foucault e a psicologia

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Compilado de 5 textos que tratam sobre a vida e a psicologia nas obras de Michel Foucault.

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  • dos autores P- edio: 2005

    Reviso: dos autores

    Capa: Rafael Marczal de Lima Projeto

    Grfico: Jadeditora Ltda. Editorao:

    Rafael Marczal de Lima Fotolitos e Impresso:

    Evangraf Ltda.

    F762F Foucault e a psicologia / Neuza M. E Guareschi, Simone M. Hning (org.); Heliana de B. Conde Rodrigues... [et Porto Alegre: Abrapso Sul, 2005.

    128 p.

    1. Psicologia Social. 2. Foucault, Michel - Crtica e Interpretao. 3. Filosofia. I. Guareschi, Neuza M. F. II. Hning, Simone M. III. Rodrigues, Heliana de Barros Conde.

    CDD: 301.1

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Ginamara Lima Jacques Pinto CRB 10/1204)

    Su m r io

    Apresentao:

    Para desencaminhar o presente Psi: biografia, temporalidade e

    experincia em Michel Foucault

    Heliana de Barros Conde Rodrigues .............................................. 7

    A psicanlise e a psicologia nos ditos e escritos de

    Michel Foucault

    Arthur Arruda Leal Ferreira ......................................................... 29

    Para uma arquelogia da psicologia (ou: para pensar

    uma psicologia em outras bases)

    Kleber Prado Filho ........................................................................ 73

    tica e subjetivao: as tcnicas de si e os jogos de verdade

    contemporneos

    Henrique Caetano Nardi e Rosane Neves da Silva ....................... 93

    Efeito Foucault: desacomodar a psicologia

    Simone Maria Hning e Neuza M E Guareschi ......................... 107

    ISBN 85-86472-06-9

  • Apresentao

    PARA DESENCAMINHAR O PRESENTE PSI:

    biografia, temporalidade e experincia em Michel Foucault

    Heliana de Barros Conde Rodrigues

    Apresentar a deliciosa ousadia deste livro, que conecta "Foucault e

    a Psicologia", constitui um desafio a contrariar a ordem do discurso, ou

    seja, a resistir s prticas logofbicas hegemnicas que no toleram a

    surpresa, o aleatrio e o inaudito sempre passveis de permear ditos e

    escritos. Praticada, hoje, por significativo nmero de pesquisadores e

    profissionais do campo psi, a aventura de trabalhar com ferramentas

    foucaultianas implica, nesse sentido, um enigma que melhor seria, tal -

    vez, deixar sem soluo - atitude que prefcios e/ou apresentaes pare-

    cem destinados a minar, pois...como antecipar-se sem advertir?

    Um convite, no entanto - como o que me foi feito pelos que

    retomam/transformam, neste livro, a "funo autor" -, daqueles atos

    discursivos que conclamam potencializao recproca, e no rgida

    fidelidade (por mais que de inspirao foucaultiana) a princpios "no-

    prefaciantes" - atitude radical, porm inevitavelmente solitria. Acato,

    pois, o convite generoso a apresentar esta publicao, embora sem o

    mais leve intuito de decifrao ordenadora, preferindo, ao contrrio,

    ensaiar uma experimentao compartilhada. Nesse sentido, o presente

    texto visa simplesmente a explorar algumas linhas de pensamento

    convocadas pelo quebra-cabeas "Foucault e a Psicologia", jamais a tentar

    privar o leitor dos desejveis riscos a que o iro expor os artigos-discur-

    sos que compem a tessitura deste volume.

    Professora do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ);

    integrante do Clio-Psych - Programa de estudos e pesquisas em Histria da Psicologia.

    Foucault e a Psicologia 7

  • Por inmeras vezes, Michel Foucault afirmou que seus escritos cons-

    tituam "fragmentos de autobiografia". Essa curiosa circunstncia pode-

    ria levar a supor fundada em alguma identificao disciplinar a paixo que

    muitos psiclogos demonstram por suas hipteses de trabalho. Com base

    nos escritos de Didier Eribon', sabe-se, por exemplo, que na juventude

    Michel Foucault trabalhou em hospitais psiquitricos, teve fascnio pelo

    teste de Rorschach, lecionou psicologia em universidades e chegou a pensar,

    inclusive, em tornar-se psiclogo. A despeito da meno ao biogrfico,

    nada mais oposto, entretanto, s perspectivas foucaultianas do que essas

    razes pretensamente profundas, que so ancoradas em um sujeito consti-

    tuinte e que nada explicam, afinal, ao se arrogarem o direito de dar conta

    de tudo, em todas as vidas. Se o biogrfico tem singular importncia, seja

    nos percursos de Foucault seja na alegria danarina com que muitos psi-

    clogos se apropriam de suas ferramentas conceituais (martelos, geral-

    mente...), cumpre, para evitar enfoques redutores (qui mortferos para

    o pensamento), aproximar-se do modo como ele concebeu e articulou os

    temas da temporalidade e da experincia.

    Como abandonar os confortos do moderno

    Publicado em 1966, ano pice do estruturalismo na Frana,

    freqente que As palavras e as coisas seja apresentado como tpico exem-

    plar dessa tendncia: exibe epistemes conjuntos de regras a que obedecem os modos de ver e dizer presentes em um conjunto de territrios de

    saber simultneos -, descreve-as detalhadamente, afirma o

    descontnuo maneira de uma srie de sistemas de longa durao. Em

    funo de tais caractersticas, Sartre acusou o trabalho, poca, de "l-tima muralha da burguesia" contra o marxismo, pois ele representaria uma completa negao do devir histrico'.

    Apaixonada que sou por Foucault - o que, diz-se, leva a

    supervalorizar mincias -, encontro no livro duas passagens propcias a

    Eribon, D. - Michel Foucaulr: uma biografia. So Paulo: Cia das Letras, 1990. 2 Idem, p. 159.

    8 Foucault e a Psicologia

    dar incio explorao das questes acima esboadas. A primeira volta-se para a

    caracterizao do descontnuo: "O descontnuo (...) d acesso, sem dvida, a uma

    eroso que vem de fora, a esse espao que, para o pensamento, est do outro lado,

    mas onde, contudo, ele no cessou de pensar desde a origem. Em ltima anlise,

    o problema que se formula o das relaes do pensamento com a cultura:

    como sucede que um pensamento tenha lugar no espao do mundo, (...) e

    que no cesse, aqui e ali, de comear sempre de novo? Mas talvez no seja

    ainda o momento de formular o problema..." 3. A segunda passagem torna a

    levantar (e soluciona, em parte) o problema antes dito prematuro: "A que

    acontecimento ou a que lei obedecem essas mutaes que fazem com que de

    sbito as coisas no sejam mais percebidas, descritas, caracterizadas, classificadas e

    sabidas do mesmo modo (...)? Se, para uma arqueologia do saber, essa abertura

    profunda na camada das continuidades deve ser analisada, e minuciosamente, no

    pode ser ela 'explicada' nem mesmo recolhida numa palavra nica. um

    acontecimento radical que se reparte por toda a superfcie visvel do saber e cujos

    signos, abalos, efeitos, pode-se seguir passo a passo''4.

    Em As palavras e as coisas, portanto, se h descontinuidades e, ao mesmo

    tempo, estruturas (as to incompreendidas epistemes), as primeiras relativas a

    pensamentos ou discursos - reclamam correlaes (a descobrir/ inventar) com outros

    tipos de sries; as ltimas demandam, para que se possa dar conta de sua emergncia

    no tempo, no a lei - e como poderia a arqueologia admiti-la sem se transformar em

    grande narrativa te(le)olgica? -, mas o acontecimento. Conquanto o carter desse

    acontecimento se mantenha problemtico (e, no livro em pauta, silenciado), Foucault

    assevera no ser ele apreensvel "numa palavra nica"; ou, para usar uma expresso

    que preferimos, numa palavra com maiscula (Devir, Dialtica, Homem, Progresso,

    Evoluo e mesmo Histria... tradicional).

    O livro apelidado o mais estruturalista de Foucault prope combinar o

    acontecimento e a estrutura mediante um procedimento alheio

    Foucault, M. As palavras e as coisas. So Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 65. 4 Idem, p.

    231-232.

    Foucault e a Psicologia 9

  • aos cnones estabelecidos: admite que se possa dar conta da estrutura... atravs

    do acontecimento! claro que por este ltimo termo no se designam os feitos

    de grandes homens - Foucault anuncia mesmo que o homem, grande ou

    pequeno, est prestes a morrer... Mas como poderiam ser apreendidos os

    transtornos promovidos pela entrada em cena das foras, de que mais tarde

    falar em tons nietzscheanos5, prescindindo da singularidade dos eventos? Por

    ora, ainda sem dispor de jusdricativas maiores, alegremo-mos com a hiptese: a

    coerncia apriorstica do sujeito e/ou das causalidades sem elo perdido pode dar

    lugar acolhida da diferena; a historicidade (com minsculas) dessa diferena

    decorre de acontecimentos que no se identificam a (grandes) feitos, tampouco a

    fatos (consumados), mas apontam a ocorrncias simultaneamente rupturais... e

    rompidas em mil pedaos, qual na figura do caleidoscpio a que Veyne6

    assemelha a histria em moldes foucaultianos.

    Para mergulhar nessa perturbadora inveno, sejamos infiis a Foucault,

    seguindo uma das figuras-funes que ele dizia detestar (tanto quanto os

    prefcios ou apresentaes): o comentador. Mitchell Dean, porm, constitui um

    comentador muito especial: sente-se insatisfeito com o recurso a categorias

    globalizantes industrializao, racionalizao, urbanizao, secularizao, burocratizao... modernizao, em suma - por meio das quais as cincias

    sociais vm tentando entender nosso presente (em poucas e imprecisas palavras,

    a sociedade industrial - ou ps o capitalismo, o Estado liberal - ou neo). Ao

    estudioso australiano, tais categorias soam como parte do que precisa ser

    explicado, por mais que, ao utiliz-las, a sociologia julgue ter adquirido a

    dignidade de cincia nomottica e, condescendentemente, relegue a histria

    busca de uma vulgar dimenso idiogrfica7.

    5. Foucault, M. "Nietzsche, a genealogia e a histria". Em: Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

    6 Veyne, P. "Foucault revoluciona a histria". Em: Como se escreve a histria Braslia: Editora da UNB, 1992.

    7 Dean, M. - Critica! and efective histories: Foucault's methods and historical

    sociology. London and New York: Routledge, 1994, p.7.

    Dean es t c i en t e d e qu e a d i sc ip l in a so c io l g ica se i n s t i tu i

    exa t amen te po r es sa demarca o : a t r avs d e an l i ses

    s in c rn icas d as to t a l id ades so c i a i s , e l a p ro c l ama se r u ma

    c i n c i a d a h i s t r i a q u e, pa rado xa lmen te , e s t d i sp en sad a d a

    n ecess id ad e d e r eal i za r an l i ses h i s t r i cas con cre t as . No

    o bs t an te t a l p ret enso t enh a s id o vr i as vezes co ntes t ad a ao

    lon go do scu lo XX , a so c io lo g ia p e rman ece apo iad a n as

    ca t ego r i as g lo b al i zan tes men c io n ad as , qu e se i n tegram a

    d u as fo rmas ap en as ap aren temen te co nt ras t an t es d e t eo r i a : a

    p ro gress iv i s t a (p ro gress ivi s t ) e a c r t i ca .

