foucault, michel (et al.). o homem e o discurso (a arqueologia de michel foucault)

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comumcaçao

Foucault/Rouanet/Merquior/Escobar/Lecourt

Michel FO U C A U LT Sergio Pau lo R O UANET

José Guilherm e M ER Q UIO R Dom inique LEC O U R T

Carlos Henrique de ESCOBAR

O HOMEM E O DISCURSO (A Arqueologia de Michel Foucault)2a edição

Tempo Brasileiro_____Rio de Janeiro -- RJ - 1996

<'< >Ml INIC.AÇAí)

Capa:P edro P a u l o Ma c h a d o

Direitos reservados àsEDIÇÕES TEMPO BRASILEIRORua Gago Coutinho, 61 -Tel.: 205-5949 -- Fax: 205-2964Caixa Postal 16099 - CEP 22221-070Rio de Janeiro -- RJ -- Brasil

ÍN D ICE G E R A L

1. Apresentação ....................................................... 9

2. EN TR EV ISTA COM M ICHEL FOUCAULT, porSergio P. Rouanet e J. G. M erqu io r................. 17

3. DO M INIQUE LECOURTA Arqueologia e o Saber .................................... 43

4. CARLOS H EN R IQ U E D E ESCOBARDiscurso Científico e Discurso Ideológico ........ 67

5. SERGIO PA U LO R O UANETA Gramática do Homicídio ................................ 91

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APRESENTAÇÃO

Com êste livro, Tempo Brasileiro apresenta uma das figuras mais originais do pensamento europeu contempo­râneo. Não queremos dizer com isto que Foucault seja des­conhecido no Brasil, pois foi professor da Universidade de São Paulo e um dos seus livros — Maladie Mentale et Psy- chologie — foi traduzido para o português e publicado exa­tamente por nossa editora. Mas não existe, até agora, um conjunto sistemático de textos que descreva a sua obra e procure situá-la nas grandes correntes do pensamento moderno. Ê êste o objetivo da presente coletânea, que pretende ao mesmo tempo familiarizar o leitor com as grandes linhas da obra de Foucault e fornecer os ele­mentos para uma avaliação crítica.

A obra de Foucault é uma reflexão sôbre o discurso. Discursos parcelares, como o discurso da loucura e da medicina; discursos entrecruzados, múltiplos, como o dis­curso das epistemes; e um discurso sôbre o discurso, ou a arqueologia.

Os discursos parcelares são descrições especializadas de certas faixas do saber. Não se trata da história da psiquiatria, mas da descrição diacrônica do espaço epis­temológico dentro do qual o saber da loucura evoluiu da fase da indiferenciação, característica da Renascença, pa­ra a fase da grande reclusão, do período clássico, ou para a fase asilar, no seculo X V III ; nem da história da medi-

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cina, mas da descrição faseológica de totalidades cultu­rais que se sucedem no tempo, e ao longo de cujo eixo a medicina elassifieatória transita para a medicina clínica e esta para a medicina anátomo-patológica. Cada etapa do saber da loucura e do saber médico se inscreve numa configuração epocal, abrangendo um conjunto de siste- maticidades discursivas e constelações extradiscursivas, que se intercomunicam livremente. 0 discurso é poroso à praxis, e a praxis é modificada pelo discurso. O saber psiquiátrico de Pinei, por exemplo, não pode ser disso­ciado das circunstâncias sociais e políticas do período re­volucionário; e a nova forma de percepção característica da medicina clínica é homóloga do espaço social livre com que sonhava a Revolução francesa. Podemos carac­terizar essa fase como a da transitividade discursiva.

Já o discurso epistêmico, sistematizado em Les Mots et Les Choses, é geralmente intransitivo. De nôvo, Fou­cault estuda configurações epocais, mas dessa vez de for­ma ao mesmo tempo mais pletórica e mais ascética: seu escopo é mais amplo, porque não se limita a estudar uma modalidade específica de saber, mas uma rêde de discur­sos interligados; e sua metodologia é mais severa, por­que exclui, deliberadamente, as práticas extradiscursi­vas. Mais uma vez, estamos diante de uma faseologia ter- nária, em que a Renascença é sucedida pela época clás­sica e esta pela modernidade. Mas o leitor procuraria em vão, dentro de cada fase, interações entre o discurso da economia política e as novas formas de organização de trabalho introduzidas pela revolução tecnológica, ou en­tre o advento das ciências humanas e o advento do capi­talismo. Tudo se passa no nível do discurso. Os obje­tos, conceitos e escolhas temáticas das diversas discipli­nas são dados no espaço epistêmico formado pela inte­ração de sistematicidades discursivas. O entrelaçamento de disciplinas como a gramática, a história natural e a teoria das riquezas constitui uma espécie de solo epistê­mico no qual podem ou não aflorar determinados temas e objetos. As possibilidades ou impossibilidades epistê- micas a viabilidade ou não de temas como o evolucio- nismo ou a lei da renda da terra — são condicionadas por tendências objetivas no campo do discurso, e não por totalidades sócio-culturais nas quais as práticas dis­cursivas alternam com as práticas extradiscursivas, ou as práticas investidas em instituições, como na história da loucura e da clínica. O tema do homem não constitui uma

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exceção. O homem começou a ser pensado como objeto para o saber no momento em que o espaço plano do pe­ríodo clássico, regido pela categoria da representação, passou a ser erodido pela historicidade, categoria central da episteme moderna: o homem surgiu na brecha epis- temológica que se formou com o fim da apresentação e o advento da história. Em outras palavras: o homem é um acidente na trajetória do Discurso, e poderá desapa­recer quando se modificar a disposição epistemológica que o engendrou. Não é outro o sentido da fórmula da mor­te do homem”, pedra de escândalo da consciência antro­pológica vulgar. Essa fase da obra de Foucault pode ser caracterizada como a da intransitividade consciente.

Enfim, o discurso da Arqueologia. Ê uma reflexão metodológica sôbre as práticas descritivas do próprio Foucault — tanto a transitiva, como na história da lou­cura e da medicina, como a intransitiva, característica de Les Mots et les Choses. É o momento da codificação. Mas também o da síntese. Nesse livro, Foucault unifica num grande Organon programático a metodologia da transitividade e a metodologia da análise discursiva pu­ra. Num certo sentido, é uma resposta aos críticos, es­pecialmente marxistas, que o acusavam de praticar uma historiografia fantasmagórica, em que o discurso era su­jeito e objeto de si mesmo. Mais profundamente, é um desenvolvimento lógico de sua obra anterior. Reapare­cem, em sua tranquilizadora materialidade, as classes e as instituições, como na fase transitiva, mas “despresen- tificados” , reduzidos ao pré-discursivo, e portanto fun­cionando ainda no nível do discursivo. Estamos num uni­verso ao mesmo tempo familiar — as coisas existem e desconhecido — não são as mesmas coisas de que fala­mos no discurso cotidiano. De qualquer forma, as coisas e as palavras estão presentes; com mais propriedade que no livro anterior, a Archéologie poderia denominar-se Les Mots et les Choses.

O discurso é, portanto, a matéria de Foucault. Dis­curso movendo-se livremente numa configuração total, como na história da loucura e da medicina; discurso im­perialista e excludente, como em Les Mots et les Chosc-S; e discurso controlado, co-existindo com o não (pré-dis­cursivo no interior de um corpus normativo, como na Arqueologia.

Essa presença do discurso no coração da obra <lr Foucault pode e deve ser interpretada em têrmos da pi o-

blomática interna dessa obra. Em têrmos propriamente científicos. B o que pretendem os textos incluídos nesta antologia. Mas êsse exame interno não é incompatível com um exame do discurso de Foucault a partir de seus limites exteriores. Investigando a zona limítrofe em que o discursivo em Foucault se articula com o não-discursi- vo. Seguindo, de certa forma, o método do próprio Fou­cault em suas primeiras reflexões sôbre a medicina e a loucura, num zigue-zague livre entre as formações dis­cursivas e as não-discursivas.

Dêsse ponto de vista, podemos dizer que o funciona­mento do discurso na obra de Foucault é em suas gran­des linhas homólogo ao seu funcionamento na sociedade industrial moderna. Êsse funcionamento comporta dois aspectos, superficialmente contraditórios mas na verdade solidários: a onipotência do discurso, e a sua fragilidade.

Onipotência do discurso: é talvez a dimensão essen­cial da modernidade. Todos os críticos de nossa época, marxistas ou liberais, vêem na onipresença das estruturas discursivas a característica central do mundo contempo­râneo. Presença audio-visual do discurso na imprensa fa ­lada e escrita; presença do discurso na propaganda polí­tica; presença do discurso nos textos e imagens publici­tárias. Discurso em vários níveis. No nível do factual, ou supostamente factual; no nível da mentira consciente; no nível da produção mitopaica subliminar. Como o dis­curso dos rapsodos, o discurso dos mass media é um ir­resistível veiculador de mitos. Discurso ideológico,'en­fim, no nível do factual: a verdade funcionando como ideologia, o discurso verídico que aliena o seu destinatá­rio na exata medida em que é verídico. A ideologia que pode dar-se ao luxo de aparecer sob a máscara da ver­dade: a mentira que não precisa mais mentir. Nesse uni­verso, o discurso funciona como um sistema abrangente. Uma espécie de pesadelo saussuriano em que a “língua”— com suas leis e suas normatividades co ator as — ti­vesse extravasado de seu domínio específico de validade para ocupar a totalidade do espaço social É o universo de Foucault. Nesse sentido, êsse sutil modelador de es­truturas epistêmicas nada mais faz que descrever reali­dades cotidianas visíveis a ôlho nu. Foucault descreve o que vê quando substitui o sujeito por um somatório das posições gnoseológicas possíveis do sujeito; quando dis­solve os conceitos nas regras para a formação de concei­

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tos; e quando põe de lado as práticas humanas em sua descrição do mecanismo de apropriação temática de de­terminados discursos, enxergando nesse mecanismo um conjunto de normas inerentes ao próprio discurso. Fou­cault não inventa um mundo sem sujeitos: descreve, rea- listicamente, um mundo em que o sujeito já foi, ou está sendo, submergido pelo discurso. Seria ingênuo ver nessa expulsão do homem e da vida em benefício de um discur­so antropofágico uma ideologia idealista, segundo os ca­coetes mentais de um marxismo preguiçoso. Quando a ideologia é co-extensa com o real, descrever o real já é expor a ideologia. O desmascaramento, em Foucault, não é praticado a partir de um lugar epistemológico privile­giado, livre do contágio das estruturas discursivas domi­nantes, mas pela inserção visceral nessas estruturas: des- crevê-las já é começar a roê-las por dentro. Nesse sen­tido, a denúncia do antropologismo tradicional é um ges­to político. Porque êsse antropologismo, fundado direta ou indiretamente no idealismo transcendental do sujeito, e confundido ética com ciência, humanismo com saber, é radicalmente incompetente para pensar a modernidade. Em Les Mots et les Choses} Foucault diz que só com a destruição do quadrilátero antropológico o homem pode­rá liberar um espaço mental em que a reflexão se torne de nôvo possível. Essa formulação é talvez extremada; mas é certo que sem uma distinção nítida entre o huma­nismo e a ciência do homem, que relegue ao bas-fond do espírito o antropologismo epigônico de nosso tempo, não será possível refletir validamente sôbre o mundo nem forjar os instrumentos para sua contestação.

A essa ubiquidade do discurso no mundo contempo­râneo — e em Foucault — podemos opor uma inexplicá­vel vulnerabilidade do discurso. O discurso é aquilo que domina o homem com uma normatividade despótica; mas é também aquilo que deve ser excluído ou reduzido ao si­lêncio. Ambivalência análoga em seu mecanismo à am­bivalência afetiva que Freud identifica na relação com a autoridade paterna e Frázer na relação do primitivo com o rei: misto de reverência e antagonismo, de submissão e revolta, de amor e ódio. O discurso é ao mesmo tem­po soberano e prisioneiro. Aquilo ao qual o homem cede, que o conduz em sua superfície translúcida, que age e pensa por êle, que dita os enunciados necessários e au­toriza os enunciados possíveis. Mas também a exterio- ridade selvagem que precisa ser dominada por sistema

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(le interditos e domesticada por fórmulas de legitima­ção, a fim de conjurar sua imprevisibilidade e fixá-la numa ordem. Êsse segundo aspecto do discurso — sua vulnerabilidade — é tão característico do mundo moder­no quanto o primeiro. A modernidade é atravessada de ponta a ponta por estruturas discursivas — mas não por qualquer discurso. Nesse universo aparentemente domi­nado pelo discurso, não é possível falar de qualquer coi­sa, nem atribuir a qualquer um o terrível poder de enun­ciar. É um mundo dominado por um duplo interdito: quanto ao objeto e quanto ao sujeito do enunciado.

A obra de Foucault reflete êsse sistema de interdi­ções. A antinomia mais fundamental é a que opõe o dis­curso da loucura ao discurso da razão. Essa oposição, relativamente fluída na Renascença, surge com nitidez no período clássico e adquire contornos definitivos no século XIX. De um lado, existe o discurso da Ordem, definida em têrmos econômicos, sociais, políticos, morais; do outro, o discurso da Desordem. Desordem que no sé­culo X V II abrangia não somente a loucura como tôdas as modalidades de comportamento anti-social. A loucura era a marginalia da razão clássica. A razão se definindo no momento em que define os seus limites exteriores. Com o mesmo gesto de partilha com que separa o dis­curso normal e o psicopatológico, a razão clássica dese­nhava o seu próprio perfil, correlativa do perfil do Ou­tro. Os monstros da Desordem são produzidos não pelo sono da Razão, como Goya imaginava, mas por sua im­placável vigilância e sua produtividade metódica. É no momento em que produz sua teratologia que a razão produz sua normalidade. O reino da ordem é instaurado por um gesto ao mesmo tempo inaugural e de degrêdo.

É na descrição dêsse duplo movimento que Foucault captura a modernidade em uma de suas dimensões mais trágicas. O gesto instaurador é sempre solidário de um gesto de segregação. Em têrmos sociais mais amplos, talvez essa dicotomia sempre tenha existido. Cada dis­curso tem a sua patologia, que é o discurso periférico, banido pelo discurso hegemônico. Mas é na sociedade moderna, sobretudo em sua variedade tecnocrática, que o fenômeno se verifica de forma mais agônica. A razão tec- noerática só pode funcionar expulsando para os confins da Ordem os discursos que não podem ser assimilados pela racionalidade vigente. O paradoxo da dinâmica tec­nocrática é que ela se define pelos discursos alternativos,

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que, no entanto, precisam ser expulsos. Êsses discursos vão sendo pouco a pouco silenciados, até que o dis­curso tecnoerático possa ser enunciado sozinho. Ao contrário da natureza clássica, a tecnocracia é movida pela fames vacui. Ê um discurso necrófilo, que só pode prosperar num universo exangue. Num primeiro momen­to, a razão tecnocrática limita-se a degredar para o lim­bo do discurso a sua demonologia: os discursos reivindi- catórios, que interferem com a racionalidade das deci­sões econômicas; os discursos civis, que interferem com a racionalidade das decisões militares; os discursos parti­dários, que interferem com a racionalidade do modêlo político. Com o tempo, êsses demônios vão desaparecen­do: a ratio tecnocrática se implanta sozinha na polis. É o triunfo do discurso da Razão. E a mudez — quem sabe provisória — do discurso da loucura.

Ê nesse sentido — enquanto reflexo da supremacia do discurso, e índice da fragilidade de certos discursos diante da agressividade das práticas extradiscursivas in­vestidas em discursos antagônicos — que a obra de Fou­cault é plenamente moderna. O leitor tirará suas pró­prias conclusões quanto à novidade da contribuição de Foucault para a renovação da reflexão sôbre o homem. O material contido nesta coletânea é suficiente para aju­dá-lo nessa tarefa. Uma coisa, porém, é certa: essa obra é plenamente representativa de nosso tempo. O que nos leva, em última análise, a uma conclusão otimista. Se a mobilidade é a lei das epistemes, não há configurações teóricas ou práticas absolutamente petrificadas. A der­rota da loucura não precisa ser definitiva. A Narren- shiff — nave dos doidos — está silenciosa, mas continua navegando. Um dia, talvez os monstros de Bosch ressur- jam. Os guizos de Yorick ressoarão novamente, para ensinamento dos reis e dos povos. E a loucura reassu­mirá o seu papel pedagógico de castigar o desregramen- to, transformando em animais de um bestiário irônico os que tentaram perverter a essência do homem.

Êste volume foi preparado por um dos mais compe­tentes ensaístas do nôvo Brasil: Sérgio Paulo Rouanet. A êle, Tempo Brasileiro agradece mais esta valiosa cola­boração.

tb

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Entrevista com Michel FoucaultP or Sergio Paulo Rouanet

e José Gu ilherm e Merquior

S.P .R. — Sua obra comporta, essencialmente, dois momentos: um momento empirico-des- critivo (Naissance de la Clinique, His­toire de la Folie, Les Mots et les Choses) e um momento de reflcocão metodológica ( L ’Archéologie du Savoir). Depois do trabalho de codificação e sistematização da Archéologie, pretende voltar à descri­ção de zonas especializadas do saber ?

KOUCAULT — Sim. Pretendo agora alternar as pesqui­sas descritivas com as análises de tipo teórico. Podemos dizer que para mim a Archéologie não era nem completamen­te uma teoria, nem completamente uma metodologia. Talvez seja êste o defeito do livro; mas eu não podia deixar de es­crevê-lo. Não é uma teoria na medida, por exemplo, em que eu não sistemati­zei as relações entre as formações dis­cursivas e as formações sociais e eco­nômicas, cuja importância foi estabele­cida pelo marxismo de uma forma incon­testável. Essas relações foram deixadas na sombra. Seria preciso elaborar tais relações, para construir uma teoria. Além disso, deixei de lado, na Archéo­logie, os problemas puramente metodo­lógicos. Isto é : como trabalhar com êsses instrumentos? É possível fazer a análise dessas formações discursivas? A

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semântica tem alguma utilidade? As análises quantitativas, como as pratica­das pelos historiadores, servem para al­guma coisa? Podemos então perguntar o que é a Archéologie, se não é nem uma teoria nem uma metodologia. Minha resposta é que é alguma coisa como a designação de um objeto: uma tentati­va de identificar o nível no qual pre­cisava situar-me para fazer surgir êsses objetos que eu tinha manipulado duran­te muito tempo sem saber sequer que êles existiam, e portanto sem poder no- meá-los. Ao escrever a Histoire de la Folie ou a Naissance de la Clinique, eu julgava, no fundo, estar fazendo a his­tória das ciências. Ciências imperfeitas, como a psicologia, ciências flutuantes, como as ciências médicas ou químicas, mas ainda assim história das ciências. Pensava que as particularidades que en­contrava estavam no próprio material estudado, e não na especificidade do meu ponto de vista. Ora, em Les Mots et les Choses compreendi que independente­mente da história tradicional das ciên­cias, um outro método era possível, que era uma certa maneira de considerar não tanto o conteúdo da ciência como a sua própria existência: uma certa maneira de interrogar os fatos, que me fêz per­ceber que numa cultura como a do Oci­dente a prática científica tem uma emergência histórica, comporta uma existência e um desenvolvimento histó­rico, e seguiu um certo número de linhas de transformação independente­mente, até certo ponto, de seu con­teúdo. Era preciso, deixando de la-

Q texto foi submetido a Foucault, que não pôde, entretanto, corrigi-lo. Foucault não tem, por- tanto> nenhuma responsabilidade por seu con­teúdo,

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do o problema do conteúdo e da organi­zação formal da ciência, pesquisar as ra­zões pelas quais a ciência existiu ou uma determinada ciência começou, num mo­mento dado, a existir e assumir um cer­to número de funções em nossa socieda­de. Foi êsse ponto de vista que tentei definir na Archéologie du Savoir. Tra­tava-se, em suma, de definir o nível par­ticular ao qual o analista deve colocar- -se para fazer aparecer a existência do discurso científico e seu funcionamento na sociedade.

J .G.M. Podemos então dizer que se fruta da análise de Les Mots et les Choses, mas a nível reflexivo?

KOUCAULT — Exatamente. Digamos que na Histoire de la Folie e na Naissance de la Clinique eu ainda era cego para o que fazia. Em Les Mots et les Choses, um ôlho estava aberto e o outro, fechado: donde o cará­ter um pouco trôpego do livro, num cer­to sentido teórico demais, e em outro sentido insuficientemente teórico. En­fim, na Archéologie, tentei precisar o lugar exato de onde eu falava.

S . P . R . —- Isto explica sem dúvida algumas das di­ferenças mais sensíveis entre o método seguido em La Naissance de la Clinique e UHistoire de la Folie, por um lado, e Les Mots et les Choses, por outro lado, e também algumas particularidades da Archéologie. Nos dois primeiros livros, o discurso é bastante permeável às prá­ticas sociais ( extmdiscursivas) que ocupam neles um lugar muito importan­te; em Les Mots et les Choses, essas práticas desaparecera quase completa­mente, para renascer na Archéologie, sob um modo reflexivo, mas redefinidas como práticas pré-discursivas. podemos portanto isolarf de sua trajetória até agora, três vias possíveis: ou uma livre

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circulação do discurso às práticas so­ciais, e reciprocamente, sem nenhum a priori metodológico muito rígido; ou a colocação entre parênteses dessas práti­cas, para concentrar a descrição no pl^‘ no exclusivo do discurso; ou enfim a in­corporação dessas práticas à análise, se­gundo um método rigoroso, mas udes- presentificadas” e reduzidas ao pré-dis- cursivo, e portanto funcionando ainda no nível do discurso. Seus trabalhos fu~ turos seguirão sem dúvida êsse último caminho. Mas nesse caso, como articu­lar os dois planos — o discursivo e o ex- tradiscursivo — mesmo se êste último é apresentado como pré-discursivo?

FO UC AULT — Alegro-me com essa pergunta. Ê em tor­no dela, com efeito, que se cristalizam as principais críticas e objeções que foram feitas ao meu trabalho. N a Histoire de la Folie e em La Naissance de la Clini­que eu estava diante de um material muito singular. Tratava-se de discursos científicos cuja organização, aparelho teórico, campo conceituai e sistematici- dade interna eram bastante fracos. Mui­to fracos mesmo, no caso da psicopatolo- gia, que nos séculos X V II e X V III era constituída por um certo número de no­ções pouco elaboradas e que mesmo no século X IX só foram elaboradas de for­ma indireta e sôbre o modêlo da medicina propriamente dita. Não se pode dizer que o discurso psicopatológico europeu até Freud tenha comportado um nível de cientificidade muito elevado. Em com­pensação, todos os contextos institucio­nais, sociais e econômicos dêsse discur­so eram importantes. Ê evidente que a maneira de internar os loucos, de diag­nosticá-los, de medicá-los, de excluí-los da sociedade ou incluí-los num local de internamento, era tributário de estrutu­ras sociais, de condições econômicas,

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tais como o desemprego, as necessidades de mão-de-obra, etc. No fundo, era um pouco tudo isto que tinha me seduzido no tema. Os esforços feitos por certos historiadores da ciência, de inspiração marxista, para localigar a gênese social da geometria ou do cálculo das probabi­lidades no século XVII, tinham me im­pressionado muito. Era um trabalho in­grato; os materiais eram muito difíceis. É muito difícil empreender a análise das relações entre o saber e a sociedade a partir dêsse gênero de problemas. Em compensação, existe um complexo insti­tucional considerável, e bem evidente, no caso de um discurso com pretensões ci­entíficas, como o da psicopatologia. Era tentador analisar êsse discurso, e foi o que tentei fazer. Prossegui, em seguida, as minhas pesquisas no campo da me­dicina em geral, achando que tinha es­colhido um exemplo fácil demais no campo da psicopatologia, cujo aparelho científico era demasiado fraco. Tentei, a propósito do nascimento da anátomo e fisiopatologia, que são, afina), ciências verdadeiras, identificar o sistema insti­tucional, e o conjunto das práticas eco­nômicas e sociais, que tornaram possí­vel, numa sociedade como a nossa, uma medicina que é, apesar de tudo, e quais­quer que sejam as ressalvas possíveis, uma medicina científica. Acrescentarei, sem qualquer polêmica, que nenhuma das críticas marxistas feitas a Les Mots et les Choses por seu caráter pretensa- mente anti-histórico, mencionaram se­quer as tentativas que eu havia feito a propósito da psicopatologia ou da medi­cina. Les Mots et les Choses responde a dois problemas particulares que se apre­sentaram a partir da problemática sus­citada pela Naissance de la Clinique. O primeiro é o seguinte: podemos observar, em práticas científicas perfeitamente

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estranhas uma à outra, e sem qualquer comunicação direta, transformações que se produzem ao mesmo tempo, segundo a mesma forma geral, no mesmo senti­do. É um problema muito curioso. Em seu último livro, consagrado à história da genética, François Jacob assinalou um fenômeno dêsse gênero: o apareci­mento, no meio do século XIX, de duas teorias, uma biológica e outra física, que recorrem em geral ao mesmo tipo de or­ganização e sistematicidade. Eram as teorias de Darwin e Bolzmann. Darwin foi o primeiro a tratar os sêres vivos ao nível da população, e não mais ao nível da individualidade; o Bolzmann começou a tratar as partículas físicas não mais como individualidades, como ao nível do fenômeno população, isto é, como séries de eventualidades estatisticamente men­suráveis. Ora, entre Darwin e Bolz­mann, é evidente que não havia nenhu­ma relação direta: os dois ignoravam a existência um do outro. Aliás essa re­lação, hoje evidente, e que constitui uma das grandes encruzilhadas da ciên­cia do século XIX, não podia realmente ser percebida pelos contemporâneos. Como é possível que dois acontecimen­tos, remotos na ordem da consciência, tenham podido produzir-se simultanea­mente e aparecer tão próximos, para nós, na ordem das configurações episte­mológicas em geral? Eu já tinha encon­trado precisamente êsse problema na medicina clínica. Por exemplo, é quase no mesmo momento e em condições mui­to parecidas que aparecem a química, com Lavoisier, e a anátomo-fisiologia, e no entanto é somente mais tarde, por volta de 1820, que as duas ciências se encontrarão. Ora, elas nasceram mais ou menos na mesma época e constituíram, cada uma em seu domínio, revoluções mais ou menos análogas. Eis aí o pri­

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meiro problema — o das simultaneida- des epistemológicas. O segundo proble­ma foi o seguinte: pareceu-me que as condições econômicas e sociais que ser­vem de contexto ao aparecimento de uma ciência, ao seu desenvolvimento e ao seu funcionamento, não se traduzem na própria ciência sob a forma de discurso científico, como um desejo, uma neces­sidade ou um impulso podem se tradu­zir no discurso de um indivíduo ou em seu comportamento. Os conceitos cien­tíficos não exprimem as condições eco­nômicas nos quais surgiram. É eviden­te, por exemplo, que a noção de tecido ou a noção de lesão orgânica nada têm a ver — se o problema se coloca em têr- mos de expressão — com a situação do desemprêgo na França em fins do sécu­lo XVIII. E no entanto é igualmente evidente que foram essas condições eco­nômicas, como o desemprêgo, que susci­taram o aparecimento de um certo tipo de hospitalização, a qual permitiu um certo número de observações, que a seu turno provocaram um certo número de hipóteses, e finalmente surgiu a idéia da lesão do tecido, fundamental na história da clínica. Por conseguinte, o vínculo entre as formações econômicas e sociais pré-discursivas e o que aparece no inte­rior das formações discursivas é muito mais complexo que o da expressão pura e simples, em geral o único aceito pela maioria dos historiadores marxistas. Em que, por exemplo, a teoria evolucio- nista exprime êste ou aquêle interêsse da burguesia, ou esta ou aquela esperança da Europa? Mas se o vínculo existen­te entre as formações não-discursivas e o conteúdo das formações discursivas não é do tipo “expressivo”, que vínculo é êsse? O que se passa entre os dois ní­veis — entre aquilo do que se fala, sua base, se quiserem — e êsse estado ter­

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minai que constitui o discurso científico? Pareceu-me que êsse vínculo deveria ser procurado ao nível da constituição, para uma ciência que nasce, os seus objetos possíveis. O que torna possível uma ci­ência, nas formações pré-discursivas, é a emergência de um certo número de ob­jetos que poderão tomar-se objetos de ciência; é a maneira pela qual o sujeito do discurso científico se situa; é a mo­dalidade de formação dos conceitos. Em suma, são tôdas essas regras, definindo os objetos possíveis, as posições do su­jeito em relação aos objetos, e a manei­ra de formar os conceitos, que nascem das formações pré-discursivas e são de­terminadas por elas. Ê somente a partir dessas regras que se poderá chegar ao estado terminal do discurso, que não exprime, portanto, essas condições, ainda que estas o determinem. Em Les Mots et les■ Choses tentei olhar de mais perto êsses dois problemas. Em primeiro lu­gar, o das simultaneidades epistemológi­cas. Tomei três domínios, muito diferen­tes, e entre os quais não houve nunca uma comunicação direta: a gramática, a história natural e a economia políti­ca. E tive a impressão de que êsses três domínios tinham sofrido em dois mo­mentos precisos -— no meio do século X VII e no meio do século X V III — um conjunto de transformações semelhantes. Tentei identificar essas transformações. Ainda não resolvi o problema de locali­zar exatamente a raiz dessas transfor­mações. Mas estou certo de uma coisa: essas transformações existem, e a tenta­tiva de descobrir sua origem não é qui- mérica. Citei há pouco o livro de Fran- çois Jacob, que é o livro de um biólogo, interessado apenas na história da pró­pria biologia. Ora, tudo o que êle diz sô­bre a história da biologia nos séculosXVII, X V III e XIX, coincide exatamen­

te, quanto às datas e os princípios ge­rais, com o que eu mesmo disse. E êle não tirava isto do meu livro, pois o dêle foi escrito antes de ter oportunidade de ler o meu. Achei interessante que essa análise comparativa das transformações, que poderia passar por delirante, na me­dida em que procurava relacionar disci­plinas tão estranhas uma à outra, tenha sido confirmada pela análise interna de uma história precisa, a da biologia. Eis o primeiro problema. Quanto ao segun­do, tentei apreender as transformações da gramática, da história natural e da economia política não ao nível das teo­rias e teses sustentadas, mas ao nível da maneira pela qual essas ciências consti­tuíram os seus objetos, da maneira pela qual se formaram os seus conceitos, da maneira pela qual o sujeito cognoscente se situava em relação a êsse domínio de objetos. É isto que chamo o nível ar­queológico da ciência, em oposição ao nível epistemológico. Neste último, tra- ta-se de descobrir a coerência teórica de um sistema científico num momento da­do. A análise arqueológica é a análise da maneira — antes mesmo da aparição das estruturas epistemológicas, e por baixo dessas estruturas — pela qual os objetos são constituídos, os sujeitos se colocam, e os objetos se formam. Les Mots et les Choses é um livro em sus­penso: em suspenso na medida em que não faço aparecerem as próprias práti­cas pré-discursivas. É no interior das práticas científicas que eu me coloco, para tentar descrever as regras para a constituição dos objetos, a formação dos conceitos, e as posições do sujeito. Por outro lado, a comparação que faço não leva a uma explicação. Mas nada disso me preocupa. Não escrevo um livro para que seja o último; escrevo um livro para

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que outros sejam possíveis — não ne- cessàriamente escritos por mim.

J . G. M. — É sua intenção ir além dessa análise que justamente ficou em suspenso em Les Mots et les Choses, em busca da raiz, ao nível arqueológico_, das transformações que se produziram nas três disciplinas?

FO UC AULT — Nesse ponto o meu embaraço não dimi­nuiu desde que terminei Les Mots et les Choses. Alegro-me de ver que François Jacob encontrou a mesma dificuldade a propósito das relações entre Darwin e Bolzmann, que êle também não consegue explicar. Êle me fêz a pergunta, e só pu­de compartilhar o seu embaraço. Fica­mos os dois surpresos com o fato de que o historiador da ciência não se interessa mais por êsse fenômeno. Quando o en­contram, limitam-se a escamotear à di­ficuldade invocando o espírito da época, que quer que um determinado problema seja abordado num momento preciso, ou então observam, de passagem, que é um fenômeno curioso, mas sem importância. É melhor uma ignorância franca; pre­firo dizer que não compreendo, mas que me esforço por compreender, a dar ex­plicações como as baseadas no espírito da época. Em suma, dêsse ponto de vis­ta meus progressos foram nulos. Em compensação vejo melhor agora, graçns às análises que empreendi em Les Mots et les Choses, como reajustar de forma mais exata a análise das práticas discur­sivas e das práticas extradiscursivas. N a Histoire de la Folie, por exemplo, ainda havia um certo número de temas “expressionistas”. Deixei-me seduzir

pela idéia de que a maneira de conceber a loucura exprimia um pouco uma espé­cie de repulsa social imediata em rela­ção à loucura. Empreguei freqüente­mente a palavra ‘ percepção: percebe-se

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a loucura. Essa percepção era para mim o vínculo entre uma prática real, que era essa reação social, e a maneira pela qual era elaborada a teoria média e científica. Hoje em dia, não creio mais nesse tipo de continuidade. É pre­ciso re-examinar as coisas com maior ri­gor. Vou tentar fazer isto num domínio de teor científico muito fraco: a crimi- nologia. Vou tentar ver, a partir da de­finição jurídica do crime, e da maneira pela qual o crime foi isolado e sanciona­do, as práticas penais reais. Vou exami­nar, igualmente, como se formaram cer­tos conceitos, uns claramente morais, e outros com pretensões científicas, como a noção de degenerescência, e como êsses conceitos funcionaram e continuam a funcionar em certos aspectos de nossa prática penal.

J .G.M. — Essa volta a um domínio em que o saber é pouco sistematizado ou tem um grau muito fraco de coerência epistemológica certamente se beneficiará de uma visão mais sistemática das relações entre o ní­vel discursivo e o extradiscursivo.

I«'0UCAULT — Sem dúvida.

S . P . R . — Acredita o Sr. que com sua obra, e a de outros filósofos que se situam na mesma corrente de idéias, a filosofia tenha, por assim dizer, mudado de discurso, substi­tuindo aos temas tradicionais da metafí­sica e da epistemologia temas relacio­nados com as práticas científicas, prin­cipalmente no domínio das ciências hu­manas?

FOUCAULT — Não creio que os que se interessam, como eu, pelos problemas da ciência — na França e em outros países — tenham realmente ampliado o tema da reflexão filosófica. Acredito mesmo o contrário:

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nós restringimos êsse campo. Creio que é a Hegel que devemos a maior expan­são do campo dos objetos filosóficos. Hegel falou de estátuas góticas, de tem­plos gregos, de velhas bandeiras. . . De tudo, em suma.

J . G . M . — Se o Sr. me permite um parênteses, não estamos dizendo que a filosofia atual te­nha ampliado o domínio da reflexão filo­sófica; tem-se a impressão} pelo contrá­rio, de uma orientação mais sóbria, mais modesta, por parte da filosofia.

