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1 ARIVAN SALUSTIANO DA SILVA TRAVESSIAS IDEOLÓGICAS: UM ENFOQUE CRÍTICO-ANALÍTICO NO DISCURSO DO PROFESSOR DE INGLÊS DE ESCOLA PÚBLICA Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL Cuiabá-MT 2008

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ARIVAN SALUSTIANO DA SILVA

TRAVESSIAS IDEOLÓGICAS: UM ENFOQUE CRÍTICO-ANALÍTICO NO DISCURSO DO

PROFESSOR DE INGLÊS DE ESCOLA PÚBLICA

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL

Cuiabá-MT 2008

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ARIVAN SALUSTIANO DA SILVA

TRAVESSIAS IDEOLÓGICAS: UM ENFOQUE CRÍTICO-ANALÍTICO NO DISCURSO DO

PROFESSOR DE INGLÊS DE ESCOLA PÚBLICA

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.

Área de Concentração: Estudos Lingüísticos. Orientadora: Profª Solange Maria de Barros Ibarra Papa.

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL

Cuiabá-MT 2008

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte.

S586t Silva, Arivan Salustiano da.

Travessias ideológicas: um enfoque crítico-analítico no discurso do professor de inglês de escola pública / Arivan Salustiano da Silva -- Cuiabá, 2008. 55 f. : il. ; 30 cm. Orientadora: Solange Maria de Barros Ibarra Papa. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Programa de pós-graduação em estudos de linguagens.

1. Inglês – ensino/aprendizado. 2. Formação crítico-reflexiva docente. 3. Análise crítica - discurso. I. Título.

CDU 811.111’42

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DEDICATÓRIA

À minha querida mãe, por todo o esforço e carinho a mim dedicado.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, professora doutora Solange Maria de Barros Ibarra

Papa, por ter partilhado comigo seus conhecimentos e dedicado atenção e amizade.

Aos professores doutores Denize Elena Garcia da Silva e Sérgio Flores

Pedroso, pelas valiosas contribuições que fizeram ao meu trabalho.

Às professoras Vitória e Eduarda, que muito mais que companheiras de

estudo, são amigas de valor imensurável.

À professora Dra. Luzia Oliva, pela leitura atenciosa e as valorosas

contribuições.

À Cleide e Flávia, colegas de turma e grandes amigas, pelas angústias e

alegrias compartilhadas.

A todos os meus familiares e amigos, que entenderam a minha ausência e

distância, incentivando-me a continuar meus estudos.

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Resumo

SILVA, A. S. Travessias Ideológicas: um enfoque crítico-analítico no discurso do

professor de inglês de escola pública.

No atual momento de globalização, em que a língua inglesa é o meio pelo qual se

estabelece a comunicação, sustenta-se, no discurso, a ideologia de que o

ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras só acontece com qualidade em

institutos especializados para esse fim, deixando à margem os que não podem

pagar para ter acesso a esse bem simbólico. Contudo, surge numa escola pública

de Mato Grosso um projeto denominado Resignificando a aprendizagem de língua

estrangeira: um projeto de ensino das quatro habilidades comunicativas, que

representa uma resistência a tal discurso. Nesta mesma escola, engajei-me num

grupo de estudos, diretamente ligado ao projeto, no intuito de realizar um trabalho de

reflexão colaborativa com as professoras envolvidas. Algumas de nossas conversas

colaborativas foram gravadas, transcritas e analisadas, utilizando o modelo

tridimensional de Análise de Discurso Crítica, postulado por Norman Fairclough. Da

análise conclui que o discurso hegemônico de que a escola pública não é lugar para

se aprender/ensinar inglês é reproduzido pelas docentes, atentando para os modos

pelos quais a ideologia procura sustentar esse discurso. Verifiquei também que as

conversas colaborativas podem ser um instrumento eficaz para a conscientização

dos sujeitos, por meio da desnaturalização de discursos que sustentam relações de

poder que promovem a exclusão dos alunos das escolas públicas do acesso a um

ensino/aprendizagem de língua inglesa com qualidade.

Palavras-chave: ensino/aprendizagem de inglês – formação crítico-reflexiva de

professores – análise de discurso crítica.

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Abstract

SILVA, A. S. Ideological crossings: a critical-analytical approach in the discourse of

the English teacher in public schools.

In the current moment of globalization in which English is the means by which the

communication is established, it is argued, in speech, the ideology that the teaching /

learning of foreign languages only happens with quality in specialized institutes for

this purpose, excluding those who can not pay to have access to this symbolic good.

However, in a public school in Mato Grosso a project called Another mean for foreign

language learning: a project of teaching the four communication skills, which

represents a resistance to such speech. In the same school, I’ve joined a group of

studies, directly linked to the project in order to implement a collaborative work of

reflection with the teachers involved. Some of our collaborative conversations were

recorded, transcribed and analyzed using the three-dimensional model of Critical

Discourse Analysis, postulated by Norman Fairclough. From the analysis we can

conclude that the hegemonic discourse that the public school is not a place to learn /

teach English is reproduced by teachers, looking for ways in which the ideology

supports this discourse. I have also noted that the collaborative conversations can be

an effective tool to raise the subject awareness, through the denaturalization of

speeches that sustain the power relations that promote the exclusion of students

from public schools access to a teaching / learning of English with quality.

Keywords: English teaching / learning - critical-reflexive training of teachers - critical

discourse analysis.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1:

������������ �������� ������������ ������������� � ��!��"� �����$#���%�&��� ��!�'�(............................. 45

FIGURA 2: Resumo dos elementos metodológicos de análise ............................... 48

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LISTA DE QUADROS QUADRO 1: Relação de textos para estudo e discussão com as professoras................................................................................................................ 42

QUADRO 2: Comparação entre a prática pedagógica nos centros de idiomas e na

escola pública ........................................................................................................... 53

QUADRO 3: Modos de operação da ideologia identificados na análise .................. 77

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CONVENÇÕES UTILIZADAS NAS TRANSCRIÇÕES Adaptação de Van Lier (1998, apud Pessoa, 2002, p. 106). ... pausa [ ] Comentário do pesquisador (incomp.) fala incompreensível [...] trechos suprimidos

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SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................. 01

CAPÍTULO I – AS BASES TEÓRICAS..................................................................... 05

1.1 O professor reflexivo ................................................................................ 05 1.1.1 O conceito de professor reflexivo ............................................. 06 1.1.2 O professor reflexivo no contexto do novo capitalismo ............ 09 1.1.3 Reflexão para quê? .................................................................. 11

1.2 O ensino de inglês na escola pública ....................................................... 13 1.3 Ideologia ................................................................................................... 18

1.3.1 O conceito que assumo ............................................................ 20 1.3.2 Modos de operação da ideologia ............................................. 22

1.4 Hegemonia ............................................................................................. .24 1.4.1 Luta hegemônica .................................................................... ..26

1.5 A Análise de Discurso Crítica (ADC) ...................................................... ..28 1.5.1 Um breve histórico .................................................................. ..29 1.5.2 ADC: posições teóricas ........................................................... .30

1.6 Gramática Sistêmico-funcional .............................................................. ..31 CAPÍTULO II – O CAMINHO PERCORRIDO .......................................................... 36 2.1 Pesquisa qualitativa ................................................................................36 2.2 Contextualizando a pesquisa ..................................................................38 2.3 Os professores: Quem são? .................................................... ..............40 2.4 As reuniões .......................................................................................... ..41 2.5 Análise de Discurso Crítica: ferramenta de análise ................................ 43 CAPÍTULO III – ANÁLISE DE DADOS ..................................................................... 49

3.1 Análise da entrevista ...................................................................... .........49 3.1.1 Não existe um lugar para se ensinar/aprender inglês..................51

3.1.2 Instituto de idiomas: lugar de falar Inglês.....................................51

3.1.3 Instituto de idiomas X escola pública...........................................52

3.2 Análise da conversa colaborativas 1:resignificando nossos discursos... 57 3.2.1 O lugar para se aprender/ensinar inglês......................................57

3.2.2 Quem é o cliente do instituto de idiomas e o da escola pública?.......................................................................................59

3.2.3 Uma disciplina sem muita importância.........................................61 3.2.4 Avaliação do espaço circunstancial.............................................63

3.2.5 Resistência do discurso do “querer”...........................................66 3.2.6 Interesses em jogo: público X privado..........................................67

3.3 Análise da conversa colaborativa 2: Germes de mudança.....................69 3.3.1 A hipocrisia no discurso de formar cidadãos.................................69 3.3.2 A teoria crítica e as orientações curriculares.................................71 3.3.3 Então, o que podemos fazer?........................................................72 3.3.4 O trabalho está apenas começando..............................................75

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................79

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 85

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ANEXO A – Transcrição da entrevista.......................................................................89 ANEXO B – Conversa colaborativa I..........................................................................92 ANEXO C – Conversa colaborativa II ......................................................................105

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INTRODUÇÃO

Acerca deste exercício

Meu interesse pela língua inglesa surgiu bastante cedo, mesmo antes de ter a

disciplina no currículo da escola pública, onde cursei o ensino fundamental. Ouvir

pessoas falando em inglês era algo que me fascinava. Isso me motivou a buscar, em

materiais didáticos, o apoio necessário para o meu primeiro contato com a língua. Ao

iniciar meus estudos na 5ª série do ensino fundamental, passei a dedicar-me com

afinco na aprendizagem dessa língua, tornando-a importante dentre o conjunto de

disciplinas para o meu aprendizado.

Fazer um curso livre de idiomas era algo que eu julgava ser imprescindível,

porém, isso só ocorreu quando estava no ensino médio, no ano de 2001. Foi durante

esse período que tive a experiência de ter mais contato com a língua inglesa. As

dificuldades financeiras eram grandes, e com isso, não foi possível manter-me lá por

mais tempo, o que me obrigou a deixar o curso. Contudo, pelo empenho e

dedicação durante o período em que lá estudei, fui convidado pela diretora do

instituto de idiomas para ministrar aulas de reforço aos alunos com deficiência na

aprendizagem. A experiência nessa escola possibilitou-me melhorar o desempenho

lingüístico daqueles que estavam em desvantagem. Foi um grande desafio. Passava

horas planejando e organizando as aulas, no intuito de obter algum sucesso com os

alunos.

Ao ingressar na universidade para cursar Letras, já estava convicto de que

desejava ser professor de inglês. A experiência com o curso de Letras possibilitou-

me refletir acerca dos problemas e inquietações, os quais me afetavam desde os

tempos em que trabalhava no Instituto de Idiomas. Buscava quase sempre refletir

sobre novas metodologias que pudessem me orientar nos trabalhos pedagógicos em

sala de aula. Minhas leituras se concentravam nas crenças de alunos e professores

acerca de ensinar) aprender inglês. No final da graduação comecei a ter contato com textos voltados para questões que envolviam não apenas crenças a respeito de ensino/aprendizagem de inglês e que influenciavam no sucesso ou insucesso do aluno. Passei a dedicar-me mais na compreensão das questões políticas e hegemônicas da língua inglesa no contexto globalizado, conforme autores que já escreveram em torno do assunto, como Cox & Assis-Peterson, 2001; Rajagopalan, 2003; Moita Lopes, 2006, dentre outros.

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As leituras desses estudiosos contribuíram para ampliar minha visão sobre

questões políticas e ideológicas que envolvem o ensino e aprendizagem da língua

inglesa. Senti-me também motivado em continuar com a qualificação docente, uma

vez que já almejava seguir carreira universitária. Inscrevi-me no Programa de Pós-

Graduação em Estudos de Linguagem, da Universidade Federal de Mato Grosso,

propondo estudar, inicialmente, as crenças de alunos do ensino médio em escola

pública, com o intuito de saber o que a língua inglesa representava para eles e como

acreditavam que se pudesse aprender inglês. Ao mesmo tempo, sentia-me instigado

a compreender melhor os processos ideológicos que poderiam afetar tanto

professores quanto os alunos.

Ao ingressar no mestrado, passei a dedicar-me nas leituras que mais me

chamaram a atenção: a questão da formação do educador de línguas e a

abordagem da Análise de Discurso Crítica (ADC), principalmente porque esta última

se preocupa em desvelar as relações de poder, dominação ou transformação social,

atentando, principalmente, para as ideologias que perpassam os discursos de

qualquer natureza, como professor-aluno ou médico-paciente. O foco na questão da

ideologia pareceu atender melhor às minhas indagações com relação ao insucesso

no ensino/aprendizagem de inglês, especialmente, agora, no contexto da escola

pública, onde o desafio não se apresenta apenas em pensar metodologias mais

adequadas para ensinar a língua.

Propostas inerentes ao desenvolvimento da pesquisa

O meu trabalho consiste no estudo da ideologia, no contexto de formação

continuada de professores de Inglês de escola pública, por meio de conversas

colaborativas (Bailey, 1998), ou seja, reuniões em que um grupo de professores,

com base na leitura de um texto teórico, empreende conversas no sentido de refletir

sobre as mais diversas temáticas que afetam a atividade docente. Uma vez definido o objetivo, passei a participar de um grupo de estudos que já existe desde 2005, numa escola pública de Cuiabá-MT, a convite de um dos membros. Depois de alguns encontros, propus um trabalho de colaboração, principalmente com duas professoras, que eram mais assíduas. Quando cabia a mim escolher o texto para nossa reflexão, levava algum que versasse sobre questões ideológicas que envolvem a prática de ensinar/aprender inglês em contexto de escola pública.

Parto do pressuposto de que há um discurso naturalizado na sociedade de

que na escola pública não se aprende inglês. As professoras integrantes do grupo

de estudos e eu procuramos trabalhar da melhor maneira possível, com a intenção

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de realizar um trabalho que possa surtir resultados, a médio e longo prazo, na

escola. Há, inclusive, um projeto de trabalho com línguas estrangeiras intitulado

“Resignificando a aprendizagem de língua estrangeira: um projeto de ensino das

quatro habilidades comunicativas”, que funciona na escola em que nossas reuniões

acontecem, e dentro do qual uma das professoras do grupo de estudos trabalha. Tal

projeto representa uma forma de resistência contra o discurso de que a escola

pública não é lugar para se ensinar/aprender inglês. Busco, através da conscientização em grupo, provocar reflexões para que, juntos, possamos construir outros discursos, permitindo que a escola pública possa ser de fato um lugar para se ensinar/aprender inglês.

A partir do objetivo proposto, formulei as questões de pesquisa:

(i) Como os discursos dos professores de língua inglesa, participantes do

grupo de estudo na escola, revelam posições ideológicas dominantes?

(ii) Quais os modos de operação da ideologia presentes nos discursos dos

professores?

(iii) Conversas colaborativas são eficazes para a desnaturalização das

ideologias e a tomada de consciência de nossa posição de agentes para a

transformação de nossas práticas?

Configuração da temática no percurso reflexivo

A dissertação se organiza em três capítulos. O primeiro capítulo é dedicado à

fundamentação teórica. Nele discorro a respeito do que venha a ser professor

reflexivo, e o que implica a prática de reflexão na escola pública. Em seguida,

abordo a questão do ensino de inglês na escola pública, fazendo um breve histórico

e levantando alguns dos principais problemas enfrentados por professores e alunos

no dia-a-dia de trabalho com a disciplina.

Discuto, ainda, o conceito de ideologia, passando primeiro por pensadores que

trataram desse assunto como Althusser (1996) e Fairclough (2001). Dou destaque

aos modos de operação da ideologia, como estabelecido por Thompson (1995), que

será de fundamental importância na análise, já que me ajudará a compreender como

a ideologia atua no sentido de manter relações de poder que favorecem a classe

dominante. Em seguida, trato do conceito de hegemonia em Gramsci, que nos ajuda

a entender como as ideologias dominantes são mantidas e reproduzidas no

discurso. Logo depois, trato da Análise de Discurso Crítica (ADC), de Fairclough

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(2001), teoria-método do qual me valho para analisar o discurso dos professores que

compõem o grupo de estudos. Apresento um pequeno histórico do desenvolvimento

da ADC e discuto suas bases teóricas. E ainda, discorro a respeito da Gramática

Sistêmico-Funcional, de Halliday (1994), que serviu de apoio para a análise dos

dados.

No segundo capítulo, exponho a metodologia utilizada para este trabalho.

Contextualizo a pesquisa, explicando quem são os professores participantes do

grupo de estudos, seus espaços de trabalho e, também, como se deram os

encontros, o que foi lido, sobre o que se falou, e como fiz para recolher e analisar os

dados obtidos durante as conversas colaborativas.

No capítulo três, apresento a análise dos dados, utilizando como instrumento

a ADC, dividindo a análise em três grandes momentos, que correspondem a uma

entrevista e duas conversas colaborativas que realizei com as professoras.

E, por último, procuro construir algumas conclusões com base nas análises

feitas, a partir do discurso das professoras participantes do grupo de estudos, e

tecendo considerações a respeito da relevância da realização de conversas

colaborativas na escola pública, na direção da construção de contra-discursos, que

venham a contribuir para a diminuição das desigualdades sociais no que tange ao

acesso à língua inglesa por parte dos alunos da escola pública.

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CAPÍTULO 1

AS BASES TEÓRICAS

Este capítulo discutirá as bases teóricas deste estudo. Num primeiro

momento, abordo a questão da formação crítico-reflexiva de professores de língua

estrangeira, perspectiva essa que é intimamente ligada a um propósito

emancipatório. Em seguida, discorro sobre o ensino de língua inglesa na escola

pública no Brasil, fazendo um breve percurso histórico. Depois, discuto sobre a

Análise de Discurso Crítica (ADC), teoria/método que utilizo para procurar entender

como os discursos a respeito do ensinar/aprender inglês no Brasil, especialmente na

escola pública, atravessam e se materializam no discurso dos professores

participantes do grupo de estudos. E, por último, falo a respeito dos conceitos de

ideologia e hegemonia, fundamentais para a análise que empreendo.

1.1 O professor reflexivo

Várias são as transformações ocorridas nas sociedades capitalistas nos

últimos anos, o que não poderia deixar de afetar a educação escolar. Educadores

críticos da pós-modernidade (cf. Rajagopalan, 2003; Papa, 2008; entre outros) têm

argumentado com relação à necessidade de repensar novos paradigmas que

coloquem as questões sociais à tona nas discussões em sala de aula. Nesse

sentido, os docentes precisam rever seus paradigmas de ensino em função das

demandas sociais que surgem.

Isso pode ser entendido de duas formas: a) o atendimento à demanda do

mercado capitalista que propõe a qualidade total nos serviços, sendo a educação

uma mercadoria simbólica; b) a demanda dos excluídos, para os quais a educação

pode atuar como um instrumento de emancipação e diminuição das assimetrias

sociais. Para essas duas perspectivas, o que se tem chamado de professor reflexivo

parece atender às necessidades de formação do profissional para atuar no contexto

contemporâneo de educação escolar.

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Acredito que a formação de professores reflexivos seja um caminho fértil para

a realização da proposta deste trabalho, contudo, que essa reflexão seja crítica, no

sentido de levar à tomada de consciência de como o sistema educacional funciona

de modo a, quase sempre, promover a reprodução de assimetrias.

Para falar desse profissional, que julgo importante para nossas escolas

públicas, especialmente, preciso me deter em conceituar e trazer algumas

discussões feitas por autores que têm se dedicado à questão do professor reflexivo.

1.1.1 O conceito de professor reflexivo

Pimenta (2002, pp. 18-9) faz considerações importantes a respeito do

desenvolvimento do conceito de professor reflexivo, esclarecendo que reflexivo,

aqui, não se trata do adjetivo, ou seja, a capacidade de reflexão que é atributo de

todo ser humano e, sim, de um movimento teórico de compreensão do trabalho de

professores. A autora faz uma contextualização e breve exposição de como surge tal

movimento, mencionando o trabalho de Donald Schön (1983), professor de Estudos

Urbanos no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, EUA) até 1998, que

defendia a reforma dos currículos de cursos de formação profissional. Com base em

seus estudos filosóficos, especialmente de John Dewey, bem como a observação

que fizera da prática de profissionais, Schön (1983) propõe uma mudança na

organização dos currículos que, primeiro traziam a apresentação de teorias

científicas e, somente no final do curso, um estágio para a prática profissional. No

entendimento do autor, o aluno assim formado, não estaria apto a lidar com as

situações-problema que surgem no dia-a-dia do trabalho, uma vez que as

informações técnicas trazidas pelas ciências não contemplariam a dinamicidade da

atividade profissional cotidiana.

Com base em Schön (1983), Pimenta (2002, p. 19) propõe uma formação

baseada numa epistemologia da prática, com a valorização do exercício profissional

como momento de construção de conhecimento por meio da reflexão, análise e

problematização da prática, com destaque para as soluções que os profissionais

encontram durante a execução de seu trabalho. Isso é o que se chama

conhecimento na ação, aquele que é tácito, interiorizado e que se localiza na ação e

não antes dela. Contudo, isso não é suficiente e, assim, os profissionais criam novas

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soluções para os problemas novos, que não são rotineiros. Pelo processo de

reflexão na ação, criam como que um repertório de atitudes que tomam e que

podem ser empregadas em situações semelhantes. Entretanto, poderá haver

situações totalmente novas e que não encontrarão semelhança com nenhuma

daquelas que o profissional tem em seu repertório, o que demandará uma

investigação mais profunda, com vistas à solução daquela situação-problema. É o

que Schön (1983) denomina reflexão sobre a reflexão na ação, e que para Pimenta

(2002), abre a perspectiva para a valorização da pesquisa como ação dos

profissionais, estabelecendo as bases para o que se chama professor pesquisador.

Pimenta (2002, p. 28) afirma que o conceito de professor reflexivo é difundido

no Brasil no início dos anos de 1990, por meio de dois acontecimentos: a

disseminação do livro Os professores e sua formação, coordenado pelo professor

português António Nóvoa, trazendo artigos de autores espanhóis, portugueses,

franceses, ingleses e estados-unidenses, mencionando a expansão de tal

perspectiva teórica também na Austrália e no Canadá e, com a participação de

pesquisadores brasileiros no I Congresso sobre Formação de Professores nos

Países de Língua e Expressão Portuguesas, realizado no ano de 1993, em Aveiro,

sob a coordenação da professora Isabel Alarcão.

Trazendo essa perspectiva teórica de Schön (1983) para a nossa realidade de

formação de professores, nas universidades, seria o caso de se propor a

reestruturação dos currículos de forma que os estágios não se restringissem

somente ao final dos cursos de licenciatura mas, que acontecessem no decorrer de

todo o curso, propiciando ao professor em formação a possibilidade de lançar mão

às teorias com as quais tem contato na universidade para a reflexão frente às

realidades que vivencia em sala de aula, com vistas à solução das situações-

problema encontradas nas aulas. Estabelecer-se-ia uma espécie de diálogo teoria-

prática, cujo foco central seria a prática como objeto da reflexão, dando destaque

também à elaboração de material teórico, já que o professor deve ser pesquisador.

Sobre a questão da organização curricular, quero ainda me referir ao trabalho

de Gómez (1992, p. 108). O autor considera que o fracasso encontrado pelos cursos

de formação de professores (na Espanha, mas considero suas colocações muito

pertinentes à nossa realidade) se dá em função do abismo colocado entre teoria e

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prática, graças à racionalidade técnica1, para a qual situar o estágio no final do curso

é algo lógico, já que seria o momento em que o aluno-professor disporia do conjunto

de fatos, regras e procedimentos que poderiam, por sua vez, ser aplicados

diretamente aos problemas instrumentais. Sendo assim, o estágio2 seria como um

processo de preparação técnica para a compreensão das regras e técnicas do

mundo da sala de aula. O bom professor seria aquele que conseguisse aplicar bem

as técnicas assimiladas.

O mesmo autor, (Gómez,1992, p. 100), contudo, considera que problemas da

prática social não podem ser reduzidos a problemas instrumentais, como se o

professor tivesse que simplesmente escolher bem que procedimento técnico tomar

para solucioná-los. Na prática, não existem problemas, mas situações problemáticas

únicas que não se encaixam nas categorias genéricas identificadas pela técnica e

teorias existentes. Assim, para Gómez (1992), não se deve abandonar totalmente a

utilização da racionalidade técnica em todas as situações da prática educativa, uma

vez que, para ele, haveria situações em que somente a aplicação de teorias e

técnicas resultantes da investigação de ciências básicas e aplicadas seriam

eficazes. Assim sendo, ele vê que seja mais correto encarar a atividade docente

como de caráter reflexivo e artístico, na qual cabem algumas aplicações concretas

de caráter técnico.

Assim, Gómez (1992, pp. 110-1) insiste que o estágio seja o eixo central do

processo de formação docente. Isso propiciaria o desenvolvimento das habilidades

de reflexão-na-ação, reflexão sobre a ação e reflexão sobre a reflexão-na-ação, o

que englobaria conhecimentos, capacidades e atitudes que não dependeriam de

conhecimento acadêmico exclusivamente, mas, sim, do conhecimento produzido no

diálogo com a situação real.

Quero acreditar que, em breve, graças aos trabalhos na graduação e pós-

graduação que têm sido desenvolvidos no estado de Mato Grosso, as universidades

aqui presentes, passem a refletir e reorganizar seus currículos na perspectiva que

acabo de apresentar. Até então, o que se tem feito é dizer que a reflexão é

1 Gómez (1992) faz uma breve apresentação do que venha a ser a racionalidade técnica e como é concebido o professor dentro dessa perspectiva de raiz positivista, fazendo uma crítica a essa postura, com vistas à adoção da postura reflexiva como superação dessa linha teórica. 2 O autor chama de prática. Preferi utilizar o termo estágio para ficar mais próximo do nosso vocabulário corrente.

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importante, mas sem tomar a atitude de mudança. Se na prática nada for feito, a

reflexão é estéril e falaciosa.

A tendência a reflexividade é um traço característico da fase atual do

capitalismo e esse fato não pode ser ignorado, especialmente pelo enfoque, que se

propõe crítico, dado a este trabalho. Assim, me detenho, agora, em tratar da figura

do professor reflexivo no contexto sócio-econômico-cultural em que vivemos.

1.1.2 O professor reflexivo no contexto do novo capitalismo

Resende e Ramalho (2006), em uma nota, com base em Harvey (1992), explicam que o novo capitalismo é o momento deste sistema econômico em que o foco deixa de estar na produção de bens materiais duráveis e passa para a produção de serviços, entre eles a educação e a informação. Isso se deu a partir da década de 70, quando o capitalismo entra em crise e precisa se reestruturar e criar caminhos para incentivar o consumo, fator vital nessa forma de organização da produção material. Em vista disso, Fairclough (2001, p. 25) citando Urry (1987), mostra que setores como a educação, a assistência médica e as artes se viram obrigados a repensar suas atividades como atividades de produção e marketing de bens de consumo.

Meu foco de atenção se dá sobre os professores de escolas públicas que, a meu ver, não têm como estar imunes a essa nova ordem discursiva, respondendo, por isso, às tendências de mercado quanto à execução do trabalho docente. Ao emergir uma tendência de prática reflexiva nas escolas, estamos em sintonia com o que está acontecendo em muitas empresas na atualidade (Fairclough, 2001, pp. 25-6). A busca da qualidade total, frente a um mundo competitivo e que demanda serviços especializados, leva as empresas à prática de reflexão constante, em reuniões periódicas, que incluem não somente o proprietário e gerentes, mas também os “colaboradores” (como muitas vezes se prefere chamar os empregados). Nessas reuniões, avaliam-se as atividades, diagnosticando falhas, carências, desperdícios, êxitos entre outros fatores, para procurar eliminar os pontos negativos e construir alternativas que venham melhorar a qualidade nos serviços com a menor margem de gastos possível.

Muitas atividades de reflexão de professores em estabelecimentos de ensino dão-se nessa mesma ótica. Como observado em um instituto de idiomas em que trabalhei3, bem como as professoras que participam dessa pesquisa também narraram, é muito comum nas escolas de línguas haver reuniões periódicas, geralmente semanais, nas quais a direção e coordenação da escola, juntamente com os professores e demais funcionários, avaliam os trabalhos executados, tanto no ponto de vista pedagógico como no administrativo, promovendo um espaço em que todos4 têm a oportunidade de se expressar e contribuir para o crescimento (no fundo financeiro) da escola. 3 O referido instituto é uma unidade de uma das franquias mais difundidas no país, sendo que minha atuação se deu numa cidade do interior de Mato Grosso, nos anos de 2002 e 2003. 4 Há que se considerar que relações de poder no interior do grupo tornam esse “todos” um tanto relativo.

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Do ponto de vista pedagógico, que é o que mais me interessa, a coordenação da escola estabelece objetivos que devem ser alcançados pelos alunos e que são postos sob a responsabilidade do professor, como dominar determinado vocabulário da língua inglesa e construir enunciados com base nesse vocabulário e algumas estruturas trabalhadas, por exemplo. A cobrança por resultados é muito grande, e todos os esforços possíveis são empreendidos pelo professor, em termos de metodologias para a explicação do conteúdo, atividades extras, dinâmicas, entre outros recursos, pois o alcance dos resultados esperados, ou o não alcance, significam a sua permanência ou dispensa na empresa.

No contexto da escola pública, a prática pedagógica, em termos de compromisso com a qualidade, costuma ser bastante diferente. Diante do fracasso na aprendizagem de língua estrangeira por parte dos alunos, coloca-se a culpa na formação deficiente dos professores, na falta de materiais didáticos, no desinteresse dos alunos, na superlotação das turmas, entre outros, o que para mim é o que se vê na superfície do problema, estando suas causas no nível da ideologia. Quanto às aulas em si, o comum é que os professores somente se apresentem na sala de aula e ministrem conteúdos com atividades de tradução ou exercícios gramaticais que não lhes comprometa muito, no sentido de expô-los a situações que demandem maior esforço e domínio da língua. É algo difícil de se admitir, mas é o que muitas vezes tenho observado, assim como também constatou Quirino de Sousa (2006, p. 32) em sua pesquisa.

Contudo, quando emergem, no contexto da escola pública, reuniões de grupos de estudos como as que realizamos, em que os professores se propõem a discutir sua atividade docente, trazendo para o grupo suas experiências boas e frustrantes, seus anseios, situações delicadas vivenciadas no trato com os alunos, enfim, quando se busca refletir sobre o trabalho de aprender/ensinar na escola, se está em consonância com uma tendência muito presente em empresas na atualidade, o que endossa a posição de que o quanto mais próximo do modelo empresarial, melhor o trabalho que se empreende.

Meu trabalho tem como uma de suas bases a valorização desse tipo de iniciativa entre os professores que, a despeito de todas as dificuldades e falta de incentivo, se dispõem a reunir-se com vistas a discutir caminhos para melhorar seu trabalho. Valadares (2002), referindo-se a Contreras (1997), afirma que são raros os trabalhos na área de educação, hoje, que não defendem que a atividade de reflexão seja parte essencial na formação do professor. Minha ressalva, entretanto, é com relação ao sobre o quê se está refletindo na escola. E é a respeito disso que trato no tópico a seguir. 1.1.3 Reflexão para quê?

Contreras (1997), como Zeichner (1998) e Pimenta (2000), chamam a

atenção para o esvaziamento do sentido da atividade reflexiva nas reformas e programas de ensino sugeridos pela pesquisa acadêmica. Para Zeichner (1992, apud Valadares, 2002, p. 190), a pergunta não é “se os professores são reflexivos, mas como e sobre o que estão refletindo”, sendo irônico ao afirmar: “Há uma diferença qualitativa entre refletir sobre o racismo, amendoim ou queijo, por exemplo”.

Valadares (2002, p. 191) nos lembra que, frente ao que realmente seria um professor reflexivo, contrapõe-se o professor polivalente, flexível, que “veste a

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camisa” da proposta, mas que continua sem poder tomar decisões com relação às intervenções que faz no grupo de trabalho. Fazendo um paralelo com a produção em empresas privadas, especialmente as indústrias, o profissional flexível, polivalente, que tem certa autonomia para tomar algumas decisões, é característico do momento contemporâneo de organização do trabalho denominado pós-fordismo, em que, para Fairclough (2001, p. 25), “os operários não mais funcionam como indivíduos que desempenham rotinas repetitivas em processo de produção invariante, mas como grupos em relação flexível com um processo acelerado de mudança”.

Quando se empreendem atividades reflexivas, como as que ocorrem nos institutos de idiomas que comentamos ou, mesmo quando na escola pública só se está preocupado com a atividade de aprender/ensinar em sala de aula, sem nenhuma atenção a ação política e social, se está novamente agindo de acordo com os parâmetros da racionalidade técnica, sendo a reflexão reduzida a um instrumento por meio do qual se quer resolver um problema pontual. O profissional que assim age não é um professor reflexivo, no conceito trazido por Schön (1992). Tem apenas o adjetivo de reflexivo, inerente a todo ser humano.

Valadares (2002, p. 192), em consonância com Zeichner (1992) e Contreras (1997), afirma que uma das principais críticas que se direcionam à reflexão feita pelos professores é com relação ao fato de ela não transpassar as paredes da sala de aula e da prática imediata. Uma reflexão de caráter individual, solitário e estéril do ponto de vista social e político. Autores como Kemis (1985), Giroux (1990) e Lawn (1988), todos citados por Valadares (2002, pp. 24-5), criticam a reflexão que se dá apenas em relação aos eventos em sala de aula, sem considerar o contexto em que se insere tal atividade. Deve-se derrubar esses muros limitadores e avançar na direção de inserir em nossas atividades reflexivas elementos que, normalmente, se mostram como inquestionáveis, naturais, e que constituem-se em obstáculos para se empreenderem as mudanças mais amplas no contexto social em que a prática educativa se localiza. Valadares (2002) lembra que Grundy (apud Contreras, 1997) entende que seja necessário desenvolver nos professores uma consciência crítica para determinar os limites que em nossa consciência dificultam a prática emancipatória5, bem como o reconhecimento de intervenções na escola que traduzem interesses de dominação.

Resende e Ramalho (2006, p. 34) sugerem que o conceito de reflexividade se refere à possibilidade que os sujeitos têm de construir ativamente suas auto-identidades, em construções reflexivas de sua atividade social. Tais identidades são construídas por meio do discurso, podendo ser influenciadas pelo discurso dominante e hegemônico. Entretanto, da mesma forma como tais auto-identidades são construídas discursivamente, elas podem ser também contestadas no discurso.

Nesse sentido, o professor deve ser um profissional reflexivo e crítico. Crítico no sentido que Fairclough (2001, p. 28) define6: “’Crítico’ implica mostrar conexões e causas que estão ocultas; implica também intervenção – por exemplo, fornecendo recursos por meio da mudança para aqueles que possam encontrar-se em desvantagem”. Fairclough (2001, p. 292) propõe que se crie nos alunos uma ‘Consciência Lingüística Crítica’, no intuito de fazê-los iniciar mudanças em suas práticas discursivas e de suas comunidades. E isso, na linha teórica em que me inscrevo, significa promover também mudanças de prática social. E para que se 5 Para Papa (2008, pp. 22-3), com base em Bhaskar (1998) emancipação significa libertação, para a qual se deve empreender trabalho e comprometimento a fim de poder mudar as estruturas sociais. 6 Tal posição é também afirmada por Resende & Ramalho (2006, p. 22).

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possa pôr em prática essa proposta de Fairclough, vejo na formação crítico-reflexiva de professores um caminho bastante eficaz. Se os professores estiverem conscientes da ação política que podem empreender em suas aulas, sendo eles conscientizados no que tange à relação entre linguagem e poder e tendo adotado uma posição crítica frente a isso, poderão promover a conscientização de seus alunos. Isso, a médio e longo prazo, desde que seja uma postura assumida por muitos, como numa rede, poderia levar a mudanças discursivas e de prática social significativas numa dimensão macro, que poderiam contribuir na diminuição de assimetrias entre as classes sociais.

Isso faz com que o meu trabalho, e as pessoas nele envolvidas, identificados com o que Castells (1999, p. 24) chama de identidade de projetos, que ocorre quando os atores sociais, lançando mão a qualquer material cultural de que disponham, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao mesmo tempo, buscam a transformação de toda a estrutura social.

Esse, sem dúvida, é um projeto ambicioso, mas que pode ser implementado desde que haja um compromisso efetivo com a perspectiva de educação para a emancipação, sem deixar lugar ao pessimismo. Resistir e formular contra-discursos frente à ideologia dominante, que quer fazer com que se mantenha o status quo, pode forçar mudanças em favor dos que se encontram em situação de desvantagem.

1.2 O ensino de inglês na escola pública De acordo com Quirino de Sousa (2006, p. 30), retomando Paiva (2003), o

ensino de inglês no Brasil se intensificou depois da Segunda Guerra Mundial, em

função do aumento da dependência econômica e cultural brasileira diante dos

Estados Unidos. Até então, a língua estrangeira que mais se ensinava nas escolas

era a língua francesa, tida na época como “língua de cultura”. Contudo, a escola

regular não apresentava resultados satisfatórios quanto ao ensino da língua inglesa,

o que gerou precedentes para o surgimento e expansão dos institutos privados de

idiomas, os quais prometiam ensinar efetivamente a língua nas suas quatro

habilidades: ouvir, falar, escrever e ler.

Paiva (2003 apud Quirino de Souza, 2006) ressalta que no ano de 1961, a Lei

de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) retirou do currículo a obrigatoriedade da

oferta de línguas estrangeiras, ficando a cargo dos estados oferecê-las ou não, caso

dispusessem da estrutura necessária para efetivar o ensino. A autora faz

questionamentos acerca do que seria essa estrutura necessária, supondo que isso

se refira a qualificação dos professores, material didático de que dispõem os alunos,

equipamentos encontrados na escola, entre outros. E, diante disso, conclui que o

ensino de inglês na escola pública continuava a não ser satisfatório.

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No início da década de 70, o método audiovisual era o predominante nos

institutos de idiomas e nele se via o caminho certo para se alcançar o aprendizado

dito efetivo da língua, i.e., domínio da língua nas quatro habilidades. Segundo

Menezes de Sousa (2003, apud Quirino de Sousa, 2006, p. 30), a língua era

considerada como “um código composto por um conjunto fixo e estável de regras

abstratas usadas por falantes igualmente abstratos e idealizados”. Dessa forma, as

atividades de repetição e memorização eram utilizadas no intuito de criar novos

hábitos de fala. As lições nos livros costumavam apresentar um diálogo introdutório,

que devia ser repetido pelos alunos com a ajuda de gravações e do professor,

seguido de explicações a respeito das estruturas gramaticais que compunham

aquelas falas iniciais. Dos alunos se esperava que reproduzissem corretamente as

frases propostas.

