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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE
2009
Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4Cadernos PDE
VOLU
ME I
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINAPROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE
CRISTINA POLIMENI GÓES
DISCURSO FEMININO:UM OLHAR PARA O QUE DELE TRANSBORDA
LONDRINA2011
CRISTINA POLIMENI GÓES
DISCURSO FEMININO: UM OLHAR PARA O QUE DELE TRANSBORDA
Artigo da implementação do Projeto de Pesquisa e Caderno Pedagógico desenvolvido para o Programa de Desenvolvimento Educacional –PDE da Secretaria Estadual de Educação do Paraná – SEED.
Orientadora: Profª Drª Mariangela Peccioli Galli Joanilho
LONDRINA2011
DISCURSO FEMININO: UM OLHAR PARA O QUE DELE TRANSBORDA
Autora: Cristina Polimeni Góes1
Orientadora: Profª Drª Mariangela Peccioli Galli Joanilho2
RESUMO
O discurso para Eni Orlandi é “[...] palavra em movimento, prática de linguagem, é o homem falando”. O discurso não é apenas língua ou gramática, é o uso que o homem faz dele ao expressar-se. Análise de Discurso não é análise de conteúdo, porque não visa à extração de sentido do texto, e sim a identificação e compreensão das condições de produção de um determinado discurso que envolvem sujeitos, situações e memórias. Este projeto trabalha sujeitos, situações e memórias a partir do resgate do discurso feminino; analisa a representação do feminino nas últimas cinco décadas nos discursos (re) produzidos nas revistas “Jornal das Moças”, “Cláudia”, e “Atrevida”, tendo em vista o contexto sócio-histórico-cultural no qual se insere. A problematização que norteia esta proposta de trabalho ampara-se na questão: De que forma são construídas as discursividades que representam o imaginário sobre o feminino? Tal proposição decorre da compreensão de que as práticas discursivas veiculam noções presentes na sociedade, reproduzindo, por exemplo, crenças, valores e identidades sociais, ao mesmo tempo em que retratam alterações históricas, contribuindo para a transformação nas relações sociais. Diante desta assertiva, intenciona-se possibilitar a apreensão de como as representações do feminino são veiculadas pela mídia impressa. Objetiva-se, neste sentido, oportunizar aos alunos uma leitura crítica, questionando ideologias e contribuindo para possíveis mudanças de mentalidade.
Palavras-chave: discurso; gênero; revistas femininas; transformação
ABSTRACT
Speaking to Eni Orlandi is "[...] word is in motion, language practice, is the man talking". The speech is not just language or grammar, is the use that makes him the man to express himself. Discourse Analysis is not content analysis because is not intended to extract meaning from the text, but the identification and understanding of production conditions of a particular discourse that involve the subjects, situations and memories. This design works subjects, situations and memories from the rescue of female discourse, analyzes the representation of women in the last five decades in the discourse (re) produced in the journals "Jornal das Moças, " "Cláudia", and
1 Professora de Língua Portuguesa da Secretaria de Educação do Estado do Paraná e formada em Letras Vernáculas e Clássicas pela Universidade Estadual de Londrina.
2 Docente do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da UEL – Universidade Estadual de Londrina.
"Atrevida" in view of the socio-historical-cultural context in which it operates. The problematic that guides the work supports this proposal on the question: In what way discourses are constructed representing the imagery about the feminine? This proposition follows from the realization that the discursive practices convey notions in society, reproducing, for example, beliefs, values and social identities, while portraying historical changes, the transformation in social relations. Given this assertion, intends to make the apprehension of how representations of women in the media are printed. Objective, in this sense, creating opportunity for students a critical, questioning ideologies and contributing to possible changes in mentality.
Keywords: discourse; gender; women's magazines; transformation
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INTRODUÇÃO
A adolescência é uma fase da vida na qual o indivíduo passa por rápidas
mudanças não só físicas, mas sobretudo, emocionais e intelectuais. Durante alguns anos
acompanhando esse desenvolvimento da personalidade adolescente, foi possível
perceber que, em meio a todas essas mudanças, as informações distorcidas ou
incompletas que o adolescente recebe acerca do feminino, seu papel na sociedade, sua
importância, suas fragilidades e sua luta transformam este ser em formação em fonte,
muitas vezes, de discriminação, de atitudes e opiniões pautadas na ignorância e no
preconceito.
A ideia básica do feminino e, lê-se aqui feminino como expressão do pensamento
feminino, da alma, das relações e do comportamento feminino que pode ser concretizada
pela frase de Simone de Beauvoir, em 1949, em O segundo sexo: “não se nasce mulher,
torna-se mulher”. A frase deixa clara a desnaturalização do ser mulher e é aqui que se
encontra uma das justificativas da proposta de trabalho desenvolvida.
É necessário perfazer o caminho ideológico que levou à construção da imagem da
mulher na sociedade contemporânea. É preciso compreender como essa construção se
fez a partir dos discursos das mulheres e sobre as mulheres no decorrer das últimas
décadas. E mais, é fundamental reconhecer as condições de produção, o contexto social,
histórico e ideológico em que as instituições da imprensa escrita nacional promoveram e
promovem tais discursos.
A proposta de trabalho vem ao encontro da necessidade de refletir como a
imprensa, feminina ou não, elabora uma realidade acerca da mulher, a partir da relação
mídia e cotidiano.