FO UC A ULT — Certo. De Hegel a Sartre, o campo dos objetos filosóficos foi proliferante. He­gel, Schopenhauer e Sartre falaram, por exemplo, da sexualidade. Agora se ve­rifica um estreitamento do campo filo­sófico. Uma espécie de deslocamento. O que havia de comum entre a filosofia de Hegel e de Sartre, e entre tôdas as ten­tativas de pensar a totalidade do con­creto, é que todo êsse pensamento se articulava em tôrno do problema: “Co­mo é possível que tudo isso aconteça a uma consciência, a um ego, a uma liber­dade, a uma existência?” Ou, inversa­mente: “Como é possível que o ego, a consciência, o sujeito ou a liberdade te­nham emergido no mundo da história, da biologia, da sexualidade, do desejo?”

J .G.M. — Em todo caso, os dois caminhos do idea­lismo.

FO UC AULT — Não diria o idealismo. Diria os dois ca­minhos da problemática do sujeito. A filosofia era a maneira de pensar as re­lações entre o mundo, a história, a biolo­gia, por um lado, e os sujeitos, a exis­tência, a liberdade, por outro lado. Hus- serl, que também falava sôbre tudo, e principalmente sôbre o problema da ciên­cia, tentava igualmente responder a essa

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problemática do sujeito. O problema, para êle, era saber como é possível en­raizar efetivamente, ao nível da evidên­cia, da intuição pura e apodítica de um sujeito, uma ciência que se desenvolve segundo um certo número de princípios formais e até certo ponto vazios. Como a geometria, por exemplo, pôde prosse­guir durante séculos essa corrida da fo r­malização pura, e ser, ao mesmo tempo, uma ciência pensável em cada um de seus pontos por um indivíduo susceptível de ter dessa ciência uma intuição apo­dítica? Como é possível que alguém, no grande elenco das proposições geométri­cas, possa isolar uma dessas proposições, percebê-la como verdadeira, e construir sôbre ela uma demonstração apodítica? Sôbre que intuição repousa êsse proces­so? É possível haver uma intuição pura­mente local e regional no interior de uma geometria propriamente formal, ou é preciso uma espécie de intuição que re- -efetua em sua totalidade o projeto da geometria, para que a certeza de uma verdade geométrica possa surgir em um ponto preciso do corpo das proposições e do tempo histórico dos geômetras que se sucedem uns aos outros? Era êsse o problema de Husserl: sempre, por con­seguinte, o problema do sujeito e de suas conexões. Parece-me que o que caracte­riza agora, mais que os chamados filó­sofos, um certo número de romancistas, pensadores, etc., é o fato de que para êles o problema do sujeito não se coloca mais, ou somente se coloca de uma for­ma extremamente derivada. A interro­gação do filósofo não é mais saber como tudo isto é pensável, nem como o mun­do pode ser vivido, experimentado, atra­vessado pelo sujeito. O problema é ago­ra saber quais as condições impostas a um sujeito qualquer para que êle possa se introduzir, funcionar, servir de nó na

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rede sistemática do que nos rodeia. À partir daí, a descrição e a análise não mais terão como objeto o sujeito e suas relações com a humanidade e a forma, mas o modo de existência de certos ob­jetos, como a ciência, que funcionam, se desenvolvem, se transformam, sem qual­quer referência a algo como o funda­mento intuitivo num sujeito. Os sujei­tos sucessivos se limitam a entrar, por portas por assim dizer laterais, no inte­rior de um sistema, que não somente se conserva desde um certo tempo, com sua sistematicidade própria e num certo sen­tido independente da consciência dos ho­mens, mas tem uma existência igualmen­te própria, e independente da existência dêsse ou daquele sujeito. Desde o fira do século XIX, já se sabe que a matemá­tica tem em si própria uma estrutura que não é simplesmente a reprodução ou sedimentação dos processos psicológicos reais: dir-se-ia, no tempo de Husserl, que se trata de uma transcendência da idealidade matemática em relação ao vi­vido da consciência. Mas a existência mesma da matemática — ou, de forma mais geral, a existência mesma das ciên­cias — é a existência da linguagem, do discurso. Essa existência — hoje já se começa a perceber isto — não necessita de uma série de fundadores, que teriam produzido um certo número de transfor­mações em virtude de suas descobertas, de seu gênio, de sua maneira de conce­ber as coisas. Ocorrem, simplesmente, transformações, que se passam aqui e ali, simultaneamente ou sucessivamente, transformações enigmaticamente homó­logas e das quais ninguém é de fato o titular. É preciso portanto desapropriar a consciência humana não somente das formas de objetividade que garantem a verdade, mas das formas de historici­dade nas quais o nosso devenir está apri-

sionado. Eis a pequena defasagem que nos separa da filosofia tradicional. Eu lhes dizia há pouco que essa maneira de ver não era exclusiva dos filósofos da ciência ou dos filósofos em geral. To­mem o exemplo de Blanchot, cuja obra consistiu em meditar sôbre a existência da literatura, da linguagem literária, do discurso literário, independentemente dos sujeitos nos quais êsse discurso se acha investido. Tôda a crítica de Blan­chot consiste no fundo em mostrar como cada autor se coloca no interior de sua própria obra, e isto de uma forma tão radical que a obra tem que destruí-lo. É nela que o autor tem seu refúgio e seu lugar; é nela que êle habita; é ela que constitui sua pátria, e sem ela não teria, literalmente, existência. Mas essa existência que o artista tem em sua obra é tal que ela o leva, fatalmente, a pere­cer.

J . G . M . — O direito à morte. . .

FOUCAULT — Sim. É tôda essa rêde de pensamento que se pode encontrar em Bataille, em Blanchot, em obras propriamente literá­rias, na arte. Tudo isto anuncia atual­mente uma espécie de pensamento em que o grande primado do sujeito, afir­mado pela cultura Ocidental desde a Re­nascença, se vê contestado.

S . P . R . — Gostaria de fazer uma pergunta de outra ordem. Sabe-se que a teoria política tra­dicional sempre estêve centralizado no homem e na consciência. Com o desapa­recimento da problemática do sujeito, estaria o pensamento político condenado a tornar-se uma reflexão acadêmica, e a prática política a converter-se numa empiria destituída de fundamentos teó­ricos? Se, por outra parte, o Sr. admite que a ação política é necessária, sôbre

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que deve fundar-se o engajamento polí­tico, se abandonarmos a concepção mi- lenarista — escatológica, se quiserem — do marxismo, tal como o descreve Les Mots et les Choses? Deveríamos renun­ciar a enraizar a política numa ciência? Enfim, na Archéologie, o Sr. diz que a algumas dessas perguntas “não há outra resposta que uma resposta política. Tal­vez seja preciso retomá-las, e de outro modo.” Isto significa que êsses proble­mas são insolúveis no contexto de uma reflexão puramente teórica? Ou uma teoria política “pós-arqueológica” é pos­sível?

FO UC AULT — É uma pergunta difícil. Tenho a impres­são, aliás, que são várias perguntas que se cruzam. Minhas formulações sôbre Marx suscitaram, com efeito, um certo número de reações, e não hesito em pre­cisar o meu pensamento sôbre êsse te­ma. Talvez eu tenha querido dizer coisas demais nas poucas frases em que falei do marxismo. Em todo caso, há certas coisas que eu deveria ter dito mais cla­ramente. Em minha opinião, Marx pro­cedeu como muitos fundadores de ciên­cias ou tipos de discurso: utilizou um conceito existente no interior de um dis­curso já constituído. A partir dêsse con­ceito, formou regras para êsse discurso já constituído, e o deslocou, transforman­do-o no fundamento de uma análise e de um tipo de discurso totalmente ou­tro. Extraiu a noção de mais-valia di­retamente das análises de Ricardo, onde ela era quase uma filigrana — nesse sen­tido Marx é um ricardiano — e baseou nesse conceito uma análise social e his­tórica que lhe permitiu definir os funda­mentos, ou em todo caso as formas mais gerais da história da sociedade Ociden­tal e das sociedades industriais do sé­culo XIX. E que lhe permitiu, também, fundar um movimento revolucionário

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que continua vivo. Não creio que sacra- lizar a formação do marxismo ao ponto de querer salvar tudo da economia ricar- diana, a pretexto de que Marx dela se serviu para formular a noção de mais- -valia, seja uma boa maneira de home­nagear Marx. Creio que a economia ri- cardiana pode ser criticada a partir do próprio Marx, em todo caso ao nível da economia política tal como ela funcio­nou desde o início do século X IX : a êsse nível, as análises de Ricardo podem ser retomadas e revistas, e a noção de mais- -valia não é necessàriamente um dos conceitos mais intocáveis. Se nos colo­camos exclusivamente ao nível da eco­nomia política e de suas transformações, essa revisão não é um delito muito gra­ve. Darwin, por exemplo, tirou certos conceitos — chave da teoria evolucionis- ta, que em suas principais articulações foi inteiramente confirmada pela genéti­ca, de domínios científicos hoje critica­dos ou abandonados. E não há nisso na­da de grave. Era isso o que eu queria dizer quando afirmei que Marx se acha­va no século X IX como um peixe na água. Não vejo porque sacralizar Marx numa espécie de intemporalidade que lhe permitisse descolar-se de sua época e fundar uma ciência da história ela pró­pria meta-histórica. Se é preciso falar do gênio de Marx — e acho que essa palavra não deve ser empregada na his­tória da ciência — êsse gênio consistiu precisamente em comportar-se como um peixe na água no interior do século X IX : manipulando a economia política tal como havia sido efetivamente fundada, e tal como existia a partir de vários anos, Marx chegou a propor uma análi­se histórica das sociedades capitalistas que pode ainda ter sua validade, e a fun­dar um movimento revolucionário que é ainda o mais vivo hoje em dia.

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J . G . M . — Quanto às 'possibilidades de fundar uma ação política segura, na base de uma concepção teórica que explique cientifi­camente a realidade, é preciso, sem dú­vida, levar Marx em consideração, mas também as análises ulteriores que ultra­passaram, de certa forma, a análise mar­xista do conhecimento.

FO UC A ULT — Certamente. Isto me parece evidente. E agora vou parecer muito reacionário: para que chamar de científica a prática marxista? Existem hoje na França al­gumas pessoas que consideram como in­contestáveis duas proposições, ligadas entre si por um nexo um pouco obscuro: (1 ) o marxismo é uma ciência, e (2 ) a psicanálise é uma ciência. Essas duas proposições me deixam pensativo. Prin­cipalmente porque não consigo ter da ciência uma idéia tão elevada assim. Acho — e muitos cientistas concorda­riam comigo — que não se deve fazer da ciência uma idéia tão elevada a pon­to de rotular como ciência algo de tão importante como o marxismo, ou tão in­teressante como a pisicanálise. No fun­do, não existe uma ciência em si. Não existe uma idéia geral ou uma ordem ge­ral que se possa intitular ciência, e que possa autenticar qualquer forma de dis­curso, desde que aceda à norma assim definida. A ciência não é um ideal que atravesse tôda a história, e que seria incamado sucessivamente, primeiro pela matemática, depois pela biologia, depois pelo marxismo e pela psicanálise. Pre­cisamos livrar-nos de tôdas essas noções. A ciência não tem normatividade nem funciona efetivamente como ciência nu­ma época dada, segundo um certo núme­ro de esquemas, modelos, valorizações e códigos, é um conjunto de discursos e práticas discursivas muito modestas, perfeitamente enfadonhas e cotidianas,

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que se repetem incessantemente. Existe um código dêsses discursos, existem nor­mas para essas práticas, aos quais de­vem obedecer êsses discursos e práticas. Não há razão para se orgulhar disso; e os cientistas — eu lhes asseguro — não têm nenhum orgulho particular em saber que o que fazem é ciência. Êles o sa­bem, é tudo; e isto por uma espécie de comum acôrdo, que é a comunidade do código, e a partir do qual podem dizer: “Isso está provado, e aquilo não está.” E existem, lado a lado, outros tipos de discursos e práticas, cuja importância para nossa sociedade e para nossa his­tória independe do estatuto de ciência que possam vir a receber.

J .G.M. — Mas em Les Mots et les Choses, o Sr.atribui, de qualquer forma, a algumas dessas práticas não-científicas um esta­tuto particular: o de contra-ciências.

KOUCAULT — Sim, contra-ciências humanas.

J .G.M. — Poderíamos atribuir ao marxismo essa mesma função?

KOUCAULT — Sim, não estou longe de concordar com isso. Acho que o marxismo, à psicaná­lise e a etnologia têm uma função críti­ca em relação ao que se convencionou chamar de ciências humanas, e nesse sen­tido são contra-ciências. Mas repito: são contra-ciências humanas. Não há nada no marxismo ou na psicanálise que nos autorize a chamá-los contra-ciências, se entendemos por ciências a matemática ou a física. Não, não vejo porque deva­mos chamar de ciências o marxismo e a psicanálise. Isto significaria impor a essas disciplinas condições tão duras e e tão exigentes que para u seu pró­prio bem seria preferível não chamá-las de ciências. E eis o paradoxo: os que

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reclamam o estatuto de ciências para a psicanálise e o marxismo manifestam ruidosamente o seu desprêzo pelas ciên­cias positivas, como a química, a anato­mia patológica ou a física teórica. Só escondem um pouco o seu desprezo em relação à matemática. Ora, de fato a sua atitude mostra que têm pela ciência um respeito e uma reverência de gina- sianos. Têm a impressão que se o mar­xismo fôsse uma ciência — e aqui êles pensam em algo tangível, como uma de­monstração matemática — poderiam ter certeza de sua validade. Eu acuso essa gente de ter da ciência uma idéia mais alta do que ela merece, e de ter um secreto desprêzo pela psicanálise e pelo marxismo. Eu os acuso de insegurança. Ê por isso que reivindicam um estatuto que não é tão importante assim para aquelas disciplinas.

S . P . R . — Sempre em relação ao marxismo, gosta­ria de fazer outra pergunta. Quando o Sr. fala, em Les Mots et les Choses, no “binômio empírico-transccndental”, afir­ma que a fenomenologia e o marxismo são meras variantes dêsse movimento de pêndulo que leva necessariamente, seja ao positivismo, seja à escatologia. Por outra parte, o pensamento de Althusser é geralmente incluído entre os estrutur ralismos, muitas vêzes ao lado de sua própria obra. Considera o Sr. o marxis­mo althusseriano como uma superação da configuração cujos limites são o po­sitivismo e a escatologia, ou acredita que êsse pensamento se situa no interior da­quela configuração?

FO UC AULT — Inclino-me pelo primeiro têrmo da alter­nativa. A êsse respeito, devo fazer uma autocrítica. Quando falei do marxismo em Les Mots et les Choses, não precisei suficientemente o que queria dizer. Nes­se livro, julguei ter deixado claro que

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estava fazendo uma análise histórica de um certo período, cujos limites eram aproximadamente 1650 e 1850, com pe­quenos prolongamentos que não iam além do fim do século XIX, e no domí­nio igualmente preciso constituído pelas ciências da linguagem, da vida e do tra­balho. Quando falei do marxismo nesse livro, deveria ter dito, sabendo como êsse tema é super-valorizado, que se tratava do marxismo tal como funcionou na Eu­ropa até, no máximo, o início do século XX. Deveria também ter precisado — e reconheço que falhei nesse ponto — que se tratava da espécie de marxismo que se encontra num certo número de comentadores de Marx, como Engels. E que aliás também não está ausente em Marx. Quero referir-me a uma espécie de filosofia marxista que é, a meu ver, um acompanhamento ideológico das aná­lises históricas e sociais de Marx, assim como de sua prática revolucionária, e que não constitui o cerne do marxismo, entendido como a análise da sociedade capitalista e o esquema de uma ação re­volucionária nessa sociedade, Se é êste o núcleo do marxismo, então não foi do marxismo que falei, mas de uma espécie de humanismo marxista — um acompa­nhamento ideológico, uma música-de- -fundo filosófica.

J.G.M. — Empregando a expressão “Humanismo marxista”, sua crítica se inscreve auto­maticamente num domínio teórico que exclui Althusser.

FO UCAULT — Sim. Suponho que essa crítica pode va­ler ainda para autores como Garaudy, mas que não se aplica a intelectuais como Althusser.

J . G. M. — Queria agora fazer uma pergunta acer­ca da literatura, isto é, do estatuto da literatura cm Les Mots et les Choses.

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Seja a propósito de Cervantesf seja a propósito de Holderlin ou Mallarmé, o Sr. dá a entender que a literatura desem­penha muitas vêzes um papel pioneiro na emergência das epistemes. E seu belo texto sôbre Blanchot desenvolve essa mesma idéia■ Está de acôrdo com essa interpretação?

FO UCAULT — No tocante a literatura, creio que em Les Mots et les Choses não é da mesma for­ma e no mesmo nível que falei de Mal­larmé, por exemplo, e de D. Quixote. Quando falei de Mallarmé, quis assina­lar êsse fenômeno de coincidência que já me interessara a propósito do século X VII e XVIII, e segundo o qual, na mes­ma época, domínios perfeitamente inde­pendentes e sem comunicação direta se transformam, e se transformam da mes­ma maneira. Mallarmé é contemporâneo de Saussure; fiquei impressionado pelo fato de que a problemática da linguagem, independentemente de seus significados, e considerada do ponto de vista exclu­sivo de suas estruturas internas, tenha aparecido em Saussure no fim do século XIX, mais ou menos no mesmo momen­to em que Mallarmé fundava uma lite­ratura da pura linguagem, que domina ainda a nossa época. Quanto ao Quixo­te, é um pouco diferente. Devo confes­sar, de uma forma um pouco covarde, que não conheço muito bem o D. Qui­xote, ou pelo menos não conheço o pa- no-de-fundo da civilização hispânica sô­bre o qual se funda o Quixote. N o fun­do, meus comentários sôbre D. Quixote são uma espécie de pequeno teatro em que eu queria encenar primeiro o que narraria depois: um pouco como nessas representações teatrais em que se apre­senta, antes da peça principal, uma pe­quena peça que guarda, com a peça prin­cipal, uma relação um pouco enigmática e um pouco lúdica de analogia, de repe-

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tição, de sarcasmo ou de contestação. Quis divertir-me em mostrar no Quixo- te essa espécie de decomposição do sis­tema de signos que se verifica na ciên­cia em tôrno dos anos 1620 a 1650. Não tenho nenhuma convicção de que isto re­presente o fundo e a verdade do Qui- xote. Mas achei que se deixasse o per­sonagem e o próprio texto falarem por si mesmos, poderia representar num cer­to sentido a pequena comédia dos signos e das coisas, que eu queria narrar, e que se desenrolou nos séculos X V II eXVIII. Por conseqüência, concedo sem dificuldade que haja erros em minha in­terpretação do Quixote. Ou antes, não concedo coisa alguma, porque não se trata de uma interpretação: é uni tea­tro lúdico, é o próprio D. Quixote que conta, no palco, a história que eu mes­mo contarei depois. A única coisa que me justificaria é que o tema do livro me parece importante em D. Quixote. Ora, o tema do livro é o tema de Les Mots et les Choses■ O próprio título é a tradu­ção de Words and Things, que foi o grande slogan moral, político, científico, e até religioso, da Inglaterra no início do século XVII. Foi também o grande slogan, não religioso, mas em todo caso científico, na França, Alemanha, Itália, na mesma época. Acredito que Words and Things é um dos grandes proble­mas do Quixote. É por isso que fiz D. Quixote representar, em Les Mots et les Choses, a sua pequena comédia.

J .G .M. — Podemos dizer, de qualquer maneira, que sua leitura do Quixote, haja ou não in­terpretação, está de acôrdo com certas pesquisas da estilística contemporânea, sobretudo no que se refere ao papel do cômico e à presença do livro no interior da obra. Mas vou agora fazer uma per­gunta que nada tem a ver com a estética, e que se refere aos contextos institucio-

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nais de que se falou há pouco, isto é, êsse conjunto de práticas tanto mais im­portantes quanto os saberes a elas liga­dos eram mais fracamente articulados do ponto de vista de sua sistematicidade científica. Quero perguntar-lhe se pre­tende ocupar-se ainda de certos fenôme­nos mentais que não são habitualmente considerados como saberes, na perspec­tiva, por exemplo, de suas pesquisas sô­bre a loucura. Mais precisamente: pensa o sr. estudar, sempre em relação às epis­temes, que permanecem a sua preocupa­ção principal, o domínio da experiência religiosa? Quero dizer com isso não a ideologia religiosa no sentido estrito, mas as experiências religiosas no senti­do amplo. Estou pensando, por exemplo, no gênero de análises, muito empíricas mas muito interessantes, de um autor como Bakhtine, em sua obra como R&- belais ou Dostoievski, quando diz que 0 carnaval era uma forma de experiência religiosa, uma festa religiosa que foi vi­sivelmente reduzida e “ domesticada" na época do nascimento da episteme clássi­ca, isto é, na época dominada pela re­presentação.

FO UC AULT — No fundo, sempre me interessei muito por êsse domínio que não pertence bem ao que se chama habitualmente de ciên­cia, e se emprego o conceito de saber é para apreender êsses fenômenos que se articulam entre o que os historiadores chamam a mentalidade de uma época e a ciência propriamente dita. Há um fenô­meno dêsse gênero pelo qual me interes­sei, e ao qual pretendo voltar um dia: a feitiçaria. Trata-se, em suma, de enten­der a maneira pela qual a feitiçaria — que afinal era um saber, com suas re­ceitas, suas técnicas, sua forma de en­sino e de transmissão — foi incorpora­da ao saber médico. E isto não como se diz em geral, qiíando se afirma que os

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médicos, por sua racionalidade e seu li­beralismo, arrancaram os feiticeiros às garras dos inquisidores. A s coisas são muito mais complexas. Foi num certo sentido em conseqüência de uma neces­sidade, de uma certa cumplicidade, que a Igreja, o poder real, a magistratura, os próprios médicos, fizeram emergir a feitiçaria como domínio possível da ci­ência, isto é, fizeram do feiticeiro um doente mental. Não era uma libertação; era outra forma de captura. Onde antes havia simplesmente exclusão, processo, etc., o fenômeno foi inscrito no interior da episteme e tornou-se um campo de objetos possíveis. Há pouco nos pergun­távamos como alguma coisa pode se tor­nar um objeto possível para a ciência. Eis um belo exemplo. A idéia de uma ciên­cia da feitiçaria, de um conhecimento racional, positivo, da feitiçaria, era algo de rigorosamente impossível na Idade Média. E isto não porque se desprezas­se a feitiçaria, ou em conseqüência do preconceito religioso. Era todo o siste­ma cultural do saber que excluía que a feitiçaria se tornasse um objeto para o saber. E eis que a partir dos séculos X V I e XVII, com a anuência da Igreja e mesmo a seu pedido, o feiticeiro se torna um objeto de conhecimento pos­sível entre os médicos: pergunta-se ao médico se o feiticeiro é ou não doente. Tudo isso é muito interessante, e no qua­dro do que me proponho fazer.

J .G .M. — Para terminar: qual será o assunto principal de sua aula inaugural no Col- lège de France?

FOUCAULT — Essa pergunta me embaraça um pouco.Digamos que o ensino que pretendo dar êste ano é a elaboração teórica das no­ções que lancei na Archéologie du Savoir. Eu lhes dizia há pouco que tinha tenta­do determinar um nível de análises, um

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campo de objetos possíveis, mas que ain­da não pude elaborar a teoria dessas análises. Ê justamente essa teoria que pretendo iniciar agora. Quanto à aula de abertura, repito que me sinto muito embaraçado, talvez por ser infenso a qualquer instituição. Não encontrei ain­da, como objeto de meu discurso, senão o paradoxo de uma aula inaugural. A expressão é com efeito surpreendente. Pede-se a alguém que comece. Começar absolutamente, é algo que podemos fa ­zer se nos colocamos, pelo menos miti­camente, na posição do aluno. Mas a inauguração, no estrito sentido do têr­mo, só ocorre sôbre um fundo de igno­rância, de inocência, de ingenuidade ab­solutamente primeira: podemos falar de inauguração se estamos diante de al­guém que ainda não sabe nada, ou que não começou ainda nem a falar, nem a pensar, nem a saber. E no entanto, essa inauguração é uma aula. Ora, uma aula implica que se tenha atrás de si todo um conjunto de saberes, de discursos já constituídos. Creio que falarei sôbre êsse paradoxo.

(1) O texto definitivo da aula inaugurai, profe­rida semanas depois, se afasta bastante dêsse esquema. Já apareceu em livro, sob o título 'L’Ordre du Discours" (Paris — Gallimard,

1971).

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A Arqueologia e o SaberPor Dom inique Lecourt

Muito se tem escrito sôbre Les Mots et les Choses; o último livro de Foucault, UArchéologie du Savoirf não suscitou, porém, o mesmo zêlo entre os críticos.

Essa discreção deve sem dúvida ser atribuída à es­tranheza de uma obra que tem tudo para dar ao leitor uma impressão de mal-estar. Alguns chegarão frustrados à última página, com a sensação íntima de terem sido ví­timas de um lôgro. “Sempre a mesma coisa, apesar das inovações verbais”, diriam êsses leitores; “não valia a pe­na, para uma simples mudança de vocabulário, escrever todo um volume.” Reação legítima, numa primeira leitu­ra, porque depois da perplexidade provocada pela prolife­ração de novas palavras, o leitor se reencontra, graças aos infatigáveis ataques, cem vêzes repetidos, contra o “sujeito” e seus equivalentes, em terreno familiar: o uni­verso de Foucault. Outros, terminada a leitura, suspen­derão o julgamento e aguardarão o re3to: “Tudo é nôvo— não reconhecemos mais nada; mas nada ainda foi fei­to; vejamos como vai funcionar essa bateria de conceitos novos, e então nos pronunciaremos.” Êsse segundo grupo de leitores terá igualmente razão, pois o autor nos adverte várias vêzes de que a elaboração de novas categorias põe em risco o antigo edifício, e que retificações profundas devem ser feitas: a categoria de “ experiência”, utilizada na Histoire de la Folie, é posta em xeque, por implicar na restauração sub-reptícia de um “sujeito anônimo e geral da História” (pp. 27, 74) ; a noção decisiva de “olhar mé­dico”, em tôrno da qual se articulava La Naissance de to Clinique, é repudiada. Se nos limitamos portanto ao mais óbvio, e mesmo ao explícito, não podemos deixar de pres­sentir uma real novidade dos conceitos através da luxu-

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riância do estilo, não obstante a dificuldade de confirmar êsse pressentimento, pois as novas análises ainda não apa­receram e as antigas são evocadas de forma apenas alu­siva.

Como se verifica, essas duas reações contraditórias co­locam a mesma pergunta: “por que êsse livro?” Ê dessa pergunta que precisamos partir. É certo que o próprio Foucault fornece os elementos para uma resposta. O li­vro seria, segundo êle, a reflexão metódica e controlada sôbre o que tinha anteriormente sido feito às cegas. De fato, as referências, como vimos, não saem do círculo das obras precedentes. Além disso, o livro contém uma multiplicidade de normas metodológicas, e capítulos in­teiros se apresentam como uma tentativa de codificar certas regras que, segundo o autor, teriam sido, no pas­sado, tàcitamente aceitas e praticadas de forma caótica.

Mas essa explicação, obstinadamente sugerida pelo autor, nos parece insuficiente: a Archéologie tem outro alcance, e a problemática que suscita é de uma novidade genuina e radical. Como indício dessa novidade, basta lembrar uma ausência importante: a da noção de episte­me, pedra angular do trabalho anterior, e eixo de tôdas as interpretações “estruturalistas” de Foucault. É óbvio que tal ausência não pode ser acidental. Pretendemos, portanto, levar a sério o paradoxo de um livro que se apresenta como uma reflexão metódica sôbre livros an­teriores, ao mesmo tempo que omite a espinha dorsal dêsses livros. Ê nesse paradoxo que reside todo o inte- rêsse do trabalho; dêle derivam duas perguntas: que sig­nifica essa insistência em acentuar uma continuidade que, manifestamente, não é perfeita? e que novidade se in­troduz, que força ao abandono da noção central de epis­teme f

Essas duas perguntas comportam uma resposta úni­ca: é o abandono que explica a insistência. Em outras palavras: Foucault sente a necessidade de abdicar de uma categoria essencial de sua filosofia, mas tal abandono não deve ser interpretado como uma passagem para o campo dos adversários; a categoria de episteme tinha uma grande validade polêmica contra tôdas as teorias “humanistas” e “antropologistas” do conhecimento e da história, e Foucault hesita em abrir mão dessa arma. E no entanto a noção de episteme, que descrevia as “con­figurações do saber” como grandes superfícies obedecen­

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do a leis estruturais específicas, levava, inexoràvelmente, a pensar a história das formações ideológicas como “mu­tações” bruscas, “rupturas” enigmáticas, “fraturas” sú­bitas. Ê com êsse tipo de história — por razões que exa­minaremos mais tarde — que Foucault pretende agora romper. A Archéologie exprime êsse divórcio. Foucault deseja libertar-se dos aspectos “ estruturalistas” da epis­teme, sem por isso aceitar os pressupostos humanistas que sempre combateu. A operação é perigosa, e exigia um livro; sua complexidade explica o mal-estar dos leitores c a discreção dos críticos: não encontram mais, na Ar­chéologie, o seu Foucault, como desbravador bem com­portado de estruturas epistêmicas. Pior ainda: vêem a História renascer; não a sua história, mas uma história insólita, que recusa tanto a continuidade do sujeito quan­to a ãescontinuiãade estrutural das rupturas.

A nosso ver, os críticos têm razão. Seu receio é jus­tificado, pois o conceito de história que funciona na A r­chéologie tem consonâncias comuns com outro conceito de história que têm excelentes motivos para detestar: o con­ceito científico de história, tal como aparece no materia- lismo histórico. O conceito de uma história que também se apresenta como um processo sem sujeito, estruturado por um sistema de leis. Conceito, por isso mesmo, radi­calmente anti-antropologista, anti-humanista e anti-estru- turalista.

A Archéologie du Savoir representaria, portanto, uma reviravolta decisiva na obra de Foucault. Pretendemos mostrar que sua nova posição o conduz a realizar um cer­to número de análises de grande riqueza do ponto de vis­ta do materialismo histórico; que reproduz, transpostos em sua própria linguagem, conceitos que funcionam na ciência marxista da história; e enfim que as dificuldades que encontra, assim como o fracasso relativo a que é levado, somente podem encontrar solução no campo do materialismo histórico.

D A AR Q UEO LO GIA AO SABER

Contra o Sujeito

Podemos dizer que tôda a parte “crítica” da Archéo­logie du Savoir se inscreve na continuidade do trabalho precedente. Se não tem mais os mesmos aliados, Fou­cault tem ainda os mesmos adversários. Mas as polêmi­

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cas se enriquecem, se aprofundam, e fazem brotar solida- riedades conceituais que até êsse momento não se tinham manifestado. Ê assim que seus ataques contra a catego­ria de sujeito estão agora associados a investidas contra o continuismo em história.

Eis sua resposta aos seus críticos humanistas neo- -hegelianos a propósito de Les Mots et les Choses: “O que se deplora tanto, não é o desaparecimento da histó­ria, e sim o desaparecimento dessa forma de história referida secreta mas inequivocamente à atividade sinté­tica do sujeito”. Lugar de eleição, e álibi perfeito do an- tropologismo: não há melhor maneira de combater a his­tória que desfraldar a bandeira da história.

Exemplo: a Archéologie contém uma polêmica im­placável contra uma disciplina atualmente em voga: a “história das idéias”. Foucault mostra que essa disci­plina repousa sôbre um postulado antropolcgista que a obriga a ser ostensiva ou disfarçadamente eontinuista. A “história das idéias”, segundo êle, desempenha dois pa­péis: por uma parte, “ contra a história do marginal e do colateral. Não a história das ciências, mas a dos conhe­cimentos imperfeitos,.mal fundados, que não conseguiram nunca, no curso de uma vida obstinada, atingir a forma da cientificidade.” Seguem-se os exemplos: alquimia, fre- nologia, teorias atomísticas. . . Em suma, é a disciplina das linguagens flutuantes, das obras informes, dos te­mas soltos.” Por outro lado, entretanto, a história das idéias pretende atravessar as disciplinas existentes, pro­cessá-las e reinterpretá-las. Descreve a difusão de um saber científico da ciência para a filosofia, e para a pró­pria literatura. Nesse sentido, seus postulados são: “a gênese, a continuidade, a totalização.” (p. 181). Gênese: tôdas as “regiões” do saber são referidas, como sua ori­gem, à unidade de um sujeito individual ou coletivo. Con­tinuidade: a unidade da origem tem como correlato ne­cessário a homogeneidade do desenvolvimento. Totali­zação: a unidade da origem tem como correlato necessá­rio a homogeneidade das partes. Tudo é coerente, mas não pode, segundo Foucault, produzir uma história ver­dadeira.

Nova frente de ataque: qualquer teoria do reflexo, na medida em que enxerga no “discurso” a superfície de pro­jeção simbólica de acontecimentos ou processos situados no exterior, na medida em que procura “descobrir um

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encadeamento causai descritível ponto por ponto, permi­tindo correlacionar uma descoberta e um acontecimento, ou um conceito e uma estrutura social”, na medida, em suma, em que repousa sôbre um fundamento “ empirista” nu “sensualista”, qualquer teoria do reflexo, assim defi­nida, pressupõe como “ponto fixo” a categoria do sujeito, e é suspeita, desde o início, de antropologismo (p. 215). Mais surpreendente ainda: a categoria de autor, que no entanto parece bastante concreta e evidente, é rejeitada. O autor é simplesmente a qualificação literária, científi­ca ou filosófica de um “sujeito” definido como “criador.” O “ livro” , portanto, é uma unidade construída ingênua c arbitràriamente, que nos é imposta, de forma imediata e irreflexiva, pelas ilusões da geometria, pelas regras da impressão e por uma tradição literária suspeita. O “livro” deve, pois, ser considerado não como a projeção literal e mais ou menos racionalizada de um sujeito portador e instaurador de sentido, mas como um “nó numa rêde” , (p. 34). Sua existência real — não sua aparência imediata —- depende do “sistema de interações” que nêle se cris­talizam. “E êsse jôgo de interações não é homólogo, mas varia conforme se trate de uma obra de matemática, de um comentário de textos, de uma narrativa histórica, ou do episódio de um ciclo romanesco”.

Contra o Objeto

Atenção: aqui aparece, ao sabor de um exemplo, o mais nôvo na Archéologie du Savoir: a poiêmica antiga, voltada contra o sujeito, assume uma nova forma, vol­tando-se contra a categoria correlativa do objeto.