No final da década de 70, chega ao Brasil a abordagem comunicativa, o que

representou um marco importante para a história do ensino de línguas no país

(Menezes de Souza, 2003 apud Quirino de Souza, 2006). Nessa nova metodologia

havia uma maior preocupação com o contexto e com os enunciados que se

produziam, ou seja, procurava-se ensinar a língua utilizando-se de situações fictícias

em que o aluno era convidado a vivenciar uma determinada situação, com vistas a

buscar comunicar-se naquele contexto sugerido (e.g., o que se deve dizer numa

lanchonete ou num hotel). As atividades passaram a ser divididas em funções

comunicativas e o aluno passa a ser o centro da atividade, devendo o docente estar

sempre atento às suas necessidades. O formalismo das atividades de memorização

e repetição dá lugar à improvisação, de forma que o aluno devia fazer-se entender

naquela situação supostamente “real” de uso da língua.

Ao trazer o foco do ensino-aprendizagem para o aluno e sem a preocupação com a reprodução do que seria “o correto”, a relativa liberdade de expressão que a abordagem comunicativa trazia em seu bojo, torna aluno e professor agentes do processo educativo, o que representa um avanço no sentido de uma educação que dialoga com a realidade e, talvez, possa ser um meio de promover mudanças.

Contudo, conforme aponta Menezes de Sousa (2003 apud Quirino de Souza,

2006, p. 33), essa nova abordagem de ensino, que enfoca a autonomia do aluno e

sua participação efetiva no processo ensino-aprendizagem, não funcionou a

contento no ensino regular. No entendimento do autor, isso se deu pelo fato de os

professores não estarem preparados para essa nova visão pedagógica. Tais

professores eram fortemente influenciados por uma visão mecanicista e positivista

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de ensino, seguindo os livros que eram formulados na nova proposta à risca, do

primeiro ao último capítulo, um após o outro, o que na proposta dos autores,

geralmente, não existia, podendo ser escolhidos os temas das aulas aleatoriamente,

de acordo com o interesse da turma. Nessa perspectiva, as editoras passaram a

produzir materiais mais tradicionais, já que isso é o que agradava à maioria dos

professores e era o que vendia. Os livros passavam a ser coloridos, mas retornavam

às atividades de repetição e memorização.

Na pesquisa realizada por Quirino de Sousa (2006), a autora percebe, por

meio de depoimentos que recolheu, que embora os professores de escolas públicas

“invejem” o suposto sucesso alcançado pelos professores nos institutos de idiomas

no trabalho com a abordagem comunicativa, reconhecem que não são capazes de

empreender o mesmo êxito em seu contexto de ensino, localizando a causa disso na

falta de materiais e equipamentos e na superlotação das turmas. E ainda, as

propostas de atividades comunicativas eram recebidas com dificuldade pelos alunos,

enquanto que exercícios mais tradicionais eram executados com maior facilidade, o

que desmotivava a inovação (cf. p. 34).

Em conformidade com Paiva (2003), Quirino de Sousa (2006) afirma que com

a nova LDB, em 1996, o ensino de ao menos uma língua estrangeira volta a ser

obrigatório a partir da 5ª série do ensino fundamental. Contudo, segundo a leitura

que Quirino de Sousa (2006) fez de Paiva (2003), o fracasso do ensino comunicativo

nas escolas públicas fez com que se defendesse a idéia de que a língua estrangeira

deveria ser ensinada com um enfoque instrumental, apenas para a leitura, nesse

caso. Em virtude do grande número de alunos por sala, a carência de materiais

didáticos e equipamentos e a pouca fluência dos professores, esse foi um caminho

para que se pudesse garantir alguma aprendizagem da língua.

Essa postura ancorava-se também no argumento de que os alunos das

escolas públicas dificilmente teriam alguma oportunidade de utilizar a língua inglesa,

que já era a mais ensinada nas escolas, na habilidade oral, pois esses alunos não

dispõem de recursos para fazerem viagens ao exterior e muito provavelmente não

desempenhariam profissões que exigissem conhecimento da língua. Inclusive, os

PCNs de Língua Inglesa de 1998 ratificam tal posição ao afirmar que “somente uma

parcela pequena da população tem a oportunidade de utilizar línguas estrangeiras

como instrumento de comunicação oral” (Paiva, 2003, p. 62 apud Quirino de Souza,

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2006, p. 35). Contudo, essa posição é bastante contestável7, já que os alunos de

escola pública assistem a filmes na língua inglesa, ouvem músicas e mesmo em

entrevistas de emprego não é raro que se peça alguma habilidade com a língua.

Talvez eles tenham menos contato com a língua na habilidade escrita que na oral.

Para mim, tal posição do documento que rege a educação no Brasil ajudou a

fazer com que muitos professores se acomodassem, focando seu trabalho somente

na prática de leitura, tradução textual e prática de exercícios gramaticais. Isso

contribui para a exclusão das classes menos favorecidas da sociedade, ao ser-lhes

negada a possibilidade de vir a concorrer com os filhos da classe média por uma

vaga de trabalho que exija algum conhecimento da língua inglesa, por exemplo.

Aceitar que somente às classes economicamente mais favorecidas fique reservado o

direito ao acesso à habilidade oral nas línguas estrangeiras é julgar normal ou

natural que haja assimetrias entre as classes, que uns possam gozar do acesso a

determinados bens culturais e outros não, cabendo aos últimos, somente,

conformar-se.

Perin (2005) identifica, numa escola da região de Maringá-PR, alguns

problemas referentes ao ensino de língua inglesa e que parecem ser bastante

comuns às escolas de Mato Grosso. O artigo da autora ao qual me refiro faz parte

de uma coletânea produzida com vistas a avaliar o programa de capacitação em

massa de professores que ficou conhecido como Paraná ELT, promovido entre 2000

e 2002, pela Secretaria de Estado de Educação do Paraná, em união com a

Universidade do Professor e Centro de Línguas Estrangeiras Modernas, e a

assistência do Conselho Britânico. Também participaram universidades públicas e

institutos privados de idiomas. Objetivava-se melhorar os níveis de proficiência

lingüística dos professores da rede estadual, acreditando que isso melhoraria a

qualidade da formação dos alunos daquele estado.

Contudo, a autora ressalta que a proficiência lingüística não é

necessariamente a única condição para que se obtenha sucesso na aprendizagem

de inglês na escola pública (p. 147). Com base no estudo de Frahm (2000), Perin

(2005) fala a respeito da situação dos professores da rede estadual do Paraná no

ano de 1997. Os docentes eram mal remunerados8, alguns chegavam a trabalhar

7 Perin (2005, p. 153) também critica a posição dos PCNs (1998). 8 Recebiam, com nível superior, menos de US$550,00 (o dólar era cotado entre R$ 1,03 e 1,10 naquela época, segundo a autora) e muitos recebiam menos de US$ 280,00. As cargas horárias eram de 31 a 40 horas.

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até em quatro escolas diferentes, e muitos tinham outro emprego que não era a

docência. Era muito comum que professores de outras disciplinas (até mesmo

matemática, biologia, teologia (cf. p. 146) assumissem as aulas de inglês para

complemento de carga horária. Referindo-se à mesma pesquisa de Frahm (2000),

Perin (2005) mostra que em 1999, metade dos professores de inglês no Paraná

eram contratados temporariamente, o que gera o problema da rotatividade de

professores.

Diante das realidades apresentadas acima, que encontram semelhantes em

Mato Grosso, os professores não encontram a possibilidade de realizar um bom

trabalho. Com jornada tripla de trabalho, por exemplo, é humanamente impossível

preparar bem as aulas, com atividades diversificadas e ricas em informações, e

muito menos realizar qualquer atividade de reflexão em grupo de trabalho. Perin

(2005, pp. 152-3) defende que, se houvesse interesse governamental em investir

nos professores, conferindo-lhes uma remuneração digna e a possibilidade de

lotação numa só escola, os docentes procurariam capacitar-se mais e seria possível

o trabalho em grupo de professores nas escolas.

Perin (2005, p. 153) deixa no ar uma inquietação a respeito da necessidade

de se buscar a raiz do problema do insucesso do ensino/aprendizagem de inglês na

escola pública, com vistas a uma solução definitiva:

A busca de uma solução definitiva para a questão torna-se necessária, bem sabemos, mas deve ela também ser mais profunda, mais sistemática, não apenas tratar de aspectos superficiais como a falta de competência lingüística do professor, mas situar este mesmo aspecto em conjunto com os demais que compõem a realidade atual e partir de um estudo abrangente procurar por soluções que produzam efeitos mais duradouros e efetivos.

Para mim, esta profundidade está no nível classista, e por isso, em nome da

manutenção do interesse da classe dominante, ficam privados os alunos da escola

pública ao efetivo aprendizado da língua inglesa. Isso porque o efetivo aprendizado

dos alunos da escola pública não é interessante para a perpetuação da situação de

dominação, uma vez que a escola pública atuaria na formação de mão de obra para

servir àqueles que tiveram o direito de aprender a falar inglês. Seria essa a ideologia

que atravessa os discursos correntes em nossa sociedade, com vistas à

manutenção de tal situação.

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Ao falar acerca da ideologia, cabe aqui, um melhor posicionamento sobre

essa questão.

1.3 Ideologia

A questão da ideologia é de grande importância para meu trabalho, e por isso,

devo me posicionar com relação ao conceito de ideologia que assumo para a análise

dos dados. Esse posicionamento se faz necessário devido ao fato de haver vários

conceitos acerca da ideologia. Alguns pensadores, partindo da concepção marxista,

acrescentam, eventualmente, complementos e fazem correções acerca daquilo que

pensam estar superado no que foi definido pelos autores de A ideologia alemã (Marx

e Engels). Um trabalho bastante interessante, nessa perspectiva de demonstrar o

posicionamento de alguns teóricos a respeito da ideologia, é o de Leandro Konder

(2002).

Quero me deter um pouco em falar a respeito do que Marx, clássico na

questão de ideologia, e Althusser, definem a respeito deste tema. A compreensão

das concepções desses dois autores ajudará a esclarecer os limites dentro dos

quais se situa o ponto de vista que assumo para minha análise. Marx, por ter

definido o conceito de ideologia a partir do qual outros teóricos formularam os seus,

e Althusser por influenciar significativamente o conceito com que trabalho.

Em Marx

Para Marx e Engels (1986, p. 72), “as idéias (Gedanken) da classe dominante

são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material

dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante”.

Contudo, segundo Chauí (1983, 20), falando a respeito da concepção marxista,

Essas idéias ou representações (...) tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade chama-se ideologia. Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas (...).

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Essa definição de ideologia, que se baseia nas formulações teóricas dos

autores alemães, recebe a expressão de “falsa consciência”9, o que caracterizaria a

situação em que os homens não seriam capazes de perceber a realidade em que

vivem, ou seja, como a sociedade está organizada de modo a localizar muitos na

situação de explorados pelos poucos que detêm o poder econômico e político.

Zacchi (2003) salienta que, nessa noção de ideologia, as idéias são situadas num

plano paralelo ao do mundo material. E tais idéias determinariam os fatos na

sociedade, embora estejam desligadas desta. Tal concepção reforçaria a crença de

que a vida dos homens é motivada por ação de entidades abstratas.

Em Althusser

Zacchi (2003, p. 16-7) comenta, de maneira breve, o pensamento de Louis

Althusser (1996) a respeito da ideologia. Althusser (1996) recusa a idéia de “falsa

consciência” e acrescenta teorias relativas à estrutura e ao inconsciente à teoria

basicamente economicista de Marx. Contudo, talvez a mais representativa

contribuição de Althusser (1996) para a teoria marxista seja a ação da ideologia na

constituição do sujeito. A ideologia não estaria, dessa forma, num plano separado da

realidade social, mas sim, faria parte das estruturas e práticas que constituiriam e

determinariam o ser humano. Seríamos interpelados pela ideologia, de modo que

ela constituiria nossa subjetividade, ou seja, nos tornaria sujeitos, com uma

identidade social determinada.

Outro ponto de grande relevância na teoria de Althusser (1996), para o qual

Zacchi (2003) chama a atenção, é a questão dos Aparelhos Ideológicos de Estado.

Estes seriam instituições, como a escola e a religião, por exemplo, que trabalhariam

no sentido de disseminar a ideologia da classe dominante, de forma a localizar os

sujeitos em funções sociais que sejam convenientes para a manutenção do sistema

capitalista, caracterizado pela divisão em classes.

Nessa perspectiva, a escola seria responsável por ensinar os alunos a se

submeter à ideologia dominante. Idéias como as de disciplina e organização, que

tanto louvamos, estariam a serviço do mercado, de forma a “treinar” os alunos para

9 Marx e Engels, para explicar o mundo de um ponto de vista materialista, recorrem à ferramentas metafísicas, porque o termo “ falsa consciência” implica na existência de uma verdadeira consciência, uma consciência supra, sobre todo o ser humano, sobre prática social. (Transcrição literal de comentário feito pelo prof. Sérgio Flores Pedroso, em 25/08/2008).

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serem eficientes e obedientes na execução de trabalhos. Isso, principalmente, na

escola pública, que acredito ter a função social de formação de mão-de-obra barata

para o mercado.

Citando Giroux (1986), Zacchi (2003) considera que a teoria de Althusser tem

caráter unidimensional, no sentido de desconsiderar a possibilidade de resistência e

transformação. O sujeito não poderia ser agente de mudança, já que seria

determinado pelo poder da estrutura social.

A importância da teorização de Althusser sobre a ideologia é reconhecida,

especialmente no que toca a questão da ideologia dominante como sendo a da

classe dominante, e a questão dos Aparelhos Ideológicos de Estado. Contudo, para

a perspectiva teórica que assumo, sua teoria possui limitações, principalmente, por

desconsiderar a possibilidade de luta para desnaturalizar ideologias dominantes e

promover mudanças.

1.3.1 O conceito que assumo

O conceito de ideologia que assumo é o formulado por Norman Fairclough

(2001, p. 117), o qual define que:

Ideologias são significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação.

Fairclough (1991, p. 114; 2001, p. 116) apresenta a teoria de Althusser (1996)

como sendo muito influente no recente debate a respeito da ideologia, apontando

três asserções importantes feitas pelo autor francês de origem argelina, a saber: a)

de que a ideologia tem existência material nas práticas das instituições, o que

permite estudar as práticas discursivas como formas materiais de ideologia; b) a

asserção de que a ideologia ‘interpela os sujeitos’, o que abre margem para o

entendimento de que um significativo efeito ideológico seja a constituição dos

sujeitos; c) os ‘Aparelhos Ideológicos de Estado’ (instituições como a escola, as

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igrejas etc) são marco e local da luta de classe, sendo que tal luta se daria no

discurso, o que permite e motiva uma análise discursiva crítica.

Embora reconheça a importância das teorizações de Althusser (1996),

Fairclough (1991; 2001) vê limitações em seu trabalho. Uma seria a contradição não-

resolvida com relação à defesa de que existe uma imposição por parte da classe

dominante para a reprodução de sua ideologia, em que esta funcionaria como o

‘cimento social’, submetendo as pessoas à determinada posição social, sem a

perspectiva de mudança. Outra seria o fato de insistir em que os Aparelhos

Ideológicos de Estado seriam lugar e marco da luta de classes com resultado

sempre em equilíbrio.

Essa impossibilidade de transformação e mudança se daria pela localização

da ideologia somente na dimensão da estrutura social, que por sua vez, determinaria

os eventos, entendidos apenas como manifestação do potencial definido pela

estrutura. Isso anularia a possibilidade de os sujeitos agirem com vistas a

transformar a realidade vivida. Resende e Ramalho (2006, p. 49) sugerem que a

teorização de Althusser seja um bom exemplo de trabalho que localiza a ideologia

apenas na estrutura social. Para mim, concordando com Busnardo & Braga (2000),

aceitar a posição de Althusser seria cair num determinismo pessimista.

Fairclough (1991; 2001) postula que a questão-chave no que tange à

ideologia é se ela seria uma propriedade de estruturas ou de eventos e sugere que

seja de ambos, e que encontrar uma explicação satisfatória para a dialética entre

estruturas e eventos seja o problema-chave. A solução poderia ser atentar sempre

para a dialética entre estrutura e ação: “a liberdade dos sujeitos, embora não possa

ser apagada, é relativa”. (Resende & Ramalho, 2006, p. 49). Com isso, quero dizer

que estamos envolvidos numa estrutura em que a ideologia desempenha sua

função, levando as pessoas a agirem de maneira a manter o sistema que visa a

produção de riquezas, concentradas nas mãos de alguns.

O foco desta pesquisa segue a linha de Fairclough (2001) e outros autores

que trabalham na mesma perspectiva (Busnarso & Braga, 1987; Zacchi, 2003;

Resende, 2005; Resende & Ramalho, 2006), que através de uma abordagem mais

crítica, se preocupam de maneira explícita “em mostrar os efeitos construtivos do

discurso sobre as identidades sociais e, principalmente, em que medida o discurso é

moldado por relações de poder e ideologia” (Silva, 2002, p. 12). Enfatizar a

possibilidade de mudança da prática discursiva e da prática social, por meio da

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reflexão crítica por parte dos atores sociais que, conscientes de como a ideologia

opera, possam se organizar no intuito de promover a transformação de realidades de

exclusão e injustiça a que estejam sendo submetidos.

1.3.2 Modos de operação da ideologia

Fairclough (2001) afirma que seu entendimento sobre ideologia é semelhante

ao de Thompson (1984, 1990), para quem a linguagem e outras manifestações

simbólicas são ideológicas, prestando-se, em situações específicas, para

estabelecer ou manter relações de dominação. E, dessa forma, o conceito de

ideologia para Thompson (1995 apud Resende & Ramalho 2006, p. 49), que se

enquadra na teoria social crítica, é necessariamente negativo, no sentido de

entendê-la como forma de estabelecer e sustentar os interesses de indivíduos e

grupos dominantes, diferente de muitos autores que apresentam a ideologia como

um conceito neutro e alheio à ação dos atores sociais, especialmente, os que detêm

o poder. Tal postura poderia ser considerada ingênua ou mesmo orientada no

sentido da manutenção do status quo.

Resende & Ramalho (2006, pp. 50-1), referindo-se a Thompson (1995, pp.

81-9), apresentam cinco modos gerais de operação da ideologia, a saber:

legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação.

A legitimação funciona de forma a tornar legítimas relações de dominação,

procurando mostrá-las como justas. Três estratégias podem ser utilizadas no

processo de legitimação: a racionalização, a universalização e a narrativização. Na

racionalização, recorre-se a fundamentos racionais, a regras dadas a priori; a

universalização procura tornar representações de indivíduos ou grupos específicos

legítimas ao serem apresentadas como sendo de interesse geral; e, na

narrativização, remonta-se a histórias do passado que possam ilustrar e legitimar

fatos presentes.

Na dissimulação, o estabelecimento e o sustento de relações de dominação

são negados, ofuscados, por meio de construções simbólicas como deslocamento,

eufemização e tropo. No caso do deslocamento, termos de um dado campo de

atividade são transferidos para outro, podendo receber conotações positivas ou

negativas, de acordo com o interesse de quem se vale dessa estratégia; na

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eufemização, busca-se valorizar aspectos positivos de instituições, ações ou

relações sociais, de modo a fazer com que pontos negativos ou de instabilidade

sejam camuflados ou esquecidos; o tropo é um recurso de uso figurativo da

linguagem, no intuito de esconder relações de conflito.

A unificação é um modo de operação ideológico que visa construir uma noção

de unidade. Há dois recursos para isso: a padronização e a simbolização. Na

padronização, assume-se um referencial padrão que é partilhado; com a

simbolização acontece a construção de símbolos de identificação coletiva.

Por meio do processo de fragmentação, relações de poder podem ser

mantidas, dividindo grupos que, unidos, representariam uma ameaça para os que

estão no poder. Duas estratégias de construção simbólica podem ser utilizadas aqui:

a diferenciação e o expurgo do outro. Utilizando-se da diferenciação, dá-se ênfase a

características que desunem e dificultam a coesão do grupo, a fim de dificultar a luta

hegemônica; no caso do expurgo do outro, o grupo que representa uma ameaça ao

poder do grupo hegemônico é simbolicamente representado como um inimigo a ser

combatido.

E, a reificação é um processo ideológico por meio do qual se representa uma

situação transitória como se esta fosse permanente. Quatro estratégias podem ser

utilizadas: naturalização, eternização, nominalização e passivação. A naturalização

faz com que uma criação social receba o status de natural, totalmente alheia a ação

humana; pela estratégia de eternização, fatos localizados em dado momento

histórico são tratados como se fossem permanentes; e, a nominalização e a

passivação representam processos como entidades, desviando a atenção dos

atores e suas ações.

Para exemplificar, um dos modos de operação da ideologia que toca a

disciplina de língua inglesa na escola pública, seria a reflexão sobre o porquê de sua

presença na matriz curricular. O tratamento de língua franca que o inglês recebe

atualmente é ideologicamente investido ao fazer-se entender como algo natural, sem

a influência dos interesses de nações política e economicamente hegemônicas,

como Estados Unidos e Inglaterra, cuja língua é a inglesa. O que se vê na superfície

é que ela seja a língua das relações internacionais de mercado, da maior parte das

publicações científicas, de muitas das músicas tidas como pop, que estão tocando

no mundo todo, a língua dos filmes de Hollywood.

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As ideologias presentes nas práticas discursivas tornam-se muito eficazes ao

receber o status de senso comum, de naturais (Fairclough, 2001). Sem perceber, os

atores sociais reproduzem discursos que se prestam a estabelecer e/ou manter

relações de dominação, nas mais diversas áreas da atividade humana, nos mais

diversos eventos sócio-discursivos. Acredito, então, que seja um dos papéis do

analista crítico do discurso estar atento às estratégias de operacionalização da

ideologia, para que se possa, então, buscar a desconstrução dos discursos

hegemônicos, com vistas a favorecer a mudança das práticas discursiva e social.

A seguir, trago algumas contribuições teóricas sobre o conceito de

hegemonia, considerado de suma importância neste trabalho.

1.4 Hegemonia

O cunho do termo hegemonia é creditado ao filósofo italiano Antonio Gramsci.

Contudo, concordando com Cruz (2003), a leitura de Gramsci no original é

prejudicada pelo fato de ele ter falecido antes de poder fazer uma revisão de seus

escritos para publicação. Dessa forma, baseei-me na leitura de Gramsci feita por

Gruppi (1980) e apresentada por Cruz (2003) para ajudar na compreensão do que é

hegemonia. E também, evidentemente, abordarei o que Fairclough entende por

hegemonia e como este conceito pode ser aplicado a um trabalho de análise

discursiva crítica.

Cruz (2003, p. 58) traz a leitura que Gruppi (1980, p. 70) faz do conceito de

hegemonia numa perspectiva gramsciana:

[a] capacidade de unificar através da ideologia e de conservar unido um bloco social que não é homogêneo, mas sim marcado por profundas contradições de classe. Uma classe é hegemônica, dirigente e dominante, até o momento em que – através de sua ação política, ideológica e cultural – consegue manter articulado um grupo de forças heterogêneas, consegue impedir que o contraste existente entre tais forças exploda, provocando assim uma crise na ideologia dominante, que leve à recusa de tal ideologia, fato que irá coincidir com a crise política das forças no poder.

A classe dominante procura construir um consenso de que os seus valores

são os valores de todos e estes passam, dessa forma, a nortear as ações de toda a

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comunidade. Esse equilíbrio nunca é estável e a classe dominante precisa estar

sempre negociando para que sua ideologia seja assumida por todos, evitando uma

crise em seu poder. Cruz (2003, p. 58) nos lembra que caso essa coerção de valores

e princípios não mais aconteça, a classe dominante tem a seu dispor os aparelhos

de repressão, como a polícia e as forças armadas.

É nessa instabilidade que centro meus interesses de pesquisa, de modo a

ajudar na não aceitação passiva da ideologia dominante se essa faz com que nossa

clientela escolar seja excluída do acesso à língua inglesa. Acredito que podemos,

por meio da reflexão crítica, criar mecanismos de resistência à imposição da

ideologia dominante, com vistas a conseguir avanços no sentido de forçar uma

melhora qualitativa no que tange ao ensino/aprendizagem de língua inglesa nas

escolas públicas.

Gruppi (1980, apud Cruz, 2003, p. 59) nos apresenta o que Gramsci chamou

de canais, dos quais a classe dominante se vale para que sua ideologia chegue às

classes subalternas, a saber: a religião, o serviço militar, a mídia e a escola. No

trabalho de Cruz (2003), o enfoque é dado à questão do ensino profissionalizante

empreendido pelo Telecurso 2000, sendo esta modalidade de ensino,

historicamente, em diversas nações, direcionado para atender às classes

dominadas, enquanto que o ensino de formação geral era destinado à elite. Cruz

(2003) procura fazer um paralelo entre o Telecurso 2000 e a crítica que Gramsci faz

das universidades populares na Itália de sua época que, metaforicamente,

procediam “como aqueles exploradores que dão quinquilharias aos selvagens para

receber em troca pepitas de ouro” (Gruppi, 1980, apud Cruz, 2003, p. 59).

Creio ser possível estabelecer relação semelhante no que se refere ao ensino

de língua inglesa em nossas escolas estaduais: ao oferecer um ensino de inglês

ineficiente (quinquilharias), a classe dominante convence as classes dominadas de

que inglês é importante (ideologia da classe dominante) e de que todos têm acesso

a esse bem cultural. No entanto, ao mesmo tempo, fica a idéia de que inglês é algo

muito difícil de ser aprendido, embora, supostamente, seja necessário para suas

futuras (ou já atuais) atividades profissionais (pepitas de ouro). Isso pode parecer

algo bastante contraditório e, no meu entendimento, é mesmo. Por meio de tal

processo, se quer camuflar que as classes dominadas são privadas do acesso

efetivo à língua inglesa por interesse da classe dominante. O que se percebe ao

nível do senso comum é que a escola seria ineficiente, ou o Estado não estaria

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investindo nessa área, ao oferecer poucas aulas e quase recurso nenhum para o

trabalho com a língua. A ideologia, através dos modos de nominalização e

passivação, estaria operando aqui, de forma a desviar a atenção dos atores sociais

que promovem tal situação para instituições (Escola e Estado). Dessa forma, a

classe dominante consegue manter-se imune a possíveis contestações da classe

dominada e sua ideologia perdura.

Para mudar esse quadro, a conscientização em relação aos mecanismos de

manutenção de relações de poder que dêem origem às desigualdades pode

propiciar a criação de discursos de resistência por parte dos que sofrem a

dominação, no que se denomina luta hegemônica.

1.4.1 Luta hegemônica

Fairclough (2001) retoma o conceito de hegemonia de Gramsci, definindo-o

como domínio de um grupo sobre os demais, exercido mais pelo consenso que pelo

uso da força. Contudo, esse domínio não seria estável e sim de caráter vulnerável, o

que abre caminho para se pensar numa luta hegemônica que focalize os pontos de

instabilidade nas relações de poder, podendo-se, assim, reorganizar tais relações,

com vistas à diminuição das desigualdades, posição que reafirmei há pouco.

Para a análise que fiz, o conceito de hegemonia é de vital importância porque

identifico no discurso das professoras a manifestação hegemônica de uma ordem

discursiva que elas permanecem reproduzindo, mesmo estando lutando contra o

discurso hegemônico na sociedade brasileira contemporânea de que a escola

pública não se constitui num lugar em que se possa aprender/ensinar inglês.

Em concordância com Chouliaraki & Fairclough (apud Resende & Ramalho,

2006), vemos que a reflexividade crítica é um elemento ativo para a superação de

relações assimétricas de poder. Isso significa que se pode levar os membros que

estão sujeitos a determinado discurso hegemônico a refletir criticamente e tomar

consciência da ideologia que atravessa tal discurso, objetivando a mudança

discursiva e, por sua vez, a mudança também da prática social favorecida pelo

discurso dominante. As sessões reflexivas que promovemos na escola pública, com

a participação de professores de inglês, têm no seu cerne o objetivo de favorecer a

reflexão acerca dos discursos que se instalam na escola pública.

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Fairclough (2001) salienta que não é no nível da política nacional ou algo de

larga abrangência que a maior parte do discurso que sustenta a luta hegemônica se

encontra, mas, sim, em instituições locais particulares como a escola e a família.

Acredito que exista, de uma maneira bastante difundida em todo o país, um discurso

hegemônico de que a escola pública não é lugar de se aprender/ensinar inglês. Meu

trabalho focaliza tal discurso, e se manifesta numa instituição escolar específica, ou

nas instituições em que os professores envolvidos no grupo de estudos realizam seu

trabalho, buscando desarticular e rearticular o discurso hegemônico em tais escolas,

no intuito de tornar hegemônico o discurso de que se pode, sim, ensinar/aprender

inglês na escola pública, motivando a luta discursivo-social para a viabilização disso.

Os indivíduos envolvidos nas práticas discursivas e sociais precisam tomar

consciência de que são eles quem promovem a manutenção ou transformação das

estruturas sociais, o que nos remete à dialética entre estrutura e ação de que fala

Fairclough (1991, 2001). Os agentes sociais, embora possam ser constrangidos por

agentes causais das estruturas e práticas sociais (a Secretaria de Estado de

Educação de Mato Grosso, por exemplo), possuem relativa liberdade para

estabelecer novas inter(ações), modificando práticas já existentes (Resende &

Ramalho, 2006).

Para Tavares de Jesus (1985, apud Zacchi, 2003, p. 21), a educação, como

instituição da sociedade civil, “tanto pode funcionar como instrumento de

dissimulação a serviço da classe dominante, como também pode revelar às classes

dominadas as contradições existentes, permitindo-lhes reagir a todas elas e tentar a

contra hegemonia”. Assim, trabalhar na formação crítica continuada de professores,

para que se empenhem na construção de discursos e práticas contra-hegemônicas,

é um caminho para se alcançar os avanços que queremos.

Fairclough (1995, apud Zacchi, 2003, pp. 20-1) afirma que a hegemonia da

classe dominante sobre instituições da sociedade civil como a escola, a família, a

religião, os meios de comunicação, é que dificulta uma transformação revolucionária

da sociedade. Contudo, a possibilidade de mudanças a longo prazo existe, devendo

ser empreendida por meio da luta ideológica e hegemônica, podendo, conforme

Zacchi (2003), essas mesmas instituições servir para a sustentação do novo poder

hegemônico.

Ideologia e hegemonia são dois conceitos complementares reciprocamente

para a análise que faço, uma vez que a naturalização de práticas e relações sociais

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é basilar na manutenção de poderes que se tornam hegemônicos. Investigar como a

ideologia atua para a manutenção de tais relações de poder e, por meio da reflexão

crítica, motivar a resistência e reorganização dos discursos, de modo a promover a

diminuição de assimetrias, é a proposta deste trabalho.

A seguir, faço uma explanação sobre a Análise de Discurso Crítica (ADC).

1.5 A Análise de Discurso Crítica (ADC)

Meu trabalho versa a respeito da formação de professores crítico-reflexivos,

especialmente de língua inglesa. Defendo a idéia de que o trabalho em sessões

colaborativas, ou seja, reuniões num pequeno grupo de professores para estudar,

trocar experiências, e acima de tudo, refletir sobre nosso trabalho, seja algo muito

frutífero no sentido de nos ajudar a melhorar a qualidade do ensino/aprendizagem

de inglês na escola pública.

Neste trabalho, proponho investigar o discurso de duas professoras a respeito

da prática de ensinar/aprender inglês na instituição pública de ensinos fundamental

e médio, no estado de Mato Grosso. Busco verificar se essas professoras, mesmo

sendo profissionais que acreditam em seu trabalho e procuram ser o mais eficiente

possível, continuariam a reproduzir a ideologia hegemônica de que a escola pública

não se constitui num lugar em que se possa aprender/ensinar inglês, discurso este

que legitima o poderio dos institutos de idiomas, e contribui para a exclusão das

classes menos favorecidas, por meio do não acesso a esse bem cultural, tido como

muito importante no presente momento.

Diante disso, faço uso do aparato teórico-metodológico da ADC para analisar

o discurso das professoras, bem como o meu próprio discurso, valendo-me desse

instrumento como ferramenta para entender como a força do discurso dominante

age mesmo naqueles que buscam desconstruí-lo e formular contra-discursos. O meu

trabalho é desvelar essa realidade.

A seguir, explico brevemente sobre a ADC, seu histórico e posições teóricas.

1.5.1 Um breve histórico

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Segundo Resende & Ramalho (2006), o termo Análise de Discurso Crítica foi

cunhado por Norman Fairclough, da Universidade de Lancaster, no ano de 1985,

aparecendo em um artigo publicado no periódico denominado Journal of Pragmatics.

Tanto para as autoras há pouco mencionadas, como para Meurer (2005), a ADC

seria uma continuação dos estudos realizados pela Lingüística Crítica, surgida no

final da década de 70, na Grã-Bretanha. Essa nova modalidade de Lingüística

buscava articular as teorias e metodologias de análise de textos da Lingüística

Sistêmico-Funcional, de Halliday, com teorias sobre ideologia (Pedrosa [s.d.]).

Em termos de disciplina, a ADC se consolida no início dos anos 1990, mais

especificamente no mês de janeiro de 1991 quando aconteceu, em Amsterdã, um

pequeno simpósio no qual participaram Teun van Dijk, Norman Fairclough, Gunther

Kress, Teo van Leeuwen e Ruth Wodak (Pedrosa, [s.d.]; Wodak, 2003, p. 21 apud

Resende & Ramalho, 2006, p. 21). Em termos de publicações que abrangem o que

se chama de ADC, Pedrosa [s.d.] destaca Discourse and Society (van Dijk, 1990),

Language and power (Fairclough, 1989), Language, power and ideology (Wodak,

1989) e Prejudice and discourse (van Dijk, 1984).

Norman Fairclough é tido como o maior expoente da ADC, muito embora haja

outros autores que trabalhem em abordagens analíticas críticas da linguagem. O que

Fairclough faz com sua Teoria Social do Discurso é criar um aparato teórico-

metodológico para a investigação lingüística, que busque verificar como a linguagem

atua na sociedade contemporânea de modo a estabelecer, manter ou transformar

relações de poder.

A obra de Fairclough visa contribuir para que haja uma conscientização de

que os textos têm efeitos sociais e que mudanças sociais podem acontecer, com

vistas à superação de relações de poder desiguais, que seriam parcialmente

estabelecidas por meio da ideologia (Resende & Ramalho, 2006). Estas autoras

salientama importância de lembrar que a ADC e a AD (Análise de Discurso

Francesa) pertencem, historicamente, a ramos diferentes de abordagem da

linguagem, sendo que considero que a maior distinção, talvez, seja o fato desta

última não dedicar atenção à possibilidade de mudança social, preocupação central

da ADC.

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1.5.2 ADC: posições teóricas

A ADC é um trabalho de análise da linguagem que, declaradamente, não se

pretende neutro. O analista crítico de discurso precisa posicionar-se e deixar claro

que sua crítica é parcial. Aliás, a pretensão de neutralidade é vista como hipócrita, já

que sempre falamos de um determinado lugar teórico, defendendo certos valores,

certas concepções de mundo e de relações sociais, e não outras. A auto-reflexão é

exercício essencial no trabalho do analista, com vistas a assumir seu

posicionamento (Resende & Ramalho, 2006, p. 140).

A ADC é de característica interdisciplinar, valendo-se de outras ciências como

a sociologia, a psicologia, a lingüística, entre outras, para o entendimento dos

eventos de linguagem, cuja análise deve revelar os mecanismos de ação do poder

para a legitimação dos interesses dos que estão em situação privilegiada. Tal

trabalho deve ter por objetivo auxiliar no processo de tomada de consciência por

parte dos que sofrem injustiças e, por meio disso, levar tais atores sociais a perceber

que podem agir de maneira a não mais aceitar passivamente tais relações

assimétricas e forçar a diminuição das diferenças. Se a ideologia perde o status de

senso comum e as pessoas passam a perceber que determinado aspecto do senso

comum sustenta relações de dominação, tal relação se enfraquece e pode deixar de

funcionar ideologicamente (Fairclough, 1989 apud Resende & Ramalho, 2006, p.

22).

Pedrosa [s.d.], citando Fairclough (2003, p. 184), apresenta os passos para

um trabalho em ADC, como segue:

1- Concentrar-se em um problema social que possua um aspecto semiótico.

2- Identificar os elementos que geram os obstáculos de tal problema, para que se

possa abordá-los por meio da análise:

- da rede de práticas em que são localizados;

- do relacionamento semiótico que mantém outros elementos da prática social;

- do discurso;

- análise estrutural, ou seja, da ordem discursiva;

- análise interacional;

- análise interdiscursiva;

- análise lingüística e semiótica.

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3- “Considerar se a ordem social (a rede de práticas) ‘reclama’ em certo sentido o

problema ou não” (Fairclough, 2003).

4- Buscar alternativas para vencer os obstáculos.

5- Fazer a auto-reflexão perante a análise.

Em sua interdisciplinaridade, a ADC tem na Gramática Sistêmico-Funcional uma parceira muito importante, no nível do texto, servindo de suporte para o trabalho analítico. Passo, agora, a abordar um pouco mais de perto essa teoria.

