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MICHEL FOUCAULT

OENÇA MENTAL E PSICOLOGIA

Título Original: Maladie mentale et psychologieAutor: Michel FoucaultTradução: Hélder ViçosoGrafismo: Cristina LealPaginação: Vitor Pedro

© Presses Universitaires de France

Todos os direitos reservados paraEdições Texto & Grafia, Lda.

Avenida Óscar Monteiro Torres, n.º 55, 2.º Esq.1000-217 LisboaTelefone: 21 797 70 66Fax: 21 797 81 30E-mail: [email protected]

Impressão e acabamento:Papelmunde, SMG, Lda.1.ª edição, Setembro de 2008

ISBN: 978-989-95689-9-0Depósito Legal n.º 282120/08

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzidano todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,sem a autorização do Editor.Qualquer transgressão à lei do Direito de Autorserá passível de procedimento judicial.

É em torno da ideia de conhecimento articulado com as necessidades de aquisição de uma cultura geral consistente que se projecta a colecção “Biblioteca Universal”.

Tendo como base de trabalho uma selecção criteriosa de autores e temas – dos quais se destacarão as áreas das Ciências Sociais e Humanas –, pretende-se que a colecção esteja aberta a todos os ramos de saber, sejam de natureza filosófica, técnica, científica ou artística.

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INTRODUÇÃO

õem-se duas questões: em que condições podemos falar de doença no domínio psicológico? Que relações podemos estabelecer entre os factos da patologia men-

tal e da patologia orgânica? Todas as psicopatologias estão sujei-tas a estes dois problemas: há as psicologias da heterogeneidade que se recusam, como fez Blondel 1, a ler em termos de psicologia normal as estruturas da consciência mórbida; e, pelo contrário, as psicologias, analíticas ou fenomenológicas, que procuram refazer a inteligibilidade de qualquer comportamento, mesmo demente, em significações anteriores à distinção do normal e do patológico. Uma divisão análoga é feita igualmente no grande debate da psicogénese e da organogénese: investigação da etiologia orgânica, desde a descoberta da paralisia geral, com a sua etiologia sifilítica; ou análise da causalidade psicológica, a partir das perturbações sem fundamento orgânico, definidas no fim do século XIX como síndrome histérica.

De tantas vezes repisados, tais problemas, hoje, repugnam, e não teria qualquer interesse resumir os debates que suscita-ram. Porém, é legítimo perguntar se o incómodo não resulta de se dar o mesmo sentido às noções de doença, sintomas e etiologia em patologia mental e em patologia orgânica. Se parece tão difícil definir a doença e a saúde psicológicas, não será porque nos esforçamos em vão por aplicar-lhes, grosso modo, conceitos também destinados à medicina somática? A dificuldade em encontrar a unidade das perturbações orgâni-cas e das alterações da personalidade não resulta do facto de

1 Charles Blondel, psicólogo francês (1876-1939) [N. T.].

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se supor uma estrutura do mesmo tipo para elas? Para além da patologia mental e da patologia orgânica, há uma patolo-gia geral e abstracta que domina ambas, impondo-lhes, como tantos preconceitos, os mesmos conceitos, e apontando-lhes os mesmos métodos como tantos postulados. Desejaríamos mostrar que não se deve procurar a raiz da patologia mental numa qualquer «metapatologia», mas numa certa relação, his-toricamente situada, do ser humano 2 com o ser humano louco e o ser humano verdadeiro.

No entanto, é necessário fazer um rápido balanço, para lem-brar ao mesmo tempo como se constituíram as psicopatologias tradicionais ou recentes, e para mostrar de que pré-requisitos deve a medicina mental estar ciente para encontrar um novo rigor.

2 Ao longo desta obra, o vocábulo homme – na acepção de «être humain» – é traduzido por «ser humano» [N. T.].

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patologia geral de que acabámos de falar desenvol-veu-se em duas etapas principais.