Ê assim que tomam corpo as retificações críticas — várias vêzes retomadas — contra certos temas da epis- temologia de Bachelard. Tudo se concentra em tôrno das noções de “ruptura”, “obstáculo”, “ato epistemoló- gico” . Foucault descobre a solidariedade entre a cate­goria filosófica de “objeto” e o ponto de vista descritivo da "ruptura” em história: é porque se compara uma ideo­logia a uma ciência do ponto de vista de seus objetos que se observa entre elas uma ruptura (ou corte), mas êsse ponto de vista é estreitamente descritivo, e não explica nada. Pior: como era de prever, a categoria de objeto traz consigo o seu correlato: o sujeito. A epistemologia bachelardiana é um bom exemplo dêsse processo: a no­ção de ruptura epistemológica exige que aquilo com o

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qual se rompe seja pensado como um “obstáculo” episte­mológico. Mas de que forma Bachelard propõe pensar os obstáculos? Como a intervenção de imagens na prática científica. Foucault pode portanto afirmar que o par ob- jeto-ruptura não é senão a figura invertida, mas idêntica no fundo, do binômio sujeito-continuidade; a epistemo- logia de Bachelard é, portanto, uma antropologia camu­flada. A “psicanálise do conhecimento objetivo” marca os limites dessa epistemologia, seu ponto de inconsequên- cia; o ponto em que outros princípios são necessários para explicar o que ela descreve: sem dúvida, e nisto re­side o grande mérito de Bachelard, uma ciência só pode se formar em ruptura com “um tecido de erros tenazes” , que a precede e obstaculiza, mas referir-se à “libido” do cientista para explicar a formação dêsse tecido, significa aderir ainda à noção do sujeito, e mesmo, no limite, ad­mitir que a cientificidade pode ser estabelecida por de­cisão voluntária do (ou dos) cientistas. Para Foucault, é preciso partir do que foi descrito por Bachelard, aban­donar o ponto de vista do objeto, e colocar sôbre novas bases o problema da ruptura. Impõe-se, mais exatamen­te, examinar êsse tecido que Bachelard não conseguiu “pensar”, e em particular essas “falsas ciências” que pre­cedem a ciência, essas “positividades” que as ciências, uma vez constituídas, permitem caracterizar como “ideo­lógicas”. Sôbre êsse ponto, como veremos, a contribuição da Archéologie é muito importante.

A IN ST ÂN C IA DO SABER

A Materialidade Institucional

Sabemos agora a que exigências respondem as cate­gorias fundamentais da Archéologie: trata-se de pensar as leis que regem a história diferencial das ciências e das não-ciências sem referência nem a um “sujeito” nem a um “objeto” , ultrapassando a falsa alternativa “conti- nuidade-descontinuidade.”

A primeira noção que corresponde a tais exigências é a de “acontecimento discursivo”. Escreve Foucault: “Uma vez suspensas tôdas as formas imediatas de conti­nuidade, todo um domínio se vê liberado. Um domínio imenso, mas definível: é constituído pelo conjunto de to­dos os enunciados efetivos (falados ou escritos), em sua dispersão de acontecimentos e na instância apropriada a

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cada um dêles. Antes de encontrarmos, com tôda a cer­teza, uma ciência, romances, ou discursos políticos, o material que deve ser tratado, em sua neutralidade pri­mitiva, é uma população de acontecimentos no espaço do discurso em geral.” (p. 38). Aqui as perguntas come­çam a se multiplicar: o que é êsse “espaço do discurso” ? Seria o objeto da lingüística? Não, porque o “campo dos acontecimentos discursivos é o conjunto sempre finito e atualmente limitado unicamente das seqüências lingüísti­cas que foram formuladas.” Seria simplesmente o “pen­samento” que é desigando por essas palavras esotéricas? Não, porque não se trata de referir o que foi dito a uma intenção, a um discurso silencioso que o ordenaria do interior; a pergunta que se coloca é somente essa: “qual é essa existência singular que vem à luz do dia no que se diz e em nada mais?” Continuemos a seguir Foucault a fim de descobrir a especificidade dessa categoria por êle construída, e à qual nos permitiremos mais tarde dar um outro nome. N a realidade, é pelas vantagens que atribui a êsse conceito que Foucault especifica o estatuto do que chama de “ acontecimento discursivo”. Esta noção per­mitirá determinar “as relações dos enunciados entre si — sem qualquer referência à consciência de um ou vários autores; relações entre enunciados ou grupos de enun­ciados, e acontecimentos de outra ordem (técnica, econô­mica, social, política.)”

Como se vê, o essencial aqui é a noção de relação. Foucault entende por relação um conjunto de nexos de “coexistência, sucessão, funcionamento mútuo, determina­ção recíproca, transformação independente ou correlati- va”. (Cf. especialmente a p. 53). Mas Foucault sente que a determinação de tais relações ainda é insuficiente para designar a instância dos “acontecimentos discursi­vos” : se, por uma tal combinatória, é possível, num certo sentido, explicar o “discursivo”, ficamos sem compreen­der o acontecimento discursivo: permanecemos no nível da episteme. Numa palavra: tal análise não pode expli­car a existência “material” e “histórica” do acontecimen­to discursivo. Uma questão decisiva está implícita em tôdas essas páginas, que poderiam parecer longas e re­dundantes: a necessidade, reconhecida por Foucault, de definir o “regime de materialidade” do que denomina 0 discurso, a necessidade correlativa de elaborar uma nova categoria — materialista — de “discurso”, e enfim de pensar a história dêsse “discurso” em sua materialidade.

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E essa a tríplice tarefa que se propõe a Archéologie; e é nessa tentativa que reside, como veremos, o seu insuces­so relativo.

A prova: referindo-se aos “objetos” da psicopatolo­gia, Foucault coloca perguntas do tipo: “Podemos saber segundo que sistema não-dedutivo aqueles objetos logra­ram justapor-se e suceder-se para formar o campo — la- cunar ou pletório conforme o caso — da psicopatologia? Qual foi seu regime de existência enquanto objetos do discurso?” (p. 56). Ou ainda, com maior nitidez: a ten­tativa de caracterizar a unidade elementar do aconteci­mento discursivo — o acontecimento-unidade, por assim dizer — leva Foucault a propor a noção de “enunciado”. Ora, qual a condição do enunciado? “Para que uma se­qüência de elementos lingüísticos possa ser considerada e analisada como um enunciado, deve ser dotada de uma existência material”, (p. 131). A materialidade não é apenas uma condição entre outras, mas é constitutiva: “não é simplesmente princípio de variação, modificação dos critérios de reconhecimento, ou determinação de sub- -conjuntos lingüísticos. Ê constitutiva do próprio enun­ciado: é preciso que o enunciado tenha uma substância, um suporte, um lugar e uma data.” (p. 133). Sem ante­cipar demais, podemos dizer que a procura do “regime de materialidade” do enunciado se orientará mais para a substância e o suporte que para o lugar e a data: “ o re ­gime de materialidade ao qual obedecem necessária mente os enunciados é da ordem da instituição mais que da lo­calização espaço-temporal.” (p. 136) O que Foucault des­cobre é que a localização espaço-temporal pode ser deduzida das “relações”, ou “nexos” , entre enunciados ou grupos de enunciados, depois que se reconhecer a êsses nexos uma existência material, e quando se compreender que tais nexos não existem fora de certos suportes ma­teriais em que se incarnam, se produzem e se reprodu­zem. Podemos, a esta altura, resumir a situação: torna- -se necessário pensar a história dos acontecimentos dis­cursivos como estruturada por relações materiais que se incarnam em instituições.

0 Discurso como Prática

Compreendemos agora porque Foucault é levado a definir o “discurso” de uma forma tão singular: “o dis­curso é outra coisa que o lugar em que vêm se depor e

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superpor, como numa simples superfície de inscrição, ob­jetos instaurados de antemão.” (p. 58). Com efeito, se o que foi dito do “regime material do enunciado” é exato, o discurso não é definível independentemente das relações que o constiuem; é assim que se falará de “relações dis­cursivas” , ou “regularidades discursivas”, de preferência a “discurso”. É que o discurso, em última análise, é uma prática. A categoria de “prática discursiva”, proposta por Foucault, é o indício dessa inovação teórica, no fundo ma­terialista, que consiste em não aceitar nenhum “discurso” fora do sistema de relações materiais que o estruturam e constituem. Essa nova categoria estabelece uma linha divisória entre a Archéologie du Savoir e Les Mots et les Choses. Mas é preciso evitar mal-entendidos: por “prá­tica” não se entende a atividade de um sujeito, e sim a existência objetiva e material de certas regras às quais o sujeito tem que obedecer quando participa do “discur­so”. Os efeitos dessa disciplina do sujeito são analisados no exame das “posições do sujeito” : voltaremos ao as­sunto. No momento, é a seguinte a definição positiva do discurso segundo a Archéologie-. as relações discursivas não são internas ao discurso, não são os nexos que exis­tem entre conceitos ou palavras, frases ou proposições; mas não são externas tampouco, não são “circunstâncias” exteriores susceptíveis de coagir o discurso; ao contrário, ‘tais relações “determinam o feixe de relações que o dis­curso deve manter para ter condições de tratar de tais ou lais objetos, e processá-los, nomeá-los, analisá-los, classi­ficá-los, explicá-los, etc. E Foucault conclui: “essas re­lações caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias nas quais êle ocorre, mas o próprio discurso enquanto prática.” (p. 63). Daí a noção de re­gra ou regularidade discursiva para designar as normas dessa prática. Daí a definição, já mencionada, dos “ob­jetos” dessa prática como “efeitos” das regras, ou “feixe de relações” : é preciso, com efeito, definir os objetos sem referência ao fundo das coisas, e referi-los ao conjunto das regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem as suas condições de apareci­mento histórico”, (p. 65).

A Instância do Saber

Foi assim que se construiu a noção de “saber”, ob­jeto próprio da arqueologia. O que é saber? É precisa­mente “aquilo de que se pode falar numa prática discur­

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siva, que se vê assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que adquirirão ou não estatuto científico.” (p. 238). “Um saber é também o campo de coordenação e subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transfor­mam.” (ibid.) Eis como, ao contrário da epistemologia, a arqueologia percorre “ o eixo prática discursiva-saber- -ciência”. (p. 239). A noção de ruptura epistemológica é assim revista em seu estatuto. O próprio da epistemo­logia, segundo Foucault, é ignorar a instância do “saber” , a instância dessas relações ordenadas, cuja existência ma­terial constitui a base sôbre a qual se instaura o conheci­mento científico. O que se trata de mostrar é como “uma ciência se inscreve e funciona no elemento do saber.” Haveria um “espaço” no qual, por um jôgo interno como as relações que o constituem, uma ciência determinada formaria o seu objeto: “A ciência, sem se identificar com o saber, mas sem o obliterar ou excluir, se localiza nêle, estrutura alguns dos seus objetos, sistematiza al­gumas de suas enunciações, formaliza alguns dos seus conceitos e estratégias” , (pp. 241-242).

Voltaremos oportunamente a êsse “jôgo” imaginado por Foucault, sobretudo no contexto de um exemplo pre­ciso, que é a relação entre Marx e Ricardo. Basta, por enquanto, ter mostrado os princípios da análise e seus efeitos sôbre as “disciplinas” existentes.

O Ponto de Fuga da Arqueologia

Retomemos o percurso de Foucault em seu princípio: êsse percurso parece marcar com muita propriedade os limites da epistemologia, e demonstra a necessidade de elaborar uma teoria do que denomina as “relações dis­cursivas” ; uma teoria das leis de tôda “formação discur­siva”. Ora, é aqui que se delineiam os limites da própria “arqueologia”. Se nossa interpretação é correta, a tare­fa da arqueologia é constituir a teoria da instância “dis­cursiva”, na medida em que tal instância é estruturada por relações incarnadas em instituições e regulamenta­ções historicamente determinadas. Essa tarefa é efetua­da por Foucault sob a forma da descrição; “não chegou ainda o tempo da teoria” como êle próprio diz, no capítu­lo intitulado “Descrição dos Enunciados”. Ora, em nossa opinião, êsse tempo já chegou, mas a teoria não virá de Foucault, a menos que reconheça os princípios necessá­

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rios para a formulação de tal teoria. Êsses princípios são os da ciência da história. Pois o que existe de mais posi­tivo na Archéologie é a tentativa de instaurar, sob o no­me de “formação discursiva”, uma teoria materialista e histórica das relações ideológicas e da formação dos ob­jetos ideológicos. Mas em última análise, em que se ba­seia êsse esboço de teoria? Em uma distinção tàcítamen- te aceita, sempre presente mas nunca teorizada, entre “práticas discursivas” e “práticas não-discursivas” . Tôdas as suas análises conduzem a essa distinção; mas é uma distinção feita às cegas, enquanto que o que se impõe é pensá-la explicitamente sob a forma de uma teoria. Cons­truída essa teoria, Foucault se encontraria num terreno distinto, como aliás êle próprio prevê.

Essa distinção está sempre presente: produzida a ca­tegoria de “prática discursiva”, Foucault tem que reco­nhecer que essa prática não é autônoma; que a transfor­mação e a renovação das relações que a constituem não resulta do jôgo de uma simples combinatória, e que sua compreensão exige a referência a práticas de outra na­tureza. Desde o início, como vimos, Foucault se propõe determinar as relações entre enunciados; mas pretende, igualmente, estudar as relações “ entre enunciados ou gru­pos de enunciados e acontecimentos de outra ordem (téc­nica, econômica, social, política.” (p. 41). Além disso, para seguir a ordem do livro, uma estranha distinção apa­rece na definição do discurso como prática. A s relações “discursivas” são ditas secundárias, por oposição a outras relações ditas primárias, que, “independentemente de qualquer discurso ou objeto de discurso, podem ser des­critas entre as instituições, técnicas, formas sociais, etc.” (p. 68). E mais adiante: “A determinação das escolhas teóricas efetivamente efetuadas depende também de ou­tra instância. Essa instância se caracteriza antes de mais nada pela função que deve exercer o discurso estudado num campo de práticas não discursivas.” (p. 90).

Poderíamos citar outros exemplos que provam que Michel Foucault tem necessidade dessa distinção, mas a pratica sob a forma da justaposição. É ela, em particular, que funciona a propósito da análise das relações entre Ricardo e Marx. Ê nesse ponto que o “sistema de refe­rências recíprocas” de Foucault revela a sua inconse- quência. Mudemos de terreno.

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SABER E IDEOLOGIA

O terceiro parágrafo do capítulo “Ciência e Saber” se intitula “saber e ideologia”. O confronto dos dois tí­tulos indica do que se trata: do exame crítico das teses propostas por Althusser, em livros já antigos, sôbre as relações entre ciência e ideologia. Essas teses, que tive­ram, em seu tempo, sem qualquer dúvida, um valor teó­rico e um alcance político revolucionário, utilizam, para seus próprios fins, uma noção de “corte” ou “ruptura” essencialmente bachelardiana. Já vimos que Foucault propõe na Archéologie um sistema de categorias para re­pensar — e retificar — esta concepção do corte ou da ruptura, que segundo êle tem pouco valor descritivo e está associada a conotações antropologistas. Compreen­demos assim porque a distinção ciência-ideologia tem que ser modificada; é o que procura fazer quando analisa as relações entre a ciência e o “saber”. O que o leva a pensar a diferença entre o que chama “saber” e o que Althusser chamava a “ideologia”. Ê precisamente com essa última análise que termina a Archéologie. Foucault utiliza três argumentos, correlativos das determinações do nôvo conceito de “saber” :

(a ) se o saber é constituído por um conjunto de prá­ticas — discursivas e não-discursivas — a definição de ideologia utilizada por Althusser é excessivamente es­treita. “As contradições”, escreve Foucault, “as lacunas, os defeitos teóricos, podem denunciar o funcionamento ideológico de uma ciência (ou discurso com pretensões científicas); podem permitir determinar em que ponto do edifício êsse funcionamento começa a se manifestar. Mas a análise dêsse funcionamento deve ser feita ao nível da positividade e das relações entre as regras de formação e as estruturas da cientificidade.” Em suma, é tôda uma concepção da ideologia como não-ciência pura e simples que é visada. Para Foucault, essa concepção da ideologia é infiel aos seus próprios objetivos: num certo sentido, é ela própria ideológica. Limita-se a notar de uma forma mecanicista e em última análise antidialética os efeitos da inserção da ciência no saber. Ora, é preciso deslocar a análise, e não se contentar, com os olhos fixos na ciên­cia, em fazer da ideologia o simples reverso da ciência, sua insuficiência ou desfalecimento, como algumas análi­ses unilaterais de Althusser deram a entender. Ê preciso, para apreender a chamada “ruptura”, analisar a rêde de

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relações que constituem o saber, e sôbre as quais emerge a ciência.

(b ) Se o saber é investido em certas práticas — dis­cursivas e não-discursivas — o aparecimento de uma ci­ência não elimina, num passe de mágica, essas práticas. Ao contrário, elas subsistem, e coexistem — mais ou me­nos pacificamente — com a ciência. Consequentemente: “a ideologia não é exclusiva da cientificidade. ( . . . ) Ao •se corrigir, retificar seus erros, e aperfeiçoar suas forma­lizações, um discurso não se emancipa necessàriamente da ideologia. O papel da ideologia não diminui à medida que aumenta o rigor e se dissipa o êrro.” Em outros têr- mos, se o que se visa com a palavra “ideologia é o “sa­ber”, cumpre reconhecer que sua realidade, a materiali­dade de sua existência numa formação social dada é tal que não pode se dissipar como uma ilusão, da noite para o dia; ao contrário, o saber continua a funcionar e lite­ralmente a assediar a ciência ao longo de todo o processo dc sua constituição.

(c ) A história de uma ciência não pode portanto ser concebida senão em sua ligação com a história do “sa­ber”, isto é, a história das práticas — discursivas e não- -discursivas — em que êsse saber consiste; trata-se de pensar as transformações dessas práticas: cada transfor­mação modificará a forma de inserção da cientificidade no saber, e estabelecerá um nôvo tipo de relação ciência- -saber. “É por isso que a questão do nexo entre a ideo­logia e a ciência não é a questão das situações ou práti­cas que a ciência reflete de forma mais ou menos cons­ciente; nem a questão de sua utilização eventual ou do mau uso que se pode fazer da ciência; é a questão de sua existência como prática discursiva e de seu funcionamen­to entre outras práticas.”

Surge agora à luz do dia êsse “sistema de referên­cias recíprocas” implícito, mas determinante, mascarado pela auto-referência constante, e aqui paradoxal, do au­tor à sua obra. Tínhamos, assim, razão de suspeitar que o procedimento pelo qual Foucault apresentava como constitutivo do seu trabalho um sistema de referências recíprocas cujos elementos êle próprio invalida constituía uma peça que Foucault pregava a êle mesmo e ao leitor. Com efeito, o que se evidencia no fim dessas análises (exatamente no fim, como se observou) é que o sistema

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da “arqueologia” foi inteiramente construído para com­pensar a inadequação da antinomia ciência-ideologia para explicar essas “falsas ciências” ou “positividades” que são o objeto próprio de Foucault. A Archéologie du Sa­voir nasce de um impasse. Para resolver êsse impasse, dois caminhos — e somente dois — se ofereciam a Fou­cault: tentar solucionar a dificuldade por seus próprios meios, ou recorrer ao materialismo histórico, à ciência da história, e verificar se a oposição ciência-ideologia se reduzia à que tinha sido enunciada por Althusser, provi­soriamente, e por necessidade. Mais precisamente: veri­ficar se os conceitos fundamentais do materialismo his­tórico não permitiam formular uma teoria da ideologia susceptível de resolver a dificuldade encontrada. Michel Foucault escolheu — corajosamente, diriam alguns — o primeiro caminho. Tentaremos, para terminar, propor uma razão, não-psicologista, para essa escolha. No mo­mento, precisamos ver suas conseqüências. Para jogar com as cartas na mesa, e antecipar um pouco os nossos resultados, podemos dizer de saída que a natureza da ideologia é tal que não é possível imaginar, em relação a uma ciência constituída e viva, um discurso continua­mente paralelo. Chega um momento em que a contradi­ção reaparece, em que o “deslocamento” se faz sentir pelos seus efeitos, em que a escolha, a princípio escamo­teada, se impõe novamente, com maior urgência. É o que vamos mostrar.

O discurso paralelo: tendo reconhecido uma dificul­dade real, cujos têrmos e cuja solução pertencem, de di­reito e de fato, ao materialismo histórico, Foucault pro­põe um certo número de conceitos homólogos, ainda que deslocados. A simple3 formulação dêsses conceitos, para quem sabe entendê-los, encerra as condições de sua reti­ficação.

Tudo depende, como se viu, do uso do conceito de “prática.” É nesse ponto que a distância entre o materia­lismo histórico e a “arqueologia” é mínima; o exame mostrará, sem paradoxo, que é nêle também que a dis­tância é máxima. Com efeito, é a categoria da prática — tão estranha às obras precedentes de Foucault — que define o campo da “arqueologia” : nem língua, nem pen­samento, como vimos, mas o chamado “pré-conceitual” (p. 82). O nível pré-conceitual, assim liberado, escreve êle, não está ligado nem a um horizonte de idealidade nem a uma gênese empírica das abstrações. De fato, o

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que se busca não são as estruturas ideais do conceito, mas o “ lugar de emergência dos conceitos” ; não se pre­tende, tampouco, explicar estruturas ideais pela série das operações empíricas que as teriam engendrado; o que se descreve é um conjunto de regras anônimas historica­mente determinadas que se impõem a qualquer sujeito que fala, regras não universalmente válidas, mas que têm sempre um domínio de validade bem especificado. A de­terminação principal da categoria arqueológica da “prá­tica” é a “regra”, a “regularidade”. É a regularidade que estrutura a prática discursiva, é a regra que ordena tôda formação discursiva; (p. 63). A função da “regra” pode ser facilmente explicitada: através dela, Foucault pro­cura pensar ao mesmo tempo — em sua unidade — as relações que estruturam a prática discursiva, seu efeito coercitivo sôbre os “sujeitos” que falam, e o que chama, enigmaticamente, de embreagem de um tipo de prática sôbre outro.

O primeiro ponto já foi analisado; acrescentaremos apenas que a “regularidade” não se opõe à “irregulari­dade” : se a regularidade é a determinação essencial da prática, a oposição regular-irregular não é pertinente. Não se pode dizer, por exemplo, que numa formação dis­cursiva uma “invenção” ou “descoberta” escape à regula­ridade: “uma descoberta não é menos regular, do ponto de vista enunciativo, que o texto que a repete e difunde; a regularidade não é menos operante, menos eficaz ou ativa numa banalidade que numa formulação insólita.” (p. 189). A irregularidade é uma simples aparência, ex­plorada por êsses historiadores do genial, que, como bons adoradores do “ sujeito” (ou pelo menos de alguns sujei­tos brilhantes) são fundamentalmente continuistas. Essa aparência se produz quando uma modificação se opera num ponto determinado da formação discursiva, e por­tanto na e sob a regularidade existente num momento histórico dado. Segundo o ponto em que ocorre, essa mutação será mais ou menos sensível, terá mais ou me­nos efeitos (outros diriam: será mais ou menos “genial” ). Surge assim uma nova determinação da formação dis­cursiva: é estruturada hieràrquicamente. Existem, com efeito, “enunciados retores”, que delimitam o campo dos objetos possíveis e traçam a linha divisória entre o “vi­sível” e o “invisível”, entre o “pensável” e o “impensá­vel”, ou melhor (em têrmos “arqueológicos” ) : entre o enunciável e o não-enunciável; que designam o que é in­

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cluído numa formação discursiva pelo que ela exclui. A aparência de irregularidade é portanto um simples efeito da modificação do “reitorato”. Seria necessário aqui co­mentar por extenso a análise contida nas páginas 192- 193, baseada no exemplo da História Natural.

Segundo ponto: essa regularidade hierárquica se im­põe a qualquer “ sujeito”. Eis o que escreve Foucault a propósito da medicina clínica: “As posições do sujeito se definem em relação aos diversos objetos ou grupos de objetos: é sujeito questionante segundo uma certa grade de interrogações, explicitas ou não, e sujeito que escuta, segundo um certo programa de informação; é sujeito que olha, segundo uma tábua de traços característicos, e su­jeito que anota, segundo um tipo descritivo. . . (p. 71). E mais adiante: “as diversas situações que pode ocupar o sujeito do discurso médico foram redefinidas no início do século XIX, com a organização de um campo percep- tivo distinto, (ib id .)”

O terceiro ponto é fundamental: é nêle que se acumu­lam tôdas as contradições do projeto “arqueológico” ; é aqui que a categoria prática, segundo Foucault, revela a sua inadequação: pois só permite pensar a unidade do que ela designa através de uma justaposição. Mostrare­mos que isto ocorre devido à ausência de um princípio de determinação. Ora, se o que dissemos é exato, essa au­sência é o efeito do caminho escolhido por Foucault; e assinala o ponto em que a necessidade do outro caminho se impõe, em que a retificação pode começar.

Foucault se vê forçado a pensar c que constitui à re­gularidade da regra, o que ordena a sua estrutura hie­rárquica, o que produz as suas mutações, o que lhe con­fere o caráter imperativo para todo sujeito. Ora, em cada um dêsses pontos, esbarra na mesma dificuldade. Ê importante que essa dificuldade seja a mesma: isto sig­nifica que Foucault concebe a necessidade de referir o conjunto dêsse processo complexo a um mesmo princípio. Mas êsse mesmo princípio, se está presente em tôda par­te, não é pensado nunca. E isto porque excede os limi­tes da categoria da prática tal como funciona na Archéo­logie. Já descobrimos êsse princípio: é a articulação das práticas discursivas sôbre práticas não-discursivas.

Pode-se objetar: tudo isso para chegar ao mesmo ponto enigmático contra o qual colidia o capítulo prece- rente. Certamente, e é natural, porque, passado êsse ponto, estamos fora de Foucault; mas atenção: conse­

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guimos progredir em nosso percurso aparentemente cir­cular, pois já determinamos os meios para escapar ao círculo “arqueológico”. Ao pensar como tal o ponto de fuga, encontramos o caminho para dêle sair. Com efei­to, podemos dizer agora para que serve a distinção prá­tica discursiva/prática não-discursiva: é uma tentativa para repensar a distinção ciência/ideologia. Melhor: uma tentativa para pensar em sua unidade diferencial duas histórias: a das ciências e a da (ou das) ideologia(s). Não mais enfatizar unilateralmente a autonomia da his­tória das ciências, mas acentuar ao mesmo tempo a re­latividade dessa autonomia. Ora, percorrendo êsse cami­nho, Foucault deve reconhecer (e é êsse o seu mais alto mérito) que a ideologia (pensada sob a categoria do “saber” como sistema de relações estruturado hieràrqui- camente, e investido em práticas) não é, por sua vez, au­tônoma. Sua autonomia é portanto ainda relativa. Mas Foucault está consciente do perigo que o ameaça: pen­sar o “saber” como efeito puro e simples — ou reflexo— de uma estrutura social. Em suma, para escapar ao idealismo transcendental, cair num mecanicismo empiris- ta que nada mais é que uma forma invertida do primeiro. Donde seu extremo embaraço, e a fluidez metafórica das categorias que propõe.

Ê preciso ver nesse desenvolvimento o que êle de fato é: o “reconhecimento” de uma falha teórica no edi­fício arqueológico. Primeiro reconhecimento: o papel das instituições na “embreagem”. Retomando algumas aná­lises da Naissance de la Clinique, Foucault escreve duas páginas notáveis sôbre êsse assunto (pp. 6S-69) : limito- -me a citar alguns trechos, sublinhando certas palavras que ilustram a análise que proponho:

“Primeira pergunta: quem fala? Quem, dentre to­dos os indivíduos falantes, tem o direito de usar êsse tipo de linguagem? Quem é seu titular? Quem recebe dessa linguagem a sua singularidade, e seu prestígio, e de quem, por sua vez, a linguagem recebe senão a sua ga­rantia, pelo menos a sua presunção de verdade? Qual o estatuto dos indivíduos que têm — e somente êles — o direito regularmentar ou tradicional, juridicamente defi­nido ou espontaneamente aceito, de proferir semelhante discurso? O estatuto do médico comporta critérios de competência e de saber; instituições, sistemas, normas pedagógicas; condições legais que dão direito — fixando os seus limites — à prática e ao exercício do saber. “E

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mais adiante: “a existência da palavra médica não é dis- sociável do personagem estatutàriamente definido que tem o direito de articulá-la, reivindicando para ela o po­der de conjurar o sofrimento e a morte. Mas sabe-se também que êsse estatuto na civilização ocidental foi pro­fundamente modificado no fim do século X V III e início do século XIX, quando a saúde das populações tornou-se uma das normas exigidas pelas sociedades industriais.”

“Sabe-se tam bém ...” Confessemos que Foucault não nos fornece os meios para passar dêsse conhecimen­to de oitiva a um conhecimento racional do processo de modificação. Sempre o mesmo enigma: o da “embrea- gem”. Mas êsse texto é excepcional, pois permite preci­sar, em tôda a sua riqueza, o funcionamento da categoria de “regra” em Foucault. Categoria solidária das noções de estatuto, normas e poder. Mais exatamente: o esta­tuto é definido por uma instância não-discursiva: é atra­vés de uma parte do aparelho do estado que nós podemos enunciar; o estado incarna, realiza um certo número de normas definidas em função de imperativos econômicos. Êsse estatuto, literalmente, dá corpo à profissão, e êsse corpo investe o discurso que nêle se articula — e portan­to os indivíduos que o enunciam — de um poder. Êsse poder, cuja única existência está na prática discursiva dos médicos, tem evidentemente uma relação, não precisada por Foucault, com o poder do estado. Deixemos essa aná­lise de lado; encontraremos em outros lugares o mesmo problema.

O embaraço é idêntico em outros trechos. Assim (p. 61) descrevendo a formação de um objeto do saber como um “ feixe complexo de relações”, procede a um amálga­ma indiscriminado: “essas relações são estabelecidas en­tre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização; essas relações não estão presentes no objeto”.

Poderíamos citar outras passagens igualmente rap- sódicas (principalmente à página 98).

Ê tempo de chamar as coisas pelo seu nome, e ver por que, tendo tomado um caminho errôneo, Foucault ti­nha necessariamente que chegar a um impasse. Coletan­do os elementos colhidos durante o percurso, podemos propor a análise seguinte: partindo da crítica da antiga noção althusseriana de ideologia — estreita demais —

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Foucault elabora a sua própria categoria de “saber”, fun­dando-a num conceito mal construído de “prática”. Mal construído, porque tem que cindi-lo para que possa pre­encher a sua função, e Foucault não pode explicar essa cisão. Mas como sua crítica é essencialmente correta, consegue reproduzir, deslocando-as, as determinações do conceito científico de ideologia, tal como êle funciona no materialismo histórico. Mas como se privou, de início, dêsse conceito, quando surge a dificuldade essencial do “vínculo” entre ideologia e relações de produção, perma­nece sem voz, condenado a designar de maneira “misti- ficada” o lugar de um problema.

Explicitemos.

1. O conceito de ideologia que funciona no materia­lismo histórico — em Marx e seus sucessores — não é efetivamente o puro reverso da ciência. Foucault tem absolutamente razão; a questão que êle suscita sôbre o “regime de materialidade” da ideologia é uma questão real (m aterialista), de uma urgente necessidade teórica para o materialismo dialético. Sabe-se que a ideologia tem uma consistência, uma existência material — sobre­tudo institucional — e uma função real dentro de uma formação social. Ninguém ignora que no esquema, ainda descritivo, proposto por Marx para a estrutura de uma formação social, a ideologia (ou as ideologias) figura na “superestrutura”. A superestrutura, determinada, “em última instância”, pela infra-estrutura econômica, teria um efeito de retorno sôbre a infra-estrutura. Dessa forma, a ideologia não pode desaparecer pelo simples fato do aparecimento da ciência. Compreendemos assim porque Michel Foucault tem razão quando pretende tra­balhar “em outro nível” que o da epistemologia da “rup­tura” :

“A ruptura não é para a arqueologia o objetivo de suas análises, o limite que ela assinala de longe sem po­der determiná-lo nem lhe dar sua especificidade: a rv/p- tura é o nome dado às transfomações que incidem sôbre o regime geral de uma ou várias formações discursivas” , (p. 231). Determinar a ideologia como “instância” de toda formação social é com efeito pensar a ideologia não mais em têrmos estritamente bachelardianos, como “um tecido tenaz de erros”, urdido no segredo da imaginação, como o “magma informe” dêsses “monstros teóricos” que precedem a ciência — e às vêzes lhe sobrevivem, com

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uma existência patológica — mas é pensá-la em sua cons­tituição e funcionamento enquanto instância material historicamente determinada, num todo social complexo também determinado historicamente. O valor exemplar da Archéologie reside na tentativa de repensar nesses têrmos a ideologia.

2. Não obstante, essa tentativa culmina num fra ­casso: as análises “esbarram” contra a distinção cega entre práticas discursivas e práticas não-discursivas. Se o que dissemos é exato, nada disso é surpreendente. Pois com essa única distinção, Foucault queria resolver três problemas distintos. Três problemas que não podem ser formulados senão nos conceitos do materialismo histó­rico. Três problemas que lançam Foucault no embaraço, por não poder sequer colocá-los.

Problema n° 1: refere-se à relação entre uma “for­mação ideológica” e o que Foucault chama “as relações sociais”, as “flutuações econômicas” , etc. Em suma, o que designamos várias vêzes como o problema da “ em- breagem”. Em outros têrmos: numa formação social da­da, que tipo de relações a ideologia mantém com a in­fra-estrutura econômica? Pergunta ingênua, dir-se-á, à qual um marxista responderá fàcilmente com o esquema clássico da infra-estrutura e da super estrutura. Mas essa resposta, por ser fácil e, no fundamental, exata, não é sem dúvida suficiente. É que ela é ainda descritiva; em­bora tenha a vantagem inestimável de “mostrar” a ordem de determinação materialista, embora tenha um valor po­lêmico incontestável contra tôdas as concepções idealis­tas da história para as quais são as idéias que conduzem o mundo, e embora, por essas razões decisivas, deva ser firmemente defendida como uma definitiva aquisição teó­rica do marxismo, que permite traçar uma linha de de­marcação entre os dois “campos” da filosofia, entre os nossos adversários e nós, essa resposta puramente des­critiva não proporciona os instrumentos para pensar o mecanismo que liga a ideologia enquanto sistema de re­lações' hierarquizadas que produzem um efeito de domi­nação sôbre os “sujeitos”, e o modo de produção (no sen­tido estrito), isto é, o sistema constituído pelas relações de produção e pelas fôrças produtivas.1 É justamente êsse mecanismo que Foucault tenta pensar teoricamente;

(1) Cf. sôbre êsse tema o artigo de Althusser em La Pensée, n* 151, junho, 1970.