1.6 Gramática Sistêmico-Funcional (GSF)

Para falar da concepção de linguagem em ADC, Resende & Ramalho (2006,

p. 12) em concordância com Schiffrin (1994), distinguem a visão formalista e a

funcionalista da linguagem, sendo que a primeira considera a linguagem como

autônoma, livre de influências externas, com foco na forma. Para a visão

funcionalista, a linguagem teria funções externas ao sistema e essas funções seriam

responsáveis pela organização interna do sistema lingüístico. Para os que

pretendem fazer ADC a visão funcionalista é fundamental, uma vez que a proposta é

estudar a linguagem como prática social e sua relação com o poder (Wodak, 2003

apud Pedrosa, [s.d.]). O contexto, dessa forma, tem papel fundamental no trato com

a linguagem, e, procurar entender a influência das práticas sociais no discurso é

papel do analista crítico de discurso. Contudo, a forma não pode ser descartada,

pois seria perigoso reduzir a linguagem somente à função ou mesmo somente à

forma, sendo que para Resende & Ramalho (2006, p. 14), a busca do equilíbrio

entre forma e função é uma das grandes contribuições da ADC.

Bakhtin (1986), com sua crítica ao objetivismo abstrato de Saussure (1981),

sustentou que a linguagem não pode ser reduzida a sistematizações de monólogos,

mas sim, que tem sua verdadeira substância no processo social de interação verbal,

do qual os indivíduos participantes com suas ideologias e histórias de vida não

podem ser divorciados. Essa concepção de linguagem é de importância basilar para

a ADC, assim como os conceitos de gêneros de discurso e dialogismo.

Resende & Ramalho (2006, p. 56) apresentam, ainda, a linguagem como um

sistema aberto, numa dialogia que considera os textos não só estruturados no

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sistema, mas também, inovadores do sistema: “toda instância discursiva abre o

sistema para novos estímulos de seu meio social” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p.

141 apud Resende & Ramalho, 2006, p. 56).

Nessa perspectiva, a tradição de análise discursiva em que se localiza a

Teoria Social do Discurso orienta-se, lingüisticamente, pela Lingüística Sistêmica

Funcional, de Halliday (Resende & Ramalho, 2006, pp. 56). Porém, neste estudo,

vamos chamar essa teoria lingüística de Gramática Sistêmico-Funcional, da mesma

forma como fez Papa (2008), e por considerar essa denominação mais próxima do

título do livro An Introduction to Functional Grammar (Halliday, 1994), em que o autor

teoriza que a linguagem deva ser observada de fora, o que significa, entender não

somente o que acontece lingüisticamente, mas também, observando os significados

produzidos pelos enunciadores como escolhas, como rede de opções (Papa, 2008,

pp. 40-1).

A GSF divide as funções da língua em três metafunções: interpessoal,

ideacional e textual, que ocorrem simultaneamente nos textos, havendo aqui uma

divisão apenas explicativa. Essas três metafunções nos ajudam a explicar o uso da

língua, que é feito de acordo com as necessidades e intenções dos enunciadores

nos contextos de interação.

• Metafunção interpessoal: é através desta metafunção que a língua permite

que as pessoas interajam, sendo que cada ator do evento discursivo (oral ou

escrito) assume um papel de fala, de acordo com a posição que ocupe no

evento. Na metafunção interpessoal se verifica a questão da modalidade, que

expressa o grau de veracidade e de responsabilidade que o enunciador

assume diante da mensagem. No sistema de modalidade, além de termos os

verbos auxiliares modais (poder, dever), pode-se incluir também outros

elementos que expressem status, autoridade, confiabilidade da mensagem,

e.g., eu acho, eu acredito, como se verá nas análises.

Pronomes

Os estudos sobre os pronomes, segundo Papa (2008, p. 54), foram realizados

por Halliday (1994), Pennycook (1994), Maitland & Wilson (1987), Kitagawa & Lehrer

(1990), Ramos (1997) e Barbara & Gouveia (2001).

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Pennycook (1994, apud Souza, 2007, pp. 44) afirma que os pronomes não têm

um papel passivo de mera substituição de nomes, implicando sempre em relações

de poder. Para Papa (2008), as escolhas pronominais têm a ver com os significados

interpessoais que se deseja expressar. E é nessa perspectiva que atentamos para

alguns pronomes utilizados pelos membros do grupo de estudos em nossas

conversas, com vistas a perceber em que posição nos colocamos nos eventos

discursivos.

Notadamente, receberam destaque os pronomes eu, auto-referencial, e que

pode expressar compromisso com uma proposição. Você (you), que para Laberge &

Sankoff (1980, apud Papa, 2008, pp. 55) pode aparecer como primeira pessoa,

marcando inserção situacional, i.e., a experiência pessoal do falante pode ser

partilhada com o destinatário e, como terceira pessoa, na formulação de truísmos

morais, em que as reflexões são baseadas na sabedoria convencional. Também o

pronome nós, que para Pennycook (1994) é o mais problemático, já que pode

marcar inclusividade (falante + destinatário + outros) e exclusividade (falante +

outros), i.e., um pronome que marca solidariedade e afiliação, ou rejeição (Papa

2008, pp. 56).

Em minhas análises, os pronomes servirão para procurar entender como as

professoras e eu nos posicionamos discursivamente durante as conversas, de forma

a poder inferir significados implícitos em nossas colocações, ideologias

naturalizadas, e que ajudem a compreender melhor as relações interpessoais entre

os falantes diante das temáticas sobre as quais refletimos.

• Metafunção ideacional: esta metafunção se refere ao uso da língua

enquanto representação, relacionando-se com o mundo externo (eventos,

elementos) e ao mundo interno (pensamentos, crenças, sentimentos). Em

minhas análises, atento, sobre esta metafunção, para os processos, que

correspondem aos verbos da gramática tradicional. Para Halliday (1994, p.

107), existem seis tipos de processos, sendo três principais e três

intermediários, a saber:

Principais

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a) processos materiais: são os processos de fazer, e.g.: trazer, buscar. Os

processos materiais se dividem em processos de ação (atores animados) e

processos de eventos (atores inanimados). Por sua vez, os processos de ação

se subdividem em processos de intenção (ato voluntário) e processos de

supervenção (simplesmente acontece);

b) processos mentais: são processos de sentir/experienciar. São subdivididos em

três subtipos: cognição (saber, entender, decidir); percepção (sentir); afeição

(gostar, amar);

c) processos relacionais: processos de ser. E envolvem dois papéis: atribuição

(papéis de classificado e classificador) e identificação (papéis de identificado e

identificador).

Intermediários

1) processos comportamentais: gramaticalmente, estão entre os materiais

e mentais. Abarcam comportamentos físicos e psicológicos (olhar,

assistir, encarar, preocupar-se, dançar, respirar, deitar-se, etc);

2) processos verbais: são processos de dizer (falar, contar, comunicar etc).

Estão entre os processos mentais e os relacionais;

3) processos existenciais: (haver, existir e ter) se situam entre os materiais

e os relacionais.

• Metafunção textual: Resende & Ramalho (2006, pp 57-8), ao referir-se a

esta metafunção, resumem que ela atenta para aspectos semânticos,

gramaticais, estruturais, que devem ser analisados na perspectiva de sua

funcionalidade. A gramática é o sistema lingüístico que faz as ligações entre

as escolhas significativas derivadas das funções lingüísticas, realizando-as

numa estrutura unificada.

Como neste estudo busco analisar meus dados sob o viés da Análise de

Discurso Crítica, proposta por Fairclough, 1989; Resende e Ramalho, 2006, é

importante também considerar alguns conceitos teóricos da Gramática Sistêmico-

Funcional (Halliday, 2004), para melhor enriquecer a análise. Porém, proponho

deter-me, apenas, na metafunção interpessoal (pronomes) e na metafunção

ideacional (processos), com base em Papa (2008, pp. 41-9).

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CAPÍTULO 2

O CAMINHO PERCORRIDO Este capítulo divide-se em duas partes. Na primeira, explico como fiz a

pesquisa, incluindo a contextualização do surgimento do objeto de estudo, uma

rápida descrição dos atores da pesquisa, a explicação de como se davam nossos

encontros e uma reflexão em que sugiro as conversas colaborativas como uma

alternativa para uma formação crítico-reflexiva de professores de inglês. Na segunda

parte, falo sobre a Análise de Discurso Crítica como ferramenta para a análise do

discurso dos professores participantes do grupo de estudos.

2.1. Conversas colaborativas: um caminho para a formação crítico-reflexiva de professores

O presente trabalho é de cunho qualitativo (Bauer, Gaskell & Allum, 2002),

uma vez que busca fazer descrição e interpretações de uma realidade social

específica, que é a formação continuada de professores de língua estrangeira, com

base na análise discursiva crítica de textos produzidos por professores de escolas

públicas (transcrições de entrevista e conversas colaborativas). A escolha pela

pesquisa qualitativa se dá devido à natureza social do objeto de estudo, sendo essa

abordagem a mais apropriada para o foco que quero dar ao trabalho. Esse tipo de

pesquisa é o mais utilizado nos trabalhos na área de Lingüística Aplicada (Moita

Lopes, 2006), ciência que se ocupa de explicar a linguagem em uso.

Souza (2007), com base na teorização de Pimenta (2005), adota o modelo de pesquisa colaborativa denominado de pesquisa-ação crítico-colaborativa. Neste, há momentos em que os sujeitos da pesquisa se reúnem com o objetivo de discutir o papel do professor, partilhando conhecimentos e propondo mudanças diante das realidades que geram insatisfação aos membros do grupo (Souza, 2007, p. 33). Souza (2007), ancorada no que chama de teoria crítica, para a qual a

linguagem é vista como prática social, em que os conceitos de ideologia e poder lhes

são inerentes, atribui ao pesquisador a função de colaborar com as professoras (no

caso específico de meu trabalho), no sentido de motivar uma reflexão que possa

fazê-las tomar consciência quanto às possibilidades de transformação das ações

dos sujeitos em seus espaços de trabalho. Essa colaboração, segundo a autora, se

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daria por meio do fornecimento de subsídios teóricos que possibilitem a reflexão

frente às realidades vividas no contexto escolar, conectado ao contexto social

macro.

Citando Pimenta (2005), que por sua vez se baseia em Kincheloe (1997),

Souza (2007, p. 34) salienta que a pesquisa colaborativa crítica não pode se limitar

apenas a compreender o mundo da prática escolar, mas deve, sim, preocupar-se em

colaborar para que a prática seja melhorada, no sentido de levar à emancipação dos

sujeitos. É através da reflexão crítica que os professores podem descobrir aspectos

da ordem social que contribuem para que situações de desigualdade se instalem e

se mantenham, estando refletidas no contexto escolar.

A pesquisa crítica deve também contribuir no sentido de buscar alternativas

para que se lute pela diminuição das injustiças sociais. É nessa direção que esta

proposta de pesquisa se insere. Ou seja, além de buscar perceber se as professoras

que participam do grupo de estudos na escola Delta10 continuam ou não

reproduzindo o discurso de que ‘a escola pública não é lugar para aprender/ensinar

inglês’, tem o propósito, também, de fazer com que todos juntos, incluindo este

pesquisador, passemos a construir propostas de ações para serem implementadas

no contexto da escola, a fim de promover mudanças significativas para que os

alunos das classes menos favorecidas possam ter acesso a um ensino de qualidade,

considerado um bem cultural de suma importância no momento histórico em que

vivemos.

Em conformidade com Souza (2007), entendo que a pesquisa colaborativa,

baseada na perspectiva crítico-reflexiva, pode contribuir significativamente para a

transformação da realidade das escolas. Nas universidades, parece-me que as

discussões sobre a formação crítico-reflexiva de professores, como sugerido por

Pimenta (2002), estão tomando corpo, o que pode levar, sem sombra de dúvidas, à

transformações curriculares imprescindíveis para que se possa formar professores

dentro dessa nova postura. Em relação aos professores em serviço, vejo na

formação de grupos de estudos, em que se realizam conversas colaborativas, um

caminho muito frutífero na direção da tomada de consciência sobre a importância de

um comprometimento de ordem política por parte dos professores, que pode

contribuir para as mudanças que queremos.

10 Os nomes da escola e das professoras participantes do grupo de estudos são fictícios.

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Como sugerido por Oliveira (2006, p. 66), no que ela prefere chamar de

sessões colaborativas, o pesquisador se coloca como alguém que tem mais

familiaridade com o aporte teórico-crítico da formação docente, intervindo no grupo

sempre que necessário, de forma a provocar a reflexão e debate em relação à

teoria-prática de maneira crítica e contextualmente situada.

Nas reuniões realizadas na escola foi possível considerar os diferentes

olhares reflexivos das professoras para a questão ideológica e de relações de poder,

presentes nos discursos que circulam na escola e na sociedade. Os

questionamentos que fazíamos, quase sempre, eram para fazer repensar os

discursos que atuam a favor de grupos dominantes.

2.2 Contextualizando a pesquisa

A pesquisa se deu com a participação de três professores de escolas

públicas11: Vitória, Eduarda e este pesquisador. Formamos um grupo de estudos que

se encontra, semanalmente, na escola estadual Delta, localizada na região central

de Cuiabá-MT. O grupo de estudos já existia há algum tempo quando iniciei minha

investigação e, inclusive, a professora Vitória realizou seu trabalho de mestrado

utilizando-se de dados recolhidos nas conversas colaborativas desse grupo. Foi a

mesma professora quem me convidou a fazer parte do grupo e, também, realizar

meu trabalho de colaboração com o as professoras participantes.

Um dado importante é que ambas as professoras são ligadas ao projeto

“Resignificando a aprendizagem de língua estrangeira: um projeto de ensino das

quatro habilidades comunicativas”, criado e implantado na escola Delta em 2000. A

professora Eduarda é professora na escola e atua no projeto. A professora Vitória,

como membro do grupo e pesquisadora, contribuiu na implementação e luta pela

manutenção do projeto sempre que ele era ameaçado pela Secretaria de Educação

de Mato Grosso (SEDUC). O projeto ao qual me refiro tem a importância de

representar, a meu ver, uma manifestação de resistência por parte dos professores

ao discurso hegemônico de que não se pode aprender/ensinar inglês na escola

pública.

11 Cabe aqui salientar que havia outras duas professoras que também faziam parte do grupo: Lavínia e Amanda. Contudo, estas compareciam esporadicamente, e nos dias em que Amanda se fazia presente preferia não gravar as reuniões, pois ela não se sentia à vontade para participar.

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O projeto é criado diante da inquietação de um grupo de professores que viam na mudança de abordagem de trabalho com as línguas estrangeiras uma possibilidade de avanço em termos de qualidade de ensino, abandonando práticas puramente gramaticalistas e adotando o trabalho com as quatro habilidades lingüísticas. Tendo como foco o ensino médio, criaram-se três níveis de proficiência, tendo as línguas inglesa e espanhola como opções para os alunos.

Ao escolher uma das línguas, os alunos são submetidos a um teste de nivelamento, o que significa que um aluno da segunda série do ensino médio não necessariamente fará parte do grupo de nível 2, mas, sim, daquele em que seu nível de proficiência mais se aproximar. As aulas do projeto acontecem em horário oposto ao de freqüência dos alunos para as demais disciplinas, ou seja, para os que estudam no turno matutino, as aulas de língua estrangeira acontecem à tarde, havendo, ainda, horários especiais para os alunos que trabalham. Um ponto interessante é a preocupação que existe com a progressão dos conteúdos de um nível para o outro nesse projeto, fator deficiente e que gera muita insatisfação no ensino de línguas estrangeiras na escola regular, como apontado pelas professoras nas gravações.

Para o projeto “Resignificando a aprendizagem de língua estrangeira: um

projeto de ensino das quatro habilidades comunicativas” foram disponibilizadas duas

salas na escola Delta: uma para a disciplina de língua inglesa e outra para a língua

espanhola. As salas são bastante organizadas, amplas, com carteiras dispostas em

semicírculo, sendo também climatizadas. As paredes são decoradas com quadros,

cartazes e figuras que trazem textos na língua estrangeira ali ensinada. Há um

aparelho de som e retroprojetor exclusivo para cada sala, além de armários

embutidos nos quais os docentes guardam materiais como dicionários, revistas, lápis

de cor, entre outros que são utilizados nas aulas.

O ambiente da sala de aula, os materiais didáticos disponíveis e a

organização das turmas por níveis de proficiência propiciam uma melhor qualidade

de ensino e já têm surtido bons resultados, conforme afirmado pela professora

Eduarda em um de nossos encontros, no qual ela cita uma das alunas que,

estudando inglês apenas no projeto, ficara entre as finalistas num concurso para

embaixador mirim, promovido pela embaixada americana, o que exigia como

requisito um domínio razoável da língua inglesa.

As professoras acreditam no projeto, vêem resultados positivos. Outros

membros da comunidade escolar, principalmente os alunos, reconhecem a

importância e defendem a continuação do projeto. Porém, acredito e quero mostrar,

por meio da análise crítica do discurso das professoras, que elas ainda continuam

reproduzindo o discurso de que a escola pública não é lugar para se

aprender/ensinar inglês. Isso se daria por força da hegemonia de tal discurso, no

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conceito defendido por Gramsci (na interpretação de Chauí, 1983). Dessa forma, é o

papel da pesquisa colaborativa conscientizá-las, com vistas à mudança do discurso,

que contribui, também, para a mudança da prática social, fazendo-as avançar no

ensino eficaz e emancipador de língua inglesa na escola.

Devo ressaltar, aqui, que sempre me coloquei na posição de “mais um

membro do grupo”, que ouvia a opinião delas, mesmo que fosse contrária à minha,

predominando sempre um clima de cooperação. Não deixava de expor meus

argumentos, evidentemente, o que era recebido por elas da mesma maneira

amistosa. Tal relação, acredito, era possibilitada pela atmosfera de amizade,

respeito e confiança entre os membros, que nos permitia um debate aberto e livre.

2.3 Os professores: quem são?

Professora Eduarda - tem 47 anos e atua como professora na rede estadual de

ensino em Mato Grosso há sete anos. É graduada em Letras (português-inglês) e

especialista em Lingüística Aplicada pela Universidade Federal de Mato Grosso.

Tem experiência com o ensino de língua inglesa em institutos de idiomas (foi

proprietária de um), escolas regulares privadas e no ensino superior. Ela é

professora na escola Delta, que serviu de palco para nossos encontros. A professora

afirma gostar muito de trabalhar na rede pública de ensino e faz aquilo que entende

ser possível na escola. Ela acredita que o ensino de inglês deve abrir horizontes aos

alunos, permitindo-lhes vislumbrar um futuro melhor.

Professora Vitória - com 42 anos, atua na rede estadual desde 1986, numa escola

situada no centro de Várzea Grande-MT. Ela também é graduada em Letras

(português-inglês) e especialista em Lingüística Aplicada pela UFMT, e ainda,

mestre em estudos de linguagem pela mesma universidade. A professora Vitória

também tem experiência em cursos livres de idiomas, escolas regulares privadas e

no ensino superior. Gosta do trabalho na escola pública pela liberdade de escolha

da abordagem e conteúdo de trabalho com a língua estrangeira. Porém, sente a

carência do espírito de equipe na escola em prol do ensino de línguas estrangeiras.

Este pesquisador - 23 anos de idade e uma experiência ainda inicial na escola

pública, lotado num estabelecimento de ensino da periferia de Cuiabá-MT. Graduado

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em Letras (português-inglês) pela Universidade do Estado de Mato Grosso.

Trabalhei em institutos de idiomas e atuo no nível superior. Acredito no trabalho

desenvolvido pelas professoras e, como elas, luto para que a formação continuada

seja oferecida em todas as escolas públicas, com uma maior preocupação em

relação à formação de cidadãos conscientes, que não sejam passivos e reféns de

um sistema de organização social que procura usurpar-lhes o direito à dignidade,

mas disponham das ferramentas necessárias para alcançar sua emancipação

pessoal e de seu grupo.

2.4 As reuniões

Para o desenvolvimento de minha pesquisa, em 2007, juntei-me ao grupo de

estudos que já acontecia na escola Delta e passei a atuar como membro ativo.

Desde o início de minha participação, deixei bem claro que meu objetivo ali, além de

contribuir com as discussões, era também realizar minha pesquisa na escola,

coletando material para o desenvolvimento de meu projeto.

Nossos encontros aconteciam semanalmente12 (nas quintas-feiras), na grande

maioria das vezes, sendo realizado nas dependências da escola Delta, onde é

desenvolvido o projeto “Resignificando a aprendizagem de língua estrangeira: um

projeto de ensino das quatro habilidades comunicativas”.

O início das reuniões dava-se em torno das 17:30h e costumava durar até por

volta das 19:00h. Nas primeiras três reuniões em que participei, mantive uma

postura de maior escuta, até por conta da pouca intimidade com os membros do

grupo, e também, para observá-las mais atentamente. Só no final do terceiro

encontro solicitei às professoras se poderiam me conceder uma entrevista na

semana seguinte, ao que elas concordaram.

Tínhamos sempre um texto teórico13 para a leitura em casa, antes do

encontro, sendo que esse texto servia de base para as nossas discussões. Nem

sempre todos liam os textos, por falta de tempo, como justificavam, o que nos

forçava a ler o texto durante as reuniões. Em geral, um texto era utilizado para cada

12 Houve alguns cancelamentos de reuniões do grupo por conta de feriados prolongados e compromissos por parte dos membros. 13 À exceção do texto 7 que se trata da reportagem de um jornal gaúcho de distribuição nacional para assinantes.

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reunião, mas houve vezes em que muitos assuntos foram suscitados em razão da

leitura e nos foi necessário mais de um encontro para esgotar os temas. Nossas

conversas giravam não somente em torno do texto especificamente, havendo

contribuições entre os membros no que tange a metodologias de trabalho, posturas

e atitudes assumidas diante de certas situações, ou mesmo uma espécie de

consultoria em que os membros levavam seus problemas do dia-a-dia de sala de

aula para que os outros pudessem sugerir soluções.

Os textos apresentados no quadro 1, abaixo, foram os selecionados para o

estudo e discussão com as professoras:

Quadro 1: relação de textos para estudo e discussão com as professoras. Textos estudados 1 (MELLO, H. A. B., 2000) O que está por trás da ação do professor em

sala de aula? 2 (COX, M. I. P. & ASSIS-PETERSON, A. A., 2005) O professor de inglês

entre a alienação e a emancipação. 3 (DOURADO & OBERMARK, 2001) Uma reflexão sobre Parâmetros

Curriculares Nacionais de línguas estrangeiras e transposição didática. 4 (SILVA, W. E., http://www.filologia.org.br/soletras/8sup/2.htm) Discurso e

ideologia na aprendizagem do inglês como língua estrangeira. 5 (COSTA, R. F. C., 2005) Língua inglesa: análise de contextos que

envolvem seu ensino/aprendizagem nas escolas públicas. 6 (GASPARINI, E. N., 2005) Sentidos de ensinar e aprender inglês na

escola de ensino médio e fundamental – uma análise discursiva. 7 Poder, ideologia e democracia. Mundo Jovem, n. 223, p. 7 – nov. 2003.

Além desses textos, duas das reuniões foram dedicadas à leitura e

comentários com relação ao texto, especialmente a seção de análise, da dissertação

da professora Vitória, sendo esta atividade parte ainda da execução de sua

pesquisa. Outro encontro foi dedicado à realização de uma entrevista com as duas

professoras para que, com base em suas respostas, eu pudesse fazer um primeiro

exercício de análise do discurso delas. Foram doze o número de encontros do grupo

em que participei.

Os textos para a leitura eram sugeridos por algum membro do grupo. Tratam a respeito da auto-estima do professor, a abordagem de ensino e a concepção de linguagem que embasa sua prática, entre outros temas e, ideologia, sendo que os que tratam deste último assunto foram sugestões minhas, já que é do interesse de minha pesquisa, como elas bem sabiam. As professoras consideraram abordar este tema algo muito pertinente e que lhes traria reflexões importantes.

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Um clima de amizade e confiança unia os elementos do grupo. Era muito

comum que problemas pessoais dos membros fossem trazidos, e nesses instantes,

saíam de cena os professores e entravam os amigos. Por duas vezes, reuniões do

grupo aconteceram na casa da professora Eduarda. Passamos a nos conhecer mais

a cada encontro. Nossas relações não se restringiram somente àqueles encontros

na escola. O clima de confiança que havia entre nós foi de suma importância, como

Bailey et al. (1998, p. 544) salientam, em relação a um grupo de colaboração que os

autores mantinham, semelhante ao nosso, na escola Delta. Segundo esses

estudiosos, o clima de amizade permite a criação de uma comunidade em que há

um compromisso mais que profissional entre os membros.

Nossas discussões se deram em sessões reflexivas ou conversas

colaborativas. Por sessões reflexivas entendemos, com Magalhães (2002, 2004

apud Souza, 2007, p. 23), que se trate de um contexto em que professores e

pesquisadores negociam a problematização das questões a ser discutidas, refletindo

criticamente sobre as ações em sala de aula e a relação que tais ações têm com o

contexto social macro. As conversas colaborativas (Bailey et al. 1998) têm a mesma

natureza das sessões reflexivas e, por vezes, fazemos uso de um ou outro termo,

como possuindo o mesmo valor.

2.5 Análise de Discurso Crítica: ferramenta de análise

A opção pela ADC se justifica pelo fato de esta teoria/método de análise

discursiva estar intimamente ligada à Teoria Social Crítica e, dessa forma, me

possibilitar olhar para o discurso dos professores participantes das conversas

colaborativas promovidas na escola pública, atentando para as ideologias que

atravessam nossos discursos. Com vistas à conscientização de possíveis

reproduções de discursos hegemônicos, que promovem a exclusão dos alunos,

propõe-se a luta contra esses discursos, no intuito de formar contra-discursos que

nos levem também a uma prática social emancipatória e de resistência, o que pode

forçar mudanças que propiciem melhorias nas condições de ensino/aprendizagem

de inglês na escola pública.

Hornick (2006) faz também opção pela ADC para a análise discursiva que

realizou em seu trabalho. Ela distingue a ADC da AD traçando um paralelo (tendo

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Foucault como representante da AD e Fairclough para a ADC) em que Foucault, em

seus trabalhos, lidaria com um tipo específico de discurso: o discurso político e em

textos escritos. Fairclough estudaria todos os tipos de discurso, como questões

relacionadas ao racismo, discriminação de diversos tipos, o controle e manipulação

institucional, a violência, identidade nacional etc. Além disso, não só o texto escrito é

objeto de análise, mas também o discurso falado, como é o caso de nosso corpus de

análise: as conversas colaborativas de um grupo de professores de inglês de

escolas públicas.

Para a análise que vou empreender, farei uso da Análise de Discurso Crítica (ADC), no modelo tridimensional apresentado por Norman Fairclough, em 1989 e, aprimorado em 1992. Neste modelo, a proposta é de que cada evento discursivo seja analisado sob três ângulos ou dimensões que se complementam: como texto, prática discursiva e prática social, o que significa, respectivamente, a descrição, interpretação e explicação do texto. Procurando ser descritiva, interpretativa e explicativa, a ADC difere-se de outras abordagens de análise do discurso que enfatizam a descrição (e.g. lingüística textual) ou a explicação (e.g. trabalhos de Foucault) (Meurer, 2005, p. 94-5).

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Analisar o discurso como texto significa atentar para a forma, contudo, sem separá-la do conteúdo. Para Fairclough (2001, p. 103), a análise do texto engloba quatro itens: vocabulário, gramática, coesão e estrutura textual. O estudo de vocabulário trata da relação entre palavras e sentidos, principalmente das palavras individualmente; a gramática lida com as palavras organizadas em orações ou frases; a coesão foca a ligação entre as orações e frases; e, a estrutura textual se preocupa com a organização de larga escala dos textos, com sua ‘arquitetura’, seu planejamento e ordem de apresentação dos elementos: capítulos, seções etc.

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No nível do texto, farei uso da Gramática Sistêmico-Funcional, de Halliday (1994), já que a ADC baseia-se na concepção funcionalista da linguagem, e a compreensão das implicações de funções sociais na gramática é de suma importância quando se relacionam linguagem e sociedade (Resende & Ramalho, 2006, p. 56). As metafunções interpessoal e ideacional receberão maior atenção, por conta da carga ideológica que pode ser depreendida do grau de compromisso com as proposições enunciadas pelos atores sociais, bem como por meio das representações que constroem, o que pode ser percebido através da análise dos pronomes e dos processos (verbos da gramática tradicional) empregados no discurso.

Na dimensão da prática discursiva, deve-se atentar para os processos de produção, distribuição e consumo de textos, sempre levando em consideração os fatores sociais que influenciam a natureza desses processos. Quando se fala em produção, deve-se observar que os textos são produzidos em contextos sociais específicos. É interessante para a análise verificar quem produz o texto. Há contextos, como os jornais, por exemplo, em que textos coletivos são apresentados como sendo construídos por um único jornalista. Além disso, do ponto de vista crítico, acredito que os meios de comunicação sejam ligados a instituições ou sujeitos e que trabalhem na direção de apoiar a disseminação das idéias destes.

Na escola também é importante compreender quem são as professoras com as quais conversei, pois entendo que isso ajude a analisar o ponto de vista que elas assumem e que outros discursos elas ressoam. Com relação à distribuição, esta pode ser simples ou complexa. Simples, como no caso de uma conversa casual, que pertence apenas ao contexto imediato do momento em que ocorre. Um exemplo de distribuição complexa é o dos textos produzidos por líderes políticos, que são distribuídos em diferentes domínios institucionais, com seus padrões próprios de consumo e rotinas também próprias para a reprodução ou mesmo transformação dos textos. O consumo de textos tem a ver com o trabalho interpretativo que recebem e com os modos de interpretação disponíveis (e.g. não se lê uma receita de bolo da mesma forma que um quadro de Monet). Dessa forma, os textos podem ser consumidos diferentemente em contextos sócio-históricos diferentes (cf. Fairclough, 2001, p. 107).

Fairclough (2001), quando fala da dimensão da prática social, o faz explorando os conceitos de ideologia e hegemonia, o que é muito pertinente para a configuração que dei a meu trabalho. Para Resende & Ramalho (2006), compreender o uso da linguagem como prática social, implica entendê-lo como um modo de ação historicamente situado, que é constituído socialmente da mesma forma que é constitutivo de relações sociais, identidades sociais e sistemas de conhecimento e crenças. Isso está intimamente ligado ao conceito que Fairclough (2001, pp. 91-2) tem de discurso. Sendo assim, o discurso pode contribuir para reproduzir, manter ou transformar uma realidade social.

É importante ressaltar que, como afirmam Resende & Ramalho (2006, p. 29), a separação dessas três dimensões serve ao propósito de organização da análise, podendo, não necessariamente, aparecer assim, separadas, mas, dispersas (Chouliaraki & Fairclough, 1999 apud Resende & Ramalho, 2006, p. 28).

Para o trabalho de análise crítica do discurso dos professores participantes, lançarei mão de gravações transcritas de três de nossos encontros, que ocorreram em momentos diversos. Isso inscreve minha pesquisa numa metodologia denominada triangulação, o que confere maior qualidade e confiabilidade ao trabalho (Nogueira, 2007, p. 55; Costa e Silva, 2005, p. 60; e 2008, p. 136). Para

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Olabuénaga (2003, p. 112 apud Costa e Silva, 2005, p. 60), a triangulação “é um tipo de controlo da qualidade que, em princípio, deveria ser aplicado a todo o tipo de investigações qualitativas”.

A primeira transcrição refere-se a uma entrevista realizada no final do mês de junho de 2007. A segunda ocorreu no final de novembro do mesmo ano. E a terceira conversa, em abril de 2008. Temos, dessa forma, três momentos com ligeira distância de tempo entre um e outro, o que nos permitirá verificar se houve um progresso em termos de ampliação da visão crítica por parte dos membros do grupo e se isso gerou uma mudança de discurso e de prática social por parte dos professores.

Utilizando o método tridimensional para a análise discursiva, proposto por Fairclough (2001), pretendo identificar as marcas discursivas presentes nos enunciados dos professores participantes do grupo de estudos. O meu objetivo é desvelar quais ideologias estão atravessadas nos discursos das mesmas, bem como identificar os modos de operação da ideologia. Busco verificar se os nossos discursos reproduzem ou não o discurso que julgo ser hegemônico, de que a escola pública não é lugar para se aprender inglês, legitimando essa prática social.

Quero fazer uma ressalva com relação à identificação dos modos de operação da ideologia (Thompson, 1995 apud Resende & Ramalho, 2006, pp. 50-1), que não é feita na primeira seção do capítulo terceiro, em que analiso uma entrevista concedida a mim pelas professoras. Isso, porque quis trazer a análise desse evento discursivo com a configuração que teve quando a realizei. Naquele momento, ainda não tinha entrado em contato com as teorizações de Thompson (1995) a esse respeito. Já na análise das duas conversas colaborativas aqui apresentadas, os modos de operação da ideologia recebem especial atenção, juntamente com os processos e pronomes da Gramática Sistêmico-Funcional, de Halliday (1994).

A seguir, apresento, com base em Fairclough (2001), um resumo dos elementos metodológicos de análise:

Figura 2 – Resumo dos elementos metodológicos de análise.

WYX[Z]\_^:`Eacb�de`f^>a]g

Modos de operação da ideologia: Legitimação Dissimulação Unificação

Fragmentação Reificação

PRÁTICA DISCURSIVA

Interdiscursividade

hji�klh�mGramática

Sistêmico-funcional

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CAPÍTULO 3 ANÁLISE DE DADOS

Nesta seção, passo a analisar os dados coletados em minha pesquisa,

através de transcrições de entrevista e de conversas colaborativas, feitas com as

professoras participantes do grupo de estudos na escola Delta.

Está dividida em duas grandes partes. Na primeira, faço uma análise da

entrevista que realizei com as duas professoras participantes do grupo de estudos.

A segunda parte é também subdividida em duas seções. Na primeira, procuro me

concentrar na análise de uma conversa colaborativa, cuja temática era a

interpretação que dei a alguns excertos das falas das docentes na entrevista

realizada anteriormente, no intuito de verificar como elas se posicionavam diante da

análise discursiva crítica que fiz de suas falas. E, na segunda e última parte, analiso

uma conversa colaborativa realizada em abril de 2008, apresentando algumas

mudanças alcançadas durante esse processo de estudos sobre a questão da

ideologia e o ensino de língua inglesa na escola pública.

nlo&p�orqtsvulw�xNyz|{~}��[s��5��z���xNy��<}

A entrevista utilizada por mim neste estudo possibilitou a existência dos

excertos aqui analisados, ocorrida em 28/06/2008, nas dependências da escola

Delta, e teve por objetivo verificar como a ideologia é refletida nos discursos das

professoras sobre o ensino de inglês na escola pública e no centro de idiomas.

Como já mencionei anteriormente, parto do pressuposto de que existe um discurso

naturalizado em nossa sociedade de que as escolas de idiomas seriam o lugar por

excelência para o aprendizado de uma língua estrangeira, enquanto que na escola

pública, o trabalho com línguas estrangeiras seria ineficaz.

A seguir, apresento a análise de alguns excertos das falas das professoras,

agrupados por temáticas de maior relevância na entrevista.

3.1.1 Não existe um lugar para se ensinar/aprender inglês

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Na entrevista feita com as professoras, percebe-se algumas marcas

lingüísticas de cunho ideológico que ajudam a sustentar discursos hegemônicos. Ao

perguntar às professoras se haveria um lugar ideal para o aprendizado da língua

inglesa, Vitória, em concordância com Eduarda, defende que esse lugar ideal não

existe:

Excerto 1

(1)Arivan: Qual é o melhor lugar na opinião de vocês para se aprender a (2)língua inglesa? (3)Vitória: Posso falar mesmo? (Risos) (4)Arivan: Claro! (risos) (5)Vitória: Eu acho assim: em casa, se você tiver um objetivo... O que faz (6)com que a pessoa não aprenda eu acho que é a própria vontade, o (7)querer aprender e o querer aprender está muito atrelado a para quê (8)aprender. Então quando você quer aprender e você tem o para que (9)aprender você aprende até sozinha, independente do lugar, qualquer (10)lugar. (11)Eduarda: Não é o lugar. (12)Vitória: Na sua casa, com o livro didático sozinho, mesmo que seja um (13)livro didático nacional com aquelas fitinhas que vêm (olha o termo, (14)fitinhas), né, que vêm, eu acho que você vai embora. (15)Eduarda: Não é o lugar, é o querer.

As professoras enfatizam que não é o lugar o determinante na tarefa de

aprendizado da língua inglesa e, sim, o querer, atrelado a um objetivo, que seria

fruto de uma motivação, um para quê. É ressaltado um caráter auto-didático do

aprendizado, em que mesmo sendo o material didático não muito bom, se pode

alcançar sucesso, sendo a condição apenas a questão de querer aprender. Dessa

forma, a ideologia de que há um lugar ideal para se aprender língua inglesa não faria

efeito, aparentemente, sobre as professoras entrevistadas.

A professora Vitória expressa alto grau de comprometimento com o que

afirma, como se pode perceber pelo uso da modalidade subjetiva eu acho (linhas 5,

6 e 14), no sentido de eu entendo ou penso. Há ainda, a presença dos processos

mentais querer e aprender, como se o primeiro fosse condição para o segundo, e

assim, a sua ausência é que seria a causadora do não aprendizado, desviando a

atenção das condições desiguais entre a classe média e a classe pobre. Isso é

ideologicamente investido, da mesma forma que dizer que ter um para quê o é

(linhas 7 e 8), no contexto em que vivemos, onde muitas das pessoas de classes

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mais baixas não vêem sentido em estudar uma língua estrangeira, por não lhes

parecer ter nenhuma utilidade prática.

3.1.2 Instituto de idiomas: lugar de falar Inglês

Logo após as colocações apresentadas no excerto 1, perguntei como as

professoras viam a prática pedagógica nos cursinhos de idiomas, as quais

conhecem de perto. As professoras afirmam que funciona, mas continuam

destacando o papel fundamental do “querer aprender” por parte do aluno:

Excerto 2

(1)Eduarda: Eu acho... Eu vou voltar na primeira. Funcionam. A prática lá (2)funciona. Mas se o aluno que entra lá também não quer, ele também (3)vai ficar, ele pode passar por um período, porque a gente tem casos de (4)cursos, principalmente nos cursos de idiomas, que as mães mais (5)obrigam. Ele vai passar por aquele período e também não vai (6)consolidar a língua como o outro. Então, não é que não é eficaz. Eu (7)acho que ele funciona sim. Acho que a base do querer aprender é o (8)querer aprender da pessoa. Agora a prática pedagógica do curso... O (9)curso tem um objetivo. E normalmente, se a gente for olhar, é a grande (10)parte que vai pra esse curso, (Vitória tosse) ele também tem um (11)objetivo. Tem aqueles que são obrigados, mas é uma minoria, né?