    A p r imei ra d e fen d e u m es q u ema d e p ro gresso so c i a l an dado

    em u ma t e l eo lo g ia d a r azo , d a t ecno lo gia o u da p rod u o . Tra t a - se d o mo d e lo d eno min ado a l to mod ern i smo,

    exemp l i f i cad o p e l as na r ra t ivas do I lu min i smo , p elo

    p os i t i v i smo co mteano e , in c lu s ive, po r a lgu n s e l emen to s da

    t eo r i a marx i s t a d a h i s t r i a ou even tu a is in t erpre ta es d a

    co n cep o web er i an a d a rac ion a l i zao . Em qu a lq uer d essas

    va r i an t es , con si s t e n u ma e l abo rao qu e "bu sca ad qui r i r o

    p res t g io d as c i n c i as n atu ra i s , a t r ibu ind o f r eq entemen te a

    su as a f i rma es a fo rma d e exp l i ca es ge ra i s e cau sa i s ,

    co m car t e r semelh ante ao d a l e i " .

    J a t eo r i a c r t i ca p rope u ma d i a l t i ca em q u e as fo rmas

    p resen tes d a r azo e da so c i ed ad e so s imu l t an eamen te

    n egad as e p rese rvad as . Faz severas r es t r i es s n a r ra t ivas

    d o a l to mo d ern i smo , d enu n cia n do a r azo in s t ru men ta l que

    ce l eb ram, ao mesmo t emp o qu e o fe rece u ma ver so

    a l t e rn a t iva ( e supo s t amente mai s e l evad a) d e r acion a l id ad e,

    a t r avs d e n ar ra t ivas d e " reco n ci l i ao do su j e i to con s igo

    mes mo , co m a n a tu reza , co m a fo rma d e su a p rpr i a r azo

    ( . . . ) [qu e] p ro metem e man c ip ao e sa lvao secu la r "9 .

    V ar i an t es d essa p e r sp ect iva p e rmeiam to do o marx i s mo

    o c id en ta l , s end o id en t i f i cve i s , d e mo do mai s esp ec f i co , na

    Teo r i a d a Rac ion a l id ad e Co mu nica t iva d e Hab ermas e n a

    Dia l t i ca d o I lu min i smo d e Ado rno e H orkh e imer , amb as

    fo rmas d e mo d ern i smo c r t i co .

    P ara Dean , con tu do , j amai s sab emo s se fo mo s , so mo s ou

    se remo s mo d erno s . P r in cip almen te , n un ca n os d ever amo s

    co ns id era r ex -

    Id em, p . 3 . Id em, Id em.

    10 Foucault e a Psicologia

    11 Foucault e a Psicologia

  • plicveis pela modernizao, um termo-processo que termo-armadi-

    lha, pois, aderindo a ele ou contestando -o, promovemos des-

    historicizao: o presente ser caminho para os modernistas - ou descaminho - para os modernistas crticos -, mas em nenhuma das duas

    teorias se ver des-encaminhado.

    Nessas circunstncias, o socilogo australiano entrev um terceiro

    tipo de prtica intelectual para o pesquisador social: a problematizante. Ela

    estabelece "uma anlise da trajetria das formas de verdade e conhecimento

    sem origem ou finalidade", tendo por efeito "a perturbao das narrativas

    seja de progresso seja de reconciliao, descobrindo questes onde as outras

    viam respostas"10. Para tanto, mantm-se receptiva disperso das transfor-

    maes histricas, rpida mutao dos eventos, multiplicidade das

    temporalidades e, primordialmente, possibilidade de reverso de trilhas

    histricas. O problematizador tambm um crtico, embora adote estrat-

    gia distinta da dos modernistas crticos: "recusa-se a aceitar os componen-

    tes dados-por-bvios (taken-for-granted) de nossa realidade e as explicaes

    oficiais acerca do como vieram a ser o que so"". Esse singular carter

    remete a um inqurito em princpio ilimitado acerca do presente: quando

    nele diagnostica limites, est disposto a atribu-los a constrangimentos con-

    tingentes. Com isso, faculta-se a entrada em cena daquilo que Foucault,

    seguindo Nietzsche, chamou de "histria efetiva"12 a que rejeita a coloni-

    zao, quer do conhecimento quer da ao poltica, por snteses filosficas

    que prescrevam significados primeiros, ltimos e/ou globais.

    Em um passo arriscado palavras so perigos! -, Dean acata uma

    polmica denominao: "se o amplamente usado termo 'ps-modernis-

    mo' for definido como a teimosa problematizao do dado, ficaria feliz

    em ver este tipo de histria como um exerccio de ps-modernidade"13.

    O prefixo ps, conforme aqui manejado, designa menos um depois da

    modernidade do que uma ilimitada possibilidade de interrog-la.

    1 Idem, p. 4.

    " Idem, idem. 1 2 Foucau l t , M . - op. c i t , 1979.

    Dean, M. - op. cit., p. 4.

    No obstante seja sempre um exagero de linguagem falar de mto-

    do em se tratando de Foucault - o que ele apresenta nesse sentido descre-

    ve investigaes anteriores ou antecipa experimentaes futuras, sem ser

    jamais prescritivo -, a prtica problematizante ganha nuances

    metodolgicas em Arqueologia do saber para Dean (e para ns), o livro

    ultrapassa o debate continuidade versus descontinuidade, situando sua

    prpria novidade no estatuto singular atribudo ao documento histrico.

    A monumentalizao documental nele proposta tanto significa a inclu-

    so do documento em sries (e sries de sries) quanto, especialmente,

    uma nfase nos nexos entre documentao e problema; de forma mais

    precisa, alis, uma nfase no carter polmico da definio de qual deve

    ser o problema em sntese, encaminhar... ou desencaminhar o presente?

    So, porm, os textos foucault ianos dos anos 1970 que

    potencializam politicamente essa nfase e o fazem por meio da

    definio precisa de um adversrio para uma histria que, alm de

    crtica cnscia de seus limites (os arquivos que nos foram legados) -, se quer efetiva - capaz de intervir no presente. Tal adversrio toda a gama

    de supra-histrico que nos rodeia, condicionando modos de ser,

    pensar e atuar por meio de permanentes reasseguramentos

    identitrios - no sendo a modernizaao o menor deles....

    Apelando a Nietzsche, Foucault diagnostica, ento, a presena do

    supra-histrico em alguns dos usos da prpria histria-disciplina: uso mo-

    numental (grandes vultos e feitos), antiqurio (acentuao da continuida-

    de-tradio) e crtico (julgamento-condenao do passado em nome do

    presente, tornando o primeiro algo fixo, paralisado e menor). Ainda com

    Nietzsche, projeta, como alternativa, um uso pardico (contrrio ao realis-

    mo de uma reminiscncia-reconhecimento), dissociativo (contraposto

    identidade) e sacrificial (renncia vontade de verdade, histria "orgu-

    lhosa" de ser conhecimento). Esses exerccios aspiram a "fazer da histria

    um uso que a liberte para sempre do modelo, ao mesmo tempo metafsico

    e antropolgico, da memria. Trata-se de fazer da histria uma contramemria

    e de descobrir conseqentemente toda uma outra forma do tempo"14.

    Foucault, - op.cit., 1979, p. 33, grifos nossos.

    12 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 13

  • A proposta foucaultiana, por conseguinte, a de uma histria

    singularmente crtica e efetiva: a arqueologia dispensa toda arch ou

    fundamento, construindo/analisando arquivos a partir da massa do-

    cumental que nos foi legada ela orienta teoricamente nossos procedi-

    mentos; mas somente combinada com a genealogia pode afastar o ran-

    o positivista que a assedia, colocando igual importncia nos usos do

    conhecimento histrico. Da ressaltar Dean ainda um terceiro termo,

    presentismo ou histria do presente: histria feita no presente, sim; hist-

    ria que tenta dar conta do que presentemente somos como sujeitos de

    conhecimento, ao e moral, decerto; fundamentalmente, porm, his-

    tria que luta contra compreenses anacronsticas aquelas que fazem

    do presente o resultado necessrio de um passado aprisionado em sig-

    nificaes - e assim nos liberta, parcialmente que seja, para o exerccio

    de formas de pensar, agir e ser...que ainda no existem.

    O futuro do pretrito

    Nos comentrios de Dean, obtivemos argumentos para sustentar

    que eventos e histria (com minscula, no metafsica) so perfeita-

    mente compatveis: s h dissonncia quando os primeiros so atribu-

    dos a esquemas fixos do tipo causa-e-efeito ou remetidos a unidades de

    significao preestabelecidas (caminho do progresso ou descaminho ins-

    trumental, pouco importa). Esse mesmo ponto diretamente aborda-

    do no debate entre Foucault e alguns historiadores, ocorrido em 1978,

    quando o pr imeiro ch ega a de fender a n ecess id ade de u ma

    vnementialisation (eventualizao) da disciplina historiogrfica: "Onde

    nos sentimos tentados a fazer referncia a uma constante histrica ou a

    um trao antropolgico imediato (...), trata-se de fazer surgir uma 'sin-

    gularidade'. Mostrar que no era 'assim to necessrio'. (...) Ruptura

    das evidncias, destas evidncias sobre as quais se apiam nosso saber,

    nossos consentimentos, nossas prticas. (...) Ao mesmo tempo, a

    vnementialisation consiste em descobrir as conexes, os encontros, os

    apoios, os bloqueios, os jogos de fora, as estratgias etc. que, em dado

    14 Foucault e a Psicologia

    momento, formaram o que a seguir vai funcionar como evidncia, uni-

    versalidade, necessidade''15.

    Reler esse fragmento induz a pensar em possveis construes do

    que propomos denominar futuro do pretrito. Na pena de um historia-

    dor, em grandes linhas, o evento histrico pode redundar seja em

    destino (fato consumado, funcionalizado, estruturalizado) seja em

    contingncia (raridade, singularidade, desencaminhamento). No caso

    de um evento se tornar explicvel por regras - acentuadas, inegavelmente,

    por Foucault -, tambm estas so passveis de entendimentos alternativos:

    apriorismos sintticos e/ou semnticos (estruturas significantes imutveis,

    edifcios sociais com determinaes em ltima instncia, dialticas

    universalizantes) ou repetio/reforo de prticas determinadas - por mais

    que este segundo caso exija imaginar um caleidoscpio manejado por

    mos preguiosas ou pouco curiosas... em decorrncia do realce dado

    por Foucault ao segundo termo dessas dades que Rajchman1 6 o

    chama de "filsofo da liberdade" nada nos determina a no ser o

    que nos acontece atualmente -, embora nunca da "libertao" - inexistem

    causa, princpio ou finalidade preestabelecidos, ltimos, universais.