Se a proposição de trabalho era levar os adolescentes a compreenderem o cunho
ideológico dos discursos sobre o feminino e do feminino e, a partir daí, oportunizar
mudanças de postura diante do seu papel na sociedade, fez-se iminente que o material
didático, resultado do projeto de pesquisa, permitisse que os alunos percebessem e
compreendessem que discursos socialmente legitimados, como os publicados pelas
revistas femininas, têm como princípio veicular e impor “verdades” que atuam sobre a
vivência da feminilidade e constituíram-se como padrão nas últimas décadas.
Outro fato a ser aqui justificado é o porquê da escolha como vertente teórica de
estudo a Análise do Discurso e não qualquer outra área dos estudos da linguagem.
A linguagem sempre esteve associada ao caráter interativo/ideológico que
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assegura a comunicação entre os indivíduos e revela a formação e a sua participação
social. Esse é o motivo pelo qual faz-se necessário estudar a língua em sua
funcionalidade, uma vez que muitos dos seus aspectos somente apresentam sentido
quando relacionados ao contexto sócio-histórico de produção.
Para Brandão (2004), a linguagem é espaço conflituoso de “confronto ideológico”
que não pode ser estudado fora das condições de produção, uma vez que é constituída
de aspectos históricos e sociais. Nesse sentido, a opção pela Análise do Discurso é
primaz porque ao se propor analisar o discurso, essa análise deve ultrapassar os
aspectos formais, aprofundar-se em aspectos que estão além do discurso, e dessa forma
chegar à construção de sentidos, considerando o contexto social, histórico e ideológico
em que o discurso foi produzido.
A questão que foi o alicerce fundamental da pesquisa e porposta de trabalho
realizado na escola foi como o aluno adolescente é capaz de perceber como são
construídas as discursividades que representam o imaginário feminino.
A partir deste questionamento, o refletir sobre a imagem da mulher nas sociedades
moderna e contemporânea configurou-se como o objetivo geral do trabalho desenvolvido,
enquanto que identificar a voz feminina e a voz sobre o feminino na publicidade dos
séculos XX e XXI, estabelecer relação comparativa entre o discurso sobre, para e do
feminino em textos da mídia escrita no século XX e no século XXI, reconhecer as
condições de produção e a influência das mesmas no produto da discursividade feminina
e compreender o cunho ideológico dos discursos elaborados por homens e mulheres
acerca do universo feminino formaram o corpus dos objetivos específicos.
À LUZ DA TEORIA
No dia a dia das escolas brasileiras, as dificuldades de leitura vêm se tornando um
grande problema para os professores, uma vez que comprometem a qualidade do ensino
e da aprendizagem, bem como a formação de indivíduos capazes de questionar as
informações e discursos que lhe são apresentados e impostos pela sociedade.
Uma leitura produtiva, segundo Moita Lopes (1996) depende dos processamentos
ascendentes e descendentes. O processamento ascendente se reporta à leitura básica
dos textos, enquanto que o processamento descendente necessita da ativação da
memória discursiva que o leitor realiza ao ler um texto, relacionando-a às condições de
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produção que correspondem às suas experiências e vivências, as quais são essenciais
para a efetiva compreensão daquilo que se lê. É necessário que ambos sejam
simultâneos, pois a leitura envolve processos perceptivos e cognitivos. A este respeito,
LEFFA (1996) considera o ato de ler como sendo a extração de significado do texto e
atribuição de significado ao texto.
Momentos destinados à leitura em sala de aula são pouco oportunizados e o
ensino de gramática ainda é visto por muitos professores como prioridade no ensino da
Língua Materna, o que gera sérias dificuldades para que o educando desenvolva a
habilidade de compreender o que lê e de, por assim dizer, de gostar de ler. Antunes
(2009, p.186) corrobora a colocação ao afirmar, diante de uma pesquisa desenvolvida nas
escolas de Campinas, São Paulo, na década de 80, que “(...) é cabível concluir que a
fixação quase obsessiva no ensino da gramática – cuja caracterização, muitas vezes, a
escola mesma não sabe bem o que é – tem deixado a sala de aula sem tempo para a
leitura.”
A formação de leitores críticos deve ter início durante a alfabetização. Ao longo do
ensino fundamental, os professores devem promover momentos em que o aluno relacione
os textos trabalhados com o seu conhecimento de mundo e exponha suas ideias. As
atividades não podem ser superficiais, resumindo-se aos textos do livro didático e a uma
interpretação pouco eficaz, baseada em perguntas de levantamento de informação, uma
vez que não conduzem ao processo de significação do discurso, isto é, das
intencionalidades implícitas no texto e de sua funcionalidade.
Para tanto, Coracine (2002, p.32) defende que
caberia ao professor, através de uma metodologia menos diretiva e dominadora, que contemplasse o aluno como ser pensante e crítico, criar situações, por exemplo, de comparação entre vários textos produzidos a partir de um mesmo fenômeno ou evento para não apenas buscar as diferenças formais e linguísticas , mas sobre tudo culturais, essas muitas vezes de cunho ideológico e que, evidentemente, determinam a materialidades linguísticas.
A autora (2002, p.32) vai além ao referir-se à constituição do leitor competente:
Caberia ao professor colaborar para que o aluno – adolescente seja capaz de perceber que todo texto resulta de uma infinidade de outros textos assim como o sujeito se constitui de uma infinidade de outros sujeitos. Que todo texto se constrói a partir de determinadas condições de produção marcadas pelo imaginário discursivo.
