86694139 foucault e a psicologia

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  • 8/2/2019 86694139 Foucault e a Psicologia

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    ISBN 85-86472-06-9

    dos autoresP- edio: 2005

    Reviso: dos autoresCapa:Rafael Marczal de LimaProjeto Grfico:Jadeditora Ltda.Editorao:Rafael Marczal deLima Fotolitos e Impresso:Evangraf Ltda.

    F762F Foucault e a psicologia / Neuza M. EGuareschi, Simone M. Hning (org.);Heliana de B. CondeRodrigues... [et Porto Alegre: Abrapso Sul,

    2005.

    128 p.

    1. Psicologia Social. 2. Foucault, Michel -Crtica e Interpretao. 3. Filosofia. I.Guareschi, Neuza M. F. II. Hning, SimoneM. III. Rodrigues, Heliana de Barros Conde.

    CDD: 301.1

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao(CIP) (Ginamara Lima Jacques Pinto CRB 10/1204)

    Sumrio

    Apresentao:

    Para desencaminhar o presente Psi: biografia, temporalidade eexperincia em Michel Foucault

    Heliana de Barros Conde Rodrigues...................... .............. ........ . 7

    A psicanlise e a psicologia nos ditos e escritos de

    Michel FoucaultArthur Arruda Leal Ferreira........................... ........... ...... ...... .....29

    Para uma arquelogia da psicologia (ou: para pensar

    uma psicologia em outras bases)Kleber Prado Filho...................... .............. ............... ........... .......73

    tica e subjetivao: as tcnicas de si e os jogos de verdadecontemporneos

    Henrique Caetano Nardi e Rosane Neves da Silva........................93

    Efeito Foucault: desacomodar a psicologia

    Simone Maria Hning e Neuza M E Guareschi........................ 107

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    Apresentao

    PARA DESENCAMINHAR O PRESENTE PSI:biografia, temporalidade e experincia em Michel Foucault

    Heliana de Barros Conde

    Rodrigues

    Apresentar a deliciosa ousadia deste livro, que conecta "Foucault e a

    Psicologia", constitui um desafio a contrariar a ordem do discurso, ouseja, a resistir s prticas logofbicas hegemnicas que no toleram asurpresa, o aleatrio e o inaudito sempre passveis de permear ditos eescritos. Praticada, hoje, por significativo nmero de pesquisadores eprofissionais do campo psi, a aventura de trabalhar com ferramentasfoucaultianas implica, nesse sentido, um enigma que melhor seria, talvez,deixar sem soluo - atitude que prefcios e/ou apresentaes parecemdestinados a minar, pois...como antecipar-se sem advertir?

    Um convite, no entanto - como o que me foi feito pelos queretomam/transformam, neste livro, a "funo autor" -, daqueles atosdiscursivos que conclamam potencializao recproca, e no rgidafidelidade (por mais que de inspirao foucaultiana) a princpios "no-prefacian tes" - atitude radical , porm inevitavelmente solitr ia. Acato,

    pois, o convi te generos o a apres entar esta publi cao, embora sem omais leve intuito de decifrao ordenadora, preferindo, ao contrrio,ensaiar uma experimentao compartilhada. Nesse sentido, o presentetexto visa simplesmente a explorar algumas linhas de pensamentoconvocadas pelo quebra-cabeas "Foucault e a Psicologia", jamais a tentarprivar o leitor dos desejveis riscos a que o i ro expor os artigos-discursosque compem a tessitura deste volume.

    Professora do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ);integrante do Clio-Psych - Programa de estudos e pesquisas em Histria da Psicologia.

    Foucault e a Psicologia 7

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    Por inmeras vezes, Michel Foucault afirmou que seus escritos cons-

    tituam "fragmentos de autobiografia". Essa curiosa circunstncia poderialevar a supor fundada em alguma identificao disciplinar a paixo quemuitos psiclogos demonstram por suas hipteses de trabalho. Com base nosescritos de Didier Eribon', sabe-se, por exemplo, que na juventude MichelFoucault trabalhou em hospitais psiquitricos, teve fascnio pelo teste deRorschach, lecionou psicologia em universidades e chegou a pensar, inclusive,em tornar-se psiclogo. A despeito da meno ao biogrfico, nada maisoposto, entretanto, s perspectivas foucaultianas do que essas razespretensamente profundas, que so ancoradas em um sujeito constituinte eque nada explicam, afinal, ao se arrogarem o direito de dar conta de tudo,em todas as vidas. Se o biogrfico tem singular importncia, seja nospercursos de Foucault seja na alegria danarina com que muitos psiclogosse apropriam de suas ferramentas conceituais (martelos, geralmente...),cumpre, para evitar enfoques redutores (qui mortferos para opensamento), aproximar-se do modo como ele concebeu e articulou os temasda temporalidade e da experincia.

    Como abandonar os confortos do moderno

    Publicado em 1966, ano pice do estruturalismo na Frana, freqente que As palavras e as coisas seja apresentado como tpico exem-plar dessa tendncia: exibe epistemesconjuntos de regras a que obedecemos modos de ver e dizer presentes em um conjunto de territrios desaber s imultneos - , descreve-as de talhadamente, af irma odescontnuo maneira de uma srie de sistemas de longa durao. Emfuno de tais caractersticas, Sartre acusou o trabalho, poca, de "l-tima muralha da burguesia" contra o marxismo, pois ele representariauma completa negao do devir histrico'.

    Apaixonada que sou por Foucault - o que , diz-se, leva asupervalorizar mincias -, encontro no livro duas passagens propcias a

    Eribon, D. - Michel Foucaulr: uma biografia. So Paulo: Cia das Letras, 1990. 2Idem, p. 159.

    8 Foucault e a

    Psicologia

    dar incio explorao das questes acima esboadas. A primeira volta-se para acaracterizao do descontnuo: "O descontnuo (...) d acesso, sem dvida, a umaeroso que vem de fora, a esse espao que, para o pensamento, est do outro lado,mas onde, contudo, ele no cessou de pensar desde a origem. Em ltima anlise, oproblema que se formula o das relaes do pensame nto com a cul tur a: comosucede que um pensamento tenha lugar no espao do mundo, (...) e que nocesse, aqui e ali, de comear sempre de novo? Mas talvez no seja ainda omomento de formular o problema..." 3. A segunda passagem t orna a levantar (esoluciona, em parte) o problema antes dito prematuro: "A que acontecimento oua que lei obedecem essas mutaes que fazem com que de sbito as coisas no

    sejam mais percebidas, descritas, caracterizadas, classificadas e sabidas do mesmomodo (...)? Se, para uma arqueologia do saber, essa abertura profunda na camadadas continuidades deve ser analisada, e minuciosamente, no pode ser ela 'explicada'nem mesmo recolhida numa palavra nica. um acontecimento radical que sereparte por toda a superfcie visvel do saber e cujos signos, abalos, efeitos, pode-seseguir passo a passo''4.

    Em As palavras e as coisas, portanto, se h descontinuidades e, ao mesmotempo, estruturas (as t o incompreendidas epistemes), as primeiras relativas apensamentos ou discursos - reclamam correlaes (a descobrir/ inventar) com outrostipos de sries; as ltimas demandam, para que se possa dar conta de sua emergnciano tempo, no a lei - e como poderia a arqueologia admiti-la sem se transformar emgrande narrativa te(le)olgica? - , mas o acontecimento. Conquanto o carter desseacontecimento se mantenha problemtico (e, no livro em pauta, silenciado), Foucault

    assevera no ser ele apreensvel "numa palavra nica"; ou, para usar uma expressoque preferimos, numa palavra com maiscula (Devir, Dialtica, Homem, Progresso,Evoluo e mesmo Histria... tradicional).

    O livro apelidado o mais estruturalista de Foucault prope combinar oacontecimento e a estrutura mediante um procedimento alheio

    Foucault,M. As palavras e as coisas. So Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 65. 4 Idem, p. 231-232.

    Foucault e a Psicologia 9

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    Foucault e a Psicologia

    Foucault e a Psicologia

    aos cnones estabelecidos: admite que se possa dar conta da estrutura... atravs do acontecimento! claroque por este ltimo termo no se designam os feitos de grandes homens - Foucault anuncia mesmo que ohomem, grande ou pequeno, est prestes a morrer... Mas como poderiam ser apreendidos os transtornospromovidos pela entrada em cena das foras, de que mais tarde falar em tons nietzscheanos5, prescindindoda singularidade dos eventos? Por ora, ainda sem dispor de jusdricativas maiores, alegremo-mos com ahiptese: a coerncia apriorstica do sujeito e/ou das causalidades sem elo perdido pode dar lugar acolhida

    da diferena; a historicidade (com minsculas) dessa diferena decorre de acontecimentos que no seidentificam a (grandes) feitos, tampouco a fatos (consumados), mas apontam a ocorrnciassimultaneamente rupturais... e rompidas em mil pedaos, qual na figura do caleidoscpio a que Veyne6assemelha a histria em moldes foucaultianos.Para mergulhar nessa perturbadora inveno, sejamos infiis a Foucault, seguindo uma das figuras-funesque ele dizia detestar (tanto quanto os prefcios ou apresentaes): o comentador. Mitchell Dean, porm,constitui um comentador muito especial: sente-se insatisfeito com o recurso a categorias globalizantes industrializao, racionalizao, urbanizao, secularizao, burocratizao... modernizao, em suma - pormeio das quais as cincias sociais vm tentando entender nosso presente (em poucas e imprecisas palavras,a sociedade industrial - ou ps o capitalismo, o Estado liberal - ou neo). Ao estudioso australiano, taiscategorias soam como parte do que precisa ser explicado, por mais que, ao utiliz-las, a sociologia julgueter adquirido a dignidade de cincia nomottica e, condescendentemente, relegue a histria busca de umavulgar dimenso idiogrfica7.

    5. Foucault, M. "Nietzsche, a genealogia e a histria". Em: Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal,1979.6 Veyne, P. "Foucault revoluciona a histria". Em: Como se escreve a histria Braslia: Editora daUNB, 1992.7 Dean, M. - Critica! and efective histories: Foucault's methods and historical sociology. London and NewYork: Routledge, 1994, p.7.