    Para apreciar melhor tal circunstncia, cumpre recorrer a

    Genealogia e poder, aula de um curso no Collge de France datado de

    1976. No incio da exposio, Foucault se refere s pesquisas por ele

    levadas a efeito nos anos 1970 como "dispersas e fragmentrias", "saber

    intil e suntuoso" cujo lugar mais adequado seriam as notas de rodap;

    uma "maonaria da erudio intil"", em suma, feita de escritos

    empoeirados e textos nunca antes lidos.

    Sem renegar seu idiossincrtico apreo pela mincia, Foucault

    assinala a seguir que este se coaduna muito bem com uma caracterstica

    presente no panorama cultural, poltico e intelectual de ento: a "efic-

    "Foucault, M. "Table ronde du mai 1978". Em: Dits et crits, vol. IV. Paris: Gallimard,

    1994, p.23.

    16 Rajchman, J. - Foucault: a liberdade da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. Foucault, M. "Genealogia e Poder". Em: Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979a, p. 168.

    Foucault e a Psicologia 15

  • cia das ofensivas dispersas e descontnuas"18 A expresso condensa uma

    srie de ocorrncias: entraves ao funcionamento da instituio psiqui-

    trica provocados pelos discursos e prticas, bastante localizados, da

    antipsiquiatria; eficcia dos ataques contra o aparelho judicirio e pe-

    nal, apenas vagamente ligados ao argumento da luta de classes, ou

    longinqamente anarquistas; perturbao causada por livros como o Anti-

    dipo, praticamente auto-referente, sem tradio terica,

    institucional e/ou filosfica.

    Foucault se refere, assim, a uma experincia a eficcia das crti-

    cas particulares e locais - que faculta o acesso a algo no previsto. Re-

    gressaremos, um pouco mais tarde, ao sentido do termo experincia.

    Por enquanto, concentremo-nos na explicitao da descoberta impre-

    vista: a apreenso do "efeito inibidor prprio s teorias totalitrias, glo-

    bais", dentre as quais se destacam a psicanlise e o marxismo. Na verda-

    de, no importa tanto a especificao das teorias globais a que se fazem

    restries; cumpre estar primordialmente atento ao "efeito de refrea-

    mento" que qualquer uma delas provoca quando retorna sem cessar a

    sua prpria totalidade, em lugar de ser "recortada, despedaada,

    deslocada, invertida, caricaturada, teatralizada"19.

    Reativando, quanto a quaisquer disciplinas, o que, com Nietzsche,

    sugerira em favor de uma histria efetiva uso pardico, dissociativo e

    sacrificial Foucault passa a ver suas pesquisas como portadoras de

    uma primeira (e, agora, desejvel) caracterstica: o carter local da crti

    ca, "espcie de produo terica autnoma, no centralizada, (...) que

    no tem necessidade, para estabelecer sua validade, da concordncia

    com um sistema comum"". Essa crtica local se d atravs de um retor-

    no de saber; melhor dizendo, de uma insurreio dos saberes dominados.

    Pela expresso se devem entender: (1) "contedos histricos que foram

    sepultados, mascarados em coerncias funcionais ou em sistemas for-

    mais", reveladores da "clivagem dos confrontos, das lutas que as orga-

    Idem, idem. 19

    Idem, idem. "

    Idem, idem.

    nizaes formais ou sistemticas tm por objetivo mascarar"; (2) "uma

    srie de saberes que tinham sido desqualificados como no competen-

    tes ou insuficientemente elaborados: saberes ingnuos, hierarquicamente

    inferiores, saberes abaixo do conhecimento ou da cientificidade"21.

    A insurreio dos saberes dominados, por conseguinte, tanto com-

    porta blocos de saber histrico at ento dessingularizados no interior de

    sistemas - quanto revaloriza o saber das pessoas - saber "particular, regio-

    nal, local, um saber diferencial incapaz de unanimidade e que (...) deve

    sua fora dimenso que o ope a todos aqueles que o circundam". Ao

    contrrio das classificaes hegemonicamente aplicadas, esse saber das

    pessoas no bom senso nem senso comum: saber deixado de lado,

    quando no explicitamente subordinado. Consoante Foucault, a crtica

    local deve seu impacto exatamente a essa juno entre "o saber sem vida

    da erudio e o saber desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e

    das cincias; em ltima anlise, ao saber histrico da luta"22.

    muito ampla a gama de associaes que essas frases podem des-

    pertar. Limito-me, todavia, a evocar uma antiga afirmao de Barthes

    "a histria um sonho porque conjuga, sem assombro e sem convico,

    a morte e a vida"" -, assim como a pergunta-rplica com que Arlette

    Farge, em artigo dedicado ao vnement (evento), nos convida a

    contradiz-la: "Como conjug-las [a morte e a vida] com assombro e

    com convico, a fim de que a histria no seja um sonho, mas, ao

    contrrio, um meio de estar no passado a fim de decidir quanto ao

    presente e, quem sabe, quanto ao futuro?"". O futuro do presente se v,

    assim, implicado no futuro do pretrito.

    Antes mesmo que Lyotard viesse a conceituar a condio ps-

    moderna como "fim da grande narrativa", Foucault, no texto que ora

    privilegiamos, chama ateno para o quanto a histria comporta de

    21 Idem, p. 170.

    " Idem: idem; grifos nossos.

    " Apud Farge, A - "L'instance de I'vnement". Em: France, D.; Prokhoris, S.; Roussel,

    Y. (eds.) - Au risque de Foucault. Paris: Editions du Centre Pompidou, 1997, p. 27. 24

    Farge, A - op. cir., p. 27.

    16 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 17

  • estratgico. Nesse sentido, a elaborao de certas narrativas (ou a luta

    pelo encerramento das grandes) tem a possibilidade de se constituir em

    algo muito distinto de uma atitude blase, desencantada ou quietista.

    Representa, ao contrrio, valiosa inquietao em face do que conside-

    rado dado, coerente, bvio, lgico, previsvel, evidente, funcional ou

    nobremente cientfico, inquirindo o quanto comporta de "emparia com

    os vencedores" - para usar uma expresso de Walter Benjamin que, tal

    como Foucault, desejava "escovar a histria a contrapelo"'25.

    Foucault no acena com cientificidade: blocos de saber histrico

    at ento mascarados (uma erudio, arquivos, sries documentais) e

    saberes pessoais incapazes de unanimidade (um vozerio, falas

    contrastantes, narrativas-memria) combinam-se para gerar genealogias,

    e, o que mais importante, as genealogias so ditas "anti-cincias" por-

    que desenvolvidas "contra a tirania dos discursos englobantes com suas

    hierarquias e com os privilgios da vanguarda terica"26. Elas montam

    contrariedades quilo que tomado por garantido.

    Das lies da histria s experincias e experimentaes: o abalo

    do presente

    Em um artigo cujo andamento nos servir de guia, D'Amaral e Pedro`'

    pem em discusso as formas de temporalidade que os historiadores cons-

    troem e narram. O primeiro modo identificado pelos autores o da histria

    universal de tipo positivista, j suficientemente pisado e repisado, em que o

    historiador-narrador atua como se estivesse situado no fim dos tempos.

    Melhor dizendo, como se ocupasse a extremidade de uma linha reta, orien-

    tada, extremidade esta em cuja direo o passado se encaminharia como

    que naturalmente justificado por uma cadeia causal de fatos

    consumados:25

    Benjamin, W. "Sobre o conceito de histria". Em: Obras escolhidas - magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, 1994.

    Foucault, M. - op. cit., 1979a, p. 171.

    D'Amaral, M.T. e Pedro, R.M.L.R. - "O tempo: entre a cincia, a cultura e a histria".

    Documenta, ano IV, n". 7, 1996.

    a histria caminharia... em nossa direo. Por estranho que parea, con-

    quanto alardeiem repdio s histrias filosficas, os positivistas so os pri-

    meiros a admitir um fim da histria: o lugar que eles prprios ocupam

    idealizado como objetivo ou meta da mesma; em ltima instncia, como a

    grande lio - a finalidade, o objetivo - da histria.

    O segundo modo apresentado por D'Amaral e Pedro aponta

    microhistria italiana, mais precisamente ao paradigma indicirio descrito

    por Carlo Ginzburg, porm podemos estend-lo a inmeras outras

    formas de prtica historiogrfica especializada, elaboradas sob a gide das

    crticas histria positivista empreendidas pela Escola dos Annales desde a

    dcada de 1920. Recorrendo a uma frase inspirada - " do presente que o

    passado faz questo" -, os autores fazem ver que esses historiadores

    esto perfeitamente cnscios de que se encontram em um momento par-

    ticular, o presente, a partir do qual constroem objetos relativos ao passa-

    do. Dir-se-ia que se sabem presos em uma espcie de jaula temporal,

    reconhecendo que o que nela penetra est obrigatoriamente filtrado; em

    decorrncia, aquilo que o estudioso capaz de narrar tambm o est.

    Apesar disso, tanto os microhistoriadores, como Ginzburg, quanto os

    annalistas de variadas estirpes, ao defenderem o que o primeiro apelida

    rigor flexvel, acabam por colocar nfase maior no rigor de uma histria-

    verdade do que nos limites (histricos) impostos a esse rigor. Nos termos

    de D'Amaral e Pedro, "o objeto, mesmo construdo, ainda porta em si

    uma verdade oculta, invisvel, a qual se deve buscar com rigor"29.

    O terceiro modo de relacionar tempo e narrativa histrica exposto

    pelos autores o foucaultiano. Parte das inquietaes que ele nos

    poderia trazer j foram antecipadas: com Foucault, nada de lies de

    uma histria-passado que no presente encontra seu objetivo; tampouco

    segredos ocultos de um passado-totalidade inferidos com flexvel rigor a

    partir de um presente qualquer. Algo, porm, ainda surpreende: con-

    soante Foucault, para apreender o vnculo entre o presente e o passado

    estabelecido na narrativa histrica, preciso estar atento relao do

    " Idem, p. 83. 29 Idem, p. 84.

    Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia

  • presente... com ele mesmo! Melhor dizendo, para que o passado se tor-

    ne objeto de investigao, demanda-se que "o presente se perceba num

    movimento de separao de si mesmo (...); no momento em que o

    presente est deixando de ser o que , a histria se torna possvel"30.

    Essas proposies reafirmam que, tratando-se de Foucault, a ex-

    presso histria do presente faz bem mais do que designar o carter cons-trutivo do trabalho do historiador. claro que fazemos histria hoje, motivados por problemas formulados hoje, aspirando a que as solues

    encontradas no sejam anacrnicas - estes so nossos limites. Mais do que limitada pelo presente, todavia, a genealogia foucaultiana

    desencadeada por ele; em outras palavras, promovida por um movimen-to, mnimo que seja, de desprendimento, que, por isso mesmo, torna o

    presente historicizvel. Histria do presente histria feita no presente sobre um presente... que j no somos mais.

