corpos cartografados, imagens disciplinadas. um percurso através de conceitos de michael foucault
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Corpos cartografados, imagens disciplinadas.Um percurso através de conceitos de Michael Foucault
Carla Solano1
Resumo
Procuramos neste texto abordar as tecnologias de visualiza-
ção médica como dispositivos mapeadores do corpo humano que é
fatiado, fragmentado, reformatado, alterado, obtendo-se dessas tec-nologias imagens disciplinadas de acordo com visibilidades específi-
cas. Uma abordagem originária no “bom adestramento”, nos “corpos
dóceis” e “Pan-ópticos” de Bentham, um olhar através de Foucault, de
alguns dos seus conceitos, das relações de poder e discurso que atra-
vessam a medicina e os seus instrumentos, tecnologias de visualiza-
ção médica e imagens. Trabalhamos a ideia de corpo como um
produto/objeto infinitamente maleável pelo poder, e que através de“normas” e “disciplinas” são alinhados com as tecnologias.
1 Licenciada em Radiologia pela ESTESC, Instituto Superior Técnico de Coimbra,mestre em Antropologia Médica, Departamento de Ciências da Vida daFaculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Doutorandade Estudos Contemporâneos/Imagem Médica no CEIS20, Instituto deInvestigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra. Técnica radiologista
nos CHUC. Investigadora no CRIA. Investigadora no CIJVS.
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A biomedicina/biotecnologia, aqui por intermédio do ®VISUAL
HUMAN PROJECT reforma, modifica e reconstroi expandindo
constantemente os limites do corpo.
Palavras-chave: corpo, poder, Foucault, imagens de radiologia,
panóptico
Abstract
In this text we will try to address medical imaging technologies
as mappers devices of the human body that is sliced, fragmented,
reformatted, changed, resulting from these technologies disciplined
images according to specific visibilities. An approach originating from
a good dressage, from docile and panoptic Bentham bodies, a look
through Foucault and from some of its concepts, and from therelations of power and discourse that cross medicine and its
instruments, medical imaging technologies and images. We will work
the idea of the body as a product / object infinitely malleable by
power, and that through rules and disciplines are aligned with the
technologies. Biomedical / biotechnology, here through the ®VISUAL
HUMAN PROJECT, reforms, modifies and rebuilds, constantly
expanding the boundaries of the body.
Keywords: body, power, Foucault, radiology images, panoptic
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Introdução
“O corpo está também mergulhado no sistema político (...); as
relações de poder operam sobre ele um efeito imediato. Investem-no, marcam-no, controlam-no, supliciam-no, sujeitam-no a
trabalhos, obrigam-no a cerimónias, exigem-lhe sinais. Esteinvestimento político do corpo está ligado, segundo relaçõescomplexas e recíprocas, à sua utilização económica (...) o corpo sóse torna força útil se for simultaneamente corpo produtivo e corposubmisso. Essa sujeição não é obtida apenas pelos instrumentosde violência ou da ideologia (...) Isto significa que pode haver um“saber” do corpo que não é exatamente a ciência do seufuncionamento e um domínio das suas forças que é mais do que acapacidade de vencê-las: este domínio e este saber constituemaquilo que se poderia chamar a tecnologia política do corpo. (...)
Além disso não se poderia situá-la nem num tipo definido deinstituição nem num aparelho estatal. (...) Trata-se, de certamaneira, de uma microfísica do poder utilizada pelos aparelhos epelas instituições, mas cujo campo de validade se situa, de algummodo, entre esses grandes funcionamentos e os próprios corposcom a sua materialidade e as suas forças. (...) Este poder, por outrolado, não se aplica pura e simplesmente, como uma obrigação, ouuma interdição, àquele que o “não detêm”; investe-os, passa por eatravés deles; apoia-se neles, tal como eles próprios, na sua lutacontra o poder, se apoiam no domínio que exerce sobre eles” 2.