    D e an e s t c ie n te de que a d i s c ip l ina s oc io lg ic a s e in s t i tu i e xa tam e n te po r e s s ademarcao: atravs de anlises s incrnicas das total idades soc iais , e la proc lamas e r um a c i nc ia da h i s t r ia que , pa radoxa lm en te , e s t d i s pe nsada da ne c es s idadede r e a l i za r an l i s e s h i s t r ic as c onc re tas . No obs tan te t a l p r e te ns o t e nha s ido

    vr ias ve ze s c on te s tada ao longo do s c u lo X X , a s oc io log ia pe rm ane c e apo iadanas c a te gor ias g loba l izan tes m e nc ionadas , que s e in te g ram a duas fo rm as ape nasaparentemente contras tantes de teor ia: a progress ivis ta (progress ivis t) e a c r t ica.A pr imeira defende um esquema de progresso soc ial andado em uma te leologia da r azo , da t e c no log ia ou da p rodu o . T ra ta - s e do m ode lo de nom inado a l tom ode rn i s m o , e xe m pl i f i c ado pe las na r r a t ivas do I lum in i sm o , pe lo pos i t iv i sm oc om te ano e , inc lus ive , po r a lguns e le m e n tos da t e o r ia m arx i s ta da h i s t r ia oueventuais inte rpre taes da concepo weberiana da rac ionalizao. Em qualquerde s s as var ian te s , c ons i s te num a e labora o que " bus c a adqu i r i r o p re s t g io dasc i n c i as n a t ur a i s, a t r i bu i n do f r eq en t e me n t e a s u a s a f ir m a e s a f o r ma d eexplicaes gerais e causais , com carte r semelhante ao da le i" .J a teor ia c r t ica prope uma dial t ica em que as formas presentes da razo e das oc ie dade s o s im ul tane am e nte ne gadas e p re s e rvadas . F az s e ve ras r e s t r i e s snar r a t ivas do a l to m ode rn i s m o , de nunc iando a r azo ins t rum e n ta l que c e le b ram,

    a o m e sm o t e mp o q u e o f e r e ce u m a v e rs o a l t er n a t iv a ( e s u p os t a me n t e m a i se le vada) de r ac iona l idade, a t r av s de nar r a t ivas de " r e c onc i l i a o do s u je i toc ons igo m e s m o, c om a na tu re za , c om a fo rm a de s ua p rpr ia r azo ( . . . ) [ que ]pr om et em em anc ip a o e sa lv a o se cu la r" 9. Va ri an te s de ss a per sp ec t ivaper me iam to do o ma rx is mo oc ide nt al , se nd o ide nt if i c vei s, de mo do ma isespec f ico, na Teoria da Rac ionalidade Comunicativa de Habermas e na Dial t icado I luminismo de Adorno e Horkhe imer , ambas formas de modernismo c r t ico.Para D e an , c on tudo , j am ais s abe mos s e fom os , s om os ou s e re mos m ode rnos .Pr inc ipalmente , nunca nos dever amos cons iderar ex-

    Idem, p. 3 . Idem, Idem.

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    12 Foucault e a PsicologiaFoucault e a Psicologia 13

    plicveis pela modernizao, um termo-processo que termo-armadi-lha, pois , ader indo a e le ou contes tando-o, promovemos des-historicizao: o presente ser caminho para os moder nis tas - oudescaminho - para os modernistas crticos -, mas em nenhuma das duasteorias se ver des-encaminhado.

    Nessas circunstncias, o socilogo australiano entrev um terceiro tipode prtica intelectual para o pesquisador social: a problematizante. Elaestabelece "uma anlise da trajetria das formas de verdade e conhecimentosem origem ou finalidade", tendo por efeito "a perturbao das narrativasseja de progresso seja de reconciliao, descobrindo questes onde as outrasviam respostas"10. Para tanto, mantm-se receptiva disperso das transfor-maes histricas, rpida mutao dos eventos, multiplicidade das

    temporalidades e, primordialmente, possibilidade de reverso de trilhashistricas. O problematizador tambm um crtico, embora adote estratgiadistinta da dos modernistas crticos: "recusa-se a aceitar os componentesdados-por-bvios (taken-for-granted) de nossa realidade e as explicaesoficiais acerca do como vieram a ser o que so"". Esse singular carterremete a um inqurito em princpio ilimitado acerca do presente: quandonele diagnostica limites, est disposto a atribu-los a constrangimentos con-tingentes. Com isso, faculta-se a entrada em cena daquilo que Foucault,seguindo Nietzsche, chamou de "histria efetiva"12 a que rejeita a coloni-zao, quer do conhecimento quer da ao poltica, por snteses filosficasque prescrevam significados primeiros, ltimos e/ou globais.

    Em um passo arriscado palavras so perigos! -, Dean acata umapolmica denominao: "se o amplamente usado termo 'ps-modernis-

    mo' for definido como a teimosa problematizao do dado, ficaria felizem ver este tipo de histria como um exerccio de ps-modernidade"13. Oprefixo ps, conforme aqui manejado, designa menos um depois damodernidade do que uma ilimitada possibilidade de interrog-la.

    1Idem, p. 4.

    " Idem, idem.12 Foucaul t , M. - op. c i t , 1979.

    Dean, M. - op. cit., p. 4.

    No obstante seja sempre um exagero de linguagem falar de mtodoem se tratando de Foucault - o que ele apresenta nesse sentido descreveinvestigaes anteriores ou antecipa experimentaes futuras, sem serja mais pr esc ri ti vo -, a pr t ic a pr ob le ma ti za nt e ga nh a nu an cesmetodolgicas em Arqueologia do saberpara Dean (e para ns), o livroultrapassa o debate continuidade versus descontinuidade, situando suaprpria novidade no estatuto singular atribudo ao documento histrico. Amonumentalizao documental nele proposta tanto significa a inclusodo documento em sries (e sries de sries) quanto, especialmente, umanfase nos nexos entre documentao e problema; de forma mais precisa,alis, uma nfase no carter polmico da definio de qual deve ser oproblema em sntese, encaminhar... ou desencaminhar o presente?

    So, porm, os textos foucault ianos dos anos 1970 quepotencializam polit icamente es sa nfase e o fazem por meio da defini -o precisa de um adversrio para uma histria que, alm de crticacnscia de seus limites (os arquivos que nos foram legados) -, se querefetiva - capaz de intervir no presente. Tal adversrio toda a gama desupra-histr ico que nos rodeia, condicionando modos de ser, pensar eatuar por meio de permanentes reasseguramentos identitrios - nosendo a modernizaao o menor deles....

    Apelando a Nietzsche, Foucault diagnostica, ento, a presena dosupra-histrico em alguns dos usos da prpria histria-disciplina: uso mo-numental (grandes vultos e feitos), antiqurio (acentuao da continuidade-tradio) e crtico (julgamento-condenao do passado em nome dopresente, tornando o primeiro algo fixo, paralisado e menor). Ainda comNietzsche, projeta, como alternativa, um uso pardico (contrrio ao realismo

    de uma reminiscncia-reconhecimento), dissociativo (contraposto identidade) e sacrificial (renncia vontade de verdade, histria "orgu-lhosa" de ser conhecimento). Esses exerccios aspiram a "fazer da histriaum uso que a liberte para sempre do modelo, ao mesmo tempo metafsico eantropolgico, da memria. Trata-se de fazer da histria uma contramemria e dedescobrir conseqentemente toda uma outra forma do tempo"14.

    Foucault , - op.cit. , 1979, p. 33, grifos nossos.

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    A proposta foucaultiana, por conseguinte, a de uma histriasingularmente crtica e efetiva: a arqueologia dispensa toda arch oufundamento, construindo/analisando arquivos a partir da massa do-cumental que nos foi legada ela orienta teoricamente nossos procedi-mentos; mas somente combinada com a genealogia pode afastar o ranopositivista que a assedia, colocando igual importncia nos usos doconhecimento histrico. Da ressaltar Dean ainda um terceiro termo,presentismo ou histria do presente: histria feita no presente, sim; histriaque tenta dar conta do que presentemente somos como sujeitos deconhecimento, ao e moral, decerto; fundamentalmente, porm, his-tria que luta contra compreenses anacronsticas aquelas que fazem dopresente o resultado necessrio de um passado aprisionado em significaes- e assim nos liberta, parcialmente que seja, para o exerccio de formas de

    pensar, agir e ser...que ainda no existem.

    O futuro do pretrito

    Nos comentrios de Dean, obtivemos argumentos para sustentarque eventos e histria (com minscula, no metafsica) so perfeita-mente compatveis: s h dissonncia quando os primeiros so atribu-dos a esquemas fixos do tipo causa-e-efeito ou remetidos a unidades designificao preestabelecidas (caminho do progresso ou descaminho ins-trumental, pouco importa). Esse mesmo ponto diretamente abordadono debate entre Foucault e alguns historiadores, ocorrido em 1978, quandoo p r im ei r o c he ga a d ef en de r a n ec es si d ad e d e u ma

    vnementialisation (eventualizao) da disciplina historiogrfica: "Ondenos sentimos tentados a fazer referncia a uma constante histrica ou aum trao antropolgico imediato (...), trata-se de fazer surgir uma 'sin-gularidade'. Mostrar que no era 'assim to necessrio'. (...) Rupturadas evidncias, destas evidncias sobre as quais se apiam nosso saber,nossos consentimentos, nossas prticas. (...) Ao mesmo tempo, avnementialisation consiste em descobrir as conexes, os encontros, osapoios, os bloqueios, os jogos de fora, as estratgias etc. que, em dado

    14 Foucault e a Psicologia

    momento, formaram o que a seguir vai funcionar como evidncia, uni-

    versalidade, necessidade''15.Reler esse fragmento induz a pensar em possveis construes do

    que propomos denominarfutur o do pret rito. Na pena de um histo ria-dor, em grandes linhas, o evento histrico pode redundar seja em desti-no (fato consumado, funcionalizado, estruturalizado) seja em contin-gncia (raridade, singularidade, desencaminhamento). No caso de umevento se tornar explicvel por regras - acentuadas, inegavelmente, porFoucault -, tambm estas so passveis de entendimentos alternativos:apriorismos sintticos e/ou semnticos (estruturas significantes imutveis,edifcios sociais com determinaes em ltima instncia, dialticasuniversalizantes) ou repetio/reforo de prticas determinadas - por maisque este segundo caso exija imaginar um caleidoscpio manejado pormos preguiosas ou pouco curiosas... em decorrncia do realce dado

    por Foucau lt ao segundo termo dessas dades que Rajchman1 6 o chamade "filsofo da liberdade" nada nos determina a no ser o que nosacontece atualmente -, embora nunca da "libertao" - inexistem causa,princpio ou finalidade preestabelecidos, ltimos, universais.

    Para apreciar melhor tal circunstncia, cumpre recorrer aGenealogia e poder, aula de um curso no Collge de France datado de1976. No incio da exposio, Foucault se refere s pesquisas por elelevadas a efeito nos anos 1970 como "dispersas e fragmentrias", "saberintil e suntuoso" cujo lugar mais adequado seriam as notas de rodap;uma "maonaria da erudio intil"", em suma, feita de escritosempoeirados e textos nunca antes lidos.

    Sem renegar seu idiossincrtico apreo pela mincia, Foucaultassinala a seguir que este se coaduna muito bem com uma caracterstica

    presente no panorama cultural, poltico e intelectual de ento: a "efic-

    "Foucault, M. "Table ronde du mai 1978". Em:Dits et crit s, vol. IV. Paris: Gallimard,1994, p.23.

    16 Rajchman, J. -Foucault: a liberdade da filosofia.Rio de Janeiro: Zahar, 1987. Foucault,M. "Genealogia e Poder". Em:Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979a, p. 168.

    Foucault e a Psicologia 15

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    16 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 17

    cia das ofensivas dispersas e descontnuas"18 A expresso condensa umasrie de ocorrncias: entraves ao funcionamento da instituio psiqui-trica provocados pelos discursos e prticas, bastante localizados, daantipsiquiatria; eficcia dos ataques contra o aparelho judicirio e pe-nal, apenas vagamente ligados ao argumento da luta de classes, oulonginqamente anarquistas; perturbao causada por livros como o An ti -d ip o, pr at ic am en te au to -r efe re nt e, sem tr ad i o te r ic a,institucional e/ou filosfica.