    Chamemos em nosso auxlio, para explorar essa perspectiva, um

    artigo de Gilles Deleuze, cujo ttulo indaga Qu'est-ce qu'un dispositif?. Aps a caracterizao do trabalho de Foucault como uma filosofia dos dispositivos - repdio aos universais, afastamento do eterno em favor da criao -, ali se prope: "Ns pertencemos aos dispositivos e agimos neles. novidade

    de um dispositivo em relao aos precedentes chamamos sua atualidade,

    nossa atualidade. (...) O atual no o que ns somos, mas o que nos

    tornamos (...) o outro, nosso devir-outro. Em todo dispositivo, necessrio diferenciar o que ns somos (o que j no somos mais) e o que estamos

    em vias de nos tornar: a parte da histria e a parte do atuar'.

    H trs termos em jogo nesse fragmento: o ontem, o hoje e o

    passado. O ontem uma dimenso do presente: o que somos, mas, igualmente, o que estamos deixando de ser. O hoje - designado, por

    Deleuze, como o atual - o que estamos nos tornando. Finalmente, o passado o que se constitui, na forma de histria, a partir da distncia instaurada entre o ontem (o presente) e o hoje (o atual).

    30 Idem: idem.

    Deleuze, G. - "Qu'est-ce qu'um dispositif?" Em Association pour le Centre Michel Foucault -

    Michel Foucault philosophe. Paris: Seuil, 1989, p. I90-191.

    Nessa perspectiva, o passado no o que nos fundamenta. Longe

    de ser fonte de nossa identidade, ele faccionado a partir de nossa dis-perso - a diferena presente/atual -, facultando uma reflexo sobre ela

    e alimentando experimentaes com o novo, com o que est em vias de ser. Porque o atual no esboo de um futuro livre e desalienado, mas

    o agora de nosso devir, desejvel como tempo outro, nunca como completude, realizao ou reconciliao.

    Embora grande parte dessas consideraes emerja de maneira mais

    explcita na pena de Deleuze e seja costumeiramente associada aos lti-

    mos trabalhos de Foucault, a problematizao muito mais remota,

    podendo ser conectada aos temas do biogrfico, da experincia e dos

    usos estratgicos da histria.

    Radical anti-humanista, Michel Foucault foi, surpreendentemente,

    um dos pensadores contemporneos que mais batalhou para que a

    experincia fosse incorporada reflexo filosfica e historiogrfica. Co-nhecendo as restries foucaultianas fenomenologia, o leitor poderia

    objetar estar eu, agora, tentando transformar Foucault em uma espcie

    de Sartre, que to feliz ficava em dispor de uma ferramenta que lhe

    permitia fazer filosofia, inclusive, acerca do cocktail saboreado nas me-sas do Caf de Flore. claro que no se trata disso. Foucault integra a

    experincia reflexo historiogrfica na qualidade de uma inquietao que se torna ponto de partida para um trabalho terico, tico e poltico. Manter a experincia em nvel pessoal, sem desdobrar suas conseqn-

    cias, que seria limitar-se, qual Sartre, ao plano de um subjetivo cons-

    tituinte, atenuando virtuais poderes de perturbao.

    A esse respeito, Eribon ressalta as repetidas referncias de Foucault a

    "experincias transformadoras"32 envolvendo relaes com os outros,

    inseres na vida cultural, engajamentos polticos, confrontos com

    normas institucionais, etc. Em uma entrevista concedida em 1981 a

    Libration, por exemplo, Foucault declara: "Cada vez que tentei fazer um trabalho terico, foi a partir de elementos de minha prpria experi-ncia: sempre em relao com processos que eu via se desenvolverem

    Eribon, D. - Michel Foucault e seus contemporneos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996, p.36.

    20 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 21

  • em torno de mim. Foi porque acreditei reconhecer nas coisas que via,

    nas instituies com que me ocupava, em minhas relaes com os ou-

    tros, fissuras, abalos surdos, disfunes, que empreendi esse trabalho -

    algum fragmento de autobiografia"".

    Se isso d a impresso de ser mais uma das reconstrues de tra-

    jetria to ao gosto de Foucault, pode-se recorrer a um texto bem mais

    antigo, a apresentao de autor que figurava na capa de Histria da

    loucura quando de seu lanamento, em 1961: "Este o livro de algum

    que se surpreendeu (...), freqentou os hospitais psiquitricos (do lado

    em que as portas se abrem), conheceu na Sucia a felicidade socializada

    (do lado em que as portas no se abrem mais), na Polnia, a misria

    socialista e a coragem necessria, na Alemanha, no muito longe de

    Altona, as novas fortalezas da riqueza alem (...). Tudo isso o fez refletir,

    com seriedade, sobre o que um asilo..."34

    Sob forma mais abstrata, aproximadamente a mesma idia - a

    da experincia transformadora, a da experincia tico-poltica de um

    devir-outro - que emerge em Arqueologia do saber "A anlise do arquivo

    comporta, pois, uma regio privilegiada: ao mesmo tempo prxima de

    ns, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que

    cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade;

    aquilo que fora de ns nos delimita. A descrio do arquivo desenvolve

    suas possibilidades (...) a partir de discursos que comeam justamente a

    deixar de ser os nossos (...). Nesse sentido, vale para nosso diagnstico

    (...) porque nos desprende de nossas continuidades (...), faz com que o

    outro e o externo se manifestem com evidncia".

    A despeito desses indcios remotos, no h como negar que um

    maior destaque da experincia transformadora, incluindo os nexos

    que esta mantm com a vida-biografia e a construo da narrativa

    33Foucault, M.- "Est-iI donc important de penser?" Em Dits et crits, vol. IV. Paris: Gallimard, 1994, p. 182, grifos nossos. 3 Apud Eribon, op. cit., 1996, p. 41.35

    Foucault, M. - Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1987, p. 150-151.

    22 Foucault e a Psicologia

    historiogrfica, data do final dos anos 1970 e da dcada de 1980 -

    momento em que a produo foucaultiana tem por foco os modos de

    subjetivao, a tica, a governamentalidade. Em uma entrevista

    concedida nos Estados Unidos em 1979, aps denunciar como um

    perigo a compreenso de identidade e subjetividade sob a forma de

    componentes profundos e naturais - conclamando a uma liberao de

    nossa relao a ns mesmos -, Foucault situa o lugar de suas

    pesquisas (e a eventual verdade nelas contida) nesse processo: "Eu

    no sou propriamente um historiador. E no sou romancista. Pratico

    uma espcie de fico histrica. De certa maneira, sei muito bem que

    o que digo no verdade (...). Sei muito bem que o que fiz , de um

    ponto de vista histrico, parcial, exagerado (...). Tento provocar

    uma interferncia entre nossa realidade e o que sabemos de nossa

    histria passada. Se sou bem sucedido, essa interferncia produzir

    efeitos reais sobre nossa histria presente. Minha esperana que meus

    livros ganhem sua verdade uma vez escritos - e no antes (...).

    Espero que a verdade de meus livros esteja no futuro"36.

    Quanto a isso, vale lembrar que Nietzsche, filsofo que Foucault

    muito admirava, tanto via utilidade quanto, principalmente, desvanta-

    gem para a vida na histria - como sugere o ttulo da Segunda Conside-

    rao Intempestiva. Para inverter o balano, a temporalidade instituda

    precisaria ser alterada a marteladas, pois "cessa de viver tudo que dis-

    secado at o fim" e, em todos os domnios, "apenas algo surge e j se

    explica o itinerrio passado, a evoluo futura, (...) se o decompe, se o

    corrige ou admoesta - se faz de tudo para evitar precisamente o que

    mais importa, que a obra tenha seu efeito sobre a vida e sobre a ao"37.

    Nesse sentido, de acordo com Nietzsche, no caberia relacionar os ho-

    mens a seu tempo; ao contrrio, seria desejvel pens-los, a cada

    momento, em luta contra seu tempo. Disso, justamente, nos fala Foucault

    Foucault, M. "Foucault tudie la raison d'tat". Em Dits et crits, vol. III. Paris:

    Gallimard, 1994, p. 805. 3-

    Apud Plbart, P.D. "Deleuze, um pensador intempestivo". Em Lins, D. et al.

    Nietzsche e Deleuze. Intensidade e paixo. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2000, p. 67.

    Foucault e a Psicologia 23

  • com sua histria-fico - histria do presente construda contra o pre-

    sente, a partir daquilo que este j carrega de devir-outro, de intempestivo.

    Trata-se igualmente, conforme assinalamos, de uma relao extre-

    mamente singular entre tempo e narrativa historiogrfica. Pois se essa

    narrativa pode "agir sobre" (transformar) a dimenso presente-futuro -

    fazendo-se verdadeira a partir do momento em que escrita -, sua elabora-

    o est, ao mesmo tempo, condicionada pelas experincias que, de al-

    gum modo, j nos desprenderam do que somos. nessa linha que, em

    uma entrevista concedida em 1978 a Ducio Trombadori, Foucault abor-

    da a relao entre experincia pessoal e escrita da histria. Desde o come-

    o da interlocuo, afirma-se um experimentador mais do que um teri-

    co: diz que seus livros foram provocados por experincias; que os prprios

    livros so experincias; que uma experincia aquilo de que se sai

    transformado; que escreve para mudar a si mesmo e aos outros. Intrigado

    com o uso repetido do termo experincia, o entrevistador levanta a hip-

    tese de um possvel nexo com a fenomenologia. Foucault retruca que o

    problema principal no est em trazer luz "a significao da experincia

    quotidiana para reencontrar, no que sou, o sujeito fundador", como acon-

    tece no projeto fenomenolgico; a experincia, ao contrrio, tem por

    funo "arrancar o sujeito de si mesmo, fazer com que ele no seja mais

    ele mesmo", em um empreendimento de "des-subjetivao"".

    Atuando como uma espcie de "advogado do diabo", Trombadori

    lhe pergunta de que forma, em meio a tanta experimentao, poderiam

    ser atendidos os critrios de verdade histrica, credibilidade e objetivi-

    dade. Foucault no se faz de rogado: cnscio de estar imerso nas lutas

    entre programas de verdade, admite trabalhar com os mtodos clssicos

    (documentos, esquemas, citaes, formas de explicao), o que faz de

    seus livros objetos to passveis de confirmao e/ou refutao quanto

    quaisquer outros. No entanto, no se importa de que eles possam ser,

    igualmente, considerados fices: "...meu problema no satisfazer os

    historiadores profissionais. Meu problema o de fazer, e de convidar os

    38 Foucault, M. - "Entretien avec Michel Foucault". Em: Dits et crits, vol. IV. Paris:

    Gallimard, 1994, p. 43.

    24 Foucault e a Psicologia

    outros a fazerem comigo, atravs de um contedo histrico determina-

    do, uma experincia daquilo que ns somos, daquilo que no apenas

    nosso passado mas tambm nosso presente, uma experincia de nossa

    modernidade da qual saiamos transformados. O que significa que ao

    fim do livro possamos estabelecer relaes novas com o que est em

    pauta". Em uma referncia especfica questo da loucura, adenda:

    "...que eu, que escrevi o livro, e que aqueles que o leram tenham com

    relao loucura, a seu estatuto contemporneo e sua histria no

    mundo moderno, uma outra relao"".