Nas sociedades modernas disciplinares, que se seguem às an-
tigas sociedades de soberania (poder do rei) o poder disciplinador, a
arte de punir não se efetua nem pela repressão nem pela expiação,
segundo Foucault (1999), antes dá espaço a que apareça, através das
disciplinas, a “norma”. Os dispositivos disciplinares, [as instituições
ou, como tentarei mostrar, as tecnologias de visualização médica e os
dispositivos imagéticos], construíram penalidades da “norma”
, con-junto de regras que comparam, diferenciam, hierarquizam, homoge-
neizam e excluem. Claramente, “normalizam” , um individuo como
uma realidade fabricada pela tecnologia específica do poder que se
chama “disciplina” . O individuo foi capturado pelas relações de
2 CASCAIS, Antonio F. Nota de apresentação. In FOUCAULT, Michael. Vigiar e
punir. O nascimento da prisão. EDIÇÕES 70. 2013. [i-xiv].
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poder-saber, onde as praticas discursivas e não discursivas da
modernidade, o fazem aparecer quer como objeto, quer como sujeito.
Foi assim, “cuidadosamente fabricado por instituições que
segregaram um maquinismo de controlo que funcionou como ummicroscópio do comportamento”. ( Foucault citado por Cascais,
2013). Estamos perante uma tecnologia do poder sobre o corpo, e
recordo a noção de salubridade e a sua correlativa, a higiene pública
como técnica de controle e modificação dos elementos materiais do
meio que favorecem, ou não, a saúde, onde o saber surge como uma
forma de poder sobre o corpo (Foucault 2001, p.87). Continuamos
assim, frente a frente a um corpo que não é substância, antes uma
entidade que incorpora e articula os efeitos de um certo tipo de
poder referênciados por um determinado saber, uma teia onde as
relações de poder facilitam um saber do qual decorre outro poder
(Cascais 2013, p.ix). Aferimos daqui, e por análise estrutural
resultante do nosso pensamento, que qualquer mecanismo [ou
tecnologia] de objetivação [no nosso estudo referimo-nos àobjetivação do corpo pelas tecnologias/equipamentos e
manipulação, depois replicado em quaisquer imagens cientificas e ou
radiológicas] podem ser elementos de sujeição e, consequentemente,
aumentam o poder [sobre o corpo] que origina saber [sobre o mesmo
corpo]. Para isso, socorremo-nos dos dispositivos de “adestramento”,
“corpos dóceis” e “Panóptico”3 (de Jeremy Bentham) e que nos
permitem aproximar alguns conceitos de M. Foucault das tecnologias
3 Pan-óptico. (2014, julho 25). Wikipédia, a enciclopa livre. Retrieved 11:30,janeiro 11, 2015 from http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296. Conceito exposto em entrevista dada porFoucault a Jean-Pierre Barou e a Michelie Perrot, e compilada na Microfisica do
poder, pp.147-158.
http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296
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de visualização médica e das imagens médicas, com um novo olhar,
da superficie para a profundidade.
O Poder e o Corpo
O panóptico surge em Foucault (1977) no momento em que o
autor inicia estudos sobre o olhar médico e de como este olhar se
institucionalizou e se inscreveu no espaço social, ou seja, como a
forma hospitalar era o efeito e o suporte de um novo tipo de olhar.Relevamos, nesta perspetiva, que o enfoque nos hospitais é colocado
na vigilância dos corpos — salvaguardadas as especificidades de
contagios, ventilação e circulação de ar, entre outras — e assegura,
na divisão do espaço, uma vigilância dual, individual e global.
Quando comparado com os sistemas prisionais influenciados, quase
sempre, por Bentham, o ponto relevante é a visibilidade total dos
corpos, dos individuos, em sintese, um “olhar centralizado” .
Arquitetonicamente descrevemos o panóptico como uma
construção periférica em anel e no centro, uma torre. A periférica é
dividida em celas com duas janelas (uma abre para o interior, para a
torre, outra para o exterior, permitindo a entrada de luz de um lado
ao outro. Coloca-se um vigia na torre central e um em cada cela.
Acrescenta-se a este sistema um louco, um condenado, um doente ouum estudante. O efeito da luz permite a visibilidade da torre,
fraturado o principio ver-ser-visto, [apenas o vigia pode olhar,
apenas os manuseadores das tecnologias médicas podem ver, já que
ver é conhecer/saber (Jones & Galison, 1998)]. Quem está submetido
a este campo de visibilidade faz, espontaneamente, funcionar sobre si
mesmo as relações de poder.