    Foucault se refere, assim, a uma experincia a eficcia das crticasparticulares e locais - que faculta o acesso a algo no previsto. Re-gressaremos, um pouco mais tarde, ao sentido do termo experincia.Por enquanto, concentremo-nos na explicitao da descoberta impre-vista: a apreenso do "efeito inibidor prprio s teorias totalitrias, glo-

    bais", dentre as quais se destacam a psicanlise e o marxismo. Na verdade,no importa tanto a especificao das teorias globais a que se fazemrestries; cumpre estar primordialmente atento ao "efeito de refrea-mento" que qualquer uma delas provoca quando retorna sem cessar asua prpria totalidade, em lugar de ser "recortada, despedaada,deslocada, invertida, caricaturada, teatralizada"19.

    Reativando, quanto a quaisquer disciplinas, o que, com Nietzsche,sugerira em favor de uma histria efetiva uso pardico, dissociativo esacrificial Foucault passa a ver suas pesquisas como portadoras deuma primeira (e, agora, desejvel) caracterstica: o carter local da crti ca,"espcie de produo terica autnoma, no centralizada, (...) que notem necessidade, para estabelecer sua validade, da concordncia comum sistema comum"". Essa crtica local se d atravs de um retorno de

    saber; melhor dizendo, de uma insurreio dos saberes dominados. Pelaexpresso se devem entender: (1) "contedos histricos que foramsepultados, mascarados em coerncias funcionais ou em sistemas for-mais", reveladores da "clivagem dos confrontos, das lutas que as orga-

    Idem, idem. 19

    Idem, idem. "Idem, idem.

    nizaes formais ou sistemticas tm por objetivo mascarar"; (2) "umasrie de saberes que tinham sido desqualificados como no competentesou insuficientemente elaborados: saberes ingnuos, hierarquicamenteinferiores, saberes abaixo do conhecimento ou da cientificidade"21.

    A insurreio dos saberes dominados, por conseguinte, tanto comportablocos de saber histrico at ento dessingularizados no interior desistemas - quanto revaloriza o saber das pessoas - saber "particular, regio-nal, local, um saber diferencial incapaz de unanimidade e que (...) devesua fora dimenso que o ope a todos aqueles que o circundam". Aocontrrio das classificaes hegemonicamente aplicadas, esse saber daspessoas no bom senso nem senso comum: saber deixado de lado,quando no explicitamente subordinado. Consoante Foucault, a crticalocal deve seu impacto exatamente a essa juno entre "o sabersem vida da

    erudio e o saberdesqualificadopela hierarquia dos conhecimentos e dascincias; em ltima anlise, ao saber histrico da luta"22.

    muito ampla a gama de associaes que essas frases podem des-pertar. Limito-me, todavia, a evocar uma antiga afirmao de Barthes"a histria um sonho porque conjuga, sem assombro e sem convico, amorte e a vida"" -, assim como a pergunta-rplica com que ArletteFarge, em artigo dedicado ao vnement (evento), nos convida acontradiz-la: "Como conjug-las [a morte e a vida] com assombro ecom convico, a fim de que a histria no seja um sonho, mas, aocontrrio, um meio de estar no passado a fim de decidir quanto aopresente e, quem sabe, quanto ao futuro?"". O futuro do presente se v,assim, implicado nofuturo do pretrito.

    Antes mesmo que Lyotard viesse a conceituar a condio ps-moderna como "fim da grande narrativa", Foucault, no texto que oraprivilegiamos, chama ateno para o quanto a histria comporta de

    21 Idem, p. 170.

    " Idem: idem; grifos nossos."Apud Farge, A - "L'instance de I'vnement". Em: France, D.; Prokhoris, S.; Roussel,Y. (eds.) - Au risq ue de Foucau lt. Paris: Editions du Centre Pompidou, 1997, p. 27. 24

    Farge, A - op. cir., p. 27.

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    s de que se encontram em um momento par?ticular, o presente, a partir do qual constroem objetos relativos ao passa?do. Dir-se-ia que se sabem presos em uma esp?cie de jaula temhist?rica, ? preciso estar atento ? rela??o do

    " Idem, p. 83. 29 Idem, p. 84.

    Foucault e a Psicologia

    Foucault e a Psicologia

    estratgico. Nesse sentido, a elaborao de certas narrativas (ou a luta peloencerramento dasgrandes) tem a possibilidade de se constituir em algo muitodistinto de uma atitude blase, desencantada ou quietista. Representa, aocontrrio, valiosa inquietao em face do que considerado dado,coerente, bvio, lgico, previsvel, evidente, funcional ou nobrementecientfico, inquirindo o quanto comporta de "emparia com os vencedores"- para usar uma expresso de Walter Benjamin que, tal como Foucault,desejava "escovar a histria a contrapelo"'25.

    Foucault no acena com cientificidade: blocos de saber histrico atento mascarados (uma erudio, arquivos, sries documentais) esaberes pessoais incapazes de unanimidade (um vozerio, falascontrastantes, narrativas-memria) combinam-se para gerar genealogias, e, oque mais importante, as genealogias so ditas "anti-cincias" porque

    desenvolvidas "contra a tirania dos discursos englobantes com suashierarquias e com os privilgios da vanguarda terica"26. Elas montamcontrariedades quilo que tomado por garantido.

    Das lies da histria s experincias e experimentaes: o abalodo presente

    Em um artigo cujo andamento nos servir de guia, D'Amaral e Pedro`'pem em discusso as formas de temporalidade que os historiadores cons-troem e narram. O primeiro modo identificado pelos autores o da histriauniversal de tipo positivista, j suficientemente pisado e repisado, em que ohistoriador-narrador atua como se estivesse situado no fim dos tempos.Melhor dizendo, como se ocupasse a extremidade de uma linha reta, orien-tada, extremidade esta em cuja direo o passado se encaminharia como quenaturalmente justificado por uma cadeia causal de fatos consumados:25

    Benjamin, W. "Sobre o conceito de histria". Em: Obras escolhidas - magia e tcnica, artee poltica. So Paulo: Brasiliense, 1994.

    Foucault, M. - op. cit., 1979a, p. 171.D'Amaral, M.T. e Pedro, R.M.L.R. - "O tempo: entre a cincia, a cultura e a histria".

    Documenta, ano IV, n". 7, 1996.

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    presente... com ele mesmo! Melhor dizendo, para que o passado se torneobjeto de investigao, demanda-se que "o presente se perceba nummovimento de separao de si mesmo (...); no momento em que opresente est deixando de ser o que , a histria se torna possvel"30.

    Essas proposies reafirmam que, tratando-se de Foucault, a ex-presso histria do presente faz bem mais do que designar ocarter construtivo do trabalho do historiador. claro que fazemoshistria hoje, motivados por problemas formulados hoje, aspirando a que assolues encontradas no sejam anacrnicas - estes so nossoslimites. Mais do que l imi tada pelo p re se nte, todavia, agenealogia foucaultiana desencadeada por ele; em outraspalav ras, promovida por um movimento, mnimo que seja, dedesprendimento, que, por isso mesmo, torna o presente historicizvel.Histria do presente h istr ia f eita no presente sobre um presente...que j no somos mais.

    Chamemos em nosso auxlio, para explorar essa perspectiva, umartigo de Gilles Deleuze, cujo ttulo indaga Qu'est-ce qu'undispositif?. Aps a caracterizao do trabalho de Foucault como umafilosofia dos dispositivos - repdio aos universais, afastamentodo eterno em favor da criao -, ali se prope: "Ns pertencemos aosdispositivos e agimos neles. novidade de um dispositivo em relao aosprecedentes chamamos sua atualidade, nossa atualidade. (...) O atual no oque ns somos, mas o que nos tornamos (...) o outro, nosso devir-outro. Emtodo dispositivo, necessrio diferenciar o que ns somos (o que j nosomos mais) e o que estamos em vias de nos tornar: a parte da histria e aparte do atuar'.

    H trs termos em jogo nesse fragmento: o ontem, o hoje e opassado. O ontem uma dimenso dopresente: o que somos, mas,igualmente, o que estamos deixando de ser. O hoje - designado, porDeleuze, como o atual - o que estamos nos tornando. Finalmente, opassado o que se constitui, na forma de histria, a partir da distnciainstaurada entre o ontem (o presente) e o hoje (o atual).

    30 Idem: idem.

    Deleuze, G. - "Qu'est-ce qu'um dispositif?" EmAssociation pour le Centre Michel Foucault -Michel Foucault philosophe. Paris: Seuil, 1989, p. I90-191.

    Nessa perspectiva, o passado no o que nos fundamenta. Longe deser fonte de nossa identidade, ele faccionado a partir de nossadisperso - a diferena presente/atual -, facultando uma reflexo sobre elae alimentando experimentaes com o novo, com o que est emvias de ser. Porque o atual no esboo de um futuro livre edesalienado, mas o agora de nosso devir, desejvel como tempooutro, nunca como completude, realizao ou reconciliao.

    Embora grande parte dessas consideraes emerja de maneira maisexplcita na pena de Deleuze e seja costumeiramente associada aos lti-mos trabalhos de Foucault, a problematizao muito mais remota,podendo ser conectada aos temas do biogrfico, da experi ncia e dosusos estratgicos da histria.

    Radical anti-humanista, Michel Foucault foi, surpreendentemente,um dos pensadores contemporneos que mais batalhou para que aexperincia fosse incorporada reflexo filosfica e historiogrfica.Conhecendo as restries foucaultianas fenomenologia, o leitor poderiaobjetar estar eu, agora, tentando transformar Foucault em uma espciede Sartre, que to feliz ficava em dispor de uma ferramenta que lhepermitia fazer filosof ia, inclusive, acerca do cocktail saboreado nasmesas do Caf de Flore. claro que no se trata disso. Foucault integra aexperincia reflexo historiogrfica na qualidade de umainquietao que se tornaponto de partida para um trabalho terico,tico e poltico. Manter a experincia em nvel pessoal, sem desdobrarsuas conseqncias, que seria limitar-se, qual Sartre, ao plano de umsubjetivo constituinte, atenuando virtuais poderes de perturbao.

    A esse respeito, Eribon ressalta as repetidas referncias de Foucault a"experincias transformadoras"32 envolvendo relaes com os outros,inseres na vida cultural, engajamentos polticos, confrontos comnormas institucionais, etc. Em uma entrevista concedida em 1981 aLibration, por exemplo, Foucaul t declara : "Cada vez que tenteifazer um trabalho terico, foi a partir de elementos de minha prpriaexperincia: sempre em relao com processos que eu via sedesenvolverem

    Eribon, D. -Michel Foucault e seus contemporneos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996, p.36.

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    em torno de mim. Foi porque acreditei reconhecer nas coisas que via,nas instituies com que me ocupava, em minhas relaes com os ou-tros, fissuras, abalos surdos, disfunes, que empreendi esse trabalho-algum fragmento de autobiografia"".

    Se isso d a impresso de ser mais uma das reconstrues de tra-jetria to ao gosto de Foucault, pode-se recorrer a um texto bem maisantigo, a apresentao de autor que figurava na capa de Hist ria daloucura quando de seu lanamento, em 1961: "Este o livro de algumque se surpreendeu (...), freqentou os hospitais psiquitricos (do ladoem que as portas se abrem), conheceu na Sucia a felicidade socializada(do lado em que as portas no se abrem mais), na Polnia, a misriasocialista e a coragem necessria, na Alemanha, no muito longe deAltona, as novas fortalezas da riqueza alem (...). Tudo isso o fez refletir,

    com seriedade, sobre o que um asilo..."34Sob forma mais abstrata, aproximadamente a mesma idia - a da

    experincia transformadora, a da experincia tico-poltica de um devir-outro - que emerge em Arqueologia do saber "A anlise do arquivocomporta, pois, uma regio privilegiada: ao mesmo tempo prxima dens, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo quecerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; aquilo que fora de ns nos delimita. A descrio do arquivo desenvolvesuas possibilidades (...) a partir de discursos que comeam justamente adeixar de ser os nossos (...). Nesse sentido, vale para nosso diagnstico(...) porque nos desprende de nossas continuidades (...), faz com que ooutro e o externo se manifestem com evidncia".