Como a medicina orgânica, a medicina mental tentou, a princípio, decifrar a essência da doença no agrupamento coerente dos sinais que a indicam. Elaborou uma sintomatologia em que são realçadas as correlações constantes, ou só frequentes, entre este tipo de doença e aquela manifestação mórbida: a aluci-nação auditiva, sintoma de certa estrutura delirante; a confusão mental, sinal de certa forma demencial. Constituiu, por outro lado, uma nosografia em que são analisadas as próprias formas da doença, descritas as fases da sua evolução, e restituídas as variantes que pode apresentar: teremos doenças agudas e doenças crónicas; serão descritas as manifestações episódicas, as alternân-cias de sintomas, e a sua evolução no decurso da doença.

Pode ser útil esquematizar tais descrições clássicas, não só a título de exemplo, mas também para fixar o sentido originá-rio de termos classicamente utilizados. Iremos buscar a velhas obras do início do século XX descrições cujo arcaísmo não nos deve fazer esquecer que foram termo e ponto de partida.

Dupré definia assim a histeria: «Estado em que o poder da imaginação e da sugestibilidade, unidos a essa sinergia parti-cular do corpo e da mente que denominei psicoplasticidade, leva à simulação mais ou menos voluntária de síndromes pato-lógicas, à organização mitoplástica de perturbações funcionais, impossíveis de distinguir das dos simuladores 3.» Esta definição clássica designa, portanto, como sintomas principais da histeria a

3 DUPRÉ, La Constitution émotive (1911).

CAPÍTULO I

MEDICINA MENTAL E MEDICINA ORGÂNICA

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sugestibilidade e o aparecimento de perturbações como a parali-sia, a anestesia, a anorexia, que não têm, neste caso, fundamento orgânico, mas uma origem exclusivamente psicológica.

A psicastenia, desde os trabalhos de Janet, caracteriza-se por esgotamento nervoso com estigmas orgânicos (astenia muscular, perturbações gastrointestinais, cefaleias), astenia mental (fatiga-bilidade, impotência perante o esforço, aflição face ao obstáculo; inserção difícil no real e no presente: aquilo a que Janet chamava «a perda da função do real») e, por fim, perturbações da emoti-vidade (tristeza, inquietação, ansiedade paroxística).

As obsessões: «aparecimento – num estado mental habitual de indecisão, dúvida ou inquietação e sob a forma de acessos paroxísticos intermitentes – de obsessões-impulsos diversos» 4. Distingue-se da fobia, caracterizada por crises de angústia paro-xística perante objectos determinados (agorafobia face a espaços vazios), a neurose obssessiva, na qual são, sobretudo, marcadas as defesas que o doente ergue contra a sua angústia (precauções rituais, gestos propiciatórios).

Mania e depressão: Magnan denominou «loucura intermi-tente» tal forma patológica, na qual se vêem alternar, com intervalos mais ou menos longos, duas síndromes opostas: a síndrome maníaca e a síndrome depressiva. A primeira com-porta agitação motora, um humor eufórico ou colérico, uma exaltação psíquica caracterizada por verbigeração, rapidez das associações e fuga de ideias. A depressão, pelo contrário, apresenta-se como uma inércia motora sob fundo de humor triste, acompanhada de lentificação psíquica. Por vezes isola-das, a mania e a depressão estão geralmente ligadas por um sis-tema de alternância regular ou irregular, de que Gilbert-Ballet delineou os diferentes perfis 5.

4 DELMAS, La Pratique psychiatrique, 1929.5 G. BALLET, “La psychose périodique”, Journal de Psychologie,

1909-1910.

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A paranóia: num segundo plano de exaltação passional (orgu-lho, ciúme) e hiperactividade psicológica, vemos desenvolver-se um delírio sistematizado, coerente, sem alucinação, que crista-liza numa unidade pseudológica ideias de grandeza, persegui-ção ou reivindicação.