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O que professores e escola devem ter em mente é que o leitor é igualmente
construtor do significado no momento da leitura e, assim, lê sempre a partir de sua
formação discursiva. Diante disso, realmente não há espaço para o ensino
descontextualizado que não considera as condições de produção dos textos estudados,
do educando, do professor e de toda a comunidade escolar.
O Estado do Paraná centraliza suas atividades pedagógicas da educação básica
na linha Histórico-Crítica que propõe uma interação entre conteúdo e a realidade
concreta, visando a transformação da sociedade através da ação-compreensão-ação do
educando, que enfoca nos conteúdos, como produção histórico-social de todos os
homens, como superação das visões não-críticas e crítico-reprodutivistas da educação.
Neste sentido, o desenvolvimento do leitor competente é fundamental não só para
a Língua Materna, mas para todas as disciplinas, pois a compreensão de textos
relacionados a determinados conteúdos, são leituras imprescindíveis para ampliar o
repertório do aluno. Daí a necessidade de conduzir este aluno à compreensão, por meio
da leitura, dos discursos explícitos e implícitos presentes nas relações sociais.
O processo de ler é complexo. Como em outras tarefas cognitivas, como resolver
problemas, trazer à mente uma informação necessária, aplicar algum conhecimento a
uma situação nova, o engajamento de muitos fatores (percepção, atenção, memória) é
essencial se queremos fazer sentido ao texto. É neste momento que a Análise do
Discurso demonstra sua importância no processo de formação de leitores competentes.
Segundo Possenti (2009), a Análise do Discurso (AD) configura-se como um
conjunto de teorias acerca das restrições que o discurso sofre. Neste sentido, a AD
contribui para a formação do leitor competente uma vez que analisa os discursos que
atravessam os textos e orienta que esses não circulam em qualquer lugar, não
apresentam uma forma livre e não podem ser interpretados de qualquer maneira por
pessoa que não apresente subsídios essenciais ao processo de análise.
Um dos pontos essenciais para a formação do leitor competente é a distinção entre
texto e discurso, uma vez que sem a mesma, a leitura corre o risco de tornar-se ingênua
diante da multiplicidade de sentidos nos discursos presentes nos textos. Orlandi (2007)
expõe que texto é uma unidade de sentido que se funda a partir de uma situação
estabelecida. A autora coloca ainda que o texto não se delimita por sua extensão. Seja ele
composto de uma só palavra ou por um livro inteiro, oral ou escrito, se for referido à
discursividade e se estabelecer como uma unidade em relação à situação, será um texto.
O texto é a materialidade do discurso. Algumas especificidades acerca do texto são
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apresentadas no trecho que se segue da Orlandi (2007, p. 70):
Os textos individualizam – como unidade – um conjunto de relações significativas. Eles são assim unidades complexas, constituem um todo que resulta de uma articulação de natureza linguístico-histórica. Todo texto é heterogêneo: quanto à natureza dos diferentes materiais simbólicos (imagem, som, grafia etc); quanto à natureza das linguagens (oral, escrita, científica, literária, narrativa, descrição etc); quanto às posições do sujeito. Além disso, podemos considerar essas diferenças em função das formações discursivas: em um texto não encontramos apenas uma formação discursiva, pois ele pode ser atravessado por várias formações discursivas que nele se organizam em função de uma dominante.
Agora, para definir discurso será preciso entender o que é linguagem. A linguagem
é uma interação que se estabelece entre a pessoa que fala e a que ouve; entre aquela
que escreve e a outra que lê. A linguagem é característica própria do ser humano – só ele
possui a capacidade de se expressar pela linguagem verbal. O uso da linguagem se faz
presente na vida de qualquer ser humano, em atividades corriqueiras e em situações mais
complexas e para utilizá-la não basta o conhecimento gramatical da língua, é preciso ter
ciência do contexto no qual o discurso está sendo produzido, ou seja, em quais condições
de produção o discurso está sendo elaborado. Orlandi (2007, p.15) corrobora o exposto
ao colocar que a Análise do Discurso concebe a linguagem como mediação entre o
homem e a realidade natural e social, ou seja, o ser humano ao produzir linguagem,
produz discurso.
Diante dessa assertiva, é possível iniciar o estudo sobre o discurso. Orlandi (2007,
p.15) expõe que a mediação entre homem e a realidade natural e social é o discurso e
que meio por dele é possível tanto a permanência e a continuidade quanto o
deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. A autora
ainda aponta que o discurso é palavra em movimento, é prática de linguagem.
Segundo Bakhtin (1998), que embora seja um filósofo da linguagem e não um
analista do discurso, o discurso é o ponto de articulação entre os fenômenos linguísticos e
os sócio-históricos. Para Fernandes (2007, p. 24):
discurso não é a língua e nem a fala, mas, como uma exterioridade, implica-as para a sua existência material; realiza-se, então, por meio de uma materialidade lingüística, cuja possibilidade firma-se em um, ou vários sistemas (lingüísticos e/ou semióticos) estruturalmente elaborados.
Pêcheux (1988) concebe o discurso como uma espécie de encontro entre um
conjunto de condições de produção e de uma língua.
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Realizada a distinção entre texto e discurso, cabe agora mensurar o quanto e como
a Análise do Discurso pode auxiliar na formação de leitores competentes em um campo
disseminatório de formação de opiniões como é a escola e, mais precisamente, a escola
pública.