    A despeito desses indcios remotos, no h como negar que um

    maior destaque da experincia transformadora, incluindo os nexosque esta mantm com a vida-biografia e a construo da narrativa

    33Foucault, M.- "Est-iI donc important de penser?" Em Dits et crits, vol. IV. Paris:Gallimard, 1994, p. 182, grifos nossos.3 ApudEribon, op. cit., 1996, p. 41.35Foucault, M. -Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1987, p.150-151.

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    historiogrfica, data do final dos anos 1970 e da dcada de 1980-momento em que a produo foucaultiana tem por foco os modos desubjetivao, a tica, a governamentalidade. Em uma entrevista con-cedida nos Estados Unidos em 1979, aps denunciar como um perigo acompreenso de identidade e subjetividade sob a forma de compo-nentes profundos e naturais - conclamando a uma liberao de nossarelao a ns mesmos -, Foucault situa o lugar de suas pesquisas (e aeventual verdade nelas contida) nesse processo: "Eu no sou propria-mente um historiador. E no sou romancista. Pratico uma espcie defico histrica. De certa maneira, sei muito bem que o que digo no verdade (...). Sei muito bem que o que fiz , de um ponto de vistahistrico, parcial, exagerado (...). Tento provocar uma interfernciaentre nossa realidade e o que sabemos de nossa histria passada. Se

    sou bem sucedido, essa interferncia produzir efeitos reais sobre nossahistria presente. Minha esperana que meus livros ganhem sua ver-dade uma vez escritos - e no antes (...). Espero que a verdade demeus livros esteja no futuro"36.

    Quanto a isso, vale lembrar que Nietzsche, filsofo que Foucaultmuito admirava, tanto via utilidade quanto, principalmente, desvanta-gem para a vida na histria - como sugere o ttulo da Segunda ConsideraoIntempestiva. Para inverter o balano, a temporalidade instituda precisariaser alterada a marteladas, pois "cessa de viver tudo que dissecado at ofim" e, em todos os domnios, "apenas algo surge e j se explica oitinerrio passado, a evoluo futura, (...) se o decompe, se o corrige ouadmoesta - se faz de tudo para evitar precisamente o que mais importa,que a obra tenha seu efeito sobre a vida e sobre a ao"37. Nesse sentido,

    de acordo com Nietzsche, no caberia relacionar os homens a seutempo; ao contrrio, seria desejvel pens-los, a cada momento, emluta contra seu tempo. Disso, justamente, nos fala Foucault

    Foucault, M. "Foucault tudie la raison d'tat". Em Dits et crits, vol. III. Paris:Gallimard, 1994, p. 805.3-ApudPlbart, P.D. "Deleuze, um pensador intempestivo". Em Lins, D. et al. Nietzsche e Deleuze. Intensidade e paixo. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2000, p. 67.

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    com sua histria-fico - histria do presente construda contra o pre-sente, a partir daquilo que este j carrega de devir-outro, de intempestivo.

    Trata-se igualmente, conforme assinalamos, de uma relao extre-mamente singular entre tempo e narrativa historiogrfica. Pois se essanarrativa pode "agir sobre" (transformar) a dimenso presente-futuro-fazendo-se verdadeira a partir do momento em que escrita -, sua elabora-o est, ao mesmo tempo, condicionada pelas experincias que, de al-gum modo, j nos desprenderam do que somos. nessa linha que, emuma entrevista concedida em 1978 a Ducio Trombadori, Foucault abordaa relao entre experincia pessoal e escrita da histria. Desde o comeo dainterlocuo, afirma-se um experimentador mais do que um terico: dizque seus livros foram provocados por experincias; que os prprios livrosso experincias; que uma experincia aquilo de que se sai transformado;que escreve para mudar a si mesmo e aos outros. Intrigado com o usorepetido do termo experincia, o entrevistador levanta a hiptese de umpossvel nexo com a fenomenologia. Foucault retruca que o problemaprincipal no est em trazer luz "a significao da experincia quotidianapara reencontrar, no que sou, o sujeito fundador", como acontece noprojet o fenomenolg ico; a experi ncia, ao contr rio , tem por funo"arrancar o sujeito de si mesmo, fazer com que ele no seja mais elemesmo", em um empreendimento de "des-subjetivao"".

    Atuando como uma espcie de "advogado do diabo", Trombadorilhe pergunta de que forma, em meio a tanta experimentao, poderiamser atendidos os critrios de verdade histrica, credibilidade e objetivi-dade. Foucault no se faz de rogado: cnscio de estar imerso nas lutas

    entre programas de verdade, admite trabalhar com os mtodos clssicos(documentos, esquemas, citaes, formas de explicao), o que faz deseus livros objetos to passveis de confirmao e/ou refutao quantoquaisquer outros. No entanto, no se importa de que eles possam ser,igualmente, considerados fices: "...meu problema no satisfazer oshistoriadores profissionais. Meu problema o de fazer, e de convidar os38 Foucault, M. - "Entretien avec Michel Foucault". Em: Dits et crits, vol. IV. Paris:Gallimard, 1994, p. 43.

    24 Foucault e a Psicologia

    outros a fazerem comigo, atravs de um contedo histrico determinado,

    uma experincia daquilo que ns somos, daquilo que no apenas nossopassado mas tambm nosso presente, uma experincia de nossamodernidade da qual saiamos transformados. O que significa que aofim do livro possamos estabelecer relaes novas com o que est empaut a". Em uma refer ncia espec fica questo da loucu ra, adend a:"...que eu, que escrevi o livro, e que aqueles que o leram tenham comrelao loucura, a seu estatuto contemporneo e sua histria nomundo moderno, uma outra relao"".

    Logo, por mais que Foucault fale em autobiografia e em experi-ncia pessoal, a questo no est em transp-las diretamente para osaber, maneira de confisses. A experincia e o biogrfico se situam,simultaneamente, no comeo e no fim de um processo: a construodo objeto deflagrada por uma perturbao do taken for granteddo

    presente (o atual o designa como o que j no somos mais); a narrativahistrica, por sua vez, faculta o acesso a uma experincia nova, transfor-mao ou metamorfose que, eventualmente, se liga a uma prtica cole-tiva - pensemos nos vnculos dos livros de Foucault com a antipsiquiatria, osmovimentos de liberao sexual, os movimentos de detentos, etc.Quanto a este ltimo aspecto, Trombadori expressa novas dvidas, con-siderando difcil que prticas coletivas possam ser conectadas a experi-ncias individuais, o que redunda em novo esclarecimento por parte deFoucault: "Uma experincia qualquer coisa que se faz realmente sozi-nho, mas que no se pode fazer plenamente seno na medida em queescape pura subjetividade e que os outros possam, no diria retom-laexatamente, mas ao menos cruz-la e atravess-la"".

    Vigiar e punir lhe serve, a seguir, de mote decisivo. Afirma que,quando o livro saiu, muitos trabalhadores do sistema penitencirio lhediziam que era paralisante: depois de l-lo, no conseguiam atuar domesmo modo que antes. Alm de recordar ter sido o texto escrito apartirda experincia do GIP (Grupo de Informaes sobre as Prises),39 Idem, p. 44.Idem, p. 47.

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    Foucault identifica nesses efeitos o sucesso do empreendimentohistoriogrfico: "Ele se l, portanto, como uma experincia que muda,que impede (...) de ter com as coisas, com os outros, o mesmo tipo derelao que se tinha antes da leitura. Isto mostra que, no livro, se exprimeuma experincia bem mais ampla que a minha. Ela nada fez seno inscrever-se em alguma coisa que estava efetivamente em curso; na transformao dohomem contemporneo quanto a si mesmo, poderamos dizer. Por outrolado, o livro tambm trabalhou por esta transformao (...). Eis o que para mim um livro-experincia, por oposio a um livro-verdade e a umlivro-demonstrao"41.

    Um pouco de possvel, seno....

    Um livro-experincia, afinal, em contraste com tantos e tantos livros-verdade, livros-demonstrao, que nos intoxicam de saberes psicolgicospretensament e nobres , orgn icos, maiores, os quai s, como quedistraidamente, ignoram as condies de produo da dita "cincia"que veiculam - eis a provocao primeira da aproximao entre"Foucault e a Psicologia", aventura da presente publicao.

    Impossvel, e mesmo desaconselhvel, apresentar-prefaciar umaexperincia; mais vale seguir, atento, seus destinos, quando se vir atra-vessada pelas experincias de seus leitores. Posso apenas focalizar minhaprpr ia travess ia, a de primeir a leitor a (ao menos oficia lmente); nadamais fiz at aqui, alis, do que dela falar. Porque se optei em trazer, demeus descaminhos junto a Foucault, algumas articulaes entre bio-grafia, temporalidade e experincia, foi em funo do impacto que meprovocaram as experincias biogrficastransformadoras que, sinto e partilho, conduziram Kleber PradoFilho, Arthur Ferreira, Simone Hning, Neuza Guareschi, Henrique Nardie Rosane Neves da Silva elaborao de suas fices transgressivas -discursos e prticas que recusam, para o campo psi , atemporalidade inevitvel de um destino... funesto.

    41Idem, idem.

    Para tanto, esses companheiros discursivos imiscuram-se naquelaszonas cinzentas de que feita a genealogia - circunstncia que os levoua parar de mentir, ou melhor, a negar-se a construir/praticar uma psicologiadas manhs modernistas, tingida do azul da verdade revelada atravs dasgrandes narrativas. Cumpre frisar, contudo, que, em meio aos tonscinzentos, espaos de luminosidade se esgueiram - eles os inventam, qualo br as d e a rt e, n a f or ma d e a rq ue ol og ia s, h is t ri as ,problematizaes auto-reflexivas e interferncias em jogos de verdade,em lugar de lamentar-se por algum ilusrio descaminho do qual estaria mdesimplicados. Com isso, nos facultam vislumbrar aquela parcela depossvel que nos livra da sufocao, que impede a asfixia.

    Virando a pgina, novos leitores podero conspirar - termo

    que, como bem disse Guattari, sugere "respirar junto"". E tambm eu sigo,agradecida por este convite a apresentar dotado da liberdade de jamaispoliciar, respirando (junto) com eles.42

    Guattari, E - "Trs milhes de perversos nos bancos dos rus". Em: RevoluoMolecular. So Paulo: Brasiliense, 1987.