A psicose alucinatória crónica é também uma psicose deli-rante; mas o delírio é mal sistematizado, muitas vezes incoe-rente, as ideias de grandeza acabam por absorver todos os outros numa exaltação pueril do personagem; por último e sobretudo, ele é alimentado por alucinações.

A hebefrenia, psicose da adolescência, é classicamente defi-nida por uma excitação intelectual e motora (tagarelice, neolo-gismos, calemburgos; maneirismos e impulsos), por alucinações e um delírio desordenado, cujo polimorfismo vai empobre-cendo pouco a pouco.

A catatonia reconhece-se pelo negativismo do sujeito (mutismo e recusa de alimento, fenómenos a que Kraepelin chamou «bar-ragens de vontade»), pela sua sugestibilidade (passividade mus-cular, conservação das atitudes impostas, respostas em eco), enfim, por reacções estereotipadas e paroxismos impulsivos (descargas motoras brutais que parecem submergir todas as barragens instauradas pela doença).

Observando que estas três últimas formas patológicas, que intervêm bastante cedo no desenvolvimento, tendem para a demência, ou seja, para a desorganização total da vida psicoló-gica (o delírio esvai-se, as alucinações tendem a dar lugar a um onirismo sem nexo, a personalidade soçobra na incoerência), Kraepelin agrupou-as sob a denominação comum de Demência Precoce 6. Bleuler recuperou esta mesma entidade nosográfica, alargando-a a algumas formas de paranóia 7, e deu ao conjunto

6 KRAEPELIN, Lehrbuch der Psychiatrie (1889).7 E. BLEULER, Dementia præcox oder die Gruppe der Schizophre‑

nien (1911).

I – MEDICINA MENTAL E MEDICINA ORGÂNICA

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OENÇA MENTAL E PSICOLOGIA

o nome de esquizofrenia, caracterizada, de uma maneira geral, por um distúrbio na coerência normal das associações – como um desmembramento (Spaltung) do fluxo do pensamento –, por uma ruptura do contacto afectivo com o meio ambiente e por uma impossibilidade de entrar em comunicação espontâ-nea com a vida afectiva dos outros (autismo).

Tais análises têm a mesma estrutura conceptual das da pato-logia orgânica: aqui e ali, mesmos métodos para distribuir os sin-tomas por grupos patológicos, e para definir as grandes entidades mórbidas. Ora, o que se encontra por detrás deste método único são dois postulados relativos à natureza da doença.

Primeiro, postula-se que a doença é uma essência, uma enti-dade específica reconhecível pelos sintomas que a manifestam, mas anterior a eles e, em certa medida, independente deles; descrever-se-á um fundo esquizofrénico dissimulado sob sin-tomas obsessivos; falar-se-á de delírios camuflados; supor-se-á a entidade de uma loucura maníaco-depressiva por detrás de uma crise maníaca ou um episódio depressivo.

A par desse preconceito de essência, e como que para com-pensar a abstracção que ele implica, há um postulado natu-ralista, que eleva a doença à categoria de espécie botânica; a unidade que se supõe existir em cada grupo nosográfico por detrás do polimorfismo dos sintomas seria como a unidade de uma espécie definida pelos seus caracteres permanentes e diversificada nos seus subgrupos: assim, a Demência Precoce é como uma espécie caracterizada pelas formas derradeiras da sua evolução natural, podendo apresentar variantes hebefrénicas, catatónicas ou paranóides.

Se se define a doença mental com os mesmos métodos con-ceptuais da doença orgânica, se se isolam e reúnem sintomas psicológicos e sintomas fisiológicos, é principalmente porque se considera a doença, mental ou orgânica, como uma essên-cia natural manifestada por sintomas específicos. Entre essas duas formas de patologia não há, portanto, unidade real, mas

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somente, por intermédio desses dois postulados, um parale-lismo abstracto. Ora, o problema da unidade humana e da totalidade psicossomática continua totalmente em aberto.