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com a noção de “embreagem”, designa o lugar de um problema teórico urgente: passar da teoria descritiva à teoria, simplesmente, das relações entre a ideologia e a infra-estrutura. Sabemos que somente o materialismo histórico pode resolver êsse problema. Sem poder solu­cioná-lo aqui, podemos pelo menos precisar os têrmos do problema: se é certo, como indica o esquema clássico, que a infra-estrutura é determinante, temos que pergun­tar : no mecanismo que regula as relações entre êsses dois sistemas que são as fôrças produtivas e as relações de produção, o que produz a necessidade de um sistema de sujeição ideológica? Será preciso um dia responder a essa pergunta: o mérito de Foucault está em ter “reencon­trado” essa questão, ainda que de uma forma desfocada, e em mostrar-nos a urgência de uma solução.

Problema n- 2: refere-se ao estatuto dessas “falsas ciências” que são o objeto próprio do trabalho anterior de Foucault. Insiste: a Gramática Geral, a História N a ­tural, etc., podem certamente, em retrospecto, aos olhos da ciência constituída, ser ditas “ideológicas” ; sem dú­vida seria possível inclusive mostrar que existe entre essas disciplinas “ideológicas” e o sistema das relações ideológicas existentes numa sociedade dada, num momen­to dado de sua história, uma estreita vinculação. Tôda a Archéologie tende a prová-lo. Não obstante, a Gramáti­ca Geral ou a História Natural não têm o mesmo esta­tuto que a ideologia religiosa, moral e política que fun­ciona na formação social considerada. índice dessa dife­rença: essas disciplinas se atribuem — quer o queiramos ou não — o título de “ciências.” Em suma, Foucault quer evitar uma redução, que chamaríamos de “ ideolo- gista”, e no fundo tem caráter mecanicista. Propõe, de fato, uma distinção entre duas “formas” de ideologia; distinção que seria, não formal, (umas seriam sistemati­zadas, e outras, não) mas fundada numa “diferença de nível.” Essa distinção pode ser formulada nos conceitos do materialismo histórico como uma distinção entre “ideologias práticas” e “ideologias teóricas.” Althusser dá a seguinte definição das ideologias práticas: “ enten­demos por ideologias práticas formações complexas de montagens de noções-representações-imagens, de uma parte, e de montagens de comportamentos-condutas-ati- tudes-gestos, de outra parte. Êsse conjunto funciona como uma série de normas práticas que governam a ati­tude e a posição concreta dos homens em relação aos ob-

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jetos reais e aos problemas reais de sua existência social e individual, e em relação à sua história.” Como pensar a “articulação” dessas ideologias práticas com as “ideo­logias teóricas” ? O que é uma “ideologia teórica” ? São essas as questões — formuladas em têrmos materialistas— que Foucault se coloca. Ê aqui que a noção canônica de arquivo assume todo o seu relêvo. Seria preciso, para mostrá-lo, examinar linha a linha o capítulo intitulado “O a priori histórico e o arquivo” (pp. 166-173). Justi­ficando o emprêgo da primeira locução, diz Foucault: “ Justapostas, essas duas palavras são um pouco chocan­tes; quero designar com isso um a priori que seria, não uma condição de validade para julgamentos, para uma condição de realidade para enunciados”. Donde se se­gue que o arquivo — tomado num sentido radicalmen­te nôvo — é “em primeiro lugar, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege a aparição dos enunciados como acontecimentos singulares.” E mais genericamente: “é o sistema geral da formação e transformação dos enuncia­dos”.

Mas já vimos que êsse sistema geral não é autôno­mo; a lei de seu funcionamento é sujeita a outro tipo de “regularidade”, a das práticas não-discursivas. Diremos que a formação dos objetos das ideologias teóricas sofre a influência das ideologias práticas. Mais precisamente: as ideologias práticas conferem suas formas e seus limi­tes às ideologias teóricas. Trabalhando ao nível do ar­quivo, Foucault nos convida a pensar o mecanismo que regulamenta êsses efeitos; coloca-nos o problema: se­gundo que processo específico as ideologias práticas in­tervém na constituição e funcionamento das ideologias teóricas? Ou ainda: como as ideologias práticas se “re­presentam” nas ideologias teóricas? Mais uma vez, Fou­cault suscita um problema real — e urgente. A resposta de Foucault na Archéologie é um esbôço a re-trabalhar sôbre o terreno sólido do materialismo histórico.

Problema n" 3: refere-se ao tipo de relação que exis­te entre uma ideologia teórica e uma ciência. Aqui a contribuição de Foucault é importante: mostra-nos que o problema não pode ser resolvido em têrmos de objetos. Comparar os objetos de uma ideologia teórica aos de uma ciência é condenar-se à descrição de uma ruptura que não explica nada. Provando a necessidade de “passar” pela categoria do “saber” — tal como a elaborou — Foucault coloca o problema com exatidão. Êsse proble­

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ma não é o das relações de uma ciência determinada à ideologia teórica que parece lhe “corresponder”, mas o de uma ciência ao sistema constituído pelas ideologias teóricas e pelas ideologias práticas. Ora, se, como vimos, as ideologias práticas se “representam” nas ideologias teóricas, impondo-lhes suas formas e limites, é preciso admitir que uma ciência só pode aparecer graças a um jôgo nesse processo de limitação; eis porque Foucault propõe substituir ao têrmo de ruptura o têrmo em nossa opinião mais feliz de irrupção. Essa irrupção se faz no saber, isto é, no espaço material em que funciona o sis­tema das ideologias práticas e teóricas. É dessa forma, segundo Foucault, que se deve pensar a inserção de uma ciência em uma formação social; é dessa forma que se evita ao mesmo tempo o idealismo, para o qual a ciência cai do céu, e o mecanicismo-economicista, para o qual a ciência é um simples reflexo da produção.

É tempo de mostrar por um exemplo como pode funcionar êsse tipo de análise. Tomemos o problema das relações entre Marx e Ricardo. Foucault escreve êsse texto importante: “Conceitos como os de mais-valia ou da baixa tendencial da taxa de lucros, encontrados em Marx, podem ser descritos a partir do sistema de positi­vidade que já existe em Ricardo; ora, êsses conceitos (que são novos, mas cujas regras de formação não o são) aparecem em Marx como tributários de uma prática dis­cursiva completamente diferente: formados segundo leis específicas, ocupam nessa prática uma outra posição, não figuram nos mesmos encadeamentos. Essa positividade nova não é uma transformação das análises de Ricardo; não é uma nova economia política; é um discurso cuja instauração teve lugar pela derivação de certos conceitos econômicos mas que por sua vez define as condições den­tro das quais se exerce o discurso dos economistas, e portanto pode valer como teoria e crítica da economia política.” (p. 230).

O melhor comentário que se possa fazer dessa aná­lise consiste em confrontá-la com uma passagem do Pos- fácio da segunda edição alemã do Capital (E S pp. 24-25) : “ . .. enquanto disciplina burguesa, isto é, na medida em que vê na ordem capitalista não uma fase transitória do progresso histórico, mas a forma definitiva e absoluta da produção social, a economia política só pode ser uma ciência se a luta de classes permanecer latente ou se ma­nifestar apenas por fenômenos isolados. Tomemos a In­

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glaterra. O período em que a luta de classes ainda não está desenvolvida é também o período clássico da econo­mia política. Seu último grande representante, Ricardo, é o primeiro economista que transforma o antagonismo dos interêsses de classe, a oposição entre salário e lucro, lucro e renda, no ponto de partida de suas pesquisas. R i­cardo formula ingenuamente êsse antagonismo, com efei­to inseparável da própria existência das classes que com­põem a sociedade burguesa, como a lei natural, imutável, da natureza humana. Êsse é um limite que a ciência bur­guesa não poderá ultrapassar.” Aqui aparece o interêsse excepcional do texto de Foucault: compreendemos como os objetos de Ricardo e Marx pertencem à mesma “for­mação discursiva” , como essa ideologia teórica que é a economia política clássica é determinada em sua consti­tuição por um sistema de limites produzidos pela fôrça coatora das ideologias práticas; compreendemos também a insuficiência do ponto de vista epistemológico da rup­tura (ou corte). Mas compreendemos também o que falta à Archéologie: um ponto de vista de classe. Ê por­que Marx se situa na perspectiva do proletariado que inaugura uma “nova prática discursiva” . Em outros têr­mos: as ideologias práticas são atravessadas por contra­dições de classes; o mesmo ocorre com seus efeitos nas ideologias teóricas. Somente uma modificação no siste­ma de contradições assim constituído permite passar da ideologia à ciência. Essas reflexões, que nos foram suge­ridas pela Archéologie_, ainda que rudimentares, ultrapas­sam o quadro do trabalho de Foucault. E o ultrapassam necessariamente: e sua ausência explica o deslocamento de todos os conceitos foucaultianos. Por isso, a Archéo­logie permanece ela própria uma ideologia teórica. Ora, segundo o que dissemos, é preciso situar-se numa posição de classe para poder compreendê-lo. Vemos agora o sen­tido da escolha de Foucault entre o materialismo histó­rico e suas próprias construções: essa escolha teórica, em última análise, é política. Vimos quais os efeitos dessa escolha: ela fixa à Archéologie limites que não poderão ser ultrapassados. Ao contrário, se o “arqueólogo” mu­dar de terreno, descobrirá muitas outras riquezas. Ülti- mo detalhe: terá deixado, então, de ser “ arqueólogo”.

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Discurso Científico e Discurso IdeológicoPor Carlos Henrique de Escobar

Nosso enfoque de Michel Foucault é crítico. Suas posições não coincidem com as nossas posições visto que temos por adquirido, na reflexão dos discursos, as ques­tões mesmas da história, da diferença entre os discursos ideológicos e os discursos científicos, senão também, so­bretudo, as articulações que estas questões passam, a ter numa ciência dos discursos ideológicos.

Ora, se nos dedicamos aqui a criticar suas posições— sem muita sistematização — isto não quer significar que desconheçamos sua importância e a marcada origi­nalidade de todos os seus trabalhos. Dito isso previnimos igualmente o leitor de que êste artigo se constitui de um texto extraído do segundo capítulo de um livro (a ser editado) que se dirige a pensar o estatuto dos discursos ideológicos na história.

Caso os trabalhos de Foucault ( Doença mental e psi­cologia, História da loucura na idade clássica, 0 Nasci­mento da clínica, As palavras e as coisas e a Arqueologia do saber) sejam o esforço de pensar os discursos “espon­tâneos” em têrmos radicalmente novos, será necessário que, mais tarde ou mais cedo, êles se definam por respei­to à história, aos discursos ideológicos, ao corte epistemo­lógico, e por aí se decidam a pensar uma teoria da ciên­cia e uma teoria da história da ciência.

Pois em que medida, as delimitações e descrições dos discursos, tanto quanto a crítica em detalhes da “his­tória das idéias “ {Arqueologia do saber) podem signifi­car qualquer coisa teoricamente válida sem estas defini­ções? Definições estas que afinal enraizariam as “posi­ções” de Foucault e impediriam que seus livros ganhas­

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sem sempre o estatuto de aproximações na ausência de qualquer coisa, ademais, fundamental para a clareza e a cientificidade de uma reflexão sôbre os “discursos”.

Se Foucault tem o mérito de nos conceder através de suas análises (da clínica, da loucura, das epistemes, etc) uma história cujo objeto é complexo e fecundo (1 ), por outro lado esta história termina por comprometer-se com um acabamento formal bastante suspeito. Isto é, a história foucaultiana — por insólita que pareça — oscila entre os extremos idealistas do tudo e do nada; dos dis­cursos complexificados e da rigidez das epistemes. E se, por um outro lado, por exemplo, êle restitui ao discurso da “loucura”, criticamente, um interesse particular, êle não consegue efetivamente conceder-lhe um estatuto. O que, ademais, somente seria possível numa ciência dos discursos ideológicos, onde os discursos então se mostra­riam em suas “propriedades” na história.

Esta oscilação idealista do acabamento formal ab­soluto e da pluralidade dos materiais disponíveis, por onde se organiza uma “história”, é uma atitude comum dos estruturalistas. E ela o é na medida mesma em que se constitui no mecanismo empirista das filosofias da história. Objetivamente ela se inspira na leitura equívo­ca que os estruturalistas fizeram de Saussure, ou, mais precisamente, ela é uma leitura equívoca daquela questão que em Saussure diria respeito a uma crítica às posições em lingüística que procuravam pensar esta ciência nos “fatos heteróclitos da linguagem” sem ascenderem, por uma abstração, à “langue”, etc. Pelo menos foi o que se pensou estar escrito no Cours de linguistique générale. Ora, Saussure (in "Introduction ”, “Objet de la linguisti­que” , ibid.) não está fazendo uma leitura empírica dos fundamentos possíveis de uma lingüística, mas procuran ­do pensar a sua epistemologia, que em sendo científica se ocupa em distinguir seu objeto (objeto de conheci­mento) das lingüísticas ideológicas que trabalham com os fatos da língua. É porque então esta “langue” saus- surianà não é uma abstração idealista dos “fatos heteró­clitos de linguagem” (como são, ademais, as arquitetu­ras “históricas” das análises foucaultianas), mas sim uma teoria, um discurso científico.

(1) "A descrição da episteme apresenta diversos aspectos essen­ciais: ela abre um campo inesgotável e não pode jamais ser fecha­do". pág. 250, in L ’Archéologie du Savoir. Gallimard, 1969.68

Esta estratégia (ou “método” ) de procurar pensar ( “descrever” ) os fatos heteróclitos trocando-os por for­mas ( “modelos” ) subscreve os equívocos dessa “leitura” infeliz de uma lingüística que na verdade é bem outra coisa. Estratégia esta cujo fundamento continua sendo o da distinção entre o visível e o invisível, o aparente e o subjacente, o que aparece e é múltiplo e as epistemes, etc.

Pois bem, nosso objetivo com estas considerações críticas a Foucault pretende ilustrar a necessidade tanto de uma ciência dos discursos ideológicos quanto (e po- risso mesmo) de uma teoria da ciência que em seu esta­tuto epistemológico é incompatível com as soluções até então apresentadas por Foucault. Por exemplo, procure­mos pensar inicialmente estas “ausências” (ausência destas questões) nas posições mesmas que Foucault ado­ta por respeito à “loucura”. De que vale sustentar que a “loucura” é falada numa linguagem que não lhe per­tence se as linguagens mesmas (os discursos) não pos­suem ainda um estatuto conhecido? Estamos de acôrdo que uma linguagem “normal” falou arbitrariamente da “ loucura”, mas não sabemos como nem por que esta lin­guagem pode falar de uma outra e em que têrmos (na estrutura e na história dos discursos) se dá esta subor­dinação. E isto porque estas linguagens são considera­das e analisadas em nível especulativo, isto é, fora de uma ciência (dos discursos) capaz de pensar o estatuto dos discursos ideológicos e científicos e de sua articula­ção com a história.

Michel Serres (2 ) no entanto se delicia com estas reflexões de Foucault, e nos diz mesmo que êste autor abre caminho para a total inteligibilidade da linguagem da loucura na medida em que se decide (na História da loucura na idade clássica) a deixar “a loucura falar” . Diz Serres: “ . . . é necessário ademais dar a palavra àquele que jamais foi escutado, mesmo se a coerência do seu verbo é louca”, ou “ . . . durante três séculos de mi­sérias se falou de um mudo; e eis que êle reedbra sua linguagem abolida, eis que êle se põe a falar dêle mesmo c sôbre êle mesmo” (3 ). Esta “imensa contribuição” atribuída às teses de Foucault nos parece exagerada, já

12 ) Herm es ou la communicationJ cap. “D’Erehwona 1'antre du Cyclope”, Minuit| 1968.Cí) Pág. 169.

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que o essencial continua faltando, isto é, em que medida abandonou-se uma problemática especulativa por uma problemática científica para se tratar destas questões?

Encaremos um aspecto, apenas um, dêsse corpo de considerações de Serres; aquêle que aproxima Foucault (deixar “ a loucura falar” ) de Freud. Esta aproximação nos parece basicamente equívoca, e ela o é porque Freud pensa e produz a “grande regra” (o discurso livre) pen­sando nos discursos psicopatológicos e não propriamente nos discursos da “loucura”. Freud deixou de tal maneira os elementos de uma ciência dos discursos ideológicos a mão, de todos aquêles que o quiserem ler na pureza dos seus enunciados, que é impossível se referir a êle sem pensar o estatuto diferencial dos discursos “normal”, da “ loucura” e dos discursos, enfim, psicopatológicos. Daí porque o “discurso livre” de Freud tem um lugar preciso em sua ciência, e se refere a um tipo de discurso, com a condição de precisarmos suas funções terapêuticas e teóri­cas, que não se confunde com os discursos ideológicos po­lares propriamente. Ora, nós não confundimos o discurso da “loucura” (4 ) com os discursos “perturbados” , sejam êstes últimos discursos psicopatológicos do ângulo (con­flitante) dos discursos “normais” ou do ângulo (confli­tante) dos discursos da “ loucura” . Se fôsse o caso de pensar uma relação qualquer dos discursos da “loucura” com a ciência (contudo nós sabemos que não é a ciência que corta epistemològicamente com a “ loucura” ) (5 ) se­ria o caso então de se pensar numa psicanálise do ângulo da “loucura”, capaz de falar dos desvios discursivos dêste tipo de discurso.

Como aproximar o “deixar falar” do discurso livre da técnica analítica de Freud — quando debruçado sôbre as questões concernentes aos discursos psicopatológicos— com o “deixar falar a loucura” de Foucault, se êste último não se ocupa de um discurso psicopatológico mas de um discurso em si mesmo específico e histórico? O "deixar falar a loucura” é uma questão no interior da

(4) Não podemos nos deter aqui em exaustivas exposições destas nossas posições. Trabalho que realizamos em nosso livro.(5) Ver Introdução do nosso trabalho: "Ciência dos discursos ideo­lógicos”. A relação de corte do discurso da arte — na direção daquilo que chamamos a segunda vertente — é com o discurso da loucura. Paralelamente então com o corte epistemológico que distingue os discursos científicos dos discursos ideológicos “razoáveis".70

subordinação histórico-estrutural do discurso da “loucu­ra” ao discurso “normal” e se destaca do universo assis­tido (fa lar e ouvir) dos discursos “perturbados” tanto do ângulo dos discursos “normais” quanto dos discursos da “loucura”.

Não escondemos o fato de estarmos aqui tocando aspectos, e até mesmo teses, em grande parte desconhe­cidas do público, e que certamente mereceriam explicação detida já que elas suportam todas as nossas críticas. Seja como fôr procuraremos não ir neste artigo além de um questionamento de Foucault em tôrno das questões mais gerais, que desde o comêço lembramos, tais como a au­sência de uma ciência dos discursos ideológicos, impossi­bilidade de refletir a ciência da história, indiferença à distinção dos discursos ideológicos frente aos discursos científicos, etc.

Esta unidade de questões serve tanto mais a uma avaliação da obra de Foucault na medida em que elas estão presentes desde o comêço, isto é, na medida em que o empreendimento teórico de Foucault permanece do co­mêço ao fim o mesmo empreendimento original.

Por exemplo, da afirmação do Maladie Mentale et Psychologie: “Gostaríamos de mostrar que a raiz da pa­tologia mental não deve ser procurada em uma “metapa- tologia” qualquer, mas numa certa relação, historicamen­te situada, entre o homem e o homem louco e o homem verdadeiro” (5 ), ou: “As dimensões psicológicas da lou­cura ( . . . ) devem situar-se no interior desta relação ge­ral que o homem ocidental estabeleceu há praticamente dois séculos consigo mesmo” (6 ), ou: “O reconhecimen­to que permite dizer: êste é um louco, não é um ato sim­ples nem imediato. Êle repousa, na verdade, em um certo número de operações prévias e sobretudo nesta delimita­ção do espaço social segundo as linhas da valorização e da exclusão”. Ou então no Naissance de la clinique: “Aqui, como em outras partes, trata-se de um estudo estrutural que procura decifrar na espessura do histórico as condi­ções da história mesma” ; e logo em seguida: “O que con- la nos pensamentos dos homens não é tanto o que êles pensaram, senão o não-pensado, que desde o comêço do jôgo os sistematiza, fazendo-os para o resto do tempo

(5) Ibid. in "Introduction". d!) Ibid. in “Conclusion”.

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indefinidamente accessíveis à linguagem e abertos à ta­refa de pensá-los de nôvo” (7 ). Quanto ao Les Mots et les Choses e as questões em tôrno das epistemes só nos cabe reafirmar que elas culminam o projeto filosófico de Foucault, êste mesmo projeto que L ’Archéologie du Sa­voir irá procurar discutir e de certa forma retomar ao defendê-lo das questões levantadas pela equipe do Cahiers pour VAnalyse (8 ). Ora, êste último livro nos diz: “Por aí se determina um empreendimento do qual a História da loucura, o Nascimento da Clínica, As palavras e as Coisas fixaram imperfeitamente o desenho. Empreendi­mento pelo qual se esforça por apreender a medida das mudanças que se operam em geral no domínio da histó­ria.” (9 ).

Êste mesmo projeto não foi senão sempre o das “des­continuidades verticais” que G. Canguilhem (10) denun­ciaria como uma espécie de filosofia da história. Ora, todo êste seu último livro é um levantamento sôbre a no­ção mesmo de história, condição para Foucault se referir criticamente à “história das idéias”, e por aí refletir a problemática das “descontinuidades verticais”. Estas epistemes duram a eficacidade dos discursos, tal como na análise da “loucura” e conforme um princípio lingüístico de determinação da estrutura nos espaços discursivos oposicionais (as estruturas binárias: os discursos da “ra­zão” e os discursos da “ loucura” ) e por aí nós os vemos desfrutar uma certa segurança formal.

É em razão pois de tudo isso que Foucault no lugar de encarar as “propriedades” discursivas diferenciais (o corte entre os discursos ideológicos e os discursos cien­tíficos) se basta em trabalhar o espaço unificador subja­cente — e indiferenciado — nas suas relações superficiais. E isto quer mostrar que as distinções, de fato, na histó­ria, entre loucos ( “internamento” ) e não-loucos é surpre­endida apenas na estrutura formal sem que os discursos desçam as suas raízes à complexidade dos discursos ideo­lógicos e suas articulações com as formações sociais. O discurso da “loucura”, por exemplo, preserva como que— através das discriminações históricas sublinhadas por Foucault — uma pureza ideal. E isto quando nós sabe-

(7) Ibid. in "Preface".(8) Cahiers pour VAnalyse, n« 9: Généalogie des sciences, 1968.(9) Ibid. “Introduction”, pág. 25.(10) Critique, n' 242, pág. 612-3.

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mos (mesmo depois de ter diferenciado o discurso da “lou­cura” dos discursos psicopatológicos) que os discursos di­tos “normais” e os discursos da “ loucura” (11) são dis­cursos impuros, seja porque são produzidos como discur­sos ideológicos, seja porque o discurso da “loucura” en­contra-se sempre — histórica e estruturalmente — su­bordinado pelo discurso “normal”. Esta subordinação que nos obrigaria a trabalhar “em campo” para se dar conta do tipo de presença (e de subordinação) que con- junturalmente um discurso exerce sôbre o outro só po­deria na verdade se mostrar numa ciência dos discursos ideológicos capaz de pensar a articulação com a história e a especificidade estrutural de cada um.

Se Bachelard, por exemplo, referiu-se a uma “psica­nálise do conhecimento objetivo” foi no sentido de envol­ver criticamente os discursos em suas implicações histó- rico-ideológicas: isto é, o conhecimento arcaico como uma projeção “ cultural”, etc. O que significa dizer, ademais, que Bachelard, pensador da ciência, sentiu-se obrigado a pensar a totalidade dos discursos. Outra, no entanto, é a direção das geometrizações de Foucault ou de suas reduções epistêmicas. A “arqueologia” se produz como filosofia da história e seu movimento analítico está repleto de uma filosofia apocalítica (a finitude do homem e a representação) que acaba por engolir a pertinência mesma dos levantamentos histórico-discursivos de Fou­cault. Seja como fôr, seria certamente desgastante pro­curar delimitar aqui aquêles lugares onde, na obra de Foucault, a história, as distinções discursivas, a ciência e a ideologia, etc, são como que recusadas em nome de uma aspiração filosófico-lingüística, ademais dirigida a apreender uma estrutura invisível e a fixar as caracte­rísticas da “parole” em suas determinações.

Seja como fôr, e por uma comodidade nossa, em meio às numerosas questões que os trabalhos de Foucault des-

(11) As aspas utilizadas aqui têm a mesma pertinência que aque­las aplicadas à denominação de "primitivo" em etnologia— pelo menos em princípio. Isto é, um discurso é "normal" ou “louco" na medida em que pudermos, mais tarde ou mais cedo, produzir uma ciência dos discursos ideológicos^ e por aí explicá-los. As acepções "normal" e a de "loucura" são certamente arbitrárias, mas enquan­to não fôr possível pensar a totalidade das questões que cercam as "propriedades” dêstes discursos e suas diferenças com os discursos do “corte" todo trabalho aqui será relativamente “filosófico".

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pertam, escolheremos a sua recusa do corte epistemoló­gico (bachelardiano-marxista) e a forma pela qual esta recusa se acha presente em sua obra. Foucault recusa esta distinção, isto é, a distinção entre ideologia e ciência nos têrmos em que a problemática do corte epistemoló­gico se coloca, e para se certificar disso basta citar alguns dos seus textos. Por exemplo, em Maladie mentale et psychologie (12) êle diz, a respeito da psicanálise: “a par­tir dos meados do século X IX o limiar de sensibilidade à loucura baixou consideràvelmente na nossa sociedade; a existência da psicanálise é o testemunho dêste rebaixa­mento na medida em que ela é tanto o efeito quanto a causa do fato” — é claro que aqui, para Foucault, o es­tatuto científico da psicanálise está subsumido entre ou­tros discursos, todos ideológicos, que testemunham uma maior ou menor sensibilidade à loucura na “história”. No Naissance de la Clinique (13) Foucault, em seu laborioso levantamento “ do desenvolvimento da observação médi­ca e de seus métodos durante apenas meio século” não se preocupa em pensar uma clínica — se assim podemos di­zer — não apenas no interior dos discursos ideológicos mas também e sobretudo por respeito aos discursos cien­tíficos. “O que era fundamentalmente invisível se ofe­rece de repente à clareza do olhar, num movimento em aparência tão simples, tão imediato que parece ser a re­compensa natural de uma experiência melhor realizada. Tem-se a impressão de que, pela primeira vez desde mi­lênios, os médicos, livres por fim de teorias e de quime­ras, consentiram cm abordar por si mesmo e na pureza de um olhar, não prevenido, o objeto de sua experiência. Mas é mister voltar à análise: são as formas da visibili­dade que mudaram; o nôvo espírito médico ( . . . ) não é outra coisa que uma reorganização sintática da enfermi­dade na qual os limites do visível e do invisível seguem um nôvo traço” (14). Esta delimitação de um espaço discursivo único nos produtos mais gerais (ideológicos e não) de um dado momento homogeniza os discursos di­ferenciais e mistifica sua articulação com as outras ins­tâncias da história.

Mas êste projeto se mantém e Les Mots et les Choses o realiza amplamente sem destoar em nada de sua tese

(12) Ibid. capítulo, "A loucuraj estrutura global".(13) Ibid. capítulo, "Conclusão”.(14) Ibid.

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fundamental. Por exemplo: “O campo epistemológico que as ciências humanas percorrem não foi prescrito de an­temão: nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que seja ela, nenhuma observação do corpo humano, nenhuma análise da sensação, da imaginação ou das paixões encontrou ja ­mais, nos séculos X V II e XVIII, alguma coisa como o homem; porque o homem não existia (nem tão pouco a vida, a linguagem e o trabalho) ; e as ciências humanas não apareceram quando, sob o efeito de algum raciona- lismo premente, de algum problema científico não resol­vido, de algum interêsse prático, se decidiu fazer passar o homem (bem ou mal, e com mais ou menos êxito) para o campo dos objetos científicos. . . As ciências humanas apareceram no dia em que o homem se constituiu na cul­tura ocidental ao mesmo tempo como o que é necessário pensar e o que há a saber” (15). Ora, Foucault se omi­te de explicar a produção mesma dos discursos (já não digo dos discursos das ciências humanas enquanto dis­cursos pseudo-científicos, como mostra Thomas Herbert (16), êle os tomará como discursos paralelos cuja dife­rença são variações de algumas regras finitas e cuja dis­tinção em última instância deve ser interrogada fora dêles, isto é, numa episteme. A s epistemes formam um todo, uma “alma cultural” spengleriana que Foucault opera na forma de regras (tal como se fôsse um objeto lingüístico), mas que se desprendem múltiplas — descon­tínuas e múltiplas se revelam em seus diferentes discur­sos, isto é ,nos diferentes discursos que constituem “um acontecimento da ordem do saber” (17). E é o próprio Foucault quem diz que êste acontecimento “produziu-se, por uma vez, numa redistribuição geral da episteme” (18).

Não fôsse êste fundo obrigatório (filosófico) que reabsorve as análises críticas de Foucault, nós podería­mos, em certa medida, admitir que as proposições mes­mas, aqui ou ali, presentes em sua obra, o conduziriam ao questionamento dos fundamentos que denunciamos como ausentes em sua obra. Isto é, os problemas todos que envolvem a produção de uma ciência dos discursos

(15) Ibid. Capítulo X.(16) "Reflexions sur la situation tlieorique des sciences sociales.. in Cahiers pour L ’Analyse n* 1 e 2.(17) e (18) Les M ots et les Choses. Cap. X.

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ideológicos. Por exemplo, suas críticas dirigidas às ciên­cias humanas, ainda que distantes da precisão e da fun­damentação das críticas de Thomas Herbert (19), se mos­tram de maneira geral corretas. ( “O que explica a difi­culdade das “ciências humanas”, a sua perigosa familia­ridade com a filosofia, o seu apoio mal definido em ou­tros domínios do saber, e o seu caráter sempre secundário e derivado, mas também a sua pretensão ao universal, não é, como muitas vêzes se diz, a extrema densidade do objeto delas; não é o estatuto metafísico ou a indestru­tível transcendência do homem de que as ciências huma­nas falam, mas antes a complexidade da configuração epistemológica em que elas se encontram colocadas.. .” ) (20). Para Foucault as ciências humanas se centram no “homem” como novidade no coração de uma episteme e pelas dificuldades de uma troca com as três dimensões epistemológicas aí circunscritas (as ciências matemáti­cas e físicas em sua .dedutividade, as ciências da lingua­gem, da vida, da produção e da distribuição das riquezas, e enfim a terceira dimensão como a reflexão filosófica “que se desenvolve como o pensamento do Mesmo” (21), e isto na medida mesma em que se servem das outras ciências para se formalizarem relativamente. Mas esta troca das ciências humanas com as outras “ciências” é compreendida ao nível do jôgo intrínseco às possibilida­des finitas de uma episteme, isto é, fora das “proprieda­des” do seu discurso e no campo das ideologias em geral.

Não que nos pareça errado situar as ciências huma­nas no rol dos discursos ideológicos, mas porque para Foucault tanto elas quanto quaisquer outras ciências se situam em última instância neste motor ideológico único que move com seu sangue a totalidade dos discursos de uma “época”. Mas Foucault não permanece aí, êle vai além e procura circunscrever o “comportamento do ho­mem” (como êle diz) nos têrmos desta episteme, isto é, nos modelos que a ciência dos homens encontra na biologia, na economia e no estudo da linguagem. São suas estas palavras quando êle se refere à economia: “No plano da projeção da economia, o homem aparece como tendo necessidades, portanto interêsses, visando obter lu­cros, opondo-se a outros homens; numa palavra, surge

(19) Ibid.(20) Ibid.(21) Ibid.76

uma irredutível situação de conflito". Ainda que o que Foucault esteja querendo dizer não seja senão que “no plano da projeção da biologia o homem aparece como um ser dotado de funções” e no da linguagem o homem veja as suas condutas como significações da mesma forma que na projeção da economia o homem se tem como necessi­dades, isto é, em conflito; suas apreciações aqui testemu­nham a ausência da questão fundamental das relações destas projeções discursivas e a história. Ou ainda, como pensar a articulação destas determinações projetivas no discurso das ciências humanas e as relações sociais de produção, isto é, a história? O estreitamento artificial do enfoque (tipicamente estruturalista) e seu maneja- mento lingüístico acaba por oscilar o trabalho da análise entre a multiplicidade selvagem do material empírico e a formalização estética de sua solução teórica. Com isto ficam de fora todos os problemas e as questões se reve­lam verdadeiramente ausentes. Já não digo — e com isto volto a me repetir — as distinções entre os discursos ideo­lógicos e científicos, mas a articulação destes discursos com a história. Prova disto é que Marx e Freud (e Saus- sure, subentendidamente) são vistos como atualizações puras e simples dêstes modelos nas ciências humanas, sem que Foucault se esforce, nem mesmo um pouco, para dar conta do absurdo de sua simplificação. Ora, nem Marx, nem Saussure, nem Freud, têm suas “ ciências” atribuídas no outro ideológico, nenhum dêstes cientistas do corte epistemológico trabalhou um discurso Gecundário e ilus­trador dêstes modelos de que se servem as ciências hu­manas para se expressarem. O objeto de conhecimento da ciência da história, da psicanálise e da lingüística saussuriana — no estatuto teórico de um objeto distinto de todo e qualquer objeto real — não pretendem esgotar- -se em têrmos de “norma”, de “regra” e de “sistema”, mas se apropriarem de uma dada realidade na forma de conhecimentos. Isto é, mais do que efeitos de um da­do motor epistêmico constituem discursos específicos que trocam operacionalmente com a história e que a ela per­tencem.

Mas Foucault não pensa assim e sua posição pode ser auferida, sem lugar a dúvidas, dêste seu outro texto: “As “ciências do homem” fazem parte da episteme mo­derna como a química ou a medicina ou qualquer outra ciência ou, ainda, como a gramática e a história natural faziam parte da episteme clássica. Mas dizer que elas

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fazem parte do campo epistemológico significa apenas que nêle enraizam a sua positividade, que nêle encontram a sua condição de existência, que não são portanto ape­nas ilusões, quimeras pseudo-científicas, motivadas ao ní­vel das opiniões, dos interêsses, das crenças, que elas não são o que outros denominam pelo nome bizarro de “ideo­logias”. Todavia, isto não significa que elas sejam ciên­cias.” (22)

Um discurso é um discurso porque desce raízes às epistemes estanques e porisso mesmo parece ser para Foucault algo mais que “ideologia” e algo menos que “ciência”. Ora, o que são afinal êstes discursos senão algo tão misterioso quanto estas palavras de Les Mots et les Choses a respeito das condições dos discursos, isto é, das epistemes como “disposições que desapareceriam tal como apareceram” e “por algum acontecimento que pode­mos, quando muito, pressentir a possibilidade. . .” Os dis­cursos , enfim, se identificam nas regras finitas das epis­temes, e ficam abandonadas ao vazio as distinções entre os discursos ideológicos e científicos, na mesma medida em que por um outro lado Foucault se desgasta em distin­ções relativas incapazes por si mesmas de fundarem uma teoria dos discursos diferenciais.