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Uma ideia anterior a Bentham, de facto, mas que ele inovou,
valorizou e denominou, panóptico, designação não inocente e cheia
de significado. Panóptico é este conjunto arquitetónico, largamente
utilizado no século XVIII, como uma técnica de poder especifica pararesolver problemas de vigilância, o “ ovo de colombo” [Foucault M.,
2001(1979)], segundo o próprio Bentham, procurado por penalistas,
médicos, educadores. Um sistema ótico que permitia exercer bem, e
com enorme facilidade o poder. Amparado no “olho que vigia, e que
cada um, sentindo o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto
de observar a si mesmo; sendo assim, cada um exercerá esta
vigilância sobre e contra si mesmo” [Foucault M.,2001(1979), p.152].
Estamos perante uma máquina que circunscreve todo o mundo, tanto
os que exercem o poder quanto aqueles sobre os quais o poder se
exerce. Máquina sem titular, contudo com lugares preponderantes e
que: “permitem produzir efeitos de supremacia, (...) pode-se
assegurar uma denominação (...) na medida em que dissocia o poder
do dominio individual (Foucault, 2001(1979), p.153); organizaunidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer
imediatamente (...) a plena luz e o olhar de um vigia captam melhor
que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma
armadilha” [Foucault,1999 (1975 ), p.167].
Dispositivo que funciona alicerçado no conceito que dissocia
o binómio ver-ser visto. Um poder onde somos sempre vistos, mas em
que a maior parte das vezes não podemos ver quem nos vigia. Somos
colocados em situação de isolamento onde podemos ou não, estar a
ser observados. Podemos ter, por exemplo, um conjunto de
individuos, doentes, prisioneiros, estudantes, transformados numa
compilação de múltiplas individualidades. Permanentemente visivel,
absolutamente individualizado. Um poder que promove um lugar
para cada um, omnipresente, classifica, divide, distribui cada um deacordo com as suas capacidades, a sua história, a sua origem, o seu
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CORPO. Um olhar hierarquico, “normalizador, um zoológico real, o
animal é substituído pelo homem” [Foucault, Vigiar e Punir.
Nascimento de uma prisão, 1999 (1975)]. O panóptico promove o fim
da diferença.
Falamos de um poder disciplinador, regulamentador,
controlador dos movimentos, porém, algo ingénuo pois acreditava-se
que as pessoas se tornariam virtuosas, pelo simples facto de serem
olhadas, vigiadas. No fundo protagonizava-se uma alteração
comportamental espontânea. Capaz de tornar tudo visível tornando-se
a si mesmo invisível. Interessa nesta pesquisa, a leitura destedispositivo como um conceito que pode ser transposto para as
tecnologias de visualização médica, como o velho Raios X, ou as mais
modernas ecografias, tomografias computacionais, ressonâncias
magnéticas ou a mais hibrida PET-SCAN (num mix de medicina
nuclear e radiologia). Como são tecnologias cujo efeito de panóptico
expandido ou invertido produz o “adestramento dos corpos”, “corpos
dóceis” e ou um conjunto de subjetividades. Estamos perante umpoder disciplinador, que torna visivel o invisivel, inerente a estas
mesmas tecnologias. “O poder disciplinar é com efeito um poder que,
em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar';
(...) A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um
poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como
instrumentos de seu exercício.” Foucault, 1999 (1975) pp.143-161.
Para Foucault, o poder funciona como algo simples e discreto,
não é pretensioso nem se anuncia, é, com certeza, obscuro e
emaranhado, que torna invisível a torre central. É um dispositivo que
vai fluindo, não é algo estático. As barreiras de proximidade, entre
nós e o poder, não são visíveis e tornamo-nos o ponto de encontro
entre, o ponto de resistência e a propagação e alastramento. Citando
o autor 1999 (1975): “o poder seja convosco, ele está no meio de
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nós”. A sociedade não sobreviveria com a ideia de pura repressão,
esgotava as energias, fatigava-se depressa. O poder produz mais que
oprime, e mesmo antes de reprimir ele forma, treina, conduz, como
exemplifica, na “História da sexualidade, vol. I” , e defende que a partirdo século XVIII e XIX o sexo não encontra mais paz e é convocado
para estar no centro de todas as atenções. A prescrição da contra -
reforma promove a confissão de todos, pelo menos uma vez por ano,
para assim contar todos os detalhes da vida sexual de cada um
(desejos, ações, medos, até, pensamentos). Técnicas de ver, ouvir e
fazer falar espalham-se, dispositivos de confissão que extraiam as
verdades sexuais das pessoas, e a interpretação desta infinidade de
discursos promovem a sua formação e ao mesmo tempo a sua
identificação. Passam a visualizar-se as manias e as idiossincrasias.