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    A PSICANLISE E A PSICOLOGIA NOS DITOSE ESCRITOS DE MICHEL FOUCAULT

    Arthur Arruda Leal Ferreira'

    Introduo: Michel Foucault e o nomadismo nopensamento

    A crtica foucaultiana pretenso de unidade do discurso em funoda noo de autor estabelecida em O que uma autor (1968-B) talvez noencontre maior pertinncia que na reunio de enunciados cunhados pelaassinatura do prprio Michel Foucault. Quase impossvel detectar umtrao qualquer de permanncia, que no seja o constante ultrapassagem deum pensamento, que sempre apaga suas prprias pistas e produz novasevidncias. Como se a essncia do pensar pudesse ser constantemente se dis-pensar se re-pensar. Impossvel falar em nome de Foucault, impossvel Serfoucaultiano. Antes de se perguntar "Quem-Foucault?",necessrio se perguntar "Qual-Foucault?", na instantaneidade de um certotexto, no conjunto de foras momentneas que atravessam os enunciadosassinados com o seu nome. Da que sob a mscara foucaultiana podemosencontrar o zumbido de um coletivo.

    Fica difcil portanto avaliar o conjunto de textos foucaultianosconforme um bloco, ou segundo um conjunto de princpios. No

    possvel jamais reconh ecer um siste ma filo sfic o delineando os seustextos. Contudo, segundo Mrcio Goldman (1998), persistiria ao longodos trabalhos de Foucault: a) um modo de constituio de objetos, b) umprocedim ento de exame e c) um conjun to de objeti vos. Quanto constituio de objetos, Foucault, segundo Goldman, escreveria

    ' Professor adjunto do Instituto de Psicologia da UFRJ, pesquisador apoiado pela FAPERJ eFUJB, e doutor em Psicologia Clnica pela PUC/SP.

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    conforme Carmelo Bene em seu manifesto do menos, extraindo os perso-nagens maiores da cena, e dando vida aos menores e coadjuvantes. deste modo que este pensador procederia, retirando de foco, por exem-plo, cincia e ideologia como eternos protagonistas, e introduzindo saber epoder. No que tange ao procedimento de exame, o ponto de partida seencontra numa questo, ou numa luta presente. A partir da, toma-se umdeterminado objeto em questo como a clnica, a priso, ou a sexualida-de, e dissolve-o em suas condies de possibilidade histricas,acontecimentalizando-o e lanando-o na singularidade de suas mltiplascausas. deste modo que tudo que se apresenta como universal e necessrioremontaria a uma contingncia objetivada e rarificada ao longo da histria.Por fim, o seu objetivo, como se pode entrever, poltico. Mas no nosentido de fornecer diretrizes, e sim instrumentalizando lutas. E isto seria

    realizado de trs modos: 1) tornando crtico o que escapava crtica, atravsda historicizao; 2) problematizando a prpria luta, estabelecendo-a tolocal e histrica quanto os seus alvos; 3) participando nas prprias lutasatravs da passagem pela alteridade e pela diferena.

    Contudo, esta constante proposio de objetos, modos de exame elutas faz entrever a existncia de alguns perodos no pensamentofoucaultiano baseado em alguns critrios como:

    1)A trama conceitual expressa nos principais objetospostulados: saberes e disc urs os (ar queo log ias ), poderes egov ernamenta lid ade (genealogias), cuidados de si ou ticas(subjetivaes).

    0 )O s s eu s a lv os c r ti co s: o p os it iv is mo , ohum ani smo fenomenolgico, o estruturalismo, o marxismo (a

    comunistologia), e a psicanlise.2)O que afirma em cada perodo como alternativa: a literatura e

    o ser da linguagem, a revoluo e os contrapoderes, a liberdade e apossibilidade de estranhamento de nossas formas de subjetivao.Atravs destes critrios possvel mapear cerca de dez perodos no

    pensamento foucaulti ano, sendo a atribuio dos cinco primei rosinspirada no texto de Roberto Machado, Cincia e Saber (1982-A). Atarefa deste artigo ser tentar captar o sentido das transformaes queseescondem sob a assinatura de Michel Foucault ao longo destes dez per-odos, e tentar delinear os possveis dilogos desses personagens que a

    espreitam com a psicanlise e a psicologia. Esta multiplicidade de autores sever refletida nas seguidas reavaliaes feitas em torno destes temas.Jacques Derrida (1994) se referir relao com a psicanlise utilizando aimagem de uma dobradia de porta (em que Freud seria o porteiro), de umpndulo ou de um balancim, que "sucessivamente abre e fecha, aproxima eafasta, repudia ou aceita, exclui ou inclui, desqualifica ou legitima,domina ou liberta" (op.cit., pp.62-63). deste modo que a psicanlise, de

    contracincia humana em As Palavras e a s Coisas, torna-se mero efeitodo dispositivo confessional da sexualidade, ou hermenutica de si crist, aolongo dos trs volumes da Histria da Sexualidade (1976-C, 1984-A e B).A psicologia, apesar de alguma considerao positiva em seus primeirosartigos (dcada de cinqenta), gozar de uma avaliao mais unnime emtorno da crtica, apesar das razes se modificarem. Avaliemos esta relao

    de Foucault com estes saberes perodo a perodo.

    1- O Jovem Foucault (dcada de cinqenta)

    Neste momento seminal, temos a rara oportunidade de ver umFoucault psiclogo, buscando delinear a positividade deste saber. Paraeste autor (1957-B, p.148), a verdadeira pesquisa psicolgica seria pro-duzida margem da cincia institucional (como por exemplo a psica-nlise e a noo de inconsciente, gerada fora dos cnones de uma psico-logia oficial da conscincia). A relao entre pesquisa e prtica s seriainteiramente positiva em uma sociedade marcada pelo pleno emprego e

    com uma tcnica industrial exigente, sem, pois, qualquer contradio.Como esta condio no se cumpre em nossa sociedade, a pesquisapsicolgica s pode nas cer dos obstculos das prticas sociais (que seri -am disciplinados pela psicologia oficial):

    Sem forar a exatido, pode-se dizer que a psicologia em sua origem umaanlise do anormal, do patolgico, do conflitual, uma reflexo sobre ascontradies do homem com ele mesmo. E se ela se transforma em uma

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    psicologia do normal, do adaptativo e do ordenad o, de um modo secun-drio, como por um esforo de dominar as contradies (Foucault, 1957A,

    pp. 121,122).

    O objeto de exame por excelncia neste perodo ser o homem concret ona negatividade e na contradio de sua existncia social ao longo dahistria. Este homem concreto deslindado no cruzamento de vriasreferncias, como o marxismo (a alienao do doente mental como produtode contradies histricas), o existencialismo' (a existncia autnticaexpressa no sonho e na angstia, na qual a loucura seria uma formainautntica, uma vez que desprovida de liberdade histrica) e a psicanlise (aimportncia do significado e da interpretao na apreenso da negatividadedo homem). Buscando uma positividade para esta psicologia do homem

    concreto, ela ser recusada nas su as vert entes positivistas, uma vezque estas buscam apagar as contradies histricas, como a existente entreum mtodo positivo e o seu objeto, marcado por uma negatividade essencial(Foucault, 1957-A). Da que se possa dizer que a positividade da psicologias pode vir da negao de sua objetividade e da afirmao da negatividade dohomem: "A psicologia s se salvar atravs de uma volta aos Infernos" (op.cit., p.158). Neste quadro, a psicanlise seria a nica das psicologiasverdadeiramente positiva, pois daria conta do negativo do homem: "Essesentido originrio ainda um dos paradoxos e uma das riquezas de Freud,de ter percebido melhor que qualquer outro, contribuindo para recobri-lo e escond-lo" (op. cit., p.158). E, deve-se acrescentar, com ametodologia adequada, qual seja, a busca de significaes objetivas(Foucault, 1957-A).

    Contudo, a contradio mais notvel no seio da psicologia estariaem seu estatuto como saber crtico, posto que estaria num regime entrea tomada de conscincia de nossa constante produo de iluses, prpria dahistria, e a denncia dos erros, inerente s cincias naturais. Apsicologia teria pois um estatuto hbrido: crtica como a hist-2

    Notad ament e o de L udwig Biswa nger , au tor ao q ual F ouca ult pref aciou no t exto Lerve et le existnce (1954).

    32 Foucault e a Psicologia

    ria, mas realista como a cincia. Contudo, este saber no atingiria nem apositividade das cincias (a objetividade) nem a da histria (do reco-nhecimento das iluses), restando apenas o constante ultrapassamentocrtico de si que a caracteriza (Foucault, 1957-B., p.144-145). destemodo que este "jovem Foucault" explica a pluralidade da psicologia: elaocorre porque cada orientao sua (behaviorismo, gestaltismo, psicologiadinmica, etc.) se ergue nesta misso de uma critca hbrida contra asdemais, sempre denunciando-as entre a iluso e o erro.

    2- Foucault arquelogo (dcada de sessenta)

    O sentido do trabalho arqueologico de Foucault a ampliao doalvo de suas investigaes, passando do exame das condies de surgimento

    da psiquiatria (Histria da Loucura), s da clinica (Nascimento daClnica), e at ao crculo antropolgico que as constitui (As Palavras e asCoisas). A literatura ser tomada nesta fase como uma alternativa a estecrculo antropolgico, afirmado-se neste perodo de diversos modos,conforme cada subfase, e em contraste com os objetos examinados ao longodos deslocamentos arqueolgicos (loucura, clnica, cincias humanas)3.Neste bojo, a psicanli se e a psico logia sero avaliadas de mododiferenciado conforme as subfases4 deste perodo.

    2.a) Arqueologia da Precepo5 (Histria da Loucura, 1961-1962)

    O tema da histria da loucura poderia sugerir a presena de umahistria progressiva da psiquiatria, ao modo das histrias da cincia.

    Esta a principal tese de Roberto Machado desenvolvida em seu livro Foucault,a filosofia e a literatura (1999).A designao das subfases arqueolgicas seguir a classificao apresentada por Machado

    em seu livro Cincia e Saber (1982-A). Devo ressaltar que uma grande parte dasidias aqui expostas sobre o perodo arqueolgico foram desenvolvidas ao longo dos seuscursos de ps-graduao em filosofia na UFRJ.

    ' O uso do conceito de percepo remete a Maurice Merleau-Ponty, uma vez que esta,sendo social e pr-racional, daria conta das prticas operadas ao longo da histria emtorno da loucura.

    Foucault e a Psicologia 3 3

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    Mas segundo Machado (1982-A, pp.93-95), se possvel vislumbrarum sentido histrico para a psiquiatria, ele negativo, pois o supostoprogresso desta implica o distanciamento daquilo que tomado comoreferncia para Foucault nesta poca: a experincia trgica da loucura.Nose trata de uma essncia imutvel da loucura, mesmo ao "confrontar asdialticas da histria e as estruturas imveis do trgico" (1961-A, p.162).Trata-se de uma experincia (portanto sem qualquer carter universalcomo promete a pesquisa de uma essncia), e trgica (sem a menorpos sib ili dad e de sn tes e ou pac ifi ca o) . Nest e ref eren cia lnietzscheano6, o homem concreto deixa de ser a medida da negatividade quelhe atravessa. Torna-se mais uma das figuras aptas a silenciar a loucura: "Se(Pinel) libertou o louco da desumanidade de suas correntes, acorrentou aolouco o homem e a sua verdade" (Foucault, 1961-B, p.522). A

    recusa ao homem concreto remete a um abandono do referencialmarxista, presente na mudana do conceito de alienao'. Deste modo,este retirado de seu vis trans-histrico, e associado a uma dasformas em que a loucura foi capturada pela razo moderna, comoverdade do homem, na qual o louco se encontra imerso: "a alienaoser depositada como verdade secreta no corao de todo conhecimentoobjetivo do homem" (Foucault, 1961-B, p.457).