Primeiramente, cabe aqui expor os três estágios básicos de como a leitura foi
desenvolvida desde o século XIX até hoje. A visão apresentada é defendida por Possenti
(2009) que sugere no primeiro estágio uma leitura centrada no autor e em uma relativa
transparência na concepção de língua. Em um segundo estágio, com o advento do
estruturalismo, o autor foi escorraçado e em seu lugar ficou o texto que supostamente
fornecia a completa semiose que permitiria a leitura a partir do próprio texto. Esta
concepção falhou porque os textos se revelaram mais plurissignificativos do que se
poderia supor e as lacunas deixadas precisavam ser preenchidas de alguma forma.
Chega-se, então, ao estágio no qual o leitor apresenta uma maior liberdade de
escolhas diante do texto. O leitor pode até mesmo ler o que o texto não diz ou então
escolhe algumas coisas que o texto expõe ou até mesmo fica com tudo, ou opta por
algumas ideias de um texto e outras de outro.
Diante do exposto até aqui, o fato de quem lê é o leitor parece ser incontestável,
contudo incontestável também parece ser que esta questão possui duas leituras que, de
acordo com Possenti (2009, p.16-17), uma seria interessante e outra banal:
A banal é a que diz que, se é assim, cada um pode ler como quiser (sendo, no entanto, uma verdade incontestável que cada um só pode ler como puder, queira isso e saiba disso ou não); a leitura interessante desse princípio, quase lema, é a que reconhece limitações (de gênero, de épocas etc.) e especifica cuidadosamente critérios (textuais e outros) que suportam ou não uma leitura.
Para se trabalhar a formação de leitores competentes tendo os conceitos da
Análise do Discurso como fundamento, é necessário dizer primeiramente que a Análise do
Discurso não aceita as leituras individuais, aquelas em que cada pessoa faz a leitura
como queira. A Análise do Discurso não acredita que haja sujeitos individuais que leiam
como querem, mas sim que há grupos de sujeitos que leem como leem porque têm a
história que têm. Para a AD o sujeito é um efeito da história, da linguagem e estas, por
assim dizer, fazem parte das condições de produção.
A Análise do Discurso defende que uma leitura para ser competente precisa olhar
para as condições de produção, mas o que vem a ser as condições de produção? Orlandi
(2007, p. 30) expõe que as condições de produção
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compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a memória faz parte da produção do discurso. […] Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as considerarmos em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-histórico, ideológico.
Outro aspecto que faz parte das condições de produção é a memória discursiva
que segundo Pêcheux (1999, p.52):
A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ser lido, vem restabelecer os ‘implícitos' (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursostransversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.
Orlandi (2007, p. 31) discorre sobre a memória expondo que esta tem
características específicas quando pensada em relação ao discurso. Neste cenário, ela é
vista como interdiscurso, ou seja, é a memória discursiva, que a autora define como “o
saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do
préconstruído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da
palavra”.
A partir do exposto, explicita-se a primeira regra para a formação de um leitor
competente seguindo os pressupostos da AD: deixar claro para os alunos que tudo o que
é dito ou escrito, na realidade, se encontra na convergência de dois eixos: o da memória
discursiva e o da atualidade.
Possenti (2009) demonstra outros aspectos que devem ser observados diante da
proposta da Análise do Discurso para a formação de leitores:
➢ nunca ler um texto isoladamente (não se faz análise do discurso de um texto);
➢ nunca ler um texto considerando apenas seu material verbal ( é preciso relacioná-
lo a seu exterior);
➢ nunca tratar a linguagem como se fosse transparente ( as palavras não têm
sentidos únicos);
➢ nunca supor que um texto (ou mesmo vários) fornece todas as condições de sua
leitura (é necessário considerar mais de um fator relevante, é preciso considerar os
pressupostos, a intertextualidade).
A Análise do Discurso propõe um caminho para a defesa de uma leitura que seja
objetiva; contudo, mantém-se longe de ocupar um papel de árbitro em relação ao que seja
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uma leitura adequada ou não. A Análise do Discurso se propõe a dar conta dos percursos
de quem lê e como lê, tenta explicar quais são os movimentos que um leitor faz para ler
como lê, bem como defende que conhecer a língua para ler um texto não é suficiente
porque o texto pode, de fato, permitir mais de uma leitura. Orlandi (2007, p.42) explicita
que “os sentidos não estão nas palavras. Estão aquém e além delas”.
É seguindo esses preceitos que este projeto pretende propor formas de utilização
de textos de ordem feminina na aula de língua portuguesa a partir de uma visão
discursiva de leitura que destaca, como Orlandi (1987, p.117) tão bem expressa, “o modo
de funcionamento da linguagem, sem esquecer que esse funcionamento não é
integralmente linguístico, uma vez que dele fazem parte as condições de produção, que
representam o mecanismo de situar os protagonistas e o objeto do discurso”.
A utilização de textos idealizados por mulheres e para mulheres surge pelas
possibilidades que eles oferecem aos alunos de compreenderem as condições de
produção desse tipo de texto, discutirem seus sentidos possíveis, bem como
questionarem suas prováveis omissões, distorções e recursos argumentativos.
Um primeiro levantamento a ser feito antes de abordar mais incisivamente o
discurso feminino é o porquê das questões relativas às mulheres serem tratadas sob o
termo de Gênero. Este termo foi um conceito construído socialmente buscando
compreender as relações estabelecidas entre os homens e as mulheres, os papéis que
cada um assume na sociedade e as relações de poder estabelecidas entre eles.
A diferença entre homem e mulher e a distinção de seus papéis existem desde que o
homem começou a produzir seus alimentos nas sociedades agrícolas do período neolítico
(entre 8000 a 4000 anos atrás).