Eduarda reconhece a eficiência dos cursos de idiomas (linhas 1-2 e 6-7). No

excerto 1, o curso de idiomas nem é mencionado. No excerto 2, ao falar da prática

nesses estabelecimentos, provocada por meu questionamento, a professora procura

dar maior destaque ao querer do aluno, que poderia ser também fator de fracasso

mesmo nos cursinhos. A professora ressalta ainda que esses cursos têm um

objetivo e que, geralmente, quem vai procurá-los também teria, o que seria um outro

fator de sucesso dos cursos.

O processo material funcionar (linhas1, 2 e 7), expresso de maneira tão

assertiva, parece denotar que a professora acredita na eficiência do trabalho

realizado nos institutos de idiomas, porém, é denunciado pelo emprego da

modalidade subjetiva eu acho (linhas 1, 6 e 7), sinalizando dúvida em seu

enunciado. O mesmo discurso do querer atrelado ao aprender se repete aqui, com o

argumento de que mesmo no curso de idiomas, o aluno que não quer não

aprenderia. Contudo, gostaria de trazer o foco para o processo material obrigar,

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empreendido por parte das mães (linhas 4-5), da mesma forma que na linha 11, em

que o sujeito que obrigaria o aluno a aprender inglês está implícito, mas abre

margem para se entender que sejam os pais. Aqui, questiono o ter objetivos (linhas

10-11). Uma criança, suponhamos, talvez não possa ainda distinguir o que ela

precise aprender para o seu futuro acadêmico e profissional, e dessa forma, as

escolhas são feitas pelos pais. Os objetivos a serem alcançados não são do

estudante, são dos pais. Os pais da classe média, que podem pagar pelos cursos de

idiomas, obrigam seus filhos a freqüentar e obter bons resultados nesses cursos, o

que não confirma a questão do querer. Por minha experiência em cursos de idiomas,

posso afirmar que muitos realmente são obrigados a aprende inglês pelos pais,

assim como também português, matemática, balé, e aprendem. A questão é que os

filhos da classe média, gostando ou não, teriam acesso ao bem simbólico língua

inglesa, enquanto que os das classes menos abastadas, não.

Logo depois da fala de Eduarda, transcrita no excerto 2, Vitória intervém, de

súbito:

i�������K�5���

(1)Vitória: Mas lá é um local de falar inglês. (2)Eduarda: E lá é... (Vitória interrompe) (3)Vitória: Então lá tá bem claro: para quê você vai lá? Falar inglês. (4)Então o trabalho foi nosso...

Veja a contradição: ainda há pouco Vitória afirmava que o lugar não

determina a aprendizagem e, sim, o querer. Agora, de maneira bastante assertiva,

declara o centro de idiomas como “local de falar inglês” (linha 1), onde “está bem

claro” (linha 3) a finalidade para a qual se vai a um instituto em que se ensine língua

inglesa, e esse lugar é referido como lá por três vezes apenas neste excerto, o que

evidencia a distância que as professoras sentem entre o curso de idiomas e a escola

pública. A contradição mostra um aspecto fundamental do que Gramsci, na

interpretação de Chauí (1983, p. 97), denomina hegemonia, como sendo a

manutenção das idéias dominantes, mesmo quando se luta contra essa situação. As

professoras, mesmo resistindo, de certa forma, à ideologia, cedem

inconscientemente.

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3.1.3 Instituto de idiomas X escola pública

Quando pergunto se seria possível estabelecer um paralelo entre a prática

pedagógica de ensinar/aprender inglês na escola pública e no instituto de idiomas,

as professoras se mostram bastante crentes de que não se aprende/ensina inglês

na escola pública satisfatoriamente. Com base nas declarações das docentes a esse

respeito (cf. Anexo A, pp. 92-3), apresento um resumo de suas proposições no

quadro 02, que segue:

Quadro 02: Comparação entre a prática pedagógica na escola pública e nos centros de idiomas. INSTITUTO DE IDIOMAS ESCOLA PÚBLICA 01 Têm um objetivo comum a todos Raramente têm um objetivo 02 Professores com boa formação

lingüística e metodológica Professores com deficiência de formação lingüística e/ou metodológica

03 Planejamento O coordenador nem sabe inglês 04 Uma hora e meia de aula A Secretaria de Estado de Educação

nunca promoveu cursos de capacitação docente

05 Uma atividade diferente a cada dez minutos

Duas ou uma atividade diferente por aula

06 Interação entre os alunos em inglês Ensino apenas de metalinguagem 07 15 alunos 35 alunos 08 Professor mais próximo do aluno O aluno é aluno, simplesmente 09 Maior controle por parte do professor 10 Pace da aula é mais rápido 11 Equipamentos 12 Local de falar inglês 13 Acompanhamento, apoio e supervisão

pedagógica

14 Os professores interagem 15 Zelam por um padrão de qualidade 16 O aluno é cliente

O fato de as professoras terem dedicado mais tempo de suas falas (aqui

representado por 16 itens) para mencionar o que se faz no centro de idiomas, já mostra a importância que estes centros de línguas têm para elas. Ambas conhecem bem o trabalho nesses institutos. Vitória, inclusive, menciona, duas vezes, que já trabalhou em escola de línguas e escola pública, simultaneamente, podendo ser isso um recurso para dar-lhe mais autoridade para legitimar sua própria fala. Note-se, também, que quando falam dos institutos de idiomas, as colocações são positivas, ao passo que quando se referem à escola pública, as observações são negativas.

Entendo que é uma noção bastante típica do mundo capitalista o que

implicitamente estrutura a maneira de pensar das professoras a respeito da prática

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pedagógica de ensinar/aprender inglês na escola pública e no curso de idiomas. O

fato de a escola de idiomas ser um negócio, que visa ao lucro, e cujo produto é a

língua que se propõem ensinar, faz com que “zelem por um padrão de qualidade”,

que faça dos “alunos clientes”14 e haja toda uma organização com objetivos bem

definidos e rigorosamente seguidos por todos, com a preocupação de ter no instituto

somente professores com boa formação, sendo as atividades dos docentes

supervisionadas, enfim, todo um conjunto de práticas para que se possa oferecer um

produto com qualidade e pelo qual se possa cobrar um preço alto. Resende &

Ramalho (2006), em uma nota, com base em Harvey (1992), explicam que no novo

capitalismo o foco deixa de estar na produção de bens materiais duráveis e passa

para a produção de serviços, entre eles a educação e a informação, o que me faz

classificar o ensino de línguas em institutos especializados como um fruto desse

novo modelo de produção. Do mesmo modo, Fairclough (2001, p. 25), em

conformidade com Urry (1987), mostra que setores como a educação, a assistência

médica e as artes se viram obrigados a repensar suas atividades como de produção

e marketing de bens de consumo.

Na escola pública, onde o “aluno é o aluno, simplesmente”, “não tem essa

preocupação”15 de se estabelecerem objetivos, de supervisionar o trabalho docente,

de investir em capacitação de pessoal ou em infra-estrutura, de reduzir o número de

alunos por turma, entre outros fatores. As professoras talvez nem percebam, mas o

que entendem como sendo eficaz, que dê certo, seja a escola entendida como

negócio, como uma empresa, na qual existe um investimento com vistas a um

retorno financeiro. Em cursos de capacitação de pessoal em que participei enquanto

era funcionário de um determinado órgão estadual, que visava à educação

profissional, era constante no discurso dos ministrantes dos cursos a fala de que

devíamos atender não ao público, mas aos nossos “clientes” e que essa visão fazia

toda a diferença para que se alcançasse a excelência no atendimento. Quando se

cria uma atmosfera empresarial o trabalho assume um status de seriedade, e todo

esforço é pouco para que o serviço que se presta seja de qualidade e chame a

atenção do consumidor.

Esses encontros reflexivos ou conversas colaborativas (Bailey et al., 1998)

que realizamos, enquanto grupo de professores, também são influenciados por uma

14 As duas afirmações são das professoras entrevistadas. 15 Falas de Eduarda.

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forma de entender o trabalho, não só docente, mas toda forma de atividade na

modernidade tardia, em que a reflexão se faz fundamental na busca de

aprimoramento e qualidade, sempre à luz de novos conhecimentos gerados por

especialistas (Resende & Ramalho, 2006, p. 31).

No excerto apresentado a seguir, Vitória menciona sobre o que os

professores fazem nos cursos de idiomas às sextas feiras:

i�������K�5���

(1)Vitória: Sexta-feira os professores estão lá estudando, planejando, (2)replanejando, entendeu? (3)Eduarda: Há interação entre os professores: o que que você está (4)fazendo? O que, que na escola pública não tem isso. (5)Vitória: Porque zelam por um padrão de qualidade.

Por entenderem a escola pública como um lugar em que não existem

preocupações de mercado é que as professoras vêem que o ensino de língua

inglesa não se efetive de maneira satisfatória. Os processos materiais fazer e

planejar revelam toda a dinamicidade que as professoras querem demonstrar na

rotina de um instituto de idiomas, em contraposição à escola pública, para a qual

elas negam a existência dessas práticas.

Os elementos do discurso apresentados e analisados demonstram que as

professoras estão convencidas de que não se aprende inglês na escola pública.

Mesmo tendo feito a experiência de trabalhar com atividades de cursinho de idiomas

na escola pública e, constatado que dão certo e que os alunos gostam e se

motivam, deixam de levar tais atividades, pois não vêem razão para ter esse

procedimento: “Pra quê fazer isso?” Eduarda, nas últimas falas da entrevista, dá a

cartada final ao identificar o aluno da escola pública como “aluno, simplesmente”, o

que leva tudo a “ficar perdido”. Com essa afirmação final de que tudo está perdido,

expressa-se a descrença de que o ensino de inglês na escola pública possa dar

certo.

Da análise do discurso das professoras nessa entrevista, concluo que elas

estão sob o domínio de um discurso hegemônico que quer manter, por meio da

ideologia, a naturalização da crença de que não se aprende inglês na escola pública,

o que faz com que toda a comunidade escolar se acomode e não lute por melhores

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condições de ensino/aprendizagem. Com isso, o aprendizado da “língua da

globalização” fica restrito aos que podem pagar por um curso em institutos de

idiomas. Acredito que a mudança de mentalidade, por meio do desvelamento da

ideologia que se camufla por trás do discurso corrente, pode levar à mudança, pois

faria ver que a realidade da escola pública pode ser diferente se a sociedade se

organizar e exigir melhoras. É preciso que se saiba questionar mais as realidades

vividas, suspeitando dos discursos de naturalização das ideologias de que ‘sempre

foi assim’, ou de que ‘não tem jeito’. É preciso aprender a sempre querer saber o por

quê das coisas.

Fairclough (2001, p. 292) sugere que se crie uma Consciência Lingüística

Crítica (CLC) na educação lingüística de todos os alunos. Nesse caso, em particular,

como meu trabalho lida com a questão da formação de professores, acredito que

conscientizando criticamente os professores a respeito da luta de poder que se

estabelece por meio da linguagem, já que esse é o meio pelo qual nos

relacionamos, poderei atingir um grupo maior que recebe influência desses

professores com os quais trabalho, e dessa forma, se possa mudar o discurso sobre

o ensino/aprendizagem de inglês na escola pública, e assim, mudar também a

prática social por meio de uma prática discursiva emancipatória.

Entendo que a ideologia da classe dominante, de que na escola pública não

se pode aprender/ensinar inglês, está na base do fracasso no trabalho com a

disciplina, uma vez que leva os atores do processo a acreditarem-se incapazes, por

vários motivos, como a carência material, por exemplo, e não perceberem que se há

esta e outras carências, é porque não é interessante para os dirigentes do país,

estado ou município fazer com que esses problemas sejam sanados e o ensino da

língua inglesa nas escolas públicas seja bem sucedido. Ficam, dessa maneira,

alienados diante dos problemas sem perceber sua real natureza.

Isso legitima o poderio capitalista, ou melhor, da classe que detém o capital

de duas formas. A primeira, colocando em situação privilegiada aqueles que podem

pagar por esse bem simbólico, que é a língua inglesa, e que só poderia ser

aprendido num centro de idiomas, mediante o pagamento de mensalidades e

compra de material didático especializado. A outra forma de legitimação do poderio

econômico é o fato de essa crença favorecer os institutos de idiomas que, antes de

qualquer coisa, são empresas e visam ao lucro.

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As duas próximas seções de análise foram escritas com base na transcrição

de duas conversas colaborativas realizadas por mim e as professoras protagonistas

deste estudo. Nelas, identifico os modos pelos quais a ideologia atua (Thompson,

1995 apud Resende & Ramalho, 1996, pp. 50-1) de forma a contribuir para a

manutenção de relações de dominação em favor dos grupos dominantes da

sociedade, bem como, na última seção, algumas mudanças discursivas conseguidas

por meio do trabalho de reflexão crítica. Ao final das seções, apresento um quadro-

resumo dos modos de operação da ideologia, identificados nos dois eventos

discursivos (conversas colaborativas) aqui analisados, tecendo alguns comentários a

respeito do que pode sinalizar a presença de tais modos de operação ideológico no

discurso de professores na escola pública.

3.2 Análise da conversa colaborativa 1: resignificando nossos

discursos

A análise apresentada a seguir mostra o resultado de nossa conversa

realizada em 29/11/2007. Procurei mostrar às professoras a interpretação que fiz de

seus discursos sobre a entrevista que me concederam (cuja análise apresentei

anteriormente). O meu objetivo era provocar algum tipo de reflexão acerca das

questões ideológicas que estão impregnadas nas práticas sociais da escola,

principalmente as práticas de criação, manutenção ou mesmo transformação de

realidades desiguais.

3.2.1 O lugar para se aprender/ensinar inglês

Para ilustrar meu posicionamento frente à questão de serem os centros de

idiomas “o lugar” para se aprender inglês, em detrimento da escola regular,

notadamente a pública, apresento o seguinte excerto de uma fala minha:

i�������K�5��� (1)Arivan: [...] Então essas pessoas devem ser, né, as pessoas da escola (2)pública, então, como são pobres, são mão de obra barata, tem que (3)continuar mão de obra barata e aprender língua estrangeira poderia

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(4)abrir muito a cabeça das pessoas, poderia, né, promover uma (5)ascensão social que não é interessante para esse sistema. Então (6)basicamente, a idéia central é essa. A ideologia, que a ideologia da (7)classe dominante, que ela meio que impõe para a sociedade, que é que (8)não se aprende, e que favorece o capitalismo, vamos dizer assim, de (9)duas formas. Primeiro, por que? Quem vai poder aprender inglês? Só (10)quem pode pagar por um cursinho de idiomas que é caro e que tem (11)tudo mais. E de outra forma, o cursinho de idiomas é uma empresa, (12)antes de qualquer coisa. Então, favorece também o capitalismo nessa (13)outra perspectiva, de duas formas.

Neste excerto, procuro mostrar, através de processos relacionais de

identificação (ser, são – linhas 1 e 2), pessoas que não estariam numa situação de

pobreza e de exploração de seu trabalho, mas que seriam fadadas a permanecer

nessa situação, como se tal fosse eterna. Esse recurso ajuda a reforçar a idéia que,

ideologicamente, se opera para que as coisas sejam assim mantidas. Ao utilizar a

modalidade, de alta obrigação, no enunciado “tem que continuar mão de obra

barata” (linhas 2 e 3), enfatizo a força que se emprega na manutenção do status

quo, enquanto que ao sinalizar que o aprendizado “de uma língua estrangeira

poderia abrir muito a cabeça das pessoas” e “poderia promover ascensão social”

(linhas 3, 4 e 5), a utilização de modalidade na forma de poderia, dá uma idéia de

possibilidade, em contraste com tem que.

Com relação a essa minha explanação, as professoras falam da realidade de

suas escolas, localizadas nas regiões centrais de Cuiabá e Várzea Grande, e que

não atenderiam a um público de classe social menos abastada, o que não

confirmaria minha interpretação de que os pobres estariam sendo excluídos do

acesso a esse bem simbólico que é a língua inglesa:

Excerto 2 (1)Eduarda: Que eu vejo numa escola como a Delta, que o cliente da (2)escola pública não é esse, essa pessoa que você comentou. É, uma (3)classe monetariamente inferior. Eu vejo os clientes, porque a escola, a (4)Nívea é uma, está no centro da cidade, né. Talvez na periferia seja isso (5)uma verdade. Aqui não é. E eu percebo claramente. Todos os alunos (6)aqui têm celulares talvez melhores do que os que vocês têm.

i�������K�5��� (1)Vitória: É como o Altamira. De manhã, no Altamira, sem mentira (2)nenhuma, os alunos chegam de van e vem buscar de van. (3)Arivan: Que é centro, também?

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(4)Vitória: Que é centro. Pais passam com um carro novo, deixa o filho e (5)o pai vem buscar. Ora, para o pai vir trazer e buscar é porque a (6)situação social não é a do proletariado, principalmente assim, matutino é (7)mais evidente, o vespertino um pouco e o noturno fica o trabalhador.

Na fala de Eduarda (excerto 2), percebe-se convicção no que ela afirma por

meio da utilização do pronome eu, acompanhado do processo mental de cognição

vejo (linhas 1 e 3), no sentido de entendo, da mesma forma quando utiliza eu

percebo (linha 5). Um alto nível de comprometimento se realiza nessas afirmações

modalizantes, o que deixa bem claro que a professora acredita que o aluno da

escola pública não é o pobre e excluído do qual falei no excerto 1. Abre a

possibilidade de que na periferia poderia ser assim, ao empregar o advérbio talvez

(linha 4), mas é assertiva ao afirmar que em sua escola “não é” (linha 5) da forma

como interpretei. Na mesma direção, a professora Vitória (excerto 3) testemunha

que em sua escola, também localizada numa região central, os alunos ou vão de

van para a escola ou são levados pelos pais. Até mesmo utiliza-se de um tom

apelativo ao dizer “sem mentira nenhuma” (linhas 1 e 2), para dar maior veracidade

ao seu relato. A professora Vitória não apresenta processo modal, que denuncie

comprometimento com sua fala, porém, transfere o foco de sua colocação para os

atores, pais e alunos, por meio dos processos materiais de ação chegar, vir buscar,

passar, deixar, vir, trazer, buscar, o que pode ser entendido como uma estratégia de

dar força a suas afirmações por meio da dinamicidade de tais atores.

Conhecendo as escolas em que as professoras trabalham, principalmente a

escola Delta, parece que as professoras estão com uma visão um tanto distorcida da

realidade. É fato que alguns alunos na escola de Vitória vão de van ou com os pais e

também para a escola de Eduarda, contudo, esses alunos representam uma parcela

ínfima do contingente de alunos dessas duas instituições. Elas estão tomando a

realidade de alguns e generalizando, o que caracteriza o modo de operação

ideológico (Thompson, 1995 apud Resende & Ramalho, 2006, p. 49) de

dissimulação, por meio da estratégia de eufemização, em que se busca valorizar um

aspecto positivo do evento social, como ir para a escola de van, ou ter celular, que

funcionariam como índice de não-pobreza, de modo que os pontos negativos e

mesmo a desigualdade interna na escola, em que poucos possuem uma situação

financeira mais confortável, seja camuflada ou esquecida.

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3.2.2 Quem é o cliente do instituto de idiomas e o da escola pública?

Quando toco na parte da análise da entrevista que trata da questão de se

valorizar e dar maior importância para a atividade escolar quando ela é encarada

como negócio, as professoras assim posicionam-se:

Excerto 4 (1)Eduarda: Você falou do objetivo da escola particular. O cara que (2)montou uma escola de idioma ele quer dinheiro, ele quer lucro, então (3)ele tem que fazer tudo funcionar para ele ter esse lucro. A escola (4)pública, o professor, o diretor, o não sei quê, todos nós, não estamos (5)pensando em lucro da escola.

Excerto 5 (1)Vitória: A escola pública preocupa que no ano que vem nós vamos ter (2)mil e setecentos alunos para manter a mesma quantia do PDE? É a (3)preocupação que está no Altamira.

Nesses dois excertos (4 e 5), quero chamar a atenção para os processos

(verbos da gramática tradicional) e os objetos relacionados a esses processos. No

excerto 4, Eduarda ao falar do instituto de idiomas, utiliza processos materiais -

montar, funcionar, ter, fazer - e o mental querer, voltados à obtenção de lucro, o que

abre margem para o entendimento de que o capitalista se empenha em “corpo

(material) e alma (mental)”, (ele e os que trabalham para ele) para a obtenção do

lucro, que é obtido por meio do oferecimento de um serviço de qualidade, uma

escola onde o ensino e a aprendizagem de línguas seja, supostamente, bem

sucedido. Quando observamos o que Eduarda, ainda no excerto 4 (linhas 4 e 5), diz

sobre a escola pública, ela, incluindo-se por meio do pronome nós, diz que não

pensamos em lucro. No excerto 5, Vitória usa o processo mental cognitivo preocupar

(linha 1), que leva ao processo material manter (linha 2), transmitindo a idéia de

estagnação e manutenção de uma realidade de insucesso: a preocupação é apenas

continuar com um número alto de alunos para receber uma verba governamental de

subsistência da escola.

Por meio do discurso, muitas vezes, se quer fazer com que a escola pública

também incorpore a ideologia de mercado, atendendo ao cliente e não ao aluno:

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Excerto 6 (1)Vitória: É porque, vamos parar e pensar hoje a escola pública. Quem é (2)o aluno da escola pública? Ele também é cliente. Quando se vai nesses (3)cursos de gestão da escola pública, eles não falam aluno, eles falam (4)também como se não fosse cliente. Então, há uma tendência desse novo (5)mercado e onde eu falei da democratização do ensino, que o ensino é (6)para todos e que ambos os alunos, tanto da particular como da pública, (7)ele também é cliente. Só que aí fica aquela grande questão que a gente (8)fica se questionando e se perguntando, né, quem é o cliente da escola (9)pública, quem é o cliente da escola particular?

A professora Vitória faz um questionamento interessante aqui. A tendência de

mercado de “contaminar” todas as áreas da atividade humana na sociedade

capitalista com os seus termos não poderia, de forma alguma, deixar de afetar a

escola. Denominar os alunos da escola pública como clientes faz com que se deixe

a impressão de que essas pessoas não são excluídas das riquezas produzidas pelo

capital, dando realmente uma idéia de democratização da educação. Contudo, é

preciso suspeitar desse discurso. O cliente dos cursos particulares de idiomas têm

todo um aparato material e metodológico para receber um serviço de qualidade.

“Quem é o cliente da escola pública?”, pergunta a professora Vitória (linhas 8 e 9). É

um cliente só no discurso, que é privado da maioria dos benefícios que o capital

pode proporcionar. Chamam-se os alunos de clientes, mas não se os tratam como

tal. Verifico, aqui, a atuação do modo de operação da ideologia (Thompson, 1995

apud Resende & Ramalho, 2006, p. 49) denominado dissimulação, ativado por meio

da estratégia de deslocamento, em que um termo de uma área – mercado - é

transferido para uma outra área – educação, isso empregado para que as pessoas

sintam-se incluídas, quando, na verdade, não são. O uso do processo relacional ser

(linhas 1, 2, 7 e 8) por parte da professora pode ressoar o processo ideológico que

quer fazer crer que o aluno de escola pública seja realmente cliente. Isso, enquanto

que o processo verbal falar (linha 3), ligado ao pronome eles (representação de

alguém indefinido, que pode ser entendido como o próprio sistema capitalista

personificado), pode indicar o que realmente se faz com relação a ser o aluno da

escola pública cliente: apenas fala.

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nlo��~o�n�����}�{Yx"y���xV�_w�x�s�}�y�z�� �¡ Yx��:}�x����£¢l���5¤Ysv��x�}

Na escola pública em que trabalho, localizada num bairro periférico de

Cuiabá, é muito comum ouvir em reuniões de professores lamentos em que os

docentes se questionam o porque de os alunos não valorizarem a educação escolar,

encararem-na como algo de segunda ou terceira importância ou mesmo sem

importância nenhuma, e a conclusão que geralmente se ouve é a de que os pais

também não valorizam a educação e, por conta disso, os filhos não poderiam

valorizar. Comentários como o de que os pais mandam os filhos para a escola não

porque acreditem na educação, mas sim para receber subsídios governamentais,

como o Bolsa Escola, são muito comuns. Contudo, a situação me parece muito mais

complexa, e a generalização pode levar a conclusões equivocadas.

Com relação à língua inglesa, especificamente, a pesquisa de Dias (2006)

constatou que muitos pais, também em um bairro de periferia da região

metropolitana de Cuiabá, acreditam que a língua inglesa abre a possibilidade para a

obtenção de um bom emprego. Uma das mães da referida pesquisa considera o

querer estudar inglês como sonhar alto. Mas há aqueles, também, que não dão valor

algum às línguas estrangeiras: “Não vou viajar para o exterior, para quê inglês?”, já

ouvi de uma mãe. Como Dias (2006, p. 105) afirma, “crenças são mais tácitas do

que conscientes” e num contexto em que discursos hegemônicos agem de forma a

buscar perpetuar relações de desigualdade, mais de um discurso, transformado em

crença por meio da ideologia, pode estar funcionando nesse sentido. No contexto

das professoras de nosso grupo de estudos, a língua inglesa é apresentada como

de menor importância, em comparação com outras disciplinas:

i�������K�5��¥

(1)Eduarda: Eu acho que enquanto língua estrangeira, o aluno não vem (2)na escola pública para aprender língua estrangeira. Vem para aprender (3)português e matemática, que são as matérias consideradas importantes. (4)Arivan: Importantes, você vê por quê? (5)Eduarda: Entendeu? (6)Vitória : Porque todo concurso que ele vai, todo processo seletivo que (7)ele vai, todo... (8)Eduarda: É bem verdade, então os próprios pais. Os pais têm (9)preocupação de saber nota de português e matemática.

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A professora Eduarda, expressando alto nível de comprometimento com sua

fala, por meio do pronome eu, acompanhado do modal achar (linha 1), assegura que

os alunos relegariam à língua estrangeira uma importância muito pequena. O

processo material vir (linhas 1 e 2) denota movimento, atitude de mexer-se, motivado

pelo processo mental cognitivo aprender (linha 2), no caso, dirigido às disciplinas de

português e matemática, supostamente consideradas importantes. Da mesma forma,

o processo material ir (linhas 6 e 7) denota uma ação realizada por conta de uma

motivação prática: concurso ou processo seletivo. Parece-me que as professoras

atribuem, aqui, um caráter de inclinação dos alunos da escola pública para a busca

de conhecimentos que teriam uma utilidade prática, inclinação esta construída

socialmente num processo histórico de educação que, em nosso país,

marcadamente a partir dos anos 1960, reservou para os filhos da classe

trabalhadora a formação técnica, ficando a formação humanista, na qual se incluem

as línguas estrangeiras, reservada para os filhos da elite, para os quais as cadeiras

universitárias estavam veladamente reservadas (Fogaça & Gimenez, 2007). Ao

valorizar apenas português e matemática, sinto o ressoar de um discurso muito

comum entre as pessoas com menos instrução de que os filhos precisam aprender a

ler, escrever e contar, como se isso bastasse, e, portanto, os pais se preocupariam

em saber apenas sobre o desempenho dos filhos nessas disciplinas.

3.2.4 Avaliação do espaço circunstancial

Talvez não se vá para a escola pública e mesmo para a escola privada

regular visando-se aprender a língua inglesa porque, discursivamente, se construiu a

noção de que estes não são os lugares para se aprender a língua inglesa ou

qualquer outra língua estrangeira. Na entrevista que realizei com as professoras que

participam comigo do grupo de estudos, essa questão de haver ou não um lugar

para se aprender inglês certamente foi um dos pontos mais interessantes. Quando

volto a essa questão com elas, assim se manifestam:

Excerto 8

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(1)Vitória: É você vai lá pra falar, né. (2)Arivan: Aí você falou isso, “mas lá é um local de falar inglês”. Aí é a (3)contradição que eu já tinha visto. (4)Vitória: Mas eu não vejo contradição. Se eu disser que o centro de (5)idiomas não é um local de falar, o que que é o centro de idiomas? (6)Arivan: Mas você não acha que esse é um discurso de reprodução (7)dessa ideologia, então? (8)Vitória: Mas o centro de idiomas é criado para ensinar o aluno a falar. (9)Arivan: Sim, mas é uma prática social com base nessa prática discursiva (10)de que lá é o local de falar inglês. (11)Vitória: Mas eu nem diria questão aí, por exemplo, quando você cria (12)um centro de idiomas, para que que você cria? Para falar as línguas.

Excerto 9 (1)Vitória: (...)Imagina. Você iria pagar o centro de idiomas se não fosse (2)para você aprender a falar o idioma? (3)Arivan: Mas é o que está naturalizado. (4)Eduarda: É. (5)Vitória: É. (6)Eduarda: E eu vejo, talvez uma coisa que esteja embutido que... (7)Vitória: Eu nem diria naturalizada, eu diria que faz parte da (8)constituição do próprio centro. (9)Arivan: Mas tudo isso é discurso, né, Vitória. Porque assim, a gente não (10)percebe, talvez, mas isso de você dizer assim, “ah, lá é o lugar de falar (11)inglês”. Ah, realmente, é criado para isso. É natural. (12)Vitória: É natural. (13)Arivan: Mas existe essa ideologia... (14)Vitória: Você não cria...

O debate se dá principalmente com a professora Vitória, certamente pelo fato

de a interpretação que apresentei para a apreciação delas ter sido feita com base

numa fala desta professora. O destaque nos dois excertos se dá ao processo verbal

falar, falar inglês, o que em nossa sociedade se vê como sendo o resultado do

efetivo aprendizado da língua, desconsiderando o desenvolvimento de outras

habilidades, como a de leitura, por exemplo. Minhas falas se deram no sentido de

argumentar em favor de minha interpretação, procurando fomentar a reflexão por

parte das professoras, contudo, sem ser arrogante e impositor, como se verifica pelo

uso do modal achar (linha 6), sinalizando que busco a concordância delas, sem fazer

da minha opinião uma suposta verdade.

O processo relacional ser também é de grande importância em ambos os

excertos. Ele tem força de verdade, do que é e não está de determinada forma. No

excerto 9, nas falas da professora Vitória, o processo relacional ser é empregado

para referir-se ao centro de idiomas como espaço feito para se falar inglês, discurso

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largamente reproduzido em nossa sociedade, por força de uma ideologia já

naturalizada, conforme constatou Hornick (2006) em sua pesquisa. Já em minhas

falas, o mesmo processo relacional é trazido no sentido de questionar tal natureza

dos institutos de idiomas.

O processo material criar (linhas 11 e 12), proferido por Vitória, vem reforçar a

suposta naturalidade de ser o centro de idiomas o lugar de se falar inglês: “(...)

quando você cria um centro de idiomas, para que que você cria?”. A professora

apela para um argumento que parece evocar o óbvio: alguém só se daria ao

trabalho de criar um centro de idiomas porque quer cumprir aquilo a que todos os

centros se propõem: ensinar a falar idiomas. Parece não haver verdade fora disso,

do que é naturalizado. E se atentarmos para o pronome você, aqui referindo-se a

uma terceira pessoa, quer também reforçar a natureza inquestionável dos centros de

idiomas, pois, conforme Laberge & Sankoff (1980 apud Papa, 2008, p. 55), o uso de

you (você), na terceira pessoa, serve à formulação de truísmos morais, que

aparecem em reflexões baseadas na sabedoria convencional, bem ao tom do que

faz a professora Vitória.

No excerto 10, continuamos a discussão, como no excerto 9. Porém, aqui,

fica mais evidente o quanto a professora Vitória está convencida de que o centro de

idiomas é o lugar de se falar inglês, contudo, sem vislumbrar, ainda, a natureza

ideológica de tal discurso. A escolha do processo mental imaginar (linha 1) denota o

quanto é inconcebível para a professora ver o centro de idiomas de outra maneira.

Em seguida, ela recorre a um argumento muito eficiente no mundo capitalista: “Você

iria pagar o centro de idiomas se não fosse para você aprender a falar o idioma?”

(linhas 1 e 2). Os processos materiais ir e pagar são intimamente ligados ao

processo mental cognitivo aprender e ao verbal falar, ilustrando bem a prática de

compra da habilidade de falar o idioma que se tem atualmente. E, acredito, o

discurso, hoje hegemônico, de que no centro de idiomas realmente se aprende

inglês é que faz com que as pessoas paguem pelos cursos.

Nessas falas de Vitória, verifico a ideologia operando pelo processo de

reificação, por meio da estratégia denominada naturalização, em que uma criação

recebe o status de natural, totalmente alheia a ação humana (Thompson, 1995 apud

Resende & Ramalho, 2006, p. 49). A professora não gosta do termo naturalizada,

com relação à ideologia em questão. Ela prefere definir como segue: “Eu nem diria

naturalizada, eu diria que faz parte da constituição do próprio centro” (linhas 7 e

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8). Ao meu ver, fazer parte da constituição do centro de idiomas é uma manifestação

discursiva de quão naturalizada a ideologia está.

nlo��~o§¦©¨ªz�y�xNy��<«�s���x�}�{v¢�{YxNy��� ¬�­y�¢�{Y¢¯®/°v Yz���z��f±

Na entrevista, as professoras manifestaram explicitamente acreditar que o

querer seria o fator primordial para se aprender a língua inglesa, e aqui esta posição

é reafirmada, contraditoriamente, independente do acesso a um instituto de idiomas.

Veja-se o excerto 11:

Excerto 10 (1)Vitória: É. É aquela crença que eu tenho. Pela vivência do Eliton, do (2)instituto, que aprendeu inglês sem nunca ter pisado num curso de (3)inglês, do aluno que eu contei para vocês que veio lá daquela biboca (4)para frente lá do Parque do Lago, lá no fim do mundo, numa favela que (5)tem, aprendeu inglês sem freqüentar nenhum curso de idioma. Quer (6)dizer, eu acho, o que eu coloco bem assim, quando você quer...

A professora Vitória manifesta, marcadamente pelo uso do pronome eu – eu

tenho (linha 1), eu acho, eu coloco (linha 6) - neste excerto e também em outros

momentos da conversa, o que ela chama de crença: de que é possível aprender

inglês sozinho, sem freqüentar um curso de idiomas. Na verdade, tanto ela como a

professora Eduarda, continuam sustentando tal posição que já havia sido

apresentada na entrevista que analisamos na seção anterior. Por um momento,

pensei que talvez elas estariam imunes à ideologia, que sustenta o discurso

hegemônico, de que se aprende inglês eficientemente apenas nos institutos de

idiomas. Contudo, o discurso dela (Vitória, neste excerto), como analisei há pouco,

também reproduz tal ideologia. Acontece aqui uma contradição, que pode ser

problematizada: enquanto o instituto de idiomas é o lugar por excelência para se

aprender inglês, há aqueles que aprendem sem nunca tê-los freqüentado. É em

lacunas como esta, deixadas no discurso, que deve centrar-se o trabalho de

reflexão, com vistas à mudança discursiva e a instalação de um novo discurso

hegemônico, em que as assimetrias sociais sejam menores (Fairclough, 2001, p.

127).

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Um outro ponto para o qual quero chamar a atenção é com relação às

narrativas das professoras sobre pessoas que prodigiosamente, já que são casos

isolados e estão muito longe de ser regra, aprenderam inglês sozinhas. Identifico,

aqui, um dos modos de operação da ideologia (Thompson,1995 apud Resende &

Ramalho, 2006, pp. 50-1), a dissimulação, operando por meio da estratégia de

eufemização, de modo que, ao mencionar essas pessoas que desenvolveram

habilidades lingüísticas na língua inglesa, graças a seu esforço e determinação,

desvia-se a atenção do problema social da falta de acesso dos mais pobres ao bem

simbólico em questão, deixando a idéia de que os desprovidos de recursos

financeiros que não aprendem inglês não o fazem porque não o querem. A

reprodução desse tipo de discurso ajuda a legitimar relações desiguais, fazendo com

que pareçam justas, já que o que importaria seria a determinação individual e não o

acesso aos meios de desenvolvimento de habilidades.

3.2.6 Interesses em jogo: público X privado

Quando comento com elas o quadro em que comparo as falas das professoras no que tange à prática pedagógica no cursinho de idiomas e na escola pública (veja p. 54, neste trabalho), em que, pelo fato de elas terem dispensado mais itens e todos eles positivos para falar do primeiro, e menos itens, sendo eles negativos para a segunda, concluo que considerem a prática nos institutos mais bem desenvolvida. Ao comentar essa minha interpretação, Vitória e Eduarda tecem comentários muito valiosos em termos de alcançar os objetivos propostos por meu trabalho de prática reflexiva. Vejamos como nos manifestamos:

Excerto 11 (1)Arivan: Até porque falou mais na escola, inconscientemente acaba (2)mostrando que realmente funciona melhor. (3)Vitória: Com certeza. E eu acho que a crença nossa, pelo menos a (4)minha é que se é um lugar onde vende a língua, ela tem que funcionar (5)melhor. (6)Eduarda: Não, e eu acho que ela funciona. (7)Vitória: Não que a escola pública não possa chegar a esse nível. (8)Eduarda: Ela pode. (9)Vitória: Ela pode, mas até ela chegar a esse nível, nós temos que (10)fazer muita coisa ainda. (11)Eduarda: E porque ainda... (12)Vitória: Eu nem diria assim, o professor fazer, mas o próprio governo (13)fazer. (14)Eduarda: A escola como um todo. (15)Vitória: Não vê a luta do projeto? O projeto é uma perspectiva do (16)ensino diferenciado, que pode chegar ao nível da escola pública. (17)Arivan: E o governo não queria aprovar, né? (18)Eduarda: E não queria.

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(19)Vitória: Então você vê que é um embate aí que, o próprio sistema do (20)governo não deixa esse avanço acontecer.

