corpos cartografados, imagens disciplinadas. um percurso através de conceitos de michael foucault

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  • 8/16/2019 Corpos Cartografados, Imagens Disciplinadas. Um Percurso Através de Conceitos de Michael Foucault

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    Corpos cartografados, imagens disciplinadas.Um percurso através de conceitos de Michael Foucault

    Carla Solano1 

    Resumo

    Procuramos neste texto abordar as tecnologias de visualiza-

    ção médica como dispositivos mapeadores do corpo humano que é

    fatiado, fragmentado, reformatado, alterado, obtendo-se dessas tec-nologias imagens disciplinadas de acordo com visibilidades específi-

    cas. Uma abordagem originária no “bom adestramento”, nos “corpos

    dóceis” e “Pan-ópticos” de Bentham, um olhar através de Foucault, de

    alguns dos seus conceitos, das relações de poder e discurso que atra-

    vessam a medicina e os seus instrumentos, tecnologias de visualiza-

    ção médica e imagens. Trabalhamos a ideia de corpo como um

    produto/objeto infinitamente maleável pelo poder, e que através de“normas” e “disciplinas”  são alinhados com as tecnologias.

    1 Licenciada em Radiologia pela ESTESC, Instituto Superior Técnico de Coimbra,mestre em Antropologia Médica, Departamento de Ciências da Vida daFaculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Doutorandade Estudos Contemporâneos/Imagem Médica no CEIS20, Instituto deInvestigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra. Técnica radiologista

    nos CHUC. Investigadora no CRIA. Investigadora no CIJVS.

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    A biomedicina/biotecnologia, aqui por intermédio do ®VISUAL

    HUMAN PROJECT reforma, modifica e reconstroi expandindo

    constantemente os limites do corpo.

    Palavras-chave: corpo, poder, Foucault, imagens de radiologia,

    panóptico

     Abstract

    In this text we will try to address medical imaging technologies

    as mappers devices of the human body that is sliced, fragmented,

    reformatted, changed, resulting from these technologies disciplined

    images according to specific visibilities. An approach originating from

    a good dressage, from docile and panoptic Bentham bodies, a look

    through Foucault and from some of its concepts, and from therelations of power and discourse that cross medicine and its

    instruments, medical imaging technologies and images. We will work

    the idea of the body as a product / object infinitely malleable by

    power, and that through rules and disciplines are aligned with the

    technologies. Biomedical / biotechnology, here through the ®VISUAL

    HUMAN PROJECT, reforms, modifies and rebuilds, constantly

    expanding the boundaries of the body.

    Keywords: body, power, Foucault, radiology images, panoptic

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    Introdução

    “O corpo está também mergulhado no sistema político (...); as

    relações de poder operam sobre ele um efeito imediato. Investem-no, marcam-no, controlam-no, supliciam-no, sujeitam-no a

    trabalhos, obrigam-no a cerimónias, exigem-lhe sinais. Esteinvestimento político do corpo está ligado, segundo relaçõescomplexas e recíprocas, à sua utilização económica (...) o corpo sóse torna força útil se for simultaneamente corpo produtivo e corposubmisso. Essa sujeição não é obtida apenas pelos instrumentosde violência ou da ideologia (...) Isto significa que pode haver um“saber” do corpo que não é exatamente a ciência do seufuncionamento e um domínio das suas forças que é mais do que acapacidade de vencê-las: este domínio e este saber constituemaquilo que se poderia chamar a tecnologia política do corpo. (...)

    Além disso não se poderia situá-la nem num tipo definido deinstituição nem num aparelho estatal. (...) Trata-se, de certamaneira, de uma microfísica do poder utilizada pelos aparelhos epelas instituições, mas cujo campo de validade se situa, de algummodo, entre esses grandes funcionamentos e os próprios corposcom a sua materialidade e as suas forças. (...) Este poder, por outrolado, não se aplica pura e simplesmente, como uma obrigação, ouuma interdição, àquele que o “não detêm”; investe-os, passa por eatravés deles; apoia-se neles, tal como eles próprios, na sua lutacontra o poder, se apoiam no domínio que exerce sobre eles” 2. 