Estas técnicas são estratégicas da tradição ascética e monástica, já
utilizadas pela igreja. “ (...) o sucesso do poder disciplinar se deve
sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a
sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lheé específico, o exame”, [1999 (1975)]: o olhar hierárquico em vez do
olhar dos palácios, onde se queria ser visto, ou das fortalezas, onde se
via o inimigo. Agora desenvolve-se uma arquitetura que incide na
observação do individuo. O espaço trabalhado com o objetivo de
distribuir hierarquicamente o poder. Do círculo, onde o poder estava
no centro, era visto por todos, cria-se uma pirâmide onde cada um
sabia o seu lugar, como se de um laboratório comportamental setratasse. Um poder que privilegia corpos competentes, obedientes e
com um elevado constructo moral, e que se move melhor quanto
maior o número de corpos, quanto maior o número de estudantes, de
doentes porque permite distribuição intermédia do poder e maior
vigilância hierárquica. É um poder absolutamente formador. Criador
de micropenalidades (castigo leve, privações ligeiras e algumas
humilhações morais), sanções normalizadoras dos comportamentos
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“fabricando” uma rede de indivíduos classificados segundo as suas
aptidões, que mede e hierarquiza, que pressiona os que não se
enquadram. Traça limites entre o “normal” e o “anormal”, entre o
“saudável” e o “doente”. A combinação dos factores redundam numprocedimento que lhe é específico e são a razão primeira para o
sucesso deste poder disciplinar. Falo do exame, que sobrepõe as
relações de poder e o saber, o ponto máximo do controle
normalizador, entre o olhar e a sanção. Aqui o indivíduo torna-se
visível e um objeto não visível fora da ação do poder. Daqui vai surgir
a “verdade” , o poder esconde-se, torna-se não visível, e deixa brilhar
aquele por quem exerce o poder, o sujeito é o objeto que se
transforma em medidas e em números. Nasce um individuo/grupo
caraterizado, comparado com os demais, individualizando todos os
desvios dos que não se ajustam. Cada individuo é um caso, torna-se
visível. Todo este poder disciplinador foi evoluindo, e hoje ele surge
com maiores subtilezas. No entanto, continua a ser uma troca de
processos de individualização. Ele homogeneiza e individualiza:somos únicos, mas somos todos iguais, ou seja analisa um a um para
o colocar numa tabela de normalidade e semelhança.
É este o HOMEM MODERNO, que nasce no fim do séc. XVIII e
que foi sobrevivendo a descobrir o detalhe, que tornou visível o que
antes passava despercebido, um homem que se fabrica. Um poder
que passou a agir em cada individuo para produzir “corpos dóceis”.
É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado,que pode ser transformado e aperfeiçoado. (...) O corpo humanoentra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticulae o recompõe. A disciplina fabrica assim corpos submissos eexercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do
corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essasmesmas forças (em termos políticos de obediência) (…) a coerçãodisciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão
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aumentada e a dominação acentuada [Foucault, Vigiar e Punir1999 (1975)]4.
Passamos a ter um corpo moldado pelo poder em diferentes
técnicas, como antes, só que agora é um corpo dividido, separado,medido, investigado em cada detalhe. Uma peça numa máquina de
produção, e por isso passa por diferentes fases, até ser um produto
acabado: família, escola, empresa e se algo estiver errado hospital,
cadeia. Todo este processo é retroalimentado em várias esferas da
sociedade, envolvendo diferentes atores, a sociedade, enfim, num
conjunto de interesses e de forças.