Durante todos os períodos da história humana, o papel feminino foi se
cristalizando: a função da mulher foi sendo restrita ao mundo doméstico, submissa ao
homem e ele era o chefe da família.
Com o advento da Revolução Industrial, a absorção do trabalho feminino pelas
indústrias, como forma de baratear os salários, inseriu definitivamente a mulher no mundo
da produção. Ela passou a ser obrigada a conviver com jornadas de trabalho que
chegavam a dezessete horas diárias, em condições insalubres, submetidas a
espancamentos e ameaças sexuais constantes, além de receber salários que chegavam
a ser 60% menores que os dos homens.
Todo esse contexto levou à instituição do 8 de março. Agora, o que significa o dia 8
de março? Neste dia, do ano de 1857, as operárias têxteis de uma fábrica de Nova Iorque
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entraram em greve, ocupando a fábrica, para reivindicarem a redução de um horário de
mais de dezesseis horas por dia para dez horas. Durante o episódio, cerca de 130
operárias foram trancadas dentro da fábrica pelos patrões e pela polícia e foram, ali
mesmo, carbonizadas. A sensibilização da sociedade sobre o episódio e pelas causas
femininas foram aumentando e foi em 1910 que surgiu a ideia de criar uma data para
marcar as questões femininas e lembrar a morte das operárias. Em 1911, mais de um
milhão de mulheres se manifestaram na Europa e a data passou a ser comemorada no
mundo inteiro.
Bessa (2007, p.1) deixa bem claro que muito pouca coisa mudou para a luta
feminina na sociedade capitalista:
Na sociedade capitalista persistiu o argumento da diferença biológica como base para a desigualdade entre homens e mulheres. As mulheres eram vistas como menos capazes que os homens. Na sociedade capitalista o direito de propriedade passou a ser o ponto central, assim, a origem da prole passou a ser controlada de forma mais rigorosa, levando a desenvolver uma série de restrições a sexualidade da mulher. Cada vez mais o corpo da mulher pertencia ao homem, seu marido e senhor. O adultério era crime gravíssimo, pois colocava em perigo a legitimidade da prole como herdeira da propriedade do homem.
A luta por melhores condições de trabalho, e em defesa de todos os seus direitos
foi e tem sido árdua até hoje. A aceitação da mulher que sai à luta, que briga pela
construção de uma nova visão de um mundo essencialmente machista, ainda é bastante
preconceituosa, como mostra Bessa (2007, p.1):
No século XX as mulheres começaram uma luta organizada em defesa de seus direitos. A luta das mulheres contra as formas de opressão a que eram submetidas foi denominada de feminismo e a organização das mulheres em prol de melhorias na infra-estrutura social foi conhecida como movimento de mulheres. A luta feminina também t em divisões dentro dela. Os valores morais impostos às mulheres durante muito tempo dificultaram a luta pelo direito de igualdade. As mulheres que assumiram o movimento feminista foram vistas como "mal amadas" e discriminadas pelos homens e também pelas mulheres que aceitavam o seu papel de submissas na sociedade patriarcal. A luta feminina é uma busca de construir novos valores sociais, nova moral e nova cultura. É uma luta pela democracia, que deve nascer da igualdade entre homens e mulheres e evoluir para a igualdade entre todos os homens, suprimindo as desigualdades de classe.
Ao ler esses apontamentos, algumas colocações poderiam ser externadas: “isso é
coisa do passado” ou “essa visão não se encaixa mais na sociedade contemporânea”.
Contudo, em pleno século XXI, a situação das mulheres, em específico, em países
como o Brasil ainda merece atenção. Apesar de ter seus direitos garantidos pela
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Constituição, a mulher brasileira sabe que ainda há muito a conquistar.
Só para ter ideia da importância das mulheres, basta saber que elas representam
mais da metade da população brasileira. De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais
-2007, a população brasileira em 2006 era de 187,2 milhões de habitantes. Desse total,
96 milhões eram mulheres. Em Londrina, são 20 mil a mais em relação aos homens.
O aumento da proporção de mulheres em relação a homens é uma tendência
demográfica no Brasil, ou seja: a cada nova pesquisa, os resultados mostram que a
população feminina tem aumentado cada vez mais em relação à masculina. O indicador
demográfico que expressa essa proporção se chama razão de sexo; ele mostra o número
de pessoas do sexo masculino para cada grupo de 100 pessoas do sexo feminino.
Segundo esse mesmo estudo realizado pelo IBGE, entre 1996 e 2006, o percentual
de mulheres responsáveis pelos domicílios aumentou de 10,3 milhões para 18,5 milhões.
Em termos relativos, esse aumento corresponde a uma variação de 79%, enquanto, neste
período, o número de homens “chefes” de família aumentou 25%. A Síntese de
Indicadores Sociais – 2007 nos mostra que o aumento da “chefia” feminina ocorreu
principalmente nas famílias compostas por casal com ou sem filhos.
É interessante pensar em alguns fatores que influenciam o aumento do número de
mulheres responsáveis pelo domicílio:
➢ Maior participação das mulheres no mercado de trabalho e, consequentemente,
maior contribuição para o rendimento da família: Entre 1996 e 2006, o nível de
ocupação das mulheres aumentou quase 5 pontos percentuais, ao passo que para
os homens ocorreu uma redução de cerca de 1 ponto percentual. Para as
mulheres, o aumento nos níveis de ocupação foi maior no Sudeste e na categoria
de 40 a 49 anos de idade.