A primeira observação que faço é que elas, aqui, concordam (eu acho –

linhas 3 e 6) que o instituto de idiomas tenha uma prática, supostamente, bem-

sucedida, por conta de ser um negócio, o que fica expresso pelo processo material

funcionar (linhas 2 e 6), e de maneira ainda mais assertiva, no uso do modalizador

de alto poder tem que, acompanhando o processo funcionar (linha 4),

marcadamente por estar estreitamente ligado ao processo material vender: O ensino

da língua é um produto ou serviço que só vende se apresentar resultados

satisfatórios. As professoras afirmam que a escola pública também pode apresentar

resultados semelhantes aos dos centros de idiomas, contudo, nessa afirmação,

observa-se menos assertividade. Elas dão um tom de possibilidade ao empregar o

modal poder (linhas 7, 8, 9 e 16), de baixa obrigação (Papa, 2008, p. 42), o que

pode indicar que elas querem ser otimistas (principalmente na linhas 8 e 9), mas,

talvez, não acreditem muito que a escola possa ter um ensino de línguas satisfatório.

Por fim, Vitória coloca a realidade do projeto “Resignificando a aprendizagem

de língua estrangeira: um projeto de ensino das quatro habilidades comunicativas”,

desenvolvido na escola em que estávamos conversando que, como já mencionei, é

uma atitude concreta de não aceitação do discurso de que a escola pública não é

lugar para se aprender/ensinar inglês. Contudo, elas sentem haver muitos

obstáculos colocados pelo governo, que é apresentado, inclusive por mim mesmo

(linha 17), também de maneira personificada, nominalizada, como se a entidade não

fosse constituída por pessoas, o que é ideologicamente investido (Thompson, 1995

apud Resende & Ramalho, 2006, pp. 50-1). Essa entidade personificada tem até

mesmo vontades, como fica expresso pela escolha dos processos mentais de

afeição querer (linhas 17 e 18) e deixar (linha 20), em que o advérbio de negação

não acompanhando-os, marca o desinteresse dos que estão investidos de poder no

governo estadual em melhorar as condições de trabalho com as línguas estrangeiras

nas escolas públicas de Mato Grosso, tendo procurado, por mais de uma vez,

impedir por força de portarias, o funcionamento do projeto.

Ao verificar que os entraves na escola vão além simplesmente da carência

material e, que questões políticas e de interesses estão envolvidas no processo de

implementação de mudanças que diminuam os abismos entre os que podem pagar

para aprender inglês e os que não podem, pode-se refletir melhor para buscar

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alternativas que procurem reduzir cada vez mais esse abismo, e é este o principal

objetivo deste estudo. Na próxima seção de análise, dedicar-me-ei mais a mostrar

algumas possíveis mudanças discursivas por parte das professoras, na direção de

dispensar maior atenção com relação às ideologias que estão presentes nos

discursos que circulam no âmbito escolar.

3.3 Análise da conversa colaborativa 2: Germes de mudança

Nesta última seção de análise, apresento alguns traços em nossos discursos

que evidenciam algumas mudanças discursivas e também de prática social no dia a

dia em sala de aula. As mudanças alcançadas foram bastante pequenas por conta

do curto período para os encontros de reflexão que tivemos. Contudo, saltos

importantes foram dados na direção de lutar contra os discursos, hoje hegemônicos,

que sustentam relações de poder que excluem os mais pobres do acesso a um

ensino de língua inglesa com qualidade na escola pública.

Alguns assuntos tratados na entrevista e na conversa analisada anteriormente

foram retomados. Porém, há temáticas não abordadas nas outras amostras

discursivas já analisadas que são trazidas aqui pela importância enquanto sinal de

mudança discursiva e de prática social que exprimem.

3.3.1 A hipocrisia no discurso de formar cidadãos

As professoras, aqui, já começam a expor opiniões a respeito das condições

de ensino/aprendizagem na escola pública, tendo uma postura mais crítica, no

sentido de perceber os mecanismos de exclusão que fazem com que os alunos não

possam desfrutar de uma educação de qualidade. Tal postura das professoras pode

ser verificada nos excertos que seguem:

Excerto 1 (1)Vitória: (...) Na escola pública, o que acontece, se pensa nessa (2)formação política que eles tanto defendem, que é essa sucateação (3)das disciplinas, cada vez mais aumenta mais disciplinas no currículo

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(4)para eles, para se abranger mais áreas de conhecimento, mas não se (5)aumenta carga horária. Ele não aprende nem uma nem outra. (6)Eduarda: Nem uma nem outra. E tem o discurso ainda de formar (7)cidadão. Ele precisa de ter filosofia, ele precisa de ter sociologia, (8)porque isso vai ajudar na formação dele enquanto cidadão. Excerto 2 (1)Vitória: Sim, o que se percebe que na rede pública não é para aprender (2)nada. (3)Arivan: Claro, porque eles vão ser a classe dominada... (4)Eduarda: É, não é só inglês. (5)Arivan: Não, é tudo. (6)Vitória: Porque você observa as onze disciplinas, tem as onze (7)disciplinas, as que têm mais aulas estão com duas por semana ou três.

No excerto 1, podemos constatar que as professoras analisam criticamente o

discurso da formação do cidadão, ou de uma suposta formação política que a

educação pública, no Brasil, se prestaria a oferecer. A professora Vitória coloca que,

baseado nesse discurso, tem havido uma ampliação no número de disciplinas

oferecidas nas escolas sem, contudo, aumentar a carga horária, o que faz com que

não haja tempo o suficiente para um trabalho eficaz. Ao reproduzir os processos

materiais aumentar (linha 3) e abranger (linha 4), entendo que, implicitamente, a

professora critique o discurso que os governos fazem circular na mídia, em que a

idéia de crescimento, aumento, ampliação tem uma carga bastante positiva, no

sentido de mostrar que o governo implementa ações em benefício do povo. Aqui,

contudo, a ampliação e maior abrangência em relação ao número de disciplinas na

escola leva à sucateação das disciplinas (linhas 2 e 3) e ao não aprendizado por

parte dos alunos (linha 5).

No excerto 2, quero chamar a atenção para os processos mentais perceber

(linha 1) e observar (linha 6), que denotam o trabalho de análise que as professoras

fazem com relação à situação em discussão, o que vem de encontro com os

objetivos deste trabalho. Elas concluem que na escola pública não se aprende nada

muito bem (linhas 1, 2, 4 e 5), mesmo as disciplinas que contam com uma carga

horária maior, porém, não suficiente. A exclusão em relação ao acesso aos bens

culturais se encontra velada e camuflada por trás do discurso da ampliação do

número de disciplinas. Esse fato de se aumentarem o número de disciplinas pode

caracterizar também o modo de operação ideológico (Thompson, 1995 apud

Resende & Ramalho, 2006, pp. 50-1) denominado dissimulação, por meio da

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estratégia de eufemização, já que ao se mostrar a ampliação do número de

disciplinas como algo bom e vantajoso, camufla-se o fato de que haverá a

diminuição da carga horária das disciplinas.

Diante de tal situação enfrentada pelos que freqüentam as escolas públicas, a

professora Vitória questiona a postura dos que estão no comando da Secretária de

Educação de Mato Grosso, que divulgam uma suposta qualidade de ensino em

nossas escolas públicas, mas que colocam seus filhos para estudar em escolas

privadas. Veja-se o excerto que segue:

Excerto 3 (1)Vitória: Arivan, você quer ver. Onde que a filha da Vilma (secretária (2)adjunta de educação) estuda? Os filhos do Sales (secretário de (3)educação), eles têm filhos? (4)Arivan: Ah, se tiver, não é na escola pública. (5)Vitória: A filha da Vilma (secretária adjunta de educação), eu dei aula (6)para ela no Nossa Senhora, entendeu? (7)Arivan: E é o discurso da pobreza, né, do trabalhador. (8)(Todos falam ao mesmo tempo – incomp.) (9)Vitória: A Fulana, o nome dela é Fulana. Depois ela veio para o São (10)Clemente. E agora não deve estar aqui que eu nunca mais vi essa (11)menina.

Quero enfocar, aqui, a forma como a professora vitória se coloca no discurso,

a postura como a de quem percebe os implícitos do discurso presentes nessa prática social de colocar os filhos para estudar em escolas privadas, e quer fazer-me entender o que acontece. Ao utilizar você quer ver (linha 1) e entendeu? (linha 6), a professora quer mostrar-se entendedora da situação. Vale lembrar que, já nas seções anteriores, a professora também tinha essa postura de querer explicar-me as coisas, contudo, sem essa postura crítica, como quando levantava apenas questionamentos de ordem superficial, e.g., ao questionar a carga horária reservada para língua inglesa, sem perceber as relações de poder aí escondidas.

3.3.2 A teoria crítica e as orientações curriculares A professora Vitória levanta a questão da postura crítica apresentada nos

textos das Orientações Curriculares (OCEM, 2006), documento que deveria servir de

parâmetro para a educação no Brasil. A docente tece comentários muito pertinentes

no sentido de valorizar a consciência política enquanto forma de resistência a

discursos de dominação. Vejamos o excerto:

Excerto 4

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(1)Vitória: (...) Você já imaginou se na escola pública as orientações (2)curriculares de fato como pregam a leitura crítica, a teoria crítica (3)presente nesses contextos de escola, nós vamos criar um exército, vai (4)cobrar do governo, vai cobrar da direção, vai cobrar do professor. (5)Quando começa esse pequeno exército cobrar do professor, o (6)professor tem que ter uma outra postura. Cobrar da direção, tem (7)que ter uma outra postura. De repente, é o próprio exército é que vai (8)estar paralisando e não mais o professor. Queremos isso, queremos (9)aquilo, porque pagamos isso, pagamos aquilo. Temos direito a isso. (10)Você está entendendo? Então, quando a gente se fecha assim vai (11)reproduzindo o sistema.

Um tom um tanto utópico, talvez, ou de algo que ainda está distante, mas que

pode ser vislumbrado, fica denunciado pelo uso do processo mental cognitivo

imaginar (linha 1). A formação, por nós (linha 3), pronome bastante inclusivo, neste

caso, de um suposto exército (linha 3) - escolha vocabular que denota um tom de

guerra ou batalha, de uma situação de conflito - seria possível se os alunos da

escola pública tivessem consciência da situação de injustiça a que são submetidos

ao serem privados de uma educação de qualidade. Esse suposto exército teria uma

atitude de cobrar, processo material que se repete algumas vezes (linhas 4, 5 e 6),

exigindo algo que lhe é de direito, como se mostra no processo mental querer (linha

8), que é diretamente relacionado no discurso da professora com o processo

material pagar (linha 9), pagar impostos, que deveriam ser revertidos em benefícios

reais para a população. Um dado muito importante nessa fala da professora Vitória

é o caráter de mudança de postura por que teriam que (linhas 6 e 7) passar o

governo, a direção das escolas e os professores, sendo que a modalidade de alto

poder, expresso em ter que, dá ênfase à força que está adormecida, não só nos

estudantes, mas na comunidade escolar de maneira geral que, conscientizada e

organizada, poderia forçar mudanças em seu benefício.

3.3.3 Então, o que podemos fazer? Meu trabalho é construído na perspectiva da formação crítico-reflexiva de

professores porque acredito que o professor possa ser o melhor disseminador de

uma ideologia que não mais privilegie àqueles que estão no poder, mas que possa

disponibilizar as ferramentas de que os alunos e a comunidade escolar como um

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todo necessita para promover a emancipação dos sujeitos, tendo o sentimento de

insatisfação como motor propulsor de mudanças.

É no sentido de promover uma reflexão que ajude os docentes a assumir uma

postura mais crítica que realizamos nossas conversas colaborativas, o que é

corroborado no discurso da professora Vitória:

Excerto 5 (1)Vitória: É. Então o que nós podemos fazer em pequenas atitudes é (2)fazer com que as pessoas percebam e aos poucos ir criando laços, (3)criando laços, mas não de romper. Acho...

Ao utilizar o pronome nós (linha 1), expressa compromisso seu e dos outros

professores como um todo na tarefa de promover mudanças. Os processos

materiais fazer (linhas 1 e 2), repetido duas vezes, e criar, também repetido (linhas 2

e 3), pode abrir margem para o entendimento de que devemos agir e que temos

grande poder para isso. O fato de a professora ter escolhido o modal poder para

acompanhar o processo material fazer (linha 1), pode demonstrar que ter a atitude,

mesmo que pequena, de procurar promover mudanças é uma questão de escolha

por parte do professor. Nesse sentido é que precisamos trabalhar bem no processo

de conscientização dos docentes, para que percebam a importância de terem uma

postura de engajamento num projeto de educação para a emancipação dos sujeitos.

Este é um trabalho de criação de uma espécie de rede, ou laços, como a professora

Vitória preferiu chamar, já que o trabalho em grupos de estudos como o nosso se dá,

em geral, com um número reduzido de professores. Contudo, se houver muitos

grupos, as mudanças necessárias serão mais facilmente implementadas.

Excerto 6 (1)Vitória: Então, está vendo, o que você fala, assim, é uma estrutura (2)muito armada, que a gente, assim, com estes pequenos grupos de (3)estudos vem, assim, conscientizando, trazendo um pouquinho da (4)teoria crítica para o terceiro ano para ver se abre um pouco, né.

Aqui, a professora Vitória continua falando da importância do trabalho nos

grupos de estudos e já demonstrando uma ação concreta que tem implementado

junto às turmas de terceira série do ensino médio, com as quais tem procurado, nas

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atividades de interpretação de texto, levar para as aulas temáticas que incitem a

reflexão com relação às assimetrias existentes na sociedade. Quero chamar a

atenção para o emprego do pronome você, associado ao processo verbal falar (linha

1), que se refere aos textos e discussões que provoquei, tendo a questão de

ideologia e relações de poder como tema em nossos encontros, e também, para a

forma pronominal a gente (linha 2) denotando, creio, o engajamento de Vitória com a

proposta que já não é só mais minha, mas é nossa.

A professora Eduarda também tem procurado promover a reflexão por parte

dos alunos com os quais trabalha, sendo também tal reflexão voltada para uma

clientela de ensino médio, especialmente, as duas últimas séries. Vejamos como a

professora tem provocado a reflexão em seus alunos:

Excerto 7 (1)Eduarda: É importante você mostrar com o aluno, você está usando (2)um livro, aí você está usando um livro de uma quinta série, você está (3)usando num primeiro ano de segundo grau. E você tem que mostrar (4)isso para esse aluno. “Olha, esse livro que eu estou usando com vocês (5)é da quinta série. Por que que eu estou usando com a quinta série? Eu (6)vou mostrar o livro que eu deveria usar com o primeiro. Vamos ver (7)como seria. Olha, dá uma olhada no livro. Perceba a diferença que (8)tem entre um e o outro”. E aí, eles mesmos começam a perguntar por (9)que que eles estão atrasados.

Vou enfocar alguns traços do discurso da professora que considero mais

importantes nesse momento. O pronome você, aparecendo repetidas vezes (linhas

1, 2 e 3), na primeira pessoa, marcando inserção situacional, i.e., a experiência

pessoal da falante pode ser partilhada com os interlocutores (Labere & Sansankoff,

1980 apud Papa, 2008, p. 55), sugere que a atitude tomada pela professora com

seus alunos deveria ser seguida por nós, companheiros do grupo, e por outros

docentes. O processo material usar, no gerúndio, aliado ao processo estar (linhas 1,

2, 3, 4 e 5), pode deixar o entendimento de que o uso de um livro didático feito para

a quinta série do ensino fundamental numa primeira série de ensino médio, seja um

fato transitório e não perene, diante da possibilidade de mudança aberta pela

reflexão crítica. O aluno seria chamado a perceber a diferença (linha 7), o que deve

levar à reflexão por meio de questionamentos a respeito da realidade de

ensino/aprendizagem que vive em sua escola.

A luta das docentes que atuam na escola Delta, que também, mesmo que

menos diretamente, é minha e da professora Vitória, teve um fruto muito positivo,

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que foi a mobilização da comunidade escolar para defender o projeto

“Resignificando a aprendizagem de língua estrangeira: um projeto de ensino das

quatro habilidades comunicativas”, quando ameaçado de extinção por parte da

Secretaria de Educação de Mato Grosso. Veja-se o que nos diz sobre isso a

professora Eduarda:

Excerto 8 (1)Eduarda: (...) Então, eles acabam, assim, se alertando e começam às (2)vezes a questionar e a lutar com você também, porque que ele está (3)naquilo, e começa às vezes a brigar junto com você. Por que que os (4)alunos do Delta fizeram um abaixo assinado para entregarmos lá na (5)secretaria de educação para a continuação do projeto? Porque eles (6)viram que é diferente.

Os bons resultados obtidos pelo projeto ao qual nos referimos encontram

respaldo junto aos alunos, os quais, por meio do processo mental ver (linha linha 6),

no sentido de perceber, são apresentados pela professora como pessoas que

experienciaram o diferente (linha 6), o que dá certo e é de melhor qualidade, e por

isso, o defendem. O processo mental de cognição alertar-se (linha 1) pode levar os

alunos a começar (processo material, de ação) a questionar, a lutar (linha 2) e a

brigar (linha 3) – também processos materiais de ação – o que pode ser ilustrativo

do que acontece com o trabalho de conscientização e reflexão crítica: ele deve levar

à ações concretas que sirvam para a melhoria das condições de vida dos grupos

menos favorecidos da sociedade. O processo material entregar (linha 4), empregado

na primeira pessoa do plural, demonstra que os alunos são parceiros dos

professores na luta pelo projeto, o que é extremamente louvável e desejável na

perspectiva de trabalho que assumo.

3.3.4 O trabalho está apenas começando O processo de reflexão colaborativa pode ajudar na mudança discursiva por

parte de atores sociais, nesse caso específico, de professores de língua inglesa de

escola pública. Contudo, as mudanças são graduais, conflituosas, contraditórias, em

processo, enfim. Avanços importantes foram alcançados nesse curto espaço de

tempo em que trabalhei em colaboração com as professoras Vitória e Eduarda.

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Contudo, há ainda muito a avançar, no sentido de desnaturalizar discursos que

reproduzimos e que colaboram para a manutenção do status quo.

Quero, a seguir, trazer um excerto dessa nossa última conversa, gravada e

transcrita, que ilustra a postura ainda bastante descrente nas mudanças por parte de

uma das docentes:

Excerto 9 (1)Eduarda: (...) Eu não vou mudar o mundo, Arivan. Eu posso mudar (2)aquilo que eu vejo que é possível. Não adianta. É o que eu falo com a (3)Lavínia. “Lavínia, têm coisas que você não vai mudar, você vai brigar a (4)vida inteira e é um desgaste só seu, de mais ninguém”. (5)Vitória: Mas na escola nós podemos implantar na sala de aula... (6)Eduarda: Agora, você vai de vagarinho. Vai para um, vai para outro. (7)Daquela turma, talvez, ali numa turma de duzentos que você tenha, (8)você às vezes (incomp.) dois ali que no futuro você vai ver, aquilo ali (9)tem meu dedinho também.

A circunstância de negação expressa pela professora Eduarda (não - linhas 1

e 2), aliada ao emprego dos pronomes eu e você (linhas 1, 2 e 3), parecem

denunciar uma crença típica de pessoas que têm uma postura mais pessimista com

relação à possibilidade de mudanças: coloca no indivíduo em si e solitário a

responsabilidade por implantar as mudanças, o que parece ser inviável. Contudo, o

que buscamos é uma conscientização e reflexão que passa, naturalmente, pelo

indivíduo, mas que não pode se restringir a ele, precisando formar conjunto no grupo

social que comunga dos mesmos interesses e que, unido, pode sim implementar

mudanças. O conselho que a professora Eduarda dá à professora Lavínia é

carregado do processo ideológico de reificação, por meio da estratégia de

eternização (Thompson, 1995 apud Resende & Ramalho, 2006, pp. 50-1) das

situações que podem ser transitórias, mas, discursivamente, se quer fazer com que

as pessoas creiam que será sempre como são hoje.

Não posso deixar de considerar que essa leitura que faço do discurso da

professora tem bases em minha inscrição teórica, a de uma postura crítica, no

sentido defendido por Fairclough (2001, p. 28): “’Crítico’ implica mostrar conexões e

causas que estão ocultas; implica também intervenção - por exemplo, fornecendo

recursos por meio da mudança para aqueles que possam encontra-se em

desvantagem”. Outras interpretações são possíveis, mas quero que minhas

colocações provoquem discussão e reflexão, e não aceitação passiva de minhas

idéias.

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A seguir, apresento um resumo dos modos de operação da ideologia

(Thompson, 1995 apud Resende & Ramalho, 2006, pp. 50-1) evidenciados nas

conversas colaborativas analisadas.

Quadro 03 – Modos de operação da ideologia identificados na análise.

Modo Estratégia Exemplo Efeito

Dissimulação

Eufemização “(...) Do aluno que eu contei para vocês que veio lá daquela biboca para frente lá do Parque do Lago, lá no fim do mundo, numa favela que tem, aprendeu inglês sem freqüentar nenhum curso de idioma. Quer dizer, eu acho, o que eu coloco bem assim, quando você quer...”.

Ao colocar o esforço e vontade pessoais como condição para o aprendizado se camuflam as desigualdades de acesso às condições de aprendizagem.

²Y³ ´5µ§¶�· ¸�¹t³8º�»,¶ “ (...)Quem é o aluno da escola pública? Ele

também é cliente. Quando se vai nesses cursos

de gestão da escola pública, eles não falam

aluno, eles falam também como se não fosse

cliente.”

Ao deslocar o termo cliente – mercado – para a área da educação quer-se fazer com que os atendidos pela escola pública se sintam incluídos nos benefícios dos serviços capitalistas, quando não o são ou são em proporção menor do que nos serviços privados.

Reificação

Naturalização “Eu nem diria naturalizada, eu diria que faz parte da constituição do próprio centro”.

Faz com que o discurso de serem os centros de idiomas o lugar para se aprender inglês algo inquestionável, por conta de ser algo supostamente natural.

Nominalização “ E o governo não queria aprovar, né?”

Ao nominalizar a entidade governo se desvia a atenção do fato de a instituição ser constituída de pessoas, e são as vontades dessas pessoas que são realizadas em nome do governo.

Eternização “Lavínia, têm coisas que você não vai mudar, você vai brigar a vida inteira e é um desgaste só seu, de mais ninguém”.

Procura mostrar uma situação transitória, construída sobre os interesses de indivíduos ou grupos como se fossem algo eterno e imutável.

Dos cinco modos de operação da ideologia apresentados por Thompson

(1995, apud Resende & Ramalho, 2006, pp. 50-1), identifico dois na análise das

duas conversas colaborativas analisadas neste trabalho: dissimulação e reificação.

Pelo modo de dissimulação, o estabelecimento e o sustento de relações de

dominação são negados, ofuscados, por meio de construções simbólicas. No caso

da reificação, uma situação transitória é apresentada como se fosse natural e eterna.

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O fato de os enunciados das professoras apresentarem esses dois modos de

operação ideológicos, me permite deduzir que os discursos referentes a

ensinar/aprender inglês em nosso contexto são sustentados, primeiro, por um

processo ideológico que procura esconder situações de desigualdade de acesso aos

meios de aquisição da língua estrangeira, como no segundo exemplo que trago no

quadro acima, em que há uma tendência, em treinamentos oferecidos pelo governo

estadual aos gestores escolares, de denominar os alunos da escola pública como

clientes, o que em tese, resultaria num serviço de melhor qualidade, na lógica do

mercado. Entretanto, em nossas escolas estaduais, ainda não é possível oferecer

um trabalho com a mesma qualidade que se tem num curso de idiomas, onde se têm

clientes, no sentido que o termo evoca. No discurso, ao chamar-se os alunos da

escola pública de clientes, quer-se dar a impressão de que eles são incluídos nos

benefícios da sociedade de consumo, enquanto na prática social, são excluídos,

ficando dissimulada tal realidade.

Em adição a isso, situações de desigualdades são reproduzidas em nossos

discursos com um caráter de naturais ou eternas. Lutar para melhorar as condições

de vida dos que se encontram em desvantagem, muitas vezes, pode parecer em

vão, como se verifica no último exemplo do quadro. E assim, tudo é mantido como

está, já que a reificação dos discursos que sustentam as ideologias da classe

dominante tornam tais discursos e hegemônicos, e em certa medida, evitam a luta

hegemônica para que tal realidade seja transformada.

A reflexão crítica precisa alertar para tais formas de atuação ideológica que

atravessam nossos discursos, para que conscientes de como funcionam tais

processos, e que eles são sustentados somente graças ao fato de os reproduzirmos,

possamos passar a formular contra discursos, forçando mudanças diminuidoras das

diferenças de acesso, no caso específico deste estudo, aos meios para o

ensino/aprendizagem de língua inglesa em nossas escolas públicas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Meu trabalho partiu da hipótese de que, mesmo entre os professores que

acreditam na escola pública e se esforçam para oferecer um trabalho com a melhor

qualidade possível nas instituições em que atuem, existe, ainda, um discurso

hegemônico na sociedade atual de que na escola pública não se aprende inglês, ou

qualquer outra língua estrangeira, em benefício dos institutos de idiomas, que se

acredita sejam o lugar por excelência para o aprendizado de línguas, conforme

constatado por Hornick (2006, p. 96) em sua pesquisa.

É nessa direção que procurei desenvolver este trabalho. Engajei-me em um

grupo de estudo que se realiza na escola pública, para que, juntamente com as

professoras participantes, pudéssemos refletir sobre questões de ideologia na escola

pública, através de conversas colaborativas (Bailey, 1998) e na perspectiva da

formação crítico-reflexiva de professores (Pimenta & Ghedin, 2002). Nossas

conversas colaborativas proporcionaram profícuas reflexões sobre vários temas

inerentes à questão da ideologia.

Como o objetivo do meu trabalho era investigar sobre a questão da ideologia,

procurei levar para as discussões no grupo de estudos, textos que atentassem para

essa questão. O meu interesse era compreender como as ideologias atravessam os

discursos que circulam na escola pública, e as relações de poder que tais discursos

procuram sustentar.

Para verificar se minha hipótese se confirmava, escolhi como instrumento de

análise a Análise de Discurso Crítica (ADC), no modelo tridimensional de análise

discursiva postulado por Norman Fairclough (2001), que se propõe a ver o discurso

nas dimensões textual, da prática discursiva e da prática social, o que significa,

respectivamente, a descrição, interpretação e explicação do texto. Procurei mostrar

em nossos discursos (meu e das professoras que comigo faziam parte do grupo de

estudos) que posições ideológicas dominantes na sociedade são estabelecidas, com

vistas ao trabalho de conscientização e busca de uma mudança discursiva, que

implica também, numa mudança de prática social.

A ADC foi escolhida como ferramenta de análise por estar intimamente ligada

com as idéias nas quais acredito, que podem ser traduzidas na crença de que vejo

na educação uma possibilidade de emancipação dos sujeitos desprivilegiados, que

conscientes de como a sociedade se organiza, por meio da linguagem, podem tomar

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a posição de resistir a discursos que sustentem as muitas injustiças e assimetrias a

que são submetidos. A pesquisa social crítica, dentro da qual a ADC se encontra,

parte, conforme Fairclough (2003, p. 202), de perguntas como: de que maneira as

sociedades oferecem oportunidades e recursos para uma vida confortável para

algumas pessoas e nega essas possibilidades e recursos para outras? O que dizer

de sociedades que produzem pobreza, miséria e insegurança? Que possibilidade de

mudança social existe para reduzir esses problemas e melhorar a qualidade de vida

dos seres humanos? Para o mesmo autor, a pesquisa social crítica teria como

objetivo principal entender como as sociedades trabalham e produzem, ao mesmo

tempo, benefícios e privações, e como tais privações, direcionadas para uma

maioria, podem ser mitigadas ou mesmo eliminadas.

Para a organização de minha pesquisa, estabeleci três perguntas de

pesquisa, que seguem:

1) Como os discursos das professoras revelam posições ideológicas

dominantes?

Com relação a esta pergunta, verifiquei que, embora as professoras sejam bastante aplicadas em fazer o ensino de língua inglesa dar certo na escola pública, o discurso delas ainda reproduz a ideologia de que nesse espaço não se pode aprender inglês. Isso pode ser verificado de maneira velada.

Por exemplo, quando pedi a elas que fizessem um paralelo entre a prática pedagógica no cursinho de idiomas e na escola pública (cf. p. 53), constatei que as professoras utilizaram mais enunciados declarativos para dizer o que se tem de bom no instituto de idiomas, enquanto um número reduzido de falas se referiram à escola pública, sendo listadas, para esta última, somente aspectos negativos, denunciando assim, a presença da ideologia dominante, hegemônica, de que o instituto de idiomas é lugar para se aprender inglês, não a escola, especialmente a pública.

2) Quais os modos de operação da ideologia presentes nos discursos dos

professores?

Em minha análise, procurei identificar os modos de operação da ideologia,

segundo postulado por Thompson (1995, apud Resende & Ramalho, 2006, pp. 50-

1). Dos modos apresentados pelo autor, foram identificados, neste estudo, os modos

de dissimulação e reificação. Nos momentos do discurso das professoras em que o

modo de dissimulação funcionou, a ideologia presente no discurso delas procurava

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dissimular ou camuflar relações de poder, que se prestavam a manter situações de

injustiça, como se elas não acontecessem na realidade. Por exemplo, quando as

professoras atribuíram à vontade e ao esforço pessoal de aprender inglês a

condição para o sucesso no aprendizado, ou, quando faziam referências às pessoas

que, prodigiosamente, adquiriram a língua, sem freqüentar cursos para isso. Fica a

impressão de que basta querer aprender, e dessa forma, os que não têm acesso a

um instituto de idiomas e não chegam a dominar a língua, não o fazem porque lhes

faltaria vontade. Enquanto isso, para os filhos da classe média, que muitas das

vezes são obrigados pelos pais a freqüentar escolas de línguas, ter ou não vontade

é indiferente, já que têm acesso aos meios para o aprendizado.

Quando identifico o modo de operação ideológico denominado reificação, o

efeito no discurso é o de manutenção do status quo, por meio da naturalização de

situações socialmente construídas, como quando a professora Vitória afirma ser

“parte da constituição do próprio centro de idiomas” ser o lugar para se aprender

inglês, dando esse fato social como algo natural e inquestionável. Também ao

nominalizar a instituição governo, desvia a atenção com relação às pessoas que

fazem parte desse governo e que determinam as ações dessa instituição. Ninguém

iria cobrar nada de uma instituição, de algo abstrato, enquanto que de pessoas, sim.

3) Sessões reflexivas ou conversas colaborativas são eficazes para a

desnaturalização das ideologias e a tomada de consciência de nossa posição

de agentes para a transformação de nossas práticas?

Concluí que, as sessões reflexivas ou conversas colaborativas são meios eficazes para a desnaturalização de ideologias e a tomada de consciência, levando à adoção de uma postura mais crítica diante dos discursos e práticas sociais, que fazem parte do dia a dia das atividades que tocam nossa atividade docente. As mudanças discursivas e de prática social, que apresento na terceira seção de minha análise, são ainda pequenas, mas bastante representativas do que são as transformações sociais. Mudanças não acontecem de um dia para o outro e, considerando o curto espaço de tempo que tive para empreender meu trabalho, as transformações discursivas e de prática social foram satisfatórias.

Constatei, por exemplo, que na última seção da análise, as professoras chamaram a atenção, em suas falas, para questões com as quais nem se preocupavam nas conversas anteriores, e.g., a possibilidade de os alunos, conscientizados de seu poder, formarem um exército, como disse Vitória, no intuito de lutar pelo direito a uma educação de qualidade na escola pública.

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Assim, entendo a formação de grupos de estudos como um caminho bastante frutífero na direção de formar professores reflexivos (Pimenta, 2002; Ghedin, 2002; Valadares, 2002 etc), e que empreendam uma reflexão crítica, engajada, atenta às questões políticas e de poder, que envolvem os discursos presentes no âmbito escolar. Uma reflexão que leve a compreender como os discursos são construídos socialmente, de forma a estabelecer ou sustentar desvantagens sofridas pelos que freqüentam as escolas públicas, só poderá mudar se estivermos envolvidos num projeto emancipatório, que vise formar professores e alunos para exigir a criação de políticas públicas que priorizem uma educação de qualidade. Enquanto os docentes continuarem agindo isoladamente ou, as reflexões em grupo se restringirem apenas a temas como metodologia de ensino ou estratégias para impor mais disciplina e regras na escola, nada poderá ser mudado.

Quando Fairclough (2001, p. 292) sugere que se crie uma consciência lingüística crítica nos alunos, é no sentido de levá-los a refletir e tomar consciência de como os discursos que circulam na sociedade e são reproduzidos por eles, legitimam práticas discursivas e sociais promotoras de sua exclusão, total ou parcial, diante dos benefícios produzidos pela sociedade. Contudo, os responsáveis por implementar essa conscientização lingüística crítica nos alunos são os professores, que só poderão fazê-lo se antes forem formados criticamente para isso.

A pesquisa que realizei também mostrou lacunas. Há discursos que estão de tal forma naturalizados que a sua mudança se torna difícil, como por exemplo, o discurso de que o instituto de idiomas é o local por excelência para o aprendizado de línguas estrangeiras. O problema, ao meu entender, não é aceitar tal discurso como verdadeiro. Os institutos de idiomas são locais para se aprender inglês e outras línguas, mas a escola pública também pode ter excelência para o aprendizado de inglês ou qualquer outra língua estrangeira. A nossa luta é construir um novo discurso hegemônico, por meio do qual se sustente a ideologia de que a escola pública também é espaço para se aprender/ensinar inglês com qualidade.

No entanto, para que isso ocorra, é preciso haver o envolvimento de toda a comunidade escolar, no sentido de cobrar das autoridades governamentais um maior investimento, para o oferecimento, com qualidade, de aulas de línguas estrangeiras na escola pública, já que isso é direito do cidadão, pagador de seus impostos. Contudo, essa mobilização só se faria possível por meio da conscientização do direito que os cidadãos têm a esse benefício, e do poder que, organizados, podem ter para reivindicar melhoras em seu benefício.

A postura do governo do Estado de Mato Grosso, por meio da SEDUC (Secretaria de Estado de Educação), é a de sustentar um discurso de investimento na educação de qualidade e a procura por fomentar um ensino de línguas estrangeiras que seja eficiente. Recentemente, um grupo de professores doutores das universidades públicas presentes em nosso estado, foram convidados pela SEDUC para redigir um documento (no prelo) que se dedica à questão do ensino das línguas estrangeiras nesta unidade da federação, no qual são identificadas mudanças necessárias para um ensino/aprendizagem que surta resultados satisfatórios. O documento sugere readequações, como na carga horária semanal (para quatro horas), redução no número de alunos por sala, programas para a atualização docente, valorização do docente de línguas estrangeiras, entre outras.

Não obstante, estranhamente, a mesma SEDUC, constantemente, dá sinais de ameaças para que o projeto “Resignificando a aprendizagem de língua estrangeira: um projeto de ensino das quatro habilidades comunicativas” não tenha

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continuidade. Uma postura bastante contraditória, já que o projeto tem apresentado resultados satisfatórios.

Diante disso, cabe aos professores de escolas públicas, estar atentos a como os discursos serão construídos diante das mudanças sugeridas, de forma a mobilizar a comunidade escolar para cobrar a efetiva implementação das mudanças necessárias, que certamente possibilitariam um trabalho com as línguas estrangeiras que abriria, aos alunos das escolas estaduais, maiores oportunidades de sucesso em suas vidas acadêmica e profissional.

O que me motivou durante todo o percurso deste trabalho foi perceber que o esforço conjunto de todos nós pode ter resultados satisfatórios, na escola e na sala de aula. Há ainda que se lembrar da garantia de melhores condições de trabalho para o professor. É nessa direção que a reflexão crítica nos ajuda, pois, contribui para a desconstrução de outros discursos presentes em nossa sociedade, com o da exclusão, por exemplo. Precisamos construir contra-discursos, numa luta constante, para garantirmos o empoderamento da escola, e assim, almejarmos um ensino público de qualidade, uma sociedade mais justa e de oportunidades para todos.

Restrições existem em meu trabalho. Depois de escrito, verifico que talvez poderia ter levado outros textos para a discussão, ou poderia ter levantado mais vezes as questões de ideologia. Talvez, devesse ter explicado sobre os modos de operação da ideologia mais diretamente para as professoras, a fim de tentar provocar maior entendimento sobre as marcas ideológicas em nossos discursos. Contudo, a pesquisa se deu num processo, e respondeu aos anseios e necessidades dos atores da pesquisa no percurso de sua realização.

Hoje, vislumbro que novas pesquisas possam ser desenvolvidas na mesma perspectiva em que trabalhei. Projetos que busquem trabalhar, de forma mais efetiva, com a discussão a respeito das políticas públicas para a educação, com a mobilização da comunidade para exigir mudanças necessárias; ou a criação de outros grupos de estudos, com membros de outras disciplinas, com um número maior de participantes, procurando dar um enfoque crítico à formação neles realizada, entre outras possibilidades.

O estudo que realizei é apenas meu primeiro passo na pesquisa social crítica. Continuo com as leituras nessa área e com o trabalho de reflexão colaborativa na escola pública. E, a cada encontro, novas descobertas são realizadas e avanços são alcançados, no sentido de buscar construir escolas que sejam lugar de formação de verdadeiros cidadãos, com senso crítico e com acesso a uma educação de qualidade, que lhes seja instrumento de emancipação sua e dos membros de suas comunidades.