    Nas sociedades modernas disciplinares, que se seguem às an-

    tigas sociedades de soberania (poder do rei) o poder disciplinador, a

    arte de punir não se efetua nem pela repressão nem pela expiação,

    segundo Foucault (1999), antes dá espaço a que apareça, através das

    disciplinas, a “norma”.  Os dispositivos disciplinares, [as instituições

    ou, como tentarei mostrar, as tecnologias de visualização médica e os

    dispositivos imagéticos], construíram penalidades da “norma” 

    , con-junto de regras que comparam, diferenciam, hierarquizam, homoge-

    neizam e excluem. Claramente, “normalizam”  , um individuo como

    uma realidade fabricada pela tecnologia específica do poder que se

    chama “disciplina” . O individuo foi capturado pelas relações de

     2  CASCAIS, Antonio F. Nota de apresentação. In FOUCAULT, Michael. Vigiar e

    punir. O nascimento da prisão. EDIÇÕES 70. 2013. [i-xiv].

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    poder-saber, onde as praticas discursivas e não discursivas da

    modernidade, o fazem aparecer quer como objeto, quer como sujeito.

    Foi assim, “cuidadosamente fabricado por instituições que

    segregaram um maquinismo de controlo que funcionou como ummicroscópio do comportamento”. ( Foucault citado por Cascais,

    2013). Estamos perante uma tecnologia do poder sobre o corpo, e

    recordo a noção de salubridade e a sua correlativa, a higiene pública

    como técnica de controle e modificação dos elementos materiais do

    meio que favorecem, ou não, a saúde, onde o saber surge como uma

    forma de poder sobre o corpo (Foucault 2001, p.87). Continuamos

    assim, frente a frente a um corpo que não é substância, antes uma

    entidade que incorpora e articula os efeitos de um certo tipo de

    poder referênciados por um determinado saber, uma teia onde as

    relações de poder facilitam um saber do qual decorre outro poder

    (Cascais 2013, p.ix). Aferimos daqui, e por análise estrutural

    resultante do nosso pensamento, que qualquer mecanismo [ou

    tecnologia] de objetivação [no nosso estudo referimo-nos àobjetivação do corpo pelas tecnologias/equipamentos e

    manipulação, depois replicado em quaisquer imagens cientificas e ou

    radiológicas] podem ser elementos de sujeição e, consequentemente,

    aumentam o poder [sobre o corpo] que origina saber [sobre o mesmo

    corpo]. Para isso, socorremo-nos dos dispositivos de “adestramento”,

    “corpos dóceis” e “Panóptico”3  (de Jeremy Bentham) e que nos

    permitem aproximar alguns conceitos de M. Foucault das tecnologias

    3  Pan-óptico. (2014, julho 25). Wikipédia, a enciclopa livre. Retrieved 11:30,janeiro 11, 2015 from http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296.  Conceito exposto em entrevista dada porFoucault a Jean-Pierre Barou e a Michelie Perrot, e compilada na Microfisica do

     poder, pp.147-158. 

    http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pan-%C3%B3ptico&oldid=39667296

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    de visualização médica e das imagens médicas, com um novo olhar,

    da superficie para a profundidade.

    O Poder e o Corpo

    O panóptico surge em Foucault (1977) no momento em que o

    autor inicia estudos sobre o olhar médico e de como este olhar se

    institucionalizou e se inscreveu no espaço social, ou seja, como a

    forma hospitalar era o efeito e o suporte de um novo tipo de olhar.Relevamos, nesta perspetiva, que o enfoque nos hospitais é colocado

    na vigilância dos corpos —  salvaguardadas as especificidades de

    contagios, ventilação e circulação de ar, entre outras —  e assegura,

    na divisão do espaço, uma vigilância dual, individual e global.

    Quando comparado com os sistemas prisionais influenciados, quase

    sempre, por Bentham, o ponto relevante é a visibilidade total dos

    corpos, dos individuos, em sintese, um “olhar centralizado” . 

    Arquitetonicamente descrevemos o panóptico como uma

    construção periférica em anel e no centro, uma torre. A periférica é

    dividida em celas com duas janelas (uma abre para o interior, para a

    torre, outra para o exterior, permitindo a entrada de luz de um lado

    ao outro. Coloca-se um vigia na torre central e um em cada cela.

    Acrescenta-se a este sistema um louco, um condenado, um doente ouum estudante. O efeito da luz permite a visibilidade da torre,

    fraturado o principio ver-ser-visto, [apenas o vigia pode olhar,

    apenas os manuseadores das tecnologias médicas podem ver, já que

    ver é conhecer/saber (Jones & Galison, 1998)]. Quem está submetido

    a este campo de visibilidade faz, espontaneamente, funcionar sobre si

    mesmo as relações de poder.