O Olhar do Observador Moderno5
Michael Foucault, em “O Nascimento da Clínica” (1977) analisa
a transformação do olhar pela emergência da anatomia patológica a
partir das pesquisas de Bichat e Broussais. Esta mudança de“episteme” é essencial porque possibilita um novo tipo de olhar
médico e um novo campo de visibilidade, diferente daquele que se
associa à medicina classificatória da época clássica. Até então, era
privilegiado um olhar de “superfície” associando a doença a uma
ordem ideal da classificação patológica. Esta tese taxinómica é
arruinada a partir do séc. XVIII e a medicina deixa de se preocupar em
arrumar a doença num espaço racional abstrato, observado quasecomo um “olhar da mente”. Na medicina moderna é instituído um
“olhar de profundidade, onde a superfície é inscrita na configuração
4 “Razão Inadequada”, 2015. [Online] Blogue de Rafael Trindade. [acedido em20-07-2015]. Disponível em: http://razaoinadequada.com 5 CRARY, Jonathan. Techniques of the Observer: on Vision and Modernity in the
Noneteenth Century. Editado por MT. Cambridge, 1990.
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profunda do corpo” (Foucault, 1997:148), que vai buscar à
interioridade encoberta do organismo a doença e que é capaz de
explicar os seus sinais e sintomas.
A medicina moderna promove, no nível da visibilidade, o que
se deve submeter à “soberania do olhar médico” , que percorre passo a
passo, lâmina a lâmina, cadáver a cadáver, na busca de lesões que
trarão as evidências concretas da doença materializada no organismo;
e o objeto empírico de conhecimento deixa de estar situado numa
ordem racional ideal, mas sim na dimensão empírica do corpo doente
individual. Não é a doença uma espécie patológica a inserir-se nocorpo, mas o próprio corpo que se torna doente (Rocha, 2012).
Nesta dimensão anatomo-patológica, nesta nova organização
dos saberes, (Foucault M. , A microfisica do poder) não se persegue a
compreensão da doença mas a perscrutação - a examinação
minuciosa, cuidadosa e “invasiva” - do organismo doente. A anatomia
com Bichat, como método de análise, é o momento essencial do
processo patológico, porque a “anatomia só pode tornar-se
patológica na medida em que o patológico anatomiza
espontaneamente” (Foucault, M., 1997:149). O corpo é o espaço da
doença. Fundado na ideia de “interrogar o corpo na sua espessura” ,
permite ao autor a afirmação de que “o olhar clínico, olhar anatomo-
patológico deverá demarcar um volume, dirá respeito às
complexidades de dados espaciais que pela primeira vez emmedicina eram tridimensionais” .
Inaugura-se, historicamente, um novo olhar neste novo
paradigma, a fonte de clareza, e fatalmente, sujeito ao aparelho
sensorial do homem (Foucault, M., 1997:148-168).
J. Crary (1990) define esta época, como aquela onde se deu a
transformação da natureza da visualidade de tal grandeza, quearrisca afirmar ter sido talvez mais profunda do que aquela que
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separa o nosso imaginário medieval, do renascentista. O
aparecimento de uma série de instrumentos óticos no séc. XIX, em
pouco mais de uma década, é parte de uma reconfiguração, quase
drástica, das relações entre o sujeito observador e os modos derepresentação que têm o efeito de abolir grande parte dos
significados estabelecidos culturalmente. Temos assim instrumentos
óticos portadores de modos de visualização, promotores de ilusões
óticas (thaumatrope; estereoscópio), um “modo de ver” novo
associado à modernidade, como se a sociedade moderna promovesse
a transformação da visão humana em alguma coisa “mensurável e
mutável” (Crary, 1990).