* * *

Foi o peso deste problema que fez derivar a patologia para novos métodos e novos conceitos. A noção de uma totalidade orgânica e psicológica faz tábua rasa dos postulados que atri-buem à doença o carácter de entidade específica. A doença como realidade independente tende a apagar-se, e renunciou-se a fazê-la desempenhar o papel de uma espécie natural a respeito dos sintomas e o papel de um corpo estranho a respeito do organismo. Pelo contrário, privilegiam-se as reacções globais do indivíduo; entre o processo mórbido e o funcionamento geral do organismo, a doença já não se interpõe como uma realidade autónoma, já só é concebida como um corte abstracto no devir do indivíduo doente.

No domínio da patologia orgânica, lembremos o papel que desempenham actualmente as regulações hormonais e as suas perturbações, a importância que se reconhece aos centros vege-tativos, como a região do terceiro ventrículo que comanda tais regulações. Sabe-se como Leriche 8 insistiu no carácter global dos processos patológicos e na necessidade de substituir uma patologia celular por uma patologia dos tecidos orgânicos. Por seu turno, Selye 9, ao descrever as «doenças da adaptação», mostrou que devia procurar-se a essência do fenómeno pato-lógico no conjunto das reacções nervosas e vegetativas que são como que a resposta global do organismo ao ataque e ao stress provindos do mundo exterior.

8 René Leriche, cirurgião e fisiologista francês (1879-1955) [N. T.].9 Hans Selye, endocrinologista canadiano de origem vienense

(1907-1982) [N. T.].

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Em patologia mental, concede-se o mesmo privilégio à noção de totalidade psicológica; a doença será alteração intrín-seca da personalidade, desorganização interna das suas estru-turas, desvio progressivo do seu devir; ela só se materializará no interior de uma personalidade estruturada. Neste sentido houve o esforço de definir as doenças mentais, de acordo com a amplitude das perturbações da personalidade, e acabou por distribuir-se as perturbações psíquicas por duas grandes cate-gorias: neuroses e psicoses.

1) As psicoses, perturbações da personalidade global, com-portam: um distúrbio do pensamento (pensamento maníaco que foge, corre, desliza em associações de sons ou jogos de palavras; pensamento esquizofrénico, que salta, pula por cima dos intermediários e avança aos solavancos ou por contrastes); uma alteração geral da vida afectiva e do humor (ruptura do contacto afectivo na esquizofrenia; intensas colorações emocio-nais na mania ou na depressão); uma perturbação do controlo da consciência, da perspectivação dos diversos pontos de vista, formas alteradas do sentido crítico (na paranóia, crença deli-rante em que o sistema de interpretação antecipa as provas da sua exactidão e é impermeável a qualquer discussão; indiferença do sujeito paranóide pela singularidade da sua experiência alu-cinatória, que tem para ele valor de evidência).

2) Nas neuroses, pelo contrário, é afectado apenas um sector da personalidade: ritualismo dos sujeitos obcecados a respeito deste ou daquele objecto, angústia provocada por determinada situação na neurose fóbica. Porém, o curso do pensamento per-manece intacto na sua estrutura, conquanto seja mais lento nos sujeitos psicasténicos; subsiste o contacto afectivo, com o risco de ser exagerado até à susceptibilidade pelos sujeitos histéricos; por fim, o sujeito neurótico, mesmo quando apresenta obli-terações de consciência como o sujeito histérico ou impulsos incoercíveis como o sujeito obcecado, conserva a lucidez crítica a respeito dos seus fenómenos mórbidos.

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Em geral, classificam-se entre as psicoses a paranóia e todo o grupo esquizofrénico, com as suas síndromes paranóides, hebefrénicas e catatónicas; entre as neuroses, a psicastenia, a histeria, a obsessão, a neurose de angústia e a neurose fóbica.

A personalidade torna-se, assim, o elemento no qual se desenvolve a doença, e o critério que permite avaliá-la; ela é, em simultâneo, a realidade e a medida da doença.