E é êle quem. diz literalmente que qualquer ciência interrogada “arqueològicamente” revela sempre “a confi­guração epistemológica” que a tornou possível, daí que mesmo procuran-do distinguir a ciência como “outras configurações do saber” , as subordina a êste solo tirâni­co e geométrico. A história, por exemplo, e seu estatuto teórico na ciência da história, fica relegada às disposi­ções misteriosas de uma episteme que nos impõe a con­vicção nova “de que atividades tão particularmente hu­manas como o trabalho ou a linguagem possuíam, em si mesmas, uma historicidade que não podia encontrar-se na grande narrativa comum às coisas e aos homens”. Es­quece a problemática da produtividade conceituai, sua sistemática própria, sua articulação e sua autonomia com a história — reduz-se esta história, produzida pela ciên­cia da história, a uma sucessão de epistemes fechadas em si mesmas, nos têrmos de “história geral” (23). Acredi- ta-se que a distinção de uma história ademais indistinta da natureza e do homem de uma história que se tra-

(22) Ibid.(23 ) L ’Archéologie du Savoir.

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balha nas distintas histórias de suas instâncias é puro reflexo (mesmo se “lingüístico” ) de uma episteme irrom­pida do nada. A ciência da história e a psicanálise são para Foucault as tais “ciências humanas” que êle subli­nha em seu estatuto não plenamente científico, ou não- -científico mesmo, em vista de trazerem em seu bôjo esta carga complexa e ilimitada que é o “homem”.

Mas se por um lado êle é radicalmente indiferente à ciência da história — posição que a partir de Archéologie ãu Savoir começa a se corrigir em parte — já por respei­to à psicanálise Foucault é cheio de mesuras: “A psica­nálise e a etnologia ocupam no nosso saber um lugar pri­vilegiado”. Mas que lugar privilegiado? E as esperanças se desvanecem, diz o autor: “Não decerto porque teriam, melhor do que qualquer outra ciência humana, assente sua positividade e realizado, enfim, o velho projeto de serem verdadeiramente científicas”, mas sim porque no conhecimento do homem “formam por certo um perpétuo princípio de inquietude. . .” Mas isto só pode ser pensado e compreendido, diz Foucault, se analisarmos a posição e a função que preenchem “no espaço geral da episteme”.

Não nos cabe aqui criticar a fundo (24) aquilo que Foucault pensa ser a psicanálise, mas tão-sòmente mos­trar a subordinação à episteme que êle também impõe a esta ciência. Sua análise em têrmos da “representação” e da “finitude do homem”, como conteúdo e objeto da psicanálise, ou da psicanálise como uma ciência do ho­mem que, à diferença de suas vizinhas, dirige-se na mes­ma direção ( “mas com o olhar voltado em sentido con­t rá r io ...” ), constitui para nós outras tantas especula­ções que nada acrescentam ou tiram desta ciência. Da mesma forma se tomarmos esta pergunta de Foucault — ainda no corpo de suas especulações sôbre a psicanálise — , isto é, de que “não é por acaso o “desejo” o que per­manece sempre impensado no âmago do pensamento?” (25), e se considerarmos também sua resposta explici­tamente afirmativa, isto é, de que é êle mesmo (o desejo) que permanece impensado, damos-nos conta então de que, por um outro lado, Foucault procura sepultar na psica­nálise aquilo que ela tem de não-especulativo e portanto de científico.

(24) As questões que neste artigo ficam por aberto se encontram analisadas no livro de onde foram extraídas estas páginas.(25) Les M ots et les C h o s e s capítulo X.

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Freud comenta o “desejo” como aquilo que “ é o mais agradável” , na medida em que o encara como um dos pólos do conflito defensivo, e êste têrmo passa então a ter um lugar preciso na economia de suas explicações dos apa­relhos psíquicos. Por um outro lado — conforme a nossa leitura de Freud — o “desejo” traz em seu bôjo a ques­tão do engajamento da criança (fôrça de trabalho) no trabalho psíquico como processos de trabalho específicos que Freud analisa.

Ora, o abandono dêstes conceitos, precisos e sistema­tizados, do pensamento freudiano, pelas acepções filo­sóficas, muito gerais, do “impensado”, da “finitude do homem”, etc, significa, uma dissolução do discurso psica- nalítico com a qual não estamos em nada de acôrdo. E nos parece o mesmo êrro situar a psicanálise (a etnolo­gia) e a lingüística nos limites dêsse “homem” descober­to e dêsse “homem” que “se começa a matar”. ( “Mas, já que a lingüística não fala do homem, tal como a psica­nálise ou a etnologia, não é isso uma maneira de o con­duzir ao seu fim?” (26). Estas ciências ficam então su­jeitadas a êste postulado em-si de uma episteme nova: o homem descoberto, etc. E dêsse comprometimento das ciências (da história, da psicanálise e da lingüística) com uma “arqueologia” se desprende também um enfoque equívoco da estrutura própria de cada uma delas em par* ticular — as regras que os discursos paralelamente com­binam de forma diferente e que são, a meu ver, insufi­cientes para produzirem o estatuto teórico dêstes discur­sos.

Para Foucault, por exemplo, como ademais para os estruturalistas (27), a lingüística ganha a importância de instrumento cientifizador de tôda e qualquer outra ciên­cia humana. Foucault chega a chamá-la de uma espécie de matemática de nossos tempos, o que eqüivale a trans­portar para a lingüística um grande número de preconcei­tos que cercam o estatuto e o uso que se faz da mate­mática. Isto é, que o uso da matemática produz a “ cien-

(26) Ibid.(27) Foucault pretende não ser um "estruturalista”, mas esta re­cusa se encontra sob diversas formas em cada um dos estrutura- listas.80

tificidade” de outras prováveis ciências (28), ou que ã matemática seja uma ciência de reserva das outras ciên­cias, e com isto se procura ignorar sua estrutura de pro­dução e de reprodução de um objeto de conhecimento. Quanto à lingüística, esta posição só tem a garantir o estatuto ideológico de uma ciência “neutra”, sem com­prometimentos históricos — o que ademais rejeitamos em nossa leitura da lingüística do corte em F. de Saus- sure.

Mas até mesmo esta questão em Foucault é ambígua, pois de um lado a lingüística (e a temática do signifi- cante) dirige todo o seu trabalho, mas de outro lado a lingüística, como tal, aparece para Foucault como indício do desaparecimento do “homem”. E tudo isso, a sua vez, casa mal com o estatuto de uma lingüística em si desta­cada dos conteúdos históricos. A lingüística subjacente no estruturalismo foucaultiano, a lingüística como sinal de uma crise epistêmica e a lingüística como matemática moderna se entrecruzam em seus sentidos e acepções di­ferenciais.

Seja como fôr, o que perdura é sua filosofia da his­tória, suas unidades epistêmicas estanques como objeto subjacente de uma “arqueologia do saber”. No seu penúl­timo livro (29) Foucault acaba por subordinar, uma outra vez, a análise dos discursos em geral e do discurso cien­tífico em particular a uma história arqueológica: “A êste nível a cientificidade não serve de norma: o que se esforça por colocar a nu, nesta história arqueológica, são as prá­ticas discursivas na medida em que elas dão lugar a um saber, e em que êste saber ganha o estatuto e o papel de ciência” (30). E logo depois: “A análise das formações discursivas, das positividades e do saber em suas relações com as figuras epistemológicas e as ciências é o que se denominou, para a distinguir das outras formas possíveis de uma história das ciências, a análise da episteme” (31). Koucault se reafirma e distancia por respeito — não .-tpenas a um tipo de solução — às questões da prioridade

(28) Vide nosso trabalho “Teoria das leituras”. Texto de autores lunsileiros dedicado à problemática da Ciência. Ed. Vozes.(29) L ’Archéologie du Savoir, capítulo "Science et Savoir" pága /■I8-9.(.10) Ibid i :u ) Ibid.

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teórica da ciência da história, da ciência dos discursos ideológicos, do corte, da teoria da ciência e da teoria da história da ciência reaparece e se consolida.

Pouco importa que êle se defenda, e que êle nos diga que podemos suspeitar que esta episteme “ . .. seja qual­quer coisa como uma visão do mundo, um segmento de história comum a todos os conhecimentos, e que imporia a cada um as mesmas normas e os mesmos postulados, um estágio geral da razão, uma certa estrutura de pen­samento. . . ” (32) etc, etc. .. Pois bem, se episteme não é tudo isso, o que é enfim? E Foucault mesmo responde: “Por episteme, se entende, de fato, o conjunto das rela­ções podendo unir, numa mesma época dada, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados: ( . . . ) é o conjunto das relações que se pode descobrir, para uma época dada, entre as ciências, quando se analisa ao nível das regularidades discursivas” (33).

Ora, se não se trata de uma “alma cultural” spengle- riana, de um espírito, de uma natureza, de uma “estru­tura profunda lingüística e inata (Chom sky), se trata ou se poderia tratar destas mesmas coisas à maneira de um enfoque estruturalista-lingüístico. A substância conver­tida ao claro-escuro das relações lingüísticas, da agili­dade e da abstração dos significantes por si mesmos, en­fim a episteme, como diz Foucault, como aquilo “ . . . que toma possível a existência de figuras epistemológicas e das ciências.” (34).

Com tudo isso não podemos estar de acôrdo e nos situamos, criticamente, tal como já permitimos entrever, nas teses mesmas que a recente escola francesa de epis- temologia, que tem em Althusser a sua liderança, mos­trou-nos e desenvolveu através de livros e ensaios nestes últimos anos. Mas muito mais que êstes epistemólogos, os grandes cientistas da história que são Marx, Freud e Saussure — tanto quanto Bachelard (35) — , e cada

(32) Ibid.(33) Ibid., págs. 250 etc.(34) Ibid.(35) E por que também Bachelard? Na medida em que êste pen­sador é um pensador da totalidade dos discursos e que seu trabalho — ainda que de forma insuficiente — pressupõe de todos nós um trabalho de articulação de suas determinações e especificações dos discursos com a história.

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um a sua maneira, testemunharam para nós a importân­cia de uma clara visão da especificidade do discurso cien­tífico e de sua diferença por respeito aos discursos ideo­lógicos. De outro lado, no entanto, suas análises (36) não se detiveram em precisar e aprofundar uma episte- mologia que, à maneira de uma “exposição” definitiva, fôsse o acabamento teórico das ciências novas que pro­duziram.

As questões do corte, do objeto de conhecimento, da apropriação do real pelo conhecimento, da teoria da ciên­cia e da teoria da história da ciência, e enfim, de uma ciência dos discursos ideológicos continua mais ou menos presente, como uma questão aberta, nos trabalhos dos mais significativos epistemólogos da nossa época.

Parece-nos que estas reflexões sôbre a teoria da ciência e a situação de um dos ramos da ciência da his­tória — aquêle que se detém nos estudos das diferenças entre os discursos ideológicos e os científicos — e de como um projeto somente realizado na teoria da história da ciência — que para nós, em virtude da produção teó­rica do conceito de “história da ciência” e do conceito mesmo de ciência, constitui a verdadeira teoria da ciên­cia — , parece-nos enfim que estas reflexões permitem- -nos pensar melhor as questões geralmente levantadas pelas posições adotadas por Foucault.

Não distinguindo êle o discurso científico, pelo me­nos ao nível do corte epistemológico, dos discursos ideo­lógicos e circunscrevendo para êstes discursos em comum estruturas epistêmicas descontínuas, Foucault faz das ciências práticas que desconhecem o fundo sôbre o qual se fazem. Isto é, as reduz às condições dos discursos ideo­lógicos, enquanto discursos que desconhecem-reconhecem e que são contínuos com as formações sociais. Ora, a ver­dade porém é que uma teoria da ciência não constitui uma reflexão “arqueológica” da ciência, pois a ciência não tem senão a si mesma como estrutura, e esta reflexão perfaz aqui como que uma análise que se dirige a esta ausência de solo ou então a uma estrutura autônoma da ciência comparativamente com a prática ideológica e sua conti­nuidade.

(36) Quanto a Bachelard nós podemos inverter os têrmos desta expressão: Bachelard aprofundou suas teses epistemológicas sem trabalhar a fundo a problemática da articulação dos discursos com uma história científica.

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A reflexão do corte epistemológico, como já dissemos, vai além de uma caracterização da estrutura do discurso científico para ser uma análise cujo sujeito é mais a ciência da história que a filosofia da ciência. O que im­pede que ela tome a forma de uma “arqueologia” das ciências senão quando esta arqueologia deixe de ser uma especulação sôbre as ciências e se converta com a ciência da história em teoria da ciência. E se converta, enfim, às questões que envolvem efetivamente esta teoria tais como a necessidade, intrínseca a ela, de ser pensada e elaborada numa teoria da história da ciência. E isto por­que ela — entre outras coisas — ao procurar pensar a transição de “modos teóricos” numa ciência estabelecida vê-se obrigada à elaboração de uma “teoria da constitui­ção” de tal ou qual discurso científico (sua genealogia), o que significa distingui-la das questões em tôrno do corte epistemológico — que ademais ela pressupõe de ma­neira fundamental — visto que estas questões pertencem à “teoria da ciência já clássica” , se assim podemos dizer, e portanto sediadas na ciência da história. Isto é, mais precisamente, a problemática do corte encara discursos diferentes (ideológico e científico) e só pode encará-los na ciência da história, enquanto uma teoria da ciência verdadeira (armada na problemática do conceito de his­tória da ciência, ou ainda na teoria da história da ciência) encara um mesmo discurso e as questões que cercam a sua história específica. Daí que as questões da verda­deira história da ciência sejam, tanto quanto a estrutura do seu discurso específico, os problemas da transição, da constituição de um nôvo “modo teórico”, etc. O que sig­nifica, no caso, produzir teoricamente os invariantes e as combinações dos discursos (científicos), isto é, conhecer a estrutura de produção dêstes discursos.

Enfim, não se pode falar de “arqueologia” das ciên­cias, e a problemática que envolve e fundamenta a teoria da ciência — no seu sentido mais geral — não tem nada a ver como uma tal “ arqueologia”, pelo contrário, ela re­conhece pensando a especificidade e as diferenças do dis­curso científico sua autonomia relativa, seu estatuto re­lativamente desenraizado. E até mesmo tudo aquilo que poderia ser uma episteme circunscrita e descontínua (con­forme a “arqueologia” ) dos discursos ideológicos, cons­titui, para nós, na verdade, tôda uma outra coisa. Isto é, os discursos ideológicos numa estrutura social expli­cam-se nos conceitos já produzidos e se produzindo da

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ciência da história na forma agora de uma ciência dos discursos ideológicos enquanto ciência de uma de suas regiões.

Ê necessário ainda que se previna que se Foucault trabalha com uma grande parte dos conceitos estrutura- listas (37) — significante, descontinuidade, língua, ní­veis, unidades e regras — êle também faz uso de outras tantas noções, mas que nem as primeiras nem as últimas podem nos levar à ilusão de um parentesco entre os têr- mos da “arqueologia” foucaultiana e os conceitos utili­zados pela ciência da história. Aproximação que se tor­nou costume entre os marxistas “festivos” , preocupados que estão em acoplar a ciência da história com tôda e qualquer filosofia esterilizante.

Estas aproximações não devem ser despreendidas do fato de que tôda e qualquer abordagem dos discursos pa­receria levar, como que fatalmente, êste ou aquêle pen­sador às questões que a ciência da história encara. Não se vai espontaneamente à ciência da história, se vai a ela por um trabalho que subverte os têrmos mesmos da “es­pontaneidade” filosófica. Seria ademais ingênuo supor que Foucault estivesse a caminho de uma reformulação de suas posições, pois a análise de sua problemática — no UArchéologie du Savoir — prova o contrário. Esta mes­ma problemática que já tratamos e que é absolutamente incompatível com o corte epistemológico, com as questões da articulação dos discursos com a história (como con­ceito produzido pela ciência da história), com as distin­ções dos discursos “normal” e da “loucura” (e com os discursos psicopatológicos) no interior de uma ciência dos discursos ideológicos. Esta última ciência (que uni­da à psicanálise) se debruçaria sôbre os discursos e pro­duziria a teoria de suas estruturas de produção. Possi­bilitando-nos compreender as diferenças dos discursos em sua dinâmica própria e suas articulações com as so­ciedades de classe e com as sociedades sem classe.

Por exemplo, consideremos agora os têrmos da res­posta (38) de Foucault a 11* questão apresentada a êle pela equipe da revista UEsprit. A questão é: “Um pen-

(37) Mesmo quando êstes conceitos se revestem de outras roupa­gens, tais como os de episteme, discursos, positividades, saber, ar­quivo, etc.(38) JRéponse à une question, M. Foucault: L 'Esprit, maio de 1968.

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sarnento que introduz o constrangimento do sistema e a descontinuidade na história do espírito não retira todo fundamento a uma intervenção política progressista? Não acaba êle no dilema seguinte: — ou na aceitação do sistema, — ou no apêlo ao acontecimento selvagem, à irrupção de uma violência exterior, a única capaz de de­sarranjar o sistema?”

De início Foucault considera correta a questão e re­conhece a verdade das acusações que a êle se dirigem. Isto é, reconhece êle que em seu pensamento está forte­mente sublinhada a importância dos “sistemas” e das “descontinuidades”. Mas êle se defende. Desde logo previ­ne que no seu pensamento não se trata de “sistema” no singular ou de “descontinuidade” no singular, mas de “sistema” e de “descontinuidade” no plural, já que êle, Foucault, é “pluralista” (39). Ê pluralista, confessa Fou­cault, porque seu objeto sempre foi o da individualização dos discursos, para o qual produziu algumas regras de identificação: critérios de formação, critérios de trans­formação, e critérios de correlação (40). Critérios êstes que, segundo Foucault, “permitem subsistir os têrmos da história totalizante ( . . . ) e permitem descrever, como episteme de uma época, não a soma de seus conhecimen­tos, ou o estilo geral de suas pesquisas, mas a separação, as distâncias, as oposições, as diferenças, as relações de seus múltiplos discursos científicos” . Ou melhor, êstes critérios permitem operar distinções relativas entre os discursos que, em última instância, se prescrevem de uma episteme: “ a episteme não é uma espécie de grande teoria subjacente, é um espaço de dispersão, é um campo aberto e sem dúvida indefinidamente descritível de rela­ções” (41), é um objeto real de uma “ lingüística” empí­rica, agora convertida na filosofia de todos os discursos.

São parecidos os argumentos que Foucault utiliza para justificar seu uso radical das “descontinuidades”, e como que não se dando conta que é falsa (e ideológica) a oposição em si do “contínuo” e do “descontínuo” êle procura alimentar suas razões no fracasso das posições “continuistas” em história. Fazendo desta última uma análise descritiva das descontinuidades em suas trans-

(39) Ibid. pág. 851.(40) Ibid. págs. 852-3.(41) Ibid. pág. 853.

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formações (42). Mas o autor da Réponse a une ques- tion mergulha ainda mais na fragilidade de suas po­sições ao se defender dos argumentos da equipe do UEsprit (cuja filosofia “humanista” nós conhecemos e deploramos) que procura criticar o aspecto lingüístico- -formal-abstrato das análises de Foucault. Mas para is­to as “sentinelas” do nôvo (velho) humanismo do U E s ­prit se referem ao conteúdo semântico, humano e histó­rico dos discursos — a intenção dos homeris. Foucault se deixa aprisionar na armadilha — onde ademais sem­pre estêve — e responde afirmando que êstes senhores “têm razão” : “Vocês têm razão: o que eu analiso nos discursos não é o sistema de sua língua, nem de uma maneira geral as regras formais de sua construção ( . . . ) A questão que eu coloco é aquela, não dos códigos, mas dos acontecimentos. . .” (43). Ora, Foucault é um empi- rista, é um hermeneuta das ocorrências, um esquadrinha- dor dos discursos, na medida em que por aí êle produz uma “arqueologia” de suas razões estruturais subjacen­tes : “ . . . o que eu faço . . . é uma arqueologia: isto é, como seu nome indica, de uma maneira aliás evidente, a descrição do arquivo” (44).

Êle descreve as regras empíricas de um objeto empí­rico, “ . .. a massa dos textos que puderam ser recolhidos numa época dada” , e desta esquemática etnografia Fou­cault salta para a etnologia fantástica das epistemes es­tanques.

Ê então, somente depois de se empenhar em justifi­car a validade “teórica” do seu empreendimento, que êle resolve responder, afinal, à questão que lhe foi formula­da: isto é, as relações entre seu pensamento e uma certa prática política. Foucault divide a questão em duas res­postas, a primeira concerne a validade ou não de suas análises e críticas no campo específico dos seus trabalhos: a história das idéias, das ciências, etc. E a outra respos­ta procura encarar a relação entre tudo isso e uma polí­tica progressista. Não queremos negar — como já disse­mos no início dêste trabalho — o papel de Foucault numa certa crítica ao historicismo, mas por outro lado esta “crítica”, de cunho estruturalista, terminou por se dissol­ver na pobreza mesma dos seus fundamentos. A s episte-

(42) Ibid. pág. 858.(43) Ibid. pág. 858.(44) Ibid. pág. 859.

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mes foucaultianas e o “inconsciente vazio” de Lévi-Strauss se eqüivalem. Ademais nenhuma crítica é válida ou du­rável se não fôr exercida no lugar — na problemática científica — de onde ela se justifica e se sustenta teori­camente. A única crítica efetiva e cientificamente indis­cutível ao historicismo foi e é exercida na ciência da his­tória.

Mas isto ainda não é tudo, e, como devemos concluir nossas críticas, perguntamos como pôde Foucault pensar que poderia falar em política à margem de uma ciência da história? Como pode êle — ao aceitar a questão — par­tilhar da idéia de uma “política progressista” ? Ê radi­calmente impossível conhecer ou partilhar — prática e teoricamente — uma posição política senão pela ciência da história e, nesta ciência, pelo estudo da instância do político que nela constitui uma das regiões irredutíveis.

Pois bem, na ausência de tudo isso Foucault justifi­ca seu “progressismo” político no vigor crítico ao “ con- tinuismo” ao “historicismo” e na importância (verdadeira ou não) de suas reflexões sôbre as descontinuidades epistêmicas. Isto é, num mesmo plano que os “espiritua­listas” da revista UEsprit justificam — pela pergunta — uma adesão à “política progressista” dos derradeiros libe­rais do pensamento francês. Uns e outros — Foucault e Domenach — são “espontaneamente” o ser-de-classe a que pertencem, isto é, nas suas fantasias da origem e da ordem êles não são senão a filosofia de suas classes de origem.

E se assim é, e se assim nos parece ser, de nada valem as justificativas de Foucault a respeito das neces­sidades de uma “política progressista” do saber das práti­cas discursivas, de estar a par de tôdas estas informações teóricas que êle, em sua filosofia, produz.

Enfim, a relação da política — já não digo “progres­sista”, mas de classe — com a ciência, e a ciência da his­tória, é como tal uma questão ausente na problemática foucaultiana, e o é na medida em que êle se nega a pen­sar esta ciência e o corolário de questões que a cercam.

Se a descontinuidade horizontal nos permite pensar as articulações dos discursos, e suas diferenças, com a história, a descontinuidade vertical em sua profundidade abismai quer engolir e subsumir estas articulações.

Foucault ao não emprestar uma especificidade epis- temológica, marcada, aos discursos científicos, e aos dis­

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cursos ideológicos, mergulha numa filosofia dos discur­sos em geral, que se prende à coleta — arbitrária — de traços ou enunciados estruturalmente confeccionados no sentido de produzirem “configurações epistêmicas”. O “ impensado” funciona como um princípio de seleção, ra­dicalmente arbitrário, e é aqui, mais do que em qualquer outro lugar, que se sente o pêso da ausência de uma ciência da história e de uma ciência de uma de suas re­giões: a ciência dos discursos ideológicos.

Como se dirigir (45) das configurações epistêmicas ao conflito de opiniões, ou, mais precisamente, como pro­mover as análises das “formações ideológicas” senão através de uma ciência dos discursos ideológicos aplica­da a “conjunturas ideológicas” ? As questões, enfim, do tipo de articulação dos discursos com a história, não é algo que se possa deixar em lugar secundário na análise de suas “propriedades”. Que tipo de articulação se en­contra num discurso ideológico ou num discurso cientí­fico, e como problematizar as articulações, aliás diferen­tes, entre os discursos ideológicos do enfoque psicanalí- tico (da “estrutura de instauração” ) e dos discursos ideológicos de classe social, no enfoque propriamente da ciência dos discursos ideológicos (da “ estrutura elabo­rada” ) ?

Da mesma forma, as questões das “sobrevivências” discursivas (entre as epistemes para Foucault, ou entre as “formações discursivas” para nós) que, em sua com­plexidade, nos levariam à refletir aqui os temas — só recentemente lembrados — da transição e da revolução nas estruturas discursivas. Temas êstes que nos possi­bilitariam compreender as estruturas discursivas (ideo­lógicas) circunstancialmente determinadas com uma es­trutura complexa de “economia de modo” discursivo com a dominância de um dêles. Mas para isto seria preciso que tivéssemos relido tôda a problemática dos discursos ideológicos na ciência da história.

Enfim, caso não distingamos entre ciência e ideolo­gia — para voltar aqui ao tema dominante dêste nosso trabalho — nós ficaremos como que situados num histo- ricismo radical. Isto é, prisioneiros de discursos absolu-

(45) Conforme as questões colocadas pelo corpo diretor da revista Cahiers pour L ’Analyse a Foucault: in Cahiers pour L ’Analyse, n* 9, 1968.

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tamente figurados numa episteme única e indivisível. O “impensado” se deixa manipular em suas “regras”, se deixa “fa lar” em suas descontinuidades radicais, tem a forma de qualquer coisa que a ciência recusa, e à qual ela é indiferente, mas que a filosofia recebe e habita como se fôsse a sua casa.

Seja como fôr, Foucault parece se aproximar, no fim do seu penúltimo livro (46), e numa de suas últimas refle­xões dentro dêste trabalho (se aproximar daquilo que o nega), daquilo que enfim move grande parte de nossas críticas as suas posições. Êle se pergunta pelos limites que estão presentes em sua “arqueologia” ao se interro­gar somente pelos discursos “científicos”. Não será im­prescindível, pensa Foucault, se perguntar também — até mesmo para se ter clareza a respeito dos discursos científicos — pela totalidade das representações discur­sivas? Certamente que sim, e ainda que êle não o diga é necessário produzir uma ciência dos discursos ideológicos, e dar a esta ciência a amplitude de uma abor­dagem que reúne em si os temas da produção em geral no hemisfério discursivo. E Foucault aqui, aparente­mente, vai muito mais longe quando se refere à extensão dêsse objeto que uma “ arqueologia” (melhor seria dizer uma “ciência dos discursos ideológicos” ) abrangeria, e à extensão dêsse objeto se refere na verdade a sua inci­dência com as questões da história e suas manifestações sobredeterminadas nas superestruturas.

Mas a tudo isso Foucault responde (47) na forma de uma incapacidade provisória (expressão sua) para resol­ver de forma segura tais questões.

Êle recusa ser chamado de “filósofo” ( “Se a filoso­fia é memória ou retorno da origem, o que eu faço não pode, em nenhum caso, ser considerado como filosofia” (48) ), da mesma forma como êle recusa para a sua “ ar­queologia” o estatuto de ciência: “É exato que eu não tenha jamais apresentado a arqueologia como uma ciên­cia, nem mesmo como os primeiros fundamentos de uma ciência futura” (49). Ciência a que êle se recusa e que nós recusamos às suas “especulações”.

(46) L ’Archéologie du Savoir.(47) Ibid. pág. 270.(48) Ibid. pág. 268.(49) Ibid. pág. 269.

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A GRAMÁTICA DO HOMICÍDIOP or Sergio Paulo R ouanet

No fim do século passado, Nietzsche inaugurava o duro evangelho da Idade Nova ao proclamar a morte de Deus. O grito deicida de Zaratustra era o clímax de um processo de dessacralização iniciado com o advento do capitalismo, e o sintoma de uma nova forma de organi­zar o saber.

A cultura contemporânea está no limiar de um se­gundo escândalo, tão grave quanto o primeiro: a morte do homem. A burguesia européia tinha enterrado Deus em nome do homem; e o estruturalismo está liquidando o homem em nome do sistema.

A idéia da morte do homem, com efeito, é o tema central da nova cultura. N a lingüística como na etnolo­gia; e na psicanálise como na filosofia política.1

É nessa corrente que deve ser situado o pensamento de Michel Foucault. Mais que qualquer outro escritor, Foucault tem se consagrado à construção de um saber inteiramente despojado de conotações antropocêntricas.

Daí êste ensaio: uma tentativa de estudar um pensa- dor-tipo, que encarna com grande coerência uma das ca­tegorias mais significativas do pensamento contemporâ­neo.

O título do ensaio não traduz nenhuma intenção po­lêmica, mas uma opção teórica. Os dois elementos dêsse título são estritamente descritivos. Gramática: conjun­to de regras de uma arte ou ciência. Homicídio: liqui­dação física de alguém. A justaposição dêsses dois ver­betes de dicionário descreve de forma bastante precisa o

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pensamento de Foucault. A ciência (ou arte?) é uma nova disciplina chamada a “Arqueologia do saber”. E a palavra homicídio deve ser entendida no sentido mais literal: a morte (violenta) do homem. O conceito de ho­micídio é uma simples categoria operatória, escolhida por seu poder explicativo e não por sua dramaticidade. O en­saio em si não é nem pretende ser neutro; mas o título, pelo menos, é axiològicamente inocente.

Talvez a melhor maneira de entrar em matéria seja partir da pergunta que ocorreria imediatamente a qual­quer leitor ingênuo: por que a morte do homem?

Essa pergunta poderia ser respondida escamoteando a análise interna da obra de Foucault. Bastaria recorrer à solução mágica de um certo marxismo, e dizer que a morte do homem corresponde à ideologia da classe tecno- crática que está assumindo o poder nas sociedades in­dustriais. Ê a solução mais confortável; tem a vantagem de desacreditar ab initio a doutrina que está sendo exa­minada, com um mínimo de esforço intelectual, e ainda por cima o crítico ganha títulos de defensor dos valores humanísticos. A receita para êsse tipo de análise é conhe­cida. Por exemplo, o tecnocrata acredita no primado da organização, considera os homens como simples cartões perfurados num circuito cibernético, e domestica a his­tória pondo-a a serviço do sistema, isto é, transformando- -a no repertório de memórias embutidas num computa­dor. Por outro lado, o estruturalista afirma a hegemo­nia das estruturas, anula o homem, e privilegia a sincro­nia sôbre a diacronia. Basta agora derivar uma série da outra, através de um raciocínio analógico-metafórico, e concluir que o estruturalismo é a ideologia da sociedade tecnocrática. É fácil. Mas não é sério.2 O que êsse tipo de análise deixa de lado é que o estruturalismo não é uma doutrina desarmada, que possa ser “demistificada” sem oferecer resistências. A filosofia da morte do homem tem certas defesas automáticas, que precisam em primei­ro lugar ser desmontadas pela crítica. A principal é que ela própria se apresenta como uma doutrina demistifica- dora: seu objetivo central é refutar a abordagem antro­pológica, e a crítica baseada no conceito de ideologia é uma das armas clássicas do arsenal da antropologia. Ao crítico que diz: “A filosofia da morte do homem é uma ideologia da sociedade tecnocrática”, um partidário de Foucault poderia responder: “Mas o conceito de ideolo­gia não é um instrumento interpretativo válido, porque

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se funda numa confusão, típica da mentalidade antropo­lógica, entre o plano da praxis e o plano do discurso”.3 O que é preciso, antes de mais nada, é fazer um exame interno da obra de Foucault. A dimensão social brotaria como uma exigência espontânea dessa análise, e não como uma violência voluntarista imposta de fora para dentro. Um sociologismo ingênuo exporia o demistificador a ser demistificado, e o debate se perderia num jôgo insolúvel de circularidades.

Dessa forma, a pergunta: “Por que a morte do ho­mem?” só pode ser respondida legitimamente a partir da própria obra de Foucault. Ê possível que a análise com­prove a relevância teórica do conceito da morte do ho­mem, e nesse caso não haverá remédio senão absolver os homicidas. A conclusão oposta levaria a uma reavalia­ção do pensamento de Foucault. Mas essa contestação resultaria da própria análise, e não de um dogma.

1. O itinerário do Homicídio

O percurso intelectual de Foucault é composto de dois momentos. O primeiro momento é o da descrição empí­rica de determinados segmentos históricos. O segundo é o da reflexão crítica. N a primeira fase, Foucault des­creve, sucessivamente, o discurso da loucura, o discurso da medicina, e o discurso das epistemes. N a segunda, os princípios teóricos postos em prática intuitivamente nes­ses trabalhos empíricos são isolados e codificados. É o momento da Arqueologia. Convém, antes de passar adi­ante, refazer metodicamente os dois momentos dessa tra­jetória.A História da Loucura na Idade Clássica é o primeiro grande esforço descritivo de Foucault.4 Como o título indica, não se trata de uma história da psiquiatria, mas, literalmente, de uma história da loucura. Ou melhor, das atitudes em relação à loucura. Mais importante que o discurso psiquiátrico é o gesto que instaura a loucura, e a torna pensável para o conhecimento. O saber da loucura é derivado em relação ao gesto original de partilha, à cesura que cinde o mundo da razão e o mundo da desra- zão. A história da loucura não é portanto a história dêsse saber, mas da sensibilidade à loucura no espaço Ocidental. Nessa perspectiva, a história da loucura per­corre as seguintes etapas: a indiferenciação, a segregação e o asilo.