    O que se mostrar consonante com esta experincia trgica daloucura ser a literatura' enquanto ausncia de obra. Segundo Machado(1999, captulo 1), esta relao passa por trs aspectos: 1) ambas seriamlinguagens; 2) a loucura seria a verdade da obra literria; 3) verdade essaque se daria na ausncia de obra. O conceito de ausncia de obra seria

    6 Segundo Machado (1999), h um enorme paralelo entre este primeiro livro de Foucault

    com o primeiro livro de Nietzsche, O Nascimento da tragdiaUm bom guia para esta anlise o texto de Macherey: Nas origens da histria da

    loucura: retificao e limite (1985)

    'Exemplos deste esprito trgico na literatura seriam Hlderlin, Nerval, Sade e Nietzsche.Mas haveriam representantes em outras artes, especialmente no perodo renascentista(quando a distncia entre razo e desrazo se fazia menor), como Bosch e Bruegel (pin-tura) e Sheakspeare (teatro). Cabe ainda uma referncia pintura de Goya , mesmo queprpria do perodo moderno.

    34 Foucault e a Psicologia

    provenient e de Artaud, apont ando para uma escrit a no limia r entre aloucura (ausncia de sentido) e a obra (produo de uma ordem deter-m inada) . D e todo m odo , a l inguage m do louc o , dada num aautoimplicao que no apontaria para nada mais alm dela (o vazio dalinguagem), serve de modelo para a compreenso da literatura, e medidapara julgar o suposto progresso da psiquiatria.

    Agindo num sentido excludente, a constituio do dispositivo psi-quitrico revelar em seu desenrolar o silenciamento, a distncia e a ten-tativa de domnio da experincia trgica da loucura. Esta histria sercontada na partio entre dois nveis, o da Percepo (que vir mais tarde aconfigurar o que Foucault nos anos setenta designa por poder) e o doConhecimento (que vir a se transformar em saber em As Palavras e asCoisas), distribudos em trs grandes perodos: Renascimento (do fim da

    Idade Mdia at 1650, data inicial do Grande Internamento), Idade Clssica(de 1650 at 1789, e a suposta libertao dos loucos por Pinel) eModernidade (que engloba a atualidade). Somente a experincia trgica daloucurapermaneceria imvel ao longo dos tempos. Ainda que ao longo dafase arqueolgica mudem os alvos de pesquisa para a clnica e para ascincias do homem, estes perodos permanecero os mesmos.

    Mesmo sendo mudados os referenciais da pesquisa foucaultiana,persevera a hiptese do primeiro perodo, da psicolog ia gerada atravsdos avessos da prtica, ou, conforme frmula de Frederic Gros (1997,p.80 ), da luz das empir icidades nasc endo na escur ido . No presen tecaso, a escurido refere-se s baixas origens da psicologia ligadas aomovimento de internao massiva da loucura (perodo clssico) e fi-xao de uma natureza humana como verdade da loucura a partir da

    paralisia geral, loucura moral e da monomania: "o homo psychologicus descendente do homo mente captus" (Foucault, 1961-B, p.522). Parautilizar novamente uma imagem de Gros (1997, p.79), o homem e apsic olog ia "ap iam sua posit ividade no vaz io furi oso do insen sato".Quanto ao homem, este "s se torna natureza para si na medida em que capaz de loucura [...] forma principal e primeira do movimento com oqual a verdade do homem passa para o lado do objeto e se torna

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    acessvel a uma percepo cientfica" (Foucault, 1961-B,p.518) .

    Noque diz respeito psicologia:

    O paradoxo da psicologia "positiva" do sculo XIX o de s ter sidopossvel a pa rtir do m omento da negativ idade: psicolo gia d a per sonalid adepor u ma an lise do de sdob ramen to; ps icolog ia da memr ia pela s amnsias;da linguagem pelas afarias, da inteligncia pela debilidade mental. (op. cit., p.518).

    A loucura moderna sob a qual repousa o honro psychologicus seriamarcada por uma srie de aporias, que se veriam refletidas no campo doconhecimento. deste modo que a loucura reflete ora a verdade maisprimitiva, ora a verdade mais terminal do homem; ora a loucura repre-senta o triunfo do orgnico (materialismo), ora a maldade em estado

    selvagem (espiritualismo); ora o acmulo de razes que se desdobra nairresponsabilidade (determinismo), ora a ausncia de qualquer razo plau-svel; ora uma contradio na prpria razo em vigor, ora a necessidade darazo do outro, como no tratamento moral (op.cit., pp. 512-514).

    Em suma, neste sentido que se pode dizer que a psicologia tributriada loucura, mas no vice-versa. De modo que possvel afirmar queFoucault pretende tomar a desmedida como medida da psicologia:

    Ela [a psicologia] est sempre na encruzilhada entre dois caminhos:aprofundar a negatividade do homem ao ponto extremo onde amor emorte pertencem um ao outro indissoluvelmente, bem como o dia e anoite, a repetio atemporal das coisas e a pressa das estaes que se sucedem -e acaba por filosofar a marteladas. Ou ento exercer-se atravs de retomadas

    incessantes, os ajustamentos do sujeito e do objeto, do interior e do exterior,do vivido e do c onhecimento (op. cit., p.522).

    A psicanlise desbancada por Nietzsche como via de acesso aonegativo do homem. Nesse incio dos anos sessenta, passa a ter estatutoambguo, pois se Freud teve a vantagem de se opor estrutura asilar, poroutro lado, ele est includo na linhagem mdica inaugurada por Pinel:

    Freud fez deslizar na direo do mdico todas as estruturas que Pinel e Tukehaviam organizado no internamento. Ele de fato libertou o doente dessaexistncia asilar na qual tinham alienado seus "libertadores". Mas no olibertou daquilo que havia de essencial nessa existncia; agrupou os poderesdela, ampliou-os ao mximo, ligando-os nas mos do mdico... (Foucault,op.cit, p. 503).

    Contudo, como lembra Derrida (1994), Histria da Loucura um dostextos mais ambguos de Foucault, onde seu pndulo oscila mais, poisem vrias outras passagens a psicanlise vista como prxima experinciada desrazo clssica abafada pela psicologia moderna (posio presente emtodo o livro, com exceo dos dois ltimos captulos):

    Freud retomava a loucura ao nvel de sua linguagem, reconstitua um

    dos elementos essenciais de uma experincia reduzida ao silncio pelopositivismo. Ele no acrescentava lista dos t ratamentos psicolgicos daloucura uma adio maior; reconstitua, no pensamento mdico, apossibilidade de dilogo com o desatino... (Foucault, 1961-B, p.338).

    2. b) A Arqueologia do olhar (Nascimento da Clnica, 1963-1964)

    Do mesmo modo que opera em relao histria da psiquiatria,Foucault, no exame da clnica, pretende pr prova o seu estatutoatemporal, atravs de um suposto olhar que se apuraria progressiva-mente. Pelo contrrio, ela se constituiria atravs de diversas articula-es entre o visvel e o dizvel. Para tal, o par estrutural Ver-Dizer (ou

    olhar loquaz, olhar-linguagem, espacializao-verbalizao, etc.) se im-pe como conceit o fundamenta l. Aqui, cada termo perten ce ao outronuma relao intrnseca, de resto bem diversa da distncia do parPer-cepo-Conhecimento. tambm em O Nascimento da Clnica (1963-B)que Foucault faz a primeira referncia ao termo arqueologia, presenteno subttulo. As fases desta histria so as mesmas de Histria da Lou-cura: haveria umaprotoclnica clssica (com o predomnio do dizer sobreo ver, marcada por uma taxonomia dos sintomas, relacionando-os

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    como signos dentro de uma botnica das espcies patolgicas ideais) euma antomo-clnica moderna (com o privilgio do visvel no par estru-tural, remetendo a patologia no mais a um conjunto de signos ideais,mas ao volume corporal dos tecidos), intermediadas por uma clnica napassa gem do sculo XVIII para o XIX (com equil bri o entr e viso ediscurso, onde sintoma e sentido se equivalem).

    A referncia s prticas sociais, ou como Foucault chama neste li-vro, estruturas tercirias da medicina, do-se na primeira metade do livro,numa abordagem prxima da que ser retomada no perodo genealgico,ainda que se sustente aqui uma concepo repressiva do poder. A tese deFoucault sobre as estruturas tercirias da medicina remete soluo decompromisso entre as foras presentes no perodo da Revoluo francesa:entre o corporativismo dos mdicos, buscando codificar o ensino profis-

    sional para controle dos charlates; o liberalismo emprico, associado ao fimdos privilgios, associando qualquer conhecimento ao olhar livre; e oassistencialismo, presente na instituio hospitalar, enquanto depsito dedoentes pobres, com o fim de isol-los do convvio com outras classes. Aclnica costura estas demandas enquanto ensino emprico-prtico quedistingue os mdicos dos oficiais de sade em sua formao, os primeirosatuando sobre os pobres depositados nos hospitais, que pagariam a suaassistncia com a exposio para uma pedagogia clnica a ser revertidamais tarde em tratamento seguro para as classes mais altas.

    Mantm-se aqui a mesma lgica de gnese pelo avesso das prticasinaugurada pelo primeiro Foucault e prosseguida na Histria da Loucura,conforme atesta Frederic Gros (1997, pp. 75-82). Da mesma maneiraque se devem buscar as origens da psicologia na loucura, a da clnica deve

    ser buscada na morte': "Isto que estabelece a rigidez de um cadver ofrio rigor das leis que comandam a vida"(op. cit., p. 80). De toda maneira, esta lgica que permite que pela primeira vez se estabelea no oci-

    A questo da linguagem e da literatura, associada agora ao tema da morte da linguagem(Maurice Blanchot) e da transgresso (Georges Bataille). Esta a tese defendida no segun-do captulo (A Morte) do livro Foucault, a filosofia e a literatura de Machado (1999).Conferir tambm Plbart (1989, p.80) e O prefcio transgresso (Foucault, 1963-A).

    38 Foucault e a

    Psicologia

    ente uma cincia do indivduo, tomando o homem como objeto: "Avelha lei aristotlica que interditava sobre o indivduo o discurso cientficofoi levantada quando, na linguagem, a morte encontrou o lugar de seuconceito" (Foucault, 1963-B, pp. 195-196). Na dcada seguinte,genealgica, caber prtica do exame e no mais morte ou loucura agnese do indivduo. Ainda que o entorno de seu pensamento se modifique,as palavras do jovem Foucault ainda ecoam:

    O homem ocidental no pde se constituir a seus prprios olhos comoobjeto da cincia, ele no se toma no interior de sua linguagem, nem se da si seno na abertura de sua prpria supresso: da experincia daDesrazo, nascem todas as psicologias e a possibilidade mesma da psico-logia; da integrao da morte no pensamento mdico nasce uma medicinaque se constitui como cincia do indivduo (Foucault, op. cit., p.227).

    Outra passagem relevante as d quando Foucault relaciona osurgimento das Cincias Humanas passagem de uma medicina regu-lada pela noo de sade para uma mais recente regida pelo conceito denormalidade:

    Se as cincias do homem apareceram no prolongamento das cincias da vida,

    talvez porque estavam biologicamente fundadas, mas tambm porque oestavam medicamente; sem dvida por transferncia, importao e, muitasvezes metfora, as cincias do homem utilizaram conceitos formados pelos

    bilogos; mas o objeto que eles se davam (o homem, suas condutas, suasrealizaes individuais e sociais) constitua, portanto, um campo divididosegundo o princpio do normal e do patolgico. (op. cit., p.40).