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    Uma ideia anterior a Bentham, de facto, mas que ele inovou,

    valorizou e denominou, panóptico, designação não inocente e cheia

    de significado. Panóptico é este conjunto arquitetónico, largamente

    utilizado no século XVIII, como uma técnica de poder especifica pararesolver problemas de vigilância, o “ ovo de colombo”   [Foucault M.,

    2001(1979)], segundo o próprio Bentham, procurado por penalistas,

    médicos, educadores. Um sistema ótico que permitia exercer bem, e

    com enorme facilidade o poder. Amparado no “olho que vigia, e que

    cada um, sentindo o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto

    de observar a si mesmo; sendo assim, cada um exercerá esta

    vigilância sobre e contra si mesmo”  [Foucault M.,2001(1979), p.152].

    Estamos perante uma máquina que circunscreve todo o mundo, tanto

    os que exercem o poder quanto aqueles sobre os quais o poder se

    exerce. Máquina sem titular, contudo com lugares preponderantes e

    que: “permitem produzir efeitos de supremacia, (...) pode-se

    assegurar uma denominação (...) na medida em que dissocia o poder

    do dominio individual (Foucault, 2001(1979), p.153); organizaunidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer

    imediatamente (...) a plena luz e o olhar de um vigia captam melhor

    que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma

    armadilha”  [Foucault,1999 (1975 ), p.167].

    Dispositivo que funciona alicerçado no conceito que dissocia

    o binómio ver-ser visto. Um poder onde somos sempre vistos, mas em

    que a maior parte das vezes não podemos ver quem nos vigia. Somos

    colocados em situação de isolamento onde podemos ou não, estar a

    ser observados. Podemos ter, por exemplo, um conjunto de

    individuos, doentes, prisioneiros, estudantes, transformados numa

    compilação de múltiplas individualidades. Permanentemente visivel,

    absolutamente individualizado. Um poder que promove um lugar

    para cada um, omnipresente, classifica, divide, distribui cada um deacordo com as suas capacidades, a sua história, a sua origem, o seu

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    CORPO. Um olhar hierarquico, “normalizador, um zoológico real, o

    animal é substituído pelo homem”  [Foucault, Vigiar e Punir.

    Nascimento de uma prisão, 1999 (1975)]. O panóptico promove o fim

    da diferença. 

    Falamos de um poder disciplinador, regulamentador,

    controlador dos movimentos, porém, algo ingénuo pois acreditava-se

    que as pessoas se tornariam virtuosas, pelo simples facto de serem

    olhadas, vigiadas. No fundo protagonizava-se uma alteração

    comportamental espontânea. Capaz de tornar tudo visível tornando-se

    a si mesmo invisível. Interessa nesta pesquisa, a leitura destedispositivo como um conceito que pode ser transposto para as

    tecnologias de visualização médica, como o velho Raios X, ou as mais

    modernas ecografias, tomografias computacionais, ressonâncias

    magnéticas ou a mais hibrida PET-SCAN (num mix de medicina

    nuclear e radiologia). Como são tecnologias cujo efeito de panóptico

    expandido ou invertido produz o “adestramento dos corpos”, “corpos

    dóceis” e ou um conjunto de subjetividades. Estamos perante umpoder disciplinador, que torna visivel o invisivel, inerente a estas

    mesmas tecnologias. “O poder disciplinar é com efeito um poder que,

    em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar';

    (...) A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um

    poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como

    instrumentos de seu exercício.” Foucault, 1999 (1975) pp.143-161. 

    Para Foucault, o poder funciona como algo simples e discreto,

    não é pretensioso nem se anuncia, é, com certeza, obscuro e

    emaranhado, que torna invisível a torre central. É um dispositivo que

    vai fluindo, não é algo estático. As barreiras de proximidade, entre

    nós e o poder, não são visíveis e tornamo-nos o ponto de encontro

    entre, o ponto de resistência e a propagação e alastramento. Citando

    o autor 1999 (1975): “o poder seja convosco, ele está no meio de

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    nós”. A sociedade não sobreviveria com a ideia de pura repressão,

    esgotava as energias, fatigava-se depressa. O poder produz mais que

    oprime, e mesmo antes de reprimir ele forma, treina, conduz, como

    exemplifica, na “História da sexualidade, vol. I”  , e defende que a partirdo século XVIII e XIX o sexo não encontra mais paz e é convocado

    para estar no centro de todas as atenções. A prescrição da contra -

    reforma promove a confissão de todos, pelo menos uma vez por ano,

    para assim contar todos os detalhes da vida sexual de cada um

    (desejos, ações, medos, até, pensamentos). Técnicas de ver, ouvir e

    fazer falar espalham-se, dispositivos de confissão que extraiam as

    verdades sexuais das pessoas, e a interpretação desta infinidade de

    discursos promovem a sua formação e ao mesmo tempo a sua

    identificação. Passam a visualizar-se as manias e as idiossincrasias.