➢ A alta expectativa de vida da mulher em algumas cidades ou regiões: A mulher
assume a liderança da casa após a morte do companheiro. Isto contribui para o
aumento do número de mulheres que moram sozinhas. Segundo a Síntese de
Indicadores Sociais – 2007, 26,7% das mulheres responsáveis por domicílios têm
60 anos ou mais de idade.
➢ Casamentos desfeitos: A mulher, separada do marido, torna-se responsável pelo
domicílio sozinha ou com os filhos. Entre os diversos tipos de estrutura familiar, a
maior proporção de mulheres “chefes” encontrava-se em famílias que não
contavam com a presença do marido e todos os filhos tinham 14 anos ou mais de
idade (29,4%).
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➢ Homens que migram: de seu estado ou região em busca de emprego ou por outros
motivos.
➢ Aspectos culturais: As mulheres que valorizam a autonomia, independência e
busca profissional muitas vezes preferem morar sozinhas. É simplesmente uma
opção, uma questão de ponto de vista.
Segundo a última Síntese de Indicadores Sociais, realizada pelo IBGE, a maior
participação das mulheres no mercado de trabalho tem se concentrado em quatro
grandes categorias ocupacionais que, juntas, compreendem cerca de 70% da mão de
obra feminina: serviços em geral (30,7%); trabalho agrícola (15%); serviços
administrativos (11,8%); e comércio (11,8%).
Existem diferenças entre Grandes Regiões. Em 2006, a participação feminina nos
serviços foi maior na Região Centro-Oeste (36%); no Nordeste, 26,6% das mulheres eram
trabalhadoras agrícolas; o serviço administrativo, por sua vez, foi mais expressivo para as
trabalhadoras do Sudeste; e as atividades de comércio absorviam 15,5% das mulheres
ocupadas no Norte.
Para as mulheres ocupadas mais escolarizadas, com média de 12 anos de estudo
(ou mais), a inserção no mercado de trabalho é mais intensa nas atividades de educação,
saúde e serviços sociais (44,5%). No Norte, essas atividades absorvem 53% da mão-de-
obra feminina mais qualificada. As outras atividades e a administração pública também
concentram boa parte da mão-de-obra feminina qualificada: 14,9% e 11,2%, 14
respectivamente. No Centro-Oeste, provavelmente pela presença da Capital Federal,
observa-se a maior concentração de mulheres na administração pública (20%).
Ao analisar esse estudo realizado pelo IBGE em 2007, é possível notar também o
destaque da mulher na área educacional. Nas áreas urbanas, a escolaridade média das
mulheres é de 7,4 anos para a população total e de 8,9 anos para as ocupadas. No Brasil
rural, a situação é bem diferente. Essas médias são baixas: 4,5 anos e 4,7 anos,
respectivamente.
As áreas metropolitanas apresentam as maiores médias de anos de estudo. No
Distrito Federal, a escolaridade média das mulheres ocupadas é a mais elevada (10,4
anos). Por outro lado, a menor média observada foi nas áreas rurais de Piauí e Alagoas
(3,2 anos), ou seja, nessas áreas as mulheres que estão ocupadas podem ser
consideradas analfabetas funcionais e inseridas em trabalhos precários.
As mulheres também estão à frente quando o assunto é ensino superior e a
tendência é ao aumento da qualificação da parcela feminina da população brasileira. Em
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1996, do conjunto das pessoas que frequentavam estabelecimentos de ensino superior, a
proporção de mulheres era de 55,3%, passando para 57,5%, em 2006. Isto mostra que os
homens estão perdendo espaço no processo de escolarização, pelo menos, no que tange
a taxa de escolarização superior.
Diante de dados tão expressivos, a tendência é a comemoração por tantas
conquistas. Entretanto, de acordo com Centro Feminista de Estudos e Assessoria
(CFEMEA) cresce preocupação com a violência contra a mulher: De 2004 a 2006
aumentou o nível de preocupação com a violência doméstica em todas as regiões do
país, menos no Norte / Centro-Oeste, que já têm o patamar mais alto (62%). Nas regiões
Sudeste e Sul o nível de preocupação cresceu, respectivamente, 7 e 6 pontos
percentuais. Na periferia das grandes cidades esta preocupação passou de 43%, em
2004, para 56%, em 2006.
Minayo (1994) e Oliveira (2000) também expõem a questão da violência contra a
mulher. As autoras demonstram que o problema agora é tratado em delegacias
especializadas e, no âmbito da saúde, uma vez que a violência contra a mulher emerge
como problema de saúde pública e requer atenção direcionada. Como o discurso não é
mera representação do mundo e sim ação sobre este, a construção de identidades surge
como um fenômeno extremamente produtivo e essencialmente ideológico. Entendida
como uma forma de prática social, a linguagem contribui efetivamente para construção da
realidade social. Eis o porquê é de suma importância proporcionar ao jovem aluno de hoje
uma análise do discurso feito pelo e para o feminino.
O DESCORTINAR DOS PERCURSOS METODOLÓGICOS
A propósito de orientação do encaminhamento metodológico, foi utilizada a
orientação da Análise do Discurso que vislumbra o discurso como uma prática inserida na
vida social, como ação do sujeito sobre o mundo. Ao analisarmos o discurso é preciso sair
do que é puramente linguístico e ir para as situações reais de produção, vividas no dia a
dia, para, de posse dessa vivência, descobrir aquilo que se encontra entre a língua e a
fala.