    Logo, por mais que Foucault fale em autobiografia e em experi-

    ncia pessoal, a questo no est em transp-las diretamente para o

    saber, maneira de confisses. A experincia e o biogrfico se situam,

    simultaneamente, no comeo e no fim de um processo: a construo

    do objeto deflagrada por uma perturbao do taken for granted do

    presente (o atual o designa como o que j no somos mais); a narrativa

    histrica, por sua vez, faculta o acesso a uma experincia nova, transfor-

    mao ou metamorfose que, eventualmente, se liga a uma prtica cole-

    tiva - pensemos nos vnculos dos livros de Foucault com a antipsiquiatria,

    os movimentos de liberao sexual, os movimentos de detentos, etc.

    Quanto a este ltimo aspecto, Trombadori expressa novas dvidas, con-

    siderando difcil que prticas coletivas possam ser conectadas a experi-

    ncias individuais, o que redunda em novo esclarecimento por parte de

    Foucault: "Uma experincia qualquer coisa que se faz realmente sozi-

    nho, mas que no se pode fazer plenamente seno na medida em que

    escape pura subjetividade e que os outros possam, no diria retom-la

    exatamente, mas ao menos cruz-la e atravess-la"".

    Vigiar e punir lhe serve, a seguir, de mote decisivo. Afirma que,

    quando o livro saiu, muitos trabalhadores do sistema penitencirio lhe

    diziam que era paralisante: depois de l-lo, no conseguiam atuar do

    mesmo modo que antes. Alm de recordar ter sido o texto escrito a

    partir da experincia do GIP (Grupo de Informaes sobre as Prises),

    39 Idem, p. 44.

    Idem, p. 47.

    Foucault e a Psicologia 25

  • Foucault identifica nesses efeitos o sucesso do empreendimento

    historiogrfico: "Ele se l, portanto, como uma experincia que muda,

    que impede (...) de ter com as coisas, com os outros, o mesmo tipo de

    relao que se tinha antes da leitura. Isto mostra que, no livro, se expri-

    me uma experincia bem mais ampla que a minha. Ela nada fez seno

    inscrever-se em alguma coisa que estava efetivamente em curso; na trans-

    formao do homem contemporneo quanto a si mesmo, poderamos

    dizer. Por outro lado, o livro tambm trabalhou por esta transformao

    (...). Eis o que para mim um livro-experincia, por oposio a um livro-

    verdade e a um livro-demonstrao"41.

    Um pouco de possvel, seno....

    Um livro-experincia, afinal, em contraste com tantos e tantos livros-

    verdade, livros-demonstrao, que nos intoxicam de saberes psicolgicos

    pretensamente nobres, orgnicos, maiores, os quais, como que

    distraidamente, ignoram as condies de produo da dita "cincia"

    que veiculam - eis a provocao primeira da aproximao entre

    "Foucault e a Psicologia", aventura da presente publicao.

    Impossvel, e mesmo desaconselhvel, apresentar-prefaciar uma

    experincia; mais vale seguir, atento, seus destinos, quando se vir atra-

    vessada pelas experincias de seus leitores. Posso apenas focalizar minha

    prpria travessia, a de primeira leitora (ao menos oficialmente); nada

    mais fiz at aqui, alis, do que dela falar. Porque se optei em trazer, de

    meus descaminhos junto a Foucault, algumas articulaes entre bio-

    grafia, temporalidade e experincia, foi em funo do impacto que me

    provocaram as experincias biogrficas transformadoras que, sinto e par-tilho, conduziram Kleber Prado Filho, Arthur Ferreira, Simone Hning,

    Neuza Guareschi, Henrique Nardi e Rosane Neves da Silva elabora-

    o de suas fices transgressivas - discursos e prticas que recusam,

    para o campo psi , a temporalidade inevitvel de um destino... funesto.

    41 Idem, idem.

    Para tanto, esses companheiros discursivos imiscuram-se naque-

    las zonas cinzentas de que feita a genealogia - circunstncia que os

    levou a parar de mentir, ou melhor, a negar-se a construir/praticar uma

    psicologia das manhs modernistas, tingida do azul da verdade revela-

    da atravs das grandes narrativas. Cumpre frisar, contudo, que, em meio

    aos tons cinzentos, espaos de luminosidade se esgueiram - eles os in-

    ventam, qual obras de arte, na forma de arqueologias, histrias,

    problematizaes auto-reflexivas e interferncias em jogos de verdade,

    em lugar de lamentar-se por algum ilusrio descaminho do qual estari-

    am desimplicados. Com isso, nos facultam vislumbrar aquela parcela

    de possvel que nos livra da sufocao, que impede a asfixia.

    Virando a pgina, novos leitores podero conspirar - termo que, como bem disse Guattari, sugere "respirar junto"". E tambm eu sigo,

    agradecida por este convite a apresentar dotado da liberdade de jamais

    policiar, respirando (junto) com eles.42

    Guattari, E - "Trs milhes de perversos nos bancos dos rus". Em: Revoluo Molecular. So Paulo: Brasiliense, 1987.

    Foucault e a Psicologia 27 Foucault e a Psicologia 26

  • A PSICANLISE E A PSICOLOGIA NOS DITOS

    E ESCRITOS DE MICHEL FOUCAULT

    Arthur Arruda Leal Ferreira'

    Introduo: Michel Foucault e o nomadismo no

    pensamento

    A crtica foucaultiana pretenso de unidade do discurso em fun-

    o da noo de autor estabelecida em O que uma autor (1968-B) talvez no

    encontre maior pertinncia que na reunio de enunciados cunhados pela

    assinatura do prprio Michel Foucault. Quase impossvel detectar um

    trao qualquer de permanncia, que no seja o constante ultrapassagem

    de um pensamento, que sempre apaga suas prprias pistas e produz novas

    evidncias. Como se a essncia do pensar pudesse ser constantemente se

    dis-pensar se re-pensar. Impossvel falar em nome de Foucault, impossvel

    Ser foucaultiano. Antes de se perguntar "Quem-Foucault?",

    necessrio se perguntar "Qual-Foucault?", na instantaneidade de um certo

    texto, no conjunto de foras momentneas que atravessam os enunciados

    assinados com o seu nome. Da que sob a mscara foucaultiana podemos

    encontrar o zumbido de um coletivo.

    Fica difcil portanto avaliar o conjunto de textos foucaultianos

    conforme um bloco, ou segundo um conjunto de princpios. No

    possvel jamais reconhecer um sistema filosfico delineando os seus

    textos. Contudo, segundo Mrcio Goldman (1998), persistiria ao longo

    dos trabalhos de Foucault: a) um modo de constituio de objetos, b)

    um procedimento de exame e c) um conjunto de objetivos. Quanto

    constituio de objetos, Foucault, segundo Goldman, escreveria

    ' Professor adjunto do Instituto de Psicologia da UFRJ, pesquisador apoiado pela FAPERJ e FUJB, e doutor em Psicologia Clnica pela PUC/SP.

    Foucault e a Psicologia 29

  • conforme Carmelo Bene em seu manifesto do menos, extraindo os perso-

    nagens maiores da cena, e dando vida aos menores e coadjuvantes.

    deste modo que este pensador procederia, retirando de foco, por exem-

    plo, cincia e ideologia como eternos protagonistas, e introduzindo saber

    e poder. No que tange ao procedimento de exame, o ponto de partida se

    encontra numa questo, ou numa luta presente. A partir da, toma-se um

    determinado objeto em questo como a clnica, a priso, ou a sexualida-

    de, e dissolve-o em suas condies de possibilidade histricas,

    acontecimentalizando-o e lanando-o na singularidade de suas mltiplas

    causas. deste modo que tudo que se apresenta como universal e neces-

    srio remontaria a uma contingncia objetivada e rarificada ao longo da

    histria. Por fim, o seu objetivo, como se pode entrever, poltico. Mas

    no no sentido de fornecer diretrizes, e sim instrumentalizando lutas. E

    isto seria realizado de trs modos: 1) tornando crtico o que escapava

    crtica, atravs da historicizao; 2) problematizando a prpria luta, esta-

    belecendo-a to local e histrica quanto os seus alvos; 3) participando nas

    prprias lutas atravs da passagem pela alteridade e pela diferena.

    Contudo, esta constante proposio de objetos, modos de exame e

    lutas faz entrever a existncia de alguns perodos no pensamento

    foucaultiano baseado em alguns critrios como:

    1) A trama conceitual expressa nos principais objetos postulados:

    saberes e discursos (arqueologias), poderes e governamentalidade

    (genealogias), cuidados de si ou ticas (subjetivaes).

    2) Os seus alvos cr t icos: o posit ivismo, o humanismo -

    fenomenolgico, o estruturalismo, o marxismo (a comunistologia), e a

    psicanlise.

    3) O que afirma em cada perodo como alternativa: a literatura e o

    ser da linguagem, a revoluo e os contrapoderes, a liberdade e a possibi-

    lidade de estranhamento de nossas formas de subjetivao.

    Atravs destes critrios possvel mapear cerca de dez perodos

    no pensamento foucaultiano, sendo a atribuio dos cinco primeiros

    inspirada no texto de Roberto Machado, Cincia e Saber (1982-A). A

    tarefa deste artigo ser tentar captar o sentido das transformaes que

    seescondem sob a assinatura de Michel Foucault ao longo destes dez per-

    odos, e tentar delinear os possveis dilogos desses personagens que a

    espreitam com a psicanlise e a psicologia. Esta multiplicidade de autores

    se ver refletida nas seguidas reavaliaes feitas em torno destes temas.

    Jacques Derrida (1994) se referir relao com a psicanlise utilizando

    a imagem de uma dobradia de porta (em que Freud seria o porteiro), de

    um pndulo ou de um balancim, que "sucessivamente abre e fecha, apro-

    xima e afasta, repudia ou aceita, exclui ou inclui, desqualifica ou legiti -

    ma, domina ou liberta" (op.cit., pp.62-63). deste modo que a psican-

    lise, de contracincia humana em As Palavras e as Coisas, torna-se mero

    efeito do dispositivo confessional da sexualidade, ou hermenutica de si

    crist, ao longo dos trs volumes da Histria da Sexualidade (1976-C,

    1984-A e B). A psicologia, apesar de alguma considerao positiva em

    seus primeiros artigos (dcada de cinqenta), gozar de uma avaliao

    mais unnime em torno da crtica, apesar das razes se modificarem.

    Avaliemos esta relao de Foucault com estes saberes perodo a perodo.

    1- O Jovem Foucault (dcada de cinqenta)

    Neste momento seminal, temos a rara oportunidade de ver um

    Foucault psiclogo, buscando delinear a positividade deste saber. Para

    este autor (1957-B, p.148), a verdadeira pesquisa psicolgica seria pro-

    duzida margem da cincia institucional (como por exemplo a

    psicanlise e a noo de inconsciente, gerada fora dos cnones de uma

    psicologia oficial da conscincia). A relao entre pesquisa e prtica s

    seria inteiramente positiva em uma sociedade marcada pelo pleno

    emprego e com uma tcnica industrial exigente, sem, pois, qualquer

    contradio. Como esta condio no se cumpre em nossa sociedade, a

    pesquisa psicolgica s pode nascer dos obstculos das prticas sociais

    (que seriam disciplinados pela psicologia oficial):

    Sem forar a exatido, pode-se dizer que a psicologia em sua origem uma

    anlise do anormal, do patolgico, do conflitual, uma reflexo sobre as

    contradies do homem com ele mesmo. E se ela se transforma em uma

    30 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 31

  • psicologia do normal, do adaptativo e do ordenado, de um modo secun-

    drio, como por um esforo de dominar as contradies (Foucault, 1957A,

    pp. 121,122).