    Estas técnicas são estratégicas da tradição ascética e monástica, já

    utilizadas pela igreja. “  (...) o sucesso do poder disciplinar se deve

    sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a

    sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lheé específico, o exame”, [1999 (1975)]: o olhar hierárquico em vez do

    olhar dos palácios, onde se queria ser visto, ou das fortalezas, onde se

    via o inimigo. Agora desenvolve-se uma arquitetura que incide na

    observação do individuo. O espaço  trabalhado com o objetivo de

    distribuir hierarquicamente o poder. Do círculo, onde o poder estava

    no centro, era visto por todos, cria-se uma pirâmide onde cada um

    sabia o seu lugar, como se de um laboratório comportamental setratasse. Um poder que privilegia corpos competentes, obedientes e

    com um elevado constructo moral, e que se move melhor quanto

    maior o número de corpos, quanto maior o número de estudantes, de

    doentes porque permite distribuição intermédia do poder e maior

    vigilância hierárquica. É um poder absolutamente formador. Criador

    de micropenalidades (castigo leve, privações ligeiras e algumas

    humilhações morais), sanções normalizadoras dos comportamentos

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    “fabricando”   uma rede de indivíduos classificados segundo as suas

    aptidões, que mede e hierarquiza, que pressiona os que não se

    enquadram. Traça limites entre o “normal” e o “anormal”, entre o

    “saudável” e o “doente”. A combinação dos factores redundam numprocedimento que lhe é específico e são a razão primeira para o

    sucesso deste poder disciplinar. Falo do exame, que sobrepõe as

    relações de poder e o saber, o ponto máximo do controle

    normalizador, entre o olhar e a sanção. Aqui o indivíduo torna-se

    visível e um objeto não visível fora da ação do poder. Daqui vai surgir

    a “verdade”  , o poder esconde-se, torna-se não visível, e deixa brilhar

    aquele por quem exerce o poder, o sujeito é o objeto que se

    transforma em medidas e em números. Nasce um individuo/grupo

    caraterizado, comparado com os demais, individualizando todos os

    desvios dos que não se ajustam. Cada individuo é um caso, torna-se

    visível. Todo este poder disciplinador foi evoluindo, e hoje ele surge

    com maiores subtilezas. No entanto, continua a ser uma troca de

    processos de individualização. Ele homogeneiza e individualiza:somos únicos, mas somos todos iguais, ou seja analisa um a um para

    o colocar numa tabela de normalidade e semelhança.

    É este o HOMEM MODERNO, que nasce no fim do séc. XVIII e

    que foi sobrevivendo a descobrir o detalhe, que tornou visível o que

    antes passava despercebido, um homem que se fabrica. Um poder

    que passou a agir em cada individuo para produzir “corpos dóceis”. 

    É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado,que pode ser transformado e aperfeiçoado. (...) O corpo humanoentra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticulae o recompõe. A disciplina fabrica assim corpos submissos eexercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do

    corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essasmesmas forças (em termos políticos de obediência) (…) a coerçãodisciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão

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    aumentada e a dominação acentuada [Foucault, Vigiar e Punir1999 (1975)]4.

    Passamos a ter um corpo moldado pelo poder em diferentes

    técnicas, como antes, só que agora é um corpo dividido, separado,medido, investigado em cada detalhe. Uma peça numa máquina de

    produção, e por isso passa por diferentes fases, até ser um produto

    acabado: família, escola, empresa e se algo estiver errado hospital,

    cadeia. Todo este processo é retroalimentado em várias esferas da

    sociedade, envolvendo diferentes atores, a sociedade, enfim, num

    conjunto de interesses e de forças.