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A primeira fase corresponde à visão renascentista da loucura. N a renascença o louco não é, como na Idade Média, o homem decaído a uma condição bestial pelo ví­cio e pelo desregramento: é o homem essencial, que em sua natureza secreta é furor e desrazão. Os loucos são como os animais do bestiário renascentista, em oposição ao da Idade Média; não são mais as advertências pedagó­gicas contra a animalização do homem, mas a própria verdade do homem. A loucura mostra ao homem da Re­nascença a antevisão de um Apocalipse demente, um Jar­dim das Delícias que está nos Antípodas do Jardim do Paraíso. Bosch não oferece ao seu público a imagem da inocência recuperada, mas o impossível desejo de uma inocência utópica. A ênfase, na literatura, é um pouco distinta. A loucura não é mais verdade do mundo e a essência do homem, e sim o castigo da presunção. A tra­gédia é substituída pela sátira; a experiência da loucura é confiscada pela consciência moral. É essa segunda vi­são que vai pouco a pouco triunfar da visão plástica, em que a loucura é risco e ameaça, espelho e derrisão, ima­gem e aniquilamento do homem. Nos dois casos, entre­tanto, a loucura é imanente ao mundo. Não é Alteridade radical, que se defronta ao homem como o que é alheio à sua natureza, comò o que o nega e anula. A loucura adere à razão, na pintura ou na sátira, em Brueghel ou Erasmo, na consciência trágica e na consciência moral. Como ameaça ou como ensinamento, a loucura está ins­talada na vida quotidiana. “A loucura está ali, no cora­ção das coisas e dos homens, signo irônico que dissolve as fronteiras da verdade e da quimera, guardando apenas a memória das grandes ameaças trágicas — vida mais inquieta que inquietante, agitação frívola, mobilidade da razão” 5

Segundo ato: a grande partilha da razão e da des­razão. O período clássico rompe com a hospitalidade uni­versal da Renascença. Começam a surgir, em tôda a Eu­ropa, casas de reclusão destinadas a abrigar os anti-so­ciais de tôda espécie, inclusive os loucos. O classicismo é a época da grande reclusão. A razão clássica se define negativamente, como tudo o que não é desrazão, e esta é segregada nas casas de internamento. O espaço da razão é demarcado pelo mesmo gesto que demarca o que não é razão. É um gesto de partilha, que delimita o claro e o escuro, e degreda para os confins da Ordem tudo aquilo que escapa aos limites da normalidade clássica. Com essa

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partilha, a razão simultâneamente desenha o perfil do Outro e o próprio perfil. A grande reclusão do período clássico teve causas sociais bastante precisas. Pode ser vista como uma resposta dada pelo Estado ao desemprê- go gerado por uma crise econômica de excepcional gra­vidade. O Hospital Geral abrigava tôdas as vítimas do desemprego, mas também os ociosos em geral, os liberti­nos, os pródigios, os loucos. Dava trabalho aos que não trabalhavam: era uma instância da Ordem contra os que se colocavam fora da Ordem clássica, definida em termos de utilidade social. A loucura se inscrevia no espaço mo­ral da ociosidade. O louco não era essencialmente um enfêrmo, mas um transgressor da ética mercantilista. A loucura não tinha, portanto, qualquer especificidade e po­dia ser assimilada às outras formas de comportamento anti-social. A sensibilidade clássica à loucura é assim a antítese da visão renascentista. A loucura não é mais o desvendamento da essência secreta do homem, mas a per­versão dessa essência, definida sôbre um fundo de mora­lidade social. Não é mais um mundo paralelo, co-existin- do com o mundo da razão, mas o anti-Mundo, um mundo radicalmente outro, constituído negativamente por um gesto de exclusão e degrêdo.

Terceiro ato: o aparecimento do asilo. Com o início do capitalismo, e estatuto social do pobre se modifica. Na economia mercantilista, não era nem produtor nem con­sumidor, e podia ser segregado. Com o advento da revo­lução industrial, o pobre torna-se socialmente indispensá­vel. É a reserva humana que vai operar a grande indús­tria. A s prisões se esvaziam. Há uma crítica política aos estabelecimentos de internamento e outras fundações, acusadas de esterilizar capitais que deveriam ser reinte­grados no circuito produtivo. Além disso, o liberalismo político vai libertar os presos internados arbitràriamente, pela vontade da família ou por lettres de cachet. Todos os grupos que no período precedente coabitavam com os loucos vão sendo restituídos à liberdade, com exceção dos próprios loucos. A loucura é isolada, e passa a ocupar sozinha o espaço da reclusão. Em outras palavras, o lou­co se individualiza. O Hospital Geral, reservado aos an­ti-sociais, é substituído pelo Asilo, destinado exclusiva­mente aos loucos. O asilo libera a loucura para o conhe­cimento; a loucura se torna pensável, e adquire o estatu­to de objeto para o saber.

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0 Nascimento da clínica é a próxima etapa da traje­tória de Foucault. 6 Mais uma vez, não se trata de estu­dar a evolução da medicina, mas de mergulhar no solo mais arcaico que tornou possível essa evolução. Foucault distingue, como na análise anterior, três fases distintas: a medicina classificatória, a medicina clínica, e a medicina anátomo-patológica.

N a medicina classificatória, o importante é situar a doença num quadro de gêneros e espécies. Identificada a doença por sua inserção no quadro, o papel do médico é o de interferir o mínimo possível com a evolução na­tural da enfermidade, que corresponde ao ordenamento ideal da nosologia. A doença é mais importante que o doente e o médico: é uma essência pura, que acede à sua verdade visível no momento em que se integra no espaço plano da classificação. O papel da medicina é velar para “que a configuração ideal da doença. . . se converta em forma concreta, livre, totalizada enfim num quadro imó­vel, simultâneo, sem espessura nem desvio, em que o re­conhecimento se abra por si só sôbre a ordem das essên­cias.”7

N o fim do século XVIII, a clínica começa a desenhar- -se, substituindo o espaço fechado da medicina nosológi- ca. A clínica está ligada a uma nova forma de percepção. N a medicina nosológica, a percepção passava pelo qua­dro, que servia de mediação entre o olhar do médico e a essência da doença. N a clínica, tôda mediação entre o olhar e a doença se dissolve. Abre-se diante do olhar um espaço livre, que correspondia ao grande projeto liber­tário da Revolução francesa — a eliminação de entraves ao comércio de bens e à circulação das pessoas. A doen­ça se oferece inteira à soberania do olhar. O clínico tem assim um poder constitutivo, e por assim dizer produz a doença com seu olhar, ao contrário do médico da fa ­se anterior, mero expectador passivo. O olhar do clínico lê a doença exaustivamente, sem obscuridade nem resí­duo. Os sintomas não são signos que remetem à essência da doença, pois esta é patenteada inteira nos sintomas. Além disso, todo o campo da doença é enunciável. A do­ença pode ser inteiramente vista, e essa visibilidade in­tegral é correlativa de uma enunciabilidade também in­tegral. Não existe uma natureza secreta da doença, invi­sível ou inefável: a doença se oferece sem opacidade ao olhar constitutivo do médico.

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Nos primeiros anos do século XIX, a clínica transita naturalmente para uma nova forma de sensibilidade. En­tra em cena a medicina anátomo-patológica. A clínica era bi-dimensional, e se esgotava inteira na superfície do corpo. A nova medicina abre a dimensão da verticalidade. É uma medicina do volume, e não exclusivamente do pla­no. A nova forma de percepção se instaura com a intro­dução da autópsia na experiência médica. É a autópsia que deverá revelar a verdade da doença, chegada pela morte ao seu têrmo natural. A morte adquire assim um poder pedagógico de elucidação retrospectiva. A morte diz retroativamente a verdade da vida. O método anátomo-pa- tológico substitui a visibilidade em superfície da clíni­ca por uma experiência mais complexa, em que a verdade somente se manifesta pela transição para o inerte. “Co­nhecer a vida só é dado a êsse saber derrisório. . . que a deseja ünicamente morta. . . A morte deixa o seu velho céu trágico. Transforma-se no núcleo lírico do homem: sua invisível verdade, seu segrêdo visível.” 8 O olhar ver­tical do método anátomo-patológico descobre o indivíduo, com a verdade infungível de suas lesões e do seu orga­nismo. O corpo inerte que se desvenda pela autópsia per­tence a um indivíduo particular, cuja doença seguiu um itinerário sui generis, e chegou a um fim singular. Pela primeira vez o saber do individual se toma possível, des­truindo o grande interdito aristotélico, que limitava ao universal o campo do saber possível. B a medicina que libera para a ciência o indivíduo, sôbre a tela de fundo da finitude e da morte.

Enfim, último segmento do projeto descritivo de Fou­cault: palavras e. as Coisas, ou a história das episte-mes. 9 A história da loucura e da medicina incidiam sô­bre zonas especializadas da percepção Ocidental. Nessa nova etapa, Foucault tenta algo como a descrição de to- talidades culturais. Seu método não é, entretanto, o da história das idéias, mas o da história das condições de possibilidade dessas idéias. A unidade de tal estudo é a episteme, isto é, o solo originário a partir de que o conhe­cimento se tornou possível, o a priori histórico que per­mite ou veda determinadas configurações do saber. A cultura européia passou por três epistemes: a renascen­tista, a clássica e a moderna.

A episteme da Renascença é dominada pelo conceito de similitude. A ciência consiste em procurar semelhan­ças entre ordens aparentemente distintas do real. A na­

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tureza é um livro a decifrar, e o trabalho de decifração se reduz a encontrar semelhanças entre os fenômenos, o que é facilitado pelas assinaturas, isto é, marcas impres­sas nas coisas que indicam as analogias entre os diversos niveis da natureza.

A episteme clássica é regida pela categoria da Or­dem. O projeto de todo saber é a constituição de uma ciência geral da ordem, que seria a matesis universal, para as naturezas simples, e a taxinomia, para as natu­rezas complexas. Em outras palavras: a matesis abran­geria as ciências de quantidade, e a taxinomia as da qua­lidade. Todo o real pode assim ser reduzido a um Quadro, que é a esquematizaçao da Ordem. A atividade do espí­rito não consiste mais em aproximar as coisas entre si, como na Renascença, mas em distinguí-las; não se trata mais de decifrar o Semelhante, mas de pensar a identida­de e a diferença, e inseri-las num quadro, com gêneros e espécies, classes e sub-classes, hierarquias e subordina­ções. A possibilidade de integrar no quadro a totalidade do real é dada pelo conceito de representação, que é o grande instrumento operatório da episteme clássica. Na Renascença, entre o signo e o significado havia um ter­ceiro elemento, que era a similitude; para que um signi- ficante pudesse significar, era necessário que fôsse liga­do ao significado por um vínculo de semelhança. Na cultura clássica, o signo torna-se binário; entre o signifi- cante e o significado não existe nada. A relação entre os dois têrmos é arbitrária. Segue-se que os sistemas de signos podem representar tudo; e que tudo pode ser re­presentado pelos signos. Se todo o real é representável, sem qualquer resíduo, sem qualquer faixa de inefabili- dade ou mistério, o projeto da ciência geral da ordem está autenticado, e o quadro geral do saber pode abrigar a totalidade do ser. A idéia da representabilidade uni­versal do réal está contida na gramática geral, na histó­ria natural e na análise das riquezas. A gramática geral estuda a linguagem, um sistema de signos sui generis que tem a propriedade de exprimir tôdas as representações. A história natural reduz todo o campo do visível a um sis­tema de gêneros e espécies, isto é, constitui como descri- tível e ordenável numa taxinomia todo o domínio da em- piricidade. Enfim, a análise das riquezas estuda o fenô­meno da troca, e a moeda como instrumento da troca. A moeda, com efeito, importa menos por seu valor intrínse­co que por sua capacidade de servir de meio de troca,

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isto ê de representar riqueza. A moeda recebe assim séil valor de pura função de signo. A gramática geral, a his­tória natural e a análise das riquezas manifestam assim à capacidade do real de ser exaustivamente representado. Tôda linguagem é nomeável, todo ser é classificável e tô­da riqueza é monetizável: três manifestações convergen­tes da visão clássica, baseada na certeza de que todo o real pode ser representado, e de que tôda representação, expressa pelo Discurso, pode ser inscrita num quadro, instância suprema da Ordem.

N a episteme moderna, enfim, desaparece o espaço da representação. O fundamento do saber se encontra num domínio nôvo de objetividade, além da representa­ção e fora do quadro. Uma nova disposição epistemoló- gica se instaura: a Ordem é substituída pela História. É a história que transforma a ciência das riquezas em economia política, e a história natural em biologia, e a gramática geral em filologia.

N a análise das riquezas a tônica era sôbre a circula­ção, fundada nas necessidades humanas, que eram aten­didas pela troca, cujo instrumento privilegiado era a moeda. Através da moeda, os objetos adquiriam a pro­priedade de se representarem uns aos outros: as riquezas circulavam no espaço tabular do quadro, num circuito indefinido de representações recíprocas. A economia po­lítica fratura o quadro, expulsa os bens do espaço da re­presentação. A ênfase se desloca da circulação para a produção, e esta é fundada no trabalho. O trabalho é externo ao mundo da representação: é uma realidade irredutível, que funda e condiciona a economia. O tra­balho introduz uma historicidade radical no sistema eco­nômico. N a análise das riquezas, não havia propriamente tempo, mas no máximo uma temporalidade circular, ba­seada num jôgo de interações entre a massa monetária e a quantidade de bens disponível num momento dado. Quando a quantidade de moeda aumentava, o preço dos bens se elevava, e sua produção crescia; mas o incremen­to da produção levava à redução dos preços, à diminuição da quantidade de moeda, e ao decréscimo da produção. Com a economia política, surge a temporalidade linear e irreversível. O trabalho acumulado se converte em ca­pital; êste, investido, absorve mão-de-obra adicional, a qual por sua vez, acumulada, se transforma em nôvo ca­pital. Ao tempo circular da teoria quantitativa da moe­

da substitui-se o tempo cumulativo da economia política clássica. Mas a historicidade da economia leva ao fim da história. A fim de atender ao aumento da população, novas terras têm que ser postas em cultivo, e como estas se tornam cada vez mais estéreis, o preço dos víveres cresce cada vez mais, beneficiando os proprietários de terras de boa qualidade, que podem vender a preços ele­vados os gêneros produzidos a baixos custos. Cresce as­sim a renda agrícola, dos proprietários de terras; crescem também os salários nominais dos operários, a fim de per­mitir sua subsistência, em face da elevação dos preços dos víveres. Em conseqüência, há uma tendência à redu­ção progressiva da renda industrial, ou lucro dos empre­sários, forçados a pagar um preço cada vez mais alto pela terra e pelo trabalho. Finalmente, no têrmo do pro­cesso, vem a estagnação econômica. Pressionados por uma taxa de lucros sempre decrescente, os empresários não podem mais empregar mão-de-obra adicional; a po­pulação cessa de se reproduzir; o cultivo de novas terras se torna desnecessário; e a renda agrícola se estabiliza, interrompendo sua marcha ascendente. A história leva à inércia e à petrificação da história. Nessa perspectiva, Ricardo e Marx representam apenas duas opções diferen­tes no interior do mesmo processo. Para Ricardo, a his­tória aparece com seu rosto positivo: graças à dinâmica da história, a condição humana original de carência, ge­rada pela avareza da terra, pode ser parcialmente ven­cida, pois no fim do processo, suprimido o excesso de po­pulação pela contração das oportunidades de emprêgo, a economia, destemporalizada, poderá atender às necessi­dades humanas. Em Marx, a história se apresenta como negatividade, anuladora do homem e responsável pela alie­nação do proletariado. Graças à própria história, em con­dições determinadas historicamente, a classe operária conseguirá reapropriar sua essência alienada na história e pela história, inaugurando uma ordem além do tempo. Ê por isso que Marx não nega a economia política clássi­ca, pois tanto o marxismo como a política representam manifestações de superfície do mesmo fenômeno arqueo­lógico. “Suas gesticulações limitam-se a suscitar algu­mas ondas e desenhar rugas na superfície: são tempesta­des unicamente na piscina das crianças.” 10

Assim como o trabalho constituiu a economia polí­tica áo introduzir a história na análise das riquezas, o aparecimento do conceito de vida introduziu na ciência

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dos sêres vivos as condições de possibilidade de uma his­tória, constituindo a biologia. No período clássico, não existia a vida, mas apenas o ser vivo. Os sêres vivos se concatenavam entre si e com os outros sêres numa ca­deia ininterrupta de continuidades, no interior de um qua­dro. A episteme moderna dissolve o quadro, liberta os sêres vivos, e os emancipa do mundo inorgânico. A s iden­tidades e oposições dêsses sêres vivos, finalmente autô­nomos, não se manifestam mais por Relações de vizinhan­ça ou subordinação* no espaço do quadro, mas se orde­nam em função de um foco unitário — a vida — exte­rior às representações. É da vida e suas exigências que derivam as funções, como a respiração, digestão, repro­dução, que existem em quase todos os sêres vivos como condições necessárias à manutenção da vida; e para que às funções sejam atendidas, existem os órgãos, por sua vez divididos em superficiais e profundos. Assim o ser vivo é definido por um princípio interno de organização, por uma rêde de articulações específicas, cujo fundamen­to último é a vida, e não por sua posição na superfície lisa de uma cadeia de relações espaciais. Além disso, des­de o início do século X IX se esboça uma análise das re­lações entre o ser vivo e suas condições exteriores de existência. Ê assim que Cuvier já notava que a dentição e o aparelho digestivo de certos mamíferos guardavam uma relação definida com o tipo de alimentação de cada animal. Ao definir o ser vivo por sua estrutura interna, e não por sua localização numa taxinomia, e ao postular uma interação entre a estrutura anátomo-fisiológica do animal e suas condições externas de existência, a episte­me moderna permite a introdução da historicidade na vida. O evolucionismo só se tornou arqueològicamente possível com a ruptura da taxinomia clássica, que per­mitiu ao ser vivo, em sua estrutura interna e em suas relações com o ambiente, ser pensado como sujeito de uma história.

N a linguagem, finalmente, ocorre a mesma erosão da Ordem clássica. N a epistemia clássica, a linguagem tinha o poder de representar tôdas as representações. No período moderno, a linguagem continua a representar, mas a representação passou a ser secundária. A palavra não é significativa na medida em que exprime uma re­presentação, mas na medida em que faz parte de uma organização gramatical que assegura de forma autôno­ma a coerência da linguagem. Esta adquire uma espes­

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sura própria, que independe de sua capacidade de expri­mir representações. A linguagem se transforma em objeto para o saber; é liberta do continuum do quadro, e essa libertação desvenda a sua estrutura. Estrutura fun­damentalmente diacrônica: só se torna transparente quando confrontada com seus estados anteriores, e com o conjunto de suas transformações virtuais. A lingua­gem é tôda inteira atravessada pela história. Mas essa historicidade só se revela depois que a linguagem conse­gue evadir-se do espaço quadriculado do saber clássico: depois que deixa de ser a matéria neutra pela qual a re­presentação se representa a si mesma e se transforma em objeto dotado de densidade específica. A filologia é êsse salto mortal da linguagem fora do mundo da represen­tação.

Tanto no caso da economia política como no da bio­logia e no da filologia o fenômeno é portanto o mesmo: o saber abandonando o espaço da representação. N a epis­teme clássica, as coisas e as representações eram indisso­ciáveis — tôdas as coisas eram representáveis, e tôdas as representações, articuladas pelo Discurso, correspondiam a coisas. A modernidade rompeu essa antiga aliança. De um lado estão às coisas, em seus nexos, suas nervuras, sua organização própria; do outro lado, as representa­ções, sempre mais ou menos imprecisas, de uma realidade mais ou menos secreta. Atrás da economia política exis­te o trabalho, atrás da biologia existe a vida, atrás da linguagem existe a história. As coisas só se dão através de uma subjetividade, de uma consciência individual. Através do homem — figura nova, que serve de eixo para as representações, e de filtro pelo qual o ser acede ao sa­ber, quando as coisas se descolam das representações. Personagem essencial, mas precário, gerado pela histó­ria, e sujeito a tôdas as vicissitudes da historicidade, in­clusive ao envelhecimento e à morte.

Nos três segmentos da etapa descritiva existe uma unidade fácil de identificar. Assim, a história da lou­cura, da clínica e das epistemes seguem tôdas o mesmo plano formal. A sucessão é delimitada em fases, segundo um esquema ternário. A historia da loucura abrange a fase da indiferenciação, da segregação e do asilo; a his­tória da clínica passa pela medicina nosológica, clínica e anátomo-patológica; a história das epistemes inclui a episteme renascentista, a clássica e a moderna. Além disso, um confronto dos três discursos permite estabele­

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cer uma correspondência geral entre as diversas fases. Êsse confronto não foi feito pelo próprio Foucault, mas a superposição das etapas é incontestável. Assim, a epis­teme moderna introduz nas coisas uma dimensão de infe­rioridade, e o homem aparece sôbre o fundo de sua pró­pria finitude; a medicina anátomo-patológica substitui o espaço bi-dimensional da nosologia pelo espaço profundo, vertical, do volume, e o indivíduo surge sôbre a tela de fundo da morte; e a fase asilar permite o aparecimento do louco, definido em têrmos de sua própria patologia, e não em têrmos de utilidade social, como no tempo da grande reclusão.

Esgotado o momento descritivo, trata-se agora para Foucault de dar estatuto teórico aos princípios postos em prática na composição dos livros anteriores. Êsse traba­lho de sistematização e codificação é o objetivo da A r­queologia do Saber. 11

Em sua definição mais geral, a arqueologia é a ciên­cia das formações discursivas. A s formações discursivas são conjuntos de enunciados, isto é, segmentos de dis­cursos, definidos não em sua materialidade de átomos mas por sua forma de existência — uma forma de exis­tência que exclui qualquer referência a realidades trans- -discursivas. A tarefa da arqueologia é descrever essas formações discursivas. Tal descrição fôra feita antes no nível empírico e quase intuitivo — assim foi descrita a formação psicopatológica, a formação médica, as várias epistemes, definidas como uma rêde de coerências, numa época,dada, entre as distintas formações discursivas. A arqueologia é uma reflexão crítica e normativa sôbre tais descrições.

As formações discursivas são constituídas por prá­ticas discursivas que determinam: (a ) os objetos, (b ) as modalidades de enunciação dos sujeitos, (c ) os con­ceitos, e (d ) as escolhas temáticas.

Cada formação discursiva comporta um certo núme­ro de objetos, que variam historicamente. Assim os ob­jetos da psiquiatria do século X IX (agitações motrizes, aberrações sexuais, lesões do sistema nervoso central) são distintos dos objetos sôbre os quais falava a psico- -patologia do século X V III (monomania, imbecilidade). Tôda formação discursiva é um caleidoscópio de objetos que surgem e de objetos que desaparecem. Não é possí­vel, numa formação discursiva, falar de qualquer coisa, mas apenas do que é permitido pelas regras de formação

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dos objetos. Segundo Foucault, os objetos se formam pela ação recíproca de superfícies de emergência, de ins­tâncias de delimitações e de critérios de especificação. Superfícies de emergência: as esferas em que afloram os objetos. Tais superfícies variam segundo a formação dis­cursiva e a época. No caso da psicopatologia do século XIX, eram a família, a comunidade religiosa, o meio pro­fissional, cada um com sua normatividade própria, com seus valores, com sua margem de tolerância em relação aos desvios. Instâncias de delimitação: as instituições que definem o objeto e o separam de objetos afins. Essas instâncias foram, para retomar o mesmo exemplo, a me­dicina, como corpo institucionalizado, que separava a loucura da sanidade segundo critérios considerados cien­tíficos; a justiça, que separava o delito praticado por um criminoso penalmente irresponsável de um delito prati­cado por uma pessoa mentalmente sadia; a autoridade religiosa, que separava o comportamento místico-extáti- co do comportamento simplesmente patológico; a crítica literária, que separava a literatura não-convencional mas dotada de valor artístico de uma literatura não conven­cional sem valor artístico. Enfim, critérios de especifica­ção: os sistemas de categorias, pelos quais as definições podem ser formuladas — o corpo, a alma, o jôgo das in- terrelações neuro-psicológicas. A unidade de uma forma­ção discursiva é dada portanto não pelos objetos, que se transformam continuamente, mas por um conjunto de re­lações que permitem ou excluem certos objetos. E como essas relações são externas ao discurso, mas aderem a êste, como sua condição de possibilidade, podemos dizer que os objetos do discurso são constituídos pelo próprio discurso.

Em seguida é preciso determinar as modalidades de env/ncWção dos sujeitos no interior de uma formação dis­cursiva. Ê necessário conhecer o estatuto do sujeito: sa­ber, numa formação discursiva, quem fala, com que tí­tulos, sob que condições, com que autoridade, segundo que sistema de legitimação institucional. Assim, o su­jeito do discurso médico é o médico, cujo estatuto numa sociedade dada tem que ser especificado exaustivamente. Além disso, é preciso determinar o espaço institucional de onde o discurso é proferido: o hospital, o laboratório, a universidade, a prática privada, no caso do discurso médico. Finalmente, é importante definir a postura per- ceptiva do sujeito: ôlho desarmado, como na medicina clí­

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nica, ou munido de microscópio, como o histologista; in­serido na cadeia informativa como receptor ou transmis­sor; autor de artigos, professor na universidade, ou orien­tador de médicos principiantes, na pedagogia hospitalar.

Os conceitos utilizados em cada formação discursiva também não surgem arbitràriamente. São constituídos segundo regras precisas, dadas pelas formas de sucessão, pelas formas de coexistência e pelas formas de interven­ção. Formas de sucessão: a organização hierárquica do campo enunciativo, segundo uma seriação determinada. Cada época e cada formação discursiva têm modalidades próprias de viver essas seriações, tais como a série lei geral/aplicação particular; premissas/inferências; hipó­tese/verificação; fato observado/ teoria explicativa. A história das idéias, por exemplo, verifica que a história natural do século X V III deu conteúdos diversos a concei­tos antigos, como o de gênero e espécie, e criou novos con­ceitos, como o da estrutura. A arqueologia vai mais além, e verifica que essa renovação conceituai não teria sido possível sem uma metamorfose mais profunda, que inci­da sôbre a forma de ordenar as séries enunci ativas. O que mudou, fundamentalmente, foi a maneira de ordenar os enunciados: a maneira de relacionar a descrição com a classificação, as observações particulares com os princí­pios gerais, o que é certo com o que é provável. É a ma­neira de viver e aplicar essas relações de subordinação e dependência que autoriza ou exclui determinados concei­tos. Além disso, os conceitos estão ligados às formas de coexistência entre enunciados, ou os da mesma discipli­na ou de disciplinas afins. Assim a história natural do século X V III recolhe, reformula, autentica experimental­mente ou refuta os enunciados já formulados nesse cam­po ; e estabelece determinadas relações com a cosmologia, a geologia, a filosofia, a teologia, a exegese bíblica, a matemática. Êsse campo de coexistência entre enuncia­dos varia segundo a formação discursiva e segundo a época. Finalmente, as formas de intervenção são os pro­cedimentos pelos quais cada formação discursiva trabalha os seus enunciados: a utilização de uma linguagem na­tural ou formalizada, as formas de sistematização de pro­posições pré-existentes, as técnicas de conversão de enun­ciados qualitativos em enunciados quantitativos, etc. O sistema de formação dos conceitos é constituído pelo fei­xe de relações que se estabelecem entre as formas de su­cessão, de coexistência e de intervenção: os únicos con­

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ceitos possíveis numa formação discursiva são os auto­rizados pelo rigoroso determinismo dessas interações.

Todo êsse jôgo de relações entre as regras de forma­ção de objetos, de modalidades de enunciação e de con­ceitos leva à cristalização de determinados temas ou teo­rias. Assim, o tema da filiação entre as línguas indo-eu- ropéias, na filologia do século X IX ; ou o tema fisiocráti- co da circulação de riquezas a partir da produção agríco­la. A combinatória das regras de formação de objetos, conceitos e modalidades enunciativas autorizaria, em princípio, um número extremamente elevado de temas: mas apenas algumas dessas possibilidades são efetiva­mente realizadas. Os temas efetivos são apenas uma fra ­ção dos temas virtuais. Qual o princípio dessa escolha? Por que alguns dos temas possíveis se realizam e outros permanecem simples virtualidades ? A resposta é que a escolha dos temas obedece a um duplo determinismo: o da constelação discursiva em que se insere o discurso, e o das práticas não-discursivas que definem sua função. Tôda formação discusiva está enquadrada, com efeito, num campo discursivo mais extenso ou de tipo superior. Assim, a gramática geral é um modêlo particular da teo­ria geral dos signos e da representação; e está ligada, por relações de analogia, oposição e complementariedade a outras formações discursivas, como a análise das ri­quezas e a história natural. As escolhas estratégicas es­tão limitadas por essa constelação discursiva; os temas efetivamente realizados na gramática geral são apenas os que são autorizados por suas relações com o discurso de tipo superior — a teoria geral dos signos — e com os discursos adjacentes — a análise das riquezas e a his­tória natural. São excluídos os temas teoricamente pos­síveis à luz de suas regras de formação de objetos e con­ceitos e enunciação, mas que não são autorizados pela constelação discursiva. O outro fator limitativo é dado pela função do discurso em relação a práticas não-dis­cursivas. Assim, por exemplo, a função do discurso eco­nômico na prática do capitalismo nascente, ou da gra­mática geral na prática pedagógica, ou do discurso lite­rário ou artístico como instrumento de gratificação psi­cológica. Essas necessidades nãò-discursivas podem ter manipulado as regras de formação de objetos, de forma­ção de conceitos e de formação de modalidades de enun­ciação de modo a gerar certos temas e a excluir outros, que em teoria seriam possíveis.

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Eis a formação discursiva — algo mais que um sis­tema de objetos, conceitos e temas: um feixe dinâmico de interações, acionadas por uma prática discursiva. E eis a arqueologia: a ciência das formações discursivas.

Qual o objetivo dêsse aparelho tão complexo? O ri­gor científico. Substituir a imprecisão da história das idéias por um exigente positivismo do discurso, que ex­clua qualquer referência a configurações extradiscursi- vas, já que tais configurações pertencem à esfera da do- xologia, e não à esfera da ciência.

Êsse longo exame da obra de Foucault permite vol­tar, com conhecimento de causa, à pergunta inicial: “Por que a morte do homem”

Foucault responde a essa pergunta em dois planos. Em primeiro lugar, no plano metodológico: “A morte do homem é uma exigência científica.” Em segundo lugar, no plano ontológico: “A morte do homem é uma proba­bilidade objetiva, que já se desenha no espaço do saber contemporâneo.” A morte do homem como forma de or­ganizar o pensamento; e a morte do homem como fim de um percurso. O homicídio como técnica; e o homicídio como um acidente na biografia do Discurso.

2. O Homicídio Metodológico

A metodologia da morte do homem está presente em tôda a obra de Foucault. Mas não está presente da mesma forma, nem funciona sempre no mesmo nível. Se­gundo a maior ou menor penetração das práticas extra- -discursivas, e o tipo de funcionamento do homicídio me­todológico, podemos distinguir em Foucault três fases distintas: ( 1 ) a fase transitiva, (b ) a fase intransitiva, e (c ) a fase da arqueologia.

A fase transitiva é a da Histoire de la Folie e da Naissance de la Clinique. A opção anti-antropológica se manifesta apenas na recusa em admitir uma faseologia evolutiva, como a de Comte ou Marx, Sua faseologia é não-vetorial. A história não se desenvolve linearmente, em direção a um telos próximo ou remoto; não é o pro­gresso de uma consciência, a busca de uma perfeição, o enriquecimento cumulativo de um saber. A fase poste­rior não é mais completa que a anterior. A medicina em­pírica e experimental da fase anátoma-patológica não é mais próxima da verdade que a Medicina nosológica; o discurso psiquiátrico de Pinei, da fase asilar, não é mais

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veraz que o de Willy, da fase da segregação; a biologia de Cuvier não é melhor nem pior que a filosofia natural de Paracelso. A s fases são radicalmente descontínuas. Cada fase é uma nova partida, um recomeço absoluto a partir de zero. O que êsse tipo de história exclui é a existência de uma escatologia, ou de uma teleologia: a existência de um nomos_, imanente ou transcendente, or­denando a história segundo uma consciência e em função de um fim. Mas não exclui as práticas não-discursivas. Donde a transitividade dessas análises, isto é, sua poro- sidade às configurações sociais. Quase tôdas as descri­ções do discurso da loucura e da medicina estão explici­tamente enraizadas na vida social. Já vimos alguns exemplos. Assim, na Histoire de la Folie, a segregação surgiu como uma resposta dada pelo mercantilismo a uma grave crise econômica. Todos os que não eram nem pro­dutores nem consumidores eram socialmente inúteis: daí a reclusão de todos os anti-sociais, entre os quais os lou­cos, com o objetivo de integrá-los no circuito produtivo. Os loucos e todos os outros anti-sociais eram vistos sôbre um fundo de reprovação ética: eram transgressores do Código mercantilista, e portanto tinham se colocado na posição de réprobos da Razão clássica. Com o início do capitalismo liberal, surge a necessidade de mão-de-obra para a indústria, e todos os anti-sociais, com exceção doB loucos, vão sendo libertados. Simultaneamente com as necessidades econômicas, a prática política vai exercer uma grande influência; o liberalismo político vai esva­ziar as prisões de todos os que tinham sido presos arbi- tràriamente, sem julgamento regular e sem plena sal­vaguarda dos direitos individuais. Restam os loucos. A loucura é isolada, e pela primeira vez é vista em sua sin­gularidade. A loucura se torna pensável: o discurso psi­quiátrico pode se instaurar. N a história da medicina, a mesma influência dos fatores sociais e políticos. A me­dicina classificatória era fechada em si mesma. O caso particular se tomava inteligível quando inserido em gêne­ros e espécies, no espaço do quadro, e êste se atualizav» no caso concreto. A circularidade era completa. Ehhb, forma de percepção médica muda no fim do século XVIII. Surge a idéia de uma medicalização generalizada, com o objetivo de extinguir inteiramente a doença. Para «tin­gir êsse objetivo, é preciso que os médicos se multipli­quem, no campo como nas cidades, que haja uma vigilân­cia contra a doença, que cada cidadão tenha uma conn»

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ciência médica, como deve ter uma consciência cívica. O olhar médico deixa de estar circunscrito por um quadro fechado, e abre-se num campo livre e socialmente difuso. “À estrutura plana da medicina classificatória sucede esta grande figura esférica. Nela, o espaço médico pode coincidir com o espaço social, ou antes, atravessá-lo e pe­netrá-lo inteiramente. 12 A medicina clínica, com suas estruturas perceptivas inéditas, surge nesse espaço livre aberto pela Revolução francesa. “Êsse campo médico, restituído à sua verdade de origem, e percorrido inteira­mente pelo olhar, sem obstáculo, sem alteração, é estra­nhamente semelhante, em sua geometria implícita, ao es­paço social com que sonhava a Revolução, pelo menos em suas primeiras formulações.. . Um espaço de livre circulação em que a relação das partes ao todo fôsse sem­pre transponível e reversível. Existe pois uma conver­gência espontânea, e profundamente arraigada, entre as exigências da ideologia política e as da tecnologia médi­ca.” 13

Les Mots et les Choses é o momento da intransitivi- dade. Foucault deixa de lado o problema da imbricação das práticas não-discursivas nas práticas discursivas, e examina as regularidades discursivas em si mesmas: as regras segundo as quais, num determinado espaço cultu­ral, certos objetos, temas e conceitos podem aflorar, à exclusão de outros, vedados pela configuração vigente. O discurso só se relaciona com o próprio discurso. A s formações discursivas surgem, aparentemente, por gera­ção espontânea. A s grandes constelações epistemológi- cas nascem e se transformam sob a ação de leis que não chegam a ser explicitadas. Como surge a episteme clás­sica? E a moderna? Por que no século X V IU a lingua­gem tinha o privilégio de representar tôdas as represen­tações, e as coisas o de ser exaustivamente representadas pela linguagem? Por que no século X IX as coisas e as representações se descolam? Mistério. A mudança das epistemes é vista como uma resposta a novos aconteci­mentos ocorridos no plano do próprio discurso. As posi- tividades e ciências são deduzidas por um encadeamento puramente interno, segundo a lógica imanente do discur­so. O discurso é dotado de uma mobilidade própria, que é de fato uma sucessão de imobilidades. É por isso que a Arqueologia foi descrita por seus detratores como uma Keologia. Não se trataria de história, e sim de análise c.stratigráfica. A sucessão é dividida em segmentos fe­

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chados, em “flashes” de eternidade. 0 cinema ê substi­tuído pela lanterna mágica. A diacronia aparece como uma sucessão de sincronias superpostas. Ê — aparente­mente — a expulsão definitiva do homem. O triunfo do homicídio metodológico em sua versão mais radical. A história humana — a história do homem, enquanto su­jeito de seu discurso, e agente de sua gênese, de sua transfomação, de sua dissolução — é substituída por uma história do discurso — em que a gênese, a transformação e a dissolução aparecem como acidentes enigmàticamente ocorridos na superfície do próprio discurso. Uma análise mais cerrada mostra que essas críticas não são total­mente justificadas. Em nenhum momento, Foucault nega a influência decisiva das práticas não-discursivas na for­mação do discurso e em suas vicissitudes. Apenas, o exa­me da interação entre as estruturas discursivas e as não- -discursivas não entra no quadro de suas análises. Em Les Mots et les Choses. Foucault está interessado em outra coisa: no exame das regularidades discursivas que presidem, num período histórico definido, à formação e à transformação de positividades como a gramática, a economia, e história natural, e determinam, para cada uma, o repertório de objetos, conceitos e temas possí­veis. Foucault acreditava que essas regras poderiam ser descritas no plano exclusivo do discurso — pelo menos provisoriamente. Ora, é certo que o que pode ser enun­ciado e a forma de enunciar dependem fundamentalmen­te da constelação discursiva vigente, e das relações que se estabelecem entre estruturas discursivas; mas é igual­mente certo que são as práticas não-discursivas que vão impor seus limites e sua forma a essas relações. É por isso que as análises extraordinàriamente finas de Les Mots et les Choses permanecem abstratas e, em definiti­vo, inconclusivas — ficamos sem saber como surgem as epistemes, qual a lei de sua transformação, e de que for­ma a episteme como um todo ou cada uma das positivida­des que a integram se articulam com o não-discursivo. É um livro que exigia um segundo volume; ou outro li­vro.