Viu-se nesta precedência da noção de totalidade um regresso à patologia concreta e a possibilidade de determinar como um domínio único os campos da patologia mental e da patologia orgânica. Com efeito, não é ao mesmo indivíduo humano na sua realidade que uma e outra se dirigem por vias diferentes? Com a implementação da noção de totalidade, não convergirão ambas, ao mesmo tempo, pela identidade dos seus métodos e pela unidade do seu objecto?

A obra de Goldstein 10 poderia ser prova disso. Estudando, nas fronteiras da medicina mental e da medicina orgânica, uma síndrome neurológica como a afasia, recusa tanto as explicações orgânicas por uma lesão local como as interpretações psicológi-cas por um défice global de inteligência. Mostra que uma lesão cortical pós-traumática pode modificar o estilo das respostas do indivíduo ao seu meio; um dano funcional restringe as possibilidades de adaptação do organismo e exclui a eventuali-dade de certas atitudes do comportamento. Quando um sujeito afásico não pode nomear um objecto que lhe mostram, embora possa reclamá-lo se precisar dele, isso não se deve a um défice (supressão orgânica ou psicológica), que poderia ser descrito como uma realidade em si; é que ele já não é capaz de uma certa atitude perante o mundo, de uma perspectiva de denominação que, em vez de se aproximar do objecto para agarrá-lo (greifen), se distancia dele para mostrá-lo e indicá-lo (zeigen) 11.

10 Kurt Goldstein, neurologista e psiquiatra alemão (1878-1965) [N. T.].11 GOLDSTEIN, Journal de Psychologie, 1933.

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Independentemente de as suas designações principais serem psicológicas ou orgânicas, a doença dirá respeito, em todo o caso, à situação global do indivíduo no mundo; em vez de ter uma essência fisiológica ou psicológica, é uma reacção geral do indi-víduo considerado na sua totalidade psicológica e fisiológica. Em todas essas formas recentes de análise médica, pode, pois, fazer-se a leitura de uma significação única: quanto mais se encara como um todo a unidade do ser humano, mais se dissipa a realidade de uma doença que será unidade específica; e, para substituir a análise das formas naturais da doença, impõe-se ainda mais a des-crição do indivíduo que reage patologicamente à sua situação.

Pela unidade que garante e pelos problemas que suprime, tal noção de totalidade está bem feita para proporcionar à patologia um clima de euforia conceptual. Foi desse clima que quiseram aproveitar-se aqueles que, mais ou menos, se inspi-raram em Goldstein. Porém, quis a infelicidade que a euforia não esteja do mesmo lado do rigor.

* * *

Queríamos mostrar, pelo contrário, que a patologia mental exige métodos de análise diferentes dos da patologia orgânica, sendo apenas por um artifício de linguagem que se pode atri-buir o mesmo sentido às «doenças do corpo» e às «doenças da mente». Uma patologia unitária que utilizaria os mesmos méto-dos e os mesmos conceitos no domínio psicológico e no domí-nio fisiológico é actualmente da ordem do mito, mesmo que a unidade do corpo e da mente seja da ordem da realidade.

1) A abstracção. – Na patologia orgânica, o tema de um retorno ao doente para além da doença não exclui a perspecti-vação rigorosa que permite isolar as condições e os efeitos, os processos intensos e as reacções singulares dos fenómenos pato-lógicos. A Anatomia e a Fisiologia propõem justamente à Medi-cina uma análise que autoriza abstracções válidas sob o fundo

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da totalidade orgânica. Por certo, a patologia de Selye insiste, mais do que qualquer outra, na solidariedade de cada fenómeno segmentário com o todo do organismo – não para fazê-los desaparecer na sua individualidade, nem para denunciar uma abstracção arbitrária neles, mas para permitir, pelo contrário, ordenar os fenómenos singulares numa coerência global, para mostrar, por exemplo, como lesões intestinais análogas às da tifóide tomam lugar num conjunto de perturbações hormonais, um elemento essencial das quais é um distúrbio do funciona-mento córtico-supra-renal. A importância dada em patologia orgânica à noção de totalidade não exclui nem a abstracção de elementos isolados, nem a análise causal, permitindo, pelo contrário, uma abstracção mais válida e a determinação de uma causalidade mais real.