Todos os processos de representação envolvem alguma
tradução, ou conversão, através da qual, a fonte inicial é capturada,
transformada e, até pode ser, criada através de uma cadeia de
decisões, que envolvem diversos atores, dispositivos e normas. Este
complexo processo influencia o que se revela ou não, o que é incluído e
o que é excluído, divergindo de processo para processo e nãopermitindo generalizar as arbitrariedades. Ficamos com um conjunto
de relações, em medicina e ou em arte, entre o corpo, por um lado e as
formas de poder institucional (tecnologias) e discursivas, por outro,
definindo o estatuto do observador. Estas imagens, a maior parte das
vezes, não se reconhecem imediatamente apesar de parecerem
evidentes ao olhar de um leigo. Elas sustentam-se numa construção de
evidências socio-técnicas e sobrevivem, intelectualmente, suportadas
em códigos rigorosos que necessitam de competências específicas
para serem lidos, e os vínculos entre a imagem e os contextos onde são
produzidas são muitas vezes omissas no caso das técnicas de
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imagiamento, dos RX ao PET6. Alterações profundas que Foucault
apontou (1977) quando sugere as mudanças importantes que surgem
nas relações entre o “visivel e o invisivel”, entre “o ver e o dizer o que
se vê”, entre “ver e saber”.
Parece-nos possivel moldar este olhar, de acordo com a
matriz paradigmática que encaminha o olhar produzido pelas
tecnologias de produção, e visualizacão médica, que mapeiam os
corpos na medicina, e tentar identificar que diálogo é promovido
(Tucherman, 2004). Este olhar, “anatomo-patologico” criou uma
série de possibilidades de observação do corpo mais determinada epenetrante. Tão penetrante, que o invade em absoluto, mesmo
quando estas técnicas são classificadas de “não invasivas”. Existe algo
mais invasor do que o mapeamento do nosso cérebro?
O Corpo Digital ou o ®Visual Human Project 7
A medicina ocidental e ou tradicional, concede ao corpo um
lugar de destaque, esteja ele vivo ou morto. O hospital é o ambiente
onde este destaque, através da sua observação, oferece uma massa
de corpos relativamente submissos. Inicialmente abertos quase
exclusivamente aos indigentes estabelendo-se um contrato tacito, “o
6 Sobre este ponto conferir o artigo de 2006 de Ortega,F. O corpo transparente:visualização médica e cultura popular no século XX. História , Ciências, Saúde – Manguinhos (13):89-107. Rio de Janeiro, consultado a 15 de jan. 2015 edisponível em http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13s0/05.pdf 7 Visible Human Project. (2014, maio 1). Wikipédia, a enciclopédia livre.Retrieved.10:53, janeiro 14, 2015 fromhttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270. U.S. National Library of Medicine, consultado em Janeiro de 2015
http://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.html
http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13s0/05.pdfhttp://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13s0/05.pdfhttp://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13s0/05.pdfhttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270http://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.htmlhttp://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.htmlhttp://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.htmlhttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13s0/05.pdf
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infeliz que vem pedir ajuda, paga à medicina o que ele deve à
caridade” (Faure, 2008). Contrato este ou análogo que se aplica,
também, ao corpo morto, que quando não é reclamado é colocado à
disposição do corpo médico — “quando a arte é vencida pela doença(...) persegui-la até dentro do orgão que ela afetou e descobrir seus
segredos até nas entranhas de suas vitimas” (Faure, 2008). A
associação entre a observação dos sintomas, e a anatomia
patológica, permite a constituição da medicina anatomo patologica, e
do corpo anatomo-patologico, quando o corpo morto é tão
importante quanto o corpo vivo.
Interessa-nos explanar de acordo com os nossos objetivos de
investigação, neste trabalho, o corpo como entidade, cada vez mais
explorado por instrumentos, por tecnologias de visualização,
resultando assim num corpo que vai sendo apreendido de maneira
mais detalhada e especializada. Decomposto orgão a orgão,
tecnologia a tecnologia, fatia a fatia, fragmento a fragmento, tecido
necrotizado/tecido saudável.
As imagens recentes geradas por computador, ou digitais,
anunciam uma formalização, e implementação de uma localização
dos “espaços visuais” fabricados, completamente diferente das
possibilidades miméticas da fotografia, da televisão ou do cinema. Os
desenhos assistidos por computador, as simulações de voos ou,
agora, de doenças, as animações digitais , o motion control, ocontrolo das texturas, a realidade virtual, a proliferação de imagens
de ressonância magnética, são todo um conjunto de pontos de quem
se pode dizer que estão a relocalizar a visão do observador atual. As
tecnologias emergentes de produção de imagem, converteram-se em
modelos dominantes de visualização, de acordo com os quais,
funcionam as principais práticas sociais e institucionais (Crary,
1990). Naturalmente que todo este aparato está, hoje
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completamente entrecruzado, com as práticas da medicina. Imagens
que não nos remetem para o olho do observador no mundo “real”
mas para milhões de “bits” de uma linguagem binária. Atrevemo-nos
no entanto a sugerir que os “bits” de hoje podem corresponder àeletricidade do século XIX, quando o senhor Röentgen8 estudava os
raios catódicos9, que o levaram à descoberta dos Raios X.