A função da metodologia da Análise do Discurso é o descortinar o discurso e trazer
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à superfície a ideologia que faz a linguagem funcionar. Ao fazer uma análise do discurso,
é preciso desconstruir o enunciado e expor os procedimentos discursivos que criam os
sentidos. Dessa forma, a análise do discurso é um método cujo objetivo não é somente
compreender uma mensagem, mas reconhecer seu sentido em um determinado contexto
de produção, já que mudadas as condições de produção, consequentemente, o sentido
do discurso será outro.
Para tanto, a proposta de trabalho aqui descrita foi desenvolvida em uma turma de
29 alunos de uma 3ª série do curso de Formação de Docentes do Colégio Estadual Olavo
Bilac – Ensino Fundamental, Médio, Normal e Profissional da cidade de Cambé, estado
do Paraná. A composição da turma é bastante diferenciada uma vez que dentre os 29
alunos, apenas um é do sexo masculino, o que fez dos debates em sala uma experiência
única.
Antes mesmo de se começar a aplicação da proposta, a turma teve acesso às
visões básicas da Análise do Discurso de linha francesa. Esta etapa das atividades foi
bastante tranquila porque os alunos, nesta fase do curso de Formação de Docentes,
apresentam certo domínio de elementos como discurso, sujeito, contexto histórico,
contexto de produção, vozes discursivas, todos eles disvutidos em disciplinas da base
específica ofertada pelo curso.
Uma primeira ação, já dentro da aplicação do Caderno Pedagógico elaborado, foi
uma produção de texto em que cada aluno deveria explicitar o modo de ver a mulher na
sociedade em seu entorno bem como a mulher presente em um contexto mais amplo,
apresentada, então, pela mídia a que este aluno tinha acesso.
A proposta de texto foi recolhida, lida e os principais dados acerca dos
posicionamentos foram tabulados. Diante do cenário desenhado pelos textos
apresentados, foi aplicada a primeira unidade do Caderno Pedagógico: “Representação
midiática da imagem feminina até a década de 60”.
Durante esta unidade, sob o viés da Análise do Discurso de linha francesa,
procurou-se mostrar além dos conteúdos dos textos publicitários, como foram usados e as
consequências de tais usos. Procurou-se também mostrar nesta unidade e nas demais
não só o que se fala, mas também quem fala, para quem se fala, como se fala e para que
se fala, ou seja, procurou-se descortinar a ideologia dos discursos empregados naquelas
falas e para Pêcheux (1975, p.160) a ideologia é a matriz do sentido “as palavras,
expressões, proposições... mudam de sentido segundo as posições sustentadas por
aqueles que as empregam, o quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a
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essas posições, isto é em relação às formações ideológicas”.
A segunda unidade tem como corpus de trabalho textos publicitários que
apresentam visões diferentes, em décadas distintas acerca da liberdade feminina. A turma
foi dividida em grupos e cada um deles escolheu uma propaganda para trabalhar os
sentidos gerados pelos textos produzidos, levando em consideração os conflitos, os
confrontos, o contexto histórico e a relação do texto com uma determinada ideologia. O
trabalho com esse corpus foi uma tentativa de demonstrar que a imprensa tenta, por meio
da sua forma dissertativa, persuadir o público e infundir-lhe o princípios ideológicos que
se pretendem inquestionáveis ou ao menos se apresentam como uma verdade
conveniente ao lugar de onde o enunciado emite sua voz.
Diante da proposição do trabalho com a Análise do Discurso, foi pretensão das
atividades aqui descritas mostrar que na construção de um discurso são utilizados muitos
outros elementos que devem ser levados em consideração e analisados com mais
precisão e cautela. Segundo as definições de Pêcheux, citadas por Brandão (2004, p.42),Se o processo discursivo é produção de sentido, discurso passa a ser o espaço em que emergem as significações. E aqui, o lugar específico da constituição dos sentidos é a formação discursiva, noção que, juntamente com a de condição de produção e formação ideológica, vai constituir uma tríade básica nas formulações teóricas da Análise do Discurso.
Discutida e analisada a visibilidade da liberdade feminina, o próximo passo foi
trabalhar textos que retratassem as conquistas alcançadas pelas mulheres, bem como a
opressão que muitas ainda sofrem, independentemente da classe social, nível de estudo,
cor, raça ou credo.
Com formações de grupos diferentes das atividades anteriores, os estudantes se
dedicaram na tentativa de revelar toda trama feita no transcurso da história para que os
sentidos por ela desencadeados pudessem ganhar uma forma monossêmica e um status
de naturais. Em relação ao papel do contexto histórico, Mussalim & Bentes (2003, p. 123)
nos informam que
A Análise do Discurso considera como parte constitutiva do sentido o contexto-histórico. (...) O contexto histórico-social, então, o contexto de enunciação, constitui parte do sentido do discurso e não apenas um apêndice que pode ou não ser considerado. Em outras palavras, pode-se dizer que, para a AD, os sentidos são historicamente construídos.
A última perspectiva de estudo do mundo feminino lançada pela implementação do
projeto e que faz parte do Caderno Pedagógico elaborado foi a vertente da mulher e o
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trabalho. A realização dessa etapa significou a tentativa de uma decortinação inicial de
como a mulher é verdadeiramente vista pelo mercado de trabalho.
Conjuntamente com as questões a serem analisadas, os alunos foram a campo
para pesquisarem essa relação da mulher com o trabalho. Cada grupo escolheu uma área
de atuação e de posse de um plano de entrevista, cada equipe conversou com cinco
representantes, uma de cada grupo social e/ou cultural. Os estudantes fizeram a
tabulação das respostas, apresentaram para a turma e, a partir do exposto, confrontaram
as diversas realidades.