    O Olhar do Observador Moderno5 

    Michael Foucault, em “O Nascimento da Clínica” (1977) analisa

    a transformação do olhar pela emergência da anatomia patológica a

    partir das pesquisas de Bichat e Broussais. Esta mudança de“episteme”   é essencial porque possibilita um novo tipo de olhar

    médico e um novo campo de visibilidade, diferente daquele que se

    associa à medicina classificatória da época clássica. Até então, era

    privilegiado um olhar de “superfície” associando a doença a uma

    ordem ideal da classificação patológica. Esta tese taxinómica é

    arruinada a partir do séc. XVIII e a medicina deixa de se preocupar em

    arrumar a doença num espaço racional abstrato, observado quasecomo um “olhar da  mente”. Na medicina moderna é instituído um

    “olhar de profundidade, onde a superfície é inscrita na configuração

    4  “Razão Inadequada”, 2015. [Online] Blogue de Rafael Trindade. [acedido em20-07-2015]. Disponível em: http://razaoinadequada.com 5 CRARY, Jonathan. Techniques of the Observer: on Vision and Modernity in the

    Noneteenth Century. Editado por MT. Cambridge, 1990.

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    profunda do corpo”   (Foucault, 1997:148), que vai buscar à

    interioridade encoberta do organismo a doença e que é capaz de

    explicar os seus sinais e sintomas. 

    A medicina moderna promove, no nível da visibilidade, o que

    se deve submeter à “soberania do olhar médico” , que percorre passo a

    passo, lâmina a lâmina, cadáver a cadáver, na busca de lesões que

    trarão as evidências concretas da doença materializada no organismo;

    e o objeto empírico de conhecimento deixa de estar situado numa

    ordem racional ideal, mas sim na dimensão empírica do corpo doente

    individual. Não é a doença uma espécie patológica a inserir-se nocorpo, mas o próprio corpo que se torna doente (Rocha, 2012). 

    Nesta dimensão anatomo-patológica, nesta nova organização

    dos saberes, (Foucault M. , A microfisica do poder) não se persegue a

    compreensão da doença mas a perscrutação - a examinação

    minuciosa, cuidadosa e “invasiva” - do organismo doente. A anatomia

    com Bichat, como método de análise, é o momento essencial do

    processo patológico, porque a  “anatomia só pode tornar-se

    patológica na medida em que o patológico anatomiza

    espontaneamente”   (Foucault, M., 1997:149). O corpo é o espaço  da

    doença. Fundado na ideia de “interrogar o corpo na sua espessura”  ,

    permite ao autor a afirmação de que “o olhar clínico, olhar anatomo-

    patológico deverá demarcar um volume, dirá respeito às

    complexidades de dados espaciais que pela primeira vez emmedicina eram tridimensionais” . 

    Inaugura-se, historicamente, um novo olhar neste novo

    paradigma, a fonte de clareza, e fatalmente, sujeito ao aparelho

    sensorial do homem (Foucault, M., 1997:148-168).

    J. Crary (1990) define esta época, como aquela onde se deu a

    transformação da natureza da visualidade de tal grandeza, quearrisca afirmar ter sido talvez mais profunda do que aquela que

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    separa o nosso imaginário medieval, do renascentista. O

    aparecimento de uma série de instrumentos óticos no séc. XIX, em

    pouco mais de uma década, é parte de uma reconfiguração, quase

    drástica, das relações entre o sujeito observador e os modos derepresentação que têm o efeito de abolir grande parte dos

    significados estabelecidos culturalmente. Temos assim instrumentos

    óticos portadores de modos de visualização, promotores de ilusões

    óticas (thaumatrope; estereoscópio), um “modo de ver”   novo

    associado à modernidade, como se a sociedade moderna promovesse

    a transformação da visão humana em alguma coisa “mensurável e

    mutável” (Crary, 1990).

    Todos os processos de representação envolvem alguma

    tradução, ou conversão, através da qual, a fonte inicial é capturada,

    transformada e, até pode ser, criada através de uma cadeia de

    decisões, que envolvem diversos atores, dispositivos e normas. Este

    complexo processo influencia o que se revela ou não, o que é incluído e

    o que é excluído, divergindo de processo para processo e nãopermitindo generalizar as arbitrariedades. Ficamos com um conjunto

    de relações, em medicina e ou em arte, entre o corpo, por um lado e as

    formas de poder institucional (tecnologias) e discursivas, por outro,

    definindo o estatuto do observador. Estas imagens, a maior parte das

    vezes, não se reconhecem imediatamente apesar de parecerem

    evidentes ao olhar de um leigo. Elas sustentam-se numa construção de

    evidências socio-técnicas e sobrevivem, intelectualmente, suportadas

    em códigos rigorosos que necessitam de competências específicas

    para serem lidos, e os vínculos entre a imagem e os contextos onde são

    produzidas são muitas vezes omissas no caso das técnicas de

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    imagiamento, dos RX ao PET6. Alterações profundas que Foucault

    apontou (1977) quando sugere as mudanças importantes que surgem

    nas relações entre o “visivel e o invisivel”, entre “o ver e o dizer o que

    se vê”, entre “ver e saber”. 