Os primeiros cinquenta anos, depois da descoberta dos raios
X, serviram para codificar um novo corpo, um corpo visto por filtros.
Os últimos cinquenta, contribuem para fragmentar, e especificar de
forma muito exigente, cada “pixel” e “voxel” do corpo humano. Asciências da imagem nos últimos anos iniciam novos paradigmas,
nomeadamente, com as técnicas tomográficas (o corpo em fatias), as
imagens funcionais (numa fusão entre as ciências informáticas, a
física, a biologia e as novas técnicas de imagem que proporcionam a
volumetria, sustentadas em modelos 3D).
A transparência dos corpos é conseguida pela medicina, antes
do séc. XIX, por via da dissecação, promovendo – olhando para o
interior do corpo - o conhecimento e os segredos da fisiologia humana
associada ao progresso científico. A medicina é prisioneira de muitos
dos conceitos de transparência dos corpos. Porém é a transparência,
ontem como hoje, quase uma pré condição para o poder médico, e o
controle da saúde humana, assim como a longevidade é indissociável
do progresso destas tecnologias (Rocha, 2012).
8 Wilhelm Conrad Röntgen. (2014, novembro 11). Wikipédia, a enciclopédialivre. Retrieved 10:01, janeiro 15, 2015fromhttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Wilhelm_Conrad_R%C3%B6nt gen&oldid=40578337 9 Raio catódico. (2014, dezembro 23). Wikipédia, a enciclopédia livre. Retrieved10:02, janeiro 15, 2015 from
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Estas imagens são geradoras de evidências técnicas (médicas)
e socializam, originando transformações que se vão sucedendo sobre
o ideal de corpo, e que se enraízam na cultura Ocidental, pelo menos.
São imagens que são olhadas não só com o restrito olhar técnico, masque se tornam promotoras de outros valores. Se na representação
analógica ainda existia algum vínculo entre a natureza (o corpo) e a
representação, quando chegamos a esta era digital, ela elimina-se.
Nestas representações, os corpos são alinhados em critérios de
normatização de forma algorítmica. Releva-se os traços estáveis e
comuns, abolindo-se as variâncias anatómicas e criando-se um órgão
padrão.
O “Visual Human Project ”10 (VHP), consiste num programa
científico financiado pelos EUA que visou produzir dois “corpos
digitais” , um homem e uma mulher, padronizados/”normatizados”
anatomicamente e a partir de cadáveres. Transformou-se corpos de
cadáveres em linguagens binárias dos computadores e foram assim
padronizadas as representações tridimensionais de corposmasculinos e femininos considerados normais, criando-se um
conjunto de dados de imagens digitais de ressonância magnética e
tomografia computorizada, e as suas respetivas anatomias. Deve,
agora, o nosso corpo submeter-se a estes corpos construídos
digitalmente, e enquadrar-se dentro do padrão, desvio-padrão.
Corpos espartilhados em conjuntos de algoritmos. Através do
entendimento do VHP, percebemos que tecnologias como a
10 O Visible Human ProjeTC ® é a criação de todas as, anatomicamentedetalhadas, representações tridimensionais das normas do sexo masculino efeminino dos corpos humanos. Aquisição de transversal TC, RM e imagensrepresentativas em fatias de cadáveres do sexo masculino e feminino. O machofoi seccionado em intervalos de um milímetro, a fêmea menos um terço de ummilímetro.
http://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.html
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ressonância magnética, a tomografia computorizada e outras
imagens digitais, quando se dissecam corpos digitais, cujos dados são
reconfigurados e disponibilizados para fins médicos, através da
internet e para o público em geral, permitem-nos fazer associaçõesentre as anatomias virtuais e os teatros anatómicos. A privacidade,
em ambas as épocas, é absolutamente invadida, mesmo que agora as
imagens nos surjam mais limpas, sem ruído, eliminando a ideia de
dissecação com a digitalização.