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ANEXO A - Transcrição da entrevista (realizada em 28/06/2007). Vitória: Nós vamos pirar a sua cabeça! Arivan: Qual é o melhor lugar na opinião de vocês para se aprender a língua inglesa? Vitória: Posso falar mesmo? [Risos] Arivan: Claro! [risos] Vitória: Eu acho assim: em casa, se você tiver um objetivo... O que faz com que a pessoa não aprenda eu acho que é a própria vontade, o querer aprender e o querer aprender está muito atrelado a para quê aprender. Então quando você quer aprender e você tem o para que aprender você aprende até sozinha, independente do lugar, qualquer lugar. Eduarda: Não é o lugar. Vitória: Na sua casa, com o livro didático sozinho, mesmo que seja um livro didático nacional com aquelas fitinhas que vêm (olha o termo, fitinhas), né, que vêm, eu acho que você vai embora. Eduarda: Não é o lugar, é o querer. Arivan: E quanto aos institutos de idiomas, que são conhecidos como lugares por excelência para aprender a língua inglesa, como vocês vêem a prática pedagógica dentro desses institutos? Vitória: Bom, eu poderia... Vai você primeiro que eu tô muito faladeira. Eu tô tomando tudo, eu tô dominado o mundo. Eduarda: Eu acho... Eu vou voltar na primeira. Funcionam. A prática lá funciona. Mas se o aluno que entra lá também não quer, ele também vai ficar, ele pode passar por um período, porque a gente tem casos de cursos, principalmente nos cursos de idiomas, que as mães mais obrigam. Ele vai passar por aquele período e também não vai consolidar a língua como o outro. Então, não é que não é eficaz. Eu acho que ele funciona sim. Acho que a base do querer aprender é o querer aprender da pessoa. Agora a prática pedagógica do curso... O curso tem um objetivo. E normalmente, se a gente for olhar, é a grande parte que vai pra esse curso, [Vitória tosse] ele também tem um objetivo. Tem aqueles que são obrigados, mas é uma minoria, né? Vitória: Mas lá é um local de falar inglês. Eduarda: E lá é... [Vitória interrompe] Vitória: Então lá tá bem claro: para quê você vai lá? Falar inglês. Então o trabalho foi nosso... Eduarda: Seja qual for a língua. Então eu acho que tem esses objetivos e eles fazem funcionar. Vitória: E eu queria... Além de, Eduarda, eu diria assim: o aluno que não quer, ele fica três, quatro anos lá mofando e sai de lá sem saber nada! Eduarda: Exatamente. Porque ele não quer. Vitória: Então, ele nem tem como aprender nada. Eduarda: Porque depende dele querer. Essa segunda... [Vitória tosse] a palavra primeira, ele tem que querer. Agora, se ele realmente quer, ele vai, porque funciona, falar que não funciona, eles funcionam porque tem um objetivo que é esse. Tá lá, e nenhum deles sai do objetivo. Cada um com suas práticas, né, pedagógicas, mas todos eles têm um objetivo e todos eles trabalham rigorosamente em cima disso, né, não tem como.

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Arivan: E, é possível estabelecer um paralelo, comparar o cursinho de idiomas, a prática pedagógica que se faz no cursinho de idiomas, e o que se faz na escola pública? Vitória: Sim [pensativo]. Como que vou... Vamos começar por esse paralelo em nível de metodologia, por exemplo, né. A experiência minha enquanto professora de centro de idiomas há algum tempo atrás. Você tem um planejamento, uma hora e meia, nessa uma hora e meia a cada dez minutos você tem que proporcionar uma atividade diferente para o seu aluno, ele tá interagindo com o outro, tudo em inglês. Então é uma hora e meia, uma hora e quarenta ele falando em inglês o tempo todo ou procurando ou por meio de repetição ou com tarefas comunicativas que ele tem que interagir, mas ele tem que usar a língua estrangeira. Quando a gente tem a parte metodológica da escola pública, já diferencia um pouco. Que diferencia? Lá eu tenho quinze alunos, eu tô mais próxima no centro de idiomas, eu controlo mais, verifico mais, o pace da aula é mais rápido. Na escola pública, nós já temos trinta e cinco e enquanto que na escola, no centro, eu faria cinco atividades diferentes, na escola pública eu consigo fazer duas ou uma, às vezes, devido ao número de alunos. Mas a metodologia eu diria que depende muito da formação do professor. Por exemplo, no meu caso, é, eu sempre trabalhei na escola pública e no centro de idiomas há algum tempo atrás, e eu procurava levar as atividades do centro de idiomas para a escola pública, e funciona. Não vai dizer que não funciona não, que funciona. E os alunos gostam e adoram e ficam motivados. Funciona, tá. Agora, quando você pára, assim, e pensa nos equipamentos, a questão dos objetivos, é como eu disse anteriormente, é muito assim: pra quê fazer isso? Os alunos de escola pública querem também falar inglês. Eduarda: A mesma coisa. Vitória: Só que a maioria dos nossos colegas cortam isso. Não propiciam esse uso da língua. Arivan: Os colegas, professores? Vitória: Professores cortam, não propiciam o uso da língua. E fica na

metalinguagem. O que se aprende só falando gramática, gramática, gramática,

gramática... Passe para a negativa, interrogativa, afirmativa, substituir verbo

presente pro passado. O que se aprende com isso?

Arivan: Você vê o por quê de se cortar isso? Vitória: Eu diria que é a formação, nível lingüístico, principal, e, ah, muitos deles têm até nível lingüístico, não têm conhecimento metodológico. Eduarda: É, e falta um controle, o que a gente tem nos cursos de idiomas e a gente não tem na escola pública. É aquela, infelizmente, a supervisão, né, que tá acompanhando. Na escola, nos cursos livres você tem alguém que pode te dar um suporte se você precisar e tem alguém que tá ali no dia-a-dia acompanhando passo a passo o que você tá fazendo: o seu plano de aula é verificado, as suas aulas são verificadas. Na escola pública, não existe isso em momento algum. O próprio coordenador nem sabe inglês. Então ele não controla o seu plano, ele não sabe o que você tá fazendo, o que você fez ou deixou de fazer. E isso, acaba ficando muito solto para o professor. Se ele às vezes quer fazer um bom trabalho mas ele não tem essas coisas como nível lingüístico e essa competência metodológica e também não tem onde buscar porque a escola não tem onde, a escola pública não tem apoio pra isso, né, aqui, eu tenho sete anos, sabe, eu nunca vi a secretaria de educação oferecer um curso de línguas para os professores, independente de ser metodologia

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invés, ou, independente de ser... o lingüístico. Nunca, né. E tá capacitando professor... Pra quê? Nunca, nunca se fez. Não tem essa preocupação. Então o professor não tem onde ir. Porque nós ainda estamos na capital a gente às vezes se ajuda, alguns. E aquele professor que é mais tímido, aquele professor que não é, não participa das coisas, não vai num congresso, não vai na associação, ele vai buscar o quê? Aonde? É, uma coi(sa)... A diferença é brutal nisso. Não tem como. Você não tem um apoio. Você não aprendeu o idioma na sua formação? Cê também não tem como aprender se às vezes você não tem o dinheiro, a escola do centro de línguas, você tem como professores do mesmo nível ou de níveis diferentes e você vai aprender com eles. Porque existe uma formação desse professor. E ela te dá suporte pra isso. Na escola pública não tem. Então, acaba-se, é... dizer, não que faça isso consciente, porque ele quer fazer, mas ele realmente... E aí perde-se o propósito, né, as escolas não têm, as escolas públicas, raramente [com ênfase], têm um objetivo da escola, que é cumprido por todos. Na escola livre não. Todos, qual que é o objetivo dessa escola? É esse. Então todos vão fazer o mesmo. Vitória: Os planos são idênticos. Eduarda: Os planos são todos... Vitória: Sexta-feira os professores estão lá estudando, planejando, replanejando, entendeu? Eduarda: Há interação entre os professores: o que que cê tá fazendo? O que, que na escola pública não tem isso. Vitória: Porque zelam por um padrão de qualidade. Eduarda: Não tem isso. Porque na escola particular, o aluno é cliente, né, então tem essa preocupação. Na escola pública não. Ele é o aluno, simplesmente. E aí fica perdido. Arivan: Ok, obrigado.

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ANEXO B – Conversa colaborativa I (Retorno entrevista – 29/11/2007). Eduarda: Peraí. Eu não li isso aqui. Arivan: Então, que a gente podia ir lendo algumas partes, e eu vou resumindo o que é mais... Vitória: E, eu gostei. Tem uma parte ali que eu já briguei com ele. Arivan: Que ela não concorda. Porque o objetivo é esse. Como a entrevista foi feita principalmente com as duas, né, por isso fica legal... (incomp.) [Todos falam ao mesmo tempo]. Vitória: Nossa a pressão que eu passei. Arivan: Ah, eu imagino. Eduarda: Parte de que que você não concordou? Vitória: Não... Arivan: É uma parte da análise. Vitória: Talvez porque eu seja uma analista do discurso eu tenha me moldado, é mais ou menos assim que ele falou. Arivan: Ela, é que ela. Vitória: Que eu me policiei. Mas quando a gente está aqui a coisa é assim tão natural, tão expansiva que a gente não se preocupa se a você é pesquisadora, se a você não é pesquisadora. É todo mundo no mesmo caldeirão, pegando fogo e queimando junto. Eduarda: Eu acho assim, que é pelo fato de a gente se conhecer muito, né. Vitória: É. Arivan: E é uma coisa que... Arivan: Aí eu até falei para ela assim, aí eu modalizei lá, “talvez pode sugerir”, essa coisa toda, porque foi uma leitura que eu fiz naquele momento, né. Mas eu não sei, até porque eu conhecia vocês muito pouco também, né. Em junho, foi dia 28 de junho a entrevista. Aí essa volta é para ver o que vocês acharam dessa análise. Os dois pontos principais são a questão de ideologia e hegemonia. E segundo o que eu coloco nesse trabalho, é um trabalho maior, de uma disciplina chamada Teorias e Concepções de Linguagem e aqui eu trouxe só a análise. Que antes eu fiz uma introdução falando o que ia ter, falei sobre a concepção de linguagem de Fairclough, a gramática sistêmico-funcional, essa coisa toda, né, e o objetivo colocado na introdução que era analisar o discurso de professores que não são professoras ingênuas, né, são professoras que têm leitura, são professoras que acreditam na escola pública, que dá para se fazer um trabalho na escola pública sim, mas que pela questão da hegemonia, né, o processo de hegemonia, a ideologia de que não se aprende inglês na escola pública, a escola pública não é lugar de se aprender inglês, que está aí, né, na sociedade através dos discursos, também é representado por nós. por isso também, né. Vitória: Pesadas essas questões teóricas, né. Apesar de que é um discurso amplamente contraditório. Ao mesmo tempo que você pontua que é possível,que se aprende, se coloca que não se aprende. Arivan: Que não... Vitória: Que o ideal... Vitória e Eduarda em coro: ... é o centro de idiomas. Arivan: Que é essa crença, o discurso que está naturalizado na sociedade. E que nós acabamos reproduzindo sem perceber, né, pela questão da hegemonia. Mesmo lutando contra isso, esses discursos ainda emergem em nós, e nós, supostamente,

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teríamos que tentar mudar esses discursos, de criar contra-discursos para a nossa prática mudar também. Porque nessa teoria acredita-se também que o discurso reflete também o que é a prática social. As coisas estão imbricadas. Então se esse discurso ainda está presente em nossa fala, é porque a nossa prática social de alguma forma ainda reproduz de que a escola pública não é um lugar eficiente para se aprender inglês. Mas vamos ver lá. Esse primeiro aqui, nesse primeiro parágrafo, introduz, né, dizendo que eu vou usar a análise de discurso crítica do Fairclough, o modelo tridimensional de análise, com a prática de textual, a prática textual, a prática discursiva e a prática social, que aquilo que ele diz lá lá, que descreveria o método dele para a análise do discurso. Depois eu digo que o objetivo é que vocês mostrem, por meio daquelas perguntas quais são as crenças que vocês têm com relação à prática pedagógica na escola pública e a prática pedagógica no centro de idiomas. Depois eu coloco o que eu entendo como sendo discurso, a manifestação da luta hegemônica como sendo aquela coisa. Existe uma crença de que inglês é importante na sociedade, abre portas, oportunidades, a classe média... Vitória: Que é o discurso da globalização. Arivan: É. E a classe média paga caro num cursinho de idiomas para poder aprender inglês. Então, se a escola não dá conta de ensinar isso, essa é uma interpretação possível, né mas, no fato de se naturalizar esse discurso de que não se aprende inglês na escola pública seria uma forma de se privar as pessoas da classe, dita dominada, né, do proletariado de ascensão social, né, porque a sociedade acredita, existe essa crença, esse discurso de que inglês abre portas... Vitória: Promove ascensão social, né? Arivan: Isso. Então essas pessoas devem ser, né, as pessoas da escola pública, então, como são pobres, são mão de obra barata, tem que continuar mão de obra barata e aprender língua estrangeira poderia abrir muito a cabeça das pessoas, poderia, né, promover uma ascensão social que não é interessante para esse sistema. Então basicamente, a idéia central é essa. A ideologia, que a ideologia da classe dominante, que ela meio que impõe para a sociedade, que é que não se aprende, e que favorece o capitalismo, vamos dizer assim, de duas formas. Primeiro, por que? Quem vai poder aprender inglês? Só quem pode pagar por um cursinho de idiomas que é caro e que tem tudo mais. E de outra forma, o cursinho de idiomas é uma empresa, antes de qualquer coisa. Então, favorece também o capitalismo nessa outra perspectiva, de duas formas. Vitória: Pois é, Arivan, quando você fala assim, eu até pontuo no meu trabalho, eu acho que a escola pública não está muito longe dessa relação de lucro, de ganhar... Arivan: De PDE, você fala, essa coisa toda? Vitória: De capitalismo, da questão do poder... Eduarda: Eu coloco aqui, eu coloquei isso no trabalho. Vitória: É porque, vamos parar e pensar hoje a escola pública. Quem é o aluno da escola pública? Ele também é cliente. Quando se vai nesses cursos de gestão da escola pública, eles não falam aluno, eles falam também como se não fosse cliente. Então, há uma tendência desse novo mercado e onde eu falei da democratização do ensino, que o ensino é para todos e que ambos os alunos, tanto da particular como da pública, ele também é cliente. Só que aí fica aquela grande questão que a gente fica se questionando e se perguntando, né, quem é o cliente da escola pública, quem é o cliente da escola particular? Eduarda: Que eu vejo numa escola como a Delta, que o cliente da escola pública não é esse, essa pessoa que você comentou. É, uma classe monetariamente inferior. Eu vejo os clientes, porque a escola, a Nívea é uma, está no centro da

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cidade, né. Talvez na periferia seja isso uma verdade. Aqui não é. E eu percebo claramente. Todos os alunos aqui têm celulares talvez melhores do que os que vocês têm. Vitória: É como o Altamira. De manhã, no Altamira, sem mentira nenhuma, os alunos chegam de van e vem buscar de van. Arivan: Que é centro, também? Vitória: Que é centro. Pais passam com um carro novo, deixa o filho e o pai vem buscar. Ora, para o pai vir trazer e buscar é porque a situação social não é a do proletariado, principalmente assim, matutino é mais evidente, o vespertino um pouco e o noturno fica o trabalhador. Eduarda: Você sabe o que eu percebo aqui, é a mesma coisa que ela disse, e é o seguinte, o que que acontece, quem são esses pais que eu vejo, que às vezes vem aqui? São pais que tinham, eram uma classe média alta, e que hoje, por questões, financeiras mesmo, né, do país, ele tem uma situação financeira menor, não é que ele passou a ser pobre. Passou para uma situação financeira, assim, um pouco decadente. E o que que ele, qual foi a opção dele, em termos de, alguma coisa eu tenho que tirar. O que que eu vou tirar? Eu tiro a escola particular. Porque ele não valoriza a educação, não porque ele não tenha dinheiro. Arivan: Mas o fato de ele escolher isso... (incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Eduarda: Então entre colocar o filho na escola pública, de preferência no Nívea, no Lineo Cuiabano, no Méritos... Arivan: Que é de centro. Vitória: Porque acredita-se que a de centro... Eduarda: São melhores que as da periferia... Arivan: Que é uma ideologia que existe naturalizada também, né? Eduarda: É. Vitória: É também. Eduarda: Então acreditando nisso, aqui no Nívea tem uma pesquisa, muitos pais colocaram porque o Nívea é uma escola muito antiga e os pais estudaram aqui, então tem uma grande parte (incomp.) feita pelo PDE é porque eles estudaram e então acreditam que a escola continua com aquela mesma tradição. Então o que eu vejo é mais esta crença do que a questão financeira. Eles tiram. Eu tenho aluno aqui, que estudou, ontem mesmo ela falou comigo, que estudou na mesma escola do meu filho, na Livro Horto, que é R$ 530,00 uma mensalidade. Entendeu? Ela estudou lá. E ela estava questionando as duas escolas, fazendo um comentário, o que que acontece? A família ficou pobre? Não. Ela tem celular, entendeu? Ela tinha uma religião tal, que era essas religiões, né, não é católica, (incomp.) não sei qual. Mas fica claro nessa menina e nos outros também. É a questão de priorização do pai. “Eu tenho que tirar uma coisa, eu vou tirar a educação”. É o meu caso. Eu me baseio por mim. É a mesma situação. Eu tinha uma situação financeira X e eu caí. Eu tirei o que? O meu carro é velho, entendeu? Eu não tenho móveis novos dentro da minha casa, mas eu priorizei a educação do meu filho. Então, ele continua numa escola particular com tudo que eu osso fazer para isso. Mas isso é uma questão minha de professora. Vitória: Tem pai, por exemplo, Não você tocou no ponto certinho mesmo, eu vejo lá no Altamira também. O problema assim, o pai acha que o ensino médio da escola pública ou da escola particular não está tão diferente. Eduarda: Diferente. É a mesma coisa. Vitória: Então por que que ele vai pagar 500 se ele pode não pagar nada e às vezes tem até um ensino melhor. Tem pai que pontua isso.

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Arivan: Eles acreditam nisso? Eduarda: Eles acreditam nisso. Vitória: Por incrível que pareça eles acreditam e pelo que a gente vê a escola pública parece que é amplamente desacreditada, mas lá no Altamira a gente pergunta”por que que você veio para cá?”, “professora, aqui é a melhor escola do ensino médio que tem”. Eduarda: É. Vitória: Você não sabia, em Várzea Grande? Falei “Ah, é?”. “É, fulano passou no vestibular, fulano passou no vestibular, fulano...” Arivan: A escola divulga isso ou não? Vitória: Divulga. Entendeu? Coloca faixa. Arivan: E aquela coisa, a princípio eu tinha pontuado aquela questão do, do,do, eu reflito quando falo, pensando nos meus alunos lá, parece que o pai da classe média ele sabe que o menino tem que aprender porque para ser da classe dominante ele precisa se desenvolver intelectualmente, então paga o cursinho de inglês para ele, paga a escola particular e é aquela coisa da ideologia mesmo, os meus alunos ficam lá “ai, teacher, é difícil, ai eu não consigo aprender” e não querem, não estão motivados, e na escola particular os meninos têm preguiça também, mas o pai não tem esse negócio não “você vai aprender, você vai estudar”, porque o pai sabe que é importante. O pai da escola pública não sabe, mas ele não tem aquela visão, né... Eduarda: O pai da escola particular paga. Vitória: O próprio cursinho de inglês, Arivan, quantos alunos eu tive no instituto que odiavam inglês, que falavam bem assim, “teacher, eu venho porque senão meu pai não vai deixar eu ir ao shopping”. Eduarda: Exatamente. Vitória: Meu pai não vai deixar eu viajar. Arivan: Você concorda então com essa questão de que o pai sabe que é importante por isso ele obriga? Vitória: Ele obriga, entendeu? Em relação ao curso de idiomas ele obriga. Quantos alunos eu tenho no Altamira que estudam lá porque faz Kumon de português e matemática, mais inglês, mais karatê. Arivan: O pai preferiu cortar a escola mas manter isso? Vitória: Pais colocam na escola normal para manter o inglês, o Kumon de português e matemática e o karatê. O que que ele está fazendo aí? Que que é importante? O português e a matemática do ensino tradicional e o inglês por causa dessa mídia mesmo, a questão da ideologia que tem aí. Eduarda: E isso, eu tenho um casal, amigos, os dois são jornalistas, quer dizer, pessoas muito bem informadas, ele é professor da universidade federal e o filho dele estuda na escola pública, inclusive no Ferraz Menezes. E ele fala “eu ponho na pública”, ele fala assim, claramente, “eu ponho na pública, o dinheiro que eu estaria pagando uma escola particular, eu estou depositando na poupança para ele porque depois que ele terminar o segundo grau esse dinheiro é para investir realmente na formação dele. Arivan: Lá em Sinop eu via isso também, as escolas do centro eram cheia de gente... Eduarda: Eles tem dinheiro para pôr na particular. Arivan: Quando eu via isso lá em Sinop e em Colider também, tinha muita gente que eram donos de posto de gasolina... Vitória: Tem gente que acha um desperdício pagar escola particular.

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Arivan: A dona da Mira Rio, Materiais para construção, mora lá em Colíder uma das sócias, os filhos dela estudaram na escola pública à noite, porque trabalhavam na loja durante o dia, antes quando eram crianças estudavam na escola pública... Eduarda: E as cidades menores, eu vejo por exemplo na minha cidade, não como você escolher, só tem públicas. Arivan: Lá em Colíder tem Objetivo, Positivo... Eduarda: Ou rico ou pobre é a mesma escola. O que vai fazer diferença, é que depois que eles saem do segundo grau, quem é rico vai para Juiz de Fora estudar no cursinho para fazer vestibular e quem é pobre continua lá na cidade mesmo e não faz mais nada. Entendeu? Porque não tem. Então, essa que é a diferença. Mas enquanto que está na cidade tem que estudar aquilo lá que é pública. Não tem opção da particular. Arivan: Que é muito pequena, né. O que eu coloquei, eu pontuei aqui na análise é que vocês começam dizendo que não existe lugar ideal. Eu falei assim eu perguntei “ah, tem para aprender língua inglesa?”. Vitória: Não. Arivan: Ela até avacalhou: “Posso falar mesmo, não sei o que”. Vitória: É. É aquela crença que eu tenho. Pela vivência do Eliton, do instituto, que aprendeu inglês sem nunca ter pisado num curso de inglês, do aluno que eu contei para vocês que veio lá daquele biboca para frente lá do Parque do Lago, lá no fim o mundo, numa favela que tem, aprendeu inglês sem freqüentar nenhum curso de idioma. Quer dizer, eu acho, o que eu coloco bem assim, quando você quer... Eduarda: Você consegue. Aquele menino do nordeste que também apareceu... Vitória: eu adorei a palavra fitinha que está na sua análise (incomp.) [todos falam e riem ao mesmo tempo]. Eduarda: Ouvindo rádio de madrugada no escuro, porque era o único horário que pegava e o sonho dele era aprender inglês. E ele achou uma rádio, um belo dia à noite que falava tudo em inglês e ele é um daqueles pobres mesmo, que não tinham nem luz, como diz o outro, ele aprendeu e apareceu nos jornais e fala inglês fluente e o inglês dele é melhor que o meu trocentos anos. Parece que esse menino nas nasceu lá, nesse, como que fala, nesse país que fala a língua. Só através de rádio, e não é de música não, é rádio aquelas falante, que é rádio falante, o menino, lá no nordeste. Vitória: (Incomp.) tem no Univale, que estuda lá em Rondonópolis, o Marcelo, ele é de Tesouro... Arivan: Aqui em Mato Grosso mesmo. Vitória: Desse tamanhozino. Eduarda: (Incomp.) Nem existia. Vitória: Não tem nem... Marcelo tem uma dicção no inglês que eu fico boba de ver, pronúncia,e tem um bom conhecimento por música (incomp.). Então, quer dizer, quando você quer, não importa o lugar, você aprende. Eduarda: E aprende mesmo. Vitória: Por isso que a gente coloca assim, quando ele vai lá para o instituto, eu obrigo ele a ir na frente, porque ele não quer! Eduarda: E tem um menino aqui, de segunda-feira, que menino, não acredito que esse menino está no primeiro ano já. Desse tamanhozinho aqui ele. (Incomp.) cabelinho sararazinho, “professora”, dá até nervoso. Quando ele chegou aqui, gente do céu, esse menino é um daqueles que vai me matar, né. Porque, olha, sabe aquela dificuldade, aquela coisa, não sei quê? Eu estava observando ele na semana passada, como que esse menino cresceu, desenvolveu no inglês. Mas como! Tanto

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de vocabulário e a questão da pronúncia. Ele no início, gente para falar alguma coisa, mas era uma dificuldade, o menino está assim, não é um expert porque ele veio, aí eu fui começar com ele, veio de uma escola onde não tinha língua nenhuma, era a primeira vez que ele estava aprendendo inglês, né, e desenvolveu para caramba. E por que? Porque eu estava no pé dele. José vai estudar, José vai estudar. José você vai ficar reprovado, hein. E fiquei no pé, no pé, no pé. Ele acordou, (incomp.) eu acho que ele assim acordou e começou a estudar. Eu quero olhar caderno, “e aí, você copiou matéria?”. Olha o caderno dele tem, ele fica, agora na sala eu pergunto, as pessoas falam assim, “professora, que que é isso?”, ele responde em inglês. Aquele vocabulário todo que a gente tinha trabalhado ele tem todo, está tudo na memória. Quer dizer, o querer. Entendeu? Pode ser até pressionado pela professora, mas ele deslanchou, porque tem outros que você pode, entendeu? Ficar em cima que ele não vai. Então, é preciso realmente... Arivan: Aí eu até coloco na análise que parece que vocês estão imunes então a essa ideologia de que existe um lugar, “ah aprende em qualquer lugar desde que queira e tenha objetivo, beleza”. Eduarda: E eu acho que isso é muito importante sim. Arivan: Aí eu até coloco, vocês nem citam o cursinho de idiomas, porque eu lancei essa pergunta esperando que vocês talvez mencionassem o cursinho, mas não, né. Só que daí, depois, num outro momento, o que acontece, a Vitória, assim, de súbito, a Eduarda tinha falado, eu perguntei daí como que vocês viam a prática pedagógica no cursinho de idiomas, aí, foi sua fala... Eduarda: Eu que sou Eduarda? Arivan: É. Aí, “eu volto na primeira, que funciona, porque lá tem um objetivo, né porque lá a escola é bem organizada...” Vitória: É você vai lá pra falar, né. Arivan: Aí você falou isso, “mas lá é um local de falar inglês”. Aí é a contradição que eu já tinha visto. Vitória: Mas eu não vejo contradição. Se eu disser que o centro de idiomas não é um local de falar, o que que é o centro de idiomas? Arivan: Mas você não acha que esse é um discurso de reprodução dessa ideologia, então? Vitória: Mas o centro de idiomas é criado para ensinar o aluno a falar. Arivan: Sim, mas é uma prática social com base nessa prática discursiva de que lá é o local de falar inglês. Vitória: Mas eu nem diria questão aí, por exemplo, quando você cria um centro de idiomas, para que que você cria? Para falar as línguas. Eduarda: Só que não são todos os centros em que os aluno falam, né, também tem isso. Vitória: Tem. Eu já coloquei. Por exemplo, tem aluno que fica lá no instituto por seis anos e não fala, porque não quer, ou porque o pai que obriga, fica aquela história, e vai, porque a gente vê, por exemplo... Eduarda: É, eu acho... Vitória: (incomp.) no São Clemente, por exemplo, Ted Moner, por exemplo, faz inglês no instituto desde os cinco anos de idade. Ele está agora no terceiro ano do ensino médio. As provas do Ted, ele não tira mais que cinco. O pai fala, “Vitória, professora, que que acontece?” Eu não posso falar de onde ele estuda, eu fico na situação super constrangedora e não é só ele, tem vários alunos, que fazem inglês há seis sete anos, e tem uns que até tiram sarro um do outro, “Ih cara, você já está sendo dono da escola, acho que você vai morar lá e você não fala, o que que é

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isso? (incomp.) e não consegue fazer essa prova”. Um tira sarro um do outro. Mas o centro de idiomas, é como a Zuleide mesmo coloca, “é minha galinha dos ovos de ouro”. “É minha galinha dos ovos de ouro” Arivan: Por que assim? Vitória: É para dar lucro. Eduarda: É para dar lucro. Vitória: A escola tem um objetivo, é dar lucro, ninguém vai abrir um centro de idiomas para não ter lucro. E o objetivo central dele não é como a escola pública, que aqui, assim, além de você se preocupar com a formação do idioma tem a formação do cidadão, tem toda essa... Arivan: PCN, né? Mas você acha que isso acontece na escola? Vitória: Eu acho que sim. Arivan: O PCN propõe, eu não sei se realmente... Vitória: Eu acho que sim, por exemplo, quando na sala de aula você coloca os alunos para interagir, conviver com o outro você está ensinando ele o que é ser cidadão, como se constrói a linguagem na comunidade, na interação com o outro, nessas coisas por exemplo. Eu acredito muito nisso. Lá no centro de idiomas... Eduarda: O único objetivo é que ele aprenda a língua. Vitória: Tanto é assim, que se você entra num instituto, por exemplo, para dar aulas, bate a Zuleide, “May I come in? E vai sentar lá, e a tua aula, 90% dela os alunos tem que estar em constante interação com o outro. Você não desenvolve atividades escritas em sala de aula, é tudo tarefa para casa. O workbook você corrige assim, mas é quinze minutos, você não pode gastar mais que quinze minutos de uma aula para falar de tarefa, workbook, você pega os textos, não pode corrigir em sala, você tem que levar para casa, para corrigir em casa. Então, o objetivo central, se entrou na sala... Eduarda: Tem que falar inglês, no caso inglês ou espanhol. Vitória: Tem que falar inglês, espanhol, lá só tem inglês e espanhol. [suprimido. Elas continuam citando escolas em que trabalharam e como era o trabalho nelas. Focam que os centros de idiomas são feitos para falar a língua. Vitória: [...]Imagina. Você iria pagar o centro de idiomas se não fosse para você aprender a falar o idioma? Arivan: Mas é o que está naturalizado. Eduarda: É. Vitória: É. Eduarda: E eu vejo, talvez uma coisa que esteja embutido que... Vitória: Eu nem diria naturalizada, eu diria que faz parte da constituição do próprio centro. Arivan: Mas tudo isso é discurso, né, Vitória. Porque assim, a gente não percebe, talvez, mas isso de você dizer assim, “ah, lá é o lugar de falar inglês”. Ah, realmente, é criado para isso. É natural. Vitória: É natural. Arivan: Mas existe essa ideologia... Vitória: Você não cria... Eduarda: Do mesmo jeito que o mercado vai vender frango, (incomp.) lá para vender na língua. E na escola pública, ela não está aprendendo só a língua, ela está aprendendo português, matemática, geografia, história, é tudo. O aluno não vem aqui para aprender uma língua. Vitória: E aí onde a escola pública, eu acho que a nossa tarefa é pior ainda, ou vai além ainda, porque lá, por exemplo, ele chegou, você tem o seu caminho

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papapapapá. Cumpriu, acabou. (Incomp.) um cursinho para o são Clemente. Cadê a cidadania? Cadê a formação integrada? Porque parece, aí é onde eu falo para você, de que há uma fala naturalizada de que a escola tem que formar o cidadão e dar a educação que falta em casa. Arivan: A sim, na minha escola é bem pior. Vitória: Aí eu acho que já é uma, vocês está entendendo? Uma certa certa ideologia, que na realidade, a educação de casa não é papel da escola dar. Arivan: E não é. Você acha que é? Vitória: Você está entendendo? Eu não acho que é. Por exemplo assim, a criança que briga com pai e mãe, xinga pai e mãe, o pai não corrige nem a mãe corrige, chega na escola, é obvio que ele vai xingar... Arivan: Não tem limites, né. Eduarda: É baderneiro... Vitória: É obvio que ele vai xingar o professor. É lógico, a escola tem que contar até onde vai o limite dele dentro daquele contexto. Entendeu? E aí é onde chega até às vezes a entrar em choque com o próprio pai, porque tem pai que chega e fala bem assim, “ah, mas meu filho grita comigo”, “pai, mas vê lá”. Então você é um constante embate entre os discursos de qual é o papel da escola, qual é o papel da família que hoje, ninguém quer ter a responsabilidade. Quer dizer, a família quer transferir a responsabilidade dela para a escola. Quando a escola cobra, a família acha que a escola está massacrando, então, tem esse embate assim que é direto. Vamos pegar a própria escola pública, vem um aluno aqui dando chute no outro. A Eduarda vai, “para, vai para a coordenação”. Chega lá a coordenação faz... Eduarda: Um bilhete. Vitória: Uma notificação, manda embora e chamar o pai. Tem pai que acha errado e ainda vai atrás de conselho tutelar porque a Eduarda expôs aluno. É! Eduarda: E tem pai que nem vem aqui saber do que se trata. (Incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Eduarda: Eu acho que enquanto língua estrangeira, o aluno não vem na escola pública para aprender língua estrangeira. Vem para aprender português e matemática, que as matérias consideradas importantes. Arivan: Importantes, você vê por que? Eduarda: Entendeu? Vitória : Porque todo concurso que ele vai, todo processo seletivo que ele vai, todo... Eduarda: É bem verdade, então os próprios pais. Os pais têm preocupação de saber nota de português e matemática. Vitória: Agora, de onde surgiu isso de português e matemática? Eduarda: Pergunta, não sei na sua casa, na sala, na sua área de escola, mas eu conto no dedo o pai que vem saber da aula de inglês. Dia de entregar nota, entrega o boletim, e a gente fica na sala para o pai vir consultar e eles procuram o professor de português e o professor de matemática e procuram o professor que o aluno está com a nota ruim. Ele jamais procura o professor de língua estrangeira. Vitória: Não, mas mesmo se língua estrangeira estiver ruim (incomp.) [Eduarda fala ao mesmo tempo]. É inglês, é espanhol, não reprova. Esse é um discurso bem naturalizado. (Incomp.). Arivan: E o pai da escola particular, vai atrás? Eduarda: Vai, porque ele está cobrando o inglês. O pai da escola particular, no caso o centro de idiomas, ele está cobrando é só o inglês ou o espanhol, porque é só

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aquilo ali. E o da escola particular cobra tudo porque ele está pagando, muito caro, por tudo. Vitória: É. Eduarda: Ele está cobrando até por um pedaço de lã que ele comprou, um novelo de lã, que era para ser dividido com todo mundo, entendeu, e que o filho dele não usou a lã vermelha. Então, “onde é que está a lã vermelha?”. Até isso. Essa é que é a diferença. O da pública não comprou. Arivan: Não comprou em tese, né? Eduarda: Ele acredita que ele não comprou. Arivan: Porque existe o discurso de que é público, né; Eduarda: É público (incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Deixa quebrar, deixa colocar chiclete aqui em baixo, por que? Então essa é que é a diferença muito grande que (incomp.). Eu vejo nesse sentido. É porque não veio aqui para isso. Entendeu? Lógico que aqui você vai ter alunos que gostam, como você vai ter lá também alunos que gostam. Aqui você vai ter aluno que detesta e lá você vai ter aluno que detesta. Vitória: Que odeia, nem detesta, odeia, né. Eduarda: É. Aí os dois são obrigados. E a gente vê coisas, assim, por exemplo, no projeto, eu tenho aluno que realmente não gosta e não vem. E ele reprova, porque sabe que a mãe dele não toma conta, entendeu? Arivan: Aí quando eu pedi para vocês falarem sobre a parte pedagógica, fazer um paralelo, teve uma hora em que eu falei assim, “tem como estabelecer um paralelo entre a prática pedagógica no cursinho de idiomas e a escola pública?”. Aí vocês fizeram e nisso eu montei uma tabelinha. Tá. E sobre instituto de idiomas vocês colocaram 16 pontos. Tem um objetivo comum a todos, os professores têm boa formação lingüística e metodológica, planejamento, uma hora e meia de aula, uma atividade diferente a cada dez minutos, interação entre... Eduarda: (incomp.). Uma hora e meia de aula, acho que seria bom explicar, né? Porque são três horas semanais. Uma e meia por aula. Nas escolas públicas variam. Às vezes, tem escola que é uma hora só por semana e tem escola que é duas. Vitória: Agora está tudo uma hora relógio, para 2008. Todas as escolas terão uma hora relógio de aula de línguas. Arivan: São todas, são quatro aulas agora, não é? Quatro horas em todas as escolas, de uma hora seguida. Vitória: Uma hora, você acredita? Das sete às onze. Eduarda: Então, aqui continua sendo duas. Vitória: por causa do projeto. [Suprimido – falamos sobre a questão da quantidade de aulas. Eduarda frisa que seus aluno acham melhor fazer inglês no horário o oposto por serem duas horas de uma vez. Leio também os outros itens relativos ao que as professoras falam com respeito ao instituto de idiomas e a escola pública. [A fita acaba enquanto leio]. Eduarda: Então, a gente consegue lembrar aqui nessa realidade. Agora imagine você com dez turmas. Arivan: capaz. Eduarda: Com trinta e cinco alunos dentro da sala (incomp.). Vitória: Eduarda, no Altamira é vinte turmas. Arivan: Eu tenho quatorze. Eduarda: Pois é. Imagine você com vinte turmas com quarenta quase. Tem como você gravar nome de aluno? Arivan: Eu tenho aluno no primeiro ano que eu não sei o nome.