    Parece-nos possivel moldar este olhar, de acordo com a

    matriz paradigmática que encaminha o olhar produzido pelas

    tecnologias de produção, e visualizacão médica, que mapeiam os

    corpos na medicina, e tentar identificar que diálogo é promovido

    (Tucherman, 2004). Este olhar, “anatomo-patologico”   criou uma

    série de possibilidades de observação do corpo mais determinada epenetrante. Tão penetrante, que o invade em absoluto, mesmo

    quando estas técnicas são classificadas de “não invasivas”. Existe algo

    mais invasor do que o mapeamento do nosso cérebro?

    O Corpo Digital ou o ®Visual Human Project 7  

    A medicina ocidental e ou tradicional, concede ao corpo um

    lugar de destaque, esteja ele vivo ou morto. O hospital é o ambiente

    onde este destaque, através da sua observação, oferece uma massa

    de corpos relativamente submissos. Inicialmente abertos quase

    exclusivamente aos indigentes estabelendo-se um contrato tacito, “o

    6 Sobre este ponto conferir o artigo de 2006 de Ortega,F. O corpo transparente:visualização médica e cultura popular no século XX. História , Ciências, Saúde – Manguinhos (13):89-107. Rio de Janeiro, consultado a 15 de jan. 2015 edisponível em http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13s0/05.pdf  7  Visible Human Project. (2014, maio 1). Wikipédia, a enciclopédia livre.Retrieved.10:53, janeiro 14, 2015 fromhttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270.  U.S. National Library of Medicine, consultado em Janeiro de 2015

    http://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.html 

    http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13s0/05.pdfhttp://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13s0/05.pdfhttp://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13s0/05.pdfhttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270http://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.htmlhttp://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.htmlhttp://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.htmlhttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Visible_Human_Project&oldid=38804270http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13s0/05.pdf

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    Carla Solano

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    infeliz que vem pedir ajuda, paga à medicina o que ele deve à

    caridade”   (Faure, 2008). Contrato este ou análogo que se aplica,

    também, ao corpo morto, que quando não é reclamado é colocado à

    disposição do corpo médico — “quando a arte é vencida pela doença(...) persegui-la até dentro do orgão que ela afetou e descobrir seus

    segredos até nas entranhas de suas vitimas”   (Faure, 2008). A

    associação entre a observação dos sintomas, e a anatomia

    patológica, permite a constituição da medicina anatomo patologica, e

    do corpo anatomo-patologico, quando o corpo morto é tão

    importante quanto o corpo vivo.

    Interessa-nos explanar de acordo com os nossos objetivos de

    investigação, neste trabalho, o corpo como entidade, cada vez mais

    explorado por instrumentos, por tecnologias de visualização,

    resultando assim num corpo que vai sendo apreendido de maneira

    mais detalhada e especializada. Decomposto orgão a orgão,

    tecnologia a tecnologia, fatia a fatia, fragmento a fragmento, tecido

    necrotizado/tecido saudável.

    As imagens recentes geradas por computador, ou digitais,

    anunciam uma formalização, e implementação de uma localização

    dos “espaços visuais” fabricados, completamente diferente das

    possibilidades miméticas da fotografia, da televisão ou do cinema. Os

    desenhos assistidos por computador, as simulações de voos ou,

    agora, de doenças, as animações digitais , o motion control, ocontrolo das texturas,  a realidade virtual, a proliferação de imagens

    de ressonância magnética, são todo um conjunto de pontos de quem

    se pode dizer que estão a relocalizar a visão do observador atual. As

    tecnologias emergentes de produção de imagem, converteram-se em

    modelos dominantes de visualização, de acordo com os quais,

    funcionam as principais práticas sociais e institucionais (Crary,

    1990). Naturalmente que todo este aparato está, hoje

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    Corpos cartografados, imagens disciplinadas. | Um percurso através de conceitos de Michael Foucault

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    completamente entrecruzado, com as práticas da medicina. Imagens

    que não nos remetem para o olho do observador no mundo “real” 

    mas para milhões de “bits”  de uma linguagem binária. Atrevemo-nos

    no entanto a sugerir que os “bits”   de hoje podem corresponder àeletricidade do século XIX, quando o senhor Röentgen8  estudava os

    raios catódicos9, que o levaram à descoberta dos Raios X.