Após quase dois meses de trabalho com a turma, os estudantes refizeram o texto
proposto inicialmente para confronto de posicionamentos e análises das prováveis
mudanças de postura diante daquilo que forma o mundo feminino.
A metodologia aplicada pela implementação do projeto objetivou mostrar aos
educandos que todos os seres humanos que vivem em sociedade passam pelo processo
de subjetivação que, segundo a Análise do Discurso, é a verdade que o poder (político,
econômico, social, do conhecimento, da moda) cria sobre o sujeito para regulá-lo. Com a
mulher não seria diferente, mas também tentou mostrar que é possível ler de uma forma
duferente o todo como é apresentado.
ANÁLISE DO DISCURSO E A SALA DE AULA: UMA PARCERIA QUE DEU CERTO!
Debruçar-se sobre o produto final da implementação do projeto aqui apresentado e
realizar uma análise mais profunda dos posicionamentos dos estudantes acerca do tema
proposto daria um período a mais de estudos e, por isso mesmo, a análise dos resultados
focou-se em apenas um aspecto: apesar do pouco tempo destinado ao trabalho na
implementação da proposta, a Análise do Discurso vislumbra-se como maneira eficaz de
formação de leitores competentes? A resposta se traduz em um veemente sim.
Mesmo sem o aprofundamento de estudos que uma linha teórica como a Análise
do Discurso exige para se alcançar esferas mais profundas de letramento e entenda-se
aqui letramento como Soares (2003) mesma expõe “o uso da leitura e da escritura em
práticas sociais”, a resposta positiva ao trabalho foi bastante significativa. É possível que
essa significação possa ter ocorrido por ser a Análise do Discurso uma área que possui
em seus estudos a interdisciplinaridade com a participação de determinadas áreas das
Ciências Humanas, como a História, a Sociologia e a Psicanálise, áreas bastante
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presentes no curso de Formação de Docentes.
Os resultados apresentados pelos educandos demonstram que eles
compreenderam que ao ler estão participando do processo, não só como prática social,
mas também do processo histórico uma vez que estão produzindo sentidos a partir de
onde estão e aonde querem chegar. Orlandi (1988) expõe essa realização como o
alicerce da compreensão, ou seja, “ o cerne da produção de sentidos está no modo de
relação (leitura) entre o dito e o compreendido”.
Durante as exposições por eles realizadas, pôde-se notar que um número
significativo de estudantes apreendeu que os sentidos não pertencem ao autor e tão
pouco ao leitor, os sentidos fazem parte do processo e quanto menos ingênua for a leitura
por eles realizada, maior a possibilidade de descortinação desses sentidos. Os
estudantes conseguiram, de modo geral, apropriar-se do conceito de Orlandi (1988) em
que ela coloca que “os sentidos não nascem ab nihilo. São criados. São construídos […]
estão permeados pelas relações de poder com seus jogos imaginários”.
Retomemos a questão-base dessa discussão: houve aprimoramento no processo
de leitura? Se os aspectos acima relatados ainda deixam dúvidas, faz-se necessária uma
última colocação: os estudantes que fizeram parte do projeto, não só na disciplina de
Língua Portuguesa, mas em outras tantas que fazem parte de seu currículo básico, como
o relato da professora de Filosofia “O que aconteceu com esses meninos? Seus
posicionamentos estão muito mais profundos e melhores argumentados”, conseguiram
romper a barreira entre o apenas refletir um sentido e o desconstruí-lo.
Diante do exposto, as pessoas podem pensar que foi um processo maravilhoso,
sem problemas que, citando Geraldo Vandré, “Quem sabe faz a hora, não espera
acontecer”. Não foi bem assim! Alguns dos alunos apresentaram uma resitência muito
grande e por mais que a turma e a professora estivessem ali querendo fazer uma prática
de leitura diferenciada, a resposta ao trabalho não foi a mesma que a do restante da
turma.
Contudo, consideramos que o que merece ser descrito e analisado são os
procedimentos assertivos e esses foram em maior número e em maior visibilidade,
creditando ao trabalho desenvolvido a credibilidade de uma proposta de sucesso.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Gostaria de expressar aqui não só as conquistas dos educandos que participaram
do projeto, que, sem dúvida, foram muitas quando se reporta ao desenvolvimento de uma
postura menos ingênua e mais crítica diante da leitura de mundo que eles, tão jovens
ainda, farão durante sua caminhada.
Quero apresentar as minhas conquistas, conquistas de uma professora da
Educação Básica que sonha com uma educação efetivamente de qualidade que
oportunize a todos, indistintamente, a inserção digna na vida sócio-econômica-cultural de
seu país.
Com os estudos sobre a Análise do Discurso e com sua aplicabilidade, eu e meus
educandos aprendemos que os fatos que nos circundam podem ser intelegíveis,
interpretáveis ou compreensíveis e somos nós que devemos nos posicionar diantes deles.
Aprendemos também que para chegar à compreensão não basta interpretar, é preciso ir
ao contexto da situação, seja ele imediato ou histórico.
De acordo com todos os autores que estudamos, com todas as práticas realizadas,
com todos os erros e todos os acertos, podemos afirmar que não somos mais o sujeito
que apenas interpreta. Somos sujeitos-leitores, aqueles que se relacionam criticamente
com sua posição diante dos fatos, que problematizam, explicitam as condições de sua
leitura, ou seja, aqueles que compreendem. E é isso o que fica!
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