Ora, a Psicologia nunca pôde oferecer à Psiquiatria aquilo que a Fisiologia deu à Medicina: o instrumento de análise que, delimitando a perturbação, permitiria encarar a relação funcio-nal desse dano com o conjunto da personalidade. A coerência de uma vida psicológica parece, com efeito, assegurada de maneira diferente da coesão de um organismo; a integração dos segmen-tos tende para uma unidade que torna possível cada um deles, mas se resume e recolhe em cada um: é aquilo a que os psicó-logos chamam – no seu vocabulário retirado da Fenomenologia – a unidade significativa dos comportamentos, que encerra em cada elemento (sonho, crime, gesto gratuito, associação livre) o aspecto geral, o estilo, toda a anterioridade histórica e as even-tuais implicações de uma existência. A abstracção não pode, portanto, ser feita da mesma maneira em Psicologia e em Fisiolo-gia; e a delimitação de uma perturbação patológica exige outros métodos em patologia orgânica e em patologia mental.

2) O normal e o patológico. – A Medicina viu progressivamente esbater-se a linha de separação entre os factos patológicos e os factos normais; ou melhor, apreendeu mais claramente que os quadros clínicos não eram uma colecção de factos anormais e de

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«monstros» fisiológicos, mas eram parcialmente constituídos pelos mecanismos normais e as reacções adaptativas de um organismo que funciona segundo a sua norma. A hipercalciúria resultante de uma fractura do fémur é uma resposta orgânica situada, como diz Leriche, «na linha das possibilidades dos tecidos orgânicos» 12: é o organismo que reage ordenadamente ao dano patológico, como que para repará-lo. Não o esqueçamos, porém: tais considerações baseiam-se numa planificação coerente das possibilidades fisio-lógicas do organismo; e a análise dos mecanismos normais da doença permite, de facto, discernir melhor o impacto do acesso mórbido e, com as virtualidades normais do organismo, a sua aptidão para a cura: assim como a doença está inscrita no interior das virtualidades fisiológicas normais, a possibilidade de cura está escrita no seio dos processos da doença.

Em Psiquiatria, pelo contrário, a noção de personalidade torna singularmente difícil a distinção entre normal e patológico. Bleuler, por exemplo, tinha oposto como dois pólos da patologia mental o grupo das esquizofrenias (pela ruptura do contacto com a realidade) e o grupo das loucuras maníaco-depressivas ou psi-coses cíclicas (com amplificação das reacções afectivas). Ora, tal análise pareceu definir tão bem as personalidades normais como as personalidades mórbidas; e Kretschmer 13 pôde constituir nesse espírito uma caracterologia bipolar, comportando esqui-zotimia e ciclotimia, cuja acentuação patológica se apresentaria como esquizofrenia e «ciclofrenia». Contudo, por isso mesmo, a passagem das reacções normais às formas mórbidas não depende de uma análise precisa dos processos, permitindo apenas uma apreciação qualitativa que autoriza todas as confusões.

Ainda que a ideia de solidariedade orgânica permita distin-guir e unir acesso mórbido e resposta adaptada, o exame da per-sonalidade previne semelhantes análises em patologia mental.

12 LERICHE, Philosophie de la Chirurgie.13 Ernst Kretschmer, psiquiatra alemão (1888-1964) [N. T.].

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3) O doente e o meio. – Por último, uma terceira diferença impede que se trate com os mesmos métodos e se analise com os mesmos conceitos a totalidade orgânica e a personalidade psicológica. Nenhuma doença pode, decerto, ser separada dos métodos de diagnóstico, dos processos de isolamento e dos instrumentos terapêuticos com que a prática médica a envolve. Todavia, a noção de totalidade orgânica faz realçar, indepen-dentemente dessas práticas, a individualidade do sujeito doente, permitindo isolá-lo na sua originalidade mórbida e determinar o carácter próprio das suas reacções patológicas.