    Por outro lado, inaugura-se a fase de aproximao com a psican-lise, que segue atAs Palavras e as Coisas.No textoA loucura, ausncia deobra (1964-A), Foucault considera quatro desvios da linguagem, reme-tidos a quatro modos de loucura: as palavras sem sentido (prpria dosinsensatos, imbecis e dementes), as blasfematrias (dos violentos e furi-osos), as palavras com sentido proibido (dos libertinos e teimosos) e a

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    l inguagem esot r ica (para onde a loucura migra no inc io damodernidade). Esta quarta modalidade apontaria para uma forma dalinguagem e da loucura que somente a psicanlise daria conta, na me-dida em que toma-a no como uma ordem oculta, "mas como reteno esuspenso do sentido, como criao de um vazio onde possa se alojar noum, mas vrios e diferentes sentidos" (Plbart, 1989, p.115). Tal concepofaz eco com a tese exposta em Nie tzsc he, Mar x e Freu d (Foucault,1964-B), em que a interpretao vista no como uma escavao desentidos, mas como uma sobreposio destes por sua fora, sem quehaja um primeiro termo de origem.

    2.c) A Arqueologia do Saber (As Palavras e as Coisas, 1965-1967).

    Neste livro Foucault ir tambm se posicionar no interior da contendamais marcante do pensamento francs da poca: a que opunha estruturalistase fenomenlogos. Ainda que o privilgio concedido histria distancie-odo perfil de um estruturalista clssico, e que a sua idia de estrutura seaproxime mais da de Georges Dumzil do que da de Claude Lvi-Strauss e Jacques Lacan, do lado destes que Foucault ir se perfilar.Irmana-se a estes ao negar o privilgio do conceito de homem ("apenas umrosto a se desvanecer na areia") e de sujeito em prol de um sistema delinguagem pura (1966-B, p.32), ou ser da liguagem. As diferenas comrelao ao entendimento do que seja esta linguagem pura, e o privilgio dahistria se tornaro mais latentes no proximo subperodo, e oestruturalismo inicial de Foucault ceder sua negao, como ocorre comvrias de suas alianas ao longo de seus trabalhos.

    Neste texto ser propos ta uma nova trama conceitual. Teramos deum lado ossaberes, ou os conjuntos de enunciados que so possveis dentrode uma poca (anteriores a qualquer legitimao cientfica), e por outro,aquilo que subjaz arqueologicamente a estes, a pistm, que fornece umalgica ou uma estrutura congruente a todo este conjunto de saberes. Apistm, com suas caractersticas de profundidade e globalizao (cf.Machado, 1982-A, pp. 149-150), refere-se condiode possibilidadehistrica de um conjunto de saberes aparentemente dispersos numperodo, nutrindo-os como o seu "hmus" (Canguilhem, 197 0). Est a"experincia pura da ordem e de seus modos de ser" (Foucault,

    1966-A, p.10) o que permite se pensar numa estrutura histrica (pormais contraditrio que seja este termo) dos saberes, como, por exemplo, a

    representao, enquanto pistrn do perodo clssico, dada na tomadados objetos atravs da relao de signos, analisando-os, ordenando-os eclassificando-os, como prprio da histria natural, anlise dasriquezas e gramtica geral dos sculo XVII e XVIII. Em oposio aesta lgica taxonmica com fundamento divino, a modernidadeatravs das cincias empricas (biologia, economia e fi lologia )pe ne tr ar ia ma is al m da s su pe rf c ie s se mit ic as , seaprofundando no volume dos corpos, escavando um objeto at entoinusitado: o homem enquanto ser histrico e finito, uma vez que vivo,falante e produtor de valores. Este mesmo homem que, de objetoemprico, reduplicado em fundamento transcendental pela filosofia,

    desbancando Deus e fechando em torno de si um crculo, que Foucaultdenominar antropolgico. Crculo em que o homem ganha duplo es-tatuto de ser transcendental e emprico, fonte do cogito e limite impen-sado deste, retorno e recuo de toda origem. Neste crculo, a filosofiacrtica de Kant, que buscava separar entre um nvel emprico e outrotranscendental, ser esquecida. deste modo que o crculo antropol-gico, de efeito da negatividade das prticas nas fases anteriores do pen-samento foucaultiano, torna-se pistni, condio de possibilidade dos

    saberes modernos, como a psicologia e as demais cincias humanas10.

    Com as mudanas na anlise da modernidade, muda tambm o apriori histrico da psicologia, estabelecendo-se em Foucault uma segunda

    hiptese quanto gnese deste saber. deste modo que a psicologia, comoas cincias humanas, reduplica o homem como objeto emprico nohomem como ser transcendental, atravs da representao (ressuscita-

    "Lebrun (1985) vislumbra uma continuidade entre estas duas possibilidades, em que a

    alteridade continua a se manifestar pelo impensado, que passa a ser transformado depositivo em negativo pela filosofia.

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    da da idade clssica) numa conscincia. Reduplicao, uma vez que ohomem como fundamento j seria, por sua vez, uma duplicao filosficado homem escavado como objeto emprico pelas cincias empricas(biologia, economia e filologia). Este quadro reduplicado das CinciasHumanas configurado atravs de um triedro (incluindo aqui t ambm osmodelos formais das matemticas). Assim, na psicologia, o que se encontrareduplicado o transcendental positivista da norma, que por si j aduplicao da anlise emprica da funo em biologia. Mas perfeitamentepossvel se pensar uma psicologia nos duplos da economia (conflito eregra) ou da lingstica (significao e sistema). Cincias empricas (ou dohomem), filosofias antropolgicas e sistemas formais constituem os eixosdo triedro moderno em que a psicologia, junto com as cincias humanas,ocupar o volume interno (Foucault, 1966-A, pp. 450-451). Em funo

    desta minuciosa descrio da epistm moderna, que Canguilhem(1970, pp.146-147) comparar analogicamente o que foi a Crtica da RazoPurapara as Cincias Naturais, com o que pde serAs Palavras e as Coisaspara as Cincias Humanas.

    Alm destas consideraes presentes em As Palavras e as Coisas,Foucault, numa curiosa entrevista a Alain Badiou (Foucault, 1965, p.440), define a psicologia como uma Cincia Humana singular, uma vezque em oposio s demais: como cincia da alma em oposio fisiologia;como cincia do indivduo em oposio sociologia; e como cincia daconscincia em oposio s filosofias de Nietzsche e Schopenhauer,oposio esta mais decisiva, e que reaglutina todo o campo das cinciashumanas em torno da noo de inconsciente (mas ainda dentro do crculoantropolgico). Ressalta tambm o aspecto normativo da psicologia, tal

    como ser deslindado no perodo genealgico: "Toda psicologia umapedagog ia, todo deciframento uma teraputica, voc no pode sabersem transformar" (op. cit., p. 444). De igual modo ressalta a importncia deDilthey na definio das cincias humanas em oposio s cincias naturais,e em torno da hermenutica, "tcnica [...] que no tem cessado de existirno mundo ocidental desde os primeiros gramticos gregos, dentre os exegetasda Alexandria, dentre os exegetas cristos e modernos"(op.cit., pp. 446-447). Curiosa hiptese sobre a gnese das Cincias Humanas (e daPsicologia) sob as graas da hermenutica, que comear a ser desenvolvidaquinze anos mais tarde no perodo dos estudos sobre o cuidado de si.

    A psicanlise tem aqui a sua fase de elogio mximo. Forma junto coma etnologia e a lingstica (pontas de lana do estruturalismo napoca), as Contracincias Humanas, que dissolvem o ser humano emsuas anlises:

    Em relao s `cincias humanas', a psicanlise e a etnologia so antes'contracincias'; o que no quer dizer que sejam menos 'racionais' ou`objetivas' do que as outras cincias, mas sim que as abordam contra acorrente, reconduzindo-as ao seu suporte epistemolgico e que no ces-sam de 'desfazer' este homem que nas cincias humanas faz e refaz a sua

    positividade (Foucault, 1966-A, pp. 492).

    Contudo, na entrevista concedida a Alain Badiou, Foucault (1965)volta a situar a psicanlise e a interpretao no mesmo Crculo Antro-polgico em que se encontra encerrada a psicologia experimental. Maisainda: toda a Psicologia bem como as Cincias Humanas se encontrari-am redefinidas pela noo de inconsciente: ela redefiniria velhos pro-blemas, como as oposies indivduo X sociedade e alma X corpo, dissol-vidas em prol do conceito de psych (op.cit., p.441). Aqui a psicanlise ea psicologia situam-se do lado da exegese e da hermenutica, e emoposio literatura e loucura, posicionadas no mbito da semiologia(Foucault, 1965, pp. 442-443). Se no primeiro caso a linguagem buscada como uma interpretao ltima, na semiologia ela tomadano vazio de suas leis.

    Balanando ainda mais o pndulo referido por Derrida, Foucault,em um outro texto da mesma poca, Nietzsche, Marx e Freud (Foucault,

    1964-B), sustenta que este trio de pensadores se irmana ao tomar ainterpretao a partir da infinitude, da violncia, da falta de um refe-rente primeiro e de um interpretante. A interpretao, presente aquicomo uma estranha fuso entre o domnio dos saberes e o da lingua-

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    mbido" (op.cit. p. 50). Se os riscos do discurso podem ser externos (poder e desejo) ou internos (acaso e aconte?cimento), os sistemas de exclus?o tamb?m o s?o externos (proibi??o

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    gem, visvel numa "regio entre a loucura e a pura linguagem" (op. cit., p.27)marca o vazio da linguagem com que a psicanlise dialogar. A interpretaoter seu espao privilegiado no pensamento foucaultiano da prximasubfase, sob o nome de discurso. Mas a psicanlise no mais: o pnduloser paralisado no seu ponto mais distante.

    2.d) Perodo de transio: a Arqueologia dos enunciados

    (Arqueologia do Saber, A Ordem do Discurso, 1968-1970)

    Morey (1996, p.17) descreve Arqueologia do S aber como um livropossuidor de uma metodologia ficcional inteiramente escrita em condicional,que no se aplica a nenhum outro livro seu. Da o equvoco de Dreyfus e

    Rabinow (1995) em julgar o seu fracasso terico deste texto como tendoconduzido genealogia. Pelo contrrio, podem ser vistas caractersticasantecipadoras da genealogia se forem comparadas as caractersticas dosdiscursos com a subseqente analtica genealgica do poder. Da mesmaforma com que o poderproceder na genealogia, os discursos se impemcomo unidade de anlise, se propondo na sua materialidade, disperso,raridade e fora irruptiva a substituir as antigas unidades tradicionais daanlise. Da a recusa s grandes unidades da linguagem como esprito,sujeito, autor (no seriam mais fundamentos, mas funes variveis ecomplexas do discurso), obra e escrita (meras substitutas das noesanteriores), objeto, rea temtica, mtodo, estilo e conceito (formados atravsdas regras das formaes discursivas), significado, frase, proposio eestrutura (meros produtos da monarquia do significante). Em A Ordem do

    Discurso, Foucault (1970, pp. 60-70) define pela primeira vez a sua tarefacomo genealgica, ainda que no se refira analtica dos poderes: eladiria respeito ao exame dos discursos em sua disperso, descontinuidadee regularidade; enfim, em seu poder de afirmao, prprio de umpositivismo feliz.