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Eduarda: E vai chegar no fim do ano sem saber. Eu tenho aluna, que faltou quatro aulas seguidas e mais esse feriado, ele chega aqui e eu sei o nome dele. Arivan: E isso conta muito, né. Eduarda: E isso conta, porque o aluno é o aluno. Eu digo assim, “tem gente aqui que não veio, está achando que isso aqui é turismo?” Aí eu já olho para ela, porque eu sei quem é ela. Ela faz até assim, “professora”. Isso você consegue com quarenta alunos? Lá No Unibras e no Unirio com aquelas turmas de oitenta, chega no final do semestre e eu não sei o nome dos alunos. Sei daquele que fala mais, daquele que tem que chamar a atenção. (Incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. [suprimido] Vitória: Mas eu acho que, não sei, eu acho que essa visão que na escola pública o aluno é aluno não está sendo assim, simplesmente o aluno. Porque antes, qual era o papel do aluno e qual é o papel do aluno hoje que ele cumpre dentro das escolas? Você vê hoje, o aluno, ele reclama de professor, numa escola pública, por exemplo, ele reclama, coordenador chama atenção do professor. Então ele mais aquilo que era antes. Eduarda: Aqui isso não é assim não. (Incomp.) Vitória: Vamos supor que você está dando aula, você está cobrando, você está exigindo, ou se você briga, o que acontece? (Incomp.) [Eduarda grita algo ao longe e as vozes se misturam. Há um alvoroço, porque a Eduarda acaba de receber um documento da SEDUC que se mostra favorável ao desenvolvimento do projeto]. Eduarda: Olha aqui, “somos favoráveis ao desenvolvimento do projeto”. (Expressões de entusiasmo por parte dos três). Eduarda: Graças a Deus. Arivan: Que bom, né! Que bom, a Eduarda vai trabalhar mais sossegada. [Há gritos de alegria misturados à voz do diretor que veio trazer o documento]. Vitória: E aí, por exemplo, você na hora de conselho de classe, como que eles fazem o conselho de alunos, né, o que que é o conselho de alunos? É a voz do aluno dentro da escola. Vocês tem conselho de aluno aqui? Eduarda: Aqui tem. Agora, o que eu vejo aqui na Delta, a escola é muito grande, então essas coisas não acontecem. Assim, o coordenador não tem um acompanhamento, entendeu? Vitória: Nem no conselho de alunos, depois eles dão um retorno para vocês? Eduarda: Nada, nada. Vitória: Nossa, no Altamira, aquelas, o primeiro na encontrou isso e isso... Eduarda: Nada, nada. Vitória: O segundo ano pontuou isso... Eduarda: Nós não temos nada. Sabe, por a escola ser muito grande. E de não ter na realidade, gente, eu vejo assim, agravando (incomp.). [Suprimido – sobre como se fazem nas escolas os conselhos de alunos. Falam também da desorganização nas atividades com os professores por parte da coordenação da escola Nívea. Falamos também sobre conselho de classe]. Arivan: A análise que eu fiz dessa tabela é que o simples fato de vocês terem falado muito mais da escola de idiomas, mostra assim no discurso de vocês mostra que vocês dão um valor maior, acreditam mais naquilo, né, do que na escola pública. E as coisas faladas da escola de idiomas são positivas, enquanto que da escola pública são negativas, mas eu acho que eu falei mais sobre a questão quantitativa mesmo, n´?

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Vitória: É. É, foi. Arivan: Até porque falou mais na escola, inconscientemente acaba mostrando que realmente funciona melhor. Vitória: Com certeza. E eu acho que a crença nossa, pelo menos a minha é que se é um lugar onde vende a língua, ela tem que funcionar melhor. Eduarda: Não, e eu acho que ela funciona. Vitória: Não que a escola pública não possa chegar a esse nível. Eduarda: Ela pode. Vitória: Ela pode, mas até ela chegar a esse nível, nós temos que fazer muita coisa ainda. Eduarda: E porque ainda... Vitória: Eu nem diria assim, o professor fazer, mas o próprio governo fazer. Eduarda: A escola como um todo. Vitória: Não vê a luta do projeto? O projeto é uma perspectiva do ensino diferenciado, que pode chegar ao nível da escola pública. Arivan: E o governo não queria aprovar, né? Eduarda: E não queria. Vitória: Então você vê que é um embate aí que, o próprio sistema do governo não deixa esse avanço acontecer. Eduarda: E detalhe simples, assim, claro... Vitória: Você acha, assim... Eduarda: Você falou do objetivo da escola particular. O cara que montou uma escola de idioma ele quer dinheiro, ele quer lucro, então ele tem que fazer tudo funcionar para ele ter esse lucro. A escola pública, o professor, o diretor, o não sei quê, todos nós, não estamos pensando em lucro da escola. Arivan: O salário é salário, né. Vitória: “Se eles não sabem nem português, para quê inglês?” Você imagina se na escola pública tivesse uma sala, professor qualificado, materiais didáticos-pedagógicos disponíveis, a mesma carga horária, tivesse as condições que o centro de idiomas tem. Eduarda: Todo mundo com o livro na mão, como você falou lá na sua escola. Vitória: Você não acha que seria diferente com o CD, com a fita. Arivan: Eu não li não, mas é o que se faz na Europa, não é? Vitória: Não seria diferente. Eu diria assim que não seria diferente. Arivan: Eu acho que não. Mas é aquela coisa, eu tinha visto assim, como aquela

coisa de agência ideológica de estado, a escola é uma agência ideológica de

estado, o estado, né, o governo é uma agência ideológica de estado que serve ao

sistema capitalista, que para se manter precisa de dominados e dominantes.

Vitória: Ah, sim. Arivan: Então, essa... (Incomp.) Vitória: [...] Dessa prática discursiva do estado, dessas mesmas atitudes de não aprovação, de deixar as línguas estrangeiras à margem, de uma valorização dentro do sistema de ensino estadual, pode ser que tenha essa carga ideológica que você esteja colocando, mas a questão principal que eu vejo, é a questão do lucro mesmo, que eu falo que a escola pública também tem que dar lucro. Quanto de impasse se tem hoje para que esse projeto aqui vá para as outras escolas. A carga horária. Arivan: Gasto com professor, né, que vai ter que pagar professor.

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Vitória: Aumenta. Além de aumentar mais uma hora para mim, por exemplo, na minha escola são treze salas, treze salas, éh, três professores de língua estrangeira dão conta para uma hora por semana. Éh. Três não, dois. Um pega espanhol o outro pega inglês. No máximo três. Se fossem duas aulas por semana e fora da carga horária como é aqui, não seriam três, seriam seis. Dobra. Imagina essa dobradinha em todas as escolas públicas quanto que não ia aumentar a questão de folha de pagamento. E isso que eles estão cortando. O que que é isso? Isso em relação ao lucro. A secretaria quer que o dinheiro sobre. É uma relação de lucro. Eduarda: Só que quem está na escola não pensa nesse lucro. (Incomp.). Arivan: Porque o aluno não é cliente, você falou isso, né? Eduarda: Exatamente. Ele é aluno, simplesmente. Ele, não cobra... Vitória: E você acha que o pai vem cobrar? Pois é como agora... Arivan: Porque ele não fala inglês... Vitória: Nós tínhamos duas aulas por semana de inglês, agora vai ficar uma por semana, uma para inglês e uma para espanhol, assim como para você também. O pai vem questionar? Arivan: Capaz. Deve achar bom... Vitória: Adora. (Incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Eduarda: Óh, um aluno da escola particular quebrou o vidro da janela. O pai teve que ir lá e pagar. O da pública, ninguém cobra e aí fica nisso mesmo, porque o pai não paga. O ar condicionado daqui, se eu desligar ou não, fica na mesma. Se eu sair e desligar, ótimo, porque eu tenho essa consciência enquanto professora. (Incomp.). [Suprimido – falamos sobre questões de responsabilidade com relação ao equipamento da escola. Também, sobre a educação dos alunos(limpeza da sala por exemplo)]. Arivan: Até eu coloco aqui, tudo, né, a coisa do cliente, de atender ao público, até cito a experiência lá do CEPROTER, sempre eles falavam assim, que lá se primava por um padrão de qualidade. Existe uma ideologia lá de que CEPROTER é diferente de escola pública. Lá tem toda uma estrutura, equipamentos, investimentos. Então o povo que ia dar treinamentos lá falavam, “vocês não podem atender ao público, tem que atender ao cliente”. Essa coisa de atender ao cliente, nossa, muda totalmente, o cliente é outra coisa, tem que ser tratado como rei. Vitória: Como você trataria um rei sem uma educação se exige uma qualidade? Arivan: Qualidade total, excelência no atendimento. Excelência no atendimento na escola porque o produto tem que ser bom, né, para vender. Eduarda: Exatamente. Vitória: Vou ter que deixá-los. Tenho aula às sete horas no UNIVAR. Arivan: A única coisa que eu fechei depois, o uso do eu e do nós. Foi até a Vitória. Quando ela fala assim, quando ela se refere à escola particular, ela fala “ eu tenho, eu tenho não sei o que...”. Quando é a escola pública é nós. Então, eu interpretei isso como sendo assim, na escola particular, ela meio que se identifica, “Ah, eu tenho”, ela se aproxima. Quando é a escola pública não, é “nós”. Então, é todos os professores, né, não expressa um compromisso maior. Eduarda: Até porque, mas isso também é muito grande na escola de idiomas, sabe por que? Você entra para pegar aquela turma X, então, você vai ser professora do nível 1, vamos supor. Na escola pública, você não sabe que turma você vai pegar. Ela não é a sua turma. Na escola de idiomas, isso é muito definido, “essa é a sua

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turma”, você vai lidá-la desse jeito. Aqui na escola particular não. Hoje você está aqui, amanhã você pode ir para outra. Entendeu? Vitória: Na pública você não sabe, eu fico me perguntando, que horário eu vou dar aula... (Incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Eduarda: Na escola particular não, você fala “olha, meu currículo está aqui, meu horário de trabalhar, eu quero dar aulas no período da manhã”. As suas aulas serão no período da manhã. Aí eu posso, às vezes,... Vitória: São Clemente, vamos pegar assim, diferente de centro de idiomas, São Clemente, eu só dou aula no terceiro ano. [Suprimido – falam sobre a questão da organização do horário nas escolas em que trabalham]. Arivan: Mas a única coisa que eu fecho aqui é que a Eduarda dá a sua cartada final, quando ela fala, que no centro de idiomas o aluno é cliente e que na escola ele é aluno, simplesmente. Aí a última frase que ela fala, que foi assim, a coroação, “E aí fica perdido”. A escola pública, tudo está perdido, porque foi essa coisa, né, a coordenação não fala inglês, não há uma supervisão, não pe aquela coisa de qualidade. Eduarda: E quem se preocupa com o resultado, a escola (incomp.), quem? Vitória: A escola pública preocupa que no ano que vem nós vamos ter mil e setecentos alunos para manter a mesma quantia do PDE? É a preocupação que está no Altamira. Eduarda: Só que, uma escola como a nossa aqui... Vitória: Nós não podemos ter menos de mil cento e setenta alunos, porque se tiver menos, vai faltar dinheiro, e se faltar dinheiro nós não temos como manter a escola. É esse o discurso hoje. Gente, vamos ver as condições desses alunos. Eduarda: Vamos ver porque os alunos estão diminuindo. Vitória: Porque que a maioria dos alunos tem que se aproximar apara passar, o que que aconteceu com o português, ou com o inglês ou com a história, como está sendo a nossa prática de sala de aula, os alunos vão precisar de um apoio, vamos escrever um projeto para apoio de língua portuguesa... Arivan: Vitória, obrigado, viu. Semana que vem a gente lê o quê? Eduarda: Aqui gente, será que semana que vem a gente vai conseguir ler? É a última semana de aulas aqui. [Fim da gravação].

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ANEXO C – Conversa colaborativa II - 26/04/2008 (na casa da Eduarda). Arivan: Aqui no começo não é bem isso não. Vai falar sobre política mesmo. Mas o ponto de vista baseia-se principalmente nessa coisa de compromisso co a educação. Que é isso que a Leila está vindo com um contra-discurso em relação a isso. Porque ela sempre falava assim: “Não Arivan, a gente não pode abaixar a cabeça”. Como essa coisa de não repor aula corretamente, que a coordenadora queria. Agora ela já fala diferente: “eu vou andar do jeito que anda a carruagem, do jeito que vai o rio o barco vai”. Eu não vou mais me estressar com essas coisas, não ganho o suficiente pra isso. E justamente ela está respondendo ao discurso hegemônico de deixar as coisas como estão porque é interessante. A classe pobre (incomp.) [Vitória corta]. Vitória: Porque é aquela velha história quando é que nós vamos furar ou perfurar essa super-estrutura. Eduarda: (incomp.) Vitória: É. Então o que nós podemos fazer em pequenas atitudes é fazer com que as pessoas percebam e aos poucos ir criando laços, criando laços, mas não de romper. Acho... Arivan: É, não de romper, de mudar. O negócio não é romper. É mudar para promover ali pequenas mudanças para diminuir as assimetrias, as diferenças, não é romper não. Vitória: É. Acho. Eduarda: Senão você cansa. Porque quando você entra de cabeça, você entra com muita coragem, com muita força, muita energia, e aí você vai praticamente sozinho. Vitória: Frustra. Eduarda: E aí você se frustra. Porque quando você está fazendo esse trabalho, esse trabalho é um processo muito lento. Ele tem que ser pelas bases e ele é muito devagarinho. Provavelmente você nem pode esperar resultados. Arivan: Não a curto prazo, né? Eduarda: É. Vitória: É, né. Eduarda: É uma coisa de enquanto você está lá não precisa esperar resultados. Você entendeu? Arivan: Mas lá ela está trabalhando com texto dentro da sala. Vitória: Por exemplo se a Lavínia estivesse lá junto com o sindicato pensado que não iria ser como ela pensava, que nem todos ali defendem o mesmo pensamento, defendem a mesma maneira que ela defende, e que ali tem alguém que de uma certa forma está influenciado por relações de amizade, por relações de poder dentro do próprio sindicato e com a nova secretária e com o novo secretário. Então é uma coisa complicada. Eduarda: Ela foi de cabeça. Como fazem muitas pessoas. Arivan: Ela tem esse espírito. Eu falei, “Lavínia, você deve voltar, você agora deve estar meio frustrada, tal, né”. Mas eu acredito que ela vá voltar porque isso faz parte dela. Vitória: E eu achei que nós tivéssemos um aumento significativo. Eduarda: Não! Arivan: Quanto será que foi por cento, eu nem calculei. Eduarda: Você não teve nada, nada, nada, nada. Arivan: Mas se subiu o piso o nosso sobe também.

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Eduarda: Mas isso sobe, é automa... isso é lei mesmo. Ele tem que subir. Entendeu? Arivan: Mas com essa história de imposto de renda eu acho que vai acabar é ficando pior para mim. Eduarda: Não adianta em nada, não. [Li o texto (Mundo Jovem) e elas acompanhavam na fotocópia que levei]. Arivan: Não sei se vocês conhecem essa revista Mundo Jovem. Vitória: Conheço. Eduarda: conheço também. Arivan: Ela tem essa, essa, coisa que a Lavínia fala essa coisa de ser cidadão, de participar. Vitória: Ela é dos Salesianos. Arivan: É, é uma revista católica. Eduarda: A Lavínia trabalha muito com a leitura dela com os meninos. Arivan: Quando eu estudava na oitava série tinha uma professora que usava muito ela. Ajudou muito a criar senso crítico, essa coisa toda. Eles batem muito em cima disso. E vem de encontro com a proposta do meu projeto porque o ponto que eu defendo, assim, basicamente toda essa coisa que a gente vê na superfície de não ter recursos, de haver poucas aulas, de a própria SEDUC querer ir contra o projeto, por exemplo. O projeto representa um avanço em termos de formação de contra-discurso, de resistência à ideologia de que a escola pública não é lugar de se aprender inglês, porque para a classe dominante não é interessante. Para os pobres as migalhas, para eles verem que inglês é importante mas eles não vão aprender. “Isso é coisa para rico, para quem pode. Ah, eu não posso”. Às vezes ele aprende um pouquinho, mas é muito difícil para ele. É o que eu vejo os meus alunos falando, “ah, inglês é muito difícil”. Mas não dá para aprender inglês numa aula por semana. Então eu defendo esse ponto. Se a gente quiser mudar essa concepção, a gente pode até fazer grupo de estudos para ajudar a melhorar, mas aí vem o problema, professor não ganha para isso, essa hora extra, né. Tem que trabalhar em vários lugares. Os obstáculos são muito grandes. Só vai mudar um dia se a população, se as pessoas forem conscientizadas de que isso não é interesse da classe dominante, e forçar, por meio da consciência, forçar a diminuição das assimetrias. O dia em que se perceber mudando, se voltando contra essa ideologia de que na escola pública não se vai aprender inglês porque não é do interesse da classe dominante, é que a classe subalterna, vamos dizer assim, vai forçar e vai se mudar alguma coisa realmente. Vitória: Eu acho, Arivan, que não é nem acabar com o discurso que se tem que na escola pública não aprende. Porque eu acho que aprende. Não vai aprender a mesma coisa que aprende numa escola particular, cuja carga horária é muito maior. Eduarda: É, maior. Vitória: Então, deixa eu ver assim, como que eu diria, eu vejo assim, se na escola pública nós tivéssemos, né, porque, quais são os entraves, nós que estamos lá na realidade do dia a dia? 40 minutos ou 45 quando tem, né. E você tem um 45 por semana que dispensado. dispensado. Arivan: Ah, sim. Tem turmas em que eu entrei três vezes até agora. Vitória: Já foi dispensado. [risos]. Então. Quando você pega, o que que eu acho que é assim o principal, mesmo, fator: as condições de trabalho. Então, encarar que, língua estrangeira na escola pública tem que ser prioridade porque são para pessoas que não têm acesso econômico e social de pagar. Porque quem tem, é como os meus alunos do São Clemente falam “professora, não quero, sabe por que?

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Ano que vem eu vou para a Inglaterra. Vou ficar dois anos lá, lá eu aprendo. Ficar aqui quebrando cabeça com isso”. Então isso porque ele tem dinheiro, o pai pode pagar, ele pode ir. Eduarda: E ele já tem essa perspectiva. Vitória: então, ele já sabe que isso vai acontecer com ele. Que ele está num instituto por acaso até chegar no segundo ano para sair para fora do Brasil, sair do país. Na escola pública, o que acontece, se pensa nessa formação política que eles tanto defendem, que é essa sucateação das disciplinas, cada vez mais aumenta mais disciplinas no currículo para eles, para se abranger mais áreas de conhecimento, mas não se aumenta carga horária. Ele e não aprende nem uma nem outra. Eduarda: Nem uma nem outra. E tem o discurso ainda de formar cidadão. Ele precisa de ter filosofia, ele precisa de ter sociologia, porque isso vai ajudar na formação dele enquanto cidadão. Vitória: E eu vejo, você agora que está na rede pública, a Eduarda que já está há muito mais tempo comigo, o que que eu vejo, uma política lingüística para a língua estrangeira. Por exemplo, sem essa obrigatoriedade, porque na lei maior não tem obrigatoriedade de ser inglês ou espanhol, não tem! É uma língua estrangeira. Bom, mas que essa língua estrangeira seja bem ministrada. Quando eu falo bem ministrada eu nem falo no aspecto da metodologia e do conhecimento de língua do professor, mas que se tenha uma carga horária que possibilite a aprender essa língua. Tem uns artigos da prof. Telma Gimenez com a Vera Menezes, onde elas vêm discutindo que a universidade não dá conta de formar o aluno, porque lá eles tem também três horas por semana. Essas mesmas três horas por semana que ele tem de inglês ele tem de português, ele tem de lingüística, ele tem de literatura, e coisa que ele sozinho depois ele possa ampliar muito. A língua estrangeira a princípio, ela exige um certo acompanhamento até que o aluno tenha uma autonomia para aprender. Arivan: Mas o ponto que eu defendo, Vitória, é que mesmo essa coisa, assim, de não haver uma política, é respondendo a uma ideologia dominante de que não é para o pobre aprender a língua estrangeira. Porque... [Vitória corta]. Vitória: Sim, o que se percebe que na rede pública não é para aprender nada. Arivan: Claro, porque eles vão ser a classe dominada... Eduarda: É, não é só inglês. Arivan: Não, é tudo. Vitória: Porque você observa as onze disciplinas, tem as onze disciplinas, as que têm mais aulas estão com duas por semana ou três. Arivan: Português e matemática. Vitória: Português brigou ficou com três. Porque agora criou-se nas orientações curriculares, já tem orientações curriculares específica da área de literatura. Então, quer dizer, já tirou a literatura, da redação... e o que que acontece? Três: uma aula de redação, uma de gramática e uma de literatura. Cadê a produção de texto, fica onde? Eduarda: E isso quando colocam. Por exemplo, na Nívea, eles, é, fizeram uma grade lá que ninguém consegue entender o que aconteceu. Então, assim, não tem literatura... Vitória: Está junto com a língua. Eduarda: Entendeu? Aí não tem a carga horária suficiente da língua, e o que tinha uma língua estrangeira, no caso tinha espanhol e inglês, tiraram espanhol puseram só inglês, o aluno vinha fazendo só espanhol, agora ele tem que fazer inglês, com uma vez por semana. Aí a sala que às vezes tinha 40 passou a ter 80.

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Vitória: Agora você imagina a Vera Menezes com a Telma Gimenez reclamando das universidades, da grade curricular do curso de Letras que são três horas por semana que é a mesma carga horária de um centro de idiomas que são três horas por semana, não dão conta, nós com 45, 50 minutos, nós aprendemos, assim, a conta gotas, o que nós deveríamos, né, dar conta em um ano a gente leva três anos. Arivan: É a universidade para formar a grande massa da escola pública também. Então, para quê formar bem os professores? Uma coisa está muito ligada à outra. Eduarda: É uma bola de neve. Vitória: É uma bola de neve em que não querem romper. Como eu vejo, assim, o governo agora incentivando a escola aberta para a graduação, um monte de escola à distância, não é esse o problema. Não é! Você como você mesmo sabe, as condições de trabalho, além da grade curricular não favorecer, porque teria que aumentar a grade curricular, ele vai aumentar a despesa, vai onerar a folha de pagamento, qual é o outro grande fator que nós temos aí, a questão salarial, você sabe, para você ter um salário de três mil, você tem que trabalhar trinta horas, trinta horas, assim, em sala de aula, com todas as atividades. Eduarda: Exatamente. Arivan: Nem se eu trabalhasse isso, eu não consigo, porque eu trabalho vinte em sala em mal ganho mil. Vitória: Pois é. Teria que ser quarenta horas na realidade para ganhar dois mil. E aí como que você se qualifica, sozinha... Arivan: Mas é esse o ponto... Vitória: Então, está vendo, o que você fala, assim, é uma estrutura muito armada, que a gente, assim, com estes pequenos grupos de estudos vem, assim, conscientizando, trazendo um pouquinho da teoria crítica para o terceiro ano para ver se abre um pouco, né. É mais eu vejo, assim, primeiro e segundo ano, por exemplo, quando a gente pega para trabalhar o ensino da língua você não traz muitos textos porque eles não têm o domínio da língua ainda. Eduarda: É o terceiro você já pode jogar os problemas para eles. Eu acho que é muito mais fácil você pegar um terceiro porque eles já estão um pouco mais maduros e chegar perguntando, “você acha que você vai aprender inglês vindo aqui uma vez por semana?” Arivan: Aí você entra na discussão, se há alguma coisa que se pode fazer da melhora? Eduarda: Teórica, exatamente. “O que você sugere?” Aí você está conscientizando esse aluno que aquilo que está sendo dado para ele não é bom. Agora outra situação que tem às vezes que admitir e que os professores não admitem porque você está por traz disso quando eu digo lá na Nívea “vocês acham que a escola é boa? É uma merda! Vocês viram a média dela, a nota dela, aí em nível nacional? O que que deu? E você acha o que, que você está fazendo bonito porque está estudando na Nívea? Você acha que com esta média sua, você está pretendendo o que da sua vida? Você acha que cinco e meio numa média é bom? Imagina a metade do seu corpo, você az o que com ela?” Então, eles acabam, assim, se alertando e começam às vezes a questionar e a lutar com você também, porque que ele está naquilo, e começa às vezes a brigar junto com você. Por que que os alunos da Nívea um abaixo assinado para entregarmos lá na secretaria de educação para a continuação do projeto? Porque eles viram que é diferente. Arivan: É aquela coisa, o discurso da SEDUC, por exemplo. Ontem eu até falava com a Lavínia sobre isso, numa reflexão bem besta assim, mas que eu já ouvi alguém falando, eu falei assim para ela tinha uns rapazes lá, pedreiros, e eu

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reclamando do calor, como sempre, né, e eu vi aqueles rapazes lá sem camisa naquele sol e eu falei “nossa Lavínia” e eu falei “ainda bem que ele é negro pelo não menos não sofre tanto com a questão da pele”. Aí eu falei para ela, “mas eu já ouvi uns caras falando assim que preto é pobre porque preto pode ficar no sol e branco não, o branco tem que ficar numa sala com ar condicionado”. E isso na cabeça de quem pensou isso é uma justificativa natural, né, é a natureza, como a gente vai contra a natureza? Então, ele se sente totalmente, assim, né, estou certo. O que... [Eduarda corta]. Eduarda: O que tem também tem uma ideologia nas questões religiosas, né, que também passam isso, tudo, né. Num país como o nosso onde o cristianismo ainda é o que domina e que também prega essa ideologia, porque você tem que distribuir mas ele não distribui nada, né. Você tem que dar, mas eles não dão nada, né. Entendeu? Então também tem a questão religiosa e que é muito impregnada no povo. Arivan: Escola, religião são agências ideológicas de estado. O que a gente faz na escola? (Incomp.) o menino tem que calar a boca, o menino tem que ficar sentado. Você está adestrando ele. Ele não ode reclamar senão ele vai expulso da escola, leva advertência, não pode sair fora da linha, tem que ser disciplinado, senão leva advertência. Porque isso é para ele ser preparado para ser massa de manobra para o mercado de trabalho. Mal preparado, com um aprendizado lá suficiente para ele servir, mas não muito, porque o muito é para o filho da classe média que vai dominar. Vitória: Mas, Arivan. Não muito longe de hoje, nós ainda estamos muito jovens e vamos assistir quando o mercado da América do Sul for aberto mesmo você vai ver o quanto nós vamos perder de postos de trabalho para os venezuelanos, para os bolivianos e para os próprios colombianos que têm uma educação melhor do que a nossa. Você vê o Chile, o Chile tem uma população quase toda bilíngüe. É inglês e espanhol. Arivan: Pois é. E é uma tira. Esses países quase não tem nada de produção... O nosso grande feito é a produção agrícola. Eduarda: Nós somos um país rico. Nós temos um... Isso, eu acho que é (incomp.) O Brasil é um país rico. (incomp.) riqueza em quê? Vitória: Não muito longe daqui nós vamos assistir isso. E na nossa área mesmo já está começando. Com a abertura do espanhol já vem. Eduarda: Pessoas... Vitória: E você vai ver o que vai acontecer. Eduarda: Hoje nós, aqui em Cuiabá, nós temos muito peruano. Arivan: Tem na UNEMAT. Aquele professor que eu fiquei na casa dele quando eu vim procurar casa aqui é peruano. Eduarda: Então, nós temos muitos peruanos no Brasil dando aulas de espanhol, entendeu, e podem até não ter uma metodologia, mas dominam esse idioma. Vitória: É. Arivan: É nativo. Eduarda: Exatamente. E ele vai para a sala de aula (incomp.) e as coisas vão acontecendo. Arivan: Mas sabe, isso tudo a gente vê na estrutura, como a Vitória falou. Sabe, na infra-estrutura, por baixo de tudo, é porque... tudo bem que às vezes isso é inconsciente, mas o que baseia tudo isso são as idéias da classe dominante que estão de tal forma naturalizadas que a gente às vezes fica nessa discussão do que está na superfície. [Vitória começa a falar ao mesmo tempo].

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Vitória: Arivan, você quer ver. Onde que a filha da (secretária adjunta de educação) estuda? Os filhos do (secretário de educação), eles têm filhos? Arivan: Ah, se tiver, não é na escola pública. Vitória: A filha da Vera, eu dei aula para ela no Nossa Senhora, entendeu? Arivan: E é o discurso da pobreza, né, do trabalhador. [Todos falam ao mesmo tempo] (incomp.) Vitória: A fulana, o nome dela é fulana. Depois ela veio para o são Clemente. E agora não deve estar aqui que eu nunca mais vi essa menina. Eduarda: Eu não boto meu filho numa escola pública. Vitória: Mas eu estou louca que (filha da Vitória) vá para o Cetef, vocês não estão entendendo. Arivan: Ah, CETEF. Vitória: É pública. Arivan: É pública (incomp.) Eduarda: Eu coloquei... O (filho da Eduarda) estudou na escola pública. O (filho da Eduarda) estudou no Fernandes Medeiros. Um ano. A quinta série no Fernandes Medeiros. Arivan: Você tirou porque... Eduarda: Porque, você vê que a coisa não anda. Então... Vitória: Olha, eu vejo assim... Eduarda: Eu a princípio pensei fazer o quê? Eu coloco ele na escola pública e vou investir nas outras coisas particulares. Arivan: Muita gente está fazendo isso, né. Eduarda: Mas está fazendo isso por causa do dinheiro porque não está dando conta de pagar uma escola particular mensalmente. Porque a classe média tem o problema também ideológico de que o filho tem que fazer inglês, o filho tem que fazer natação, o filho tem que fazer isso e aquilo. Como ele não dá conta de pagar tudo isso e a escola particular, ele está alegando que ele coloca o filho na pública porque ele vai dar as outras coisas. E não é, é porque ele não está dando conta de fazer tudo. Vitória: Não está dando conta. Eduarda: Então ele joga o filho na pública. Mas na realidade é uma boa opção. É uma boa opção. Vitória: Já falei para a (filha da Vitória). Ano que vem eu vou pagar cursinho para ela o ano inteiro. Para ela fazer a seletiva do CETEF. Eduarda: Agora, ééé, você... O (filho da Eduarda) fez até o teste do CETEF, não passou e se tivesse passado não conseguiria cursar. Porque é o estilo de escola que ele não dá conta. Aquela coisa de, de, de não dar conta mesmo. Vitória: Conteudista... Eduarda: Ele, (filho da Eduarda) estudou a vida inteira em escola particular com poucos alunos em sala. Então, ele sempre foi (nome do filho da Eduarda), o menino (nome do filho da Eduarda), entendeu? O rapazinho (nome do filho da Eduarda). Essa coisa de identificação. E ele precisa disso enquanto ser humano. Arivan: Os meus aluno são anônimos, eu não sei o nome deles. Eduarda: Ele precisa disso enquanto ser humano. Eu enquanto mãe eu percebo isso nele. Entendeu? Ele precisa de uma escola que faça isso. Então, jogá-lo no CETEF, economicamente seria bom, para mim que sou mãe, né. Em termos de vida, sei lá o que seriam para ele. Vitória: Estou pondo na cabecinha da (filha da Vitória) já. Que (nome da filha da Vitória) e (nome do filho da Vitória) tem que ir para o CETEF.

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Arivan: Não, mas o pessoal que entra na UFMT muitas vezes sai do CETEF, porque lá tem qualidade. Eduarda: Sai. Arivan: É ideológico também, né, (incomp.) lá tem uma seleção para entrar, né. Eduarda: Não, eu já começa isso, gente. A escola, o problema mesmo... Arivan: Que só não é pobre também. Eduarda: Não, pode até ser gente pobre. Arivan: Alguns. Eduarda: Mas existe uma seleção. Entendeu? Existe uma seleção. Para entrar você tem que fazer um teste. Se você não tiver teste você não entra. Se você não passar nele você não entra. Então, já começa por aí, já está selecionando. Que o caso do vestibular os professores. Você entra para fazer Letras, uma língua estrangeira. Entra você que já tinha um domínio, entra você que não sabia nada. Você acha que nós vamos formar juntos, com a mesma carga horária e eu vou sair fluente tanto quanto você? Arivan: Capaz! Eduarda: Então, já está mais do que na hora de que os cursos de Letras do Brasil fazerem uma seleção, língua, para poder entrar. Vitória: (incomp.) Eduarda: Quem tem peito para fazer isso? Por que que quando você vai fazer vestibular de Música você tem que fazer um teste primeiro prático. Arivan: E é aquela coisa: e Música não um curso que tenha um monte de gente desesperada para fazer, né. Eduarda: Por que que quando você vai fazer Educação Física, você tem que fazer um teste prático. Corre, nada, não sei o que, não sei o que. E por que que num curso de Letras onde você vai aprender uma língua não? Aí entra o caso do concurso também. O que é fazer um concursos público para você lecionar um determinado idioma não se exige a competência lingüística dele? Arivan: Oral? Eduarda: Oral. Porque é só escrita. Arivan: eu só fiz a escrita. Eduarda: Todo mundo é só escrita. Brasília faz oral. Brasília é o único estado do Brasil... Que que Brasília faz e os outros não? Entendeu? Agora vai colocar isso, (incomp.) eles vão achar profissional? Lógico que acha. Pouco acha. Mas... Vitória: Tem que tirar, Arivan, esse negócio que tudo tem que ser inglês e tudo tem que ser espanhol.tem que dividir. Eduarda: (incomp.) Arivan: E o poder hegemônico do Inglês? Vitória: Eu acho que a escola pública deveria funcionar como centro de idiomas. Eduarda: Idiomas. Vitória: Cada escola oferecer idiomas para aquela comunidade. Olha tem professora Vitória, com carga horária de vinte horas, ela vai oferecer dez turmas, dessa turmas, quatro nível um, quatro nível dois e duas nível três. Arivan: Como na Nívea, o projeto, por exemplo. Vitória: Isso. E aí eu abro os meus horários, independente se o aluno estuda de manhã, se estuda à tarde, se estuda à noite, o horário que ele quiser fazer. Arivan: Você acha que isso é possível implementar. Como que se poderia fazer isso? Eduarda: Claro! Vitória: Lógico! Basta querer.

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Eduarda: Eu acho que isso fundamental. (Incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Vitória: Tem um professor efetivo tem espanhol, pode ofertar espanhol? Tem o da graduação do francês, tem o do italiano, tem o alemão, todas as línguas modernas deveriam estar na escola. Arivan: No sul acontece em alguns lugares isso. Vitória: Não, lá também é hegemonia. Eduarda: Não conheço. (incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Vitória: Lá é alemão porque tem alemão. Eduarda: Lá tem o alemão porque tem alemão. Porque a colônia é de alemães, entendeu? Agora o próprio professor se você disser, às vezes, num grupo que você é a favor de que se faça uma prova oral para que ele possa ser efetivo no concurso dele, como ele não tem esse domínio, ele vai ser contra. Só que, o que que acontece: tudo é de acordo com a necessidade. Se começar a fazer isso, as pessoas vão começar a estudar mais para passar no concurso. Arivan: Vão se obrigar a, né. (incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Eduarda: Como não obriga, então para quê que eu vou estudar. Arivan: Embora que quem passa, geralmente, é o pessoal que tem um pouco mais de domínio. Quem passou nesse último concurso? Eduarda: Agora, porque agora de, do ano, da minha época para cá, mudaram o concurso. Agora você tem que ter uma média sete. Se você não tiver o mínimo de sete você não passa no concurso. Arivan: E a prova estava difícil. (incomp.) não dava conta. Vitória: Mas também está sendo lucrativo o concurso. Eduarda: O concurso (incomp.) dinheiro. Arivan: O dinheiro atravessa tudo, né. Por que que é espanhol: por causa do mercosul. Por que que é inglês: por causa do poder... (Vitória interrompe) Vitória: Não é mercosul. O espanhol é por causa do Paulo Roberto. Ele é dono da Santiana Eduarda: É! Arivan: Ah! Arivan: Mas a desculpa é a questão do mercosul. Mas tudo é atravessado pela questão financeira, econômica, né. Vitória: Tem que dar lucro para alguém. É o capitalismo. Eduarda: Tem que dar, alguém tem que ganhar. E se alguém não ganha, você monta um projeto, e se alguém não ganhar, o seu projeto não vai para a frente. Alguém, vai ter barreira. É o caso, por exemplo, do nosso da Nívea. Ninguém, a gente montou esse projeto em que ninguém ganha nada. Arivan: financeiramente. Eduarda: Financeiramente. Ele não perde, porque não perde dinheiro porque está tendo o projeto, se é a mesma quantidade de professores, mas ninguém está ganhando. Então, tudo que puderem fazer para ele acabar, fazem. Arivan: E assim, inconscientemente, você não acha, porque os alunos estão melhorando (incomp.) a SEDUC como age em nome das ideologia dominante de que o pobre não precisa, vamos acabar porque é mais cômodo você ficar dentro daquela gradezinha medíocre, né, você não acha que pode estar respondendo dessa forma?

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Eduarda: Eu acho que pode sim, porque você começa com as brigas e os desinteresses das próprias pessoas que estão lá dentro da SEDUC e que começam a pensar na questão do poder. “Ah, eles estão conseguindo”, “então o poder deles passa a ser maior do que o da gente, então vamos cortar”. Porque tem a questão de poder também. “Como que esse pessoal consegue fazer isso?” Arivan: A mulher (incomp.) com a portaria lá triunfante! Eduarda: Você que por exemplo Renata que está na secretária de educação da área de espanhol briga com a Desirée, que é professora de espanhol da Nívea, por que? Questão de poder. Porque Desirée... Vitória: Desirée sabe. Eduarda: A Desirée além de ser uma pessoa que tem o domínio do oral, lingüístico, ela é uma pessoa que se impõe como professora, ela é carismática, os alunos gostam, ela é uma professora boazuda fisicamente, ela tem todo um conjunto que ameaça a quem está lá dentro. Você entendeu? E aí como que você faz? Eu me sinto ameaçada, eu vou o quê? Defender. Como que eu posso defender? Te proibindo, te cortando, o que eu puder cortar seu eu corto. Vitória: Relação de poder. Eduarda: É a relação do poder. Arivan: E assim, gente, o que que vocês acham, o projeto é uma forma, é uma maneira que a gente utilizou, no caso especificamente do projeto na Nívea para ir contra esse discurso de que não dá para aprender. A gente está nessa luta, até hoje, né, Eduarda: É. Arivan: Mas o que mais ainda a gente pode fazer? Eduarda: Eu acho que tem que se cobrar essa, essa, ao efetivar esse professor é preciso que se cobre também essa questão lingüística dele, da parte oral. Arivan: Para melhorar a qualidade. Arivan: E junto aos aluno, assim, para talvez a longo prazo, mudar essa situação, o que a gente pode fazer para tornar, não só em língua estrangeira, mas... Eduarda: Eu acho que quando você traz um professor já com uma formação mais adequada, ele automaticamente, ele já começa interferir isso nos alunos. Porque, assim, qual é o discurso do professor que não tem o domínio, pelo menos intermediário da língua? Ele diz que o aluno não quer e que ele não aceita. Como que esse aluno aceita de alguns professores de outros não? Então, não é o aluno que aceita, o discurso no fundo é do professor. Ele quer confirmar isso para ele não se sentir ameaçado também, já que eu não falo. Então, ele, se você vem mais preparado, você não tem medo, e já acaba colocando essa necessidade para o aluno. Por que? Porque o aluno começa a perceber que você realmente sabe, eles tem que ter essa conscientização, eles estão vindo de uma produção de língua estrangeira muito ruim. Agora que a qualidade dos professores está melhorando. Poucos os professores... Arivan: E os que estão ficando, né, porque o povo está caindo fora... [acabou a fita]. Eduarda: [...] e o aluno começa a perceber que realmente, eu acho que a formação do professor e esse, formação dele, essa exigência de formação (incomp.) na escola pública. Arivan: Eu conheço ... Eduarda: (incomp.) não é só vai entrando. O interino, por que que o concursado precisa ter o domínio e o interino não? Então você contrata quem para dar aula? E sendo que a quantidade de interino que está aí dando aula, muito mais do que efetivo.