E aqui entra em cena o terceiro momento — o da Arqueologia. Ã primeira vista, a “Archéologie” nada mais é que uma longa polêmica contra o sujeito. O ho­micídio metodológico atinge aqui dimensões quase ma­níacas. Convém, portanto, delimitar com algum rigor o

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projeto anti-antropológico da Arqueologia, antes de pas­sar adiante em nossa análise.

Ésse projeto comporta dois elementos principais: a instauração de uma história descontínua, e a dissolução das unidades que tradicionalmente funcionam como ob­jeto da descrição histórica.

A especificidade de Foucault em relação aos outros teóricos da morte do homem está em sua escolha da di­mensão diacrônica para articular sua obra. Desafia o adversário em seu próprio terreno: nega o homem no eixo da história, até êsse momento considerado o refúgio da consciência antropológica. O estruturalismo “vulgar” podia dar-se ao luxo de expulsar o homem porque opera na linha da sincronia; é fácil, então, privilegiar o siste­ma, pois na ordem das simultaneidades o sujeito não pre­cisa desempenhar um papel muito dinâmico. A audácia de Foucault consiste em aceitar a provocação da diacro- nia, e instalar a morte do homem no cerne da história. Mas Foucault não corre nenhum risco. Sua história é muito diferente da história humanista tradicional. E isto porque, como vimos no discurso da loucura, da medicina e das epistemes, para Foucault a história é essencial­mente descontínua. Ê uma história cataclísmica, feita de rupturas e descontinuidades. Não é o desenrolar previsí­vel do Mesmo, e sim uma série de mutações inaugurais. É fácil entender as implicações dessa visão da história. A história contínua é o abrigo privilegiado da consciên­cia. “Fazer da análise histórica o discurso do contínuo é fazer da consciência humana o sujeito original de todo fiori e de tôda prática: são faces do mesmo sistema de pensamento.” 14 Uma história descontínua, por outro la­do, exclui qualquer antropocentrismo. A sucessão das fases obedece a uma legalidade puramente discursiva, sem qualquer referência a uma teleologia ou a uma sub­jetividade fundadora. A história descontínua nega todo projeto, divino ou humano: não pode ser nem a manifes­tação da Providência, nem o desdobramento do Espírito, nem o campo da ação da praxis, individual ou coletiva. O tempo da descontinuidade é, no sentido mais literal, o tempo do desaparecimento do sujeito.

O segundo elemento é a dissolução das unidades sig­nificativas da descrição histórica. Tradicionalmente, a história das idéias descrevia teorias, ideologias, dscipli- nas, sistemas filosóficos. A Arqueologia “despresentifi- ca” essas unidades. Em sua existência imediata, tais uni­

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dades, como se oferecem ao olhar do historiador, estão corrompidas até a medula pelo veneno antropológico. Daí sua substituição pelas formações discursivas, entidades depuradas que funcionam exclusivamente no nível do dis­curso. Movem-se num ar rarefeito, mortal ao homem, mas hospitaleiro às estruturas. Mas a Arqueologia não é uma proposição anti-antropológica apenas em seus princípios gerais: todo o complexo arsenal de novas categorias in­troduzidas por Foucault parece ter como função princi­pal evitar a contaminação do antropologismo. Vale à pena, nessa perspectiva, lançar um segundo olhar às re­gras da formação de objetos, conceitos, modalidades enunciativas e estratégias temáticas.

Qualquer descrição ortodoxa dos objetos de uma dis­ciplina tem que postular um vínculo entre as coisas e um sujeito. Um objeto, enquanto entidade material, é objeto para uma consciência. É o que se trata de evitar. Para a arqueologia, o objeto não está ligado nem às coisas nem ao sujeito: é um feixe de relações, e não uma enti­dade material que possa ser referida a uma subjetivida­de. O objeto é inteiramente constituído por relações dis­cursivas. O sujeito, na época clássica, não podia falar de qualquer coisa nem constituir qualquer objeto ligado ao saber da loucura, más apenas das coisas e objetos autori­zados pela interação das superfícies de emergência, das instâncias de delimitação e dos critérios de especificação. A substituição dos objetos materiais por objetos relacio­nais tem a vantagem de dissolver o real: de despresenti- ficar às coisas. Ê preciso “conjurar sua rica, pesada e imediata plenitude, que habitualmente era considerada a lei primitiva de um discurso que dela se afastaria unica­mente por êrro, esquecimento, ilusão, ignorância ou inér­cia das crenças e tradições, ou ainda pelo desejo, talvez inconsciente, de não ver e não dizer. Substituir o tesouro enigmático das coisas anteriores ao discurso pela forma­ção regular de objetos que somente se desenham nêle. Definir êsses objetos sem referência ao fundo das coisas, e em função do conjunto de regras que permitem formá- -los como objetos de um discurso e constituem as condi­ções de seu aparecimento histórico. Fazer uma história dos objetos discursivos que não os mergulharia nos sub­terrâneos comuns de um solo originário, e que se limi­taria a desdobrar o nexo das regularidades que regem a sua dispersão.” 15 Dissolver as coisas não significa apenas nem principalmente eliminar um referente externo ao dis­

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curso: significa eliminar o sujeito como fonte geradora de significações. O discurso não é um conjunto de signos produzidos por alguns homens e significando determina­das coisas: é um discurso autoproduzido e auto-referen- te. As coisas não se dão a uma consciência através de um discurso; é o discurso que constitui seus próprios refe­rentes, sem necessidade de uma consciência ligada ao real por uma relação perceptiva.

A análise das modalidades de enunciação, ao contrá­rio, parece supor inevitavelmente a intervenção do sujei­to. É a questão fundamental entre tôdas, contida na per­gunta: “Quem fala?” Mas ainda aqui Foucault formula a sua resposta em têrmos não-antropológicos. Não se trata, na análise arqueológica, de identificar sujeitos reais, com uma existência histórica definida, mas de de­terminar a série das posições possíveis do sujeito que fa­la. A medicina clínica não se define, por exemplo, a par­tir da introdução do conceito de tecido por Bichat, e sim como o relacionamento, no discurso médico, de um certo número de elementos distintos, como a localização insti­tucional de onde os médicos falavam, seu estatuto jurí­dico e social e sua posição como sujeitos que percebem, observam, descrevem, ensinam, etc. Tais relações são instauradas pelo próprio discurso clínico, e não pela consciência dos médicos. O olhar clínico tem um papel constitutivo no exame e caracterização da doença: mas é por sua vez constituído por um conjunto de interações que independem do sujeito que olha, fala e escuta. O dis­curso clínico não é assim formado pela unidade do su­jeito, e sim por sua dispersão; o médico tem que operar no quadro de relações impostas, pré-existentes ao olhar clínico. “N a análise proposta, as diversas modalidades de cnunciação, em vez de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão. Aos diversos estatutos, às diversas localizações, às diversas posições que êsse sujeito pode ocupar ou receber quando profere um discurso. E se êsses planos são ligados por um sistema de relações, tal sistema não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si mesma, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela especificidade de uma prática discursiva. . . O discurso, assim concebido, não é a manifestação, solenemente des­dobrada, de um sujeito que pensa, conhece e diz: é, pelo contrário, um conjunto em que se determinam a disper­são do sujeito e sua discontinuidade com êle próprio.. .

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Não é nem pelo recurso a um sujeito transcendental nem a uma subjetividade psicológica que se deve definir o regime das enunciações próprias a uma formação discur­siva. 18

As regras de formação dos conceitos se fundam, igualmente, na exclusão de todo sujeito. Os conceitos são dados sobre um fundo pré-conceitual, constituído não por consciências mas por interações imanentes ao próprio discurso. Os sujeitos não são livres de constituir quaiquer conceito: só podem ser formados os conceitos autoriza­dos pelo sistema das relações que se articulam entre as formas de sucessão, de coexistência e de intervenção: é o determinismo do discurso que permite ou veda a produ­ção dos conceitos, independentemente da vontade dos in­divíduos. “N a análise proposta, as regras de formação se enraízam não na mentalidade ou consciência dos indi­víduos, mas no próprio discurso; impõe-se, portanto, se­gundo uma espécie de anonimato uniforme, a todos os indivíduos que se propõem a falar nesse campo discursi­v o . . . A s regras de formação dos conceitos não são o resultado, depositado na história e sedimentado na es­pessura dos hábitos coletivos, de operações efetuadas por indivíduos; não constituem o esquema descarnado de to­do um trabalho obscuro, no curso do qual os conceitos teriam emergido, através das ilusões, preconceitos, erros, tradições. O campo pré-conceitual deixa aparecer as re- gularidades e coações discursivas que tomaram possível a multiplicidade heterogênea dos conceitos.” 17

Enfim o campo das escolhas temáticas: aqui é quase inelutável a introdução do sujeito. Afinal, alguém pre­cisa constituir certos objetos, atualizar certos conceitos, efetuar certas opções temáticas, excluir opções alternati­vas, também possíveis dentro do sistema. No magno in­terstício de liberdade que se abre entre duas estratégias possíveis, deveria em princípio haver lugar para a sobe­rania de um sujeito. Engano: segundo Foucault, a apro­priação do discurso por práticas não-discursivas (confis­co do discurso econômico pela burguesia, por exemplo) não é extrínseca ao discurso, mas resulta das leis do pró­prio discurso. A s opções não se exercem no vazio, e sim no campo das necessidades discursivas. Sc duas escolhas são possíveis, essas duas possibilidades são dadas no pró­prio discurso. “Convém notar que as estratégias não se enraízam, aquém do discurso, na profundidade muda de uma escolha ao mesmo tempo preliminar e fundamen­

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tal. . . Nem a análise das riquezas nem a história natu­ral, se interrogadas ao nível de sua existência, de sua unidade, de sua permanência e de suas transformações, podem ser consideradas como a soma dessas opções di­versas. Estas, pelo contrário, é que devem ser conside­radas como formas sistemàticamente distintas de tratar objetos do discurso. . . de dispor formas de enuncia- ção. . . de manipular conceitos. . . Essas opções não são germes de discurso. . . e sim formas ordenadas e descri- tíveis como tais de atualizar as possibilidades do discur­so. 18 Em suma, é o discurso que é livre, e o homem que é determinado: a suposta liberdade temática do sujeito é uma liberdade segunda e fantasmagórica, outorgada pelo próprio discurso. Ao atualizar determinadas estra­tégias, o homem é agente do sistema — funcionário do discurso.

Eis — aparentemente — a Arqueologia. Uma ten­tativa polêmica de ordenar e codificar a metodologia da morte do homem. Ora, êsse julgamento seria superficial. Entre Les Mots et les Choses e a Archéologie existe uma verdadeira diferença de nível. Não somente no sentido de que no primeiro Foucault f a z um trabalho descritivo e no segundo uma análise metodológica. Mas no sentido, mais radical, de que a Archéologie representa um esforço de síntese entre os dois momentos de sua prática descri­tiva — o da transitividade e o da intransitividade. Como na fase transitiva — da história da loucura e da clínica— Foucault trabalha de nôvo com as práticas extradis- cursivas. A s classes, as técnicas, os complexos institucio­nais reaparecem. Mas — e aí intervém a metodologia da intransitividade — não reaparecem da mesma forma. Na Archéologie, as práticas sociais são “despresentifiçadas”, reduzidas ao pré-discursivo, e portanto, num certo sen­tido, ainda ao discursivo. Assim, nas regras de forma­ção de objetos, as coisas são dissolvidas, e o discurso passa a ser referente de si mesmo; nas regras de enun- ciação dos sujeitos, o sujeito material é abolido, e subs­tituído pelo somatório das posições possíveis do sujeito que fala; nas regras de formação dos conceitos, as pos­sibilidades de conceptualização são imanentes ao próprio campo discursivo, num momento dado; e nas regras para a formação de temas, a apropriação do discurso por prá­ticas não-discursivas resulta da legalidade do próprio dis­curso. A conclusão dessa análise parece ser a de que

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quem fala no discurso e aquilo sôbre o que se fala é o próprio discurso.

A Archéólogie tem assim elementos para desconten­tar a todos, imparcialmente. Aos humanistas nostálgicos, por sua implacável guerra contra o sujeito; aos admira­dores do virtuosismo intransitivo de Les Mots et les Choses, por sua preocupação com o nível extradiscursi- vo; e aos marxistas dogmáticos, pela sem-cerimônia com que “desmaterializa” as práticas sociais. E no entanto não podemos evitar a sensação de que com a Archéologie Foucault entra num terreno nôvo, em que tem, até certo ponto, razão contra os três grupos de críticos.

A guerra contra o sujeito, em primeiro lugar. A in­dignação com que foi recebida essa tese básica de Fou­cault é em certos casos explicável, e em outros resulta de um mal-entendido. É claro que os historiadores da consciência e os cronistas do gênio individual teriam que se rebelar contra uma historiografia em que justamente a biografia da consciência não é pertinente. Ê uma posi­ção inaceitável, em geral, para todos os que direta ou in­diretamente advogam o idealismo transcendental do su­jeito. Mas é menos claro por que os partidários de uma historiografia “científica” se escandalizariam com a ex­clusão do sujeito, em seu nível metodológico, que é o que nos interessa neste capítulo. Num certo sentido, com efeito, não pode haver ciência sem uma expulsão corre- lativa do sujeito. Tôda a marcha da Razão ocidental se caracteriza sempre por uma série de descentramentos sucessivos do sujeito. O primeiro, como lembra Freud, ocorreu quando Copérnico descobriu que a terra não ocupava o centro do universo; o segundo, quando Darwin descobriu que o homem não ocupava um lugar privilegia­do no mundo animal; o terceiro, quando a psicanálise descobriu que a vida consciente do homem constituía ape­nas uma fração de sua vida psíquica total. 19 O progres­so da ciência, nesses exemplos, está em razão direta da colocação entre parênteses do homem. Nas ciências exa­tas, o critério da cientificidade de um enunciado é sua capacidade de ser controlado em bases inter-subjetivas, o que é uma forma de eliminar tôdàs as interferências do sujeito: a proposição é válida quando o sujeito (o obser­vador) pode ser neutralizado. N a lingüística e em al­guns domínios das ciências humanas, a utilização do con­ceito de estrutura, correlativo de uma visão na qual o sujeito individual é regido por um sistema cuja lei não

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está presente à consciência, tem funcionado como um ele­mento cientificamente renovador. A filosofia contempo­rânea que quis fundar de forma mais radical a cientifici- dade do saber, a fim de chegar a enunciados apodíticos— a fenomenologia — procedia por uma série de epoches, uma das quais foi a epoche do sujeito psicológico. Mas— diria o marxista — trata-se de uma ciência positivista, e no caso da fenomenologia, de uma filosofia abertamen­te idealista. Ora, é precisamente no marxismo que o su­jeito desaparece da forma mais radical. Para o marxis­mo, os sêres humanos só existem encarnados em estru­turas, cujo sistema permanece inacessível à consciência individual, até o seu desvendamento pela ciência da his­tória. A história não é o palco em que gesticulam gran­des homens — reis, generais, benfeitores da humanidade, mas a sucessão de etapas marcadas pela formação e dis­solução de estruturas. Nesse nível, portanto, a polêmica foucaultiana contra o sujeito se inscreve numa tradição científica que já deveria estar consolidada. Atacar o su­jeito tem assim algo não de escandaloso mas de ingênuo: parece uma agressão inútil contra um inimigo um pouco ridículo. O vigor da reação contra Foucault, entretanto, mostra que essa polêmica era oportuna, e que os parti­dários da soberania do sujeito não depuseram as armas.

Em segundo lugar: com a Archéologie, dizem outros críticos, Foucault teria desertado a pureza da descrição discursiva, onde justamente residia a sua riqueza e sua originalidade. Sua abertura às práticas sociais represen­ta um retrocesso para posições antropologistas, apesar de tôda a veemência de suas investidas anti-antropológicas. Essa crítica é, na verdade, uma homenagem implícita a Foucault. É evidente que o brilhante exercício descritivo de Les Mots et les Choses tinha culminado num impasse. Impossível, sem multiplicar as aporias, continuar traba­lhando num universo em que o discurso é seccionado de suas articulações com a vida. Les Mots et les Choses marca um limite que não pode ser transposto. Continuar no nível discursivo puro, depois dêsse esforço extremo de abstração, seria condenar-se a não poder pensar em sua verdade o próprio discurso. Para poder pensar o discur­so, é necessário, num certo sentido, sair dêle. Donde o es­forço de clarificação metodológica da Archéologie.

Terceiro: a Archéologie, segundo outros, procuraria mascarar a importância das práticas extradiscursivas na formação e transformação do discurso. A críLica não é

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válida, mas é compreensível. A s invectivas contra o su­jeito são tão violentas e freqüentes que o leitor menos atento pode pensar que o foco principal do livro é a des­truição do sujeito, e como a problemática do homicídio é o grande tema de Les Mots et les Choses somos leva­dos, insensivelmente, a pensar a Archéologie em sua con­tinuidade com Les Mots et les Choses, esquecendo a no­vidade radical do primeiro em relação ao segundo. Essa novidade consiste na tentativa sistemática de descrever as práticas discursivas em sua articulação com as não- -discursivas. Se depurarmos a Arqueologia de sua apolo- gética anti-antropológica, veremos que atrás dêsse asce­tismo do discurso existe uma constante preocupação com a “embreagem” do discursivo no não-discursivo.

Veja-se, por exemplo, o que Foucault diz sôbre o “acontecimento” na dinâmica do discurso. A Arqueolo­gia, segundo êle, analisa a forma e o grau de permeabi­lidade do discurso, define o princípio de sua articulação sôbre uma cadeia de acontecimentos sucessivos, e identi­fica os operadores pelos quais os acontecimentos se ins­crevem nos enunciados. Assim, as crises monetárias nos séculos X V II e X V III influenciaram conceitos e objetos do discurso econômico, e a epidemia de cólera em 1832 permitiu, no discurso médico, o desaparecimento de ve­lhos objetos e conceitos, e o aparecimento de novos. A Arqueologia admite explicitamente a possibilidade de no­vos enunciados em correlação com acontecimentos exte­riores. Além disso, para explicar o desaparecimento e o advento de formações discursivas tem que especificar um sistema de transformações em vários níveis, que incluem não somente as transformações entre relações propria­mente discursivas, como transformações de fatores nor­malmente classificados como externos ao discurso, tais como o nível de desemprego, as decisões políticas sôbre as corporações e a Universidade e as novas possibili­dades de assistência no fim do século XVIII, fatores li­gados ao aparecimento da medicina clínica.

Ou consideremos o que diz Foucault sôbre as rela­ções entre o discurso e a vida: “Atrás do discurso aca­bado, o que descobre a análise das formações não é, fer- vilhaiite, a própria vida, a vida ainda não capturada; é uma espessura imensa de sistematicidade, um conjunto cerrado de relações múltiplas. . . ” 20 Bem analisado, não há nada de chocante num texto dêsse tipo. Afinal, sabe­mos todos que atrás do discurso da economia política não

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existe apenas a consciência de Smith ou Ricardo, ou as aspirações da classe industrial nascente, mas uma rêde de sistematicidades de caráter institucional, cultural, lin­güístico, em que essas aspirações se refratam, e que exi­gem que certos objetos, conceitos, estratégias temáticas, sejam atualizadas, de preferência a outras. Reformula­do nesses têrmos, o texto é não sòmente aceitável como enriquecedor.

O mesmo se pode dizer de tôdas as categorias da Arqueologia. A s regras para a formação de objetos, por exemplo, pressupõem a ação de superfícies de emergên­cia, como a família e a comunidade religiosa, ou de ins­tâncias de delimitação, que são as instituições que defi­nem o objeto e o separam de objetos afins. As regraa que definem a posição do sujeito emanam diretamente de contextos institucionais que autorizam determinado tido de discurso. As regras para a formação de temas, enfim, resultam, em grande parte, da função das práticas não-discursivas, que se apropriam de determinados dis­cursos: por exemplo a prática do capitalismo nascente articulando-se no discurso econômico e a prática peda­gógica articulando-se na gramática geral.

Em todos os casos, atrás dos infatigáveis ataques contra o sujeito e o antropologismo, o mesmo escrúpulo em encadear o discursivo no não-discursivo. Através de análises, ao fim e ao cabo, fundamentalmente materialis­tas. Pois é da essência do marxismo afirmar que a liber­dade dos grupos sociais concretos de formar suas visões do mundo não se exerce no vazio, e tem que mergulhar em tôda a rêde de determinações sócio-culturais que o sujeito encontra diante de si quando tenta agir e pensar. Ou afirmar ( “o homem só se propõe as tarefas que pode realizar” ) que as relações sociais constituem um solo, um a priori histórico, no qual podem ou não aflorar de­terminadas ciências ou teorias, com seus objetos, concei­tos, modalidades enunciativas e escolhas temáticas. Ape­nas um exemplo: segundo Marx, como se sabe, Aristóte­les não pôde analisar até as últimas conseqüências o con­ceito de valor porque tal análise era socialmente impos­sível na cultura grega. A essência do conceito de valor é o trabalho humano: uma casa pode ser trocada por um navio na medida em que existe a mesma massa de tra­balho incorporada em ambos, ou seja, na medida em que têm o mesmo valor. Essa idéia não era pensável na sociedade grega, baseada na escravidão e portanto na

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desigualdade dos vários tipos de trabalho humano: im­possível imaginar como unidade de valor um trabalho humano homogêneo, e que só poderia ser concebido com o advento do trabalho assalariado. N a linguagem de Foucault, o solo epistêmico da sociedade grega vedava, e o da sociedade capitalista autorizava, a formação do conceito de valor. 21

Nesse caso, cabe a pergunta: em que consiste a con­tribuição de Foucault à problemática da “embreagem”, se todos êsses conceitos são susceptíveis de uma leitura marxista?

A resposta é que Foucault tenta pensar o problema em têrmos distintos do marxismo mecanicista que vê no discurso a emanação pura e simples da infra-estrutura econômica. Foucault se insurge com razão contra o dog­ma que se obstina em ver nas formações discursivas o reflexo das formações sociais em que emergiram. Sem dúvida, foram as condições econômicas, como o desem- prêgo, que levaram a um certo tipo de hospitalização, e portanto de observação médica e de prática hospitalar, que permitiram a emergência do conceito de tecido; mas êsse conceito não “exprime” as condições econômicas da França no século XVIII. O vínculo entre as formações discursivas e as não-discursivas não é portanto de tipo “expressionista”. Mas êsse vínculo existe, e deve ser pro­curado na superfície do “ saber”. O saber é o domínio dos objetos que adquirirão ou não estatuto científico, o espaço no qual os sujeitos assumem determinadas posi­ções para falar dêsses objetos, o campo enunciativo em que os conceitos aparecem e desaparecem, e o conjunto das possibilidades de apropriação temática que permitem a atualização de determinadas estratégias. É, em suma, um conjunto de regras definindo os objetos possíveis, a posição dos sujeitos em relação aos objetos, os conceitos e os temas que podem se constituir. E essas regras ema­nam diretamente do não-discursivo, ou do pré-discursivo. Assim, o não-discursivo engendra o campo do saber, no qual a formação discursiva recortará os seus objetos e constituirá seus conceitos e temas. O que é determinado pelas práticas sociais, assim, não é o conteúdo do discur­so, mas as regularidades discursivas que permitem a emergência de determinados objetos e conceitos. Através da mediação do “saber” entre as formações sociais e as formações discursivas. Foucault tenta evitar o sociolo-

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gismo, que vê no conteúdo do discurso a presença das condições que o produziram.

Foucault não leva mais além a sua teorização sôbre a problemática da “embreagem”. Mas essas indicações fragmentárias são extraordinàriamente sugestivas, e per- mitem-nos antecipar, com interêsse, tanto um trabalho teórico destinado a pensar sistemàticamente a articula­ção do discursivo e do não-discursivo, quanto novos tra­balhos descritivos, como o livro, já anunciado, sôbre a criminologia, em que as categorias da Archéologie se­jam postas em prática. 22

Resumindo: o homicídio metodológico é uma espécie de denominador comum a tôdas as obras de Foucault. Mas funciona de uma forma distinta em cada caso, e com objetivos diferentes. N a fase transitiva, sua função é permitir uma história não-teleológica, e sem referência a consciências individuais; na fase intransitiva, destina-se a pôr de lado, provisoriamente (poderíamos falar em epoche arqueológica) todos os elementos que possam in­terferir com uma descrição discursiva pura; e na Arqueo­logia, funciona como instrumento polêmico contra a his­toriografia do sujeito, e contra um marxismo mecanicis- ta que vê nas formações discursivas um simples reflexo dag condições econômicas.

3. 0 Homicídio Ontológico

Mas a morte do homem como exigência metodoló­gica é apenas um dos componentes da gramática do ho­micídio. O outro componente é antológico: a morte do homem já está inscrita no horizonte do saber atual. Como? Examinemos com mais vagar a resposta de Fou­cault.

No quadro “Las Meninas”, de Velasquez, estão re­presentados vários personagens: a pequena infanta Mar­garida; ao seu lado, duenas solícitas; um anão de côrte; um espectador misterioso, que aparece no fundo do qua­dro, atrás de uma porta; e o próprio pintor, empunhando a palheta. Todos os olhares convergem para um ponto fixo, que não aparece no quadro. Que ponto é êste? A resposta está indicada no quadro. No meio da sala, há um espelho, e refletidas no espelho, duas silhuetas. São os modelos do pintor: o rei e a rainha. O quadro existe em função de um foco: mas êste foco é exterior ao qua­dro. O rei de Velasquez é espetáculo mais que expecta- dor; soberano, mas invisível; presente, mas apenas como

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reflexo num espelho, isto é, como representação entre outras representações.

N a episteme clássica, o homem era tão ausente como o rei de Velasquez. Num espaço em que as coisas se ofe­recem inteiramente através das representações, e estas exprimem exaustivamente as coisas, o homem é supérfluo. Se a verdade do ser é dada, sem resíduo, por uma série de representações ordenadas num quadro, não há lugar para uma entidade encarregada de conjurar, do fundo secreto do ser, a intimidade das coisas.

Ao fraturar o espaço do quadro, a episteme moderna libera as coisas das representações. A verdade do mun­do econômico e do mundo lingüístico não é mais dada através das representações, e aloja-se numa esfera mais profunda, irredutível às representações. A representação não esgota mais a totalidade do real: êste é muito mais rico que qualquer representação, e a representação pas­sa a ser um simples epifenômeno de um domínio que se dá à consciência apenas sob a forma — imprecisa e sem­pre parcial — de um reflexo. Nesse momento, o rei sai da sombra, e passa a ocupar o centro da composição. A nova configuração exige um olhar carnal, capaz de de­vassar o mundo secreto das coisas.

O homem surge na brecha ontológica formada quan­do as coisas se retiram para sua própria inferioridade, segundo as leis da vida, do trabalho e da linguagem. Mas essa nova figura exerce uma soberania ambígua. Ê in­dispensável como instrumento pelo qual as coisas se dão ao olhar, uma vez rompida a cumplicidade com a repre­sentação. Mas ao mesmo tempo, o homem é escravo das coisas, muito mais arcaicas que sua consciência, e que o esmagam com o pêso de sua irredutível anterioridade. É através do homem que a vida, o trabalho e a lingua­gem acedem ao saber; mas sua existência concreta é con­dicionada por essas entidades, já que é somente através das palavras que profere, dos objetos que fabrica e do seu organismo que pode ter acesso à sua essência e pen- sar-se como objeto de conhecimento. Assim, desde seu nascimento o homem está marcado pelo estigma da fini- tude. Essa finitude se desvenda por um duplo movimen­to, que vai das coisas ao homem e do homem às coisas. Pelo primeiro movimento, o saber da vida, do trabalho e da linguagem remetem inexoravelmente a uma finitude fundadora. A ciência da vida mostra que o homem está exposto à erosão da vida, através do envelhecimento e

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da morte; a ciência do trabalho mostra que o homem está sujeito às leis de ferro da produção e da carência original; a ciência da linguagem mostra que o homem está mergulhado no determinismo de um sistema lingüís­tico incomensuràvelmente anterior à sua consciência. Mas a experiência da finitude pode ser vivida a partir do pró­prio homem. Brotando dessa vivência primitiva, o saber poderia ser constituído, num movimento inverso ao pri­meiro. Assim, o homem toma consciência do seu corpo- -fragmento de espaço que se articula com o espaço das coisas e com o tecido dos sêres vivos; apreende-se como sede de desejos, os mesmos desejos que fundam o valor de uso dos objetos da economia; e sabe-se dotado de lin­guagem, a partir da qual é possível fundar o discurso humano. Através de uma experiência original, o homem sente-se finito no tríplice eixo de sua mortalidade bio­lógica, de sua alienação no sistema produtivo e na sua inserção num universo lingüístico pré-existente. N a raiz das três positividades empíricas — a biologia, a economia política e a filologia — encontra-se a finitude do homem. Existe assim uma identidade de estrutura entre um saber empírico, que remete ao homem como ser finito, e as di­versas manifestações da finitude humana, que se abrem para as positividades empíricas. A morte genérica, que rói as entranhas de todo ser vivo, é a minha própria morte; o desejo, que liga e separa os homens no interior do processo econômico, é o mesmo a partir do qual as coisas são desejáveis para mim; o tempo da linguagem humana é o mesmo tempo no qual se desenrola o meu próprio discurso. A positividade do saber tem como seu negativo a finitude do homem, que funda essa positivi­dade; e a positividade do homem tem como seu negativo o caráter finito do saber empírico, através do qual o ho­mem se descobre e se instaura.

O homem é por conseguinte ao mesmo tempo empí­rico e transcendental; objeto de conhecimento e funda­mento de todo saber. Como ser empírico, o homem é dado através da análise da vida, do trabalho, da língua; como ser transcendental, é a fonte fundadora da biologia, da economia, da filologia. O fracasso das várias tenta­tivas feitas, no interior da episteme moderna, para fun­dar o saber do homem a partir do homem está ligado à ambivalência dessa situação. O positivismo, o marxismo e a fenomenologia constituem três soluções dadas à ques­tão do fundamento do saber. Para o positivismo, o saber

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se funda na verdade do próprio objeto; para o marxismo, a objetividade está fundada numa verdade em formação, que se configurará, escatològicamente, num tempo futu­ro; para a fenomenologia, a dicotomia reflexão empírica- -reflexão transcendental se dissolve na análise do vivido, definido como o espaço em que todos os conteúdos empí­ricos são dados à experiência e como a forma originária que torna possíveis êsses conteúdos. N a realidade, essas três tentativas são arqueològicamente equivalentes. Cor­respondem tôdas ao mesmo projeto impossível: o de fun­dar o saber empírico através dos próprios conteúdos em­píricos; basear a reflexão transcendental — fundadora— na análise descritiva dos conteúdo3 que se trata de fundar. Ora, a episteme moderna não pode proceder de outro modo, pois seu quadro de referência é o homem, e êste é precisamente o ponto de cruzamento do empírico e do transcendental. O projeto fundador poderia ser bem sucedido unicamente em outra configuração epistemoló- gica: na perspectiva da morte do homem.