Do lado da patologia mental, a realidade do doente não per-mite semelhante abstracção, devendo cada individualidade mór-bida ser compreendida através das práticas do meio a seu respeito. A situação de internamento e tutela imposta ao sujeito alienado, desde o final do século XVIII, e a sua dependência total em relação à decisão médica contribuíram, sem dúvida, para fixar, no fim do século XIX, a personagem do sujeito histérico. Desapossado dos seus direitos pelo tutor e pelo conselho familiar, voltando a cair praticamente no estado de menoridade jurídica e moral, privado de liberdade pela omnipotência do médico, o doente tornava-se o nó de todas as sugestões sociais: no ponto de convergência dessas práticas, oferecia-se a sugestibilidade como síndrome principal da histeria. Impondo a partir do exterior a empresa da sugestão à sua doença, Babinski 14 conduzia-a a esse ponto de alienação em que, abatida, sem voz nem movimento, ela estava pronta a acolher a eficácia da palavra milagrosa: «Levanta-te e anda.» E o médico encontrava o sinal da simulação no êxito da sua paráfrase evangélica, visto que a doente, seguindo a injunção ironicamente profética, se levantava e andava realmente. Ora, naquilo que o médico denunciava como ilusão, deparava-se, de facto, com a realidade da sua prática médica: nessa sugestibilidade encontrava

14 Joseph Babinski, neurologista francês de ascendência polaca (1857-1932) [N. T.].

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o resultado de todas as sugestões e de todas as dependências a que o doente estava sujeito. O facto de as observações já não apresentarem hoje semelhantes milagres não infirma a realidade dos êxitos de Babinski, provando apenas que o rosto do sujeito histérico tende a apagar-se, à medida que se atenuam as práticas da sugestão que constituíam outrora o meio do doente.

A dialéctica das relações do indivíduo com o seu meio não se faz, pois, da mesma maneira em fisiologia patológica e em psicologia patológica.

* * *

Não se pode, por conseguinte, admitir imediatamente nem um paralelismo abstracto, nem uma unidade maciça entre os fenómenos da patologia mental e os fenómenos da patologia orgânica; é impossível transpor de uma para outra os esquemas de abstracções, os critérios de normalidade ou a definição de indivíduo doente. A patologia mental deve libertar-se de todos os postulados de uma «metapatologia»: a unidade garantida por aquela entre as diversas formas de doença é sempre factícia, ou seja, depende de um facto his-tórico, ao qual já escapámos.

Dando crédito ao próprio ser humano e não às abstracções sobre a doença, convém, pois, analisar a especificidade da doença mental, investigar as formas concretas que a Psicolo-gia pôde atribuir-lhe, determinando depois as condições que tornaram possível esse estranho estatuto da loucura, doença mental irredutível a qualquer doença.

A estas questões procuram responder as duas partes desta obra:

1) As dimensões psicológicas da doença mental;2) A psicopatologia como facto civilizacional.

103

Introdução ............................................................................. 7

CAPÍtuLo I – Medicina mental e medicina orgânica ............... 9

PRIMEIRA PARTE

AS DIMENSÕES PSICOLÓGICAS DA DOENÇA

CAPÍtuLo II – A doença e a evolução ...................................... 23

CAPÍtuLo III – A doença e a história individual ...................... 39

CAPÍtuLo IV – A doença e a existência .................................... 55

SEGUNDA PARTE

LOUCURA E CULTURA

Introdução ............................................................................. 73

CAPÍtuLo V – A constituição histórica da doença mental ....... 77

CAPÍtuLo VI – A loucura, estrutura global .............................. 89

ConcLusão .............................................................................. 99

Algumas datas na história da Psiquiatria .................................. 101

ÍNDICE