTOMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

As eleições parlamentares turcas, no início de junho,

reservaram uma amarga surpresa para o presidente Recep Erdogan: seu Partido da Justiça e do Desen-volvimento (AKP), que venceu todas as eleições nos últimos 12 anos, obteve apenas 41% dos votos, perdendo a maioria dos 550 assentos do parlamento. Os resultados frustram os planos de Erdogan de aprovar uma reforma constitucional que faria com que a Turquia passasse do atual sistema parlamentarista para o presidencia-lismo. Para isso, seria necessário o aval de três quintos do parlamento, a ambiciosa meta eleitoral frustrada do AKP.

Mas o dado ainda mais signi-ficativo foi o avanço do pequeno Partido Democrático do Povo (HDP), também chamado, equi-vocadamente, de Partido Curdo, que obteve 13% dos votos (79 cadeiras). Os resultados colocaram as relações políticas turcas de pernas para o ar, com im-portantes implicações para todo o Oriente Médio.

Em três eleições realizadas nos últimos dez anos, o AKP, criado por Erdogan, obteve um acúmulo impres-sionante de vitórias eleitorais: 34% dos votos em 2002 (quando foi conduzido ao cargo de primeiro-ministro), 47% em 2007 e 50% em 2011. Em 2014, Erdogan dis-putou as primeiras eleições presidenciais por voto direto, obtendo a preferência de 51% dos eleitores. Há várias interpretações para explicar tal crescimento, que ocorreu à sombra de um ciclo econômico mundial favorável às chamadas economias emergentes. A mais comumente aceita é a de que Erdogan conduziu uma política que fez concessões importantes para a maioria islâmica do país (com a adoção de medidas como a proibição da venda de bebidas alcoólicas e do beijo em público) e, ao mesmo tempo, ampliou os espaços de autonomia das minorias étnicas (em especial, a curda, que agrega cerca de 20% da população e obteve, pela primeira vez, o direito de transmitir programas de TV e de abrir escolas em seu próprio idioma).

A crescente “islamização” da Turquia foi, em parte, impulsionada pela política da União Europeia de recusar o ingresso do país no bloco, que implicitamente define a Europa como uma projeção política da cristandade. Desse ponto de vista, a antiga sede do Império Turco-Otomano não teria lugar na União Europeia, embora o país tenha sido

“ocidentalizado”, a partir dos anos 1920, por iniciativa do fundador da república turca, Kemal Ataturk, e faça parte da Otan, desde a origem da aliança militar ocidental. O ressentimento provocado pela rejeição europeia, associado ao crescimento do fundamentalismo islâmico no Oriente Médio, acabou levando o partido de Erdogan, de orientação ideológica conservadora, a um relativo distanciamento dos Estados Unidos, a enfrentamentos diplomáticos com o antigo aliado israelense e à busca de alianças com correntes islâmicas no mundo muçulmano.

Mas, aparentemente, o sucesso eleitoral subiu à cabeça de Erdogan. A partir de 2010, ele passou a endurecer a repressão aos opositores domésticos e a jornalistas e repri-miu com grande violência manifestações democráticas da juventude. Um ponto de inflexão autoritária foi atingido em maio e junho de 2013, com a repressão ao movimento em defesa da Praça Taksim, que se tornou um símbolo da luta contra a especulação financeira e a desfiguração do centro histórico de Istambul, a capital cultural e o coração histórico da Turquia.

Os partidos de oposição cresceram no vácuo do des-contentamento com Erdogan. O Partido Republicano do Povo (CHP), secularista e de centro-esquerda, herdeiro da tradição de Ataturk, obteve 25% dos votos. O Partido de Ação Nacionalista (MHP), nacionalista de direita, recebeu 16%. Mas a cena foi roubada pelo pequeno HDP, liderado por Selahattin Demirtas, que saltou de 10% dos votos, nas

eleições presidenciais de 2014, para 13%. O crescimento de 3 pontos percentuais (ou seja, de 30%), de um ano para o outro deveu-se a uma plataforma baseada na defesa das liberdades democráticas funda-mentais e do direito à autonomia de todas as minorias étnicas turcas, incluindo, é claro, a curda.

A questão da democracia re-velou-se crucial para o sucesso do HDP – e para a derrota relativa de Erdogan. A Turquia tem um sinistro histórico de repressão con-tra as cerca de 40 minorias étnicas espalhadas pelo país. A tradição repressiva ancorou-se, inicialmente, na extrema centralização do poder nas mãos do sultão, durante os séculos do Império Turco-Oto-mano, e depois no autoritarismo do regime nacionalista nascido com as reformas de Ataturk. O genocídio armênio, há exatos cem anos, foi uma manifestação dessa cultura violenta e segregacionista

[veja a matéria à pág. 3]. Nas décadas de 1970 e 1980, a repressão estatal abateu-se com especial ferocidade sobre os curdos organizados pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), classificado como terrorista. Não havia, basicamente, possibilidade de diálogo entre os grupos representantes das minorias étnicas, o governo e a sociedade em geral.

O HDP rompe com essa lógica. Fala em nome dos curdos, mas, sobretudo, da democracia e dos direitos de todas as minorias, além de propor um programa de governo para o conjunto da Turquia. Significativamente, obteve um grande número de votos entre a juventude urbana turca, que se manifestou nas ruas contra a trucu-lência corruta de Erdogan. Os 13% dos votos obtidos pelo HDP adquirem, por isso, um significado que transcende completamente sua dimensão numérica e aponta para transformações políticas e culturais importantes num país que ocupa um lugar estratégico, na fronteira entre o Ocidente e o Oriente Médio.

A consequência mais imediata dos resultados eleitorais foi a frustração dos planos de Erdogan de acumular ainda mais poderes em suas mãos, com a eventual aprovação do regime presidencialista. Isso, por si só, já garantiria um lugar histórico para as eleições de junho. Mas o avanço do HDP cria novas indagações – e dores de cabeça para os que apostam em saídas autoritárias.

turquia

O presidente Recep Erdogan perde a maioria absoluta no parlamento e vê frustrado o plano de concentrar ainda mais poderes em suas mãos

eleições barram prOjetO de “islamizaçãO” dO país

© B

ura

k K

ara/

Get

ty Im

ages

/AFP

Nas ruas de Istambul (Turquia), jovens celebram a significativa votação (13%) do Partido Democrático do Povo, fortemente influenciado pela minoria curda