    Os primeiros cinquenta anos, depois da descoberta dos raios

    X, serviram para codificar um novo corpo, um corpo visto por filtros.

    Os últimos cinquenta, contribuem para fragmentar, e especificar de

    forma muito exigente, cada “pixel”  e “voxel” do corpo humano. Asciências da imagem nos últimos anos iniciam novos paradigmas,

    nomeadamente, com as técnicas tomográficas (o corpo em fatias), as

    imagens funcionais (numa fusão entre as ciências informáticas, a

    física, a biologia e as novas técnicas de imagem que proporcionam a

    volumetria, sustentadas em modelos 3D).

    A transparência dos corpos é conseguida pela medicina, antes

    do séc. XIX, por via da dissecação, promovendo –  olhando para o

    interior do corpo - o conhecimento e os segredos da fisiologia humana

    associada ao progresso científico. A medicina é prisioneira de muitos

    dos conceitos de transparência dos corpos. Porém é a transparência,

    ontem como hoje, quase uma pré condição para o poder médico, e o

    controle da saúde humana, assim como a longevidade é indissociável

    do progresso destas tecnologias (Rocha, 2012).

    8  Wilhelm Conrad Röntgen. (2014, novembro 11). Wikipédia, a enciclopédialivre. Retrieved 10:01, janeiro 15, 2015fromhttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Wilhelm_Conrad_R%C3%B6nt gen&oldid=40578337 9 Raio catódico. (2014, dezembro 23). Wikipédia, a enciclopédia livre. Retrieved10:02, janeiro 15, 2015 from

    http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Raio_cat%C3%B3dico&oldid=40919566. 

    http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Wilhelm_Conrad_R%C3%B6ntgen&oldid=40578337http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Wilhelm_Conrad_R%C3%B6ntgen&oldid=40578337http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Wilhelm_Conrad_R%C3%B6ntgen&oldid=40578337http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Raio_cat%C3%B3dico&oldid=40919566http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Raio_cat%C3%B3dico&oldid=40919566http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Raio_cat%C3%B3dico&oldid=40919566http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Wilhelm_Conrad_R%C3%B6ntgen&oldid=40578337http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Wilhelm_Conrad_R%C3%B6ntgen&oldid=40578337

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    Carla Solano

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    Estas imagens são geradoras de evidências técnicas (médicas)

    e socializam, originando transformações que se vão sucedendo sobre

    o ideal de corpo, e que se enraízam na cultura Ocidental, pelo menos.

    São imagens que são olhadas não só com o restrito olhar técnico, masque se tornam promotoras de outros valores. Se na representação

    analógica ainda existia algum vínculo entre a natureza (o corpo) e a

    representação, quando chegamos a esta era digital, ela elimina-se.

    Nestas representações, os corpos são alinhados em critérios de

    normatização de forma algorítmica. Releva-se os traços estáveis e

    comuns, abolindo-se as variâncias anatómicas e criando-se um órgão

    padrão.

    O “Visual Human  Project ”10  (VHP), consiste num programa

    científico financiado pelos EUA que visou produzir dois “corpos

    digitais” , um homem e uma mulher, padronizados/”normatizados” 

    anatomicamente e a partir de cadáveres. Transformou-se corpos de

    cadáveres em linguagens binárias dos computadores e foram assim

    padronizadas as representações tridimensionais de corposmasculinos e femininos considerados normais, criando-se um

    conjunto de dados de imagens digitais de ressonância magnética e

    tomografia computorizada, e as suas respetivas anatomias. Deve,

    agora, o nosso corpo submeter-se a estes corpos construídos

    digitalmente, e enquadrar-se dentro do padrão, desvio-padrão.

    Corpos espartilhados em conjuntos de algoritmos. Através do

    entendimento do VHP, percebemos que tecnologias como a

    10  O Visible Human ProjeTC ® é a criação de todas as, anatomicamentedetalhadas, representações tridimensionais das normas do sexo masculino efeminino dos corpos humanos. Aquisição de transversal TC, RM e imagensrepresentativas em fatias de cadáveres do sexo masculino e feminino. O machofoi seccionado em intervalos de um milímetro, a fêmea menos um terço de ummilímetro.

    http://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.html 

    http://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.htmlhttp://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.htmlhttp://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.html

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    ressonância magnética, a tomografia computorizada e outras

    imagens digitais, quando se dissecam corpos digitais, cujos dados são

    reconfigurados e disponibilizados para fins médicos, através da

    internet e para o público em geral, permitem-nos fazer associaçõesentre as anatomias virtuais e os teatros anatómicos. A privacidade,

    em ambas as épocas, é absolutamente invadida, mesmo que agora as

    imagens nos surjam mais limpas, sem ruído, eliminando a ideia de

    dissecação com a digitalização.