Se a positividade do homem se define sôbre um fun­do de finitude, e se as coisas só se dão parcialmente à sua consciência, já que a uma essência humana finita só pode corresponder um saber também finito, segue-se que existe sempre um resíduo de realidade que não acede à consciência. A faixa de realidade que pode ser pensada tem sempre como correlativo uma faixa impensada. O Cogito cartesiano se baseava numa identidade de natu­reza entre o ser e a representação: o “penso” podia tran­sitar com facilidade para o “ existo”, porque o primeiro têrmo (a representação) e o segundo (o ser) eram ho­mogêneos e coextensos. O ser se dava inteiramente no espaço da representação. N a episteme moderna, domi­nada pelo pêso das coisas sôbre o homem, a esfera do Cogito está longe de ser coextensa com a esfera da rea­lidade. Como posso ser esta vida que ine transborda? Como posso ser êste trabalho, cujas leis se impõem a mim com tôda a inércia de uma necessidade natural? Como posso ser esta linguagem, cujo sistema me escapa e cujas regras não sou livre de transformar? A reflexão sôbre o homem tem como tela de fundo uma dialética do pensado e do impensado, o que penso é apenas uma fra ­ção do que não penso ainda, ou do que não posso pensar nunca. O saber meridiano está sempre rodeado de uma zona de sombra. O homem é uma coexistência estrutu­ral do pensado e do impensado. O impensado no homem

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se dá sob a forma de Outro. Êsse Outro nasceu ao mesmo tempo que o homem: seu duplo, sua penumbra, sua ver­dade recôndita ou sua maldição. N a fenomenologia he- geliana, foi o An sich em face do Fur sich; para Scho- penhauer, foi o Unbewusste; o homem alienado, para Marx; o implícito e não-atualizado, para Husserl. A exis­tência do impensado impõe ao homem uma tarefa: a de absorver, na medida do possível, essa zona de sombra. Todo pensamento moderno é atravessado por um impera­tivo -— o de pensar o impensado. Ê o fundamento da ética moderna. A normatividade do Cogito que quer apre­ender o impensado substituiu as antigas normatividades religiosas. É a palavra que quer fazer falar o silêncio, o movimento que quer ativar a inércia. A ética moderna busca refletir na forma do Para-Si os conteúdos do Em- -Si: á luta pela desalienação do homem deve ser enten­dida sôbre o fundo da tensão entre Cogito e o impen­sado. “O conhecimento do homem, à diferença das ciên­cias da natureza, está sempre ligado, em sua forma su­perficial, a éticas e políticas; mais fundamentalmente, o pensamento moderno avança na direção em que o Outro do homem deve converter-se no Mesmo que êle.” 23

Se ó homem é um ser constituído integralmente pela historicidade das coisas, sua reflexão sôbre sua própria origem e sôbre sua própria historicidade tem que se fundar na historicidade da vida, do trabalho e da linguagem. O homem se desvenda no coração de uma historicidade já constituída. Como ser vivo, está ligado a uma vida que começou muito antes dêle; como ser que trabalha, está prêso a um sistema de relações de produção muito mais antigo que o seu próprio nascimen­to; como sujeito de um discurso, está inserido num sis­tema lingüístico anterior à sua existência. Sua medita­ção sôbre a origem se processa sempre sôbre o pano de fundo de uma realidade já em curso. Cada objeto que manipula, cada necessidade que manifesta, cada palavra que profere o confrontam com um tempo infinitamente arcaico, através de uma cadeia de mediações cujo pri­meiro elo se perde no fundo de uma inacessível cronolo­gia. No momento em que o homem se pensa em suas relações com as coisas, articula-se com tôdas essas histo- ricidades externas, e percebe que sua própria origem não pode ser conhecida. Sua vida, seu trabalho, súa lingua­gem, se cristalizam no já vivido, já produzido, e já dito. Mas essa impossibilidade de aceder à sua própria origem

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não é apenas uma limitação. Ê também um privilégio: ser sem origem, é através dêle que as coisas encontram sua origem. O homem é a abertura a partir da qual o tempo pode se constituir: a condição para que as coisas façam sua entrada no domínio do saber, com sua histori­cidade própria, e no momento devido. O homem é o ser sem origem a partir do qual a reflexão sôbre a origem se torna possível — fruto do tempo, e condição de tôda temporalidade. Daí a tentativa positivista de inserir a cronologia do homem no interior da cronologia das coi­sas, transformando esta última num capítulo da duração mais geral dos sêres; e à tentativa oposta, mas arqueo- lògicamente equivalente, de subordinar o tempo das coi­sas ao tempo humano: o desvendamento da verdade das coisas no momento em que acedem ao saber através do conhecimento. Uma e outra repousam, como fundamento de sua possibilidade, no atributo soberano do homem de refletir sôbre o tempo, de constituí-lo, e de ordená-lo. Daí também a eterna tentação da filosofia Ocidental de pro­curar a verdade do homem no reencontro com a origem. De Hegel a Marx e Spengler o pensamento moderno pri­vilegiou o tema de uma consciência que por sua própria dialética interna chega à sua consumação, e no extremo da curva, inflete sôbre si mesma, e recaptura a origem, em todo o seu frescor matinal, mas com todo o pêso das sedimentações históricas. A origem aparece assim como o já vivido, mas também como o não-vivido do homem; mergulha no passado, mas aparece também como uma promessa, como um objetivo e como uma tarefa. A ori­gem é o que precisa ser pensado pelo homem, para que a sua verdade se atualize: e a atualização, sempre adia­da, dessa verdade, é o reencontro impossível com a ori­gem. Simples ruga na duração das coisas, mas fonte de tôda historicidade, o homem está condenado à repetição do já vivido, na perspectiva de uma história ainda por vir.

Tôda a reflexão sôbre o homem se funda nesse "qua­drilátero antropológico”, cujos elementos são uma analí­tica da finitude, um projeto de constituição transcenden­tal d'o saber através dos conteúdos empíricos, uma dialé­tica do Cogito e do impensado e uma meditação sôbre a origem. É sôbre essa base e dentro dêsses limites que se instaura a antropologia contemporânea.

A reflexão antropológica, característica da episteme moderna, não corresponde a nenhuma preocupação radi­

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cai com a constituição de um reino humano — é o simples subproduto de uma configuração epistemológica que des­cola as coisas das representações, e que exige o advento de uma nova figura, capaz de pensar as coisas fora do espaço da representação. Essa filosofia esbarra numa dificuldade insolúvel, que é a de fundar o transcendental no empírico, e de legitimar o saber empírico através dos próprios conteúdos empíricos. Êsse paradoxo representa o fim da filosofia — ou o seu sono. Não se trata mais, como no tempo de Kant, de despertar a ciência do seu sono dogmático, mas de livrar a filosofia do seu sono antropológico. Somente assim o pensamento poderá li­bertar-se dos seus paralogismos, e reconquistar o direito à reflexão livre. É preciso destruir até os seus fundamen­tos a idéia do homem, e o quadrilátero antropológico composto da finitude, do empírico-transcendental, do im­pensado e da origem. Hoje em dia o pensamento só é possível no vazio do homem assassinado. “A todos os que querem falar ainda do homem, do seu reino ou de sua libertação, a todos os que se interrogam sôbre a essên­cia do homem, a todos os que querem partir dêle para aceder à verdade. . . a única resposta possível é um riso filosófico — isto é, parcialmente silencioso.” 24

As ciências humanas surgiram simultâneamente com o homem: quando deixando o espaço da representação, os sêres vivos se alojaram na vida, as riquezas no tra­balho e as palavras na historicidade lingüística. Se o ho­mem se define por suas relações com a vida, o trabalho e a linguagem, é claro que as ciências do homem têm que girar em tôrno da biologia, da economia política e da fi­lologia. Nenhuma delas, entretanto, pode ser considera­da como ciência humana. E isto porque o objeto das ciências humanas não é o homem, tal como é dado nas positividades empíricas, mas a representação que o ho­mem se forma do mundo que habita. Para as ciências humanas, o homem não é o ser vivo com certas caracte­rísticas anátomo-fisiológicas, mas o ser que do fundo da vida constitui representações graças às quais pode ex­primir sua vida; não é o ser que trabalha e fabrica obje­tos, mas o ente que forma representações sôbre a vida em sociedade, sôbre os outros protagonistas do sistema econômico, sôbre as relações de produção, vividas em sua verdade ou de forma mistificada; não é o ser que fala, mas o que do interior da linguagem, é capaz de repre­sentar o sentido das palavras que enuncia e o próprio

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sistema lingüístico. As ciências humanas não são por­tanto a análise do que é o homem em sua natureza, mas do homem enquanto fonte das representações. Mas se nem a biologia, nem a economia política nem a filologia são ciências humanas, constituem em compensação a ba­se que autoriza a formação das ciências humanas. Em têrmos muito genéricos, poderíamos dizer que a psicolo­gia é a ciência humana que se articula com a biologia; a sociologia, a que se articula com a economia política, e a análise das literaturas e dos mitos, a que se articula com à filologia.

As ciências humanas são organizadas de acôrdo com certas categorias analíticas. Na superfície da biologia, surgiram as categorias da função (capacidade de receber estímulos externos e de responder a êsses estímulos) e de norma (que permite ao homem exercer suas funções); na superfície da economia, as categorias de conflito (re ­sultante do desejo, da necessidade e do interêsse) e da regra (maneira de ordenar o conflito de forma social­mente aceitável); e na superfície da linguagem, a cate­goria da significação (qualquer conduta humana está sempre ligada a um sentido, isto é, sempre procura ex­primir alguma coisa) e de sistema (conjunto coerente de significações). Cada um dêsses pares funciona de forma privilegiada no domínio a que estão ligados, isto é, na psicologia, na sociologia, na análise dos fenômenos cul­turais, mas podem ser extrapolados para qualquer dos domínios adjacentes. A s três dicotomias: função/norma, conflito/regra e significação/sistema — atravessam to­do o campo das ciências humanas. No início do século XIX, a ênfase era posta no primeiro têrmo de cada par: função, conflito e significação. Mais tarde, houve um deslocamento no interior de cada par, e o acento foi pôs- to no segundo têrmo: norma, regra, sistema. Com êsse deslocamento, a dimensão do inconsciente foi integrada nas ciências humanas. Tanto a norma, como a regra e o sistema são dados à representação, mas não necessaria­mente à consciência. A consciência ingênua pode perfei­tamente exercer funções vitais sem se dar conta da exis­tência da norma; entrar em conflitos sociais sem perce­ber explicitamente a regra que permite resolvê-los; ge­rar significações sem perceber o sistema que as rege. Com a vitória do ponto de vista da norma, da regra e do sistema sôbre o ponto de vista da função, do conflito e da significação, a episteme moderna se aproxima de uma

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nova configuração, que se desenha de forma ainda inde­cisa no horizonte do saber. Mais uma vez: o próprio das ciências humanas não é o homem. Não foi o homem que as criou, mas a episteme moderna, que as institui, e lhes dá a possibilidade de tomar o homem como objeto. A ciência humana existe não onde existe o homem, mas onde se analisam, na dimensão própria do inconsciente, as normas, regras e conjuntos significativos que regem o mundo da vida, do trabalho e da linguagem.

As ciências humanas não são meros fenômenos de opinião; não podem ser reduzidas a simples manifesta­ções de superfície ou a formações ideológicas. Mas tam­bém não seria possível considerá-las, na exata expressão do têrmo, como ciências. Existem apenas como configu­rações secundárias, alojadas nos interstícios da econo­mia, da filologia e da biologia: essa vida parasitária as impede de aceder ao estatuto científico. Não são, por­tanto, falsas ciências, como querem os partidários da re­dução ideológica — simplesmente não são ciências. O mesmo espaço epistemológico que as constitui impediu as disciplinas do homem de aspirar à cientificidade. A l­go mais que a opinião, algo menos que a ciência, a refle­xão sôbre o homem faz parte do domínio positivo do sa­ber, mas não constitui um corpo de enunciados cientí­ficos.

A História é uma disciplina de excepcional impor­tância para as ciências humanas, porque foi através da historicidade das coisas que o homem se constituiu em sua finitude. Se o homem histórico é o homem que vive, trabalha e fala, todo enunciado da História está ligado quer à psicologia, quer à sociologia, quer às ciências da linguagem. Nesse sentido, a análise arqueológica revela a dispersão e não a unidade da História, cuja especifici­dade é assim discutível. Mas ao mesmo tempo, os con­teúdos da psicologia, da sociologia e das ciências da lin­guagem são atravessados de ponta a ponta pela histori­cidade. A História constitui para as ciências do homem uma moldura ao mesmo tempo acolhedora e arriscada. Para cada uma dessas ciências, a História proporciona um conjunto de coordenadas temporais, que lhes ofere­cem um solo e por assim dizer uma pátria; mas ao mes­mo tempo destrói sua pretensão de funcionar no elemen­to da universalidade, porque sua existência é vista como historicamente condicionada, e surgida num certo mo­mento do tempo.

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Contrapondo-se às ciências humanas, e impregnan­do-as por inteiro, a psicanálise e a etnologia operam di­retamente no campo do inconsciente. As ciências huma­nas também avançam para o inconsciente — a descober­ta da norma, da regra e dos sistemas, que não são dados à consciência ingênua, mas apenas ao pensamento refle­xivo — mas de forma indireta, e num movimento regres­sivo. A psicanálise ataca diretamente o inconsciente, e ao contrário das ciências humanas, que permanecem sempre no campo do representável, procura atravessar a representação, e fazer brotar, não as normas, as regras e os sistemas, mas as condições de possibilidade das nor­mas, das regras e dos sistemas. Nessa região, se dese­nham as três figuras básicas do freudismo: a MorLe, con­dição de possibilidade da vida, com suas funções e suas normas; o Desejo, condição de possibilidade do trabalho, com seus conflitos e suas regras; e a Lei, condição de possibilidade da linguagem, com suas significações e seus sistemas. Essas figuras são as próprias formas da fini­tude humana, fundamento de todo saber sôbre o homem. Ê porque a psicanálise funciona na região, situada nos confins da representação, em que todo saber encontra seu fundamento, que não pode ser considerada uma ciência humana: é antes uma contra-ciência, porque ao mesmo tempo funda e demistifica as demais, A etnologia é tam­bém uma contra-ciência. Surge na dimensão da história, como um subproduto da ratio Ocidental, que permitiu às sociedades européias entrar em contato com as outras culturas. Como o psicanalista, o etnólogo não interroga o homem, mas a área que torna possível um saber para o homem. Assim como o psicanalista usa a relação de transferência para aceder ao Desejo, à Morte e à Lei, o etnólogo se instala na relação especial que a cultura eu­ropéia estabelece com as outras culturas para descobrir, atrás das representações conscientes dos homens, as nor­mas, as regras e os sistemas que regem, de forma ina­cessível à consciência pré-reflexiva, as funções, conflitos e significações que proliferem, em tôda a sua diversidade, no mundo empírico. Ao desvendar como numa cultura primitiva se processam a normalização das funções bioló­gicas, a regulamentação dos conflitos e a sistematização das significações, o etnólogo está reconstituindo o movi­mento que permitiu à episteme moderna criar o saber do homem a partir de sua finitude. “O que transparece no discurso do etnólogo e do psicanalista é o a priori histó­

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rico de tôdas as ciências do homem — as grandes cesu- ras, 03 sulcos, as partilhas que, na episteme Ocidental, desenharam o perfil do homem e o dispuseram para o saber possível.” 25 Revelando em tôda a sua clareza os mecanismos de formação do saber do homem, a psicaná­lise e a etnologia preparam ao mesmo tempo a sua con­testação mais radical: uma e outra prescindem do ho­mem, e mesmo o cancelam, porque o objeto dessas disci­plinas não é o homem, e sim os seus limites exteriores.

No horizonte do pensamento contemporâneo, surge uma figura nova, mas tão antiga quanto o mundo: a lin­guagem. Na Renascença a linguagem fazia parte da pro­sa do mundo, e precisava ser decifrada como condição para a compreensão das coisas criadas. No classicismo, o discurso era o elemento neutro que tinha o poder de significar representação segunda, que exprimia tôdas as outras representações. N a episteme moderna, a lingua­gem transformou-se em objeto para o saber: de instru­mento todo-poderoso que servia de mediação entre a re­presentação e as coisas, a linguagem converteu-se em simples segmento da realidade, dotado de espessura e his­toricidade própria, mas sem nenhum privilégio de disci­plina retora do conhecimento, como no século XVIII. O que se verifica hoje em dia é o reaparecimento da lin­guagem. Sob. a forma da lingüística, em primeiro lugar. A lingüística está assumindo uma importância cada vez maior nas ciências humanas, e tem mesmo a pretensão de unificá-las. Não se trata, como no século XIX, do im­perialismo de uma ciência particular que quer traduzir para o seu vocabulário conhecimentos já adquiridos em outros ramos do saber, como a tentativa de interpretar as ciências humanas em têrmos de conceitos biológicos ou econômicos. A lingüística vai além, e pretende estrutu­rar os próprios conteúdos; não se limita a dar uma lei­tura lingüística dos fatos humanos, mas busca constituir êsses fatos, pois na perspectiva de um deciframento lin­güístico as coisas só acedem à existência na medida em que podem formar os elementos de um sistema signifi- cante. Graças à lingüística, o projeto de formalização e matematização das ciências humanas pode ser pensado de forma mais coerente. Não se trata mais de quantifi­car resultados, ou de inserir os comportamentos humanos em probabilidades mensuráveis: trata-se de desprender as estruturas próprias a cada domínio empírico, e dar tratamento matemático a essas estruturas, o que repre­

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sentaria o princípio da unificação das ciências do homem, numa linguagem formal que exclui o sujeito empírico. Mas a importância da linguagem cresce no outro extremo da nossa cultura: a literatura. O objeto da literatura moderna, de Artaud a Roussel e aos surrealistas, é a própria linguagem: a exploração até o ponto máximo de tensão das possibilidades intrínsecas da linguagem, como se esta constituísse um mundo próprio, sem refe­rentes externos. Com a ressurreição da linguagem, sen­timos que existe algo de nôvo em processo de gestação. Tôda a episteme moderna surgiu com o desaparecimento do Discurso, que separou as coisas das representações, e exigiu o aparecimento do homem como elemento media­dor. Se agora a linguagem ressurge, não seria o sintoma de uma nova configuração epistemológica, em que o ho­mem se torne desnecessário? Não é preciso, então, acei­tar que com a presença do Discurso o homem vai regre­dir à inexistência a que o condenava a episteme clássica? O homem compôs seu rosto com os fragmentos de uma linguagem estilhaçada. Agora que essa linguagem se re­compõe, não podemos supor que êsse rosto tenderá a de­saparecer ?

Com o homicídio ontológico, Foucault conclui sua gramática. O homicídio não é apenas uma técnica de pen­sar; é parte de uma configuração objetiva. A morte do homem é o ponto terminal de uma Odisséia do Discurso. Tudo se passa como se, num momento dado, o Discurso tivesse secretado o homem, para seus próprios fins, e de­pois tivesse decidido suprimi-lo. A obsessão positivista de eliminar qualquer teleologia parece levar, afinal, a sua teleologia do Discurso. Les Mots et les Choses é o Bildungsroman de um herói trágico, composto para ilus­trar a pedagogia do homicídio: terminada a jornada, o protagonista encontra ao mesmo tempo a sabedoria e a morte. Ou ainda (para mudar de metáfora) uma Feno­menologia do Espírito com desfecho pessimista — no fim do processo, não há a auto-reconciliação do Espírito, mas a dissolução física do sujeito. Qual a verossimilhança dessa viagem?

Poderíamos, para esboçar uma resposta, prosseguir na analogia com Hegel. Como Hegel, diríamos, Foucault não falsifica a realidade, mas a mistifica. Sua descrição do nascimento e morte do homem não é falsa. Num certo sentido é até verdadeira, como um negativo fotográfico é verdadeiro. Trata-se de recuperar a imagem, que o ne­

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gativo ao mesmo tempo dissimula e desvenda. Foucault descreveu realidades reflexas e derivadas. Caberia en­tão ao crítico (mantendo ainda o paralelo com Hegel) identificar as realidades primárias. Extrair da Arqueo­logia o seu “núcleo racional” : não refutar a análise, mas invertê-la. Deixando de lado, entretanto, essas analogias suspeitas, poderíamos dizer a mesma coisa de outra for­ma: é preciso aplicar ao mesmo texto um código dife­rente. Usar uma chave extradiscursiva para decifrar o texto que Foucault leu em têrmos discursivos.

Essa nova leitura precisa abranger os dois momen­tos da descrição de Foucault: o momento do aparecimen­to do homem e do quadrilátero antropológico, e o mo­mento da dissolução do homem e do quadrilátero antro­pológico.

A análise do primeiro momento 28 poderia começar com o principal acontecimento extradiscursivo ocor­rido no início do século XIX, que foi o advento do capitalismo industrial. A nova forma de produ­ção desarticulou tôdas as antigas relações sociais, e produziu nos homens, colhidos por uma engrenagem que parecia ter sua própria dinâmica, uma sensação de im­potência e incompreensão. Fonte real dos bens que cir­culam na economia, das instituições que regem a vida social, dos sistemas teóricos destinados a pensar a rea­lidade, o homem sente-se, paradoxalmente, prisioneiro dêsses bens, instituições e sistemas. Seu trabalho pesa sô­bre sua vida, sob a forma incompreensível do capital; as instituições têm um pêso próprio, e parecem ter existido desde sempre, com sua misteriosa capacidade coercitiva e repressora; as criações culturais o confrontam com uma linguagem reificada, cujo princípio de objetividade lhe escapa. Em vez de se darem ao homem em sua transpa­rência, os sêres se apresentam como entidades hostis, opa­cas e alheias à atividade produtiva do sujeito. As coisas são indecifráveis e estáticas: o homem não pode nem pensá-las, porque só se dão parcialmente à consciência, nem modificá-las, porque são intemporais, ou sujeitas a uma historicidade própria, inacessível à ação humana. O processo econômico o esmaga, e sua verdade íntima se esquiva à sua consciência; sua vida está prêsa a deter­minações alheias à sua vontade e impenetráveis a seu conhecimento; o sistema lingüístico o obriga a pensar de acôrdo com modelos, valores e estereótipos cuja legali­dade interna não pode nem ser compreendida nem modi­

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ficada. As representações que o homem utiliza para pen­sar a realidade são sempre inadequadas: as coisas e as representações se separam. O ser é mais rico que qual­quer representação, porque o sistema de sua inteligibili­dade se situa numa região inacessível à representação. O discurso perde a propriedade de significar exaustiva­mente o real. Começa a desenhar-se o quadrilátero an­tropológico. Surge a figura da finitude: pulverizado por um sistema econômico que aliena sua fôrça de trabalho, por uma organização social que faz depender sua própria existência biológica das leis de ferro do mercado, e por um corpo de significações lingüísticas que se impõem im­periosamente à sua consciência, o homem é, na verdade, um ser radicalmente finito. Nasce o jôgo paradoxal do empírico e do transcendental: a tentativa de fundar um saber rigoroso no homem empírico leva, de fato, como diz Foucault, a contradições insolúveis, mas não necessa­riamente devido aos defeitos da metodologia antropoló­gica, e sim porque quase tôdas as tentativas fundadoras partiram do homem que se oferece em sua forma ime­diata à consciência positivista, isto é, do homem traba­lhado por tôdas as alienações da economia, da vida e da linguagem. Ao elevar à categoria de homem em si um homem que é meramente fruto de uma certa configura­ção histórica, o positivismo em tôdas as suas formas construiu um saber ideológico, baseado numa noção es­tática da natureza humana, e repousando sôbre um fun­damento frágil. Forma-se a dialética do pensado e do impensado: o homem alienado quer lutar contra sua alie­nação. Quer reduzir a faixa do inumano, quer absorver a zona de sombra e de mistério. Daí as éticas da auten­ticidade e da desalienação, daí as políticas reformistas ou revolucionárias. Algumas dessas éticas e políticas surgem no próprio contexto da reificação e da falsa consciência, e representam no máximo uma abertura parcial à ver­dade do sistema que aliena o homem. Em outros casos o sistema é visto, lücidamente, como totalidade e como história. Enfim, impõe-se uma reflexão sôbre a origem: o homem alienado tem nostalgia de uma idade de ouro pré-capitalista, onde o homem não era separado de seu trabalho, da sociedade e da natureza; e aspira a um reencontro com a origem, a uma utopia futura, habitada por um homem finalmente reconciliado com o mundo e com seus semelhantes. Essas utopias vão desde o pro- fetismo de algumas filosofias da história até a visão da

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história futura como uma possibilidade objetiva, de va­lor tendencial e não absoluto. Armado o quadrilátero antropológico, criam-se as condições para o advento das ciências humanas. Alienado pela necessidade biológica, pelo determinismo da economia e pela inércia do sistema cultural, o homem cria uma biologia que ao mesmo tem­po confirma a sua fragilidade e a anula, inserindo-a nu­ma necessidade mais vasta; cria uma ciência econômica que confirma a sua submissão às leis do mercado e a anula, transformando essas leis em fôrças naturais; e cria uma filologia que mostra o homem sob o jugo de uma legalidade lingüística inacessível à sua vontade, mas que anula êsse jugo, no exato momento em que desvenda as leis da historicidade lingüística. Em todos os casos, a ciência surge como uma tentativa de explicar a alienação humana, inserindo-a num sistema necessário, e simultâ- neamente de superar, abstratamente, a alienação, pela tomada de consciência (ilusória) dessa necessidade. As ciências humanas (psicologia, sociologia, análise da lite­ratura e dos mitos) que se articulam sôbre essas positi­vidades estão marcadas pela mesma configuração episte- mológica e sociológica, e respondem a motivações idên­ticas. Nessa fase, o pathos existencial da alienação con­tinua agudo, e a condição humana ainda é sentida em sua precariedade. Ê lógico, portanto, que o saber do ho­mem enfatiza o lado problemático da existência bio-so- cial: a função, o conflito e a significação são privilegia­dos em relação à norma, à regra e ao sistema.

Assim como o primeiro momento (o da gênese do homem e do quadrilátero antropológico) pôde ser expli­cado pela categoria da alienação, o segundo momento (o do desaparecimento do homem e do quadrilátero an­tropológico) pode ser explicado pelo conceito de socie­dade unidimensional, o que não é surpreendente, pois a unidimensionalidade é a alienação radicalizada. 27

A principal característica do século X IX era a di­mensão da transcendência. Em face da realidade exis­tente, há a imagem de uma realidade possível. O homem é consciente de sua finitude; sabe que existe uma zona de sombra que precisa ser absorvida; tem nostalgia de sua origem. Sua vida é dada sôbre o pano de fundo do pensado e do imaginário; é preciso dar a palavra ao si­lêncio, ativar o que está inerte, atualizar o que é mera­mente virtual, transformar o mundo na linha de uma ra­cionalidade crescente. Com o desenvolvimento progres­

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sivo da economia, a dimensão da transcendência vai sen­do absorvida. A razão se implanta na cidade. A ordem existente se identifica com a ordem ideal. A real e o racional convergem. Desaparece a tensão entre a exis­tência e a essência, entre o empírico e o racional, entre a verdade e a aparência. A sociedade se torna unidimen- sional. A alienação muda de sentido: o homem não so­mente não se sabe alienado, como nem sequer se sente alienado. As coisas não são mais exteriores ao homem, nem o ameaçam com uma objetividade que o cancela: o homem se reconhece em sua TV e em seu automóvel. O mundo se torna cordial e inteligível. A s coisas podem abandonar sua interioridade, e reintegrar-se no espaço da representação: o discurso, significante universal, pode re­presentar todo o real, e êste pode ser inteiramente ex­presso nas representações. O quadrilátero antropológico vai sendo obliterado. A primeira vítima da sociedade unidimensional é a noção de finitude: o homem não é mais limitado pelas coisas, nem ameaçado por transcen- dências incompreensíveis. Desaparece a contradição en­tre o empírico e o transcendental: o empírico é funda­mento de si mesmo; o próprio projeto de fundar o saber torna-se inútil; a razão positivista triunfa completamen­te. A dialética do pensado e do impensado é dissolvida. A razão unidimensional não admite a existência de uma zona de sombra, já que a sociedade é a Utopia realizada, em que a dimensão do não-dito ou do indizível é banida. Enfim, desaparece a obsessão da Origem: o sociedade unidimensional é a atualização da Origem, o reencontro do homem com sua Idade de Ouro, que não mais precisa desenhar-se no horizonte da história futura como uma promessa inatingível. Numa sociedade sem origem, sem impensado, autofundadora e liberta das limitações da carência e da necessidade, a ação humana não é neces­sária. O homem pode recolher-se ao seu split levei e per­der-se na contemplação de sua geladeira. Torna-se su­pérfluo. O homicídio está consumado. No campo do sa­ber, essa nova configuração se traduz no projeto de repensar as ciências humanas. Nascidas como uma res­posta teórica ao desafio da alienação, as ciências huma­nas se tornam contestáveis quando desaparece a cons­ciência da alienação. O ponto de vista da norma, da regra e do sistema passa a prevalecer sôbre o ponto de vista da função, do conflito e da significação, pois numa sociedade unidimensional a função só é inteligível na

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perspectiva da norma que permita exercê-lá, o conflito não existe enquanto problema teórico, e a significação só recebe o seu sentido se integrada num sistema que des­vende as significações parciais. Paralelamente com o de­clínio das ciências humanas, ascendem as disciplinas que pretendem descobrir sistemas e estruturas inteligíveis atrás das representações conscientes do sujeito: a psica­nálise, a etnologia, a lingüística. A linguagem volta a funcionar como disciplina retora, em tôrno da qual po­derá se unificar o saber do homem: como na episteme clássica, o discurso representa exaustivamente as coisas, e contém sua própria verdade, que é sempre coextensa com a verdade do Ser. Num mundo sem mistério, não existe mais resíduo, ou opacidade do real à representa­ção: a sociedade unidimensional está contida inteira no discurso que a exprime. A linguagem, através dos mass media, é o grande instrumento de unificação da cultura unidimensional. Nada mais natural que a lingüística se converta no modêlo para a unificação das ciências hu­manas.

Em suma, para Foucault o homem tinha sido gera­do por um acontecimento discursivo — o divórcio entre as coisas e as representações. A inversão da chave mos­traria que foi o homem, pelo contrário, que gerou êsse acidente discursivo. Da mesma forma, Foucault afirma que um nôvo acontecimento discursivo, que exclui o ho­mem, está iminente; com igual facilidade, a leitura an­tropológica poderia demonstrar que essa nova configu­ração discursiva foi produzida pela praxis social. Num caso, o homem gera a configuração que permite pensá-lo; no outro, a configuração que permite excluí-lo. Assim, é falso (admitindo-se a validade dessa ótica) que a mor­te do homem seja uma tendência objetiva no campo do discurso. Mas é certo que se estaria formando uma con­figuração extradiscursiva (prática) que autoriza uma reflexão sôbre a morte do homem.

4. A Verdade e a Mentira do Homicídio

A distinção entre o homicídio metodológico e o homi­cídio ontológico permite precisar os limites e a validade do conceito da morte do homem.

Metodològicamente, a exclusão do sujeito é não so­mente legítima como sob certos aspectos inevitável. Des­contando o que existe de abusivo e unilateral em Les

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Mots et les Choses, e os exageros polêmicos da Archêo- logie, podemos dizer que a metodologia da morte do ho­mem mostra amplamente a sua fecundidade na prática descritiva do próprio Foucault.

O homicídio ontológico suscita o problema da vali­dade de uma análise que pretende demonstrar a gênese e a dissolução do homem e das ciências humanas a partir de uma descrição que se esgota no plano do discurso. Seria necessário completar a análise com a introdução do nível extradiscursivo. Como vimos, o próprio Foucault esboça a teoria dessa análise em dois níveis. O “ saber” no qual aflorou o tema do homem, e as formações discur­sivas que têm o homem por objeto, com seus conceitos, objetos, modalidades enunciativas e estratégias temáti­cas, deveria, no futuro, ser correlacionado com as práti­cas (pré) não-discursivas, que determinaram essas regu- laridades. Uma leitura em dois níveis preservaria, em grande parte, as interações e sistematicidades discursi­vas isoladas por Foucault, evitando o terrorismo das to- talizações prematuras, e a preguiça reducionista que se limita a derivar, em bloco, um sistema teórico de uma organização da praxis, sem mediações e sem respeitar a especificidade dêsse sistema e de cada um dos seus com­ponentes. Êsse trabalho está por fazer; é evidente que a interpretação extradiscursiva esboçada no capítulo an­terior tem um simples valor ilustrativo, e se destina a propor um entre muitos outros caminhos possíveis.

Resta saber se essa dupla leitura poderia legitimar o discurso que a funda, isto é, se teria a capacidade de definir o estatuto epistemológico do discurso que anun­cia a morte do homem. Ciência ou ideologia? No fim dêste ensaio, a questão fica em aberto. Válido enquanto método, útil como instrumento polêmico, o homicídio per­manece duvidoso no plano ontológico. A mortalidade do homem não é certa; mas o discurso que proclama a sua extinção, se ideológico, é seguramente mortal. Nesse ca­so, esgotada a sua utilidade, o homicida, e não o homem, será varrido “como na orla do mar um rosto de areia.” 28

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REFERÊNCIAS

1 — Vide, por exemplo, na lingüística, além de F. de Suuhhuii',Cours de Linguistique Générale (Paris: Payot, 1988), N Chomsky, Synctatic Structures (La Haye: Mouton, 1867) n E. Benveniste (Paris: Gallimard, 1966); na etnologia, Clamle Lévi-Strauss, Anthropologie Structurale (Paris: Plon, 195H), na filosofia, L , Althusser, Pour Marx (Paris: Maspero, 196(1); na psicanálise, J. Lacan, Ecrits (Paris: Ed. du Seuil, 190(1)

2 — Cf. J. P. Sartre: "11 s’agit de constituer une idéologie nouvelle, le dernier barrage que la bouigeoisie puisse encum dresser contre Marx", em L ’A rc, n» 30, p. 88; H. Lefebvro, Claude Lévi-Strauss ou le N ouvel Eleatisme, em ‘‘L’Honmii' et la Société", n* 1 e 2; O. R. d’Allones, Les M ots contre Um Choses, em "Raison Présente", n» 2; e R. Garaudy, La M ort de VHom me, em "La Pensée”, n“ 135.

3 — Tese defendida brilhantemente por Lucien Sebag, em M a r -xisme et Structuralisme, (Paris: Payot, 1964).

4 — Michel Foucault, Histoire de la Folie d VA ge Classique (Pa­ris: Plon, 1961).5 — Ibidem, p. 27.6 — M. Foucault, Naissance de la Clinique (Paris: P .U .F ., 1963).7 — Ibidem, p. 7.8 — Ibidem, p. 173-4.9 — M. Foucault Les M ots et les Choses (Paris: Gallimard,1966).

10 — Ibidem, p. 274.11 — M. Foucault, L ’Archéologie du Savoir (Paris: Gallimard,1969)12 — M. Foucault, La Naissance de la Clinique, p. 30.13 — Ibidem, p. 37.14 — Foucault, L ’Archéologie, p. 22.15 — Ibidem, p. 65.16 — Ibidem, p. 65.17 — Ibidem, p. 83-84.18 — Ibidem, p. 92-93.19 — Sigmund Freud, Introduction â la Psychanalise (Paris: Pay.it,1965) trad. francesa de S. Jankelevitch, p. 266.20 — L ’Archéologie, p. 101.21 — K. Marx, Capital (New York: The Modern Library) trad.inglesa por S. Moore e E, Avelling, p. 68-69.22 — Cf. entrevista de M. Foucault (não corrigida), noste livro.23 —. Les M ots et les Choses, p. 339.24 — Ibidem, p. 354.25 — Ibidem, p. 390.26 — Cf. G. Lukacs, Histoire et Conscience de Classe (Paris: LesEditions de Minuit, 1960) trad. francesa de Kostas Axelos.27 — Cf. Herbert Marcuse, One-Dimensional M an (Boston: Boa-con Press, 1968); vide também artigo do autor, D e Eros "

Sísifo, em "Tempo Brasileiro”, n° 17-18.28 — M. Foucault, Les M ots et les Choses, p. 398.

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