Considerações Finais
M. Foucault não olha a Medicina como uma ciência do
“Homem” mas sim como “da vida”, colocando o enfoque no individuo.
Ficamos com um conjunto de regras imposta à população, reguladas
pela medicina, e não com o reconhecimento da capacidade inerente
ao organismo de produzir normas. Basicamente, para Foucault o que
está em causa quando falamos de “vida” são os corpos reais, por isso
considerados não apenas como organismos, mas enquanto
individuos relacionais, simbólicos, históricos, sociais e politicos. O
corpo é um produto/objeto infinitamente maleável pelo poder,
quando a disciplina é promotora da fabricação de “corpos dóceis” ,
agora, alinhados com as tecnologias. As tecnologias do olhar [tecno-
logias de visualização médica e os seus dispositivos de imagem] con-
duzem-nos, neste trabalho, à consciência dos postulados conceituais
de Foucault, de um olhar vigilante e controlador.
A dissecação digital elimina a ideia de morte, e transporta-nos
para a ideia de montagem, de construção peça a peça, numa enge-
nharia de corpos, através de cortes milimétricos, corpos cartografa-
dos em qualquer direção. Aquilo que concluímos neste trabalho é a
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associação do olhar anatomopatológico de Foucault com uma visua-
lidade “ciborguiana”, porque não perscrutamos o corpo directa-
mente, mas através de máquinas. Resultam assim imagens esparti-
lhadas em códigos que as tornam “dóceis”. Ficamos com replicaçõesdo corpo, rigorosas e com desvios padrão dentro de limites conside-
rados “normais” , de acordo com os limites dos programas espartilha-
dos, em algoritmos matemáticos. Este sistema subjuga configurações
e reconfigurações algorítmicas e geométricas, numa tentativa de eli-
minar o aparelho sensorial humano, de forma a evitar desvios, atra-
vés de interpretações do homem. Entre visualizar o corpo numa ra-
diografia do esqueleto e num ecrã, em fatias multiplanares, recons-
truídas e reformatas, parece diminuir a distância entre visibilidade e
legibilidade, apesar de cada vez ser mais ampliada. Restam-nos ima-
gens que sobrevivem limitadas a protocolos inseridos nas tecnolo-
gias, delimitando variações e erros humanos. Toda a construção des-
tas imagens é suportada num trabalho muito laborioso de classifica-
ção de informação, de catalogação, e arquivo da informação, sempreespartilhando a informação de tradução em tradução, alocando aos
“softwares” muito do trabalho repetitivo, e de cálculos matemáticos
complicados, mesmo que a ciência continue estimulada na capaci-
dade interpretativa dos resultados, e no fator humano. Estas tecnolo-
gias, replicam corpos tantas vezes quantos as necessárias, permitem
diferentes visualizações, permitem disciplinarmente retirar e am-
pliar delas apenas aquilo que se quer, ignorando-se outras partes.Corpos fatiados e adquiridos em contexto micro, tornados visíveis
em contexto macro, quando inseridos em redes de dados globais.
Estamos face a um conjunto de “pixéis” que perseguem, ontem como
hoje, o corpo ideal, adaptado aos nossos valores estéticos, morais,
económicos e comerciais, num permanente conflito entre o mundo
da ciência/médico e o mundo que promove estas imagens e tecnolo-
gias. O corpo torna-se um objeto sem opacidades, onde se experien-
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cia e se age. As tecnologias, ditas não invasivas, que viram o corpo do
avesso, permitem-nos colocar questões, como cientistas sociais, se é
mais invasivo ver os valores de análise da hemoglobina ou as ima-
gens de um cérebro? O corpo é reduzido a um padrão, um sistema deinformação. O corpo natural pode, agora, ser transformado em corpo
virtual, em imagens virtuais, tratado como objeto e arrumado num
arquivo digital, susceptível de armazenamento, de recuperação, de
replicação. Um corpo aberto à instrumentalização, e cujos limites
estão confinados a uma base de dados.
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