    Considerações Finais

    M. Foucault não olha a Medicina como uma ciência do

    “Homem” mas sim como “da vida”, colocando o enfoque no individuo.

    Ficamos com um conjunto de regras imposta à população, reguladas

    pela medicina, e não com o reconhecimento da capacidade inerente

    ao organismo de produzir normas. Basicamente, para Foucault o que

    está em causa quando falamos de “vida”  são os corpos reais, por isso

    considerados não apenas como organismos, mas enquanto

    individuos relacionais, simbólicos, históricos, sociais e politicos. O

    corpo é um produto/objeto infinitamente maleável pelo poder,

    quando a disciplina é promotora da fabricação de “corpos dóceis”  ,

    agora, alinhados com as tecnologias. As tecnologias do olhar [tecno-

    logias de visualização médica e os seus dispositivos de imagem] con-

    duzem-nos, neste trabalho, à consciência dos postulados conceituais

    de Foucault, de um olhar vigilante e controlador.

    A dissecação digital elimina a ideia de morte, e transporta-nos

    para a ideia de montagem, de construção peça a peça, numa enge-

    nharia de corpos, através de cortes milimétricos, corpos cartografa-

    dos em qualquer direção. Aquilo que concluímos neste trabalho é a

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    associação do olhar anatomopatológico de Foucault com uma visua-

    lidade “ciborguiana”,  porque não perscrutamos o corpo directa-

    mente, mas através de máquinas. Resultam assim imagens esparti-

    lhadas em códigos que as tornam “dóceis”. Ficamos com replicaçõesdo corpo, rigorosas e com desvios padrão dentro de limites conside-

    rados “normais”  , de acordo com os limites dos programas espartilha-

    dos, em algoritmos matemáticos. Este sistema subjuga configurações

    e reconfigurações algorítmicas e geométricas, numa tentativa de eli-

    minar o aparelho sensorial humano, de forma a evitar desvios, atra-

    vés de interpretações do homem. Entre visualizar o corpo numa ra-

    diografia do esqueleto e num ecrã, em fatias multiplanares, recons-

    truídas e reformatas, parece diminuir a distância entre visibilidade e

    legibilidade, apesar de cada vez ser mais ampliada. Restam-nos ima-

    gens que sobrevivem limitadas a protocolos inseridos nas tecnolo-

    gias, delimitando variações e erros humanos. Toda a construção des-

    tas imagens é suportada num trabalho muito laborioso de classifica-

    ção de informação, de catalogação, e arquivo da informação, sempreespartilhando a informação de tradução em tradução, alocando aos

    “softwares”  muito do trabalho repetitivo, e de cálculos matemáticos

    complicados, mesmo que a ciência continue estimulada na capaci-

    dade interpretativa dos resultados, e no fator humano. Estas tecnolo-

    gias, replicam corpos tantas vezes quantos as necessárias, permitem

    diferentes visualizações, permitem disciplinarmente retirar e am-

    pliar delas apenas aquilo que se quer, ignorando-se outras partes.Corpos fatiados e adquiridos em contexto micro, tornados visíveis

    em contexto macro, quando inseridos em redes de dados globais.

    Estamos face a um conjunto de “pixéis” que perseguem, ontem como

    hoje, o corpo ideal, adaptado aos nossos valores estéticos, morais,

    económicos e comerciais, num permanente conflito entre o mundo

    da ciência/médico e o mundo que promove estas imagens e tecnolo-

    gias. O corpo torna-se um objeto sem opacidades, onde se experien-

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    cia e se age. As tecnologias, ditas não invasivas, que viram o corpo do

    avesso, permitem-nos colocar questões, como cientistas sociais, se é

    mais invasivo ver os valores de análise da hemoglobina ou as ima-

    gens de um cérebro? O corpo é reduzido a um padrão, um sistema deinformação. O corpo natural pode, agora, ser transformado em corpo

    virtual, em imagens virtuais, tratado como objeto e arrumado num

    arquivo digital, susceptível de armazenamento, de recuperação, de

    replicação. Um corpo aberto à instrumentalização, e cujos limites

    estão confinados a uma base de dados.

    Bibliografia 

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    Carla Solano

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