    O objeto de exame por excelncia neste perodo ser o homem

    concreto na negatividade e na contradio de sua existncia social ao

    longo da histria. Este homem concreto deslindado no cruzamento de

    vrias referncias, como o marxismo (a alienao do doente mental como

    produto de contradies histricas), o existencialismo' (a existncia au-

    tntica expressa no sonho e na angstia, na qual a loucura seria uma

    forma inautntica, uma vez que desprovida de liberdade histrica) e a

    psicanlise (a importncia do significado e da interpretao na apreenso da

    negatividade do homem). Buscando uma positividade para esta psicologia

    do homem concreto, ela ser recusada nas suas vertentes

    positivistas, uma vez que estas buscam apagar as contradies histricas,

    como a existente entre um mtodo positivo e o seu objeto, marcado por

    uma negatividade essencial (Foucault, 1957-A). Da que se possa dizer

    que a positividade da psicologia s pode vir da negao de sua objetividade

    e da afirmao da negatividade do homem: "A psicologia s se salvar

    atravs de uma volta aos Infernos" (op. cit., p.158). Neste quadro, a psi-

    canlise seria a nica das psicologias verdadeiramente positiva, pois daria

    conta do negativo do homem: "Esse sentido originrio ainda um dos

    paradoxos e uma das riquezas de Freud, de ter percebido melhor que

    qualquer outro, contribuindo para recobri-lo e escond-lo" (op. cit.,

    p.158). E, deve-se acrescentar, com a metodologia adequada, qual seja, a

    busca de significaes objetivas (Foucault, 1957-A).

    Contudo, a contradio mais notvel no seio da psicologia estaria

    em seu estatuto como saber crtico, posto que estaria num regime

    entre a tomada de conscincia de nossa constante produo de iluses,

    prpria da histria, e a denncia dos erros, inerente s cincias natu -

    rais. A psicologia teria pois um estatuto hbrido: crtica como a hist-2

    Notadamente o de Ludwig Biswanger, autor ao qual Foucault prefaciou no texto Le rve et le existnce (1954).

    32 Foucault e a Psicologia

    ria, mas realista como a cincia. Contudo, este saber no atingiria nem

    a positividade das cincias (a objetividade) nem a da histria (do reco-

    nhecimento das iluses), restando apenas o constante ultrapassamento

    crtico de si que a caracteriza (Foucault, 1957-B., p.144-145). deste

    modo que este "jovem Foucault" explica a pluralidade da psicologia:

    ela ocorre porque cada orientao sua (behaviorismo, gestaltismo, psi-

    cologia dinmica, etc.) se ergue nesta misso de uma critca hbrida

    contra as demais, sempre denunciando-as entre a iluso e o erro.

    2- Foucault arquelogo (dcada de sessenta)

    O sentido do trabalho arqueologico de Foucault a ampliao

    do alvo de suas investigaes, passando do exame das condies de

    surgimento da psiquiatria (Histria da Loucura), s da clinica (Nasci-

    mento da Clnica), e at ao crculo antropolgico que as constitui (As

    Palavras e as Coisas). A literatura ser tomada nesta fase como uma al-

    ternativa a este crculo antropolgico, afirmado-se neste perodo de

    diversos modos, conforme cada subfase, e em contraste com os objetos

    examinados ao longo dos deslocamentos arqueolgicos (loucura, clni-

    ca, cincias humanas)3. Neste bojo, a psicanlise e a psicologia sero

    avaliadas de modo diferenciado conforme as subfases4 deste perodo.

    2.a) Arqueologia da Precepo5 (Histria da Loucura, 1961-1962)

    O tema da histria da loucura poderia sugerir a presena de uma

    histria progressiva da psiquiatria, ao modo das histrias da cincia.

    Esta a principal tese de Roberto Machado desenvolvida em seu livro Foucault, a filosofia e a literatura (1999).

    A designao das subfases arqueolgicas seguir a classificao apresentada por Machado em seu livro Cincia e Saber (1982-A). Devo ressaltar que uma grande parte das idias aqui expostas sobre o perodo arqueolgico foram desenvolvidas ao longo dos seus cur sos de

    ps-graduao em filosofia na UFRJ.

    ' O uso do conceito de percepo remete a Maurice Merleau-Ponty, uma vez que esta,

    sendo social e pr-racional, daria conta das prticas operadas ao longo da histria em

    torno da loucura.

    Foucault e a Psicologia 3 3

  • Mas segundo Machado (1982-A, pp.93-95), se possvel vislumbrar

    um sentido histrico para a psiquiatria, ele negativo, pois o suposto

    progresso desta implica o distanciamento daquilo que tomado como

    referncia para Foucault nesta poca: a experincia trgica da loucura.

    No se trata de uma essncia imutvel da loucura, mesmo ao "confron-

    tar as dialticas da histria e as estruturas imveis do trgico" (1961-A,

    p.162). Trata-se de uma experincia (portanto sem qualquer carter

    universal como promete a pesquisa de uma essncia), e trgica (sem a

    menor possibilidade de sntese ou pacificao). Neste referencial

    nietzscheano6, o homem concreto deixa de ser a medida da negatividade

    que lhe atravessa. Torna-se mais uma das figuras aptas a silenciar a lou-

    cura: "Se (Pinel) libertou o louco da desumanidade de suas correntes,

    acorrentou ao louco o homem e a sua verdade" (Foucault, 1961-B,

    p.522). A recusa ao homem concreto remete a um abandono do

    referencial marxista, presente na mudana do conceito de alienao'.

    Deste modo, este retirado de seu vis trans-histrico, e associado a

    uma das formas em que a loucura foi capturada pela razo moderna,

    como verdade do homem, na qual o louco se encontra imerso: "a alie-

    nao ser depositada como verdade secreta no corao de todo conhe-

    cimento objetivo do homem" (Foucault, 1961-B, p.457).

    O que se mostrar consonante com esta experincia trgica da

    loucura ser a literatura' enquanto ausncia de obra. Segundo Machado

    (1999, captulo 1), esta relao passa por trs aspectos: 1) ambas seriam linguagens; 2) a loucura seria a verdade da obra literria; 3) verdade essa

    que se daria na ausncia de obra. O conceito de ausncia de obra seria

    6 Segundo Machado (1999), h um enorme paralelo entre este primeiro livro de

    Foucault com o primeiro livro de Nietzsche, O Nascimento da tragdia

    Um bom guia para esta anlise o texto de Macherey: Nas origens da histria da

    loucura: retificao e limite (1985)

    'Exemplos deste esprito trgico na literatura seriam Hlderlin, Nerval, Sade e Nietzsche.

    Mas haveriam representantes em outras artes, especialmente no perodo renascentista

    (quando a distncia entre razo e desrazo se fazia menor), como Bosch e Bruegel (pin-

    tura) e Sheakspeare (teatro). Cabe ainda uma referncia pintura de Goya , mesmo que

    prpria do perodo moderno.

    34 Foucault e a Psicologia

    proveniente de Artaud, apontando para uma escrita no limiar entre a

    loucura (ausncia de sentido) e a obra (produo de uma ordem deter-

    minad a) . De todo modo, a l ingu agem do lou co , dad a nu ma

    autoimplicao que no apontaria para nada mais alm dela (o vazio da

    linguagem), serve de modelo para a compreenso da literatura, e medi-

    da para julgar o suposto progresso da psiquiatria.

    Agindo num sentido excludente, a constituio do dispositivo psi-

    quitrico revelar em seu desenrolar o silenciamento, a distncia e a ten-

    tativa de domnio da experincia trgica da loucura. Esta histria ser

    contada na partio entre dois nveis, o da Percepo (que vir mais tarde

    a configurar o que Foucault nos anos setenta designa por poder) e o do

    Conhecimento (que vir a se transformar em saber em As Palavras e as

    Coisas), distribudos em trs grandes perodos: Renascimento (do fim da

    Idade Mdia at 1650, data inicial do Grande Internamento), Idade Cls-

    sica (de 1650 at 1789, e a suposta libertao dos loucos por Pinel) e

    Modernidade (que engloba a atualidade). Somente a experincia trgica

    da loucura permaneceria imvel ao longo dos tempos. Ainda que ao lon-

    go da fase arqueolgica mudem os alvos de pesquisa para a clnica e para

    as cincias do homem, estes perodos permanecero os mesmos.

    Mesmo sendo mudados os referenciais da pesquisa foucaultiana,

    persevera a hiptese do primeiro perodo, da psicologia gerada atravs

    dos avessos da prtica, ou, conforme frmula de Frederic Gros (1997,

    p.80), da luz das empiricidades nascendo na escurido. No presente

    caso, a escurido refere-se s baixas origens da psicologia ligadas ao

    movimento de internao massiva da loucura (perodo clssico) e fi-

    xao de uma natureza humana como verdade da loucura a partir da

    paralisia geral, loucura moral e da monomania: "o homo psychologicus

    descendente do homo mente captus" (Foucault, 1961-B, p.522). Para

    utilizar novamente uma imagem de Gros (1997, p.79), o homem e a

    psicologia "apiam sua positividade no vazio furioso do insensato".

    Quanto ao homem, este "s se torna natureza para si na medida em que

    capaz de loucura [...] forma principal e primeira do movimento com

    o qual a verdade do homem passa para o lado do objeto e se torna

    Foucault e a Psicologia 35

  • acessvel a uma percepo cientfica" (Foucault, 1961 -B, p.518). No que diz respeito psicologia:

    O paradoxo da psicologia "positiva" do sculo XIX o de s ter sido

    possvel a partir do momento da negatividade: psicologia da personalida -

    de por uma anlise do desdobramento; psicologia da memria pelas am-

    nsias; da linguagem pelas afarias, da inteligncia pela debilidade mental.

    (op. cit., p. 518).

    A loucura moderna sob a qual repousa o honro psychologicus seria

    marcada por uma srie de aporias, que se veriam refletidas no campo do

    conhecimento. deste modo que a loucura reflete ora a verdade mais

    primitiva, ora a verdade mais terminal do homem; ora a loucura repre-

    senta o triunfo do orgnico (materialismo), ora a maldade em estado

    selvagem (espiritualismo); ora o acmulo de razes que se desdobra na

    irresponsabilidade (determinismo), ora a ausncia de qualquer razo plau-

    svel; ora uma contradio na prpria razo em vigor, ora a necessidade

    da razo do outro, como no tratamento moral (op.cit., pp. 512-514).