    Os discursos constituem objetos que sintetizam caractersticas dossaberes e do ser da linguagem (nesta poca praticamente desaparecem ostextos sobre linguagem literria), e que, por outro lado, antecipam as

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    relaoespecficade autorianasCinciasHumanas(O que um autor?,1968-B).Esta idia,j presentedesdeNietzsche,Marx eFreud(1964B),apontapara umafigura deautordiversadasCinciasNaturai s,em quenestas apresenade umnome,como porexemplonoTeoremade Ta les ,apontaapenas

    para umahomenagem. Nestecaso, o atode fun-dao doautorpertence aum mesmoconjuntodetransformaes lgi-cas queestesistemasofrer aolongo dotempo(Foucault,1968-B,p.61).Dentre osinstauradores dediscursividade, aocontrriodo queocorre nasCinciasNaturais, oretorno aum autoraponta parauma volta,

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    ao mesmotempolegitimadora (no setrata

    apenas deumahomenagem) ediferencial,escavandono textovriosoutrosdiscursospossveis:"a ins-taurao

    dediscursividade heterognea emrelao ssuastransfor-maesulteriores"(op. cit. ,p.62).Aqui a

    fundaoseencontra,pois, emrelao deretrao ouexcessocomrelao aosdesenvolvi

    mentossubseqentes. Segue-se da quea validade

    dosdiscursossubseqentes no seencontrapertinenteem relao suaestruturaounormatividadeintrnseca,

    mas aoprprioapelo aosinstauradores. estereexamecontnuo,franqueado peladiscursividade, queseper mit e a

    contnuareleitura deMarx eFreud, masjamais deGalileu eNewton.

    3-

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    Foucault e a Psicologia

    Foucau

    lt

    geneal

    ogista(dca

    da de

    setent

    a)

    Oobjetopost ula do,os

    poderesno s oma is doque atraduopar a ocampo dapr ti cassociaisdaspro pri edades dosdiscursos:materialid

    ade,disperso,forairruptiva eraridade. destemodo queFoucaultprop euma novaanaltica

    do poder,denaturezabli ca, derestooposta

    liberal e marxista,ambasbaseadasno binmiocontrato-opresso(conferirFoucault(1976-D,p. 175).Assim,nohaveria

    um nicopoder queemana dec ima, doEstado,proprieda-de de umaclasse (aburgue sia), atuandopor raz eseconmicas, eoperando

    apenas nosentidorepressivo, ouquandomuito,pro du-zindoideologia,ou falsaconscincia

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    . Tal leiturado poderde cunhoeconmico-jurdico,prpria do

    podersoberano,noreconheceumamultiplicidadede poderesque seespalhampor toda sasdireesdasociedade

    (trata-sede umaredesinptica,decapilaridades) , aomodo delutascontnuase semsujeito,situadasnasrelaes,en tr e o scorpos,poden doseraglutinadas ou nopor umEstado oupor um aclasse

    social,noapenasreprimindo, maspr incip al

    menteprodu -zindosaberes,desejos eestadoscorporais, egerandoresistnciase co nt ra -poder es.Esta novaanalticado poder

    (Foucaultr ec us a otermoteoria)apontapara outr amatriz,distinta daliberal-marxista,ao apontara guer racomomodelo.ParafraseandoClausewitz: "Apol t ica a gue rr apro lon gada por outrosmeios"(op. cit.,

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    p.1 76) .Narelaocom talconfigurao do

    pode r seinstala umnovopapel dointelectual, no maisnaenunciao decaminhose direesa ser emseguidas,mas na

    pro ble matizaodasrelaesde poder at ua is edestruiodasevidncias a elasligadas,par a tal seengajandoem tor nod e l ut aslocais (emoposioaointelectual global),inventan-do novosmecanismos deresistncia

    , ebuscandosancionare dar vozaos contra-poderes

    (conferirFoucault,1972).

    Osentido dagenealogia pode serv is to e mumesmiuar,de modo

    cada vezmaisdetalhadoas formasde poder:dasformasjurdicas(amedida, oinquritoe oexame)

    passa -se separaoen tr e ospoderessoberano(baseadona l ei ) edisciplinar(baseadona norma),

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    e da subdivisodeste entreumabiopoltica(sobrepopulaes) e umaantomopoltica(sobreindivduos) ; ambosfariamparte dabiopoder.O poderpastoral,propostono finaldos anossetenta,rene todasaspropriedades dobiopoder(individualizador ecoletivizante),modifi-candocontudo anoo depoder,vista nomai s doponto devi st a daguerra

    contnua,mas apart ir dagove rnamentalidade. Estesdesloca-mentos eesmiuamen tos naanalticadospoderesdeterminaro assubfasesdesteperodo.Nestasseroenunciadashiptesesdiversassobre agnese dapsicologia,dapsicanlisee dascinciashumanas,que iro sedesdobrandoconformeos poderespostu lados. Aspsicologias e ascincias

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    humanasvo ser vis tas seproduzindo e sereproduzindo nes te

    amlgamade poderes.Mas detodos estessaberesnenhumter tan-

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    to destaque quanto psicanlise. De uma crtica parcial no incio do

    perodo, ao se alinhar s teses doAnti-dipo de Giles Deleuze eFelix Guacari, Foucault passa no final da dcada a tomar a psicanlisecomo alvo principal de suas problematizaes, questionandoinicialmente o dispositivo da sexualidade, e em seguida, j no perodoseqente, a hermenutica do desejo. A dobradia citada por Derridase mover na direo de um fechamento das portas psicanlise.

    3.a) As Formas Jurdicas (A verdade e as formas

    jurdicas, 1971-1973)

    O primeiro modo em que a questo do poder tematizada se d

    atravs da relao entre as modalidades jurdicas historicamente deter-minadas e as formas de verdade. Relacionar aqui o poder e a verdadeno possui o tom de denncia, a ser concluda na busca de desenlaceentre os termos. Neste aspecto, a verdade no um objetivo a seratingido, mas um objeto a ser estudado. deste modo que a Medida,como modo grego de justia, engendra o Conhecimento Matemtico;o Inqurito, gerado na Idade Mdia serve de parmetro para asCincias da Natureza; e o Exame, produzido na Modernidade,conduz s Cincias Humanas (cf. Foucault, 1997-B). Em outrostextos comoA verdade e as formas jurdicas (1973-C) eVigiar e Punir (1975-A, Foucault no trata da Medida, masdaprova, oujusta entre os homens, em que a justia e a verdadeeram decididas por interveno da graa divina, tal como se procedia

    na Antigidade. De todas as formas de verdade, as Cincias Humanasso as que menos se distanciam de sua estrutura jurdica de origem.

    desta forma que "o exame, meio de fixar ou de restaurar anorma, a regra, a partilha, a qualificao, a excluso" visto como a"matriz de todas as psicologias, sociologias, psiquiatrias, psicanlises, emsuma, do que se chama, cincias do homem" (Foucault, 1997-B, p.20). As demais hipteses que se seguiro neste perodo sero umaprofundamento desta. Contudo, cabem as referncias psicologia comoum quinto poder, numa sociedade em que at o poder poltico passa a

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    ter funo teraputica (Foucault, 1973-B)12. Trata de igual modo(1997C, p.42-43) do surgimento do sujeito psicolgico no sculo XIX,como efeito de uma nova fsica do poder, marcada por uma tica (emque o panoptismo o maior smbolo da vigilncia constante), umamecnica (disciplina da vida, do tempo, das energias) e umafisiologia (normalizao por intervenes corretoras).

    Quanto psicanlise, Foucault endossa de incio as teses de OAnti-dipo de Deleuze e Guatari, num prefcio edioamericana (1973-A). Aqui, um dos trs adversrios da novaconcepo desejante arrolada noAnti-dipo so: "Os deplorveistcnicos do desejo os psicanalistas e semilogos que registram acada signo e cada sintoma e que gostariam de reduzir a organizao

    mltipla do desejo lei binria da estrutura e da falta" (op. cit.,p.198). A crtica nitidamente enderea-se a Lacan. Mas o ataquefundamental psicanlise feita em uma palestra A Casa dosLoucos (Foucault, 1975-B), em que a psicanlise consideradacomo uma das formas iniciais de despsiquiatrizao, ouquebra da relao entre o poder e a verdade sobre o louco que o psiqui-atra propaga no espao asilar. Contudo, o esforo de despsiquiatrizaoda psicanlise se revelaria incompleto, pois se por um lado o poder deenunciar a verdade cede ao silncio do analista, por outro, a recluso serecodifica no poder mdico ritualizado na cena analtica. Aqui retoma-se uma velha tese presente na Histria da Loucura dapsicanlise como ampliadora dos poderes mdicos. Das tentativas dedespsiquiatrizao, ou quebra desta equao verdade-poder,

    promovidas pelas psicocirurgias, psicofarmacologia, psicanlise eantipsiquiatria, somente a ltima romperia este teorema por completo(op. cit., pp.125-126), uma vez que no recodifica nem o saber nem opoder psiquitrico na sua destituio do espao asilar. neste sentidoque a antipsiquiatria se impe enquanto contra podere modo dequestionamento do saber mdico.

    12 Esta idia ser retomada em Vigiar e Punir (1975-A, pp. 20-25), quando Foucault vaiestudar a psicologizao do delito, em que a alma, e no mais o corpo, passa a ser o alvo dainterveno jurdica (no exame, diagnstico e correo). Caso exemplar a relao do crimecom a loucura: se num primeiro momento esta era o limite da punibilidade, num segundomomento ela se torna a essncia daquele.

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    eparan?do o anormal do normal como o joio do trigo: p rofessores, ju ?zes, psiquiatras, m?dicos e psicanalistas (Foucault, 1979-B, p.54). Os in?div?duos s?o o seu alvo e ef

    lvorada da modernidade, erguem-se as "vozes humanistas" contra o excesso de viol?ncia da justi?a. Contudo, mais do que bons sentimentos, o que os reformistas v?o busc

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    0 Foucault e a Psicologia

    3. b)Normatizao e disciplina (Vigiar e Punir, 1973-1975)Aqui, os poderes passam a ser repartidos entre duas grandes

    modalidades: a Soberana, de onde derivam todos os pressupostos clssicosda concepo jurdico-econmica de poder, e a Discip linar, donde selegitimam os poderes das Cincias Humanas, da Medicina e Psiquiatria, eseu respectivo modo de saber, qual seja, o Exame'13.. Se a forma Soberanaopera conforme o critrio da Lei, a Disciplina atua conforme o princpioda Norma, de natureza biolgica e vital. O poder soberano representa uminstrumento da monarquia no combate aos poderes feudais, substituindoa guerra pelo tribunal, pelo litgio judicirio, fazendo reaparecer o direitoromano nos sculos XIII e XIV (Foucault, 1976B, pp.24-25).Posteriormente a burguesia passa a usar este modo de poder jurdicocalcado no direito para dar forma s trocas econmicas, e em seguida, prem xeque a prpria monarquia (op. cit., p. 25). Este modo de poder, emque atravs da lei se atua por decretos e enunciados sobre uma realidaderepresentada como cdigo inflexvel, apresenta alguns inconvenientes: semostra descontnuo (o castigo espordico e exemplar), com malhaslarga