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Arivan: Então, não seria uma forma também de dizer “para quê ter muito efetivo, porque o efetivo tem um compromisso maior, ao menos espera-se que, né. (incomp.) Eduarda: Por que que o interino não tem que ter, eu acho que o interino teria que fazer sim. Então, por exemplo, o projeto, nós amarramos, é uma briga, tem professor que falou que não aceita. No projeto nosso fala, professor que vai entrar na Nívea para dar aulas no projeto, tem que passar por uma entrevista pelos professores da área. Arivan: Na língua? Eduarda: Na língua. Então, a gente fala como eu disse, olha a gente tem que fazer uma entrevista porque ele está entrando, fazer uma entrevista, “eu me recuso a fazer essa entrevista”. “Então, infelizmente eu recuso a aceitar você no projeto, com base neste documento aqui”. Entendeu? Agora, qual a escola pública que faz isso? Arivan: Nenhuma. Vitória: Nenhuma. Quando eu saí mesmo foi uma briga porque eu queria que uma amiga minha fosse ficar porque tem um nível bom de língua. Aí o que acontece? Tinha um pé de chinelo lááá, que porque era amigo do diretor, que estava em campanha política, e acabou assumindo a aula. Que que o cara fez? Não deu uma aula, até que a coordenadora da tarde que é muito compromissada que foi perguntando, apertando, cobrando, ele saiu da escola lá para o mês de setembro. Eduarda: Você entendeu? Arivan: E em termos de formação política, assim, do professor, do aluno, vocês acham que contribui também? Essa coisa mesmo de formar (incomp.) é ideológica mesmo, né, para lutar contra isso. Vitória: Eu diria que nem é a formação política. Eu acho que a educação como um todo, Arivan, por mais que tenha lá a filosofia, a história, ou a própria literatura, eu acho que o conjunto dos componentes curriculares, os professores ficam ali tão condicionados aos conteúdos de uma visão maior da realidade. O que aquilo está fazendo, onde está, como está e para onde ele vai. O que eu sinto na rede, como sinto também na particular. Eduarda: Só que a particular é (incomp.) direção. Vitória: Só que lá os professores têm um padrão social melhor. Arivan: Ideológico, porque às vezes nem é tão assim... Vitória: Não. Infelizmente é. Tem alguns que são de família que já vem de berço, né, que tem imóveis, que tem outras rendas. Por acaso dão aula, mas só pegam, por exemplo... Eu tenho colegas do São Clemente, que ganham oito mil por mês, só no São Clemente. Arivan: Oito mil!!! Vitória: Sim! Arivan: Opa, também quero! Vitória: Professora do São Clemente. Eduarda: Professora do São Clemente. Vitória: Mas está ali há vinte e três anos dando aula. Você acredita? Arivan: Capaz! Melhor que a universidade. Vitória: E ali, (incomp.) pega mais quinze, dezoito fora. Tem gente concursada no Cetef que ganha dedicação exclusiva porque tem lá e só lá ganha oito mil. Então, o que que acontece, tem um padrão de vida bom. Então para eles, a profissão deu certo. E eles ali estão vivendo, vão para a praia. Tem professor do São Clemente que todo ano vai para a praia. Passam as férias todas. Arivan: E eu vou para Sinop e olha lá.

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Vitória: Você está entendendo? Então, viajam, tem cultura. Infelizmente tem mais cultura. Então, todos esses conjuntos já determinam. E estão achando que estão ganhando mal. Já estamos planejando quem é que vai falar com o padre porque está muito pouco o salário. Porque tem uma outra, no estado quando a gente faz uma mobilização como agora, você não viu o Altamira, num muquifo, voltamos antes de terminar a greve. E eu falei, “gente, nós não estamos em greve? O que que está acontecendo?” Todo mundo, “Ah, vamos terminar porque ninguém quer perder...” Falei “gente, não é assim!”. Arivan: Com coisa que professor de escola pública vai viajar, né. Vitória: Você está entendendo? Arivan: Vai para Poconé, vai ver. Vitória: Não, Você está entendendo o que eu estou te colocando. Como que a questão cultural de uma certa maneira... Eduarda: Influencia. Vitória: E isso que é a maior judiação que eu vejo. Porque cultura eu acho que tinha que dá é o governo. Você vê, parques, teatros, sabe, não temos. Mal temos um cinema. Arivan: você fala em termos de cidade mesmo,né? Vitória: É, que faz com que as pessoas vivam. Que saiam daquela redominha ali. Arivan: E que vai ao cinema? Eduarda: Porque esse mundo desse professor de escola pública, dessa maioria é muito limitado. Você conversa, é, você pega uma sala de professor na hora do recreio e ouve as conversas. Vitória: Você tem dó. Arivan: Big Brother. Vitória: E na hora das reuniões pedagógicas, é um atacando o outro, as pautas das reuniões ficam todas sem ser discutidas, porque vivem em situação de tamanha miséria, de tamanho fechamento, que aquilo ali é condicionado assim, que quer fazer o nível da própria coitada da escola pública, um local de só ir receber e não ter que dar contra-partida. Eduarda: Não dão conta. Essas... [Vitória corta]. Vitória: Não amam, não tem paixão pela escola. Eduarda: Essa semana nós tivemos reunião pedagógica na escola, quarta-feira, que tem toda quarta, né, no turno da tarde, no turno da manhã, e o pessoal da noite é na quinta-feira. Terminou a reunião, eu peguei as duas coordenadoras e o diretor e falei assim “gente, vocês me desculpem, mas eu acho um crime vocês fazerem eu perder minha aula das cinco e quinze às seis e quinze para assistir esse encontro que vocês estão chamando de reunião”. Aí a coordenadora, que uma nova, que veio agora, “o que foi professora, que a senhora...” “Olha, vocês vão me perdoar, isso aqui é uma bagunça, isso aqui não é reunião. Vocês falam que tem uma reunião e não marcam uma pauta com antecedência. Ninguém vem para uma reunião sem uma pauta, sem saber do que vai falar. Até porque a gente tem que trazer as coisas para a reunião fluir. Chega aqui, vocês três, vocês não se combinam, um fala, o outro começa, quando você fala ela começa, o outro professor também faz a mesma coisa”. Porque o mundo desse professor é muito restrito, para não dizer igual ao deles também. Vitória: E olha o que diz aqui o texto, olha, quando ele dá o conceito de ideologia, ele fala assim “a sociedade segue a organização ideológica do poder dominante” que o que Thompson vai falar também, né. E o que que acontece? Você já imaginou se na escola pública as orientações curriculares de fato como pregam a leitura

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crítica, a teoria crítica presente nesses contextos de escola, nós vamos criar um exército, vai cobrar do governo, vai cobrar da direção, vai cobrar do professor. Quando começa esse pequeno exército cobrar do professor, o professor tem que ter uma outra postura. Cobrar da direção, tem que ter uma outra postura. De repente, é o próprio exército é que vai estar paralisando e não mais o professor. Queremos isso, queremos aquilo, por que pagamos isso, pagamos aquilo. Temos direito a isso. Você está entendendo? Então, quando a gente se fecha assim vai reproduzindo o sistema? Arivan: Você não acha que a gente possa agir de forma a formar esse exército, nem que seja gradativo isso, o que que a gente ode fazer? Vitória: Mas eu acho que nós fazemos. O que eu acho que é o primeiro passo, agora. Imediatamente, as orientações curriculares para o ensino médio estão aí. Quais escolas do estado sentaram e estudaram as orientações e estão seguindo, pelo menos a teria crítica das orientações? Eduarda: Não precis... Você está falando em escola. Vamos parar antes. Qual professor que sabe que isso existe? Arivan: Pouquíssimos, né. Eduarda: Já começa por aí. E quem tem que saber sou eu para poder levar. Se eu também não sei, fica por isso mesmo. Vitória: Gente, porque as orientações agora é uma maravilha. Tem um texto de uma mãe, Arivan, que tem as primeiras perguntas assim “é dia das mães, mas porque que nós temos dia das mães? Quem é minha mãe e quem é a mãe desse anúncio publicitário? Por que que essa mãe está com uma jóia da H-Stern e a minha mãe não tem um anel para colocar no dedo? Por que que ela está pintada?” Quer dizer, são reflexões que vão fazer com que o aluno perceba que o contexto social no qual ele está inserido é uma situação de miserável, tem gente usurpando do suor e do trabalho dele pois tem condições melhores. Arivan: Esse documento oficial que chama a atenção para isso e isso não acontece de fato, será que o professor não está sendo formado de maneira a ser medíocre e não ir atrás disso? Vitória: Não, eu acho que é porque ele é muito novo, é de 2006, né. Ele foi publicado em dezembro de 2006, não é? Arivan: Então você acha que pode estar havendo um interesse por parte do estado em mudar isso? Vitória: Eu acho que agora, eu nem diria do estado, eu acho que eles foram loucos, chamaram o Moita Lopes para escrever o documento. Eu acho que nem a secretaria de educação e nem o MEC, eles não se acharam no documento, principalmente na área de linguagem. Porque na hora em que eles se acharem ali, eles vão falar bem assim... [Arivan corta]. Arivan: Foi o Moita Lopes que escreveu? Vitória: Foi, ele fez parte da criação, da linha crítica, ele, a Roxane Rojo, que estão na linha de frente desses documentos que foram escrito para o MEC. E esse documento chegou, o que que acontece ainda, ali nós temos algumas linhas teóricas que tem professor que vai ler e não vai entender. Mas ele veio bem didático. Ele veio com exemplos de como você explorar uma aula de leitura e uma aula de leitura bem dentro da concepção crítica. Arivan: Já está na internet essas orientações? Vitória: Já. Arivan: No site do MEC, né? Vitória: O MEC mandou para as escolas, só que o da minha escola sumiu.

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Arivan: Lá na minha escola não tem. Eduarda: Nem falavam. Eu sei porque, aí entra a questão que é o que a Vitória fala, por que que eu sei disso? Porque eu estou num outro mundo diferente daquele daquela maioria que é o professor. Eu estou convivendo com outras pessoas. Vitória: Ou de repente eles não estão mandando porque depois que ficou pronto o documento eles devem ter lido e percebido que aquilo ali pe montar um pequeno exército contra eles. Arivan: O povo da escola mesmo, você diz. Vitória: Sim. Eduarda: Não, as secretarias. Vitória: É, das secretarias. Arivan: Ah, tá. Vitória: Porque é bem dentro da teoria crítica. Eduarda: Entendeu? E se os professores tivessem consciência daquilo tudo ali e

por para funcionar, Nossa Senhora!!! Aí, o aluno começa a entender e o próprio

professor e fala assim “você é louco” quando eu digo assim... (vitória corta)

Vitória: Vou querer começar me... “Peraí! Mas eu tenho só uma aula de filosofia? Eu tenho só uma aula de português? Por que que no São clemente tem três de gramática, dias de produção de texto...” [Arivan questiona]. Arivan: Ah, é? Eduarda: É! Vitória: E duas de interpretação de texto. Arivan: E de língua estrangeira também tem uma carga horária maior que na escola pública? Vitória: Duas. Porque, porque que eu tenho uma aula de história, lá tem uma frente para história do Brasil, uma frente para história regional e uma frente para a história geral. Eduarda: O que que o meu, o (nome do filho da Eduarda) ... [Vitória corta]. Vitória: São seis aulas. Eduarda: São seis aulas. Entra às sete e sai ao meio dia. Todos os dias e tem dois dias à tarde. Vitória: Geografia enquanto a escola pública está com uma, lá eles estão com seis. Isso, os adolescentes têm ( incomp.) que circula. Arivan: Por falata de formação política não têm essa visão crítica? Vitória: Não têm essa visão crítica para se perguntar “puts!, então porque que nós não vamos lutar por uma carga maior na nossa escola?”. Arivan: E o professor não leria, não teriam consciência até porque a secretaria não incentiva, o professor não tem muito incentivo para buscar por conta também. Não tem tempo, trabalha feito um louco. Eduarda: É, o professor não sabe que essas coisas existem. Quando você chega e fala, às vezes, “olha, na escola tal tal, é assim, assim, assado”. O pessoal, “nossa, mas onde que é isso?” Isso é coisa de outro mundo. Isso é coisa de outro mundo. Entendeu? Não tem cabimento. A escola do (filho da Eduarda) que é uma escola considerada totalmente contra essas questões é, é, de conteúdo, (incomp.) duas aulas de inglês, duas de espanhol. Vitória: Então, quer dizer, a realidade de uma escola particular co a realidade de uma escola pública, onde é que está o principal? Não é na mão de obra. Eu estou na escola pública e estou no São Clemente. Os meus colegas: o fulano está na

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escola pública e no São Clemente. Todos são da escola pública, fulana, todos são da escola pública também. Arivan: Só que trabalham de forma diferente em cada um dos empregos, por conta da ideologia que domina... [as duas interrompem negando “ não não”]. Eduarda: As condições de trabalho é que são diferentes. Vitória: A própria carga horária da disciplina, o entrave, o tempo que você passa com o aluno não é o mesmo tempo na outra. Como que você que tem duas aulas por semana você vai trabalhar da mesma forma que você que tem uma? É lógico que onde você tem mais, duas aulas você vai dar muito mais coisas. Você vai avançar muito mais. Eduarda: Ah, é, completamente diferente. Vitória: E aí acaba chegando mais informação. Mas aí eles vem aquele discurso assim “mas quantidade não é qualidade” Cacete, lógico que é. Vai para o Enem, é qualidade ou quantidade? Vai para um vestibular, é qualidade ou quantidade? Vai para um concurso público, é qualidade ou quantidade? Não vai você dominar aqueles trem tudo não para você ver se você passa. Eduarda: Não adianta. Vitória: Não adianta. Vitória: Aí eles vão por esse discurso que todo mundo fala... (incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Vitória: E repetindo, viu. Bobos nem se dão conta que é muito inverso. Arivan: e você procura fazer isso na escola pública? Eu tendo fazer (incomp.) para eles é natural. Essa coisa de ir contra esses discursos, deles poderem...(incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Vitória: Arivan, para você ter uma idéia, primeiro, segundo e terceiro ano lá no Altamira eu nem faço chamada. Por que? Eu tenho uma aula de cinqüenta minutos, se eu fizer chamada, são dez minutos, e aí, eu abomino chamada. Estou esperando virem me chamar a atenção porque vão vir chamar. Arivan: Ah, a coordenadora, na minha escola se eu fizer isso, Nossa Senhora! Vitória: Não, eles vão vir chamar a minha atenção. Eu vou mandar todo o mundo [suprimido].Vou mesmo. Você está entendendo. Vou mandar todo mundo [suprimido] por que? Que que é isso? Agora se eu fosse afogada eu iria, um, dois, três, nem, Maria, João... Arivan: Na minha é, nome completo. Vitória: Aí, vinte minutos da aula se foram. Eduarda: Foi. Vitória: O que que os coitados vão ter ainda, Arivan? De conteúdo. E aí o que que acontece? Primeiro ano, olha como é que eu estou fazendo com o primeiro ano, eu tenho o livro que foi adotado, como eles ainda não compraram, está vinte e três reais, eu pedi para eles tirarem... Eduarda: qual que você adotou? Vitória: O Take Your Time, que foi a fulana (uma outra professora) que adotou, eu estou seguindo o que ela adotou porque não pode mudar. Aí, Take Your Time, trabalhei os diálogos, ensinei pronúncia e falei, agora em casa, peguem o CD... Eduarda: E estás vindo com o CD do aluno, né? Vitória: Dei a tradução para eles, né, do que que eles estão perguntando. Falei, “vocês vão estudar, na próxima aula eu vou tomar oralmente de um por um”. Aí eles vêm, abrem, vem de dois e eles lêem o diálogo para eu ver pronúncia, eu corrijo ali, dou feedback para eles, tal e tudo né, aí agora que que acontece? Na aula seguinte, aí eu passei, agora você vai sentar com o colega e vai entrevistá-lo. Você está em

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frente ao Altamira, tem um turista lá, que a primeira função é essa, quer ir ao aeroporto, quer ir ao Banco do Brasil, quer ir à Caixa Econômica, como que você dá? Você vai entrevistar o colega e depois você vai escrever o diálogo, escrito no caderno. Agora eu estou corrigindo, agora... Arivan: Você cria ou eles copiam? Vitória e Eduarda ao mesmo tempo: Ele cria. Vitória: Tem que criar, porque ele já tem um input primeiro que é o vocabulário, a pronúncia, né, agora ele está nessa fase de produção. Agora vem os exercícios que são propostos pelo livro. Vou fazer todos. Entendeu? Isso aí porque tem livro. Primeiro e segundo. Eduarda: Agora, você acha que vai dar conta? Aí já vem uma pergunta. Você acha que ela vai chegar a dar um livro inteirinho neste ano? Vitória: Pois é. É esse que eu quero ver. Eduarda: Não vai. Você entendeu? Vitória: É isso que eu quero ver. (incomp.) na primeira unidade. Eduarda: Agora, nós vamos fazer a mesma pergunta... Vitória: E se eu fizer chamada você acha que eu vou até onde? Eduarda: Olha aqui. Eu estou falando isso com ela por que? Porque nós já adotamos Take Your Time e nós não demos conta de terminar. Então, o que que acontece, e na escola particular? Você terminaria? Vitória: Pois é. Arivan: Tem que terminar, né? Eduarda: Você entendeu? Vitória: Mas ao mesmo tempo, não é porque não me cobram que eu tenho que terminar, eu vou fazer de tudo para dar conta do livro, mas como eu tenho uma aula, automaticamente... (incomp.) Eduarda: Não dá, né. Vitória: Eu vou ver... ainda mais que eu estou com adultos, né, estou com adolescentes. E nós adotamos o livro dois para o primeiro e o três para o segundo e o terceiro fica com um material preparatório para o vestibular. Entendeu? Mas eu estou tentando, e eu estou puxando, por exemplo, como agora mesmo, esses exercícios eu pedi para eles irem fazendo. Falei “vão fazendo que na próxima aula, terminei agora de corrigir o exercício e tal, na outra aula o que que eu vou fazer já? Já vou nos exercícios do livro e tem parte que é só interação, entendeu? Eduarda: Então esse que acontece porque se fosse na escola particular com certeza você terminaria o livro porque você tem tempo para fazer. Dá para inserir outras atividades. A fulana trabalha com ele no São Clemente, ela faz projetinho sobre Pantanal, ela fica um tempão trabalhando... Eduarda: E não dá tempo de fazer isso na escola pública. Arivan: Ainda bem que lá ainda tem esse discurso de vestibular, de terceiro ano vestibular,né, porque na minha nem isso, porque na minha é uma escola de periferia, a sua é de centro, né? Ainda tem essa. Lá isso nem existe, essa coisa de vestibular nem passa... Vitória: Nossa, na minha sala eu trabalho um texto por aula, inicio e termino. Eduarda: Na minha sala também, de nível três, que eu foco leitura, que, é a primeira pergunta... Vitória: (incomp.) o material agora quem montou foi fulana e ela não selecionou bem. Ela pegou os primeiros textos de livro então as perguntas são todas em inglês. Isso aí dificulta. UFMT não trabalha assim. Arivan: O texto está em português, né?

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Vitória: O texto está em inglês e as perguntas em português. Arivan: Ah, é. (incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Eduarda: Eu trabalho com os meus alunos de nível três um texto por aula também. Um texto por aula e ainda dou uma atividade auditiva... Vitória: Agora para você ver, São Clemente, por semana, eu trabalho um capítulo de gramática e trabalho uma prova de vestibular. Entende? Ou USP, ou PUC ou ITA ou FUVEST que é USP também ou UFScar. Porque e vem o material, vem uma aula e em seguida vem uma prova de vestibular. Então eles só trabalham com textos de provas de vestibular. Arivan: A apostila deles lá? Vitória: A apostila. Arivan: Positivo? Vitória e Eduarda em coro: Poliedro. Arivan: Não conheço. Eduarda: Então, é, essas coisas, e outro detalhe, coisa que, ela tem um material, está lá pronto e a escola determinou, coisa que nós não temos, ela não teve que pensar num material, a escola tem uma coordenação que faz isso. Arivan: É, na minha escola eu tenho que criar tudo, né? Eduarda: Na escola pública, não é na sua, na pública, o professor tem que criar tudo, porque os coordenadores não vão fazer isso. Vitória: Tá aí. Eu acho que agora estava na hora de a gente olha os professores de línguas estrangeiras e solicitar para o MEC um material ou então pedir para os conselhos deliberativos comprarem. Eu acho que nós tínhamos que lutar para isso. Eduarda: Aí tem por exemplo, o professor não tem material, seu, dele, não tem dinheiro para comprar, o material de língua estrangeira é caro, e ele não tem uma coordenação que possa, “não, olha, a apostila que nós estamos usando de língua estrangeira é essa aqui”. Não, ele tem que selecionar. Então, no caso nosso do projeto, eu tenho que fazer planejamento do primeiro ano, do segundo e do terceiro, selecionar material para o primeiro, para o segundo e para o terceiro, nas quatro habilidades com as quais eu estou trabalhando. Quanto tempo eu levo para isso? Arivan: Ah, séculos, né? Como eu que fico lá desesperado arrancando os cabelos. Vitória: Não, por isso que eu falo, nós temos que ter um livro para nos auxiliar e até trabalhar com maior qualidade. Porque quando você... Eduarda: E por falar em livro... Vitória: De uma certa maneira, o tempo que você vai preparar para buscar o que você vai dar, você melhora aquilo ali. Eduarda: Eu recebi um livro [suprimido: conversa sobre um livro didático que Eduarda ganhou e Vitória me dando dicas de como conseguir livros com as editoras. Também sobre livros que os alunos não deram conta de acompanhar porque estavam em estágio muito avançado em relação ao nível de proficiência deles]. Vitória: [...] Assim, tudo que é polêmico eu levo. O Bush esteve no Brasil, o povo gritando contra ele, não teve? Sobre biotecnologia. Eduarda: Agora, também, mas também tem isso, é esse aluno da escola particular, por mais que ele não veja televisão e não veja nada, não leia jornal nem nada, mas os pais comentam, entendeu? Qual que é o assunto da escola pública, essa periferia? O big Brother, que que ganhou, o olho vivo, sei lá, como é que chama, lá, o... Vitória: O pai que esfaquiou o outro, o pai que esfaquiou a mãe. Eduarda: Aqueles programas que tem de Cadeia Neles, entendeu?

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Vitória: Raul Gil. Eduarda: Então, esse menino, você leva, gente, é não é só, você vê, na universidade. Eu levei um texto, em todas as universidades, (nomes das duas), um texto da Veja, trabalhando com linguagem verbal e não-verbal, uma capa da Veja, com uma muçulmana vestida com aquela burca [suprimido: explicação da atividade. Os alunos não conseguiram interpretar]. Eduarda: Ás vezes a gente quer trabalhar essa questão crítica mas o conhecimento de mundo do aluno não permite. E eu dou um exemplo muito bem claro para ele do Casseta e Planeta. Eu falo assim, “gente, o que que passa, vocês assistem o Casseta e Planeta?” “Ah, professora, é massa”. “Que que você gosta lá, como que é o programa?” que eu odeio. Arivan: É um humor inteligente, até. Eduarda: Mas eu odeio, por que? Eu gostava quando era antes. Hoje é imitação de novela. Por que que vocês acham que eles apelaram para isso? Arivan: Para dar público, né? Eduarda: Porque antes era uma crítica... Vitória: Uma sátira à política... Eduarda: É, exatamente. Arivan: Hoje só tem alguma coisinha, né. Eduarda: Ah, hoje é reduzidíssimo isso. Eu não assisto mais, não vale a pena perder tempo com a repetição da novela das oito, não tem cabimento. Então, por que que mudou? E eu falo isso com eles. Isso eu acho que entra nessa questão da conscientização política. “Gente, por que que hoje eles ficam imitando novela?”. Arivan: E a mídia, como esse caso da Isabela, a mídia manipula as pessoas de uma maneira incrível, né. Tem gente que saiu aqui de Cuiabá e foi lá gritar, que não tem nada para fazer da vida, que o homem é assassino. [...] então, talvez a mídia faça isso de naturalização (incomp.) pra que o povo seja ignorante mesmo (incomp.) a novela mesmo. Eduarda: Então, a gente tem que começar, às vezes, a colocar, não adianta às vezes eu levar uma charge que que o aluno não vai entender aquilo. Então, às vezes, eu tenho que começar a trabalhar uma coisa mais banal possível, que eu falo, “mas não é possível que eu vou fazer isso?”. Vai. Para ele poder chegar naquilo onde você quer. Isso é uma coisa que o professor tem que ter essa consciência. Não adianta, o meu programa é esse aqui, é isso que eu tenho que dar para o segundo, é. Mas e se ele não está dando conta disso, eu vou dar assim mesmo? Não, eu vou ter que voltar para o primeiro. Arivan: É o que eu vejo na escola... (Incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Eduarda: Mescla. Vitória: Quando eu fui trabalhar nessa nova perspectiva, quando eu fui trabalhar eu trabalhei com primeiro e segundo, mesma coisa, quando os alunos... [acabou a fita]. [...] Eduarda: É importante você mostrar com o aluno, você está usando um livro, aí você está usando um livro de uma quinta série, você está usando num primeiro ano de segundo grau. E você tem que mostrar isso para esse aluno. “Olha, esse livro que eu estou usando com vocês é da quinta série. Por que que eu estou usando com a quinta série? Eu vou mostrar o livro que eu deveria usar com o primeiro. Vamos ver como seria. Olha, dá uma olhada no livro. Perceba a diferença que tem entre um e o outro”. E aí, eles mesmo começam a perguntar por que que eles estão atrasados. E aí você vem com essas questões. A questão mesmo da formação do

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professor que às vezes não daria conta de acompanhar aquele material, a questão de você vir já defasado, não só da quinta, porque você também não teve este idioma, por ser da escola pública, você também não teve esse idioma no seu segundo, terceiro e quarto ano. Vitória: Mas na escola particular também não tem. Arivan: Mas ele tem acesso fora, né. Eduarda: Mas tem acesso porque ele já vão para as aulinhas de inglês deles. E esses meninos não pagam. Então, eles já chegam com um vocabulariozinho. Eles já conhecem o vocabulário isolado. Coisa que não vai acontecer. E eles mesmo começam a se questionar o por quê desse atraso. E você coloca... e todas as vezes que, eu sempre percebo que eles começam a dizer assim que está difícil, está difícil, eu volto nessa questão do livro. “Está difícil? Olha aqui e olha cá. Olha como é que você está e oh... E isso vai implicar em que?” Acho que isso é começar a conscientizar o aluno que ele também precisa de coisas que ele chamam de (incomp.) fortes e que não são. É o que eles deveriam aprender. É o que está, você pega a programação e vem esses babacas que fazem a programação, que você tem que dar no primeiro isso, no segundo você tem que dar aquilo, esses babacas nunca entraram na sala de aula da escola pública. Ele está lá só nas teorias dele. Vitória: Então ele manda aqueles conteúdos só gramatiqueiros. Eduarda: Só gramatiqueiros. Vitória: Aí o professor que não tem formação... Eduarda: Ele segue aquilo ali. Vitória: Segue aquilo ali. Verbo to be, presente, ele só vai dar verbo to. Eduarda: Só vai dar verbo to be, pronto e acabou. Vitória: I am, you are... Eduarda: Entendeu? E daquele jeito que ele viu que é aquilo. Que ele entende aquilo assim, né. E o aluno começa a engolir isso, quando ele chega nas faculdades, eu comecei o curso lá no Sefaz, na Secretaria de Fazenda, um público, imagina-se, né, quem trabalha na secretaria de fazenda? Não sou eu. Então você imagina que tem um nível cultural melhor, e tudo mais, e você vê o aluno perguntando no primeiro dia de aula, “professora, a senhora via ensianr o verbo to be para a gente?”. Arivan: Estão viciados. Eduarda: Né? E eu disse, “mas a gente já usa o verbo to be hoje” “Uai, como?” Falei, “Quando você se apresentou. Você não disse, My name is? Você não falou aqui na frente I am fulano de tal?” E eu repito exatamente como eles falam. Dando ênfase, né, que é aquela coisa. “Você não falou isso?, Você acabou de usar o verbo to be, você esqueceu?”.”Ué, professora, eu não lembro disso não”. “Lembra. Você aprendeu assim: I am a student” e ainda falo assim desse jeito. “aí a professora falava assim: “Agora eu quero que você passe para a negativa”. Aí você faz assim: “I am not a student” Aí ela falava: “Agora eu quero para a interrogativa”. Aí então: “Are you, ou então, am I a student?”. “Uéw, professora, como é que você sabe que eu fiz isso?” “Aí porque todo mundo fez, inclusive eu, mas você usou o verbo to be. Então eu não vou ensinar o verbo to be, você já sabe, só que você não se deu conta de que você já sabia, você já aprendeu, você sabe usar. Nós vamos usar o verbo to be e não decorar as regras do verbo to be”. Agora, o professor também tem que ter, aí entram os nosso estudos, você tem que ter a teoria para você ter o argumento. Vitória: A metodologia é crucial. Eduarda: Sem argumento você não convence ninguém a nada. Vitória: Imagina você está lá em felicidade, Santa Felicidade, não é, ou é Feliz? Qual é a cidade, fica lá na divisa de...

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Eduarda: Eu acho que é Feliz. Vitória: Qual é o nome da cidade? Arivan: Onde isso? Na divisa com outro país? Vitória: Com o estado. Eduarda: Com o estado nosso tem uma cidade que chama ou Feliz... Vitória: Feliz Natal. Arivan: Feliz Natal é lá perto de Sinop. Vitória: Você está lá no Feliz Natal, é, então... Eduarda: Lá em cima. Vitória: Você acha que Sinop está bem aqui amigo? Arivan: Mas Sinop não está no nortãozão. Nortãozão é Alta Floresta. Vitória: Ah, é Alta Floresta. Depois de Alta Floresta, o qual que vem? Arivan: Apiacás... Vitória: Vamos super você está nessa cidade lá, você fez Letras pela UNEMAT ali em Sinop. Parou de estudar, ficou lá quatro cinco anos, chega a programação curricular da secretaria de educação. O que que você vai fazer? Arivan: Ficar doido (incomp.) Vitória: Você vai seguir aquilo ali. Eduarda: Ou você continua fazendo o que você já fazia ou você segue exatamente aquilo ali. Vitória: Conforme está escrito. Arivan: Ah, tá. Sem senso crítico, né, gente? Eduarda: Sem nada! Vitória: Não, e elencar conteúdos para eles é justamente colocar verbo to be, passado simples, presente simples. Não coloca as possibilidades de uso disso aí. Eduarda: E se você fizer um, um, isso fica muito claro. No conteúdo que você tem que lançar no diário no final do mês, não é? Eu faço um lançamento de conteúdo assim, num texto único: no primeiro bimestre, praticamos, usamos ou trabalhei, né, isso, isso e isso, inserido na função tal tal tal. Então não tem lá: trabalhei o verbo to be. Não. Aí o coordenador uma vez falou assim “mas cadê o seu conteúdo?” Falei: “O, mas está aí”. “Ah, mas aqui não fala, assim, as coisas que você deu”. “Mas é claro que fala, você leu?”. Arivan: Você escreve em inglês ou português? Eduarda: Escrevi até em português. “Mas, Eduarda, aqui fala as atividades que você deu”. Vitória: Atividade não é conteúdo. Eduarda: Entendeu? “Mas esse é o meu conteúdo”. “Ah, então o seu é diferente”. Como eu também não tinha argumento, aliás, ela não tinha teoria, ela não pode argumentar muito comigo, porque eu já tenho a fama de brigona, né, já tem toda aquela coisa. Então, para a pessoa chegar perto, ela já chega meio assim. “Ela pegou e falou assim: “Ah, tá”. O que que esse “ah, tá” dela, ela não engoliu, ela engoliu porque era eu, porque se fosse um outro ela ia fazer ele desfazer aquilo e fazer do outro jeito que ela queria, e colocar o conteúdo, o verbo to be, no presente, no afirmativo e negativo, não sei o que e tarari e tarará. Ela só... Vitória: Agora uma coisa assim que eu vejo e eu até já discuti com a Soraia sobre isso, quando você trabalha, como nós estamos trabalhando, por exemplo, com primeiro ano, né, eu estou trabalhando com eles, tentando puxar a abordagem comunicativa, com a função comunicativa, né. Qual é o momento da teoria crítica aparecer? Por que que se aprende inglês? Eduarda: Isso é fundamental.

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Vitória: Por que? Né. “Eu não vou sair, para que que eu vou aprender?” Falei “porque o governo brasileiro é filho [suprimido] mesmo. Você não tem opção de escolha”. E você não tem opção, você tem opção? Arivan: Capaz! Vitória: Você não faz inglês e espanhol. Alguém mandou você escolher entre um e outro? Então é imposição mesmo. Eduarda: E eu trabalhei com isso aí, para começar essa discussão este ano peguei uma série e dei um poema que diz assim: “Deus, conceda-me serenidade”, em inglês, “para aceitar as coisas que eu não posso mudar...” Vitória: Ah, do Alcoólicos Anônimos. Eduarda: E as coisas, Arivan: eu preciso disso. Eduarda: Ah, God... (incomp.) [todos falam ao mesmo tempo]. Eduarda: Aceitar as coisas que eu não posso mudar, coragem para mudar aquelas que eu posso, e sabedoria para conhecer a diferença. [suprimido – Eduarda explica como trabalhou o texto com alunos adolescentes – estratégias de leitura]. [Surge também um momento em que a Eduarda fala com o filho, e eu, sobre imposto de renda]. [Eduarda procura voltar ao porque de ter dado esse exemplo e lembramos, Vitória e eu, que seria pela questão da postura crítica]. Eduarda: “Deus, dê-me serenidade para aceitar as coisas que eu não posso mudar”. “Quem aqui gostaria de não fazer inglês nem espanhol? Você pode mudar isso? Então, peça a serenidade. Porque isso você não pode mudar. Isso está no sistema e o sistema colocou que no segundo grau você é obrigado a fazer uma língua estrangeira”. Vitória: As duas línguas estrangeiras. Eduarda: A única opção que eu te dou aqui agora, ou uma, ou outra. Vitória: Lá ainda (incomp.) lá no Altamira não tem isso. Eduarda: Então, vou dizer assim, “e você é um privilegiado no estado porque ou você entra nas escolas ou é inglês ou é espanhol, aqui você tem duas coisas para escolher. Então, você já é um privilegiado”. Quer dizer, já trabalhei a posição crítica disso. Aí, entra a questão da gente jovem, a gente rebelde sem calça, briga com o pai, porque o pai é assim assado. A gente pode trocar de pai? Ah, a mãe é assim, ah, eu não gosto da minha mãe porque ela não deixa fazer... você pode trocar de mãe? Você detesta o seu irmão, você pode trocar de irmão? Tem coisas que a gente não pode mudar. Então, a gente tem que saber aceitar. Arivan: Mesmo a questão da disciplina é uma coisa que se tem que aceitar? Eduarda: Tem coisas que não podem mudar. Como é que você vai mudar? Vitória: Como que (incomp.) eu não quero fazer inglês, eu não vou fazer? Arivan: Ah, não, você sozinho, não. Vitória: Mas enquanto... Arivan: A sociedade organizada pode reivindicar, “olha isso não faz sentido para nós”. Vitória: Ah, mas a sociedade organizada. Eduarda: É uma sociedade. Você... Vitória: Nem uma escola organizada pode, porque lá no Altamira ninguém queria o espanhol. Queriam colocar em 2008. Eduarda: Você entendeu? Não teve jeito. Então essas coisas, e, esse poema ele é muito verdadeiro mesmo. Eu não vou mudar o mundo, Arivan. Eu posso mudar

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aquilo que eu vejo que é possível. Não adiante. É o que eu falo com a Lavínia. “Lavínia, tem coisas que você não vai mudar, você vai brigar a vida inteira e é um desgaste só seu, de mais ninguém”. Vitória: Mas na escola nós podemos implantar na sala de aula... Eduarda: Agora, você vai de vagarinho. Vai para um, vai para outro. Daquela turma, talvez, ali numa turma de duzentos que você tenha, você ás vezes (incomp.) dois ali que no futuro você vai ver, aquilo ali tem meu dedinho também. Arivan: Talvez vá servir de fermento em outras massas. Eduarda: Você entendeu? Então, é uma... e às vezes você nem vê isso acontecer. Isso depende muito. Eu tenho uma aluna que foi na escola nessa semana e falou assim “nossa, a coisa que eu mais sinto falta na minha vida é das suas aulas de inglês”. Uma aluna que eu sei que é crítica, estudiosa, entendeu? Está na universidade, passou no vestibular. Essa eu sei que ela vai levar. Entendeu? Ela levou, ela colheu aquilo que eu plantei. E ela vai ser uma que vai, né, diversificar. Mas é uma em muitos. Mas eu fico contente só com essa. Agora, não vou realmente mudar, vou morrer, acredito, pela minha faixa etária, e o sistema vai estar impondo inglês e espanhol na escola até hoje, não vai mudar. Entendeu? Agora enquanto eu tiver na escola vou brigar pelo projeto porque acho que a possibilidade de ele não se manter se não tiver outros que peguem ele à laço é muito pequena. Arivan: Ah, sim, a primeira oportunidade que ... Vitória: Crianças, eu tenho que ir, cinco horas. Eduarda: (Nome do filho da Eduarda) fez um bolo para vocês. Vitória: Putz, para nós!

Arivan: Então tá. [Desliguei o gravador].