    Em suma, neste sentido que se pode dizer que a psicologia tribu-

    tria da loucura, mas no vice-versa. De modo que possvel afirmar que

    Foucault pretende tomar a desmedida como medida da psicologia:

    Ela [a psicologia] est sempre na encruzilhada entre dois caminhos:

    aprofundar a negatividade do homem ao ponto extremo onde amor e

    morte pertencem um ao outro indissoluvelmente, bem como o dia e a

    noite, a repetio atemporal das coisas e a pressa das estaes que se sucedem

    - e acaba por filosofar a marteladas. Ou ento exercer-se atravs de retomadas

    incessantes, os ajustamentos do sujeito e do objeto, do interior e do

    exterior, do vivido e do conhecimento (op. cit., p.522).

    A psicanlise desbancada por Nietzsche como via de acesso ao

    negativo do homem. Nesse incio dos anos sessenta, passa a ter estatuto

    ambguo, pois se Freud teve a vantagem de se opor estrutura asilar, por

    outro lado, ele est includo na linhagem mdica inaugurada por Pinel:

    Freud fez deslizar na direo do mdico todas as estruturas que Pinel e Tuke

    haviam organizado no internamento. Ele de fato libertou o doente dessa

    existncia asilar na qual tinham alienado seus "libertadores". Mas no o

    libertou daquilo que havia de essencial nessa existncia; agrupou os poderes

    dela, ampliou-os ao mximo, ligando-os nas mos do mdico... (Foucault,

    op.cit, p. 503).

    Contudo, como lembra Derrida (1994), Histria da Loucura um

    dos textos mais ambguos de Foucault, onde seu pndulo oscila mais,

    pois em vrias outras passagens a psicanlise vista como prxima ex-

    perincia da desrazo clssica abafada pela psicologia moderna (posio

    presente em todo o livro, com exceo dos dois ltimos captulos):

    Freud retomava a loucura ao nvel de sua linguagem, reconstitua

    um dos elementos essenciais de uma experincia reduzida ao silncio

    pelo positivismo. Ele no acrescentava lista dos tratamentos psicolgi-

    cos da loucura uma adio maior; reconstitua, no pensamento mdico,

    a possibilidade de dilogo com o desatino... (Foucault, 1961-B, p.338).

    2. b) A Arqueologia do olhar (Nascimento da Clnica, 1963-1964)

    Do mesmo modo que opera em relao histria da psiquiatria,

    Foucault, no exame da clnica, pretende pr prova o seu estatuto

    atemporal, atravs de um suposto olhar que se apuraria progressiva-

    mente. Pelo contrrio, ela se constituiria atravs de diversas articula-

    es entre o visvel e o dizvel. Para tal, o par estrutural Ver-Dizer (ou olhar loquaz, olhar-linguagem, espacializao-verbalizao, etc.) se im-

    pe como conceito fundamental. Aqui, cada termo pertence ao outro

    numa relao intrnseca, de resto bem diversa da distncia do par Per-

    cepo-Conhecimento. tambm em O Nascimento da Clnica (1963-B)

    que Foucault faz a primeira referncia ao termo arqueologia, presente no subttulo. As fases desta histria so as mesmas de Histria da

    Loucura: haveria uma protoclnica clssica (com o predomnio do dizer sobre o ver, marcada por uma taxonomia dos sintomas, relacionando-os

    36 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 3 7

  • como signos dentro de uma botnica das espcies patolgicas ideais) e

    uma antomo-clnica moderna (com o privilgio do visvel no par estru-

    tural, remetendo a patologia no mais a um conjunto de signos ideais,

    mas ao volume corporal dos tecidos), intermediadas por uma clnica na

    passagem do sculo XVIII para o XIX (com equilbrio entre viso e

    discurso, onde sintoma e sentido se equivalem).

    A referncia s prticas sociais, ou como Foucault chama neste li-

    vro, estruturas tercirias da medicina, do-se na primeira metade do livro,

    numa abordagem prxima da que ser retomada no perodo genealgico,

    ainda que se sustente aqui uma concepo repressiva do poder. A tese de

    Foucault sobre as estruturas tercirias da medicina remete soluo de

    compromisso entre as foras presentes no perodo da Revoluo francesa:

    entre o corporativismo dos mdicos, buscando codificar o ensino profis-

    sional para controle dos charlates; o liberalismo emprico, associado ao

    fim dos privilgios, associando qualquer conhecimento ao olhar livre; e o

    assistencialismo, presente na instituio hospitalar, enquanto depsito

    de doentes pobres, com o fim de isol-los do convvio com outras classes.

    A clnica costura estas demandas enquanto ensino emprico-prtico que

    distingue os mdicos dos oficiais de sade em sua formao, os primeiros

    atuando sobre os pobres depositados nos hospitais, que pagariam a sua

    assistncia com a exposio para uma pedagogia clnica a ser revertida

    mais tarde em tratamento seguro para as classes mais altas.

    Mantm-se aqui a mesma lgica de gnese pelo avesso das prticas

    inaugurada pelo primeiro Foucault e prosseguida na Histria da Loucura,

    conforme atesta Frederic Gros (1997, pp. 75-82). Da mesma maneira

    que se devem buscar as origens da psicologia na loucura, a da clnica deve

    ser buscada na morte': "Isto que estabelece a rigidez de um cadver o frio rigor das leis que comandam a vida"(op. cit., p. 80). De toda manei-

    ra, esta lgica que permite que pela primeira vez se estabelea no oci-

    A questo da linguagem e da literatura, associada agora ao tema da morte da linguagem (Maurice Blanchot) e da transgresso (Georges Bataille). Esta a tese defendida no segun-do captulo (A Morte) do livro Foucault, a filosofia e a literatura de Machado (1999).

    Conferir tambm Plbart (1989, p.80) e O prefcio transgresso (Foucault, 1963-A).

    38 Foucault e a Psicologia

    ente uma cincia do indivduo, tomando o homem como objeto: "A

    velha lei aristotlica que interditava sobre o indivduo o discurso cientfi-

    co foi levantada quando, na linguagem, a morte encontrou o lugar de seu

    conceito" (Foucault, 1963-B, pp. 195-196). Na dcada seguinte,

    genealgica, caber prtica do exame e no mais morte ou loucura a

    gnese do indivduo. Ainda que o entorno de seu pensamento se modifi-

    que, as palavras do jovem Foucault ainda ecoam:

    O homem ocidental no pde se constituir a seus prprios olhos como

    objeto da cincia, ele no se toma no interior de sua linguagem, nem se

    d a si seno na abertura de sua prpria supresso: da experincia da

    Desrazo, nascem todas as psicologias e a possibilidade mesma da psico-

    logia; da integrao da morte no pensamento mdico nasce uma medici -

    na que se constitui como cincia do indivduo (Foucault, op. cit., p.227).

    Outra passagem relevante as d quando Foucault relaciona o

    surgimento das Cincias Humanas passagem de uma medicina regu-

    lada pela noo de sade para uma mais recente regida pelo conceito de

    normalidade:

    Se as cincias do homem apareceram no prolongamento das cincias da vida,

    talvez porque estavam biologicamente fundadas, mas tambm porque o

    estavam medicamente; sem dvida por transferncia, importao e, muitas

    vezes metfora, as cincias do homem utilizaram conceitos formados pelos

    bilogos; mas o objeto que eles se davam (o homem, suas condutas, suas

    realizaes individuais e sociais) constitua, portanto, um campo dividido

    segundo o princpio do normal e do patolgico. (op. cit., p.40).

    Por outro lado, inaugura-se a fase de aproximao com a psican-

    lise, que segue at As Palavras e as Coisas. No texto A loucura, ausncia de

    obra (1964-A), Foucault considera quatro desvios da linguagem,

    remetidos a quatro modos de loucura: as palavras sem sentido (prpria dos insensatos, imbecis e dementes), as blasfematrias (dos violentos e

    furiosos), as palavras com sentido proibido (dos libertinos e teimosos) e a

    Foucault e a Psicologia 3 9

  • l inguagem esotrica (para onde a loucura migra no incio da

    modernidade). Esta quarta modalidade apontaria para uma forma da

    linguagem e da loucura que somente a psicanlise daria conta, na me-

    dida em que toma-a no como uma ordem oculta, "mas como reteno

    e suspenso do sentido, como criao de um vazio onde possa se alojar

    no um, mas vrios e diferentes sentidos" (Plbart, 1989, p.115). Tal

    concepo faz eco com a tese exposta em Nietzsche, Marx e Freud

    (Foucault, 1964-B), em que a interpretao vista no como uma esca-

    vao de sentidos, mas como uma sobreposio destes por sua fora,

    sem que haja um primeiro termo de origem.

    2.c) A Arqueologia do Saber (As Palavras e as Coisas, 1965-1967).

    Neste livro Foucault ir tambm se posicionar no interior da contenda

    mais marcante do pensamento francs da poca: a que opunha

    estruturalistas e fenomenlogos. Ainda que o privilgio concedido his-

    tria distancie-o do perfil de um estruturalista clssico, e que a sua idia

    de estrutura se aproxime mais da de Georges Dumzil do que da de

    Claude Lvi-Strauss e Jacques Lacan, do lado destes que Foucault ir se

    perfilar. Irmana-se a estes ao negar o privilgio do conceito de homem

    ("apenas um rosto a se desvanecer na areia") e de sujeito em prol de um

    sistema de linguagem pura (1966-B, p.32), ou ser da liguagem. As dife-

    renas com relao ao entendimento do que seja esta linguagem pura, e o

    privilgio da histria se tornaro mais latentes no proximo subperodo, e

    o estruturalismo inicial de Foucault ceder sua negao, como ocorre

    com vrias de suas alianas ao longo de seus trabalhos.

    Neste texto ser proposta uma nova trama conceitual. Teramos

    de um lado os saberes, ou os conjuntos de enunciados que so possveis

    dentro de uma poca (anteriores a qualquer legitimao cientfica), e

    por outro, aquilo que subjaz arqueologicamente a estes, a pistm, que

    fornece uma lgica ou uma estrutura congruente a todo este conjunto

    de saberes. A pistm, com suas caractersticas de profundidade e

    globalizao (cf. Machado, 1982-A, pp. 149-150), refere-se condiode

    possibilidade histrica de um conjunto de saberes aparentemente

    dispersos num perodo, nutrindo-os como o seu "hmus" (Canguilhem,

    1970). Esta "experincia pura da ordem e de seus modos de ser"

    (Foucault, 1966-A, p.10) o que permite se pensar numa estrutura

    histrica (por mais contraditrio que seja este termo) dos saberes, como,

    por exemplo, a representao, enquanto pistrn do perodo clssico,

    dada na tomada dos objetos atravs da relao de signos, analisando-os,

    ordenando-os e classificando-os, como prprio da histria natural,

    anlise das riquezas e gramtica geral dos sculo XVII e XVIII. Em

    oposio a esta lgica taxonmica com fundamento divino, a

    modernidade atravs das cincias empricas (biologia, economia e

    filologia) penetraria mais alm das superfcies semiticas, se

    aprofundando no volume dos corpos, escavando um objeto at ento

    inusitado: o homem enquanto ser histrico e finito, uma vez que vivo,

    falante e produtor de valores. Este mesmo homem que, de objeto

    emprico, reduplicado em fundamento transcendental pela filosofia,

    desbancando Deus e fechando em torno de si um crculo, que Foucault

    denominar antropolgico. Crculo em que o homem ganha duplo es-

    tatuto de ser transcendental e emprico, fonte do cogito e limite impen-

    sado deste, retorno e recuo de toda origem. Neste crculo, a filosofia

    crtica de Kant, que buscava separar entre um nvel emprico e outro

    transcendental, ser esquecida. deste modo que o crculo antropol-

    gico, de efeito da negatividade das prticas nas fases anteriores do pen-

    samento foucaultiano, torna-se pistni, condio de possibilidade dos

    saberes modernos, como a psicologia e as demais cincias humanas10.

    Com as mudanas na anlise da modernidade, muda tambm o a

    priori histrico da psicologia, estabelecendo-se em Foucault uma segun-

    da hiptese quanto gnese deste saber. deste modo que a psicologia,

    como as cincias humanas, reduplica o homem como objeto emprico

    no homem como ser transcendental, atravs da representao (ressuscita-

    " Lebrun (1985) vislumbra uma continuidade entre estas duas possibilidades, em que a

    alteridade continua a se manifestar pelo impensado, que passa a ser transformado de

    positivo em negativo pela filosofia.

    40 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 41

  • da da idade clssica) numa conscincia. Reduplicao, uma vez que o

    homem como fundamento j seria, por sua vez, uma duplicao

    filosfica do homem escavado como objeto emprico pelas cincias

    empricas (biologia, economia e filologia). Este quadro reduplicado das

    Cincias Humanas configurado atravs de um triedro (incluindo aqui

    tambm os modelos formais das matemticas). Assim, na psicologia, o

    que se encontra reduplicado o transcendental positivista da norma, que

    por si j a duplicao da anlise emprica da funo em biologia. Mas

    perfeitamente possvel se pensar uma psicologia nos duplos da economia

    (conflito e regra) ou da lingstica (significao e sistema). Cincias

    empricas (ou do homem), filosofias antropolgicas e sistemas formais

    constituem os eixos do triedro moderno em que a psicologia, junto com as

    cincias humanas, ocupar o volume interno (Foucault, 1966-A, pp.

    450-451). Em funo desta minuciosa descrio da epistm

    moderna, que Canguilhem (1970, pp.146-147) comparar

    analogicamente o que foi a Crtica da Razo Pura para as Cincias

    Naturais, com o que pde ser As Palavras e as Coisas para as Cincias

    Humanas.

    Alm destas consideraes presentes em As Palavras e as Coisas,

    Foucault, numa curiosa entrevista a Alain Badiou (Foucault, 1965, p.

    440), define a psicologia como uma Cincia Humana singular, uma vez

    que em oposio s demais: como cincia da alma em oposio fisiolo-

    gia; como cincia do indivduo em oposio sociologia; e como cincia

    da conscincia em oposio s filosofias de Nietzsche e Schopenhauer,

    oposio esta mais decisiva, e que reaglutina todo o campo das cincias

    humanas em torno da noo de inconsciente (mas ainda dentro do crcu-

    lo antropolgico). Ressalta tambm o aspecto normativo da psicologia,

    tal como ser deslindado no perodo genealgico: "Toda psicologia uma

    pedagogia, todo deciframento uma teraputica, voc no pode saber

    sem transformar" (op. cit., p. 444). De igual modo ressalta a importncia

    de Dilthey na definio das cincias humanas em oposio s cincias

    naturais, e em torno da hermenutica, "tcnica [...] que no tem cessado

    de existir no mundo ocidental desde os primeiros gramticos gregos, dentre

    os exegetas da Alexandria, dentre os exegetas cristos e

    modernos"(op.cit., pp. 446-447). Curiosa hiptese sobre a gnese das

    Cincias Humanas (e da Psicologia) sob as graas da hermenutica, que

    comear a ser desenvolvida quinze anos mais tarde no perodo dos

    estudos sobre o cuidado de si.

    A psicanlise tem aqui a sua fase de elogio mximo. Forma junto

    com a etnologia e a lingstica (pontas de lana do estruturalismo na

    poca), as Contracincias Humanas, que dissolvem o ser humano em

    suas anlises:

    Em relao s `cincias humanas', a psicanlise e a etnologia so antes

    'contracincias'; o que no quer dizer que sejam menos 'racionais' ou

    `objetivas' do que as outras cincias, mas sim que as abordam contra a corrente, reconduzindo-as ao seu suporte epistemolgico e que no ces-

    sam de 'desfazer' este homem que nas cincias humanas faz e refaz a sua positividade (Foucault, 1966-A, pp. 492).

    Contudo, na entrevista concedida a Alain Badiou, Foucault (1965)

    volta a situar a psicanlise e a interpretao no mesmo Crculo Antro-

    polgico em que se encontra encerrada a psicologia experimental. Mais

    ainda: toda a Psicologia bem como as Cincias Humanas se

    encontrariam redefinidas pela noo de inconsciente: ela redefiniria

    velhos problemas, como as oposies indivduo X sociedade e alma X

    corpo, dissolvidas em prol do conceito de psych (op.cit., p.441). Aqui

    a psicanlise e a psicologia situam-se do lado da exegese e da

    hermenutica, e em oposio literatura e loucura, posicionadas no

    mbito da semiologia (Foucault, 1965, pp. 442-443). Se no primeiro

    caso a linguagem buscada como uma interpretao ltima, na

    semiologia ela tomada no vazio de suas leis.

    Balanando ainda mais o pndulo referido por Derrida, Foucault,

    em um outro texto da mesma poca, Nietzsche, Marx e Freud (Foucault,

    1964-B), sustenta que este trio de pensadores se irmana ao tomar a

    interpretao a partir da infinitude, da violncia, da falta de um refe-

    rente primeiro e de um interpretante. A interpretao, presente aqui

    como uma estranha fuso entre o domnio dos saberes e o da lingua-

    42 Foucault e a Psicologia

    Foucault e a Psicologia 43

  • gem, visvel numa "regio entre a loucura e a pura linguagem" (op. cit.,

    p.27) marca o vazio da linguagem com que a psicanlise dialogar. A

    interpretao ter seu espao privilegiado no pensamento foucaultiano

    da prxima subfase, sob o nome de discurso. Mas a psicanlise no

    mais: o pndulo ser paralisado no seu ponto mais distante.

    2.d) Perodo de transio: a Arqueologia dos enunciados

    (Arqueologia do Saber, A Ordem do Discurso, 1968-1970)

    Morey (1996, p.17) descreve Arqueologia do Saber como um livro

    possuidor de uma metodologia ficcional inteiramente escrita em

    condicional, que no se aplica a nenhum outro livro seu. Da o equvoco

    de Dreyfus e Rabinow (1995) em julgar o seu fracasso terico deste texto

    como tendo conduzido genealogia. Pelo contrrio, podem ser vistas

    caractersticas antecipadoras da genealogia se forem comparadas as

    caractersticas dos discursos com a subseqente analtica genealgica do

    poder. Da mesma forma com que o poder proceder na genealogia, os

    discursos se impem como unidade de anlise, se propondo na sua

    materialidade, disperso, raridade e fora irruptiva a substituir as anti-

    gas unidades tradicionais da anlise. Da a recusa s grandes unidades

    da linguagem como esprito, sujeito, autor (no seriam mais fundamen-

    tos, mas funes variveis e complexas do discurso), obra e escrita (me-

    ras substitutas das noes anteriores), objeto, rea temtica, mtodo, estilo e

    conceito (formados atravs das regras das formaes discursivas),

    significado, frase, proposio e estrutura (meros produtos da monarquia do

    significante). Em A Ordem do Discurso, Foucault (1970, pp. 60-70) define

    pela primeira vez a sua tarefa como genealgica, ainda que no se refira

    analtica dos poderes: ela diria respeito ao exame dos discursos em sua

    disperso, descontinuidade e regularidade; enfim, em seu poder de

    afirmao, prprio de um positivismo feliz.

    Os discursos constituem objetos que sintetizam caractersticas dos

    saberes e do ser da linguagem (nesta poca praticamente desaparecem os

    textos sobre linguagem literria), e que, por outro lado, antecipam as

    44 Foucault e a Psicologia

    caractersticas dos poderes na sua fora, materialidade e disperso Se-

    guindo formulao da A Arqueologia do Saber (1969), o discurso com-

    posto por enunciados, que so regulados em sua disperso por forma-

    es discursivas. Quando um conjunto de enunciados se singulariza em

    torno de uma formao discursiva, tem-se urna positividade, que pr-

    pria de um saber; positividade esta que no necessariamente cientfica,

    mas que pode at vir a s-lo em funo de seu limiar. Se a Arqueologia

    do Saber privilegia a descrio dos elementos do discurso e sua regulao,

    a Ordem do Discurso (1970) trata dos seus riscos e restries, a fim de

    "conjurar o discurso em seu zumbido" (op.cit. p. 50). Se os riscos do

    discurso podem ser externos (poder e desejo) ou internos (acaso e aconte-

    cimento), os sistemas de excluso tambm o so externos (proibio da

    palavra, segregao da loucura e vontade de verdade) e internos (co-

    mentrio, autor e disciplina), alm dos mecanismos de restrio (ritual,

    sociedade de discurso, doutrina e apropriao social do discurso), que

    visam selecionar os sujeitos/temas". O mesmo tema ir nortear seu

    primeiro curso no Collge de France (1997-A), em que ope a Vontade de

    Saber (discursiva) Vontade de Verdade. Chega tambm a afirmar como

    alvo de exame as relaes do discursivo com o no-discursivo, ou prticas

    sociais (Foucault, 1971). Mas no determina os modos de relao, nem

    ainda realiza urna analtica do poder. Por isto tudo se trata de um per-

    odo de transio, o canto de cisne da arqueologia.

    Nesta trama conceituai, a psicologia no alvo de grande novida-

    de em sua abordagem, a no ser na sua considerao corno efeito da

    Vontade de Verdade no interior do campo discursivo (conferir a Ordem

    do Discurso, 1970), ou da sua histria enquanto descrio gentica sem-

    pre retomada criticamente, em oposio descrio epistemolgica,

    formal e dedutiva das matemticas (Conferir Sobre a Arqueologia das

    Cincias, 1968-A, p.46). Quanto psicanlise, cessa a aliana prpria

    dos meados desta dcada. Surge a figura dos instauradores da

    discursividade, englobando Marx e Freud, a fim de dar conta de uma

    " Trata-se de um jogo de palavras possvel na lngua francesa, uma vez que o termo sujet usado por Foucault, se refere tanto a sujeito quanto a tema.

    Foucault e a Psicologia 45

  • relao especfica de autoria nas Cincias Humanas (O que um autor?,

    1968-B). Esta idia, j presente desde Nietzsche, Marx e Freud (1964-

    B), aponta para uma figura de autor diversa das Cincias Naturais, em

    que nestas a presena de um nome, como por exemplo no Teorema de

    Tales, aponta apenas para uma homenagem. Neste caso, o ato de fun-

    dao do autor pertence a um mesmo conjunto de